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8/22/2019 Tese de Doutoramento Helena Caspurro
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ndice
Introduo 11
Parte Terica
Audio, audiao e improvisao musical:
reflexo sobre teorias e modelos de ensino-aprendizagem
Captulo I. Audiao e improvisao: problemticas conceptuais,
epistemolgicas e educativas 27
1.1. Questes conceptuais e terminolgicas 29
1.1.1. Audio e audiao 34
1.1.2. Audiao: estdios e tipos 48
1.1.3. Sintaxe e linguagem: o significado da audiao como pensamento
sintctico da msica 53
a) audiao da sintaxe tonal 58
b) audiao da sintaxe rtmica 62
c) audiao objectiva e subjectiva 63
1.1.4. Improvisao e criatividade 65
1.1.5. Improvisao, audiao e aptido musical 70
a) aptido musical 71
b) aptido, audiao e improvisao 74
1.2. Problemticas educativas em torno do conceito de audiao e sua relao
com a improvisao 79
1.2.1. Sequncia de aprendizagem 79
a) padres tonais e padres rtmicos 83
b) sequncia de aprendizagem de competncias 89
c) sequncia de contedos 93
d) relao entre sequncia de aprendizagem, estdios e tipos de
audiao 95
1.2.2. Aprendizagem da improvisao 100
a) questes sobre sequncia, eficincia e readiness 103
b) relao entre readiness e qualidade/quantidade das experincias
de aprendizagem musical 113
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c) organizao da instruo: modelo todo-parte-todo e sua relao
com competncias e contedos 116
1.2.3. Elementos de uma reflexo pessoal: a improvisao como processo de
significao - para uma perspectiva transversal da improvisao naaprendizagem curricular da msica com base na audiao 123
Captulo II. Improvisao: reviso de literatura no domnio da investigao em
Psicologia, Educao e Etnomusicologia 135
2. Contributos para a definio de improvisao 137
2.1. Expanso de estudos 137
2.1.1. O contributo da Psicologia 140
a) estudos sobre o processo generativo da improvisao 143
b) estudos sobre o processo cognitivo, desenvolvimental e de
aprendizagem da improvisao 157
c) estudos psicomtricos 183
2.1.2. Contributos pedaggico-didcticos 185
a) perspectiva histrico-estilstica 185
b) perspectiva centrada na Eurritmia de Jaques-Dalcroze 186
c) perspectiva centrada na imitao e auto-descoberta 187
d) perspectiva centrada na compreenso da sintaxe musical 187
2.1.3. O contributo da Etnomusicologia 190
a) elementos para a definio de improvisao na cultura Ocidental
193
b) elementos para a definio de improvisao em civilizaes no-
ocidentais 198
c) elementos para a definio de improvisao no Jazz 200
2.2. Improvisao: da reviso de literatura a uma perspectiva pessoal 209
Captulo III. Descrio e fundamentao da metodologia de ensino-aprendizagem
implementada 219
3. Ensino-aprendizagem da audiao da sintaxe harmnica 221
3.1. Fundamentao genrica da metodologia 221
3.1.1. Objectivo especfico e descrio genrica da metodologia 223
3.2. Descrio e taxonomia de contedos 229
3.2.1. Contedos Essenciais 229
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3.2.2. Contedos Transversais 231
3.3. Descrio de taxonomia de competncias 233
3.3.1. Relao entre aprendizagem por discriminao, aprendizagem por
inferncia e taxonomia de contedo tonal 2343.3.2. Relao entre aprendizagem por discriminao, aprendizagem por
inferncia e modos de ensino 236
3.4. Descrio dos materiais musicais 237
a) canes 237
b) padres tonais 238
c) sequncias diatnicas 241
3.5. Natureza, organizao e sequncia dos recursos metodolgicos 243
3.5.1. Canto 243
3.5.2. Actividades Sequenciais 245
3.5.3. Actividades de Sntese 250
3.5.4. Estratgias auxiliares de ensino 254
3.5.5. Avaliao 255
Parte Emprica
Estudo sobre efeitos da aprendizagem da audiao da sintaxe tonalna improvisao meldica
Captulo IV. Metodologia 259
4. Objectivo, problemas, instrumentos e procedimento do estudo 261
4.1. Objectivo e problemas do estudo 261
4.2. Definio e constituio da amostra 263
4.3. Instrumentos 265
4.3.1. Teste de Audiao de Funes Harmnicas (TAF) 265
4.3.2. Testes de Improvisao (TI 1 e TI2) 272
4.3.3. Testes de aptido musical: Advanced Measures of Music Audiation
(AMMA), Harmonic Improvisation Readiness Record & Rhythm
Improvisation Readiness Record (HIRR & RIRR) 283
4.4. Procedimento 285
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Captulo V. Anlise e interpretao de resultados 289
5. Apresentao de resultados 291
5.1. Anlise separada da amostra 291
5.2. Anlise global da amostra 2955.3. Outros dados: sobre audiao de funes tonais e improvisao 299
5.4. Discusso de resultados 303
5.5. Limitaes 307
Concluses 309
Bibliografia 321
Discografia 343
Anexos 345
Anexo A 347
Anexo B 369
Dossier de Materiais udio 429
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ndice de Quadros
Captulo I
Quadro 1.1.: Estdios de Audiao 49
Quadro 1.2.: Tipos de Audiao 50
Quadro 1.3.: Nveis e subnveis da aprendizagem de competncias realizada atravs da
discriminao e da inferncia 90
Quadro 1.4.: Taxonomia de contedo tonal: nveis e subnveis da sequncia de aprendizagem
do contedo tonal 94
Quadro 1.5.: Taxonomia de contedo rtmico: nveis e subnveis da sequncia de
aprendizagem do contedo rtmico 95
Quadro 1.6.: Relao entre estdios de audiao e sequncia de aprendizagem de
competncias de Gordon 109
Quadro 1.7.: Relao entre taxonomia do domnio cognitivo de Bloom e estdios de audiao
de Gordon 110
Quadro 1.8.: Relao entre taxonomia de aprendizagem de Frabboni, sequncia de
aprendizagem e estdios de audiao de Gordon 111
Captulo IIIQuadro 3.1.: Taxonomia de Contedos Essenciais: nveis e subnveis da sequncia tonal 230
Quadro 3.2.: Relao entre a sequncia de Contedos Essenciais e o domnio de Contedos
Transversais desenvolvidos nas Actividades de Sntese 232
Quadro 3.3.: Princpios da aprendizagem por discriminao e por inferncia no contexto
genrico dos Contedos Essenciais e na sua relao com o processo de
instruo 233
Quadro 3.4.: Relao entre sequncia de competncias e sequncia de contedos tonais 235
Quadro 3.5.: Modos de ensino da aprendizagem por discriminao e por inferncia 236
Quadro 3.6.: Contedo sintctico, autor e fonte bibliogrfica das canes 238
Quadro 3.7.: Tipo e natureza dos problemas abordados nas Actividades Sequenciais para o
desenvolvimento da audiao da sintaxe tonal, respectivo modo de ensino, quer
ao nvel discriminativo, quer ao nvel inferencial da aprendizagem 247
Quadro 3.8.: Organizao dos materiais e recursos metodolgicos em funo da
aprendizagem por discriminao e por inferncia 253
Quadro 3.9.: Relao de contedos e competncias avaliados ao longo da experincia de
instruo de acordo com objectivos sequenciais estipulados para a audiao da
sintaxe tonal 256
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Captulo IV
Quadro 4.1.: Distribuio da amostra por sexo e classe instrumental 263
Quadro 4.2.: Distribuio da amostra por idade e classe instrumental 263
Quadro 4.3.: Critrios de contedo musical e cognitivo do TAF 267
Quadro 4.4.: Contedo do TAF 268
Quadro 4.5.: Caracterizao dos problemas e nveis sintcticos presentes nos testes de
improvisao TI 1 e TI 2 275
Captulo V
Quadro 5.1.: Turma A: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cada
condio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 292
Quadro 5.2.: Turma A: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 292
Quadro 5.3.: Turma B: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cadacondio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 293
Quadro 5.4.: Turma B: teste s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 294
Quadro 5.5.: Teste global s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E em cada
condio de realizao das improvisaes a capella/acompanhada 296
Quadro 5.6.: Teste global s diferenas entre TI 1 e TI 2 nas dimenses S/ORM/E 297
Quadro 5.7.: Correlaes entre HIRR, RIRR, AMMA e TI 1, TI 2 298
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ndice de Figuras
Captulo I
Fig. 1.1.: Viso micro-sequencial da taxonomia de contedos de Gordon 119
Fig. 1.2.: Viso figurativa micro e macro-sequencial da taxonomia de padres de Gordon 120
Captulo II
Fig. 2.1.: Estdios de desenvolvimento da improvisao segundo Kratus 160
Captulo IIIFig. 3.1.: Melodias utilizadas durante o perodo de instruo 224
Fig. 3.2.: Padres tonais de Tnica e Dominante - modos M e m 239
Fig. 3.3.: Padres tonais de Tnica, Dominante e Subdominante - modos M e m 240
Fig. 3.4.: Exemplos de sequncias diatnicas de Tnica e Dominante - modos M e m 241
Fig. 3.5.: Exemplos de sequncias diatnicas de Tnica, Subdominante e Dominante - modos
M e m 242
Fig. 3.6.: Critrios didcticos 248
Fig. 3.7.: Exemplos de Actividades de Sntese aplicando CCE e CCT 251
Fig. 3.8.: Exemplos de Actividades de Sntese aplicando CCT 252
Captulo IV
Fig. 4.1.: Folha de Resposta do TAF 269
Fig. 4.2.: Frase incompleta para criao de Coda (m: i-iv-V7-i) 273
Fig. 4.3.: Frase incompleta para criao de Coda (m: i-iv-V7-i) 274
Fig. 4.4.: Contedos do teste TI 1 de acordo com Manual de Instrues 276
Fig. 4.5.: Explanao dos contedos e tarefas solicitadas ao longo da realizao de TI1 de
acordo com Manual de Instrues 277
Fig. 4.6.: Contedos do teste TI 2 de acordo com Manual de Instrues 278
Fig. 4.7.: Explanao dos contedos e das tarefas dadas ao longo da realizao de TI2 de
acordo com Manual de Instrues 279
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A msica que fazemos tem dois ps: o p esquerdo o que est mais ligado ao
Jazz, improvisao; o outro p o p ladro, que copia tudo, que anda por todo
o lado." "Costumas dizer que o p esponja...
