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7/25/2019 Tese Anna Izabel
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Sumrio
INTRODUO ................................................................................................. 13
1 DESATANDO NS ....................................................................................... 37
1.1 Educao, Escola, Pedagogia ................................................................ 38
1.2 Crtica Organizao do Trabalho Pedaggico (OTP) na escola
capitalista ...................................................................................................... 53
2 PRINCPIOS E MATRIZES PEDAGGICAS DA EDUCAO DO CAMPO 63
2.1 Pedagogia da Alternncia ....................................................................... 632.2 Pedagogia Socialista ............................................................................... 76
2.3 Pedagogia do Oprimido .......................................................................... 87
2.4 Educao do Campo ............................................................................... 96
3 A LEDOC ..................................................................................................... 110
3.1 Projeto Poltico Pedaggico .................................................................. 110
3.2 Os estudantes e o processo seletivo .................................................... 115
3.3 Os territrios: compreenso preliminar ................................................. 122
3.4 Os Docentes ......................................................................................... 128
3.5 O Currculo ............................................................................................ 133
3.6 A Organizao do Trabalho Pedaggico .............................................. 138
3.6.1 Alternncia da LEdoC ..................................................................... 139
3.6.2 Organizao do Tempo Escola (TE) em tempos educativos .......... 144
3.6.3 Trabalho .......................................................................................... 146
3.6.4 Organicidade................................................................................... 148
3.6.5 Tempo Comunidade ....................................................................... 151
4 A ORGANIZAO DO TRABALHO PEDAGGICO: caminhada e
aprendizados .................................................................................................. 155
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4.1 Tempo Comunidade .............................................................................. 155
4.2 Tempo Escola ....................................................................................... 190
4.3 Tempo Escola e Tempo Comunidade ................................................... 222
4.4 Instrumentos ......................................................................................... 246
5 RUPTURAS E RESISTNCIAS .................................................................. 248
5.1 Na prxis docente ................................................................................. 249
5.2 No currculo ........................................................................................... 255
5.3 Na organicidade .................................................................................... 260
5.4 Na alternncia ....................................................................................... 2635.5 Condies Institucionais........................................................................ 265
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 276
APNDICE ..................................................................................................... 282
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INTRODUO
Quem olha de onde
Ainda que o gesto me doa,
no encolho a mo: avano
levando um ramo de sol.
Mesmo enrolada de p,
dentro da noite mais fria,
a vida que vai comigo
fogo:
est sempre acesa.
Thiago de Mello
Um trabalho que se constri a partir do compromisso da pesquisadora
com seu objeto de pesquisa, em que a unio entre sujeito e objeto , a todo
instante, perseguida, em que a subjetividade da pesquisadora se coloca no s
na anlise, mas nos fatos relatados, me faz supor que preciso comear
esclarecendo quem a pesquisadora, de onde eu olho para a Licenciatura em
Educao do Campo.
Nasci e cresci em Braslia. E o que isso significa? Qual a relao com
meu modo de viver o mundo? O que tem a ver com meu jeito de ser gente,
mulher, me, educadora?
Braslia no tem filhos!, era o que eu ouvia durante minha
adolescncia. Sem filhos, sem razes, sem histria, sem sotaque... Ser? Ser
brasiliense no indicava nada; nossas referncias eram as origens de nossos
pais. Minha me carioca. Meu pai mato-grossense-do-sul. Que mistura!
Sou filha de Braslia. Filha da cidade planejada, moderna, expresso do
ideal modernista de racionalidade urbana, onde o planejamento tentou, e tenta,
ocultar a desigualdade. Cresci no Plano Piloto, com seus espaos
fragmentados em setores, espaos uniformes, funcionais, padronizados...
Espaos disjuntos. Cidade que, sob a lgica da racionalidade instrumental,
destinada a um homem abstrato. Aprendi, ento, a viver em um espao linear,
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numerado, organizado, de modo que as coisas jamais se misturem. E esta
viso cartesiana compe meu modo de pensar o mundo.
Fui alfabetizada em escola pblica e depois fui para uma escola privada,
catlica, tradicional, de disciplina rgida. Toda a minha experincia escolar foi o
retrato do que Paulo Freire denominou de Educao Bancria, o que me fez
question-la. No porque eu tivesse j uma viso crtica da educao, mas
porque tinha dificuldade em atender ao que me exigiam: engolir, memorizar,
aceitar, e, pior, deixar guardada curiosidade pelas coisas, pelo mundo. Fui uma
m aluna!
Em 1990 me formei em Pedagogia, com habilitao em magistrio de 2
grau, que me credenciava a lecionar em cursos de magistrio. Um curso
tambm fundado na tradio pedaggica. Ensinaram-me a fazer planos de aula
seguindo rigidamente um modelo, inflexvel, centrado no professor, sem que a
possibilidade da dialogicidade fosse sequer mencionada. Segui desconfiada do
que me ensinaram...
E desconfiada do que durante toda a minha vida escolar foi me
apresentado como verdade, como nica possibilidade, procurava um caminho
que no fosse aquele asfaltado, sinalizado, em que bastava seguir sem pensar.
E como quem procura, acha, diz o ditado popular, encontrei -me com o
professor Sato, que dirigia um programa do governo local com o objetivo de
desenvolver um processo de formao continuada dos servidores dopblico,
com um enfoque na formao integral do ser humano, entendido como ser
complexo que atua profissionalmente mobilizando diversos saberes. Neste
sentido, o processo de formao era compreendido para alm do
desenvolvimento de conhecimentos tcnicos, que eram, em geral, o foco dos
cursos de treinamento da poca.Sa da estrada asfaltada e para ela no voltei mais.
Durante 10 anos me constru e reconstru como pedagoga trabalhando
com formao continuada de professores do sistema pblico de ensino, tanto
do Distrito Federal como de Gois, Minas Gerais, So Paulo e Mato Grosso do
Sul.
Na vivncia junto a esses professores preocupava-me entender o
processo de construo de saberes que determina a prtica pedaggica doprofessor, refletindo sobre a complexidade de tal processo, a maneira como o
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formador interfere na construo dos saberes e como os professores se
relacionam com os diversos espaos/tempos de formao continuada.
H alguns anos os Parmetros Curriculares Nacionais1haviam proposto
a Educao Ambiental como tema transversal e, em decorrncia, vrios
projetos chegavam s escolas de todo o pas. A curiosidade de menina queria
se transformar em curiosidade da pesquisadora, mas incomodava-me o modo
de fazer pesquisa em educao, principalmente, o distanciamento existente
entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa.
Um novo encontro, agora com as professoras Leila Chalub e Lais
Mouro, me apresentou a um novo caminho: reencontrei Paulo Freire, conheci
Edgar Morin e Ren Barbier; aprendi a ver o cerrado com novos olhos.
Desconfiei que houvesse uma relao entre a questo ambiental e a
problemtica da fragmentao dos saberes, que h muito me instigava. Fui
tateando no escuro, procurando pistas, arriscando ideias.
Cheguei ao Mestrado em Desenvolvimento Sustentvel do CDS2 com
um projeto de pesquisa que pretendia buscar um olhar complexo sobre a
Educao Ambiental em articulao com a formao continuada de
professores. Esta busca significaria o desafio de superar os condicionamentos
socioculturais que engendram a lgica do meu pensamento e que me leva a
negligenciar e a recusar tudo o que no est de acordo com as crenas,
convices e verdades aprendidas no seio da cultura em que fui criada.
Mas, se h determinaes scio-noo-culturais que aprisionam o
conhecimento, impondo-se para garantir verdades absolutas e certezas,
preciso considerar tambm as condies que mobilizam e libertam o
conhecimento, que permitem a autonomia do pensamento; as brechas para
buscar outras formas de entender as coisas, de libertar da priso paradigmticaas formas de pensar. Foi a este desafio que me lancei.
O mestrado significou o mergulho na questo ambiental e, por
caracterstica do CDS, que congrega estudantes de variadas formaes, o
contato formidvel com diversos sujeitos e seus saberes inscritos em variadas
reas do conhecimento. Cursei disciplinas variadas, que percorriam diversos
campos do saber: cincias naturais, economia, direito, gesto, turismo,
1Referenciais curriculares propostos pelo Governo Federal vigentes a partir de 1997.2Centro de Desenvolvimento Sustentvel da Universidade de Braslia
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polticas pblicas. A elaborao de trabalhos coletivos nos colocava frente ao
desafio de dialogar com uma diversidade de sujeitos, saberes e experincias.
Conheci uma comunidade remanescente de quilombo do noroeste do
Estado de Gois, apaixonei-me e fiz daquele lugar meu lcus para a pesquisa
de campo. Em 2006 desenvolvi na escola dessa comunidade um projeto de
formao continuada para suas professoras, com o objetivo de, por meio de
oficinas de Educao Ambiental, promover a religao dos saberes, para que a
comunidade se fortalecesse como coletivo social e pudesse reconstruir sua
histria de vida e territorialidade.
Durante um ano estive mensalmente na comunidade. A experincia
extrapolou os muros da escola e a proximidade com os sujeitos da
comunidade, sua cultura, seus dilemas, enfim, com a vida daquele lugar, foi
para mim formativa, transformadora. A religao que eu pretendia operou-se
em mim. Reencontrei-me com a vida na roa que conheci na infncia, com a
ancestralidade que compe uma neta de camponeses.
Em maro de 2007 defendi, para uma banca composta pelas
professoras Dras. Leila Chalub e Lais Mouro e pelo Prof. Dr. Miguel Arroyo, a
dissertao intitulada Tramando En-cantos do Forte: saberes e dilogos nos
caminhos complexos da Educao Ambiental.
Em seguida fui convidada pelas professoras Lais Mouro e Mnica
Molina para compor a equipe do recm-criado Centro Transdisciplinar de
Educao do Campo e Desenvolvimento Rural CETEC, da Universidade de
Braslia, e dedicar-me, entre outros, realizao da Licenciatura em Educao
do Campo.
Desde abril de 2007 empenhei-me em viabilizar a Licenciatura, em um
esforo contnuo de busca, na estrutura da UnB, das condies para tal, doprocesso seletivo ao registro dos candidatos aprovados, da coordenao geral
docncia de disciplinas.
