Upload
daniel-alves-santos
View
67
Download
1
Embed Size (px)
DESCRIPTION
ossui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (1978), Especializações em Língua e Literatura - Universidade Federal de Mato Grosso (1981) e Literatura Infanto-Juvenil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1994), Mestrado em Lingüística - UNICAMP (2000) e Doutorado em Teoria e História Literária - UNICAMP (2007). Atualmente é professora Adjunta do Departamento de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT/Campus de Cáceres, do Programa de Mestrado em Estudos Literários, Campus de Tangará da Serra - MT, UNEMAT/USP (PPGEL) e pesquisadora do Projeto "Configurações literárias e representações do poder nas literaturas de América Latina e da África Austral" (FAPEMAT). Participa de Projetos de Extensão que dialogam com a pós-graduação, a graduação e a educação básica. Tem experiência na área de Letras, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Romantismo, viagem e viajantes; Modernismo, Teoria, História Literárias e Estudos da Literatura Brasileira produzida em Mato Grosso. É Sócia Efetiva e Vice-Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Cáceres. Integra os Grupos: RG Dicke de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso (UFMT/CNPq) e o Núcleo de Estudos Literários 'Clã do Jabuti' - NEL/ CEPLIT/UNEMAT
Citation preview
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
TESE DE DOUTORADO
TAUNAY VIAJANTE E A CONSTRUO DA
IMAGTICA DE MATO GROSSO
OLGA MARIA CASTRILLON-MENDES
2007
3
OLGA MARIA CASTRILLON-MENDES
TAUNAY VIAJANTE E A CONSTRUO DA
IMAGTICA DE MATO GROSSO
Tese apresentada ao Curso de Letras do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Letras. Orientador Prof. Dr. Carlos Eduardo Ornellas Berriel
Unicamp Instituto de Estudos da Linguagem
2007
4
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp C279t
Castrillon Mendes, Olga Maria Castrillon.
Taunay viajante e a construo da imagtica de Mato Grosso / Olga Maria Castrillon Mendes. -- Campinas, SP : [s.n.], 2007.
Orientador : Carlos Eduardo Ornellas Berriel. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem. 1. Taunay, Alfredo D'Escragnolle Taunay, Visconde de,
1843-1899 Critica e interpretao. 2. Romantismo Brasil.. 3. Imagem - Interpretao. 4. Mato Grosso Descrio e viagens. 5. Literatura Historia e critica. I. Berriel, Carlos Eduardo Ornellas. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.
BANCAEXAMINADORA:
CarlosEduardoOmelasBerriel
WilmardaRochaD'Angelis
IaraLisFrancoSchiavinatto
TherezinhaApparecidaPortoAnconaLopez
MariadeFtimaGomesCosta
MriamVivianaGrate
VeraLciadaRochaMaquea
JooEdsondeArrudaFanaia
~t)o
J1ri-
~
5
"
(]Js~ o.,~):2- ~ ,~
~)~'~
fo~ !fj ,
1E({W:\~.\I f
J
IEL
UNICAMP
2007/Agosto
7
Para Lus Mrio, Luciane e Alessandro
9
AGRADECIMENTOS
Muitos contriburam com o possvel; alguns estiveram e se foram. No fluxo vital,
o silncio da torcida e o rumor das vitrias: meus filhos, meus pais, meus irmos,
sempre. Meu hoje companheiro das idas e vindas. Meus colegas-amigos, presena e
partilha, f e esperana da construo coletiva: Maria do Socorro, Neuza, Judite, Vera
Maqua, Elisabeth, Ana Lcia, Danilo, Marinei, Clementino, Edson Flvio. Neuza, Ju
e Vera, gratido especial pelas dedicadas e incansveis leituras e discusses.
A meus pais, Natalino e Olga, estrelas-guia do meu universo familiar e telrico.
s Bancas de Qualificao e de Defesa: Miriam Grate, Wilmar DAngelis, Maria
de Ftima Costa, Iara Lis Schiavinatto, Therezinha Porto Ancona Lopes, Vera Maqua
e Joo Edson Fanaia, estmulo e perspectivas.
A Carlos Berriel, orientador, pelo conhecimento compartilhado desde os
horizontes do Araguaia e pela forma como me fez (trans)ver. Acima de tudo, a presteza,
preciso e objetividade: contnuas lies de que o mnimo pode ser mais.
Que possamos projetar outras viagens!
11
Mundo renovado
No pantanal ningum pode passar rgua. Sobremuito quando chove. A rgua
existidura de limite. E o pantanal no tem limites.
Nos ptios amanhecidos de chuva, sobre excrementos meio derretidos, a
surpresa dos cogumelos! Na beira dos ranchos, nos canteiros da horta, no meio das
rvores do pomar, seus branqussimos corpos sem razes se multiplicam.
O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai o garoto pelo piquete
com olho de descobrir. Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas, sem nome,
sem esquinas.
[...]
Um pouco do pasto ficou dentro dgua. L longe, em cima da pva, o ninho do
tuiui, ensopado. Aquele ninho fotognico cheio de filhotes com frio!
A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est
alegre na roa, porque sua planta est salva. Pequenos caracis pregam saliva nas
roseiras. E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz
rachada de verde.
(Manoel de Barros. Livro de pr-coisas (roteiro para uma excurso potica no Pantanal). In:
Gramtica expositiva do cho (poesia quase toda). 2 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1992.
13
SUMRIO RESUMO................................................................................................................15 RSUM................................................................................................................17 PONTO DE PARTIDA............................................................................................19
PRIMEIRA PARTE VISCONDE DE TAUNAY: PERSONAGEM REPRESENTATIVA DO NACIONAL.. ................................................................................................................................31
CAPTULO I TRADIO E NASCIMENTOS Marcas francesas na cultura brasileira..................................................................33
A Misso Artstica de 1816: o incio de tudo..........................................................36
A famlia Taunay: construo de um discurso artstico-literrio no Brasil..............40
Componentes (de uma viso) do Romantismo......................................................51
Romantismo no Brasil............................................................................................55
Contexto crtico de Taunay....................................................................................58
Taunay na transio de estilos..............................................................................64
A guerra, o missionrio, o escritor.........................................................................69
CAPTULO II METAMORFOSE E CRIAO Um viajante que se constri (viajando)..................................................................81
Imagtica e representao de Mato Grosso..........................................................86
Um quadro da natureza de Mato Grosso...............................................................90
Gnese e confluncias da narrativa de Taunay.....................................................95
CAPTULO III SOB O SIGNO DA VIAGEM A viagem como princpio e meio da criao.........................................................107
Viagem e relato: o arquivo dos ps....................................................................111
Natureza e Paisagem: mundos particulares.........................................................119
14
SEGUNDA PARTE TECHNE E POIETICA: MATO GROSSO SOB O OLHAR DE TAUNAY............127 Captulo IV OS GESTOS DA CRIAO Cenas de Natureza..............................................................................................133
Cenas de batalha.................................................................................................140
Cenas de runas...................................................................................................148
Cenas do serto chamado bruto........................................................................158
Cenas de um romantismo indgena......................................................................165
Captulo V NOS ENTREMEIOS DO ESPAO NACIONAL A imagem de Mato Grosso na (inter)mediao do sentido de Brasil....................171
A obra do Visconde de Taunay nos (tortuosos) caminhos da fico....................175
PONTO DE CHEGADA........................................................................................189 BIBLIOGRAFIA Obras de consulta e de referncia........................................................................195
Obras do Visconde de Taunay.............................................................................214
Bibliotecas, Colees e Acervos consultados......................................................218
ANEXOS..............................................................................................................219 Anexo 1: O rio Aquidauana..................................................................................221
Anexo 2: Referncias sobre o lbum de desenhos em Memrias do Visconde de
Taunay.................................................................................................................224
Anexo 3: O tempo do Visconde de Taunay: entre a Corte do Rio de Janeiro e a
Provncia de Mato Grosso....................................................................................227
15
RESUMO
Alfredo dEscragnolle Taunay, Visconde de Taunay, representou, no sculo XIX, um
sentido de nacionalidade, caracterstico do perodo monrquico brasileiro. Escritor
sensivelmente assinalado pelas incurses que realizou no interior de Mato Grosso,
durante a Guerra da Trplice Aliana contra o Paraguai (1864-1870), como relator da
Comisso de Engenheiros, contribuiu para o esforo nacional no sentido de plantar as
razes de um movimento romntico de sentimento da natureza. Vinculado tradio da
viagem como meio no s de aquisio de conhecimento mas, principalmente, de
construir imagens pictricas da terra e da gente americana, como iderio de poca,
Taunay-viajante participou, intensivamente, da construo imagtica de Mato Grosso
com obras que tm, na sua estrutura narrativa, o dirio de viagem como elemento de
composio e a natureza como exerccio do olhar e de construo do gnero
paisagstico.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa de Viagem, Paisagem, Romantismo Brasileiro, Visconde
de Taunay.
17
RSUM
Alfredo dEscragnolle Taunay, le Vicomte de Taunay, representait, dans le secule XIX,
un discours marqu pour le sentiment de nacionalit, caracteristic de le period
monarchic brsilien. criteur sensiblement assinal par les incursions quil a realis
linterieur du Mato Grosso, pendant la Guerre de la Triplice Aliance contre le Paraguai
(1864-1870), comme relateur de la Comission dingnieurs, a contribu lffort
nationell qui a plant les racinnes dun mouvement romantique de sentiment le la
nature. Li la tradition de Voyage (et le conte) comme um moyen daquisition de
connaissances, mais galement pour construire des images picturales de la terre et des
habitants dAmerique comme idealisation de lpoque. Taunay-voyageur a particip,
intensivement, la construction du Mato Grosso, travers des oeuvres qui ont, dans
leurs structures narratives, le rapport du voyage, comme llement du composition, et le
nature comme exercise doiel e de la construction du gnere du Paysage.
MOTS-CLAVES: Narrative du Voyage, Paisage, Romantism Brsilien, Vicomte de
Taunay.
19
PONTO DE PARTIDA
No sei que hajam muitas coisas acima do prazer
de viajar. Viajar multiplicar a vida [...]. O homem
que nasceu com propenso e gsto para isso
renova-se e transforma-se. Mas [...] preciso ser
poeta.
(Machado de Assis, 1961, p. 55).
O trabalho que ora apresento se prope a analisar a obra de Alfredo dEscragnolle
Taunay, o Visconde de Taunay, especificamente, a imagtica de Mato Grosso nas
descries da viagem feita durante a Campanha da Laguna, na Guerra da Trplice
Aliana contra o Paraguai (1864-1870).
