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151 TÓPICOS, COMPLEMENTOS VERBAIS E PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO Marcos Antonio COSTA – UFRN Fabiano de Carvalho ARAÚJO – UFRN RESUMO Este trabalho focaliza determinadas estruturas de tópico e comentário e certos tipos de complementos verbais anafóricos, com ênfase na função que desempenham na organi- zação do discurso e, conseqüentemente, na construção do sentido. Essas construções, por um lado, funcionam como mecanismos de coesão e de coerência discursivas, e, por outro, atestam atividades cognitivas relacionadas à produção e à transferência de infor- mações entre diferentes domínios conceptuais. A topicalização de um item, assim como a retomada anafórica através do objeto, salientam, pragmática e cognitivamente, deter- minados referentes, focalizando escopos e atuando, portanto, como lentes, organizando molduras (ou submolduras) dentro das quais o discurso se estrutura. PALAVRAS-CHAVE Referenciação, construções de tópico, complementos verbais anafóricos. 1 Introdução Conforme pretendemos demonstrar, as construções de tópico e os complementos verbais anafóricos atestam funções cognitivas de grande re- levância para a coesão discursiva. Por um lado, esses constituintes funcionam como formas de remissão a referentes anteriormente apresentados no dis- curso, possibilitando a reativação desses referentes na memória do interlo- cutor, e, por outro, desempenham uma função predicativa, veiculando novas

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TÓPICOS, COMPLEMENTOS VERBAIS E PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO

Marcos Antonio COSTA – UFRNFabiano de Carvalho ARAÚJO – UFRN

RESUMOEste trabalho focaliza determinadas estruturas de tópico e comentário e certos tipos de complementos verbais anafóricos, com ênfase na função que desempenham na organi-zação do discurso e, conseqüentemente, na construção do sentido. Essas construções, por um lado, funcionam como mecanismos de coesão e de coerência discursivas, e, por outro, atestam atividades cognitivas relacionadas à produção e à transferência de infor-mações entre diferentes domínios conceptuais. A topicalização de um item, assim como a retomada anafórica através do objeto, salientam, pragmática e cognitivamente, deter-minados referentes, focalizando escopos e atuando, portanto, como lentes, organizando molduras (ou submolduras) dentro das quais o discurso se estrutura.

PALAVRAS-CHAVEReferenciação, construções de tópico, complementos verbais anafóricos.

1 Introdução

Conforme pretendemos demonstrar, as construções de tópico e os complementos verbais anafóricos atestam funções cognitivas de grande re-levância para a coesão discursiva. Por um lado, esses constituintes funcionam como formas de remissão a referentes anteriormente apresentados no dis-curso, possibilitando a reativação desses referentes na memória do interlo-cutor, e, por outro, desempenham uma função predicativa, veiculando novas

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informações a respeito desses referentes, que se reconstroem e se amoldam ao que está sendo negociado entre os interlocutores, dependendo de seus propósitos enunciativos.

Adotamos o pressuposto de Apotheloz e Reichler-Béguelin (1995) de que a referenciação é sobretudo um problema que diz respeito às operações efetuadas pelos sujeitos à medida que o discurso se desenvolve. As opera-ções referenciais determinam, por exemplo, orientações argumentativas que resultam na manutenção ou na ruptura do sentido que, durante a produção discursiva, é negociado pelos interlocutores.

Quanto ao conceito de coesão, acompanhamos as idéias de Halliday e Hasan (1979) e entendemos tratar-se de um conceito semântico-pragmático. Refere-se a relações de significado, pois ocorre quando a interpretação de um item exige que se faça referência a outro item no discurso. Um pressupõe o ou-tro, e a pressuposição precisa ser resolvida. A coesão, portanto, não é uma rela-ção estrutural, embora possa ser expressa por recursos gramaticais ou lexicais.