Atuar na Licenciatura em Educao do Campo significou mergulhar em
um campo novo, que emergiu durante a realizao do mestrado, e que me
reaproxima do campo da educao e das teorias pedaggicas: a Educao do
Campo.
A vivncia na Educao do Campo, com os estudantes, nascomunidades, fortaleceu o enraizamento que por tantos anos ficou esquecido:
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sou neta de campons, filha de um homem que nasceu no campo e dali saiu
para estudar. Passei os fins de semana da infncia em uma casa de adobe,
tomando banho de rio, comendo fruta no p.
Trazendo na bagagem a formao como pedagoga, a experincia e a
ancestralidade, e a ausncia de vinculao com as lutas sociais, lancei-me a
um novo desafio, do qual faz parte a realizao do doutorado e a escrita desta
tese.
Minha segurana se alicera no saber confirmado pela prpria
experincia de que, se minha inconcluso, de que sou consciente, atesta, de
um lado, minha ignorncia, me abre, de outro, o caminho para conhecer.
(Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia)
A Licenciatura em Educao do Campo
O curso de Graduao de Licenciatura em Educao do Campo (LEdoC)
fruto de um movimento educativo que tem construdo um novo paradigma de
educao e de escola para os povos do campo, forjado pelos movimentos
sociais que, nas tenses da luta por um novo projeto de campo e de pas,
conferem novos significados para a educao dos trabalhadores.
A Licenciatura em Educao do Campo insere-se na histria de luta por
uma poltica nacional de formao de educadores do campo e por condies
de vida no campo3. No processo de reivindicao realizado em 1998 a I
Conferncia Nacional Por Uma Educao do Campo4CNEC, que inaugura
uma nova referncia para o debate da questo: a Educao do Campo, como
contraponto ao silncio do Estado e aos 500 anos de abandono da educao
rural.
O termo Educao do Campo, batizado na I CNEC, fruto da luta
dos educadores e educadoras do campo pelo direito educao. Refere-se
3Campo compreendido como lugar de vida, de cultura, produo, moradia, educao, lazer,cuidado com o conjunto da natureza, e novas relaes solidrias que respeitem aespecificidade social, tnica, cultural e ambiental dos seus sujeitos (II CONFERNCIA, 2004),
como espao de democratizao da sociedade brasileira e de incluso social e, portanto,vinculado a um novo projeto de desenvolvimento do pas.4Promovida pelo MST, UNICEF, UNESCO, CNBB e UnB
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educao como um direito dos povos que vivem do e no campo, que somente
ser garantido se articulado ao direito terra, gua, permanncia no
campo, ao trabalho, s diferentes formas de produo e reproduo social da
vida, cultura, aos valores, s identidades e s diversidades.
Em 2004, a II CNEC aponta a falta de docentes com formao adequada
como um dos maiores entraves para a ampliao da oferta da Educao do
Campo, especialmente do Ensino Mdio.
Em resposta luta dos movimentos sociais do campo o Ministrio da
Educao (MEC) cria o Programa de Apoio Formao Superior em
Licenciatura em Educao do Campo (Procampo) com o objetivo de apoiar a
implementao de cursos regulares de licenciatura em educao do campo nas
instituies pblicas de ensino superior do pas O Programa volta-se
especificamente para a formao de educadores para a docncia nos anos
finais do ensino fundamental e ensino mdio nas escolas do campo.
Em 2007 o MEC por intermdio da Secretaria de Educao Superior e
da Secretaria de Educao Continuada Alfabetizao e Diversidade convida a
Universidade de Braslia (UnB) para protagonizar, junto a outras quatro
universidades federais, um projeto piloto de licenciatura em educao do
campo. O curso, que se inicia em 2007 como projeto, aprovado pelo
Conselho Universitrio da Universidade de Braslia e torna-se um curso regular,
ofertando 60 vagas anualmente.
No entanto, importante salientar, a LEdoC no marca a entrada da
Educao do Campo na universidade, que se inicia uma dcada antes quando
professores de universidades brasileiras que vinham desenvolvendo atividades
na rea de educao nos projetos de assentamento da Reforma Agrria, os
movimentos sociais do campo e parceiros realizam o I Encontro Nacional dasEducadoras e Educadores da Reforma Agrria ENERA (1997) e, na
sequencia de lutas pelo direito educao dos povos do campo, conquistam a
criao do Programa Nacional de Educao na Reforma Agrria PRONERA,
em 1998.
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O PRONERA5 criado com o objetivo de fortalecer a educao nas
reas de Reforma Agrria tendo como referncia o desenvolvimento
sustentvel e utilizando metodologias especficas que respeitassem as
especificidades do campo e seus sujeitos.
Portanto, o Procampo traz consigo os nove anos de experincias do
PRONERA na realizao de diversos processos formativos em parceria com
universidades pblicas, em cursos de Pedagogia da Terra, Licenciaturas,
Direito, Agronomia, entre outros.
A LEdoC tem como objeto a escola de Educao Bsica do Campo,
com nfase na construo da organizao escolar e do trabalho pedaggico
para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Mdio e como
objetivo formar educadores do campo para atuarem na Educao Bsica em
escolas do campo. Pretende, simultaneamente, contribuir para a construo
coletiva de um projeto de formao de educadores que sirva como referncia
para polticas de Educao do Campo.
Tal experincia colocada em marcha em um novo campus, a
Faculdade UnB Planaltina, criado no contexto de expanso da Universidade de
Braslia, possibilitando LEdoC reconhecimento e participao em sua
construo.
O curso assumido por uma pequena equipe docente, da qual fao
parte, ampliada por uma diversidade de docentes-voluntrios oriundos de
vrios departamentos da prpria UnB e de outras universidades do pas, alm
de estudantes de ps-graduao, que se lanaram ao desafio de receber os
sujeitos do campo, historicamente excludos da universidade pblica em nosso
pas.
O desafio da Licenciatura em Educao do Campo no est apenas naespecificidade de seus sujeitos, mas comea na prpria materialidade de
origem da Educao do Campo. A Educao do Campo no uma proposta
pedaggica para as escolas do campo e o desafio da Licenciatura, portanto,
no est na organizao do trabalho pedaggico em si.
5O Programa Nacional de Educao na Reforma AgrriaPRONERA criado em 16 de abril
de 1998, por meio da Portaria N. 10/98 do Ministrio Extraordinrio de Poltica Fundiria.Inicialmente vinculado ao Gabinete do Ministro, em 2001 o Programa incorporado ao INCRA.
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A Educao do Campo, como afirma insistentemente Roseli Caldart, s
pode ser compreendida na trade campo - poltica pblica - educao.
O debate do campo precede o da educao, ou seja, no se trata de
discutir a educao em uma perspectiva apenas pedaggica. O campo o
primeiro elemento da trade porque a Educao do Campo nasce da luta dos
sujeitos do campo, campo real, das lutas sociais, da luta pela terra, pelo
trabalho, de sujeitos humanos e sociais concretos; campo das contradies de
classe efetivamente sangrando (CALDART, 2007, p. 3). Nasce destas
contradies, da precariedade das condies de vida no campo, da luta por um
projeto de campo em contraposio ao projeto capitalista de um campo sem
gente.
A Especificidade da Educao do Campo , portanto, o campo, seus
sujeitos e seus processos formadores.
A Educao do Campo negatividade, no sentido de luta e de negao
das condies desumanas postas pela sociedade capitalista; mas tambm
positividade, pois sem se encerrar na denncia empreende prticas concretas
de educao, de polticas pblicas, de produo; e ainda superao, pois tem
um projeto de construo de outra concepo de campo, de cidade, de
sociedade, de educao e de escola em uma perspectiva de transformao
social e de emancipao de homens e mulheres (CALDART, 2007). uma
utopia no sentido dado por Paulo Freire e Eduardo Galeano.
A Educao do Campo afirma uma determinada concepo de
educao. Educao compreendida no sentido da especificidade dos
processos formativos dos sujeitos do campo, das matrizes que formam estes
sujeitos, no se limitando a discusso pedaggica de uma escola para o
campo, nem de aspectos didticos e metodolgicos, ao mesmo tempo em quesignifica a construo pelos sujeitos do campo de um novo desenho para as
escolas do campo, que possa ter as matrizes formadoras dos sujeitos como
espinha dorsal, que possa estar adequado s necessidades da vida no campo
e que, fundamentalmente, seja formulado pelos sujeitos do campo, tendo o
campo como referncia e como matriz.
Isso demarca uma concepo de educao em perspectiva socialista e
emancipatria que pensa a natureza da educao vinculada ao destino dotrabalho: educar os sujeitos para um trabalho no alienado, para intervir nas
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circunstncias objetivas que produzem o humano. No se trata da relao
entre educao e trabalho da viso neoliberal, que subordina a educao s
exigncias de relaes de trabalho de um determinado modelo de
desenvolvimento social pautado pelos interesses do mercado capitalista, em
cada momento histrico.
A materialidade de origem da Educao do Campo, a novidade
epistemolgica que representa, os sujeitos que traz para a Universidade, faz
com que sua implementao no seja trivial, no seja apenas mais um curso
que a UnB oferece. Mas por qu?
Porque a demanda dos movimentos sociais pela construo de um
conhecimento cientfico que contribua com a formulao de um novo projeto de
sociedade, o que coloca em questo o paradigma de produo de
conhecimento da universidade pblica.
A universidade pblica que, a servio da cincia cartesiana, excluiu a
vida, as lutas sociais, a produo da existncia dos sujeitos, se v diante da
emergncia de colocar em dilogo a cincia e a vida, o saber cientfico e o
saber feito da experincia.
Trata-se de um processo de transio de paradigmas, em que est em
jogo a mudana na correlao de foras. A presena dos movimentos sociais
do campo no territrio acadmico, fruto de seu processo de luta pelo direito
educao, coloca em disputa paradigmas e ideologias, territrios imateriais.
No contexto de transio paradigmtica e de crise da universidade a
Licenciatura em Educao do Campo pode atuar como uma possibilidade de
construo de novos sentidos, ocupando as brechas surgidas no paradigma
emcrise e provocando novas fissuras que promovam transformaes.
