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Teoria Da Literatura

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APRESENTAÇÃO: TEORIA DA LITERATURA I (Teoria da Poesia)

Literatura é uma palavra de múltiplos significados. Pode significar tratados defilosofia como ensaios de geografia. É comum encontrarmos pessoas de outras áreas quenão a de letras afirmando que consultaram a literatura disponível sobre física quântica.Para nós que somos estudantes e amantes das letras, tal afirmação pode soar absurda.

De fato, vamos combinar o seguinte: sempre que falarmos a palavra “literatura”estamos nos referindo à ficção, tanto em prosa como em verso. Assim, romances, contos,novelas e poemas pertencem ao que denominamos literatura.

Ficção em prosa ou em verso: isto é literatura.Em Teoria da Literatura I vamos estudar teoria da poesia. Dos versos de cordel

até a poesia discursiva de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, passando pela poesiavisual e chegando à infopoesia ou ciberpoesia.

Por esta gama de variedades dá pra você sentir que a palavra “poesia” abarcauma variedade significativa de modalidades.

Há o cordelista que faz versos marcados pela oralidade. É uma poesia de fácilmemorização, já que seu intuito é mesmo ser dita em voz alta. Há a poesia de João Cabralde Melo Neto, de Carlos Drummond de Andrade, de Manuel Bandeira, que se pautampor uma sofisticada técnica de fazer poesia. Há a poesia visual de poetas que, não satisfeitoscom os moldes tradicionais de fazer poesia, inventaram um modo novo de dispor aspalavras nas páginas em branco e até fazendo poesia sem palavras. E há a novíssimapoesia feita pra viver na tela do computador, incorporando recursos da linguagem dainformática.

Todos estes modos de fazer poesia compõem nosso universo de interesse. Ao seutempo cada um deles será devidamente estudado.

Falamos em poesia e não nos perguntamos: o que é que faz um texto ser chamadode poesia? Quais as características que encontramos num poema? Pode haver poesiasem palavras? Como fixar no papel um poema feito para ser visto e lido na tela docomputador?

Poesia é, portanto, um modo de dizer as coisas, de modo enxuto, econômico.Agora você me pergunta: e os poemas longos, como “Odisséia” e “Ilíada” de Homero,“Os lusíadas” de Camões, “Eneida” de Virgílio, “A divina comédia” de Dante Alighieri –não são poesia?

ATENÇÃO!!! Você pode notar, lendo os capítulos I a IV do livro “ABC da Lite-ratura”, de Ezra Pound (disponível na biblioteca de sua cidade) que poesia écondensação de idéias

TEORIA LITERÁRIA I

AMADOR RIBEIRO NETO

!

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A resposta é: são poesia sim. E são poesia de excelente qualidade. Quando falamosque a condensação, a economia, o laconismo caracterizam a poesia estamos falando dafusão genial que os poetas fazem de imagens, idéias e musicalidade. Não interessa onúmero de páginas de um poema: o importante é a condensação que o poeta opera nomanuseio das palavras.

Cada palavra tem um peso especial e singular para o poeta. Na palavra escolhidapelo poeta, o som e o significado interagem reciprocamente gerando um terceiro termo: apoesia.

A poesia é pois condensação e resultado da tensão entre o som e o significado dapalavra.

Observe um poema. Leia-o com atenção e cuidado. Veja como cada palavracolocada ali só pode ser ela mesma. Não é possível substituí-la por outra palavra. Mesmouma palavra sinônima não cabe no poema. (Claro que estamos nos referindo a excelentespoemas).

Leia o poema abaixo:

Amor é fogo que arde sem se ver(Camões)

Amor é fogo que arde sem se ver;É ferida que dói e não se sente;É um contentamento descontente;É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;É solitário andar por entre a gente;É nunca contentar-se de contente;É cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;É servir a quem vence, o vencedor;É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favorNos corações humanos amizade,Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Lido o poema, tente contá-lo para alguém. Você vai perceber que a pessoapara quem você contou o poema vai achá-lo bem menos bonito do que você. Isto porqueao contar o poema você transformou a forma dele. E em poesia a forma é importantíssima.

E você já se deu conta de que uma forma não pode ser resumida?

ATENÇÃO!!! Em poesia é a forma que informa. !

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Pense num triângulo. Qual o resumo de um triângulo: qual o resumo, qual odiminutivo de triângulo? Oras, é outro triângulo. Não dá pra “resumir” um triângulo. Assimcomo não dá pra resumir uma forma. Fotografia é forma. Dá pra resumir uma foto semdesfigurá-la? De jeito nenhum. Cada resumo que eu fizer da foto estarei retirando partesdela.

Assim acontece com o poema. Ou você fala o poema tal como ele é, ou entãovocê o mutila.

Quando você conta o poema para alguém você está fazendo paráfrase. A paráfraseé contar com nossas próprias palavras, com o nosso jeito pessoal, o que um poema diz.

Claro que a paráfrase é importante na hora de entendermos o poema. Às vezesuma citação histórica, filosófica, mitológica só são entendidas pela paráfrase. Muitos termos,quer pelo distanciamento histórico e geográfico que temos em relação a eles, quer pelouso de uma semântica diferente da que usamos cotidianamente, precisam ser explicados.Nós repetimos em outras palavras o que o poema diz a fim de melhor entendê-lo. Paraisto a paráfrase se presta muito bem.

Mas superada esta fase, voltamos à forma do poema a fim de compreendê-lointegralmente.

Claro que nunca esgotaremos as possibilidades de análise e interpretação de umpoema. Por isto mesmo dizemos que toda obra de arte permite múltiplas leituras. Emoutras palavras: toda obra de arte é plurissêmica.

ATIVIDADE: Tome o livro “Cinco séculos de poesia”, disponível na biblioteca deseu município. Peça a um colega que, sem que você saiba, escolha um poema eleia-o. Depois que seu colega tiver lido o poema, peça-lhe que conte-lhe o poema.Só então, sabendo do que se trata, você deve ler o poema. Sinta a diferença entreum poema lido respeitando a forma dele e um poema “contado”, parafraseado.

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ESCANSÃO

A escansão, a estrofação e o rimário fazem parte da Metrificação (ouVersificação).

Fazer a escansão é escandir, ou seja, é dividir o verso em sílabas poéticas.Ao longo da história da literatura, a poesia acumulou sons e sentidos diferentes,

enriquecendo seu significado. A forma não é algo exterior à poesia. Antes pelo contrário:é algo inerente.

Se os versos têm duas ou doze sílabas. Se acentuam a tônica nas quartas,sextas e décimas. Se o sentido, a sintaxe e o ritmo ultrapassam o próprio verso eexpandem-se pelo verso seguinte. Se palavras são repetidas na mesma posição aolongo dos versos. Se as vogais ou as consoantes repetem-se insistentemente. Se aestrofe possui dois ou quatro versos. Etc.... Tudo isto compõe a forma do poema etem algo a nos dizer.

Identificar a forma do poema apenas pela forma é negar ao poema suasignificação mais vertical.

De que adianta dizer que um poema possui forma fixa, versos alexandrinos,enjambements nos versos pares, rimas alternadas, se esta informação não se casacom o sentido emitido pelo poema? A forma (que entendemos como o modo dedizer) e o fundo (que entendemos como o que se diz) devem estar unidos na nossainterpretação e análise do poema. Um sem o outro não faz sentido.

Para iniciar nosso estudo do poema vamos nos valer de alguns princípiosfundamentais da versificação, atentando para o fato de que a contagem das sílabas deum verso não obedece à contagem silábica gramatical, mas à contagem silábica poética.Ou seja: a contagem silábica poética contabiliza até a última sílaba tônica de um verso.

Por exemplo, no verso “Estás, e estou do nosso antigo estado!”, temos 14sílabas gramaticais:

es / TÁS, / e / es / TOU / do / NOS / so / an / TI / go / es / TA / do!1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11 / 12 / 13 / 14

Mas possui apenas 10 sílabas poéticas, pois além de contarmos até a últimasílaba tônica do verso, ainda fazemos elisões vocálicas, ou seja, unimos as vogaisfinais com as iniciais de uma palavra. Por exemplo: “e estou do nosso antigo estado”

e / es / TOU / do / NOS/ so / an / TI / go / es / TA / do = 12 sílabasees / TOU / do / NO / ssoan / TI / goes / TA (do) = 8 sílabas

UNIDADE IMETRIFICAÇÃO

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!

Voltando ao verso completo, vamos contabilizar suas sílabas poéticas:

Es / TÁS, / ees / TOU / do / NO / ssoan / TI / goes / TA / (do!)1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10

Os versos podem ter:

UMA SÍLABA:

todosformamumsóladoduro

(fragmento do poema “Valete” de Amador Ribeiro Neto)

A contagem silábica fica assim:TO(dos)/ 1/FOR(mam) /1/UM /1/SÓ/1/LA(do)/1/DU(ro)./1/

DUAS SÍLABAS:

Quem deraQue sintasAs doresDe amoresQue loucoSenti!

(fragmento de uma estrofe do poema “A valsa”, de Casimiro de Abreu).

ATENÇÃO!!! Observe que estamos assinalando em maiúscula as sílabas tônicas, eentre parênteses as sílabas átonas posteriores à última sílaba tônica.

