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TRAMAS DE PODER: DISPUTAS POLÍTICAS NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA/RS (1850-1880) MARILUCI MELO FERREIRA Passo Fundo, março de 2002

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TRAMAS DE PODER: DISPUTAS POLÍTICAS NOS

CAMPOS DE CIMA DA SERRA/RS (1850-1880)

MARILUCI MELO FERREIRA

Passo Fundo, março de 2002

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UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

MESTRADO EM HISTÓRIA

TRAMAS DE PODER: DISPUTAS POLÍTICAS

NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA/RS (1850-1880)

MARILUCI MELO FERREIRA

Dissertação de Mestrado na área de História Regional, apresentada ao Programa de Pós-graduação em História como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em História sob a orientação da Profª Drª Ana Luiza Setti Reckziegel

Passo Fundo, março de 2002

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F383t Ferreira, Mariluci Melo Tramas de poder : disputas políticas nos campos de cima da serra-RS (1850-1880) / Mariluci Melo Ferreira. – 2002. 167 p. Dissertação (mestrado) - Universidade de Passo Fundo, 2002. 1. História 2. História do Rio Grande do Sul 3. Política 4. Poder – elite I. Título

CDU: 981.65

Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath Vieira CRB 10/1278

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Ao Crescêncio, pelo amor,

pelo carinhoso incentivo

e pela incansável presença

em mais esta etapa

compartilhada.

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AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, pelo apoio.

No Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo,

agradeço aos meus colegas, especialmente a Dilse Piccin Corteze pelo incentivo nos

momentos de angústia, e aos professores, pelas importantes orientações.

Em Vacaria e Lagoa Vermelha, a todos os pesquisadores apaixonados pela história do

seu município, que prontamente contribuíram para este trabalho, dividindo as suas

experiências: A professora Maria Neli Ferreira Borges e as Sras Dalva Soldatelli, Neli Pinto

Lacerda, Srs Ademar Pinotti, Ernani Dias de Moraes (in memorian), Firmo Carneiro e Nelson

Berthier. Em especial, as amigas Dagmar Kuse pela acolhida e Nelita Berthier Bandeira pelas

dicas de protuguês.

Aos professores Loiva Otero Félix, Véra Lúcia Maciel Barroso, Paulo Zarth, Aldomar

Rückert e Marcos Witt pelas considerações pertinentes.

Ao Senhor juiz de direito, da 5ª Vara Cível da comarca de Passo Fundo, Luiz Antonio

Behrensdorf Gomes da Silva, pelas valiosas sugestões.

À direção e funcionários dos Arquivos em Porto Alegre: Arquivo Histórico do Rio

Grande do Sul, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, Arquivo da Assembléia

Legislativa, além do Arquivo Histórico de Santo Antônio da Patrulha e Arquivo Histórico

Regional, em Passo Fundo, pela gentileza no atendimento.

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Aos professores da Escola Municipal de Ensino Fundamental Padre José de Anchieta

e do Instituto Educacional Metodista de Passo Fundo pelo companheirismo.

Um agradecimento especial à Profª Drª Ana Luiza Setti Reckziegel, pela orientação

séria, incentivadora e crítica.

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RESUMO

A sociedade que se estruturou nos Campos de Cima da Serra, região Nordeste do Rio

Grande do Sul, cuja tônica era a grande propriedade rural, foi marcada pela presença do

abastado fazendeiro que controlava uma complexa rede de influências. Este trabalho analisa a

disputa do poder local em Vacaria e Lagoa Vermelha no período de 1850 a 1880, época em

que estes municípios serranos adquiriram autonomia político-administrativa, desmembrando-

se de Santo Antônio da Patrulha. Nestas três décadas são destacados dois momentos cruciais

em que a trama de poder se notabilizou na esfera local. Primeiro, em 1857, no contexto do

desvilamento de Vacaria, quando ocorreram conflitos no interior da elite política vacariana,

culminando com o atentado contra o delegado de polícia, capitão João Pereira de Almeida.

Depois em 1870, com o assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, de Lagoa

Vermelha. Estes crimes ilustram dois fenômenos bem presentes no âmbito regional do século

XIX: a dicotomia entre o público e o privado e as estratégias dos mandatários locais que

tiveram seus interesses ameaçados pela ação das autoridades públicas.

