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*Extraído de: SテO TOMチS DE AQUINO. A unidade do intelecto contra averroístas (edição bilíngüe). Tradução, apresentação, glossário, quadro cronológico e índice onomástico por Mário Santiago de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1999. A Unidade do Intelecto contra os Averroístas* Tomás de Aquino CAPUT 1 Sicut omnes homines naturaliter scire desiderant veritatem, ita naturale desiderium inest hominibus fugiendi errores, et eos cum facultas adfuerit confutandi. Inter alios autem errores indecentior videtur esse error quo circa intellectum erratur, per quem nati sumus devitatis erroribus cognoscere veritatem. Inolevit siquidem iam dudum circa intellectum error apud multos, ex dictis Averrois sumens originem, qui asserere nititur intellectum quem Aristoteles possibilem vocat, ipse autem inconvenienti nomine materialem, esse quamdam substantiam secundum esse a corpore separatam, nec aliquo modo uniri ei ut formam; et ulterius quod iste intellectus possibilis sit unus omnium hominum. Contra quae iam pridem plura conscripsimus; sed quia errantium impudentia non cessat veritati reniti, propositum nostrae intentionis est iterato contra eumdem errorem conscribere aliqua, quibus manifeste praedictus error confutetur. Nec id nunc agendum est ut positionem praedictam in hoc ostendamus esse erroneam quia repugnat veritati fidei Christianae. Hoc enim satis in promptu cuique apparere potest. Subtracta enim ab hominibus diversitate intellectus, qui solus inter animae partes incorruptibilis et immortalis apparet, sequitur post mortem nihil de animabus hominum remanere nisi unicam intellectus substantiam; et sic tollitur retributio praemiorum et paenarum et diversitas eorumdem. Intendimus autem ostendere positionem praedictam non minus contra philosophiae principia esse, quam contra fidei documenta. Et quia quibusdam, ut dicunt, in hac materia verba Latinorum non sapiunt, sed Peripateticorum verba sectari se dicunt, quorum libros numquam in hac materia viderunt, nisi Aristotelis qui fuit sectae Peripateticae institutor; ostendemus primo positionem praedictam eius verbis et sententiae repugnare omnino. Accipienda est igitur prima definitio animae quam Aristoteles in secundo de anima ponit, dicens quod anima est actus primus corporis physici organici. Et ne forte aliquis CAPÍTULO 1 [1] Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade 1 , também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quando têm essa faculdade. Ora, entre todos os erros, o mais inconveniente parece ser aquele em que se erra sobre o intelecto que naturalmente nos habilita a conhecer a verdade evitando os erros. Há já algum tempo que se implantou entre muita gente um erro acerca do intelecto. Originado nos escritos de Averróis, consiste em defender que o intelecto a que Aristóteles chama ‘possível’, e que [Averróis] designa impropriamente pelo nome ‘material’, é uma substância separada do corpo segundo o ser, que de modo nenhum se une ao corpo como forma. Mais ainda: [Averróis] defende que o intelecto possível é único para todos os homens 2 . Já escrevemos por várias vezes contra este erro 3 . Todavia, dado que a impudência dos que o defendem não cessa de resistir à verdade, é nossa intenção avançar novos argumentos contra esse erro a fim de o refutarmos com toda a evidência. [2] Não mostraremos aqui que a posição acabada de referir é errônea por contrariar a verdade da fé cristã. Isso será imediatamente evidente seja para quem for. Se, de fato, se subtraísse aos homens a diversidade do intelecto, a única de todas as partes da alma que se vê bem ser incorruptível e imortal, após a morte nada restaria das almas dos homens exceto a substância única do intelecto; e desta feita se suprimiria a retribuição das recompensas e das penas e a respectiva diversidade 4 . Mostraremos, outrossim, que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia do que os ensinamentos da fé. E dado que nesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, não querem saber das palavras dos Latinos e dizem-se seguidores das dos peripatéticos, cujos livros sobre essa matéria nunca viram, à exceção dos de Aristóteles, o fundador da seita peripatética, mostraremos em primeiro lugar que a referida posição vai contra as suas palavras e os seus ensinamentos 5 . [3] Tomemos, então, a primeira definição da alma dada por Aristóteles no livro II sobre A Alma, onde afirma que ela é “o ato primeiro de um corpo natural organizado” 6 .E

Tomás de Aquino. A unidade do intelecto contra os averroístas. Trad. Mario S. de Carvalho

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Page 1: Tomás de Aquino. A unidade do intelecto contra os averroístas. Trad. Mario S. de Carvalho

*Extraído de: SÃO TOMÁS DE AQUINO. A unidade do intelecto contra averroístas (edição bilíngüe). Tradução, apresentação, glossário,quadro cronológico e índice onomástico por Mário Santiago de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1999.

A Unidade do Intelecto contra os Averroístas*Tomás de Aquino

CAPUT 1

Sicut omnes homines naturaliter sciredesiderant veritatem, ita naturale desideriuminest hominibus fugiendi errores, et eos cumfacultas adfuerit confutandi. Inter aliosautem errores indecentior videtur esse errorquo circa intellectum erratur, per quem natisumus devitatis erroribus cognoscereveritatem. Inolevit siquidem iam dudumcirca intellectum error apud multos, ex dictisAverrois sumens originem, qui assererenititur intellectum quem Aristotelespossibilem vocat, ipse autem inconvenientinomine materialem, esse quamdamsubstantiam secundum esse a corporeseparatam, nec aliquo modo uniri ei utformam; et ulterius quod iste intellectuspossibilis sit unus omnium hominum.Contra quae iam pridem pluraconscripsimus; sed quia errantiumimpudentia non cessat veritati reniti,propositum nostrae intentionis est iteratocontra eumdem errorem conscribere aliqua,quibus manifeste praedictus errorconfutetur.

Nec id nunc agendum est ut positionempraedictam in hoc ostendamus esseerroneam quia repugnat veritati fideiChristianae. Hoc enim satis in promptucuique apparere potest. Subtracta enim abhominibus diversitate intellectus, qui solusinter animae partes incorruptibilis etimmortalis apparet, sequitur post mortemnihil de animabus hominum remanere nisiunicam intellectus substantiam; et sic tolliturretributio praemiorum et paenarum etdiversitas eorumdem. Intendimus autemostendere positionem praedictam non minuscontra philosophiae principia esse, quamcontra fidei documenta. Et quia quibusdam,ut dicunt, in hac materia verba Latinorumnon sapiunt, sed Peripateticorum verbasectari se dicunt, quorum libros numquam inhac materia viderunt, nisi Aristotelis qui fuitsectae Peripateticae institutor; ostendemusprimo positionem praedictam eius verbis etsententiae repugnare omnino.

Accipienda est igitur prima definitio animaequam Aristoteles in secundo de anima ponit,dicens quod anima est actus primuscorporis physici organici. Et ne forte aliquis

CAPÍTULO 1

[1] Como todos os homens, por natureza, desejam saber averdade1, também neles é natural o desejo de fugir doserros e de os refutar quando têm essa faculdade. Ora, entretodos os erros, o mais inconveniente parece ser aquele emque se erra sobre o intelecto que naturalmente nos habilitaa conhecer a verdade evitando os erros. Há já algum tempoque se implantou entre muita gente um erro acerca dointelecto. Originado nos escritos de Averróis, consiste emdefender que o intelecto a que Aristóteles chama‘possível’, e que [Averróis] designa impropriamente pelonome ‘material’, é uma substância separada do corposegundo o ser, que de modo nenhum se une ao corpo comoforma. Mais ainda: [Averróis] defende que o intelectopossível é único para todos os homens2.Já escrevemos por várias vezes contra este erro3. Todavia,dado que a impudência dos que o defendem não cessa deresistir à verdade, é nossa intenção avançar novosargumentos contra esse erro a fim de o refutarmos comtoda a evidência.

[2] Não mostraremos aqui que a posição acabada de referiré errônea por contrariar a verdade da fé cristã. Isso seráimediatamente evidente seja para quem for. Se, de fato, sesubtraísse aos homens a diversidade do intelecto, a únicade todas as partes da alma que se vê bem ser incorruptívele imortal, após a morte nada restaria das almas doshomens exceto a substância única do intelecto; e destafeita se suprimiria a retribuição das recompensas e daspenas e a respectiva diversidade4. Mostraremos, outrossim,que a posição referida não contraria menos os princípiosda filosofia do que os ensinamentos da fé. E dado quenesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, nãoquerem saber das palavras dos Latinos e dizem-seseguidores das dos peripatéticos, cujos livros sobre essamatéria nunca viram, à exceção dos de Aristóteles, ofundador da seita peripatética, mostraremos em primeirolugar que a referida posição vai contra as suas palavras eos seus ensinamentos5.

[3] Tomemos, então, a primeira definição da alma dadapor Aristóteles no livro II sobre A Alma, onde afirma queela é “o ato primeiro de um corpo natural organizado”6. E

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diceret hanc definitionem non omni animaecompetere, propter hoc quod supra subconditione dixerat: si oportet aliquidcommune in omni anima dicere, quodintelligunt sic dictum quasi hoc esse nonpossit, accipienda sunt verba eius sequentia.Dicit enim: universaliter quidem dictum estquid sit anima; substantia enim est quae estsecundum rationem; hoc autem est quodquid erat esse huius corporis, i. e. formasubstantialis corporis physici organici.

Et ne forte dicatur ab hac universalitatepartem intellectivam excludi, hoc removeturper id quod postea dicit: quod quidem igiturnon sit anima separabilis a corpore, autpartes quaedam ipsius si partibilis apta nataest, non immanifestum est; quarumdamenim partium actus est ipsarum. At verosecundum quasdam nihil prohibet, propterid quod nullius corporis sunt actus. Quodnon potest intelligi nisi de his quae adpartem intellectivam pertinent, putaintellectus et voluntas. Ex quo manifesteostenditur illius animae, quam suprauniversaliter definiverat Aristoteles dicenseam esse corporis actum, quasdam partesesse quae sunt quarumdam partium corporisactus, quasdam autem nullius corporis actusesse. Aliud enim est animam esse actumcorporis, et aliud partem eius esse corporisactum, ut infra manifestabitur.Unde et in hoc eodem capitulo manifestatanimam esse actum corporis per hoc quodaliquae partes eius sunt corporis actus, cumdicit: considerare oportet in partibus quoddictum est, scil. in toto.

Adhuc autem manifestius apparet exsequentibus quod sub hac generalitatedefinitionis etiam intellectus includitur (perea quae sequuntur). Nam cum satisprobaverit animam esse actum corporis,quia separata anima non est vivens in actu,quia tamen aliquid potest dici actu tale adpraesentiam alicuius, non solum si sit formased etiam si sit motor, sicut combustibile adpraesentiam comburentis actu comburitur, etquodlibet mobile ad praesentiam moventisactu movetur; posset alicui venire in dubiumutrum corpus sic vivat actu ad praesentiamanimae, sicut mobile movetur actu adpraesentiam motoris, an sicut materia est inactu ad praesentiam formae; et praecipuequia Plato posuit animam non uniri corporiut formam, sed magis ut motorem etrectorem, ut patet per Plotinum etGregorium Nyssenum, (quos ideo inducoquia non fuerunt Latini sed Graeci). Hancigitur dubitationem insinuat philosophus

para que ninguém diga que esta definição não se aplica àalma toda, porque Aristóteles havia dito, no condicional,“se tivermos de afirmar qualquer coisa de comum à almatoda”, - que eles interpretam, justamente, como se nãopudesse ser o caso7 -, consideremos as palavras que seseguem no texto. Ei-las: “Dissemos, de fato, em sentidouniversal, o que a alma era: uma substância segundo aforma8, isto é, a quididade de cada corpo”, ou de outramaneira: a forma substancial de um corpo naturalorganizado9.

[4] E não se diga que se exclui a parte intelectiva dessauniversalidade10, o que Aristóteles refuta no que diz aseguir: “Que, portanto, a alma não é separável do corpo,ou, dado que ela é naturalmente divisível, ao menosalgumas das suas partes, eis o que é evidente, pois o ato decertas partes da alma é o ato de algumas partes do corpo.Já relativamente a outras partes nada impede a separação,porque não são ato de nenhum corpo.”11 Isto só pode serinterpretado como dizendo respeito à parte intelectiva, asaber, intelecto e vontade. Daqui ressalta com evidênciaque certas partes desta alma, que antes definirauniversalmente designando-a como ato de um corpo, sãoato de partes precisas do corpo, enquanto que outras nãosão ato de nenhum corpo. Porque, como mais adiante severá12, não é a mesma coisa a alma ser ato de um corpo euma das suas partes ser ato de um corpo. Por conseguinte,neste mesmo capítulo, Aristóteles prova que a alma é o atode um corpo, porque algumas das suas partes são ato deum corpo, quando diz: “É preciso estender”, ao todo,entenda-se, “o que se disse acerca das partes”.13

[5] Mas, no que vem a seguir, ainda é mais evidente queele inclui o intelecto também sob essa definição geral,sobretudo havendo suficientemente provado que a alma éo ato de um corpo, portanto, que a alma separada não viveem ato. Todavia, como se pode dizer que uma coisa viveem ato graças à presença de uma outra, não apenas se for asua forma, mas também o seu motor - tal como acombustão em ato de um combustível na presença de umcomburente e o movimento em ato de qualquer móvel napresença de um motor -, alguém podia duvidar se, estandoa alma presente, um corpo vive em ato, como o móvel semove em ato na presença de um motor ou como umamatéria está em ato na presença de uma forma. E,principalmente, porque Platão defendeu que a alma não seune ao corpo como uma forma, mas mais como um motorou um piloto, como é evidente por Plotino e Gregório deNissa, que menciono porque não foram Latinos masGregos14. O Filósofo insinua esta dúvida quando

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cum post praemissa subiungit: ampliusautem immanifestum si sit corporis actusanima sicut nauta navis. Quia igitur postpraemissa adhuc hoc dubium remanebat,concludit: figuraliter quidem igitur sicdeterminetur et describatur de anima, quiascil. nondum ad liquidum demonstraveratveritatem.

Ad hanc igitur dubitationem tollendam,consequenter procedit ad manifestandum idquod est secundum se et secundum rationemcertius, per ea quae sunt minus certasecundum se sed magis certa quoad nos, i. e.per effectus animae, qui sunt actus ipsius.Unde statim distinguit opera animae, dicensquod animatum distinguitur ab inanimato invivendo, et quod multa sunt quae pertinentad vitam, scil. intellectus, sensus, motus etstatus secundum locum, et motus nutrimentiet augmenti, ita quod cuicumque inestaliquid horum, dicitur vivere. Et ostensoquomodo ista se habeant ad invicem, i. e.qualiter unum sine altero horum possit esse,concludit in hoc quod anima sit omniumpraedictorum principium, et quod animadeterminatur, sicut per suas partes,vegetativo, sensitivo, intellectivo, motu, etquod haec omnia contingit in uno et eodeminveniri, sicut in homine.

Et Plato posuit diversas esse animas inhomine, secundum quas diversaeoperationes vitae ei conveniant.Consequenter movet dubitationem: utrumunumquodque horum sit anima per se, velsit aliqua pars animae; et si sint partesunius animae, utrum differant solumsecundum rationem, aut etiam differantloco, i. e. organo. Et subiungit quod dequibusdam non difficile hoc videtur, sedquaedam sunt quae dubitationem habent.Ostendit enim consequenter quodmanifestum est de his quae pertinent adanimam vegetabilem, et de his quaepertinent ad animam sensibilem, per hocquod plantae et animalia quaedam decisavivunt, et in qualibet parte omnesoperationes animae, quae sunt in toto,apparent. Sed de quibus dubitationemhabeat, ostendit subdens quod de intellectuet perspectiva potentia nihil adhucmanifestum est. Quod non dicit volensostendere quod intellectus non sit anima, utCommentator perverse exponit et sectatoresipsius; manifeste enim hic respondet ad idquod supra dixerat: quaedam enimdubitationem habent. Unde intelligendumest: nihil adhuc manifestum est, anintellectus sit anima vel pars animae; et si

acrescenta, a seguir ao que disse: “Também não se vê se aalma é ato do corpo, como o timoneiro, do navio.15“ Eporque a dúvida persiste depois do que disse, conclui “queé figurativamente que se determina e se descreve assim aalma”16, pois ainda não era líquido ter demonstrado averdade17.

[6] A fim de tirar a dúvida, avança a seguir para ademonstração do que é mais certo em si e segundo oconceito com base naquilo que é menos certo em simesmo, mas é mais certo para nós18, ou seja, a partir dosefeitos da alma, que são os seus próprios atos. Para tal,distingue imediatamente as operações da alma, dizendoque “o animado distingue-se do inanimado pela vida” eque são muitas as operações que dizem respeito à vida,como por exemplo, “a intelecção, a sensação, omovimento local e o repouso” bem como o movimentonutritivo e de crescimento19, de maneira que diz-se quevive tudo aquilo que possui uma destas operações da alma.Depois, mostradas as suas relações mútuas, ou seja, comoé que uma pode existir sem a outra, conclui com isto que aalma é o princípio de todas as operações e que “édeterminada por elas, como pelas suas partes, que são asfaculdades vegetativa, sensitiva, intelectiva e omovimento”20, mas que todas elas se encontram num sóindivíduo, o homem21.

[7] Platão defendeu também a existência de diversas almasno homem em conformidade com a diversidade dasoperações da vida que o integram22. Por esta razão,Aristóteles levanta a seguinte dúvida: “cada uma dessasfaculdades é a alma” em si mesma ou uma parte da alma?E no caso de serem partes de uma mesma alma, elasdiferem segundo o conceito ou também pelo lugar” 23, querdizer, pelo órgão? Acrescenta que “em relação a algumasnão há dificuldade, mas em relação a outras há lugar paradúvida”24. Prova de imediato que é de fato claro, quanto aoque diz respeito à alma vegetativa e à alma sensitiva, dadoque certas plantas e animais, mesmo quando seccionados,continuam a viver, pelo que todas as operações da almaque se dão no todo realizam-se numa qualquer das partes.Mas relativamente às que dão lugar a dúvidas, mostra,acrescentando, que “acerca do intelecto e da potênciateorética, nada é ainda evidente”25. Aristóteles não diz istoquerendo mostrar que o intelecto não é alma, conforme oComentador e seus sequazes explicam de uma maneiraequivocada, porque é evidente que ele aqui está aresponder ao que havia dito antes, “que relativamente aalgumas há lugar para dúvida”. Daí dever entender-se:nada disto é ainda evidente, se o intelecto é alma ou se é

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pars animae, utrum separata loco, velratione tantum.

Et quamvis dicat hoc adhuc non essemanifestum, tamen quid circa hoc primafronte appareat manifestat subdens: sedvidetur genus alterum animae esse. Quodnon est intelligendum, sicut Commentator etsectatores eius perverse exponunt, ideodictum esse quia intellectus aequivocedicatur anima, vel quod praedicta definitiosibi aptari non possit; sed qualiter sit hocintelligendum apparet ex eo quod subditur:et hoc solum contingere separari sicutperpetuum a corruptibili. In hoc ergo estalterum genus, quia intellectus videtur essequoddam perpetuum, aliae autem partesanimae corruptibiles. Et quia corruptibile etperpetuum non videntur in unamsubstantiam convenire posse, videtur quodhoc solum de partibus animae, scil.intellectus, contingat separari, non quidem acorpore, ut Commentator perverse exponit,sed ab aliis partibus animae, ne in unamsubstantiam animae conveniant.

Et quod sic sit intelligendum patet ex eoquod subditur: reliquae autem partesanimae manifestum est ex his quod nonseparabiles sunt, scil., substantia animae velloco. De hoc enim supra quaesitum est, ethoc ex supradictis probatum est. Et quodnon intelligatur de separabilitate a corpore,sed de separabilitate potentiarum abinvicem, patet per hoc quod subditur:ratione autem quod alterae, scil. sunt adinvicem manifestum. Sensitivo enim esse etopinativo alterum. Et sic manifeste quod hicdeterminatur, respondet quaestioni supramotae. Supra enim quaesitum est, utrum unapars animae ab alia separata sit rationesolum, aut etiam loco. Hic dimissaquaestione illa quantum ad intellectum, dequo nihil hic determinat, de aliis partibusanimae dicit manifestum esse quod non suntseparabiles, scil. loco, sed sunt alteraeratione.

Hoc ergo habito quod anima determinaturvegetativo, sensitivo, intellectivo et motu,vult ostendere consequenter quod quantumad omnes istas partes anima unitur corporinon sicut nauta navi, sed sicut forma. Et siccertificatum erit quid sit anima in communi,quod supra figuraliter tantum dictum est.

uma parte da alma, e se for uma parte da alma, se estáseparada localmente ou apenas conceitualmente26.

[8] E mesmo dizendo que ‘nada é ainda evidente’, nãodeixa de manifestar a primeira hipótese que vem à cabeça,acrescentando: “mas parece que é um outro gênero dealma”27. Esta afirmação não deve ser interpretada tal comoo Comentador e os seus sequazes a explicam, de umamaneira ruim28, que Aristóteles a fez porque éequivocamente que se chama alma ao intelecto ou porquenão se lhe pode aplicar a definição referida. A maneiracomo devemos interpretá-la vem logo a seguir: “e só istopode ser separado, como o eterno do corruptível.”29 Énisto, portanto, que consiste o ‘outro gênero’, em parecerque o intelecto é algo de eterno enquanto que as outraspartes da alma são corruptíveis. E uma vez que ocorruptível e o eterno não parecem ser compatíveis numasubstância, parece que, entre todas as partes da alma, só ointelecto é que pode ser separado, não do corpo,evidentemente, tal como de maneira ruim o Comentadorexplica, mas das outras partes da alma, de forma que nãose acham numa só substância da alma30.

[9] Torna-se evidente que é assim que se deve entender, apartir do que acrescenta: “Daí ser claro, em relação àsoutras partes da alma, que elas não são separáveis”31, querdizer, segundo a substância da alma ou localmente.Já atrás o tínhamos averiguado, e o que então dissemoschega para provar. Que [Aristóteles] não está pensando naseparabilidade em relação ao corpo, mas da mútuaseparabilidade das potências, o que se torna evidente peloque segue: “é claro que se distinguem conceitualmente”,ou seja, umas em relação às outras, “o ato de sentir édiferente do de opinar”32. E, assim, é evidente que aquiloque aqui determina responde à pergunta feita acima33.Com efeito, tinha-se perguntado se uma parte da alma sesepara de outra apenas conceitualmente ou tambémsegundo o lugar. Pondo de parte aqui esta questão relativaao intelecto, sobre o qual agora nada determina,relativamente às outras partes da alma [Aristóteles] dizcom clareza que não são separáveis segundo o lugar, masque o são conceitualmente34.

[10] Portanto, posto isto, a saber, que a alma édeterminada pela atividade vegetativa, sensitiva,intelectiva e pelo movimento, pretende mostrar emseguida que em todas estas partes a alma não se une aocorpo como o timoneiro ao navio, mas como uma forma.Deste modo certificar-se-á o que é a alma em geral, o queantes havia sido dito apenas figurativamente. Prova-o com

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Hoc autem probat per operationes animaesic. Manifestum est enim quod illud quoprimo aliquid operatur est forma operantis,sicut dicimur scire anima, et scire scientia,per prius autem scientia quam anima, quiaper animam non scimus nisi in quantumhabet scientiam; et similiter sanari dicimuret corpore et sanitate, sed prius sanitate. Etsic patet scientiam esse formam animae, etsanitatem corporis.

Ex hoc procedit sic: anima est primum quo

vivimus (quod dicit propter vegetativum),

quo sentimus (propter sensitivum), et

movemur (propter motivum), et intelligimus

(propter intellectivum); et concludit: quare

ratio quaedam utique erit et species, sed

non ut materia et ut subiectum. Manifeste

ergo quod supra dixerat, animam esse actum

corporis physici, hic concludit non solum de

vegetativo, sensitivo et motivo, sed etiam de

intellectivo. Fuit ergo sententia Aristotelis

quod id quo intelligimus sit forma corporis

physici. Sed ne aliquis dicat, quod id quo

intelligimus non dicit hic intellectum

possibilem, sed aliquid aliud, manifeste hoc

excluditur per id quod Aristoteles in tertio

de anima dicit, de intellectu possibili

loquens: dico autem intellectum, quo

opinatur et intelligit anima.

Sed antequam ad verba Aristotelis quae suntin tertio de anima accedamus, adhucamplius circa verba ipsius in secundo deanima immoremur, ut ex collationeverborum eius ad invicem appareat quaefuerit eius sententia de anima. Cum enimanimam in communi definivisset, incipitdistinguere potentias eius; et dicit quodpotentiae animae sunt vegetativum,sensitivum, appetitivum, motivum secundumlocum, intellectivum. Et quod intellectivumsit intellectus, patet per id quod posteasubdit, divisionem explanans: alteris autemintellectivum et intellectus, ut hominibus.Vult ergo quod intellectus sit potentiaanimae, quae est actus corporis.

Et quod huius animae potentiam dixeritintellectum, et iterum quod supra positadefinitio animae sit omnibus praedictis

as operações da alma, assim: é, na verdade, evidente queaquilo que opera alguma coisa é em sentido primordial aforma do operador, como quando se diz que é pela almaque se conhece e que é pela ciência que se conhece, maspela ciência primeiro do que pela alma, porque pela almasó conhecemos o que esta possui por ciência; de igualmodo, dizemos que estamos saudáveis pelo corpo e pelasaúde, mas primeiro pela saúde35. Desta maneira se tornaevidente que a ciência é a forma da alma e que a saúde é [aforma] do corpo36.

[11] A partir daqui acrescenta37: “a alma é em sentidoprimordial aquilo pelo qual vivemos”, que é dito por causada faculdade vegetativa, “pelo qual sentimos”, por causada sensitiva, “pelo qual nos movemos”, por causa da[faculdade] motora, “e pelo qual pensamos”, por causa da[faculdade] intelectiva. E conclui: “Por esta razão ela seránoção e forma, mas não como uma matéria e umsujeito.38“ Portanto, é evidente que o que disse antes39 - aalma é o ato de um corpo natural - se conclui aqui, não sóem relação à faculdade sensitiva, vegetativa e motora, mastambém à intelectiva. A doutrina de Aristóteles foi,portanto, que aquilo pelo qual pensamos é a forma de umcorpo natural40.Mas para que ninguém diga que aqui [Aristóteles] nãoafirma que aquilo pelo qual pensamos é o intelectopossível, mas outra coisa qualquer, excluímosmanifestamente essa hipótese atendendo ao que diz nolivro III sobre A Alma, falando acerca do intelectopossível: “Chamo, então, intelecto àquilo pelo qual a almaopina e pensa.”41

[12] Mas antes de passarmos às afirmações de Aristótelesno livro III sobre A Alma, detenhamo-nos ainda um pouconaquilo que ele diz no livro II, a fim de que pelacomparação das suas palavras se veja qual foiefetivamente a sua doutrina acerca da alma. Para dar umadefinição geral da alma, começou por distinguir as suaspotências e disse que “as potências da alma eram avegetativa, a sensitiva, a apetitiva, a do movimento local ea intelectiva”42. Que a [faculdade] intelectiva é o intelectoé o que se evidencia por aquilo que diz a seguir,explicando a divisão: “Outros, como os homens, possuema faculdade intelectiva e o intelecto”43. Pretende, por isso,que o intelecto é a potência da alma que é o ato de umcorpo44.