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Quem-DE (ra)/ 1 / 2 /Que-SIN (tas)/ 1 / 2As-DO (res)/ 1 / 2Dea-MO-(res)/ 1 / 2Que-LOU (co)/ 1 / 2Sen-TI!/ 1 / 2

TRÊS SÍLABAS:

descobriro brasiltantas vezesdescaminhaíndias ósempre aquelasvia Oswald

(fragmento do poema “500 anos” de Amador Ribeiro Neto)

des-co-BRIR/ 1 / 2 / 3o-bra-SIL/1/ 2 / 3TAN-tas-VE(zes)/1 / 2 / 3des-ca-MI(nha)/1 / 2 / 3ÍN-dias-Ó1 / 2 / 3sem-prea-QUE (las)/1 / 2 / 3VI-aos-WAL(d)/1 / 2 / 3

QUATRO SÍLABAS:Também conhecido como verso tetrassilábico.Recife de águasLuas e pontes

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Um modo trenoTerno concretoUns performáticosOutros tambores

(fragmento do poema “Recife” de Amador Ribeiro Neto)

Re-CI-fe-deÁ(guas)/1/ 2 /3 / 4LU-as-e-PON(tes)/1 / 2 / 3 / 4Um-MO-do-TRE(no)/1 / 2 / 3 / 4TER-no-con-CRE(to)/ 1 / 2 / 3 / 4UNS-per-for-MÁ(ticos)/ 1 / 2 / 3 / 4OU-tros-tam-BO(res)/ 1 / 2 / 3 / 4

CINCO SÍLABAS:

O verso de cinco sílabas é também conhecido como pentassílabo ou redondilhamenor. Este tipo de verso é usado desde as cantigas provençais, e está presente na poesiacontemporânea.

Meu canto de morte,Guerreiros ouvi:Sou filho das selvas,Nas selvas cresci;Guerreiros, descendoDa tribo tupi.

(estrofe do poema “I juca pirama” de Gonçalves Dias)

MEU-CAN-to-de-MOR(te),/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5Gue-RREI-ros-ou-VI:/1 / 2 / 3 / 4 / 5SOU-FI-lho-das-SEL(vas),/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5Nas-SEL-vas-cres-CI:/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5Gue-RREI-ros-des-CEN-do/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5

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Da-TRI-bo-tu-PI/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5

SEIS SÍLABAS:Também conhecido como verso hexassílabo.

Eis o estertor da morte,Eis o martírio eterno,Eis o ranger dos dentes,Eis o penar do inferno!

(estrofe do poema “Martírio” de Junqueira Freire).

EIS-oes-ter-TOR-da-MOR(te)/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6EIS-o-mar-TÍ-rioe-TER(no)/ 1/ 2/ 3 / 4 / 5 / 6EIS-o-ran-GER-dos-DEN(tes),/ 1 /2 / 3 / 4 / 5 / 6 EIS-o-pe-NAR-doin-FER(no)!/ 1 /2/ 3/ 4 / 5 / 6

SETE SÍLABAS:

O verso de sete sílabas é também conhecido como heptassílabo ou redondilhamaior. É um tipo de verso bem popular e remonta à Idade Média. Os cantadores de violautilizam-no à mancheia. Os cordelistas também fazem muito uso dele.

Por isso eu te amo, querida,Quer no prazer, quer na dor...Rosa! Canto! Sombra! Estrela!Do gondoleiro do amor.

(estrofe do poema “O gondoleiro do amor” de Castro Alves)

Por-I-ssoeu-teA-mo-que-RI(da),/1 /2/ 3 / 4 / 5 / 6 / 7QUER-no-pra-ZER-QUER-na-DOR.../ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7RO-sa-CAN-to-SOM-braes-TRE(la)!/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7Do-gon-do-LEI-ro-doa-MOR./1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7

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OITO SÍLABAS:

Também conhecido como verso octossílabo.

Como pode agora nesta horaUma mulher vaga amassandoProsa poesia poemaCredo apagado sofrimentos

(fragmento do poema “Uma mulher” de Amador Ribeiro Neto)

CO-mo-PO-dea-GO-ra-NES-taho(ra)/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8U-ma-mu-LHER-VA-gaa-ma-SSAN(do)1 /2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8PRO-sa-po-e-SI-a-po-E(ma)/1 / 2 / 3 /4/ 5/6/ 7/ 8CRE-doa-pa-GA-do-so-fri-MEN(tos)/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5/ 6 / 7 / 8

NOVE SÍLABAS:

Também conhecido como verso eneassílabo.

Não sabeis o que o monstro procura?Não sabeis a que vem, o que quer?Vem matar vossos bravos guerreiros,Vem roubar-vos a filha, a mulher!

(fragmento do poema “Canto do Piaga” de Gonçalves Dias)

Não-sa-BEIS-o-queo-MONS-tro-pro-CU(ra)?/1 / 2 / 3 / 4/ 5 / 6 / 7 / 8 / 9Não-sa-BEIS-a-que-VEM-o-que-QUER?/1 / 2/ 3 /4/ 5 / 6 / 7 / 8 / 9Vem-ma-TAR-VO-ssos-BRA-vos-gue-RREI(ros),/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9Vem-rou-BAR-vos-a-filha-a-mu-LHER!/ 1 / 2 / 3 / 4 /5/ 6 / 7/ 8 / 9

REVISANDO: o poema de cinco sílabas recebe o nome de redondilha menor, eo de sete sílabas, de redondilha maior.

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Observe que não fizemos a elisão entre as vogais do substantivo feminino e oartigo feminino em “filha, a mulher”. É que respeitamos a virgulação. Caso contrário, overso ficaria com 8 sílabas, destoando da silabação poética recorrente.

DEZ SÍLABAS:

Também conhecido como decassílabo. É uma modalidade de verso em quepredomina a musicalidade.

Temos dois tipos de decassílabo: o heróico, com acento tônico nas 6ª e 10ª sílabase o sáfico com acento tônico nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas.

Desde a noite funérea, de tristezaHeleura está doente. Ara, morrendo,Nunca perdera as cores do semblante,Um formoso defunto: “vivo! vivo!”

(fragmento do poema “Novo Éden” de Sousândrade)

Des-dea-noi-te-fu-NÉ-rea-de-tris-TE(za)/ 1 / 2 / 3 / 4/ 5/ 6 / 7 / 8 / 8 / 10He-leu-raes-TÁ-do-en-teA-ra-mo-RREN(do)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10Nun-ca-per-DE-raas-co-res-do-sem-BLAN(te)/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10Um-for-MO-so-de-fun-to-VI-vo-Vi(vo)/ 1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9/ 10

Agora vejamos um exemplo de verso decassílabo heróico:

O braço de Jesus não seja parte,Pois que feito Jesus em partes todo,Assiste cada parte em sua parte.

(primeiro terceto do soneto “Ao braço do menino Jesus quando aparecido” deGregório de Matos).

o-bra-ço-de-Je-SUS-não-se-ja-PAR(te)/1/2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10pois-que-fei-to-Je-SUS-em-par-tes-TO(do)/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5/ 6 / 7 / 8 / 9 / 10A-ssis-te-ca-da-PAR-teem-su-a-PAR(te)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8/ 9 / 10

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Agora vejamos um exemplo de verso decassílabo sáfico:Na oração, que desaterra .......................................... aterraQuer Deus, que, a quem está o cuidado .....................dadoPregue, que a vida é emprestado ............................... estadoMistérios mil, que desenterra ................................... enterra.

(primeira quadra do soneto “No sermão que pregou na Madre Deus D. JoãoFranco de Oliveira pondera o poeta a fragilidade humana” de Gregório de Matos).

Na-o-ra-ÇÃO-que-de-sa-TE-rraa-TE(rra)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10Quer-Deus-quea-QUEM-es-táo-cui-DA-do-DA(do)/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5/ 6/ 7 / 8 / 9 / 10Pré-gue-quea-VI-daé-em-pres-TA-does-TA(do)/ 1 / 2 / 3 / 4/ 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10Mis-té-rios-MIL-que-de-sem-TE-rraa-TE(rra)/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10

ONZE SÍLABAS:

Também conhecido como verso hendecassílabo.

As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,As armas quebrando, lançando-as ao rio,

O incenso aspiraram dos seus maracás:Medrosos das guerras que os fortes acendem,Custosos tributos ignavos lá rendem,Aos duros guerreiros sujeitos na paz.

(Canto I, terceira sextilha de “I juca pirama” de Gonçalves Dias).

As-TRI-bos-vi-ZI-nhas-sem-FOR-ças-sem-BRI(o)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11

As-AR-mas-que-BRAN-do-lan-ÇAN-doas-ao-RI(o)/1/ 2/ 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11

Oin-CEN-soas-pi-RA-ram-dos-seus-ma-ra-CÁS:/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11Me-DRO-sos-das-GUE-rras-queos-FOR-tes-a-CEN(dem)/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 /10/11Cus-TO-sos-tri-BU-tos-ig-NA-vos-LÁ-REN(dem)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10/11

OBSERVE!!! O verso decassílabo pode ser heróico ou sáfico. Em ambos oscasos é um verso marcadamente musical.

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Aos-DU-ros-gue-RREI-ros-su-JEI-tos-na-PAZ/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8/ 9 / 10 / 11

DOZE SÍLABAS:

Também conhecido como verso alexandrino, é muito comum ser encontrado napoesia da Antigüidade Clássica. Este verso normalmente é divido em duas partes iguais,cada uma nomeada hemistíquio.

Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?Passam as estações e passam as mulheres...E eu tenho amado tanto! E não conheço o Amor!

