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Intoxicação por uvas e passas em cães Bernardo ARCHER 1 , Bruno LOPES 2 , Bruno SILVA 3 , Fátima ROCHA 4 , Ludovico URBANO 5 1,2,3,4,5 Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, Universidade do Porto Largo Prof. Abel Salazar, 2, 4099-003 Porto RESUMO Serão as uvas e as passas realmente tóxicas para os cães? As uvas aparentam ser um fruto saudável e desde há muito que se sabe serem uma excelente fonte de antioxidantes, parecendo ser impossível a intoxicação do animal por este pequeno fruto. Contudo, esta ideia não poderia estar mais errada e informação recente indica que a ingestão de apenas sete uvas pode ser tóxica, tendo sido já relatados diversos casos de intoxicação em cães que chegaram mesmo a desenvolver insuficiência renal aguda. O tratamento engloba fluidoterapia agressiva e por vezes a descontaminação pode ser útil. O prognóstico irá depender da condição do animal no momento da toxicose, sucesso da descontaminação, do tratamento efectuado e do progresso dos sinais clínicos. É possível a consequente morte do animal, no entanto, uma abordagem médica atempada conduz a um prognóstico favorável. INTRODUÇÃO Devido ao seu comportamento típico de inspecção, o cão tende a interagir bastante com o ambiente que o rodeia, principalmente através da boca, facto pelo qual, chega mesmo a ser a espécie animal que mais casos de intoxicação apresenta. Uma das intoxicações que emergiu de forma impressionante nos últimos anos foi precisamente a intoxicação por uvas ou passas em cães. Está descrito que em grande parte destas intoxicações, os animais desenvolvem insuficiência renal aguda (IRA). Não diferenças nas manifestações clínicas de toxicose por uvas de diferentes cores ou tipos. O mecanismo de intoxicação permanece ainda um mistério, no entanto, são consideradas como potenciais as seguintes causas: nefrotoxinas como ocratoxinas; flavenóides; taninos; pesticidas, como os fluoretos; metais pesados; excesso de glicose; excesso de A intoxicação por uvas e passas foi descrita principalmente em TRATAMENTO E PROGNÓSTICO Tratamento • Não existe antídoto; A digestão deste fruto parece ser lenta e por isso a descontaminação várias horas após ingestão pode ser útil; • A descontaminação digestiva deve ser realizada através da emese e/ou lavagem gástrica. • Caso o animal esteja com vómitos, devem ser usados anti-eméticos; • Todos os casos devem ser tratados com fluidoterapia agressiva (dobro da taxa de manutenção normal) durante 48h importante para a rehidratação e suporte da função renal; • A função renal e os electrólitos devem ser monitorizados durante pelo menos 72h após a ingestão; • No caso de os animais desenvolverem oligúria, pode ser necessário administrar um diurético. Prognóstico O prognóstico vai depender de diversos factores: • Rim e respectiva função renal; • Condição do animal no momento da intoxicação; • Sucesso da descontaminação e do tratamento efectuado; • Progresso dos sinais clínicos; INTOXICAÇÃO A informação disponível indica que a toxicidade aumenta proporcionalmente à quantidade ingerida. Contudo, dados sugerem uma ampla variabilidade na tolerância dos cães às uvas ou passas. Estima-se que a quantidade de uvas ingeridas associada a IRA seja cerca de 32 g/kg e entre 11-30 g/kg para as passas. Critérios de diagnóstico Devem ser discutidos outros diagnósticos diferenciais que causem semelhante quadro clínico, entre os quais: toxinas (ex.: etilenoglicol, AINES, antibióticos aminoglicosídeos, entre outros); trauma; leptospirose; pielonefrite, obstrução pós-renal e hipoadrenocorticismo. Anamnese Exame estado geral Achados laboratoriais Ecografia abdominal Biópsia Sinais clínicos • Vómitos, tipicamente algumas horas após a ingestão; • Diarreia; • Letargia, prostração; • Anorexia; • Ataxia, tremores, fraqueza; Poliúria e polidipsia durante o período inicial que pode tornar-se em oligúria ou anúria (24-72h após exposição), quando há afecção do rim. Critérios mais importantes • Suspeita ou certeza de exposição do animal a uvas ou passas nas últimas 48h; • Azotémia severa; • Hiperfosfatémia; • Isostenúria; • Degeneração e necrose tubular proximal renal. Parâmetro Percentagem de animais afectados Azotémia (↑ureia nitrogenada e creatinina) 100% Hiperfosfatémia 90% Alanina aminotransferase elevada 65% Hipercalcémia 63% Hipercalémia 45% Anemia 41% Lipase aumentada 41% Hiponatremia 33% Hipocloremia 33% Trombocitopenia 27% Fosfatase alcalina aumentada 24% Tabela 1 - Alterações bioquímicas e celulares no sangue periférico de animais afectados (Adaptado de: Mazzaferro E. 2010. Raisin and Grape Toxicity. In: Small Animal Emergency and Critical Care; Blackwell Publishing Ltd, 667-673 pp.) Parâmetro Percentagem de animais afectados Leucócitos 67% Hematúria microscópica 58% Proteinúria 56% Glicosúria 50% Isostenúria 41% Cristalúria 33% Hipostenúria 21% Cilindros 21% Tabela 2 - Alterações na urianálise e percentagem de animais afectados (Adaptado de: Mazzaferro E. 2010. Raisin and Grape Toxicity. In: Small Animal Emergency and Critical Care; Blackwell Publishing Ltd, 667-673 pp.) CONCLUSÃO A melhor forma de evitar estas intoxicações passa pela prevenção, sendo o papel do médico veterinário fundamental, na medida em que este deve sensibilizar os donos e explicar-lhes devidamente o risco de intoxicação por uvas e passas no seu animal. Caso se suspeite de uma possível intoxicação de um cão por uvas/passas, quanto mais rápido for feita a detecção e os devidos cuidados médicos, maior é a probabilidade de recuperação clínica. Referências: - Gupta R.. 2007. Veterinary Toxicology – Basic and Clinical Principles; Academic Press, p.174. - Kovalkovicova N., Sutiakova I., Pistl J., Sutiak V.. 2009. Some Food Toxic for Pets. Interdisciplinary Toxicology: 2(3): 169-176. - Yoon S., Byun J., Kim M., Bae Y., Shin Y., Yooh S., et al. 2010. Natural Occurrence of Grape Poisoning in Two Dogs. The Journal of Veterinary Medical Science; 12 October. - McKnight K.. 2005. Grape and Raisin Toxicity in Dogs. Veterinary Technician; February. - Sutton N., Bates N., Campbell A.. 2009. Factors Influencing Outcome of Vitis vinifera (grapes, raisins, currants and sultanas) Intoxication in Dogs. Veterinary Record; 164: 430-431. - Botha C., Penrith M.. Potential Plant Poisoning in Dogs and Cats in Southern Africa. 2009. Journal of the South African Veterinary Association; 80(2): 63-74. - Morrow C., Valli V., Volmer P., Eubig P.. 2005. Canine Renal Pathology Associated with Grape or Raisin Ingestion: 10 cases. Journal of Veterinary Diagnostic Investigation; 17(3): 223-231. - Handl S., Iben C.. 2008. Foodstuffs Toxic to Small Animals – A Review. Vet. Med. Austria; 95: 235-242. - VetLern – the home page for veterinary professional. Savigny M., Macintire D.. 2007. Grape and Raisin Toxicity in Dogs: http://www.vetlearn.com/ArticleDetails/tabid/106/ArticleID/2522/Default.aspx. 1 3 2 4