Mrio Laginha e Maria Joo (Pblico, Nov. 2002)
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Introduo
Carlos Paredes(A Capital, 1980; Dirio de Notcias, 1990)
A investigao que aqui apresento pretende ser um contributo para a prtica da
improvisao e para o desenvolvimento da compreenso tonal nos curricula de
msica. Nomeadamente, pretende chamar a ateno para a importncia da
audiao da sintaxe harmnica no desenvolvimento da improvisao meldica,
apresentando um conjunto de dados e reflexes que espero venham melhorar o
actual sistema de ensino da msica.
Confesso que me difcil saber exactamente quais os motivos que me levaram a
este tipo de pesquisa. A insatisfao com que me senti mergulhada na hora de
finalizar o curso superior de piano, por no ter sido dado qualquer momento de
voo minha necessidade intrnseca de improvisar, colocou-me num confronto
artstico e educativo que me tem acompanhado at aos dias de hoje. Parte deste
conflito seria resolvido com a passagem por alguns anos na Escola de Jazz do
Porto, depois de um interregno devotado s interminveis questes de pedagogia.
Julgo serem estes os primeiros apeadeiros de uma viagem que dificilmente
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deixar de me suspender nesta procura fascinante da interaco entre a arte de
falarmsica e a aprendizagem.
O desenrolar da caminhada (que j no propriamente curta) no difcil de
descrever. Grande parte da sua histria no mais do que um relato de
momentos e lugares cujo valor para a minha busca enquanto instrumentista e
educadora, a ser possvel resumir em palavras, se abrevia atravs da mensagem
que desejo deixar testemunhada nesta dissertao.
No deixo contudo de enumerar aqueles que me parecem ser os principais
catalisadores da partida. O contacto com investigadores capazes de me fazer
pousar o olhar sobre caminhos at ento pouco consciencializados; aenternecedora experincia com adolescentes e crianas dos 4 aos 10 anos de
idade, numa srie de projectos de educao musical em vrios pontos do pas; a
partilha de ideias com um j consideravelmente numeroso universo de alunos de
Escolas Superiores de Educao (Guarda e Coimbra) e da Universidade de
Aveiro (onde encontrei desde h meia dzia de anos a minha mais emocionante
morada), ento sequiosos de descobrir os meandros da pedagogia esse lugar
onde se julga estar guardada a chave da arte da motivao e da inspirao para
aprender; a orientao de estgios da disciplina de Formao Musical em alguns
conservatrios nacionais, onde o tema da compreenso musical particularmente
caro; um conjunto de seminrios sobre a problemtica da improvisao como
processo de significao musical, dirigidos a professores em exerccio mas no
menos inquietos relativamente ao tema; alguns textos escritos sobre a mesma
questo; por fim: as saborosas vivncias com os msicos com quem tenho
partilhado o meu projecto artstico de originais de que resultou o CD Mulher
Avestruz (cujo lanamento foi integrado nas cerimnias comemorativas do 30
aniversrio da Universidade de Aveiro).
Um enquadramento biogrfico como o que acabo de descrever parece-me ser
suficientemente abrangente e esclarecedor para responder pergunta sobre a
escolha de uma temtica que, embora pertinente para a educao musical,
continua a ser de certo modo rf de reflexo e questionamento. Refiro-me,
claro, ao que me parece ser uma postura generalizada dos educadores do
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denominado crculo de cultura erudita, afinal de contas os principais obreiros da
formao artstica e pedaggica no nosso pas.
Efectivamente pouco se tem debatido acerca do papel da improvisao no
processo de aprendizagem musical, nomeadamente o significado psicolgico e
educativo que revela revestir enquanto meio de manifestao ou exteriorizao de
conhecimento interiorizado pelo sujeito. Um olhar alargado sobre as prprias
prticas e estilos de ensino perpetuados nos nossos conservatrios ao longo do
ltimo sculo permite comprovar facilmente o que acabo de constatar. Com efeito
raros so os professores de msica que promovem a prtica da improvisao
junto dos seus alunos. Mais raros so ainda aqueles que se questionam sobre as
razes inerentes ao facto da maioria desses alunos no ser capaz de improvisar.
O mesmo se passa alis com a maioria dos processos de aquisio e realizao
de conhecimento musical que envolvem a concretizao de pensamento
eminentemente criativo, como a composio. Salvo raras excepes, quer a
improvisao quer a composio so observadas como regies demarcadas nos
curricula a maioria das vezes tambm com poucas afinidades entre si cujo
desenvolvimento fruto ou resultado, no tanto de experincias ou percursos
criativos promovidos ao longo das diversas aprendizagens, mas sobretudo de
opes e interesses artsticos assumidos por sujeitos particulares. Isto , para a
maior parte dos educadores o pensamento e a realizao criativa dos alunos so
perspectivados mais como fins artsticos a atingir em reas curriculares
especficas do que como meios atravs dos quais se aprende msica.
Ao procurar com cuidado uma srie de literatura relacionada com o tema, sou
levada a concluir contudo, que no apenas a criatividade constitui um objecto caro
de estudo para a maioria dos psiclogos e educadores contemporneos, como na
sequncia disto o interesse pelas relaes particulares deste fenmeno com a
Msica comea a atrair a ateno de um cada vez mais numeroso crculo de
investigadores. Sem dvida que as razes para este movimento reflexivo se
prendem no caso concreto da msica s questes atrs levantadas
nomeadamente pela pertinncia que assumem revestir numa rea que, por
definio, conotada com a criao e produo de conhecimento esttico.
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Na sequncia desta anlise, o que me parece ser digno de referncia o facto de
o fenmeno de expanso de estudos sobre criatividade se desenvolver no sem
repercusses no terreno da reflexo educativa, contrariando de alguma maneira o
que comecei por referir, mormente acerca daquilo que caracteriza a realidade
musical e escolar do nosso pas. Um exemplo disto a urgncia com que no
mbito das sucessivas tentativas de reforma do ensino artstico levadas a cabo
desde h uns tantos anos (com sistemtico insucesso, alis), o argumento da
criatividade, nomeadamente a improvisao, invocado e solicitado enquanto
princpio orientador do processo curricular e formativo dos msicos. Outro
exemplo a forma como praticamente toda a comunidade educativa dos msicos,
quando se trata de promover debates em torno da arte e do artstico naeducao, no ousa pr em causa a questo da importncia da criatividade na
aprendizagem. No ser menos verdade afirmar tambm que a seriedade e a
nobreza que os msicos depositam no assunto est relacionada, quase
exclusivamente, com a forma como reconhecido indubitvel certificado de
garantia a uma das poucas reas de realizao criativa do currculo: a
composio.
claro que, em face do que acabo de expor, surge-me uma nova pergunta: como
explicar ento que a suposta valorao da criatividade no processo formativo e
global dos alunos, entretanto invocada pelos educadores dos crculos eruditos e
artsticos da msica, no seja acompanhada por gestos e prticas pedaggicas
concretas? Ou de outro modo: por que razo a frequente incapacidade de
improvisao dos alunos denuncia uma certa incongruncia entre as intenes
educativas e curriculares e a realidade escolar de ensino?
Sem dvida que a problemtica da criatividade , pela sua estreita ligao ao
controverso debate em torno da definio de conhecimento e de inteligncia,
assunto particularmente privilegiado para filsofos, psiclogos e educadores do
mundo contemporneo. O desenvolvimento de uma srie de estudos dedicados
questo da qualidade dos processos de realizao, produo e criao de
conhecimento parece comear a suscitar de facto, na comunidade cientfica e
educativa musical, uma maior ateno relativamente ao tema da improvisao.
Algo que parece ter algum peso para o desenrolar deste fenmeno a
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proliferao, na Europa, ao longo de todo o sculo XX, de prticas e costumes
musicais alicerados na experimentao e criatividade espontnea, como por
exemplo os movimentos avant garde e o Jazz, bem como outras tantas
tendncias de fuso de linguagens e culturas fortemente marcadas pela tradio
oral e pela improvisao (africanas, afro-americanas, asiticas).
Certamente que estes dados podem ser cruciais para explicar situaes
aparentemente paradoxais no sistema educativo portugus. Isto : talvez seja
verosmil pensar que o facto de os instrumentistas (de formao erudita) no
conseguirem dar resposta a solicitaes decorrentes de diferentes modos de
estar com a msica sobretudo os que dependem da cultura da criatividade
espontnea, entretanto em franco desenvolvimento tambm no nosso pas
possa estar na origem de sentimentos de insatisfao que se materializam,
simultaneamente e de forma generalizada, em intenes de reformulao e
mudana curricular. Talvez seja verosmil pensar ainda que a razo pela qual
essas mesmas intenes no se consumam em prticas educativas concretas
resida no carcter circular em que cai inevitavelmente o prprio problema.
Efectivamente no pode ser arredada da questo a forma como os educadores
observam a improvisao no contexto da sua prpria vivncia formativa e
artstica. Sendo eles prprios produtos do sistema de ensino vigente, natural
que no se sintam suficientemente confiantes para pr em prtica competncias
relativamente s quais no se encontram habilitados nem, em virtude disso
mesmo, atribuem um significado experiencial concreto. A circularidade do
fenmeno manifesta-se tambm, como bvio, ao nvel da sua formao
pedaggica. Isto : na qualidade do produto resultante da aco desenvolvida, de
uma forma generalizada, pelos prprios agentes de formao.
Creio que a ausncia de um edifcio terico capaz de explicar, com base em
dados empricos concretos, qual o significado psicolgico e educativo da
improvisao e da criatividade no processo de aprendizagem musical poder
constituir um motor decisivo para o perpetuar do problema. O nmero de estudos
desenvolvidos sobre este assunto particular da educao musical totalmente
negligenciado, alis, nos circuitos cientficos nacionais no de facto
abundante, assim como no o em Portugal a prtica e cultura da investigao.
