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ISSN 1809-2616
ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009__________________________________________________________________
ESTÉTICA CONCEITUAL DO LIXO Daysi Margareth Junqueira Schmidt∗
Resumo: O mundo pós-moderno abriga uma vasta gama de procedimentos artísticos. Na modernidade, a liberdade tornou-se o álibi, não só para romper com a tradição, mas também para estimular a procura pela essência e pela purificação definitiva da forma. Essa liberdade que se conecta ao subjetivo desafia constantemente nossa compreensão relativa a questões como a veracidade e autenticidade, tanto a materiais quanto aos procedimentos artísticos contemporâneos. Marcel Duchamp tornou-se precursor ao questionar a identidade do objeto artístico em face do crescimento indiscriminado de propostas abstratas. O lixo contesta o sistema e se torna conceito quando dirige nossa atenção a perguntas difíceis de natureza moral e estética. É por meio da arte que o lixo se transforma em idéias e conceitos, onde encontra senso artístico e potencial estético.Palavras-chave: Arte; Cotidiano; Lixo.
O mundo pós-moderno abriga uma gama incomensurável de procedimentos
artísticos, que envolvem desde o material, a técnica, o conteúdo, a linguagem, os
processos, entre outros tantos elementos que constituem a criação artística. Hoje,
ao visitarmos qualquer exposição de arte ou museu de grande porte, percebemos a
real dimensão que o conceito “arte contemporânea” pode atingir. Observa-se uma
profusão desmedida de conteúdos dispostos em toda ordem de materiais, que se
prestam como suporte as idéias do artista.
Com o modernismo e mais precisamente com Cézanne, libertamo-nos
definitivamente da tradição clássica ou acadêmica e aprendemos a privilegiar a
forma pictórica, por meio de diferentes processos de análise visual. A arte moderna
fundamenta-se em emoções sentimentos e sensações, com a clara intenção de
arrebatar o espectador a uma esfera sensível e subjetiva. Com o quadro
denominado, “Quadrado preto suprematista”, de Malevich inicia-se o processo de
SCHMIDT, Daysi Margareth Junqueira. Especialista em História da Arte (EMBAP). Atualmente trabalha na empresa Ludus Jogos Educativos, atuando junto ao ensino fundamental e médio na criação e desenvolvimento de jogos pedagógicos para as diferentes áreas do conhecimento.
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esquematização, purificação e destilação da forma pictórica e o total repúdio as
narrativas e as descrições.
A liberdade tornou-se o álibi decisivo, não só para efetivar o rompimento com
o tradicional, como também, estimular a busca pela essência e purificação definitiva
da forma. Porém, essa liberdade desmedida, que se liga ao subjetivo, tende
constantemente a desafiar nosso entendimento a respeito das questões que
envolvem a veracidade e autenticidade, tanto dos materiais, quanto dos
procedimentos artísticos contemporâneos. A liberdade exaustivamente exercida na
modernidade torna-se seu próprio algoz e dá início a um debate que abala as bases
que até então exerciam monopólio absoluto sobre as representações artísticas.
Marcel Duchamp torna-se precursor ao questionar a identidade do objeto
artístico, em face da proliferação desenfreada de propostas abstratas. Duchamp,
como um autêntico representante do movimento Dada, irreverente e provocador,
lança à semente que levará quatro décadas para desabrochar, mas agora, sob a
denominação de arte conceitual.
É por meio da arte que se traduz em idéias e conceitos, que o lixo encontra sentido
artístico, podendo, dentro da proposta de neovanguarda modernista, adquirir
potencial estético.
UMA VISAO FILOSÓFICA
A Arte Contemporânea sob a ótica de Theodor Adorno
Theodor Adorno viabiliza nosso entendimento a respeito das questões
estéticas contemporâneas, tendo como imperativo a crítica a sociedade capitalista, a
preocupação em desenvolver um pensamento que não fosse apenas de gênese
abstrata, mas que também fosse comprometido com as finalidades da razão. Nada
escapa à racionalização, nega dessa maneira a chamada “arte pela arte”. Para
Adorno o fazer artístico e tudo que este “fazer” envolve, como a forma, o material, o
conteúdo, a linguagem, a construção, o estilo, a técnica etc assumem um lugar
especial no contexto artístico contemporâneo pois se tornam indicadores precisos da
ligação existente entre a obra e o seu momento histórico. Adorno diz que “o
conteúdo social sedimenta-se na forma de obra de arte” 1.
