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TEORIA DA JUSTIÇA E DIREITO PÚBLICO
EM ALEXANDRE KOJÈVE
Agemir Bavaresco 1
INTRODUÇÃO
O tema da idéia de justiça na obra Esboço de uma fenomenologia do Direito, de
Alexandre Kojève é central. O autor inspira-se em sua análise, partindo da figura da luta entre
o senhor e o escravo da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Ora, esta figura introduz a luta
pelo reconhecimento, portanto, da intersubjetividade, da qual resultará a relação jurídica se,
nesta luta intersubjetiva, incidir a ação arbitradora de um terceiro imparcial ou
desinteressado. Considerando que o modelo metodológico hegelo-kojèviano é pertinente para
compreender o fenômeno jurídico, em que medida este método e estatuto teórico-prático
contribuem para a superação do Direito moderno, avançando para um Direito intersubjetivo
comunitarista? Qual é o alcance e o limite do conceito de Direito Público kojèviano na
dimensão constitucional e administrativa? Posto este problema, tem-se como objetivo
apresentar a teoria kojèviana da justiça e do Direito Público, como um pressuposto
epistemológico plausível para uma hermenêutica jusfilosófica de viés intersubjetivo.
O reconhecimento é um dos conceitos éticos mais importantes, dentre aqueles que
podem ser identificados, por exemplo, no passado, pós Segunda Guerra, como uma série de
lutas no sentido dos movimentos nacionais de liberação, por direitos civis, pela emancipação
das mulheres, ou das múltiplas lutas por identidades culturais. Hoje, diante do acentuado nível
de exclusão social, da redefinição de nacionalidades e de blocos regionais, busca-se,
novamente, a aplicação da teoria do reconhecimento, de modo a possibilitar uma
intersubjetividade entre os sujeitos políticos internacionais, respeitando-se as diferenças e
identidades e garantindo-se relações justas sob o ponto de vista sócio-econômico e cultural.
A exposição da teoria da idéia de justiça, começa, em primeiro lugar, com o desejo
antropogênico de reconhecimento, constituindo-se na fonte da idéia de justiça em A. Kojève.
Em seguida, apresenta-se a fenomenologia da justiça, em três momentos: a justiça
aristocrática ou a igualdade, a justiça burguesa ou a equivalência e a justiça cidadã ou a
eqüidade. Enfim, a análise fenomenológica, feita por Kojève, mostra que a idéia de justiça
evolui, segundo uma lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos, entre
1 Doutor pela Universidade Paris I, Professor de Filosofia da UCPel e Pós-Graduação/MPS, Diretor do ISF.
2
universal e particular. O universalismo do direito aristocrático e o particularismo (ou o
individualismo) do direito burguês coincidirão, pois os direitos e os deveres os mais pessoais,
exercidos pelo indivíduo, serão os direitos e deveres os mais universais, isto é, aqueles do
cidadão, tomado enquanto cidadão, ou aqueles de todos e de cada um.
O reconhecimento intersubjetivo dá-se em vários níveis de mediação sócio-jurídico-
político, implicando uma teoria da justiça, correspondente, no sistema do Direito Público.
Ocorre que, ao exame da teoria acerca da idéia de justiça, vê-se, em Kojève, que através do
Direito, se mostra uma determinada idéia de justiça, derivada das lutas por reconhecimento
travadas no seio da sociedade. Neste sentido, o domínio do Direito Público é o domínio do
político e não, do jurídico eminentemente, uma vez que tais lutas, por reconhecimento não
poderiam ser resolvidas pela intervenção de um terceiro imparcial.
O presente trabalho, Teoria da justiça e Direito Público em Alexandre Kojève, expõe,
primeiramente, a teoria da justiça de Kojève em sua obra Esboço de uma Fenomenologia do
Direito, partindo de sua metodologia dialética, desenvolvida no desejo antropogênico e
descrita nos modelos de Direito (cap. 1). Depois, examina as repercussões da teoria kojèviana
da fenomenologia do direito sobre o Direito Público e, especificamente, sobre o Direito
Constitucional e Administrativo (cap. 2). Enfim, é feito um balanço de sua aplicação da
teoria da justiça no Direito Público, apontando o alcance e o limite de sua análise da
Constituição e da Administração Pública (cap. 3).
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1 - RECONHECIMENTO E INTERSUBJETIVIDADE NO ESBOÇO DE
UMA FENOMENOLOGIA DO DIREITO DE KOJÈVE
Alexandre Kojève (1902-1968) é russo por nascimento, alemão por formação e francês
por escolha, contribuiu na introdução do pensamento de Hegel na França. O livro Esboço de
uma fenomenologia do Direito de Alexandre Kojève, foi redigido em 1943, em Gramat
(França), afirma o editor da edição francesa, por ocasião de uma visita à família de Éric Weil,
não obstante, a primeira página do texto fazer referência à cidade mediterrânea de Marseille.
Esse trabalho permaneceu inédito, embora o autor tenha-se declarado satisfeito, guardando
sua forma original.
1.1 – Questão metodológica
Antes de ingressarmos na interpretação kojèviana de Hegel sobre o fenômeno do
Direito, elucidaremos a diferença metodológica entre a dialética hegeliana e kojèviana. Isto é
muito importante para compreendermos o que nos interessa na metodologia kojèviana, e em
que medida ela pode ser aproveitada para o nosso estudo.
Primeiramente, o que é a dialética hegeliana? A resposta a esta pergunta remete ao
problema central, subjacente, do monismo e do dualismo na filosofia hegeliana. Vejamos.
1.1.1 – A dialética hegeliana
O termo dialética vem de uma longa tradição histórica, na qual Hegel se insere, dando-
lhe, porém, amplidão e uma posição específica no seu sistema: ―A dialética para Hegel,
designa um dos momentos do processo total do conhecimento – ou um dos momentos do
processo total da efetividade; exatamente, o segundo, aquele que articula negativamente o
imediato no movimento de sua própria mediação‖ (Jarczyk-Labarrière, 1986, 88).
a) O segundo momento do processo: No Prefácio da Ciência da Lógica, O Ser, assim
se entendem os três momentos do processo: ―O entendimento determina e fixa as
determinações; a razão é negativa e dialética, porque ela reduz a nada as determinações do
entendimento; ela é positiva, porque produz o universal e subsume nele o particular‖
(Hegel,1972, 6) . O termo dialética aparece aqui, somente no segundo momento e não, como
4
uma entidade, subsistindo por si, fora do todo. A razão, sob a forma negativa, depois sob a
forma positiva, concerne o segundo e o terceiro momentos do processo do conhecimento. No
momento dialético, realiza-se a mediação do imediato, em que o particular se determina
dialeticamente como idêntico ao universal.
b) Motor da filosofia especulativa: Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, no fim
do Conceito preliminar, é dito: ―A lógica tem, segundo a forma, três lados: a) o abstrato ou do
entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional; c) o especulativo ou positivamente
racional‖ (Hegel, 1995, § 79). Em relação ao texto anterior da Ciência da Lógica, aqui,
aparecem dois termos novos: abstrato e especulativo. A dialética está situada no meio deste
processo, pois ela é o meio-termo, carregando o movimento da negação e da mediação, daí
que esse processo se realiza especulativamente.
Em Hegel o processo do conhecer e da efetividade dá-se sempre a conhecer de
modo recapitulado no seu acabamento – uma vez que igualmente esse terceiro
momento, é aquele do espírito, termo integrativo – seria mais fundado caracterizar o
sistema de Hegel como uma filosofia especulativa do que uma filosofia dialética (Jarczyk-Labarrière, 1986, 90).
c) Um movimento dialético-especulativo: A dialética hegeliana está ligada a uma
henologia, pois se propõe a unidade como uma tarefa da liberdade, uma unidade plural, como
veremos abaixo, de articulação interna de termos diferentes. Trata-se ainda de uma ontologia,
pergunta Labarrière?
Não, se entendermos por aí alguma ciência do ser, que seria pensado como
subsistindo por si, totalmente realizado, no seu objetivismo imediato, anterior à
inteligência de sua significação relacional. Sim, se a ontologia é tomada como a
exposição desta história compreendida, que nasce no ponto de encontro e de
pressuposição mútua do interior e do exterior, da idéia e de sua efetivação. Esta
ontologia é uma doutrina da liberdade (id. p. 100-101).
Pelo exposto, constatamos que, para Hegel, a dialética é um momento de sua
metodologia especulativa, como ficou provado em sua Ciência da Lógica e na Enciclopédia
das Ciências Filosóficas.
1.1.2 – Monismo sim, monismo não
O que é o dualismo? Para responder a esta pergunta, Denise Souche-Dagues, distingue
o dualismo metafísico do ontológico. O dualismo ontológico opõe-se ao monismo e ao
pluralismo. Então, ele engloba as doutrinas do ser que admitem duas fontes, duas figuras
irredutíveis uma a outra: a matéria e o espírito. O dualismo metafísico tem um caráter
puramente formal que apresenta as seguintes oposições: mundo sensível e mundo
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suprasensível, fenômenos e noúmeno, contingente e necessário, relativo e absoluto, tempo e
eternidade, ser e aparência etc. Ora, o hegelianismo é um idealismo absoluto, daí ser
caracterizado como uma ontologia monista, ou seja, uma interpretação una do ser, superando
as expressões do dualismo metafísico (Souche-Dagues, 1990, 9-10).
Para Gwendoline Jarczyk, o modo como Hegel se posiciona em relação ao
dualismo, tal como se apresenta, de um lado, no empirismo ou no transcendentalismo, e de
outro, o monismo, quer seja de Leibniz, de Spinoza ou de Schelling, revela o que ele entende
por unidade e por infinitude em nível propriamente especulativo. As críticas que Hegel
endereça, de uma parte, a Leibniz e a Spinoza, e de outra, a Kant e a Fichte mostram que
Hegel não defende uma passagem do monismo ao dualismo e vice-versa. Isso equivaleria a
passagem entre dois extremos inertes, próprios do juízo. Somente, a economia do silogismo,
que assume os extremos na sua negação, impõe-se aqui. Nesse sentido, a filosofia de Hegel
poderia ser caracterizada de monismo articulado, ou dualidade relacional da unidade
(Jarczyk-Labarrière, 1986, 352-353).
O monismo articulado, no entender do Jarczyk, é um processo de mediação reflexivo
cuja forma elaborada é o processo silogístico, que ela também denomina uma
articulação evolutiva – evolução ao mesmo tempo linear e circular – de três
momentos ou determinações da realidade que são a universalidade, a particularidade
e a singularidade. Processo silogístico cujas diferentes etapas ou figuras marcam as
diferentes dimensões em profundidade de uma afirmação única (id. p. 358-359).
1.1.3 – A dialética Kojèviana
Na Introdução à leitura de Hegel, Kojève em uma nota (id. p. 485, nota 1) descreve
seu modo de compreender a dialética, partindo da tese em que a totalidade da realidade é
dialética. Então, tem-se o seguinte:
a) Monismo ontológico: Os gregos descobriram, sob o ponto de vista filosófico, a
Natureza e aplicaram ao ser humano sua ontologia naturalista, determinando-o por uma única
categoria, a identidade.
b) A dialética da Natureza e do ser humano (= História): Hegel, afirma Kojève,
descobriu as categorias da Negatividade e da Totalidade, analisando o ser humano na
perspectiva da tradição pré-filosófica judeu-cristã. De posse desta ontologia dialética
antropológica, ele a aplica à natureza. Tem-se, assim, em Hegel a aplicação de uma única
ontologia dialética ao ser humano e à natureza.
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Ora, a ação (= Negatividade) tem uma dinâmica diferente que o ser (= Identidade), ou
seja, há uma diferença essencial entre a natureza que é revelada pelo discurso do ser humano,
e o homem que revela a realidade própria e aquela outra da natureza. Kojève acentua que é
preciso distinguir na ontologia dialética do ser revelado ou o do espírito (dominada pela
totalidade), uma ontologia não-dialética da natureza de inspiração grega e tradicional
(dominada pela identidade); e uma ontologia dialética (de inspiração hegeliana) do homem ou
da história (dominada pela negatividade).
Segundo, Kojève, o erro monista de Hegel é o seguinte: Baseado sobre a ontologia
dialética única, Hegel elabora uma metafísica e uma fenomenologia dialéticas da natureza,
para substituir a ciência vulgar (a antiga e a de Newton). Admitindo a dialeticidade de tudo o
que existe, Hegel vê, na circularidade do saber, o único critério da verdade. Ora, para Kojève,
a circularidade do saber só é possível no fim da história. Então, Kojève afirma ―que um
dualismo ontológico é indispensável para explicar o fenômeno da história‖ (id. p. 486).
G. Jarczyk e P-J. Labarrière escreveram o livro que traz por título: De Kojève a Hegel,
tratando da recepção do pensamento hegeliano nos últimos 150 anos, na França. Nesta obra,
os autores fazem uma apreciação crítica de Kojève ao interpretar Hegel. Os traços
dominantes, no entender de Jarczyk e Labarrière, da leitura de Kojève são os que seguem. Há
uma antropologização do sistema, em que o homem toma o lugar do Espírito, quando se trata
da liberdade e de suas realizações. Éric Weil de um lado e Gérard Lebrun de outro
sublinharam que esta abordagem, embora inspiradora, carece do que constitui uma das
tensões fundamentais entre singularidade e universalidade no pensamento hegeliano. Kojève
persegue a origem desse homem, no gesto antropogênico capital que é a submissão de um dos
dois antagonistas, fechando provisoriamente a luta de vida e morte, no começo de nossa
história. Esta dialética, entre dois humanóides no exercício da liberdade, se torna o paradigma
da leitura da história em que, sistematicamente, o oprimido se torna vitorioso. Esta figura, sob
o nome de dialética do senhor e do escravo, se determina no percurso trágico-revolucionário,
ao longo do caminho, em direção ao reconhecimento de ambos. Há, afirmam Jarczyk e
Labarrière, uma extrema violência que atravessa a vida dos homens, donde surge a
necessidade de pensar o desenvolvimento histórico como fim da história, efetivamente
acontecido. Ora, esta figura terminal foi inaugurada pela revolução de 1917, concretizada na
pessoa e na obra de Staline.
Porém, no entender dos autores, o mais original no pensamento de Kojève se encontra
na recusa que este faz tanto do dualismo ontológico como do monismo materialista. Embora
defenda um dualismo dialético linear, ―é uma porta de entrada possível para a compreensão de
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um processo de tipo reflexivo‖ (Jarczyk e Labarrière, 1996, 30) 2. É esta chave hermenêutica
que nos interessa na recepção do pensamento kojèviano em nosso estudo, e que nós
consideramos importante para compreender o fenômeno jusfilosófico, que passamos, agora, a
expor.
1.2 - O desejo antropogênico
Definir o Direito, para Kojève, é encontrar a essência e o modo de sua realização para,
assim, por comparação com outras atividades humanas, demonstrar sua especificidade e
autonomia.
A via de acesso à essência do direito seria aquela inaugurada por Platão: encontrar a
Idéia. Caminho este que corresponde na démarche weberiana ao tipo Ideal e em Husserl ao
Fenômeno. Deve-se descobrir, em outras palavras, o conteúdo que faz com que o caso dado é
um caso de direito, por exemplo, e não de religião ou de arte. De maneira que, para definir o
direito, é preciso primeiro encontrar sua essência, enquanto fenômeno; e porque, este é um
fenômeno humano, é preciso mostrar inicialmente, no ato que engendra o homem, enquanto
tal através dos tempos, o aspecto que faz nascer no mesmo o fenômeno jurídico (Kojève,
1981, 10-11).
Assim, na segunda seção da Esquisse, denominada L’origine et l’évolution du droit,
Kojève trata de mostrar que o desejo antropogênico de reconhecimento pode ser a fonte da
idéia de Justiça de uma maneira geral, e, assim, fonte de tudo o que é autenticamente o
Direito.
Nos §§ 35 a 38, Kojève reconstitui sua chave de leitura da Fenomenologia do espírito,
anteriormente consagrada nos seminários, por si ditados em presença daqueles que,
posteriormente, viriam a ser o escol da intelectualidade européia, tais como Lacan, Bataille,
Merleau-Ponty, etc.
Nestes parágrafos, Kojève esquadrinha as seções A e B do capítulo IV (A verdade da
certeza de si mesmo) da Fenomenologia, respectivamente, Independência e dependência da
consciência de si: Dominação e Escravidão e Liberdade da consciência de si: Estoicismo,
cepticismo e Consciência Infeliz.