Procuro, nesta investigao, penetrar no universo particular de Alfredo Taunay
(como doravante ser nomeado), focando a idia de identidade nacional no sculo XIX,
para compreender a obra no seu tempo, sem se deslocar, completamente, das noes
de diferena e entrelugar de criao um espao carregado de contradies, como
pondera Silviano Santiago (1982). Por isso, vemos de um lado, o olhar identitrio que
tende a representar um tempo de transformaes sociais e econmicas da crise do
regime escravista, da imigrao; de outro, as lutas para a consolidao do Estado
Imperial que garantisse a Soberania Nacional ou o mundo dito civilizado, animado pelo
ideal de progresso e pelo sentimento da polis. Conforme Antonio Cndido (1997, 2 vol.
p. 11 21), seria o nativismo no sentido de contribuio para o progresso e afirmao
do prprio contra o imposto, em cuja manifestao de costumes, paisagens e
sentimentos se define o desejo de individuao nacional.
O locus dos acontecimentos discursivos concentra, desta forma, uma rica
metamorfose com os elementos encontrados no outro, que o lugar da diferena. Esse
fato, que cria a sensao de no estar de todo, retomado por Flora Sussekind
(1990) e desenvolvido amplamente na condio do impacto e do confronto por Julia
Kristeva (1994). Trata-se de um sentimento de desconforto do lugar de no-origem, que
possibilita a (re)criao de novos paradigmas para os sistemas de pensamento,
fornecendo ao escritor a conquista da terra. Uma conquista a tal ponto fecunda, que o
escritor se deixa conquistar por ela, criando o espao de interseco no processo de
20
construo/superposio das imagens, no como ponto fixo, mas construo mvel de
caminhos que no diluem a perspectiva de outros olhares, ao contrrio, a conjuno
deles, d ao domnio do corpus uma abrangncia para alm do regional.
Alfredo Taunay, brasileiro de nascimento, descende de uma famlia de eminentes
artistas franceses, vindos para o Brasil, a fim de fundar a Academia Imperial das Belas-
Artes, no Rio de Janeiro. Nesse momento, a Monarquia portuguesa buscava dotar de
condies a antiga colnia, para transform-la em sede do governo, cujo perodo de
transio e consolidao da Corte portuguesa funcionou como atrativo para
estrangeiros de vrias partes da Europa. No entanto, a criao de uma Academia de
Artes, responsvel tambm pelo ensino de alguns ofcios, adquiria uma importncia
mais poltica do que propriamente artstica, mas de profundas interferncias nos rumos
da arte no Brasil.
Os artistas franceses, em sua maioria bonapartistas1, trouxeram uma organizao
racional do ensino. A base seria o desenho, partindo-se sempre de seu tronco que a
pintura de histria; os professores deveriam enfatizar o aprendizado a partir das cpias
daprs moldagens do antigo e de modelo vivo (LIMA, 1994, p. 26). Nesse aspecto,
Nicolas Taunay (1755-1830), muito considerado, nos meios europeus, como talentoso
pintor, garantiu a permanncia dos Taunay no Brasil atravs de sua descendncia
artstica. Em depoimento memorialstico, Alfredo Taunay diria que de esprito
melanclico e tmido, este meu av, [...] tinha mrito real na pintura histrica e de
paisagem e conseguiu, pela assiduidade e conscincia, lugar de nota na Escola
Francesa (Alfredo TAUNAY, 1948, p. 292).
Dentre os filhos que acompanharam Nicolas na Misso Artstica, dois deles
tiveram fortes ligaes com a literatura de Alfredo Taunay: Aim-Adrien Taunay (1803-
1828) e Flix mile Taunay (1795-1881), pai de Alfredo Taunay, de quem foi discpulo
infatigvel: recorrer correspondncia entre ambos, ver o velho Taunay a corrigir o
francs das cartas do filho que partira para a guerra, a recomendar-lhe leituras,
enviando-lhe livros como o de Ricardo sobre botnica, o do Tio Charles em latim e mais
lbuns e modelos de desenhos (PINHO, 1944, p. 6).
1 Cf. os curiosos argumentos sobre a polmica da instalao e do papel da Misso Artstica Francesa, em A Academia Imperial das belas-artes: um projeto poltico para as artes no Brasil (LIMA, 1994, especialmente o cap. 1).
21
Nesse ambiente domstico, Alfredo Taunay obteve educao esmerada calcada
nos princpios do bom gosto artstico e literrio, na disciplina, na ordenao do
conhecimento e nas idias polticas. A influncia do pai foi preponderante: nas lutas
reformistas pela imigrao, naturalizao, casamento civil e abolicionista, manteve-se
ao lado dos amigos Andr Rebouas e Joaquim Nabuco; nos dotes paisagsticos, tanto
nos lbuns de desenho como nas pginas de narrador militar, viajante e romancista, na
opo pela carreira militar, na amizade ao Imperador um mandamento de famlia,
enfim, uma criao total do pai (ibidem). Felix Taunay, alm de ocupar os lugares
destinados arte, foi um propugnador das reformas sociais e da transformao
esttica e racional do fessimo Rio de Janeiro (Affonso TAUNAY, 1983, p. 98).
A par de tamanha fora de origem, emanciparia Alfredo Taunay de tais
influncias?
Tenho por hiptese que a viagem a Mato Grosso, na Campanha contra o
Paraguai, foi fundamental para a aquisio da liberdade, do gosto, da expresso, da
criao de um estilo prprio e de encaminhamentos do exerccio artstico. No era mais
o menino levado pelo pai, mas o oficial que marchava para a guerra todo cheio de idia
de ir viver bem sobre mim, entregue ao prazer de ver gentes e cidades novas, percorrer
grandes extenses e varar at sertes imperfeitamente conhecidos e mal explorados
(Alfredo TAUNAY, 1948, p. 105).
Desta forma, a viagem funcionou como um instrumento de transformao do
jovem militar em escritor. Uma contingncia que despertava prazer, conhecimento e
inmeros atrativos e grandioso prestgio, a que se uniam pretenses cientficas de
certo alcance, fazer colees de minerais preciosos, ou ento descobrir, seno um
gnero novo de planta, pelo menos um espcie ainda no estudada e classifica-la
sonhos enfim de mocidade em que havia bastante de pedantismo (idem, ibidem).
Assim, sem um projeto de viagem (principalmente a que fez a Mato Grosso),
movido pelo cumprimento do dever, pela aventura, pela busca do conhecimento e,
possivelmente, pelo desejo de fama, Alfredo Taunay foi um viajante singular, pois alm
de cumprir o papel do viajante vinculado tradio da viagem, constituiu-se um esteta.
Numa elaborao constante do olhar, afirmou os temas locais particularizados de modo
fundamental para a expresso do Brasil. Como relator da Comisso de Engenheiros fez
22
o papel de diarista, colheu informaes e anotou impresses da viagem e da guerra,
exerccio que lhe oportunizou a produo de toda a sua literatura.
Nas obras a que tivemos acesso, verificou-se que Alfredo Taunay vincula-se ao
entusiasmo romntico e ao exerccio da observao da natureza transformada em
paisagem, o que define o papel da arte como auxiliar das cincias naturais, pois s se
pode conhecer viajando, e a natureza o laboratrio das experincias do viajante
(DIENER, 1999, p. 41). E ainda deu suporte de arte s narrativas, num perodo histrico
culturalmente rico de construo da identidade nacional, nem sempre afirmada
pacificamente.
O retorno pena de Alfredo Taunay permite desvendar o espao simblico dos
modos pelos quais funcionaram as relaes de fora estabelecidas internamente, pela
conduo do poder imperial, e, externamente, pelos diferentes elementos de
construo histrica.
Busca-se, desta forma, compreender os processos significativos que resultaram
dessas diferentes reimpresses e caracterizar o escritor como um viajante atpico que
age como um explorador, mas pensa como um esteta. Ao tomar contato com o interior
de Mato Grosso, faz-se um (d)escritor de paisagem, compondo uma imagem da regio
que ir representar, juntamente com outras imagens construdas pela Monarquia
brasileira, a vontade consciente de definir a idia de um Brasil homogneo, mesmo que
essa unidade figurasse como uma utopia nacional.
Procura-se, ainda, aprofundar o conhecimento terico sobre o papel de Taunay na
Literatura Brasileira, principalmente, no mbito do Romantismo nacional, visto em
confronto com suas fontes e referncias no Romantismo internacional, a partir de Mato
Grosso, detectando elementos que esto na origem do estabelecimento do gnero, no
Brasil.
Nesse aspecto, Mato Grosso estar compondo o panorama de influncias
estticas legadas pela literatura de importao e pela emergente necessidade de
transformao das letras nacionais, a partir dos elementos autctones, como propunha
Ferdinand Denis (1978) em seu tratado sobre o carter da poesia no Novo Mundo, e
que o esprito Romntico buscou seguir.
23
Na verdade, o conjunto da obra de Taunay no se far apenas no campo da
literatura ou das artes, mas na fronteira entre elas. Ou seja, h em sua obra uma
conjuno de interesses nacionais em que o registro de fatos da histria, no caso, o
episdio da retirada da Laguna, representa a base para as variadas descries que,
elaboradas a posteriori, deram origem a outras narrativas, tanto de carter histrico
como ficcional. Em certo sentido, o escritor-viajante fecunda imagens que contribuem
para repensar a formao cultural de Mato Grosso, as origens e a contemporaneidade
de eventos, que compuseram o cenrio latino-americano, a partir das regies mais
distantes, consolidadas, imageticamente, como perifricas em relao aos centros de
desenvolvimento da poca.
No percurso das fontes artstico-literrias, a reflexo repousa num conjunto de
questes e de idias sobre Natureza, Paisagem, Romantismo, Narrativa e Cultura
Brasileira, medida que se penetra no universo cultural do sculo XIX, cujo legado
artstico teve fecunda influncia na formao intelectual de Alfredo Taunay e nos rumos
das tendncias estticas brasileiras.
Como objeto de teoria, a pintura de paisagem encontrada no centro da
interrogao filosfica e seu conceito evolutivo acompanha a histria humana. Por isso,
no se pretende, aqui, enveredar pelas profundezas de tal conceito, mas trazer
algumas noes movedias que ajudam a compreender as manifestaes das imagens
de Mato Grosso integradas s diferenas que constituem o discurso sobre o
conhecimento da terra, seus habitantes e seus costumes, evocados como ilustrao e
traduzidos como interpretao cultural.
Os temas (ou topoi) utilizados so eficazes. Eles produzem imagens de natureza,
de batalha, de runas e de personagens que so integrados matria literria, como
recurso de composio filtrado por modelos europeus, mas instituindo o lugar
emprico-descritivo que, muitas vezes, tem o tom panfletrio (ou carter utilitrio) das
especificidades da poltica imperial vigente.