1 FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 25.
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Adorno considera que estamos constantemente em confronto com as
exigências do sistema que buscam novas soluções expressivas, por meio de
materiais inusitados e atípicos, que denunciam e chocam nossa sensibilidade. Para
ele, essa aparente irracionalidade no uso indiscriminado de materiais, acaba sendo
mais verdadeira, e, portanto, mais racional que a irracionalidade a que somos
submetidos diariamente. Diante da pressão cotidiana, novos materiais cumprem a
tarefa de representar o caos urbano e social resultantes do desenvolvimento.
Na visão de Adorno a busca por novos materiais tornou-se algo imutável
dentro da arte contemporânea, pois, por meio dos elementos que compõe a obra de
arte, evidenciam-se características que denunciam o momento social em que a obra
foi pensada. Segundo ele, ”uma lei inexorável da arte moderna é a busca incessante
por novos materiais”2. Sob a ótica de Adorno, “o material encontra-se entre a forma e
o conteúdo”3, já que a forma remete a uma realidade histórica, enquanto o conteúdo
aponta para os problemas sociais, que, segundo Adorno, devem fazer parte das
produções artísticas contemporâneas.
DE CÉZANNE ÀS COLAGENS CUBISTAS
Diante da declaração de Braque, “partimos todos de Cézanne” 4, sua geração
de pintores e as gerações seguintes, vem rendendo-se e apoiando-se, nas
profundas descobertas e transformações trazidas por Cézanne. Transformações
irreversíveis as novas produções artísticas, tanto no modo inovador da pintura, como
também na maneira, pela qual, passamos a observá-la.
Cézanne rompe com as técnicas amplamente difundidas pelas academias,
como a perspectiva, o claro-escuro e suas nuances, o branco impressionista e traz a
luz uma nova concepção na representação do volume. Para tentar resolver o volume
a ser representado em uma superfície rasa, Cézanne dispôs gradualmente a terceira
dimensão em planos fragmentados de forma a deslocar os ângulos de visão. Deixa
de se servir do jogo do claro e escuro, das sutis nuances de cores, dos tons
degradantes, abandonando assim, drasticamente às sombras e a luz e criando uma
atmosfera de luz pictórica própria. Usa a geometria como forma de ordenar o volume
2 FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 42.3 FREITAS, 2003. p. 41.4 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 67.
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das massas e equilibrar a composição, esforçando-se na busca por novas
propostas, visando, sobretudo, à unidade da estrutura.
Figura 1 – Cézanne. Bosque e Rochedos (1982). Óleo sobre tela, 100 x 73 cm. Museu Metropolitan, Nova York.
Picasso e Braque se apossaram das inovações introduzidas por Cézanne
passando também a se preocupar com o que para eles era considerado o maior de
todos os problemas da pintura, a representação em perspectiva, ou seja, em três
dimensões, sobre uma superfície lisa ou achatada da tela. Além disso, buscavam
meios de concretizar a forma buscando a sua posição dentro de um espaço
tridimensional. Para esses pintores que se voltaram contra a escola impressionista e
sua visualidade excessiva, buscaram “mediante cristalização geométrica, inspirada
em Cézanne, às propriedades permanentes dos objetos e sua estabilidade em
espaço fechado, sem perspectiva ou luz” 5.
Consequentemente a deformação das figuras torna-se inevitável, pois tanto
Picasso quanto Braque acreditavam haver barreiras entre a representação de um
determinado objeto dentro uma estrutura que tende a se planalizar. Seguindo os
caminhos traçados por Cézanne em diminuir do espaço visual, Picasso rompe com a
forma fechada da pintura nascida na renascença. Traz um objeto representado na
tridimensionalidade para um plano bidimensional, distorcendo a forma em
segmentos. Pelo contínuo exercício de transformação do espaço tridimensional em
espaço plano, foi possível prover efetivamente essa mudança mediante a colagem
de papéis coloridos diretamente sobre a tela, já que a planaridade obtida com o
resultado dessas investigações permitiu esse avanço.
