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“Let us not disarm, even in unsatisfactory times. The world will not get better on its own”
Eric Hobsbawn, Interesting Times
“Financial crises are always different in detail and the same in their essence”
Martin Wolf, Financial Times, 05/09/2007
“Todo carnaval tem seu fim”
Marcelo Camelo
vii
Para Carla Cristina, Adail e Maria Judite
ix
Resumo
Este trabalho se enquadra na ampla temática da integração dos países periféricos à globalização financeira, e tem como objetivo específico analisar os seus impactos não apenas sobre as contas externas da economia brasileira, mas também sobre as relações financeiras domésticas. O movimento que se procura fazer é de dupla natureza: revisitar, em uma primeira parte, o debate teórico (na sua vertente convencional de maneira crítica; em suas variantes alternativas na busca de explicações mais satisfatórias) e, na segunda, descrever de maneira ampla e detalhada a realidade concreta no período aqui julgado mais relevante (a partir da década de 1990). Dentro da concepção mais ampla de que a abertura financeira e a delegação das responsabilidades do financiamento às forças de mercado não constituem a estratégia de longo prazo mais adequada para o país, a tese defendida aqui pode assim ser resumida: a submissão das finanças locais aos ciclos internacionais de liquidez (que sintetizam o caráter da ordem monetária e financeira contemporânea) fica muito aquém de resolver as nossas deficiências históricas neste campo – sobretudo porque a ligação parece ser feita preferencialmente por meio do mercado de capitais. Ao contrário, mesmo que não resulte em crises ou maiores dificuldades, parece reforçar alguns dos mecanismos que dificultam a retomada do desenvolvimento em bases sustentáveis.
Abstract
This thesis faces the broad issue of peripheral countries’ integration to the financial globalization, and the specific goal is to analyze its effects to external situation of Brazilian economy, as well as to domestic financial relations. The work is concerned, in a first part, with the theoretical debate (in its conventional variants with a critical focus; in the alternative literature looking for better explanations). In a second part, the aim is to describe the events in the period since the 1990s. Coherent with the broad conception against the financial openness and total freedom to market forces as the better way to economic development to a country like Brazil, the main idea of the thesis could be summarized as follows: the submission of domestic financial relations to international liquidity cycles (which manifest the negative characteristics of contemporary financial and monetary order) does not solve our historical handicaps in this field – mainly because the link have been done mostly by way of the capital markets. On the contrary, this link, even without crisis or other difficulties, seems to reinforce some of the mechanisms that hinder the recapture of the Brazilian sustainable development.
xi
Agradecimentos
No campo profissional, são muitas as pessoas a quem devo agradecer:
Ao Ricardo Carneiro, pela orientação deste trabalho – sempre decisiva nos momentos em que o rumo ameaçava ser perdido. Pelas oportunidades abertas e pela confiança em mim, ao longo desses mais de três anos de trabalho em equipe. Se eu me sinto muito satisfeito de estar onde estou hoje, eu devo isso em primeiro lugar a você. Muito obrigado!
À Daniela Prates, uma das minhas principais fontes – não só bibliográfica, mas também de sugestões e conselhos, de diferentes naturezas, nas melhores e nas piores horas da trajetória. Ao Antonio Carlos Macedo e Silva, grande companheiro que me ensinou muito na área internacional do Cecon, e em vários outros aspectos do trabalho acadêmico.
Aos outros pesquisadores do Cecon, ou que participaram das discussões de versões anteriores dos capítulos III, IV e V. Maryse Farhi, Francisco Lopreato, Émerson Marçal – foi um privilégio trabalhar com vocês. Marcos Cintra sempre foi um incentivador e um rigoroso leitor (inclusive em relação ao português, defensor do vernáculo que é junto com Antonio, e que prezo bastante). Cláudio Amitrano (outro amigo que fiz, também colega em alguns desafios importantes nos últimos anos), Maria Cristina Penido de Freitas, Franklin Serrano, Carlos Medeiros. André Cunha também participou de alguns destes encontros, além de ter me enviado algumas sugestões de leitura e, mais importante, ter aceito o convite para participar de minha banca. As discussões com a equipe da Secretaria de Assuntos Econômicos da presidência do BNDES, liderada por Ernani Torres Filho, também foram valiosas para os desdobramentos do trabalho.
À CAPES, pelo auxílio financeiro no período inicial do doutorado. Aos outros professores do IE também agradeço – na figura de Waldir Quadros (coordenador de pós quando da minha entrada no programa) e Mariano Laplane.
Aos meus alunos, principalmente os das três turmas de Economia Internacional IV, em cujas aulas várias das idéias desta tese foram discutidas e se tornaram mais claras na minha cabeça. O compartilhamento da disciplina com Daniela e Antonio Carlos também foi fundamental
Ao Silas, pela valiosa assistência no trabalho com os dados, me ajudando a capturar e organizar as muitas informações que ajudam a sustentar as idéias aqui desenvolvidas.
Ao Alberto e à Cida, funcionários da secretaria de pós, sempre tão prestativos e eficientes. À Eliana, que sempre me deu força no trabalho e que, junto com o Mário, faz parte da nossa retaguarda no Cecon.
Ao Thiago, pela grande ajuda no enfrentamento dos números do balanço de pagamentos, principalmente nos seus detalhes mais misteriosos – que esse ex-palhaço Bozo e funcionário do BC conhece tão bem. Ao Sérgio Cerqueira, da Bovespa, que me enviou um grande volume de informações para a parte final do trabalho. Às jornalistas Raquel Balarin e Vanessa Adachi, que gentilmente me cederam os resultados de um precioso trabalho de coleta de informações junto às empresas – e que também foi fundamental no capítulo V.
Por último, e talvez mais importante, os agradecimentos de ordem pessoal:
À Carla, a única pessoa que tem idéia do quanto pra mim foi difícil chegar até aqui; que esteve do meu lado ao longo desses mais de quatro anos, a quem eu devo (e com quem compartilho) todas as etapas vencidas, sobretudo esta. E chega, porque todo o resto eu te falo quase sempre!
xii
Aos meus pais, Adail e Maria Judite, cuja responsabilidade pelo que sou e importância para mim dispensam maiores comentários. A vocês e à Carla o trabalho é dedicado, com amor e gratidão. Mariana e Bruno, junto com Marquinhos e Renata, fazem parte desse mesmo caminho.
Finalmente, aos meus grandes amigos e amigas, de longa data e vida longa pela frente, de coisas boas e ruins vividas juntos (e não foram poucas nos últimos tempos!), também agradeço sem citar os nomes: vocês sabem quem são e o quanto eu lhes considero.
Com todos, eu divido as eventuais qualidades que o trabalho tiver. As imperfeições e insuficiências, obviamente, são de minha inteira responsabilidade.
