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Ateliê Geográfico Goiânia-GO v. 7, n. 1 Abril/2013 p.81-101 Página 81 TERRITORIALIDADES E ETNOGRAFIA: Avanços metodológicos da análise geográfica de comunidades tradicionais TERRITORIALITIES AND ETHNOGRAPHY: Methodological advances from the geographical analysis of traditional communities TERRITORIALIDADES Y ETNOGRAFIA: Avances metodológicos del análisis geográfico de comunidades tradicionales Leonardo de Oliveira Carneiro Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2002) Rua José Lourenço Kelmer, s/n - São Pedro - Juiz de Fora, MG Brasil - 36036-900 Email: [email protected] Nathan Zanzoni Itaborahy Mestrando em Geografia IGC/UFMG Avenida Antonio Carlos, 6627- Pampulha- Belo Horizonte, MG Brasil - 31170-900 Email: [email protected] Rafaela Alves Gabriel Cientista Social ICH/UFJF Rua José Lourenço Kelmer, s/n - São Pedro - Juiz de Fora, MG Brasil - 36036-900 Email: [email protected] Resumo O conceito de território tem na Geografia seu campo de análise privilegiado, ciência esta que estuda as diferentes facetas do espaço. Com tal propósito, o trabalho de campo, espaço-tempo da observação da diversidade humana e espacial, tem importância reafirmada na análise dos territórios e na investigação geográfica, uma vez que o conhecimento de uma determinada localidade e sua cultura só pode se dar de maneira abrangente se partir de uma observação participante. A partir da contribuição de Raffestin (1993) da territorialidade como um processo de interação entre atores, ou seja, necessariamente uma relação e uma construção social que objetivam autonomia de acordo com os “recursos do sistema”, este artigo tem como objetivo apresentar a contribuição da etnografia às análises geográficas/territoriais de comunidades tradicionais. Tendo em vista a ideia de “processos de territorialização”, que antes de recorrer à relação homem-meio são próprios da relação entre atores sociais, nos

Territorialidades e etnografia

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Artigo sobre avanços metodológicos na análise geográfica de comunidades tradicionais.

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    TERRITORIALIDADES E ETNOGRAFIA: Avanos metodolgicos da

    anlise geogrfica de comunidades tradicionais

    TERRITORIALITIES AND ETHNOGRAPHY: Methodological advances

    from the geographical analysis of traditional communities

    TERRITORIALIDADES Y ETNOGRAFIA: Avances metodolgicos del

    anlisis geogrfico de comunidades tradicionales

    Leonardo de Oliveira Carneiro

    Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora.

    Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense

    Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2002) Rua Jos Loureno Kelmer, s/n - So Pedro - Juiz de Fora, MG Brasil - 36036-900

    Email: [email protected]

    Nathan Zanzoni Itaborahy

    Mestrando em Geografia IGC/UFMG Avenida Antonio Carlos, 6627- Pampulha- Belo Horizonte, MG Brasil - 31170-900

    Email: [email protected]

    Rafaela Alves Gabriel

    Cientista Social ICH/UFJF Rua Jos Loureno Kelmer, s/n - So Pedro - Juiz de Fora, MG Brasil - 36036-900

    Email: [email protected]

    Resumo

    O conceito de territrio tem na Geografia seu campo de anlise privilegiado, cincia

    esta que estuda as diferentes facetas do espao. Com tal propsito, o trabalho de campo,

    espao-tempo da observao da diversidade humana e espacial, tem importncia

    reafirmada na anlise dos territrios e na investigao geogrfica, uma vez que o

    conhecimento de uma determinada localidade e sua cultura s pode se dar de maneira

    abrangente se partir de uma observao participante. A partir da contribuio de

    Raffestin (1993) da territorialidade como um processo de interao entre atores, ou seja,

    necessariamente uma relao e uma construo social que objetivam autonomia de

    acordo com os recursos do sistema, este artigo tem como objetivo apresentar a contribuio da etnografia s anlises geogrficas/territoriais de comunidades

    tradicionais. Tendo em vista a ideia de processos de territorializao, que antes de recorrer relao homem-meio so prprios da relao entre atores sociais, nos

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    esforaremos em consolidar experincia etnogrfica como uma interessante ferramenta

    metodolgica e analtica em Geografia.

    Palavras-chave: Territrio e territorialidades; Etnografia; Trabalho de campo;

    Comunidades Tradicionais.

    Abstract The territory is a concept which has a geography privileged analysis field, a science

    who studies the differential aspects of space. With this purpose, the fieldwork,

    observations space-time of human and spatial diversity, has reinsured importance for territory analysis and geographic investigation, once that knowledge of a specific

    location or culture just can be learned through a wide participant observation. From

    Raffestins contribution (1993) of territoriality as an actors interaction process, that means, a necessarily relation and a social construction aiming autonomy according to

    system resources, this article has the goal to uncover the ethnography tools contribution for analysis geography and territorial of traditional communities. Adding

    the temporal factor to the territory idea, we end up referring to territorialization process, that before recurs to the men-environment relation, are due social actors relation, and, soon, may have in the ethnography experience an interesting

    methodological and analytical tool.

    Key-words: Territory and territorialities; Ethnography; Fieldwork; Traditional

    Communities.

    Resumen

    El territorio es un concepto que tiene en la geografa el campo de anlisis privilegiado,

    ciencia interesada en las diversas facetas del espacio. Para ello, el trabajo de campo, el

    espacio-tiempo de observacin de la diversidad humana y el espacio, han reafirmado la

    importancia para el anlisis de los territorios geogrficos y de investigacin, ya que el

    conocimiento de un lugar en particular o de la cultura slo puede darse a partir de una

    observacin participante. A partir de la contribucin de Raffestin (1993), de la

    territorialidad como un proceso de interaccin entre los actores, que es necesariamente

    una relacin y una construccin social para la autonoma de acuerdo con los "recursos

    del sistema", este artculo tiene como objetivo descubrir la contribucin de la

    herramienta etnogrfica para el anlisis geogrfico de comunidades tradicionales.