5 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 76.
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Figura 2 – BRAQUE, Georges. Ária Bach (1912-13). Colagem de papel sobre desenho 67 x 46 cm. Galeria Nacional de Washington.
As colagens tornam-se passaportes para a abstração. Ao inserir este novo
elemento dentro da pintura chamam a arte para a realidade, como um convite ao
devaneio. Pedaços de papel, impressos, ou qualquer outro tipo como o de jornal ou
de embrulho ganha traços de tinta ou lápis, que gradativamente foram se juntando a
outros materiais como areia, pedaços de pano e de madeira, cartas de jogos, caixas
de fósforos, entre tantos outros. Para Picasso e Braque, “basta agregar ao quadro
estas figuras vulgares, inertes, mortas, para que se vivifiquem em contato com a
obra de arte” 6.
A REVOLUÇAO DO READYMADE
Duchamp não só assimilou as lições de Cézanne como também as do
cubismo e passou das análises segmentadas e fracionárias para a real sensação de
movimento. Por meio de traços seqüenciais baseados nos estudos fotográficos sobre
o deslocamento de corpos humanos, realizados por Muybridge, obteve como
resultado de suas pesquisas, figuras cadenciadas e com ritmo próprio, referenciais
precisos da mecanicidade que caracteriza o fim do século XIX e o início do século
XX. Segundo Octavio Paz, “os quadros de Duchamp são a presentificação do
movimento: a análise, a decomposição, e o reverso da velocidade”7.
6 DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004. p. 249.7 PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 8.
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Duchamp afirmou que, “em suas mudanças nosso tempo só se afirma para
negar-se e só se nega para inventar-se e ir mais além”8. A pintura retiniana, ou seja,
aquela puramente visual torna-se insuficiente para ele que procura então, segundo
suas palavras, “substituir a pintura-pintura, pela pintura-idéia”9. As inclusões das
colagens cubistas contendo fragmentos de realidade fecundaram sua poética
fornecendo-lhe meios para se desvincular de vez por todas, da chamada pintura
“olfativa”10. A idéia torna-se então a real revolução. Para Duchamp, a arte desliga-se
do compromisso visual, da sensação subjugada pela visão. Inaugura os readymade
e juntamente com eles, uma nova forma de se conceber a obra de arte. Tudo passa
a ser arte, surgindo assim à negação absoluta de todo o sistema de valores
acadêmicos e institucionais, resultando na antiarte. O pensamento Dada endossa
sua proposta.
Figura 3 – DUCHAMP. Roda de Bicicleta (1913). Readymade.
Acreditando nos princípios da filosofia agnóstica, a qual, não é possível atingir
as coisas em si, mas somente a relação existente entre elas, Duchamp eleva a arte
a um status intelectual. “Desde o princípio, foi um pintor de idéias e que nunca cedeu
a falácia de conhecer a pintura como uma arte puramente manual e visual”11. Passa
então, a conceber a arte não mais pela representação plástica ou estética, mas, por
meio de ações intelectuais, introduzindo o elemento psicológico, o subjetivo e o
8 PAZ, 2004. p. 8.9 PAZ, 2004, p. 9.10 PAZ, 2004, p. 9.11 PAZ, 2004, p. 10.
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individual na composição. Quando Duchamp faz a transferência de objetos comuns
de seus contextos habituais, apropriando-se deles de maneira conceitual, na
verdade, o ato é que se torna determinante. O ato em si é quem concede ao objeto o
status de obra de arte. Cai por terra o fetichismo que imperava em torno do fazer
artístico e abre-se espaço para o gesto, a intenção, a representação, a idéia, o
símbolo. Para Duchamp o pensamento também pode ser arte.
QUANDO A IDEIA VIRA ARTE
A arte clássica sempre privilegiou ao longo de seu domínio suportes tidos
como acadêmicos, como a tinta, o metal, a pedra e a madeira, e somente se
manifestava por meio de práticas como a pintura, a escultura, a gravura e o
desenho. A invasão da arte conceitual acaba com a definição específica de suportes
ou de materiais para a arte. A fotografia, os vídeos, o ar, a luz, o som, a palavra, a
sociedade, a economia, a política, os alimentos, as questões ambientais, o lixo, as
sensações, os sentimentos, as diminutas percepções, os sentidos em toda
globalidade e a vida em todas as minúcias e abrangências, passam a fazer parte
das práticas conceituais pós-modernas.