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Ora, considerando todos estes dados, no difcil duvidar que o problema da
inconsistncia entre a teoria e a prtica dos educadores no que respeita
abordagem da improvisao e da criatividade no ensino da msica se torne, no
nosso pas, inevitvel. Ou seja: por um lado dados existem que confirmam a
necessidade de procurar modelos capazes de dar resposta ao desenvolvimento
da improvisao e do pensamento criativo dos alunos aquilo que o paradigma
tradicional de ensino musical tem revelado no conseguir promover, e que conduz
necessariamente a esforos e tentativas de reformulao. Por outro lado a
ausncia de informao, sobretudo no terreno da reflexo nacional, relativamente
ao que em termos psicolgicos e educativos pode definir, caracterizar e
fundamentar aquele tipo de conhecimento, torna-se, juntamente com a escassainvestigao existente, um obstculo prpria actuao e esforo de mudana,
perpetuando a inconsistncia entre a articulao das intenes dos educadores e
a respectiva prtica curricular e pedaggica. Algo que, sobretudo em matria de
criatividade, parece ser generalizvel alis a praticamente toda a realidade
escolar. Segundo numerosa bibliografia consultada o fenmeno, concretamente
no ensino da msica, no deixa de se verificar ainda noutros pases do continente
europeu e no europeu (como por exemplo nos Estados Unidos da Amrica).
Torna-se claro portanto que a definio do problema levantado na presente
dissertao no pode deixar de ser realizada fora deste conjunto de questes,
nomeadamente aquelas que, estando directamente relacionadas com alteraes
paradigmticas dos processos de ensino e aprendizagem da msica, ainda no
se conseguiram concretizar, apesar de alguns esforos, e que so decisivas para
o desenvolvimento da criatividade e da improvisao nos curricula.
De facto todos conhecemos as dificuldades com que, de uma forma generalizada,
se deparam os msicos mesmo os de elevado nvel de conhecimento de anlise
e de performance quando so expostos a situaes que esto para alm da
manipulao das competncias de interpretao, leitura, memria ou tcnica
instrumental.
Improvisar, mormente no contexto de um padro ou estrutura estilstica que lhes
familiar como o discurso tonal, por exemplo , tarefa particularmente digna
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de desorientao e inquietude. Isto passa-se, como tive j oportunidade de referir,
no terreno institucional onde se move a principal educao artstica do pas
(Conservatrios, Academias, Escolas Profissionais, etc.). No difcil encontrar-
se aqui a morada de alguns preconceitos sobejamente conhecidos. A
improvisao enquanto aptido, queda, herana gentica ou at mesmo
genialidade; a improvisao como terreno estilstico herdado por uns tantos
domnios afectos tradio oral, onde se destaca o Jazz; a improvisao por fim,
decorrente disto, como objectivo puramente artstico, pouco susceptvel de ser
validada enquanto competncia transversal e sequencial da aprendizagem.
Obviamente que a anlise de literatura dedicada ao tema, mormente de carcter
musicolgico e psicolgico, faz de imediato levantar questes acerca da validade
daqueles pressupostos.
Por um lado, musiclogos como entre outros Michels (1987), Netll (1998; 2001),
Bailey (1992), Clarke (1992), Blacking (1995) vm demonstrar-nos que a prtica
da improvisao no s est decisivamente intrincada na histria da cultura de
diferentes civilizaes, como reflecte os valores que as prprias sociedades
constroem em torno do conceito de msica, nomeadamente no que respeita s
dimenses criativas e expressivas do processo de realizao que lhe inerente.
A ideia de que a proeminncia ou no da improvisao numa dada cultura
depende sobretudo (Netll, 2001: 95) permite compreender, para alm de outros
problemas, o lugar pouco privilegiado da improvisao no contexto generalizado
da cultura ocidental do ltimo sculo.
Por outro lado, quer psiclogos quer educadores comparam a improvisao com
o fenmeno de significao da linguagem, encontrando na aprendizagem
nomeadamente ao nvel dos processos de assimilao e aquisio de vocabulrio
musical a principal causa para a sua realizao nos sujeitos. Azzara (1993),
Kratus (1991), Gordon (2000b), Pressing (2000), Sloboda (2000) so alguns
desses autores.
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A preocupao particular de Gordon pela questo da compreenso musical, da
qual resulta a sua inovadora teoria de aprendizagem musical, fez-me sem dvida
concretizar o contacto duradouro com o autor. justo referir, portanto, que devo a
Edwin Gordon a concretizao de uma srie de reflexes e pesquisas em torno
da psicologia e pedagogia da msica, concretamente na rea da improvisao
meldica no contexto do sistema funcional, das quais resulta a presente
dissertao. Sem dvida que o devo ainda a Edgar Willems, cuja obra
metodolgica, moldada pelo trabalho criativo e enriquecedor de dedicados
discpulos portugueses, acabaria por marcar decisivamente, na Juventude
Musical Portuguesa do Porto, todo o meu percurso como estudante de msica.
A evidncia de que improvisar constitui um processo em constante
desenvolvimento e que tender a culminar, caso as circunstncias no se
manifestem adversamente, na sua expresso simblica mais abstracta a leitura
e a escrita assunto a retirar daquela teoria, ou no fosse a sua sistemtica
orientao para o tema da sequncia de aprender a compreender o significado
musical dos sons. A problemtica torna-se ento decisivamente apaixonante.
Volto realidade escolar e constato que, salvo rarssimas excepes, os msicos
sabem ler e escrever notas, no se encontrando contudo habilitados para aquela
que deveria ser a sua primeira competncia: falar msica. Ou seja: improvisar.
Mais ainda: so efectivamente estes mesmos alunos que melhor me conseguem
surpreender pelo que revelam de desorientao auditiva quando confrontados
com tarefas de identificao harmnica no mbito de discursos tonais
particularmente familiares.
Dando razo reflexo referida, algo se passa naquele modo de aprender msica
que no permite a concretizao de relaes de significao entre o que
executado (ou simplesmente teorizado) e o que percepcionado auditivamente,
levantando dvidas sobre a interiorizao de contedos e competncias
essenciais ao processo espontneo de comunicao e realizao musical
caracterstico da improvisao. A compreenso da sintaxe harmnica que,
inspirada na teoria do autor, identifico aqui, por comparao aprendizagem da
linguagem, s necessidades de significao de um qualquer discurso tonal
(atravs das respectivas funes e estrutura de progresso harmnica) parece
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constituir um factor decisivo para o desenvolvimento da improvisao meldica.
Esta considerao torna-se ainda mais pertinente se no perdermos de vista o
problema do imediatismo que o seu gesto performativo encerra a execuo e a
criao de msica em tempo real.
Vrios so os msicos do universo jazzstico para j no falar da minha prpria
experincia como instrumentista nesta rea estilstica particular que nos
testemunham estas evidncias.
Vrios so os estudos tambm, dentro e fora do terreno artstico, que nos
relembram que o conhecer uma tcnica no significa necessariamente ser capaz
de a utilizar, nomeadamente fora de contextos pouco ou nada familiares. Oproblema da criatividade e do pensamento divergente, concretamente no domnio
da improvisao musical, parece alis comear aqui: que tipo de conhecimento
est implicado no processo de realizao musical exigido pela improvisao? Ou
de outra forma: o que necessrio saber ou conhecer para, em tempo imediato
performance, criar msica, descobrir outros caminhos ou solues,
nomeadamente em contextos tonais e em termos meldicos? Em suma: que tipo
de vocabulrio ou conhecimento necessrio adquirir e desenvolver para se falar
melodicamente?
A hiptese de que a aprendizagem da sintaxe tonal e rtmica fundamental para
o desenvolvimento da competncia para falar msica constitui um facto
indiscutvel para qualquer msico que tenha por hbito, profisso ou prazer,
improvisar. Evidncia como esta encontra fundamento, alis, na constatao de
que a compreenso auditiva da melodia est dependente, no da maneira como
ouvimos notas isoladas, mas da forma como percepcionada a sua estrutura e
contexto harmnico (Dowling, 1984, 1991; Clarke, 1989, 1999, 2000; Johnson-
Laird, 1989, 2002; Bamberger, 1991, 1994, 2000; Pressing, 1991, 1998, 2000;
Cuddy (1993), Sloboda, 1993; Aiello, 1994; Bharuca, 1994; Deutsch, 1999; Kenny
& Gellrich, 2002; Povel & Jansen, 2002a). Ou seja: a questo da definio das
competncias envolvidas no processo de improvisao meldica parece estar
decisivamente relacionada, no plano cognitivo, com aquilo que, previamente
improvisao propriamente dita, o executante capaz de ouvir e interpretar
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perceptivamente no contexto da melodia em causa. Algo que sem dvida est
para alm da simples performance (tcnica), imitao ou memorizao da
horizontalidade frsica, da lgica das escalas ou do conhecimento de intervalos, e
que Gordon (2002b) denomina, de forma inovadora, poraudiao.
Ainda que o trabalho dos citados investigadores permita sublinhar, com o rigor
sistemtico que caracteriza a observao e reflexo cientfica, aquele facto, nada
melhor do que ir ao encontro dos prprios obreiros da arte e ouvi-los,
compreend-los. O comentrio de Laginha a propsito do seu trabalho em duo
com o pianista Sasseti pareceu-me, neste caso, particularmente sugestivo. Dizia
ele: (Magalhes, 2002).
Ora, voltando aos fundamentos tericos do objecto de estudo que aqui apresento,
compreender a provocao harmnica implcita ou explcita no discurso meldico
de qualquer cano ou motivo meldico transmitido por um eventual interlocutor
ou simplesmente evocado do arquivo musical e silencioso das nossas memrias
constitui, em suma, o cerne da questo. Seguramente que se trata tambm, e
em rota simultnea com a aferio dos problemas em estudo, do objectivo capital
da experincia educativa que implementei em duas turmas do 9 ano do curso
profissional e artstico de msica da Escola ARTAVE. Objectivo esse que, tendo
em considerao o quadro predominante de ensino, parece no fazer parte,
desde h longa data, dos programas e prticas educativas da maioria das escolas
e conservatrios de msica do pas e que, como referi, parece oferecer srias
razes para o facto da incapacidade de improvisao meldica dos alunos se ter
tornado, no decurso do seu caminho formativo, um porto de chegada frequente.