[13] E que deu o nome de intelecto à potência desta alma,e que além disso a definição da alma anteriormente dada écomum a todas as potências referidas, torna-se claro por

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partibus communis, patet per id quodconcludit: manifestum igitur est quoniameodem modo una utique erit ratio animae etfigurae: neque enim ibi figura est praetertriangulum et quae consequenter sunt;neque hic anima praeter praedictas est. Nonest ergo quaerenda alia anima praeterpraedictas, quibus communis est animaedefinitio supra posita. Neque plus deintellectu mentionem facit Aristoteles in hocsecundo, nisi quod postmodum subdit, quodultimum et minimum (dicit esse)ratiocinationem et intellectum, quia scil. inpaucioribus est, ut per sequentia apparet.

Sed quia magna differentia est, quantum admodum operandi, inter intellectum etimaginationem, subdit quod de speculativointellectu altera ratio est. Reservat enim hocinquirendum usque ad tertium. Et ne quisdicat, sicut Averroes perverse exponit quodideo dicit Aristoteles, quod de intellectuspeculativo est alia ratio, quia intellectusneque est anima, neque pars animae; statimhoc excludit in principio tertii, ubi resumitde intellectu tractatum. Dicit enim: de parteautem animae, qua cognoscit anima et sapit.Nec debet aliquis dicere, quod hoc dicatursolum secundum quod intellectus possibilisdividitur contra agentem, sicut aliquisomniant. Hoc enim dictum est antequamAristoteles probet esse intellectumpossibilem et agentem; unde intellectumdicit hic partem in communi, secundumquod continet et agentem et possibilem,sicut supra in secundo manifeste distinxitintellectum contra alias partes animae, utiam dictum est.

Est autem consideranda mirabilis diligentiaet ordo in processu Aristotelis. Ab his enimincipit in tertio tractare de intellectu quae insecundo reliquerat indeterminata. Duoautem supra reliquerat indeterminata circaintellectum. Primo quidem, utrumintellectus ab aliis partibus animae separeturratione solum, aut etiam loco: quod quidemindeterminatum dimisit cum dixit: deintellectu autem et perspectiva potentia nihiladhuc manifestum est. Et hanc quaestionemprimo resumit, cum dicit: sive separabiliexistente (scil. ab aliis animae partibus), sivenon separabili secundum magnitudinem, sedsecundum rationem. Pro eodem enim accipithic separabile secundum magnitudinem, proquo supra dixerat separabile loco.

isto que conclui: “É evidente, pois, que só há uma noçãode alma, de maneira igual à de figura, porque tal como nãohá figura fora do triângulo e das figuras consecutivasassim também, neste caso, não há alma além dasreferidas.”45 Não é preciso, portanto, procurar maisnenhuma alma para além das já referidas as quais têm emcomum a definição supracitada de alma. Aristóteles nãomenciona mais o intelecto neste livro II, exceto quandoum pouco mais adiante acrescenta: “Em último lugar e emmenor número”, diz, “dá-se o raciocínio e o intelecto”, porque existe em poucos46, conforme se vê pelo que vem aseguir.

[14] Mas dado haver uma grande diferença no modo defuncionamento do intelecto e da imaginação, acrescentaque “no que toca ao intelecto especulativo, a questão éoutra”47. Ele reserva, realmente, o exame dessa questãopara o livro III. E para que ninguém diga, à semelhança daexplicação ruim de Averróis, que Aristóteles afirma que éuma outra questão quanto ao intelecto especulativo,porque o intelecto não é “nem uma alma nem uma parte daalma”48, exclui isso imediatamente no princípio do livroIII, onde resume o que havia tratado acerca do intelecto, ese lê: “Ora, sobre a parte da alma pela qual esta conhece esabe”49. Não se deve dizer que afirma isto apenas namedida em que o intelecto possível se distingue do[intelecto] agente, como alguns chegaram a sonhar50; naverdade, a frase surge antes de Aristóteles provar que háum intelecto possível e um [intelecto] agente. Daí que elechame intelecto à parte que integra em comum o intelectoagente e o possível, tal como acima, no [livro] II, tinhaclaramente distinguido o intelecto das outras partes daalma, conforme dissemos.

[15] Convém considerar a admirável diligência e a ordemdo procedimento de Aristóteles. Com efeito, começa, nolivro III, a tratar daquelas questões sobre o intelecto quetinha deixado por resolver no livro II. Ora, relativamenteao intelecto, tinha deixado duas questões por resolver. Aprimeira, se o intelecto se separava das outras partes daalma apenas conceitualmente ou também localmente, quedeixou por resolver quando diz: “acerca do intelecto e dapotência teorética, nada é ainda evidente.”51 É esta questãoque retoma primeiro, quando diz: “Existindo separada”,quer dizer, das outras partes da alma, “ou não existindoseparada segundo a grandeza, mas apenasconceitualmente”. De fato, toma aqui a separabilidadesegundo a grandeza com o mesmo sentido em que antesdissera “segundo o local”52.

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Secundo, indeterminatum reliquerat dedifferentia intellectus ad alias animae partes,cum postmodum dixit: de speculativo autemintellectu altera ratio est. Et hoc statimquaerit, cum dicit: considerandum quamhabet differentiam. Hanc autem differentiamtalem intendit assignare, quae possit starecum utroque praemissorum, scil. sive sitseparabilis anima magnitudine seu loco abaliis partibus, sive non: quod ipse modusloquendi satis indicat. Considerandum enimdicit, quam habet intellectus differentiam adalias animae partes, sive sit separabilis abeis magnitudine seu loco, i. e. subiecto, sivenon, sed secundum rationem tantum. Undemanifestum est quod non intendit hancdifferentiam ostendere, quod sit substantia acorpore separata secundum esse (hoc enimnon posset salvari cum utroquepraedictorum); sed intendit assignaredifferentiam quantum ad modum operandi;unde subdit: et quomodo sit quidem ipsumintelligere.Sic igitur per ea quae ex verbis Aristotelisaccipere possumus usque huc, manifestumest quod ipse voluit intellectum esse partemanimae quae est actus corporis physici.

Sed quia ex quibusdam verbisconsequentibus, Averroistae accipere voluntintentionem Aristotelis fuisse, quodintellectus non sit anima quae est actuscorporis, aut pars talis animae, ideo etiamdiligentius eius verba sequentiaconsideranda sunt. Statim igitur postquaestionem motam de differentiaintellectus et sensus, inquirit secundum quidintellectus sit similis sensui, et secundumquid ab eo differat. Duo enim supra de sensudeterminaverat, scil. quod sensus est inpotentia ad sensibilia, et quod sensus patituret corrumpitur ab excellentiis sensibilium.Hoc ergo est quod quaerit Aristotelesdicens: si igitur est intelligere sicut sentire,aut pati aliquid utique erit ab intelligibili, utscil. sic corrumpatur intellectus ab excellentiintelligibili, sicut sensus ab excellentisensibili, aut aliquid huiusmodi alterum; i.e. aut intelligere est aliquid huiusmodisimile, scil. ei quod est sentire, alterumtamen quantum ad hoc quod non sitpassibile.

Huic igitur quaestioni statim respondet etconcludit, non ex praecedentibus, sed exsequentibus, quae tamen ex praecedentibusmanifestantur, quod hanc partem animaeoportet esse impassibilem, ut noncorrumpatur sicut sensus; (est tamenquaedam alia passio eius, secundum quod

[16] Em segundo lugar tinha deixado por resolver aquestão da diferença entre o intelecto e as outras partes daalma, ao afirmar, pouco depois: “no que diz respeito aointelecto especulativo, a questão é outra”53. Eimediatamente passa a esta questão, quando diz: “Temosde considerar, pois, que diferença existe”54. Ora, ele querrepartir esta diferença de maneira a poder compatibilizá-lacom ambos os pressupostos, a saber, se a alma é separáveldas outras partes segundo a grandeza ou o local ou não o é,aspecto que o modo de falar indica bem. Diz, com efeito,que tem de considerar-se a diferença entre o intelecto e asoutras partes da alma, se se separa delas segundo agrandeza ou o local, isto é, segundo o sujeito, ou se não éassim, mas apenas conceitualmente. Portanto, é evidenteque ele não pretende mostrar esta diferença nos termos deuma substância existindo separada do corpo, pois isso nãoseria compatível com ambos os pressupostos. Outrossim,quer admitir a diferença no modo de operar, pelo queacrescenta: “E como acontece a própria intelecção”55.Assim, pois, por aquilo que até agora podemos interpretardas palavras de Aristóteles, é evidente que concebeu ointelecto como uma parte da alma que é o ato de um corponatural.

[17] Porém, como os averroístas pretendem interpretaralgumas passagens a seguir como se a tese de Aristótelesfosse a de que o intelecto nem é uma alma que é ato de umcorpo nem uma parte dessa alma, é preciso examinar comcuidado essas passagens seguintes. Imediatamente apóslevantar a questão sobre a diferença entre o intelecto e ossentidos, pergunta em que é que o intelecto é semelhanteaos sentidos e em que é que difere. De fato, ele haviadeterminado duas coisas acerca dos sentidos, a saber, queum sentido está em potência para os sensíveis e quepadece e se corrompe com um excesso de sensíveis56. Éisto precisamente que Aristóteles busca ao dizer: “Seportanto pensar é como sentir, ou consistirá em padeceralgo sob a ação do inteligível”, corrompendo-se assim ointelecto pelo excesso de inteligíveis, tal como os sentidospelo excesso de sensíveis, “ ou num outro processo algoparecido”57. Quer dizer: ou pensar é ‘algo parecido’,semelhante à sensação, sendo porém um outro processo’,pelo fato de não ser passível.

[18] Responde imediatamente a esta questão e conclui, nãoa partir do que disse antes mas do que vem a seguir, quealiás decorre claramente do que disse antes, que “convémque” esta parte da alma “seja impassível” para não secorromper como os sentidos; é todavia uma paixãodiferente daquela em que de uma maneira geral se diz que

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intelligere communi modo pati dicitur). Inhoc ergo differt a sensu. Sed consequenterostendit in quo cum sensu conveniat, quiascilicet oportet huiusmodi partem essesusceptivam speciei intelligibilis, et quod sitin potentia ad huiusmodi speciem, et quodnon sit hoc in actu secundum suam naturam;sicut et de sensu supra dictum est, quod estin potentia ad sensibilia et non in actu. Et exhoc concludit, quod oportet sic se haberesicut sensitivum ad sensibilia sic intellectumad intelligibilia.

Hoc autem induxit ad excludendumopinionem Empedoclis et aliorumantiquorum, qui posuerunt quod cognoscensest de natura cogniti, utpote quod terramterra cognoscimus, aquam aqua. Aristotelesautem supra ostendit hoc non esse verum insensu, quia sensitivum non est actu, sedpotentia, ea quae sentit; et idem hic dicit deintellectu.

Est autem differentia inter sensum etintellectum, quia sensus non estcognoscitivus omnium, sed visus colorumtantum, auditus sonorum, et sic de aliis;intellectus autem est simpliciter omniumcognoscitivus. Dicebant autem antiquiphilosophi, existimantes quod cognoscensdebet habere naturam cogniti, quod animam,ad hoc quod cognoscat omnia, necesse estex principiis omnium esse commixtam.Quia vero Aristoteles iam probavit deintellectu, per similitudinem sensus, quodnon est actu id quod cognoscit sed inpotentia tantum, concludit e contrario, quodnecesse est intellectum, quia cognoscitomnia, quod sit immixtus, i. e. noncompositus ex omnibus, sicut Empedoclesponebat.

Et ad hoc inducit testimonium Anaxagorae,non tamen de hoc eodem intellectuloquentis, sed de intellectu qui movetomnia. Sicut ergo Anaxagoras dixit illumintellectum esse immixtum, ut imperetmovendo et segregando, hoc nos possumusdicere de intellectu humano, quod oporteteum esse immixtum ad hoc ut cognoscatomnia; et hoc probat consequenter, ethabetur sic sequens littera in Graeco: intusapparens enim prohibebit extraneum etobstruet. Quod potest intelligi ex simili invisu: si enim esset aliquis color intrinsecuspupillae, ille color interior prohiberet videriextraneum colorem, et quodammodoobstrueret oculum ne alia videret. Similiter,si aliqua natura rerum, quas intellectuscognoscit, puta terra aut aqua, calidum aut

pensar consiste em padecer. Nisso é que é diferente dossentidos. Mas, de seguida, mostra como é parecida com ossentidos: é preciso que uma parte assim seja “susceptívelde receber a forma” inteligível e que esteja em potênciapara essa forma sem estar em ato segundo a sua natureza,como se disse acima em relação aos sentidos, os quaisestão em potência para os sensíveis, e não em ato. E daíconclui ser preciso que “o intelecto esteja para osinteligíveis tal como a [faculdade] sensitiva está para ossensíveis”58.

[19] Aduz isto para excluir a opinião de Empédocles e deoutros autores antigos que defenderam que aquilo queconhece tem a mesma natureza do conhecido, poisconhecemos a terra com a terra e a água com a água59.Mas Aristóteles mostrara antes que isso não era verdadeem relação ao sentido, pois a [faculdade] sensitiva não éem ato aquilo que sente, mas é-o em potência60, e aqui diza mesma coisa sobre o intelecto.

[20] Há, porém, uma diferença entre os sentidos e ointelecto, é que os sentidos não têm capacidade paraconhecer tudo, mas a vista conhece apenas as cores, oouvido, os sons, e assim sucessivamente61. Já o intelecto éabsolutamente capaz de conhecer tudo. Julgando queaquilo que conhece deve ter a natureza do conhecido, osantigos filósofos diziam que para que a alma conheça tudoé preciso que seja composta dos princípios de todas ascoisas62. Mas dado que Aristóteles já tinha provado que ointelecto, à semelhança dos sentidos, não é em ato, mas éapenas em potência, aquilo que conhece, conclui aocontrário: “é necessário que o intelecto, visto que conhecetudo, seja sem mistura”63 isto é, não composto de todas ascoisas, contrariamente ao que Empédocles sustentava.

[21] E para o confirmar aduz o testemunho deAnaxágoras, ainda que este não se tenha pronunciadosobre o mesmo intelecto, mas sobre o intelecto que movetodas as coisas. Tal como Anaxágoras diz que esseintelecto é sem mistura para poder mover e separar,também podemos dizer do intelecto humano que ele deveser sem mistura para que possa conhecer todas as coisas.Prova-o, em seguida, tendo assim em grego o textoseguinte: “o que aparece no interior impede e obstrui o queestá fora”64, o que se pode compreender comparando coma vista: se, de fato, houvesse uma cor no interior da pupilaessa cor impediria que se visse uma cor exterior e, de umacerta maneira, obstruiria a vista para que não visse asoutras. De igual modo, se alguma natureza das coisas queo intelecto conhece, como por exemplo a terra ou a água,

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frigidum, aut aliquid huiusmodi, essetintrinseca intellectui, illa natura intrinsecaimpediret ipsum et quodammodo obstrueret,ne alia cognosceret.

Quia ergo omnia cognoscit, concludit quodnon contingit ipsum habere aliquam naturamdeterminatam ex naturis sensibilibus quascognoscit; sed hanc solam naturam habetquod sit possibilis, i. e. in potentia ad eaquae intelligit, quantum est ex sua natura;sed fit actu illa dum ea intelligit in actu,sicut sensus in actu fit sensibile in actu, utsupra in secundo dixerat. Concludit ergoquod intellectus antequam intelligat in actunihil est actu eorum quae sunt; quod estcontrarium his quae antiqui dicebant, scil.quod est actu omnia.

Et quia fecerat mentionem de dictoAnaxagorae loquentis de intellectu quiimperat omnibus, ne crederetur de illointellectu hoc conclusisse, utitur tali modoloquendi: vocatus itaque animae intellectusdico autem intellectum quo opinatur etintelligit anima nihil est actu et cetera. Exquo duo apparent: primo quidem, quod nonloquitur hic de intellectu qui sit aliquasubstantia separata, sed de intellectu quemsupra dixit potentiam et partem animae, quoanima intelligit; secundo, quod per supradicta probavit, scil. quod intellectus nonhabet naturam in actu. Nondum autemprobavit quod non sit virtus in corpore, utAverroes dicit; sed hoc statim concludit expraemissis; nam sequitur: unde nequemisceri est rationabile ipsum corpori.

Et hoc secundum probat per primum quodsupra probavit, scil. quod intellectus nonhabet aliquam in actu de naturis rerumsensibilium. Ex quo patet quod non misceturcorpori: quia si misceretur corpori, haberetaliquam de naturis corporeis; et hoc est quodsubdit: qualis enim utique aliquis fiet, autcalidus aut frigidus, si organum aliquod eritsicut sensitivo. Sensus enim proportionatursuo organo et trahitur quodammodo ad suamnaturam; unde etiam secundumimmutationem organi immutatur operatiosensus. Sic ergo intelligitur illud non miscericorpori, quia non habet organum sicutsensus. Et quod intellectus animae non habetorganum, manifestat per dictum quorundam

ou o quente ou o frio, ou outras do gênero, estivesse nointerior do intelecto, essa natureza interna impedi-lo-ia deconhecer as outras e de alguma forma obstrui-lo-ía65.

[22] Uma vez, portanto, que conhece tudo, Aristótelesconclui que o intelecto não pode ter nenhuma naturezadeterminada das naturezas sensíveis que conhece, “mas sóa natureza de ser possível66”, ou seja, que, pela suanatureza, está em potência para o que pensa. Ora, ointelecto atualiza-se no que pensa, no momento em que opensa em ato, tal como o sentido se atualiza no sensívelem ato, conforme tinha dito atrás no livro II. Conclui,então, que antes de pensar em ato, o intelecto “não é emato nenhuma das coisas que existem”67, o que vai contra oque os Antigos diziam, ou seja, que o intelecto é todas ascoisas em ato.

[23] E dado que mencionou o dito de Anaxágoras relativoao intelecto que governa todas as coisas, a fim de que senão creia que a sua conclusão diz respeito a esse intelecto,Aristóteles empregou a seguinte maneira de falar: “Porisso a parte da alma a que se dá o nome de intelecto, echamo intelecto àquilo pelo qual a alma opina e pensa, nãoé nada em ato”, etc68. Daqui resultam duas coisas69: aprimeira, que não está a falar de um intelecto que seriauma substância separada, mas do intelecto que já tinhadito antes estar em potência, e que era uma parte da alma,pela qual pensa; a segunda, que, na sequência do que disseantes, provou que o intelecto não tem uma natureza emato. Contudo, ainda não provou que não é uma faculdadeque exista no corpo, como Averróis diz70. Conclui-oporém logo a seguir, na sequência do que disse, posto quecontinua: “Assim sendo, não é razoável que o intelecto semisture com o corpo.”71

[24] E prova este segundo ponto com o primeiro que tinhaanteriormente provado, ou seja, que o intelecto não temem ato nenhuma das naturezas das coisas sensíveis. Daquitornar-se claro que não se mistura com o corpo, porque sese misturasse com o corpo teria alguma das naturezascorpóreas. E é o que acrescenta: “Tornar-se-ia assim umadeterminada qualidade, ou quente ou frio, se tivesse algumórgão, como a [faculdade] sensitiva.”72 Na verdade, umsentido é proporcionado ao seu órgão e de uma certamaneira é determinado pela sua natureza; daí que aoperação dos sentidos varie em conformidade com amodificação dos órgãos. É assim, portanto, que se deveinterpretar a afirmação “não se mistura com o corpo”:porque não possui órgão como os sentidos. E que ointelecto da alma não tem órgão, mostra-o mediante a

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qui dixerunt quod anima est locusspecierum, large accipientes locum proomni receptivo, more Platonico; nisi quodesse locum specierum non convenit totianimae, sed solum intellectivae. Sensitivaenim pars non recipit in se species, sed inorgano; pars autem intellectiva non recipiteas in organo, sed in se ipsa; item non sic estlocus specierum quod habeat eas in actu, sedin potentia tantum.

Quia ergo iam ostendit quid conveniatintellectui ex similitudine sensus, redit adprimum quod dixerat, quod oportet partemintellectivam esse impassibilem, et sicadmirabili subtilitate ex ipsa similitudinesensus, concludit dissimilitudinem. Ostenditergo consequenter quod non similiter sitimpassibilis sensus et intellectus, per hocquod sensus corrumpitur ab excellentisensibili, non autem intellectus ab excellentiintelligibili. Et huius causam assignat exsupra probatis, quia sensitivum non est sinecorpore, sed intellectus est separatus.

Hoc autem ultimum verbum maximeassumunt ad sui erroris fulcimentum,volentes per hoc habere quod intellectusneque sit anima neque pars animae, sedquaedam substantia separata. Sed citoobliviscuntur eius quod paulo supraAristoteles dixit. Sic enim hic dicitur quodsensitivum non est sine corpore etintellectus est separatus, sicut supra dixitquod intellectus fieret qualis, aut calidus autfrigidus, si aliquod organum erit ei, sicutsensitivo. Ea igitur ratione hic dicitur quodsensitivum non est sine corpore, intellectusautem est separatus, quia sensus habetorganum, non autem intellectus.Manifestissime igitur apparet absque omnidubitatione ex verbis Aristotelis hanc fuisseeius sententiam de intellectu possibili, quodintellectus sit aliquid animae quae est actuscorporis; ita tamen quod intellectus animaenon habeat aliquod organum corporale, sicuthabent ceterae potentiae animae.

Quomodo autem hoc esse possit, quodanima sit forma corporis et aliqua virtusanimae non sit corporis virtus, non difficileest intelligere, si quis etiam in aliis rebusconsideret. Videmus enim in multis quodaliqua forma est quidem actus corporis ex

afirmação daqueles que disseram que “a alma é o lugar dasformas”73, tomando “lugar”, numa acepção lata, por todo otipo de receptor, à maneira platônica; salvo que ser o lugardas formas não convém à alma toda, mas tão-só àintelectiva. De fato, a parte sensitiva, não recebe as formasem si mesma, mas no órgão, e a parte intelectiva não asrecebe num órgão, mas em si mesma. Mais: não é “lugardas formas” porque as contenha em ato, mas apenas empotência.74

[25] Posto que já explicou o que convém ao intelecto nasua semelhança aos sentidos, regressa ao primeiro pontoque dissera sobre o tema, a saber, “convém que a parteintelectiva seja impassível”75. E assim, com umaadmirável subtileza, partindo da própria semelhança comos sentidos chegou à conclusão da sua dessemelhança.Mostra, de fato, a seguir, que “os sentidos e o intelecto nãosão impassíveis da mesma maneira”, porque os sentidoscorrompem-se com o excesso de sensíveis ao passo que ointelecto não se corrompe com o excesso de inteligíveis.Ele atribui a causa para isto com base no que tinhaprovado antes: “A [faculdade] sensitiva não existe sem ocorpo, mas o intelecto existe separado.”76

[26] Ora, eles tomam esta última afirmação,principalmente, como fundamento do seu erro,pretendendo concluir com ela que o intelecto nem é umaalma nem uma parte da alma, mas uma certa substânciaseparada77. Mas depressa esquecem o que pouco antesAristóteles dissera: de fato, aqui ele diz que “a faculdadesensitiva não existe sem o corpo e a faculdade estáseparada”78, porque antes tinha dito que o intelecto tornar-se-ia “de determinada qualidade, ou quente ou frio, setivesse algum órgão como a [faculdade] sensitiva”79. Poresta razão, portanto, se diz agora que a [faculdadesensitiva] não existe sem um corpo, já que o intelecto éseparado, dado que os sentidos possuem um órgão, mas ointelecto não.Das palavras de Aristóteles resulta com toda a evidência esem qualquer dúvida que é esta a sua doutrina acerca dointelecto possível: é alguma coisa da alma que é ato de umcorpo, isto, porém, sem que esse intelecto da alma possuaqualquer órgão corporal tal como sucede com as restantesfaculdades da alma.

[27] Caso se considere o que se passa com outras coisas,não é difícil compreender como é que a alma pode serforma do corpo e uma certa faculdade da alma não ser umafaculdade do corpo80. De fato, vemos, em muitas coisas,que uma forma é o ato de um corpo composto de

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elementis commixti, et tamen habet aliquamvirtutem quae non est virtus alicuiuselementi, sed competit tali formae ex altioriprincipio, puta corpore caelesti; sicut quodmagnes habet virtutem attrahendi ferrum, etiaspis restringendi sanguinem. Et paulatimvidemus, secundum quod formae suntnobiliores, quod habent aliquas virtutesmagis ac magis supergredientes materiam.Unde ultima formarum, quae est animahumana, habet virtutem totalitersupergredientem materiam corporalem, scil.intellectum. Sic ergo intellectus separatusest, quia non est virtus in corpore, sed estvirtus in anima; anima autem est actuscorporis.

Nec dicimus quod anima, in qua estintellectus, sic excedat materiam corporalemquod non habeat esse in corpore; sed quodintellectus, quem Aristoteles dicit potentiamanimae, non est actus corporis. Neque enimanima est actus corporis mediantibus suispotentiis, sed anima per se ipsam est actuscorporis dans corpori esse specificum.Aliquae autem potentiae eius sunt actuspartium quarumdam corporis, perficientesipsas ad aliquas operationes; sic autempotentia quae est intellectus, nullius corporisactus est, quia eius operatio non fit perorganum corporale.