(segundo terceto do soneto “Última página” de Olavo Bilac)

car-ne-que-que-res-MAIS-co-ra-ção-que-mais-QUE(res)?/1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11 / 12pa-ssam-as-es-ta-ÇÕES-e-pa-ssam-as-mu-LHE-(res).../1 / 2 / 3 / 4/ 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11 /12eeu-te-nhoa-ma-do-TAN-toe-não-co-nhe-çooa-MOR!/ 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11 / 12

Observe que há uma divisão (chamada normalmente de cesura) bem na metadesilábica do verso. E o acento tônico recai sobre as 6ª e 12ª sílabas.

Mas o verso alexandrino comporta outra divisão: a divisão em 3 partes iguais.Neste caso a cesura se dará nas 4ª, 8ª e 12ª sílabas.

Desarquipélagos sutis linhas cartilhasDesfluviéter fluvial flutuam viasIncantochão digitação dedos ao léu

(fragmento do poema “Cantata de quinta 2” de Amador Ribeiro Neto

De-sar-qui-PÉ-la-gos-su-TIS-li-nhas-car-TI(lhas)/1/ 2 / 3 / 4 / 5/ 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11 / 12Des-flu-vi-É-ter-flu-vi-AL-flu-tu-am-Vi(as)/ 1 / 2 / 3 / 4/ 5 / 6 / 7 / 8 / 9 /10/ 11/12In-can-to-CHÃO-di-gi-ta-ÇÃO-de-dos-ao-léu/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6/ 7/ 8 / 9/ 10 / 11/12

E agora aquela pergunta que todo mundo gosta de fazer: não há versos com maisde 12 sílabas? Há. Claro que há. Basta ver a produção dos modernistas, por exemplo. Háquem diga que todo verso com mais de 12 sílabas é na verdade a junção de dois tipos deversos já exitentes. Por exemplo: o verso de 18 sílabas seria a soma de dois versos de 9

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sílabas. O verso de 13 sílabas seria a soma de um verso de 7 sílabas com um de 6 sílabas.Mas isto é discutível – e parece buscar apenas ‘regras regulares” para a versificação.

Interessa-nos, aqui, saber que há versos brancos e versos livres.Os versos brancos obedecem às regras de versificação mas não apresentam rimas.Observe estes versos de Basílio da Gama num fragmento de “O Uraguay”:

Para se dar princípio à estranha festa,Mais que Lindoya. Há muito lhe preparamTodas de brancas penas revestidasFestões de flores as gentis donzelas.

São todos versos decassílabos, mas não rimam entre si. Portanto, são versosbrancos.

Já o verso livre não obedece a regra alguma. Tanto quanto à versificação quantoà posição das sílabas fortes quanto à presença de rimas. Enfim, é um verso totalmentelivre.

Observe este fragmento do poema “Tabacaria” de Fernando Pessoa, sob oheterônimo Álvaro de Campos:

Janelas do meu quarto,Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é(E se soubessem quem é, o que saberiam?),Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Os versos aqui têm os mais variados tamanhos. Não há preocupação comrimas. Nem com acentos tônicos. A forma utilizada pelo poeta é livre de convenções daversificação.

ESTROFAÇÃO

Falamos em versos livres, versos brancos, versos regulares, mas falta-nos falarsobre os tipos de estrofe.

SUGESTÃO: Tome o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Camões, efaça a escansão de seus versos. Depois responda: que nome recebem estes versosescandidos?

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A estrofe é uma reunião de versos. Conforme o número de versos tal é o nome daestrofe. Daí depreendemos que há estrofes de todos os tamanhos. Mas para haver estrofetemos de ter no mínimo 2 versos. Um só verso não forma estrofe.

Dístico: é a estrofe de 2 versos.Terceto: é a estrofe de 3 versos.Quadra ou Quarteto: é a estrofe de 4 versos.Quinteto ou Quintilha: é a estrofe de 5 versos.Sexteto ou Sextilha: é a estrofe de 6 versos.Sétima ou Septilha: é a estrofe de 7 versos.Oitava: é a estrofe de 8 versos.Nona ou Novena: é a estrofe de 9 versos.Décima: é a estrofe de 10 versos.

Quando um poema possui uma forma fixa com dois quartetos e dois tercetosrecebe o nome de soneto. Portanto, o soneto possui 14 versos. Ao longo da história dapoesia o quarteto sempre conservou 14 versos, embora a disposição dos mesmos variasse.Desde Petrarca o soneto assumiu a forma que hoje possui.

Soneto(Álvares de Azevedo)

Oh! páginas da vida que eu amava,Rompei-vos! nunca mais! tão desgraçado!...Ardei lembranças doces do passado!Quero rir-me de tudo que eu amava!

E que doido que eu fui! como eu pensavaEm mãe, amor de irmã! em sossegadoAdormecer na vida acalentadoPelos lábios que eu tímido beijava!

Embora - é meu destino. Em treva densaDentro do peito a existência finda...Pressinto a morte na fatal doença!...

A mim a solidão da noite infinda!Possa dormir o trovador sem crença...Perdoa, minha mãe, eu te amo ainda!

ATENÇÃO!!! O soneto é a forma fixa de poesia mais conhecida. Mas mesmoassim seus quatorze versos já foram distribuídos de outras maneiras, não obede-cendo à norma de duas quadras e dois tercetos. Busque, na Internet, os sonetos deShakespeare e veja o que há de diferente neles. !

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Outra forma fixa de poesia é a dos haicais. Haicai é um terceto que totaliza 17sílabas. 5 sílabas no primeiro verso, 7 no segundo e novamente 5 no terceiro. O haicai temsua origem no Japão, e um dos seus mais significativos poetas é Bashô. No oriente ohaicai versa sempre sobre uma estação do ano e tem um tom reflexivo. Normalmente ohaicai dispensa o título. E não faz uso da rima. Tropicalizado, o haicai, na quase totalidadedos casos, faz uso da rima e dispensa a referência à natureza e a métrica. E em algunscasos, como em Guilherme de Almeida, há o uso do título. Entre nós destacam-se comohaicaístas Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Olga Savary – e na Paraíba um haicaísta derenome internacional: Saulo Mendonça.

Vejamos 3 exemplos:

“Caridade” (Guilherme de Almeida)Desfolha-se a rosa.Parece até que floresceO chão cor-de-rosa.

“Velhice” (Guilherme de Almeida)Uma folha morta.Um galho, no céu grisalho.Fecho a minha porta.

(Saulo Mendonça)

Tambaú. Uma estrela diz:“Vai, Carlos,ser” Carmen na vida.

Observe que os títulos dos haicais de Guilherme de Almeida restrigem o alcancedo poema. E o haicai deve trazer o máximo de elementos para a nossa reflexão. Leia esteshaicais sem o título e constate como ele se torna plurissêmico. Ou seja, passa a ter múltiplossentidos. No caso do haicai de Saulo Mendonça o significado abre-se num leque depossibilidades que se vale da ambigüidade do termo “estrela” (pode ser a estrela emsentido literal e a estrela enquanto uma celebridade). Há intertextualidade com o “Poemadas sete faces” de Carlos Drummond de Andrade que diz na primeira estrofe: “Vai, Carlos!/ ser gauche na vida”. E ainda faz referência ao livro “Carmen” de Prosper Mérimée e quedeu origem à ópera homônima de Georges Bizet. Além de sugerir “mulher da vida”, naacepção vulgar da expressão.

SUGESTÃO: Busque haikais de Paulo Leminski, na Internet, e veja como estepoeta tropicaliza a forma oriental deste tipo de poesia.

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Quando determinadas estrofes de um poema repetem-se formam o refrão, quetem por finalidade fixar determinadas idéias do poema e dar-lhe um colorido musical. Vejanesta seqüência da segunda parte da lira XXII estrofes 1, 2 e 3 do poema “Marília deDirceu” de Tomás Antônio Gonzaga;

Por morto, Marília,Aqui me reputo:Mil vezes escutoO som do arrastado,E duro grilhão.Mas ah! Que não treme,Não treme de sustoO meu coração!

A chave lá soaNa porta segura:Abre-se a escura,Infame masmorraDa minha prisão.Mas, ah! Que não treme,Não treme de sustoO meu coração!

Já Torres se assenta;Carrga-me o rosto;Do crime supostoCom mil artifíciosIndaga a razão.Mas ah! Que não treme,Não treme de sustoO meu coração!

Você percebeu que os três últimos versos de cada estrofe repetem-se formando orefrão. E que os versos são do tipo redondilha menor. Além do refrão este tipo de verso,por si mesmo, enfatiza o caráter oral e musical do poema. Tal constatação é importante nahora da análise do poema. Como já assinalamos, na hora da análise e interpretação dopoema temos que abarcar o que o poema diz com a forma como fiz. Desta interaçãoresulta a leitura crítica do poema em questão.

É importante ressaltar que não há UMA ÚNICA regra para a análise e interpretaçãodo poema. Cada poema traz consigo a própria gramática. É preciso considerar estasingularidade do poema. O poema é uma obra aberta, já disse Umberto Eco. É uma obrapolissêmica (= possui vários sentidos). Mas tudo que afirmarmos sobre ele tem de sercomprovado com o próprio poema. Divagações não cabem na leitura de um poema. Ocorpo do poema é o material sobre o qual nos debruçamos na hora da análise e interpretação.