xiii
Sumário INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................... 1
CAPÍTULO I: Globalização e integração financeira: a visão convencional e uma alternativa
crítica ............................................................................................................................................................ 9
Introdução................................................................................................................................................ 9
I.i Abertura e integração na visão convencional .............................................................................. 10
I.i.1 A globalização e os seus benefícios......................................................................................... 10
I.i.2 Desafios e reações no interior da visão convencional .......................................................... 16
I.i.2.1 Um negócio entre os ricos: os capitais não fluem para os países pobres ................................ 16
I.i.2.2 Dados relutantes: a difícil comprovação dos benefícios da abertura...................................... 18
I.i.2.3 Teria a globalização ido longe demais? Dissidências e dúvidas na visão convencional ........ 23
I.i.2.4 Admirável mundo novo: a redescoberta da periferia e suas especificidades .......................... 28
I.i.2.5 A globalização reexaminada: benefícios colaterais e pré-requisitos mínimos ........................ 36
I.ii Em busca de uma alternativa crítica............................................................................................. 41
I.ii.1 Perspectiva histórica, características principais e delimitação temporal ......................... 42
I.ii.2 Instabilidade e especulação no ambiente de finanças liberalizadas e integradas........... 48
I.ii.3 O mundo desigual das finanças globalizadas (no espaço e no tempo) ............................ 54
I.ii.3.1 Assimetrias, hierarquia e inconversibilidade........................................................................ 54
I.ii.3.2 Ciclos de liquidez e seus determinantes ............................................................................... 63
Considerações finais............................................................................................................................. 66
CAPÍTULO II: Sistema financeiro, financiamento e liberalização: a visão convencional e uma
alternativa crítica...................................................................................................................................... 71
Introdução.............................................................................................................................................. 71
II.i Liberalização, financiamento e sistema financeiro na visão convencional............................. 71
II.i.1 “Desrepressão” e desenvolvimento ...................................................................................... 72
II.i.2 Desafios e reações no interior da visão convencional......................................................... 76
II.i.2.1 Assimetria de informação e mudança de paradigma............................................................ 76
II.i.2.2 Da repressão ao crash: as crises de liberalização ................................................................. 79
II.i.2.3 Dificuldades adicionais: o modelo Shaw-McKinnon e as evidências empíricas................... 82
II.i.2.4 Mercado de capitais, liberalização e as condições para seu desenvolvimento....................... 85
II.i.2.5 Macroeconomia, seqüência e repetição ................................................................................. 91
II.ii Financiamento e sistema financeiro em uma visão alternativa............................................... 96
II.ii.1 Pressupostos teóricos pós-keynesianos ............................................................................... 97
II.ii.1.1 O circuito finance-investimento-poupança-funding........................................................ 98
II.ii.1.2 A fragilidade financeira .................................................................................................... 100
II.ii.2 Arranjos institucionais alternativos para o sistema financeiro ...................................... 102
xiv
II.ii.2.1 A idéia de funcionalidade do sistema financeiro ............................................................... 103
II.ii.2.2 O mercado de capitais, seus papéis e implicações ............................................................. 104
II.ii.3 Abertura e sistema financeiro doméstico em países de moeda inconversível ............. 111
Considerações finais........................................................................................................................... 114
CAPÍTULO III: Integração e sistema financeiro em perspectiva estrutural: a situação
brasileira no contexto dos emergentes............................................................................................... 117
Introdução............................................................................................................................................ 117
III.i Padrões de inserção periférica na globalização....................................................................... 118
III.i.1 Breve nota metodológica ..................................................................................................... 118
III.i.2 A diversidade de padrões regionais e nacionais de integração financeira................... 120
III.ii Sistemas financeiros em países emergentes: um panorama comparativo ......................... 137
III.ii.1 Breve nota metodológica .................................................................................................... 137
III.ii.2 Estruturas financeiras distintas ......................................................................................... 138
Considerações finais........................................................................................................................... 151
CAPÍTULO IV: Os ciclos da liquidez global e seus reflexos no Brasil ....................................... 153
Introdução............................................................................................................................................ 153
IV.i Ciclos de liquidez ........................................................................................................................ 153
IV.i.1 Breve nota metodológica ..................................................................................................... 154
IV.i.2 Os dois ciclos de liquidez na globalização........................................................................ 156
IV.i.3 Determinantes, fatores internos e externos, interação .................................................... 162
IV.ii O Brasil e os ciclos de liquidez ................................................................................................. 170
IV.ii.1 Os fluxos financeiros no balanço de pagamentos brasileiro ......................................... 171
IV.ii.2 Condições de solvência e liquidez .................................................................................... 182
Considerações finais........................................................................................................................... 187
CAPÍTULO V: As finanças domésticas e os ciclos de liquidez .................................................... 191
Introdução............................................................................................................................................ 191
V.i Os efeitos do ciclo internacional de liquidez sobre o mercado de crédito ........................... 193
V.ii Mercado de capitais, ciclos de liquidez e a “revolução” em curso....................................... 200
V.ii.1 Visão geral ............................................................................................................................. 202
V.ii.2 O mercado de debêntures.................................................................................................... 211
V.ii.3 O mercado de ações.............................................................................................................. 216
Considerações finais........................................................................................................................... 230
CONCLUSÕES....................................................................................................................................... 233
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................. 239
xv
Índice de Gráficos e Tabelas Gráfico III.1: Integração financeira, economia global e blocos (1980-2004) .....................................................120
Gráfico III.2: Integração financeira, ativos e passivos como % do PIB, 29 emergentes (1980-2004).............122
Gráfico III.3: Integração financeira, ativos e passivos em relação ao PIB, 29 emergentes (1980-2004) ........123
Gráfico III.4: Integração financeira, médias por país (1990-2004) e (2000-2004) .............................................123
Gráfico III.5: Ativos externos/PIB, 7 maiores emergentes, 1980-2004..............................................................125
Gráfico III.6: Passivos externos/PIB, 7 maiores emergentes, 1980-2004 ..........................................................127
Gráfico III.7: Posição externa líquida/PIB, médias por país (1990-2004) e (2000-2004) .................................128
Gráfico III.8: Integração financeira x Posição externa líquida (média 1990-2004) ..........................................129
Gráfico III.9: Integração financeira x Posição externa líquida (média 2000-2004) ..........................................129
Gráfico III.10: Integração financeira/PIB x Passivo externo líquido/PIB (médias 1990-97 e 1998-2004) ....130
Gráfico III.11: Integração financeira/PIB x Integração financeira/corrente comercial (média 1990-2004).131
Gráfico III.12: Integração financeira/PIB x Integração financeira/corrente comercial (média 2000-2004).132
Gráfico III.13: Integração financeira/PIB x Integração financeira/corrente comercial (médias 1990-97 e
1998-2004) .................................................................................................................................................................133
Gráfico III.14: Integração financeira/PIB x Passivo externo líquido/exportações (médias 1990-2004, e 1990-
97 x 1998-2004) .........................................................................................................................................................134
Gráfico III.15: Integração financeira/PIB x Passivo externo líquido (excl. IDE)/exportações (médias 1990-
2004, e 1990-97 x 1998-2004) ...................................................................................................................................135
Gráfico III.16: Integração financeira/PIB x Passivos externos (excl. IDE)/reservas (médias 1990-2004, e
1990-97 x 1998-2004) ................................................................................................................................................136
Gráfico III.17: M2/PIB, média 1990-2005; e “Índice de Liberdade Financeira”, média 1995-2006...............138
Gráfico III.18: Tamanho e “liberdade” dos sistemas financeiros em países emergentes: médias comparadas
....................................................................................................................................................................................140
Gráfico III.19: Tamanho e atividade do mercado financeiro: Crédito bancário/PIB e capitalização/PIB,
médias 1990-2005.....................................................................................................................................................141
Gráfico III.20: Estruturas financeiras alternativas: Crédito bancário/PIB x capitalização/PIB, médias 1990-
2005............................................................................................................................................................................143
Gráfico III.21: Mercado de crédito em PEDs: Crédito total/PIB e depósitos bancários/PIB, médias 1990-
2005............................................................................................................................................................................144
Gráfico III.22: Mercado de crédito em emergentes: indicadores de eficiência e estrutura selecionados,
médias 1995-2005.....................................................................................................................................................147
Gráfico III.23: Mercado de ações em emergentes: volume negociado/PIB e volume
negociado/capitalização (turnover ratio) médias 1990-2005 ..............................................................................149
Gráfico III.24: Mercado de títulos privados e públicos em mercados emergentes: capitalização/PIB,
