Texto 1 Surdez e Linguagem

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  • Coleo UABUFSCar

    Lngua brasileira de sinais Libras

    Alexandre Morand GesAna Cludia Balieiro LodiCristiane Satiko KotakiCristina Broglia Feitosa de LacerdaJuliana Fonseca Caetano

    Pedagogia

    Kathryn Marie Pacheco HarrisonLara Ferreira dos SantosMaria Ceclia de MouraMariana de Lima Isaac Leandro Campos

    uma introduo

  • Lngua brasileira de sinais Libras

    uma introduo

  • ReitorTargino de Arajo FilhoVice-ReitorPedro Manoel Galetti JuniorPr-Reitora de GraduaoEmlia Freitas de Lima

    UAB-UFSCarUniversidade Federal de So CarlosRodovia Washington Lus, km 235 13565-905 - So Carlos, SP, BrasilTelefax (16) [email protected]

    Secretria de Educao a Distncia - SEaDAline Maria de Medeiros Rodrigues RealiCoordenao UAB-UFSCarClaudia Raimundo ReyesDaniel MillDenise Abreu-e-LimaJoice OtsukaSandra AbibValria Sperduti Lima

  • Alexandre Morand Ges

    Ana Cludia Balieiro Lodi

    Cristiane Satiko Kotaki

    Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

    Juliana Fonseca Caetano

    2011

    Kathryn Marie Pacheco Harrison

    Lara Ferreira dos Santos

    Maria Ceclia de Moura

    Mariana de Lima Isaac Leandro Campos

    Lngua brasileira de sinais Libras

    uma introduo

  • 2011, dos autores

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnicos ou mecnicos, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qual-quer sistema de banco de dados sem permisso escrita do titular do direito autoral.

    Concepo PedaggicaDaniel Mill

    SupervisoDouglas Henrique Perez Pino

    Equipe de Reviso LingusticaAna Luiza Menezes BaldinClarissa Neves ContiDaniela Silva Guanais CostaFrancimeire Leme CoelhoJorge Ialanji FilholiniLetcia Moreira ClaresLuciana Rugoni SousaPaula Sayuri YanagiwaraSara Naime Vidal Vital

    Equipe de Editorao EletrnicaChristhiano Henrique Menezes de vila PeresIzis CavalcantiRodrigo Rosalis da Silva

    Equipe de IlustraoJorge Lus Alves de OliveiraLgia Borba Cerqueira de OliveiraPriscila Martins de Alexandre

    Capa e Projeto GrficoLus Gustavo Sousa Sguissardi

  • APRESEntAo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7

    Captulo 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 Surdez e LinguagemMaria Ceclia de Moura

    Captulo 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 Educao Inclusiva para surdos e as polticas vigentesMariana de Lima Isaac Leandro Campos

    Captulo 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53 Lngua brasileira de sinais (Libras): apresentando a lngua e suas caractersticas Kathryn Marie Pacheco Harisson

    Captulo 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .65 Aspectos da gramtica da lngua brasileira de sinais Alexandre Morand Goes

    Mariana de Lima Isaac Leandro Campos

    Captulo 5 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83 Ensino da lngua portuguesa como segunda lngua para surdos: impacto na Educao Bsica Ana Cludia Balieiro Lodi

    Captulo 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103 Estratgias metodolgicas para o ensino de alunos surdos Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

    Lara Ferreira dos Santos

    Juliana Fonseca Caetano

    SUMRIo. . . . . . . . . . .

  • Captulo 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .119 O intrprete de lngua brasileira de sinais no contexto da escola inclusiva: focalizando sua atuao na segunda etapa do ensino fundamental Cristiane Satiko Kotaki

    Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

    Captulo 8 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139O ensino da lngua brasileira de sinais (Libras) para futuros professores da Educao BsicaLara Ferreira dos Santos

    Mariana de Lima Isaac Leandro Campos

    Captulo 9 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .153 Libras no currculo de cursos de licenciatura: estudando o caso das Cincias Biolgicas Juliana Fonseca Caetano

    Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

  • 7APRESEntAo

    A organizao deste material vem da necessidade de compartilhar nosso

    conhecimento acerca das questes que envolvem a surdez, a lngua brasileira

    de sinais Libras , e a educao de alunos surdos.

    Como professores da disciplina Introduo Lngua Brasileira de Sinais

    na modalidade presencial, oferecida a diversos cursos da Universidade Federal

    de So Carlos UFSCar , desde 2009, deparamo-nos com a escassez de ma-

    teriais voltados ao ensino e aprendizagem da Libras, tanto os impressos quanto

    os de contedo prtico, o que acarreta dificuldades para o estudante leigo nessa

    temtica, que busca informaes a respeito da surdez e dessa lngua. O aluno,

    muitas vezes, tem seu aprendizado atrelado apenas s informaes disponibili-

    zadas em sala de aula e aos vdeos, dicionrios, textos e artigos oferecidos pela

    internet fonte nem sempre segura de informaes.

    Alm disso, os textos disponveis, indicados aos estudantes na modalidade

    presencial, nem sempre abordam com objetividade ou com a devida profundi-

    dade aquilo que desejamos que eles conheam, quer por terem sido escritos

    desconsiderando as necessidades formativas de futuros professores, quer por

    estarem ancorados em diferentes abordagens tericas e nem sempre se articu-

    larem para favorecer a compreenso dos alunos sobre os temas tratados.

    Diante dessa realidade, preparamos este material com muito cuidado, reu-

    nindo textos de diversos autores, surdos e ouvintes, que atuam na rea da sur-

    dez, visando possibilitar uma viso ampla dos diversos aspectos relacionados

    Libras e educao de surdos. Nosso objetivo oferecer, alm de um conhe-

    cimento inicial a respeito dos aspectos que abrangem a educao de surdos, o

    aprofundamento terico de questes importantes que vm sendo discutidas na

    rea da surdez, bem como dar subsdios para a atuao do futuro professor da

    educao bsica junto a alunos surdos.