O facto de no existir praticamente nenhuma investigao acerca da validade
destes pressupostos no processo de ensino-aprendizagem da msica explica o
objecto de estudo que apresento nesta dissertao. Assim e mais concretamente,
os problemas que pretendo investigar so:
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1) verificar se uma metodologia de ensino-aprendizagem baseada na
audiao da sintaxe harmnica ao nvel auditivo-oral tem efeitos no
desenvolvimento da capacidade para improvisar melodicamente;
2) verificar se resultados obtidos nos testes estandardizados de aptido
Advanced Measures of Music Aptitude (AMMA, 1989) e Harmonic
Improvisation Readiness Record & Rhythm Improvisation Readiness
Record (HIRR & RIRR, 1998) de Edwin Gordon se relacionam com os
resultados obtidos nos testes de desempenho de improvisao meldica
desenvolvidos na experincia.
No que toca ao teor e valor educativo da problemtica em causa acompreenso da sintaxe musical h que dar razo aos princpios filosficos que
moveram pedagogos do incio do sculo XX, como entre outros Jaques-Dalcroze
(1916), Mathay (1913), Mursell (1958; 1971), Willems (1970; 1975), Mainwaring
(in McPherson & Gabrielsson, 2002). Desprovidos dos instrumentos que a cincia
educativa hoje disponibiliza, as suas ideias sobre o que constitui o pensamento
musical exigido a qualquer instrumentista adquirem foros de contemporaneidade,
para no dizer lucidez reflexiva. No posso deixar de referir o carcter de
antecipao pedaggica que qualquer um destes msicos revela traduzir.
Testemunhado de forma inevitvel pela escola que ainda hoje no conseguimos
deixar mexer pelo menos tanto quanto desejaramos suficientemente rico
para no deixar de ser relevado neste estudo.
A exigncia de contextualizao e fundamentao de todas estas questes,
requerida pelo prprio objecto de estudo da dissertao, nomeadamente o
significado psicolgico e educativo do termo audiao, justifica um conjunto de
reflexes de carcter epistemolgico, pedaggico e histrico a abrir o trabalho.
Com efeito considero que a teoria de aprendizagem de Edwin Gordon consegue
dar resposta, atravs do princpio da audiao, ao conjunto das problemticas
relativas quer compreenso sintctica da msica, quer aprendizagem da
improvisao. A complexidade subjacente sistematizao de todo o processo
de aprender a audiar msica, bem como a relao daquele novo conceito com o
prprio desempenho da improvisao, explicam o tratamento exaustivo que
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caracteriza o texto apresentado no Cap. I. Daqui se pode concluir portanto, que
tendo em vista a fundamentao da metodologia de ensino-aprendizagem
proposta para a experincia educativa em estudo, a abordagem desenvolvida
neste captulo era essencial.
Efectivamente foi com base na teoria de Edwin Gordon que criei e desenvolvi
uma srie de instrumentos de trabalho que julgo poderem prestar um particular
contributo reflexo e prtica educativa dos professores, sobretudo aos que se
interessam pelo tema da compreenso e improvisao tonal.
No deixo de apontar ainda a maneira por vezes enfatizada com que, no mbito
do tratamento das temticas apresentadas no mesmo captulo, exponho visescrticas e pessoais. A justificao da escolha por um tipo de discurso mais livre
ou potico, a ser devida dado o contexto acadmico e cientfico do trabalho
no poder ir para alm de razes intrinsecamente estilsticas e emocionais. A
principal prende-se ao facto de no ter sido capaz de evitar a presena da minha
histria de vida como instrumentista, estudante, educadora, enfim, cidad do
mundo. A outra, no menos decisiva, com a minha relao apaixonada com a
improvisao e com a prtica de ensinar msica.
Resta-me fazer uma chamada de ateno relativamente a aspectos de
organizao desta dissertao, o que julgo poder facilitar a sua leitura e
compreenso.
Assim, esta dissertao constituda por duas partes: uma parte terica e uma
parte emprica. Na parte terica apresento uma reflexo sobre as problemticas
entretanto descritas, concernentes quer audiao quer improvisao.
Enumerando: a reflexo epistemolgica, histrica e educativa sobre aproblemtica da audiao no contexto da teoria de aprendizagem de Edwin
Gordon (Cap. I), a reviso dos principais estudos e trabalhos educativos
publicados sobre improvisao (Cap. II), a fundamentao da metodologia de
ensino-aprendizagem que implementei na experincia de instruo sobre a qual
dirigido o objecto de estudo apresentado na presente dissertao (Cap. III). Na
parte prtica relato a metodologia da investigao, descrevendo o conjunto de
instrumentos que utilizei para tratamento emprico das questes em estudo (Cap.
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IV), tendo em vista a anlise, discusso e interpretao dos resultados (Cap. V), a
que se seguem as Concluses da dissertao.
A dissertao apresentada com um conjunto de 6 CDs udio, compreendendo o
contedo dos diversos testes que criei para tratamento emprico. Do conjunto,
cinco so relativos s gravaes das avaliaes das performances dos alunos
realizadas no mbito dos Testes de Improvisao administrados antes da
experincia (TI1: CD I & CD II) e depois da experincia (TI 2: CD III, CD IV & CD
V). O restante diz respeito ao contedo musical do Teste de Audiao de Funes
(TAF: CD VI). Os CDsforam arquivados no final do documento da dissertao, na
seco denominada por Dossier de Materiais udio.
Foram criados ainda dois Anexos A e B onde podem ser consultados os
materiais referentes aos instrumentos descritos no Cap. IV, bem como o registo
enumerado do contedo udio dos CDs atrs enunciados. Assim e por questes
de organizao, remeteu-se para Anexo A o conjunto de materiais relativos ao
Teste de Audiao de Funes (TAF): grelha de correco, Rating Scales, TAFPreparatrio (contedo do teste, folha de resposta e grelha de correco) e
relao enumerada de contedos udio do CD VI. Para Anexo B remeteu-se o
conjunto de materiais relativos aos Testes de Improvisao (TI 1 e TI 2): grelhas
de correco, Rating Scales, relao enumerada de contedo udio dos CDs I &
II (TI1) e dos CDs III, IV & V (TI2).
Todas as citaes so apresentadas na lngua da edio consultada de forma a
preservar ao mximo as fontes de informao. Os destaques apresentados a bold
no mbito das citaes correspondem integralmente aos que so apresentados
pelos seus autores. As datas correspondem tambm s da edio consultada.
Quando, ao longo do texto, a referncia a termos ou expresses especficas
suscitou problemas de traduo, optei por citar o termo original em itlico e,
sempre que possvel, os seus equivalentes em portugus, de forma a preservar o
pensamento dos respectivos autores. A utilizao de itlico foi aplicada ainda a
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termos ou expresses que considerei merecerem destaque em situaes
particulares do discurso, e que julgo poderem contribuir para um melhor
entendimento crtico das ideias defendidas.
Para o tratamento de questes de citao e referncia bibliogrfica ou electrnica
(Internet), optei por seguir as normas indicadas na mais recente edio do manual
publicado pela American Psychological Association (APA, 2002).
Finalmente, no posso deixar de expressar o desejo de que este trabalho
contribua para o desenvolvimento da compreenso harmnica da msica nas
prticas e programas escolares, e simultaneamente para um renascer da cultura
da improvisao no dia-a-dia das vivncias pessoais e artsticas dos alunos.
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Parte Terica
Audio, audiao e improvisao musical:
reflexo sobre teorias e modelos de ensino-aprendizagem
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Captulo I
Audiao e improvisao: problemticas conceptuais,
epistemolgicas e educativas
Neste captulo faz-se uma reflexo de carcter filosfico e histrico-
pedaggico sobre a problemtica da audio e da compreenso musical,
com o objectivo de fundamentar a metodologia de instruo musical
proposta na presente dissertao. Considera-se que as questes
educativas suscitadas pela aprendizagem da improvisao se fundam na
discusso inaugurada por uma srie de pedagogos do sculo XX, da qual
resulta o conceito de audiao proposto na Teoria de Aprendizagem
Musical de Edwin Gordon. Pretende-se que esta fundamentao terica,
percorrendo contributos da Psicologia e da Pedagogia da Msica a partir
do incio do sculo XX, ajude a compreender as razes que estiveram na
base da escolha de uma metodologia de ensino-aprendizagem alicerada
no pensamento daquele autor.
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1.1. Questes conceptuais e terminolgicas
Jaques-Dalcroze (1915, p. 10)
Mainwaring (in McPherson & Gabrielsson, 2002, p. 103)
No de todo sustentvel que a realizao do msico possa ser concretizada,
no importa a que nvel, sem ouvir. Da mesma maneira que a aco do pintor, do
bailarino, do escritor ou do matemtico so inconcebveis sem, respectivamente,
ver, percepcionar as funes da linguagem corporal, dominar os cdigos de
significao da linguagem ou pensar em termos abstractos e simblicos. Contudo,
qualquer uma destas evidncias no suficiente para definir a qualidade dos
processos envolvidos nos diferentes domnios de conhecimento que so exigidos
a cada um dos seus actores. No basta, portanto, ver para se ser pintor, escrever
para se dominar a arte da escrita, coordenar os movimentos do corpo para se ser
bailarino, saber as regras do raciocnio numrico para se ser matemtico.
Tambm na msica no ser de todo suficiente ouvir para se cantar ou tocar com
excelncia, compor uma obra polifnica, nem to-pouco harmonizar de ouvido
uma bela cano de Mozart ou improvisar sobre um tema conhecido.