médias 1990-2005.....................................................................................................................................................150
xvi
Gráfico IV.1: Fluxos privados totais, líquidos, para países em desenvolvimento, US$ bi.............................157
Gráfico IV.2: Fluxos privados totais e por tipo, líquidos, para mercados emergentes, US$ bi .....................158
Gráfico IV.3: Fluxos líquidos, por tipo, e fluxos brutos, US$ bi ........................................................................158
Gráfico IV.4: Fluxos de entrada, por tipo, e fluxos de saída, US$ bi ................................................................159
Gráfico IV.5: Emissões brutas e líquidas, e brutas por tipo, US$ bi..................................................................159
Gráfico IV.6: Prêmio de risco (EMBI e EMBI+), global, pontos-base................................................................161
Gráfico IV.7: Índice de volatilidade do mercado de opções do S&P 500 (VIX)...............................................165
Gráfico IV.8: Taxas de juros nos EUA (fed funds rate e longa) e Japão (policy rate), % a.a. .............................166
Gráfico IV.9: Reservas internacionais, excl. ouro, 29 emergentes, US$ trilhões..............................................168
Gráfico IV.10: Saldo em conta corrente, regiões selecionadas, % do PIB.........................................................169
Gráfico IV.11: Brasil: Transações Correntes e Conta Capital e Financeira, líq., 1990-2006, US$ bi ..............172
Gráfico IV.12: Brasil: Conta Financeira e seus componentes, líq., 1990-2006, US$ bi.....................................174
Gráfico IV.13: Conta Financeira**: brasileiros e estrangeiros; estrangeiros por tipo, líq., 1990-2006, US$ bi
....................................................................................................................................................................................175
Gráfico IV.14: Investimentos estrangeiros em carteira e outros investimentos: por tipo, líq., 1990-2006, US$
bi ................................................................................................................................................................................176
Gráfico IV.15: Investimentos estrangeiros em ações, por local de negociação (líq.); e negociadas no país,
entrada/saída, 1990-2006, US$ bi ..........................................................................................................................178
Gráfico IV.16: Investimento estrangeiro em títulos de renda fixa, por local de negociação (líq.); e títulos
negociados no país, entrada/saída, 1990-2006, US$ bi.......................................................................................179
Gráfico IV.17: Empréstimos e financiamentos estrangeiros de longo prazo, demais setores, por
modalidade (líq.); e empréstimos diretos, entrada/saída, 1990-2006, US$ bi .................................................181
Gráfico IV.18: Indicadores de endividamento externo, 1990-2006....................................................................183
Gráfico IV.19: Indicadores de liquidez, 2002-2006 ..............................................................................................185
Gráfico IV.20: Indicadores de solvência, 1998-2006 ............................................................................................186
Gráfico V.1: Estoque financeiro total na América Latina, por categoria em US$ bilhões, 1995-2005...........192
Gráfico V.2: Captações totais dos bancos no mercado externo, total e por instrumentos, em US$ bilhões,
1995-2007...................................................................................................................................................................194
Gráfico V.3: Estoque de empréstimos ao setor privado, por propriedade do capital, em % do PIB; e total de
empréstimos por setor de atividade, em R$ bilhões de maio de 2007 (IGP-DI) .............................................197
Gráfico V.4: Investimento estrangeiro em carteira e investidores estrangeiros em Bolsa, média móvel 3
meses, em US$ bilhões, jan/1995 – mar/2007 .....................................................................................................200
Gráfico V.5: Valor (em US$ bilhões) e composição (em %) da carteira dos investidores estrangeiros,
jan/1995 – mar/2007...............................................................................................................................................201
Tabela V.1: Emissões primárias no mercado brasileiro de capitais: valores totais e participação relativa,
períodos selecionados .............................................................................................................................................202
xvii
Gráfico V.6: Emissões primárias de debêntures, notas promissórias e quotas de FIDC e FIP: valor (eixo
esq.) e número (eixo dir.), períodos selecionados ...............................................................................................204
Gráfico 7: Emissões primárias de ações: valor (eixo esquerdo) e número (eixo direito), total e ajustado,
1990-2007(1)................................................................................................................................................................204
Gráfico V.8: Participação dos investidores no total negociado na Bovespa, por categoria em %, 1994-2006
....................................................................................................................................................................................205
Gráfico V.9: Emissões primárias no mercado de capitais versus desembolsos do BNDES: valores (R$
bilhões) e proporção, 1995-2006.............................................................................................................................210
Gráfico V.10: Mercado primário de debêntures, setor financeiro e empresas, R$ milhões, 2001-2006........212
Gráfico V.11: Emissões de debêntures: estrutura de indexação (em %) e prazos médios (em anos), 2001-
2006............................................................................................................................................................................213
Gráfico V.12: Destinação dos recursos captados com emissões de debêntures, setor não financeiro (em %),
2006............................................................................................................................................................................214
Gráfico V.13: Mercado secundário de debêntures (Sistema Nacional de Debêntures + Bovespa Fix), 1992-
2007(1).........................................................................................................................................................................215
Gráfico V.14: Capitalização total das companhias listadas na Bovespa: valores (R$ bilhões e US$ bilhões) e
porcentagem do PIB, jan/1990 – abril/2007 ........................................................................................................216
Gráfico V.15: Ibovespa (em pontos) e volume diário médio negociado na Bovespa (em R$ bilhões e US$
bilhões), jan/1990 – mar/2007...............................................................................................................................217
Gráfico V.16: Ibovespa: participação das estatais e número total de companhias listadas, jan/1990 –
mar/2007 ..................................................................................................................................................................218
Tabela V.2: Resumo das Ofertas de Ações na Bovespa, 2004-2006...................................................................221
Tabela V.2 (cont.): Resumo das Ofertas de Ações na Bovespa, 2004-2006.......................................................222
Gráfico V.17: Destinação dos recursos captados por emissão de ações, prospectos, 2004-2007, em % .......226
Gráfico V.18: Destinação dos recursos captados por emissão primária de ações, sondagens, 2004-2006, em
% ................................................................................................................................................................................228
1
INTRODUÇÃO
Lá se vão mais de dez anos desde que, em julho de 1997, um raio despencava no que
parecia ser um céu de brigadeiro. Vítima de um ataque especulativo, a moeda tailandesa sofria
forte desvalorização, dando início a uma série de crises em cadeia no sudeste asiático, que mais
tarde se espalharia para a Rússia, para o Brasil, Turquia, Argentina etc. As promessas da
globalização financeira, endereçadas aos países em desenvolvimento, até ali absolutamente
predominantes em termos teóricos e políticos, passariam a sofrer duros golpes da realidade.
Mas não; esta tese não tem por tema as crises financeiras. O clima mudou bastante desde
aquela época turbulenta, e todo trabalho acaba pagando certos tributos ao tempo em que é
realizado. O tempo curto, curtíssimo, no momento em que ele é finalizado (setembro/outubro
de 2007), não é de crise, apesar de certas nuvens negras nos últimos meses. Pelo contrário, o tom
mais ou menos disseminado é de euforia, e esta serve de pano de fundo inevitável aqui – ao
contrário da realidade enfrentada por parte importante da literatura utilizada, principalmente
nos primeiros capítulos. Trata-se, portanto, de uma conjuntura menos propícia – e talvez por
isso mesmo mais instigante – para se arriscar uma interpretação crítica sobre os fenômenos em
tela.
Em termos mais precisos, a tese se enquadra na temática mais ampla da integração dos
países em desenvolvimento a essa conformação do sistema financeiro internacional conhecida
como “globalização financeira”. E tem como objetivo específico analisar os impactos desta
interação com as finanças globalizadas não apenas sobre as contas externas da economia
brasileira, mas também sobre as suas relações financeiras internas.
Dito de outro modo, as perguntas centrais do trabalho podem ser resumidas a duas. Em
um nível mais geral: quais são as conseqüências do processo de abertura das relações
financeiras, em uma economia como a brasileira, às condições típicas da globalização financeira?
E, de modo mais restrito: de que maneira estas condições afetam o sistema financeiro
doméstico?
Moveram o esforço de pesquisa, ainda em termos bastante gerais, dúvidas de natureza
teórica e empírica, oriundas tanto do exame da literatura acadêmica quanto da observação
prática da realidade econômica, nacional e internacional, ao longo dos últimos anos. Dito de
outro modo, o movimento que se procura fazer é de dupla natureza: teórico e de descrição
quantitativa da realidade observada.
2
Entre as primeiras inquietações, destaca-se uma certa dificuldade, no seio da visão
convencional sobre questões financeiras, em adaptar as formulações relativas a dois aspectos
interligados mas distintos – a abertura e a liberalização dos sistemas financeiros – às
dificuldades e desafios que a elas vêm sendo impostos. À parte as discordâncias de fundo em
relação aos pressupostos teóricos que sustentam os dois conjuntos de idéias e propostas, a
evolução da produção acadêmica a respeito dos dois temas parece ter chegado, nos últimos
tempos, a uma série de impasses e revisões que, se isoladas já se mostram insatisfatórias,
quando interligadas ensejam ainda mais a busca de formulações alternativas. Estas, por sua vez,
também carecem de uma integração mais explícita entre as formulações a respeito da inserção
financeira externa e das suas repercussões sobre o sistema financeiro local. Além de lhe faltar –
lacuna que esta tese não tem a pretensão de preencher – um arcabouço teórico mais sólido e
integrado, que dê conta das várias questões envolvidas nos dois temas.
Do ponto de vista empírico, a motivação vem da observação e análise de uma economia
em desenvolvimento que, a exemplo de outras, nas últimas décadas passou por um importante
processo de mudanças em ambas as frentes de reforma financeira, mas que não parece ter
logrado êxito em duas de suas mais importantes restrições econômicas ao desenvolvimento,
recorrentemente explicitadas ao longo da história: a vulnerabilidade financeira externa e a
inadequação (ou “não-funcionalidade”) do seu sistema local de financiamento. Como já
adiantado, no momento em que se conclui o trabalho, o Brasil passa por uma fase de euforia em
que, à diferença de outros períodos do tipo, mais recentes, se descortina para uma parcela muito
expressiva dos analistas econômicos uma mudança formidável, na forma da superação da
fragilidade externa. Outros, ainda mais exultantes, começam a sugerir que a própria carência de
mecanismos privados de financiamento de longo prazo vai sendo neste momento superada com
uma “revolução” em curso no mercado local de capitais. Estes acontecimentos e interpretações
aguçam ainda mais a curiosidade sobre as ligações entre as finanças internacionais e as
domésticas, e reforçam a necessidade de observação das mudanças a partir de uma perspectiva
menos imediatista e mais crítica (para não dizer mais prudente).