Et ne alicui videatur quod hoc ex nostrosensu dicamus praeter Aristotelisintentionem, inducenda sunt verbaAristotelis expresse hoc dicentis. Quaeritenim in secundo Physic., usque ad quantumoporteat cognoscere speciem et quod quidest; non enim omnem formam considerarepertinet ad physicum. Et solvit subdens: autquemadmodum medicum nervum et fabrumaes, usquequo? I. e. usque ad aliquemterminum. Et usque ad quem terminumostendit subdens: cuius enim causaunumquodque; quasi dicat: in tantummedicus considerat nervum, in quantumpertinet ad sanitatem, propter quam medicusnervum considerat, et similiter faber aespropter artificium. Et quia physicusconsiderat formam in quantum est inmateria (sic enim est forma corporismobilis), similiter accipiendum quodnaturalis in tantum considerat formam, inquantum est in materia. Terminus ergoconsiderationis physici de formis, est informis quae sunt in materia quodammodo, etalio modo non in materia. Istae enim formae

elementos e no entanto possui uma certa faculdade quenão é a faculdade de nenhum elemento, pois pertence àforma em virtude de um princípio superior, como porexemplo um corpo celeste; tal como o ímã, que tem acapacidade para atrair o ferro, ou o jaspe, para coagular osangue. E à medida que as formas vão sendo cada vezmais nobres vemos que possuem capacidades queprogressivamente superam cada vez mais a matéria. Daíque a última forma, que é a alma humana, tenha acapacidade de superar totalmente a matéria corporal, que éo intelecto. Desta feita, o intelecto é separado, visto nãoser uma faculdade existente no corpo, mas é umafaculdade que existe na alma, enquanto que a alma é o atode um corpo.81

[28] Não dizemos que a alma, onde o intelecto seencontra, supere de tal maneira a matéria corporal que nãoexista no corpo, mas que o intelecto, a que Aristóteles dá onome de “potência da alma”, não é o ato de um corpo.Com efeito, a alma não é o ato de um corpo mediante assuas potências, mas é por si mesma o ato do corpo que dáao corpo o seu ser específico. Mas algumas das suaspotências são o ato de certas partes do corpo,aperfeiçoando-as com vista a certas operações; é assimque a potência em que o intelecto consiste não é o ato denenhum corpo, pois a sua operação não se realiza atravésde um órgão corporal.

[29] E para que ninguém julgue que dizemos isto segundoo nosso modo de ver, sem levar em conta a intenção deAristóteles, temos que aduzir os textos de Aristóteles queexplicitamente sustentam uma tal tese. No livro II daFísica, pergunta: “até que ponto se deve conhecer aespécie e a quididade”82, uma vez que o filósofo naturalnão tem competência para considerar todas as formas, eresponde: “ou como o médico considera o nervo e oferreiro o bronze e não mais”83, quer dizer, até atingir certolimite. E mostra qual é esse limite, acrescentando: “até àcausa de cada um”, como se dissesse: o médico considerao nervo enquanto este tem a ver com a saúde, que é acausa pela qual o médico o considera, e o mesmo faz oferreiro que considera o bronze por causa da obra aproduzir. E uma vez que o filósofo natural considera aforma enquanto ela está na matéria - é assim, com efeito,que ela é a forma do corpo móvel - então, de igual modo,se deve admitir que o filósofo natural considera a formaapenas enquanto ela está na matéria. Por conseguinte, olimite da consideração das formas pelo físico está nasformas que de uma certa maneira estão na matéria e que deuma outra maneira não estão na matéria; estas formas

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sunt in confinio formarum separatarum etmaterialium. Unde subdit: et circa haec(scil. terminatur consideratio naturalis deformis) quae sunt separatae quidem species,in materia autem. Quae autem sint istaeformae, ostendit subdens: homo enimhominem generat ex materia, et sol. Formaergo hominis est in materia, et separata: inmateria quidem, secundum esse quod datcorpori (sic enim est terminus generationis);separata autem secundum virtutem quae estpropria homini, scil. secundum intellectum.Non est ergo impossibile, quod aliqua formasit in materia, et virtus eius sit separata,sicut expositum est de intellectu.

Adhuc autem alio modo procedunt adostendendum quod Aristotelis sententia fuitquod intellectus non sit anima nec parsanimae quae unitur corpori ut forma. Dicitenim Aristoteles in pluribus locis,intellectum esse perpetuum etincorruptibilem, sicut patet in secundo deanima, ubi dixit: hoc solum contingereseparari, sicut perpetuum a corruptibili; etin primo, ubi dixit quod intellectus videturesse substantia quaedam, et non corrumpi;et in tertio, ubi dixit: separatus autem estsolum hoc, quod vere est, et hoc solumimmortale et perpetuum est (quamvis hocultimum quidam non exponant de intellectupossibili, sed de intellectu agente). Exquibus omnibus verbis apparet, quodAristoteles voluit intellectum esse aliquidincorruptibile.

Videtur autem quod nihil incorruptibilepossit esse forma corporis corruptibilis. Nonenim est accidentale formae, sed per se eiconvenit esse in materia; alioquin ex materiaet forma fieret unum per accidens. Nihilautem potest esse sine eo, quod inest ei perse. Ergo forma corporis non potest esse sinecorpore. Si ergo corpus sit corruptibile,sequitur formam corporis corruptibilemesse.Praeterea, formae separatae a materia, etformae quae sunt in materia, non sunteaedem specie, ut probatur in septimoMetaph. Multo ergo minus una et eademforma numero potest nunc esse in corporenunc autem sine corpore. Destructo ergocorpore, vel destruitur forma corporis, veltransit ad aliud corpus. Si ergo intellectusest forma corporis, videtur ex necessitatesequi quod intellectus sit corruptibilis.

estão, pois, no limite entre as formas separadas e as formasmateriais84. Daí acrescentar: “É a elas” que se circunscrevea consideração natural das formas, “elas que são formasseparadas, embora numa matéria”. Quais, porém, sejamestas formas, mostra-o, acrescentando: “De fato, é ohomem que gera o homem a partir da matéria, mais oSol”85. Com efeito, a forma do homem está na matéria eestá separada: está na matéria segundo o ser que dá aocorpo, pois é assim que ela é termo da geração, mas estáseparada segundo a faculdade que é própria do homem,isto é, segundo o intelecto. Não é, portanto, impossível queuma forma esteja na matéria e a sua faculdade estejaseparada, conforme expusemos acerca do intelecto.86

[30] Mas eles têm também outro modo de provar que adoutrina de Aristóteles foi a de que o intelecto não é aalma ou uma parte da alma que se une ao corpo comoforma. Na verdade, Aristóteles diz em vários lugares que ointelecto é perpétuo e incorruptível; é o que é evidente nolivro II de A Alma, onde diz: “só ela se pode separar, comoo eterno do corruptível”; no livro I, onde diz que ointelecto parece ser uma certa substância “e não estarsujeito à corrupção”; e no livro III, onde diz: “Só éseparado o que verdadeiramente é e só ele é imortal eperpétuo”, ainda que alguns não apliquem esta última fraseao intelecto possível, mas ao intelecto agente87.A partir de todas estas afirmações torna-se evidente queAristóteles pensou o intelecto como algo incorruptível.

[31] Também parece que nada incorruptível pode ser aforma de um corpo corruptível. De fato, estar na matérianão é acidental para uma forma, mas isso é algo que lhe épor si inerente; se assim não fosse, da matéria e da formaresultaria um uno por acidente. Mas nada pode existir semo que lhe é por si inerente; logo, a forma do corpo nãopode existir sem o corpo. Se, portanto, o corpo fossecorruptível seguir-se-ia que a forma do corpo seriacorruptível.Além do mais, as formas separadas da matéria e as que seencontram numa matéria não são da mesma espécie,conforme se prova no livro VII da Metafísica88. Muitomenos, portanto, uma só e mesma forma numericamenteidêntica pode num momento estar no corpo e noutromomento estar sem o corpo. Logo, uma vez destruído ocorpo, ou é destruída a forma do corpo ou ela passa paraum outro corpo. Se, portanto, o intelecto não é a forma docorpo, parece seguir-se necessariamente que o intelecto écorruptível.89

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Est autem sciendum, quod ratio haecPlatonicos movit. Nam Gregorius Nyssenus,imponit Aristoteli, e contrario, quod quiaposuit animam esse formam, quod posueriteam esse corruptibilem. Quidam veroposuerunt propter hoc, animam transire decorpore in corpus. Quidam etiam posuerunt,quod anima haberet corpus quoddamincorruptibile, a quo nunquam separaretur.Et ideo ostendendum est per verbaAristotelis, quod sic posuit intellectivamanimam esse formam quod tamen posuiteam incorruptibilem.

In undecimo enim Metaph., postquamostenderat quod formae non sunt antematerias, quia quando sanatur homo tuncest sanitas, et figura aeneae sphaerae simulest cum sphaera aenea; consequenterinquirit utrum aliqua forma remaneat postmateriam, et dicit sic, secundumtranslationem Boetii: si vero aliquidposterius remaneat (scil. post materiam)considerandum est. In quibusdam enim nihilprohibet, ut si anima huiusmodi est, nonomnis sed intellectus; omnem enimimpossibile est fortasse. Patet ergo quodanimam, quae est forma quantum adintellectivam partem, dicit nihil prohibereremanere post corpus, et tamen ante corpusnon fuisse. Cum enim absolute dixisset,quod causae moventes sunt ante, non autemcausae formales, non quaesivit utrum aliquaforma esset ante materiam, sed utrum aliquaforma remaneat post materiam; et dicit hocnihil prohibere de forma quae est anima,quantum ad intellectivam partem.

Cum igitur, secundum praemissa Aristotelisverba, haec forma quae est anima, postcorpus remaneat, non tota, sed intellectus;considerandum restat quare magis animasecundum partem intellectivam post corpusremaneat, quam secundum alias partes, etquam aliae formae post suas materias. Cuiusquidem rationem ex ipsis Aristotelis verbisassumere oportet. Dicit enim: separatumautem est solum hoc quod vere est; et hocsolum immortale et perpetuum est. Hancigitur rationem assignare videtur quare hocsolum immortale et perpetuum esse videtur:quia hoc solum est separatum. Sed de quohic loquatur, dubium esse potest, quibusdamdicentibus, quod loquitur de intellectupossibili; quibusdam, quod de agente:quorum utrumque apparet esse falsum, sidiligenter verba Aristotelis considerentur.Nam de utroque Aristoteles dixerat ipsumesse separatum. Restat igitur quod

[32] É preciso saber que este argumento condicionoumuitos autores. Por causa dele Gregório de Nissa atribui aAristóteles uma opinião contrária, ou seja, haversustentado que a alma era corruptível porque defenderaque ela era uma forma. Outros, por seu lado, também porcausa dele sustentaram que a alma passa de corpo emcorpo. Outros, ainda, defenderam que a alma teria umcerto corpo incorruptível do qual nunca haveria de seseparar. Por tudo isto, deve mostrar-se com as palavras deAristóteles que ele defendeu que a alma intelectiva éforma e que é também incorruptível.90

[33] Na verdade, no livro IX da Metafísica, depois demostrar que as formas não existem antes das matérias,porque “quando o homem sara é por causa da saúde, e afigura da esfera de bronze existe juntamente com a esferade bronze”, pergunta, na seqüência, se uma forma semantém depois da matéria91. E responde assim, de acordocom a tradução de Boécio: “Se verdadeiramente algumacoisa se mantém a seguir”, isto é, depois da matéria, “é oque é preciso examinar: em algumas, de fato, nada oproíbe, como com a alma, não toda a alma, mas ointelecto; mas em todas é talvez impossível”92. É claro,portanto, que nada impede a alma, que é forma, no quetoca à sua parte intelectiva, de se manter depois do corpo,ainda que não exista antes do corpo. Porque tendo dito, emsentido absoluto, que as causas motoras existem antes,mas as formais não, ele não perguntou se uma formaqualquer existe antes da matéria, mas outrossim se algumaforma se mantém depois da matéria. E responde que nadao impede tratando-se da forma que é a alma, no que toca àparte intelectiva.93

[34] Como, portanto, segundo estas palavras deAristóteles, a forma que a alma é permanece depois docorpo, não toda ela, mas o intelecto, falta considerarporque é que a alma permanece depois do corpo maissegundo a sua parte intelectiva do que segundo as outraspartes, e mais do que as outras formas, depois das suasmatérias. Deve ir buscar-se a razão para tal nas própriaspalavras de Aristóteles. De fato, ele diz: “só é separado oque verdadeiramente é, só isso é imortal e perpétuo”94.Esta é a razão, pois, pela qual parece conceder que ‘sóisso’ parece ser ‘imortal e perpétuo’ pelo fato de ‘serseparado’. Mas pode duvidar-se quanto ao assunto de queestá a tratar, pois alguns dizem que fala aqui do intelectopossível enquanto outros dizem que é do intelecto agente.Se considerarmos com discernimento as palavras deAristóteles, enganam-se uns e outros, porque Aristótelestinha dito de ambos que era separado. Resta, pois,

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intelligatur de tota intellectiva parte, quaequidem separata dicitur, quia non est eialiquod organum, sicut ex verbis Aristotelispatet.

Dixerat autem Aristoteles in principio libride anima, quod si est aliquid animaeoperum aut passionum proprium, contingetutique ipsam separari; si vero nullum estproprium ipsius, non utique erit separabilis.Cuius quidem consequentiae ratio talis est:quia unumquodque operatur in quantum estens, eo igitur modo unicuique competitoperari quo sibi competit esse. Formae igiturquae nullam operationem habent sinecommunicatione suae materiae, ipsae nonoperantur, sed compositum est quodoperatur per formam. Unde huiusmodiformae ipsae quidem proprie loquendo nonsunt, sed eis aliquid est. Sicut enim calornon calefacit, sed calidum; ita etiam calornon est proprie loquendo, sed calidum estper calorem; propter quod Aristoteles dicitin undecimo Metaph., quod de accidentibusnon vere dicitur, quod sunt entia, sed magisquod sunt entis. Et similis ratio est de formissubstantialibus, quae nullam operationemhabent absque communicatione materiae,hoc excepto quod huiusmodi formae suntprincipium essendi substantialiter.Forma igitur quae habet operationemsecundum aliquam sui potentiam velvirtutem absque communicatione suaemateriae, ipsa est quae habet esse, nec estper esse compositi tantum, sicut aliaeformae, sed magis compositum est per esseeius. Et ideo destructo composito destruiturilla forma, quae est per esse compositi; nonautem oportet quod destruatur, addestructionem compositi, illa forma percuius esse compositum est et non ipsa peresse compositi.

Si quis autem contra hoc obiiciat, quodAristoteles dicit in primo de anima, quodintelligere et amare et odire non sunt illiuspassiones (i. e. animae), sed huius habentisillud, secundum quod illud habet; quare ethoc corrupto neque memoratur neque amat:non enim illius erant, sed communis, quodquidem destructum est; patet responsio perdictum Themistii hoc exponentis, quidicit:nunc dubitanti magis quam docentiassimilatur Aristoteles. Nondum enimdestruxerat opinionem dicentium nondifferre intellectum et sensum. Unde in totoillo capitulo loquitur de intellectu sicut desensu. Quod patet praecipue ubi probatintellectum incorruptibilem per exemplumsensus, qui non corrumpitur ex senectute.Unde et per totum sub conditione et sub

entendê-lo de toda a parte intelectiva, a qual se dizseparada porque não possui nenhum órgão, tal comotransparece das palavras de Aristóteles.95

[35] Mas no princípio da obra sobre A Alma Aristótelestinha dito que “se há alguma operação da alma ou paixãoque lhe seja própria, então ela poderá ser separada; mas senenhuma lhe for própria, ela não poderá ser separada”96. Arazão desta consequência está em que cada coisa age namedida em que é um ser; por conseguinte, a cada coisacabe agir segundo o modo em que é ser. Portanto, asformas que não têm nenhuma operação que nãocomunique com a matéria não agem, mas é o compostoque age por intermédio da forma. Daí que, em rigor, estasformas não existam, mas que qualquer coisa existe porelas. Com efeito, tal como não é o calor que aquece, mas oquente, assim também, em rigor, não é o calor que existemas o quente que existe pelo calor. É por isso queAristóteles diz no livro XI da Metafísica que não se podedizer verdadeiramente que os acidentes sejam ser, mas quesão de um ser97. Existe um argumento semelhante para asformas substanciais que não têm nenhuma operação quenão comunique com a matéria, com a ressalva de que taisformas são o princípio da existência substancial.98

Por conseguinte, é a forma que tem uma operação numadas suas potências ou virtudes sem comunicação com umamatéria que tem o ser, e não existe apenas em razão docomposto tal como as outras formas, antes pelo contrário,o composto é que existe em virtude do seu ser. Assimsendo, uma vez destruído o composto destrói-se a formaque existe pelo ser do composto; mas não é preciso quecom a destruição do composto se destrua a forma por cujoser esse composto existe, e não a forma pelo ser docomposto.

[36] Mas como alguém objeta contra isto que no livro Isobre A Alma Aristóteles diz que “pensar e odiar não sãoas paixões disso, isto é, da alma, mas de quem a possuienquanto a possui, pelo que, tendo perecido, nem selembra nem ama, já que não eram dela, mas do composto,que precisamente pereceu”, a resposta é óbvia, com o queTemístio diz ao explicar esse passo: “Aqui Aristótelesparece exprimir-se mais em tom dubitativo do que comose estivesse a ensinar”99. Na verdade, ele ainda não refutoua opinião daqueles que dizem que não há distinção entre ointelecto e os sentidos. Em todo aquele capítulo fala dointelecto da mesma maneira que fala dos sentidos, o que éparticularmente evidente onde prova que o intelecto éincorruptível a partir do exemplo do sentido que não sedestróem com a velhice100. Daí que se exprima em todo o

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dubio loquitur sicut inquirens, semperconiungens ea, quae sunt intellectus, hisquae sunt sensus: quod praecipue apparet exeo quod in principio solutionis dicit: si enimet quam maxime dolere et gaudere etintelligere et cetera. Si quis autempertinaciter dicere vellet quod Aristoteles ibiloquitur determinando; adhuc restatresponsio, quia intelligere dicitur esse actusconiuncti non per se, sed per accidens, inquantum scil. eius obiectum, quod estphantasma, est in organo corporali, nonquod iste actus per organum corporaleexerceatur.

Si quis autem quaerat ulterius: si intellectussine phantasmate non intelligit, quomodoergo anima habebit operationemintellectualem, postquam fuerit a corporeseparata? Scire debet qui hoc obiicit, quodistam quaestionem solvere non pertinet adnaturalem. Unde Aristoteles in secundoPhysic. dicit, de anima loquens: quomodoautem separabile hoc se habeat et quid sit,philosophiae primae opus est determinare.Aestimandum est enim quod alium modumintelligendi habebit separata, quam habeatconiuncta, similem scil. aliis substantiisseparatis. Unde non sine causa Aristotelesquaerit in tertio de anima, utrum intellectusnon separatus a magnitudine intelligataliquid separatum. Per quod dat intelligerequod aliquid poterit intelligere separatus,quod non potest non separatus.

In quibus etiam verbis valde notandum est,quod cum superius utrumque intellectum(scil. possibilem et agentem), dixeritseparatum, hic tamen dicit eum nonseparatum. Est enim separatus, in quantumnon est actus organi; non separatus vero, inquantum est pars sive potentia animae quaeest actus corporis, sicut supra dictum est.Huiusmodi autem quaestiones certissimecolligi potest, Aristotelem solvisse in hisquae patet eum scripsisse de substantiisseparatis, ex his quae dicit in principioduodecimi Metaph., quos etiam libros vidinumero X, licet nondum in lingua nostratranslatos.

Secundum hoc igitur patet quod rationesinductae in contrarium necessitatem nonhabent. Essentiale enim est animae quodcorpori uniatur; sed hoc impeditur peraccidens, non ex parte sua sed ex partecorporis quod corrumpitur; sicut per secompetit levi sursum esse, et hoc est levi

capítulo no condicional e de maneira dubitativa, como queinvestigando, conjugando sempre aquilo que diz respeitoao intelecto com o que diz respeito aos sentidos. É o quese torna claro principalmente por aquilo que diz no inícioda solução: “Se, pois, mais do que o sofrer, o alegrar-se eo pensar” etc101. Se alguém, portanto, teimosamente,quiser dizer que Aristóteles faz uma verdadeira afirmação,resta ainda uma resposta: que não é por si, mas poracidente, que se diz que pensar é o ato do composto, isto é,enquanto o seu objeto que é a imagem está num órgãocorporal, e não enquanto este ato se exerce por um órgãocorporal.102

[37] Caso ainda alguém pergunte: se o intelecto não podepensar sem imagens, como é que então a alma terá umaoperação intelectual depois de se ter separado do corpo?Quem objeto assim deve saber que a solução desta questãonão compete ao filósofo natural. Por este motivo,Aristóteles, falando da alma, diz no livro II da Física: “Étarefa da filosofia primeira determinar como é que e emque consiste esse estado de separação”103. Pode entãojulgar-se que no estado separado ela terá uma maneiradiferente de pensar de quando está unida, uma maneirasemelhante à das outras substâncias separadas. Daí quenão seja sem razão que Aristóteles pergunte no livro III deA Alma “se o intelecto não separado da grandeza podepensar alguma coisa separada”104, dando assim a entenderque, separado, pode pensar alguma coisa que, nãoseparado, não pode pensar.

[38] Neste passo há que reparar bem que, embora antestivesse dito que um e outro intelecto eram separados105,isto é, o [intelecto] possível e o agente, aqui, porém, nãodiz que está separado. E que é separado enquanto não é atode um órgão, mas não é separado enquanto é uma parte ouuma potência da alma que é ato de um corpo.A partir do que diz no início do livro XII da Metafísica106,pode com toda a certeza deduzir-se que Aristótelesresolveu questões deste gênero nos livros que decertoescreveu sobre as substâncias separadas - os quais eu viem número de dez, embora ainda não traduzidos para anossa língua107.

[39] Em conformidade com o que se acaba de dizer, éevidente que os argumentos avançados em favor da tesecontrária não têm caráter de necessidade. É essencial, defato, para a alma, unir-se ao corpo, mas isso pode serimpedido por acidente, não pela sua parte, mas pela docorpo, quando se corrompe, tal como ao que é leve cabepor si estar em cima e “estar em cima é a propriedade do

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esse ut sit sursum, ut Aristoteles dicit inoctavo Physic.; contingit tamen per aliquodimpedimentum quod non sit sursum.

Ex hoc etiam patet solutio alterius rationis.Sicut enim quod habet naturam ut sitsursum, et quod non habet naturam ut sitsursum, specie differunt; et tamen idem etspecie et numero est quod habet naturam utsit sursum, licet quandoque sit sursum etquandoque non sit sursum propter aliquodimpedimentum: ita differunt specie duaeformae, quarum una habet naturam utuniatur corpori, alia vero non habet; sedtamen unum et idem specie et numero essepotest, habens naturam ut uniatur corpori,licet quandoque sit actu unitum, quandoquenon actu unitum propter aliquodimpedimentum.

Adhuc autem ad sui erroris fulcimentumassumunt quod Aristoteles dicit in libro degeneratione animalium, scil. intellectumsolum de foris advenire et divinum essesolum. Nulla autem forma quae est actusmateriae, advenit de foris, sed educitur depotentia materiae. Intellectus igitur non estforma corporis.

Obiiciunt etiam, quod omnis forma corporismixti causatur ex elementis; unde siintellectus esset forma corporis humani, nonesset ab extrinseco, sed esset ex elementiscausatus.

Obiiciunt etiam ulterius circa hoc, quiasequeretur quod etiam vegetativum etsensitivum esset ab extrinseco; quod estcontra Aristotelem, praecipue si esset unasubstantia animae, cuius potentiae essentvegetativum, sensitivum et intellectivum;cum intellectus sit ab extrinseco, secundumAristotelem.

Horum autem solutio in promptu apparetsecundum praemissa. Cum enim diciturquod omnis forma educitur de potentiamateriae, considerandum videtur, quid sitformam de potentia materiae educi. Si enimhoc nihil aliud sit quam materiampraeexistere in potentia ad formam, nihilprohibet sic dicere materiam corporalempraeextitisse in potentia ad animamintellectivam; unde Aristoteles dicit in librode generatione animalium: primum quidemomnia visa sunt vivere talia (scil. separatafetuum) plantae vita. Consequenter autem

que é leve”, conforme Aristóteles diz no livro VIII daFísica, “mesmo quando algum obstáculo o impede de estarem cima”108.

[40] Também a partir daqui se torna clara a solução dooutro argumento109. Com efeito, tal como aquilo cujanatureza é estar em cima e aquilo cuja natureza não é estarem cima são de espécies diferentes, mantendo-se aquilocuja natureza é estar em cima idêntico em espécie e emnúmero, mesmo se, por causa de algum impedimento,umas vezes está em cima e outras não, assim também duasformas são de espécies diferentes se a natureza de uma fora de unir-se ao corpo e a de outra não, mantendo-se a quetem por natureza unir-se ao corpo qualquer coisaespecífica e numericamente idêntica, mesmo quando estáumas vezes unida em ato ao corpo e outras não, devido aqualquer impedimento.

[41] Mas para fundamentar o seu erro alegam o queAristóteles diz na obra A Geração dos Animais, a saber,que “só o intelecto procede do exterior e só ele édivino”110; ora, nenhuma forma que é ato de uma matériaprocede do exterior, mas provém por edução da potênciada matéria, logo o intelecto não é a forma do corpo.

[42] Também objetam que toda a forma de um corpomisto é causada pelos seus elementos; por isso, se ointelecto fosse forma do corpo humano não seria deorigem extrínseca, mas seria causado pelos seuselementos111.

[43] Objetam ainda mais, em relação a este ponto: que seseguiria que também a [faculdades] vegetativa e asensitiva teriam uma origem extrínseca, o que vai contraAristóteles; principalmente se a alma fosse a únicasubstância cujas potências fossem [as faculdades]vegetativa, sensitiva e intelectiva, uma vez que, segundoAristóteles, o intelecto é de origem extrínseca.112

[44] Mas, atendendo ao que deixamos dito, a soluçãodestes argumentos é imediatamente evidente. Na verdade,quando se diz que toda a forma “provém por edução dapotência da matéria”, parece ter de considerar-se o quequer dizer “provir por edução da potência da matéria”113.Se, de fato, não se distingue da preexistência da matériaem potência para a forma, nada impede que se diga que amatéria corporal preexiste em potência em relação à almaintelectiva. Daí que Aristóteles diga no livro A Geraçãodos Animais: “Parece que todas as coisas vivem assim, asaber, da vida separada dos fetos e das plantas;

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palam quia et de sensitiva dicendum animaet de activa et de intellectiva; omnes enimnecessarium potentia prius habere quamactu.

Sed quia potentia dicitur ad actum, necesseest ut unumquodque secundum eamrationem sit in potentia, secundum quamrationem convenit sibi esse actu. Iam autemostensum est quod aliis formis, quae nonhabent operationem absque communicationemateriae, convenit sic esse actu, ut magisipsae sint quibus composita sunt, etquodammodo compositis coexistentes,quam quod ipsae suum esse habeant; undesicut totum esse earum est in concretione admateriam, ita totaliter educi dicuntur depotentia materiae. Anima autem intellectiva,cum habeat operationem sine corpore, nonest esse suum solum in concretione admateriam; unde non potest dici quodeducatur de materia, sed magis quod est aprincipio extrinseco. Et hoc ex verbisAristotelis apparet: relinquitur autemintellectum solum de foris advenire, etdivinum esse solum; et causam assignatsubdens: nihil enim ipsius operationicommunicat corporalis operatio.