Ainda que no seja necessrio grande erudio para se concluir tudo isto, o certo
que foi sobre esta problemtica que, no terreno da msica, a maioria dos
pedagogos da primeira metade do sculo XX dedicou a sua obra educativa,
abrindo caminho para uma das principais discusses filosficas e cientficas da
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actualidade: como definir o conhecimento musical e qual o papel da educao no
seu processo de desenvolvimento. A ideia de que a manifestao de produtos ou
desempenhos no suficiente para a definio de conhecimento
verdadeiramente assimilado a questo levantada.
um facto que a tentativa de definir o conhecimento musical com base em
processos decorrentes da assimilao sonora resulta da reflexo sobre o
paradigma tradicional de ensino, nomeadamente a sua pouca eficcia para
responder a problemas de realizao que esto para alm da performance
propriamente dita, da reproduo imitativa de notao e do conhecimento de
teoria musical. A desorientao frequentemente manifestada pelos alunos quando
confrontados com o desempenho da improvisao, bem como uma srie de
outras dificuldades demonstradas no mbito da compreenso harmnica, da
leitura primeira vista, da transposio, do tocar de ouvido e da criatividade
musical em geral, so exemplos sugestivos.
No ser preciso ler os textos de Jaques-Dalcroze para se perceber, portanto,
que a insistncia por estratgias de ensino fundadas logo em fases iniciais de
aprendizagem musical na teorizao do discurso sonoro (pautas, escalas,
intervalos, acordes, notas, armaes de clave, etc.), no treino obsessivo do
ditado e do exerccio repetitivo muitas das vezes desprovido de critrio
esttico e na sobrevalorizao da memria e da tcnica performativa, continua
ainda hoje a dar provas de no conseguir atender quela que constitui a principal
ferramenta do msico: o ouvido. Tambm so conhecidas as razes de elevados
ndices de desmotivao e insucesso escolar no nosso pas (cf. Ministrio da
Educao-DES, 1997). Aquilo que, pela boca de alunos, continua a ser frequente
ouvir-se dizer a dificuldade em compreender a msica que se d no
Conservatrio as notas, as pautas, o solfejo deveria constituir um sinal de
questionamento e reflexo para os educadores.
Ou seja: as questes levantadas pelos pedagogos do incio do sculo XX no so
muito diferentes das que preocupam os psiclogos e educadores
contemporneos.
O significado filosfico e epistemolgico deste debate, nomeadamente para a
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reflexo sobre uma das problemticas capitais da psicologia do desenvolvimento
curricular e da aprendizagem a definio de conhecimento torna-se evidente.
No que se refere concretamente msica, poder-se- afirmar que questionar o
produto ou resultado de mtodos de ensino fundamentalmente assentes na
memria e teoria musical questionar o prprio conceito de saber. Como defende
Elliot (1995) (p. 60). Ou
seja: saber msica no a mesma coisa que saber acerca de msica. Ou melhor
ainda: conhecer notas e figuras no a mesma coisa que ouvir e identificaro som
que esses smbolos representam. A qualidade do conhecimento isto dos
processos ou percursos desenvolvidos pelos sujeitos para a sua realizao emanifestao , em sntese, o cerne da questo.
Alguns exemplos podem ser esclarecedores: tocar eximiamente a melodia Jingle
Bells que se memorizou por partitura no a mesma coisa que ser-se capaz de a
tirar de ouvido, de a transpor, de a reconstruir tocando-a noutra tonalidade ou
noutro contexto rtmico nem muito menos descortinar o seu Baixo ou
progresso harmnica. Assim como cantar um standard jazzstico, mesmo com
um groove inigualvel, no a mesma coisa que improvisar sobre a sua
estrutura harmnica e estilstica. Um facto fica evidenciado, contudo, em qualquer
um dos casos: o produto resultante da reproduo ou teorizao de msica
mesmo quando selado pelo crivo da excelncia da interioridade e fidelidade dos
processos de memorizao nem sempre suficiente para caracterizar
conhecimentos musicais verdadeiramente assimilados pelo sujeito. A chave do
problema , sem dvida, a compreenso auditiva da msica algo que apela
para um tipo de apropriao de processos e factos que apenas pode serdesenvolvido de forma intrnseca ao indivduo. Efectivamente uma coisa
compreender msica descortinar o significado sonoro de uma estrutura
meldica, harmnica, rtmica que memorizmos, que acabmos de ouvir,
executar ou que estamos a ler, escrever, improvisar ou compor. Outra coisa
conhecerescalas, intervalos, notas e figuras representadas numa folha pautada
ou simplesmente relembradas na execuo.
Em face do exposto torna-se evidente que a discusso em torno de como se
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assimila msica? tem na histria da reflexo pedaggica um outro significado
epistemolgico. Implica com efeito uma mudana de atitude dos educadores
relativamente s grandes questes da educao: a passagem da reflexo acerca
de como se ensina?para a problemtica em torno de como se aprende?. Ou
mais concretamente: como se aprende a compreender auditivamente msica?.
No se trata, como bvio, de questionar o valor da memria, da tcnica, da
leitura ou da escrita. Nem sequer da teoria musical. Trata-se, isso sim, de
perceberquando que a aprendizagem da notao e da teoria devem surgir no
processo educativo, e qualo papel da memria e da tcnica no decurso do seu
desenvolvimento.
Jaques-Dalcroze (1916), ao chamar a ateno para a importncia do
conhecimento perceptivo loreille no desenvolvimento da aprendizagem dos
mais variados tipos de competncia musical, no o primeiro autor a levantar
questes acerca da qualidade dos produtos de ensino resultantes de modelos
pouco atentos problemtica da assimilao. Desde o sculo XVII que
pensadores como Comenius, Pestalozzi, Rousseau, confrontados com questes
semelhantes noutros domnios do conhecimento e da aprendizagem, defendem o
princpio de que a experincia concreta com os problemas deve preceder a
teorizao, lanando as bases para a emergncia do que pode ser considerado o
bero do novo paradigma de reflexo pedaggica da msica. So seus
protagonistas autores como H. Naef e L. Mason (in McPherson & Gabrielsson,
2002) que, j no incio do sculo XIX, defendiam a ideia de que a aprendizagem
musical se deve iniciar com a exposio ao fenmeno sonoro, e s
posteriormente passar sua expresso grfica.
Parece ser certo que para qualquer um dos autores referidos a resposta s
questes acerca do saber msica se funda na prpria problemtica da
compreenso sonora no processo de aprendizagem. Para aqueles pensadores
ser, portanto, a forma como se processa a compreenso do que se ouve que
explica o facto de estarmos ou no perante um msico. Assim como a forma
como se processa a compreenso do que se v poderia explicar a circunstncia
de estarmos ou no perante a presena de um artista plstico, e por a fora.
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Desde ento que a problemtica do pensamento sonoro passa a fazer parte de
numerosos discursos educativos, dando lugar a diversas terminologias todas
elas decorrentes da necessidade de definir a qualidade dos processos de
conhecimento com base na assimilao perceptiva da msica. Audio interior,
thinking in sound, apreenso, so alguns dos exemplos que mais no traduzem
do que uma urgncia dos pedagogos em destacar o processo de interiorizao de
vocabulrio sonoro exigido pela compreenso intrnseca da msica, sobretudo
nas fases que precedem a leitura, a escrita e a teorizao musical.
O conceito de audiao de Gordon do qual depende a noo de compreenso
sintctica da msica e sobre o qual se definiu o problema de estudo tem uma
histria de gestao fundada, toda ela, no contexto daquela problemtica. A
improvisao musical, ao manifestar-se como uma forma particular de realizao
de conhecimento interiorizado, no escapa, como bvio, discusso.
Como ser analisado, atravs do conceito de audiao que vrios estudiosos
contemporneos fundamentam o processo de improvisar msica. O que significa
que as problemticas educativas inerentes ao desenvolvimento da improvisao
devem ser compreendidas luz das questes em torno da qualidade dos
processos de conhecimento e assimilao musical. Concretamente, a
compreenso auditiva da sintaxe da msica. Ou seja: a audiao.
A referncia a uma srie de estudos desenvolvidos, quer no domnio da psicologia
cognitiva quer no domnio da educao, confirmando o valor educativo da Teoria
de Aprendizagem Musical de Gordon, torna-se deste modo crucial para a
fundamentao da abordagem pedaggica que se apresenta no presente estudo.
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1.1.1. Audio e audiao
Willems (1990, p. 25).
A procura de terminologias ou alegorias que permitam explicar e sublinhar, de
uma maneira clara e concreta, a qualidade do processo de assimilao musical
um fenmeno constante na reflexo educativa de todo o sculo XX.
Matthay (1913) que se preocupou com o processo psicolgico da aprendizagem
dos instrumentistas na poca contempornea a Jaques-Dalcroze aborda o
problema, sublinhando a diferena entre ouvire escutar: (p. 5).
Audio interior outra das expresses fulcrais nos discursos pedaggicos
desenvolvidos ao longo do sculo XX. Willems (1950, 1970, 1976,1977), Orff
(1961,1974, 1978) sobretudo atravs de Keetman (1974) , Kodly (in Choksy,
1981), Martenot (in Frega, 1996), usam frequentemente aquela expresso com o
mesmo sentido de escuta proposto por Matthay.
Mainwaring (cf. McPherson & Gabrielsson, 2002), um dos precursores da reflexo
em Psicologia da Msica, insiste, no incio do sculo XX, na expresso thinking in
sound, enquanto que Jaques-Dalcroze (1916) v no termo eurritmia com o qual
intitula uma parte fundamental do seu mtodo de ensino a melhor forma de
designar os princpios subjacentes escuta sonora e cinestsica da msica e,
deste modo, a manifestao de desempenho musical intrinsecamente
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interiorizado, do qual depende decisivamente o desempenho da improvisao
(que constitui outra das componentes essenciais do seu mtodo).
A aplicao dos conceitos de escuta e de audio interior ao ensino instrumental
verifica-se ainda em obras didcticas de pedagogos e instrumentistas de meados
do sculo XX como, entre outros, Gieseking & Leimer (in Aiello & Williamon, 2002)
e Donald Pond (in Like, Enoch & Haydon, 1996).
Outros educadores, como Y. Trotter ou mesmo Montessori (in McPherson &
Gabrielsson, 2002), advogam genericamente, j no incio do sculo XX, o
princpio de Pestallozi atrs referido facto que, na histria da pedagogia
musical, lhes fez merecer, ao lado de autores como H. Naef e L. Mason, umestatuto de modernidade e vanguardismo filosfico.