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Muitas vezes, ao lermos um poema, outro poema, ou um filme, ou uma peçateatral, ou um conto, etc., nos vêm à memória. Então podemos relacionar o poema comesta outra obra? Claro que sim. E a este procedimento damos o nome deINTERTEXTUALIDADE. Ou seja, estabelecemos uma relação da obra analisada comooutra obra em questão.

Foi o que fizemos ao ler o haikai de Saulo Mendonça e ao relacioná-lo com o“Poema de sete faces” de Carlos Drummond de Andrade.

Um bom exemplo de intertextualidade encontramos nas várias versões para“Canção do exílio” de Gonçalves Dias. O poema original foi reescrito, geralmente peloviés da paródia, por Oswald de Andrade, Murilo Mendes e José Paulo Paes, entre outros.Você pode consultar na internet estas “novas” canções do exílio.

Outra coisa importante: na hora de interpretar e analisar um poema é sempre bomfazer a PARÁFRASE dele.

A paráfrase é a repetição do que o poema diz feita com nossas própriaspalavras. Mas se o poema é forma e se a mudança da forma implica a mudança de sentidodo poema, podemos contar o poema com nossas próprias palavras?

Somente com a finalidade de entendermos aquilo que o poema diz e que temosdificuldades em entendê-la, quer pelo fato de o poeta ter sido escrito em épocas históriasanteriores a nossa e assim usar uma terminologia que nos é estranha, quer por valer-se defiguras de linguagem que nos são obscuras às primeiras leituras.

Vale a pena parar e “redizer” o poema com nossas palavras para, a seguir, voltarà forma original do poema e proceder à interpretação e análise.

Então podemos dizer que a paráfrase “mata” o poema, mas é preciso “matá-lo”para que possamos entender o que ele diz grosso modo.

Feita a paráfrase, vamos proceder ao levantamento dos elementos estruturais dopoema como escansão das sílabas poéticas, figuras de linguagem, tipos de rimas, etc.

RIMÁRIO

Rimário é o conjunto de rimas. Vamos estudar seus tipos principais.A rima pode ser consoante ou toante.A rima consoante é aquela que faz rimar vogais e consoantes de uma palavra,

podendo vir a formar uma sílaba. Veja este exemplo extraído do poema “As cismas”, deAugusto dos Anjos:

Recife. Ponte Buarque de MacEDO.Eu, indo em direção à casa do AGRA,Assombrado com a minha sombra mAGRA,Pensava no /Destino, e tinha mEDO!Portanto, às rimas [edo] e [agra] chamamos rimas consoantes.

SUGESTÃO: Cite dois poemas ou duas letras de música que tenham refrão. Res-ponda depois: qual a função do refrão nestes poemas ou nestas letras?

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As rimas toantes são aquelas em que apenas as vogais tônicas rimam entre si. Nãohá a presença de consoantes. João Cabral de Melo Neto é um expert no uso da rimatoante.

Mas veja neste fragmento do poema “Novo Éden” de Sousândrade:

Fundo silêncio estava dia e nOiteNa sombria mansão: de longe em lOnge,Como rasgam-se as brisas açoitAdasPor vergônteas, manhãs d’ esto, etérea Aura

Você percebeu que apenas as vogais tônicas rimam entre si: o [o] tônico de nOitee lOnge e o [a] tônico de açoitAdas e Aura.

As rimas podem ser externas e internas. A rima externa é aquela que ocorre nofinal de diferentes versos. É o caso do fragmento citado do poema “As cismas” de Augustodos Anjos: [edo] e [agra] são rimas externas.

Mas pode haver o caso de uma rima entre uma palavra final de um verso e outrapalavra no interior de outro verso. Veja este fragmento do poema “David Byrne” deAmador Ribeiro Neto:

As mãos da cigana trocam dedos no teclado da internetUm saco forget de soja na esquinaGatinhos leblonzeados no primeiroDe janeiro mimos na TVEm apa epa ipa opa upaGarupa neguinho da Portela

Você notou que não há rimas externas entre [internet], [esquina], [primeiro], [TV],[upa] e [Portela]. Mas há rimas entre a palavra final de um verso e uma palavra interna doverso seguinte. Veja que [internet] rima com [forget]; [primeiro] com [janeiro]; [upa] com[garupa].

Este tipo de rima traça um entrelaçamento entre os versos que deve ser consideradona leitura crítica de um poema.

Aproveite para constatar que não há uma simetria entre o número de sílabas decada verso. E que há intertextualidade do penúltimo verso com o verso final do poema“Contemplando as coisas do mundo desde o seu retiro”, de Gregório de Matos. Além de“neguinho da Portela” remeter a “Neguinho da Beija-flor”, o célebre sambista e com amúsica “Upa neguinho”, de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, imortalizada pela voz deElis Regina.

COMPLEMENTAÇÃO: busque ouvir a canção “Upa neguinho” na interpreta-ção de impecável de Elis Regina.

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Agora que você já sabe o que são rimas toantes, consoantes, externas einternas, vejamos como se apresentam as rimas externas. Elas podem seremparelhadas, interpolas, cruzadas e misturadas.

As rimas emparelhadas, como o próprio nome diz, andam “de parelha’, ouseja, juntas. As interpoladas, também como o próprio nome diz, ficam nos pólos.Consideremos a estrofe inicial do soneto “Cheiro de espádua” de Alberto de Oliveira;

Quando a valsa acabou, veio à janELA. rima ASentou-se. O leque abriu. Sorria e arfAVA. rima BEu, viração da noite, a essa hora entrAVA rima BE estaquei, vendo-a decotada e bELA. rima A

Vamos atribuir uma letra do alfabeto a cada tipo de rima. [ela] de janela e belaé do tipo “A” e [ava] de arfava e entrava é do tipo “B”.

As rimas “A” são interpoladas. As rimas “B” são emparelhadas.

Considere agora os dois tercetos de “À cidade da Bahia” de Gregório deMatos:

Deste em dar tanto açúcar excelENTE rima APelas drogas inúteis, que abelhUDA rima BSimples aceitas do sagaz BrichOTE. rima C

Oh se quisera Deus, que de repENTE rima AUm dia amanheceras tão sisUDA rima BQue fora de algodão o teu capOTE! rima C

As rimas ABCABC recebem o nome de rimas cruzadas (ou alternadas).Quando as rimas obedecem a outros esquemas, diferentes dos apresentados,

recebem o nome de rimas misturadas.

Veja agora o poema “falta água e falta” de Amador Ribeiro Neto:

falta água e faltaágua tens e não tensos surfistas de S. Miguel Paulistaquebram ondas nos tetos dos trens

Há rimas nos versos 2 e 4: tENS e trENS. Mas os versos 1 e 3 não têmrimas: falta e Paulista. Neste caso os versos sem rima recebem o nome de rima perdidaou rima órfã.

Outra coisa: quando a rima é formada por uma palavra oxítona recebe o nomede rima aguda. Rimas formadas por palavras paroxítonas recebem o nome de graves.Rimas esdrúxulas formadas por palavras proparoxítonas.

Veja este fragmento de poema “Evoé” de Pedro Kilkerry:

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Primavera! – versos, vINHOS... rima ANós, primaveras em flOR. rima BE ai! Corações, cavaquINHOS. rima ACom quatro cordas de AmOR! rima B

As rimas “A” são formadas por palavras paroxítonas e recebem o nome derimas graves: VInhos, cavaQUInhos.

As rimas “B” são formadas por palavras oxítonas e recebem o nome de rimasagudas: FLOR, aMOR.

Veja agora os versos 11 e 14 do soneto “A idéia” de Augusto dos Anjos:

(...)Tísica, tênue, mínima, raquÍTICA...(...)No molambo da língua paralÍTICA!

As palavras rimadas são proparoxítonas: raQUÍticas, paraLÍticas. Esta rimarecebe o nome de esdrúxula.

Há ainda dois tipos de rima: a rima rica e a rima pobre. Estes dois tiposobedecem a duas variantes: classe de palavras e sons.

Se se rimam palavras da mesma classe gramatical a rima recebe o nome derima pobre. Por exemplo; rimar substantivo com substantivo, adjetivo com adjetivo,etc.

Se se rimam palavras de classe gramatical diversa a rima recebe o nome derima rica. Exemplo: substantivo e adjetivo; verbo e substantivo, etc.

Considere a primeira quadra do soneto “Budismo moderno” de Augusto dosAnjos:

Tome, Dr., esta tesoura, e... cORTE rima AMinha singularíssima pessOA. rima BQue importa a mim que a bicharia rOA rima BTodo o meu coração, depois da mORTE? rima A

As rimas “A” e “B” são rimas ricas porque fazem rimar um verbo com umsubstantivo: corte (verbo) e morte (substantivo); pessoa (substantivo) e roa (verbo).

Confira agora a seguinte quadra do poema “Minha desgraça” de Álvares deAzevedo:

COMPLEMENTAÇÃO: busque na Internet o poema “Budismo moderno”musicado por Arnaldo Antunes. Se você tem a obra do Arnaldo, esta faixa está nodisco “Ninguém”.

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Minha desgraça, não, não é ser poETA, rima ANem na terra de amor não ter um ECO. rima BE meu anjo de Deus, o meu planETA rima ATratar-me como trata-se um bonECO... rima B

As rimas do tipo “A” e “B” são constituídas por palavras da mesma classegramatical: poeta e planeta são substantivos; eco e boneco também são substantivos.Portanto estas rimas são chamadas rimas pobres.

Mas há ainda outro critério para a classificação das rimas ricas e pobres: é pelosom. E deve-se considerar a posição da vogal tônica.