Palavras-chaves: História regional, política, poder e elites.

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ABSTRACT

The society that had structure in Campos de Cima da Serra, northeast region of Rio

Grande do Sul, whose tonic was the big rural propriety, was marked by presence of wealthy

farmer that used to control the complex net of influences. This research make analysis of

place power in Vacaria and Lagoa Vermelha in the period from 1850 by 1880, this epoch that

mountaineer municipal of districts had acquired political-administrative autonomy, that

separated of Santo Antônio da Patrulha. In these three decades are detached two crucials

moments in that intrigues of power had renoun in local spher. First, in 1857, in context of

desinute of Vacaria, when conflits occurred inside of political elite from Vacaria, culminating

with against outrage police officer, the captain João Pereira de Almeida. After, in 1870, with

murder of judge Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, from Lagoa Vermelha. These crimes

show two phenomenon presents in the regional ambit of XIX century: the dicotomy between

public and private and strategies of locals mandatories that had your threaten interest by

action of public autorities.

Key-words: Regional History, political, power and elites.

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SUMÁRIO

RESUMO.................................................................................................................................. 8

ABSTRACT ............................................................................................................................. 9

LISTA DE FIGURAS............................................................................................................. 12

LISTA DE ABREVIAÇÕES.................................................................................................. 13

INTRUDUÇÃO ...................................................................................................................... 14

1 A OCUPAÇÃO DOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA: 1730 – 1880 ............................ 26 1.1 As vacarias e a apropriação dos campos meridionais ................................................... 27 1.2 Os caminhos das tropas ................................................................................................. 32 1.3 Na rota litorânea surge Santo Antônio da Patrulha ....................................................... 37 1.4 Os “passos”: a gênese dos pedágios no RS ................................................................... 38 1.5 Formas de ocupação da terra ......................................................................................... 40 1.6 Lei de Terras de 1850 e a organização fundiária ........................................................... 46 1.7 Os párocos e os registros de terras................................................................................. 50 1.8 Medição e legitimação de terra nos Campos de Cima da Serra .................................... 57

2 LATIFÚNDIO: A GÊNESE DO JOGO DE PODER NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA ................................................................................................................................ 64 2.1 O municipalismo sul-rio-grandense............................................................................... 65 2.2 Manifestações de autonomia nos Campos de Cima da Serra ........................................ 70 2.3 Jogo de interesses na câmara municipal de Vacaria ...................................................... 76 2.4 A personificação do poder em Vacaria.......................................................................... 83 2.5 Vacaria X Lagoa Vermelha: disputa pela primazia local .............................................. 92

3 CRIME E PODER EM VACARIA E LAGOA VERMELHA......................................... 102 3.1 Graves repercussões do jogo de poder local................................................................ 102

3.1.1 1857: O crime nos Campos de Vacaria .............................................................. 105 3.1.2 O depoimento da vítima e das testemunhas ....................................................... 107

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3.1.3 O indiciamento dos acusados ............................................................................. 111 3.1.4 O caráter político do atentado............................................................................. 114 3.1.5 Violência contra a autoridade ............................................................................. 116

3.2 Terra e Poder: O assassinato do juiz municipal de Lagoa Vermelha .......................... 118 3.2.1 Atuação do juiz X arbitrariedade da polícia ....................................................... 120 3.2.2 Uma emboscada no meio do caminho ................................................................ 122 3.2.3 As limitações da polícia serrana. ........................................................................ 125 3.2.4 A inoperância dos homens da ordem.................................................................. 128 3.2.5 Dicotomia entre o público e o privado ............................................................... 130 3.2.6 O Tribunal do Júri .............................................................................................. 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 140

FONTES DOCUMENTAIS ................................................................................................. 147

OBRAS CONSULTADAS................................................................................................... 149

ANEXOS .............................................................................................................................. 155

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: REGIÕES FISIOGRÁFICAS DO RIO GRANDE DO SUL CONFORME

MAESTRI ...................................................................................................................................28