Estudos sobre Romantismo/Natureza/Paisagem foram embasados em Alexander
Humboldt (1964), Kenneth Clark (1961), Roland Recht (1989), E. H. Gombrich (1990),
Pablo Diener (1996 e 1999), Karen Lisboa (1997), Lucciano Migliaccio (2000) e a
coleo de ensaios de J. Guinsburg (1993). Os tratados de paisagem de Rainer M.
24
Rilke (1965), Georg Simmel (1996), Simon Schama (1996), Augustin Berque (1997) e
Alain Roger (1997) conformaram o aparelho crtico que remeteram ao fio dos textos
originais.
Nesta pesquisa, as questes sobre as representaes histricas e artstico-
iterrias esto embasadas nos estudos sobre construo/representao de imagem
e/ou emblemas em Jean Starobinsky (1988), Elias Trabulse (1995), Paul Zanker (1992),
Erich Auerbach (1998), Lilia Schwarcz (1993 e 1998), Francisco Alambert (2001),
Tarcsio Bahia Andrade (2002), Mrcia Capelari Naxara (1998 e 1999) e Jefferson Cano
(1993 e 2001), pelo modo como eles orientam (e mesmo determinam) as relaes do
universo cultural a partir do texto. Desta forma, constri-se um conceito de realismo no
como uma linearidade histrica, mas oriundo da prpria criao cultural.
Assim, a questo da imagem sobre o Brasil, no conjunto da obra de Alfredo
Taunay, expressa a natureza de uma arte descritiva (ALPERS, 1999) que, de certa
forma, oculta o realismo pretendido por ele. a descrio de um mundo afetado pela
cultura visual a observao e o registro das coisas vistas expressas em palavras e
imagens, como uma categoria que transmite uma atitude descritiva, na forma vista por
Hamon (1976), pela qual o escritor busca a fidedignidade dos fatos.
As anlises dos textos partem de consideraes estruturais para a construo
textual, o estilo e estrutura do gnero (KAYSER, 1985), aliando-se a uma seqncia de
topoi, que so os motivos favoritos do autor e com os quais constri as imagens e
assegura a coeso das cenas e sua ligao narrativa.
Nesse aspecto, convm destacar os seguintes questionamentos: qual o sentido e
o valor esttico das imagens construdas pelas descries de Alfredo Taunay no mbito
da arte e da literatura brasileira? Se a viagem prossibilitou a transformao do jovem
militar em escritor, em que medida o olhar-viajante produz cenas (componentes de
quadros) que intermediam um conceito de/sobre Mato Grosso?
Sabe-se que a imagem do Brasil foi constituda a partir de imagens que os
viajantes europeus construram, atravs dos relatos de viagem, referendando as
explicaes do mundo, cujos parmetros eram baseados em experincias de fora. O
Brasil foi conhecido sob os mais diversos esteretipos, construdos a partir do
25
descobrimento das terras, no chamado Novo Mundo, inclusive durante os debates das
concepes sobre o continente e seus habitantes (GERBI, 1996).
Os relatos de Alfredo Taunay, no sculo XIX, continuaram a tradio do registro
dos acontecimentos histricos, naquele momento, em prol de uma idia de Estado-
nao, centralista e monrquico, que predominou por quase cinqenta anos. O Brasil
seria, ento, o nico, em meio a outros pases sul-americanos, que j experimentava o
impuro regime republicano.
Com utilizao de artifcios particulares de coeso territorial, a unidade formal foi
mantida. Pode-se dizer que um desses artifcios foi utilizado pelo Visconde de Taunay,
quando lanou mo de um conjunto de elementos da terra para demonstrar a
autenticidade brasileira. Porm, diferenas sociais, tnicas, culturais e econmicas
corroam o Imprio e a pretenso hegemnica, pois representavam eminente desafio ao
programa nacional e, conseqentemente, a qualquer manifestao de carter
unificador.
Com o olhar plasmado no interior de Mato Grosso, em meio a mestios, ndios,
caboclos e brancos, que poderiam representar um perigo ordem nacional, Taunay
criou mecanismos articulados entre a cincia e a arte, para redescobrir o Brasil e
engaj-lo num projeto de civilizao, que tinha a Monarquia como base institucional, em
contraponto barbrie simbolizada pelo Paraguai e pelo outro Lpez, no caso, o
ditador paraguaio. De fato, como diz Alambert (2001, p. 220), a obra de Alfredo Taunay
imprimiu o olhar dicotmico entre Natureza/Cultura, Imprio/Repblica, Brasil/Paraguai,
em conflito mtuo de reconhecimento e estranhamento, resumindo descobertas que
so documentrios de uma era ou de um sonho, refletido no espelho da guerra. Nesse
quadro, a imagem do Brasil concebia-se em oposio ao mundo estranho e desolado,
representado pela realidade sul-americana, cuja face mais tenebrosa era a
representao fantasmagrica da repblica guarani (idem, ibidem), alm de trazer a
marca da formao literria, resultante da viagem pela parte sul de Mato Grosso,
durante o episdio da Guerra contra o Paraguai.
26
As imagens2 da regio pantaneira, em obras que consideramos emblemticas,
caracterizam um tempo e um lugar: a Monarquia brasileira (sistema poltico e
simblico), constituidora das idias romnticas, dos smbolos que ajudaram imprimir a
idia de nacionalidade, e a geografia (real e imaginria), paradigma de compreenses
ambivalentes criadas pelo olhar dos muitos visitantes que construram o universo plural
brasileiro.
Nesse sentido, a anlise da obra de Alfredo Taunay est centrada nas imagens
expressas pela sensibilidade artstica, representativas de uma regio, poca
conhecida como serto3, uma categoria do pensamento social, que designa o interior,
o corao mediterrneo, em oposio ao martimo (AMADO, 1995, p.150), o deserto
brbaro ocupado pela civilizao, sendo, pois, representao de mundos de
significados, que deslizam no espao da memria do brasileiro, com certa dose da
verso da histria e da construo do Estado Nacional. Sem essa perspectiva, que
consagrou imagens e esteretipos, no seria possvel pensar esses mundos dspares
da distncia e da diferena em relao s culturas da Amrica Latina, pois o serto
uma vasta fronteira de significados que o bom senso do Visconde quis desvendar
(ALAMBERT, op. cit., p. 221).
Nessa viso do espao sertanejo, a obra de Taunay ganha dimenso pela viso
de um mundo portador da memria, e que na viso de Schama (1996, p. 65) representa
a memria silvestre se preservando na literatura como o corao oculto da identidade
nacional. A obra tem, portanto, um papel social pelos componentes da cultura interior,
de tipos emblemticos (como o sertanejo e o ndio), de confrontos tnicos e de
paisagem mato-grossense, principalmente, pela forma de contemplao romntica,
como expresso subjugada emoo esttica.
Tambm como uma viajante contempornea, percorri arquivos, fiz registros e
formei uma coleo bsica de textos necessrios para compor o corpus desta pesquisa. 2 As imagens construdas por Taunay podem ser vistas como descries, expressas pela imaginao, da a utilizao do termo imagtica no ttulo deste trabalho, adjetivo que d qualidade ao que se exprime por imagem (HOUAISS, 2001, p. 1573). 3 Cf. os deslizamentos dessa nomenclatura em Janana Amado (1995 p. 145-151). Cf. tambm Gilmar Arruda (2000), que trata do significado do termo, segundo a idia de progresso, existente na mentalidade dos finais do sculo XIX, s primeiras dcadas do XX. Ver ainda a coletnea de ensaios que compe a obra De sertes e, Desertos e Espaos Incivilizados, organizada por ngela Mendes de Almeida, Berthold Zilly e Eli Napoleo de Lima (2001), principalmente a 4 parte, intitulada Guerras no fim do mundo, p. 197-271.
27
Uma parte desse material, a que d visibilidade regio de Mato Grosso, constituiu-se
em objeto da observao da experincia de Alfredo Taunay.
Para compor o objeto da pesquisa, alm da leitura das obras, visitei Instituies
pblicas como a Biblioteca Nacional, o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro e o
Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Em So Paulo, a Biblioteca
Municipal Mrio de Andrade, o Museu Paulista, a Biblioteca do Instituto de Estudos
Brasileiros e dos cursos de Histria e de Letras, as duas ltimas na Universidade de
So Paulo. Na Universidade Estadual de Campinas, pesquisei as Colees Especiais e
a Seo de Obras Raras, da Biblioteca Central; os Acervos do Instituto de Estudos da
Linguagem e do Centro de Documentao Alexandre Eullio, do Instituto de Filosofia e
Cincias Humanas, onde tive acesso coleo da Revista do IHGB e da bibliografia de
Histria da Arte. Aliam-se a isso tudo, os priplos pelos sebos virtuais e os de So
Paulo e do Rio, na perspectiva de colecionar o maior nmero possvel de obras em sua
primeira edio, nem sempre possvel.
Em Cuiab-MT, pude garimpar preciosidades na Biblioteca do Instituto Histrico e
Geogrfico de Mato Grosso e da Academia Mato-grossense de Letras, muitas vezes
contando com a generosidade de amigos e personalidades ligados cultura do
Estado4. De Campo Grande e Aquidauana, em Mato Grosso do Sul, chegaram-me
informaes, por intermdio do escritor Paulo Corra de Oliveira, sobre adaptaes da
obra de Taunay para o teatro e o cinema, sua vasta produo no Estado e monumentos
comemorativos espalhados pelas localidades, palcos da guerra contra o Paraguai.
A seguir, apresento o trabalho que se encontra desenvolvido em duas partes,
ambas divididas em captulos.
A primeira parte, composta de trs captulos, constri a personagem Alfredo
Taunay como representativa do carter nacional, no sculo XIX, e discute as bases do
pensamento do autor. O primeiro captulo coloca o escritor no universo histrico
brasileiro, a partir da presena dos artistas franceses do qual herdeiro direto das
influncias polticas e artstico-culturais. Nesse contexto, reflete-se sobre a formao do
Romantismo e os matizes que adquiriu no contato com as peculiaridades brasileiras.
4 Agradeo, particularmente, a sensibilidade e o esprito de partilha da Prof Dr Yasmin Jamil Nadaf, eminente pesquisadora de Mato Grosso, cuja bibliografia encontra-se, em parte, referenciada neste trabalho.
28
Participando ativamente da vida poltica nacional, Alfredo Taunay construiu um discurso
com base na tradio, mas com profundas marcas de nascimentos de novos estilos. Foi
um escritor que se transformou pelo exerccio da escrita, da a sua relevncia para a
forma como se tenta compreender Mato Grosso no cenrio nacional e internacional.