    Agregando el factor tiempo la idea de territorio, se har referencia a los "procesos de

    territorializacin", aquellos que antes de pasar al hombre y el medio ambiente, son a su

    vez la relacin entre los actores sociales, y por lo tanto pueden tener en la experiencia

    etnogrfica una interesante herramienta metodolgica y analtica.

    Palabras clave: Territorio y territorialidades; Etnografa; Trabajo de campo;

    comunidades tradicionales.

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    Introduo

    Sobre a Geografia e suas pretenses cientficas encontramos uma infinidade de

    sistemas conceituais, objetivos e prticas. A Geografia1 um campo de conflitos

    ideolgicos: a dualidade sociedade-natureza constructo do pensamento moderno-

    colonial colocou-a numa condio de espao de tenses ideolgicas e filosficas.

    Desde uma cincia descritiva e empirista at a compreenso do espao como formas

    quantificveis existem tantas Geografias quanto forem os mtodos de interpretao

    (MORAES, 2011, p. 46), o que nos leva a importncia do mtodo e do sujeito cientista

    na concepo do pensamento geogrfico. Esse caleidoscpio de percepes, que

    constroi e d sentido aos espaos, varia no s com a formao terico-acadmica dos

    pesquisadores, mas tambm com sua experienciao do mundo, afinal os diversos

    meios, fatores e aes sociais, tal como proposto por Durkheim (1993), nos

    influenciam, direcionando nossa percepo e apreenso dos contextos a nossa volta.

    Nessa gama de possibilidades na qual a Cincia Geogrfica se faz, coexistem

    vises diversas sobre os conceitos/conceituaes: os sistemas interpretativos do espao

    vo privilegiar os conceitos (e seus significados) que lhe permitam uma melhor

    apreenso da realidade, segundo os objetivos e preceitos do cientista e de sua viso de

    mundo.

    Dessa maneira, o territrio se encontra naquelas geografias e gegrafos que

    vem nas dimenses da poltica e da cultura (de forma alguma contrapostas, seno que

    agregadas e concomitantes) questes cruciais para a compreenso da formao do

    espao geogrfico. Sua conceituao articula pares como dominao e apropriao,

    poder e identidade, funo e smbolo.

    Assim, nos aproximamos, com nossa inteno geogrfica (dentro dessas tantas

    Geografias), a uma compreenso do espao como um processo. Dizer isso significa o

    pensar juntamente ao fator temporal. nesse sentido que a ideia de territorialidade

    ativa (DEMATTEIS, 2008) nos surge como uma interao entre diferentes atores do

    territrio, j que ela se d no intuito de satisfazer tais sujeitos, a partir dos recursos

    1 Aqui, estamos nos referindo a Geografia enquanto uma disciplina institucionalizada pela cincia

    moderna ocidental. O espao vivido multidimensional e complexo: nele natureza e sociedade se

    integram e no se contrapem.

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    dispostos no sistema territorial (RAFFESTIN, 1993). Como qualquer ao ela

    construda no tempo e no espao, sendo a temporalidade tambm fator primordial para

    entender a formao social e espacial (SAQUET, 2011).

    Fazer uma Geografia, tanto no seu sentido humano, quanto no cultural e poltico,

    compreender como se do tais relaes sociais no territrio. E aqui se encontra nossa

    proposta: o gegrafo deve ser aquele cientista que vivencia as relaes humanas, pois

    elas se do no/com o espao, transformando-o e significando-o.

    Para tanto, acreditamos que seja necessria a aproximao dos estudos

    geogrficos Antropologia. Primeiramente por esta cincia abordar o territrio como

    um dos fatores de extrema relevncia nas definies sociais e no modo como se d o

    desenvolvimento de certos agrupamentos humanos. Isso facilmente evidenciado nas

    bibliografias clssicas como em Malinowski (1978), descrevendo o Kula, sistema

    intercambial de trocas comerciais e simblicas, entre as tribos da extremidade oriental

    da Nova guin, com a riqueza de detalhes sobre a natureza local e sua influncia nas

    representaes sociais; assim como nas bibliografias mais recentes, como o Jos

    Guilherme Magnani (1999), que traa perfis diferenciados desenvolvimento e

    ocorrncia de fenmenos urbanos como o neo-exoterismo, de acordo com a diviso

    dos bairros e centros da cidade de So Paulo.

    A renovao da teoria de territorialidade na antropologia tem como ponto de

    partida uma abordagem que considera a conduta territorial como parte

    integral de todos os grupos humanos. Defino territorialidade como o esforo

    coletivo de um grupo social para, ocupar, usar, controlar e se identificar com

    uma parcela especifica de seu ambiente biofsico, convertendo-se assim em

    seu territrio ou homeland. Casimir (1992) mostra como a territorialidade uma fora latente em qualquer grupo, cuja manifestao explicita depende de

    contingncias histricas. O fato de que um territrio surge diretamente das

    condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer

    territrio um produto histrico de processos sociais e polticos. (LITTLE,

    2002, p.3)

    Por segundo, nos aproximamos da Antropologia na inteno de demonstrar a

    possvel contribuio da ferramenta etnogrfica, enquanto mtodo de pesquisa

    geogrfica2, aos produtos desta cincia. Temos de antemo a certeza da importncia dos

    2 Lanamos mo da diferenciao entre mtodo de interpretao e mtodo de pesquisa nas cincias

    humanas (MORAES e COSTA, 1984). O primeiro fala sobre a viso de mundo do pesquisador e a segunda das ferramentas de pesquisa.

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    trabalhos de campo ao longo da histria dessa cincia, desde a Geografia dos Viajantes

    (dos naturalistas, como Humboldt) at as atuais perspectivas.

    Esperamos contribuir com a metodologia no trabalho de campo em Geografia,

    sobretudo aos recentes estudos das comunidades tradicionais brasileiras, que em muitas

    vezes, tm se esforado em pensar politicamente a cultura (PORTO-GONALVES,

    2002, p. 168), mostrando a (ainda) obscura diversidade territorial brasileira.