Colocam-se, ento, algumas questes. Quais so as brechas capazesde abrir o caminho para a mudana das relaes de produo do
conhecimento cientfico? Como fazer, nessa transio, o exerccio de uma
nova racionalidade e de novas prticas capazes de construir um novo projeto
de sociedade, novas formas de relaes sociais?
Como a universidade trilhar este caminho, que estratgias construir
para transformar sua forma cartesiana e instituir um novo modo de formar
educadores a questo que se coloca para a Licenciatura em Educao doCampo. Que espaos educativos? Que prxis? Que estratgias criamos?
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Nesta trajetria teremos que refletir sobre duas questes centrais: em
que medida se consegue incorporar prtica pedaggica universitria,
historicamente centrada nos conhecimentos cientficos, os saberes da vida, do
trabalho, dos movimentos sociais, da tradio camponesa, para alm de
apenas reconhecer que os sujeitos do campo tm saberes, que produzem
saberes? O que emerge da interao (antagonismos, complementaridades e
concorrncias) entre a estratgia formativa da Licenciatura em Educao do
Campo e as estratgias pedaggicas da Universidade?
O caminho que se est construindo a partir da Licenciatura em
Educao do Campo da Universidade de Braslia novo e incerto. Incerteza
que no significa ausncia de meta, de rumo, de projeto, mas sim, o
reconhecimento de que se trata de um caminho a ser construdo, de picadas
a serem abertas no mato alto.
Dedicar um olhar atento Licenciatura em Educao do Campo
fundamental para a Universidade de Braslia. Significa a postura crtica da
Universidade diante de uma inovao que ela protagoniza por meio da LEdoC,
refletindo, durante a trajetria do curso, sobre as diversas questes que
emergem do dilogo com os sujeitos do campo, sobre as incertezas e riscos do
processo, e produzindo conhecimento a partir desta experincia.
necessidade de reflexo aliou-se oportunidade de faz-la por meio
de uma pesquisa implicada, em que a Licenciatura poderia se ver e ser vista
por seus prprios sujeitos, no percurso da caminhada a partir da segunda
turma.6Minha atuao na Licenciatura em Educao do Campo, compondo a
equipe de coordenao e atuando como docente, e tendo participado desde os
primeiros momentos de formulao da proposta pedaggica e do currculo,
oferecem tal oportunidade.Esta pesquisa pauta-se pelo pressuposto de que a Licenciatura em
Educao do Campo significa uma inovao para a formao de educadores,
pelos princpios que adota tomando como referncia a luta dos movimentos
sociais do campo, pela nova forma de organizao do trabalho pedaggico que
6A primeira turma, iniciada em 2007, em parceria com o Instituto Tcnico de Capacitao ePesquisa da Reforma Agrria (ITERRA), foi realizada nas dependncias do Instituto de
Educao Josu de Castro, em Veranpolis/RS. Portanto, a partir da segunda turma que aLicenciatura em Educao do Campo passa a ocupar espao dentro da Universidade deBraslia e a questionar sua forma.
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a alternncia7exige, pelo movimento contnuo de ao e reflexo necessrio
sua realizao, propondo contribuir sistematizando sua trajetria dentro da
Universidade de Braslia.
Universidade pblica e transio entre paradigmas
A universidade, fundada sob a lgica da cincia e do poder, para formar
quadros para o Estado ou mercado e, portanto, distante da sociedade e dos
interesses sociais, um espao de disputas, disputa de conhecimentos, de
pesquisa, de ideologias (S; MOLINA; FREITAS, 2010).
As classes dominantes impem universidade seu modo de pensar a
educao, reduzindo o sentido do que pblico, desarticulando educao,
capitalismo e luta de classes, psicologizando e tecnicizando o pensamento
educacional (LEHER, 2010).
Mas a universidade pblica tambm um espao de contradies, onde
se constroem ideologias e hegemonias e, portanto, pode ser espao de
produo de contra-hegemonia. neste sentido que os movimentos sociais
disputam o espao acadmico, por seu papel contra-hegemnico no debate e
formulao de um novo projeto de campo e de pas (S; MOLINA; FREITAS,
2010; JEZINE, 2010), desafiando a universidade a repensar seu papel social.
Em especial, fazem emergir a preocupao com a educao da classe
trabalhadora.
Recorremos a Leher (2010) para tratar da relao da universidade com a
educao da classe trabalhadora. Segundo o autor, a temtica da educao da
classe trabalhadora perdeu relevncia na academia com a ofensiva neoliberal
ao movimento de renovao pedaggica protagonizado pelos movimentos
sociais a partir de 1980, que retomaram as discusses e prticas de Educao
Popular. A presena da temtica, sem apoio das agncias nacionais e
internacionais de financiamento, ficou enfraquecida na ps-graduao
enquanto estavam fortalecidas perspectivas neopositivistas, ps-modernas e
pedaggicas psicologizadas.
7Estratgia de organizao curricular do Curso que ser abordado nos captulos seguintes.
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Sob tal ofensiva, o pensamento educacional produzido na educao
popular, assim como o pensamento socialista, estiveram ausentes na
academia, ou estudados em perspectiva estritamente pedaggica,
desvinculada da poltica. exemplar o estudo de Paulo Freire como mtodo de
alfabetizao.
So os movimentos sociais que vo gradativamente restabelecendo os
nexos entre educao, capitalismo e classe. Mas a fora da ideologia neoliberal
complexa e atua conformando, at mesmo ao que se opunham ao
capitalismo (sindicatos, partidos polticos, movimentos sociais), ideia de que
no existe alternativa integrao capitalista dependente na economia mundial
(LEHER, 2010).
Nas palavras de Leher, o transformismo da maior parte da esquerda
coloca os socialistas (anticapitalistas) diante de um spero desafio: o de
reverter a vitria do capitalismo dependente e de sua correspondente barbrie,
expressas na naturalizao da ideologia neoliberal (2010, p. 26). A educao
popular e a formao poltica so eixo central dos movimentos de massa que
no se subordinam barbrie e, mesmo considerando com Mszros que a
educao para todos, omnilateral e centrada no trabalho s ser possvel em
uma sociedade para alm do capital, preciso empreender no contexto atual a
batalha das ideias (Ibid.), produzindo ideias que possibilitem romper com o
neoliberalismo.
Ainda segundo Leher, os movimentos e os setores classistas na
universidade precisam forjar um espao de produo de conhecimento contra a
ordem social vigente, recusando aquele que no esteja comprometido com as
lutas sociais, pois so as lutas sociais que fazem mover a histria.
[...] para produzir conhecimento novo, a teoria no ser construda apartir de um ponto zero (a tradio crtica reinventada) e tampoucoest pronta. A teoria, igualmente, no pode ser produzida emambientes asspticos, alheios s lutas de classes e ao calor dasbatalhas sociais. O conhecimento emancipatrio tem de ser a prxisemancipatria e libertria conforme ensinou Paulo Freire e, maisrecentemente, protagonistas como os povos indgenas e camponesesZapatistas (no Mxico), o CONAIE (no Equador) e os camponeses doMST (no Brasil). (Ibid., p. 28)
Trata-se de recusar os pressupostos e categorias centrais de umacincia acrtica e eurocentrada, a servio da extrao da mais-valia, que opera
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na separao entre trabalho manual e intelectual e produz tecnologia para um
modelo de desenvolvimento predador dos recursos naturais e humanos (Ibid.)
Para construir um conhecimento novo preciso um dilogo de novo tipo entre
universidade e movimentos sociais.
Leff (2004) contribui com a discusso quando prope o dilogo de
saberes como meio de construo de uma nova racionalidade que se
contraponha racionalidade capitalista dominante. Para o autor, a construo
de uma nova racionalidade se faz na busca de novas matrizes e implica a
formao de um novo saber que articula os conhecimentos fragmentados,
extrapolando as disciplinas tradicionais e a articulao das cincias pretendida
pela interdisciplinaridade, para abrir-se ao terreno dos valores ticos, dos
conhecimentos prticos e saberes tradicionais, por meio do dilogo de saberes.
O dilogo de saberes compreendido como um dilogo entre seres
marcados pela diversidade de saberes, que questiona o projeto totalizante do
conhecimento objetivo e se inscreve em uma revoluo paradigmtica.
Pretende articular o real, o simblico e o imaginrio, estabelecendo um espao
de sinergias e complementaridades entre saberes e apontando para novas
formas de compreenso deste mundo e desta realidade (Ibid., 2001, 2003).
A Educao do Campo traz para o dilogo os sujeitos do campo e seus
saberes. Sujeitos porque no h o sujeito do campo, h sim uma diversidade
de sujeitos que incluem, entre outros, camponeses, ribeirinhos, povos da
floresta, quilombolas, indgenas, enfim, uma diversidade riqussima de sujeitos
coletivos, de identidades, de riquezas culturais. (ARROYO, 2005)
A luta dos movimentos sociais pela ocupao de seu lugar no processo
de produo de conhecimento cientfico significa para a universidade pblica
um momento de transio, oportuno para que se abra um espao de escutadas experincias e saberes desses movimentos, e a universidade possa
constituir-se como espao de dilogo. A universidade que se pretende
democrtica, comprometida com a construo de um novo projeto de
sociedade, deve assumir a tarefa de criar condies institucionais para a
transio paradigmtica.
Paradigmas so os princpios ocultos, tcitos que organizam o
pensamento. Esto no ncleo no s do sistema de ideias como de toda
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cogitao8e, portanto, controlam a lgica, embora sejam por ela controlada. O
paradigma parece ser do domnio da lgica, mas est escondido debaixo da
lgica; infralgico (subterrneo lgica), pr-lgico (anterior sua utilizao)
e supralgico (superior lgica); inconsciente e sobreconsciente (irriga o
pensamente consciente e controla-o); subterrneo e soberano (MORIN, 1991).
Para Morin (1991, p.188), os indivduos conhecem, pensam e agem
segundo os paradigmas inscritos culturalmente neles. Assim, tanto os
raciocnios individuais como os sistemas de ideias so organizados em virtude
dos paradigmas, que se referem no apenas ao saber cientfico, mas a todo
conhecimento, todo o pensamento, todo o sistema noolgico9.