Não existem mais materiais específicos para a arte, o material surge do
contexto onde está inserida a idéia, o contexto torna-se mais importante que a obra
em si, gerando, por fim, uma quebra em torno da adequação do objeto. Apoiando-se
nas descobertas de Duchamp, tudo pode ser arte, o pensamento é quem passa a
classificar o material de acordo com a idéia. O objeto serve para refletir um conceito,
estabelecendo ligação com os pensamentos e com as percepções.
Após a revolução proposta por Duchamp, o mundo da arte voltou a sofrer
intervenções em suas regras básicas somente no final da década de 40, tendo como
cenário a derrota fascista e o início da era nuclear e da Guerra Fria. Na década
seguinte, o modernismo contestou o conservadorismo político por meio de um
realismo pictórico, muito embora, neste mesmo contexto um novo rumo estava
sendo traçado do para a arte moderna.
paralelamente ao florescimento do modernismo, na década de 50, houve também uma regeneração da vanguarda, em um conjunto de atividades artísticas não vinculadas a um meio específico. As
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sementes de uma arte conceitual autônoma podem ser localizadas aqui12.
A escola moderna americana do pós-guerra, representada por artistas como,
Jackson Pollock, Clifford Still, Barnett Newman, Mark Rothko, marcou a investida da
arte “gestual” produzida nos Estados Unidos. Em outra vertente da mesma escola
americana, Robert Rauchenberg e Jasper Johns denominados de Neodadas,
passam a resgatar elementos do cotidiano, traçando um paralelo com a vida real,
como fez Duchamp, abrindo inúmeras possibilidades a futuros e inovadores
experimentos. As associações artísticas entre imagem somada ao uso de objetos
triviais, sempre farão referência à vida comum e diária. A ligação inegável desses
objetos com a realidade abriu caminhos para a introdução de novas técnicas e
materiais que até então, nunca tinham sido associadas às práticas artísticas
convencionais. Como profetizou Duchamp, a arte chama o cotidiano para perto do
espectador.
Não muito distante das idéias e das produções de Rauschenberg e Johns,
surgia o Pop, assim como outras neovanguardas modernistas que rejeitavam
completamente a especificidade do meio. Trabalhos como do Grupo Fluxus e mais
especificamente os de Joseph Beuys, na Alemanha, passam a interferir na vida
sócio-política do país, como um prenúncio à politização das atividades artística que
marcarão os próximos anos. A arte desenvolvida a partir dos anos setenta enreda-se
em questões delicadas, com temas que revelam a cruel realidade social, política e
econômica determinada pelo sistema capitalista.
os artistas estabeleceram parâmetros políticos para as atividades artísticas, adaptando a marginalidade social da prática da vanguarda modernista a uma forma de expressar a experiência da marginalidade cultural e de dar voz àqueles que, por vários motivos, são excluídos da experiência cultural mais importante13.
Do outro lado do Atlântico os Novos Realistas apóiam-se no resultado da
produção industrial e nas possibilidades introduzidas pelo cotidiano das grandes
metrópoles, como a urbanização das cidades, seguidas pelas leis que regulam o
mercado e a mídia. Os Novos Realistas estabelecem parâmetros sociológicos para
suas produções. Vêem nos fenômenos sociais gerados pelos agrupamentos
urbanos, surgirem elementos plásticos potenciais, resultantes desse novo olhar.
12 WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 17.13 ARCHER, Michel. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 236.
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Esse movimento percebe e reconhece o mundo como uma obra de arte total,
para tal, acreditam apropriar-se de legítimos elementos que compõe o universo
cotidiano. Na visão de Restany, os novos realistas, “mostram-nos o real nos
aspectos vários da sua totalidade expressiva. E por intermédio dessas imagens
objetivas é a realidade completa, o bem comum da atividade dos homens, a
natureza do século XX, tecnológica, industrial, publicitária, urbana, que é intimada a
comparecer”14. Os objetos duchampianos resgatados pelos novos realistas ganham
nova conotação, não questionam ou agridem, apenas comungam com a vida
moderna as mesmas atividades.