    Quando nos referimos aqui a Etnografia estamos falando de um conjunto de

    tcnicas de trabalhos de campo, tradicionais da Antropologia (e da Etnologia), que nos

    apresenta a importncia das vivncias e experienciaes3 junto aos grupos sociais

    estudados. Adiante a exploraremos em alguns de seus importantes pontos, da mesma

    forma que buscaremos demonstrar sua possvel contribuio compreenso dos

    territrios e suas territorialidades. Acreditamos que rompendo algumas fronteiras

    disciplinares acadmicas podemos rumar a um enriquecimento nos propsitos e nas

    prticas do trabalho de campo geogrfico.

    Territorialidade: um processo, uma relao

    A territorialidade, vista como uma relao que fala de uma tenso - afinal o

    territrio composto de territorialidades nas quais os sujeitos coletivos transformam e

    tencionam com os poderes estabelecidos - uma categoria que deve ser desvendada em

    suas diversas nuances e particularidades. No temos dvida de que s alcanaremos

    esse desvendar num esforo de pesquisa lento e cuidadoso. Dessa maneira

    objetivaremos anunciar a nossa viso sobre a territorialidade, para que possamos firmar

    as relaes desta com o mtodo etnogrfico.

    Lanamos mo da crtica apontada por Raffestin (1993) em sua obra Por uma

    Geografia do Poder de que o territrio foi tomado por muito tempo, a partir das leituras

    ratzelianas, como unicamente o territrio do Estado. Ele aparecia como aquela rea

    necessria reproduo de uma populao, o que leva a uma naturalizao do territrio,

    reforada pela ideia de Espao Vital (RATZEL, 1990).

    3 Contrapomos aqui o tradicional experimentar da cincia positivista ao experienciar. Experimentar significa induzir objetos, enquanto experienciar significar estar junto ao prprio objeto, ou vivenciar o contexto cultural e ambiental no qual ele se insere, que dessa maneira vai de objeto a sujeito.

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    A evoluo no debate deste conceito somada as transformaes na histria do

    homem e seu espao levaram a importncia dos sentidos imateriais ou subjetivos que

    envolvem a relao sociedade-natureza, da mesma forma que o carter

    multidimensional do poder nas relaes sociais (RAFFESTIN, 1993). Nesse mbito

    aparecem os estudos que vo dar relevo a territorialidade na concepo das relaes

    sociais e espaciais. Podemos citar, por exemplo, os estudos de Jean Gottmann (1973

    apud SAQUET, 2009), do prprio Raffestin (1993), Bonneimaison (2002), Haesbaert

    (2004) e suas multiterritorialidades, dentre outros, que se despertaram para os aspectos

    simblicos, relacionais, culturais, polticos e existenciais inerentes construo dos

    territrios.

    Num quadro geral a territorialidade aparece em boa parte da literatura como o

    sentido de pertencer quilo que te pertence (SANTOS e SILVEIRA, 2011, p.19), que

    se aproxima um tanto das expresses do apego ao lugar, a topofilia, enunciada pela

    Geografia Humanista, assim como do chamado regionalismo. Esse sentido de

    pertencimento e orgulho de ser de determinado local de fato um componente a se

    pensar no entendimento da territorialidade, indicando um interessante caminho de

    pesquisa.

    Quando se fala em territorialidade diretamente se refere obra do gegrafo Robert

    Sack: em 1986 o autor vai publicar a obra Human Territoriality (SACK, 1986)

    apresentando a viso da territorialidade como a tentativa por indivduo ou grupo, de

    afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenmenos e relaes, ao delimitar e assegurar

    seu controle sobre certa rea geogrfica (SACK, 2011, p. 76), ou seja, uma estratgia

    humana a partir da uma ao no espao. De fato sua contribuio significativa e

    aparece como outra vertente possvel de anlise da territorialidade, claro que um tanto

    mais materialista que a anteriormente colocada. No entanto, ela nos leva mais a ideia de

    territorialismo do que propriamente a territorialidade, como aponta Souza (1995).

    Entendemos, em conformidade com Dematteis (2009), que essa viso apontada

    por Sack se refere a uma territorialidade passiva e negativa, j que ela objetiva excluir

    sujeitos e recursos (DEMATTEIS, 2009, p. 35). No negamos sua existncia, mas

    apontamos uma perspectiva mais inclusiva do termo para compreender as

    territorialidades das comunidades tradicionais brasileiras, a exemplo das comunidades

    quilombolas, indgenas e ribeirinhas.

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    Quanto a essas territorialidades acabamos por entend-las nos formatos propostos

    por Raffestin (1993), ou seja, em uma perspectiva relacional: a territorialidade , assim,

    a maneira pela qual as sociedades se satisfazem, num determinado momento, para um

    local, uma carga demogrfica e um conjunto de instrumentos tambm determinados,

    suas necessidades em energia e informao (p. 153), sendo esta satisfao propiciada

    pelo processo de troca e/ou informao (p. 154). Isso quer dizer que ela uma

    construo entre atores sociais de um territrio, dessa maneira ativa e positiva, j que

    ela visa incluir sujeitos ou deriva das aes coletivas territorializadas e

    territorializantes dos sujeitos locais e objetiva a construo de estratgias de incluso

    (DEMATTEIS, 2009, p. 35).

    Entendendo a territorialidade como um conjunto de relaes que se originam

    num sistema tridimensional sociedade-espao-tempo em vias de atingir a maior

    autonomia possvel, compatvel com os recursos do sistema estamos assinalando-a

    como um processo, ou seja, como algo dinmico. E esse acontecer da interao entre os

    sujeitos do territrio envolve sempre uma relao com o outro alteridade e nessa via

    Raffestin (1993) enftico ao ponderar que esse outro no se trata s do espao

    modelado (p. 159), seno que os indivduos e/ou grupos que a se inserem. O autor

    no suprime a importncia do espao nessa relao, ao dizer que a relao com o

    territrio uma relao que mediatiza em seguida as relaes com os homens, com os

    outros (p. 160).