O grande paradigma ocidental, caracterizado pela disjuno que opera
entre sujeito/objeto; alma/corpo; esprito/matria; qualidade/quantidade; finali-
dade/causalidade; sentimento/razo; liberdade/determinismo; existncia/
essncia; exerce seu domnio na universidade que, por seu turno, alimenta o
paradigma.
Invisvel e invulnervel, o paradigma no pode ser atacado nem vencido
diretamente, preciso que ele tenha gretas, fissuras, eroses, corroses no
edifcio das concepes e teorias que segura; preciso que fracassem as
tentativas de restauraes e reformas; preciso que surjam novas teses ou
hipteses que no mais obedeam ao paradigma e, por fim, que as novas
teses se multipliquem e se confirmem onde as antigas fracassaram (Ibid. p.
193).
A universidade fechada em si, em seus mtodos, tcnicas e saberes
cientficos provoca crises, como formula Santos (1996), afirmando que o
paradigma dominante atravessa uma profunda crise, resultado de uma
diversidade de condies sociolgicas e tericas.
8 Cogitao uma emergncia da computao pela complexificao do aparelho cerebral
humano, ou seja, os processos computantes assumem no homem a forma cogitante(pensamento, linguagem, conscincia). Todo ser vivo efetua atividades computantes quecomportam as instncias informacional (extrai informao do meio), simblica (codifica ainformao em signos /smbolos), memorial (memoriza) e logicial (manipula/trata ossignos/smbolos efetuando operaes de associao conjuno, incluso, identificao - eseparaodisjuno, oposio, excluso). No homem o computo torna-se cogito por meioda linguagem, do pensamento, e da conscincia. (MORIN, 1996)9Noosfera um termo forjado por Teilhard de Chardin nos anos 20 para conceituar o universo
onde habitam nossos smbolos, idias e mitos, indispensveis vida social. Noologia, por seuturno, o estudo dos seres que habitam a noosfera e seus princpios de organizao (MORIN,1991).
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As condies sociolgicas esto assentadas na industrializao da
cincia que, ao estabelecer um compromisso com o poder econmico, social e
poltico levou ao colapso as ideias de autonomia da cincia e da neutralidade
do conhecimento cientfico A industrializao da cincia caracteriza-se pela
definio das prioridades cientficas em funo de tais compromissos; pelas
relaes de poder autoritrias e desiguais entre os cientistas; pelo
aprofundamento do fosso entre os pases centrais e perifricos em decorrncia
de uma investigao baseada em instrumentos caros e raros (SANTOS, 1996).
Nas palavras de Santos (1978, p.15) o compromisso da cincia com o modo
de produo material acarretou o seu compromisso com o sistema social e,
portanto, a sua corresponsabilizao na criao e gesto das contradies e
conflitos dele emergentes (e dele decorrentes) e suas repercusses, quer a
nvel interno, quer a nvel internacional.
Em um movimento convergente, a concepo de universidade como
lugar privilegiado de produo de conhecimento cientfico avanado, formadora
das elites e isolada das demais instituies sociais, fundada na dicotomia entre
alta cultura/cultura popular, educao/trabalho, teoria/prtica, entrou em crise10.
Esta crise de hegemonia, segundo Santos (2005)se d na medida em que a
universidade, incapaz de responder s exigncias sociais emergentes, leva os
grupos sociais ou o Estado a buscar alternativas para atingir seus objetivos,
fazendo com que deixe de ser considerada nica e exclusiva.
As contradies entre as funes da universidade produzem uma tripla
crise. Alm da crise da hegemonia, que emerge da contradio entre
conhecimentos exemplares e conhecimentos funcionais, e que considerada
por Santos (2005) como a mais profunda, manifestam-se ainda: a crise da
legitimidade, da contradio entre hierarquizao e democratizao; a criseinstitucional, da contradio entre autonomia institucional e produtividade
social11.
Se a hegemonia da universidade no pode ser pensada fora das
dicotomias em que est fundada - alta cultura/cultura popular,
educao/trabalho, teoria/prtica a crise de hegemonia leva ao
10Para Santos (2005) o questionamento da universidade um fenmeno to antigo quanto ela
prpria, porm considera legtima a ideia de crise da universidade considerando que talquestionamento vem se intensificando nos ltimos anos.11Ver Santos (2005)
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questionamento de tais disjunes. Neste contexto, a universidade criticada
por no mobilizar os conhecimentos produzidos e acumulados em favor das
problemticas sociais e dos interesses dos grupos sociais dominados.
A crise indica a necessidade de pensar em outro modelo de atuao
universitria que, no contexto de transio paradigmtica, transforme seus
processos de produo de conhecimento e seus princpios, tornando-se um
espao de confronto entre saberes.
As configuraes de saberes so sempre, em ltima instncia,configuraes de prticas sociais. A democratizao da universidademede-se pelo respeito do princpio da equivalncia dos saberes epelo mbito das prticas que convoca em configuraes inovadorasde sentido. A universidade ser democrtica se souber usar o seusaber hegemnico para recuperar e possibilitar e desenvolvimentoautnomo de saberes no-hegemnicos, gerados nas prticas dasclasses sociais oprimidas e dos grupos ou estratos socialmentediscriminados (SANTOS, 2005, p. 228).
A pergunta em que medida a LEdoC atua nas brechas provocadas
pela crise de hegemonia da universidade pblica, atuando de forma contra-
hegemnica para formar os intelectuais da classe trabalhadora do campo.
Contra-hegemonia e formao de intelectuais orgnicos
Para Gramsci cada grupo social possui sua prpria categoria
especializada de intelectuais, ou seja, cria para si, de um modo orgnico, uma
ou mais camadas de intelectuais, para atender necessidade de expanso da
prpria classe.
No existem homens no intelectuais. Intelectual todo homem, mesmo
que s alguns assumam a funo de intelectual na sociedade.Todo homem exerce uma atividade intelectual criadora, o que significa
dizer que o operrio, por exemplo, no se caracteriza pela atividade fsica e
instrumental que exerce, mas por determinadas relaes sociais, pois, em
qualquer trabalho fsico, mesmo o mais mecnico e degradado, existe um
mnimo de qualificao tcnica, isto , um mnimo de atividade intelectual
criadora (GRAMSCI, 1991, p. 7). No existe atividade humana em que esteja
excluda a atividade intelectual, ou seja, no se pode separar o homo faberdo
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homo sapiens, mesmo considerando que existam graus diversos de atividade
especfica intelectual.
Em suma, todo homem, fora de sua profisso, desenvolve umaatividade intelectual qualquer, ou seja, um filsofo, um artista, um
homem de gosto, participa de uma concepo de mundo, possui umalinha consciente de conduta moral, contribui assim para manter oumodificar uma concepo de mundo, isto , para promover novasmaneiras de pensar (Ibid., p. 7-8).
No sentido dado por Gramsci, intelectual todo aquele que exerce uma
funo organizativa na sociedade, seja no campo da produo, no campo
poltico e administrativo, ou no cultural. So categorias especializadas
formadas pelos grupos sociais em seu desenvolvimento histrico para o
exerccio da funo intelectual.A importncia das categorias intelectuais no mundo moderno faz surgir a
escola, como vimos, para desenvolver a intelectualidade dos indivduos,
multiplicar e aperfeioar as especializaes e promover a alta cultura.
Gramsci afirma que a escola o instrumento para elaborar os intelectuais de
diversos nveis (Ibid., p.9).
A diferente distribuio dos diversos tipos de escola (clssicas eprofissionais) no territrio econmico e as diferentes aspiraes das
vrias categorias destas camadas determinam, ou do forma, produo dos diferentes ramos de especializao intelectual. (Ibid.,p.20)
Contrapondo-se concepo burguesa de educao, Gramsci afirmou
que para a classe trabalhadora era preciso formular uma nova concepo de
escola, indicando que nem um estudo objetivo, nem uma cultura
desinteressada12 pode ter lugar nas nossas filas (. ..) (GRAMSCI apud DEL
ROIO, 2006, p. 353).
Na Itlia, a escola de classe burguesa, expressa na sequencia ginsio-
liceu-universidade, formava a classe dirigente. Para a classe operria o Estado
burgus organizou a escola popular e a escola profissional, cuja funo social
era manter a diviso de classe, fazendo com que o filho do operrio fosse
tambm um operrio.
12 Desinteressada no tem um sentido de neutralidade, mas de uma orientao que no meramente prtica ou imediatista.
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O conhecimento cientfico, nas condies instauradas sob o domnioburgus, est fora do alcance da classe operria, que fica submetidaa um conhecimento fragmentado, derivado da prtica profissional e auma baixa auto-estima, prpria dos dominados. Da a necessidadedessa classe criar instituies prprias que organizem oconhecimento. (Ibid., p. 325)
A luta contra o capitalismo e a instaurao de um Estado operrio
pressupunha a formao de uma massa de intelectuais orgnicos da classe
operria em estreito vnculo com o processo de trabalho, que lhe fizessem
capazes de conduzir o controle social da produo, fundamento do objetivo
revolucionrio (Ibid.).
Gramsci formula, portanto, a ideia sobre o papel dos intelectuais,
orgnicos ou tradicionais, na construo da hegemonia de classe,compreendendo que sua relao com a sociedade histrica e se modifica
segundo as situaes que vivem as sociedades (NOSELLA, 2002).
Os intelectuais orgnicos (profunda e explicitamente envolvidos com sua
classe) no so necessariamente progressistas, assim como os intelectuais
tradicionais (clero, escritores, professores, filsofos, etc.) no so sinnimos de
conservadorismo de direta. Esta compreenso fundamental para entender
que o educador, que exerce seu compromisso poltico essencialmente nombito do poder ideolgico, no efetiva tal compromisso somente por uma
militncia orgnica, mas o compromisso se expressa na forma e no contedo
do prprio ato pedaggico, afirma Nosella (2002).
neste sentido que expressamos a perspectiva contra-hegemnica da
LEdoC, que assume o compromisso poltico de contribuir com o acmulo de
foras e com a construo de uma nova cultura para a disputa da hegemonia
pela classe trabalhadora do campo.
O termo hegemonia, de origem Grega, se converte em conceito de teor
poltico ao integrar a tradio marxista, mas Gramsci que aprofunda e
reformula o conceito analisando como a burguesia produz e reproduz sua
dominao nas sociedades capitalistas modernas, tendo como referncia a
Itlia do incio do sculo XX (PRONKO & FONTES, 2012).