    Alguns captulos acompanharo os contedos ministrados no ambiente vir-

    tual de ensino e aprendizagem, de forma que o aluno possa relacionar questes

    tericas e prticas; outras podero servir de complemento para uma formao

    acadmica de qualidade, visando incluso escolar de surdos. Buscamos, assim,

    compartilhar nossas experincias por meio deste material, pensado para o estu-

    dante e para todos aqueles que iniciam seus conhecimentos e experincias em

    outra lngua e em outra realidade.

    Discutir o conceito e a concepo de linguagem faz-se necessrio e funda-

    mental para compreender a Libras e a surdez. Assim, no captulo 1, a autora Maria

    Ceclia de Moura apresenta a lngua de sinais como constituinte do indivduo

  • 8surdo e como aquela que possibilita o acesso desse sujeito ao conhecimento

    de mundo, buscando uma reflexo acerca da lngua de diversos pontos de vista,

    tais como familiar, lingustico, social e neurolgico.

    Para uma melhor compreenso da Educao Inclusiva para surdos e das

    polticas vigentes, Mariana de Lima Isaac Leandro Campos discute, no captulo 2,

    as propostas de educao inclusiva, criadas pelo Ministrio da Educao e pela

    Secretaria de Educao Especial, ressaltando a existncia de formas mltiplas

    de realizao da educao de surdos nos espaos escolares, bem como uma

    legislao ampla, e por vezes controversa, vigente em nosso pas. A autora visa

    tambm uma reflexo sobre o compromisso da incluso escolar e a quebra de

    barreiras e preconceitos em nossa sociedade.

    Kathryn Marie Pacheco Harrison trata, no captulo 3, da apresentao da ln-

    gua brasileira de sinais aos estudantes iniciantes nessa lngua, discutindo ques-

    tes do senso comum que levam, frequentemente, a ideias errneas a respeito

    da lngua. De forma simples e acessvel, a autora passa a explicar, ento, a Libras

    como lngua e suas caractersticas, finalizando com uma breve reflexo sobre o

    processo de desenvolvimento da lngua em seus diferentes usos sociais.

    No captulo 4 os autores Alexandre Morand Goes e Mariana de Lima Isa-

    ac Leandro Campos fazem uma breve introduo aos aspectos gramaticais da

    Libras. Os autores apresentam um pouco da histria da lngua de sinais e de

    seu reconhecimento pela sociedade para, posteriormente, apresentar algumas

    de suas caractersticas e parmetros especficos, estabelecendo relaes com

    a gramtica das lnguas orais.

    Um dos grandes desafios a ser enfrentado na educao dos surdos via-

    bilizar o dilogo entre a Poltica Nacional de Educao, que prev a educao

    inclusiva, e os documentos oficiais que garantem, como direito das pessoas

    surdas, a educao bilngue. Assim, convive-se hoje com diferentes modelos

    inclusivos que buscam estabelecer esse dilogo; no entanto, em qualquer um

    deles est presente um problema comum: o ensino da lngua portuguesa como

    segunda lngua para pessoas surdas. Nesse sentido, o objetivo do captulo 5,

    escrito por Ana Cludia Balieiro Lodi, o de apontar os processos necessrios

    para esse ensino-aprendizagem e os impactos da aprendizagem da linguagem

    escrita para a educao bsica, em todos os nveis de ensino.

    As estratgias metodolgicas para o ensino de alunos surdos, considerando

    suas singularidades de apreenso e construo de sentidos quando comparados

    aos alunos ouvintes, so o foco do captulo 6, escrito por Cristina Broglia Feitosa

    de Lacerda, Lara Ferreira dos Santos e Juliana Fonseca Caetano. Nesse texto

    explora-se ainda o conceito de pedagogia visual, formas de trabalho com a Libras

    e o trabalho conjunto entre o professor regente e o intrprete de Libras.

    lucianoDestacar

  • 9O captulo 7, escrito por Cristiane Satiko Kotaki e Cristina Broglia Feitosa

    de Lacerda, focaliza resultados de uma pesquisa que teve como objetivo anali-

    sar a formao em servio de intrpretes que atuam em salas de aula da segunda

    etapa do Ensino Fundamental, interpretando as aulas e os contedos ministrados

    pelos diversos professores para estudantes surdos, e tambm interpretando para

    os ouvintes (alunos e professores) as ideias dos alunos surdos. Problematiza-se

    a novidade dessa experincia no trabalho escolar e a necessidade de parceria

    entre o trabalho do professor e aquele desempenhado pelo intrprete.

    Lara Ferreira dos Santos e Mariana de Lima Isaac Leandro Campos dis-

    correm, no captulo 8, sobre o ensino de Libras para futuros professores da

    Educao Bsica, expondo suas experincias no ensino da Libras na modali-

    dade presencial, bem como as estratgias de ensino utilizadas, as formas de

    avaliao, os contedos ministrados e outras informaes relevantes para uma

    aprendizagem de qualidade.

    Por ltimo, no captulo 9 as autoras Juliana Fonseca Caetano e Cristina

    Broglia Feitosa de Lacerda relatam a experincia de estudantes dos cursos de

    licenciatura no aprendizado da Libras, evidenciando questes como a relao

    entre professor e aluno, a escassez de materiais especficos de Libras para

    os diferentes cursos de licenciatura e, consequentemente, para o ensino das

    diferentes disciplinas em Libras a alunos surdos. A presena do intrprete de

    Libras em sala de aula tambm destacada, bem como a no existncia de di-

    cionrios com vocabulrio especfico para as diferentes reas de conhecimento,

    dentre outros aspectos.