As abordagens de Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly e Orff, todas elas marcadas
pelas mesmas ideias que inspiraram os seus predecessores, so aplicadas e
desenvolvidas por um numeroso conjunto de discpulos ao longo da segunda
metade do sculo XX, alguns dos quais inauguram escolas de msica com os
seus nomes como forma de homenagear o carcter ainda inovador da obra
pedaggica dos respectivos mestres. Destacam-se, neste sentido, algunsnomes. Abramsom (1980; 1988; 1992), Steinitz (1988), Aronoff (1979) na linha de
Jaques-Dalcroze. Chapuis (1990; 2001a e b), Simes (1967; 1990), Macedo
(1990), Violante (cf. Perdigo, 1990), entre outros, desenvolvendo as ideias de
Willems, nomeadamente no nosso pas. Hegyi (1979), Choksy (1981), Sznyi,
(1983), Herboly-Kocsr (1984), Cruz (1995), Torres (que publica em 1998 uma
abordagem educativa do cancioneiro portugus com base no mtodo de ensino
hngaro) na linha de Kodly. Keetman (1974) tendo entretanto colaborado com
Orff na publicao da Orff-Schulwerk(1961;1974) , Martins (a quem se deve a
adaptao portuguesa da obra atrs citada), Bastin & Van-Hauwe (1976;1977),
Wuytack (1989; 1990; 1991; 1998), Azevedo & Ferreira (a quem se deve a
adaptao portuguesa de algumas obras de Van-Hauwe editadas em 2005),
renovando e aplicando os princpios, quer da Orff-Schulwerk, quer do pensamento
de Kodly cultura musical dos seus pases.
Suzuki (1983; 1993), ao desenvolver um mtodo especfico para o ensino de
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violino, expande os princpios da aprendizagem perceptiva dos sons educao
genrica da msica (nomeadamente ao ensino de piano), sublinhando a ideia de
que o processo de assimilao de conhecimento musical semelhante ao da
lngua materna (mother tongue).
Kohut (1992) fundamenta o seu nos princpios
pedaggicos defendidos por Suzuky, salientando as vantagens da aprendizagem
de ouvido no desenvolvimento da musicalidade e do desempenho dos
instrumentistas.
Para qualquer um dos autores citados o conceito de audio interior (ou de
escuta) pe em destaque um problema que essencial na aprendizagem damsica a compreenso do fenmeno sonoro. Ou seja, mais do que fazer msica
importa como de facto apreendida ou assimilada pelo sujeito. O destaque dado
ao canto, ao movimento corporal, a actividades de escuta sonora, improvisao
antes da aprendizagem da leitura e da escrita musical um exemplo de como,
para aqueles pedagogos, a maneira como a msica assimilada que
determinante para o desenvolvimento de nveis ou mbitos de conhecimento e
realizao musical qualitativamente diferenciados. O texto de Willems (1975),
atrs citado, particularmente sugestivo.
claro que as questes em torno de como se desenvolve a audio? se podem
traduzir numa s pergunta: como se aprende msica?. Se diferentes concepes
de saber e, portanto, de conhecer msica determinam produtos ou
desempenhos qualitativamente diferenciados; se ao nvel do contacto com o
som ou das vivncias perceptivas com os problemas dele resultantes que se
fundamenta um modo de estarmusicalmente com a msica de ser msico , de
que falam ento, concretamente, pedagogos e msicos quando se referem, nos
seus manuais ou textos educativos, audio e criatividade musical? O que
significa desenvolver a musicalidade tema caro a qualquer programa de ensino
artstico e como desenvolv-la? Qual a relao com o saber msica,
nomeadamente em termos prticos, e qual o papel do conhecimento terico no
contexto deste processo? Qual a relao entre o saber ouvir, o saber
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performativo, o saber criativo e o saber teoria musical? O que , enfim, saber
msica?
A obra pedaggica desenvolvida pelos pedagogos do sculo XX foi, toda ela,
concebida com o objectivo de resolver as questes levantadas. justo referir que,
de um modo geral, prestou um valioso contributo renovao e desenvolvimento
da educao musical em vrias partes do mundo. No entanto, a realidade escolar
dos conservatrios (ou outras instituies com tradio de ensino semelhante)
continua a dar sinais de que existem problemas de aprendizagem que ainda no
se conseguiram resolver. As dificuldades de desempenho ao nvel da
improvisao e genericamente do pensamento e expresso criativos , da
audio, sobretudo ao nvel harmnico, bem como a iliteracia notacional so os
principais exemplos de problemas verificados ainda hoje nos alunos,
nomeadamente em Portugal.
Segundo alguns estudiosos esta situao pode ser explicada, em grande medida,
pelo facto da maioria das abordagens pedaggico-didcticas no basear os seus
mtodos de aprendizagem pelo menos de forma suficientemente sistematizada
numa teoria psicolgica e sequencial dos processos envolvidos no acto de
ouvir. Ser por estas razes que autores como Waltters (1992) ou Gordon
(2000b) argumentam que o conceito de mtodo com o qual se identifica o
trabalho de Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly, Orff e Suzuky no suficiente,
em termos educativos, para explicar e resolver os problemas cognitivos
decorrentes da audio interior ao longo das vrias fases do processo de
realizao e aprendizagem musical. Sem dvida que a questo do
desenvolvimento dos processos de compreenso musical constituiu o centro
nevrlgico da reflexo de qualquer um daqueles pedagogos. A importncia que
todos depositaram ao que se ensina, sobretudo durante as fases iniciais de
escolaridade musical, no oferece dvidas quanto ao que implcita ou mesmo
explicitamente era defendido em termos de sequncia de aprendizagem.
Contudo, a resposta ao quando e porque se aprende que a obra educativa
daqueles metodlogos no chega a vias de sistematizao pelo menos ao
nvel de uma teoria psicolgica facto que explica o apontamento crtico que lhes
dirigido.
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claro que para alm desta insuficincia de fundamentao terica e psicolgica
dos mtodos de ensino musical, outras razes se podem argumentar para o
insucesso educativo dos alunos, nomeadamente a diversidade de perfis dos
professores em termos artsticos, cientficos e pedaggicos. Parece ser este,
alis, um dos problemas mais pertinentes da educao, no apenas da msica
como de qualquer outra rea do conhecimento. A julgar pela histria das reformas
governativas e das prprias intenes individuais de mudana, no existem sinais
suficientemente convincentes de que alguma vez venha a ficar resolvido, pelo
menos escala macro-social e poltica das organizaes educativas.
Mursell (1971) um dos primeiros autores a procurar responder problemtica
da aprendizagem musical com base quer na fundamentao cognitiva dos
processos de assimilao, quer no princpio de sequncia. Convicto de que o
conceito de audio interior no suficiente para explicar a qualidade dos
processos perceptivos envolvidos na realizao musical, afirma que
(p. 203). Denomina a este modo de organizar e seleccionar as impresses
auditivas em padres sonoros de apreenso musical.
Para o autor apreender msica uma questo que est para alm da percepo
propriamente dita. Envolve sobre esta ltima processos de seleco, triagem,
organizao. De acordo com as suas prprias palavras, apreender msica
(p. 50). Com base nesta ideia o
autor chega a comparar as funes do ouvido s do microfone. Explica a ideia
com base no seguinte exemplo: num acto de performance realizado em
circunstncias de grande distrbio sonoro situao frequente, alis, em meios e
espaos urbanos .Para reforar a imagem sugerida, acrescenta que:
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which is obviously of the most vital importance for the apprehension of music>> (p.
52).
Ou seja, para Mursell, ainda que a percepo sonora (aural demands) seja o
fundamento psicolgico do prprio conhecimento musical, para se compreender
msica no basta recolher, arquivar ou imitar percepes (alturas, duraes,
intensidade, forma). Mais do que isso, a forma como se seleccionam, organizam
e representam cognitivamente (mind) essas percepes que traduz o facto de se
estar ou no a atribuir significado musical ao que se ouve como a identificao
da estrutura tonal (meldico-harmnica), rtmica (funes mtricas e temporais),
ou mesmo tmbrica (textura) de uma obra. A noo de padro sonoro neste
contexto, enquanto unidade perceptivamente organizada pelo sujeito,
fundamental para explicao do fenmeno. Como ser oportunamente analisado,
esta maneira de perspectivar o processo de percepo e compreenso musical
contm os princpios psicolgicos daquilo que ir ser utilizado mais tarde, por
outros autores, para fundamentar um conceito que crucial nesta dissertao: a
aprendizagem da sintaxe musical. Com efeito, tendo por base algumas teorias
contemporneas, a funo dos padres sonoros, tal como defendida por
Mursell, pode ser comparvel ao papel que as palavras ocupam no
desenvolvimento da significao sintctica da linguagem (cf. 1.1.3.).
Apesar desta analogia no estar explicitada, perfeitamente verosmil suspeitar
que a explicao para as dificuldades dos alunos em domnios como a audio
harmnica ou a improvisao pudesse ser fundada, pelo autor, na questo da
qualidade dos processos de significao musical. Isto , na incapacidade em
organizar as percepes sonoras em unidades ou padres cujo significado seria,
em termos cognitivos, essencial para a atribuio de sentido sintctico (tonal,
rtmico, tmbrico) msica que esto a ouvir, recordar ou criar.
Este facto encontra-se claramente evidenciado alis nas suas consideraes
acerca de outros problemas de desempenho, nomeadamente a leitura e a escrita
notacional. Como refere o autor
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thought by providing a symbolism for what we hear or image>> (p. 223). Ou seja:
a ideia segundo a qual a msica (que apreendemos e representamos
cognitivamente) que d sentido ou significado s notas ou figuras simbolizadas
graficamente na partitura e no o contrrio algo a inferir do pensamento de
Mursell e que traduz, mais uma vez, o seu vanguardismo filosfico relativamente
s questes de significao musical levantadas por alguns psiclogos e
educadores contemporneos (Azzara, 1993; Aiello, 1994; Gordon, 2000b).