Na rima pobre as letras a partir da vogal tônica são as mesmas.Na rima rica a identificação inicia-se antes da vogal tônica.Veja neste exemplo da segunda quadra do soneto “Antífona” de Cruz e Sousa:

Formas do Amor, constelarmente pURAS, rima Ade Virgens e de Santos vapoROSAS... rima BBrilhos errantes, mádidas frescURAS rima Ae dolência de lírios e de ROSAS... rima B

As rimas “A” rimam a partir da vogal tônica; portanto são rimas pobres.As rimas “B” rimam a incorporando a consoante /r/ que vem antes da vogal tônica;

portanto trata-se de uma rima rica.

Leia atentamente o poema abaixo:

Sete anos de pastor Jacó servia(Camões)

Sete anos de pastor Jacó serviaLabão, pai de Raquel, serrana e bela;Mas não servia ao pai, servia a ela,E a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,Passava, contentando-se com vê-la;Porém o pai, usando de cautela,Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganosLhe fora assim negada a sua pastora,Como se a não tivera merecida,

Começa de servir outros sete anos,Dizendo: - Mais servira, se não foraPara tão longo amor tão curta a vida!

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OUTROS CONCEITOS USUAIS NA ABORDAGEM DO POEMA

ENJAMBEMENT: quando um verso continua no seguinte, sintática, semântica eritmicamente, ele recebe o nome de enjambement ou encadeamento ou cavalgamento.Este tipo de verso transmite a idéia de continuidade, de envolvimento, de seqüência.

Por exemplo, os dois versos iniciais do canto IV do poema “Minh’ alma é triste”de Casimiro de Abreu:

Minh’alma é triste como o grito agudoDas arapongas no sertão deserto.

Observe que é “o grito agudo” continua no verso seguinte: “das arapongas...”

AMBIGÜIDADE: é uma das características fundamentais da poesia, pois ela abreo poema para a polissemia.

POLISSEMIA: vários sentidos que um poema, um verso ou uma palavra podemter.

ANÁFORA: repetição de um termo no início, no meio ou no fim de mais de 2versos.

Por exemplo a primeira estrofe do soneto “Pintura admirável de uma beleza”:

Vês esse Sol de luzes coroado?Em pérolas a Aurora convertida?Vês a Lua de estrelas guarnecida?Vês o Céu de Planetas adornado?

Há a repetição do vocábulo “Vês”, na mesma posição inicial dos versos 1, 3 e 4.

SUGESTÃO:Lido o soneto, faça a paráfrase dele.Por que dizemos que este poema é um soneto?Em seguida faça a escansão dos versos do soneto.Como se chama o verso com o número de sílabas poéticas deste soneto?As rimas do soneto são consoantes ou toantes?Há rimas internas neste soneto?Há rimas ricas e rimas pobres no soneto?Predominantemente as rimas são agudas, graves ou esdrúxulas?Classifique as rimas das duas quadras do soneto de acordo com o esquema A-B-C-D...etc. Quais são as rimas interpoladas e emparelhadas das duas quadrasacima?Este soneto permite uma leitura intertextual com outro texto? Que texto é esse?

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A este recurso chamamos anáfora.

CESURA: pausa. Ela ocorre no verso depois da sílaba acentuada. Já vimos queum dos tipos de cesura é a que divide o verso alexandrino em dois hemistíquios. Considereum verso do poema “Amor” de Cruz e Sousa:

Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Um-sol-den-tro-de-TU-doal-ti-va-men-tei-MER(so)/1/ 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 /9 / 10 / 11 / 12

ELEMENTOS FORMAIS: todo o conjunto estrutural do poema. Inclui asescansões, os tipos de rima, as estrofações, as figuras de linguagem, a intertextualidade, ametalinguagem, etc.

METALINGUAGEM: é a linguagem falando da própria linguagem. É quando umpoema fala do próprio poema. Ou fala da linguagem do poema. O exemplo mais conhecidode metalinguagem é o dicionário, porque ali as palavras são usadas para explicar as própriaspalavras.

Exemplo de soneto metalingüístico é “Língua portuguesa” de Olavo Bilac:

Última flor do Lácio, inculta e bela,És, a um tempo, esplendor e sepultura:Ouro nativo, que na ganga impuraA bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.Tuba de alto clangor, lira singela,Que tens o trom e o silvo da procela,E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aromaDe virgens selvas e de oceano largo!Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!’,E em que Camões chorou, no exílio amargo,O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Você notou que para falar da língua portuguesa o poeta usou a própria língua,falando desde suas origens no Lácio, passando por Camões e chegando aos dias atuais.

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O poema “Catar feijão”, de João Cabral de Melo Neto, em que o poeta comparacatar feijão com escrever, é todo metalingüístico. Veja:

Catar feijão se limita com escrever:jogam-se os grãos na água do alguidare as palavras na da folha de papel;e depois, joga-se fora o que boiar.Certo, toda palavra boiará no papel,água congelada, por chumbo seu verbo:pois para catar esse feijão, soprar nele.e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.Ora, nesse catar feijão entra um risco:o de que entre os grãos pesados entreum grão qualquer, pedra ou indigesto,um grão imastigável, de quebrar dente.Certo não quanto ao catar palavras:a pedra dá à frase seu grão mais vivo:obstrui a leitura fluviante, flutual,açula a atenção, isca-a com o risco.

A Poesia Concreta foi lançada oficialmente em 4 de dezembro de 1956, numa

COMPLEMENTAÇÃO: É muito comum encontrarmos um poema falando domodo de fazer poema. Assim como é comum você assistir a um filme que tem outrofilme dentro dele, como é o caso de “A rosa púrpura do Cairo”, de Wood Allen. Namúsica popular é muito comum ouvirmos um samba falando de samba, ou um rapfalando de rap. A tudo isto damos o nome de metalinguagem.

ATENÇÃO!!! O livro “Poesia na sala de aula”, de Antonio Candido, que vocêencontra na biblioteca de sua cidade, traz interpretação e análise de poemas. Vale apena ser lido. !

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exposição realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Os idealizadores da mos-tra foram Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, juntamente comRonaldo Azeredo, Wladimir Dias Pino e Ferreira Gullar.

Em 1957 a exposição se transfere para o Rio de Janeiro e repercute mais que emSão Paulo. Talvez devido ao fato de o Jornal do Brasil, através de seu suplementoliterário semanal, vir publicando, desde o ano anterior, colaborações dos poetas concre-tos. Mas no Rio a coisa foi pra valer. Uma das manchetes da revista O Cruzeiro, falandodos concretos, ficou famosa: “O rock’n’roll da poesia”. Detalhe: Little Richard explodianas rádios com Tutti frutti. Elvis Presley, com Heartbreak hotel. Tinha início um outrotempo.

Assim, ao som do rock (e da Bossa Nova), a Poesia Concreta nasce no Brasil eganha o mundo. Com o advento da cibercultura e das infolinguagens, ela amplia seu veícu-lo de propagação e criação. A infopoesia de nossos dias, que pipoca internacionalmentequase ao mesmo tempo, deve os créditos de origem e desenvolvimento às teorias e prá-ticas da Poesia Concreta.

Para os poetas concretos interessava usar o espaço em branco da página tirandodele o maior proveito possível. Por isto cada poema devia ser lido incorporando tambémo espaço físico da página. As palavras agora são distribuídas de forma inovadora na folhaem branco. Não há mais verso, no sentido tradicional do termo. A sintaxe também éviolentada: as palavras, na maioria das vezes, substantivos, dão o seu recado pela dispo-sição gráfica na folha. Condensação poética passa a ser a palavra de ordem. Os verbossão renegados. O uso dos pronomes também é excluído. Busca-se agora a essência dapalavra. A palavra por si, na sua materialidade.

Isto, na época, gera uma polêmica acirrada. Até hoje, mais de cinco décadas de-pois, há séria resistência aos avanços de linguagem que a Poesia Concreta nos trouxe. Eao up-grade que ele promoveu na produção poética nacional e internacional.No entanto, dentro da nossa música popular Arnaldo Antunes, Chico César, CaetanoVeloso, Gilberto Gil, Otto, Lenine, Zeca Baleiro, Karnak, entre outros, valem-se de pro-cedimentos da Poesia Concreta. Dentro da poesia brasileira contemporânea poetas comoRicardo Aleixo, Frederico Barbosa, Antônio Risério, Paulo de Toledo, Glauco Mattoso,Sebastião Uchoa Leite, entre tantos outros, pagam tributo à Poesia Concreta.

No entanto:

1. A Poesia Concreta é acusada de não considerar a subjetividade, quando de fatoapenas combate o subjetivismo enquanto expressão de um Eu que se dá o direito de falarexclusivamente com o coração, numa verborragia anacrônica. A Poesia Concreta querum poema feito com sentimento, sim, mas sentimento + consciência. Consciência do quê?De linguagem. Consciência da materialidade dos signos verbais e não-verbais. Ela enfatizaa concisão, a condensação, o rigor. O poeta agora pensa e sente ao mesmo tempo,

UNIDADE IIPOESIA CONCRETA

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rigorosamente.