    Acabamos por concluir que, entendendo a territorialidade como algo dinmico,

    assim como a cultura, o fazemos tambm com o conceito de territrio, outrora visto de

    maneira esttica, ou como um mero recorte espacial. Torna-se interessante pensar a

    expresso processos de territorializao, que nos permite agregar as dimenses do

    tempo e do espao, alm de colocar o territrio em uma posio de eterno campo de

    embates polticos4, nos poupando do risco de pensar o espao sem ao social.

    A fim de elucidar a possvel contribuio da Etnografia anlise das

    territorialidades, tal como entendemos, ativas e inclusivas, trabalharemos seus

    fundamentos e suas interlocues com o trabalho de campo em Geografia.

    4 Lanamos mo do conceito de poltica de Arendt (2010), como uma condio da vida social, ou seja,

    como o exerccio do encontro das diferenas. Com essa colocao, concordamos com Raffestin (1993): o

    poder inerente a qualquer relao social, que logo, se torna uma relao poltica.

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    Espacializando a tenso dentro e fora: Etnografia e Geografia

    A Geografia est em toda parte

    (COSGROVE, 1998, p. 93)

    O gegrafo um filsofo do espao. Isso nos diz que seu trabalho requer uma

    constante observao dos fenmenos socioespaciais. O olhar geogrfico incessante:

    das pequenas simbologias aos acordos polticos globais a Geografia est em toda

    parte, ou seja, negligenciar o todo ou a parte pode levar a concluses incoerentes no

    mbito dessa cincia.

    O espao geogrfico, como nos ensina Milton Santos (1991), tem a anlise de sua

    totalidade no somente com a soma das pores espaciais, mas por uma dialtica entre

    as partes e o todo, que est em constante transformao. Ousamos a dizer que muito

    daquilo que o autor prope funciona de forma anloga ao que Laplantine (1988) chama

    de o dentro e o fora como uma tenso constitutiva da prtica antropolgica.

    Essa semelhana, em nosso entendimento, clara em dois aspectos: (1) num

    panorama terico, ao exigir a viso do espao com uma totalidade, e afirmar que Cada

    lugar , sua maneira, o mundo (SANTOS, 1996, p. 314), Santos est fazendo uma

    exigncia similar a da Antropologia, que nos ensina que um fenmeno s adquire

    significao antropolgica sendo relacionado sociedade como um todo na qual se

    inscreve e dentro da qual constitui um sistema complexo (LAPLANTINE, 1988, p.

    156), deixando claro que ao estudar o espao do homem a Geografia vivencia a tenso

    dentro e fora como a cincia antropolgica; (2) num panorama metodolgico, o

    dentro e fora para o cientista da Geografia significa tambm um dilema sobre a escala

    geogrfica ideal para anlise dos problemas, do sentido dos trabalhos de campo e do

    cotidiano do pesquisador, e das referncias globais que o lugar contm ou das locais que

    compe a totalidade do espao.

    A princpio, diramos que no aspecto terico (1) que une a Antropologia e a

    Geografia nessa tenso constitutiva, ambas as cincias tm significativas e densas

    discusses. Milton Santos (1996) tangencia o dentro e o fora em suas escritas sobre

    epistemologia espacial ao falar do lugar e sua relao com os processos da globalizao

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    (nos termos das verticalidades e horizontalidades), da mesma maneira que a prpria

    tradio regional da Geografia refere-se a um recorte de diferenciao de reas

    particulares e gerais. No entanto, esta cincia, se comparada a Antropologia e sua

    Etnografia, ainda anda a passos curtos no que se refere ao trabalho de campo e a

    metodologia (2) de pesquisa em Geografia. Lembra-nos Paul Claval (2002) ao colocar

    etnlogos e gegrafos em um mesmo grupo:

    A realidade que os gegrafos estudam sempre aquela de uma cultura

    particular. Como analisar essa realidade sem considerar seus recortes mais

    importantes, sem perder o que faz a sua especificidade? Ao desconfiar dos

    relatrios simples, por serem feitos na ptica do observador, o etnlogo

    Clifford Geertz (1973) nos d um norte. O etnlogo e o gegrafo devem

    praticar a arte da descrio densa (thick description). Trata-se da nica maneira possvel de integrar, pelo menos, algumas das particularidades culturais das populaes e dos lugares estudados (CLAVAL, 2002, p. 20)

    Encontramos uma pluralidade de ferramentas metodolgicas considervel nesta

    cincia, umas com formatos mais objetivos, outras at minimalistas, que acabou por

    gerar um afastamento das discusses sobre os trabalhos de campo geogrficos, como

    aponta Suertegaray (2002) a pesquisa de campo um tema muito importante na

    Geografia, porm, com pequena discusso (p. 92).

    importante termos em mente alguns dos aspectos mais relevantes do que se

    prope como trabalho de campo dentro da Antropologia. A Etnografia, como

    sabemos, um mtodo voltado para conseguir a introjeo de um sujeito, a princpio

    desconhecido e desconhecedor, em um determinado local. Para que isso acontea de

    maneira dinmica e efetiva5 imprescindvel que o pesquisador tenha tempo para

    aplicar e se disponibilizar durante a pesquisa. Para ter acesso as informaes mais

    complexas (dependendo do campo, at mesmo as informaes mais simples)

    necessrio que haja criao de laos de reciprocidade e de identificao, entre o

    pesquisador e o pesquisado.

    A partir disso, emerge outro aspecto fundamental a preparao do pesquisador: ele

    deve carregar a conscincia da influncia que causar nos lugares, e de todas as

    5 importante destacar que um sujeito completamente alheio ao conjunto de sistemas e normas de um

    determinado lugar, dificilmente ser absorvido integralmente (naturalmente) ao cotidiano desse lugar.

    Tornando o pesquisador, tambm, extico aos olhos dos nativos.