Esboa-se, ainda, um panorama da formao familiar e intelectual de Alfredo Taunay. O
legado artstico e a experincia da guerra, como integrante da Comisso Militar, foram
fundamentais para a metamorfose do diarista oficial em escritor. So experincias que,
levadas ao limite, transformaram o homem da Corte, aristocrata e, de certa forma,
missionrio, tanto em uma espcie de sertanista e em poltico de projeo, como no
artista de sensibilidade extrema, no escritor que usou a pena como pincel. Isso tudo
resultou em composies imagticas fundamentadas em princpios ticos e estticos.
As pistas da ndole aristocrtica de Taunay, possivelmente herdadas das idias do
filsofo Joseph Ernest Renan (1823 - 1892), foram encontradas em Carlos Berriel
(2000), ampliadas em Amaral Gurgel (1936), Joaquim Nabuco (1949) e nas obras do
prprio historiador Renan (1908 e 1987).
O segundo captulo, da primeira parte, apresenta a metamorfose de um Taunay-
viajante em criador de imagens do Brasil interiorano. A viagem mecanismo de
aquisio de conhecimento, pelo relato, possibilitando a composio do quadro de uma
natureza transformada em paisagem. Um panorama que se torna mais claro quando
colocado em contato com a gnese e as confluncias de sua narrativa, pois a imagem
construda a partir do olhar, enquanto fonte primria do exerccio da pintura e da
escrita.
O terceiro captulo est sob o signo da viagem, delimitando as suas relaes com
o relato, a natureza e a paisagem. Conceitos que embasam a anlise das obras e so
suportes tericos da proposta da tese. Ao concebermos Alfredo Taunay como um
viajante atpico, tornou-se necessrio revisitar a funo da viagem, analisar de que
forma o dirio de viagem (registrado no calor da hora) serviu de base para a
transformao em outras narrativas, e como a concepo de paisagem est imbricada
na descrio de um mundo particularizado pela narrativa.
Na segunda parte do texto, intitulada Techne e Poietica: Mato Grosso sob o olhar
de Taunay, so apresentados os dois aspectos da narrativa de Alfredo Taunay: a
29
tcnica da descrio e a poietica do estilo, voltadas para o fenmeno da criao de
uma linguagem especial (TELES, 2005, p. 50). No se pretende, portanto, apenas uma
reelaborao estrutural, mas a natureza potica da emoo artstica do escritor. O fato
esttico (re)cria o espao, concebe conceitos particularizados por cenas construdas
pela memria e pela escrita, o que ser explicitado nos captulos IV e V. As memrias
do Visconde de Taunay so camadas formadas pela tradio e pelas lembranas
(SCHAMA, op. cit.), que desguam nas imagens mediadoras dos sentidos de uma
nao emergente. E para demonstrar como isso funcionou no conjunto da sua obra,
trao o panorama descritivo e os (des)caminhos do escritor em direo a um programa
poltico-literrio e artstico-cultural do Brasil do sculo XIX.
O propsito dessa configurao compreender uma imagem de Mato Grosso
engenhosamente plstica, vivenciada em situaes-limite da viagem. So impresses e
sensaes do tempo e de um lugar importantes para a cultura, a literatura e a poltica
nacional, vistas em suas vinculaes internacionais. Desta forma, a viagem no se
restringe apenas mobilidade geogrfica, mas transformadora da perspectiva sobre o
Brasil.
Tudo isso leva-nos a refletir sobre o efeito de sentido da Guerra da Trplice Aliana
em Mato Grosso e nas narrativas dela engendradas por Alfredo Taunay. Estamos, pois,
no terreno multidimensionado pela Histria, pela Cincia e pela Arte, que encontra
respaldo na natureza da terra e no carter do povo.
As diferenas evidenciadas nos textos de Taunay parecem justificar uma parcela
do que se pensa sobre o lugar do Brasil no contexto sul-americano, e abrem espao
para a compreenso do papel da Monarquia, de certa forma paternalista e pouco
democrtica, comandada por uma elite interessada na escravido e na utopia da
civilizao diante da barbrie, para o sucesso dos programas nacionalistas.
31
PRIMEIRA PARTE VISCONDE DE TAUNAY: PERSONAGEM REPRESENTATIVA DO NACIONAL
Esta primeira parte, formada de trs captulos, pretende examinar a personagem
Alfredo dEscragnolle Taunay, Visconde de Taunay, para coloc-la em consonncia
com o sculo XIX. Nesse sentido, discutem-se os aspectos globais da cultura brasileira,
marcada pelas influncias francesas, e o complexo romntico, com enfoque
determinante nas peculiaridades brasileiras.
Egresso do colonialismo, o Brasil passou a ser uma das nicas monarquias dentre
as repblicas latino-americanas, mantendo o sistema de latifndio agrrio, o escravismo
e a economia de exportao. Predominavam, ento, a aristocracia rural e as influncias
europias na Corte do Rio de Janeiro e nas capitais das Provncias, refletindo a
heterogeneidade de pensamento de diferentes grupos. Dada a sua extenso territorial,
era impossvel (como ainda hoje) a homogeneidade. Por isso, no se perde de vista,
aqui, as noes de diferena e contradies utilizadas nas teorias contemporneas.
Visando sempre a manuteno da unidade, a partir de 1808, o Brasil comeou a
acolher estrangeiros de vrias partes da Europa, vindos, principalmente nas expedies
de carter cientfico. Com isso, d-se ateno especial ao carter pedaggico das
iniciativas pblicas, atravs da criao da escola de Belas-Artes, construindo-se uma
correspondncia ntima entre escritores e artistas representativos da Frana, Alemanha,
Inglaterra e de outros pases. Formavam-se, tambm, as sociedades intelectuais
tuteladas pelo poder central, embries do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro
(IHGB), todas importantes para o desenvolvimento dos estudos da Histria, da
Geografia, das Letras e das Artes nacionais, mas tambm aglutinadores das idias e do
poder monrquicos5.
5 As questes da representao do brasileiro, do sentido explicativo para o Brasil do sculo XIX, da Academia Imperial das Belas-Artes e do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro so muito bem examinadas nos estudos de Mrcia Naxara (1998 e 1999), Valria Lima (1994), Salgado Guimares (1988), Lcia Guimares (1995) e Jefferson Cano (2001).
32
Deste modo, ao longo do sculo XIX, a histria e a literatura mantiveram-se
ligadas a outras artes, notadamente, ao desenho e pintura, com forte tradio, e que
funcionaram como suporte dos relatos de viagem.
A viagem vista como princpio e meio da criao, uma espcie de inventrio e
construo de arquivos, dando subsdio discusso do gnero de paisagem,
responsvel pela construo das imagens que veiculavam um sentido sobre o Brasil.
Essa tica objetiva compreender a posio de Alfredo Taunay no cenrio nacional,
sua formao como homem das artes e das letras, bem como as suas vinculaes com
o pensamento do perodo, razo por que participou da Guerra da Trplice Aliana contra
o Paraguai, no conflito da retirada da Laguna, transformando-se em viajante-escritor,
responsvel pela construo de uma imagem particularizada do Brasil, a partir da
experincia em Mato Grosso.
33
CAPTULO I
TRADIO E NASCIMENTOS
Por isso preciso que o caminho do artista seja o
seguinte: superar obstculo aps obstculo e construir
degrau aps degrau, at que ele finalmente possa olhar
para dentro de si mesmo [...], tranqilamente, claramente,
como se contemplasse uma paisagem (Rilke [1898] 2002,
p. 37).
Marcas francesas na cultura brasileira
No sculo XIX, a Frana exercia forte influncia na cultura, na poltica e na filosofia
do mundo ocidental. No Brasil, registra-se, desde o perodo colonial, a presena de
franceses na costa nordestina: as viagens, principalmente as de Gonneville, Thvet e
Lry6, as utopias, como a da construo da Frana Antrtica (para facilitar o refgio dos
protestantes franceses perseguidos), a Frana Equinocial maranhense (do Senhor de la
Ravardire) e o saque do Rio de Janeiro, pelo comandante Dugnay-Trouin. Aliam-se s
presenas das Expedies, os intercmbios que se deram a partir da formao de
ncleos populacionais, do transporte de ndios, para ornamento extico ou mo-de-obra
escrava na Frana e a presena de outros viajantes importantes como Saint-Hilaire
(1799-1853) e Ferdinand Denis (1798-1890), que testemunharam as experincias do
Novo Mundo e ditaram formas de construo de uma cultura mais nacional como foi o
caso de Denis, um dos primeiros europeus a escrever sobre a proposta de uma
6 O franciscano Frei Andr Thvet, que veio com Villegaignon, e o calvinista Jean de Lry, escreveram importantes obras de viagem como Singularidades da Frana Antrtica (1557), do primeiro e Viagem terra do Brasil (1578), do segundo, objetos de reedies sucessivas no sculo XIX. Lry marcou e influenciou a obra de pensadores que contriburam para arquitetar a nova viso de mundo do ocidente, como o caso de Montaigne e Rousseau. Seu livro foi condensado pelo antroplogo Lvi-Strauss como obra-prima da literatura etnogrfica (In: Viagem pelas crnicas, por Carlos Vogt. Editorial da Revista Eletrnica www.comciencia.br).
34
literatura para o Brasil, suas necessidades e perspectivas de sistematizao de uma
literatura nacional7.
Num eixo mais interior, durante a Inconfidncia Mineira, houve vrias referncias
aos textos dos Enciclopedistas franceses, dos filsofos das Luzes, sobretudo
Rousseau. Lia-se em francs, em textos dos Iluministas, seguiam-se valores franceses,
tanto os ligados formao e cultura, quanto poltica.
Unido pelo idioma ou por consrcios entre famlias nobres, o Brasil afrancesou-se.
E no foi incomum que, na segunda metade do sculo XIX, Alfredo Taunay publicasse
a primeira parte de A Retirada da Laguna (1868), em francs, no s pelas
circunstncias acima, como tambm por sua ascendncia, convices, e para tornar
acessvel o conhecimento sobre a realidade brasileira ao pblico letrado do Brasil e do
exterior. Indo alm desses propsitos, cumpriu os ditames de um projeto nacional e deu
visibilidade a uma parte do Brasil que participava das discusses internacionais,
alargando o iderio monrquico.
Fato importante para a cultura brasileira deu-se com a vinda da Famlia Real, em
conseqncia da poltica expansionista de Napoleo que, de alguma forma implantava
a perspectiva de ampliao do territrio ultramarino. Portanto, um caso cuidadosamente
estudado pelos estrategistas portugueses, acarretando resultados benficos para o
Brasil, pelo menos na opinio dos historiadores favorveis transmigrao da Corte.