Miror autem unde secunda obiectioprocesserit, quod si anima intellectiva essetforma corporis mixti, quod causaretur excommixtione elementorum, cum nullaanima ex commixtione elementorumcausetur. Dicit enim Aristoteles immediatepost verba praemissa: omnis quidem igituranimae virtus altero corpore visa estparticipare et diviniore vocatis elementis; utautem differunt honorabilitate animae etvilitate invicem, sic et talis differt natura.Omnium quidem enim in spermate existitquod facit generativa esse spermata,vocatum calidum; hoc autem non ignisneque talis virtus est, sed interceptus inspermate et in spumoso spiritus aliquis, et inspiritu natura proportionalis existensastrorum ordinationi. Ergo, ex mixtioneelementorum necdum intellectus, sed necanima vegetativa producitur.

Quod vero tertio obiicitur, quod sequereturvegetativum et sensitivum esse abextrinseco, non est ad propositum. Iam enimpatet ex verbis Aristotelis, quod ipse hocindeterminatum relinquit, utrum intellectusdifferat ab aliis partibus animae subiecto et

consequentemente, deve dizer-se a mesma coisa da almasensitiva e da ativa e da intelectiva, todas devemforçosamente estar em potência antes de estarem emato.”114

[45] Mas uma vez que a potência se diz em relação ao ato,é necessário que todas as coisas estejam em potência narelação correspondente a quando estão em ato. Jámostramos no que concerne às outras formas, as que nãotêm operação sem comunicar com uma matéria, que elasdevem ser em ato de uma maneira tal que, mais do queterem o seu próprio ser, são aquilo de que se compõem ede certo modo coexistem com os seus compostos; daí que,tal como todo o seu ser está na concreção com a matériaassim também se diz que provém completamente poredução da potência da matéria115. Como porém a almaintelectiva pode operar sem o corpo, o seu ser não estáapenas na concreção com a matéria; por isso não se podedizer que provém da matéria por edução, mas antes que épor um princípio extrínseco. E o que se evidencia a partirdas palavras de Aristóteles: “Resta, portanto, que só ointelecto provenha de fora e só ele seja divino”, eapresenta a razão acrescentando: “Nada, de fato, na suaoperação comunica com a operação corpórea.”116

[46] Dado que nenhuma alma é causada pela mistura doselementos, admiro-me de onde poderia vir a segundaobjeção, que diz que se a alma intelectiva fosse a forma deum corpo misto seria causada pela mistura doselementos”117. De fato, Aristóteles diz, imediatamenteapós as palavras citadas: “Parece, portanto, que toda apotência da alma participa de um outro corpo, mais divinodo que os chamados elementos: assim como as almas sedistinguem entre si pela sua honorabilidade e vileza assimtambém se distingue a sua natureza; em todo o sêmenexiste aquilo que o torna capaz de gerar e a que se dá onome de quente. Mas este quente não é nem o fogo nemuma potência semelhante, mas certo espírito contido nosêmen, na parte espumosa, e esse espírito tem umanatureza cuja existência é proporcionada à ordenação dosastros.”118 Por conseguinte, nem o intelecto nem sequer aalma vegetativa é produzida com base numa mistura deelementos.

[47] O que nos objetam em terceiro lugar, a saber, queseguir-se-ía que a faculdade sensitiva e vegetativa teriamuma origem extrínseca, nada tem a ver para o caso. Jáficou patente, pelas palavras do próprio Aristóteles, queele deixou por determinar se o intelecto difere das outraspartes da alma pelo sujeito e pelo local, como diz Platão,

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loco, ut Plato dixit, vel ratione tantum. Sivero detur quod sint idem subiecto, sicutverius est, nec adhuc inconveniens sequitur.Dicit enim Aristoteles in secundo de anima,quod similiter se habent ei quod de figuris,et quae secundum animam sunt. Semperenim in eo quod est consequenter, estpotentia quod prius est, in figuris et inanimatis; ut in tetragono quidem trigonumest, in sensitivo autem vegetativum. Siautem idem subiecto est etiam intellectivum(quod ipse sub dubio relinquit), similiterdicendum esset quod vegetativum etsensitivum sunt in intellectivo, ut trigonumet tetragonum in pentagono. Est autemtetragonum quidem a trigono simpliciter aliafigura specie, non autem a trigono quod estpotentia in ipso; sicut nec quaternarius aternario qui est pars ipsius, sed a ternario quiest seorsum existens. Et si contingeretdiversas figuras a diversis agentibusproduci, trigonum quidem seorsum atetragono existens haberet aliam causamproducentem quam tetragonum, sicut ethabet aliam speciem; sed trigonum quod estin tetragono, haberet eamdem causamproducentem.Sic igitur vegetativum quidem seorsum asensitivo existens, alia species animae est, etaliam causam productivam habet; eademtamen causa productiva est sensitivi, etvegetativi quod inest sensitivo. Si ergo sicdicatur, quod vegetativum et sensitivumquod inest intellectivo, est a causaextrinseca a qua est intellectivum, nulluminconveniens sequitur. Non eniminconveniens est, effectum superiorisagentis habere virtutem quam habet effectusinferioris agentis, et adhuc amplius; unde etanima intellectiva, quamvis sit ab exterioriagente, habet tamen virtutes quas habentanima vegetativa et sensitiva, quae sunt abinferioribus agentibus.

Sic igitur, diligenter consideratis fereomnibus verbis Aristotelis quae de intellectuhumano dixit, apparet eum huius fuissesententiae quod anima humana sit actuscorporis, et quod eius pars sive potentia sitintellectus possibilis.

ou apenas pelo conceito119. Se nós concedermos que seidentificam pelo sujeito, o que é o mais verdadeiro, não sesegue nenhum inconveniente. Aristóteles diz, de fato, nolivro II sobre A Alma, que “é semelhante o que se passacom as figuras e com a alma: quer nas figuras quer nosseres animados, o anterior está sempre em potência paraaquilo que lhe é consecutivo; por exemplo, no quadriláteroestá contido o triângulo e na [faculdade] sensitiva avegetativa”120. E se a [faculdade] intelectiva for idênticapelo sujeito, o que Aristóteles deixa em dúvida, há quedizer também que a [faculdade] vegetativa e a sensitivaestão na [faculdade] intelectiva como o triângulo e oquadrilátero no pentágono. Além do mais, o quadrilátero éuma figura absolutamente distinta do triângulo pelaespécie, mas não do triângulo que contém em potência;como o número quaternário também não se distingue doternário que faz parte dele, mas do ternário que existeseparado. E se acontecesse que diversas figuras fossemproduzidas por diversos agentes, o triângulo que existeseparadamente do quadrilátero teria uma causa produtoradiferente da do quadrilátero, como tem também uma outraespécie; mas o triângulo que estivesse contido noquadrilátero teria a mesma causa produtora.Assim também, por conseguinte, a [faculdade] vegetativaque tem uma existência à parte da sensitiva é uma outraespécie de alma e tem uma outra causa produtora; contudoé a mesma causa que produz a [faculdade] sensitiva e a[faculdade] vegetativa que está contida na sensitiva. Se,portanto, se disser que a [faculdade] vegetativa e asensitiva, contidas na [faculdade] intelectiva, existem pelamesma causa extrínseca que a da [faculdade] intelectiva,não se segue nenhum inconveniente, porque não háinconveniente em que o efeito de um agente superior tenhaa virtude que o efeito de um agente inferior tem, oumesmo mais; de onde, ainda que a alma intelectiva sejaproduzida por um agente exterior, tem todavia as virtudesque as almas vegetativa e sensitiva têm, as quais sãoproduzidas por agentes inferiores.

[48] Portanto, assim, consideradas com atenção quasetodas as palavras de Aristóteles respeitantes ao intelectohumano, torna-se evidente que a sua doutrina é a de que aalma humana é o ato de um corpo e o intelecto possíveluma das suas partes ou potências.121

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CAPUT 2

Nunc autem considerare oportet quid aliiPeripatetici de hoc ipso senserunt. Etaccipiamus primo verba Themistii incommento de anima, ubi sic dicit: intellectusiste quem dicimus in potentia (...) magis estanimae connaturalis (scil. quam agens);dico autem non omni animae, sed solumhumanae. Et sicut lumen potentia visui etpotentia coloribus adveniens, actu quidemvisum fecit et actu colores, ita et intellectusiste qui actu (...) non solum ipsum actuintellectum fecit, sed et potentiaintelligibilia actu intelligibilia ipse instituit.Et post pauca concludit: quam igiturrationem habet ars ad materiam, hanc etintellectus factivus ad eum qui in potentia(...) propter quod et in nobis est intelligerequando volumus. Non enim est ars materiaeexterioris (...) sed investitur toti potentiaintellectui qui factivus; ac si utiqueaedificator lignis et aerarius aeri non abextrinseco existeret, per totum autem ipsumpenetrare potens erit. Sic enim et quisecundum actum intellectus intellectuipotentia superveniens, unum fit cum ipso.

Et post pauca concludit: non igitur sumusaut qui potentia intellectus, aut qui actu. Siquidem igitur in compositis omnibus ex eoquod potentia et ex eo quod actu, aliud esthoc et aliud est esse huic, aliud utique eritego et mihi esse. Et ego quidem estcompositus intellectus ex potentia et actu,mihi autem esse ex eo quod actu est. Quareet quae meditor et quae scribo, scribitquidem intellectus compositus ex potentia etactu, scribit autem non qua potentia sed quaactu; operari enim inde sibi derivatur. Etpost pauca adhuc manifestius: sicut igituraliud est animal et aliud animali esse,animali autem esse est ab anima animalis,sic et aliud quidem ego, aliud autem mihiesse. Esse igitur mihi ab anima, et hac nonomni. Non enim a sensitiva, materia enimerat phantasiae. Neque rursum aphantastica, materia enim erat potentiaintellectus. Neque eius qui potentiaintellectus, materia enim est factivi. A soloigitur factivo est mihi esse. Et post paucasubdit: et usque ad hunc progressa naturacessavit, tanquam nihil habens alterumhonoratius, cui faceret ipsum subiectum.Nos itaque sumus activus intellectus.

CAPÍTULO II

[49] Agora temos que examinar o que outros peripatéticosdisseram sobre isto. Comecemos em primeiro lugar pelaspalavras de Temístio no seu Comentário ao livro sobre AAlma, onde diz: “Este intelecto que chamamos intelectoem potência é mais conatural à alma” do que o intelectoagente; refiro-me não a toda alma, mas apenas à almahumana. E tal como a luz ao chegar à vista em potência eàs cores em potência produz a vista e as cores em ato,assim também este intelecto, o [intelecto] em ato, não sófaz passar ao ato o intelecto [em potência] como institui osinteligíveis em potência inteligíveis em ato.” E logo aseguir conclui: “Assim, portanto, a relação que a arte temcom a matéria é como a relação que o intelecto poiéticotem com o intelecto que está em potência. Por isso é quepensamos quando queremos. De fato, a arte não é exteriorà matéria, mas o intelecto que é poiético investe toda a suapotência à maneira de um construtor que não existisseexteriormente à madeira e de um ferreiro ao bronze, mastivesse o poder de penetrar nele por inteiro. E é assim,pois, que o intelecto em ato sobrevém ao intelecto empotência fazendo com ele um só”122.

[50] E pouco depois conclui: “Logo, não somos senão ointelecto que está em potência ou o [intelecto] que está emato. E como em tudo aquilo que se compõe do que está empotência e do que está em ato este difere do ser daqueleassim o eu será diferente do meu ser. Ora, o eu é umintelecto composto de potência e de ato e o meu ser éconstituído por aquilo que está em ato. É por isso que oque eu medito e o que eu escrevo é o intelecto compostode potência e ato que o escreve, não o escreve contudoenquanto está em potência, mas enquanto está em ato,porque de fato é deste que deriva a sua operação.” E poucodepois, de maneira ainda mais clara: “Tal como o animalse distingue do ser do animal, posto que o ser do animalprovém da alma do animal, assim também o eu é distintodo meu ser. O meu ser provém da alma, mas não dela natotalidade; não provém, de fato, da sensitiva, que é amatéria da imaginação; também não provém daimaginativa, que é a matéria do intelecto em potência; nemsequer do intelecto em potência, que é a matéria do[intelecto] poiético. Logo, o meu ser provém só do[intelecto] poiético”. E logo a seguir acrescenta: “E aochegar aí a natureza pára, como se não tivesse nada maisnobre para utilizar por sujeito. É por isso que nós somos ointelecto ativo.”123

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Et postea reprobans quorundam opinionemdicit: cum praedixisset (scil. Aristoteles) inomni natura hoc quidem materiam esse, hocautem quod materiam movet aut perficit,necesse ait et in anima existere hasdifferentias, et esse aliquem hunc talemintellectum in omnia fieri, hunc talem inomnia facere. In anima enim ait esse talemintellectum et animae humanae velutquamdam partem honoratissimam. Et postpauca dicit: ex eadem etiam littera hoccontingit confirmare, quod putat (scil.Aristoteles) aut nostri aliquid esse activumintellectum, aut nos.

Patet igitur ex praemissis verbis Themistii,quod non solum intellectum possibilem, sedetiam agentem partem animae humanae essedicit, et Aristotelem ait hoc sensisse; etiterum, quod homo est id quod est, non exanima sensitiva, ut quidam mentiuntur, sedex parte intellectiva et principaliori.

Et Theophrasti quidem libros non vidi, sedeius verba introducit Themistius incommento, quae sunt talia, sic dicens:melius est autem et dicta Theophrastiproponere de intellectu potentia et de eo quiactu. De eo igitur qui potentia haec ait:intellectus autem qualiter a foris existens ettanquam superpositus, tamen connaturalis?Et quae natura ipsius? Hoc quidem enimnihil esse secundum actum, potentia autemomnia bene, sicut et sensus. Non enim sicaccipiendum est ut neque sit ipse, litigiosumest enim, sed ut subiectam quamdampotentiam, sicut et in materialibus. Sed hoca foris igitur, non ut adiectum, sed ut inprima generatione comprehendensponendum.

Sic igitur Theophrastus, cum quaesivissetduo: primo quidem, quomodo intellectuspossibilis sit ab extrinseco, et tamen nobisconnaturalis; et secundo, quae sit naturaintellectus possibilis; respondet primo adsecundum: quod est in potentia omnia, nonquidem sicut nihil existens, sed sicut sensusad sensibilia. Et ex hoc concluditresponsionem primae quaestionis, quod nonintelligitur sic esse ab extrinseco, quasialiquid adiectum accidentaliter vel temporepraecedente, sed a prima generatione, sicutcontinens et comprehendens naturamhumanam.

[51] E depois, reprovando a opinião de alguns, diz124:“Quando ele”, ou seja, Aristóteles, “disse antes que emqualquer natureza uma coisa é a matéria e outra coisa oque move e aperfeiçoa a matéria, está a afirmar que énecessário que estas diferenças existam na alma e que háum intelecto capaz de se tornar tudo e um intelecto capazde produzir tudo.” Afirma também que um tal intelectoexiste na alma e que é como que a parte mais honrada daalma humana.” E pouco depois diz: “A partir destapassagem pode confirmar-se que ele”, ou seja, Aristóteles,“julga que o intelecto ativo ou é algo nosso ou que é nósmesmo.”

[52] Nas palavras anteriores de Temístio patenteia-se, porconseguinte, que ele julga que não só o intelecto possível,mas também o intelecto agente, são uma parte da almahumana, e que declara que foi isso que Aristóteles disse.Além do mais, que considera que o homem é o que é nãograças à alma sensitiva, como alguns o afirmam mentindo,mas à parte intelectiva que é a principal.

[53] Não cheguei a ver os livros de Teofrasto, masTemístio informa-nos acerca das suas palavras, noComentário, dizendo o seguinte125: “É melhor propor oque Teofrasto diz acerca do intelecto em potência e acercado que está em ato. Quanto ao que está em potência, diz oseguinte: “Mas como é que o intelecto que existe de fora ecomo que sobreposto, poderia ser conatural? E qual a suanatureza? De fato, não poderia ser nada segundo o ato,mas em potência já pode ser tudo, tal como o sentido. Nãodevemos aceitá-lo como nada, o que não faz sentido, massim enquanto uma certa potência servindo de sujeito,como nas coisas materiais. Quanto ao ‘de fora’, há que opôr não como algo que se acrescenta, mas comointegrando o homem a partir do primeiro momento da suageração.”

[54] Temos, pois, que Teofrasto levanta duas questões.Primeira: como é que o intelecto possível tem uma origemextrínseca e no entanto é conatural ao homem? Segunda:qual é a natureza do intelecto possível? Em primeiro lugarresponde à segunda questão: é em potência todas as coisas,não decerto como um nada que exista, mas como o sentidoem relação aos sensíveis. A partir daqui conclui a respostaà primeira questão: não se deve entender a origemextrínseca como algo que acontece acidentalmente ou nodecorrer do tempo, mas desde o primeiro momento dageração, como algo que contém e que integra a naturezahumana.

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Quod autem Alexander intellectumpossibilem posuerit esse formam corporis,etiam ipse Averroes confitetur, quamvis, utarbitror, perverse verba Alexandri acceperit,sicut et verba Themistii praeter eiusintellectum assumit. Nam quod dicit,Alexandrum dixisse intellectum possibilemnon esse aliud quam praeparationem, quaeest in natura humana, ad intellectumagentem et ad intelligibilia: hancpraeparationem nihil aliud intellexit, quampotentiam intellectivam quae est in anima adintelligibilia. Et ideo dixit eam non essevirtutem in corpore, quia talis potentia nonhabet organum corporale, et non ex earatione, ut Averroes impugnat, secundumquod nulla praeparatio est virtus in corpore.

Et ut a Graecis ad Arabes transeamus, primomanifestum est quod Avicenna posuitintellectum virtutem animae quae est formacorporis. Dicit enim sic in suo libro deanima: intellectus activus (i. e. practicus)eget corpore et virtutibus corporalibus adomnes actiones suas. Contemplativus autemintellectus eget corpore et virtutibus eius,sed nec semper nec omnino. Sufficit enimipse sibi per seipsum. Nihil autem horum estanima humana; sed anima est id quod habethas virtutes et, sicut postea declarabimus,est substantia solitaria, i. e. per se, quaehabet aptitudinem ad actiones, quarumquaedam sunt quae non perficiuntur nisi perinstrumenta et per usum eorum ullo modo;quaedam vero sunt, quibus non suntnecessaria instrumenta aliquo modo.

Item, in prima parte dicit quod animahumana est perfectio prima corporisnaturalis instrumentalis, secundum quodattribuitur ei agere actiones electionedeliberationis, et adinvenire meditando, etsecundum hoc quod apprehendituniversalia. Sed verum est quod postea dicitet probat quod anima humana, secundum idquod est sibi proprium, i. e. secundum vimintellectivam, non sic se habet ad corpus utforma, nec eget ut sibi praepareturorganum.

Deinde subiungenda sunt verba Algazelissic dicentis: cum commixtio elementorumfuerit pulchrioris et perfectiorisaequalitatis, qua nihil possit invenirisubtilius et pulchrius (...) tunc fiet apta adrecipiendum a datore formarum formampulchriorem formis aliis, quae est anima

[55] Que Alexandre tivesse defendido que o intelectopossível era a forma do corpo é o que o próprio Averróisconfessa126, ainda que, conforme penso, tenha interpretadoequivocadamente as palavras de Alexandre, tal comoentendeu fora da sua significação as de Temístio. Naverdade, ao afirmar que Alexandre tinha dito que ointelecto possível não era mais do que a preparação,presente na natureza humana, para o intelecto agente e osinteligíveis, Alexandre teria entendido essa preparaçãocomo se tratando apenas da potência intelectiva que estána alma com vista aos inteligíveis. E por isso, porque umapotência assim não tem órgão corporal, é que Alexandrediz que não se trata de uma faculdade existente no corpo, enão pela razão que Averróis ataca, em conformidade coma qual nenhuma preparação seria uma faculdade existentenum corpo.

[56] E para passarmos dos Gregos para os Árabes, éevidente, em primeiro lugar, ter Avicena sustentado que ointelecto é uma faculdade da alma que é forma do corpo.De fato ele diz o seguinte no livro sobre A Alma: “Ointelecto ativo”, isto é, o prático, “necessita do corpo e dasfaculdades corpóreas para todas as suas ações; o[intelecto] contemplativo precisa do corpo e das suasfaculdades, embora nem sempre nem em absoluto, poisbasta-se a si mesmo por si mesmo. A alma humana não énenhuma destas faculdades, mas é aquilo que possui essasfaculdades e, tal como haveremos de declarar, é umasubstância solitária, ou seja, apta a agir por si. Algumasdas suas ações só se realizam mediante instrumentos, e decerta maneira pelo seu uso, enquanto que para outras osinstrumentos não são de modo nenhum necessários.”127

[57] Além do mais, na primeira parte, diz que “a almahumana é a perfeição primeira do corpo naturalinstrumentado porquanto lhe cabe a realização de açõespor escolha deliberativa e chegar a descobrir pelameditação, à medida que apreende os universais.”128 Mastambém é verdadeiro o que diz depois e prova: que “aalma humana”, naquilo que lhe é próprio, quer dizer,segundo a sua força intelectiva, “não está para o corpocomo uma forma nem precisa de um órgão preparado paraela.”129

[58] Devem acrescentar-se ainda as palavras de al-Ghazalique dizem assim: “Quando a mistura dos elementos for damais bela e mais perfeita igualdade, ao ponto de nada maisdelicado e de mais belo se poder encontrar, então ela estáapta a receber do Doador das formas a forma mais bela detodas as formas, a alma humana. Mas esta alma possui

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hominis. Huius vero animae humanae duaesunt virtutes: una operans et altera sciens,quam vocat intellectum, ut exconsequentibus patet. Et tamen posteamultis argumentis probat, quod operatiointellectus non fit per organum corporale.

Haec autem praemisimus, non quasivolentes ex philosophorum auctoritatibusreprobare suprapositum errorem, sed utostendamus, quod non soli Latini, quorumverba quibusdam non sapiunt, sed etiamGraeci et Arabes hoc senserunt, quodintellectus sit pars vel potentia seu virtusanimae quae est corporis forma. Unde mirorex quibus Peripateticis hunc errorem seassumpsisse glorientur, nisi forte quia minusvolunt cum ceteris Peripateticis recte sapere,quam cum Averroe oberrare, qui non tamfuit Peripateticus, quam philosophiaePeripateticae depravator.

duas potências, uma que opera e outra que conhece.”130 Aesta última chama-lhe intelecto, como se patenteia peloque se segue. E logo prova com muitos argumentos que aoperação do intelecto não é feita através de um órgãocorporal.

[59] Ao avançarmos com tudo isto, não foi nossa intençãoreprovar o erro jà referido com os textos das autoridadesdos filósofos, mas mostrar que não foram só os Latinos,mas também os Gregos e os Árabes, que pensaram que ointelecto é uma parte ou potência ou faculdade da almaque é forma do corpo. Daí que me espante que algunsperipatéticos se gloriem de ter adotado este erro, a não serque em vez de quererem saber a verdade juntamente comos outros peripatéticos, prefiram enganar-se com Averróis,que não foi tão peripatético quanto o desencaminhador dafilosofia peripatética.131

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CAPUT 3

Ostenso igitur ex verbis Aristotelis etaliorum sequentium ipsum, quod intellectusest potentia animae quae est corporis forma,licet ipsa potentia, quae est intellectus, nonsit alicuius organi actus, quia nihil ipsiusoperationi communicat corporalis operatio,ut Aristoteles dicit; inquirendum est perrationes quid circa hoc sentire sit necesse. Etquia, secundum doctrinam Aristotelis,oportet ex actibus principia actuumconsiderare, ex ipso actu proprio intellectusqui est intelligere, primo hoc considerandumvidetur.In quo nullam firmiorem rationem haberepossumus ea quam Aristoteles ponit, et sicargumentatur: anima est primum quovivimus et intelligimus; ergo est ratioquaedam et species corporis cuiusdam. Etadeo huic rationi innititur, quod eam dicitesse demonstrationem; nam in principiocapituli sic dicit: non solum quod quid estoportet definitivam rationem ostendere,sicut plures terminorum dicunt, sed etcausam inesse et demonstrare; et ponitexemplum: sicut demonstratur quid esttetragonismus, i. e. quadratum perinventionem mediae lineae proportionalis.

Virtus autem huius demonstrationis etinsolubilitas apparet, quia quicumque ab hacvia divertere voluerint, necesse habentinconveniens dicere. Manifestum est enimquod hic homo singularis intelligit:nunquam enim de intellectu quaeremus, nisiintelligeremus; nec cum quaerimus deintellectu, de alio principio quaerimus, quamde eo quo nos intelligimus. Unde etAristoteles dicit: dico autem intellectum quointelligit anima. Concludit autem sicAristoteles: quod si aliquid est primumprincipium quo intelligimus, oportet illudesse formam corporis; quia ipse priusmanifestavit, quod illud quo primo aliquidoperatur, est forma. Et patet hoc perrationem, quia unumquodque agit inquantum est actu; est autem unumquodqueactu per formam; unde oportet illud, quoprimo aliquid agit, esse formam.

Si autem dicas quod principium huius actus,qui est intelligere, quod nominamusintellectum, non sit forma, oportet teinvenire modum quo actio illius principii sitactio huius hominis. Quod diversimode

CAPÍTULO III

[60] Uma vez demonstrado com base nas palavras deAristóteles e dos que o seguiram que o intelecto é umafaculdade da alma que é a forma de um corpo, ainda queem si mesma a potência que o intelecto é não seja o ato dequalquer órgão, “porque nada da sua operação comunicacom a operação corporal”, como Arístóteles diz132 temosde procurar argumentos com vista ao que se deve sustentaracerca desta questão. E uma vez que, segundo a doutrinade Aristóteles, convém examinar os princípios dos atos apartir dos próprios atos, parece que temos de examinar emprimeiro lugar o intelecto a partir do seu próprio ato que épensar.Relativamente a isto não podemos ter argumento maisseguro do que o de Aristóteles, no qual argumenta daseguinte maneira: “A alma é, em sentido primordial,aquilo pelo qual vivemos e pensamos, portanto é umacerta noção e forma” de um dado corpo133. E insiste tantoneste argumento que considera tratar-se de umademonstração, razão pela qual no princípio do capítulo dizassim: “A fórmula que exprime a definição há-de não sómostrar aquilo que é, tal como a maior parte dos termos ofazem, como também deve incluir a causa e demonstrá-la”134; e dá um exemplo: tal como se demonstra o que é otetragonismo, isto é, a quadratura, mediante a descobertade uma linha média proporcional.135

[61] Vê-se claramente a força desta demonstração e a suaincontestabilidade pelo fato de que os que quiseremafastar-se desta via necessariamente chegarão a proferiralgo inaceitável. E de fato evidente que este homem emconcreto pensa, pois nunca chegaríamos a procurar saber oque é o intelecto se não pensássemos; nem quandoprocuramos saber o que o intelecto é de nenhum princípiomais procuramos saber senão daquele pelo qual pensamos.Daí que Aristóteles diga: “Chamo intelecto àquilo peloqual a alma pensa”136. Portanto, Aristóteles conclui que sehá um princípio primeiro pelo qual pensamos ele deve sera forma do corpo, pois já tinha demonstrado antes que aforma é aquilo pelo qual em primeiro lugar alguma coisaage.137 E também se prova por um argumento: as coisasagem enquanto estão em ato; ora, é mediante uma formaque as coisas estão em ato; logo, aquilo pelo qual emprimeiro lugar as coisas agem é a sua forma.