2. O poema é repudiado por ser uma “coisa”. Ora, se por “coisa” quer afirmar-sea materialidade sígnica, tudo bem. O poema concreto se reivindica como “poema-objeto”,sim. Ou seja, como poema que se basta, como poema que se realiza na sua construção,no seu modo de fazer. Jamais o poema concreto se define como um poema sobre algo,um poema que manda um recado, uma mensagem. Mensagem, recado, reflexão são objetosda Filosofia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Religião, etc. Ou seja, das ciências eteologias que refletem sobre algo que é mais importante do que a forma de dizê-lo. JulioCortázar, em célebre conferência proferida em Cuba, afirmou que não há temas bons oumaus em literatura, já que na arte da palavra o que importa é o tratamento de linguagemque se dispensa a tais temas. E diz mais: relata sua angústia toda vez que uma pessoaamiga vem lhe trazer “um bom tema” para um texto. Para Cortázar uma pedra sobre apalma da mão pode render um excelente produto literário.

3. A Poesia Concreta incomoda por valorizar excessivamente a Forma. Ora, paraos concretos o que conta é o MODO de fazer poesia, já que na Poesia Concreta (e emtoda grande arte) a Forma é que informa. Sem forma não há poesia. Com o advento daPoesia Concreta todo poeta (seja neoconcreto, pós concreto ou não concreto) assume aresponsabilidade poética de conhecer a História Universal da Poesia antes de começar aescrever. E ao começá-lo, deve fazê-lo com precisão. Ou seja: com conhecimento semióticodo material utilizado: a palavra, o espaço em branco da página, as fontes tipográficas, asdimensões do objeto (página de papel; tela de computador, de vídeo, de cinema; placahologramática; escultura em diferentes materiais; etc.), as possibilidades advindas dosneologismos, do plurilingüismo, das construções substantivas; etc.

A Poesia Concreta incomodou (e incomoda) os letrados porque ela não se restringeao objeto literário pura e simplesmente. Ela junta objetos sonoros, táteis, cinéticos, plásticos,virtuais, visuais, num mesmo e antropofágico caldeirão ampliando os limites da Poética.Resultado: a Poesia Concreta chegou aos outdoors, às revistas de consumo popular, àtelevisão, ao rádio, à pintura, ao teatro, à música erudito-contemprânea, ao design, àescultura, à cerâmica, ao vídeo, à música popular, ao cinema, à moda, à arquitetura, àfotografia, às histórias em quadrinhos, aos shows musicais, aos sambódromos, etc. e tal.Enfim, a Modernidade nasceu com o Simbolismo francês; o Modernismo quem nos trouxefoi a semana de 22; mas a Pós-Modernidade ecoa diretamente Concretismo, movimentoestético-poético que, trabalhando a palavra, foi além da palavra para melhor possuí-la.

A palavra sob a dimensão de objeto cobra um novo modo de Ler e Ver. Ummodo que misture, por exemplo, estes dois verbos, como sugere Décio Pignatari, criandoum novo verbo receptivo-crítico: o verbo VLER. Para vler, os olhos devem girar tal qualos movimentos de uma câmera cinevideográfica, recortando e montando significados queincorporem o espaço de fundo do poema (o branco da folha de papel, a tridimensionalidadeda escultura) às formas da linguagem utilizada pelo poeta.

A arte literária, desde fins do século 19, libertou-se de uma militância engajadacom quaisquer tipos de temas. No Brasil, nos anos 70, Cacá Diegues brada com veemênciacontra as “patrulhas ideológicas” e Caetano compõe “Odara”. Ambos são muito malhadospela esquerda e pela direita. Hoje, trinta anos depois, constata-se que os dois tinhamrazão e que atuaram como “antenas da raça” antecipando-nos novas realidades.

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A Poesia Concreta veio abrir campos e espaços. E o fez. E o faz. Neste novomilênio que vivemos priorizam-se os investimentos em conhecimento e cultura. Terrenopropício não somente à Poesia Concreta, mas à Ciberliteratura, à Infopoesia, à Ciberpoesia.

Tomemos o poema concreto chamado “cidade”, um dos mais significativos poemasbrasileiros, escrito em 1963, aqui transcrito desobedecendo à forma original devido àslimitações da página. O poema é composto por apenas três versos. Um terceto, digamosassim. Só que com um grande diferencial: enquanto o primeiro verso é formado por umamontoado de sílabas “sem pé nem cabeça”, e que finalizam com a palavra “cidade”, osegundo verso é constituído apenas pela palavra “city” e o terceiro, “cité”.

Como o título do poema é “cidade” e esta palavra aparece em três línguas, não énada mal supor, pela trovoada de sons sem sentido que povoam o primeiro verso, queestamos num mundo atormentado por imensurável poluição sonora. Daí, as três cidadesseriam três metrópoles. S. Paulo, Nova Iorque e Paris.

O poema não cabe numa página de livro convencional. Nem em duas. Nem emtrês. Talvez em quatro. No livro “Viva Vaia” (S. Paulo: Ateliê Editorial) ele estende-senuma tira de mais ou menos 62 cm. Transcrevo o poema, pedindo ao leitor que imagine-o estirado na longa tira a fim que não se perca tanto do seu sentido original:

“atrocapacaustiduplielastifeliferofugahistoriloqualubrimendimultipliorganiperiodiplastipublirapareciprorustisagasimplitenaveloveravivaunivoracidade / city / cité”.

Se você me disser que não entendeu nada ou entendeu muito pouco, de imediatoposso até concordar. Mas uma leitura mais atenta vai nos revelar que o poema é compostode partes de palavras (seus radicais) aos quais são acrescidos a palavra cidade. Destafeita tem-se a chave de leitura: atrocidade, capacidade, causticidade, elasticidade,felicidade... e por aí afora. Todas palavras do universo de uma cidade. Então, ao aparenteruído sem significado do primeiro verso contrapomos uma leitura de significados plenamenteelaborados.

Voltando ao poema agora como está, com mais atenção percebemos que as palavrasaparecem em ordem alfabética: Atrocidade, Capacidade, Causticidade, Duplicidade,Elasticidade, etc. Mas o que tem isto a ver com cidade? Talvez remeta-nos ao planejamentourbano das cidades modernas. Todavia, nova leitura mais atenta revelará que ao final háum desvio da organização alfabética: ... ... Tenacidade, Veracidade, Vivacidade, Unicidade,Voracidade. A vogal “U” vem depois da consoante “V”. Seria cochilo do poeta? Quernos parecer que um poema que se revela até agora tão cerebral não escorregaria numabobagem destas. Talvez o poeta esteja fazendo referência aos “furos” que todoplanejamento urbano tem. Por fim todos os radicais podem ser associados a “city” e

SUGESTÃO: Procure ouvir a música “Odara” de Caetano Veloso e assitir a algumdos filmes de Cacá Diegues da década de 70: “Quando o carnaval chegar” , “Joana,a francesa”, “Xica da Silva”; “Chuvas de verão”. Você entrará em contato com apoesia da canção e o cinema poesia. Vale a pena pensar a poesia em relação aoutros códigos.

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“cité” tornando o poema trilíngüe. Sem dúvida um dos grandes poemas da literaturabrasileira.

Veja neste poema de José Lino Grünewald:1

2 2

3 3 3

4 4 4 4

c i n c o

Este poema brinca com a relação entre os signos numéricos e os alfabéticos. Acompreensão deste poema fica melhor quando a comparamos com sua tradução para oinglês:

1

2 2

3 3 3

f o u r

Há uma concisão absoluta dos signos presentes no poema, chegando a formar umaequação matemático-gramatical.

Observe o poema “Beba Coca-Cola” de Décio Pignatari. O poeta vale-se do slogando refrigerante para desconstruí-lo através de fina ironia:

beba coca colababe colabeba cocababe cola cacocacocola

cloaca

COMPLEMENTAÇÃO: Ouça a versão musical deste poema feita por Cid Cam-pos no cedê “Poesia é risco”, de Augusto de Campos e Cid Campos.

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Atente para o poema concreto de Haroldo de Campos, que faz com palavras oque Mondrian faz na pintura: concisão vocabular dialogando com a concisão geométrico-pictórica do pintor. Preste atenção na repetição vocabular e veja as cores (e a ausênciadelas através do verbo estancar) formando um quadro abstrato.

branco branco branco brancovermelhoestanco vermelho

espelho vermelho

estanco branco

Considere agora o poema “Velocidade” de Ronaldo Azeredo. Podemos dividir opoema em duas partes com uma linha diagonal que formará dois triângulos. Um só com aletra “V” e outro com as letras que formam a palavra “velocidade”. Conforme você“acelere” ou “desacelere” sua leitura, o poema funciona como um acelerador oudesacelerador. Mas sempre com a idéia de velocidade.

V V V V V V V V V VV V V V V V V V V EV V V V V V V V E LV V V V V V V E L OV V V V V V E L O CV V V V V E L O C IV V V V E L O C I DV V V E L O C I D AV V E L O C I D A DV E L O C I D A D E

COMPLEMENTAÇÃO: Este poema foi musicado por Gilberto Mendes no cedê“Surf, boa na rede, um pente de Istambul e a música de Gilberto Mendes” com otítulo de “Motet em ré menor (Beba Coca-Cola)”. Divirta-se com a interpretaçãoque associa humor e ironia.

SUGESTÃO:a) procure na Internet poemas de Augusto de Campos, Haroldo de Campos

e Décio Pignatari.b) Comente com colegas e amigos.c) Elenque as características fundamentais da Poesia Concreta.d) Estabeleça relações entre as características da Poesia Concreta e a poesia

convencional, estudada na Primeira Unidade de nosso curso.