Figura 2: REGIÕES FISIOGRÁFICAS DO RIO GRANDE DO SUL .....................................29

Figura 3: CAMINHO DAS TROPAS NO RS – SÉCULOS XVIII E XIX................................45

Figura 4: PLANTA DE UMA POSSE DE TERRAS.................................................................62

Figura 5: CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO DO SUL ..................................66

Figura 6: MUNICÍPIO DE SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA EM 1809...........................67

Figura 7: CAMINHO DAS TROPAS SÉC. XVIII E XIX – NORDESTE DO RS ...................73

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LISTA DE ABREVIAÇÕES

AHR/UPF -Arquivo Histórico Regional / Universidade de Passo Fundo

AHRGS -Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

AHSAP -Arquivo Histórico de Santo Antônio da Patrulha

APERS -Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

CPDHRS -Centro de Pesquisa e Documentação de História Política do RS

(Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul)

IHGRS -Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul

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INTRODUÇÃO

O ambiente acadêmico tem sido testemunha da redefinição de paradigmas nas ciências

sociais, fenômeno que vem se evidenciando gradativamente1. As crises paradigmáticas, como

se sabe, são pré-condições necessárias para a emergência de novas teoria s. Em história, nas

últimas décadas, as explicações universalistas e generalizantes deram lugar às investigações

específicas e particulares. O olhar do pesquisador que antes preferia as questões estruturais,

paulatinamente, voltou-se para “as pessoas concretas”, enquanto personagens da trama

histórica.2

Acompanhando o movimento dos modelos explicativos nas ciências sociais, nas

últimas décadas, a história regional tem norteado pesquisas inspiradoras dos cursos de pós-

graduação3. Neste movimento de reorientação do enfoque histórico, novos caminhos se

abriram diante do historiador. Deixou-se de privilegiar o “fato em si”, para redescobrir

vivências e sentimentos entre pessoas enquanto protagonistas que interagem no seu meio.

Assim, enriqueceram os temas e metodologias que não só questionam os paradigmas

1 O conceito de paradigma aqui é embasado em Thomas Kuhn. Para este autor, paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. Para aprofundar a temática, ver: KUNH, Thomas. A estrutura das revoluções científicas.São Paulo: Perspectiva: 1998. 2 Sobre a crise de paradigmas na historiografia brasileira, ver mais em: DIEHL, Astor Antônio. Separatismo e pós-modernidade numa perspectiva histórico-teórica. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, Ediupf, jun/1999. Do mesmo autor: A cultura historiográfica nos anos 80: mudança estrutural na matriz historiográfica brasileira. Porto Alegre: Evangraf, 1993. 3 Ver SILVA, Vera Alice C. Regionalismo: o enfoque metodológico e a concepção histórica. In: SILVA, Marcos (Org.) República em Migalhas: história local e regional. São Paulo: Marco Zero, 1990. Ver também RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. História Regional. Dimensões teórico-conceituais. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, Ediupf, jun/1999.

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tradicionais, como suscitam novas questões, apontando outras fontes possíveis de

investigação, contribuindo com a redefinição do próprio significado da história.

A crise de paradigmas na historiografia trouxe consigo algumas redefinições

conceituais. A própria noção de região, antes entendida apenas no sentido físico-geográfico4,

adquire um novo significado. Ampliou o leque de entendimento em torno do regional,

congregando outros elementos plausíveis de investigação. Espaço e sociedade estão

intimamente ligados, o meio geográfico forma o cenário onde se desenvolve o fenômeno

social. A ação humana e a idéia de movimento incrementam o espaço. A região é por assim

dizer, uma estrutura com identidade que permite diferenciá- la de seu entorno; suas

características internas influem e sofrem influência da relação com o todo. Em outros termos,

a região é um espaço de “identidade ideológico-cultural e representatividade política.”5

Trabalhar com a história regional é cons tatar como um determinado fenômeno se

manifesta na singularidade em que se traduz o âmbito regional. É perceber sentimentos, idéias

e valores inerentes a determinados grupo ou famílias, num dado momento histórico, sem

perder de vista o contexto maior onde a região está inserida. Em outras palavras, o enfoque

regional nos permite retraçar a história com uma riqueza de detalhes entre agentes locais,

regionais, nacionais e transnacionais e seus efeitos no tempo.