Vale ressaltar que a opção de investigar o funcionamento remissivo e focalizador das estruturas em questão e, por conseguinte, seu papel na in-teração comunicativa, deu-se em decorrência das análises realizadas durante a elaboração de nossa tese de doutorado (COSTA, 2005). Naquele momen-to, partindo de pressupostos teórico-epistemológicos cognitivo-funcionais, investigamos os fatores de natureza cognitiva e de natureza pragmático-co-municativa que regulam as tendências de manifestação discursiva das cons-truções de tópico, atentos, ainda, para as características formais dessas cons-truções.

Uma vez que trabalhamos com uma tipologia envolvendo topicali-zações expressas por diferentes arranjos estruturais, optamos por dividi-las em quatro grupos, de acordo com a possibilidade de se atribuir ao tópico alguma função sintática no interior da cláusula-comentário que o segue. Constatamos, com tal procedimento, que é possível estabelecer uma hierar-

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quia entre os quatro grupos analisados, considerando o grau de integração sintática entre o tópico e a cláusula-comentário.

Um desses grupos tem como traço particular o fato de se poder atribuir uma função sintática ao elemento topicalizado no interior da cláusula-comen-tário. Entre essas funções, destaca-se a de complemento verbal, que ocorre em 63% dos casos analisados. Os 37% restantes estão distribuídos entre as funções de complemento nominal, adjunto adnominal e adjunto adverbial. Nas estruturas que compõem esse grupo, a maior integração sintática entre o tópico e a cláusula-comentário se deve ao fato de um mesmo constituinte acumular, simultaneamente, uma função intracláusula e a função de tópico.

Agora, interessa-nos ampliar o objeto sob análise, incluindo, em nossas investigações, os complementos verbais anafóricos. De acordo com as nossas expectativas, tais complementos, assumindo ou não a função de tópico, de-sempenham importante papel nas estratégias lingüísticas de referenciação, concebida como uma construção colaborativa de objetos de discurso.

2 A perspectiva teórico-epistemológica

A perspectiva teórico-metodológica que utilizamos neste trabalho está alicerçada em um conjunto de premissas básicas e inter-relacionadas. Algumas dessas premissas são:

a) Alinguageméumaatividadesociocultural:portanto, para que possamos compre-ender seu funcionamento, torna-se necessário levarmos em conta os processos socioculturais em suas manifestações concretas, historica-mente situados, e a utilização, por nós humanos, de variadas formas

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de simbolismo, entre elas, a própria linguagem, para estabelecer co-municação em contextos definidos de relações sociais.

b)O sentido é contextualmente dependente e não-atômico: portanto, ele não resulta do pareamento entre linguagem e mundo. Recusamos a pressupo-sição da preexistência de uma relação de correspondência entre as palavras e as coisas no interior de um mundo autônomo, que existe independentemente de qualquer sujeito que a ele se refira a partir de representações simbólicas. Entendemos, conseqüentemente, que são os próprios sujeitos que constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas, diferentes sentidos pon-tualmente contextualizados. Assim sendo, nós criamos o mundo, na medida em que o categorizamos.

c) Ascategoriasnãosãodiscretas:portanto, afastando-nos da teoria clássica elaborada por Aristóteles e retomada pela semântica de Frege e pela Gramática Gerativa, admitimos que não há limites claros entre as categorias, estabelecendo-se entre elas um continuum de limites imprecisos (fuzzy edges), até porque os membros que as compõem não exibem os mesmos atributos criteriais: enquanto alguns deles compartilham muitos traços em comuns, constituindo-se nos pro-tótipos de sua categoria, outros compartilham apenas alguns traços, integrando-se como elementos marginais da categoria considerada.

d)Ascategoriassãogeralmenteinstáveis,variáveiseflexíveis:portanto, elas não possuem propriedades que lhes são “essenciais”, “intrínsecas” e “inerentes”. A instabilidade das categorias está intrinsecamente relacionada ao ca-ráter dos processos de referenciação, que sempre ocorrem a partir de negociações intersubjetivas. Assim sendo, a relativa estabilidade – já que produzida através de discursos sócio-históricos e de práticas cul-

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turalmente ancoradas – resulta de complexos processos simbólicos que estruturam e dão um sentido ao mundo.