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O crítico russo Iúri Lotman observa que “a cultura tem por vocação analisar edissipar os temores”. O temor de cientificização e tecnização da cultura é uma idéia bemantiga, quase mitológica. Máquinas inumanas, seres autônomos, automatização da vida,etc., encerram uma metáfora: a perda do controle do homem sobre si mesmo e sobre omundo.

A desinformação cultural pode levar o homem comum a ter medo dastransformações técnicas e científicas de seu tempo. Mas para o produtor de artes e delinguagens não há desculpas: ele tem como dever de seu trabalho questionar/provocar otempo e o espaço enquanto direções (outras) da vida cultural contemporânea.

Parece fácil, mas entender o próprio tempo é o desafio que a maior parte dosartistas e dos críticos de arte não consegue encarar de frente. Acomodados em modelosestabelecidos, os conservadores vivem em um mundo anacrônico. Pior: muitas vezesimpedem que a vida cultural prossiga com sua narrativa feita de pausas, retrocessos esaltos qualitativos.

Para a teoria da comunicação, nivelamento opõe-se à interação crítico-criativa.Quando há nivelamento, há a aproximação dos semelhantes e dos idênticos. Sem conflitos.Ou seja, sem operar inovações. Impera a redundância, a estandartização, a mesmice.

Isso pode ser útil para a comunicação mais imediata, como uma informaçãoobjetiva, mas não vale para a poesia.

Por isto mesmo o homem de jornal não é, a priori, um homem das artes. Ojornalista é um profissional preocupado com a eficácia imediata da comunicação. Seutrabalho tem como alvo o público amplo, geral e irrestrito, e como fim, a comunicaçãodireta.

As manchetes jornalísticas não nos desmentem. Mas pode-se objetar que elassão lidas por mais de 100% dos leitores de jornal. Sim, é fato. Mas elas não funcionamapenas como atrativo sedutor: constroem paradigmas de texto e de pensamentos que sepautam pela funcionalidade imediata da linguagem.

A poesia relaciona-se com o tempo numa outra clave: instiga a reflexão inovadoraatravés de um objeto que não se entrega - nem à primeira vista e nem em tempo algum -integralmente. À primeira vista ele seduz, e depois revela-se apenas parcialmente, detempos em tempos, conforme amplia-se o repertório de seu receptor. Esta é uma dasrazões pela qual a poeisa, sendo transtemporal, permanece instigante e atual.

UNIDADE IIITECNOLOGIA, CIBERPOESIA, CRÍTICA EPOEMAS MUSICADOS

PENSE NISTO: O campo da poesia é o da busca da especificidade das lingua-gens. Quanto mais uma linguagem se torna singular, diferente, nova, tanto melhorpara todas as outras linguagens.

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Resultado: há poetas aplicados na prolixidade e jornalistas alimentando-se doimediatamente descartável. Inevitavelmente formam-se dois grandes grupos de pensamento:um alicerçado na verticalidade (o dos poetas) e outro flutuando na superfície (o doscomunicólogos).

Outra dificuldade no contato com a máquina reside na resistência que lheimpingimos. É que o papel que atribuímos às máquinas está influenciado, atéinconscientemente, pela imagem das máquinas conhecidas. “A concepção mecânica damáquina, que remonta à cultura do século XVII, permanece na consciência do homemcivilizado dos nossos dias, travando o desenvolvimento das técnicas e a evolução geral dacultura”, pontua Lotman.

Para o crítico russo, a influência da técnica sobre a arte não apresenta interesse,enquanto que o impacto da poesia – e da arte, no geral - sobre a técnica, este sim, é queconta.

A poesia, através de sua linguagem, sempre inovadora e desafiadora das estruturaspré-estabelecidas de todos os stabilishments, reflete o ponto a que o homem chegou nopresente. Mas como esta apreensão não se rende às apreensões e raciocínios imediatistas,o trabalho da arte, via de regra, acaba sendo percebido tempos e tempos depois. OBarroco, mais que uma expressão isolada de um ou outro artista, ou seja, enquantocaracterística estética de um período, só foi percebido como arte nada menos que trêsséculos depois de seu aparecimento. E até hoje vivemos lendo/relendo o Barroco. Umdos mais belos estudos sobre o barroco encontramos em Giles Deleuze, filósofo francêscontemporâneo.

Os progressos do intelecto artificial ainda engatinham. Não é novidade. Interessanteé a razão deste patinamento. Para Lotman, empregamos “funções intelectuais relativamenteprimitivas com as quais se espera construir um todo pensante, como se constrói uma casade tijolos”. Ora, o conceito de atividade intelectual repousa, muitas vezes, na certeza deque o modo de pensar racional e lógico do homem é a medida e o modelo do universo.Esta é uma lógica da ilógica. No mundo contemporâneo, a lógica que conta é a lógica daanalógica. A analógica da poesia.

E neste contexto surge hoje a ciberliteratura, a infopoesia, a ciberpoesia. É aprodução que se vale dos recursos da informática, da internáutica. O advento docomputador trouxe novos modos de produção e consumo de poesia (e de arte, no geral).

O novo suporte pede novas leituras. Um poema escrito em computador, usandoos recursos da cibernética, pede um novo olhar, uma nova postura, um novo enfoque deleitura.

ATENÇÃO!!! Cada linguagem tem sua especificidade e seu raio de alcance. Eeste modo da linguagem molda o pensamento do produtor de linguagem.

SUGESTÃO: Comente a seguinte afirmação, completando-a com exemplos: “Apoeisa é o ponto máximo de sofisticação de tudo aquilo que o homem criou”.

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Por isto mesmo, a poesia hoje, além do papel como suporte, tem na tela docomputador um novo aliado. Não se discute se o computador vem ocupar o lugar dopapel. Isto não vem ao caso – embora o livro deva permanecer como é mesmo diante dasmais revolucionárias tecnologias.

A informática, a internáutica, a cibercultura vêm somar ao que já existe. Nãoprecisamos falar em exclusão. A bem da verdade, o que mais se busca hoje é inclusão.Inclusive inclusão digital.

Agora que você já foi introduzido nas teias do poema, vale a pena refletir sobre opapel do crítico (de poesia ou de artes, no geral).

O livro “ABC da Literatura” de Ezra Pound, que já conhecemos foi escrito numalinguagem direta e clara. Parece uma conversa. Aborda temas espinhosos com delicadeza.O que é literatura? Qual a utilidade da linguagem? O que caracteriza a poesia? Qual aruptura da literatura? Como procede um crítico? Que autores formam um cânone?

Além de trazer uma mini-antologia que abarca Homero, Safo, Confúcio, Catulo,Ovídio, Arnaut Daniel, Dante Alighieri, Shakespeare, John Donne, Rimbaud, Jules Laforgue.Enfim, um livro de cabeceira para os amantes da literatura.

Este livro está incluído na bibliografia mínima de nossa disciplina e disponível nabiblioteca da sua cidade.

Vamos tomar o conceito de mau crítico segundo Pound. É aquele que, antes demais nada, fala da biografia do autor ao invés de abordar a obra. Só com esta afirmaçãoPound já derruba mais da metade dos ditos críticos. É inadmissível como um númeroaltamente expressivo tece loas e boas para a vida do autor e “esquece” a obra. Claro quenão “esquece”: ele exila a obra, não sabe como abordá-la. Daí se refugia no biografismo.

Outra: o mau crítico é aquele que chama a atenção para a literatura de terceiroescalão. É o tal do igrejismo. O dito crítico incensa a arraia-miúda por interesses escusosà literatura. Quer projetar-se através destes que “critica”. Geralmente é um jogo de troca-troca: eu falo bem de você e você fala bem de mim. E estamos conversados. Daí aproliferação de zil livros que nada acrescentam ao mundo da literatura. São fricotes.

Mas tem mais: o mau crítico é aquele que chama a atenção para os seus própriosescritos, desprezando o objeto a ser analisado. Na verdade este “crítico” sente necessidadenarcísica de projetar-se, já que outros o ignoram.

Outro aspecto muito abordado no estudo da poesia reside na função social dapoesia. Será que a poesia teria uma função social ou seria mero entretenimento? Podeparecer uma falsa questão, mas consideremos o seguinte.

ATENÇÃO!!! A infopoesia ou ciberpoesia abarca a produção que se vale denovos suportes, surgidos com o advento da Informática e Computação.

PENSE NISTO: O crítico tem o dever de esclarecer a obra para o público eorientar o artista. O bom crítico faz uma escolha. Sua escolha já denota a qualidadede seu trabalho. E opina diretamente sobre a obra. Revela a obra. Revela (novos)autores.

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A poesia pode propor-se um projeto social definido. Como já fez nos inícios deseus tempos: tinha o propósito claro de invocar bons espíritos, curar doenças, expulsarespíritos indesejáveis, acalmar ânimos, trazer amantes, etc. e tal. Mais ou menos é a funçãoque hoje cabe aos curandeiros e jogadores de cartas, entre outros. As primitivas formasda poesia tinham esta função mística e mítica. E mais: estas poesias contavam histórias,tinham enredo, teciam narrativas. Tudo voltado para as práticas religiosas. Portanto, noinício, poesia e religião andavam de mãos dadas.

Depois a poesia começou a ensinar coisas práticas: normas de agricultura, pecuária,construção de casas. Modos de viver bem eram passadas através dos versos. Nestemomento a poesia encontra na filosofia, na moral, na ética, uma razão de ser.