[62] Mas se dizes que o princípio deste ato que é o pensar,e a que chamamos intelecto, não é forma [do corpo], entãodeves encontrar a maneira pela qual a ação desse princípioseja a ação deste homem. Alguns autores trataram de a

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quidam conati sunt dicere. Quorum unus,Averroes, ponens huiusmodi principiumintelligendi quod dicitur intellectuspossibilis, non esse animam nec partemanimae, nisi aequivoce, sed potius quod sitsubstantia quaedam separata, dixit quodintelligere illius substantiae separatae estintelligere mei vel illius, in quantumintellectus ille possibilis copulatur mihi veltibi per phantasmata quae sunt in me et in te.Quod sic fieri dicebat. Species enimintelligibilis, quae fit unum cum intellectupossibili, cum sit forma et actus eius, habetduo subiecta: unum ipsa phantasmata, aliudintellectum possibilem. Sic ergo intellectuspossibilis continuatur nobiscum per formamsuam mediantibus phantasmatibus; et sic,dum intellectus possibilis intelligit, hichomo intelligit.

Quod autem hoc nihil sit, patet tripliciter.Primo quidem, quia sic continuatiointellectus ad hominem non esset secundumprimam eius generationem, ut Theophrastusdicit et Aristoteles innuit in secundo Physic.,ubi dicit quod terminus naturalisconsiderationis de formis est ad formam,secundum quam homo generatur ab homineet a sole. Manifestum est autem quodterminus considerationis naturalis est inintellectu. Secundum autem dictumAverrois, intellectus non continuareturhomini secundum suam generationem, sedsecundum operationem sensus, in quantumest sentiens in actu. Phantasia enim estmotus a sensu secundum actum, ut dicitur inlibro de anima.

Secundo vero, quia ista coniunctio non essetsecundum aliquid unum, sed secundumdiversa. Manifestum est enim quod speciesintelligibilis, secundum quod est inphantasmatibus, est intellecta in potentia; inintellectu autem possibili est secundumquod est intellecta in actu, abstracta aphantasmatibus. Si ergo species intelligibilisnon est forma intellectus possibilis nisisecundum quod est abstracta aphantasmatibus, sequitur quod per speciemintelligibilem non continuaturphantasmatibus, sed magis ab eis estseparatus. Nisi forte dicatur quod intellectuspossibilis continuatur phantasmatibus, sicutspeculum continuatur homini cuius speciesresultat in speculo. Talis autem continuatiomanifestum est quod non sufficit adcontinuationem actus; manifestum est enimquod actio speculi, quae est repraesentare,non propter hoc potest attribui homini: undenec actio intellectus possibilis propter

explicar de diversos modos. Um deles é Averróis, quesustenta que esse princípio do pensamento a que damos onome de intelecto possível não é nem uma alma nem umaparte da alma, a não ser equivocamente, mas que é, issosim, uma dada substância separada. Diz que o pensar dessasubstância separada se torna no meu ou no teu pensarquando o intelecto possível comunica comigo ou contigomediante as imagens que se encontram em mim ou emti.138 E de acordo com ele isso acontece da seguintemaneira139: a espécie inteligível que faz um com ointelecto possível, porque é a sua forma e o seu ato, temdois sujeitos, sendo um as próprias imagens e o outro, ointelecto possível. Deste modo, o intelecto possível entraem contacto conosco pela sua forma por intermédio dasimagens; é desta maneira que, quando o intelecto possívelpensa, é este homem que pensa.

[63] Prova-se de três maneiras que esta tese é nula. Emprimeiro lugar, porque assim o contacto do intelecto com ohomem não se daria a partir do primeiro momento dageração, como Teofrasto diz e Aristóteles dá a entender nolivro II da Física, onde afirma que o termo de umaconsideração natural das formas é a forma segundo a qualo homem é gerado pelo homem e pelo Sol140. Porém éevidente que este termo da consideração natural é ointelecto; mas a seguir-se o que Averróis diz o intelectonão entraria em contacto com o homem desde a suageração, mas pela operação dos sentidos quando estãosentindo em ato; de fato, como diz o livro sobre A Alma, aimagem é “um movimento provocado pela sensação emato”.141

[64] Em segundo lugar, porque esta conjugação nãoaconteceria por alguma coisa de uno mas por coisasdistintas. Com efeito, é evidente que a espécie inteligível,enquanto está nas imagens, está em potência para serpensada; já no intelecto possível é pensada em ato,abstraída das imagens. Portanto, se a espécie inteligívelnão é forma do intelecto possível senão quando é abstraídadas imagens, segue-se que não é pela espécie inteligívelque o intelecto possível vai entrar em contacto com asimagens, mas que, em vez disso, está separado delas.142 Anão ser que alguém diga que o intelecto possível entra emcontacto com as imagens como um espelho entra emcontacto com o homem cuja espécie é refletida no espelho;é evidente que um contacto deste tipo não é suficiente paraa continuação do ato. Portanto, é óbvio que a ação doespelho, que consiste em representar, não pode ser por issoatribuída ao homem; daí que nem a ação do intelectopossível, em nome da aludida comunicação, possa ser

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praedictam copulationem posset attribuihuic homini qui est Socrates, ut hic homointelligeret.

Tertio, quia dato quod una et eadem speciesnumero esset forma intellectus possibilis, etesset simul in phantasmatibus: nec adhuctalis copulatio sufficeret ad hoc, quod hichomo intelligeret. Manifestum est enim,quod per speciem intelligibilem aliquidintelligitur, sed per potentiam intellectivamaliquid intelligit; sicut etiam per speciemsensibilem aliquid sentitur, per potentiamautem sensitivam aliquid sentit. Undeparies, in quo est color, cuius speciessensibilis in actu est in visu, videtur, nonvidet, animal autem habens potentiamvisivam, in qua est talis species, videt. Talisautem est praedicta copulatio intellectuspossibilis ad hominem, in quo suntphantasmata quorum species sunt inintellectu possibili, qualis est copulatioparietis in quo est color, ad visum in quo estspecies sui coloris. Sicut igitur paries nonvidet, sed videtur eius color; ita sequereturquod homo non intelligeret, sed quod eiusphantasmata intelligerentur ab intellectupossibili. Impossibile est ergo salvari quodhic homo intelligat, secundum positionemAverrois.

Quidam vero videntes quod secundum viamAverrois sustineri non potest quod hic homointelligat, in aliam diverterunt viam, etdicunt quod intellectus unitur corpori utmotor; et sic, in quantum ex corpore etintellectu fit unum, ut ex movente et moto,intellectus est pars huius hominis; et ideooperatio intellectus attribuitur huic homini,sicut operatio oculi, quae est videre,attribuitur huic homini. Quaerendum estautem ab eo qui hoc ponit, primo, quid sithoc singulare quod est Socrates: utrumSocrates sit solus intellectus, qui est motor;aut sit motum ab ipso, quod est corpusanimatum anima vegetativa et sensitiva; autsit compositum ex utroque. Et quantum exsua positione videtur, hoc tertium accipiet:quod Socrates sit aliquid compositum exutroque.

Procedamus ergo contra eos per rationemAristotelis in Metaph.: quid est igitur quodfacit unum hominem? Omnium enim quaeplures partes habent et non sunt quasicoacervatio totum, sed est aliquod totumpraeter partes, est aliqua ratio unum essendi:

atribuída a este homem que é Sócrates, de maneira a queeste homem pense.143

[65] Em terceiro lugar, porque, supondo que uma sóespécie numericamente idêntica fosse a forma do intelectopossível e ao mesmo tempo estivesse contida nas imagens,nem assim uma tal comunicação seria suficiente para queeste homem pensasse. É evidente, pois, que alguma coisa épensada mediante a espécie inteligível enquanto quealguma coisa pensa pela potência intelectiva, tal como pelaespécie sensível se sente alguma coisa enquanto que é pelapotência sensitiva que alguma coisa sente. De onde, aparede, na qual se encontra a cor, cuja espécie sensível emato está na vista, ser uma coisa que se vê não uma coisaque vê; o animal, por seu lado, que tem a faculdade de ver,na qual a espécie sensível se encontra, vê. É tal e qual areferida comunicação do intelecto possível com o homem,em quem se encontram as imagens cujas espécies estão nointelecto possível, como a comunicação da parede, na qualestá a cor, com a vista, na qual está a espécie da sua cor.Tal como a parede não vê, mas se vê a sua cor, assimtambém o homem não pensaria, mas as suas imagensseriam pensadas pelo intelecto possível144. É impossível,por conseguinte, caso se adopte a posição de Averróis,salvar a tese de que este homem pensa.

[66] Outros, ainda, vendo que na perspectiva de Averróisnão se poderia defender que este homem pensa, adotaramuma posição diferente. Dizem que o intelecto se une aocorpo como um motor. Assim sendo, o intelecto é partedeste homem na medida em que o intelecto e o corpoconstituem uma unidade como a de um motor e ummovido; em conformidade, atribui-se a operação dointelecto a este homem, tal como também se atribui a estehomem a operação do olho, que consiste em ver. A quemdefende esta tese tem porém de se perguntar, de imediato,quem é este homem singular, que é Sócrates, e, assim, seSócrates é apenas o intelecto que é motor? Ou é antesaquilo que é movido pelo intelecto, isto é, um corpoanimado por uma alma vegetativa e sensitiva? Ou será umcomposto dos dois? Pelo que parece resultar da suaposição, esse defensor escolherá a terceira hipótese, a deque Sócrates é um composto dos dois.145

[67] Avancemos então contra os defensores desta teseservindo-nos do argumento de Aristóteles no livro VIII daMetafísica: “O que é que faz a unidade do homem?”146

“Em qualquer coisa constituída por várias partes e cujatotalidade não é um mero amontoado, mas um todo alémdas suas partes, há uma causa para que constituam uma

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sicut in quibusdam tactus, in quibusdamviscositas, aut aliquid aliud huiusmodi (...)palam autem quia si sic transformant, utconsueverunt definire et dicere, noncontingit reddere et solvere dubitationem. Siautem est ut dicimus: hic quidem materia,illud vero forma, et hoc quidem potestate,illud vero actu, non adhuc dubitatiovidebitur esse.

Sed si tu dicas, quod Socrates non est unumquid simpliciter, sed unum quidaggregatione motoris et moti, sequunturmulta inconvenientia. Primo quidem, quiacum unumquodque sit similiter unum et ens,sequitur quod Socrates non sit aliquod ens,et quod non sit in specie nec in genere; etulterius, quod non habeat aliquam actionem,quia actio non est nisi entis. Unde nondicimus quod intelligere nautae sitintelligere huius totius quod est nauta etnavis, sed nautae tantum; et similiterintelligere non erit actus Socratis, sedintellectus tantum utentis corpore Socratis.In solo enim toto quod est aliquid unum etens, actio partis est actio totius; et si quisaliter loquatur, improprie loquitur.Et si tu dicas, quod hoc modo caelumintelligit per motorem suum, est assumptiodifficilioris. Per intellectum enim humanumoportet nos devenire ad cognoscendumintellectus superiores, et non e converso.

Si vero dicatur quod hoc individuum, quodest Socrates, est corpus animatum animavegetativa et sensitiva, ut videtur sequisecundum eos qui ponunt quod hic homonon constituitur in specie per intellectum,sed per animam sensitivam nobilitatam exaliqua illustratione seu copulationeintellectus possibilis: tunc intellectus non sehabet ad Socratem, nisi sicut movens admotum. Sed secundum hoc actio intellectusquae est intelligere, nullo modo poteritattribui Socrati. Quod multipliciter apparet.

Primo quidem per hoc quod dicitphilosophus in nono Metaph., quod quorumdiversum erit aliquid praeter usum quod fit,horum actus in facto est, ut aedificatio inaedificato, et contextio in contexto; similiterautem et in aliis, et totaliter motus in moto.Quorum vero non est aliud aliquod opuspraeter actionem, in eis existit actio, ut visioin vidente et speculatio in speculante. Sicergo, etsi intellectus ponatur uniri Socrati utmovens, nihil proficit ad hoc quodintelligere sit in Socrate, nedum quod

unidade, por exemplo: para alguns é o contacto, paraoutros, a viscosidade ou alguma coisa do gênero (...). Ora,é notório que, se há transformações assim, conforme ascostumam definir e expor, não se poderá resolver ousolucionar a dúvida. Mas se for como dizemos, que umacoisa é a matéria e outra a forma e que uma coisa é o serem potência e outra coisa o ser em ato, então não pareceque a dúvida se mantenha.”147

[68] Mas se dizes que Sócrates não é algo de uno emsentido absoluto, mas uno por agregação de um motor eum movido, seguem-se muitos inconvenientes. Primeiro.Como tudo o que existe é igualmente uno e ser148, segue-seque Sócrates não seria um ser nem pertenceria a umgênero e a uma espécie e, além do mais, seria incapaz dequalquer ação visto que só um ser é capaz de ação. Deonde não dizermos que o pensar de um timoneiro seja opensar do todo formado pelo timoneiro e pelo navio, mastão-só do timoneiro; de igual modo, o pensar de Sócratesnão seria o ato de Sócrates, mas apenas o ato do intelectoque usa o corpo de Sócrates: de fato, só apenas num todoque seja uno e ser é que a ação da parte será a ação dotodo. Se alguém disser outra coisa falará sem propriedade.E se dizes que também o céu pensa desta maneira, peloseu motor, admites o que é mais difícil, pois é pelointelecto humano que devemos chegar ao conhecimentodos intelectos superiores e não ao contrário.149

[69] Mas se se disser que este indivíduo, Sócrates, é umcorpo animado por uma alma vegetativa e sensitiva, comoparece depreender-se dos que sustentam que este homemnão é especificamente constituído pelo intelecto, mas pelaalma sensitiva enobrecida por certa iluminação ou uniãodo intelecto possível, então o intelecto não estaria paraSócrates senão como o motor está para o movido. Nestecaso, porém, a ação do intelecto que consiste em pensarnão poderia ser de maneira nenhuma atribuída a Sócrates.Isto evidencia-se de muitas maneiras.150

[70] Em primeiro lugar, a partir do que Aristóteles diz nolivro IX da Metafísica, que “nas coisas em que aquilo queé produzido está para além da sua feitura, o ato estánaquilo que é feito, como a ação de edificar está noedifício e a ação de tecer no que é tecido; é o mesmo emtudo o mais, o movimento está completamente no movido.Já naquelas coisas em que a obra não se distingue da ação,a ação existe nelas, como a visão está em quem vê e aespeculação naquele que especula.”151 Assim, pois, mesmoque se sustente que o intelecto se une a Sócrates comomotor, isso em nada serve ao fato de o pensamento estar

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Socrates intelligat: quia intelligere est actioquae est in intellectu tantum. Ex quo etiampatet falsum esse quod dicunt, quodintellectus non est actus corporis, sed ipsumintelligere. Non enim potest esse alicuiusactus intelligere, cuius non sit actusintellectus: quia intelligere non est nisi inintellectu, sicut nec visio nisi in visu; undenec visio potest esse alicuius, nisi illiuscuius actus est visus.

Secundo, quia actio moventis propria nonattribuitur instrumento aut moto, sed magise converso, actio instrumenti attribuiturprincipali moventi: non enim potest diciquod serra disponat de artificio; potesttamen dici quod artifex secat, quod est opusserrae. Propria autem operatio ipsiusintellectus est intelligere; unde, dato etiamquod intelligere esset actio transiens inalterum sicut movere, non sequitur quodintelligere conveniret Socrati, si intellectusuniatur ei solum ut motor.

Tertio, quia in his quorum actiones inalterum transeunt, opposito modoattribuuntur actiones moventibus et motis.Secundum aedificationem enim aedificatordicitur aedificare, aedificium vero aedificari.Si ergo intelligere esset actio in alterumtransiens sicut movere, adhuc non essetdicendum quod Socrates intelligeret, ad hocquod intellectus uniretur ei ut motor, sedmagis quod intellectus intelligeret, etSocrates intelligeretur; aut forte quodintellectus intelligendo moveret Socratem, etSocrates moveretur.

Contingit tamen quandoque, quod actiomoventis traducitur in rem motam, puta cumipsum motum movet ex eo quod movetur, etcalefactum calefacit. Posset ergo aliquis sicdicere, quod motum ab intellectu, quiintelligendo movet, ex hoc ipso quodmovetur, intelligit. Huic autem dictoAristoteles resistit in secundo de anima,unde principium huius rationisassumpsimus. Cum enim dixisset quod idquo primo scimus et sanamur est forma, scil.scientia et sanitas, subiungit: videtur enim inpatiente et disposito, activorum inesse actus.Quod exponens Themistius dicit: nam etsiab aliis aliquando scientia et sanitas est,puta a docente et medico; tamen in patienteet disposito facientium inexistere actusostendimus prius, in his quae de natura.

em Sócrates, e muito menos ao fato de Sócrates pensar,porque pensar é uma ação que apenas se dá no intelecto.Por aqui se mostra ser falso aquilo que eles dizem, a saber,que não é o intelecto que é o ato do corpo, mas o própriopensamento; com efeito, o pensamento não pode ser o atodaquilo cujo ato não seja o pensamento, uma vez que opensamento só existe no intelecto, assim como a visão sóexiste na vista; daqui se segue que a visão só podepertencer àquele que tem como ato a vista.

[71] Em segundo lugar, porque a ação própria do motornão é atribuída ao instrumento ou ao que é movido, masantes ao contrário, a ação do instrumento é que é atribuídaao motor principal, Na verdade, não se pode dizer que aserra disponha do artesão, mas já se pode dizer que oartesão corta, que é a obra da serra. Assim, pensar é aoperação própria do intelecto; daí que mesmo que opensamento fosse uma ação que se exerce numa outracoisa, tal como o ato de mover, não se seguiria que opensar pertencesse a Sócrates caso o intelecto se lhe unisseapenas como motor.

[72] Em terceiro lugar, porque naqueles seres cujas açõesse exercem sobre outros, a ação do motor e a ação do queé movido é-lhes atribuído de uma maneira oposta. Numaconstrução, por exemplo, diz-se que o construtor constróie que o edifício é construído. Portanto, se pensar fosseuma ação que se exerce em outra coisa, tal como o ato demover, não se poderia dizer que Sócrates pensa por ointelecto se lhe unir como motor, mas antes que o intelectopensa e que Sócrates é pensado152, ou, talvez, que ointelecto, ao pensar, move Sócrates e que Sócrates émovido.

[73] Porém, por vezes acontece que a ação do motor setransfere para a coisa movida, por exemplo, quando o queé movido move pelo fato de ser movido, ou quando o queé aquecido aquece. Poderia dizer-se, portanto, que aquiloque é movido pelo intelecto, que ao pensar move, pensapor causa de ser movido. Mas Aristóteles contraria isto nolivro II sobre A Alma, onde fomos buscar o princípio desteargumento. De fato, quando diz que aquilo pelo qual nósconhecemos e saramos é primeiramente a forma153, querdizer, a ciência e a saúde, acrescenta: “Pois parece que éno paciente, que se dispõe, que reside o ato dos ativos.”154

O que Temístio explica da seguinte maneira: “Com efeito,ainda que por vezes a ciência e a saúde derivem deoutrem, a saber, do docente e do médico, mostramos antes,no que dissemos sobre A Natureza, que é no paciente, quese dispõe, que reside o ato daquilo que os realiza.”155

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Est ergo intentio Aristotelis, et evidenter estverum, quod quando motum movet et habetactionem moventis, oportet quod insit eiactus aliquis a movente, quo huiusmodiactionem habeat; et hoc est primum quoagit, et est actus et forma eius, sicut sialiquid est calefactum, calefacit per caloremqui inest ei a calefaciente.Detur ergo quod intellectus moveat animamSocratis, vel illustrando vel quocumquemodo: hoc quod est relictum ab impressioneintellectus in Socrate, est primum quoSocrates intelligit. Id autem quo primoSocrates intelligit, sicut sensu sentit,Aristoteles probavit esse in potentia omnia,et per hoc non habere naturamdeterminatam, nisi hanc quod sit possibilis;et per consequens, quod non misceaturcorpori, sed sit separatus. Dato ergo, quodsit aliquis intellectus separatus movensSocratem, tamen adhuc oportet quod isteintellectus possibilis, de quo Aristotelesloquitur, sit in anima Socratis, sicut etsensus, qui est in potentia ad omniasensibilia, quo Socrates sentit.

Si autem dicatur quod hoc individuum, quodest Socrates, neque est aliquid compositumex intellectu et corpore animato, neque estcorpus animatum tantum, sed est solumintellectus; haec iam erit opinio Platonis,qui, ut Gregorius Nyssenus refert, propterhanc difficultatem non vult hominem exanima et corpore esse, sed animam corporeutentem et velut indutam corpore. Sed etPlotinus, ut Macrobius refert, ipsam animamhominem esse testatur, sic dicens: ergo quividetur, non ipse verus homo est, sed ille aquo regitur quod videtur. Sic, cum morteanimalis discedit animatio, cadit corpus aregente viduatum; et hoc est quod videtur inhomine mortale. Anima vero, quae verushomo est, ab omni mortalitatis conditionealiena est. Qui quidem Plotinus, unus demagnis commentatoribus, ponitur intercommentatores Aristotelis, ut Simpliciusrefert in commento praedicamentorum.Haec autem sententia nec a verbisAristotelis multum aliena videtur. Dicitenim in nono Ethic., quod boni hominis estbonum elaborare et sui ipsius gratia:intellectivi enim gratia quod unusquisqueesse videtur. Quod quidem non dicit propterhoc quod homo sit solus intellectus, sed quiaid quod est in homine principalius est

É isto, portanto, o que Aristóteles quer dizer, e éevidentemente a verdade: quando o que é movido se movee tem a ação do motor, é preciso que por causa do motorlhe seja inerente um certo ato em virtude do qual possuiessa ação, e isso é o princípio primeiro pelo qual age, e é oseu ato e a sua forma, tal como quando algo é aquecidoaquece por causa do calor que passou a deter a partirdaquilo que o fez aquecer.Admitamos, então, que o intelecto move a alma deSócrates quer iluminando-a quer de alguma outra maneira,o que fica da impressão do intelecto em Sócrates é oprincípio primeiro pelo qual Sócrates pensa. Ora,Aristóteles provou que aquilo pelo qual primeiro Sócratespensa, tal como pelos sentidos sente, era em potência todasas coisas, razão pela qual não tem uma naturezadeterminada exceto a de ser possível; e,consequentemente, provou que não se mistura com ocorpo, mas que é separado.156 Admitindo-se portanto quehá algum intelecto separado que move Sócrates, é todaviapreciso que este intelecto possível de que fala Aristótelesesteja na alma de Sócrates, tal como os sentidos que estãoem potência para todos os sensíveis e com o qual Sócratessente.

[74] Mas se dissermos que este indivíduo, que é Sócrates,não é nem um ser composto pelo intelecto e por um corpoanimado nem apenas um corpo animado, mas é apenasintelecto, estaríamos já na opinião de Platão, o qual,conforme refere Gregório de Nissa, “perante estadificuldade, não admitiu que o homem fosse composto dealma e corpo, mas antes uma alma usando um corpo ecomo que revestida por um corpo.”157 Também Plotino,como refere Macróbio, confirma que o homem é mesmouma alma, dizendo o seguinte: “Pois o que vemos não épropriamente o homem verdadeiro, o homem verdadeiro éo que rege o corpo que vemos. Por isso, quando com amorte do animal desaparece a sua animação, perece ocorpo despojado do que o regia e é isto que vemosacontecer ao homem mortal. Já a alma, por ser o homemverdadeiro, escapa a toda a condição mortal.”158 EstePlotino figura entre os grandes comentadores deAristóteles, tal como Simplício refere no Comentário àsCategorias.159

De fato, esta doutrina não parece ser muito estranha aostextos de Aristóteles. Ele diz, realmente, no livro IX daÉtica que “é próprio do homem bom trabalhar para o beme para si mesmo; porque cada homem parece estarordenado para a parte intelectiva.”160 Ora, não diz isto porcausa de o homem ser só intelecto, mas porque o intelectoé o que há de principal no homem; daí que na sequência

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intellectus; unde in consequentibus dicit,quod quemadmodum civitasprincipalissimum maxime esse videtur, etomnis alia constitutio, sic et homo; undesubiungit, quod unusquisque homo vel esthoc, scil. intellectus, vel maxime. Et perhunc modum arbitror et Themistium inverbis supra positis, et Plotinum in verbisnunc inductis, dixisse quod homo est animavel intellectus.

Quod enim homo non sit intellectus tantum,vel anima tantum, multipliciter probatur.Primo quidem, ab ipso Gregorio Nysseno,qui inducta opinione Platonis subdit: habetautem hic sermo difficile vel indissolubilequid. Qualiter enim unum esse potest cumindumento anima? Non enim unum esttunica cum induto.Secundo, quia Aristoteles in septimoMetaph. probat quod homo et equus etsimilia non sunt solum forma, sed totumquoddam ex materia et forma utuniversaliter; singulare vero ex ultimamateria ut Socrates iam est, et in aliissimiliter. Et hoc probavit per hoc, quodnulla pars corporis potest definiri sine partealiqua animae; et recedente anima, necoculus nec caro dicitur nisi aequivoce: quodnon esset, si homo aut Socrates esset tantumintellectus aut anima.Tertio, sequeretur quod, cum intellectus nonmoveat nisi per voluntatem, ut probatur intertio de anima, hoc esset de rebus subiectisvoluntati, quod retineret homo corpus cumvellet, et abiiceret cum vellet: quodmanifeste patet esse falsum.

Sic igitur patet quod intellectus non uniturSocrati solum ut motor; et quod, etiam sihoc esset, nihil proficeret ad hoc quodSocrates intelligeret. Qui ergo hancpositionem defendere volunt, autconfiteantur se nihil intelligere, et indignosesse cum quibus aliqui disputent, autconfiteantur quod Aristoteles concludit:quod id quo primo intelligimus est species etforma.