A tentativa aqui proposta é, portanto, de ligar essas duas pontas, interna e externa,
revisitando em uma primeira parte o debate teórico – na sua vertente convencional de maneira
crítica; em suas variantes alternativas na busca de explicações mais satisfatórias – e em uma
segunda parte descrevendo de maneira ampla e detalhada a realidade concreta experimentada
pela economia brasileira ao longo do período aqui julgado mais relevante (a partir da década de
3
1990). Dentro da concepção mais ampla de que a abertura financeira e a delegação das
responsabilidades do financiamento às forças de mercado não constituem a estratégia de longo
prazo mais adequada para o país, a tese defendida aqui pode assim ser resumida: a submissão
das finanças locais aos ciclos internacionais de liquidez (que sintetizam o caráter da ordem
monetária e financeira contemporânea) fica muito aquém de resolver as nossas deficiências
históricas neste campo – sobretudo porque a ligação parece ser feita preferencialmente por meio
dos mercados de capital. Ao contrário, acaba reforçando alguns dos mecanismos que dificultam
a retomada do desenvolvimento em bases sustentáveis.
Também vale destacar, de partida, que não figura entre os objetivos deste trabalho a
análise ou a proposição de caminhos diferentes dos adotados. Espera-se, no máximo, contribuir
para uma tarefa que se julga fundamental: o conhecimento e a crítica necessários a qualquer
formulação de alternativas. Também por conta desse recorte, pouca ênfase é dada ao tema dos
controles de capital e das experiências com seu uso, disponível em uma vasta literatura.
Essa exposição de motivos e intenções levanta várias questões que merecem
esclarecimentos prévios, úteis ao longo de todos os capítulos.
A primeira delas é a divisão temática entre “abertura” e “liberalização” financeiras.
Seguindo o senso comum econômico, abertura é entendida como eliminação de restrições – em
geral de natureza legal, regulatória – a transações econômicas que envolvam agentes residentes
em diferentes países e/ou que envolvam o uso de moeda estrangeira. Liberalização em geral
tem um sentido mais amplo (que pode ou não conter a abertura), e significa abolição ou
relaxamento de regras (desregulamentação) e estruturas pré-existentes e/ou criação de novas
instituições, sempre no sentido de reduzir a participação estatal e ampliar a presença das forças
de mercado na alocação dos recursos.
Transportada para o campo das relações financeiras – entendidas (grosso modo e deixando
de lado formulações mais corretas que devem incluir a criação de moeda, a diversificação de
riscos, o cumprimento de funções no sistema de pagamentos etc.) como aquelas entre
“poupadores” e “tomadores de recursos” ou, na definição à la Gurley-Shaw, entre “agentes
superavitários” e “deficitários” – essa diferença muitas vezes é desprezada, tomando os termos
como sinônimos. Aqui, mesmo que em grande parte da literatura consultada (e citada) os termos
sejam outros, prefere-se utilizar o termo “abertura financeira” para a dimensão externa – a
eliminação de restrições à livre movimentação dos fluxos financeiros por entre as fronteiras
nacionais – e “liberalização financeira” para a dimensão doméstica – a diminuição da presença
4
estatal no sistema financeiro e a eliminação dos entraves à operação das forças de mercado nas
relações entre credores e devedores. Evitam-se, assim, mal-entendidos em um trabalho cujo
objetivo é integrar (sem confundir) as dimensões interna e externa das finanças.
Esta não é uma discussão meramente semântica: as agendas de pesquisa e debate sobre a
abertura e a liberalização financeiras (ou sobre a integração no sistema financeiro internacional e
a organização doméstica das finanças), tanto no interior da visão convencional como nas
abordagens críticas, não apresentam o grau de integração que seria recomendável dada a
proximidade dos dois aspectos. Por outro lado, não são poucos os trabalhos que encaram as
duas dimensões – doméstica e externa – das relações financeiras de maneira unificada. O
entendimento aqui é o de que, apesar de a globalização financeira conter alterações nas duas
frentes, são problemas teóricos razoavelmente distintos, que justificam um tratamento em
separado – e portanto a divisão temática adotada entre o capítulo I e o II.
Um segundo esclarecimento prévio, também relativo à linguagem utilizada (mas sem
tantos desdobramentos) é a opção pelo uso da denominação “conta financeira” – e não “conta
capital” – todas as vezes em que a referência não for às desimportantes transações registradas na
nova “conta capital”, definida pela quinta edição do Manual de Balanço de Pagamentos do FMI,
adotado no Brasil desde 2001. Novamente, optou-se por citar passagens relevantes da literatura
mesmo que utilizem o título anterior, o que não deve ser motivo para confusões.
Em terceiro lugar, não ignorando os conteúdos (até de natureza ideológica) contidos nas
denominações, para esta tese “países (ou economias) em desenvolvimento” e “periféricos” são
utilizados como sinônimos de uma mesma condição estrutural: a subordinação da dinâmica
econômica doméstica à conjuntura internacional – esta, por sua vez, pautada pelas economias
“centrais” ou “desenvolvidas”. Ao longo do trabalho, se acrescentará uma outra dimensão a esta
divisão: a qualidade das moedas emitidas por estes dois grupos de países (“conversíveis” e
“inconversíveis”, entre outras denominações). Por fim, o termo “mercados emergentes” e
similares (nos quais a carga ideológica parece ser ainda mais forte) é utilizado, na maior parte
das vezes (especialmente nos capítulos III e IV) para distinguir, do amplo grupo de economias
periféricas, aquelas preferidas pelos grandes aplicadores globais, na época da globalização,
como destino dos seus movimentos de diversificação de carteiras. Na nota n. 4 do capítulo III, a
lista de países que se enquadra nesta última definição é apresentada.
Um quarto e último ponto, mais importante e mais controverso, é a distinção entre
“visão convencional” e “visão alternativa”, que orienta a divisão seguida na parte teórica do
5
trabalho. Não são títulos muito rigorosos, e sabe-se que a questão é sujeita a várias
interpretações distintas entre os autores dedicados ao estudo do pensamento econômico. Mas a
opção aqui segue um critério de separação que parece o de mais simples compreensão, e o que
melhor se adapta aos objetivos do trabalho (o que, reforce-se, não quer dizer que seja melhor ou
mais rico do que os outros): segundo Colander et al. (2004), a visão convencional (ou o
mainstream economics) é aquela que a chamada “elite da profissão” considera aceitável. Por este
último termo entre aspas os autores referem-se aos principais economistas, vinculados aos mais
destacados centros de produção acadêmica internacional na área.1
É neste sentido que, nas duas primeiras partes dos capítulos iniciais, são agrupadas as
contribuições de autores distintos – que conservam entre si o respeito e reconhecimento dos
pares mais importantes, e que (dimensão adicional da definição de Colander et al., 2004)
comungam da opção pela modelagem dos fenômenos econômicos em análise e das hipóteses
explicativas. Esta agregação comporta, portanto, variedade nas interpretações e conclusões, e
não se restringe ao que se poderia chamar de “ortodoxia”. É por isso que, especificamente nas
seções I.i.2.3 e II.i.2.1, leituras muito distintas das concepções originais da visão convencional
são interpretadas como partes dela (na forma de “dissidência” ou de “mudança de paradigma”),
apesar de suas conclusões se aproximarem do que se busca definir, em ambas as dimensões,
como “visão alternativa” ou “crítica”.
Esta última surge, na presente tese, como resultado exclusivo da busca por explicações
mais satisfatórias para as questões em análise – i.e., não se pretende apresentá-la como um
arcabouço explicativo articulado e capaz de organizar todas as críticas que a visão convencional
vem recebendo. Inclusive porque se faz uso de uma literatura variada, que conserva como
grande denominador comum, além de algumas idéias gerais nem sempre muito fáceis de
identificar, a falta de reconhecimento por parte da “elite da profissão”.
Isto posto, o trabalho está organizado em cinco capítulos na seqüência desta introdução.
O capítulo I trata das discussões sobre a globalização e a integração nela por parte dos
países periféricos. Na sua primeira parte, a visão convencional começa a ser exposta por meio
dos quatro benefícios teóricos clássicos advindos da abertura. Na seqüência, cinco frentes de
desafios e revisões são apresentados e analisados, a saber: as evidências sobre a concentração da
integração financeira entre os países desenvolvidos; as dificuldades empíricas na comprovação
1 Para uma crítica deste conceito e proposição de definições alternativas para economia neoclássica, mainstream, ortodoxia e heterodoxia, ver Dequech (2007-2008).
6
dos benefícios; as interpretações dissidentes surgidas no interior desta visão; a incorporação de
especificidades dos países periféricos por parte de outros autores; e finalmente uma última
versão do ideário convencional, que se propõe a reexaminar a globalização. Na segunda parte
do capítulo, a busca por uma interpretação alternativa é dividida em três etapas. Em uma
primeira o esforço é de contextualização da globalização em suas raízes históricas, seus
significados mais amplos e suas características principais, além de estabelecer os seus limites
temporais para os países em desenvolvimento. Posteriormente são apresentados os argumentos
de uma leitura crítica deste período histórico, centrada no caráter instável e especulativo do seu
sistema monetário e financeiro internacional. E na terceira são trazidos para o primeiro plano da
análise as características que impactam negativamente as economias menos desenvolvidas – as
assimetrias (financeira, macroeconômica e, acima das outras, monetária), e o fenômeno dos
ciclos internacionais de liquidez.