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    dificuldades que aparecero pelo encaminhar do trabalho. Portanto preciso exercitar o

    desapego de seus costumes tradicionais e se colocar aberto a todas as experienciaes

    proporcionadas por este tipo de trabalho. No entanto, precisamos lembrar que uma

    desconexo completa com os nossos valores culturais tradicionais to impossvel

    quanto se tornar um nativo.

    O fato que o trabalho de campo em Geografia ainda no se debruou sobre uma

    discusso mais densa que elenque temas como, por exemplo, os dilemas do sujeito-

    pesquisador, as fases de um trabalho de campo, as formas de aproximao do espao

    pelos grupos sociais, a especificidade de cada trabalho, dentre outros. Em sua atividade,

    o gegrafo, que lida com o que est em toda parte, tem uma dificuldade para realizar

    os movimentos de entrada e sada de um trabalho.

    Apresentamos a Etnografia como uma ferramenta metodolgica que consiste no

    exerccio do olhar (ver) e do escutar (ouvir) impe ao pesquisador ou a pesquisadora um deslocamento de sua prpria cultura para se situar no

    interior do fenmeno por ele ou por ela observado atravs da sua participao

    efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade

    investigada se lhe apresenta (ROCHA e ECKERT, 2008, p. 2)

    Basicamente, isso representa uma tenso com o olhar das aparncias: se engajar

    em uma experincia de percepo de contrastes sociais, culturais, e histricos

    (ROCHA e ECKERT, 2008, p. 2) significa negar uma cincia humana que se apoia nos

    levantamentos indiretos, na coleta de dados por si s, na compreenso dos sujeitos

    analisados como meros objetos da pesquisa.

    A Etnografia a prtica da crtica ao objetivismo cientfico nas cincias

    humanas. Isso no se d s com a proposta das observaes diretas, vivncias,

    descries densas (GEERTZ, 1989), mas tambm com a relevncia do feeling do

    sujeito cientista.

    Damatta (1974) discorre sobre a importncia do que ele chama de

    Anthropological Blues, como elemento que se insinua na prtica etnolgica, mas no

    estava sendo esperado, ressaltando que os acontecimentos inesperados ou

    extraordinrios, como, por exemplo, as conversas de canto de sala e os problemas

    operacionais no trabalho de campo que compem a vivncia do pesquisador,

    conformam sua viso sobre aquela realidade, sendo um componente inevitvel do ofcio

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    do etnlogo e uma forma de compreenso de suas prprias concepes, de sua presena

    no mundo.

    Para o autor, toda a imerso do pesquisador em seu ofcio nos leva a dupla

    tarefa de: (a) transformar o extico no familiar e (b) o familiar no extico

    (DAMATTA, 1974, p 28), retornando a tenso dentro e fora. O exerccio

    etnogrfico leva tanto ao conhecimento do outro como ao seu prprio conhecimento, e

    mesmo que o conhecimento da territorialidade do outro nos leva a tecer um olhar

    diferenciado sobre a nossa prpria territorialidade. Lembrando Boaventura de Sousa

    Santos: todo conhecimento cientfico um autoconhecimento (SANTOS, 1987, p.

    52).

    No s nesse ponto voltamos ao dentro-fora, seno que ao pensarmos a

    Geografia como a cincia que estuda o espao, conclumos que a Etnografia pode nos

    levar da parte (dentro) ao todo geogrfico (dentro e fora), satisfazendo a colocao

    miltoniana do espao como totalidade. Como aponta Geertz (1989):

    O problema metodolgico que a natureza microscpica da etnografia

    apresenta tanto real como crtico. Mas ele no ser resolvido observando

    uma localidade remota como o mundo numa chvena ou como o equivalente

    socilogo de uma cmara de nuvens. Dever ser solucionado ou tentar s-lo de qualquer maneira atravs da compreenso de que as aes sociais so comentrios a respeito de mais do que elas mesmas; de que, de onde vem uma interpretao no determina para onde ela poder ser impelida a ir. Fatos

    pequenos podem relacionar-se a grandes temas, as piscadelas

    epistemologia, ou incurses aos carneiros revoluo, por que eles so

    levados a isso. (GEERTZ, 1989, p. 17)

    Dessa forma, no temos dvida de que a Etnografia pode contribuir ao exerccio

    geogrfico. Muito do esforo epistemolgico da Geografia se deu com o intuito de

    promover uma cincia de sntese, ou seja, que transpe a dualidade entre geografia

    tpica e geral.

    No entanto, nosso questionamento no se encerra quando relembramos o que

    Cosgrove anuncia: a geografia est em toda parte. Isso a princpio no soa como um

    problema, mas o pode ser: sendo atividade do gegrafo observar continuamente o

    espao e as relaes sociais que nele, por ele e com ele se do, o trabalho de campo no

    se difere do exerccio cotidiano do gegrafo. , seno, uma sistematizao desse labor

    com um objetivo pr-estabelecido.

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    Recorremos aqui ideia de Damatta (1987) do trabalho de campo como um rito

    de passagem para o pesquisador: nestes tipos de ritos, observados nas mais diversas

    culturas, em certos momentos os sujeitos envolvidos ocupam espaos intermedirios,

    longe dos olhares inibidores e protetores de seus pais e parentes (p. 150), nos quais

    refletem sobre os valores das regras sociais, canes, gestos, emblemas (p. 151) que

    vo alm dos laos sanguneos, ou seja, fazem uma reflexo sobre os sentidos sociais,

    culturais e morais daquele grupo no qual est se ingressando.

    Para o autor, movimento similar acontece com o pesquisador no seu trabalho de

    campo, no entanto com o duplo movimento (extico-familiar e familiar-extico) ao qual

    j nos referimos:

    Aqui desejo simplesmente observar que a iniciao na antropologia social

    pelo chamado trabalho de campo fica muito prxima deste movimento

    altamente marcado e consciente que caracteriza os rituais de passagem.