Toxicidade das uvas em cães

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Page 1: Toxicidade das uvas em cães

Intoxicação por uvas e passas em cãesBernardo ARCHER1, Bruno LOPES2, Bruno SILVA3, Fátima ROCHA4, Ludovico URBANO5

1,2,3,4,5 Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar, Universidade do PortoLargo Prof. Abel Salazar, 2, 4099-003 Porto

RESUMO

Serão as uvas e as passas realmente tóxicas para os cães? As uvas aparentam ser um fruto saudável e desde há muito que se sabe serem uma excelente fonte de

antioxidantes, parecendo ser impossível a intoxicação do animal por este pequeno fruto. Contudo, esta ideia não poderia estar mais errada e informação recente indica que

a ingestão de apenas sete uvas pode ser tóxica, tendo sido já relatados diversos casos de intoxicação em cães que chegaram mesmo a desenvolver insuficiência renal

aguda. O tratamento engloba fluidoterapia agressiva e por vezes a descontaminação pode ser útil. O prognóstico irá depender da condição do animal no momento da

toxicose, sucesso da descontaminação, do tratamento efectuado e do progresso dos sinais clínicos. É possível a consequente morte do animal, no entanto, uma abordagem

médica atempada conduz a um prognóstico favorável.

INTRODUÇÃO

Devido ao seu comportamento típico de inspecção, o cão tende a interagir

bastante com o ambiente que o rodeia, principalmente através da boca, facto

pelo qual, chega mesmo a ser a espécie animal que mais casos de intoxicação

apresenta.

Uma das intoxicações que emergiu de forma impressionante nos últimos anos

foi precisamente a intoxicação por uvas ou passas em cães. Está descrito que em

grande parte destas intoxicações, os animais desenvolvem insuficiência renal

aguda (IRA). Não há diferenças nas manifestações clínicas de toxicose por uvas

de diferentes cores ou tipos.

O mecanismo de intoxicação permanece ainda um mistério, no entanto, são

consideradas como potenciais as seguintes causas: nefrotoxinas como

ocratoxinas; flavenóides; taninos; pesticidas, como os fluoretos; metais pesados;

excesso de glicose; excesso de vitamina D; choque hipovolémico e isquémia

renal.

A intoxicação por uvas e passas foi descrita principalmente em cães, sendo

que a toxicidade é altamente variável. TRATAMENTO E PROGNÓSTICO

Tratamento

• Não existe antídoto;

• A digestão deste fruto parece ser lenta e por isso a descontaminação várias

horas após ingestão pode ser útil;

• A descontaminação digestiva deve ser realizada através da emese e/ou lavagem

gástrica.

• Caso o animal esteja com vómitos, devem ser usados anti-eméticos;

• Todos os casos devem ser tratados com fluidoterapia agressiva (dobro da taxa

de manutenção normal) durante 48h importante para a rehidratação e suporte

da função renal;

• A função renal e os electrólitos devem ser monitorizados durante pelo menos

72h após a ingestão;

• No caso de os animais desenvolverem oligúria, pode ser necessário administrar

um diurético.

Prognóstico

O prognóstico vai depender de diversos factores:

• Rim e respectiva função renal;

• Condição do animal no momento da intoxicação;

• Sucesso da descontaminação e do tratamento efectuado;

• Progresso dos sinais clínicos;

• A mortalidade pode atingir os 50 a 75%.

INTOXICAÇÃO

A informação disponível indica que a toxicidade aumenta proporcionalmente à

quantidade ingerida. Contudo, dados sugerem uma ampla variabilidade na

tolerância dos cães às uvas ou passas. Estima-se que a quantidade de uvas ingeridas

associada a IRA seja cerca de 32 g/kg e entre 11-30 g/kg para as passas.

Critérios de diagnóstico

Devem ser discutidos outros diagnósticos diferenciais que causem semelhante

quadro clínico, entre os quais: toxinas (ex.: etilenoglicol, AINES, antibióticos

aminoglicosídeos, entre outros); trauma; leptospirose; pielonefrite, obstrução pós-

renal e hipoadrenocorticismo.

Anamnese

Exame estado geral

Achados laboratoriais

Ecografia abdominal

Biópsia

Sinais clínicos

• Vómitos, tipicamente algumas

horas após a ingestão;

• Diarreia;

• Letargia, prostração;

• Anorexia;

• Ataxia, tremores, fraqueza;

• Poliúria e polidipsia durante o

período inicial que pode tornar-se

em oligúria ou anúria (24-72h após

exposição), quando há afecção do

rim.