Figura 4 – TINGUELY. Grande Meta Maxi-Maxi Utopia. (1987). Montagem.
É diante da apropriação de registros industriais como a sucata e as sobras
que os Novos Realistas pretendem revelar a potencialidade do mundo. Passam a
agrupar inúmeros elementos surgidos com o alastramento da indústria. Agregam
destroços, restos, sucata, como elemento verídico da nova realidade pós-moderna.
Para os Novos Realistas “a apropriação do real é a lei de nosso presente”15. Assim
na visão de Restany, a arte assume a dimensão de sua vontade expressiva
autorizada pela pós-modernidade a traduzir a linguagem atual.
ARTE CONCEITUAL NO BRASIL
14 RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 148. 15 RESTANY, 1979, p. 152.
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A contribuição brasileira para a arte conceitual e particularmente em resposta
ao Pop norte americano, não refletiu o desenvolvimento e as tecnologias de massa,
de riqueza e de poder que caracterizou a cultura pop produzida nos Estados Unidos.
No Brasil se deu em face de uma atmosfera de repressão política, social e cultural,
em que a ditadura militar impunha um regime baseado na negação total a liberdade
de expressão e de opinião dos indivíduos, levando suas ações até as últimas
consequências, como a perseguição política, o desaparecimento e a morte de vários
militantes.
Em sua obra, Cildo Meireles conjugou objetos duchampianos não como um
retrato documental da realidade de um país, como fizeram os artistas americanos.
Cildo hostiliza o poder e utiliza para isso imagens simbólicas ligadas a ele, fazendo
referência à opressão social imposta à sociedade. Interfere sobre o objeto e volta a
inseri-lo novamente no circuito. Criou uma série de obras intituladas Inserções em
circuitos ideológicos (1969) como a obra, Projeto Coca-Cola (1970).
Figura 5 – MEIRELES, Cildo. Projeto Coca-Cola (1970).
Pierre Restany esteve no Brasil em 1978, lançando o Manifesto do Rio Negro.
Reconheceu nas apropriações de materiais industrializados feitos pela brasileira
Sonia Von Brusky, um referencial preciso da assimilação da cultura urbana. Sonia
procura a força da imagem brincando com materiais rudes de forma solta e leve.
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Figura 6 – BRUSKY, Sônia Von. Fósseis Pós-Industriais (2000).
Integrou todos os movimentos de vanguarda brasileiros a partir de 1968,
obtendo premiação em 1993 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Não
escapa da militância política durante os anos da ditadura militar, atuando sempre na
busca de fragmentos que relatam o cotidiano. Trabalha com o que resulta dos
agrupamentos urbanos, extraindo deles a matéria-prima para a criação de seus
“fósseis pós-industriais”.
Para esse crítico, a obra criada por Sonia Von Brusky baseia-se na carga de
“autoexpressividade globalizante desta linguagem da cidade”.16 A globalização
encarrega-se de inventariar a realidade que passa a ser uma experiência
compartilhada por todos os que convivem em grandes centros urbanos. Para
Restany, somos atingidos pela urbanização e pela globalização e a arte cumpre a
missão de fazer uma nova leitura da realidade que nos cerca.
IDEIAS PARANAENSES
O estado do Paraná não ficou imune à utilização de materiais não
convencionais em atividades artísticas. Nos anos 70, enquanto a arte paranaense
estava voltada para o resgate da representação das matas e paisagens do Paraná,
o 32º Salão de Arte Paranaense, decidiu priorizar questões contemporâneas e
premiar obras que estivessem em sintonia com a realidade e que refletissem os
problemas atuais.