    Realmente, em ambos os casos, antroplogo e novio so retirados de sua

    sociedade; tornam-se a seguir invisveis socialmente, realizando uma viagem

    para os limites do seu mundo dirio e, em pleno isolamento num universo

    marginal e perigoso, ficam individualizados, contando muitas vezes com seus prprios recursos. Finalmente, retornam sua aldeia com uma nova

    perspectiva e os novos laos sociais tramados na distncia e no

    individualismo de uma vida longe dos parentes, podendo assim triunfalmente

    assumir novos papeis sociais e posies polticas. Vivendo fora da sociedade

    por algum tempo, acabaram por ter o direito de nela entrar de modo mais

    profundo, para perpetu-la com dignidade e firmeza. (DAMATTA, 1987, p.

    151)

    Assim, este movimento faz parte da natureza do trabalho de campo em

    Antropologia. Ritualizando o trabalho de campo em Geografia, a partir das bases

    propiciadas pela Etnografia, poderemos rumar a uma cincia dos territrios dos outros e

    dos nossos territrios, fidedigna s dinmicas e particularidades de cada sistema

    territorial. Vencer o obstculo do fato da geografia estar em toda parte talvez seja

    encarar os dilemas existenciais os quais o gegrafo deve se submeter em seu trabalho de

    campo, conscientizando-o. afirmar que os territrios so muitos e que o vivenciamos

    a nossa maneira.

    A partir do exemplo da territorialidade das comunidades tradicionais brasileiras,

    tentaremos expor, de maneira prtica, o esforo para entender os processos de

    territorializao no trabalho de campo em Geografia.

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    A territorialidade e os processos de territorializao de comunidades tradicionais

    sobre o olhar etnogrfico: possveis encontros

    Quando falamos de comunidades tradicionais estamos optando pelo esforo de

    unir uma enorme diversidade social, cultural e territorial, devendo nosso cuidado: estes

    grupamentos sociais e seus territrios tm caractersticas distintas, desde grupos

    isolados indgenas s comunidades quilombolas urbanas encontramos uma

    diversidade de histrias, espaos, rituais e processos. A prpria noo de processos de

    territorializao nos indica que cada uma dessas comunidades tem sua prpria

    temporalidade e territorialidade.

    Podemos afirmar que um ponto em comum entre essas comunidades a

    resistncia. E ela , sumariamente, uma resistncia territorial, o que implica dizer que

    tambm um resguardo e uma manuteno de uma forma de ver o mundo. O territrio,

    dessa maneira, o lugar da reproduo cultural, mesmo que pensemos que a cultura no

    uma ao necessariamente pensada ou consciente, ela est inscrita nos modos de vida

    diversos, ou seja, no algo que funciona atravs dos seres humanos; pelo contrrio,

    tem que ser constantemente reproduzida por eles em suas aes, muitas das quais so

    aes no reflexivas, rotineiras da vida cotidiana (COSGROVE, 1998, p. 102)

    Por isso a resistncia territorial nas comunidades tradicionais deve ser vista num

    esforo de pensar cultura e poder de maneiras articuladas. Para Cosgrove:

    O estudo da cultura est intimamente ligado ao estudo do poder. Um grupo

    dominante procurar impor sua prpria experincia de mundo, suas prprias

    suposies tomadas como verdadeiras, como a objetiva e vlida cultura para

    todas pessoas. O poder expresso e mantido na reproduo da cultura. Isto

    melhor concretizado quando menos visvel, quando as suposies culturais

    do grupo dominante aparecem simplesmente como senso comum. Isto, as vezes, chamado de hegemonia cultural. H, portanto, culturas dominantes e

    subdominantes ou alternativas, no apenas no sentido poltico (apesar de eu

    me concentrar nisso), mas tambm em termos de sexo, idade e etnicidade.

    (COSGROVE, 2002, p. 104 e 105)

    Assim, enfatizamos que pensar o territrio pensar politicamente a cultura. a

    possibilidade de entender que existem espaos onde sujeitos interagem no sentido de se

    agregarem. tambm pensar que se a cultura uma reproduo e o territrio um

    processo, a resistncia o motor (poltico) da territorialidade. Quando falamos em

    resistncia estamos inspirados nas colocaes de James Scott (1990): a resistncia

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    uma arte dos dominados que no necessariamente se d atravs de movimentos

    organizados e com uma coeso clara, seno que muita das vezes est oculta nos

    discursos no pblicos, ou seja, aqueles que se escondem dos mecanismos de

    opresso. Ao imaginarmos que oprimidos atuam frente aos opressores, fazemos o

    mesmo movimento para dizer que entre si agem de maneira prpria, fazem sua prpria

    poltica, e dessa maneira, resistem.

    Aqui voltamos ideia da territorialidade ativa (DEMATTEIS, 2008): se a

    territorialidade um processo e em pensar em territrio pensar em processos de

    territorializao, devemos enfatizar que os processos de troca de informao e energia

    (nos moldes de Raffestin) no necessariamente se do de forma visvel ou clara, seja no

    espao, seja nas relaes entre os atores. Os discursos ocultos (ou trocas de informao)

    so a marca da resistncia das comunidades tradicionais ou mesmo a poltica

    particular destas. Analisar o territrio e a territorialidade no levando em conta tais

    fatores seria incorrer numa falha grave.

    Para alm, poderamos dizer que tais processos se do de maneira especfica, ou

    seja, so guiados por formas de ver e estar no mundo prprias destes sujeitos:

    hoje possvel defrontarmo-nos com a emergncia de matrizes de racionalidades outras tecidas a partir de outros modos de agir, pensar e sentir,

    seja na Amrica Latina, na frica, na sia, entre segmentos sociais no-

    ocidentais nos Estados Unidos, no Canad e at mesmo na Europa, com

    diversas populaes indgenas e de afrodescendentes, que clamam por se

    afirmar diante de um mundo que se acreditou superior porque baseado num

    conhecimento cientfico universal (imperial) que colonizou o pensamento

    cientfico em todo o mundo desqualificando outras formas de conhecimento

    (PORTO-GONALVES, 2002, p. 220)

    O trabalho de campo rpido e superficial no se esfora em englobar os

    discursos ocultos, em compreender o cotidiano e as formas de resistncia desde uma

    perspectiva endgena, tampouco em entender que eles so feitos por grupos com

    matrizes de racionalidades distintas da racionalidade hegemnica (eurocntrica,

    ocidental e urbana). Nesse prisma, o gegrafo deve, nos trabalhos com comunidades

    tradicionais, transformar em familiar um extico que se espacializa sua maneira, da

    mesma forma que percebe e representa o espao de maneira prpria. O movimento de se

    ver no lugar do outro essencial para sentir e vivenciar o mundo de outra maneira, de

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    forma que o resultado dessa experienciao deve ser uma reflexo geogrfica sincera e

    consciente.