Segundo Gramsci, hegemonia um complexo sistema de relaes e de
mediaes, um conjunto de atividades culturais e ideolgicas protagonizadas
por intelectuais, que organizam o consenso e a capacidade de direo. Uma
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classe mantm seu domnio por ser capaz de, indo alm de interesses
corporativos estreitos, conformar todo o conjunto da sociedade s suas formas
de pensar, sentir e agir (PRONKO & FONTES, 2012; NOSELLA, 2002).
Hegemonia no , portanto, apenas exerccio de poder, de dominao
de uma parte da sociedade por outra, mas antes a direo que se exerce com
o consentimento da sociedade, fruto da legitimidade histrica que uma
determinada classe conquistou (NOSELLA, 2002).
O conceito gramsciano de hegemonia precisa ser compreendido no bojo
da concepo ampliada de Estado que formula. Para Gramsci existem dois
grandes planos superestruturais: a sociedade poltica ou Estado, que exerce o
domnio direto ou o comando de uma sociedade; e a sociedade civil, que
corresponde funo de hegemonia que a classe dominante exerce no
conjunto da sociedade por meio dos aparelhos privados de hegemonia
(PRONKO & FONTES, 2012). A concepo de Estado, portanto, vai alm do
aparelho estatal para incorporar as organizaes que atuam na sociedade civil.
Neste sentido, hegemonia no apenas um conjunto de instrumentos de
coero, mas um sistema de liderana intelectual e de produo de consenso.
Por sua vez, revoluo no apenas a tomada de poder do aparelho poltico-
coercitivo (Estado em sentido estreito), mas pressupe a construo de contra-
hegemonia, de um modo prprio de pensar, sentir e agir das classes
dominadas/oprimidas que, organizadas, so capazes de exercer a direo
intelectual e moral da sociedade, para superar a diviso de classe e libertar das
formas de opresso. Aqui Paulo Freire, para quem a tarefa histrica dos
oprimidos a de superar a contradio opressor-oprimido, encontra-se com
Gramsci.
A hegemonia, embora dominante, no esttica nem absoluta, masenraizada nos processos de luta e, portanto, toda relao de hegemonia
pressupe, como possibilidade, a existncia de experincias, relaes e
atividades contra-hegemnicas (Ibid., p. 392).
A perspectiva contra-hegemnica da LEdoC est na realizao de uma
prxis pedaggica em que a produo de conhecimento seja realizada pelos
prprios trabalhadores, eliminando a diviso entre trabalho manual e
intelectual; explicitando a luta de classes e as contradies da sociedadecapitalista e produzindo conhecimento a partir delas; superando a
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fragmentao ao vincular o conhecimento cientfico e humanista prtica
social.
Objeto de estudo, metodologia e estrutura do trabalho
Esta pesquisa tem como objeto de estudo as estratgias de organizao
do trabalho pedaggico na formao de educadores do campo, tendo em vista
seus impactos contra-hegemnicos na transformao da lgica dominante na
universidade pblica, com os seguintes objetivos:
Objetivo Geral: Realizar uma anlise crtica da organizao do trabalho
pedaggico na LEdoC, identificando inovaes e submisses ao paradigma
dominante na universidade, em relao ao paradigma da Educao do Campo.
Para tanto empreendi a tarefa de sistematizar a experincia da
LEdoC/UnB no perodo de 2008 a julho de 2011, no que se refere
organizao do trabalho pedaggico, tendo como referncia:
- A concepo de educao e de escola do movimento da Educao do
Campo;
- Os limites e possibilidades colocados na relao dialtica com as
estratgias pedaggicas e administrativas da universidade pblica;
- A possibilidade de uma concepo de universidade pblica e de prxis
acadmica que se articule com os princpios da Educao do Campo.
O encaminhamento metodolgico tem como orientao a pesquisa-ao,
um tipo de pesquisa social de base emprica e argumentativa, concebida e
realizada em estrita associao com uma ao e na qual o pesquisador e os
participantes esto envolvidos de forma cooperativa ou participativa
(THIOLLENT, 1988). Apesar de ser considerada uma pesquisa do tipo
participativa, difere da Pesquisa Participativa, pois no se limita observao
participante, mas exige realmente uma ao por parte das pessoas ou grupos
envolvidos no problema sob observao e, ainda, pressupe uma ao no
trivial, ou seja, que problemtica e exige investigao para ser elaborada e
conduzida (Ibid.).
BARBIER (2002) prope uma pesquisa-ao existencial e integral,apresentando as noes necessrias para sua compreenso. Apresenta
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noes e no conceitos porque entende que a ideia de noo d nfase
compreenso, ao como, ao raciocnio por aproximaes, enquanto a ideia de
conceito tem nfase na explicao, no porque, no raciocnio lgico. Segundo
o autor, tais noes so entrecruzadas numa abordagem em espiral. So elas:
a complexidade, segundo o paradigma proposto por Morin; escuta sensvel;
pesquisador coletivo; negociao e avaliao; mudana; processo; autorizao;
implicao.
Estapesquisa se dar pela adoo de algumas noes propostas e de
alguns instrumentos do mtodo, combinando-os com outras estratgias, de
forma a adequar s caractersticas do objeto de pesquisa. Portanto, adotamos
as seguintes noes:
- Complexidade
Segundo Morin (2002) a complexidade um problema, um desafio e
no uma resposta, um desafio construo de um novo modo de pensar que
articula, faz pontes, pe em dilogo (no sentido de dialgica de vrias lgicas
simultneas), procura a interao/modos de relao (complementaridades,
antagonismos e concorrncias) entre os elementos de um fenmeno,
aproximando-se da realidade concebida como complexa.
Complexificar significa abandonar a ideia de que tudo aquilo que escapa
ordem - a desordem, a incerteza, etc. - deve ser rejeitado e, se possvel,
eliminado. Significa enfrentar as eventualidades, os erros, as incertezas e os
perigos do processo de conhecimento, estando consciente das mutilaes,
limitaes e iluses que operam neste processo.
O paradigma da complexidade traz pesquisa-ao seus trs princpios:
Dialgico: coexistncia dos processos antagnicos
Recursivo: os efeitos ou produtos de um processo so ao mesmo tempocausadores e geradores do prprio processo, ou seja, os estados finais
so necessrios gerao dos estados iniciais.
Hologramtico: a parte no est somente no todo, pois o todo est, ele
prprio, presente, de certa maneira, na parte que se encontra nele
(MORIN, 1991, p.73). No podemos reduzir o todo s partes nem as
partes ao todo. Assim, na relao parte-todo temos que: o todo maior
que a soma das partes, porque todo o estado global apresenta novasqualidades emergentes, alm das qualidades de seus componentes; o
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todo inferior soma das partes, porque toda a relao implica
imposies.
- Escuta Sensvel
A escuta sensvel diz respeito ao reconhecimento e aceitao
incondicional do outro, no sentido buberiano13de relao. O pesquisador apoia-
se na empatia para sentir o universo afetivo, imaginrio e cognitivo do outro,
para compreender, identificando-se com o outro. A escuta sensvel comea
por no interpretar para suspender todo o julgamento. [...] Ela aceita deixar-se
surpreender pelo desconhecido que, constantemente, anima a vida
(BARBIER, 2002, p. 97). S depois, estabelecida uma relao de confiana
entre os sujeitos, tratar-se- de atribuir um sentido aos fatos, sem esquecer
que cada experincia pessoal nica e no redutvel a um modelo qualquer. A
escuta sensvel afirma, ainda, uma atitude de coerncia do pesquisador que
tambm comunica suas emoes, seu imaginrio e seus sentimentos, para
estar inteiro, consistente, com o grupo. (BARBIER, 2002)
- Processo
A noo de processo, por sua vez, refere-se rede simblica e dinmica,
inscrita no tempo e no espao, construda pelo pesquisador. Um processo
repleto de incertezas, de estados que no podem ser previstos a priori, de
elementos que oscilam em um movimento de estruturao, desestruturao,
reestruturao ou exploso.
- Implicao
A implicao uma noo que se contrape e radicaliza o padroconvencional de separao entre sujeito e objeto de pesquisa, entre
observador e observado. Significa uma relao dialgica entre os sujeitos da
pesquisa, considerando o pesquisador um destes sujeitos. Assim, o que o
pesquisador observa e interpreta no independente da sua formao, de
13Para Buber atravs da palavra que o homem se introduz na existncia, se faz homem e sesitua no mundo com os outros. O homem , portanto, um ente de relao e o outro , assim, imprescindvel para sua realizao existencial. O que fundamenta sua existncia so as
palavras-princpio proferidas: EU-TU ou EU-ISSO, duas possibilidades do EU revelar-se comohumano. As palavras-princpio revelam atitudes do homem face ao mundo e diante do ser. Cf.Matin Buber. EU e TU. Trad. De Newton Aquiles Von Zuben. SP: Centauro, 2004.
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suas experincias e, sobretudo, de seu prprio mergulho na situao
investigada (THIOLLENT, 1988).
As fontes dos dados foram:
- Os registros da prpria pesquisadora sobre os momentos coletivos de
gesto pedaggica do Curso no perodo de 2008 a julho de 2011, enquanto
atuava na coordenao geral (administrativa e acadmica), na coordenao de
turmas e na docncia de quatro disciplinas;
- Os documentos oficiais e os produzidos durante seu desenvolvimento:
Projeto Poltico Pedaggico, programas, cronogramas, relatos, relatrios,
memoriais, etc.;
- O registro em gravao de debates entre a equipe docente durante
algumas das reunies pedaggicas;
- A memria da experincia da pesquisadora em sua atuao em todas
as instncias e tarefas do Curso.
O que pode parecer um privilgio para um pesquisador pela amplitude
de acesso ao objeto de estudo, e o , se constituiu tambm, antagnica e
complementarmente, na maior dificuldade para a elaborao deste texto.
Primeiro pela dificuldade do necessrio afastamento para alcanar um olhar em
que a neblina das relaes e emoes pudesse ser em parte dissipada;
segundo pela dificuldade em lidar com tantas informaes e por fim dar-lhes
uma organizao que pudesse ser inteligvel ao outro.