Critérios mais importantes

• Suspeita ou certeza de exposição do

animal a uvas ou passas nas últimas

48h;

• Azotémia severa;

• Hiperfosfatémia;

• Isostenúria;

• Degeneração e necrose tubular

proximal renal.

Parâmetro Percentagem de animais afectados

Azotémia (↑ureia nitrogenada e

creatinina)100%

Hiperfosfatémia 90%

Alanina aminotransferase elevada 65%

Hipercalcémia 63%

Hipercalémia 45%

Anemia 41%

Lipase aumentada 41%

Hiponatremia 33%

Hipocloremia 33%

Trombocitopenia 27%

Fosfatase alcalina aumentada 24%Tabela 1 - Alterações bioquímicas e celulares no sangue periférico de animais afectados (Adaptado de: Mazzaferro E. 2010. Raisin and Grape Toxicity. In: Small Animal Emergency and Critical Care; Blackwell Publishing Ltd, 667-673 pp.)

Parâmetro Percentagem de animais afectados

Leucócitos 67%

Hematúria microscópica 58%

Proteinúria 56%

Glicosúria 50%

Isostenúria 41%

Cristalúria 33%

Hipostenúria 21%

Cilindros 21%Tabela 2 - Alterações na urianálise e percentagem de animais afectados (Adaptado de: Mazzaferro E. 2010. Raisin and Grape Toxicity. In: Small Animal Emergency and Critical Care; Blackwell Publishing Ltd, 667-673 pp.)

CONCLUSÃO

A melhor forma de evitar estas intoxicações passa pela prevenção, sendo o

papel do médico veterinário fundamental, na medida em que este deve

sensibilizar os donos e explicar-lhes devidamente o risco de intoxicação por uvas

e passas no seu animal.

Caso se suspeite de uma possível intoxicação de um cão por uvas/passas,

quanto mais rápido for feita a detecção e os devidos cuidados médicos, maior é a

probabilidade de recuperação clínica.Referências:

- Gupta R.. 2007. Veterinary Toxicology – Basic and Clinical Principles; Academic Press, p.174.

- Kovalkovicova N., Sutiakova I., Pistl J., Sutiak V.. 2009. Some Food Toxic for Pets. Interdisciplinary Toxicology: 2(3): 169-176.

- Yoon S., Byun J., Kim M., Bae Y., Shin Y., Yooh S., et al. 2010. Natural Occurrence of Grape Poisoning in Two Dogs. The Journal of Veterinary Medical Science; 12 October.

- McKnight K.. 2005. Grape and Raisin Toxicity in Dogs. Veterinary Technician; February.

- Sutton N., Bates N., Campbell A.. 2009. Factors Influencing Outcome of Vitis vinifera (grapes, raisins, currants and sultanas) Intoxication in Dogs. Veterinary Record; 164: 430-431.

- Botha C., Penrith M.. Potential Plant Poisoning in Dogs and Cats in Southern Africa. 2009. Journal of the South African Veterinary Association; 80(2): 63-74.

- Morrow C., Valli V., Volmer P., Eubig P.. 2005. Canine Renal Pathology Associated with Grape or Raisin Ingestion: 10 cases. Journal of Veterinary Diagnostic Investigation; 17(3): 223-231.

- Handl S., Iben C.. 2008. Foodstuffs Toxic to Small Animals – A Review. Vet. Med. Austria; 95: 235-242.

- VetLern – the home page for veterinary professional. Savigny M., Macintire D.. 2007. Grape and Raisin Toxicity in Dogs: http://www.vetlearn.com/ArticleDetails/tabid/106/ArticleID/2522/Default.aspx.

- Mazzaferro E.. 2010. Raisin and Grape Toxicity. In: Small Animal Emergency and Critical Care; Blackwell Publishing Ltd, p.667-673.

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