    E como fomos levados a crer por Geertz (1989), as aes sociais so

    comentrios a respeito de mais do que elas mesmas (p. 17), os reflexos da pesquisa

    devem ir alm da explicao das especificidades, revelando as contradies que delas

    emergem, de maneira crtica e engajada, como nos mostra a passagem a seguir:

    A pesquisa de campo constitui para o gegrafo um ato de observao da

    realidade do outro, interpretada pela lente do sujeito na relao com o outro

    sujeito. Esta interpretao resulta de seu engajamento no prprio objeto de

    investigao. Sua construo geogrfica resulta de suas prticas sociais.

    Neste caso, o conhecimento no produzido para subsidiar outros processos.

    Ele alimenta o processo, na medida em que desvenda as contradies, na

    medida em que as revela e, portanto, cria nova conscincia do mundo. Trata-se de um movimento da geografia engajada nos movimentos, sejam eles

    sociais agrrios ou urbanos. Enfim, movimentos de territorializao,

    desterritorializao e reterritorializao. (SUERTUEGARAY, 2002, p. 94)

    Etnografar as populaes tradicionais e seus territrios , assim, um movimento

    de conscientizao da diversidade socioespacial do mundo, que sempre diz de um lugar

    prprio (tanto geogrfico como epistmico, conforme Porto-Gonalves, 2002) e de sua

    relao com o mundo, seja atravs da resistncia (oculta), pelas conformaes

    territoriais (sempre interceptadas por outros territrios e territorialidades), ou pelos

    sinais que o Anthropological Blues proporcionar. So as geo-graphias porto-

    gonalveanas, processo de reconhecimento da cincia sobre as geografias subalternas do

    outro - que jamais ocuparam um lugar de prestgio na Geografia de cunho europeu-

    cristo-ocidental. O mundo em busca de novas territorialidades.

    Ademais, se concordarmos com Leff (2009, p. 102) que a materialidade da

    cultura inscreve-se na racionalidade produtiva de sociedades tradicionais (...) gerando

    um efeito mediador entre a produo e o meio ambiente podemos nos arriscar a

    pensar que para compreender a formao do espao essa materialidade da cultura de

    grupos tradicionais preciso pesquisar essas culturas particulares atravs de um olhar

    de dentro para no cometermos genocdios epistemolgicos. A relao sociedade-

    natureza desses grupos pode se revelar a partir dos estudos etnolgicos, assim como a

    produo do espao pelas sociedades tradicionais.

    Em nosso caso, por exemplo, o grupo de pesquisa Da diversidade cultural

    diversidade produtiva: a construo dos saberes necessrios a transio agroecolgica

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    na comunidade quilombola de So Pedro de Cima, da Universidade Federal de Juiz de

    Fora, trabalha h cerca de quatro anos desvendando e se inserindo nos modos de viver e

    ser dos moradores da comunidade, localizada na zona rural do municpio de Divino,

    Zona da Mata de Minas Gerais. Fomos levados a desvendar as relaes entre uma

    famlia, sua comunidade e o mundo. Os trabalhos de campo e vivncias levaram tanto a

    questes existenciais e sociais, como os valores familiares e prticas de solidariedade,

    quanto a contradio produtiva diante da qual os moradores se deparavam (a

    dependncia cada vez maior dos insumos qumicos e agrotxicos e o abandono das

    prticas produtivas diversificadas da agricultura familiar). As palavras, olhares e

    histrias carregam mais do que eles mesmos. Carregam a histria prpria destes sujeitos

    no mundo.

    Vimos que os pacotes tcnicos (oriundos de polticas de modernizao do

    campo), aplicados de maneira vertical, foram rejeitados ou parcialmente aceitos, na

    medida em que ocorreu uma integrao economia cafeeira sem destituir alguns

    princpios estruturantes do modo de vida campesino. Percebemos que as verticalidades6

    que chegam comunidade, como a presso da commodity do caf como forma de

    sustento e gerao de renda, se inserem, mas no diluem a existncia autctone

    (horizontalidade), a etnoterritorialidade quilombola e campesina. As formas de

    resistncia so as trocas de experincias, de trabalho e produtos, em suma, as redes de

    solidariedades campesinas.

    Nossa longa permanncia em So Pedro de Cima permite-nos, por exemplo,

    elaborar reflexes etnolgicas que muito tm colaborado para a compreenso de suas

    territorialidades e da potencialidade agroecolgica que percebamos existir. Por

    exemplo, podemos falar do sistema de trabalho na comunidade, especialmente nas

    lavouras de caf principal atividade de gerao de renda no local.

    A atual conformao fundiria consiste na ocupao de lotes que variam desde 1

    at 10 hectares de terra trabalhados com mo-de-obra familiar em um sistema de

    agricultura campesina que mescla uma agricultura comercial o caf - com grande

    variedade de plantios para alimentao: feijo, milho, batata, mandioca, abbora, jil,

    6 as horizontalidades sero os domnios da contigidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma continuidade territorial, enquanto as verticalidades seriam formadas por pontos distantes uns dos outros, ligados por todas as formas e processos sociais (SANTOS, 2004, p. 256).

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    chuchu, inhame, couve, taioba, grande variedade de frutas e plantas medicinais, dentre

    outros. Para o grupo de plantio alimentar, a mo-de-obra unifamiliar supre as

    necessidades de trabalho. Contudo, na cultura do caf, atividades como arruamento, a

    roa, e principalmente a panha (colheita) do caf necessita de mo-de-obra extra.