Qualquer que seja a causa dessa sada estratgica, o resultado foi uma extenso
do problema para alm-mar, principalmente no tocante s crises com a Inglaterra. Da a
necessidade de D. Joo VI abrir os portos para o comrcio (favorvel aos britnicos) e,
conseqentemente, para os viajantes estrangeiros. Novos costumes e nova cultura
foram incorporados, e o Rio de Janeiro remodelou-se para acolher o ttulo de capital do
Imprio. Adotou moldes europeus, principalmente no visual arquitetnico, e
transformou-se em matria de paisagem, como se v nos estudos de Tarcsio
Andrade (2002), que analisa o olhar dos pintores e arquitetos na construo da
paisagem carioca. Resultou da a necessidade de ampla reorganizao e adaptao
7 Cf. as influncias francesas no Brasil em Wimmer (1992, p. 7-14) e Candido [1957] 1997, p. 276-282). Estudos sobre a obra de Denis encontram-se em Rouanet (1991), Guilhermino Csar (1978, p. 27-41) e Candido (op. cit. p. 287-290).
35
nova ordem administrativa, e nada melhor do que a remodelagem do visual da cidade
que, em pouco tempo, transformou-se no centro convergente da cultura nacional.
No desejo de transformao, a cultura passa a ser representada pela burguesia, e
o Estado domina o terreno da produo, outorgando aos historiadores da arte o seu
cultivo e propagao. Criaram-se academias, promoveram-se exposies e o artista
equiparou-se ao filsofo e ao poeta. um novo panorama artstico-cultural, que
esboou os primeiros efeitos de uma arte independente. O Brasil intensifica o seu
status como objeto de desejo dos povos, principalmente do europeu. Muitas
exploraes cientficas foram empreendidas por viajantes e naturalistas, quase sempre
contando com licenas e favores dos monarcas. Remodelaram-se as instituies, e o
investimento nas cincias e nas artes foi importante para a ampliao do conceito de
cultura, implementado pelo Romantismo. Um movimento esttico que se desenvolveu
nos prdromos das mudanas estruturais da sociedade europia, concomitantes ao
surgimento do capitalismo, que se transformou em comportamento do esprito e
atitudes intelectuais de uma poca, condicionado que foi ao contexto scio-histrico e
cultural de teor idealista (NUNES, 1993, p. 52-55).
A forma como o Brasil foi-se remodelando, chega at o tempo de Alfredo Taunay
que, sem abandonar totalmente os padres retricos determinados pelo
comportamento romntico, ir representar a juno/disperso de valores vindos de fora
e assimilados na fecunda convivncia entre seus pares e nos variados exerccios que
proporcionaram a viagem, a escrita, a arte e a poltica. Sua obra notadamente
marcada por essas influncias da poca, alm daquelas prprias da sua biografia. Em
Memrias (1948), manifesta, desde as primeiras pginas, seus contatos com os
romances da estante do Tio Teodoro de Beaurepaire: la recherche de linconnue e
Anglica Kauffman (p. 16) e teria recebido como presente do tio Charles uma edio
de Molire em seis vollumes, obras completas [...] com a seguinte dedicatria: ce livre
ma donn par mon ami Denoix et mest trs prcieux. Je le donne mon neveu Alfred
en souvenir de sa bonne humeur et de son nergie de fer. novembre 1853 C. A.
Taunay (p. 24). A dedicatria, em francs, refere-se ao passeio feito entre a rua Saco
do Alferes e a Cascatinha da Tijuca, que rendeu um retorno, a p, altas horas da noite,
pela perda da gndola (op. cit., p. 23-4). Foram duas lguas vencidas pelos adultos e
36
por Alfredo, este demonstrando calma e resignao, que foram as marcas do seu
carter (idem, ibidem).
Outras obras francesas como Bourgeois gentilhomme, Mr. de Pource-augnac e
Les fourheries de Sapin que li e reli (ibidem) fizeram parte do seu repertrio de
formao intelectual, somadas, posteriormente, s influncias exercidas pelos livros de
viagem. Ao lado do primeiro deslumbramento com Ivanho, de Valter Scott, foram
tiradas da mesma biblioteca do tio, as obras Aym Verd, Les Mille et une nuits,
Robinson Crusoe alm da coleo Conseiller des enfants e das Fbulas de Florian (op.
cit., p. 38-42)8. Um panorama literrio que iniciou o adolescente em variados gneros.
Os pendores artsticos do menino, desde cedo, manifestaram-se na msica, no
contato com aquarelas, desenhos e telas que faziam parte do seu cotidiano. Tudo isso,
somado viagem que fez para Mato Grosso, o contato direto com os habitantes e a
natureza, contriburam, indelevelmente, para a construo da figura do escritor e para o
alargamento da compreenso sobre o Brasil.
A Misso Artstica de 1816: o incio de tudo
Na primeira fase do Imprio brasileiro, fortaleceu-se, particularmente, a arte, pela
contratao de um grupo de artistas franceses, ligados ao artista Jacques-Louis David
(1748-1825), cujas influncias passam pela conscincia da funo cvica da pintura e
da necessidade de criar um imaginrio poltico (MIGLIACCIO, 2000, p. 20)9. Tais
influncias clssicas expressaram o modelo tico a ser disseminado no Imprio.
Chamados a servio dos propsitos de D. Joo VI, os franceses fundaram a Escola
Real de Cincias, Artes e Ofcios, no Rio de Janeiro, primeiro modelo da Academia de
Artes, ao lado de outras medidas determinadas por D. Joo VI, no Brasil, dentre elas, a
fundao da Biblioteca Nacional, a Imprensa Rgia e a construo do Jardim
8 Florian (Joo Pedro de) fabulista francs (1755-1794), foi sobrinho-neto de Voltaire. Depois de La Fontaine, mas muito aqum deste, o mais notvel. Comps ainda pastorais, pequenas comdias e uma curiosa autobiografia Memrias de um jovem espanhol (In: Lello Universal. Vol. II. Porto: Livraria Chardron, p. 1059). 9 Cf. em STAROBINSKY (1988, p. 68-84), o sentido da presena humana em oposio ao discurso cvico e moralizador nas anlises dos quadros de David: O juramento dos Horcios, A morte de Scrates, O juramento do Jogo da Pla, Os lictores trazem a Brutus os corpos de seus filhos e o extraordinrio Marat assassinado.
37
Botnico10. A acolhida dos cientistas estrangeiros trouxe progresso econmico e social
porque faltava uma escola ou instituto terico-prtico de aprendizagem artstica e
tcnico-profissional (Affonso TAUNAY, 1983, p. 10).
Na composio do grupo de artistas, ressalta-se a participao do naturalista
alemo Alexander von Humboldt (1769-1859) na indicao do nome de Joaquim
Lebreton, literato, para liderar o grupo. Seguiram com Lebreton, para o Brasil, Debret,
pintor de histria; Grandjean de Montigny, arquiteto; um engenheiro mecnico; um
serralheiro, fabricante de carros; um compositor e organista e os Taunay (Affonso
TAUNAY, op. cit., p. 15). A afluncia de estrangeiros, de produtos importados, de novos
hbitos, costumes, idias filosficas da Ilustrao, era mostra da nova fisionomia
brasileira, centrada no Rio de Janeiro cosmopolita. Ligava-se a esse grupo, portanto,
toda uma tradio de arte neoclssica europia11, que exerceu importante papel no
processo de formao da Corte Portuguesa na Colnia, construindo parte do imaginrio
cultural brasileiro.
Pelo panorama das duas primeiras dcadas de funcionamento da Academia
Imperial das Belas-Artes, traadas por Valria Lima (1994), a negociao para
implantao da Academia evoluiu na medida das transformaes polticas do Brasil, em
fase da transferncia da Monarquia portuguesa para o Brasil colnia. A natureza do seu
projeto consistia em inserir o Brasil no contexto internacional, no mais como uma
promissora colnia, mas como Nao independente (p. IV-V). Ou seja, estava implcita
a idia de substituio da imagem de exotismo pela de progresso, gerada,
principalmente pelo fluxo de estrangeiros, fundamental para a construo dos sentidos
que se projetaram como evidentes e definidos, para significar o funcionamento
imaginrio da sociedade brasileira.
Mesmo com a hiptese de Valria Lima (op. cit.), de que a Academia representou
um empreendimento oficial, calcada nos moldes da Acadmie Royale, de Paris, foi
oferecida ao Monarca, por franceses bonapartistas, pois tinham necessidade de sair
10 Sobre a Misso Artstica de 1816 e a formao da arte brasileira, ver Affonso Taunay (1983), Valria Lima (1994); Gonzaga-Duque (1995), Candido (1997), MIigliaccio (2000). Cf., ainda, Wimmer (1992), que analisa as marcas literrias francesas, no conjunto de romances do Visconde de Taunay. 11 O Neoclssico adota a arte greco-romana como modelo de equilbrio, proporo e clareza, prescrevendo uma determinada postura moral. Fundamental a ideao ou projeto da obra [...]; o projeto desenho, o trao que traduz o dado emprico em fato intelectual (ARGAN, 1992, p. 21-25).
38
da Frana. A misso artstica, como ficou conhecida, constituiu-se, assim, como um
corpo estranho de desleal concorrncia dos estrangeiros, a atividade cultural, no
Brasil. Dependeria da Academia o amadurecimento de uma proposta poltica para o
pas mesmo que no houvesse, ainda, preparao para absorver e alimentar uma
instituio destinada ao progresso das belas artes, na forma como havia sido
idealizada (op. cit., p. 14). E foi o que se comprovou, dadas as dificuldades enfrentadas
durante o seu funcionamento, pois um dos seus efeitos passa pelo encontro
(conflitante) do europeu adiantado com o Brasil de formao colonial, o que
evidenciou modos de constituio padronizados dos processos discursivos sobre o
brasileiro. No houve, portanto, assimilao de um sobre o outro, mas instaurou-se o
espao da diferena para a construo de imagens construdas sob o ponto de vista
caleidoscpico, sem uma marca nica e homognea.
Nesse aspecto, pela participao estrangeira, possvel compreender o carter
da arte e da literatura, como programa moral-educativo e como funo do Estado. Tal
participao de fora esteve presente no processo de formao de uma nova classe
social, proveniente daquela que era reconhecidamente a capital da arte europia,
representante de uma arte figurativa, muito distante da que vigorava em Portugal e
com capacidade de acesso direto aos favores de D. Joo VI (MIGLIACCIO, 2000, p.
10). Fecundou-se, assim, uma imagem de Brasil e criou-se a conscincia da circulao
das gravuras, para a divulgao da imagem do novo Estado 12 (op. cit., p. 16), imagem
determinada pelo processo histrico sob duplo aspecto. De um lado, os europeus com
os discursos das cpias (simulacros); de outro, a tentativa (muitas vezes frustrada) de
adeso dos brasileiros a essas cpias, o que explode na questo de uma identidade
antropofgica visvel no jogo das imagens. Um jogo que revela a categoria descritiva
dos textos no espao social da dinmica da identidade, sempre em processo de
redefinio.