2 . Reconhecem, os autores, os méritos de Kojève sob este ponto de vista, sem, no entanto, aceitar as
conseqüências que o filósofo russo, deduz disto, tais como: a entrada numa fase da história, sem possibilidade de
mudança, ou seja, o fim da história e o ateísmo total desta visão de mundo. Esta posição, reiteram os filósofos,
conduz a espoliar a imagem essencial de Hegel que é a plasticidade de seu pensamento levado até o fim de sua
vida. Trata-se, de uma interpretação de um sistema fechado, esgotando suas potencialidades e sem possibilidades
de inovação, concluem Jarczyk e Labarrière.
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Todo o núcleo desta parte da obra em comentário afirma-se sobre o que Kojève
reivindica para si, como sendo uma teoria do desejo do desejo, a propósito da qual, convém
invocar os termos utilizados pelo próprio filósofo, quando em correspondência endereçada a
Tran-Duc-Thao, autor de um artigo publicado no ano seguinte ao aparecimento da
Introduction à la lecture de Hegel:
Minha teoria do "desejo do desejo", também não está em Hegel e não estou certo de
que ele efetivamente a tenha visto. Introduzi esta noção porque tinha a intenção de
fazer, não um comentário da fenomenologia, mas uma interpretação; em outros
termos, tentei reencontrar as premissas profundas da doutrina hegeliana e construir
deduzindo-a logicamente destas premissas. O "desejo do desejo" parece-me ser uma
das premissas fundamentais em questão, e se Hegel mesmo não o desenvolveu
claramente, considero que, formulando-o expressamente, realizei certo progresso
filosófico. É, talvez, o único progresso filosófico que realizei, sendo, o resto, mais
ou menos filologia, ou seja precisamente uma explicação de textos (Jarczyk e
Labarrière, 1996, 64-65).
O § 35 começa por uma grande definição do ser especificamente humano, dizendo que
este é criado ―a partir do animal Homo sapiens no e pelo ato (livre por definição) que satisfaz
um desejo (Begierde), portanto sobre um outro desejo, tomado enquanto desejo. Melhor
ainda, o homem cria-se, enquanto este ato, e seu ser especificamente humano é apenas este
ato mesmo: o ser verdadeiro do homem é sua ação‖. (Kojève, 1981, 237).
Embora esta primeira abordagem traga em si uma oposição primordial — homem e
animal, o conteúdo mais importante é o que extrema a consciência de si do sentimento de si,
ambos concernindo, respectivamente, ao desejo humano e ao desejo animal.
Ao longo do § 35 e até meados do § 36 da Esquisse, grosso modo, Kojève reprisa, de
maneira sintética e aplicada, à questão jurídica, a supracitada chave de leitura da
Fenomenologia que discorre sobre o desejo, para então desaguar na consideração de que é o
ato antropogênico — aquele que satisfaz um desejo puramente humano — ―que engendra a
consciência de si (Selbstbewusstsein, a partir do sentimento de si animal, do Selbstgefühl), o
reconhecimento por outro, sendo também o reconhecimento por si, o conhecimento de si ou a
tomada de consciência de si por si mesmo‖ (Kojève, 1981, 246). A partir do que, segundo o
autor, o homem pode opor ao animal, que também o constitui, tanto sua condição de ―sujeito
religioso‖, quanto sua condição de ―sujeito moral‖, quanto sua condição de sujeito de direito.
A esta altura, resulta proveitoso esquadrinhar-se a questão do lugar e do papel do
desejo na antropogênese ora focalizada; para tanto, favorece o recurso à Introdution à la
lecture de Hegel, na qual a interpretação dada por Kojève à Fenomenologia do Espírito é
revelada em sua plenitude.
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Ainda em sede introdutória à leitura que faz da Fenomenologia, Kojève assenta com
clareza que, embora a diferença entre o homem e o animal trespasse a distinção entre
consciência de si e sentimento de si, isto não importa em que o elemento cognitivo seja a
combustão da antropogênese, mas sim, o Desejo:
a análise do ―pensamento‖, da ―razão‖, do ―entendimento‖, etc. — de uma maneira
geral: do comportamento cognitivo, contemplativo, passivo de um ser ou de um
―sujeito cognoscente‖, não descobre jamais o porquê ou o como do nascimento da
palavra ―Eu‖, e, portanto, da consciência de si, isto é, da realidade humana. O
homem que contempla é ―absorvido‖ por aquilo que ele contempla; o ―sujeito
cognoscente‖ se ―perde‖ no objeto conhecido (Kojève, 1994, 11).
Desta atividade absorta, segundo Kojève, não é possível resultar qualquer referência
ao sujeito que contempla a si mesmo. Somente o Desejo pode levar este sujeito a dizer ―Eu‖.
Esta consideração inicial será posteriormente retomada, no resumo que faz dos seis
primeiros capítulos da Fenomenologia, às páginas 161 a 195 da obra ora comentada, onde, em
uma reflexão posta a partir do referencial cartesiano, situa a questão do desejo do desejo,
enquanto instância ontológica do homem.
Diz Kojève, a resposta cartesiana: ―Eu sou um ser pensante, à questão: Eu penso, logo
sou; mas o que eu sou? não satisfaz Hegel. ‗Eu não sou somente um ser pensante, (...) eu sou
ainda - antes de tudo – Hegel‘‖. (Kojève, 1994, 163) E este Hegel é um homem de carne e
osso, que se sabe ser tal e que, sentado em uma cadeira, diante de uma mesa, munido de papel
e caneta, escreve, enquanto ouve ruídos vindos de longe e que os reconhece como sendo o
barulho proveniente dos tiros de canhão, usado por Napoleão na batalha de Iena.
Assim, partindo do eu penso, Descartes teria fixado sua atenção apenas sobre o penso,
negligenciando completamente o eu, tendo, pois, obtido uma resposta, não só sumária quanto
falsa, posto que parcial e unilateral. O homem, e, portanto o filósofo, não é somente
Consciência (Kojève, 1994, 165), mas Consciência de si e, levar-se em conta tão-somente o
penso, joga o homem naquela condição contemplativa, em que ele se confunde com a coisa
contemplada, é absorvido por ela.
Então, para que o homem venha a pronunciar a palavra Eu, é necessário a existência
do desejo; com isso Kojève opõe ao conhecimento a ação, enquanto elemento genético do ser
do homem: ―Ao contrário do conhecimento que mantém o homem em uma quietude passiva, o
Desejo o torna inquieto e põe-no em ação. Sendo nascido do Desejo, a ação tende a satisfazê-lo‖
(Kojève, 1994, 12). A forma como ser humano age é essencialmente histórica, e não é possível
defini-lo a partir de uma identidade estática como a do cogito, apenas.
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Característica da ação constituinte do homem é a negação; ou seja, desejar é destruir o
objeto, é torna-lo uma posse, assimilá-lo, negando-o, enquanto não-eu. Mas a ação não é
puramente destruidora, ao desejar aquilo que não é o eu, o homem constitui-se como um ser
no mundo em separado daquilo que deseja; porém esta caracterização da ação negadora ainda
não distingue o homem do animal, que também luta pela posse e assimilação de um objeto
alheio a si para a satisfação de um desejo. Esta espécie de desejo incide sobre um objeto
exterior natural é satisfeito pela assimilação, transformando-se no sujeito que o negou pela
assimilação, portanto este sujeito é, da mesma forma, um sujeito natural, ou na acepção de
Kojève: ―O eu, criado pela satisfação ativa de um tal desejo, terá a mesma natureza que as
coisas sobres as quais ele incide: será um eu coisista, um eu somente vivo, um eu animal‖
(Kojève, 1994, 12). A conseqüência disto é que este eu natural, apenas poderá auto revelar-se
e revelar-se aos outros, enquanto sentimento de si, ele não se tornará jamais consciência de Si
(Kojève, 1994, 12).
O desejo que ensejará a consciência de si, é o desejo tipicamente humano; é o desejo
que incide sobre um objeto não-natural, sobre algo que ultrapasse a realidade dada. Logo,
como o único que supera a realidade natural dada, é o próprio desejo, ou seja, o desejo antes
da satisfação, apenas o desejo de outro desejo preenche a exigência de um desejo tipicamente
humano, vale dizer, capaz de viabilizar a consciência de si. Diz Kojéve:
O desejo que incide sobre outro desejo, enquanto desejo, criará, pois, pela ação
negadora e assimiladora que o satisfaz, um eu essencialmente diferente do eu
animal. (...) Este eu não será, como o eu animal, identidade ou igualdade consigo,
senão “negatividade-negadora”. Dito de outra forma, o ser mesmo deste eu será
devir, e a forma universal deste ser não será espaço, mas tempo (Kojève, 1994, 12).
Aquela condição de sujeito de direito, acima mencionada, é a negação
substancializada da base animal do homem. Havendo casos em que o sujeito de direito
corresponderá a uma ―pessoa moral‖ individual, coletiva ou abstrata. É esta negação que
autorizará a distinção entre ação puramente humana e ação puramente animal, sendo que a
primeira é possível, mesmo onde a segunda não esteja presente, o que dá vez a que se obtenha
a noção de ―Fundação‖ a partir da noção de ―pessoa moral abstrata‖ e a de ―Sociedade‖ a
partir da noção de ―pessoa moral coletiva‖ (Kojève, 1981, 247).
Ainda que de passagem, Kojève registra que, independentemente do que possam
propor diferentes teorias a respeito da pessoa moral, o que importa é que a realidade ideal da
“pessoa moral” deve sempre remeter a um animal Homo sapiens que lhe serve de suporte;
em suma, sendo uma realidade especificamente humana, a pessoa moral só pode ser
11
proveniente de um ato antropogênico, o qual, por ser uma negação da animalidade, implica na
condição não física da personalidade moral jurídica.
Mais, dirá o autor, esta oposição entre o homem e o animal pode acontecer tanto na
esfera do ser, quanto na esfera do agir; portanto do que é e do que deveria ser. Entre o que se
faz e o que se deve fazer. Assim, o animal, pelo instinto de conservação faz o que é
necessário, para não arriscar a vida que tem, ele recusa o risco; porém, para que este mesmo
animal se torne homem ele deve arriscar sua vida; nesse sentido é que a humanidade é um
horizonte a ser implementado por um ato livre, o ato antropogênico, o qual, além do atributo
da reflexão, enquanto realidade consciente, caracteriza-se ainda por ser um ato valorado
positivamente, que deve ser. Em nota explicativa, Kojève esclarece que o dever-ser é, ao fim
e ao cabo, o dever-ser-reconhecido, que é uma tomada de consciência do querer-ser-
reconhecido, ou do próprio ato antropogênico. Que o aspecto do dever, revela apenas o fato
de que o desejo ou o querer antropogênico ―implica, necessariamente, uma negação do dado
natural ou animal que é a base da existência de quem deseja‖ (Kojève, 1981, 248).
Mas é no § 37, após retomar a noção de que a luta por reconhecimento é, por
excelência, o ato instaurador do advento do especificamente humano, que Kojève vai situar a
imanência da intersubjetividade na constituição do humano. Neste desejo de reconhecimento,
diz o autor, está a fonte última da idéia de existência da Justiça (Kojève, 1981, 250). Porque
sendo travada a luta por reconhecimento, a partir de um ato de vontade mútua entre os
contendores, qualquer lesão a pretendidos direitos daí decorrentes não se pode dizer injusta,
haja vista mesmo a chancela do consentimento decorrente da vontade livre, manifestada pelo
contendor lesado. Não há mais como se falar meramente do emprego da força de um sobre o
outro, posto que houve mútuo consentimento 3 (Kojève, 1981, 250).
Porém, alerta, Kojève, o consentimento afasta a injustiça, mas nem por isso vai
promover de imediato a justiça. É preciso ir além do consentimento para ―encontrar o
conteúdo da idéia de Justiça‖ (Kojève, 1981, 252). Ou seja, somente se houver igualdade de
risco na luta é que se fará presente a idéia de Justiça. O consentimento e a mutualidade são
índices de justiça, no entanto, a objetividade da justiça está no elemento igualdade, o que
permite a Kojéve declinar que toda interação será dita justa, na medida em que ela implique
consentimento mútuo e igualdade dos participantes (Kojève, 1981, 253). E ainda, se a luta foi
justa, seu resultado, da mesma forma, será aceito como justo. Assim, se a luta antropogênica,
3 Esta mesma base de consensualidade mútua presente na luta é que será depois a fonte da idéia da
contratualidade no sentido propriamente jurídico, para tanto, porém, será preciso a presença de um terceiro, de
um árbitro. Nada obstando, na luta por reconhecimento haver apenas duas partes, duas vontades independentes,
dois adversários em confronto deliberado.
12
a luta por reconhecimento, a luta que permite o advento do homem dentro da
intersubjetividade, se realiza pelo reconhecimento do mestre-vencedor pelo escravo-vencido,
há então uma desigualdade justa, que remete a uma igualdade primordial, aquela de que
ambos arriscaram igualmente a vida e a morte no embate.
Kojéve identifica no consentimento o elemento subjetivo da justiça e, na igualdade de
contendores, o elemento objetivo da justiça; remetendo então estes corolários à questão da
luta por reconhecimento, dirá o filósofo que esta luta começa num patamar de igualdade, mas
ela culmina na injustiça, e diz: ―É porque a justiça é ainda outra coisa além do que a
igualdade‖ (Kojève, 1981, 254).
A injustiça em que culmina a luta pelo reconhecimento, dá-se em face do
reconhecimento unilateral do senhor-vencedor pelo escravo-vencido, o que revela uma
desigualdade total dos participantes, no entanto se a luta foi justa, igualmente justo haverá de
ser o resultado, o que conduz a uma desigualdade justa, que somente é justa, porque remete a
uma igualdade primordial. Surge, portanto, uma Justiça da desigualdade, que se caracteriza
fenomenologicamente, pelo fato de que a desigualdade, que no caso é o reconhecimento
unilateral, nasce em razão de que um dos adversários abandona a luta, rendendo-se ao outro
pelo medo da morte, rendição esta oferecida de maneira consciente e voluntária, tanto quanto
fora o engajamento na luta; sendo a rendição aceita também de maneira livre, presente está o
consentimento mútuo no resultado da luta. É assim que uma situação aparentemente injusta,
―pode então ser justa, muito embora desigual‖ (Kojève, 1981, 255). Se, em presença da
mutualidade consensual, cabe ainda este pode, como uma potência, é o consenso ainda apenas
indício da justiça.
Uma análise qualitativa das conseqüências deste consenso mútuo será, pois,
reveladora da idéia de justiça aí encerrada. Primeiro, sendo o reconhecimento unilateral, não
há, objetivamente, igualdade propriamente dita e, segundo, não haverá igualdade
propriamente dita como subjetiva porque:
(...) um [adversário] posto no lugar do outro não agiria como este: o Senhor no
lugar do Escravo não se renderia, e o Escravo no lugar do Senhor não teria
continuado na luta até o fim. O Escravo, tanto quanto o Senhor, sabe que não há
igualdade entre o Senhor e o Escravo, entre a atitude de um e de outro. Mas se não
há igualdade de condição e de atitude, há equivalência (Kojève, 1981, 255).
Qual a materialidade desta equivalência? Que elementos são aí cotejados? A
segurança, desde o ponto de vista do escravo, equivale à dominação. Desde o ponto de vista
do senhor, a dominação equivale à segurança. Como a desvantagem do risco é compensada
13
pela dominação para o senhor, e como a vantagem da segurança compensa, para o escravo, a
desvantagem da servidão, diz Kojéve que há equivalência entre as duas posições e que é esta
equivalência que constitui a nova idéia de justiça; e assim: ―À justiça igualitária primordial
vem acrescer-se a justiça da equivalência‖ (Kojève, 1981, 255).
Ainda, enquanto corolário, ao final do § 37 Kojéve faz ver que se nem o Escravo pode
ser senhor e nem o senhor pode ser escravo, por este jogo de equivalências das vantagens e
desvantagens que o resultado da luta apresenta, ambos podem ser cidadãos. E que, a evolução
histórica da justiça não é nada mais do que a efetivação gradual no tempo da síntese ou, pelo
menos, de um compromisso entre a justiça aristocrática da igualdade e a justiça burguesa da
equivalência, resultando em uma justiça da equidade.
1.3 – Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo Kojève
Para Kojève ―o Direito é apenas a aplicação de um ideal de Justiça às interações
sociais dadas, sendo esta aplicação feita por um terceiro imparcial e desinteressado, isto é,
agindo, unicamente, em função de seu ideal de justiça‖ (Kojève, 1981, 267).