As escolhas que fiz so interpretaes marcadas pelas minhas emoes
de coordenadora-docente-amiga-pesquisadora. Devo confessar que no foi
tarefa fcil.O texto est organizado em quatro grandes partes.
Primeiro parto das concepes dominantes no pensamento pedaggico
para chegar aos princpios e matrizes formadoras da Educao do Campo, que
so os referencias que buscamos para a organizao do trabalho pedaggico
da LEdoC.
No segundo captulo apresento a estrutura da LEdoC: o projeto poltico-
pedaggico, os sujeitos - estudantes, seus territrios e os docentes - e ocurrculo.
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O terceiro captulo apresenta a organizao do trabalho pedaggico da
LEdoC, ou seja, com que ferramentas praticamos os princpios e matrizes da
educao do campo.
Em seguida, no quarto captulo, descrevo nosso caminhar, as idas e
vindas, as dificuldades e nossas invenes para realizar um curso de
graduao em alternncia, para sujeitos do campo, com formao por rea de
conhecimento.
No captulo cinco empreendo a tarefa de construir uma interpretao dos
dados da experincia no sentido de, tomando como referncia a base
conceitual apresentada, identificar as prticas contra-hegemnicas da LEdoC,
analisando em que avanamos e o que repetimos da forma/frma escolar
capitalista.
Nas consideraes finais retomo as perguntas iniciais, retornando ideia
da LEdoC como ao contra-hegemnica capaz de contribuir no processo de
transio paradigmtica, refletindo sobre em que medida esta contribuio
possvel e quais os seus limites.
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1 DESATANDO NS
O conhecimento uma aventura que no s comporta riscos,
mas que se alimenta de riscos
Edgar Morin
... no se conhecer permanecendo na praia contemplando as espumas das ondas.
Deve-se correr o risco, necessrio atirar-se na gua e nadar.
Martin Buber
Como quem se arrisca a fazer a trilha com a botina, como diz umquerido amigo, sempre que nos aventuramos a percorrer o cerrado por
caminhos inexistentes, preciso saber aonde se quer chegar (mesmo que a
deciso seja no chegar a lugar nenhum, apenas apreciar o caminho);
preciso ter um mapa (de papel ou de cabea); alguma sabedoria; e
ferramentas essenciais. Os princpios e matrizes formadoras da Educao do
Campo so para mim como ferramentas: lanternas, que iluminam o caminho,
ampliam minha viso; o cantil de gua que garante a vida; o canivete que mepermite experimentar frutos; a corda que me permite ir at onde no alcano.
Olhar para a Licenciatura em Educao do Campo com a pretenso de
compreender seu movimento, seu fazer-se, para sistematizar e registrar no
limite do que se conseguir apreender de um processo to complexo, uma
tarefa que fao de dentro deste movimento, de sua dinmica, vivendo suas
tenses, contradies, conquistas, descobertas, dificuldades, enfim, implicada,
mergulhada, comprometida com o curso, com a equipe docente e,principalmente, com os estudantes e os povos do campo. este
comprometimento que define o traado desta escrita.
E por onde poderia comear uma pedagoga? Quantas opes... E uma
deciso: comearei percorrendo a construo histrica das concepes
dominantes de educao, escola, ensino, pedagogia, considerando que
necessrio partir desta compreenso para a efetiva mudana de paradigma a
que nos propomos na LEdoC.
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1.1 Educao, Escola, Pedagogia
A educao da natureza do ser humano, inerente experincia
humana, o modo pelo qual o ser humano se humaniza, tornando-se um ser
de cultura e diferenciando-se dos demais animais. Educao no depende de
escola, se d desde os primrdios da humanidade, por meio das relaes
familiares e sociais. Para TARDIF (2010), educao um termo indefinvel,
pois varia segundo as pocas, as culturas e os autores, mas mesmo
considerando que qualquer definio parcial e incompleta opta por uma
abordagem funcionalista, inspira-se em Durkheim e define a educao como a
ao exercida pelos adultos sobre e com as crianas, a fim de integr-las sua
comunidade e lhes transmitir a sua cultura. Tal ao tem suas caractersticas
prprias nas sociedades tradicionais e se altera ao longo da histria da
humanidade.
Com inspirao marxista, Saviani (2008b) define educao como um
fenmeno prprio dos seres humanos, uma exigncia do e para o processo de
trabalho sendo ela, ao mesmo tempo, um processo de trabalho. O que
diferencia os homens dos animais o trabalho, ou seja, a necessidade humana
de produzir continuamente sua existncia, adaptando a natureza s suasnecessidades. Pelo trabalho, na produo da existncia, o homem produz o
mundo da cultura. A educao situa-se na categoria de trabalho no-material14,
trata da produo de ideias, conceitos, valores, smbolos, hbitos, atitudes,
habilidades, ou seja, da produo do saber. Educao trabalho. O trabalho
educativo para Saviani o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente
pelo conjunto dos homens (Ibid, p. 13).Educao , portanto, diferente de ensino. com os gregos, que
questionam a natureza e a sociedade e se afastam da tradio, da repetio de
modelos de pensar e agir, que surge o ensino. A sociedade fechada, fundada
na religio, na autoridade e em uma ordem social tradicional, modelo trazido
desde a origem da espcie humana, rompida na Grcia Antiga com a
14 Cf. Saviani, 2008b, p. 11 a 13. Assumimos com Freitas (1995) a crtica concepo de
educao como trabalho no-material entendendo que esta perspectiva exclui o trabalhosocialmente til como princpio educativo, colocando a relao com o mundo mediada pelaaula, ou seja, apenas como recurso didtico.
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emergncia da democracia15. O novo regime poltico, o pensamento racional e
a descoberta de outras culturas faz com que os gregos questionem a educao
baseada no saber cotidiano transmitido pela famlia e grupos sociais. Contudo,
os gregos no conheceram esta instituio que chamamos escola, um lugar
permanente e coletivo para onde vo todas as crianas para se submeterem a
um mesmo programa e ao comum de professores (TARDIF, 2010).
As escolas so criaes humanas surgidas, no ocidente, durante a Idade
Mdia, com as escolas crists que, mais do que transmitir conhecimentos de
forma rudimentar em uma relao entre mestre e jovem como no imprio grego
ou romano, vo se constituir como um meio moral organizado com um objetivo
formativo. Neste sentido a escola no apenas um local onde um mestre
ensina, mas um meio moral, em que os jovens sero convertidos ao
cristianismo (GAUTHIER, 2010).
Reproduzimos abaixo um quadro apresentado por Gauthier que
esclarece, em resumo, as diferenas entre a concepo de educao
sistematizada na Antiguidade e na Idade Mdia, dando os argumentos para a
afirmao de que a escola surge na Idade Mdia.
Quadro comparativo das concepes da escola
da Antiguidade e da Idade Mdia
Antiguidade Idade Mdia
Diversidade de objetivos. No h
um fim nico
Quer se dotar o indivduo de
conhecimentos, de habilidades
que podem se adquirir
separadamente (belo corpo, belo
esprito, belo orador, belo msico).
Tenta-se formar o esprito para
parecer bem
Unidade de objetivo. Direo moral
precisa: cristianizar
Quer-se agir sobre a
personalidade com profundidade,
formar certa atitude da alma,
converter(conventere): voltar-se
para (voltar-se para Deus e
desviar-se das coisas terrestres).
Tenta-se tocar a alma: o mais
profundamente possvel
15 Nos seus primrdios, reservada elite Ateniense, aos homens livres, privilgio de umaminoria.
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Mestres diferentes sem ligao
entre si (gramtica, pedtriba,
citaredo, retor).
Essas disciplinas se ignorammutuamente. Cada mestre
persegue seu objetivo.
Ensino com contedos
heterogneos
Disperso
Mestres diferentes unidos
(compartilhando o mesmo objetivo)
Cada mestre ensina a sua rea,
participando do objetivo comum. Ensino com contedo homogneo
(unidade de ensino)
Concentrao
Em lugares diferentes.
Contatos ocasionais mestre-aluno Alunos temporrios
Em um mesmo lugar
Contatos estritos, contnuos epermanentes (convictos).
Alunos permanentes
A Antiguidade teve mestres A Idade Mdia teve a escola: um
meio moral organizado
(GAUTHIER, 2010, p. 76)
Para Gauthier (2010) a escola recebe da sociedade a tarefa de instruir,
transmitindo saberes e habilidades que no podem ser dados nem pela famlia
nem em outras instituies sociais de maneira sistemtica e contnua.
No mesmo sentido, Saviani (2008b) afirma que a escola est
relacionada com o problema da cincia, pois existe para propiciar a aquisio
dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado, ou seja, ao
saber cientfico.
Ora, a opinio, o conhecimento que produz palpites, no justifica aexistncia da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada naexperincia de vida dispensa a at mesmo desdenha da experinciaescolar [...]. a exigncia de apropriao do conhecimentosistematizado por parte das novas geraes que torna necessria aexistncia da escola. (Ibid, p.15)
A funo social da escola seria, portanto, socializar o saber
elaborado/cientfico, transmitindo os instrumentos de acesso a este saber.
Segundo Saviani pela mediao da escola que acontece a passagem do
saber espontneo ao saber sistematizado, da cultura popular cultura erudita,
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o que se d em um movimento dialtico, em que a ao escolar permite que se
enriqueam os saberes sem excluir os anteriores, de forma que o acesso
cultura erudita possibilita a apropriao de novas formas por meio das quais se
podem expressar os prprios contedos do saber popular. (SAVIANI, 2008b,
p. 22)
Barbieri (2011) nos alerta que a compreenso do que escola, o sentido
da escola, uma construo histrica e da Antiguidade at nossos dias
assumiu e assume muitos sentidos. Percorrendo a histria16, Barbieri vai
revelando os sentidos dados educao e mostra como que esta vai sendo
considerada verdadeira se institucionalizada, escolarizada, lembrando que o
processo de consolidao da escola como instituio se deu sob pressupostos
funcionalistas. Apresenta os vrios sentidos de escola e rene-os em trs
vises, trs concepes de escola (Ibid., p. 80):
- viso neutro-criadora: fundamentada nos pressupostos funcionalistas e
estruturo-funcionalistas de sociedade, concebe a escola como apartada do
contexto social, tendo como papel constituir, criar e formar a sociedade ao lado
de outras instituies e, como principal funo, contribuir para o equilbrio e
sobrevivncia dessa mesma sociedade;
- viso sistmico-reprodutora: fundamentada na premissa da inexistncia
de conflitos entre as classes sociais, concebe a escola como parte integrante
do sistema social com o papel de ser um dos aparelhos de manuteno da
hegemonia da classe dominante, tendo como funo reproduzir os
pressupostos e ideologia da sociedade capitalista;
- viso estratgico-transformadora: fundamentada na natureza dialtica
dos conflitos existentes nas relaes sociais, concebe a escola como parte
constitutiva da sociedade civil, com o papel de realizao da contra-ideologiada classe dominante, com a funo de participar efetivamente do processo de
contra-hegemonia necessrio transformao e recriao da estrutura e
funcionamento de nossa formao social.