Potest etiam hoc concludi ex hoc, quod hichomo in aliqua specie collocatur. Speciemautem sortitur unumquodque ex forma. Idigitur per quod hic homo speciem sortitur,forma est. Unumquodque autem ab eospeciem sortitur, quod est principiumpropriae operationis speciei. Propria autem

do texto diga que “tal como a cidade ou qualquer outraconstituição parece ser o que há de principal no seu maisalto grau, assim também com o homem”161; acrescentandologo que “todo o homem é ou isso, quer dizer, o intelecto,ou sobretudo isso.”162 Julgo que é neste sentido queTemístio, nas palavras já citadas, e Plotino, nas queacabamos de citar, disseram que o homem é alma ouintelecto.163

[75] Prova-se de muitos modos que o homem não é, defato, apenas o intelecto ou apenas a alma. Em primeirolugar, pelo próprio Gregório de Nissa que, depois de expora opinião de Platão, acrescenta: “Este texto tem qualquercoisa de difícil ou de insolúvel: como é que, realmente, aalma pode formar um uno com aquilo que a reveste? Atúnica e quem a veste não formam um uno.”164

Em segundo lugar, porque no livro VII da Metafísica,Aristóteles prova que “homem e cavalo ou outrosuniversais” não são apenas formas, “mas um todocomposto de matéria e forma tomada universalmente; umsingular, por seu lado, consta da matéria última, tal comoSócrates que existe logo com ela, e a mesma coisa emrelação aos outros singulares.”165 E a prova estava no fatode nenhuma parte do corpo poder ser definida sem umaparte da alma e, ao desaparecer a alma, o olho e a carne sópoderem ser chamados assim de maneira equívoca, o quenão sucederia se o homem ou Sócrates fossem apenasintelecto ou alma.Em terceiro lugar, uma vez que o intelecto só é movidopela vontade, como se prova com o livro III d’A Alma166

seguir-se-ía que ele estaria entre aquilo que se encontrasubmetido à vontade, mantendo o homem junto de si ocorpo quando quisesse e separando-se dele tambémquando quisesse, o que é obviamente falso.

[76] Assim se esclarece que o intelecto não se encontraapenas unido a Sócrates como um motor, e que, mesmoque assim fosse, isso de nada adiantaria ao fato de queSócrates pensa. Por conseguinte, aqueles que queremdefender esta posição devem ou confessar que nadapensam e que não são dignos de que disputem com eles ouconfessar que Aristóteles concluiu que aquilo pelo qualpensamos em sentido primordial é espécie e forma.167

[77] Também se pode chegar à mesma conclusão a partirdo fato de o homem individual se integrar numa espécie.168

A espécie que cabe a cada um depende da forma; porconseguinte, aquilo pelo qual a este homem cabe umaespécie é a forma. Mas a espécie que a cada um caberesulta do princípio da operação própria da espécie; ora, a

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operatio hominis, in quantum est homo, estintelligere; per hoc enim differt ab aliisanimalibus: et ideo in hac operationeAristoteles felicitatem ultimam constituit.Principium autem quo intelligimus estintellectus, ut Aristoteles dicit. Oportetigitur ipsum uniri corpori ut formam, nonquidem ita quod ipsa intellectiva potentia sitalicuius organi actus, sed quia est virtusanimae, quae est actus corporis physiciorganici.

Adhuc, secundum istorum positionem,destruuntur moralis philosophiae principia:subtrahitur enim quod est in nobis. Nonenim est aliquid in nobis nisi pervoluntatem; unde et hoc ipsum voluntariumdicitur, quod in nobis est. Voluntas autem inintellectu est, ut patet per dictum Aristotelisin tertio de anima; et per hoc quod insubstantiis separatis est intellectus etvoluntas; et per hoc etiam, quod contingitper voluntatem aliquid in universali amarevel odire, sicut odimus latronum genus, utAristoteles dicit in sua rhetorica. Si igiturintellectus non est aliquid huius hominis utsit vere unum cum eo, sed unitur ei solumper phantasmata, vel sicut motor, non erit inhoc homine voluntas, sed in intellectuseparato. Et ita hic homo non erit dominussui actus, nec aliquis eius actus eritlaudabilis vel vituperabilis: quod estdivellere principia moralis philosophiae.Quod cum sit absurdum, et vitae humanaecontrarium (non enim esset necesseconsiliari, nec leges ferre), sequitur quodintellectus sic uniatur nobis ut vere ex eo etnobis fiat unum; quod vere non potest essenisi eo modo quo dictum est, ut sit scil.potentia animae quae unitur nobis ut forma.Relinquitur igitur hoc absque omnidubitatione tenendum, non propterrevelationem fidei, ut ipsi dicunt, sed quiahoc subtrahere est niti contra manifesteapparentia.

Rationes vero quas in contrarium adducunt,non difficile est solvere. Dicunt enim quodex hac positione sequitur quod intellectus sitforma materialis, et non sit denudata abomnibus naturis rerum sensibilium; et quodper consequens quidquid recipitur inintellectu, recipietur sicut in materiaindividualiter et non universaliter.Et ulterius, quod si est forma materialis,quod non est intellecta in actu; et itaintellectus non poterit se intelligere, quodest manifeste falsum: nulla enim formamaterialis est intellecta in actu sed in

operação própria do homem, enquanto é homem, consisteem pensar, pois é nisto que difere dos outros animais, epor isso é que Aristóteles deposita a última felicidadenessa operação.169 O princípio pelo qual pensamos é ointelecto, tal como Aristóteles diz.170 Deve, portanto, unir-se ao corpo como uma forma, não de maneira a que aprópria potência intelectiva seja o ato de algum órgão, maspor ser uma faculdade da alma que é o ato de um corponatural organizado.

[78] Além disso, a seguir-se a posição deles, pelo fato denos ser retirado o que está em nós, ficam destruídos osprincípios da filosofia moral. Na verdade, nada está emnós a não ser pela vontade; e daí o chamar-se ‘voluntário’precisamente àquilo que está em nós. Ora, a vontade estáno intelecto, como se patenteia pelo que Aristóteles diz nolivro III sobre A Alma171, e porque nas substânciasseparadas há intelecto e há vontade; e também pelo fato deser pela vontade que amamos ou odiamos alguma coisa emgeral, por exemplo, quando odiamos o gênero dos ladrões,como diz Aristóteles na sua Retórica172. Deste modo, se ointelecto não fizer parte deste homem, ao ponto de formarautenticamente um uno com ele, mas se lhe unir apenaspelas imagens ou como um motor, a vontade não fará partedeste homem concreto, mas do intelecto separado. A serassim, este homem não será senhor dos seus atos nemnenhum dos seus atos será digno de louvor ou decondenação, o que equivale a despedaçar os princípios dafilosofia moral. Uma vez que isto é absurdo e é contrário àvida humana (nesse caso não seria preciso nem aconselharnem legislar), segue-se que o intelecto está unido a nós demaneira a que a sua união conosco forme algo deverdadeiramente uno. Mas isto só pode realmente sucedertal como dissemos, a saber: sendo o intelecto uma potênciada alma que se une a nós como forma. Só nos resta, pois,fora de qualquer dúvida, sustentar esta tese, não por causade uma revelação da fé como eles dizem, mas porquenegá-la seria ir contra uma manifesta evidência.

[79] Os argumentos que em contrário eles aduzem não sãodifíceis de resolver. Dizem, na verdade, que da nossaposição se segue que o intelecto é uma forma material,forma não desnudada de todas as naturezas das coisassensíveis, e que, em consequência, tudo o que é recebidono intelecto é recebido como numa matéria,individualmente e não universalmente.Também dizem que, se é uma forma material, não épensada em ato e que, por isso, o intelecto não poderiapensar-se, o que é manifestamente falso, Mas nenhumaforma material é pensada em ato, só apenas em potência,

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potentia tantum; fit autem intellecta in actuper abstractionem.

Horum autem solutio apparet ex his quaepraemissa sunt. Non enim dicimus animamhumanam esse formam corporis secundumintellectivam potentiam, quae, secundumdoctrinam Aristotelis, nullius organi actusest: unde remanet quod anima, quantum adintellectivam potentiam, sit immaterialis, etimmaterialiter recipiens, et se ipsamintelligens. Unde et Aristoteles signanterdicit quod anima est locus specierum, nontota, sed intellectus.

Si autem contra hoc obiiciatur, quodpotentia animae non potest esseimmaterialior aut simplicior quam eiusessentia: optime quidem procederet ratio siessentia humanae animae sic esset formamateriae, quod non per esse suum esset, sedper esse compositi, sicut est de aliis formis,quae secundum se nec esse nec operationemhabent praeter communicationem materiae,quae propter hoc materiae immersaedicuntur. Anima autem humana, quiasecundum suum esse est, cui aliqualitercommunicat materia non totalitercomprehendens ipsam, eo quod maior estdignitas huius formae quam capacitasmateriae; nihil prohibet quin habeat aliquamoperationem vel virtutem ad quam materianon attingit.

Consideret autem qui hoc dicit, quod si hocintellectivum principium, quo nosintelligimus, esset secundum esse separatumet distinctum ab anima quae est corporisnostri forma, esset secundum se intelligenset intellectum; et non quandoqueintelligeret, quandoque non; neque etiamindigeret ut se ipsum cognosceret perintelligibilia et per actus, sed per essentiamsuam, sicut aliae substantiae separatae.Neque etiam esset conveniens quod adintelligendum indigeret phantasmatibusnostris: non enim invenitur in rerum ordinequod superiores substantiae ad suasprincipales perfectiones indigeantinferioribus substantiis, sicut nec corporacaelestia formantur aut perficiuntur ad suasoperationes ex corporibus inferioribus.Magnam igitur improbabilitatem continetsermo dicentis quod intellectus sit quoddamprincipium secundum substantiamseparatum, et tamen quod per species aphantasmatibus acceptas perficiatur et fiatactu intelligens.

pela abstração é que é pensada em ato.

[80] A partir do que dissemos acima, fica clara a respostaa estes argumentos. De fato, não dizemos que a almahumana é a forma do corpo segundo a potência intelectiva,a qual, segundo a doutrina de Aristóteles, não é o ato denenhum órgão.173 Daqui resulta que a alma, no que toca àpotência intelectiva, é imaterial, que ela recebeimaterialmente e que se pensa a si mesma. Por esta razão,Aristóteles diz, ratificando, que a alma é o lugar dasespécies, “não ela toda, mas o intelecto.”174

[81] Se porém se objetar a isto que uma potência da almanão pode ser nem mais imaterial nem mais simples do quea sua essência, digo que seria um ótimo argumento se aessência da alma humana fosse forma de uma matéria, nãoem função do seu próprio ser, mas do ser do composto175,tal como acontece com as outras formas, as quais por si sótêm ser e operação por comunicarem com a matéria, razãopela qual se diz que elas imergem na matéria. Já quanto àalma humana, uma vez que é por si e que, de uma certamaneira, a matéria comunica com ela sem a abarcar porcompleto, pois a dignidade desta forma é maior do que acapacidade da matéria, nada impede que a alma tenha umacerta operação ou faculdade que não atinge a matéria.

[82] Que quem defende esta posição considere, por fim,que se o princípio intelectivo pelo qual pensamos fosseseparado segundo o seu próprio ser e distinto da alma queé forma do nosso corpo, seria em si pensante e pensado, enão poderia umas vezes pensar e noutras não pensar; nemsequer precisaria de se conhecer por meio de inteligíveis epor um ato, mas pela sua essência, tal como as outrassubstâncias separadas. De igual modo, para pensar, não lheseria indispensável recorrer às nossas imagens sensíveis,pois, na ordem das coisas, não é preciso que as substânciassuperiores necessitem das substâncias inferiores parachegarem às suas perfeições principais; tal como nem oscorpos celestes são formados e aperfeiçoados nas suasoperações por meio dos corpos inferiores.É portanto altamente improvável a tese que defende que ointelecto é um certo princípio separado segundo asubstância e que todavia se aperfeiçoe e comece a pensarem ato por intermédio das espécies recebidas das imagens.

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CAPUT 4

His igitur consideratis, quantum ad id quodponunt intellectum non esse animam quaeest nostri corporis forma, neque partemipsius, sed aliquid secundum substantiamseparatum; considerandum restat de hocquod dicunt intellectum possibilem esseunum in omnibus. Forte enim de agente hocdicere, aliquam rationem haberet, et multiphilosophi hoc posuerunt. Nihil eniminconveniens videtur sequi, si ab uno agentemulta perficiantur, quemadmodum ab unosole perficiuntur omnes potentiae visivaeanimalium ad videndum; quamvis etiam hocnon sit secundum intentionem Aristotelis,qui posuit intellectum agentem esse aliquidin anima, unde comparavit ipsum lumini.Plato autem ponens intellectum unumseparatum, comparavit ipsum soli, utThemistius dicit. Est enim unus sol, sedplura lumina diffusa a sole ad videndum.Sed quidquid sit de intellectu agente, dicereintellectum possibilem esse unum omniumhominum, multipliciter impossibile apparet.

Primo quidem, quia si intellectus possibilisest quo intelligimus, necesse est dicere quodhomo singularis intelligens vel sit ipseintellectus, vel intellectus formaliter eiinhaereat, non quidem ita quod sit formacorporis, sed quia est virtus animae quae estforma corporis.Si quis autem dicat quod homo singularis estipse intellectus, consequens est quod hichomo singularis non sit alius ab illo hominesingulari, et quod omnes homines sint unushomo, non quidem participatione speciei,sed secundum unum individuum.Si vero intellectus inest nobis formaliter,sicut iam dictum est, sequitur quoddiversorum corporum sint diversae animae.Sicuti enim homo est ex corpore et anima,ita hic homo, ut Callias aut Socrates, ex hoccorpore et ex hac anima. Si autem animaesunt diversae, et intellectus possibilis estvirtus animae qua anima intelligit, oportetquod differat numero; quia nec fingerepossibile est quod diversarum rerum sit unanumero virtus.Si quis autem dicat quod homo intelligit perintellectum possibilem sicut per aliquid sui,quod tamen est pars eius, non ut forma sedsicut motor; iam ostensum est supra quodhac positione facta, nullo modo potest diciquod Socrates intelligat.

CAPÍTULO IV

[83] Conhecidas as razões da tese de que o intelecto não éa alma que é a forma do nosso corpo nem uma parte dessaalma, mas algo separado segundo a substância, faltaexaminar as razões que os leva a dizer que o intelectopossível é único para todos os homens. Talvez afirmar istoem relação ao intelecto agente ainda fosse razoável, emuitos filósofos assim pensaram; de fato, não pareceseguir-se nenhum inconveniente se se admitir que váriascoisas são aperfeiçoadas por um único agente, como que àmaneira de um único Sol que aperfeiçoa todas as potenciasvisuais dos animais para verem, ainda que isto não sejaconforme à intenção de Aristóteles, o qual, ao compará-loa um lume, defendeu que o intelecto agente é qualquercoisa na alma. Por seu lado, Platão, ao defender um únicointelecto separado, comparou-o ao Sol176, conformeTemístio diz porque há um único Sol mas muitas luzesdifundidas pelo Sol que nos permitem ver. Contudo, sejaqual for o estatuto do intelecto agente, dizer que ointelecto possível é único para todos os homens é absurdopor muitos motivos.

[84] Em primeiro lugar, porque se o intelecto possível éaquilo pelo qual pensamos, então é necessário dizer queum homem singular que pensa ou é o próprio intelecto ouque o intelecto lhe é formalmente inerente, não (bementendido), como forma do corpo, mas porque é afaculdade de uma alma que é forma de um corpo.177

Se alguém disser que um homem concreto é o própriointelecto, seguir-se-á que este homem singular não sedistingue daquele homem singular e que todos os homenssão um só homem, não, é claro, pela participação naespécie, mas segundo um único indivíduo.Todavia, se o intelecto se encontrar em nós formalmente,tal como já dissemos, segue-se que as almas são diversasconforme os diversos corpos. Tal como o homem constade um corpo e de uma alma, assim também este homem,seja Cálias ou Sócrates, consta deste corpo e desta alma.Mas se as almas são diversas e se o intelecto possível é afaculdade da alma pela qual a alma pensa, então é precisoque ele seja diferente em número, pois nem sequer épossível imaginar que haja uma faculdade numericamenteúnica para coisas diversas.Mas se alguém disser que o homem pensa pelo intelectopossível como por qualquer coisa de seu, sem ser partedele como uma forma mas como um motor, já acimamostramos que, admitida tal hipótese, de maneiranenhuma se pode dizer que Sócrates pensa.178

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Sed demus quod Socrates intelligat per hocquod intellectus intelligit, licet intellectus sitsolum motor, sicut homo videt per hoc quodoculus videt; et, ut similitudinem sequamur,ponatur quod omnium hominum sit unusoculus numero: inquirendum restat, utrumomnes homines sint unus videns vel multividentes. Ad cuius veritatis inquisitionemconsiderare oportet quod aliter se habet deprimo movente, et aliter de instrumento. Sienim multi homines utantur uno et eodeminstrumento numero, dicentur multioperantes; puta, cum multi utuntur unamachina ad lapidis proiectionem velelevationem. Si vero principale agens situnum, quod utatur multis ut instrumentis,nihilominus operans est unum, sed forteoperationes diversae propter diversainstrumenta; aliquando autem et operatiouna, etsi ad eam multa instrumentarequirantur. Sic igitur unitas operantisattenditur non secundum instrumenta, sedsecundum principale quod utiturinstrumentis.

Praedicta ergo positione facta, si oculusesset principale in homine, qui utereturomnibus potentiis animae et partibuscorporis quasi instrumentis, multi habentesunum oculum essent unus videns. Si verooculus non sit principale hominis, sedaliquid sit eo principalius quod utitur oculo,quod diversificaretur in diversis, essentquidem multi videntes sed uno oculo.

Manifestum est autem quod intellectus est idquod est principale in homine, et quod utituromnibus potentiis animae et membriscorporis tanquam organis; et propter hocAristoteles subtiliter dixit quod homo estintellectus vel maxime. Si igitur sit unusintellectus omnium, ex necessitate sequiturquod sit unus intelligens, et per consequensunus volens, et unus utens pro suaevoluntatis arbitrio omnibus illis secundumquae homines diversificantur ad invicem. Etex hoc ulterius sequitur quod nulladifferentia sit inter homines quantum adliberam voluntatis electionem, sed eadem sitomnium, si intellectus, apud quem solumresidet principalitas et dominium utendiomnibus aliis, est unus et indivisus inomnibus: quod est manifeste falsum etimpossibile. Repugnat enim his quaeapparent, et destruit totam scientiammoralem et omnia quae pertinent adconversationem civilem, quae est hominibusnaturalis, ut Aristoteles dicit.

[85] Admitamos contudo que Sócrates pensa pelo fato de ointelecto pensar - ainda que o intelecto seja só motor - talcomo o homem vê pelo fato de o olho ver; e, paracontinuarmos a comparação, supúnhamos que só há umolho em número para todos os homens, faltaria entãoinvestigar se todos os homens são um único a ver ouvários a ver. A fim de investigarmos a verdade acercadeste ponto, deve considerar-se que aquilo que diz respeitoao primeiro motor é diferente daquilo que diz respeito aum instrumento179. Com efeito, se vários homens usaremum e o mesmo instrumento em número, diz-se que sãomuitos os que operam; por exemplo: quando váriosutilizam uma máquina para projetar ou para levantar umapedra. Mas se o agente principal for único e utilizar váriascoisas como instrumentos, o operador não deixa de ser umsó, mas as operações podem ser diversas em virtude dosdiversos instrumentos. Às vezes, porém, a operação éúnica, ainda que se necessite de muitos instrumentos.Assim, portanto, não se atribui a unidade do operador aosinstrumentos, mas ao agente principal que utiliza osinstrumentos.

[86] Se agora voltássemos à hipótese anterior, mas se oolho fosse o que há de principal no homem e utilizassetodas as potências da alma e as partes do corpo comoinstrumentos, então a totalidade dos que partilham ummesmo olho constituiria um só vidente; se, ao invés, oolho não fosse o principal do homem, mas se houvessealgo mais importante a usar o olho, diversificando-se pelosvários homens, haveria muitos a ver mas um só olho.

[87] É claro, portanto, que o intelecto é aquilo que há deprincipal no homem e se serve de todas as potências daalma e dos membros do corpo à maneira de instrumentos;é por causa disto que Aristóteles diz sutilmente que ohomem é intelecto “ou é sobretudo isso”180. Portanto, se ointelecto de todos é único, segue-se necessariamente quesó há um a pensar e, consequentemente, um só a querer eum só a utilizar, pelo arbítrio da sua vontade, todasaquelas coisas em que os homens se distinguem uns dosoutros. Além disso, daqui resultaria que, se o intelecto, noqual apenas reside o principado e o domínio na utilizaçãode tudo o mais, fosse único e indiviso em todos oshomens, não haveria diferença entre eles no que toca àlivre escolha da vontade, mas seria a mesma em todos.Mas isto é evidentemente falso e impossível; com efeito, éincompatível corri o que aparece aos nossos olhos edestrói toda a ciência moral e tudo aquilo que diz respeitoà sociedade civil, natural aos homens, conforme dizAristóteles.181

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Adhuc, si omnes homines intelligunt unointellectu, qualitercumque eis uniatur, siveut forma sive ut motor, de necessitatesequitur quod omnium hominum sit unumnumero ipsum intelligere quod est simul etrespectu unius intelligibilis: puta, si egointelligo lapidem et tu similiter, oportebitquod una et eadem sit intellectualis operatioet mei et tui. Non enim potest esse eiusdemactivi principii, sive sit forma sive motor,respectu eiusdem obiecti, nisi una numerooperatio eiusdem speciei in eodem tempore;quod manifestum est ex his quaephilosophus declarat in quinto Physic. Undesi essent multi homines habentes unumoculum, omnium visio non esset nisi unarespectu eiusdem obiecti in eodem tempore.Similiter ergo, si intellectus sit unusomnium, sequitur quod omnium hominumidem intelligentium eodem tempore, sit unaactio intellectualis tantum; et praecipue cumnihil eorum, secundum quae ponunturhomines differre ab invicem, communicet inoperatione intellectuali. Phantasmata enimpraeambula sunt actioni intellectus, sicutcolores actioni visus: unde per eorumdiversitatem non diversificaretur actiointellectus, maxime respectu uniusintelligibilis, secundum quae tamen ponuntdiversificari scientiam huius a scientiaalterius, in quantum hic intelligit ea quorumphantasmata habet, et ille alia quorumphantasmata habet. Sed in duobus qui idemsciunt et intelligunt, ipsa operatiointellectualis per diversitatem phantasmatumnullatenus diversificari potest.

Adhuc autem ostendendum est quod haecpositio manifeste repugnat dictis Aristotelis.Cum enim dixisset de intellectu possibili,quod est separatus et quod est in potentiaomnia, subiungit quod cum sic singula fiat(scil. in actu), ut sciens dicitur qui secundumactum, i. e. hoc modo sicut scientia estactus, et sicut sciens dicitur esse in actu inquantum habet habitum. Unde subdit: hocautem confestim accidit cum possit operariper seipsum. Est quidem igitur et tuncpotentia quodammodo, non tamen similitersicut ante addiscere aut invenire. Et postea,cum quaesivisset si intellectus simplex est etimpassibile et nulli nihil habet commune,sicut dixit Anaxagoras, quomodo intelliget,si intelligere pati aliquid est? Et ad hocsolvendum respondet dicens quod potentiaquodammodo est intelligibilia intellectus,

[88] Além de mais, se todos os homens pensam por umúnico intelecto, qualquer que seja a maneira dele se lhesunir, seja como forma seja como motor, segue-se,necessariamente, que em todos os homens será um só emnúmero o pensamento que em conjunto for relativo a umúnico inteligível; por exemplo: se eu pensar numa pedra ese tu fizeres o mesmo, a minha operação intelectual e a tuaoperação intelectual devem ser uma só e a mesma. Comefeito, de um mesmo princípio ativo, seja uma forma sejaum motor, relativamente a um mesmo objeto, apenas podevir uma operação numericamente idêntica da mesmaespécie e ao mesmo tempo; é o que se torna evidente peloque Aristóteles declara no livro V da Física182. De onde, sehouvesse muitos homens com um só olho, a sua visão sóseria uma relativamente a um mesmo objeto e ao mesmotempo. Portanto, da mesma maneira, se fosse um só ointelecto de todos os homens, seguir-se-ia que seria apenasuma a ação intelectual de todos os homens que pensassema mesma coisa ao mesmo tempo; e, principalmente,porque nada daquilo que distingue os homens uns dosoutros teria a ver com a operação intelectual. Na verdade,as imagens são preâmbulos para a ação do intelecto talcomo as cores o são para a ação da vista, pelo que não épela sua diversidade que a ação do intelecto se diversifica,sobretudo em relação a um só inteligível; é por isto queeles sustentam que a ciência deste homem se distingue daciência daquele outro na medida em que este pensa ascoisas de que têm imagens e aquele as outras coisas de quetem imagens. Entretanto, nos dois, que sabem e pensam omesmo, a própria operação intelectual não pode demaneira nenhuma diversificar-se pela diversidade dasimagens.

[89] Resta-nos ainda mostrar que esta tese contrariamanifestamente as palavras de Aristóteles. De fato,quando diz que o intelecto possível é separado e que é empotência todas as coisas, acrescenta também “que se tornaassim cada uma delas, isto é, em ato, tal como se diz que ésábio quem está em ato”, ou seja, tal como a ciência é atoe tal como se diz que é sábio em ato enquanto tem essehábito183; daí acrescentar: “é o que acontece logo que, porsi mesmo, é capaz de atuar. E mesmo assim está ainda deuma certa maneira em potência, não, porém, do mesmomodo que antes de aprender ou de encontrar.”184 E, depois,pergunta: “se o intelecto é simples, impassível, e tal comoAnaxágoras diz, não tem nada em comum com nada, comoé que pensa, uma vez que pensar equivale a suportar umacerta paixão?”185 E para resolver este problema responde,afirmando que “o intelecto é em potência de uma certamaneira os inteligíveis, mas não é em ato nenhum deles

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sed actu nihil antequam intelligat. Oportetautem sic sicut in tabula nihil est actuscriptum; quod quidem accidit in intellectu.Est ergo sententia Aristotelis quodintellectus possibilis ante addiscere autinvenire est in potentia, sicut tabula in quanihil est actu scriptum; sed post addiscere etinvenire est actu secundum habitumscientiae, quo potest per seipsum operari,quamvis et tunc sit in potentia adconsiderare in actu.

Ubi tria notanda sunt. Primum, quod habitusscientiae est actus primus ipsius intellectuspossibilis, qui secundum hunc fit actu etpotest per seipsum operari. Non autemscientia est solum secundum phantasmataillustrata, ut quidam dicunt, vel quaedamfacultas quae nobis acquiritur ex frequentimeditatione et exercitio, ut continuemurcum intellectu possibili per nostraphantasmata.Secundo, notandum est quod ante nostrumaddiscere et invenire ipse intellectuspossibilis est in potentia, sicut tabula in quanihil est scriptum.Tertio, quod per nostrum addiscere seuinvenire, ipse intellectus possibilis fit actu.Haec autem nullo modo possunt stare, si situnus intellectus possibilis omnium qui suntet erunt et fuerunt.