No capítulo II, o percurso é semelhante, tendo como objeto as questões sobre as relações
financeiras domésticas, o sistema financeiro e sua liberalização. Novamente começa-se com a
visão convencional, na forma da “teoria da repressão financeira”, e depois se envereda pelos
desafios e revisões sofridas pelas concepções originais. Aqui também são cinco as frentes
analisadas em separado: a “quebra de paradigma” representada pelas idéias de assimetria de
informação; o duro revés sofrido com as crises de liberalização desde as primeiras tentativas de
implementação prática do diagnóstico; as outras dificuldades oriundas de testes empíricos; e as
saídas na forma da ênfase no mercado de capitais, por um lado, e no seqüenciamento das etapas
de liberalização, por outro. Na segunda parte a visão crítica vem, em primeiro lugar, sustentada
por pressupostos teóricos de inspiração pós-keynesiana (notadamente o circuito finance-funding
e a hipótese da fragilidade financeira); passa pela discussão de arranjos institucionais
alternativos (funcionais ao desenvolvimento e nos quais o papel do mercado de capitais é
encarado de forma muito mais pessimista); e é concluída com uma tentativa de integrar estes
argumentos com aqueles anteriormente apresentados para a dimensão externa.
A partir do capítulo III, o trabalho é de descrição quantitativa da experiência brasileira
desde o início dos anos 1990. Neste, são analisados em um plano estrutural e de maneira
comparada com as evidências de outros países emergentes, o padrão de inserção financeira
externa e o perfil (tamanho, características, atuação) do sistema financeiro doméstico.
No capítulo IV, o foco se volta para as oscilações de prazo mais curto que marcam a
globalização financeira. Na primeira parte, são descritos por diferentes ângulos e analisados em
7
seus determinantes os ciclos de liquidez internacional para países em desenvolvimento. E na
segunda são documentados os seus efeitos sobre a situação externa do Brasil – tanto no que se
refere aos fluxos registrados no balanço de pagamentos, quanto na interação destes com os
estoques de ativos e passivos externos.
Finalmente, no capítulo V os impactos destes ciclos de liquidez sobre as relações
financeiras domésticas são apresentados e interpretados. Começa-se pelo mercado de crédito, e
avança-se para o mercado de capitais, no qual são observados com mais detalhe os segmentos
de debêntures e – principalmente – o de ações.
Um esforço final de conclusão encerra o trabalho.
9
CAPÍTULO I: Globalização e integração financeira:
a visão convencional e uma alternativa crítica
Introdução
Na introdução, foram definidas duas distinções básicas que orientarão a parte teórica
deste trabalho – entre “visão convencional” e “visão alternativa” e entre “abertura” e
“liberalização” financeiras. Este capítulo inicial procura lidar com o primeiro dos dois temas,
discutindo as formulações originais e a evolução mais recente da visão convencional, e
posteriormente buscando na tradição crítica argumentos que possam ser contrapostos às
formulações dominantes. Trata-se – é prudente esclarecer de partida – de uma tarefa
desafiadora, com resultados desiguais: enquanto a produção do mainstream é vasta e cheia de
nuances, que tornam a resenha aqui realizada necessariamente imperfeita, falta à literatura
crítica um corpo teórico unificado, capaz de se contrapor em pé de igualdade ao arcabouço
convencional.
Consciente destas limitações, o trabalho procura mapear as questões julgadas mais
relevantes em ambos os lados. No caso da visão convencional, mais do que os detalhes formais
dos raciocínios e/ou os métodos empregados nos trabalhos consultados, o interesse aqui recai
sobre as conclusões teóricas e práticas, e principalmente sobre a evolução dos argumentos: as
sucessivas abordagens vão sendo apresentadas em ordem temática (e, quando possível,
cronológica) de elaboração. Já na visão crítica, o objetivo não é apresentar formulações
inovadoras sobre a inserção periférica na época da globalização financeira, e sim buscar na
literatura crítica (e em tentativas anteriores de consolidação de seus argumentos) inspirações
para uma análise mais adequada das questões aqui tratadas do que as disponíveis no interior da
visão convencional.
Como fica claro, em termos formais o capítulo está dividido em duas grandes partes
referentes a cada um dos enfoques, com várias subdivisões que detalham os principais pontos.
Um esforço de síntese e conclusões encerra esta etapa. Procedendo de tal maneira, prepara-se o
terreno tanto para a repetição dos procedimentos em relação ao tema da liberalização financeira
na sua dimensão doméstica (capítulo II), como para a análise quantitativa da experiência
brasileira no contexto da globalização (capítulos III a V).
10
I.i Abertura e integração na visão convencional
De partida, é preciso que seja explicitada uma distinção básica presente na literatura aqui
analisada: de um lado existem as descrições e explicações convencionais para o atual estado de
coisas na organização financeira internacional; e de outro as formulações que defendem
teoricamente a ordem desregulada, seja nas suas formulações clássicas, seja nas diferentes
revisões e reafirmações que vão sendo feitas, principalmente diante das dificuldades
enfrentadas nos últimos tempos. Em relação às primeiras, sabe-se que a globalização é em geral
encarada como sinônimo do aumento da integração financeira entre os países, um fenômeno
essencialmente quantitativo e que na maioria dos casos é atribuído a fatores como o progresso
tecnológico, a redução dos custos de transação, e as inovações financeiras em si, resultados do
avanço das forças de mercado diante da ineficácia progressiva do aparato regulatório vigente
em Bretton Woods. Mas esta interpretação neutra não é, por enquanto, a temática mais
importante para os objetivos deste trabalho;1 passemos ao detalhamento da segunda vertente,
que abre espaço para a análise da evolução da visão convencional.
I.i.1 A globalização e os seus benefícios
A defesa da abertura financeira, principalmente para o caso dos países em
desenvolvimento, é feita nas análises convencionais em torno de alguns conhecidos argumentos.
Fischer (1998) apresenta-os de maneira bastante clara:
“Put abstractly, free capital movements facilitate an efficient global allocation of savings and help channel resources into their most productive uses, thus increasing economic growth and welfare. From the individual country’s perspective, the benefits take the form of increases in the pool of investible funds and in the access of domestic residents to foreign capital markets. From the viewpoint of the international economy, open capital accounts support the multilateral trading system by broadening the channels through which countries can finance trade and investment and attain higher levels of income. International capital flows expand the opportunities for portfolio diversification and thereby provide investor in both industrial and developing countries with the potential to achieve higher risk-adjusted rates of return.”(p. 2-3)
Obstfeld & Taylor (2004, seção 1.1), como ponto de partida de um detalhado balanço
sobre as várias questões envolvidas na mobilidade internacional do capital, também descrevem
seus benefícios teóricos, que seriam quatro: (i) compartilhamento e diversificação internacional
de riscos; (ii) financiamento de desequilíbrios passageiros de balanço de pagamentos; (iii) acesso
1 Na seção I.ii.1 desdobra-se a crítica e a interpretação alternativa sobre a perspectiva histórica.
11
à poupança externa para o financiamento do investimento e do desenvolvimento2; e (iv)
disciplina sobre a política econômica.
Outros exemplos na literatura poderiam ser citados, com poucas variações dignas de
nota. Kose et al. (2006, seção II), por exemplo, dividem os efeitos benéficos em três grupos, com
um grau maior de consenso teórico apenas em relação ao primeiro: “crescimento” (com efeitos
diretos na forma da atração de poupança externa e também dos efeitos de spill-over trazidos por
alguns tipos de capital, e indiretos na forma da especialização produtiva permitida pelo
compartilhamento de riscos, da disciplina macro e do desenvolvimento do mercado financeiro
doméstico); “volatilidade” (seria possível compartilhar os riscos decorrentes da especialização
produtiva, desde que essa não fosse ainda mais elevada pela própria integração, com efeitos
dúbios sobre a volatilidade do produto, e o consumo poderia ser suavizado diante das
possibilidades de acesso ao financiamento externo); e finalmente “co-movimento” entre as
diferentes economias (também com efeitos ambíguos quanto ao co-movimento do produto e
inequívocos quanto ao do consumo).
Tratando especificamente da abertura referente aos mercados de ações, Bekaert &
Harvey (2003) apresentam um modelo teórico cujos resultados apontam na mesma direção
geral. Quando se transita de um mercado segmentado para um integrado, o resultado natural
seria a entrada maciça de investidores estrangeiros (aproveitando os benefícios da diversificação
internacional das carteiras). Essa entrada levaria a um aumento permanente dos preços das
ações negociadas no mercado local e, com isso, a uma queda nos retornos esperados nesse tipo
de aplicação – o que também significa uma redução no custo do capital obtido por esta via.