A concluso de Barbieri de que no h a escola, mas sim escola e
escolas e que as concepes so, irrefutavelmente, uma questo de classe, j
16Os pensadores visitados so Henri Marrou, Mario Manacorda, Emile Durkein, Samuel Bowles
e Herbert Gintis, Louis Althusser, Christian Baudelot e Roger Establet, Pirre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Antonio Gramsci, e os estudiosos da educao brasileira.
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que, segundo Marx&Engels, as ideias dominantes de um determinado perodo
histrico so as ideias da classe dominante (Ibid.).
A Pedagogia chega por ltimo, no sculo XVII. Surge como a
codificao de certos saberes prprios ao docente, isto , um conjunto de
regras, de conselhos metdicos que no devem ser confundidos com os
contedos a ensinar, e que so formulados para o mestre, a fim de ajud-lo a
ensinar ao aluno, para que este aprenda mais, mais depressa e melhor
(GAUTHIER, 2010, p. 126). Pedagogia , nesta perspectiva, mtodo.
A dimenso pedaggica s surge com a ampliao das escolas que,
segundo Gauthier deveu-se a quatro fatores. Em primeiro lugar Reforma
Protestante. Lutero, ao afirmar que s as Escrituras Sagradas tm autoridade e
defender a sua leitura pelo povo, enfatiza tambm a necessidade de educar o
povo e reivindica a criao de escolas para todas as crianas. Naquela poca a
maioria da populao no sabia ler e escrever e, apesar de o cristianismo ser
uma religio erudita, conhecer as Escrituras era privilgio da elite e do clero, ao
povo eram ensinados apenas os seus ritos.
Em segundo lugar a Contrarreforma Catlica, que significa a reao dos
catlicos Reforma Protestante, quando percebem a necessidade de tambm
fundarem escolas para dominar as almas. Para isto, fundam uma milcia
religiosa, os jesutas, com a tarefa de combater o protestantismo para alm dos
muros dos mosteiros. Para cumprir sua tarefa, criam colgios ao redor do
mundo.
O terceiro fator seria o novo sentimento da infncia, ou seja, o fato de a
infncia tornar-se uma preocupao para o adulto, em se reconhecer a sua
especificidade. A criana, primeiro tratada como um pequeno adulto, depois
como um brinquedo encantador da famlia, se torna uma preocupao moral. preciso educar moralmente a criana, policiar seus costumes, o que ser feito
no pela famlia, mas por homens da Igreja. Da advm a criao de
instituies religiosas para a educao da infncia.
O ltimo fator se resume na frase de Charles Dmia: abrir uma escola
fechar uma priso. Para resolver os problemas causados pela libertinagem
dos jovens, especialmente os filhos do povo, que ameaam a ordem social, era
preciso instru-los. Surge o argumento sobre a funo social da escola.
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A Pedagogia emerge, portanto, para resolver o problema de como
ensinar grupos grandes e heterogneos. Para ensinar j no basta dominar o
contedo, so precisos mtodos e procedimentos detalhados para dar aulas.
Diz respeito a mecanismos de controle, organizao (no sentido de negao
da desordem), gesto do tempo, gesto do espao, s normas de conduta,
a sistemas de vigilncia e organizao dos saberes. Nas palavras de
Gauthier (2010, p. 133) um discurso e uma prtica de ordem que visam
contrapor-se a toda forma de desordem na classe.
Como mtodo para manter a ordem e controle de todos os elementos de
uma classe de alunos, preocupada em como ensinar simultaneamente a um
grande nmero de alunos, a Pedagogia assume as seguintes caractersticas,
evidenciadas nos Tratados de Pedagogia17, escritos em sua maioria por
religiosos:
- o mestre, para dominar uma classe, deve situar-se diante dela de modo
que possa ver todos os alunos e assim se coloca em uma pequena tribuna, um
tablado para que olhe os alunos de cima e possa controlar o funcionamento do
grupo, ou seja, todos os alunos simultaneamente;
- os alunos devem ser agrupados em classes segundo suas
capacidades;
- cada criana deve ter um exemplar do mesmo livro18;
- o mestre deve fazer a gesto do tempo. Assim, a permanncia dos
alunos na escola cuidadosamente planejada, os horrios das atividades so
definidos em uma sequncia que no permita tempo ocioso, ou seja, o tempo
todo cronometrado. Para garantir que os alunos estivessem sempre ocupados,
os jesutas inventaram os deveres escritos;
- o mestre deve fazer a gesto do espao. assim que se concebe aescola como um lugar fechado para o mundo exterior, evitando distraes. O
17Introduo geral didtica ou arte de ensinar, de Ratichius;A grande didtica: tratado da arteuniversal de ensinar tudo a todos, de Comenius; A escola paroquial ou a maneira de bemensinar em escolas pequenas, de Jacques De Batencour; Regulamentos para as escolas dacidade e diocese de Lyon, de Charles Dmia; Conduta das escolas crists, de Jean-Baptiste LaSalle; e o clebre Ratio Studiorum, dos Jesutas. So tratados precisos sobre a maneira deensinar escritos por docentes e para docentes e no por uma elite intelectual que no
ensina.(GAUTHIER, 2010)18 A inveno da imprensa torna possvel esta exigncia, pois torna o livro um objeto deconsumo usual e no mais um objeto de luxo. (GARTHIER, 2010)
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espao regulamentado segundo critrios de modo que a classe se torna um
lugar especializado que serve a fins precisos;
- o mestre deve dirigir o aluno, ditando sua postura, seus deslocamentos
e sua conduta, estabelecendo um mecanismo de controle dos corpos. A fila
o mtodo para gerir os deslocamentos dos alunos; o silncio deve ser mantido;
as atividades se sucedem sem perda de tempo; os alunos devem ser vigiados,
usando-se mecanismos prprios ou mesmo a vigilncia simblica como a ideia
de que Deus te vigia; h uma estrutura de castigos, recompensas e punies
para dirigir a conduta dos alunos;
- a escola organizada em torno dos saberes a transmitir que seguem o
seguinte ordenamento: primeiro a formao crist (catecismo, missa diria e
preces), em seguida o domnio dos rudimentos (ler, escrever e contar) e por
ltimo a civilidade (costumes).
Para Gauthier os tratados de pedagogia do sculo XVII so os
fundadores do pensamento pedaggico, pois inauguram um mtodo de ensino
e, assim, manifestam uma nova preocupao.
Os tratados so concebidos para definir as aes dos mestres noseu ensino a grupos filhos do povo. No se limitam a conselhos para
uso de um preceptor, numa perspectiva individual; ultrapassam algica do contedo como sempre ocorrera, e vo mais longe do queuma crtica retrica, como fizeram os humanistas do Renascimento.Esses tratados de pedagogia sistematizam processos de ensino edefinem completamente a relao com o outro (o grupo), e isso a fimde garantir a sua converso ( 2010, p. 146).
No simples conceituar Pedagogia hoje. H uma ampla discusso
epistemolgica principalmente no que se refere distino entre Pedagogia e
Didtica. Sem entrar em tal embate terico, adotaremos a ideia de quePedagogia Cincia da Educao e seu objeto o trabalho pedaggico, ou
seja, a prxis educativa e as relaes entre seus atores.19 J a Didtica
considerada aqui como uma rea da Pedagogia, que tem o ensino como objeto
de estudo (FRANCO & PIMENTA, 2010).
Muitos caminhos percorreu a Pedagogia desde seu surgimento, mas
sabemos que sempre voltada organizao dos meios, contedos, espaos,
19Conceituao aceita por Selma Garrido Pimenta, Jos Carlos Libneo, Maria Amlia SantoroFranco e Clermont Gauthier.
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tempos e mtodos para que a escola cumpra a funo social determinada pela
hegemonia em cada momento histrico.
A histria das ideias pedaggicas20nos mostra que a Pedagogia segue
a histria da humanidade e a funo social da escola em cada fase, contexto,
momento. Mas traz em si as marcas de sua origem, o que chamamos de
Pedagogia Tradicional. Tradicional porque as prticas criadas no sculo XVII
se perpetuam at o sculo XIX constituindo uma tradio pedaggica na
Europa, trazida ao Brasil pelos jesutas e aqui tambm perpetuada. Mesmo
com a revoluo industrial, em que a escola se submeter aos princpios
econmicos dominantes, no so alteradas as ideias fundantes de ordem e
eficincia, ao contrario, so levadas ao extremo.
No Brasil, segundo Saviani (2008a), a Pedagogia Tradicional exerce seu
monoplio desde colonizao, de 1549 at 1932, primeiro em sua vertente
religiosa por mais de duzentos anos e depois na coexistncia das vertentes
religiosa e leiga, at o surgimento da Pedagogia Nova.
Para Gauthier (2010), a Pedagogia Tradicional um saber-fazer
conservador, prescritivo e ritualizado que foi se constituindo como um cdigo
de ensino uniforme, ou seja, uma tradio e, neste sentido, encerra quatro
caractersticas centrais. Primeiro define modelos de conduta, trazendo
comportamentos vindos do passado o que na perspectiva pedaggica diz
respeito a ensinar como foi ensinado, repetindo as maneiras de fazer a escola.