O senhorio e a escravidão são fenômenos ―sociais‖ e não fenômenos jurídicos
―primários‖. Assim, o terceiro, enquanto terceiro, pode fazer abstração do fato de ele ser
senhor ou escravo. Um senhor pode aplicar os princípios da justiça burguesa de equivalência,
da mesma forma que um escravo pode aplicar os princípios da justiça aristocrática de
igualdade, de tal sorte que os senhores podem realizar o Direito burguês e os escravos – o
Direito aristocrático (Kojève, 1981, 271).
As duas fontes da justiça e do Direito são independentes. Os dois adversários adotam,
porém, uma relação dialética: O escravo renuncia a igualdade aceitando a equivalência; o
senhor não considera a equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está quase indo à morte,
que não levaria a nada. A dialética sócio-política do senhorio e da escravidão que alcança a
cidadania, coincidem, a grosso modo, com a dialética jurídica do Direito aristocrático e
burguês, levando ao Direito sintético do cidadão. Este direito é uma síntese de dois elementos
autônomos, efetivando-se progressivamente: um Direito do cidadão em estado de devir.
O Direito nasce duplo e no fim, torna-se uno, ou seja, sua evolução vai da oposição
antitética à unidade sintética. Kojève, descreve esta antítese pura como uma construção
teórica, que será apresentada, brevemente, abaixo.
14
1.3.1 – A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático
O ser humano nasce do ser animal pela negação deste último, isto é, pelo risco de vida
em função do desejo de reconhecimento. Ele nasce pela interação entre dois agentes iguais,
colocados nas mesmas condições em relação à luta e ao risco. Esta é a existência humana
realizada pelo senhor, situando-se do ponto de vista aristocrático, pressupõe a igualdade do
risco. ―Sem esta igualdade primordial, não se teria o ser humano: a humanidade criou-se na
igualdade‖ (Kojève, 1981, 274).
O senhorio consiste no risco da vida para o reconhecimento, em vista da honra pura e
simples. Ora, ser homem é ser senhor. Este é o fato, que é um dever-ser, realizando a justiça
no sentido aristocrático, ou seja, a igualdade de condições humanas no senhorio sob os
diversos aspectos: a) Do ponto de vista, sócio-político, o aristocrata considera justas as
instituições que garantem a igualdade com os outros aristocratas, recusando toda submissão;
b) A justiça, do lado econômico, alcança um comunismo descrito em utopias mitológicas de
origem aristocrata. ―Enfim, ser ―justo‖ para o senhor, é tratar os senhores como senhores, isto
é, como iguais: primus inter pares‖ (Kojève, 1981, 277).
Porém, uma sociedade aristocrática, um grupo de senhores, não é jamais igualitária, no
sentido moderno da palavra, pois implica ter escravos. Isso não provoca contradição, pois
para o senhor, o escravo não é um ser humano e sua relação com o escravo não tem nada
haver com a justiça. A contradição aparece, apenas, no momento em que o escravo é
considerado um ser humano e o Direito trata-o como sujeito de direito, pessoa jurídica.
―Então, do ponto de vista da justiça aristocrática, toda a injustiça entre senhor e escravo será
considerada como injusta‖ (Kojève, 1981, 278).
Um senhor que reconhece a humanidade do escravo não é mais um senhor integral,
pois ele se coloca do ponto de vista do escravo. Ele sintetiza seu senhorio com a escravidão e
ele é mais ou menos um cidadão, adotando o ideal burguês de justiça. Ora, esta justiça de
equivalência, não exige a igualdade, podendo-se reconhecer a humanidade do escravo sem
afirmar sua igualdade com o senhor. Assim, as revoluções igualitárias, inspiradas pela justiça
aristocrática, se aburguesam, isto é, aceitam a justiça burguesa da equivalência de condições
políticas, sociais e econômicas que implicam uma desigualdade fundamental, aquela da
propriedade, por exemplo. No início da revolução, a desigualdade é considerada como injusta,
porque os revolucionários aplicam o ideal da justiça aristocrática, porém, ao conquistarem o
poder, eles impõem também sua justiça burguesa, então, a desigualdade pode cessar de ser
considerada como injusta pelas revoluções (id. p. 278).
15
As sociedades aristocráticas são hierarquizadas, implicando desigualdades, além
daquela do senhor-escravo. Isso é inegável, porém não existem sociedades puramente
aristocráticas, pois, para que exista o Estado, são necessários cidadãos. Ora, o cidadão é
sempre uma síntese do senhor-escravo. Há uma acomodação, de uma certa desigualdade,
sobretudo, entre governantes e governados, que não são injustas, porque o ideal de justiça
cidadão aplicado é mais ou menos sintético, ou seja, mais ou menos contraditório.
O senhorio constitui-se como uma situação ―justa‖ do ponto de vista da justiça
aristocrática da igualdade. O Direito aristocrático afirma que o senhor, enquanto sujeito de
direito ou pessoa jurídica, possui todos os direitos subjetivos e não tem nenhum dever ou
obrigação jurídica. Então, cada senhor possui a plenitude dos direitos, sendo os senhores
iguais, segundo o ponto de vista jurídico. Logo, toda pessoa jurídica, ou seja, o senhor
aristocrata, pode exercer os seus direitos à condição de não lesar aqueles dos outros. Caso
contrário, o terceiro intervém, para restabelecer a igualdade. Porém esse princípio do senhorio
é difícil de ser aplicado, quase impossível, pois a maioria das interações sociais pressupõe
uma desigualdade ou aí acaba chegando. Esse ideal não existe em ato, isto é, não se aplica.
Ele apenas é chamado a eliminar as ações e reações que lesem a igualdade, sendo sobretudo
um Direito criminal.
O Direito aristocrático, fundado sobre a igualdade, portanto, sobre o estatuto estatal,
tem a tendência de se confundir com o Direito criminal, ao contrário, o Direito burguês,
funda-se sobre o princípio da equivalência, portanto, do contrato, porque admite uma
validade jurídica infinita de interações sociais, sendo, assim, um Direito civil. Nas sociedades
―primitivas‖, isto é, verdadeiramente aristocráticas, as interações sociais são sobretudo
criminais. Aí, as pessoas vivem isoladas, não tendo necessidade umas das outras, entrando em
interação, sobretudo para se lesarem mutuamente, através do roubo, o rapto ou a morte, ao
invés de realizarem trocas comerciais pelo contrato de colaboração.
Na sua relação com o escravo, o senhor tem todos os direitos, ou quase direitos pois
essa relação não é, propriamente falando, jurídica, pois ele não tem nenhum dever. O senhor
tem o direito de propriedade sobre seu escravo e suas terras. Este é um direito aristocrático,
enquanto o Direito civil é o do contrato e das obrigações (Kojève, 1981, 281-291). Enfim, se
os animais lutam entre eles pela posse de uma coisa, os homens lutam também, para que uma
coisa seja reconhecida como exclusivamente sua pelo outro.
Kojève analisa o modelo de justiça da igualdade, descrevendo, fenomenologicamente,
o direito aristocrático. Este é um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco
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de vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-se pelo escravo, enquanto
submissão, e pelos outros senhores, na medida da igualdade.
1.3.2 – A justiça da equivalência ou o Direito burguês
Assim, como a justiça aristocrática, a justiça burguesa reflete a luta antropogênica. A
luta se refletia, antes, na consciência do senhor, agora na do escravo. O senhorio constitui-se
pelo risco, ou seja, ―na e pela luta, enquanto tal, enquanto que a escravidão é o resultado desta
luta, determinado pela negação do risco e da luta, pela recusa de continuar até à morte‖
(Kojève, 1981, 291). A justiça aristocrática corresponde à luta, enquanto que a justiça
burguesa corresponde à sua saída, ao resultado. Ora, se a luta se efetua na igualdade absoluta
de condições, isto é, do risco, o resultado é uma negação total desta igualdade, pois o escravo
não é o senhor e inversamente. Assim, está excluída a igualdade, pois ela implica a diferença
do senhor e do escravo. Para o senhor, o escravo não é humano, e mantém seu ideal de
igualdade, todavia, para o escravo, a humanidade é desigual. Essa igualdade não é justa para o
escravo. Este justifica a desigualdade entre ele e o senhor pelo fato de ter aceitado livremente.
O escravo renunciou o risco da luta e submeteu-se ao senhor. Aquele é humano, porque
arriscou sua vida na luta pelo reconhecimento, porém, como ele não a levou até o fim,
recusando o risco de atualizá-la na e pela morte, ele não atualizou sua humanidade. Por isso, o
escravo é um ser humano em potência, daí, a necessidade de mudar, para se atualizar, ou seja,
ele deve deixar de ser escravo e tornar-se cidadão, para existir em ato, enquanto ser humano.
Tanto para o senhor como para o escravo, ser humano é um dever-ser, porém, o
primeiro se realiza, permanecendo idêntico a si mesmo, ou sendo igual a si, enquanto que o
último realiza seu dever-ser homem mudando, tornando-se outro. Ele torna-se outro, negando-
se, enquanto escravo. Sua humanidade atual de cidadão pressupõe sua humanidade virtual de
escravo, e esta última implica desigualdade e pressupõe a equivalência. ―Para o escravo, o
dever-ser funda-se sobre a equivalência e não sobre a igualdade. A equivalência é, pois, um
―dever-ser‖, e o ―dever-ser‖, enquanto equivalência é ―justo‖, mesmo se ele implica a
desigualdade. A justiça burguesa do escravo é uma justiça de equivalência‖ (Kojève, 1981,
294).
Na história, encontramos sistemas sociais e jurídicos fundados sobre o princípio da
equivalência, justificando e reconhecendo a desigualdade. Por exemplo, o sistema cristão de
Santo Tomás de Aquino, em sua teoria da justiça social e jurídica, afirma a possibilidade para
cada um viver segundo sua categoria. A diferença de categoria é aceita e justificada pela
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equivalência de condições; em cada condição os encargos são equivalentes aos benefícios.
Hoje, vive-se, em grande parte, segundo o ideal da justiça burguesa de equivalência, admite-
se a desigualdade, por exemplo, econômica. Assim, o salário de um diretor de empresa é
considerado equivalente ao salário do trabalhador, porque exige mais esforço intelectual ou
moral (a responsabilidade), ou por ser ele o proprietário. Ainda, do ideal de equivalência
nasceu a idéia de imposto progressivo sobre a renda, pois parece justo que aquele que ganha
mais que os outros, pague mais que eles. No entanto, o mesmo burguês, que reconhece que
esse sistema de imposto é justo, recusa-se, absolutamente, a admitir que seria justo igualar as
fortunas, recusando-se ao projeto de imposto sobre o capital (Kojève, 1981, 296-297).
A justiça de equivalência realiza-se pelo Direito burguês, sendo aplicada por um
terceiro imparcial e desinteressado. O Direito burguês reconhece desde o começo uma estrita
equivalência entre os deveres e os direitos, ou seja, a cada dever equivale um direito e vice-
versa. Por exemplo, se o escravo tem o direito e o dever de trabalhar, o senhor tem o dever e o
direito de fazer a guerra. ―O princípio fundamental do Direito burguês é a equivalência dos
direitos e dos deveres junto a cada pessoa jurídica. Todo sujeito de direitos tem direitos que
são, rigorosamente, equivalentes a seus deveres, ou seja, deveres que são equivalentes a seus
direitos‖ (Kojève, 1981, 300). Vê-se que há uma diferença entre o Direito burguês e o Direito
aristocrático, este atribui a cada pessoa jurídica a plenitude de direitos sem nenhum dever,
enquanto que aquele, ao contrário, exige uma equivalência rigorosa entre direitos e deveres.
O conceito de propriedade para Kojève
De estático torna-se dinâmico, uma perpétua ―mudança‖. Contrariamente, ao
princípio aristocrático, a propriedade não se mantém, portanto, na sua ―igualdade‖
ou identidade consigo. Ela permanece ―equivalente‖ a ela, mudando de natureza. E
pode-se dizer também que do ponto de vista do Direito burguês a propriedade não é
mais um ―estatuto‖ eterno e imutável, mas uma simples ―função‖ (Kojève, 1981,
301).
A propriedade será uma função de seu trabalho e o resultado de um contrato, ou seja,
toda mudança de propriedade se reduzirá a uma troca de trabalho. O Direito de propriedade é
substituído por um Direito de contrato, que regulará as trocas de trabalho. A propriedade
deixa de ser um estatuto, para tornar-se um simples termo de contrato (Kojève, 1981, 301-
302, nota nº 2). Enfim, o Direito burguês substitui o conceito aristocrático de estatuto, por
aquele de função, tornando-se um Direito de contrato.
O contrato sanciona trocas de propriedade e prestações, pressupondo a desigualdade
nas trocas, pelo fato que uns não têm ou não fazem o que têm e fazem os outros. Ora, se o
Direito aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o reconhece, pois o princípio
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aqui é o da equivalência de condições, de direitos e deveres. Kojève considera dois exemplos
de equivalência:
a) O princípio de herança jurídico-aristocrática é o estatuto da igualdade, em que o
herdeiro sucede o morto, sem que a sucessão modifique em nada o estatuto, tornando-o
imutável. O princípio do contrato burguês é, ao contrário, o da equivalência de condições,
implicando mudanças após a morte da pessoa que deixa a herança.
b) No Direito Penal, anular o crime é restabelecer a equivalência lesada. No crime é
lesada a equivalência de condições entre o criminoso e a vítima, daí o restabelecimento da
equivalência operar-se na pessoa da vítima e do criminoso. Ou seja, a pena deve compensar o
crime, ela deve contrabalançar as vantagens que o crime teria produzido. Pois, aqui, não se
trata mais de restituir a igualdade, pelo princípio do talião, mas a equivalência pela
compensação, considerando a intenção e o aspecto subjetivo do criminoso (Kojève, 1981,
303-306).
1.3.3 – A justiça da eqüidade ou o Direito cidadão
A justiça e o Direito nascem sob duas formas autônomas: como justiça de igualdade e
como justiça de equivalência. Essas duas justiças, segundo Kojève, nascem, simultaneamente,
da mesma fonte: da luta antropogênica entre o senhor e o escravo. A justiça e o Direito
aristocrático de igualdade (igualdade de risco) refletem esta luta e o resultado é segundo a
opinião do senhor, enquanto que a justiça e o Direito burguês de equivalência (equivalência
de condições) refletem a opinião do escravo. Esse dualismo jurídico, aristocrático e o burguês,
mostra o dualismo humano entre senhor e escravo, sendo a evolução jurídica um aspecto da
evolução histórica do ser humano. Esta evolução vai do dualismo à unidade, como as relações
de senhor e escravo se sintetizam na existência do cidadão, o Direito aristocrático e burguês
se unem no Direito cidadão. Kojève entende que o devir do cidadão é o sentido da história da
humanidade.
As duas justiças, no começo da vida jurídica da humanidade, são autônomas, de
maneira que se pode realizar a igualdade, sem levar em conta o princípio da equivalência,
porém elas não se excluem. Na origem, o Direito considera a pessoa, enquanto senhor, de tal
modo que coincidem o conceito de senhor e o de pessoa jurídica, pois todos os senhores são
iguais, enquanto senhores. Todos os seres humanos, porém, não podem ser senhores, pois não
há senhorio sem servidão, de tal sorte que a sociedade aristocrática implica ter escravos.
19
O Direito aristocrático evolui para uma extensão progressiva da igualdade, na medida
em que um senhor reconhece um não-senhor, sem luta. Então, não é mais um senhor
verdadeiro, e o Direito aristocrático não se aplicará mais a esse tipo de reconhecimento. Nesse
caso, será aplicado o Direito burguês, admitindo a equivalência jurídica dos senhores com os
não-senhores e não, sua igualdade. O senhor reconhecerá os direitos do não-senhor, mas não
admitirá a igualdade de seus direitos com os dele, mas apenas sua equivalência.
O reconhecimento de novas pessoas jurídicas se faz por razões extra-jurídicas, e o
Direito se satisfaz em aplicar seu princípio de igualdade a todos os sujeitos de direito. O
Direito reconhece a igualdade jurídica de todas as pessoas jurídicas, isto é, dos seres
reconhecidos como humanos. Ora, não há razões extra-jurídicas para o senhor reconhecer a
humanidade de um não-senhor (escravo, mulher ou criança). O não-senhor é para o senhor, o
escravo. O senhor não quer ser não-senhor realmente, e nem idealmente, isto é, na sua
consciência, colocando-se do ponto de vista do não-senhor, assumindo, mentalmente, seu
lugar. O senhor não quer tornar-se, realmente, um não-senhor, pois ele prefere morrer.