    Esperamos que este conjunto de textos instigue o leitor a querer conhecer

    mais e melhor essa temtica e que sirva de base para sua formao no atendi-

    mento a alunos com surdez.

    Cristina Broglia Feitosa de Lacerda

    Lara Ferreira dos Santos

    Organizadoras

  • CAPtULo 1

    Surdez e Linguagem

    Maria Ceclia de Moura

  • 13

    1.1 Introduo

    O trabalho com os indivduos surdos tem se mostrado um desafio h mui-

    tos sculos. Pode-se imaginar que isso acontece porque o indivduo surdo no

    ouve, mas o que se torna realmente um problema para as pessoas que no

    conhecem a surdez e o indivduo surdo o fato de ele no falar. Isso nos remete

    a questes como linguagem, linguagem oral, lngua de sinais e a importncia

    destas para que o desenvolvimento social, cognitivo e psquico do surdo possa

    ser realizado de forma completa e da mesma forma como acontece para os

    indivduos ouvintes.

    Sabemos que pela linguagem que o ser humano colocado no mundo

    e aprende a se comunicar, a pensar e a se organizar interiormente. O que ne-

    cessrio para que isso possa acontecer? Muitas so as formas de se perceber e

    de se compreender o que necessrio para que o desenvolvimento de linguagem

    da criana surda acontea de maneira ntegra. Para muitos, so necessrios a

    estimulao auditiva por meio de aparelhos de amplificao sonora e um traba-

    lho que possibilite o desenvolvimento da linguagem oral e da fala (NORTHERN

    & DOWNS, 2005). Para outros, a fala no importante para o surdo, e a criana

    surda deveria ser exposta lngua de sinais o mais precocemente possvel,

    sendo a lngua majoritria, aquela usada pela maioria da populao, introduzi-

    da por meio da escrita (SKLIAR, 1998). Ainda existem aqueles que consideram

    que o melhor seria que as crianas surdas pudessem ter como primeira lngua a

    lngua de sinais, em segundo lugar a lngua oral e posteriormente a lngua escrita

    (MOURA, 2000, 2008).

    Neste texto, iremos pensar na lngua de sinais como constituinte do indi-

    vduo surdo, devendo ser a lngua primeira a que ele deveria ter acesso para

    poder se constituir no mundo. Consideramos que a lngua de sinais (lngua bra-

    sileira de sinais Libras no Brasil) a forma por excelncia pela qual a criana

    surda pode adquirir linguagem de forma natural e que lhe permite um desenvol-

    vimento integral e sem limites.

    Mas, antes de continuarmos a explicar as questes ligadas s lnguas de

    sinais e da Libras, particularmente no Brasil, consideramos importante escla-

    recer por que a linguagem oral e a fala so to difceis para a criana surda.

    Afinal, como uma criana aprende a falar? Ser que algum as ensina a falar?

    Se olharmos nossa volta para os bebs que encontramos, no veremos ne-

    nhuma me ensinando seu filho a falar, muito pelo contrrio, podemos ver mes

    e familiares espantados com a quantidade de palavras que seus filhos, netos,

    sobrinhos aprenderam em to pouco tempo. comum ouvirmos observaes

    como: Onde foi que ele aprendeu essa palavra?, Mas quem ensinou isso

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    lucianoNotae as pessoas no o entenderem!

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  • 14

    para ele?. A resposta simples: ningum ensinou. A criana ainda beb est

    ligada ao mundo da linguagem pelo canal auditivo. Ela escuta e d sentido ao

    que escuta. Esse no um processo simples, mas altamente complexo, que

    no iremos detalhar aqui. O que importante ser percebido que a criana no

    aprende a lngua, mas a adquire de forma natural apenas sendo exposta a ela.

    Esse o papel da me (ou do cuidador) nos primeiros meses de vida da crian-

    a possibilitar que ela possa ser considerada algum que vir a falar e assim

    consider-la; a me falar com o beb como se ele a entendesse, e ele passar

    verdadeiramente a entend-la num processo de ir e vir. A me reage criana,

    que responde me, e assim a linguagem se instala de forma natural, sem

    que ningum pense nela como algo que exija esforo, nem por parte dos que

    cuidam da criana, nem por parte da prpria criana. algo natural que enca-

    ramos como: assim que as coisas so.

    Mas o que necessrio para que isso acontea? Muitas coisas, mas ire-

    mos tratar aqui de forma mais aprofundada de uma delas: a audio. No pode-

    mos esquecer de que para que a linguagem possa ser adquirida necessria

    uma relao boa entre a me (ou o cuidador) e a criana. A me deve perceber

    seu filho como algum que vir a falar e, porque assim o considera, investir

    nele como um falante, conversar com ele e, por causa desse investimento, ele

    realmente vir a falar. O crebro tem um papel importante tambm. Para que isso

    acontea, a criana precisa ter ntegras as suas estruturas corticais, que recebero

    um nmero infinito de estmulos e os processaro para que tudo tome corpo naqui-

    lo que chamamos linguagem. Isso no quer dizer que uma criana que tenha al-

    teraes neurolgicas no possa adquirir linguagem, mas o processo pode ser

    mais demorado, sofrer alteraes as quais demandaro outras providncias. O

    que importante para ns aqui compreender o que acontece quando a crian-

    a no ouve. Aquilo que se passa de forma natural com a criana ouvinte no se

    d da mesma forma com a criana surda. Ela percebe o mundo e entende o que

    est acontecendo nele de forma muito concreta. Ela no consegue entender o

    que transmitido pela linguagem, mesmo que oua um pouco. Os surdos po-

    dem ouvir um pouco, muito ou quase nada, mas, de qualquer maneira, para eles

    o mundo dos sons e o mundo da linguagem so diferentes daquele percebido

    pela criana ouvinte. Ela pode perceber um ou outro som, mas no poder fazer

    as associaes que a criana ouvinte faz de forma to natural. A me, perce-

    bendo que ela no est se desenvolvendo da mesma maneira, pode desconfiar

    de que ela tenha problemas auditivos e comear a test-la, e aquela relao

    que normalmente to natural entre me e filho ser modificada. Um atraso de

    linguagem se coloca, e essa criana passar a no compreender o mundo da

    mesma maneira que a criana ouvinte o faz.