Manifestum est enim quod speciesconservantur in intellectu est enim locusspecierum, ut supra philosophus dixerat; etiterum scientia est habitus permanens. Siergo per aliquem praecedentium hominumfactus est in actu secundum aliquas speciesintelligibiles, et perfectus secundumhabitum scientiae, ille habitus et illaespecies in eo remanent. Cum autem omnerecipiens sit denudatum ab eo quod recipit,impossibile est quod per meum addiscereaut invenire, illae species acquirantur inintellectu possibili. Etsi enim aliquis dicat,quod per meum invenire intellectuspossibilis secundum aliquid fiat in actu denovo, puta si ego aliquid intelligibiliuminvenio, quod a nullo praecedentium estinventum: tamen in addiscendo hoccontingere non potest; non enim possumaddiscere nisi quod docens scivit. Frustraergo dixit quod ante addiscere aut invenireintellectus erat in potentia.

Sed et si quis addat, homines semper fuissesecundum opinionem Aristotelis: sequitur

antes de pensar. Deve ser assim como uma tábua na qualnada está escrito em ato, e é decerto o que acontece com ointelecto”186. A doutrina de Aristóteles é, por conseguinte,a de que antes de aprender ou de encontrar o intelectopossível está em potência, à maneira de uma tábua na qualnada está escrito; todavia, depois de aprender ou deencontrar passa a estar em ato segundo o hábito da ciênciagraças ao qual pode operar por si mesmo, ainda que estejanesse momento em potência para considerar [algo] em ato.

[90] Temos de observar aqui três pontos. O primeiro, éque o hábito da ciência é o ato primeiro do própriointelecto possível, o qual se atualiza em conformidade comesse hábito e pode operar por si mesmo. De fato, a ciêncianão resulta só de uma iluminação das imagens, comoalguns dizem187, ou é uma certa faculdade de entrar emcontacto com o intelecto possível por meio das nossasimagens, faculdade que adquirimos por frequentemeditação e exercício.O segundo ponto a observar, é que antes de aprendermosou de encontrarmos, o próprio intelecto possível está empotência como uma tábua na qual nada está escrito.O terceiro, é que mediante a nossa aprendizagem ou asnossas descobertas o próprio intelecto possível passa aestar em ato. Ora, nada disto poderia dar-se caso ointelecto possível de todos os homens que existem, os queexistirão ou que existiram, fosse único.

[91] Por conseguinte, é evidente que as espécies seconservam no intelecto que é o lugar das espécies, comoAristóteles dissera antes188; além disso, a ciência é umhábito permanente. Portanto, se graças a algum doshomens que nos precederam, o intelecto se atualizou emrelação a certas espécies inteligíveis, e se aperfeiçoousegundo um hábito da ciência, quer esse hábito quer essaespécie permanecem nele. Mas, como ‘qualquer recipientese encontra desprovido daquilo que recebe’189, éimpossível que pela minha aprendizagem ou com asminhas descobertas essas espécies sejam adquiridas pelointelecto possível. Ainda que alguém diga que é graças àsminhas descobertas que o intelecto possível se atualizapela primeira vez - por exemplo, se encontro uminteligível que ninguém antes de mim tinha encontrado -isso não pode acontecer pela aprendizagem, porque sóposso aprender aquilo que quem ensina já sabe. Foi emvão, pois, que Aristóteles disse que o intelecto está empotência antes de aprender ou de encontrar.

[92] Mas se alguém adunar que, de acordo com a opiniãode Aristóteles190, sempre existiram homens, então se segue

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quod non fuerit primus homo intelligens; etsic per phantasmata nullius speciesintelligibiles sunt acquisitae in intellectupossibili, sed sunt species intelligibilesintellectus possibilis aeternae. Frustra ergoAristoteles posuit intellectum agentem, quifaceret intelligibilia in potentia intelligibiliaactu. Frustra etiam posuit, quod phantasmatase habent ad intellectum possibilem sicutcolores ad visum, si intellectus possibilisnihil a phantasmatibus accipit. Quamvis ethoc ipsum irrationabile videatur, quodsubstantia separata a phantasmatibus nostrisaccipiat, et quod non possit se intelligerenisi post nostrum addiscere aut intelligere;quia Aristoteles post verba praemissasubiungit: et ipse seipsum tunc potestintelligere, scil. post addiscere aut invenire.Substantia enim separata secundum seipsamest intelligibilis: unde per suam essentiam seintelligeret intellectus possibilis, si essetsubstantia separata; nec indigeret ad hocspeciebus intelligibilibus eisupervenientibus per nostrum intelligere autinvenire.

Si autem haec inconvenientia velint evadere,dicendo quod omnia praedicta Aristotelesdicit de intellectu possibili secundum quodcontinuatur nobis, et non secundum quod inse est: primo quidem dicendum est quodverba Aristotelis hoc non sapiunt; immo deipso intellectu possibili loquitur secundumid quod est proprium sibi, et secundum quoddistinguitur ab agente.Deinde si non fiat vis de verbis Aristotelis,ponamus, ut dicunt, quod intellectuspossibilis ab aeterno habuerit speciesintelligibiles, per quas continuetur nobiscumsecundum phantasmata quae sunt in nobis.Oportet enim quod species intelligibilesquae sunt in intellectu possibili, etphantasmata quae sunt in nobis, aliquohorum trium modorum se habeant: quorumunus est, quod species intelligibiles quaesunt in intellectu possibili, sint acceptae aphantasmatibus quae sunt in nobis, ut sonantverba Aristotelis; quod non potest essesecundum praedictam positionem, utostensum est. Secundus autem modus est, utillae species non sint acceptae aphantasmatibus, sed sint irradiantes supraphantasmata nostra; puta, si species aliquaeessent in oculo irradiantes super colores quisunt in pariete. Tertius autem modus est, utneque species intelligibiles, quae sunt inintellectu possibili, sint receptae aphantasmatibus, neque imprimant aliquidsupra phantasmata.

que não houve um primeiro homem que pensasse. Nestecaso, as espécies inteligíveis não são recebidas no intelectopossível graças às imagens de alguém, mas as espéciesinteligíveis do intelecto possível são eternas. Foi por issotambém em vão que Aristóteles propôs um intelectoagente que fizesse passar os inteligíveis de potência a ato;não menos em vão, sustentou que as imagens estão para ointelecto possível como as cores para a vista, se o intelectopossível não receber nada das imagens. Parece sem razãode ser o seguinte: que uma substância separada recebaqualquer coisa das nossas imagens, e que não possapensar-se senão depois de termos aprendido ou pensado; éque, após as referidas palavras, Aristóteles acrescenta: “eentão ele pode pensar-se a si mesmo”191, a saber, depois deaprender ou encontrar. Com efeito, uma substânciaseparada é inteligível em si e por si mesma:consequentemente, é pela sua essência que o intelectopossível se pensa, se for uma substância separada; nestecaso, não precisaria de espécies inteligíveis que se lheviessem juntar pelo nosso pensar ou pelas nossasinvenções.

[93] Mas se quiserem escapar a estes inconvenientesdizendo que todas estas palavras anteriores de Aristótelesse referem ao intelecto possível enquanto ele está emcontacto conosco e não no que é em si mesmo, deve dizer-se, em primeiro lugar, que não é isso que as palavras deAristóteles dão a entender, antes, pelo contrário, que eleestá a referir-se precisamente ao intelecto possível naquiloque lhe é próprio e no que o distingue do intelecto agente.A seguir, e sem olharmos à força das palavras deAristóteles, supúnhamos, como eles dizem, que o intelectopossível detinha espécies inteligíveis desde a eternidade,pelas quais entraria em contacto conosco em função dasimagens que existem em nós, É preciso, de fato, que asespécies inteligíveis que estão no intelecto possível e asimagens que existem em nós entrem em relação num dostrês modos seguintes: um, consiste em as espéciesinteligíveis que estão no intelecto possível serem recebidaspelas imagens que se encontram em nós, conforme aspalavras de Aristóteles; mas, como mostramos, isto nãopode dar-se segundo a perspectiva averroísta. O segundomodo, em as espécies não serem recebidas pelas imagens,mas irradiarem sobre as nossas imagens; por exemplo:como as espécies no olho irradiando por sobre as coresque estão numa parede. O terceiro modo, em as espéciesinteligíveis que estão no intelecto possível não seremrecebidas pelas imagens nem imprimirem nada sobre asimagens.192

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Si autem ponatur secundum, scil. quodspecies intelligibiles illustrent phantasmataet secundum hoc intelligantur: primoquidem sequitur quod phantasmata fiuntintelligibilia actu, non per intellectumagentem, sed per intellectum possibilemsecundum suas species. Secundo, quod talisirradiatio phantasmatum non poterit facerequod phantasmata sint intelligibilia actu:non enim fiunt phantasmata intelligibiliaactu nisi per abstractionem; hoc autemmagis erit receptio quam abstractio. Etiterum, cum omnis receptio sit secundumnaturam recepti, irradiatio specierumintelligibilium quae sunt in intellectupossibili, non erit in phantasmatibus quaesunt in nobis, intelligibiliter, sed sensibiliteret materialiter; et sic nos non poterimusintelligere universale per huiusmodiirradiationem.Si autem species intelligibiles intellectuspossibilis neque accipiuntur aphantasmatibus, neque irradiant super ea,erunt omnino disparatae et nihilproportionales habentes, nec phantasmataaliquid facient ad intelligendum; quodmanifeste repugnat.Sic igitur omnibus modis impossibile estquod intellectus possibilis sit unus tantumomnium hominum.

[94] Ora, se nos inclinarmos para o segundo, ou seja, queas espécies inteligíveis iluminam as imagens e que destamaneira são pensadas, seguir-se-ia, em primeiro lugar, queas imagens tornar-se-iam inteligíveis em ato não por causado intelecto agente, mas por causa do intelecto possível,mercê das suas espécies. Em segundo lugar, que uma taliluminação das imagens não permitiria que elas setomassem inteligíveis em ato; é que só pela abstração éque as imagens se tornam inteligíveis em ato, e isso seriamais uma recepção do que uma abstração. Além do mais,uma vez que qualquer recepção depende da natureza doreceptor193, a iluminação das espécies inteligíveis queestão no intelecto possível não será, para as imagens quese encontram em nós, uma iluminação inteligível, masapenas sensível e material; assim, por uma iluminaçãodeste tipo, nós não poderíamos pensar universalmente.Mas se as espécies inteligíveis do intelecto possível nãosão recebidas pelas imagens nem irradiam sobre elas,serão totalmente díspares sem qualquer proporção, e asimagens em nada contribuirão para o pensamento, o que,evidentemente, não pode ser.Por conseguinte, qualquer que seja o ponto de vista, éimpossível que haja um único intelecto possível para todosos homens.

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CAPUT 5

Restat autem nunc solvere ea quibuspluralitatem intellectus possibilis nitunturexcludere. Quorum primum est, quia omnequod multiplicatur secundum divisionemmateriae, est forma materialis: undesubstantiae separatae a materia non suntplures in una specie. Si ergo pluresintellectus essent in pluribus hominibus, quidividuntur ad invicem numero perdivisionem materiae, sequeretur exnecessitate quod intellectus esset formamaterialis: quod est contra verba Aristoteliset probationem ipsius qua probat quodintellectus est separatus. Si ergo estseparatus et non est forma materialis, nullomodo multiplicatur secundummultiplicationem corporum.

Huic autem rationi tantum innituntur, quoddicunt quod Deus non posset facere pluresintellectus unius speciei in diversishominibus. Dicunt enim quod hocimplicaret contradictionem: quia haberenaturam ut numeraliter multiplicetur, estaliud a natura formae separatae. Proceduntautem ulterius, ex hoc concludere volentesquod nulla forma separata est una numeronec aliquid individuatum. Quod dicunt exipso vocabulo apparere: quia non est unumnumero nisi quod est unum de numero;forma autem liberata a materia non est unumde numero, quia non habet in se causamnumeri, eo quod causa numeri est a materia.

Sed ut a posterioribus incipiamus, videnturvocem propriam ignorare in hoc quodultimo dictum est. Dicit enim Aristoteles inquarto Metaph., quodcuiusque substantiaunum est non secundum accidens, et quodnihil est aliud unum praeter ens. Substantiaergo separata si est ens, secundum suamsubstantiam est una; praecipue cumAristoteles dicat in octavo Metaph., quod eaquae non habent materiam, non habentcausam ut sint unum et ens.Unum autem, in quinto Metaph., diciturquadrupliciter, scil. numero, specie, genere,proportione. Nec est dicendum quod aliquasubstantia separata sit unum tantum specievel genere, quia hoc non est esse simpliciterunum. Relinquitur ergo quod quaelibetsubstantia separata sit unum numero. Necdicitur aliquid unum numero, quia sit unumde numero: non enim numerus est causaunius, sed e converso, sed quia innumerando non dividitur; unum enim est id

CAPÍTULO V

[95] Resta agora solucionar as razões em que eles seapóiam para excluir a pluralidade do intelecto possível. Aprimeira é que tudo o que se multiplica segundo a divisãoda matéria é forma material; de onde, as substânciasseparadas da matéria não serem várias numa só espécie.Mas se houvesse vários intelectos nos vários homensnumericamente distintos entre si pela divisão da matéria,seguir-se-ia necessariamente que o intelecto teria de seruma forma material194. Isto contraria as palavras deAristóteles e a prova em que demonstra que o intelecto éseparado. Então, se é separado e não é uma formamaterial, de maneira nenhuma se multiplica consoante amultiplicação dos corpos.

[96] Eles apóiam-se de tal maneira neste argumento quechegam a dizer que Deus não poderia fazer váriosintelectos da mesma espécie em diversos homens. Dizem,de fato, que isso implicaria uma contradição, porque umanatureza numericamente multiplicável distingue-se danatureza de uma forma separada195. Avançam ainda maisao pretenderem concluir daí que nenhuma forma separadaé una em número nem qualquer coisa de individual. Dizemque isto é evidente pelas próprias palavras, porque só éuno em número aquilo que é uno pelo número; ora, umaforma liberta da matéria não é una pelo número porquantoem si não tem a causa do número, dado que a causa donúmero provém da matéria.196

[97] Mas, para começarmos pelo último ponto, parece queeles ignoram o próprio sentido das palavras,concretamente em relação a este último argumento. Comefeito, Aristóteles diz no livro IV da Metafísica que “asubstância de cada ser é una e não o é por acidente”, bemcomo que “nada é uno exceto o ser”197. Assim sendo, se asubstância separada é um ser, é una na sua substância,sobretudo porque Aristóteles diz no livro VIII daMetafísica que as coisas que não possuem matéria não têmcausa para serem unas e ser.198

Mas no livro V da Metafísica diz-se que o uno se diz dequatro maneiras: em número, em espécie, no gênero ou naproporção199. Não se deve dizer, pois, que uma substânciaseparada é una apenas pela espécie ou pelo gênero, porquepura e simplesmente isso não seria um uno. Resta quequalquer substância separada é una em número. Tambémnão se diz que algo é uno numericamente por ser uno pelonúmero - é que não é o número que é a causa do uno, maso contrário -, diz-se, outrossim, que algo é numericamenteuno por não ser divisível numa enumeração; é, de fato,

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quod non dividitur.

Nec iterum hoc verum est, quod omnisnumerus causetur ex materia: frustra enimAristoteles quaesivisset numerumsubstantiarum separatarum. Ponit etiamAristoteles in quinto Metaph. quod multumdicitur non solum numero, sed specie etgenere.Nec etiam hoc verum est, quod substantiaseparata non sit singularis et individuumaliquid: alioquin non haberet aliquamoperationem, cum actus sint solumsingularium, ut philosophus dicit; undecontra Platonem argumentatur in septimoMetaph., quod si ideae sunt separatae, nonpraedicabitur de multis idea, nec poteritdefiniri, sicut nec alia individua quae suntunica in sua specie, ut sol et luna. Non enimmateria est principium individuationis inrebus materialibus, nisi in quantum materianon est participabilis a pluribus, cum sitprimum subiectum non existens in alio.Unde et de idea Aristoteles dicit quod, siidea esset separata, esset quaedam, i. e.individua, quam impossibile esset praedicaride multis.

Individuae ergo sunt substantiae separatae etsingulares; non autem individuantur exmateria, sed ex hoc ipso quod non sunt nataein alio esse, et per consequens necparticipari a multis. Ex quo sequitur quod sialiqua forma nata est participari ab aliquo,ita quod sit actus alicuius materiae, illapotest individuari et multiplicari percomparationem ad materiam. Iam autemsupra ostensum est, quod intellectus estvirtus animae quae est actus corporis. Inmultis igitur corporibus sunt multae animae,et in multis animabus sunt multae virtutesintellectuales quae vocantur intellectus; necpropter hoc sequitur quod intellectus sitvirtus materialis, ut supra ostensum est.

Si quis autem obiiciat quod, simultiplicantur secundum corpora, sequiturquod destructis corporibus, non remaneantmultae animae, patet solutio per ea quaesupra dicta sunt. Unumquodque enim sic estens, sicut unum, ut dicitur in quarto Metaph.Sicut igitur esse animae est quidem incorpore in quantum est forma corporis, necest ante corpus; tamen destructo corpore,adhuc remanet in suo esse: ita unaquaequeanima remanet in sua unitate, et perconsequens multae animae in sua

uno aquilo que não se divide.

[98] Nem sequer é verdade que a matéria seja a causa detodo o número, pois assim teria sido em vão a pergunta deAristóteles pelo número das substâncias separadas. Naverdade, no livro V da Metafísica ele sustenta que omúltiplo se diz não apenas segundo o número, mastambém em espécie e em gênero.200

Igualmente, nem sequer é verdade que uma substânciaseparada não seja singular e algo de individualizado; sefosse de outra maneira não teria nenhuma operação, pois,como Aristóteles diz, os atos só são próprios dos seressingulares201. Daí ele ter argumentado contra Platão nolivro VII da Metafísica que se as ideias fossem separadasuma ideia não seria predicada de muitas coisas nempoderia ser definida, tal como sucede com os outrosindivíduos que são únicos na sua espécie, o Sol e a Luapor exemplo. De fato, a matéria só é princípio deindividuação nas coisas materiais enquanto não éparticipável por muitos, por isso que ela é um sujeitoprimeiro que não existe em outro. Por este motivo,Aristóteles diz, acerca das Ideias, que se elas fossemseparadas “haveria uma, isto é, individual, impossível deser predicada de muitos”.202

[99] Por conseguinte, as substâncias separadas e singularessão individuais; não são individuadas pela matéria, mas,justamente, por não serem feitas para surgir noutra coisa,e, consequentemente, por não serem participadas pormuitos. Segue-se daqui que, se uma forma foi feita paraser participada por alguma coisa, por isso que é o ato deuma matéria, ela pode ser individuada e multiplicada porrelação com a matéria. Já acima mostramos que o intelectoé a faculdade de uma alma que é o ato de um corpo; logo,onde há muitos corpos há muitas almas e onde há muitasalmas há muitas potências intelectuais a que damos onome de intelecto; daqui também não se segue que ointelecto seja uma faculdade material, como anteriormentese demonstrou.

[100] Se alguém objetar que do fato de as almas semultiplicarem conforme os corpos se segue que dadestruição dos corpos não subsistiriam muitas almas, asolução é clara a partir do que dissemos acima. Como olivro IV da Metafísica diz, cada coisa é ser na medida emque é uno203. Portanto, assim como o ser da alma existe nocorpo na medida em que é a forma do corpo, e não existeantes do corpo, embora uma vez o corpo destruído elaainda permaneça no seu ser assim também, uma vez ocorpo destruído, cada alma permanece na sua unidade e,

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multitudine.

Valde autem ruditer argumentantur adostendendum, quod hoc Deus facere nonpossit, quod sint multi intellectus, credenteshoc includere contradictionem. Dato enimquod non esset de natura intellectus quodmultiplicaretur, non propter hoc oporteretquod intellectum multiplicari includeretcontradictionem. Nihil enim prohibet aliquidnon habere in sua natura causam alicuius,quod tamen habet illud ex alia causa: sicutgrave non habet ex sua natura quod sitsursum, tamen grave esse sursum, nonincludit contradictionem; sed grave essesursum secundum suam naturamcontradictionem includeret. Sic ergo siintellectus naturaliter esset unus omnium,quia non haberet naturalem causammultiplicationis, posset tamen sortirimultiplicationem ex supernaturali causa, necesset implicatio contradictionis. Quoddicimus non propter propositum, sed magisne haec argumentandi forma ad aliaextendatur; sic enim possent concluderequod Deus non potest facere quod mortuiresurgant, et quod caeci ad visumreparentur.

Adhuc autem ad munimentum sui errorisaliam rationem inducunt. Quaerunt enimutrum intellectum in me et in te sit unumpenitus, aut duo in numero et unum inspecie. Si unum intellectum, tunc erit unusintellectus. Si duo in numero et unum inspecie, sequitur quod intellecta habebuntrem intellectam: quaecumque enim sunt duoin numero et unum in specie, sunt unumintellectum, quia est una quidditas per quamintelligitur; et sic procedetur in infinitum,quod est impossibile. Ergo impossibile estquod sint duo intellecta in numero in me etin te; est ergo unum tantum, et unusintellectus numero tantum in omnibus.

Quaerendum est autem ab his qui tamsubtiliter se argumentari putant, utrum quodsint duo intellecta in numero et unum inspecie, sit contra rationem intellecti inquantum est intellectum, aut in quantum estintellectum ab homine. Et manifestum est,secundum rationem quam ponunt, quod hocest contra rationem intellecti in quantum estintellectum. De ratione enim intellecti, inquantum huiusmodi, est quod non indigeatquod ab eo aliquid abstrahatur, ad hoc quodsit intellectum. Ergo secundum eorumrationem simpliciter concludere possumusquod sit unum intellectum tantum, et nonsolum unum intellectum ab omnibushominibus. Et si est unum intellectum

consequentemente, muitas almas na sua multiplicidade.

[101] Argumenta-se de uma maneira rude e vã aodemonstrar que Deus não pode fazer com que haja muitosintelectos crendo que isso implicaria uma contradição.Supondo-se, com efeito, que não é da natureza do intelectomultiplicar-se204, nem assim haveria contradição numamultiplicação do intelecto. De fato, nada impede que umacoisa que não tenha pela sua natureza determinadapropriedade a tenha por uma outra causa, tal como algopesado que pela sua natureza não pode estar em cima e noentanto não há contradição no fato de estar em cima;haveria contradição, sim, se ele estivesse em cima segundoa sua própria natureza205. Desta maneira, se o intelecto detodos os homens fosse naturalmente um, por não ter na suanatureza a causa natural da multiplicação, poderia chegar amultiplicar-se devido a uma causa sobrenatural, o que nãoimplicaria nenhuma contradição. Afirmamo-lo não porquevenha a propósito, mas mais para que se não aplique estaforma de argumentar a outros casos; é que assim poderiamconcluir que Deus não pode ressuscitar os mortos nemrecuperar a vista aos cegos.206

[102] Eles, porém, para defenderem o seu erro, aindaavançam outro argumento207. Perguntam, de fato, se aquiloque é pensado por mim e por ti é absolutamente o mesmoou se se trata de dois pensamentos em número e um emespécie. Se for o mesmo pensamento, então o intelectoserá um único; se forem dois em número e um em espéciesegue-se que os dois pensamentos conterão uma terceiracoisa pensada - de fato, o que for em número de dois masum em espécie é uma só coisa pensada visto ser umaquididade pela qual se pensa - e assim ir-se-ia até aoinfinito, o que é impossível. Assim, é impossível quesejam em mim e em ti duas em número as coisas que sepensam; logo, aquilo que se pensa será apenas uma coisa eapenas um em número o intelecto de todos nós.

[103] Temos de perguntar a estes que julgam argumentarde maneira tão subtil, se o fato de serem dois em númeroos pensamentos e um em espécie vai contra a natureza doque se pensa enquanto é pensado ou enquanto é pensadopelo homem. De acordo com o argumento que apresentam,é evidente que vai contra a natureza do que se pensaenquanto pensado; na verdade, não pertence à natureza doque se pensa, enquanto tal, ser abstraído para poder serpensado. Portanto, segundo o argumento deles podemossimplesmente concluir que o objeto que se pensa é apenasum único e que não é apenas um único por ser pensado portodos os homens. E se o objeto pensado é apenas um,

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tantum, secundum eorum rationem, sequiturquod sit unus intellectus tantum in totomundo, et non solum in hominibus. Ergointellectus noster non solum est substantiaseparata, sed etiam est ipse Deus; etuniversaliter tollitur pluralitas substantiarumseparatarum.

Si quis autem vellet respondere quodintellectum ab una substantia separata etintellectum ab alia non est unum specie,quia intellectus differunt specie, seipsumdeciperet; quia id quod intelligiturcomparatur ad intelligere et ad intellectum,sicut obiectum ad actum et potentiam.Obiectum autem non recipit speciem ab actuneque a potentia, sed magis e converso. Estergo simpliciter concedendum quodintellectum unius rei, puta lapidis, est unumtantum non solum in omnibus hominibus,sed etiam in omnibus intelligentibus.

Sed inquirendum restat quid sit ipsumintellectum. Si enim dicant quod intellectumest una species immaterialis existens inintellectu, latet ipsos quod quodammodotranseunt in dogma Platonis, qui posuit quodde rebus sensibilibus nulla scientia potesthaberi, sed omnis scientia habetur de formauna separata. Nihil enim refert adpropositum, utrum aliquis dicat quodscientia quae habetur de lapide, habetur deuna forma lapidis separata, an de una formalapidis quae est in intellectu: utrobique enimsequitur quod scientiae non sunt de rebusquae sunt hic, sed de rebus separatis solum.Sed quia Plato posuit huiusmodi formasimmateriales per se subsistentes, poteratetiam cum hoc ponere plures intellectus,participantes ab una forma separata uniusveritatis cognitionem. Isti autem quiaponunt huiusmodi formas immateriales(quas dicunt esse intellecta) in intellectu,necesse habent ponere quod sit unusintellectus tantum, non solum omniumhominum, sed etiam simpliciter.

Est ergo dicendum secundum sententiamAristotelis quod intellectum, quod est unum,est ipsa natura vel quidditas rei. De rebusenim est scientia naturalis et aliae scientiae,non de speciebus intellectis. Si enimintellectum esset non ipsa natura lapidisquae est in rebus, sed species quae est inintellectu, sequeretur quod ego nonintelligerem rem quae est lapis, sed solumintentionem quae est abstracta a lapide. Sedverum est quod natura lapidis prout est insingularibus, est intellecta in potentia; sed fitintellecta in actu per hoc quod species a

segue-se, de acordo com a argumento deles, que há apenasum intelecto em todo o mundo, e não apenas nos homens.Então, o nosso intelecto não é uma substância separada,ele é também o próprio Deus, e, ao universo, é retirada apluralidade das substâncias separadas.