e) As estruturas lingüísticas não operam independentemente de valores semânticos: portanto, recusamos o pressuposto da autonomia da sintaxe. Todas as estrutu-ras lingüísticas, dos menores morfemas às mais complexas constru-ções, são instrumentos simbólicos utilizados, ao lado de outros, para transmitir significados.

f) Semântica e Pragmática são níveis absolutamente imbricados: portanto, eles se inter-seccionam, determinando a natureza simbólica dos itens lingüísticos produzidos. Admitimos que o uso da linguagem envolve, simultanea-mente, dois eventos básicos: um evento de referenciação (do que se fala), já que quando nos comunicamos estamos tipicamente falando a respeito de algo, tratando-se, por isso, de um evento de caráter se-mântico; e um evento de fala (como se fala), relacionado aos ajus-tamentos necessários que os interlocutores são levados a realizar de modo a atender as particularidades da situação comunicativa especí-fica, tais como os conhecimentos prévios das pessoas envolvidas e as expectativas criadas pelo contexto discursivo, tratando-se, por isso, de um evento de caráter pragmático.

Resumidamente, concebemos a linguagem como uma atividade verbal vinculada à práxis sociocultural dos sujeitos historicamente contextualizados e aos aspectos cognitivos que essa práxis estabelece, resultando daí seu caráter simbólico. Instala-se, conseqüentemente, uma simbiose entre práxis e cognição cuja consideração torna-se imprescindível para que possamos compreender os princípios operativos que organizam e estruturam as categorias lingüísticas.

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3 Categorização: um antigo debate

A relação entre linguagem e mundo – ou seja, a questão da significação – tem sido colocada desde há muito tempo em diferentes quadros conceituais. A filosofia desenvolvida pelos gregos antigos é um marco inicial, no Ocidente, do debate sobre essa relação, erguendo-se para si a pergunta o que é para a pa-lavra humana ter ou fazer sentido? Naquele momento, os filósofos indagavam se os recursos lingüísticos através dos quais as pessoas descrevem o mundo a sua volta são arbitrários ou se esses recursos sofriam algum tipo de motivação natural. Essas duas teses representam desdobramentos das especulações que dividiram os antigos gregos em convencionalistas e naturalistas. Enquanto os primeiros defendiam que tudo na língua era convencional, mero resultado do costume e da tradição, os naturalistas afirmavam que todas as palavras eram, de fato, apropriadas por natureza às coisas que elas significavam.

Por outro lado, tais discussões estão relacionadas às diferentes pers-pectivas adotadas por analogistas e anomalistas acerca da (ir)regularidade da estrutura lingüística: se a língua constitui – ou não – um sistema, possuindo – ou não – uma organização interna. Os analogistas, buscando regularidades no interior da linguagem, argumentavam que, se cada signo fosse uma imi-tação do seu objeto, seria explicável por si mesmo, sem estabelecer qualquer relação necessária com os demais signos. Os anomalistas, por sua vez, não reconheciam na língua senão irregularidades.

No que diz respeito aos processos de significação, Lyons (1979) faz re-ferência à “controvérsia filosófica entre realistas e nominalistas, que de uma maneira ou de outra vem vindo desde Platão até os nossos dias” (p. 426). Enquanto os realistas acreditavam que as coisas às quais damos o mesmo nome (por exemplo, todos os animais que denominamos “vaca”) teriam algu-mas propriedades essenciais comuns pelas quais pudéssemos identificá-las, os nominalistas achavam que as coisas não teriam nada em comum a não

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ser o nome que, por convenção, aprendemos a dar-lhes. Diferentemente das duas controvérsias anteriores, o debate entre realistas e nominalistas focaliza, diretamente, os processos através dos quais identificamos as entidades.