Outra é a opinião do escravo e de seu Direito burguês, pois o escravo reconhece desde
o início a humanidade do senhor. O escravo elabora um Direito, considerando-se como uma
pessoa jurídica, um ser humano, portanto reconhecerá o senhor como uma pessoa jurídica. No
entanto, o escravo admite sua desigualdade com o senhor, daí criar um Direito baseado no
princípio da equivalência. Ora, se o escravo é uma pessoa jurídica, um ser humano, então, ele
não é mais, somente, um escravo, mas também um não-escravo, ou seja, um senhor. Então,
ele toma o ponto de vista de um senhor, e mentalmente toma o seu lugar. Ele aceita, pois, o
princípio fundamental do Direito e da justiça aristocrática. Haverá uma evolução do Direito
burguês e uma síntese com o princípio do Direito aristocrático.
Há uma razão jurídica desta evolução do Direito burguês, uma vez que os dois se
reconhecem como sujeitos de direito. Esta igualdade é puramente formal ou abstrata: o
conteúdo dos direitos dos respectivos sujeitos pode ser diferente. Porém, toda a forma tende a
tornar-se semelhante ao seu conteúdo, pode-se dizer que toda igualdade formal tende a
transformar-se igual ao conteúdo. Portanto, a justiça e o Direito de equivalência tendem a
tornar-se uma justiça e um Direito de igualdade. O escravo é inclinado a querer a igualdade
por razões sociais. Se o senhor não quer tornar-se escravo, este, sim, quer tornar-se sempre
senhor. Por razões tanto sociais quanto jurídicas, o escravo não quer realizar seu Direito
burguês no estado puro, mas tenderá reuni-lo com o Direito aristocrático num Direito de
eqüidade.
20
O senhor que se torna senhor, é outra coisa que o senhor que nasceu como tal: Ele é
cidadão. A evolução do Direito burguês implica uma revolução igualitária. Não é alcançada a
simples igualdade do Direito aristocrático. O Direito que se torna igualitário é um Direito
cidadão, em que a igualdade se reúne com a equivalência na eqüidade. O Direito burguês não
existe em ato, é necessário atualizá-lo no Direito do cidadão. Este é um direito fundado na
justiça da eqüidade, isto é, na síntese do princípio burguês de equivalência com o princípio
aristocrático de igualdade.
Esta é a lógica da evolução do fenômeno do Direito e da idéia de justiça: segue a
lógica da contradição imanente. O Direito organiza-se, como vimos acima, em dois princípios
jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência). Estes dois princípios,
convivendo num mesmo sistema jurídico, são contraditórios. Esse conflito interno, entre o
Direito aristocrático e o burguês, mostra que os mesmos direitos não têm o mesmo valor,
quando referidos a sujeitos diferentes: sendo iguais do ponto de vista formal, eles podem não
ser equivalentes de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal para torná-
la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois modelos de Direito conduzirá segundo,
Kojève,
à última forma de Direito (do cidadão), um Direito absoluto. Ora, esse Direito
absoluto, em que a equivalência dos direitos e dos deveres de cada um se
acompanha de uma igualdade de direitos e deveres de todos, pode ser atual apenas
lá onde todos são iguais e equivalentes, não somente sob o aspecto jurídico ―diante
da lei‖, mas também política e socialmente, isto é, de fato (Kojève, 1981, 313-314).
A justiça de eqüidade será satisfeita, quando reinar a maior igualdade possível. Porém,
a realização da igualdade não suprimirá a equivalência. A equivalência interna não pode ser
constatada e fixada objetivamente, senão houver crescimento de vantagens e inconvenientes
de uns em relação aos outros. O crescimento de interesses estimula as trocas, e aquelas,
verdadeiramente, equivalentes estabelecem a igualdade. Cabe ressaltar que a igualdade de
todos é uma idéia limitada, pois, as diferenças biológicas (homem/mulher), de personalidade
etc., exigirão a aplicação do princípio da equivalência junto ao da igualdade. E assim, a
preponderância da equivalência gerará uma extensão da igualdade, e vice-versa. A idéia de
justiça evolui, no sentido de ampliar os dois princípios e estabelecer uma relação entre ambos.
De um modo geral, o Direito de uma época estará de acordo com a idéia de justiça desta
mesma época. Porém, aqui, ainda se pode encontrar um desnível e, então, temos o estímulo da
justiça pelo Direito, ou do Direito pela justiça. E nos dois casos o Direito será um
intermediário entre a idéia de justiça e a evolução da realidade social, pois o Direito aplica tal
21
idéia a esta realidade. Vejamos as características do Direito do cidadão, que realiza a justiça
de eqüidade.
No Direito aristocrático, sob o ponto de vista puramente teórico, a pessoa jurídica
possui a plenitude de direitos, sem ter nenhum dever. O Direito burguês, ao contrário, em seu
nível puro, ou apenas teórico, põe o princípio da equivalência entre direitos e deveres em
relação a cada pessoa jurídica. Há, aqui, uma desigualdade das pessoas que se reflete nas
diferenças entre os direitos e deveres de uma pessoa e aqueles de uma outra.
O Direito do cidadão, fundado sobre a justiça da eqüidade, combina os direitos e
deveres anteriores. Assim, face ao Direito aristocrático, não se admitirá a existência de
direitos não compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos correspondentes, mas
haverá uma interação entre direitos e deveres.
Aqui, afirma Kojève, temos uma síntese do universalismo (ou do coletivismo) do
Direito aristocrático e do particularismo (ou do individualismo) do Direito burguês. Assim
como o senhor, o cidadão terá direitos e deveres universais. Os direitos de todos sendo iguais,
decorrem da pertença à sociedade e ao Estado, bem como os deveres em relação a todos. É,
enquanto cidadão, membro do Estado e indivíduo que a pessoa será portadora de direitos e
deveres. Isto significa que o individualismo e o universalismo coincidem, ou seja, ―os direitos
e os deveres mais pessoais, que podem ser exercidos apenas pelo indivíduo, serão os direitos e
os deveres mais universais, isto é, aqueles do cidadão tomado enquanto cidadão, ou aqueles
de todos e de cada um‖ (Kojève, 1981, 320).
A liberdade jurídica consistirá na possibilidade de cada um fazer tudo o que quiser,
com a condição de permanecer de acordo com a igualdade de direitos e deveres e sua
equivalência respectiva. E a igualdade jurídica será garantida pelo fato de que o valor jurídico
de uma interação não será modificado, se invertidos os seus membros. Ora, quando acontece
esse intercruzamento de direitos e deveres, deve-se admitir a interação social. Nisso o Direito
do cidadão é conforme ao Direito burguês e contrário ao Direito aristocrático, que admite o
estatuto e exclui o contrato. O estatuto aristocrático se caracteriza por se isolar, foge da
interação com os outros, permanece idêntico a si mesmo. O contrato do cidadão, ao invés,
realiza o estatuto aristocrático, pois ele une os princípios da igualdade e da equivalência. Os
contratos com a sociedade, com o Estado fixam o estatuto de pessoas jurídicas. Porém, o
estatuto cidadão difere do estatuto aristocrático, porque ele será o resultado de interações
sociais. ―O estatuto será, pois um contrato, e o contrato, um estatuto. É assim que não se terá
mais nem estatuto no sentido aristocrático do termo, nem contratos no sentido burguês‖
(Kojève, 1981, 321). Os estatutos cessam de ser hereditários e vitalícios, pois se pode mudar
22
de trabalho, de classe social, de família e mesmo de nacionalidade. E cada pertença é uma
atividade voluntária e consciente, em interação com o Estado ou a sociedade: Agora, cada um
é o que faz, ou seja, a atividade não é mais fixada pelo ser.
O Direito do cidadão adota o conceito funcional de propriedade, a qual é o resultado
do trabalho em obtê-la e, depois, fixada juridicamente, sendo sua fonte última a interação, ou
seja, o contrato.
Assim, vimos os três modelos de idéia de justiça, sendo que a última, a de eqüidade, a
única real, admite muitas aplicações da idéia de justiça e suas interações sociais.
Após a apresentação das três idéias de justiça, correspondendo a três modelos de
Direito, perecebe-se que Kojève expõe a idéia do Direito como que parafraseando a obra de
Hegel sobre os Princípios Fundamentais da Filosofia do Direito. Hegel afirma logo no início
de sua obra: A ciência filosófica do Direito tem por objeto a idéia do direito, o conceito do
direito e sua efetivação (§ 1º). E no parágrafo 4º diz: ―O sistema do Direito é o reino da
liberdade efetivada, o mundo do espírito, produzido, a partir de si mesmo como uma segunda
natureza‖ (Hegel, 1998). Ora, idéia e sistema são também os conceitos principais de Kojève
para determinar o Direito sob o conteúdo da justiça.
O desejo de reconhecimento é, para Kojève, a fonte da idéia de justiça. É este ato
antropogênico que dá conteúdo à idéia de justiça e se torna efetivo na história, regulando as
relações entre os indivíduos e os grupos, de modo simétrico e assimétrico. Disto resulta os
três tipos de justiça, acima expostos, os quais suscitam diversos modelos de relações sócio-
políticas.
O ato antropogênico determina-se pela luta do reconhecimento, modificando a idéia de
justiça e do Direito, no qual ela se realiza. Assim, o que determina a relação jurídica é o
consentimento mútuo, em primeiro lugar, baseado no reconhecimento da igualdade. Todavia,
esta cessa de existir, quando um dos combatentes pede para terminar a luta, oferecendo em
contra-partida sua submissão. Vê-se que a luta antropogênica começa na igualdade e termina
na injustiça. Depois, esta injustiça, em relação à justiça da igualdade, provoca um novo
consentimento mútuo, que pode ser constatado e garantido por um terceiro desinteressado,
engendrando uma nova idéia de justiça que é a equivalência. Aqui, a situação pode ser justa,
sendo porém, desigual. Kojève, após ter reconhecido que estas duas justiças se opõem como
uma justiça do senhor e uma justiça de escravo, conclui que o homem nasce de um ato único
(duplo, mas recíproco), portanto ele só pode atualizar-se completamente pela síntese do
senhor e do escravo. Enfim, tem-se um novo processo, o último na luta antropogênica: a idéia
23
de uma justiça de eqüidade, suscita o nascimento na história da figura do cidadão (cf.
Labarrière, 2001, 558).
1.4 – Modelos metodológicos de reconhecimento: do direito subjetivo ao
intersubjetivo
A passagem de uma perspectiva auto-referencial de sujeito de direito para uma
perspectiva intersubjetiva veio a ser promovida, primeiramente pela noção de relação jurídica
esboçada por Fichte; mas, será em Hegel que esta intersubjetividade fichteana precária
alcançará o status de instrumentação metodológica capaz de abordar, de maneira eficaz e
conseqüente, as aporias apresentadas pela realidade social, posta à luz pela modernidade, para
as quais a ―filosofia social moderna não está em condições de explicar (...) já que permanece
presa a premissas atomísticas‖ (Honneth, 2003, 42).
Tais aporias Hegel examina nas duas primeiras partes do artigo sobre o Direito
Natural, de maneira crítica e refutadora, para depois, na terceira e quarta partes, resgatar das
teorias, ditas, empíricas e formalistas, o que de universal era pelas mesmas aportado. Mas,
sem dúvida, é na abordagem do conceito de pessoa jurídica, feita por Hegel, que situamos o
ponto de inflexão entre uma perspectiva auto-referencial e uma perspectiva intersubjetiva (ou
relacional) do Direito.
Se a todo o momento o Direito Natural afirmara, até então, a liberdade do ponto de
vista do indivíduo, na questão específica da pessoa jurídica, esta noção era exacerbada no
jusnaturalismo de corte racionalista da ilustração. Assim, Hegel, apontando as características
produtivas da concepção moderna de pessoa jurídica, a coloca no devido lugar; mesmo
constatando que o direito abstrato (jusnaturalismo da ilustração) é formal, aproveita ainda, a
concepção de pessoa jurídica aí formulada, situando-a, porém, no direito abstrato, §§ 35, 36 e
37 da Filosofia do Direito; portanto, numa situação de passagem para o direito da eticidade.
No entanto, duas constatações devem ser apreciadas que, conforme tem sido apontado
por Bobbio, por exemplo, também na perspectiva jusfilosófica o pensamento da ilustração
limitou-se em definir a sociedade civil, tomando-a pelo Estado; e que, em nada obstante o
alertado por Hegel, esta necessidade de superação do direito abstrato, com sua visão
exacerbada do indivíduo, não foi contemplada.
De tal maneira que, mesmo na Alemanha, toda a doutrina jurídica permaneceria
acolhendo, como pessoa jurídica, a este indivíduo livre, que não reconhece nenhuma norma
acima dele, autônomo — no sentido pobre do termo — e que concebe o ordenamento jurídico
24
como sendo criado a partir de acordos livremente pactuados entre si e os demais que a ele se
assemelham. Ora, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser intersubjetiva, constitui a
superação do modelo subjetivista moderno do Direito.
Pelo exposto em Hegel e Kojève, percebemos que existem modelos metodológicos
diferenciados de reconhecimento e da idéia de Direito. No que se refere ao problema da
metodologia como vimos acima, Hegel inclui a dialética como um dos momentos
fundamentais do método especulativo, enquanto para Kojève, a dialética é o fim de sua
metodologia. Mais ainda, seu modelo tem, como pressuposto, um dualismo originário,
enquanto que para Hegel, há uma constituição monista que se movimenta, especulativamente,
em seus diversos conteúdos e momentos do sistema.
Em nada obstando o fato de terem sido já levantadas argüições, no sentido de apontar
como abusivamente antropologizante, a leitura kojeviana da Fenomenologia do Espírito, e,
assim, inadequada, concordamos com a perspectiva de Labarrière (1996), segundo a qual a
leitura de Kojève não caracteriza um mau uso da obra de Hegel. Esta leitura constitui íntima
conexão entre a dialética idealista e [a dialética] materialista, conforme Marcuse (1988, 409),
em seu suplemento bibliográfico à Razão e Revolução.
Na Esquisse d’une phénoménologie du Droit, Kojève, repisa que a especificidade do
Direito reside, precisamente, na presença do terceiro desinteressado (imparcial); diz ainda que
a dominação e a servidão são fenômenos sociais e que, portanto, para compreender o
fenômeno jurídico é necessário centrar-se no estudo deste terceiro (Kojève,1981, 191).
Por esta senda, é do desempenho deste terceiro imparcial que se chega ao Direito,
enquanto aplicação de uma idéia de justiça às interações sociais dadas, e mesmo que caibam
outros atores neste desempenho (tais como o legislador e o administrador público) é,
especialmente, a atividade do Juiz que a ele corresponde (Kojève1981, 192).
Mesmo que na Esquisse venha tão afirmativamente destacada figura deste terceiro
imparcial, não resta claro o lugar que é por ele ocupado metodologicamente, na estrutura da
dialética esposada por Kojève.
No entanto, se nos socorremos da Introduction à la lecture de Hegel, veremos que se
pode evidenciar uma aproximação entre o desempenho do terceiro desinteressado e a
categoria da mediação. Nesta obra, diz Kojève que:
Hegel expressa a diferença entre o Ser e o Real ―téticos‖ (Identidade) e o Ser e o Real
―sintéticos‖ (Totalidade) dizendo que os primeiro são imediatos (unmittelbar),
enquanto que os segundos são mediatizados (vermittelt) pela ação ―antitética‖
(Negatividade) que os nega enquanto ―imediatos‖. E pode-se dizer que as categorias
25
fundamentais da Imediatidade (Unmitterlbarkeit) e da Mediação (Vermittlung)
resumem toda a dialética real que Hegel tem em vista (Kojève, 1994, 481).
Vistas, assim, as posições dos litigantes em uma relação social, como entidades
imediatas, como realidades estáticas dadas, a entidade mediatizada, que as colocará em
movimento é a ação do Juiz que as suprassume, ou seja que, pela aplicação da eqüidade,
reconhecerá, em cada uma das posições, suas especificidades, expressando, assim, na decisão
a identidade da identidade e da diferença.
A substância jurídica própria da decisão deste terceiro é imanente à ordem concreta em
que ele e os litigantes se inserem, ou seja, é a Idéia de Justiça ai posta, isto é, o conceito
jurídico concreto e nunca um direito abstrato qualquer, uma vez que, conforme Carl Schmitt,
sem o sistema de coordenadas da ordem concreta, o positivismo jurídico não saberia
distinguir entre direito e não direito, entre objetividade e arbitrariedade subjetiva
(Schmitt,1995, 92).
Em Hegel, o Direito tem seu estatuto na determinação da idéia de liberdade nos
diversos momentos que compõem a Filosofia do Direito. O reconhecimento simétrico de
direitos e deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e da eticidade. Ora, a
metodologia hegeliana implica que a pessoa garanta o reconhecimento de seus direitos e
deveres no direito abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir
intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou seja, participando do Estado.
Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária pelo desejo de reconhecimento
entre o senhor e o escravo. Disto decorre uma tríplice tipologia da idéia de Direito,
configurando-se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência burguesa e idéia de
eqüidade cidadã. O Direito é, então, a determinação da idéia de justiça.
Sabe-se que Kojève em sua análise da Fenomenologia do Espírito de Hegel aplica,
permanentemente, a metodologia dialética do senhor e do escravo. Ora, será que Kojève
mantém a mesma metodologia para analisar o fenômeno do Direito? Pode-se defender duas
hipóteses: a) Kojève manteria a mesma metodologia dialética na determinação da idéia de
justiça; b) Porém, na descrição fenomenológica da tipologia, ele introduz um terceiro
imparcial e desinteressado, ou seja, quando o autor aplica a idéia de justiça para o Direito,
haveria uma superação da dialética pela mediação do terceiro, enquanto momento de
superação do antagonismo no embate entre os litigantes. Teríamos assim, um momento
especulativo que seria o mesmo da metodologia hegeliana. Isto fica explícito já na segunda
seção (Origem e evolução do Direito) e comprova-se na terceira (O sistema do Direito) em
26
que Kojève faz uma aplicação das três idéias de justiça para o Direito internacional, Direito
público, Direito penal e Direito privado.
Em que medida esses modelos metodológicos são importantes para compreender o
fenômeno jurídico? Qual é a vantagem de um e de outro, ou ainda, como podem ser
complementares para a superação do Direito moderno, centrado na garantia subjetiva dos
direitos?
A metodologia de Kojève descreve o desejo de reconhecimento, enquanto uma idéia
de justiça na sua polaridade máxima do senhor e do escravo. Essa tipologia permite
compreender o fenômeno jurídico na sua constituição sócio-histórica. Nesse sentido, a
reflexividade entre os sujeitos que buscam o reconhecimento constitui um momento
fundamental para a constituição intersubjetiva do Direito. Tem-se a posição de sujeitos que
determinam os seus desejos pela idéia de igualdade-equivalência-eqüidade, na superação dos
conflitos advindos de interesses contraditórios. O terceiro imparcial e desinteressado que
atravessa todo o Esboço de Kojève, insere o momento intersubjetivo na constituição do
Direito.
Em Hegel, o reconhecimento passa pela mediação da eticidade, enquanto momento
garantidor de um Direito intersubjetivo. Então, pode-se afirmar que os modelos são
complementares, na medida, em que Kojève acentua o momento dialético e a idéia de justiça,
e Hegel, o momento especulativo e a idéia de liberdade. Assim, ambos os modelos são
importantes, para a constituição do Direito intersubjetivo.
Um dos objetivos de nosso estudo, é encontrar referenciais teórico-práticos, para
superar o modelo subjetivista do Direito e construir uma metodologia da intersubjetividade
jusfilosófica. Assim, a teoria hegeliana do reconhecimento, apresentada na Fenomenologia,
na figura do senhor e do escravo torna-se a figura paradigmática, que Kojève utiliza para
construir sua metodologia dialética, partindo do desejo antropogênico como fonte originante
do reconhecimento. As metodologias de Hegel e Kojève, embora tenham suas
especificidades, ambas são importantes para fundamentar um Direito intersubjetivo.
Pressupondo que a metodologia hegeliana desenvolvida na Filosofia do Direito já é
assaz conhecida, enquanto desenvolvimento da idéia de liberdade intersubjetiva, expomos a
determinação da idéia de justiça em Kojève na sua tríplice tipologia: Igualdade, equivalência
e eqüidade, constituindo-se, atualmente, num referencial teórico-prático da intersubjetividade
jusfilosófica em três níveis, aqui enunciados, e que permanecem como abertura para futuros
estudos:
27
1°) A idéia de justiça como igualdade determinando-se no reconhecimento do Direito
nas esferas global, nacional e local, garantindo identidades e diversificação cultural.
2°) A idéia de justiça como equivalência de direitos e deveres na redefinição do Estado
de Direito e a organização de blocos regionais no início deste novo milênio.
3°) Enfim, a idéia de justiça como eqüidade, enquanto síntese cidadã intersubjetiva,
em nível sócio-econômico sustentável e inovação político-tecnológica.
A teoria do reconhecimento hegeliano e a fenomenologia do Direito, baseada na
determinação da idéia de justiça de Kojève, ratifica o movimento por um Direito
intersubjetivo, ou seja, ratifica a tese comunitarista jusfilosófica. Trata-se de uma
concepção pluralista da justiça fundada na idéia de igualdade complexa (Walzer);
um maior cuidado no que concerne ao problema da distribuição dos bens culturais,
bem como às questões relacionadas aos grupos vulneráveis (Young); dos aspectos
importantes da relação entre justiça e democracia deliberativa (Habermas); por fim,
da análise do princípio de imparcialidade como base eqüitativa para o acordo entre
as diferentes concepções do bem que coexistem nas sociedades plurais e
democráticas (Barry) (Rabenhorst, 2006, 494-495 In: Barreto, Vicente de Paulo.
Dicionário de Filosofia do Direito).
Assim, postos estes desafios de atualização, tanto em nível sócio-jurídico, bem como
no debate comunitarista, insere-se a teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés
jusfilosófico de Hegel e Kojève, como uma referência incontornável na construção de um
Direito intersubjetivo.
O estudo do reconhecimento e a intersubjetividade no Esboço de uma Fenomenologia
do Direito de Kojève, demonstrou sua metodologia dialética, fundada no desejo
antropogênico da luta pelo reconhecimento na figura do senhor e do escravo, bem como a
descrição jusfenomenólogica dos modelos de Direito e sua implicação na superação do
Direito moderno subjetivo para o Direito intersubjetivo. Agora, será apresentada a
implementação deste pressuposto teórico no Direito Público em seu nível, propriamente
constitucional e administrativo.
28
2 – DIREITO PÚBLICO EM KOJÈVE
O Direito público, a rigor, (excluindo o Direito penal), segundo Kojève, engloba o
Direito constitucional e o administrativo, sendo que o primeiro estabelece as estruturas do
Estado, e o segundo determina as relações entre o Estado e os indivíduos.
A Constituição contém, diz o autor, o estatuto e a organização do Estado, descrevendo
o que é, e não o que deve ser. A estrutura do Estado e da Constituição não são justas e nem
injustas, mas neutras, como por exemplo, a lei que fixa as cores nacionais do Estado ou o seu
nome. O Estado autônomo e soberano interage com os outros Estados segundo, as regras do
Direito internacional público. Porém, o que interessa aqui, é o Direito público interno,
considerando o Estado em si mesmo. Ora, entende Kojève que, onde não há interação entre
duas entidades, não há justiça e nem Direito, donde, ―a Constituição, tal como a concebe o
Direito público (interno) não é pois um Direito. A Constituição é uma Lei ou um conjunto
(oral ou escrito) de Leis políticas, na e pelas quais o Estado declara a todo mundo o que ele é
e a maneira como ele funciona. Se a Constituição é uma Lei, trata-se aí de uma Lei política e
não jurídica‖ (id. p. 393). Declarando-se soberano, o Estado, não admite a intervenção de um
terceiro, mas apenas noticia aos outros suas decisões, como numa declaração unilateral de
guerra. O autor retoma a sua tese de que a relação jurídica implica a intervenção de um
terceiro imparcial. Ora, ele retira da Constituição o caráter jurídico, mantendo apenas o
político, destituindo, assim, a função do terceiro.
A Constituição institui a legalidade política, pois onde não há leis políticas o Estado
torna-se despótico e os governantes tratam os governados segundo seu bel prazer e não,
conforme as leis estabelecidas e conhecidas de todos. Porém, o Estado pode mudar suas leis
políticas, ou seja, modificar sua Constituição no seu conjunto. Kojève afirma que a diferença
entre o Estado ―legal‖ e o Estado despótico é, pois, comparável aquela entre um homem
ponderado e um caprichoso, que muda a qualquer tempo sua opinião, sem apresentar motivos.
No Estado ―legal‖ a situação é tão pouco jurídica, quanto no Estado ―despótico‖: a lei
constitucional é tão pouco ―direito‖ ou uma lei jurídica quanto a decisão ―arbitrária‖ do
―déspota‖.
Por isso uma revolução que é por definição politicamente ilegal, não pode ser
condenada juridicamente. A ação revolucionária está em contradição com a lei
constitucional. Mas esta lei não sendo jurídica, a ação revolucionária é
juridicamente neutra, e não criminosa. Se a revolução tem êxito, isto é, se ela troca
as leis políticas que ela aboliu por outras leis políticas, não há nada a dizer: nem
política, nem juridicamente. Quando os revolucionários têm êxito, eles se tornam o
29
Estado. Eles encarnam o Estado ―soberano‖. Ora, este Estado pode mudar sua
Constituição como ele quer. Se a revolução teve êxito, pode-se dizer que o Estado
mudou sua Constituição, e não há nada aí a objetar (Kojève, 1981, 393-394).
O autor afirma que não se pode condenar a nova Constituição, recordando a antiga,
pois esta tinha sua realidade na vontade do Estado. Ora, é o mesmo Estado que aplica agora a
nova Constituição modificada, sendo esta tão válida quanto a anterior.
Agora, não é possível, continua Kojève, o Estado anterior opor-se ao novo, negando-
lhe a identidade, porque não há um terceiro nesta interação entre os dois Estados, ou seja,
entre as duas formas consecutivas do mesmo Estado. A situação não teria nada de jurídico,
mas uma luta política. Para que houvesse um terceiro, seria necessário chamar a intervenção
deste para modificar a Constituição, tirando, portanto, a soberania do próprio Estado. Nesse
caso, em que uma Constituição é julgada ou torna-se sujeito de direito, ela não é mais uma
Constituição verdadeira, pois, onde há um Direito, não há Direito público, no sentido
constitucional. ―A lei constitucional que fixa a estrutura de um Estado, propriamente dito não
tem nada haver com uma lei jurídica. Ou ainda: as relações do Estado consigo estão fora do
domínio do Direito e mesmo da Justiça‖ (id. p. 394). O autor reafirma o papel político da
Constituição, no caso de uma mudança constitucional, impedindo qualquer intervenção de um
terceiro, para evitar o retrocesso da soberania política do Estado.
Kojève continua neste tema, exemplificando a questão no caso de um Estado A (EA)
fazer guerra contra um Estado B (EB), justificando que a Constituição de B é injusta, ou até
juridicamente ilegal ou ilegítima. O EA não reconhece o EB como Estado soberano, tratando
os governantes e os governados como dois grupos privados. O EA intervém então na
qualidade de terceiro e anula a ação ilegal do grupo governante, considerando os cidadãos do
EB como seus julgados, aplicando-lhes seu Direito. Portanto, o EA tende a absorver
politicamente o EB, como um grupo infra-estatal ao interior do EA. A estrutura deste grupo
não é, pois uma Constituição, na medida em que esta é submetida a um Direito e pode ser dita
juridicamente legal ou ilegal. Então, não é mais uma verdadeira Constituição de um Estado
soberano. ―O Direito em questão não é pois um Direito público ou constitucional‖ (id. nota n°
1, p. 395). Mesmo nas relações internacionais interestatais, a função política da Constituição é
preservada, de tal modo que Kojève não admite uma intervenção do EA sobre o EB, com a
finalidade de instaurar a justiça, pois, em qualquer hipótese, tem-se aí uma redução ao jurídico
e não mais ao sentido político da Constituição enquanto tal.
Para o autor, a Constituição é um ato político tanto interna como externamente. E não
há um terceiro que possa nesse nível intervir, se não se retrocederia ao nível jurídico. A
30
revolução é, pois, um ato político oposto às leis políticas vigentes, considerando-se um ato
fundador de uma nova Constituição. Se a mudança na Constituição se realiza através da
revolução, a nova Constituição passa a ser a nova lei política e não há o que negar.
A Constituição pode ser criticada, para que ela esteja de acordo com a realidade
política, porém, ela só pode ser melhorada, tornando-se conforme à realidade do Estado.
―Toda Constituição, toda estrutura política de um Estado é, politicamente, boa, se ela permite
ao Estado manter-se, indefinidamente, na identidade consigo, tanto exterior quanto
interiormente, e isso sem dever mudar de estrutura e, portanto, de Constituição‖ (id. p. 395).
A lei constitucional relacionada ao Estado, regula a estrutura do Estado, não sendo,
nesse sentido, um Direito, afirma Kojève, pois ela não deixa nenhum lugar para a existência
de um terceiro. Em não havendo interação entre duas entidades distintas, não há o conceito de
igualdade ou de equivalência, conforme a idéia de justiça, acima exposto. Porém, se
tomarmos a Lei constitucional, relacionada aos particulares ou aos indivíduos, o Direito
administrativo tratará das interações entre o Estado e os indivíduos, e dos indivíduos entre
eles, enquanto cidadãos. Kojève distingue três tipos fundamentais de relações: 1) As relações
entre o Estado e os cidadãos; 2) As relações entre o Estado e os particulares; 3) As relações
entre particulares. Não detalharemos estas relações, pois em síntese Kojève expõe na relação
paradoxal entre o Estado e o Direito Público o seu pensamento sobre os tipos de relações:
Na medida em que o Estado é tomado enquanto Estado não há, pois Direito Público,
pouco importa que o Estado se relacione a si mesmo (Direito constitucional) ou aos
cidadãos ou aos particulares (Direito administrativo). De uma maneira geral apenas há
Direito lá onde se trata de relações entre particulares. Se o Direito público é,
verdadeiramente, um Direito, o Estado ele mesmo deve aí figurar não enquanto
Estado, mas enquanto ―particular‖. Enquanto Estado não deve aí jogar um papel de
Terceiro (id. p. 403).
De fato, entende-se que o Estado é o espaço estatal, político e não privado ou
particular. Porém ele não pode existir em ato senão pelos cidadãos e os particulares. O Estado
age apenas por eles, na medida em que estes agem, enquanto cidadãos, ou seja, o Estado é o
conjunto dos cidadãos agindo enquanto tais. O Estado encarna-se no grupo político exclusivo,
sendo sua vontade, a mesma do Estado. No sentido estrito, o conceito Estado junta-se ao do
coletivo dos governantes, recrutados entre o grupo exclusivo, em que a ação deste é a do
Estado. Por definição, os governantes exercem a autoridade política, enquanto grupo político
exclusivo, agindo em nome do Estado e sendo um com este. Os governantes organizam a
estrutura do Estado e o modo de seu funcionamento. Eles determinam a Constituição, o
estatuto dos cidadãos, o conjunto das leis políticas (orais e escritas), que fixam o Direito
Público, não sendo este um Direito (cf. p. 403-404).
31
Kojève levanta a hipótese em que os interesses de grupos se tornam os interesses do
Estado, e os governantes podem defender esses interesses, agindo, enquanto governantes. Por
exemplo, uma família pode ser estatizada e tornar-se um Estado monárquico, defendendo os
interesses de sua família (dinastia), o rei age não enquanto particular, mas como governante.
Então, é o Estado que age em e pelo rei. Assim, também, quando um grupo familiar,
econômico ou religioso e outro, forma o Estado aristocrático, os governantes agem em nome
do Estado, defendendo os interesses da aristocracia, ou seja, do grupo em questão. Aqui, os
governantes fixam o estatuto do Estado e dos cidadãos e não há nada de jurídico, porque não
há um terceiro.
Agora, se um governante não agisse como tal, ou seja, enquanto cidadão, representante
do Estado, ou grupo exclusivo, mas em função de interesses privados, particulares, quer seja
de um grupo ou de interesses estritamente pessoais, então, esse governo agiria como
particular. Então, se o Estado ao entrar em interação com os governados, lesar seus interesses,
não haverá uma relação entre governante e governados, mas entre particulares, pois ele estaria
agindo em função de interesses privados. São privados, porque o Estado não os pôs, nem por
via legal e nem colocando em risco sua vida numa revolução ou guerra. Os governados, neste
caso, não têm necessidade de agir politicamente, mas recorrer contra o próprio Estado. Aqui,
o Estado será um terceiro, intervindo como tal. O conjunto de regras do direito aplicado pelo
terceiro, nesse caso, forma o Direito público do Estado dado.