Mas uma tradio tambm promove a modificao dos modelos, usando a
experincia para adaptar-se a novos contextos, porm, por seu carter
prescritivo, constri um reservatrio de respostas, dizendo o que fazer. As
coisas no so questionadas, no h perguntas, apenas respostas. Por fim, os
comportamentos se tornam rituais e adquirem um status quase sagrado.A tradio pedaggica assumiria seu apogeu com o sistema de ensino
mtuo, surgido na Inglaterra do sculo XVIII, com o objetivo de alfabetizar o
maior nmero de alunos, em menor tempo e com menor custo, aplicando
escola os mtodos de diviso do trabalho criados pela industrializao
nascente, mantendo a ideologia de ordem e controle em vigor h dois sculos,
mas trazendo uma novidade: a funo econmica da escola.
20 Cf. Histria das Idias pedaggicas no Brasil, de Demerval Saviani; Histria das IdiasPedaggicas, de Moacir Gadotti;A pedagogia, de Clermont Gauthier.
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A crtica tradio pedaggica surgir apenas nos fins do sculo XIX e
incio do XX, sob as luzes da cincia, pelos partidrios da pedagogia nova.
Vrios autores21 questionam o saber pedaggico tradicional, vigente h trs
sculos, pregando a superao da tradio e a necessidade de fundar a
pedagogia sobre a cincia.
[...] no se quer mais que a pedagogia seja simplesmente aexpresso ingnua da tradio educativa [...] deseja-se que elacorresponda a um conjunto de saberes positivos e a um saber-fazerproveniente de verificaes cientficas. Assim mais do que fundar-sesobre a tradio e arriscar-se a perpetuar erros graves, a pedagogiase baseia agora na cincia, para iluminar sua prtica. No ser poissurpreendente constatar que, entre os primeiros grandes nomes dapedagogia nova, encontrem-se Montessori e Decroly, assim como
seus predecessores Itard e Sguin, que so mdicos experientes nosmtodos de observao cientfica. (GAUTHIER, 2010, p. 189)
O movimento da escola nova surge pela iniciativa de diversos autores e
variadas experincias pedaggicas colocadas em curso: por Dewey22, em
Chicago e Kerschensteiner, na Alemanha, ambos em 1894; por Binet, em 1898
que publica uma obra em que declara guerra pedagogia tradicional; por
Montessori em 1900; Decroly, em 1907. Em 1921 realizado o Primeiro
Congresso Internacional de Educao Nova e em seguida surgem as
experincias de Neill (escola de Summerhill) na Inglaterra, Freinet e Cousinet
na Frana, entre outros, tendo em comum a oposio pedagogia tradicional e
a educao centrada na criana e no nos conhecimentos a transmitir. Agrupa,
portanto, vrios autores que desenvolvem maneiras diferentes de fazer escola
em contextos nacionais diversos.
Gauthier critica o modo com que o movimento escolanovista se define
em oposio pedagogia tradicional, pois denunciam a tradio como se esta
fosse uma doutrina viva, pertencendo a um determinado autor e com
argumentos precisos quando, na verdade, trata-se de um objeto sutil de
mltiplos componentes, que est impressa na vida de cada um sem que se
21Gauthier cita Charbonnel, H. Marion, G. Compayr, Binet, Claparde22Jonh Dewey: representante da Pedagogia Ativa, escola pragmtico-experimental americana,
que compreendia a escola como instrumento para a reforma total da sociedade, instrumento de
mudana, mas no as decorrentes da luta de classes, pelo contrrio, aquelas necessrias paraevit-la, mantendo a ordem social vigente.
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perceba, ou seja, combatem uma tradio que eles prprios viveram como
alunos, fazendo uma oposio maniquesta.
A tradio feita de prontos-para-pensar e repousa sobre o fato de
que cada um age por imitao, sem refletir. A tradio que ospartidrios da pedagogia nova condenam teve, como vimos, umaorigem real e partidrios declarados, mas, trs sculos depois, alocomotiva ainda avana sobre seus trilhos sem condutor, propulsadaunicamente pela fora do hbito. Os partidrios da pedagogia novaviram um personagem onde havia apenas um espectro, tomaram osefeitos da tradio por uma doutrina. (Ibid., p. 192)
De qualquer forma, com todas as crticas que se possa elaborar em
relao ao movimento escolanovista, certo que teve consequncias
concretas no pensamento pedaggico, operando uma revoluo copernicanano ensino ao situar o centro da gravidade no aluno e no mais no programa .
Esta a revoluo copernicana qual a psicologia convida o educador
(BLOCH apud GAUTHIER, 2010, p. 2010).
Ao contrrio da pedagogia tradicional, centrada na cultura a ser
transmitida pelo professor ao aluno, a pedagogia nova substitui o ensino do
mestre pela aprendizagem do aluno e se define, por conseguinte, como uma
pedagogia do sujeito (Ibid., pag. 198). Suas principais ideias so: a criana um ser integral, distinto do adulto, com maneiras prprias de pensar e agir;
cabe escola o desenvolvimento da totalidade das dimenses do humano;
desenvolver a criana significa fazer desabrochar os dons que j traz consigo
ao nascer; o papel do professor responder s necessidades da criana,
criando um ambiente favorvel aprendizagem; as atividades devem favorecer
a expresso da criana e ter como ponto de partida seu ambiente natural e
social; o interesse surge do prprio indivduo e no pode ser estimulado doexterior.
a Saviani (2008a) que recorremos para compreender como se deu e o
que significou o movimento escolanovista no Brasil. Foi no contexto de ebulio
social da dcada de 1920, que culminaria com a Revoluo de 1930, que
emerge no campo educacional um movimento renovador impulsionado pelos
ventos modernizantes do processo de industrializao e urbanizao (p. 193)
que se opunha Igreja Catlica, conflito esse que se consuma com a
publicao do Manifesto da Educao Nova em 1932, articulado pelo que
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Saviani denomina de trindade cardinalcia do movimento da Escola Nova:
Loureno Filho, Ansio Teixeira e Fernando de Azevedo.
de Loureno Filho a primeira publicao brasileira que divulga o
iderio renovador no pas, o livro Introduo ao Estudo da Escola Nova, de
1932. Segundo Saviani, Loureno Filho foi quem melhor articulou os dois
aspectos que definem o movimento de renovao pedaggica: a presena do
trabalho no processo de instruo tcnico-profissional e a descoberta da
psicologia infantil.
Os estudos de biologia, psicologia e sociologia sero o trip cientfico
sobre o qual se assenta o escolanovismo apresentado por Loureno Filho que
traria, para Saviani, a base psicolgica do movimento renovador.
A base sociolgica ficaria a cargo de Fernando de Azevedo para quem o
ideal da Escola Nova envolvia trs aspectos: a escola nica, entendida como a
escolarizao de cinco anos obrigatria e gratuita a partir dos sete anos de
idade; a escola do trabalho entendido como o estmulo s experincias e
interesses das crianas satisfazendo sua curiosidade intelectual; e a escola-
comunidade, que diz respeito organizao da escola de forma que a classe
se convertesse em uma colmeia para a qual todos trabalhariam exercitando o
trabalho em grupo e a solidariedade. Para Fernando de Azevedo (AZEVEDO
apud SAVIANI, 2008a) havia duas concepes de Escola Nova, com origem e
bases diferentes:
- A educao ou escola nova, concebida por Bover, Claparde, Ferrire,
e entre os americanos Dewey, orientada pelos seguintes princpios: 1) maior
liberdade para a criana, proporcionando condies mais favorveis ao seu
desenvolvimento natural, pela atividade livre e espontnea; 2) o princpio da
atividade (mtodos ativos, escola ativa), inspirado pela ideia de que a criana um ente essencialmente ativo, cujas faculdades se desenvolvem pelo
exerccio; 3) o respeito pela originalidade pessoal de cada criana e, em
consequncia, a individualizao do ensino, fundamentada na ideia de que a
cada um devida a educao que lhe convm (a escola sob medida de que
fala Claparde).
- A educao nova, para quem a infncia no apenas
desenvolvimento, mas tambm uma iniciao em uma civilizao que elaencontra j feita. Assim, na iniciao e no no desenvolvimento que a escola
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pe o acento, procurando compreender as necessidades do indivduo por meio
das necessidades da comunidade, como tambm organizar a escola como uma
comunidade de vida, orientada segundo os princpios da solidariedade, da
cooperao e do sacrifcio parcial do indivduo para o bem coletivo. Esta
segunda acepo coloca-se em oposio aos ideais individualistas da escola
liberta e ativa, que prope a libertao da criana levada s ltimas
consequncias, assumindo os ideais sociais e, em alguns casos, socialistas, da
escola do trabalho e da escola-comunidade, organizadas com o objetivo de
desenvolver na criana suas tendncias cooperadoras e criadoras, alm de
conduzi-la cultura a aos deveres dos adultos.
Apesar de deixar claro sua opo pela segunda concepo, Saviani nos
alerta sobre o quo contraditrias so as palavras acima citadas de Azevedo
em relao a outros documentos seus23.
Ansio Teixeira traria para o movimento as bases filosficas e polticas,
enfatizando a importncia da educao para a democracia, a educao como
direito de todos e jamais um privilgio. Considerava a educao um elemento-
chave para o processo de modernizao e acreditava que por meio da
educao se poderia consolidar as conquistas democrticas da Revoluo. A
educao era, portanto, elemento central para o que considerava um processo
revolucionrio.
[...] para Ansio Teixeira o sentido de partido revolucionrio ligava-se necessidade de levar s ltimas conseqncias a revoluodemocrtica liberal, mantendo, pois, como referncia material a baseprodutiva em sua forma capitalista. (SAVIANI, 2008, p. 225)
A Escola Nova se constituiu em contraposio Pedagogia Tradicional,
como uma reao categrica, intencional e sistemtica contra a velha
estrutura do servio educacional, artificial e verbalista, montada para uma
concepo vencida (MANIFESTO, p. 411).
O Manifesto dos Pioneiros da Educao Nova defendia a aplicao dos
mtodos cientficos aos problemas da educao, fundando-se no aspecto
biolgico segundo o qual todo o indivduo pode ser educado at onde permitam
suas aptides naturais, de modo que todos os grupos sociais fossem
contemplados com as mesmas oportunidades educacionais.
23Ver Saviani 2008a, captulo