[104] Mas se alguém quiser responder que aquilo que épensado por uma substância separada e aquilo que épensado por uma outra não é uno em espécie visto que osintelectos diferem em espécie, essa pessoa enganar-se-á. Éque aquilo que se pensa relaciona-se com o pensar e com ointelecto tal como o objeto se relaciona com o ato e com apotência. Ora, o objeto não toma a espécie nem do ato nemda potência, mas ao contrário; logo, importa simplesmenteadmitir que o pensado correspondente a uma coisa, porexemplo, a uma pedra, é uno não apenas em todos oshomens mas também em todos os seres pensantes.

[105] Falta ainda inquirir o que é em si mesmo aquilo quese pensa. Se dizem que o que é pensado é uma únicaespécie imaterial existente no intelecto, não se dão contaque, de uma certa maneira, passaram para a doutrina dePlatão, o qual sustentou que não pode haver ciência dascoisas sensíveis, mas que toda a ciência versa sobre umaforma una separada. Com efeito, nada tem a ver para ocaso que alguém diga que a ciência que temos da pedraversa sobre a forma única da pedra separada ou sobre aforma única da pedra que está no intelecto; de fato, emambos os casos seguir-se-ia que as ciências não versariamsobre as coisas que estão aqui, mas apenas sobre as coisasseparadas. Mas como Platão defendeu que essas formasimateriais subsistem por si, podia também, juntamentecom isto, defender que vários intelectos participam noconhecimento pela forma separada de uma verdade única.Os averroístas, por seu lado, porque defendem que essasformas imateriais - que consideram ser pensadas - estão nointelecto208, devem necessariamente admitir que só há umintelecto, não só em todos os homens mas em absoluto.

[106] Deve dizer-se, portanto, em conformidade com oensinamento de Aristóteles, que aquilo que é pensado, queé uno, é a própria natureza ou quididade da coisa; naverdade, a ciência natural e as outras ciências versamsobre as coisas, não sobre as espécies pensadas. De fato, seo que é pensado não fosse a própria natureza da pedra queestá nas coisas, mas a espécie que está no intelecto, seguir-se-ia que eu não pensaria a coisa que é a pedra, mas tão-sóa intenção que é abstraída da pedra. Mas é verdade que anatureza da pedra, enquanto está nos singulares, é pensadaem potência e passa a ser pensada em ato pelo fato de as

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rebus sensibilibus, mediantibus sensibus,usque ad phantasiam perveniunt, et pervirtutem intellectus agentis speciesintelligibiles abstrahuntur, quae sunt inintellectu possibili. Hae autem species nonse habent ad intellectum possibilem utintellecta, sed sicut species quibusintellectus intelligit (sicut et species quaesunt in visu non sunt ipsa visa, sed ea quibusvisus videt), nisi in quantum intellectusreflectitur supra seipsum, quod in sensuaccidere non potest.

Si autem intelligere esset actio transiens inexteriorem materiam, sicut comburere etmovere, sequeretur quod intelligere essetsecundum modum quo natura rerum habetesse in singularibus, sicut combustio ignisest secundum modum combustibilis. Sedquia intelligere est actio in ipso intelligentemanens, ut Aristoteles dicit in nonoMetaph., sequitur quod intelligere sitsecundum modum intelligentis, i. e.secundum exigentiam speciei qua intelligensintelligit. Haec autem, cum sit abstracta aprincipiis individualibus, non repraesentatrem secundum conditiones individuales, sedsecundum naturam universalem tantum.Nihil enim prohibet, si aliqua duoconiunguntur in re, quin unum eorumrepraesentari possit etiam in sensu sinealtero: unde color mellis vel pomi videtur avisu sine eius sapore. Sic igitur intellectusintelligit naturam universalem perabstractionem ab individualibus principiis.

Est ergo unum quod intelligitur et a me et ate, sed alio intelligitur a me et alio a te, i. e.alia specie intelligibili; et aliud estintelligere meum, et aliud tuum; et alius estintellectus meus, et alius tuus. Unde etAristoteles in praedicamentis dicit aliquamscientiam esse singularem quantum adsubiectum, ut quaedam grammatica insubiecto quidem est anima, de subiecto veronullo dicitur. Unde et intellectus meus,quando intelligit se intelligere, intelligitquemdam singularem actum; quando autemintelligit intelligere simpliciter, intelligitaliquid universale. Non enim singularitasrepugnat intelligibilitati, sed materialitas:unde, cum sint aliqua singulariaimmaterialia, sicut de substantiis separatissupra dictum est, nihil prohibet huiusmodisingularia intelligi.

Ex hoc autem apparet quomodo sit eademscientia in discipulo et doctore. Est enimeadem quantum ad rem scitam, non tamen

espécies das coisas sensíveis chegarem, mediante ossentidos, à imaginação e de as espécies inteligíveis queestão no intelecto possível serem abstraídas pela virtudedo intelecto agente. Contudo, para o intelecto possível,estas espécies não são aquilo que ele pensa, mas asespécies pelas quais o intelecto pensa, tal como as espéciesque estão na vista não são aquilo que se vê, mas sim aquilopelo qual a vista vê; a não ser no caso em que o intelectoreflete sobre si mesmo, o que não pode suceder no casodos sentidos.209

[107] Se pensar fosse uma ação transitiva que passa parauma matéria exterior, como queimar ou mover, seguir-se-ia que o modo de ser do pensar seria o mesmo que o danatureza das coisas singulares, tal como a combustão dofogo acontece segundo a maneira de ser do combustível210.Mas uma vez que o pensar é uma ação imanente a quempensa, conforme Aristóteles diz no livro IX daMetafísica211 segue-se que o pensar tem o modo de serdaquele que pensa, a saber, a exigência da espécie pelaqual pensa aquele que pensa. Uma vez que é abstraída dosprincípios individuais, essa espécie não representa a coisasnas suas condições individuais mas apenas na sua naturezauniversal. De fato, se duas coisas se juntarem na realidade,nada impede que uma possa ser representada nos sentidossem a outra, o que explica que a cor do mel ou da maçãseja vista pela visão independentemente do seu sabor.Assim, também, o intelecto pensa a natureza universal,pela abstração dos princípios individuais.

[108] É portanto único o que é pensado por mim e por ti,mas é pensado por mim de um modo diferente de ti, asaber, por meio de uma outra espécie inteligível; e o meupensar é diferente do teu pensar; e o meu intelecto édistinto do teu intelecto. Por isso, Aristóteles diz, nasCategorias, que uma dada ciência é singular no seu sujeito“como certa ciência gramatical que está num sujeito que éa alma, embora não seja dita de nenhum sujeito”212. Deonde, quando o meu intelecto se pensa a pensar, pensa umcerto ato singular; já quando pensa no pensar puro esimples, pensa algo de universal213. Não é a singularidademas sim a materialidade que é incompatível com ainteligibilidade, pelo que, como há alguns singularesimateriais, como é o caso das substâncias separadas,conforme dissemos atrás, nada impede que se pense taissingulares.

[109] Por aqui se vê claramente como a ciência em umaluno pode ser a mesma da de quem ensina. É a mesmanaquilo que se sabe, mas não quanto às espécies

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quantum ad species intelligibiles quibusuterque intelligit; quantum enim ad hoc,individuatur scientia in me et in illo. Necoportet quod scientia quae est in discipulocausetur a scientia quae est in magistro,sicut calor aquae a calore ignis; sed sicutsanitas quae est in infirmo, a sanitate quaeest in anima medici. Sicut enim in infirmoest principium naturale sanitatis, cuimedicus auxilia subministrat ad sanitatemperficiendam, ita in discipulo est principiumnaturale scientiae, scil. intellectus agens etprima principia per se nota; doctor autemsubministrat quaedam adminicula,deducendo conclusiones ex principiis per senotis. Unde et medicus nititur eo modosanare quo natura sanaret, scil. calefaciendoet infrigidando; et magister eodem modoinducit ad scientiam, quo inveniens perseipsum scientiam acquireret, procedendoscil. de notis ad ignota. Et sicut sanitas ininfirmo fit non secundum potestatemmedici, sed secundum facultatem naturae;ita et scientia causatur in discipulo nonsecundum virtutem magistri, sed secundumfacultatem addiscentis.

Quod autem ulterius obiiciunt, quod siremanerent plures substantiae intellectuales,destructis corporibus, sequeretur quodessent otiosae; sicut Aristoteles in undecimoMetaph. argumentatur, quod si essentsubstantiae separatae non moventes corpus,essent otiosae: si bene litteram Aristotelisconsiderassent, de facili possent dissolvere.Nam Aristoteles, antequam hanc rationeminducat, praemittit: quare et substantias etprincipia immobilia tot rationabilesuscipere; necessarium enim dimittaturfortioribus dicere. Ex quo patet quod ipseprobabilitatem quamdam sequitur, nonnecessitatem inducit.

Deinde, cum otiosum sit quod non pertingitad finem ad quem est, non potest dici etiamprobabiliter quod substantiae separataeessent otiosae, si non moverent corpora; nisiforte dicatur, quod motiones corporum sintfines substantiarum separatarum, quod estomnino impossibile, cum finis sit potior hisquae sunt ad finem. Unde nec Aristoteleshic inducit quod essent otiosae si nonmoverent corpora, sed quod omnemsubstantiam impassibilem secundum seoptimum sortitam finem esse oportetexistimare. Est enim perfectissimum

inteligíveis pelas quais cada um deles pensa; é de fato aquique a ciência se individualiza em mim e em ti. Não épreciso que a ciência que existe no aluno seja causada pelaciência que o mestre tem, tal como o calor da água pelocalor do fogo, mas antes como a saúde que está na matériaé causada pela saúde que reside na alma do médico. Assimcomo no doente se encontra o princípio natural da saúde,ao qual o médico administra os meios auxiliares com vistaao aperfeiçoamento da saúde, assim também no aluno seencontra o princípio natural da ciência, ou seja, o intelectoagente e os primeiros princípios conhecidos por simesmos; aquele que ensina administra algumas pequenasajudas deduzindo conclusões dos princípios conhecidospor si mesmos. Por isso, o médico esforça-se por curar damaneira em que a natureza curaria, a saber, aquecendo ouarrefecendo214. Do mesmo modo, o mestre conduz até àciência de modo a que quem investiga adquira a ciênciapor si mesmo, ou seja, começando pelo que se conhece atése chegar ao que se desconhece215. E tal como no doente asaúde não acontece por causa da potência do médico, masda capacidade da natureza, assim também a ciência écausada no aluno não por causa do mérito do mestre masda capacidade do aprendiz.

[110] Em relação ao que objetam mais ainda - que umavez os corpos destruídos restariam várias substânciasintelectuais, (pelo que elas seriam supérfluas à maneira daargumentação de Aristóteles no livro XI da Metafísica216

segundo o qual se houvesse substâncias separadas a nãomover o corpo elas estariam a mais) - se eles reparassembem na letra de Aristóteles facilmente poderiam resolver aobjeção. De fato, antes de avançar com esse argumentoAristóteles havia já referido que “é razoável sustentar quehá tantas substâncias quantos princípios imóveis; masdeixamos a outros mais capazes dizer se isto é coisanecessária”217. Por aqui se vê que ele se contentou comuma certa possibilidade sem lhe dar nenhuma necessidade.

[111] Ademais, uma vez que aquilo que não atinge o fimpara que foi feito é supérfluo, não se pode dizer, ainda queà guisa de probabilidade, que as substâncias separadasseriam supérfluas se não movessem os corpos; a não ser,talvez, que os averroístas digam que os movimentos doscorpos são os fins das substâncias separadas - o que écompletamente impossível, porque o fim é maisimportante do que as coisas que o têm como fim. Foi porisso que Aristóteles não defendeu que elas seriamsupérfluas no caso de não moverem os corpos, mas simque “qualquer substância impassível que atingiu por si umbem ótimo deve ser estimada como fim”218. De fato, a

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uniuscuiusque rei ut non solum sit in sebonum, sed ut bonitatem in aliis causet. Nonerat autem manifestum qualiter substantiaeseparatae causarent bonitatem ininferioribus, nisi per motum aliquorumcorporum. Unde ex hoc Aristotelesquamdam probabilem rationem assumit, adostendendum quod non sunt aliquaesubstantiae separatae, nisi quae per motuscaelestium corporum manifestantur,quamvis hoc necessitatem non habeat, utipsemet dicit.

Concedimus autem quod anima humana acorpore separata non habet ultimamperfectionem suae naturae, cum sit parsnaturae humanae. Nulla enim pars habetomnimodam perfectionem si a totoseparetur. Non autem propter hoc frustra est;non enim est animae humanae finis moverecorpus, sed intelligere, in quo est suafelicitas, ut Aristoteles probat in decimoEthic.

Obiiciunt etiam ad sui erroris assertionem,quia si intellectus essent plures pluriumhominum, cum intellectus sit incorruptibilis,sequeretur quod essent actu infinitiintellectus secundum positionem Aristotelis,qui posuit mundum aeternum et hominessemper fuisse. Ad hanc autem obiectionemsic respondet Algazel in sua metaphysica:dicit enim quod in quocumque fuerit unumistorum sine alio, quantitas vel multitudosine ordine, infinitas non removebitur ab eo,sicut a motu caeli. Et postea subdit: similiteret animas humanas, quae sunt separabiles acorporibus per mortem, concedimus esseinfinitas numero, quamvis habeant essesimul, quoniam non est inter eas ordinationaturalis, qua remota desinant esse animae:eo quod nullae earum sunt causae aliis, sedsimul sunt, sine prius et posterius natura etsitu. Non enim intelligitur in eis prius etposterius secundum naturam nisi secundumtempus creationis suae. In essentiis autemearum, secundum quod sunt essentiae, nonest ordinatio ullo modo, sed sunt aequalesin esse; e contrario spatiis et corporibus etcausae et causato.

Quomodo autem hoc Aristoteles solveret, anobis sciri non potest, quia illam partemmetaphysicae non habemus, quam fecit desubstantiis separatis. Dicit enim philosophusin secundo Physic., quod de formis quae

maior perfeição de cada coisa consiste não em ela ser boaem si mesma, mas em causar a bondade nas outras coisas.Não era claro o modo como as substâncias separadashaveriam de causar a bondade nos seres inferiores, a nãoser mediante o movimento de alguns corpos; daí queAristóteles tivesse assumido um argumento provável paramostrar que não há outras substâncias separadas exceto asque se nos manifestam pelo movimento dos corposcelestes, ainda que, caso que ele mesmo admite, isso nãoseja necessário.

[112] Nós admitimos que, separada do corpo, a almahumana não tem a última perfeição da sua natureza, dadoser uma parte da natureza humana219; na verdade, nenhumaparte tem a perfeição completa se se separa do todo. Masnão é por isto que é em vão220; de fato, o fim da almahumana não é mover o corpo, mas pensar, coisa em queconsiste a sua felicidade, conforme Aristóteles prova nolivro X da Ética.221

[113] Também objetam a favor do seu erro que sehouvesse vários intelectos consoante os vários homens,uma vez que o intelecto era incorruptível seguir-se-ia quedeveria haver uma infinidade de intelectos em ato, deacordo com a doutrina de Aristóteles que defendeu que omundo é eterno e que sempre houve homens222. Contraesta objeção, al-Ghazali responde da seguinte maneira, nasua Metafísica: diz que “cada vez que um destes se dá semo outro”, isto é, a quantidade ou o múltiplo sem a ordem,“a infinidade não lhe é retirada, tal como ao movimento docéu”. E a seguir acrescenta: “Assim, também,relativamente às almas humanas que se separam doscorpos após a morte, admitimos que são infinitas emnúmero, mesmo existindo em simultâneo, dado que não háentre elas uma ordenação de natureza que, uma vezsubtraída, faça com que as almas deixem de existir; é quenenhuma delas é a causa das outras mas, ao invés, elasexistem ao mesmo tempo sem relação de anterior e deposterior, de natureza e de lugar. Com efeito, não seconcebe que nelas o anterior e o posterior seja uma relaçãode natureza, mas que o seja apenas quanto ao tempo da suacriação. Nas suas essências, enquanto essências, não háqualquer relação de ordem, mas são iguais no ser, aocontrário dos espaços e dos corpos, da causa e docausado.”223

[114] Não conhecemos a maneira como Aristótelespoderia resolver isto porque não possuímos aquela parteda Metafísica dedicada às substâncias separadas. Ele diz,porém, no livro II da Física que “é tarefa da filosofia

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sunt separatae, in materia autem (inquantum sunt separabiles), considerare estopus philosophiae primae. Quidquid autemcirca hoc dicatur, manifestum est quod exhoc nullam angustiam Catholici patiuntur,qui ponunt mundum incepisse.

Patet autem falsum esse quod dicunt hocfuisse principium apud omnesphilosophantes, et Arabes et Peripateticos,quod intellectus non multipliceturnumeraliter, licet apud Latinos non. Algazelenim Latinus non fuit, sed Arabs. Avicennaetiam, qui Arabs fuit, in suo libro de animasic dicit:prudentia et stultitia et aliahuiusmodi similia, non sunt nisi in essentiaanimae (...) ergo anima non est una sed estmultae numero, et eius species una est.

Et ut Graecos non omittamus, ponenda suntcirca hoc verba Themistii in commento.Cum enim quaesivisset de intellectu agente,utrum sit unus aut plures, subiungit solvens:aut primus quidem illustrans est unus,illustrati autem et illustrantes sunt plures.Sol quidem enim est unus, lumen autemdices modo aliquo partiri ad visus. Propterhoc enim non solem in comparatione posuit(scil. Aristoteles), sed lumen; Plato autemsolem. Ergo patet per verba Themistii quodnec intellectus agens, de quo Aristotelesloquitur, est unus qui est illustrans, necetiam possibilis qui est illustratus. Sedverum est quod principium illustrationis estunum, scil. aliqua substantia separata, velDeus secundum Catholicos, vel intelligentiaultima secundum Avicennam. Unitatemautem huius separati principii probatThemistius per hoc, quod docens etaddiscens idem intelligit, quod non esset nisiesset idem principium illustrans. Sed verumest quod postea dicit quosdam dubitasse deintellectu possibili, utrum sit unus. Nec circahoc plus loquitur, quia non erat intentio eiustangere diversas opiniones philosophorum,sed exponere sententias Aristotelis, Platoniset Theophrasti; unde in fine concludit: sedquod quidem dixi pronunciare quidem de eoquod videtur philosophis, singularis eststudii et sollicitudinis. Quod autem maximealiquis utique ex verbis quae collegimus,accipiat de his sententiam Aristotelis etTheophrasti, magis autem et ipsius Platonis,hoc promptum est propalare.

Ergo patet quod Aristoteles et Theophrastus

primeira” examinar “na matéria apenas” as formas “quesão separadas”, na medida em que são separadas224. Diga-se porém o que se disser relativamente a este assunto, éevidente que os católicos não se devem afligir com ele,visto defenderem que o mundo teve um princípio.

[115] Mas é manifestamente falso o que eles dizem, asaber, que entre todos os que filosofam, quer Árabes querPeripatéticos, houve o princípio de que o intelecto não semultiplica em número, ainda que entre os Latinos não sejaassim. Algazel não foi, de fato, um latino, mas um árabe.Também Avicena, que era árabe, diz o seguinte no seulivro sobre A Alma: “A prudência, a estultícia, a opinião, eoutras similares, pertencem só à essência da alma. Logo, aalma não é numericamente una, mas múltipla, e a suaespécie é que é una.”225

[116] E a fim de não omitirmos os Gregos, temos demencionar as seguintes palavras de Temístio no seuComentário. Ao perguntar, acerca do intelecto agente, se éum ou muitos, responde adiantando: “Ou o primeiro queilumina é único e os iluminados e os que iluminam sãovários. Na realidade, o Sol é único, mas tu dizes que a luzchega de algum modo repartida à vista. Por isso é que ele,quer dizer, Aristóteles, não propôs uma comparação com oSol, mas com a luz, e só Platão é que comparou com oSol.”226 É evidente, por conseguinte, a partir das palavrasde Temístio, que nem o intelecto agente de que Aristótelesfala é único ao iluminar, nem o intelecto possível, que porsua vez é iluminado; no entanto, é verdade que o princípioda iluminação é único, a saber, uma certa substânciaseparada: ou Deus, segundo os católicos, ou a últimaInteligência, segundo Avicena. Temístio prova a unidadedeste princípio separado pelo fato de quem ensina e quemaprende pensarem a mesma coisa, o que só sucederia se oprincípio iluminador fosse o mesmo. Mas é verdade o quediz logo a seguir, que alguns duvidaram se o intelectopossível era único. Todavia não diz mais nada acercadisso, porque não tinha a intenção de abordar as diversasopiniões dos filósofos, mas de expor as doutrinas deAristóteles, de Platão e de Teofrasto. Por esta razãoconclui, no fim: “Ora, o que eu disse, pronunciando-meem relação ao parecer dos filósofos, requer particularestudo e atenção. Mas tomar das palavras que coligimosuma perspectiva da doutrina de Aristóteles e de Teofrasto,e mais ainda do próprio Platão, é o que prontamente sepode fazer.”227

[117] É portanto evidente que nem Aristóteles, nemTeofrasto, nem Temístio, nem o próprio Platão, tiveram

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et Themistius et ipse Plato non habueruntpro principio, quod intellectus possibilis situnus in omnibus. Patet etiam quod Averroesperverse refert sententiam Themistii etTheophrasti de intellectu possibili et agente.Unde merito supradiximus eumphilosophiae Peripateticae perversorem.Unde mirum est quomodo aliqui, solumcommentum Averrois videntes, pronuntiarepraesumunt, quod ipse dicit, hoc sensisseomnes philosophos Graecos et Arabes,praeter Latinos.

Est etiam maiori admiratione vel etiamindignatione dignum, quod aliquisChristianum se profitens tam irreverenter deChristiana fide loqui praesumpserit; sicutcum dicit quod Latini pro principio hoc nonrecipiunt, scil. quod sit unus intellectustantum, quia forte lex eorum est incontrarium. Ubi duo sunt mala: primo, quiadubitat an hoc sit contra fidem; secundo,quia se alienum innuit esse ab hac lege. Etquod postmodum dicit: haec est ratio perquam Catholici videntur habere suampositionem, ubi sententiam fidei positionemnominat. Nec minoris praesumptionis estquod postmodum asserere audet: Deum nonposse facere quod sint multi intellectus, quiaimplicat contradictionem.

Adhuc autem gravius est quod postmodumdicit: per rationem concludo de necessitate,quod intellectus est unus numero; firmitertamen teneo oppositum per fidem. Ergosentit quod fides sit de aliquibus, quorumcontraria de necessitate concludi possunt.Cum autem de necessitate concludi nonpossit nisi verum necessarium, cuiusoppositum est falsum impossibile, sequitursecundum eius dictum quod fides sit defalso impossibili, quod etiam Deus facerenon potest: quod fidelium aures ferre nonpossunt.Non caret etiam magna temeritate, quod dehis quae ad philosophiam non pertinent, sedsunt purae fidei, disputare praesumit, sicutquod anima patiatur ab igne Inferni, etdicere sententias doctorum de hoc essereprobandas. Pari enim ratione possetdisputare de Trinitate, de incarnatione, et dealiis huiusmodi, de quibus nonnisicaecutiens loqueretur.

Haec igitur sunt quae in destructionempraedicti erroris conscripsimus, non perdocumenta fidei, sed per ipsorumphilosophorum rationes et dicta. Si quisautem gloriabundus de falsi nominis

por princípio que o intelecto possível é único para todos oshomens. E também evidente que Averróis refereperversamente a doutrina de Temístio e de Teofrastoacerca do intelecto possível e do intelecto agente; foimerecidamente, portanto, que lhe chamamos acima ocorruptor da filosofia peripatética228. É espantoso, por isso,como alguns, que viram tão-somente o comentário deAverróis, presumem poder pronunciar-se no sentido deque aquilo que ele diz todos os filósofos Gregos e Árabes,com exceção dos Latinos, defenderam.

[118] Causa ainda maior admiração ou é mesmo motivo deindignação, o fato de alguém que se diz cristão falar deforma tão irreverente acerca da fé cristã, dizendo, porexemplo, que “os Latinos não têm isso como princípio”, asaber, que há apenas um intelecto “talvez porque contrariaa sua religião”. Há nisto dois males: o primeiro, porqueesse alguém duvida se é matéria que vai contra a fé; osegundo, porque apresenta-se como sendo alheio a estareligião. Quer o que diz a seguir - “é este o argumento como qual os católicos parecem fundar a sua posição” - ondechama, ‘posição’ à doutrina da fé -, quer o que poucodepois ousa afirmar - Deus não pode fazer com queexistam muitos intelectos porque uma tal coisa implicariacontradição não é menor presunção.229

[119] Mas ainda mais grave é o que ele diz logo a seguir:“Pela razão, concluo necessariamente que o intelecto é umem número, todavia, pela fé, sustento convictamente ocontrário”. Deste modo pensa que a fé diz respeito àsafirmações acerca das quais se pode concluir o contrárionecessariamente; uma vez que só se pode concluir overdadeiro necessário cujo oposto é o falso impossível,segue-se, de acordo com a afirmação dele, que a fé érelativa ao falso impossível, que também Deus não podefazer - o que os ouvidos dos fiéis não podem permitir.230

Não é também sem grande temeridade que ele presumedisputar sobre aquilo que não diz respeito à filosofia, masé da esfera da pura fé, por exemplo, que a alma padecepelo fogo do inferno, ou dizer que são passíveis decondenação as afirmações dos doutores relativas a esteponto231; de fato, com um argumento igual poderiadisputar sobre a Trindade, a Incarnação e temas afins emrelação aos quais só falaríamos obscuramente.

[120] Eis, em suma, o que redigimos para destruir os errosreferidos, não servindo-nos dos dogmas da fé, mas dosargumentos e das afirmações dos próprios filósofos. Se,alguém, gloriando-se do falso nome da ciência, quiserdizer alguma coisa contra o que acabamos de escrever, que

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scientia, velit contra haec quae scripsimusaliquid dicere, non loquatur in angulis neccoram pueris qui nesciunt de tam arduisiudicare; sed contra hoc scriptum rescribat,si audet; et inveniet non solum me, quialiorum sum minimus, sed multos aliosveritatis zelatores, per quos eius erroriresistetur, vel ignorantiae consuletur.

não fale pelos cantos nem à frente dos rapazes que nãosabem julgar assuntos tão árduos, mas em vez dissoescreva, respondendo a esta obra, se tiver coragem232. Nãome encontrará apenas a mim, que sou o menor de todos,mas a muitos mais zeladores da verdade, com os quais seresiste ao seu erro ou se tomam medidas em relação à suaignorância.