Neste sentido, entre rupturas, querelas polticas e controvrsias estticas, a
presena da Misso Artstica representou, no Brasil, uma arte que oscilou entre o
neoclssico, na tradio acadmica e o romntico, na nova concepo de arte. Essa
12 Cf. o trabalho de Schwarcz (1998) sobre os mecanismos de construo simblica do Imprio brasileiro, no momento da criao de um modelo de nacionalidade.
39
arte significou uma interpretao muito particular da paisagem desenvolvida pela famlia
Taunay, principalmente, Nicolas Antoine e Felix Emile. No entanto, cada um dos artistas
imprimiu estilo prprio nas concepes tradicionais, dada as experincias mais variadas
a que foram expostos, principalmente com a luz, os pontos de vista particulares e entre
o sujeito e os modos de representao. A exemplo, aqui colocados, a cascatinha da
Tijuca, do primeiro; e a mata reduzida a carvo.
O produto dessa arte acadmica, mesmo marcado por nuances particulares, no
se desvencilhou da cumplicidade com o poder, o que pode ter sido motivo para que
tivesse vida mais prolongada. A pintura tornou-se divulgadora de valores,
principalmente daqueles ligados aos princpios da retrica aristotlica, tcnica formal
fundada na argumentao e na persuaso, aplicvel tanto ao discurso formal como
figurativo Essa valorao enaltecia as qualidades morais e intelectuais dos artistas,
para as quais as Academias exerceram papel fundamental (LIMA, 1994, p. 45-57).
Alfredo Taunay no se furtar a toda uma tradio cultural europia, que foi
mesclada com a sua brasilidade. Utilizar dessas vinculaes para construir uma
narrativa pictrica que definiu uma viso do interior brasileiro. A compreenso sobre as
tcnicas da pintura, o desenho e a sensibilidade artstica encontram-se aplicados na
descrio da paisagem e das personagens, como ser visto na anlise do conjunto de
sua obra.
Taunay, ultrapassando os limites impostos, tanto pelo neoclssico como pelo
romntico, concebeu uma noo de paisagem mais ampla do que aquela proposta pela
Academia, baseada, fundamentalmente, na sensibilidade, isto , a paisagem fazendo
parte do artista, captada pela observao dos seus elementos constitutivos. O que
implica pensar o artista em constante postura de observador, sorvendo as mutaes da
luz, da cor e das sensaes no enquadramento tico. Unio da arte com a cincia que
permite entrever ligaes que distam desde o Renascimento, com Leonardo da Vinci,
at a composio relato/dirio de viagem e iconografia dos naturalistas e viajantes
exploradores da natureza brasileira do sculo XIX.
Taunay, ao que vem demonstrando nossos estudos, faz a ligao dessas
experincias, contribuindo para a expresso do novo esprito nacional, to forte que, no
Modernismo brasileiro, essa tendncia ser retomada em novos moldes. Essa relao
40
torna-se significativa a medida que muitos escritores modernistas foram leitores dos
livros de viagem, inclusive, das viagens empreendidas por Alfredo Taunay13, mas esta
outra questo. Voltemos aos aspectos dos germes de origem e da viso romntica
que, bem compreendidos, explicitam o dilema da (im)possibilidade de um
enquadramento do nosso escritor em um nico estilo artstico-literrio.
A famlia Taunay: construo de um discurso artstico-literrio no Brasil
Com o grupo de franceses da Misso Artstica de 1816, a famlia Taunay instalou-
se no Brasil, compreendendo: Nicolas Antoine Taunay, o patriarca, membro do Instituto
de Frana, famoso pintor das paisagens europias, sua mulher e cinco filhos, a saber:
Charles (oficial do exrcito francs, voltou com o pai para a Frana, aps os seis anos
que passou no pas); Hipollite (colaborou, com Ferdinand Denis, na obra Le Brsil ou
Histoire, Moeurs, Usages et Coutumes des habitants de ce royame); Aim-Adrien
(desenhista da Expedio Langsdorff, morreu no rio Guapor, em Vila Bela, Mato
Grosso); Thodore (diplomata e poeta) e Flix mile (pai de Alfredo Taunay). Nesse
cenrio familiar, o tema deste trabalho centra-se na descendncia legada por Felix
mile, em suas relaes com o estudo da paisagem. Tem-se, ento, uma famlia
europia entrelaada histria e cultura do Imprio brasileiro, respeitada pelos
costumes e reputao, exercendo fecundas influncias na arte brasileira.
Nicolas foi membro fundador do Instituto de Frana, artista de real nomeada,
graas a um genero de pintura muito seu que lhe valera o honroso epitheto de Poussin
dos pequenos quadros (Alfredo TAUNAY, 1921, p. 7-8)14. Mesmo tendo ficado pouco
tempo no Brasil, Nicolas adquiriu o stio da Cascatinha, na Tijuca, e nela se
estabeleceu, a princpio em um rancho de palha e depois numa pequena propriedade,
formando-se alli um colonia francesa da mais alta gerarchia (Alfredo Taunay [1891]
1923, p. 17). Como paisagista Nicolas contribuiu para a construo da imagem do
13 Os livros de viagem lidos, principalmente, por Mrio de Andrade, foram consultados no IEB/USP, a partir de fichas de leitura do escritor. Nessa pesquisa agradeo, particularmente, a generosa contribuio da professora Tel Ancona Lopez. 14 Nicolas Poussin (1594-1665) foi um dos principais mestres do classicismo francs. Inicialmente tratou de temas bblicos mas, na maturidade, a paisagem assumiu fascnio prprio nos acentos dramticos, na luminosidade e nos estados da alma. Foi admirado por David, que tambm exerceu influncia sobre Nicolas Taunay (Cf. PISCHEL, G. Histria Universal da Arte. 1966).
41
Brasil, inovando a concepo tradicional, ao acrescer, cor local, aquela mistura de
urbano e rural, de religiosidade barroca e de modernidade que ainda devia ser visvel
no Rio de Janeiro colonial (MIGLIACCIO, 2000, p. 17). Tratou de variados assuntos,
encontrando-se tanto entre os paisagistas como entre os pintores de histria e de
batalhas e os de genre, gnero a que se pode imprimir todas as qualidades mestras do
talento (Affonso TAUNAY, 1983, p. 193). No conjunto de sua obra reuniu influncias de
grandes pintores e foi considerado como o primeiro no gnero de paisagem, um gnero
tido em desapreo pelo pblico que exigiam grandes composies sacras, histricas ou
mitolgicas e desprezavam esses pintores secundrios que s sabiam retratar des
bonshommes faisant les foins. Ia caber ao sculo XIX e ao movimento de 1830, a
reabilitao e, mais tarde, o triunfo da paisagem com Corot e Courbet, Millet e
Rousseau (idem, p. 101 e 103).
A exemplo, a tela Cascatinha da Tijuca, de Nicolas Antoine Taunay:
Tela Cascatinha da Tijuca, de Nicolas Antoine Taunay. Fonte: Revista Nossa Histria, n 4, fevereiro, 2004, p. 31.
O leo sobre tela de Nicolas bastante conhecido e pode ser visto como um
emblema nacional. Mesclando paisagismo e histria, tem carter de manifesto da
42
relao do homem com a natureza. A figura miniaturizada do artista quase desaparece
em meio grandiosidade da paisagem. Em plena atividade artstica, o pintor divide o
espao com dois escravos, com o co e com tropeiros que conduzem o gado. A
paisagem domina toda a tela e, mais que essa grandiosidade, o que chama ateno na
obra o efeito da conjuno entre a posio em que o pintor colocado e o ngulo de
incidncia da luz. Ele est de costas para a paisagem representada na tela e o seu
modelo se encontra fora dela, coincidindo surpreendentemente com a posio do
espectador (MARETTI, 2006, p. 114). O olhar est em relao direta com o objeto
representado e com o foco de observao do espectador, num jogo de espelho que
exprime uma srie de regras e tambm uma forma mais modernizadora que
neoclssica.
O tema do quadro foi motivo especial na vida e no conjunto da obra do artista.
Chamam ateno o colorido, a disposio das figuras humanas e animais, todos em
pequeno porte, caracterstico do estilo de Nicolas, j tomado pelos novos ingredientes
do seu tempo, como os estudos sobre a construo histrica da viso, as relaes
entre o sujeito observador e os modos de representao do objeto, da forma como
aparece tratado por Jonathan Crary (1996) e, principalmente os efeitos da luminosidade
e da pintura fora dos atelis. Esses elementos quebraram com o discurso rgido at
ento posto, e o artista passou a manter um dilogo mais ntimo com o seu
interlocutor/espectador.
Recurso narrativo semelhante pode ter sido utilizado por Alfredo Taunay no jogo
das epgrafes de Inocncia. Transpondo as situaes para a linguagem pitoresca do
sertanejo, o escritor ironiza as situaes dos textos clssicos. O efeito no s do
ponto de referncia erudita, mas de ruptura entre a tradio e o popular, de modo a
quebrar o tom sentimental do romance, estratgia que ser ampla e, mais
profundamente, explorada por Machado de Assis.
Desta forma, mesmo que a tela de Nicolas Taunay esteja prxima da tradio
idealizada e pastoril, o ponto de vista de um europeu sobre a natureza j dominada
pelo homem. Quando chegou ao local da cascatinha, onde fixou residncia com a
famlia, no mais havia ali uma floresta, mas sim uma disciplinada constelao de
propriedades cafeeiras, a maioria pertencente a franceses e ingleses recm
43
estabelecidos no Brasil, como diz Menezes (2004) que estudou a histria da floresta da
Tijuca, divergindo das observaes de Llia Schwarcz (2004) sobre o quadro de Nicolas
Taunay. Para Menezes, salta aos olhos o processo de degradao, de domesticao,
do trabalho escravo para o cultivo do caf; para Schwarcz, a paisagem americana
revitaliza um mundo ideal, atravs da imaginao arcdica e potica. So percepes
diversas de uma mesma imagem que, ainda hoje, conduz os estudiosos a variados
nveis de compreenso do processo de formao do Brasil.
Sem ter tido tempo de chegar a tais abstraes, mas seguindo caminhos
semelhantes, o filho caula de Nicolas, Aim-Adrien Taunay, deixou trabalhos mais
voltados para a observao da vida nas aldeias indgenas e estudos da flora e da fauna
brasileira. Era muito jovem ainda quando foi flagrado pela morte no rio Guapor, em
Vila Bela, Mato Grosso. A obra A cidade de Matto Grosso (antiga Villa Bella) (1891),
uma tentativa de focalizar o seu legado, pois foi ambientada no palco da sua derradeira
viagem.