No Crátilo de Platão, encontramos a representação das idéias defendidas por naturalistas e convencionalistas acerca da categorização lingüística: en-quanto o grupo de Crátilo, inspirado em Heráclito, sustenta que há uma relação natural entre os nomes e as coisas que elas designam (ou pelo menos que, sem essa relação, não existe nenhum nome autêntico), e assume, desse modo, que os nomes eram, em última instância, uma “imitação” das coisas, o outro grupo, buscando inspiração em Demócrito e ligado ao pensamento relativista de que “o homem é a medida de todas as coisas”, assegura que a atribuição dos nomes é arbitrária, uma questão de lei, de instituição, de convenção.

De acordo com Mondada e Dubois (2003), existem duas idéias acerca da categorização (ou, de como a língua refere o mundo): para a primeira delas, a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou menos às coisas, existindo, portanto, uma relação de correspondência entre as palavras e as coisas. Como bem observam os autores, “este ponto de vista pressupõe que um mundo autônomo já discretizado em objetos ou ‘entidades´ existe inde-pendentemente de qualquer sujeito que se refira a ele, e que as representa-ções lingüísticas são instruções que devem se ajustar adequadamente a este mundo” (p. 19). Distintamente, de acordo com a segunda proposta, são os su-jeitos que constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e cul-turalmente situadas, versões públicas do mundo. Trata-se de uma perspectiva interacionista que considera os processos de referenciação como motivados, em vários graus, por uma série de fatores, como o modo através do qual os humanos interagem – em uma dada cultura – com o mundo, e as atividades cognitivas gerais de formação de conceitos. A atividade de significação, por conseguinte, não pode ser imputada a um sujeito cognitivo abstrato, racional, intencional e ideal, solitário face ao mundo, mas decorre da construção de ob-

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jetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das negociações, das mo-dificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.

Os resultados epistemológicos desse debate tornam-se nucleares para a análise que estamos propondo, permitindo-nos pensar acerca dos mecanismos semântico-pragmáticos e a configuração cognitiva que regem a organização discursiva como um todo e, em particular, os processos de referenciação rela-cionados às construções de tópico e aos complementos verbais anafóricos.

4 A construção intersubjetiva dos objetos de discurso

Para Mondada e Dubois (2003), os objetos de discurso são construtos culturais, representações constantemente alimentadas pelas atividades lin-güísticas, emergindo de práticas simbólicas e intersubjetivas. As autoras se utilizam desse conceito, em substituição ao de referentes, visando marcar uma oposição à idéia segundo a qual a língua é um sistema de etiquetas que se ajustam mais ou menos bem às coisas do mundo, e enfatizam, dessa forma, a idéia de processo que caracteriza – através de práticas discursivas e cognitivas social e culturalmente situadas – o ato de referir. Para as autoras, “os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas ativi-dades, transformando-se a partir dos contextos” (p.17).

Estamos considerando a retomada anafórica sob um prisma amplo, não envolvendo, necessariamente, retomadas referenciais em sentido estrito, mas uma espécie de remissão às informações anteriormente apresentadas. Na construção apresentada em (01), por exemplo, o complemento verbal topica-lizado (aquela cena), apesar do demonstrativo, não é explicitado no discurso antecedente. A progressão referencial por ele garantida é pragmático e cog-nitivamente construída.

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01) ... era uma tarde linda e ainda tinha uma réstia de sol sobre... as galhadas secas... Marcos eu vi um pássaro... um pássaro... amarelo com marrom e branco com uma crista assim sobre a cabeça... um cocar assim de penas... rapaz que pássaro lindo... ele cantou um canto... que me parecia um lamento ou sei lá um... uma alerta à natureza de que ele... de que ele tava sendo ameaçado na sua... na sua vida... no seu processo de sobrevivência... eu parei a minha corrida e... pedi desculpas a ele por todos nós ((riso)) de não compreendermos sua linguagem... mas eu compreendia profundamente naquele momento e pedia desculpa a ele por todas as agressões... que a nossa Via Costeira vinha sofrendo e que ele tava sentindo naquele momento e tava cantando daquela forma... ele cantava um canto assim triste... parecia um canto de... de que... de salvar... de salvamento... ‘me salve pelo amor de Deus’... cara... era um... eu parei e me emocionei... eu num corri mais bem... corri emocionado todo o tempo... e ainda tinha um longo percurso

pra correr... mas aquela cena eu num esqueço jamais... (D&G - Natal, p. 124)