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    lucianoNotaessa criana no tem pai, ou nesse momento ele no nem um pouco importante?

    lucianoDestacar

    lucianoNotae o teste da orelhinha?

  • 15

    A famlia poder procurar ajuda mdica e fonoaudiolgica, mas mesmo com

    as estratgias modernas da medicina reabilitadora (aparelhos auditivos, implante

    coclear)1 a linguagem no se desenvolver de forma natural. Sero necessrias

    medidas reabilitadoras, as quais enfraquecem as relaes familiares e que, mesmo

    quando tm bons resultados, demoram em surtir o efeito esperado: um desen-

    volvimento de linguagem completo, realizado por meio de relaes naturais.

    Nesse ponto, temos que pensar no papel da lngua de sinais no desenvol-

    vimento de linguagem da criana surda. A Libras desempenha todas as funes

    de uma lngua e, como tal, ela poderia ser usada para cumprir o papel que a

    linguagem oral tem na criana ouvinte. O surdo, mesmo que ele e sua famlia

    no saibam de sua surdez, ir usar um canal para ter acesso s informaes do

    mundo: o canal visual. Isso no ensinado criana surda. De forma instintiva

    ela passa a observar o mundo e a inferir sentido do que v. A lngua de sinais

    tem essa particularidade: ela totalmente visual, passa sentidos e significados

    por uma forma que absolutamente acessvel ao surdo. E assim configura-

    da por ter sido criada pela comunidade surda que, no desejo humano de se

    tornar ser da linguagem, arquitetou a sua forma especial de comunicao que

    independe da audio. Alguns trabalhos cientficos apontam que a primeira co-

    municao humana se deu por meio da lngua de sinais (STOKOE, 1960), mas

    no nosso objetivo nos aprofundarmos aqui sobre a origem das formas de

    comunicao humanas.

    importante esclarecer, entretanto, que, do ponto de vista lingustico, as

    lnguas de sinais so consideradas lnguas verdadeiras desde o estudo pioneiro

    de Stokoe (1960) sobre a lngua americana de sinais. Esse estudo, que foi se-

    guido de muitos outros em vrios lugares do mundo, inclusive no Brasil, provou

    que as lnguas de sinais so organizadas linguisticamente seguindo regras as

    quais foram descritas.

    Do ponto de vista social, torna-se claro que, se as lnguas de sinais so

    usadas por um grupo de pessoas ou por uma comunidade, seguem regras de

    conversao e de manuteno semntica e sinttica e mantm suas caracters-

    ticas dentro dos grupos que as usam, elas tm validao e valor social intrnse-

    co que permite autonomia ao grupo que as usa.

    Lembrando apenas mais um aspecto, o neurolgico, temos trabalhos (KLIMA

    & BELLUGI, 1995; EMMOREY, BELLUGI & KLIMA, 1993) que demonstram que

    as lnguas de sinais so processadas nas reas do crebro responsveis pelas

    1 Aparelhos auditivos referem-se a aparatos indicados por fonoaudilogos e que tm como funo amplificar o som. Implantes cocleares dizem respeito a implantes colo-cados cirurgicamente na cclea para promover o estmulo de fibras nervosas que o indivduo possa ainda ter intactas.

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  • 16

    lnguas orais e no por aquelas que esto ligadas aos sinais visuais, como se

    poderia esperar de uma lngua visual (MOURA, 2000).

    Sendo a lngua de sinais uma lngua verdadeira, que cumpre os papis de

    qualquer outra lngua, s se poderia esperar que ela fosse reconhecida desse

    modo e usada de forma ampla nas famlias e nas escolas que atuam com crian-

    as surdas.

    Podemos ver esse reconhecimento presente em muitos pases, na forma

    legal. Isso aconteceu tambm no Brasil pela lei no 10.436, de 24 de abril de 2002

    (BRASIL, 2011b). Alm do mais seu uso nos espaos educacionais recomen-

    dado pelo Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2011a), para

    que o surdo possa ter acesso ao conhecimento e para que possa se desenvol-

    ver de acordo com sua capacidade que semelhante a do indivduo ouvinte.

    Mas como isso poderia acontecer?

    J vimos anteriormente como se d a aquisio de linguagem de uma

    criana ouvinte. J percebemos que as pessoas leigas no se preocupam em

    pensar a respeito dessa aquisio, j que esse um fato que acontece de for-

    ma absolutamente normal, sem que ningum tenha que se preocupar em como

    faz-lo. A me ou o cuidador conversam com a criana desde que ela muito

    pequena e propiciam que a lngua comece a fazer parte da sua vida e que seja

    adquirida de forma absolutamente natural. No h um ensino formal da lngua,

    das palavras, do vocabulrio, da sintaxe. A criana ouvinte est cercada pela lin-

    guagem. pela linguagem que ela constri um mundo de significados que iro

    acompanh-la por toda a vida. Mesmo aquilo que no dirigido diretamente a

    ela, chega a seus ouvidos de forma incidental, fazendo com que ela aprenda e

    apreenda tudo a sua volta.