Assim, as emissões primárias de ações seriam incentivadas e o investimento, beneficiado,
ampliando a taxa de crescimento econômico.
Tudo isso, de certa forma, está resumido na lista de quatro argumentos de Obstfeld &
Taylor (2004) citada acima. Em relação ao ponto (iv) da lista, o primeiro aspecto a ser comentado
é o seu caráter fortemente ideológico. A idéia de supervisão ou disciplina obviamente pressupõe
a existência de um conjunto de práticas de política econômica corretas e unanimemente 2 Esses dois últimos itens são unidos em torno a um mesmo título (em um mesmo raciocínio conhecido, o do “comércio intertemporal”: importação de consumo presente e exportação de consumo futuro) que tem claramente duas dimensões, uma de curto prazo, referente ao ajuste no balanço de pagamentos (“... an international capital market allows countries to smooth out over time the dynamic effects of predictable income fluctuations. A country whose output is temporarily low, for example, can borrow to support consumption, repaying the loans later after the anticipated output increases” ”, p. 8) e outra, relativa ao longo prazo e ao financiamento do investimento (“A country that has rich opportunities, but that generates little savings of its own, can tap the international market to exploit its investment potential without massive short-run consumption cutbacks”, p. 9).
12
reconhecidas como tal. Apenas interesses políticos imediatistas e/ou a falta de preparo e
competência dos policy makers explicariam o desvio desse rumo correto; no caso dos países em
desenvolvimento, o tom do discurso é bastante conhecido: uma mistura de populismo e
ignorância levando a aventuras na condução macroeconômica. São acrescentados alguns graus
de ideologia na outra face do argumento: a certeza na capacidade de monitoramento e correção
por parte dos fluxos de capital desregulados, portadores desse conhecimento e que puniriam os
eventuais desvios.3
Mas, para os objetivos do presente trabalho, interessam mais de perto os argumentos (i) e
(ii) e, portanto, as idéias mais importantes dos outros autores citados. A previsão de uma
diversificação internacional de carteiras por parte dos grandes aplicadores faz bastante sentido a
princípio, e obedeceria à lição banal de “não colocar todos os ovos em uma mesma cesta”:
distribuindo os recursos em ativos cujo valor esteja atrelado a fatores não correlacionados,
obviamente o risco esperado da carteira seria reduzido. E, do ponto de vista dos recebedores
desses fluxos, a possibilidade de negociação dos seus riscos com os de outras economias, desde
que não relacionados entre si, também permitiria redução dos estragos em situações adversas,4
além de incentivar empreendimentos mais rentáveis e com novas tecnologias cujos riscos,
também maiores, inibem o investidor isolado.5 Configura-se assim um ganho de bem-estar de
natureza global, e justificam-se os benefícios previstos na forma de redução da volatilidade e
aumento do co-movimento do consumo e (menos) do produto.6
Já a questão da poupança externa tem algumas implicações macroeconômicas mais
complexas, mas igualmente aponta para um ganho em ambos os lados das transações
financeiras. Do ponto de vista dos ofertantes, o raciocínio é decorrência dos modelos
neoclássicos das trocas internacionais, na linha Hecksher-Ohlin: o capital abundante nos países
desenvolvidos, desde que desimpedido, tende a se deslocar às melhores oportunidades de
3 Na formulação sintética de um autor (e ex-policy maker) brasileiro, em texto para leigos: “... toda e qualquer irresponsabilidade fiscal será punida exemplarmente, seja sob a forma de ataques especulativos, seja pelo exercício da mais absoluta indiferença. (...) se é isso que, ao fim das contas, perdemos com a globalização, a saber, a liberdade de fazer bobagem, fico me perguntando se tudo isso não é para o bem”. (Franco, 1999). 4 “A basic function of a world capital market is to allow countries with imperfect correlated income risks to trade them, thereby reducing the global cross-sectional variability in per capita consumption levels.” Obstfeld & Taylor (2004, p. 6) 5 Numa das principais referências sobre os ganhos da diversificação de riscos no plano internacional (Obstfeld, 1994), é lembrada a frase de Arrow (1971, p. 137) que esclarece esse ponto: “the mere trading of risks, taken as given, is only part of the story and in many respects the less interesting part. The possibility of shifting risks, of insurance in the broadest sense, permits individuals to engage in risky activities that they would not otherwise undertake”. 6 “Both borrowers and lenders gain as capital flows to its most productive uses worldwide.(...) The process of economic convergence is hastened by capital flows from rich to poor countries”. Obstfeld & Taylor (2004, p. 9)
13
investimento e às mais elevadas taxas de remuneração das economias com escassez relativa de
recursos para financiar a inversão. Para estas, a importação de poupança seria o caminho para a
superação do que é uma de suas deficiências estruturais, e com essa absorção se ampliariam não
apenas as taxas de investimento como também as perspectivas de crescimento e
desenvolvimento. Mais do que isso, um efeito indireto da redução da escassez de capital seria a
queda no seu custo (rumo à equalização internacional das taxas de remuneração), também
contribuindo para a elevação do investimento. Traduzida em raciocínio e linguagem financeiras
mais sofisticadas e tratando especificamente do mercado de ações e seus retornos, é essa
também a essência do raciocínio de Bekaert & Harvey (2003), citado acima.
Este é um ponto fundamental: um dos resultados principais da aplicação da
macroeconomia convencional, de tipo pré-keynesiana, à análise dos problemas dos países em
desenvolvimento – a identificação da carência de recursos previamente poupados como
limitante para o montante do investimento – é resolvido aqui com o apelo à contribuição da
poupança externa, possibilitada pela eliminação dos entraves à livre movimentação do capital
por entre as fronteiras, e que não só coloca à disposição maior quantidade de recursos, como
também reduz as taxas de juros e outras taxas de rendimento.
Talvez esse tenha sido o mais poderoso (e, como se verá, talvez o menos verificável) dos
argumentos endereçados ao longo dos anos 1990 aos países em desenvolvimento, na defesa da
abertura financeira – e, portanto, da integração a um mundo novo de oportunidades.7 No caso
brasileiro, no escasso debate público que sucedeu (ou mesmo foi contemporâneo) à abertura
financeira iniciada ainda no final dos anos 1980, tal raciocínio era, também, a principal
justificativa por parte dos defensores do rumo adotado – Bacha (1993), é um dos seus melhores
exemplos.8
Tomada ainda nesse nível de generalidade, a idéia da absorção de poupança externa se
desdobra em um raciocínio contábil simples, presente em qualquer manual básico de contas
nacionais. Seguindo aqui Krugman & Obstfled (1999), as conhecidas equações da renda nacional
podem ser rememoradas:
7 Veja-se o exemplo, citado por Aizenman (2005, p. 4) da retórica de Andrew Crockett, então diretor-geral do BIS, em 13/2/1998: “For emerging markets, the consequence of these trends has been that they have rapidly become integrated into international capital markets. This has had a number of advantages. Private debt or portfolio inflows in response to economic liberalization have expanded sizeable, from less than $40 billion per year over the period 1983-1990, to an average of about $200 billion a year in the last five years. These capital inflows have provided additional resources to supplement domestic savings and support high levels of investment.” 8 Para um mapeamento das discussões sobre abertura financeira no Brasil, ver Biancareli (2003).
14
1. IMEXGICY −+++=
2. IMEXCA −=
3. CAGICY =++− )(
4. CAIS +=
Sendo, como de costume, Y a renda nacional; C o consumo doméstico; I o investimento
agregado doméstico; G os gastos do governo; EX as exportações de bens e serviços; IM as
importações de bens e serviços; CA o resultado em conta corrente e, finalmente, S a poupança
doméstica. O que se quer explicitar com tais expressões encadeadas é a idéia de que, se a
poupança doméstica é insuficiente para financiar o investimento, pode-se incorrer em déficit em
conta corrente para suplementar esses recursos poupados internamente. Poderia-se acrescentar
a expressão 5. que ilustra bem o ponto: associado à absorção de poupança externa está o déficit
em conta corrente.
5. extSISCA =−=
Nas palavras do manual (p. 317), “... diferentemente de uma economia fechada, uma
economia aberta com oportunidades de investimento lucrativas não necessita aumentar sua poupança
para explorá-las. (...) é possível simultaneamente aumentar o investimento e o empréstimo estrangeiro
sem alterar a poupança”. O resultado seria um exemplo de comércio intertemporal, com o país que
absorve a poupança externa importando consumo presente e exportando futuro (na forma do
pagamento dos empréstimos); e o país “fornecedor” da poupança fazendo a troca intertemporal
no sentido contrário.