Conte (2003) utiliza o conceito de “encapsulamento anafórico” para analisar construções como a apresentada em (01). Para ela,

O encapsulamento anafórico é um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal funciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção precedente do texto. O sintagma nominal anafórico é construído com um nome geral como núcleo lexical e tem uma clara preferência pela determinação demonstrativa. Pelo encapsulamento anafórico, um novo referente discursivo é criado sob a base de uma informação velha; ele se torna o argumento de predicações posteriores. Como um recurso de integração semântica, os sintagmas nominais encapsuladores rotulam porções textuais precedentes; aparecem como pontos nodais no texto. (p. 177)

Para a autora, o sintagma nominal encapsulador funciona como um princípio organizador da estrutura discursiva: é um subtítulo que interpreta uma informação precedente e, simultaneamente, funciona como ponto de início para uma outra informação. Conte observa ainda que “em sua função de estruturação e organização do texto, os encapsuladores anafóricos che-gam muito perto dos conectivos textuais” (p. 190).

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De acordo com o levantamento preliminar de nossos dados, o encap-sulamento anafórico também pode ocorrer com os complementos verbais expressos em sua posição não-marcada, posposta ao verbo, como no exem-plo (02), abaixo:

02) I: com os pés no chão comi tudo que tinha direito... doces... bolos... salgados... tangerinas... sucos... leite... muito leite... eu tomei muito leite e... quando eu terminei esse café eu acho que faltava uns dez minutos pra pegar o ônibus... ((riso)) e eu super à vontade já assim... me sentindo assim um Porto

Alegrense... ((riso)) já até assimilava o sotaque gaúcho... (D&G-Natal, p. 101)

Tanto o SN aquela cena, em (01), como o SN esse café, em (02), sumarizam informações contidas em segmentos anteriores do texto, encapsulando-as sob a forma de um sintagma nominal predicativo e transformando-as em objetos de discurso. Dessa operação, resulta uma (re)avaliação que o locutor faz das in-formações já apresentadas, exercendo, assim, função argumentativa.

5 Expressões referenciais definidas e o processamento informacional do discurso

Denominam-se expressões referenciais definidas as formas lingüísticas constituídas, minimamente, de um determinante definido seguido de um nome. Os dois exemplos acima, por apresentarem complementos verbais anafóricos (apontando, portanto, para referentes apresentados anteriormente no discurso), exibem SNs definidos. Nos exemplos, esses SNs são introduzidos, respectivamente, pelos demonstrativos aquela e esse.

Acompanhando Chafe (1976), consideramos que o status de definido envolve aspectos cognitivos relacionados à avaliação feita pelo falante de como a pessoa com quem ele está falando é capaz de entender o que ele está dizendo. Mais especificamente, trata-se de um status que diz respeito à assunção do locutor de que seu interlocutor é capaz de identificar o refe-

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rente do qual ele está falando. Assim sendo, o processamento informacional do discurso ocorreria a partir da suposição do falante quanto ao grau de co-nhecimento prévio de seu interlocutor. A mente das pessoas, de acordo com Chafe, não apenas guarda uma grande história de conhecimento, ela também está, a qualquer momento, acessando estágios temporários relativos a esse conhecimento, “pensando”, pontualmente, uma parte dele. Ao falar, o falante vai verbalizando uma após outra as porções de informação temporariamente ativas. Para que, de fato, as mensagens sejam efetivadas, torna-se necessário que o locutor ajuste o que ele está dizendo à avaliação que ele faz do que seu interlocutor está pensando no momento de sua fala. A proposta de Chafe é analisar certos caminhos que permitem ao falante acomodar sua mensagem aos estágios temporários da mente à qual ele se dirige.