    Mas retornemos: e para a criana surda? muito importante que a Li-

    bras esteja presente em seu universo da mesma forma que a lngua oral est

    no universo das crianas ouvintes para que ela possa ser adquirida de forma

    completa, para que a criana surda possa domin-la e se constituir como ser

    da linguagem. Dessa forma, a Libras, como uma primeira lngua completamente

    adquirida, lhe forneceria a base para poder aprender a sua segunda lngua: a

    lngua portuguesa, seja na modalidade oral ou na modalidade escrita. Esse o

    princpio que rege uma aquisio bilngue para surdos que possa ser realizada

    com xito (QUIGLEY & PAUL, 2001).

    Esse o grande desafio que tem sido enfrentado pelos educadores: como

    propiciar a aquisio de Libras da melhor forma possvel, uma vez que crianas

    surdas so, na maioria das vezes, filhas de pais ouvintes que nunca ouviram

    falar de lngua de sinais, Libras, etc. (MOORES & MARTIN, 2006). Ao acreditarmos

    que a linguagem s pode ser adquirida em um contexto social e verificarmos, como

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    lucianoDestacar

    lucianoNotae a telepatia, ajudaria na comunicao dos surdos? acredito que no

  • 17

    vimos anteriormente, que a criana surda no tem acesso lngua de sinais

    de forma natural no espao em que vive, temos que tentar responder: como

    a criana poder adquirir a lngua e desenvolver sua linguagem de maneira a

    poder se relacionar com o seu ambiente e usar a linguagem para se organizar

    no mundo? Consideramos que esse o desafio a ser enfrentado pelo sistema

    educacional de um pas o qual pretende que as crianas surdas tenham as

    mesmas oportunidades educacionais que seus colegas ouvintes.

    Mas de que maneira fazer com que isso ocorra? Uma proposta bilngue

    para surdos poderia responder a essa questo. E essa proposta pode vir con-

    figurada de diferentes formas. Pode ser uma proposta que propicie criana

    surda conhecer a Libras o mais precocemente possvel, fazendo com que ela

    tenha contato com o maior nmero possvel de falantes nativos e no nativos de

    lngua de sinais logo que a surdez seja diagnosticada. Entretanto, para muitas

    crianas a exposio Libras s vai acontecer posteriormente, seja porque os

    responsveis pelo diagnstico no consideraram a lngua de sinais uma pro-

    posta adequada para aquelas crianas, seja porque os pais no conseguiram

    encontrar um lugar em que seus filhos surdos pudessem ser expostos Libras,

    ou por outros motivos. Alm disso, essa proposta bilngue poderia estar organi-

    zada dentro de uma escola bilngue para surdos, de acordo com o modelo es-

    candinavo e de algumas escolas americanas (SVARTHOLM, 2008; MOORES,

    2006; MOURA, 2000), ou numa proposta de incluso na sala de aula regular,

    como na Austrlia (MOURA, CAMPOS, VERGAMINI & OCONNOR, no prelo).

    O que se sabe que, a no ser que as crianas surdas sejam filhas de pais

    surdos, o papel de propiciar a aquisio da lngua ser da escola.

    Claro que a famlia tem um papel muito importante nesse cenrio, pois o

    fato de as crianas serem surdas no retira o enorme papel que a famlia de-

    sempenha no desenvolvimento global e de linguagem da criana surda. Vimos

    que para a famlia a constatao da surdez pode trazer sentimentos de perda e

    de desconsolo, alm da incapacidade de saber como atuar (KESSLER, 2008).

    Apenas uma orientao bem feita que possa alertar os pais quanto aos efeitos

    devastadores que a ausncia da linguagem pode trazer para o desenvolvimento

    lingustico, cognitivo e emocional de seus filhos poder fazer com que eles pos-

    sam se adaptar ao estrangeiro com quem eles se deparam ao saber da surdez

    de seu filho (RAFAELI, 2004). Esse trabalho com a famlia deve levar em conside-

    rao aspectos psicolgicos de suma importncia, pois, como j vimos, a vinda

    da criana surda faz com que os pais tenham de lidar com uma nova realidade,

    completamente desconhecida para eles. Mas enquanto a famlia se d conta das

    suas dificuldades de adaptao ao novo filho que lhes foi imposto, algo deve ser

    feito e rapidamente. A criana cresce e necessita da linguagem para poder se

    colocar no mundo, entender e se fazer entendida. Entra a o papel da escola.

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    lucianoNotaquantas crianas surdas h?

  • 18

    Podemos, ento, afirmar que, para a criana surda, ser no espao escolar

    que ela poder adquirir a lngua e, portanto, desenvolver a sua linguagem, sem as

    restries que normalmente aparecem no ambiente domstico e que na maioria

    das vezes so de mbito psicolgico.

    O problema a ser enfrentado : de que forma fazer isso? Como propiciar

    um ambiente rico e estimulador para o desenvolvimento de linguagem da criana

    surda? de grande importncia repetirmos aqui que no se trata do ensino da

    Libras como cdigo ou como simples repetio de sinais. O que almejado

    que a Libras seja a primeira lngua da criana para que, estando ela em posse

    da mesma, possa se organizar como ser da linguagem e possa pensar, decidir,

    se constituir e organizar o mundo ao seu redor. O que se espera que ela possa

    vir a ser um indivduo funcional e influente no seu ambiente, qualquer que seja

    ele: o domstico, o profissional ou o das outras relaes sociais. O que neces-

    srio para que isso ocorra? Que a criana surda esteja cercada pela linguagem

    em todo o tempo. Todos aqueles a sua volta, adultos, colegas, mais velhos ou

    mais novos, sero o modelo para que ela possa, mais do que adquirir uma

    lngua, se apropriar de seu status de falante e de ser comunicativo que pode

    influenciar o que sucede ao seu redor.