Na literatura sobre o tema, tal idéia também assumiu a forma da postulação da existência
de um “hiato de recursos” (simbolizado pelo déficit em conta corrente) a ser coberto pela
poupança ou pelo financiamento externo, com ganhos para ambos os lados. Ou seja, está
implícita, sempre, a concepção de uma necessidade da tomada de passivos externos a partir das
carências e debilidades internas.
E aqui vale uma qualificação preliminar. Em seu estudo sobre o processo de
endividamento externo da economia brasileira nos anos 1970, Cruz (1984) já advertia que, a ser
tomado com todo o rigor, o “hiato de recursos” a ser coberto deveria ser identificado apenas
com a parte do saldo em conta corrente referente aos bens e serviços não-fatores – excluídos
portanto os serviços fatores, como juros e demais rendas do capital. Só na existência de déficit
nesse sentido mais estrito é que se poderia falar em “absorção de poupança externa”. Necessária
15
para a correta avaliação do debate sobre a experiência brasileira naquele momento, esta ressalva
que questiona um dos pilares dos argumentos favoráveis à abertura ainda sob um ponto de
vista estritamente contábil, pode até ser minimizada nos tempos de globalização financeira,
como será visto adiante.
De qualquer forma, o resultado da construção teórica é suficientemente claro: na
presença de ampla liberdade de entrada e saída dos fluxos de capital, é de se esperar que os
países em desenvolvimento apresentem déficits em conta corrente, atraindo o capital externo e
por essa via financiando o investimento. Mais do que isso, para o conjunto da economia mundial
integrada financeiramente, a previsão seria de uma crescente desvinculação entre as taxas
internas de poupança e as de inversão.
Levado às últimas conseqüências, esse raciocínio desemboca em intensos debates como
os suscitados pelos resultados obtidos por Feldstein & Horioka (1980). De maneira
surpreendente, haveria uma alta e estável correlação entre poupança e investimento domésticos
no período 1960-74 para uma amostra de 16 países da OCDE. A partir disso se conclui que, ao
contrário do imaginado, a mobilidade do capital não era alta nem entre aquelas economias, e
que, também contrariando o senso comum, tal mobilidade não havia se elevado com a
desorganização da ordem regulada de Bretton Woods.9 Muita tinta foi gasta para tentar
solucionar tal puzzle – que parece, antes de qualquer coisa, decorrente dos pressupostos
macroeconômicos discutíveis sobre os quais o raciocínio é construído.10
Independente dos detalhes desta discussão específica, o episódio é ilustrativo de dois
fenômenos que se acentuariam no período mais recente: os desafios empíricos e teóricos sofridos
por todo esse rol de argumentos favoráveis à mobilidade internacional de capitais (no caso, em
relação aos países em desenvolvimento); e a dificuldade, no esforço de resposta a esses
questionamentos, de rever as bases mais fundamentais – decorrentes de formulações clássicas
do pensamento liberal – sobre as quais eles estão assentados. É desses processos que se trata na
seqüência.
9 “With perfect world capital mobility there is little or no relation between the domestic investment in a country and the amount of savings generated in his country. In contrast, if portfolio preferences and institutional rigidities impede the flow of long-term capital among countries, increases in domestic saving will be reflected primarily in additional domestic investment. The statistical evidence presented here on the relation between domestic investment and saving implies that the truth lies closer to the second view than to the first”. Feldstein & Horioka (1980, p. 327-8). 10 Rocha (2003) reinterpreta a relação Feldstein-Horioka como uma restrição de solvência de longo prazo do balanço de pagamentos, desvinculada da movimentação internacional de capitais. Nesse mesmo texto, há uma série de referências críticas à interpretação original daqueles dois autores.
16
I.i.2 Desafios e reações no interior da visão convencional
Cunha (2001), denomina de “reação teórica” o movimento de reavaliação do ideário e
das prescrições do mainstream acadêmico-financeiro internacional a partir da crise no pacífico
asiático. Com o benefício do tempo transcorrido e deixando de lado alguns temas que fogem ao
foco desta tese, pode-se dizer que a evolução dos debates desdobrou essa reação em várias
direções distintas – que têm nas crises ali iniciadas um elemento catalisador importante, mas
que na realidade vêm de antes e vão muito além dos aspectos diretamente relacionados a elas.
Destas direções, cinco interessam mais de perto aqui, e são abordadas a seguir.
I.i.2.1 Um negócio entre os ricos: os capitais não fluem para os países pobres
A primeira frente de batalha se localiza no debate quantitativo, do qual duas temáticas
chamam a atenção. Uma delas se refere à mensuração da integração financeira internacional e da
participação dos países em desenvolvimento nele. O capítulo 7 de Obstfeld & Taylor (2004) tem
um título bastante sugestivo do conjunto de suas conclusões sobre esse ponto: Uneven
integration. Quantificando a integração financeira internacional de diferentes maneiras, emerge
uma série de resultados curiosos quando se divide o mundo entre “ricos” (países membros da
OCDE) e “pobres” (ou em desenvolvimento, ou qualquer outro título que se queira dar).
Para os “ricos”, os dados dos estoques de ativos e passivos externos sobre PIB das
últimas décadas mostram uma explosão no movimento bruto, nas duas direções. Mas,
contrariamente à previsão teórica de seu papel exportador de capitais para os “pobres”, o
resultado líquido permanece muito próximo de zero. Essa impressão de “jogo entre os ricos” se
acentua quando são observados os dados de fluxos: a conta corrente como parcela do PIB dos
países em desenvolvimento só é significativamente deficitária em alguns períodos isolados (a
segunda metade dos anos 1970 e parte da década de 1990, até 1997); e após a crise asiática
verificam-se crescentes superávits (i.e., exportação de capital). Um resultado muito mais
próximo do equilíbrio – com forte deterioração e portanto “absorção de poupança” no final da
década passada por conta dos desequilíbrios dos Estados Unidos – se observa entre os
desenvolvidos.11
Contrastando o período atual de globalização com o seu antecessor do final do século
XIX, a conclusão daqueles autores é ainda mais surpreendente: os resultados de fluxos de capital
11 Exercícios semelhante (mas com algumas particularidades importantes) com dados de estoques de ativos e passivos externos são realizados na primeira parte do capítulo III.
17
enquanto parcela da poupança e do investimento domésticos dos países pobres mostram um
grau atual muito menor de importação de capital, apesar dos incentivos – em termos de
dotações e preços relativos dos fatores – serem hoje muito maiores do que na época do padrão-
ouro.
Ou seja, os dados definitivamente não corroboram a figura prevista na teoria:
financiamento dos déficits em conta corrente dos países com escassez de capital por volumosos
fluxos de capital oriundos dos países ricos, em busca tanto dos mais elevados rendimentos,
quanto da diversificação dos seus riscos. O confronto da realidade com dois dos mais
importantes pilares do raciocínio resumido nas páginas anteriores surge das próprias palavras
destes insuspeitos autores:
“Thus, globalized capital markets are back, but with a difference. Capital transactions today seem to be mostly a rich-rich affair, consistent with the picture of modern capital flows as mostly ‘diversification finance’ rather than ‘development finance’.(p. 241) Today’s foreign asset distribution is much more about asset ‘swapping’ by rich countries – mutual diversification – than it is about the accumulation of large one-way positions, which is the key component of the development process in poorer countries according to standard textbook treatments. Modern capital flows therefore are more about hedging and risk-sharing than about long-term finance and the mediation of saving supply and investment demand between countries.(...) to a very great extent today, a country’s net capital accumulation still seems to depend on the provision of financing from domestic rather than foreign sources of savings (Feldstein-Horioka again). Poor countries have less access to international capital than they had before 1914.”(p. 249)
Vale anotar que a constatação não é propriamente nova, tendo sido, ainda no princípio
da era da globalização, apresentada por um dos grandes expoentes contemporâneos do
pensamento neoclássico (Lucas, 1990) como um dos maiores contrastes entre a realidade e as
teorias dominantes sobre as trocas internacionais: “por que o capital não flui dos países ricos para os
pobres?”. O “paradoxo de Lucas” é, assim, um primeiro desafio ao raciocínio convencional, que
no entanto raramente é mencionado quando se faz uso dos argumentos da diversificação
internacional de carteiras e da atração de poupança externa. As tentativas de explicação para
esse contraste, presentes no próprio livro de Obstfeld & Taylor (2004, cap. 8), giram em torno
das deficiências institucionais dos países potencialmente recebedores dos fluxos de capital,
particularmente a falta de garantias do respeito ao direito de propriedade.12
Vale ainda notar que uma constatação próxima (mas não exatamente a mesma) que
também há tempos intriga a literatura convencional, suscitando variados esforços de explicação,
12 Isso ajudaria a explicar também porque, durante o padrão-ouro, regiões formal ou informalmente subordinadas ao império britânico e a seu regime jurídico, recebiam fluxos de capital numa proporção muito maior do que o fazem hoje, enquanto nações livre e institucionalmente atrasadas.