O nome de Aim-Adrien est, desta forma, ligado s artes e tambm s viagens
em que tudo experimentou, desde as delicias da vida facil nas ilhas da Oceania [...]
aprendendo a nadar como um peixe com aborigenes das Carolinas e das Marquezas
[...] at os horrores de um naufragio, quando a Urnia a 14 de fevereiro de 1820, se
despedaou em um baixio prximo das ilhas Malvinas ou Falkland (Alfredo TAUNAY,
op. cit., p. 18-9).
Tinha, na poca, menos de 16 anos, quando aceitou participar da Expedio
Freicenet (viagem de circunavegao), para contemplar, face a face, a natureza do
mundo inteiro e penetrar-se de sua grandeza (FLORENCE, 1977, p. 342). Coloca,
ainda, que a maioria dos quadros que desenhou, teve sua autoria adulterada, fato
confirmado por Alfredo Taunay (idem, p. 20) em tempo conheceu donde a usurpao
partia, mas desprezou qualquer reclamao.
Como membro da Expedio Langsdorff (1822-1829), Aim-Adrien percorreu
vrias cidades de Mato Grosso, na funo de segundo desenhista, ao lado de Hercules
Florence. Esta expedio, patrocinada pelo Imprio russo, possui um imenso legado
artstico, cultural e cientfico sobre a natureza, as populaes e a economia brasileira15.
15 Cf. a bibliografia sobre a Expedio Langsdorff e o mapa do seu percurso aqui colocados.
44
No contexto geral das viagens em Mato Grosso, representou as vrias faces de um
mesmo Brasil que ele conheceu, vivenciou de forma intensa, dando visibilidade a
lugares at ento no descritos.
Nesse percurso, teve oportunidade de interpretar a natureza de forma totalizadora,
o que, de alguma maneira, no agradava Langsdorff que desejava mais um trabalho de
ilustrao que de inspirao artstica (COSTA, 1995, p. 14-6). Mesmo nos textos em
que trata das coisas prticas (como o encaminhamento de desenhos e pedido de
demisso), utiliza figuras de linguagem nas quais as imagens visuais so recorrentes,
demonstrando a concepo de sua obra e da arte em geral (op. cit. p. 69-70)16. Para
Pablo Diener (1995, p. 13), talvez tenha sido uma das personalidades mais geniais da
equipe de Langsdorff, pois representou o esprito potico em meio a um
empreendimento cientfico.
A exemplo, uma aquarela bastante representativa da imagem de Mato Grosso,
pois a par de focalizar o exotismo das palmeiras buritis, marca do discurso imagtico.
16 Cf. tambm carta familiar de Aim-Adrien, escritas dune des Salles du palais dsert des anciens capitaines gnreaux de Mato-Grosso [...] on voit partout les marques destructives de labandon et le combat des choses existantes contre le temps. Tout reproduit limage de la mort (Alfredo TAUNAY, 1923, p. 27-9, grifamos).
45
Aquarela Palmeiras denominadas buriti, de Aim-Adrien Taunay, publicado na obra Expedio Langsdorff ao Brasil: Rugendas, Florence, Taunay (1998, p. 33).
De traos vivos e cores vibrantes, os leques dos buritis parecem acenar para o
viajante nos agrupamentos (capes) aquticos em que so encontrados, marcando o
lugar de representao do serto. Em constante relao com a ao humana, a
natureza vibrante e a personagem do desenho, parece inquirir (com os olhos) o
espectador (como na tela de Nicolas). O dilogo pode indicar o espao da chegada
(para os que buscam o lugar, no caso, os viajantes), ou o processo de posse (invaso)
do espao existente, ainda em estado latente. De todo modo, uma ameaa, porque o
olhar do estrangeiro d visibilidade (des-cobre), carrega o sentido especfico da
apropriao. O artifcio do desenhista parece escrever esse sentido de posse
eminente17.
17 Cf. a coleo das aquarelas de Aim-Adrien Taunay em Expedio Langsdorff ao Brasil: Rugendas, Florence, Taunay. Rio de Janeiro: Edies Alumbramento, 1998.
46
Lucciano Migliaccio (2000, p. 34), em estudo sobre a arte brasileira no sculo XIX,
diz que Aim-Adrien dotado da tcnica do grisaille e da aquarela, por sua
praticidade na reproduo das observaes feitas durante as difceis e incmodas
viagens de explorao, base indispensvel para se reproduzir a paisagem daprs
nature com objetividade necessria, a fim de que, depois, no ateli, se possa passar ao
grande quadro (idem, ibidem), como aparece no resultado pictrico. Em outras telas de
Aim, os tipos humanos so caractersticos como o sertanejo em sua montaria, em
meio mata fechada; lavadeiras beira dos rios; prticas indgenas em ambiente
domstico; alm de croquis da flora brasileira. As personagens no so apenas
ornamento, mas um arabesco de evocao histrica (DIENER, op. cit., p. 14) que
entrelaam linhas e traam esboos de uma idia de Brasil.
Nos estudos da paisagem brasileira, Felix-Emile empenhou-se pessoalmente na
produo de uma pintura de carter nacional, implementando o gnero de paisagem
histrica, capaz de superar os limites da ilustrao cientfica e do panorama
(MIGLIACCIO, op. cit., p. 32). Seus variados trabalhos apresentam temas que
revitalizam toda a problemtica brasileira, ainda hoje atual, como a tela Vista de um
mato virgem que se est reduzindo a carvo (leo sobre tela, 134 X 195 cm), exposta
no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
47
Fonte: Belluzzo, A. M. (1995, p. 170), in: Revista Eletrnica de Geografia y Ciencias Sociales Scripta Nova, www.ub.es/geocrit/sn
De grande impacto visual e de reflexo moral, a idia de destruio da mata,
mas ao mesmo tempo traz a questo de comrcio e do processo de imigrao pelo qual
passava o Brasil. Todas as figuras esto em movimento e a composio grandiosa,
conduzindo o olhar para uma contemplao no-passiva, tendendo discusso
econmica e filosfica do tema. A destruio da mata pode ser interpretada como a
resposta ao olhar inquiridor presente nos dois desenhos anteriores que, de alguma
forma, traduzem a civilizao que chega com todos os problemas sociais advindos dela.
Intervem, nesses olhares, o confronto entre o discurso da apropriao e o discurso do
local da origem, produzidos por foras sociais, impossveis de serem barrados. Como
resultado, o apagamento de todos os sentidos j produzidos, mesmo que esse discurso
seja o da natureza, antes indevassvel e impenetrvel.
Flix-mile, como professor de paisagem na Academia de Belas Artes do Rio de
Janeiro, imprimiu o discurso mais didtico sobre o Brasil, resultado tanto das funes
que exerceu (foi diretor da Academia de 1834 a 1851), como das relaes particulares
com o Imperador, do qual foi preceptor de artes. Estava, pois, falando em nome de uma
ideologia, estabelecendo e circulando formas de discursos possveis e necessrios ao
48
cumprimento de objetivos determinados. Em sua vida pblica, teve participao nas
idias reformistas e, pelas suas mos exigentes de hbil pintor, seu filho Alfredo
Taunay desenvolveu o gosto pela participao na vida pblica e pelos espetculos da
natureza, marcadamente presentes em sua obra.
Alfredo Taunay est, portanto, inserido nessa famlia de artistas franceses, que
desenvolvia um discurso de/sobre a paisagem brasileira. Em certo sentido,
abrasileiraram o olhar, transformando-o em algo mais pragmtico, desta feita, levados
pelo magnetismo da luz exterior, cujas irradiaes ocasionaram transformaes
fundamentais nos estudos da pintura.
Sem desvencilhar-se de tais tendncias que afirmam uma concepo de mundo,
um sistema de valores ou um ideal de arte, Alfredo Taunay foi um franco-brasileiro e,
nesta medida, carregou certa dose de contradio de esprito que, para Slvio Romero
(2002, p. 407), parece intrnseca e fundamental, entre o romancista e o poltico:
aquele um dos mais brasileiristas havidos; este um dos mais estrangeiristas aparecidos
em plagas nacionais. So, portanto, dois pontos que se afastam e se tocam nas
manifestaes de sua individualidade. Tais manifestaes so explicadas, conforme o
citado autor, pelos germes de origem, lugar de onde se pode visualizar o paisagista de
precisa utilizao da pena como um pincel, o que far toda a diferena no trato com a
natureza transformada em texto literrio. A unio dessas duas tendncias de esprito
fez de Taunay um polgrafo, como ficou reconhecido no mundo da crtica a partir de
Slvio Romero (op. cit.).
Jos Verssimo (1916, p. 131), fornece algumas informaes necessrias
compreenso do que aqui est sendo tratado:
o sr. Taunay [o Visconde] descende de uma velha famlia franceza de artistas fidalgos,
vindos para o Brazil na poca e ao servio de D. Joo VI. Esses artistas eram tambem
eruditos, literatos, poetas, e de todas as suas capacidades transmitiram alguma coisa ao
seu descendente, que devia, j de todo brazileiro, dar na ptria do exlio delles novo lustre
a um nome celebrado na historia da arte franceza (Grifos meus).
49
A tradio europia secular, enquanto legado familiar, somado ao gosto pela arte,
cultura e poltica brasileira, foi fundamental na vida de Taunay, oportunizando, inclusive,
algumas regalias, de que ele soube usufruir na Corte.
Por isso, a sua vida, dedicada a longos anos no servio militar, tem sido
considerada impecvel pelos seus bigrafos. Quando se retirou dos servios pblicos,
envergava condecoraes de guerra como as veneras de So Pedro de Aviz, da Rosa
de Cristo, a Medalha Constncia e Valor (da campanha de Mato Grosso e da Retirada
da Laguna) e a medalha Geral do Exrcito, todas elas oriundas da f de ofcio e pela
conduta desabonadora (Alfredo TAUNAY, 1942, Prefcio).
Apesar da carreira das armas no ter sido uma escolha pessoal (preferia ser
mdico), Taunay seguiu a tradio familiar, subjugado vontade dos pais, como
recorda, em Trechos da minha vida (1890, p. 35, 133-5), narrado, tambm nas
Memrias (1948), como no fragmento citado abaixo:
- Ser mdico garante a independncia, ponderava eu.
- Independncia? Exclamava meu pai com engraada exagerao. No h profisso mais dependente; o mdico est merc dos clientes, nem sequer tem direito ao sono.
Pertence a todo o mundo, sobretudo a quem paga largamente [...].
- Ento que carreira devo abraar? Perguntava eu indeciso.
- Das armas, respondiam uma Pai e Me. Teus antepassados foram militares; isto
obriga; nem h outro destino para o homem superior (p. 69).