    Para que isso possa acontecer, todos os que se encontram ligados edu-

    cao do surdo devem ter o cuidado de usar a Libras sempre que estiverem

    frente a seus alunos surdos, mesmo que estejam conversando com ouvintes.2

    Apesar de essa prtica parecer simples, nas atividades dirias, ela pode ser

    muito difcil de ser seguida. Por exemplo, o professor pode no se achar capaz

    de usar lngua de sinais ou pode sentir que suas ideias so mais bem transmi-

    tidas quando ele as escuta e assim acompanhar sua sinalizao com sinais.

    Apesar de esse sentimento ser completamente natural, o comportamento que

    advm dele falar deve ser evitado sempre. Devemos lembrar que a Libras

    uma lngua com caractersticas prprias, diferentes do portugus, e que

    impossvel falar e sinalizar ao mesmo tempo.

    Para que um desenvolvimento de linguagem se d de forma plena ne-

    cessrio que a criana seja exposta lngua sendo usada em diferentes con-

    textos e no apenas quando os colegas e os professores se dirigem a ela. Isso

    verdadeiro para a criana ouvinte e, claro, para a criana surda. A criana

    surda deve ter a possibilidade de ver a lngua circulando por diferentes porta-

    dores que tero estilos e formas diferentes de se comunicar. Alm disso, fa-

    lantes de diferentes idades, comunicam-se de formas diversas, sobre assuntos

    distintos. O que deve estar sempre claro que a aquisio de linguagem se d

    em situaes espontneas, e no em circunstncias artificiais. O segredo para

    2 Comunicao pessoal de Logiodice em 1998 em visita a New York School for the Deaf.

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    lucianoNotaem condies ideais, em qual idade a criana dever adquirir uma linguagem mais autnoma?

  • 19

    o bom desenvolvimento de linguagem de uma criana surda propiciar a ela as

    mesmas oportunidades que so oferecidas naturalmente a uma criana ouvinte.

    Pode parecer simples, mas quando estamos acostumados com alguma coisa,

    pode vir a ser muito difcil perceber o que acontece e o que deve ser feito para

    quem no tem a mesma possibilidade que dada para a maioria.

    No podemos esquecer que muito importante que a criana surda possa

    ter conhecimento de que as pessoas utilizam tipos de linguagem diferentes, de

    acordo com as pessoas a quem elas se dirigem. Assim a criana deve experi-

    mentar a linguagem informal e a formal, a infantil, a expresso de raiva, o uso

    de grias, etc.

    importante ressaltar mais uma vez que tudo que se relaciona ao desen-

    volvimento de linguagem deve acontecer de maneira natural e prazerosa. Isso

    acontece com a criana ouvinte e assim deve acontecer com a criana surda.

    Cientificamente se sabe que se as condies de aprendizado so realizadas

    em atmosfera agradvel, por meio de atividades ldicas, a criana aprender

    de forma real, pois as relaes sinpticas no crebro passam a se realizar de

    forma efetiva, levando verdadeira aquisio de linguagem.

    Quando um adulto se dirige a uma criana surda e inicia uma conversa-

    o, essa conversao deve se basear no desejo real de se comunicar. O que a

    criana poder adquirir nessas relaes comunicativas est ligado a situaes

    verdadeiras que sero vivenciadas pela linguagem. A distrao do interlocutor

    ou a artificialidade dos dilogos ser percebida pela criana e no servir para

    o propsito a que destinam: comunicao verdadeira que possa ampliar o uni-

    verso lingustico, comunicativo e social da criana.

    Desejamos enfatizar aqui o importante papel que o professor tem na vida

    de qualquer criana e adolescente, at mesmo do adulto. de suma importn-

    cia que esse papel seja compreendido pelo professor. Essa colocao vlida

    para a criana ouvinte e mais ainda para a criana surda. na escola que se

    espera que ela possa encontrar interlocutores em uma lngua que a respeita em

    sua diferena e um ou vrios adultos (numa circunstncia perfeita) com os quais

    ter a possibilidade de construir relaes comunicativas, trocar conhecimentos

    e se tornar ser da linguagem e das relaes. na escola e nos interlocutores

    usurios da Libras ali presentes que ela poder construir a sua identidade de

    forma ntegra e se desenvolver de forma plena.

    Consideramos importante, nesse momento, relacionar a questo da iden-

    tidade com a questo da linguagem. pela linguagem que o indivduo esta-

    belece sua identidade e se configura como nico nas suas particularidades.

    pela linguagem que ele pode compreender o mundo a sua volta e estabelecer

    relaes de causa-efeito, de temporalidade, de espao, etc. para construir seu

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  • 20

    prprio universo e poder estar no mundo com os outros que o representaro a

    partir do que eles percebem dele. E a partir do que os outros percebem dele, o

    indivduo ir reconstruindo o seu prprio processo de identidade, realizando-se

    enquanto sujeito social e da linguagem. Quando essa constituio bem realizada,

    temos como somatria um indivduo bem adaptado sociedade em suas diferen-

    tes esferas, usando a linguagem para se colocar e para se fazer cidado. Pode-se

    imaginar o efeito que a lngua de sinais tem na organizao do indivduo surdo.

    Ser pela lngua de sinais que o surdo poder compreender o mundo, localizar-

    se com relao a ele mesmo e aos outros e ter as suas referncias, inclusive

    aquela que o coloca de forma diferente no mundo como surdo que percebe o

    mundo visualmente, que tem direitos e que deve ser respeitado na sua forma

    de ser (MOURA, 2000).