No movimento de redefinição de modelos explicativos na historiografia, onde cada

vez mais o enfoque regional vem sendo privilegiado, questiona-se o papel do Estado, o

sentido de conceitos como Pátria, Nação e identidade, questiona-se enfim o “significado do

político enquanto dimensão que afeta o seu cotidiano.”6 Assim configura-se uma nova história

política, atrelada a estudos do específico e do particular. A história política, que até então

privilegiava a continuidade e era centrada nos estudos das elites, também, passou por um

redimensionamento. Aqui concordamos com Maria Fernanda de Los Arcos7, quando afirma

que, a história política deve ser vista como um caminho que viabiliza o estudo e o

conhecimento de sociedades humanas e, quando adicionada com outros ramos da história e

4 Enquadra-se na vertente de teóricos que restringiam o conceito de região, Vidal de La Blache (Príncipes de geográphie humaine). Para ele, o espaço é algo definitivo e interfere na ação humana. 5 COSTA, Rogério Haesbaert da. RS: Latifúndio e identidade regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. 6 FÉLIX, Loiva Otero. A história política hoje: novas abordagens. In: Revista catarinense de história. n. 5, 1998. p. 52 7 G DE LOS ARCOS, Maria Fernanda. El ámbito de la nueva historia: una propuesta de globalización. Historia Contemporánea. Bilbao, España, Universidad de País Vasco, n.9, p.37-58, 1993.

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das ciências sociais, compõe aquilo que se convencionou chamar de “história global”. É

preciso, sempre levar em conta, novas metodologias possíveis de serem aplicadas a diferentes

situações e que podem ser combinadas com estudos regionais.

No Brasil, o universo dos historiadores tem incorporado o redimensionamento dos

estudos de história política, embora, ainda, persistam “mal entendidos” que precisam ser

superados para uma melhor assimilação. O âmago desses preconceitos justifica-se na presença

marcante de uma historiografia balizada pelo positivismo, que priorizava os heróis e os

grandes feitos. O maior legado do positivismo, no entanto, é a exploração do arcabouço

documental e a fidelidade às fontes primárias. A análise documental revela detalhes, que

contribuem para a reconstrução do vivido de uma determinada sociedade.

O historiador, na tarefa de considerar outras versões fora das fontes tradicionais que

sempre amparavam a investigação histórica, tem procurado levar em conta indícios capazes

de descortinar quadros sociais de épocas remotas, assim “redescobriu fontes judiciais (que

sempre estiveram lá, disponíveis, mas pouco usadas) como instrumental valioso para suas

pesquisas.”8 A utilização de fontes documentais aparentemente atípicas, como discursos

políticos, correspondências oficiais e extra-oficiais, atas de qualificação de votantes, registros

paroquiais, inventários post-morten e processos-crime, oferece esta possibilidade ao

historiador. O registro das folhas envelhecidas proporciona ao pesquisador a sensação de estar

“próximo” do grupo ou do indivíduo que está sendo investigado: “De vez em quando as

fontes tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como nós. É um de nós.”9

Loiva Otero Félix contribuiu com o debate em torno da história política privilegiando

as relações de poder local. Inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, em que são

esmiuçados os conceitos de poder e seus desdobramentos manifestados em diversas

instituições, a autora aponta uma possibilidade de ‘desconstruir’ a história política deslocando

a “ênfase da política para o poder, permitindo, com isso, a incorporação de novos objetos.”10

8 FÉLIX, Loiva Otero e GRIJÓ, Luiz Alberto. Histórias de vida : entrevistas e depoimentos de magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Projeto Memória do Judiciário, 1999 p.19. 9 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes : o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987 p.12. 10 FÉLIX, Loiva Otero. “Historiografia política: impasses e rumos nas décadas de 1970-90.” In: Logos. Canoas, v.11, n.1, maio 1999. p.9.

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Os estudos de poder local, por apresentar problematização específica, podem

favorecer a compreensão do sistema político brasileiro, à medida que possibilitam a

constatação de similitudes e diferenças entre os processos ocorridos em espaços distintos. O

estudo histórico tem de adquirir um caráter científico que englobe definições conceituais e um

método de trabalho. Este cuidado com a cientificidade da pesquisa histórica deve ser a

preocupação do historiador, que a luz do já conhecido, pela ação dos pesquisadores locais,

buscará dar um tratamento mais elaborado ao tema da pesquisa que se propõe.