    Ressalta-se ainda que o perodo da colheita (entre os meses de maio a agosto)

    representa tambm a possibilidade de trabalhar nas lavouras dos fazendeiros do entorno

    para garantir ganhos extras que se tornam fundamentais para a populao de So Pedro

    de Cima. O adensamento espao-temporal da panha do caf faz com que uma antiga

    estratgia de trabalho coletivo permanea para garantir a colheita nas lavouras da

    comunidade a ainda o trabalho extra para os fazendeiros da regio: o chamado troca-

    dias. Atravs de um sistema bastante complexo, grupos interfamiliares trabalham uns

    nas lavouras dos outros garantindo uma rpida e desonerada colheita, liberando-os para

    trabalharem na colheita dos fazendeiros. Muitos deles se orgulham de produzirem caf

    h mais de vinte anos e jamais terem pagado uma diria sequer nas suas lavouras.

    No devemos aqui nos desapegar de uma perspectiva crtica ao observar que esta

    estratgia utilizada como uma forma de maximizao de lucros pelos comerciantes de

    caf que conseguem comprar a produo local em baixas cotaes fato este suportado

    pelos locais devido ao baixo custo de produo do mesmo alm da continuidade da

    explorao da mo-de-obra pelos fazendeiros que desde finais do sculo XIX contavam

    com esta reserva de mo-de-obra barata para suas fazendas de caf no perodo ps-

    escravagista.

    Por outro lado, o troca-dias, aliado ao trabalho em mutiro utilizado

    principalmente na construo de casas, terreiros de caf e espaos coletivos, e tambm

    no caso de doena de algum membro da comunidade persistem na comunidade como

    trabalho fundamental na manuteno de sua populao e nas estratgias de

    permanncias e resistncias comunitrias. Este trabalho campesino no-capitalista,

    coletivo e solidrio, estabelece horizontalidades que impulsionam foras de resistncia

    do lugar e, portanto, de suas territorialidades que absorvem e repulsam sua forma as

    verticalidades dos poderes hegemnicos, conforme prope Milton Santos (2002). Nessa

    tenso constitutiva se estabelece o lugar e uma singular geometria do poder, conforme

    proposto por Massey (2000).

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    Esses encontros, que so de ordem seculares, constantemente reorientados pela

    tcnica e pelas novas formas de explorao do trabalho, instituem formas de poder e

    interferem na autonomia local. As presses e as oportunidades so cooptadas e repelidas

    pelos locais - em diferentes graus de absoro e de repulso - que ora buscam junto

    Universidade, apoio para a sua continuidade.

    Como exemplo, o uso de venenos agrcolas nos plantios de caf e de eucaliptos

    tem se intensificado no local. Uma srie de mitos intensamente veiculada na

    comunidade, como a crena de que sem o uso de venenos no h possibilidades de

    combater as pragas do caf. Por outro lado, esses plantios contam com adubao de

    base orgnica produzida no local e no meio da lavoura de caf encontram-se diversos

    outros plantios tais como feijes, milho, abboras, diversos tipos de batatas, etc.

    Paralelamente, inmeros casos de contaminao por venenos agrcolas so

    relatados. Por conta disso, muitos se negam a utilizar venenos em suas plantaes e

    ainda se recusam a trabalhar na panha dos fazendeiros que utilizam venenos. Temos

    ampliado a discusso dessas tenses no local, que so econmicas e territoriais, mas

    tambm corporais, na medida em que a prpria sade desses sujeitos que corporificam

    os efeitos dessa verticalizao. E precisamente a partir desse ponto em que pensamos

    universidade e comunidade novas formas de integrao e de resistncia.

    A histria particular da comunidade conferiu a ela um processo de

    territorializao nico, que resistiu e resiste s foras externas homogeneizantes

    (verticalidades). Se hoje encontramos plantios diversos e um quadro de soberania

    alimentar, eles se devem aos processos de interao (troca de energia e informao)

    entre os sujeitos desse territrio, processos estes que se do no dia-a-dia, e que s

    podem ser percebidos atravs de uma relao de confiana entre o pesquisador e os

    sujeitos estudados, tal como a prtica de um olhar paciente, atento a diversidade de

    olhares que compe o mundo.

    Consideraes finais

    Estamos propondo uma total reviso do tempo da atividade cientfica, que presa s

    amarras da modernidade, resultou em uma universidade apressada e superficial.

    Pesquisa-se com enormes pressupostos, abrindo mo da mgica e a perplexidade que o

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    espao pode nos trazer, transformando o trabalho de campo em Geografia em uma

    atividade banal, des-ritualizada.

    O trabalho de campo deve ser o momento no qual o gegrafo se despe de suas

    certezas e pratica a alteridade. O dentro etnogrfico se ritualiza: um pr-campo

    pressupe uma reviso dos prprios valores culturais, enquanto o campo a imerso total

    e experienciao nos/dos temas do grupo/territrio estudado. J o ps-campo deve ser o

    momento de (1) rever e ressignificar o familiar e (2) entender os sujeitos estudados e

    sua relao com o mundo, praticando a compreenso da relao dentro e fora, da

    totalidade e sua relao dialtica com a parte.

    Insistimos no exemplo das comunidades tradicionais, primeiro, por falar de uma

    experienciao prpria, e segundo, por serem grupos que nos revelam to bem a

    diversidade territorial que compe o mundo, j que atravs de suas prprias histrias

    eles percebem e vivenciam o espao. Estas comunidades nos permitem falar em uma

    territorialidade que inclui sujeitos, construda por uma relao entre eles, mediada pelo

    espao. Eles resistem de maneira oculta (SCOTT, 1990) e desvendar esse outro

    universo propor uma geografia da diversidade e da afirmao da cultura por meio das

    relaes polticas.

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    Recebido para publicao em agosto de 2012

    Aprovado para publicao em novembro de 2012