Ora, quando o Estado intervém na qualidade de terceiro, como no caso em questão,
constata-se o seguinte: a) O governante agiu enquanto particular; b) E o governado foi lesado
pelo governante-impostor, devendo este fixar o modo pelo qual o ato criminoso ou
juridicamente ilegal deve ser anulado. No primeiro caso, não há como descobrir a intenção do
governante, se ele agiu de boa-fé e se enganou, pensando agir como cidadão em nome do
Estado. Trata-se, aqui, de ter um critério objetivo, dado pela Constituição, isto é, pelo
conjunto de leis políticas que fixam a estrutura e o funcionamento do Estado. Se o governante
agiu em desacordo com a Constituição, em função de interesses particulares, então, o Estado
pode intervir como terceiro e anular o ato do governante-impostor. As leis constitucionais e
administrativas, em si, não têm nada de jurídico, mas na medida em que elas permitem
constatar que um governante agiu como impostor, elas fazem parte do Direito público (id. p.
405-407).
Considerando-se as duas partes do Direito público, o constitucional e o administrativo,
no que se refere à segunda parte, Kojève enumera os casos nos quais os governados podem
considerar-se lesados por atos dos governantes-impostores e indica o modo como estes atos,
32
juridicamente, ilegais devem ser anulados. Neste sentido pode-se dizer que o Direito público
fixa os direitos dos governados. Porém, seria falso, afirma o autor, dizer que os governados
têm direitos face ao Estado, isto é, diante dos governantes agindo enquanto tais, pois o Estado
pode modificar o Direito público, modificando a Constituição. Ora, quando se trata de uma
modificação da Constituição, ou seja, do Direito público, o Direito não tem nada a dizer, pois
não há um possível terceiro. A Constituição pode ser, modificada apenas pelo Estado, isto é
pelos cidadãos, agindo como cidadãos e não como particulares. Os cidadãos que modificam a
Constituição, devem agir enquanto governantes, isto é, enquanto representantes do grupo
político exclusivo, no interior do qual eles se beneficiam de uma autoridade política. Caso
contrário, eles agiriam como impostores e pessoas privadas e seriam submetidas ao Direito
público, intervindo o Estado, enquanto terceiro para anular seus atos juridicamente ilegais.
Ora, a Constituição, ou seja, o Direito público permite constatar se a mudança constitucional
é, enquanto cidadão ou não, porque apenas pode-se modificá-la, legalmente, sendo cidadão,
utilizando as vias previstas pela Constituição. Portanto, utilizando-se destas vias, age-se, de
forma política, e não juridicamente, pois, aqui, ainda não há um terceiro. Porém, se alguém
experimenta modificar a Constituição por vias ilegais, ele age enquanto privado e particular, e
então comete um crime de Direito público, o qual será anulado pelo Estado em sua qualidade
de terceiro (id. p. 408).
Então, para Kojève, a Constituição pode ser mudada pelos cidadãos, enquanto fazem
parte do governo constituído pelo grupo político dominante e não pelas pessoas privadas
agindo segundo interesses privados. Diferente é o caso, continua o autor, de um grupo
revolucionário agir contra o Estado (ou seja, os governantes munidos da autoridade outorgada
pelo grupo político exclusivo), não haveria aqui um terceiro e o Direito público não poderia
ser aplicado, pois o revolucionário não agiria, enquanto pessoa privada, em particular, mas
politicamente, enquanto cidadão do Estado futuro, pós-revolucionário. E as relações entre o
Estado e os cidadãos agindo enquanto cidadãos, legalmente ou por via revolucionária, até
guerrilheira não têm nada de jurídico. O fato de o revolucionário agir politicamente, ou seja,
enquanto cidadão é atestado objetivamente (pois a intenção privada aqui não conta) através do
risco da luta de vida e morte para tomar o poder. Aqui, os revolucionários constituem um
grupo exclusivo, escolhendo um coletivo de governantes munidos de autoridade política,
instalando-se no poder face aos estrangeiros, bem como diante do grupo político excluído,
internamente, do poder. Se os revolucionários fracassam, eles morrem; se eles têm êxito,
tornam-se governantes e, em ambos os casos, não há nada de jurídico, mas um fato político. É
por isso que os autores de uma revolução abortada são raramente julgados por tribunais
33
ordinários, porque não se pode aplicar-lhes nenhum Direito, senão eliminá-los politicamente,
por uma medida de simples polícia ou por um tribunal político, que terá apenas o nome de
tribunal jurídico. Da mesma forma, não terá nada de jurídico o tribunal revolucionário que
suprimirá os agentes do antigo regime (id. p. 408-409).
Percebe-se que a mudança constitucional pode ocorrer através de duas formas: a) Pela
via legal do cidadão, ou seja, pela via interna do próprio grupo político instalado no governo;
b) Ou pela via revolucionária, isto é, por um grupo externo ao governo, instalando uma nova
Constituição. Em ambas as vias, dá-se um processo político e não jurídico, por tratar-se do
Direito público, portanto constitucional.
O Direito público é um Direito constitucional, por isso implica a Constituição do
Estado. Costuma-se afirmar que o Direito administrativo opõe-se ao Direito constitucional, no
entanto, os limites entre ambos são arbitrários. Pode-se dizer que o Direito constitucional fixa
o estatuto e as funções dos governantes que não são, ao mesmo tempo, governados. Enquanto,
que o Direito administrativo, relaciona-se aos governantes que são também governados, isto é,
aos funcionários em sentido estrito. Pode-se distinguir um Direito público da estrutura do
Estado e das administrações e um Direito público da função, como se distingue a anatomia da
fisiologia. Porém, o Direito público deve regular não apenas as estruturas e as funções do
Estado e das administrações, ou seja, os governantes, mas ainda, aquelas dos cidadãos
tomados enquanto governados (id. p. 410-413).
O Direito público afirma, Kojève, não é um Direito, na medida em que se refira às
interações entre os governados e os governantes-impostores. É, apenas face a estes últimos
que o governado tem direitos e não face ao Estado, pois este pode mudar todos os estatutos,
sem que exista um possível terceiro, para se opor ou sancionar a mudança. Isso não significa
que o governado lesado só possa recorrer ao governante-impostor. O Estado pode indenizá-lo,
sendo, então, uma decisão livre do Estado, que não terá nada de jurídico. O Direito público
permite, apenas, anular o ato do governante-impostor. Se o Estado quer além disso punir o
governante culpado, ele será então parte e a punição não teria nada de jurídico. Da mesma
forma, se o Estado se solidariza com o governante, o Direito público não poderá prescrever
uma indenização ao governado lesado, pois no momento, em que o governante agiu em nome
do Estado, não há mais Direito possível e o governado não tem nenhum direito. O Estado
pode, mesmo assim, indenizá-lo, mas o ato não terá então nada de jurídico em si mesmo. A lei
sobre a indenização permite que o governante que recusa indenizar o governado, aja como
impostor. Enfim, o Direito público pode conter tudo o que, tradicionalmente, ele contém.
34
Apenas, esse conteúdo deve ser interpretado do modo pelo qual eu acabo de fazer, conclui
Kojève (id. p. 414).
A tese do autor exposta, desde o início, é que o Direito nasce da intervenção de um
terceiro imparcial e desinteressado. ―O Direito processual que regula o estatuto do terceiro e
seu funcionamento em relação aos litigantes, não é um Direito verdadeiro. É uma declaração
unilateral do Terceiro, uma ―notificação‖ de seu proceder‖ (id. p. 414-415). Ora, onde o
Direito é estatizado, o terceiro é o Estado ou seu representante, pois é ele que edita a lei
processual. É, portanto, uma lei política e não jurídica, conclui Kojève.
Ora, aqui é possível também a existência do terceiro impostor, quando ele age de
forma parcial e interessada. Nesse caso, ele não será terceiro, mas parte. O juiz-funcionário
não será representante do Estado, mas um particular-impostor, contra o qual se pode recorrer
ao Estado, que exercerá o papel de terceiro autêntico. ―Toda a questão é, pois, saber se a
pessoa que exerce o papel de terceiro é, verdadeiramente, um terceiro, isto é, se ele age
enquanto tal, de um modo imparcial e desinteressado, ou se ele, apenas, parece ser, enganando
os outros‖ (id. p. 415).
Então, a garantia que as partes têm da defesa de seus direitos é a que a lei processual é
um Direito, permitindo constatar a autenticidade do terceiro. Pois, se o terceiro age em
desacordo com esta lei, ele é um impostor, agindo enquanto particular. ―O Direito processual
só é um Direito, na medida, em que ele permite constatar a impostura do terceiro, ou seja, o
fato de que este não age em nome do Estado, como funcionário ou como cidadão, mas na
qualidade de pessoa privada. Esse Direito é a garantia da imparcialidade e do desinteresse do
terceiro‖ (id. p. 416). Portanto, o conteúdo do Direito processual é garantir a imparcialidade e
o desinteresse do terceiro, isto é sua autenticidade. É, afirma Kojève, deste ponto de vista, que
se precisa interpretar a regulamentação (estatal) da justiça.
Apresentou-se a posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo aspecto,
constitucional e administrativo, em que o autor, analisa o seu aspecto político-jurídico, porém,
sendo o Direito público, para ele, eminentemente, político. Veja-se agora, o alcance e o limite
da teoria kojèviana sobre o Direito Público, confrontando-a com as teorias contemporâneas,
no seu duplo aspecto, constitucional e administrativo.
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3 – ALCANCE E LIMITE DO DIREITO PÚBLICO KOJÈVIANO
Tendo apresentado o Direito Público, segundo Kojève, será exposto, em primeiro
lugar o debate sobre a dimensão política e/ou jurídica constitucional em alguns teóricos dentro
do Direito Constitucional. Em seguida, tratar-se-á do Direito Administrativo, mostrando o
papel do controle jurisdicional no Estado democrático de Direito. Percebe-se que Kojève
elabora a sua teoria constitucional num contexto bélico e sob a influência de um modelo de
Estado-Nação interventor tanto em nível externo como interno, ou seja, tomando decisões de
forma unilateral. Daí, pode-se compreender, em parte, o alcance e o limite de sua teoria
constitucional, considerando o contexto político e o debate teórico da época.
3.1 – Dimensão política e/ou jurídica da Constituição
Tendo-se em conta a assertiva, até certo ponto desconcertante, na qual Kojève delimita
o campo do Direito Constitucional às lindes do fenômeno político, convém agora examinar os
corolários de tal enunciado à luz de algumas teorias constitucionais.
Ressalta, desde logo, o fato de que o constitucionalismo contemporâneo incorpora, de
maneira plena, a formulação de um ideal de justiça, sendo esta preocupação uma tarefa
multidisciplinar, conforme aponta Gisele Cittadino:
Afinal, parece não restar dúvidas de que o debate sobre a justiça adentra
inevitavelmente o mundo do direito. Em outras palavras, todos reconhecem a
impossibilidade de justificar e configurar um ideal de justiça distributiva sem ao
mesmo tempo enfrentar a discussão quanto ao papel da Constituição, da
efetivação do seu sistema de direitos fundamentais e da atuação do Poder
Judiciário, especialmente da jurisdição constitucional (Cittadino, 2000, 2).
A referida autora destaca que o debate sobre o ideal de uma sociedade justa e da sua
estrutura normativa passa a ocupar lugar de destaque a partir da publicação de A Theory of
Justice, de Rawls. Cabe salientar que na Esquisse, de Kojève, escrita em 1943, esta polaridade
já está tencionada, quando este afirma a natureza política e não jurídica da Constituição.
Mas, a questão do papel essencial da Constituição e da definição de sua natureza tem
merecido foro de discussão já de longa data. Conforme se pode ver no trabalho de Konrad
Hesse, A Força Normativa da Constituição, que é tido como um dos textos mais
significativos do Direito Constitucional, e, em nenhuma outra obra de direito constitucional,
parece-nos, estar tão clara e objetivamente abordada a questão da dupla natureza, a um só
tempo política e jurídica da Constituição.
36
Nesse escrito, Hesse retoma a discussão desde uma posição bastante remota, ou seja,
enfocando, de início, a clássica posição expressa por Ferdinand Lassale, em 1863, no tocante
à essência da Constituição, e a ela se contrapõe, buscando demonstrar que o desfecho do
conflito entre os fatores reais de poder e a Constituição não necessariamente implica na
derrota desta. Existem pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa
constitucional.
Lassalle, na obra referida, sua célebre O que é uma Constituição, via as questões
constitucionais como políticas e não jurídicas. Ou seja, esse documento chamado Constituição
– a Constituição jurídica – nas palavras de Lassalle, não passa de um pedaço de papel (Hesse,
1991, 9). Hesse, apesar de reconhecer o significado dos fatores históricos, políticos e sociais
para a força normativa da Constituição, enfatiza o aspecto da vontade de Constituição, que é,
em última análise, o que vai caracterizar a sua essência jurídica, a qual estará cindida ―pelo
isolamento entre norma e realidade, como se constata tanto no positivismo jurídico de Escola
de Paul Laband e Georg Jellineck, quanto no ―positivismo sociológico‖ de Carl Schmitt‖
(Hesse, 1991, 13). A separação radical entre norma e realidade resulta em um
constitucionalismo que não responde corretamente à questão acerca do que é uma
constituição.
Para Hesse, enfatizar-se uma ou outra das duas direções conduz inevitavelmente aos
extremos, ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo, ou de uma norma
despida de qualquer elemento da realidade. O que permite vislumbrar-se uma via de acesso ao
essencial da Constituição, é a sua condição de vigência, sua eficácia, ou seja, se ―a situação
por ela regulada pretende ser concretizada na realidade‖ (Hesse, 1991, 14). Portanto, a
Constituição adquire força normativa, conforme realiza sua pretensão de eficácia, que não
pode ser separada das condições históricas de sua realização.
A partir desta perspectiva, cotejando-se a abordagem do Direito Constitucional em
Kojève, acima exposta, vê-se que a linha desenvolvida pelo pensador russo coloca-se em um
dos extremos da dualidade essencial da Constituição, aventada por Konrad Hesse.
Para Bruce Ackerman, tanto a democracia como a Constituição são dualistas, porque
asseguram, sob o aspecto jurídico, a autonomia privada dos indivíduos nos momentos em que
não há mobilização política da comunidade, garantindo e protegendo os seus direitos; sob o
aspecto político, garantem a autonomia pública dos cidadãos quando eles decidem alterar e
redefinir a sua própria identidade nacional.
C. Taylor e Walzer defendem o patriotismo republicano, sendo a Constituição um
projeto que traduz a vontade coletiva, em que a cidadania ativa busca a implementação de
37
liberdades positivas. Bruce Ackerman propõe, de seu lado, ―o constitucionalismo patriótico
―enquanto um ato profundo de autodeterminação política‖ (apud Cittadino, 2000, 163), sendo
os direitos fundamentais do cidadão procedimentais, antes que substantivos. Ao contrário de
Rawls e Dworkin que sustentam o conteúdo substancial dos direitos fundamentais, Ackerman
afirma que os indivíduos têm o direito básico de participar do debate público, determinando,
assim, o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais. O constitucionalismo patriótico é
construído através da ação coletiva dos cidadãos, mobilizando o povo para redefinir a
identidade política nacional, alterando ou criando a Constituição.
No entender de Cittadino, há, em Ackerman, uma conexão intrínseca entre
―revolução‖ e ―Constituição‖, sendo exemplos disto, as mudanças políticas ocorridas nos
Estados Unidos por ocasião do New Deal e os processos revolucionários no Leste Europeu
após 1989. Aqui, verifica-se um processo de mobilização política que levará a mudanças
constitucionais ou a criação de novas Constituições.
O autor, no livro We the People propõe um modelo de democracia e Constituição
dualistas, desenvolvido em dois momentos: Primeiro, as políticas rotineiras, exercidas pelos
representantes do povo, isto é, a burocracia estatal; e o segundo, as transformações no
sistema, pela ação do povo. Este modelo leva em conta que a virtude cívica dos cidadãos não
é suficiente para mantê-los, permanentemente, comprometidos em participar na tomada de
decisões públicas. Por isso, existem momentos na história em que se pode constatar uma
―revolução‖ no sistema, tais como os ocorridos na história constitucional norte-americana: na
Convenção de Filadélfia de 1787, quando se elabora a Constituição Americana; nas Emendas
Constitucionais estatuídas após a guerra civil entre 1868-1870; e no New Deal, em 1930.
Estes momentos históricos mostram revoluções, no sentido de que houve mudanças
fundamentais nas regras da prática política. Isso mostra que o povo é capaz de discutir e
deliberar sobre temas constitucionais.