O status de definido dos complementos verbais sob análise, assim como ocorreu com relação às estruturas topicalizadas, ratifica nossa observação de que esses elementos direcionam o ouvinte/leitor para áreas bastante demar-cadas do discurso, reforçando, portanto, seu papel focalizador.

Com respeito às construções de tópico, constatamos, por exemplo, que, em alguns casos, é possível estabelecer implicações relacionais metonímicas entre o tópico e o tema geral desenvolvido pelo informante, o que evidencia o papel anafórico e coesivo do elemento topicalizado. É o que ocorre, no caso transcrito abaixo, entre o SN a escadaria (que ocupa a função de tópico) e o tema em questão, a reforma da casa.

03) ... porque a casa... depois que eu comprei esta casa... eu comecei a aumentar... na hora que eu aumentei essa casa... eu ainda... a minha casa não está totalmente pronta... né... agora é que eu vou terminar... então a minha casa está mesclada... a parte de fora da casa tem uma cor meio... assim... acinzentada... um verde... quase cinza... a área... de baixo né... a varanda de baixo é branca e as salas são brancas... a cozinha é toda de azulejo e não tem... é de cor bege... já a escadaria... ela foi pintada de uma cor... de um

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amarelo quase bege... não chega a ser amarelo... nem chega a ser bege... tá entre amarelo e bege... quase rosa... (D&G - Natal, p. 59)

É interessante, ainda, observarmos este próximo exemplo:

04) I: bem... eu vou falar sobre uma cidade que se chama Espírito Santo... ela se localiza próximo a Goianinha... nessa região Oeste... é uma cidade pequenininha... poucos habitantes... [...] ... no mês de junho... um mês que tem: um mês que tem mais chuva... no inverno... e muitas vezes acaba com as plantações... com os animais né... de lá... só que quando passa dois dias... no máximo uma semana... esse rio:: quando ele vai secando... então... vai tendo mais peixes e daí as pessoas vendem... ajuda a plantações:: as plantações deles... o meio de:: o meio de subsistência da maioria da população de lá é a agricultura... tem um projeto lá que é o:: o prefeito né... fa/ dá alimento o pessoal... é:: a vaca leiteira... um lhe dá a soja... dá certos alimentos... então todos os dias o pessoal tem:: tem esses alimentos... então quando falta esse... eles tiram da onde? tiram já desse rio né... serve como meio da:: é:: meio da... de subsistência mesmo... serve pra subsistência esse rio... essa cidade... como eu fa/ como eu falei no início... ela tem essa cachoeira... essa cachoeira... é mais... mais visitada aos domingo onde os jovens vão pra lá...

(D&G – Natal, p. 81)

Nesse caso, ocorre um movimento oposto ao anterior. Nele, o tópico (essa cidade) retoma o tema geral (a cidade que se chama Espírito Santo), apresentado no início da fala do informante e interrompido por diversos sub-temas: as plantações, o rio, a agricultura, o prefeito, dentre outros. Contudo, indiferentemente do tópico estabelecer vinculação referencial com um su-bitem da cadeia discursiva ou com o item que representa o seu tema cen-tral, nossa hipótese é a de que essas construções de tópico têm como função focalizar determinados elementos, delimitando, portanto, escopos. Ora essa focalização é em close (quando a perspectiva recai sobre um elemento espe-cífico do discurso), ora com distanciamento (cobrindo seu tema geral). Tal ati-vidade, como qualquer outra vinculada à estruturação de significado, implica

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negociações situacionais e conhecimentos de mundo compartilhados entre os interlocutores. Esses, dentre outros aspectos, fazem parte do que estamos chamando configuração cognitiva das estruturas de tópico.

A observação de que o tópico atua como uma lente, focalizando esco-pos, reforça o entendimento de Chafe (1976) de que o constituinte topica-lizado demarca um quadro espacial, temporal ou individual dentro do qual a predicação atua, limitando, portanto, essa predicação a um certo domínio restrito. Partindo dessa compreensão, podemos concluir que as construções de tópico organizam molduras (ou submolduras) dentro das quais o discurso se estrutura.