Efectivamente a ideia de que o desenvolvimento dos processos de leitura e
escrita musical est dependente da maneira como os sujeitos compreendem
perceptivamente () os smbolos
notacionais () outro
dos dados a retirar da mais recente investigao em psicologia da msica e que
evidencia, como ser analisado a seguir, aquele que constitui ainda hoje o
principal problema do ensino musical: a sequncia dos processos de
aprendizagem (cf. Sloboda, 1993; Aiello, 1994; Gordon, 2000b; McPherson &
Gabrielsson, 2002).
Em face do exposto, compreende-se que para Mursell quer a memria, quer a
tcnica performativa devam ser perspectivadas no como um fim artstico em si,
mas antes como dimenses de desempenho musical que, no plano cognitivo,
esto ao servio das necessidades de significao do discurso sonoro. A sua
definio de tcnica performativa neste contexto sugestiva: (p. 250). A ideia de que (p. 223) estende-se a outras dimenses da
aprendizagem, nomeadamente notao, anlise e teoria musical. Em suma: a
ideia sabiamente expressa por Willems segundo a qual, atrs citada parece ser uma maneira diferente de
exprimir um pensamento gmeo entre os dois autores.
No domnio das prticas educativas relativas anlise e teoria da msica, Mursell
menciona a perspectiva de Helmholtz para explicar alguns princpios educativos
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relativos quela questo. Note-se que para Helmholtz, a teoria musical (enquanto
compndio de regras destinadas a sistematizar a composio ou os fenmenos
musicais e sonoros) um instrumento de reflexo eminentemente musical. Isto :
deve ser elaborada de forma a demonstrar que os elementos que se props
analisar tm origem nas caractersticas perceptivas do rgo auditivo. Mursell
serve-se desta ideia para explicar, com base em elementos psico-fsicos, uma
srie de aspectos da percepo auditiva.
Ao tentar situar e caracterizar filosoficamente o pensamento de Mursell na histria
da pedagogia musical do sculo XX, no demais frisar aquele que constitui o
seu mais valioso e pioneiro contributo epistemolgico. Sem dvida que o que faz
legar ao autor o protagonismo educativo relativamente a todos os outros
pedagogos a reflexo sobre a questo da sequncia da aprendizagem. Como
se analisar mais adiante, o conceito de cyclical sequence ao qual se associam
as noes de ou (Mursell, 1958, p. 156) determinante para a compreenso
daquilo que, para o autor, constitui a chave para a reflexo sobre as questes de
assimilao musical ao longo do desenvolvimento dos mais diversos mbitos de
realizao artstica (cf. alnea 1.2.1.).
Apreenso no sentido de uma total envolvncia dos sujeitos no processo de
significao do discurso musical , em sntese, a palavra que para o autor
melhor traduz a qualidade de conhecimento implicada na audio musical dos
instrumentistas, cantores, compositores. Em termos educativos, aprender a
apreender msica constitui o objectivo fundamental de qualquer curricula de
msica, sem a concretizao do qual no pode ser plenamente desenvolvido
aquele que, para Mursell, parece ser um dos fins ltimos da realizao artstica
um encontro emocional e esttico. Isto significa, por conseguinte, que para o
desenvolvimento do saber dos msicos, compreenso musical e musicalidade
andam de mos dadas. Isto , partilham do mesmo projecto de chegada: a
realizao do pensamento esttico.
A ideia de que a qualidade dos produtos de desempenho de um msico est
dependente da qualidade dos processos de atribuio de significado musical aos
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sons que apreende e experiencia deu origem ao conceito de audiao de Gordon.
Audiao a traduo proposta na verso portuguesa da obra Music Learning
Theoryde Gordon (2000b) para o termo audiation conceito criado pelo autor em
1980. Significa a capacidade de ouvir e compreender musicalmente quando o
som no est fisicamente presente.
O termo audiao que apesar do seu carcter jovem j uma referncia numa
srie de estudos cientficos e manuais didcticos resulta da incontornvel
subjectividade terminolgica que a simples palavra audio encerra.
certo que expresses como audio interior no sentido de uma escuta
qualitativamente diferenciada da audio quotidiana desenvolvida por qualquerouvinte ou thinking in sound encerram um significado terminolgico que se
aproxima da ideia de compreenso musical definida atravs do conceito de
audiao. A audio interior que, como se viu, foi insistentemente utilizada por
Matthay, Jaques-Dalcroze, Willems, Kodly, Gieseking e Leimer, Orff, entre
outros, faz parte do vocabulrio pedaggico usado ainda hoje por muitos
professores de msica. Contudo, ainda que as intenes terminolgicas dos seus
autores tivessem sido semelhantes s que Gordon prope para o conceitoaudiao, a interpretao a que a expresso audio interiortem sido submetida
ao longo das prticas educativas susceptvel de criar alguma ambiguidade
relativamente qualidade dos processos de assimilao em causa. Gordon
explica-o da seguinte maneira: pode haver audio interior por processos de
imitao, memorizao mecnica, sem que haja compreenso musical no
sentido de um conhecimento perceptivo dos sons. Por exemplo:
(Rodrigues, 2003, p. 72). Assim como se pode cantar interiormente a melodia que
se memorizou e se est a executar sem se compreender, por exemplo, qual a
relao de cada altura sonora com a sua funo e contexto harmnico. Este e
outros casos semelhantes so alis recorrentes em situaes de ensino. A
maioria das vezes pelo facto de os educadores estarem convencidos de que a
audio interior resolve a mais profunda e intrnseca compreenso da msica.
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Thinking in sound parece ser uma das expresses que melhor se aproxima do
conceito de audiao. Para Mainwaring significa a capacidade mental de se
produzir som imaginado quando se est a tocar de ouvido, a improvisar ou a ler
uma partitura (cf. McPherson & Gabrielsson, 2002, p. 103). Tal como o termo
audiao, refere-se a um processo que envolve uma capacidade de ouvir para
dentro, um evocar a msica entretanto interiorizada e sem o qual no possvel
compreender o que se percepciona, executa ou realiza aos mais variados nveis
de exigncia e desenvolvimento reflexivos. (O autor chega a referir que um
processo que se desenvolve prvia e independentemente a qualquer aco
performativa baseada ou no na leitura.) Contudo, a definio com base na
imagstica auditiva pode, tal como a audio interior, criar alguma ambiguidadeterminolgica, sobretudo quando aplicada ao processo de descodificao
notacional no contexto da leitura musical. Em alguns casos, parafraseando
Gordon (2000b), pode implicar a ideia de que se est a (p. 22).
A ideia de seleco e organizao implicada no termo apreenso anda tambm
bastante prxima do conceito de audiao. No entanto, no suficientemente
concreta e abrangente para explicar o processo de antecipao e predio sonora
exigido, por exemplo, pela criao de msica.
Cr-se que o fenmeno de transferncia e generalizao permite compreender a
qualidade e tipo de processo de conhecimento que subjacente manifestao
de audiao aquando da realizao de determinado desempenho musical. A
capacidade de tocar de ouvido como por exemplo harmonizar um Baixo de
uma melodia , de ler primeira vista, de escrever um ditado, de tocar ao estilo
de Mozart ou de improvisar sobre um standard conhecido, so exemplos de
competncias para cuja realizao no suficiente, como se analisou, ter-se
decorado msica, nem to-pouco repetido insistentemente exerccios de tcnica
ou de notao. A qualidade dos processos envolvidos numa e noutra situao,
exigindo ao aluno a inferncia de vocabulrio musical previamente interiorizado,
pode ser comparada alis ao contexto de aprendizagem de uma lngua.
diferente o produto de aprendizagem resultante da reproduo de uma frase ou
de uma cpia de um texto, do que evidenciado por um dilogo espontneo ou
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por uma composio escrita. No primeiro caso, o aluno demonstra que capaz de
imitar correctamente o discurso oral e escrito, enquanto que no segundo fica
evidenciado que compreendeu e inferiu as regras gramaticais e sintcticas da
lngua, porque as transferiu e generalizou para novas situaes discursivas.
Outro dos aspectos que ajuda a compreender o conceito de audiao o papel
da memria. Para o autor, a memria uma competncia determinante para a
realizao musical quando desenvolvida ao servio da audiao. Distingue-a,
por estas razes, daquilo que denomina como memorizao mecnica que,
relativamente anterior, implementada como uma simples finalidade educativa
ou virtuosstica, sobrepondo-se aos princpios da compreenso e,
consequentemente, da expresso criativa da msica.
O conceito de memria enquanto ferramenta auxiliar do prprio pensamento e
conhecimento musical expresso, alis, por vrios psiclogos contemporneos.
Aiello & Williamon (2002), interessados em compreender os mecanismos
psicolgicos da memria, defendem que , acrescentando que
(p. 167).Sloboda (1993), chamando a ateno para a qualidade dos processos envolvidos
no desenvolvimento da audio, da performance e da composio, acrescenta:
(p. 3).
Pressing (2000), indo ao encontro dos autores anteriores, faz questo em
sublinhar a diferena entre declarative memoryeprocessual memory. Enquanto a
primeira o resultado do reforo depositado no produto de desempenho, a
segunda resulta de uma focalizao sobre o processo de conhecimento,
mormente enquanto ferramenta de auxlio para a resoluo de problemas
musicais e performativos.
Ou seja, o destaque dado ao como se memoriza e no ao que se memoriza a
questo levantada (cf. Cap. II). Do ponto de vista da teoria de Gordon, so estes
dois processos de memorizar msica que permitem estabelecer a diferena entre
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o que produto resultante da audiao e o que fruto de memorizao
puramente mecnica.
justo mencionar que esta forma de perspectivar a memria musical j
verificada em vrios textos pedaggicos da primeira metade do sculo XX.
Willems (1970, p. 119) por exemplo, dando continuidade s ideias defendidas por
Jaques-Dalcroze, faz questo em destrinar as memrias instrumentais (tctil e
muscular) das memrias musicais propriamente ditas (auditiva, rtmica,
mental e intuitiva). Estas ideias parecem ser fulcrais, alis, para o pensamento
pedaggico desenvolvido posteriormente por Suzuki.
A expresso do clebre pianista e maestro americano L. Fleisher uma sntesesugestiva daquilo que, na linha dos autores citados, constitui para Gordon o papel
da memria no processo de audiao: (in Aiello & Williamon, 2002, p. 175).