A posição de democracia e Constituição dualistas diferenciam Ackerman dos liberais
Rawls e Dworkin. Aquele entende que a Constituição é, primeiramente, democrática, ou seja,
movimento de deliberação popular, resultante da autonomia pública e, depois, protetora de
direitos; enquanto que estes invertem esta ordem, dando à Constituição o papel, em primeiro
lugar, de proteger a autonomia privada assegurada pelos direitos fundamentais. Para
Ackerman a participação popular permite que a Constituição e os direitos fundamentais
estejam sempre abertos a novas elaborações, sem deixar que o ―espírito‖ dos mesmos seja
abandonado. A cidadania pública está inserida no seio de uma sociedade plural, em que
convivem diversas concepções individuais a cerca da vida digna, permitindo aos cidadãos
38
dedicarem-se, ao mesmo tempo, aos interesses privados e aos interesses públicos em
organizações tais como igrejas, sindicatos, ONGs etc.
Ackerman tem consciência de que não é possível reeditar a perfeita cidadania pública,
conforme o modelo da polis grega, porém, os cidadãos em determinados momentos
históricos, são capazes de reinterpretar o seu passado. Ou seja, quando a comunidade altera os
seus valores, cria uma nova Constituição, ou pelo menos, institui novas hermenêuticas. Ora, o
constitucionalismo patriótico é, precisamente, esta capacidade de autodeterminação da
comunidade, enquanto disposição de alterar, legitimamente, as organizações políticas e
normativas.
A concepção de democracia dualista garante que os indivíduos possam
cotidianamente buscar a realização de seus projetos pessoais de vida, mas, ao
mesmo tempo, assegura a possibilidade de que, em momentos históricos decisivos,
o conjunto dos cidadãos, alterando os significados dos valores que compartilham,
delibere acerca do seu próprio destino (Cittadino, 2004, 170).
Cabe destacar a proximidade entre o ponto de vista kojèviano da essência política da
Constituição e a concepção defendida por Bruce Ackerman que vê na Constituição a
expressão de um ato profundo de autodeterminação política. À semelhança de Kojève, que
provê a instância política como autodeterminante, para Ackerman, há uma intrínseca conexão
entre o processo de mobilização política e a mudança constitucional; de tal sorte que se pode
afirmar ser esta a essência precípua da Constituição. No entanto é preciso frisar que, conforme
Cittadino, este pensador americano também afirma o caráter dual da Constituição, por que
esta, num primeiro momento assegura a autonomia privada dos indivíduos
Nos momentos em que não há mobilização política da comunidade em seu conjunto,
e por outro lado, a Constituição garante a plena autonomia pública dos cidadãos
quando eles decidem alterar e redefinir a sua própria identidade política. E, sublinha
a autora, neste último caso, não há limites ao processo de autodeterminação da
comunidade política (id, p. 166).
Há uma aproximação entre a teoria constitucional de Kojève e Ackerman em dois
aspectos: o papel político da Constituição e a mudança constitucional através da revolução.
Ressalte-se, porém, que existem nuances nesta relação conceitual. Kojève entende a
Constituição como um ato político, constituindo a realidade tanto interna como externa, daí
ser sua teoria constitucional una. Por isso, não há um terceiro ator para intervir neste nível
intra e interestatal. Caso isso viesse a ocorrer se caracterizaria uma relação jurídica. Ora, a
Constituição política pode ser criticada e transformada, sendo a revolução um meio
privilegiado para tal. Daí, a revolução ser compreendida como um ato político, por excelência,
pois, opondo-se ao status quo, instaurará uma nova Constituição, sendo a nova lei política.
39
Ackerman entende que a Constituição tem também uma dimensão política, porém, não
desvinculada da jurídica, daí ser sua concepção constitucional dualista. O autor prioriza a
dimensão política constitucional, através de seu conceito de constitucionalismo patriótico,
sendo a participação cidadã que determina o conteúdo substantivo dos direitos fundamentais.
Ora, há entre revolução e Constituição uma íntima relação. A revolução é compreendida como
a ação dos cidadãos, em determinados momentos da história, em que se implementam
mudanças no sistema constitucional, sendo isto demonstrado, por Ackerman em vários fatos
da história norte-americana. Enfim, o constitucionalismo patriótico defini-se pela ação
coletiva dos cidadãos, ou seja, a revolução, determinando a identidade política através de
mudanças normativas ou criando uma nova Constituição.
Após apresentarmos o debate sobre as dimensões da Constituição, percebe-se que há
em Kojève um conceito de constitucionalismo político que se aproxima do conceito de
constitucionalismo patriótico de Ackerman. No entanto, há limites no que diz respeito à
compreensão do Direito Administrativo, como foi exposto acima (item 2), porque,
atualmente, a Administração Pública englobando os três poderes submete-se ao controle
jurisdicional, como, por exemplo, no caso do Direito brasileiro, conforme o que se verá
abaixo.
3.2 – Controle jurisdicional da Administração Pública
O Estado de Direito controla a Administração Pública para que realize os interesses
públicos e particulares, impondo-lhe mecanismos e corrigindo comportamentos indevidos
praticados em vários níveis do corpo orgânico como das pessoas jurídicas auxiliares do
Estado (autarquias, empresas públicas, sociedades mistas e fundações governamentais).
O controle da administração pública abrange os três poderes: Legislativo, Judiciário e
Executivo. A finalidade do controle é assegurar que a Administração atue a partir dos
princípios jurídicos tais como da legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e de
mérito, abrangendo o que diz respeito aos aspectos discricionários da atuação administrativa.
Embora o controle seja uma atribuição estatal, cabe ao cidadão participar defendendo seus
interesses individuais e coletivos. O controle é um poder-dever dos órgãos dos poderes
Judiciário, Legislativo e Executivo, a que a lei atribui essa função, no sentido de fiscalização e
correção dos atos ilegais (Di Pietro, 2001, 587).
Segundo Di Pietro, existem vários critérios para classificar as modalidades de
controle. Quanto ao órgão que o exerce, o controle pode ser administrativo, legislativo ou
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judicial; quanto ao momento em que se efetua, pode ser prévio, concomitante ou posterior;
pode ser ainda interno ou externo, conforme decorra de órgão integrante ou não da própria
estrutura em que se insere o órgão controlado. É interno o controle que cada um dos poderes
exerce sobre seus próprios atos e agentes. É externo o controle exercido por um dos poderes
sobre o outro. Vejamos os três tipos de controle: administrativo, legislativo e judicial.
3.2.1 – Controle administrativo
Controle administrativo é o poder de fiscalização e correção que a Administração
Pública, em sentido amplo, exerce sobre sua própria atuação em nível legal e de mérito, por
iniciativa própria ou provocada. Abrange os órgãos da Administração direta e indireta. O
controle sobre os órgãos da Administração direta é um controle interno e decorre do poder de
autotutela, permitindo rever os próprios atos ilegais, inoportunos ou inconvenientes. A
fundamentação do poder de autotutela encontra-se no princípio da legalidade e o da
predominância do interesse público. O controle sobre as entidades da Administração indireta é
o de tutela, sendo externo e exercido nos limites da lei, sob pena de ofender a autonomia
daquelas entidades (id. Di Pietro, 588).
3.2.2 – Controle legislativo
O controle do Poder Legislativo sobre a Administração Pública encontra-se regulado
na Constituição Federal, porque isto implica a interferência de um Poder nas atribuições dos
outros dois (Executivo e Judiciário). Aqui, temos dois tipos de controle: o político e o
financeiro.
a) Controle político: Este inclui aspectos da legalidade, de mérito e de natureza
política, porque aprecia as decisões administrativas sob o aspecto da discricionariedade.
Algumas hipóteses de controle que estão na CF/88 encontram-se sobretudo nos artigos 49, 50
e 52.
b) Controle financeiro: Encontra-se na CF/88 nos artigos 70 e 75, a fiscalização
contábil, financeira e orçamentária. Partindo do art. 70, pode-se deduzir o controle financeiro
quanto à atividade (verificar os atos da contabilidade, execução de orçamento, resultados etc);
quanto aos aspectos controlados, compreende: controle de legalidade dos atos, controle de
legitimidade, controle de economicidade, controle de fidelidade funcional, controle de
resultados de cumprimento de programas de trabalho e de metas; quanto às pessoas
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controladas abrange União, Estados, Municípios, Distrito Federal e entidades da
Administração direta e indireta. O controle externo foi ampliado como se verifica no art. 71,
compreendendo as funções de : fiscalização financeira, de consulta, de informação, de
julgamento, sancionatórias, corretivas e de ouvidor (id Di Pietro, 599-602).
3.2.3 – Controle judicial
O controle judicial junto com o princípio da legalidade constituem uns dos
fundamentos do Estado de Direito. O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição una,
pelo qual o Poder Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, podendo apreciar com
força de coisa julgada, a lesão ou ameaça a direitos individuais e coletivos. O Brasil não
adotou o sistema da dualidade de jurisdição em que ao lado do Poder Judiciário, existem os
órgãos do ―Contencioso Administrativo que exercem, como aquele, função jurisdicional sobre
lides de que a Administração Pública seja parte interessada‖ (id Di Pietro, 603).
O sistema da jurisdição una fundamenta-se no art. 5º, inc. XXXV da CF: A lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Portanto, qualquer
que seja o autor da lesão, mesmo o poder público, poderá o cidadão prejudicado buscar a via
judicial para defender seus direitos.
No Brasil, adotou-se pelo que foi dito o sistema jurisdição única, diferente do que
ocorre em inúmeros países europeus. No caso brasileiro cabe ao Poder judiciário decidir todo
conflito, aplicando o Direito para resolver controvérsias, segundo o princípio da legalidade. A
Administração submete-se à legalidade, ou seja, no Estado de Direito, ela só pode agir sob a
lei. O princípio da legalidade não se propõe a ser um mero instrumento de organização do
aparelhamento administrativo do Estado, mas estabelecer aos administrados uma proteção e
uma garantia. Isto outorga ao cidadão a certeza de que o ato administrativo não pode impor
limitação, prejuízo ou ônus a alguém, sem a prévia autorização em lei. A legalidade tem,
portanto, a finalidade de proteção jurisdicional a quem seja agravado por ação ou omissão
ilegal do Poder público sempre que isto ocorra (Mello, 2004, 871-873).
Portanto, existe direito à proteção judicial sempre que houver: a) Ruptura da
legalidade, causando ao administrado um agravo pessoal; b) Ou subtração de uma vantagem
que o administrado acederia se não houvesse ruptura da legalidade. Ora, trata-se aqui da
proteção de um direito subjetivo e não de um mero interesse legítimo. Mello argumenta que
há no Direito italiano o instituto do interesse legítimo, para fins de desqualificar certas
pretensões, negando-lhes a qualidade de direito subjetivo. Por exemplo, as normas que
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regulam as licitações ou os concursos públicos, não conferem aos que deles desejam
participar do direito subjetivo a fim de se insurgirem contra atos ou condições consideradas
ilegais para efetuar uma inscrição. Nesse caso, no sistema jurídico italiano entende-se que os
postulantes só podem propor um interesse legítimo e não um direito subjetivo. Essa forma de
condução deste caso, deve-se a dualidade de jurisdição na Itália e em outros países europeus.
Aqui, a repartição de competências jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a Justiça
Administrativa faz-se, distinguindo, direito subjetivo e interesse legítimo, isto é, quando se
trata do primeiro a decisão compete ao juiz ordinário, e no caso do segundo, cabe ao juiz
administrativo. Tem-se como conseqüência de tal distinção, que o direito subjetivo
compreendido na visão moderna privatista, o juiz do Poder Judiciário não pode anular o ato
gravoso, mas apenas conceder reparação patrimonial. Ao contrário, face a um interesse
legítimo, o juiz competente é o da Jurisdição Administrativa, o qual pode anular o ato, mas
não é a sede própria para conceder reparação patrimonial. Porém, no Brasil não há dualidade
de jurisdição, inexistindo uma justiça administrativa, a qual zelaria pelos interesses legítimos
(Mello, 2004, 874-877) .
Na França, que adota a dupla jurisdição, os casos acima mencionados caem na esfera
de competência da Justiça Administrativa e não, do Poder Judiciário. Naquela são
discriminados os contenciosos de plena jurisdição e de anulação. O Direito francês não
trabalha com a mesma nomenclatura do Direito italiano (distinção entre direito subjetivo e
interesse legítimo), porém, entende-se que no contencioso de plena jurisdição trata-se de um
problema individual subjetivo e que, no de anulação o problema versa sobre a legalidade
objetiva, por isso destinado a anulação do ato lesivo.
Há entre esses países também uma semelhança nas modalidades de recurso. No
Direito italiano os recursos para defender interesses legítimos são suscitados por questões de:
incompetência, violação de lei e excesso de poder. No Direito francês os recursos para defesa
da legalidade (contencioso de anulação), e não em situações subjetivas são: incompetência,
violação da lei e desvio de poder (correspondendo ao excesso de poder dos italianos) (id.
Mello, 875).
3.2.4 – Meios de controle
Ainda tendo por base o art. 5°, inciso XXXV da CF, todo o cidadão tem o direito de
ação ou de exceção contra lesão ou ameaça a direito, utilizando vários tipos de ações previstos
na legislação ordinária, para impugnar atos da Administração, tais como ações de
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indenização, possessórias, reivindicatórias, de consignação em pagamento, cautelar etc. Além
destas ações a Constituição estabelece ações especiais de controle da Administração Pública,
chamadas pela doutrina de remédios constitucionais. Estes têm a função de garantir os
direitos fundamentais, provocando a intervenção de autoridades, em geral a judiciária, para
corrigir os atos da Administração lesivos de direitos individuais e coletivos.
Os remédios constitucionais têm a dupla natureza de direitos e de garantias. São
direitos em sentido instrumental conforme o art. 5°, inc. XXXV da CF e são garantias porque
resguardam outros direitos fundamentais também previstos neste mesmo art. 5°.
Podemos classificar os remédios constitucionais, que visam provocar o controle
jurisdicional de ato da Administração, a partir de dois critérios:
a) Os que garantem os direitos individuais: 1) Mandado de segurança individual: É a
ação civil de rito sumaríssimo pela qual qualquer pessoa pode provocar o controle
jurisdicional quando sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo, não amparado
por habeas corpus nem habeas data, em decorrência de ato de autoridade, praticado com
ilegalidade ou abuso de poder. 2) Habeas data: Assegura o conhecimento de informações
relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades
governamentais ou de caráter público; ou para a retificação de dados; 3) Habeas corpus:
Protege o direito de locomoção; 4) Mandado de injunção: Tem como pressuposto a omissão
de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania, e à cidadania (art.
5°, LXXI da CF).
b) Os que garantem os direitos coletivos ou difusos: 1) Mandado de segurança
coletivo: Conforme Di Pietro, este remédio constitucional tem como pressuposto o mesmo
que está previsto para o mandado de segurança individual, isto é, ato de autoridade,
ilegalidade ou abuso de poder e lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo. Pode ser
impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, organização
sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída (CF, art 5°, LXX). 2) Ação
popular: É a ação civil pela qual qualquer cidadão pode pleitear a invalidação de atos
praticados pelo poder público ou entidades de que participe, lesivos ao patrimônio público, ao
meio ambiente, à moralidade administrativa ou ao patrimônio histórico e cultural, bem como a
condenação por perdas e danos dos responsáveis pela lesão; 3) Ação civil pública: Trata-se do
dano ou ameaça de dano a interesse difuso ou coletivo, abrangendo o dano ao patrimônio
público e social, o dano material e o dano moral. Inclui especialmente, a proteção ao meio
ambiente, ao consumidor, ao patrimônio histórico ou cultural (id. Di Pietro, 612-656).
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Pelo exposto, constata-se que o controle da Administração Pública opera-se nos três
poderes: legislativo, executivo e judicial. Além, deste controle existem os meios de controle,
ou os remédios constitucionais, que permitem aos cidadãos pleitearem seus direitos subjetivos
e intersubjetivos face à Administração Pública. Ora, pelo visto, o Estado de Direito é
controlado pelos cidadãos, e pelos poderes entre si. A doutrina do Direito Público explicita a
progressiva idéia de justiça, controlando o poder estatal. O Estado não escapa ao controle da
sociedade civil, ou seja, ele não se desvincula dela, como parece ocorrer no modelo
kojèviano. Antes, a sociedade civil, através do controle jurisdicional, tem o poder de garantir
os seus direitos e fiscalizar a Administração Pública.