A focalização de escopos e a conseqüente restrição de domínios, limi-tando a abrangência da predicação, são características também observadas nas estruturas com complementos verbais anafóricos. Vejamos o exemplo seguinte:

05) I: sim... aí eu passei o final de semana com eles porque eu cheguei num sábado eu acho... aí passei ainda o domingo com eles... e na segunda-feira eu retornei a Porto Alegre... pra é... me dirigir à cidade onde... teria que me apresentar né... Santo Ângelo... Porto Xavier... fronteira com Argentina... já próximo das missões... Santo Ângelo fica nas missões e... Porto Alegre fica vizinho na fronteira onde passa o rio Uruguai... tudo mais... desemboca... uma paisagem linda... sim... mas aí eu comprei a passagem pra Santo Ângelo... pra Porto Xavier... e a viagem pra Porto Xavier Marcos... é a coisa mais linda do mundo... eu adorava... depois eu te conto essa aventura... mas aí eu comprei a passagem e viajei... dezesseis horas... eu acho dezesseis horas... Para Porto

Xavier... (D&G - Natal, p. 104)

Observando o trecho em destaque, temos que o referente codifica-do pelo SN a viagem pra Porto Xavier é retomado pela expressão referencial definida essa aventura que, sintaticamente, funciona como complemento do verbo contar. Essa retomada, que atesta um trabalho de recategorização,

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apóia-se, entre outros fatores, em pressupostos compartilhados pelos sujeitos envolvidos na atividade de referenciação. Ou seja, o que nos permite estabe-lecer relações de correferência entre os termos referenciais a viagem pra Porto Xavier e essa aventura são, em última instância, esquemas cognitivos que, de acordo com Dijk (1982, p. 135), representam um conjunto de proposições que caracterizam nosso conhecimento convencional de alguma situação mais ou menos autônoma (atividade, evento, estado). Esses esquemas, de acordo com o autor, estão baseados em inferências que o sujeito faz a partir de seu conhe-cimento conceptual dos fatos e da realidade. Baseado em sua experiência, numa dada cultura, o indivíduo organiza seu conhecimento de mundo e o usa para predizer interpretações e relações referentes a novas informações, novos eventos e novas experiências.

Considerando o exemplo apresentado, admitimos ser o conhecimen-to pragmático compartilhado pelos interlocutores que os permite relacionar, de maneira coesiva e coerente, viagem e aventura. A progressão referencial aqui verificada é, por conseguinte, pragmática e cognitivamente construída. Concluímos, assim, que os complementos verbais anafóricos também apre-sentam função focalizadora, uma vez que apontam, no processo interativo de comunicação, o aspecto particular que se pretende destacar em relação a um determinado referente. Eles funcionam, portanto, como um princípio organizador do processamento informacional discursivo. A recategorização observada no trecho acima, semelhante ao que ocorreu com as construções de tópico apresentadas nos dois exemplos anteriores, redimensiona o foco sobre a referência.

6 Conclusão

Outros aspectos relacionados aos processos de referenciação e/ou de recategorização, responsáveis pela progressão referencial do discurso, pre-

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cisam ser considerados. Questões envolvendo relações metafóricas, dêiticas, dentre outras, farão parte de nossas análises tanto quando considerarmos as construções de tópico como quando nossas atenções recaírem sobre os complementos verbais anafóricos. Pretendemos incorporar às nossas análi-ses as seguintes categorias: status informacional, iconicidade, contrastividade, figura-fundo, marcação, dentre outras. Tais categorias, embora atualmente emblemáticas de tendências teóricas específicas, atestam questionamentos levantados por vários autores, em diversas áreas do conhecimento e em dife-rentes períodos históricos, acerca do fenômeno lingüístico. Todas elas estão relacionadas a princípios de base cognitiva e também apontam para o âmbito das relações interacionais, na medida em que revelam traços das estratégias empregadas pelos falantes no sentido de orientar a atenção dos seus interlo-cutores para o conteúdo informacional a ser comunicado.

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REFERÊNCIAS

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