16 RESTANY, Pierre. O novo humanismo da cultura Urbana. Disponível em: <www.mac.usp.br >. Acesso em: fev. 2006.
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A obra premiada com o segundo lugar foi uma instalação intitulada
Automovelho (1975), do paranaense Luiz Rettamozo, que apresentou a carcaça
cortada de um Ford 1934 entupido de balões e todo amarrado com barbante, sobre
um chão repleto de sinais de trânsito. Rettamozo reinventa as práticas de Duchamp,
destrói a simbologia que se associa ao automóvel como um objeto de status e de
poder. Segundo o artista Fernando Velloso, o uso do barbante faz uma ponte até a
censura já que para esse artista “a cultura é coisa perigosa”, “deve ser amarrada”.
Figura 7 – RETAMOZZO, Luis. Automovelho (1975).
Ainda um segundo exemplo pode ser incorporado por meio da nova e
promissora safra de artistas contemporâneos paranaenses. Cleverson Salvaro, 26
anos, artista curitibano, não se preocupa em teorizar nem explicar suas criações,
simplesmente faz arte porque gosta do que faz, não se enredando em questões
teóricas ou filosóficas que justifiquem aquilo que cria. O artista mesmo define: “tem
gente que acredita que a arte se concretiza quando é vista por alguém, eu perdi
minha opinião sobre isso em algum lugar da história da arte”.17 Nasce com Salvaro
uma arte desprovida de justificativas ou compromissos.
Dentre suas criações e produções artísticas que abrangem instalações e
intervenções, não conseguiu escapar ao campo de ação exercido por materiais
desprezados. Foi ocasionalmente suscetível aos restos e ao entulho. Na obra
intitulada Barraco do Salvaro, usou de forma ocasional vassouras usadas, velhas,
como restos, amontoadas verticalmente umas sobre as outras.
17 SALVARO, Cleverson. Restos imortais de uma cidade. Depoimento a Gazeta do Povo. Curitiba, 1 jun. 2004.
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Figura 8 – SALVARO, Cleverson. Barraco do Salvaro (2004).
A abordagem conceitual do lixo chama tanto artistas como o público à
responsabilidade, despertando a consciência social e fazendo com que a sociedade
renda-se a esse importante instrumento referencial contemporâneo.
Duchamp conseguiu transformar objetos em idéias e máquinas em símbolos.
O lixo são símbolos contemporâneos que saem das máquinas. O lixo é o sinal real
da mecanização das nossas necessidades, resultante da chamada vida “civilizada”,
já que efetivamente tornou-se testemunha cabal de nossas atividades. Marcel
Duchamp não só desmistificou o objeto e os procedimentos artísticos que o
envolvem, como também abriu espaço ao cotidiano coletivo, tornando possível por
meio de materiais como o lixo, o acesso de todos à arte.
Torna-se imperativo para Adorno que a união entre vários aspectos que
envolvem uma obra de arte reflitam o contexto histórico em que ela emerge. O lixo
espelha fielmente a sociedade atual, o nível de industrialização e de
desenvolvimento econômico atingido pela civilização. O lixo nas sociedades pós-
modernas faz do consumo sua moeda corrente, fazendo com que os desejos e
aspirações de hoje se convertam no lixo de amanhã. O lixo traz à tona verdades
subjetivas, conceituais disfarçadas por um sistema que tende a ocultar e encobrir a
sensação efêmera e ilusória que o consumo proporciona. Ele liberta a beleza para
dizer verdades por meio da “feiúra” contida em materiais desprezíveis, que cumprem
a missão de elucidar a situação caótica resultante do desenvolvimento.
O lixo envolve-se com questões cruciais, contradizendo a sensação de
estabilidade que o sistema tenta impor, tornando-se um puro instrumento de
contestação, ao mesmo tempo em que, comunga com o desenvolvimento e com as
tecnologias. Dessa maneira, o lixo adquire capacidade de transfigurar-se em um
perfeito objeto de investigação conceitual.
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REFERÊNCIAS
ARCHER, Michel. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DICIONÁRIO DA PINTURA MODERNA. São Paulo: Hemus, 2004.
FREITAS, Verlaine. Adorno e a Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2004.
RESTANY, Pierre. Os Novos Realistas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
RESTANY, Pierre. O novo humanismo da cultura Urbana. Disponível em: <www.mac.usp.br >. Acesso em: fev. 2006.
SALVARO, Cleverson. Restos imortais de uma cidade. Depoimento a Gazeta do Povo. Curitiba, 1 jun. 2004.
WOOD, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.