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é a de que as aplicações financeiras, principalmente nos mercados acionários, teriam um “viés
doméstico” (home bias), que também contradiz frontalmente as previsões teóricas que sustentam
a abertura.13 Mas este não é, definitivamente, o maior desafio empírico à visão convencional.
I.i.2.2 Dados relutantes: a difícil comprovação dos benefícios da abertura
O fato de o capital fluir para os países em desenvolvimento em um montante muito
menor do que o previsto pode não ser argumento suficiente para descartar a abertura a eles;
nada foi dito ainda a respeito dos seus benefícios. É sobre eles que se dá o segundo e mais
importante esforço quantitativo: a mensuração dos efeitos da abertura financeira, na busca de
comprovação das promessas contidas na teoria, principalmente em relação ao crescimento. Os
resultados são, para dizer o mínimo, muito aquém da robustez que autorizaria recomendações
tão enfáticas como as dirigidas ao mundo em desenvolvimento ao longo das décadas de 1980 e
1990. Alguns autores envolvidos nesta cruzada chegam a manifestar explicitamente seu
incômodo com os dados que teimam em não “confessar”.14
As primeiras e mais destacadas tentativas, no período recente, de se medir tais relações
são as de Quinn (1997) e de Rodrik (1998), com resultados contraditórios: o primeiro obtém uma
correlação positiva entre mudanças na direção da abertura e taxas de crescimento, e o segundo
não encontra nenhuma associação entre as proxies dos dois fenômenos econômicos em tela. Essa
discordância pode ser tomada como um ponto de partida que suscita o desenvolvimento da
pesquisa empírica em várias direções, a começar das formas de se medir a abertura financeira.
Enquanto Rodrik (1998) utiliza uma medida “grosseira” de abertura (uma variável
binária baseada nas declarações oficiais compiladas no Annual Report on Exchange Arrangements
and Exchange Restrictions, AREAR, do FMI sobre a presença ou não de controles de capital), o
estudo de Quinn (1997) refina esta medida, atribuindo pesos distintos para o caráter parcial ou
total dos controles, dos tipos de fluxos etc. A partir daí, o refinamento das proxies progrediu
bastante, seja trabalhando com os próprios dados do AREAR (que a partir de 1997 trazem
informações mais detalhadas sobre os diferentes tipos de controles) seja combinando-os com
análises da legislação específica de cada país.15
13 Ver Lewis (1999). No cap. 2 de seu último relatório sobre a estabilidade financeira global (IMF, 2007), o FMI apresenta evidências que apontariam para a redução desse viés, além do crescimento de um viés intra-europeu. 14“Most of our research (...) has tried to draw inferences form a somewhat reluctant data”. Bekaert & Harvey (2003, p.45). 15 Um mapeamento recente (Kose et al, 2006, seção III) dessas tentativas mais sofisticadas de medir a abertura financeira cita, entre outros: Chinn & Ito (2006); Mody & Murshid (2005); Edwards (2005); Miniane (2004).
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Outra forma de quantificar a abertura também utilizada são as chamadas medidas
quantitativas ou de facto (em oposição às qualitativas ou de jure já citadas, baseadas nas
legislações ou registros oficiais dos regulamentos). Estas, por sua vez, também se dividem
segundo a variável econômica observada: grau de integração financeira (estoques de ativos e
passivos externos geralmente em relação ao PIB); diferenciais de preços dos ativos (na suposição
de que a integração os reduziria); paridades das taxas de juros (também na suposição de
convergência com a liberdade de movimento dos capitais); e as correlações entre poupança e
investimento domésticos já comentadas. Como outras características desta literatura, pode-se
citar a predominância de análises cross-country (que se beneficiam do avanço das técnicas
econométricas nos últimos tempos) em relação a estudos de caso ou comparativos. Para todas
essas direções, a crescente disponibilidade de dados padronizados também é uma novidade
relevante. Além do resumo em Kose et al (2006), a detalhada resenha de Eichengreen (2001)
também traz várias referências do debate e dos procedimentos metodológicos.
No entanto, para além destes, o que mais interessa aqui são os resultados, e esses são em
geral desapontadores para a visão convencional, apesar de todas as tentativas nas mais distintas
direções. Economistas bastante destacados pela posição que ocupam no FMI, Prasad et al. (2003),
após uma primeira tentativa de organizar a discussão empírica, não conseguiam ir além da
expressão de dúvidas diante do contraste das previsões teóricas com a realidade. Em outra
linha, Gourinchas & Jeanne (2003) reputam como insignificantes ou “ilusórios” os ganhos
identificáveis de bem-estar advindos da integração financeira – facilmente superados por
providências internas relativas à alocação eficiente de recursos e elevação da produtividade.
Indo além, advogam que, se existirem, os benefícios devem se transmitir através de canais
distintos daqueles presentes nos modelos neoclássicos tradicionais, afetando de maneira
positiva a produtividade das nações receptoras.16
Tomemos um outro exemplo: o trabalho de Edison et al. (2002) procura fazer uma análise
bastante ampla do ponto de vista das opções metodológicas acima citadas: utilizam todos os
indicadores de abertura e integração, de jure e de facto, já tentados, e, além disso, incorporam
novos dados de estoques de ativos e passivos externos divididos por tipo. Examinam ainda a
interação com outros fatores que a literatura reputa fundamentais nesta relação (controlam a
16 São sugeridos para pesquisa mais detalhada os efeitos diretos do IDE sobre produtividade, e os impactos indiretos através da “vigilância” em relação a políticas econômicas corretas, instituições e respeito aos direitos de propriedade, transparência, governança etc.
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influência de instituições e regimes de política macroeconômica), e, finalmente, utilizam
novidades então recentes nas técnicas de painel para tratar problemas estatísticos comuns em
tais testes. As conclusões, mesmo cheias de ressalvas, valem a transcrição pelo que revelam de
dúvidas sobre o tema:
“The data do not support the view that international financial integration per se accelerates economic growth, even when controlling for particular economic, financial, institutional, and policy characteristics. Note, however, these results do not imply that openness is unassociated with economic success. Indeed, IFI is positively associated with real per capita GDP, educational attainment, banking sector development, stock market development, the law and order tradition of the country, and government integrity (...) Thus, successful countries are generally open economies. Rather, this paper finds that IFI is not robustly linked with economic growth when using a variety of IFI measures and an assortment of econometric approaches. Similarly, although there are isolated exceptions, we do not reject the null hypothesis that IFI is unrelated to economic growth even when allowing this relationship to vary with economic, financial, institutional, and macroeconomic characteristics.”(p. 772)
O trecho toca em vários pontos relevantes além da conclusão principal. Uma delas é a
associação da abertura com o “sucesso econômico”, feita aqui preservando uma consideração
que deveria ser óbvia: associação ou correlação não é causalidade, e um mínimo de
conhecimento histórico esclarece que a maioria ou a totalidade dos successful countries só adotou
a abertura financeira depois de atingido um alto grau de desenvolvimento.17 Mais do que isso,
são comentados alguns dos fatores estruturais, particularmente financeiros e institucionais, que
poderiam estar impedindo tal relação esperada de se manifestar. Neste trabalho, mesmo
eliminado este obstáculo, o resultado não é o pretendido. Outros, no entanto, tratam destes
fatores estruturais de maneira distinta, identificando-os como possíveis canais através dos quais
os benefícios teóricos se manifestariam sobre o crescimento.
Voltando novamente à resenha de Eichengreen (2001), outro ramo da literatura ali citado
procura medir os impactos indiretos da abertura sobre o crescimento por meio de dois destes
canais: o investimento e o grau de desenvolvimento financeiro (estes sim, com papel relevante
em qualquer regressão de crescimento). O fato é que também não se consegue demonstrar essa
relação indireta de maneira conclusiva. O próprio Rodrik (1998) não havia encontrado nenhuma
associação da abertura com o investimento, resultado também obtido por Kraay (1998) que usa
diferentes alternativas para medir a variável independente. E, em relação aos impactos sobre o
aprofundamento financeiro de maneira geral, a correlação positiva encontrada por Klein &
Olivei (1999) desaparece quando são excluídos da amostra os países da OCDE (ou seja, ela não 17 Fischer (1998, p. 2) lança mão de um argumento cuja lógica (ou falta dela) até surpreende: “There are two chief arguments in favor of capital-account liberalization. The first is that it is an inevitable step on the path of development, which cannot be avoided and should be embraced. After all, the most advanced economies all have open capital acc