Essa forma de submisso tradio, responsvel pela construo do homem
superior, capacitou Taunay para o exerccio da sua profisso como engenheiro militar,
gegrafo e bacharel em cincias fsicas e matemticas. Tal diversidade de
conhecimento, comprovada em sua obra, foi-lhe til no campo da experimentao,
como viajante, e em vrias situaes da cultura e da poltica brasileiras.
Tendo dedicado sua vida aos servios pblicos e produo intelectual, Taunay
foi tambm conhecido como escritor de dirios, tanto os oficiais como os ntimos, estes
expressos em avultada correspondncia com os familiares e amigos, principalmente o
pai, mantendo-o informado de todos os episdios da expedio, pedindo-lhe conselhos
e ensinamentos, atitude at certo ponto ingnua, mas no h de se esquecer que o
50
menino Taunay contava com pouco mais de vinte e um anos de idade, como mostram
trechos de correspondncia (Cartas) encaminhadas ao pai e, a ltima, irm:
sobretudo o tdio mortal o que nos acabrunha. O relatrio, que dilatei quanto possvel,
d-me bastante trabalho para incutir algum interesse a um assunto estril e por demais
uniforme. No tenho bibliografia alguma ao meu dispor e valho-me dos bons
conhecimentos de botnica que Freire Alemo me transmitiu. Leio agora com prazer a
imitao de Cristo que Mana ps no fundo do meu ba [...] (Alfredo TAUNAY, 1942,
Coxim, 6/01/1866, p. 147, grifos meus).
Os viveres comeam a chegar e enfim podemos comer farinha e arroz para nos
restabelecermos do regime severo de 25 dias de carne simples (algumas vezes sem sal)
que nos reduziu a miservel estado. Emagreci extraordinariamente e j comeava a sofrer
bastante dos nervos, a ponto de ainda hoje sentir a mo um pouco trmula (Coxim,
2/02/1866, p. 150, grifos meus).
Observei diversas flores dos Pantanais, muito belas, e tive imenso prazer podendo determinar-lhes a famlia e at o gnero (Rio Negro, 24/02/1866, p. 152, grifos meus).
Os soldados que nos acompanhavam portaram-se admirvelmente; jamais uma queixa,
jamais uma nica palavra de desacorooamento: os frutos que conseguiam apanhar
eram-nos dados de bom grado, apesar da carncia de que padeciam, com um herosmo acima de qualquer elogio (Morros, 10/03/1866, p. 153, grifos meus).
J vou falando menos mal a lngua e todos se admiram, inclusive a cabocolagem que se ri
a valer, da minha facilidade em sustentar longa conversa com esses amveis filhos da Natureza. A raa em geral toda bonita [...] (Morros, 18/05/1866, p. 159, grifos meus).
Sob vrios pontos de vista, as cartas-relatrios so um misto de objetividade,
sensaes e emoes, desalentos e busca de consolo, que mantm o viajante
vinculado s lembranas dos familiares e s razes. Essas missivas apresentam a
mesma fora de expresso narrativa, cujo tom constitui uma constante na obra do
escritor, semelhante ao exerccio da prpria escrita que comeava a ser despertada no
51
jovem militar. Nelas, sobreleva o conhecimento direto das cenas, o estudo, o bom gosto
artstico e literrio, o cuidado lingstico, a se lhe incrustar com a naturalidade das
coisas instintivas. H, nesse exerccio ntimo, uma certa emancipao de si, como diz
Wanderley Pinho (1944, p. 5-8), ao tratar a figura de Taunay como herdeiro orgulhoso
da prpria linhagem de gente antiga e fidalga, representante dos seus, numa criao
total do pai que agora no era mais o estudante e filho, mas o oficial, na convivncia
de superiores camaradas e comandados obedientes.
Mesmo na escrita de si (GOMES, 2004), em tudo emancipadora, a influncia
paterna, o olhar do artista a traar quadros da paisagem e caracteres das pessoas e o
compromisso com propsitos maiores ressoam como eco dominante de toda uma vida.
O escritor abre-se com a famlia em momentos de desalento, tdio, denncias, sem,
contudo, deixar de lado as descries dos painis do serto, esquadrinhado pelo
movimento da viagem, relatando uma srie de pormenores de ordem botnica,
zoolgica, geolgica e paisagstica. Uma preocupao com a fidelidade documental que
no apaga o estilo despojado, prprio do conjunto de sua obra.
Componentes (de uma viso) do Romantismo
Para se compreender o lugar de anlise da obra de Alfredo Taunay, necessrio
alcanar, alm das vinculaes familiares, a fonte do esprito romntico que
revolucionou o seu tempo, em todas as manifestaes artsticas e em todos os
conceitos estabelecidos, seja por contgio, seja pelo desenvolvimento das novas
formas de expresso.
De variadas tendncias e denominaes, o Romantismo foi um evento social e
cultural, diferenciado em cada pas, sendo a compreenso global do complexo
romntico que alcana o entendimento dos vrios nveis de sua abordagem.
Observando a viso globalizante, sem se esquecer da diversidade do estilo,
Nachman Falbel (1993), em estudo sobre as tendncias europias desse movimento
histrico, distingue o Romantismo em dois perodos, que vai nos interessar in totum,
medida que o tempo histrico ajuda a compreenso do fenmeno literrio. O primeiro
perodo vai de 1815 a 1851, compreende a procura para manter o panorama poltico
52
em voga; o segundo, de 1851 a 1871, o perodo em que se d o triunfo do princpio
das nacionalidades em suas bases essenciais (op. cit., p. 49).
As rupturas que se seguiram, tanto com relao conscincia do fenmeno
histrico e da evoluo das artes, como da cultura, com o desenvolvimento da
sociedade industrial, determinaram uma concepo de um mundo em transio, como o
concebe Benedito Nunes (1993). De um lado, o Ancien Regime; de outro, o liberalismo,
entre o modo de vida da sociedade pr-industrial e o ethos nascente da civilizao
urbana sob a economia de mercado, portanto, conflitiva (op. cit., p. 53). Resultaram,
desse rompimento, os sentimentos extremos e atitudes antagnicas visveis nas obras
do perodo.
Nesse quadro, pergunta-se at que ponto as tendncias esttico-literrias, no final
do sculo XVIII e meados do XIX, contribuem para o reexame da obra do nosso
escritor?
De maneira geral, a necessidade do esboo de uma conscincia do gnero, no
momento em que, a literatura resultante das viagens, desdobra-se numa coleo de
tipos, como topoi paisagsticos, conexes geogrficas e, em especial, na fixao de um
ponto de mira (calcado no do viajante naturalista) para um narrador de fico em
formao (SUSSEKIND, 1990). Uma das bases para essa conscincia a utilizao da
capacidade descritiva como suporte para o narrador.
Palmilhando entre variados nveis de interpretao, J. Guinsburg (1993, p. 14-15)
diz que o Romantismo , no s um simples fato histrico, mas o fato que assinala, na
conscincia humana, a relevncia da conscincia histrica (...) uma forma de pensar
que pensou e se pensou historicamente. Com efeito, o Romantismo foi antecedido pelo
sculo das Luzes, que concebia a histria ligada ao divino, s se desprendendo dela
com a noo de progresso nas instituies sociais, a partir de Montesquieu e
Rousseau, pois so as histrias (e no s a Histria) que produzem a civilizao (idem
ibidem). Novo enfoque, portanto, que trouxe, luz, a idia de natureza dionisaca,
distinguindo-se pela tenso e dinamismo dos conceitos da sociologia moderna, em que
voltar os olhos para o real existente, implicaria (re)ver a cor local, o gosto pelo povo e
suas manifestaes primitivas.
53
Na viso de Gerd Bornheim (1993, p.77), esse conceito expande-se para um
movimento cultural em um determinado momento da histria. Para isso, estuda a
filosofia do romantismo, a partir do movimento alemo, o nico que se estrutura como
movimento, conscientemente, a partir de uma posio filosfica, o que vai garantir
filosofia um destaque singular dentro do panorama romntico geral.
Essa conscincia histrica mobilizou os viajantes como o alemo Humboldt, que
props a transformao no estilo dos relatos e na postura dos narradores, tendo servido
de base para muitos viajantes que o sucederam. Integra-se sua realidade histrica o
estudo do desenvolvimento dos povos, sua cultura, seu fazer folclrico, amalgamando o
fenmeno humano, ponto nodal da historiografia moderna interpretativa e formativa,
nas trilhas da constituio de uma identidade humana, cujo sentido passa a ser
alargado pelo entendimento das prticas culturais e pela emergncia histrica do
indivduo nas sociedades.
Amparados por esses valores da scio-histria, e para fundamentar o exame
desse movimento espiritual de profundas razes, culturalmente superior trajetria
humana, dizemos, como muitos, que o Romantismo fruto de duas revolues que
abalaram o mundo e moldaram os ideais da sociedade moderna: a francesa e a
industrial, que tiveram suas causas gestadas em outros acontecimentos polticos do
sculo XVIII, no menos significativos, como a independncia dos Estados Unidos da
Amrica, a agitao austraca contra o absolutismo e a libertao da Polnia (FALBEL,
1993, p. 23-4). Como rastilho de plvora, esses movimentos alastraram-se pela Europa
e, conseqentemente, em suas colnias na Amrica, onde deixaram marcas indelveis,
presentes na cultura e na literatura.
possvel, dentro de um esquema mais abrangente, que o ideal de transformao
do mundo, causado por movimentos poltico-sociais e o rompimento com as instituies
polticas tradicionais, tenha derrubado as fronteiras entre os povos, surgindo um novo
ponto de equilbrio, respaldado pelo sentimento nacionalista e pelo avano das
cincias. A revoluo cientfica instala a idia de progresso e d margem
emancipao das colnias, na Amrica, e conseqente abolio da escravatura,
processo lento, apagado pelos interesses imperiais, mas que estar nas razes dos
graves problemas brasileiros. A vertente romntica brasileira, que elegeu o extico
54
como smbolo local, particularmente a representao indgena, proliferou e adaptou-se
ao projeto de D. Pedro II, neutralizando a ndoa causada pela escravido
(SCHWARCZ, 1998).
Como mola propulsora das idias romnticas, os debates em torno do nacional
iro incorporar e gerar o esprito romntico que contribuiu para a construo da idia do
Brasil transformado em Nao, marcadamente a partir do movimento da Independncia.
O Romantismo estabeleceu uma relao com a natureza o mais nacional dos
monumentos mediada pelo princpio esttico. No apenas o poder intuitivo da
imaginao, mas no confronto do indivduo com o mundo exterior, eixo da nova direo
epistemolgica. Como realidade csmica, a natureza integra-se organicamente