O modelo kojèviano de Administração Pública é devedor de um limite, por um lado,
causado por condicionantes teórico-práticas: a) Do modelo de dupla jurisdição, que permite a
repartição de competências jurisdicionais entre o Poder Judiciário e a Justiça Administrativa,
dando à Administração Pública uma quase independência do Executivo e do poder estatal face
à sociedade civil. Como vimos acima (item 2) o poder estatal, praticamente, está desvinculado
do cidadão, sendo quase impossível a este reivindicar seus direitos; b) Do modelo de Direito
Público, ou seja, da teoria dialético dualista de Direito (item 1.1.3) , em que as duas esferas
constitucional e administrativa são determinadas pelo poder político em detrimento do poder
jurídico. c) Do contexto conjuntural bélico da 2ª Guerra Mundial e de disputa entre sistemas
ideológicos, resultado de um modelo de Estado-Nação moderno, que se impõe interna e
externamente, de um modo unilateral, sobre a sociedade civil e os outros Estados.
De outro lado, o modelo kojèviano de Administração Pública tem um alcance que se
insere no debate atual entre liberais e comunitaristas, na medida em que acentua o lado
político da Constituição, enquanto projeto revolucionário de um povo. A perspectiva do
sujeito atomizado, defendido pelos liberais (Estado Liberal de Direito)
Conduz à afirmação de um modelo de democracia, que se insere em uma matriz
centralista e adstrita à preocupação estritamente procedimental, sob a qual a
Constituição se limita à Garantia de que os cidadãos optem pelo rodízio das elites
que exercem o poder político e que este esteja limitado pelos direitos inalienáveis
(Bavaresco, Christino, Schmitt, 2005,355).
Porém, o ponto de vista dos comunitaristas (Estado Social de Direito), compreende o
Sujeito-em-relação, isto é, para além do indivíduo interessado e portador de uma
subjetividade fundada nos limites da vontade particular‖, mas de ―uma identidade
constituída por valores e ideais comuns‖. Aqui, ―a Constituição figura como
Projeto, uma vez que não se cogita de mera garantia, mas de vinculação ao
cumprimento dos objetivos de um destino socialmente compartilhado (id. p. 355).
45
É verdade, que Kojève, quando da elaboração de seu Esboço, não tem diante de si os
avanços do Estado Democrático de Direito, que implica o resgate dos ideais de liberdade e
igualdade, no quadro da eficácia para a participação política e o exercício dos direitos. Kojève
em sua teoria da justiça prioriza, no entanto, a idéia de justiça como desejo de
reconhecimento, e nesta luta intersubjetiva há sempre um contexto típico em que se determina
a justiça como igualdade, equivalência ou eqüidade. Ora, esta luta pelo reconhecimento,
fundamento da teoria da justiça kojèviana, é, política, daí, a sua aplicação no Direito Público,
priorizando esta dimensão sobre a jurídica, bem como, o comunitário sobre o individual.
Preservadas as devidas nuances no campo comunitarista, pode-se incluir a contribuição
kojèviana na perspectiva de um Direito intersubjetivo comunitário, estando aí o seu alcance
no debate atual.
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CONCLUSÃO
A Teoria da Justiça e o Direito Público em Alexandre Kojève, apresentados ao longo
deste trabalho, segundo a sua obra Esboço de uma Fenomenologia do Direito, tem no desejo
antropogênico o estatuto básico para a constituição do reconhecimento intersubjetivo. A luta
pelo reconhecimento é um processo dialético, inspirado na figura do senhor e do escravo,
descrito na obra clássica Fenomenologia do Espírito de G. W. F. Hegel. Para este a dialética é
um momento do processo da efetividade do conceito, tendo no especulativo o seu momento
ápice, desenvolvendo-se como monismo articulado pela mediação de um silogismo reflexivo.
Enquanto que para Kojève a dialética é tratada como ponto de chegada de sua metodologia,
operando-se uma antropologização do sistema, através da leitura da história em que,
sistematicamente, o oprimido torna-se vitorioso. No entanto, Kojève recusa o dualismo
ontológico como o monismo materialista e defende o dualismo dialético linear, por meio de
um processo de tipo reflexivo que compreende o fenômeno jusfilosófico.
É o desejo que permite a formação da autoconsciência, ou seja, é o desejo que busca
um objeto não-natural, ultrapassando a realidade dada, ou seja, é apenas o desejo de outro
desejo que preenche a exigência de um desejo tipicamente humano, capaz de garantir a
autoconsciência. A origem e a evolução do Direito dá-se pelo ato antropogênico do desejo de
luta pelo reconhecimento entre senhor e escravo, tornando-se o ato instaurador que identifica
o ser humano na intersubjetividade e, portanto, sendo a fonte da idéia de justiça.
Para Kojève o Direito é a aplicação de um ideal de justiça às interações sociais dadas,
sendo esta aplicação feita por um terceiro imparcial e desinteressado, decidindo em função de
seu ideal de justiça. Ora, os modelos de Direito determinam-se nesta relação dialética: O
escravo renuncia, inicialmente, a igualdade aceitando a equivalência; o senhor não considera a
equivalência, mantendo a igualdade, pois ele está quase indo à morte. Depois, a dialética do
senhor e do escravo alcança a cidadania, através da dialética entre o Direito aristocrático e
burguês, levando, enfim, ao Direito sintético do cidadão. Assim, o Direito nasce duplo e
depois, torna-se uno, evoluindo da oposição antitética à unidade sintética. Kojève, descreve
este movimento jusfenomenólogico em três momentos:
a) O modelo de justiça da igualdade apresenta, fenomenologicamente, o direito
aristocrático. Trata-se de um direito de iguais, em que o reconhecimento passa pelo risco de
vida, buscando a honra pura e simples. O reconhecimento dá-se pelo escravo, enquanto
submissão, e pelos outros senhores, na medida da igualdade.
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b) O modelo de justiça da equivalência descreve o Direito burguês, substituindo o
conceito aristocrático de estatuto, por aquele de função, que cria um Direito de contrato. O
contrato sanciona trocas de propriedade e prestações, pressupondo a desigualdade nas trocas.
Se o Direito aristocrático condena a desigualdade, o Direito burguês o reconhece, pois o
princípio aqui é o da equivalência de condições, de direitos e deveres. Há uma diferença entre
o Direito burguês e o Direito aristocrático, enquanto este atribui a cada indivíduo a plenitude
de direitos sem nenhum dever, aquele, ao contrário, exige uma equivalência rigorosa entre
direitos e deveres.
c) Enfim, o modelo de justiça da eqüidade, mostra o dualismo humano entre senhor e
escravo, sintetizando-se na existência do cidadão, ou seja, o Direito aristocrático e burguês se
unem no Direito cidadão. No Direito aristocrático, o indivíduo possui a plenitude de direitos,
sem ter nenhum dever, enquanto que no Direito burguês, há a equivalência entre direitos e
deveres em relação a cada pessoa jurídica. O Direito do cidadão, fundado na justiça da
eqüidade, combina os direitos e deveres, não admitindo a existência de direitos não
compensados pelos deveres, nem de deveres sem direitos correspondentes, mas haverá uma
interação entre direitos e deveres.
A evolução do fenômeno do Direito segue a lógica da contradição imanente, segundo
os dois princípios jurídicos: a igualdade (em ato) e a equivalência (em potência). Os dois
princípios, estando num mesmo sistema jurídico, deixam aparecer o conflito interno, entre o
Direito aristocrático e o burguês, porque os mesmos direitos não têm o mesmo valor, quando
referidos a sujeitos diferentes, uma vez que, sendo iguais do ponto de vista formal, eles
podem não ser equivalentes de fato. Por isso, o Direito burguês modificará a igualdade formal
para torná-la conforme a equivalência. A suprassunção dos dois modelos de Direito conduzirá
segundo, Kojève, à última forma de Direito que é a do cidadão. Esse Direito conduzirá a
equivalência dos direitos e dos deveres de cada um, acompanhado da igualdade de direitos e
deveres de todos, podendo ―ser atual apenas lá onde todos são iguais e equivalentes, não
somente sob o aspecto jurídico ―diante da lei‖, mas também política e socialmente, isto é, de
fato‖ (cf. Kojève, 1981, 313-314).
A fenomenologia do Direito kojèviano aponta para um modelo de reconhecimento
intersubjetivo, ou seja, a metodologia hegelo-kojèviana, por ser de matriz intersubjetiva,
oferece elementos para a superação do modelo subjetivista moderno do Direito. Em Hegel e
Kojève, existem modelos metodológicos diferenciados do reconhecimento e da idéia de
Direito. Enquanto, Hegel inclui a dialética como um dos momentos fundamentais do método
especulativo, numa constituição monista que se movimenta, especulativamente, em seus
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diversos conteúdos e momentos do sistema, para Kojève, a dialética é o fim de sua
metodologia. Ora, essa metodologia desdobra-se em Hegel, na determinação da idéia de
liberdade nos diversos momentos que compõem a Filosofia do Direito. O reconhecimento
simétrico de direitos e deveres percorre o itinerário do direito abstrato, da moralidade e da
eticidade. Ora, a metodologia hegeliana implica que a pessoa garanta o reconhecimento de
seus direitos e deveres no direito abstrato moderno, enquanto sujeito moral, capaz de agir
intersubjetivamente, como cidadão na esfera da eticidade, ou seja, participando do Estado.
Para Kojève, o Direito é o resultado da luta originária pelo desejo de reconhecimento
entre o senhor e o escravo, decorrendo, então, uma tríplice tipologia da idéia de Direito,
configurando-se em idéia de igualdade aristocrática, idéia de equivalência burguesa e idéia de
eqüidade cidadã. O Direito é, então, a determinação da idéia de justiça. A reflexividade entre
os sujeitos que buscam o reconhecimento, são mediados pelo terceiro imparcial e
desinteressado, introduzindo, dessa forma, o momento intersubjetivo na constituição do
Direito. Em Hegel o reconhecimento passa pela mediação da eticidade, enquanto momento
garantidor do Direito intersubjetivo.
O reconhecimento e a intersubjetividade, a descrição jusfenomenólogica dos modelos
de Direito e sua implicação na superação do Direito moderno subjetivo para o Direito
intersubjetivo são aplicados por Kojève, no Direito Público, em seu nível, propriamente
constitucional e administrativo.
A Constituição é um ato político tanto interna como externamente, não havendo um
terceiro que possa nesse nível intervir, caso contrário, se retrocederia ao nível jurídico. A
revolução é, um ato político oposto às leis políticas vigentes, considerando-se um ato
fundador de uma nova Constituição. Se a mudança desta mesma acontece através da
revolução, a nova Constituição passa a ser a nova lei política. Assim, a mudança
constitucional pode ocorrer através de duas formas: pela via legal através do cidadão, ou seja,
pela via interna do próprio grupo político instalado no governo; ou então, pela via
revolucionária, isto é, por um grupo externo ao governo, instalando uma nova Constituição.
Em ambas as vias, dá-se um processo político e não jurídico, por tratar-se do Direito público,
portanto constitucional.
Kojève comenta o fato do Estado intervir como terceiro, por exemplo, se o governante
agiu enquanto particular, ou então, o governado foi lesado pelo governante-impostor. Se o
governante agiu em desacordo com a Constituição, em função de interesses particulares,
então, o Estado deve intervir como terceiro e anular o ato do governante-impostor. As leis
constitucionais e administrativas, em si, não têm nada de jurídico, mas na medida em que
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permitem constatar que um governante agiu como impostor, elas fazem parte do Direito
público. Kojève enumera alguns casos nos quais os governados podem considerar-se lesados
por atos dos governantes-impostores e indica o modo como estes atos, juridicamente, ilegais
devem ser anulados. Neste sentido, pode-se dizer que o Direito público fixa os direitos dos
governados. Porém, isto não significa, dizer que os governados têm direitos face ao Estado,
isto é, diante dos governantes, agindo enquanto tais, pois o Estado pode modificar o Direito
público, modificando a Constituição. Esta pode ser, modificada apenas pelo Estado, isto é
pelos cidadãos, agindo enquanto cidadãos e não enquanto particulares, utilizando-se destas
vias, age-se, de forma política, e não juridicamente, pois aqui ainda não há um terceiro. Ora,
se alguém experimenta modificar a Constituição por vias ilegais, ele age, enquanto privado e
particular, e então comete um crime de Direito público, o qual será anulado pelo Estado.
A posição kojèviana sobre o Direito público, no seu duplo aspecto, constitucional e
administrativo é, eminentemente, política. Este ponto de vista, sobre o Direito Público,
oferece alcances e limites como ficou demonstrado na comparação com as teorias
contemporâneas, que debatem o Direito constitucional e administrativo. O debate sobre a
dimensão política e/ou jurídica constitucional, em alguns teóricos dentro do Direito
Constitucional e o Direito Administrativo, mostra o papel do controle jurisdicional no Estado
democrático de Direito. Kojève elaborou a sua teoria constitucional num contexto bélico e sob
a influência de um modelo de Estado-Nação interventor tanto em nível externo como interno,
ou seja, tomando decisões de forma unilateral. Compreende-se, a partir disto, em parte, o
alcance e o limite de sua teoria constitucional, considerando o contexto político e o debate
teórico da época.
O papel da Constituição e sua natureza é uma discussão com diferentes opiniões: Por
exemplo, para Konrad Hesse, a Constituição tem uma dupla natureza, a um só tempo política
e jurídica; Para Bruce Ackerman, tanto a democracia como a Constituição são dualistas,
porque asseguram, sob o aspecto jurídico, a autonomia privada dos indivíduos, e sob o
aspecto político, garantem a autonomia pública dos cidadãos; C. Taylor e Walzer defendem o
patriotismo republicano, sendo a Constituição um projeto que traduz a vontade coletiva em
que a cidadania ativa busca a implementação de liberdades positivas; Bruce Ackerman
propõe, de seu lado, o constitucionalismo patriótico, sendo os direitos fundamentais do
cidadão procedimentais, antes que substantivos, ao contrário de Rawls e Dworkin que
sustentam o conteúdo substancial dos direitos fundamentais.
Kojève e Ackerman podem ser aproximados no que diz respeito ao papel político da
Constituição e a mudança constitucional através da revolução. Para Kojève, a Constituição é
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um ato político, que constrói a realidade sem a presença de um terceiro ator para intervir neste nível
intra e interestatal, daí ser sua teoria constitucional una. A Constituição pode ser criticada e mudada,
sendo a revolução este meio político que permite tal fim. Ackerman entende que a Constituição
tem também uma dimensão política, porém, não desvinculada da jurídica, daí ser sua
concepção constitucional dualista. A revolução é a ação dos cidadãos, em determinados
momentos da história, implementando mudanças no sistema constitucional, pela ação coletiva
dos cidadãos, ou seja, a revolução, determinando a identidade política através de mudanças
constitucionais. Há, portanto, em Kojève um conceito de constitucionalismo político que se
aproxima do conceito de constitucionalismo patriótico de Ackerman.
Quanto à compreensão do Direito Administrativo, Kojève foi confrontado com o
debate atual, em que a Administração Pública engloba os três poderes (Legislativo, Judiciário
e Executivo) submetendo-se ao controle jurisdicional. A finalidade do controle é assegurar
que a Administração atue, a partir dos princípios jurídicos tais como da legalidade,
moralidade, publicidade, impessoalidade e de mérito. O Estado de Direito controla a
Administração Pública, para que realize os interesses públicos e particulares. Mais ainda, o
Estado de Direito é controlado pelos cidadãos, por si mesmo, e pelos poderes entre si, numa
progressiva idéia de justiça, controlando o poder estatal. O Estado não escapa do controle da
sociedade civil, ou seja, ele não se desvincula dela, como parece ocorrer no modelo
kojèviano. Antes, a sociedade civil, através do controle jurisdicional, tem o poder de garantir
os seus direitos e fiscalizar a Administração Pública.
O modelo kojèviano de Administração Pública tem um limite, causado por
condicionantes teórico-práticas, tais como o modelo de dupla jurisdição, o contexto
conjuntural bélico da 2ª Guerra Mundial e de disputa entre sistemas ideológicos, resultado de
um modelo de Estado-Nação moderno, que se impõe interna e externamente, de um modo
unilateral, sobre a sociedade civil e os outros Estados. Porém, o modelo kojèviano de
Administração Pública tem um alcance que se insere no debate atual entre liberais e
comunitaristas, na medida em que acentua o lado político da Constituição através de um
projeto revolucionário, semelhante ao de Bruce Ackerman. Face ao sujeito atomizado,
defendido pelos liberais (Estado Liberal de Direito), sob a qual a Constituição se limita à
Garantia, o ponto de vista dos comunitaristas, (Estado Social de Direito), e portanto, de
Ackerman, compreende o sujeito-em-relação em que a Constituição figura como Projeto.
Considerando a distância entre o contexto sócio-político em que Kojève escreveu seu
Esboço, e o posterior debate jusfilosófico constitucionalista do Estado Democrático de
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Direito, cabe reconhecer a contribuição kojèviana na perspectiva de um Direito intersubjetivo
comunitarista.
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