Os tempos passam. Alguns poetas continuam emprestando à poesia uma funçãosocial determinada. Isto é interessante: a poesia nunca sobreviveu desta função social.Basta ver que mudou o mundo, mudaram seus valores, mas a poesia (a grande poesia,não importa de que época) continua com o mesmo vigor.

Pouco importa que não se crie gado, que não se dê mais crédito a palavras mágicasna condução das crises das doenças, que a arquitetura contemporânea nada tenha a vercom aquela do século XII. A grande poesia de todo este tempo, de todos estes feitos,continua viva e forte. Poucos são os que acreditam no céu, inferno e purgatório. Maspoucos são os que não se comovem ainda com os impecáveis versos de Dante Alighieri.A expedição de Vasco da Gama nada tem a ensinar aos desbravadores dos mares de hoje– mas “Os Lusíadas” continuam um grande livro de poema épico. O mesmo vale para agrande viagem marítima de Ulisses na “Odisséia” ou as guerras infindáveis da “Ilíada”.

O tema da “Divina Comédia” e das obras “com função social” podem ser abordadosna prosa. Isto não está em questão. O fato é que na grande poesia os temas são suportepara a forma poética. Não interessam as causas dos poetas – se eles defendem ou atacamuma idéia socialmente aceita ou condenada. Interessa é o trabalho com a linguagem dapoesia que só o poeta sabe operar. Quando o tema é maior que a poesia, a poesia ficadatada, morre no instante em que aquela circunstância histórica é superada. A grandepoesia, isto é, a poesia que vale a pena – ou seja, a poesia que é poesia – sobrevive àsquestões que envolvem o poeta.

POEMAS MUSICADOS

Ao longo de nossos estudos recomendamos que alguns poemas fossemouvidos na forma de canção. Poesia e letra de música sempre estiveram interligadas.Mas suscitam uma breve reflexão.

Musicar poemas não é nada simples. Mas, quem disse que o simples é fácil?Erasmo Carlos, cancionista de mão cheia, vai na mosca: “se o simples fosse fácil,teríamos milhões de ‘Parabéns a você’. No entanto temos um só ”.

RELEMBRANDO: O engajamento da poesia é com a forma. A forma é a gran-de propriedade do poeta. Sem forma não há poesia. E o poeta Maiakovski disse:“Não há arte revolucionária sem forma revolucionária”.

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É isso aí: musicar poemas não é simples nem fácil. Isto porque o resultadodeve manter a essência do poema e ainda revertê-lo numa canção, ou seja, em algoque, uma vez cantado, “caia bem”, “seja maneiro”.

Enfim, a canção originada deve soar em consonância com o poema e, aomesmo tempo, nova, diferente, singular, como toda canção que se preze.

Um exemplo desastroso de “colocar música” em poesia é o caso de “E agora,José?”, de Carlos Drummond de Andrade. Musicado por Paulo Dinis, o poema perdeuseu intento e virou uma ba(ba)ladinha medíocre. Sofrível? Pra lá de sofrível: mortífero.Quem não conhece o poema terá uma péssima impressão dele.

Oras, o belo poema de Drummond retrata a tragicidade limítrofe a que chegaum certo José, num belo dia. (Dispensável dizer que o nome José, tão comum, funcionacomo metáfora da condição existencial brasileira e, por extensão, humana). José, emdado momento da sua história de vida, vê-se sem nada: festa, mulher, casa, amigos -e até sem a possibilidade da própria morte: “quer morrer no mar, mas o mar secou”.

Pois bem: musicado, o inquietante poema chapou-se numa lengalenga musicalmonocórdia. Paulo Dinis se esforça para cantar bem, mas é impossível cantar bem oque já nasce malfeito. (Dizem que Drummond ouviu a gravação e, como bom mineiro,não disse nada. Apenas fez um muxoxo).

Por outro lado, Cid Campos ao musicar o poema “O verme e a estrela”, dobrilhante e pouco conhecido maranhense Pedro Kilkerry (1885-1917), restringiu amelodia às estrofes inicial e final, deixando a do meio para ser recitada. O registro foifeito por Adriana Calcanhoto, em faixa homônima, no disco A fábrica do poema, de1994. A gravação é tão modelar que quem quer que queira regravar esta música teráde passar pela interpretação singularíssima de Adriana e pelo arranjo musical do próprioCid. Adriana coloca seus agudos em contraposição aos graves do arranjo musical,iconizando o verme e a estrela. E faz isto com propriedade poética de quem sabe/vive/come Literatura e Música Popular. (Não é esta a primeira nem a última vez queela se embala e se embola com a poesia em seus discos). Cid Campos mergulha noscontrabaixos - um deles em solo de rara beleza -, faz uma bateria bossa toda e trazpara o surdo uma marcação discreta, exata, cool. Enfim, ambos constroem, nestedisco, uma faixa que prima pelo rigor do belo. Sensível e inteligente.

Mas, voltando ao poema propriamente dito. Pelo fato de Kilkerry ser tãopouco divulgado, e menos conhecido ainda, faz jus a transcrição do poema.

O verme e a estrela

Agora sabes que sou verme.Agora, sei da tua luz.Se não notei minha epiderme...É, nunca estrela eu te supus.

COMPLEMENTAÇÃO: Leia, ou releia o poema “José” de Carlos Drummondde Andrade. Se puder, ouça a canção feita por Paulo Dinis. E confronte os dois: opoema em si e o poema musicado.

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Mas, se cantar pudesse um verme,Eu cantaria a tua luz!

E eras assim. Por que não desteUm raio, brando, ao teu viver?Não te lembrava. Azul-celesteO céu, talvez, não pôde ser...Mas, ora! enfim, por que não desteSomente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,Olho e não vejo a tua luz!Vamos, que sou, talvez, um verme...Estrela nunca eu te supus!Olho, examino-me a epiderme...Ceguei! ceguei da tua luz?

Uma curiosidade: neste poema o início se evidencia às avessas, lido pelo final,ou seja, de trás para frente. Isto mesmo, como se o olhar do verme fosse oblíquo,refazendo-se à luz da estrela; esta, por sua vez, obscurece tudo que não seja luzautoprojetada, ou seja, luz que a espelhe e espalhe na imensidão narcísica de si mesma. Oconflito se instaura sob fina ironia: lá pelas tantas o verme afirma/indaga: “Ceguei! cegueida tua luz?”.

A escolha inusitada do verme dialogando com a estrela provoca estranheza noleitor de poesia. Principalmente no leitor da época: lembremo-nos de que a Semana deArte Moderna, que liberaria definitivamente a poesia (e a arte) de suas traumáticas amarrasformais e temáticas, só viria a acontecer anos depois da morte de Kilkerry.

Mas fica bem musicar-se apenas parte de um poema? O nó da questão não estáaí, mas na pertinência (eficácia) da música ao poema. No caso, a palavra falada, ao ladoda palavra cantada, faz referência às duas vozes diferentes do poema: a do verme e a daestrela. Todavia, o xis da questão está na integração contínua da forma com fundo. Querseja, a forma (= a linguagem do poema) e o fundo (= as idéias do poema) devem serencarados enquanto unidade indissolúvel. Afinal, a canção não é a soma da letra com amúsica: é o todo único de letramúsica. Mais: o resultado final deve incorporar a naturalidadedo canto, que só “cai bem” (vimos em colunas anteriores) quando o canto respeita anaturalidade da fala.

Assim, em música popular, cantar é falar com entonação sistematizadamente criativa.Aí é que a porca torce o rabo: entonação + sistematização + criatividade. Um tripé quenão sabemos como conseguir, mas que, feito, é facilmente identificado. E aí, a canção ficaem nós. Gira em nossa cabeça; toca nosso coração; vira batuque na mesa, compasso nospés, assovio, ou mesmo repetição interminável de um mesmo trechinho, que a gente nãoconsegue esquecer - e nem se lembrar do restante. Daí fica aquela parte da músicamartelando nossa memória como um ímã, como um disco riscado. Mas como uma coisaboa, sobre a qual sempre perguntamos: “como é mesmo o resto?”. Sinal evidente de quea música, digo, a canção, valeu.

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SUGESTÃO:

a) Você pode entender melhor o que falamos nesta unidade visitando os sites doCentro de Estudos sobre Texto Informático e Ciberliteratura (CETIC), de AndréVallias, Alckmar Luiz dos Santos, Pedro Barbosa, Ricardo Aleixo, Augusto deCampos, etc.

b) Veja como cada um destes poetas e/ou teóricos produzem poesia e teoria. Façaanotações. Discuta com colegas.

c) Qual a contribuição da infopoesia?

d) Todo poema musicado apresenta resultados satisfatórios tanto para a poesiacomo para a canção?

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Frederico (org). Cinco séculos de poesia: antologia de poesia clássicabrasileira. 3ª ed. São Paulo: Landy. 2003.CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de & PIGNATARI, Décio. Teoria da Po-esia Concreta. S. Paulo: Ateliê Editorial, 2006.CANDIDO, Antonio. Na sala de aula: caderno de análise literária. S. Paulo: Ática.(Série Fundamentos). 2004.GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 14. ed. ed. ver. e atual. São Paulo: Ática(Col. Princípios, v. 6). 2007.LOTMAN, I. A estrutura do texto artístico. Tradução de Maria do Carmo VieiraRaposo e Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. 8. ed. S. Paulo: Ateliê Editorial.2005.POUND, Ezra. ABC da literatura. 11. ed. Tradução de Augusto de Campos. São Pau-lo: Cultrix. 2006.