    Queremos enfatizar aqui que compreendemos linguagem na sua acepo

    mais ampla, que pode ser vista na prtica de interao sociocomunicativa e que

    responsvel pela criao de sentidos (BAGNO, STUBBS & GAGN, 2002). Assim,

    consideramos fundamental que se perceba que a aquisio de linguagem deve

    estar fundada em circunstncias de comunicao e interao verdadeiras nos

    mais diversos gneros discursivos.

    importante salientar tambm que o desenvolvimento de linguagem no

    se d somente com um interlocutor, como apontamos acima, mas com uma

    multiplicidade de interlocutores. Diversos graus de competncia na lngua so

    esperados em diferentes componentes do grupo com que as pessoas se rela-

    cionam, sejam elas ouvintes ou surdas. Isso ocorre de forma natural para as

    crianas ouvintes que tm sua volta interlocutores dos mais diversos tipos,

    que usam formas diferentes de linguagem. Para a criana surda isso se coloca

    como algo que nem sempre possvel, mas que deveria ser providenciado. Isso

    poderia acontecer, por exemplo, se a criana surda tivesse a possibilidade de

    visitar a comunidade surda, que pode ser encontrada em clubes ou associaes

    de surdos. Nem sempre fcil fazer com que os pais compreendam a importn-

    cia de levar seu filho surdo a esses locais onde a lngua de sinais est presente

    de forma natural e onde a criana surda poder se ver nos outros que, como

    ela, so surdos e partilham de experincias visuais e de uma lngua comum.

    Isso traz a necessidade de expormos aqui mais um aspecto importante para

    a criana surda e que se relaciona linguagem: a comunidade surda. Para mui-

    tos ouvintes e leigos ou partidrios da incorporao do surdo na comunidade

    ouvinte a comunidade surda aparece como um lugar em que o surdo estaria

    isolado do mundo, e para alguns esse local chega a ser chamado de gueto.

    Para o surdo que frequenta essas comunidades, ao contrrio, os lugares onde

    eles podem se encontrar, usar a sua lngua e partilhar desejos, esperanas,

    problemas, conquistas, o lugar em que a sua liberdade mais bem exercida.

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  • 21

    Para Bernard Mottez (1990), socilogo francs, a comunidade surda o

    lugar onde a pessoa aprende a se tornar uma pessoa surda. V-se a que a

    constituio do sujeito est relacionada a muitos aspectos em que a lngua

    toma um lugar prioritrio e que por sua vez necessita de um lugar, seu terreno

    frtil, para poder desabrochar e poder dar frutos que sero as sementes que

    daro continuidade a ela mesma.

    Moura (2000) esclarece bem essa questo quando nos diz o que acontece

    nos clubes, associaes, etc.:

    Nestes locais ele pode esquecer completamente a surdez, que anulada e no pode ser usada como instrumento de discriminao contra ele. Somente nesta situao relaxada, em que o Surdo no precisa se esforar para com-preender o que falado, as regras sociais (to comandadas pela audio e de difcil compreenso para quem no ouve) apreendidas (e entendidas) sem esforo e principalmente em que ele no precisa se sentir excludo ou diferente, tentando parecer igual a todos e no conseguindo, que ele poder se sentir realmente humano e completo, no lhe faltando um pedao que ele busca desesperadamente completar (MOURA, 2000, p. 71).

    Vemos, portanto, que a questo da linguagem mais complexa do que se

    pode pensar num primeiro momento. Ela no envolve apenas uma lngua, mas

    tudo que a cerca um ambiente social, uma identidade, um grupo. apenas

    quando todos esses aspectos so contemplados que se pode propiciar a um

    indivduo a plena aquisio de linguagem que vem englobada na pertinncia a

    um grupo, na prpria conscincia do indivduo como ser social e da linguagem,

    que pode usar essa linguagem mais do que para se comunicar, mas para estabe-

    lecer dilogos consigo prprio. isso que permitir que o surdo, como qualquer

    outra pessoa, possa estar no mundo buscando seu lugar e batalhando pelos

    seus direitos.

    Podemos dar um exemplo interessante de um local em que a lngua de

    sinais circula em todos os locais para que o aluno surdo possa estar realmen-

    te cercado pela linguagem: a Gallaudet University em Washington, a primeira

    universidade para surdos do mundo. L, todos os funcionrios, desde o porteiro

    at os professores de ps-graduao, passando pelos atendentes das cantinas,

    pelos funcionrios administrativos e por todos os envolvidos direta ou indireta-

    mente com o processo educacional se comunicam com os estudantes por meio

    de lngua de sinais (ASL American Sign Language). O nvel de proficincia

    esperado dos funcionrios que no esto ligados diretamente educao

    menor do que aquele exigido dos professores e do quadro acadmico em geral,

    mas o aluno consegue obter tudo o que deseja dentro do campus. O que essa

    presena estvel da lngua de sinais possibilita? Ela faz com que o estudante,

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  • 22

    de qualquer idade, possa se comunicar, construir sua linguagem em situaes

    significativas e no artificiais e, principalmente, saber que a sua lngua respei-

    tada naquele espao.

    Consideramos fazer uma observao sobre o papel da escola. A escola

    no deve funcionar to somente como espao de circulao de lngua ou de

    contedos educacionais, mas tambm deve ser o lugar por excelncia onde a

    cultura surda pode estar presente. Essa cultura se relaciona a formas particu-

    lares de se estar no mundo, mas, especialmente, diz respeito ao valor que

    imputado lngua de sinais, comunidade e identidade surda. Assim, ter a

    lngua de sinais em todos os ambientes da escola faz com que seja possvel o

    estudante se reconhecer como membro de uma comunidade lingustica mino-

    ritria, com uma forma particular de estar no mundo: usando a viso para se

    comunicar e compreender o que o cerca.