Refira-se ainda que na histria do pensamento musical e musicolgico, so
velhos os debates acerca do valor artstico de posturas sustentadas e centradas
na performance, no virtuosismo da execuo ou na memria e tcnicareprodutiva. O pianista e musiclogo Schenker (2000), convicto de que a simples
reproduo mecnica da msica no suficiente para garantir e perpetuar o valor
da msica enquanto processo eminentemente criativo, afirmava no incio do
sculo XIX que apenas a compreenso intrnseca dos elementos que constituem
o contedo musical da obra escrita tal como exigida e realizada pelos
compositores ao longo do processo de criao justifica a existncia ou definio
do conceito de performance enquanto dimenso essencialmente artstica. Enfim,
para o autor, o carcter suprfluo em que pode ficar reduzida a simples tarefa de
reproduo de um texto explicava, por si, a inconsistncia ou fragilidade da
performance enquanto conceito sustentado pelos valores que fundamentam o
processo capital e intrnseco da realizao artstica: a criao. Expressava-o nos
seguintes termos:
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a score is sufficient to prove the existence of the composition. The mechanical
realization of the work of art can thus be considerer superfluous>> (2000, p. 3).
A questo da envolvncia do instrumentista com o prprio processo de
construo e descoberta das ideias legadas no papel pelo criador parece ser o
ponto fundamental da discusso na abordagem de Schenker. Sobretudo pelo que
esse princpio significava em termos de definio das funes artsticas do
intrprete face obra escrita: um recriador do que ficou silenciado no papel. Ou
se se quiser, um pensador capaz de fazer reflectir para a audincia o que est
para alm do registo da notao: o esprito crtico e de descoberta que moveu o
obreiro das ideias sonoras das perguntas e respostas ou das meras
suposies, nem sempre tornadas evidentes atravs de uma simples leitura.
um facto que o pensamento do autor tem razes em algumas ideias defendidas
por nomes clebres da Histria da Msica. Beethoven por exemplo, sublinhando o
papel da criao enquanto reflexo da prpria comunho ntima dos
instrumentistas com o processo sonoro e musical, dizia numa das cartas que
escreveu a Tomaschek, em 1814: (in Schenker, 2000, p. 85).
Em face do que se exps, resta por fim equacionar quais os contributos do debatepsicolgico e filosfico em torno da audio e audiao para o problema
levantado na presente dissertao.
O principal que parece no oferecer dvidas quanto ao valor educativo, quer da
criatividade quer da compreenso da msica nos curricula. Obviamente que a
pertinncia do assunto para a reflexo sobre as dificuldades de realizao
musical, nomeadamente a improvisao, relaciona-se desde logo com a procura
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de respostas para aquilo que, em termos de aprendizagem, parece ser a chave
do problema: a qualidade dos processos de assimilao musical dos sujeitos.
justo afirmar que, sob o ponto de vista da histria da pedagogia da msica, o
interesse e a preocupao por este tipo de questes constitui, por si, o marco de
referncia para o desenvolvimento da reflexo educativa contempornea, e que a
criao por Edwin Gordon do conceito de audiao sintetiza a dimenso
epistemolgica do conjunto de contributos encetados, ao longo do sculo XX,
para esse empreendimento. A sntese capital encontra-se na sua teoria de
aprendizagem musical. Ou seja: no significado psicolgico que acaba por revestir,
enquanto ferramenta terica, para a construo de um paradigma de reflexo
pedaggica, sem o qual dificilmente se consegue negligenciar ou dar resposta a
problemas fundamentais da aprendizagem musical, como o que se debate na
presente dissertao: a compreenso harmnica.
Efectivamente, a definio do conceito de audiao lega pedagogia da audio,
desenvolvida desde o sculo XIX, a fundamentao psicolgica necessria para
se responder pergunta como se aprende a ouvir e compreender msica?. A
substituio do termo mtodo de ensino por teoria de aprendizagem pe sem
dvida em evidncia o carcter renovador da abordagem de Gordon no contexto
de qualquer um dos outros contributos pedaggicos prestados reflexo
educativa da msica ao longo do sculo XX, desde Jaques-Dalcroze a todos os
educadores e investigadores da actualidade.
Parece ficar claro, portanto, que a improvisao, sendo ela prpria a manifestao
de conhecimento interiorizado pelo sujeito afinal de contas o produto ou espelho
da aco conseguida pelos obreiros do ensino , dificilmente ser compreendida
e implementada no terreno escolar e curricular se estes no se questionarem,
primeiro, sobre como se aprende a audiar msica?.
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1.1.2. Audiao: estdios e tipos
Sloboda (1993, p. 69)
Regresse-se definio que Gordon (2000b) prope para o processo de
audiao: (p. 6).
Pela leitura do excerto, possvel constatar que o processo de audiar implica um
desenvolvimento ou evoluo qualitativos, quanto mais no seja porque, desde
que o sujeito assimila at que compreende msica, h um percurso que no
concretizado ou absorvido de forma imediata. Em termos cognitivos este percurso
, digamos, a distncia entre a percepo dos estmulos sonoros e a sua
representao organizada em padres ou estruturas musicais. Em sntese: a
distncia entre a audio imediata de um som que ocorre aqui e agora e a
atribuio de significado musical a esse mesmo som acontecimento que pode
no estar a ocorrer no mesmo momento. Para o autor, esta distncia de
acontecimentos aquilo que marca a diferena entre um singular ouvinte e um
msico que audia ou se se quiser, entre um msico que apenas percepciona e
memoriza mecanicamente um conjunto de sons e um msico que compreende o
significado musical dos sons que percepciona ou evoca atravs da memria.
A compreenso de msica no , contudo, um fenmeno linear. Isto : no se
manifesta no msico apenas de uma maneira. Quando um msico executa uma
dada obra por memria ou por leitura, improvisa ou compe, escreve por memria
ou por ditado musical, ou simplesmente ouve, a forma como se processa a
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compreenso pode manifestar diferentes nveis de atribuio de significado
musical. A atribuio de significado musical a uma obra relaciona-se com a
qualidade ou grau de complexidade com que se manifesta a compreenso do
sujeito. Isto : traduz o seu estdio de audiao. Os estdios de audiao
representam portanto nveis diferentes de desenvolvimento ou conscincia
musical. Por este facto so sequenciais ou hierrquicos (v. Quadro 1.1.). Gordon
distingue-os dos tipos de audiao. Segundo o autor, os tipos de audiao
apenas representam diferentes modos de desempenho, atravs dos quais os
sujeitos realizam a compreenso de msica, seja qual for o estdio de audiao
em que se encontram (v. Quadro 1.2.). A relao entre os estdios de audiao e
os tipos de audiao explicada por Gordon da seguinte maneira: (p. 28).
Quadro 1.1.: Estdios de Audiao (Gordon, 2000b, p. 34)
Estdio 1 Reteno momentnea
Estdio 2 Imitao e audiao de padres tonais e rtmicos, e reconhecimento e identificaode um centro tonal e dos macrotempos
Estdio 3 Estabelecimento da tonalidade e da mtrica, objectiva e subjectiva
Estdio 4 Reteno, pela audiao, dos padres tonais e rtmicos organizados
Estdio 5 Relembrana dos padres tonais e rtmicos organizados e audiados noutras peas
musicais
Estdio 6 Antecipao e predio de padres tonais e rtmicos
Como se verifica, existem tipos de audiao e estdios de audiao cujas
caractersticas, apesar de diferentes, facilmente se confundem ou identificam. Por
exemplo, a improvisao e a composio so tipos de manifestao de audiao
que, dada a sua natureza, traduzem um determinado estdio de desenvolvimento
de compreenso musical. Igualmente, escrever implica ler, assim como compor
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implica escrever ou, pelo menos, recordar o que se comps. Gordon explica
esta aparente incongruncia da seguinte maneira: enquanto os estdios de
audiao predizem e manifestam o nvel ou fase de compreenso musical em que
se encontra o aluno (independentemente do grau de desempenho, tcnico ou
performativo, subjacente a essa manifestao), os tipos de audiao nem sempre
predizem ou traduzem o estdio de compreenso. Escutar, executar, ler ou
escrever msica, por exemplo, constituem tipos de audiao que, quer no plano
de contedos quer de competncias, podem manifestar diferentes estdios de
compreenso musical. Por si mesmos nada traduzem ou predizem, portanto,
quanto ao estdio de audiao em que se encontra o aluno.
Quadro 1.2.: Tipos de Audiao (Gordon, 2000b, p. 29)
Tipo 1 Escutar msica familiar ou no-familiar
Tipo 2 Ler msica familiar ou no-familiar
Tipo 3 Escrever msica familiar ou no-familiar ditada
Tipo 4 Recordar e executar msica familiar memorizada
Tipo 5 Recordar e escrever msica familiar memorizada
Tipo 6 Criar e improvisar msica no-familiar, durante a execuo, ou em silncio
Tipo 7 Criar e improvisar leitura de msica no-familiar
Tipo 8 Criar e improvisar escrita de msica no-familiar
Veja-se atravs do seguinte exemplo: o aluno A, que est a tirar de ouvido a
msica que executa no piano, demonstra que apenas capaz de reconhecer e
identificaras funes tonaisda msica (Estdio 5), apesar de a executar com um
nvel tcnico de excelncia. O aluno B, por sua vez, executa a mesma pea com
um grau tcnico inferior, mas demonstra que capaz de antecipar e predizer
aquela mesma estrutura de progresso harmnica, manifestando-o atravs de
uma improvisao sobre o tema (Estdio 6).
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Outro exemplo, neste caso relativo leitura notacional, pode ser extrado das
prprias consideraes de Sloboda, acima citadas. Efectivamente a competncia
para ler msica (assim como para escrever) pode demonstrar diferentes estdios
de compreenso notacional. Ser capaz de ler uma msica familiar diferente de
ser capaz de ler uma pea no-familiar ( primeira vista). Assim como ler atravs
do canto ou ler com auxlio de um instrumento, so desempenhos que podem
traduzir qualidades diferentes de pensamento ou compreenso sonora.
Quando um aluno l correctamente msica no-familiar atravs do canto
demonstra que no apenas consegue d