    A escola quando adaptada para o aluno surdo respeita a sua diferena

    e faz esforos para inseri-lo nas atividades da vida diria que so transmitidas

    pela audio. Dessa forma, importante que ele possa ter conhecimento das in-

    formaes que so apresentadas pelo som, mas que lhe devem ser interpretadas

    de um jeito que ele possa apreend-las. Podemos citar, por exemplo, o sinal

    da escola. Ele no pode ser percebido pela audio, mas o pode ser de uma

    forma muito simples: com a luz piscando em lugar do som. A utilizao da luz

    substituindo o som em muitas ocasies considerada, por alguns, como aspec-

    to da cultura surda, mas importante destacar aqui que a considerao pela

    diferena e o uso de adaptaes transmitem para os estudantes a ideia de que

    eles so respeitados como surdos, e nessa considerao que se sustenta a

    cultura que faz com que eles possam se saber diferentes, especiais enquanto

    nicos, como todos tm o direito de ser: no pela falta da audio, mas pelo jeito

    de serem tratados.

    apenas na convivncia social que aspectos da vida grupal so acatados

    e novas incluses so constitudas, e assim cada um pode se perceber como

    membro de um grupo cultural prprio que deve ser respeitado por todos que

    fazem parte daquele grupo, sendo iguais ou diferentes. As pessoas no nascem

    conhecendo seus valores culturais, pois a cultura no um algo intrnseco a ser

    carregado, mas produto de posicionamentos e de jeitos de se estar no mundo.

    O espao social possibilita essa vivncia de forma que esses valores possam

    ser introjetados e possam passar a ser o alicerce para o posicionamento do

    indivduo na sociedade. Na medida em que essa forma de estar no mundo pode

    ser interiorizada, o indivduo passa a saber qual seu lugar na coletividade e

    passa a se compreender como uma pessoa ntegra, sabendo como modificar o

    que for preciso para ter seus direitos garantidos.

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  • 23

    A criana ouvinte vai estabelecendo seus valores culturais desde que nas-

    ce, e tais valores so transmitidos por meio da postura dos pais, dos professo-

    res e da prpria escola e pela linguagem. A escola para surdos ser o lugar por

    excelncia, nesse momento inicial, para passar esses valores, ainda que no de

    forma explcita, mas pela forma como lida com o respeito pela forma de essas

    crianas estarem no mundo.

    Outro aspecto importante com relao lngua e linguagem do surdo

    se relaciona com o status de capacidade que o surdo obtm quando passa

    a dominar essa lngua. Para alm da habilidade de se comunicar, de poder usar a

    linguagem para se estruturar internamente, para poder entender o que se passa

    ao seu redor, o surdo passa a ser visto como algum que tem linguagem.

    Ainda que muitos leigos no compreendam que a Libras uma lngua, o fato

    de o surdo ser capaz de entender uma forma de lngua completamente obscura

    para o leigo, o fato de essa lngua estar representada em espaos pblicos, faz

    com que a representao que se tem do surdo se modifique. Acreditamos que

    apenas a partir de uma representao do surdo como capaz que ele poder

    tambm se perceber como capaz. Esse movimento deve abarcar o autor da

    ao e aquele que sofre o efeito da ao. No retorno para quem fez a ao

    possibilitado o estabelecimento de novas identidades individuais, sociais e po-

    lticas na sociedade. Assim, ocorrem polticas de linguagem responsveis pela

    circulao da lngua fortalecendo-a e fazendo com que o surdo, usurio da ln-

    gua de sinais, possa se perceber usurio de uma lngua cuja validade est para

    alm da lei poltica, pois se valida na lei social.

    O que muitas vezes acontece que muitos profissionais, por j terem

    passado por circunstncias de frustrao quando trabalharam com surdos, os

    consideram, com frequncia, de uma forma no intencional, inbeis para rea-

    lizar muitas coisas, principalmente no que se relaciona ao desenvolvimento de

    linguagem e de habilidades de letramento. de suma importncia que esses

    pr-conceitos sejam trocados por outros conceitos no predeterminados que

    entendam o surdo como capaz. Para que o surdo possa vir a ser capaz ele ape-

    nas necessita ter boas condies de desenvolvimento. E para que isso ocorra

    so necessrias condies ideais de construo lingustica. So necessrias

    experincias de vida permeadas pela linguagem, e a linguagem est presente

    quando eu sou capaz de perceber o outro como capaz.

    Para finalizar vamos retomar alguns pontos que so muito importantes

    para se compreender as relaes entre linguagem e surdez e como se d a

    aquisio da lngua de sinais pelos surdos:

    A lngua de sinais no ensinada, mas adquirida. Essa aquisio s

    pode se dar de forma natural e real se o interlocutor se preocupar,

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  • 24

    antes de mais nada, em se comunicar com o surdo de forma fluida e

    interessada.

    Para que um bom desenvolvimento de linguagem acontea, necess-

    rio que no apenas a criana responda ou fale alguma coisa, mas que

    ela aprenda a escutar/ver o mais precocemente possvel. Aprender a

    escutar/ver significa aprender a olhar o interlocutor, e isso depende

    da habilidade do falante/gesticulador. O que vai ser contado deve ser

    interessante para a criana e deve prender a ateno dela. necessrio

    que se esteja atento aos assuntos que so do interesse da criana, para

    que ela deseje ser parte da situao comunicativa.

    A lngua deve ser experienciada de diversos jeitos e em diferentes gneros.

    A aquisio de linguagem s pode acontecer em contextos significati-

    vos, j afirmamos antes. Assim, repeties sem sentido no fazem parte

    desse processo.

    No se pode esquecer nunca a relao entre lngua, linguagem, identi-

    dade, cultura e comunidade. A lngua possibilita que identidades polti-

    cas tomem forma e as polticas de identidade possam ser mais do que

    teorizadas, pois sero vividas.

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