O estudo das relações de poder local aponta para a necessidade de se precisar outro

conceito importante, o de poder. A teoria do poder simbólico de Pierre Bordieu11 é uma

importante ferramenta a ser considerada no momento da definição conceitual das relações de

força estabelecidas numa região num dado momento histórico. Na concepção de Bordieu, o

poder é construído e se mantém através do conjunto de princípios que norteiam os grupos

sociais. Ou ainda, parafraseando Gerard Lebrun, “poder é o nome atribuído a um conjunto de

relações que formigam por toda a parte na estrutura do corpo social.”12

No exercício de definir o conceito de poder, Michel Foucault, no artigo El sujeto y el

poder13 enfatiza que o poder é relacional, ou seja, emana das relações entre indivíduos ou

grupos. O poder em si não existe, ele somente se faz presente enquanto exercício, ele é algo

que se exerce, que funciona, que se efetua. Assim, o que existe são as relações de poder. Sob

este enfoque, uma relação de poder é um modo de ação que não influencia diretamente as

pessoas, mas atua sobre suas ações. Funcionando em rede, o poder não é aplicável aos

indivíduos, mas passa por eles14.

Na perspectiva da história regional - como o caminho que viabiliza a observação e o

estudo de aspectos deixados de lado nas análises mais amplas - e a partir da interpretação da

esfera política privilegiando a análise das relações de poder, multiplicam-se os estudos

históricos em torno da complexidade do poder enquanto manifestação relacional15.

11 BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 1998. 12 LEBRUN, Gerard. O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1982. 13 FOUCAULT, Michel. El sujeto y el poder. Revista Mexicana de Sociología. Instituto de investigaciones sociales/ UNAM, México, n.3, Julio/Set.1998. 14 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. 15 No Brasil surgiram importantes trabalhos sobre a questão. Entre eles destacamos: CARVALHO, José Murilo de. “Estudos de poder local no Brasil”. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. nº 25/26, julho/1968. p.231-248. Também: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 4ª ed. São Paulo: Alfa Omega, 1978. Além de: FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação

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É exatamente, dentro desta proposta, de recuperar o vivido das sociedades humanas

numa regionalidade específica, a partir da trama de poder historicamente construída, que se

justifica a temática que abordamos neste estudo: as relações de poder em Vacaria e Lagoa

Vermelha entre 1850 e 1880. Estes dois municípios serranos que integram o Nordeste sul-rio-

grandense, tiveram uma origem comum, Santo Antônio da Patrulha. O complicado processo

de emancipação destas unidades político-administrativas descortinou uma trama de poder

onde estava em jogo a disputa pela primazia regional. Disputa que gerou enfrentamentos de

forças no interior das elites políticas serranas.

A questão principal que perpassa esta pesquisa é a disputa do poder local nos Campos

de Cima da Serra, onde os interesses pessoais dos abastados fazendeiros vacarianos e

lagoenses comandavam a política regional. O recorte temporal que optamos, 1850 a 1880,

abarca o período em que Vacaria e Lagoa Vermelha adquirem autonomia como unidades

político-administrativas, emancipando-se de Santo Antônio da Patrulha. Nestas três décadas,

destacamos dois momentos cruciais em que a trama do poder local é evidenciada nestes

municípios serranos. Primeiro, o ano de 1857, no contexto do desvilamento de Vacaria, época

de conflitos internos na elite política local, culminando com o atentado contra o delegado de

polícia de Lagoa Vermelha, capitão João Pereira de Almeida. Depois, em 1870, com o

assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, crime que ilustra as estratégias dos

mandatários locais que tiveram seus interesses ameaçados pela ação das autoridades públicas.

A disputa de poder será focalizada em uma dimensão inter-elitária, isto é, será

analisada, tendo em vista os dois grupos que compunham esta elite: os fazendeiros e as

autoridades públicas como delegados, subdelegados, juízes de paz, juízes de direito. Nem

sempre eram esferas distintas, mas, no caso analisado aqui, muitas vezes estes grupos se

mesclavam. Em Vacaria e Lagoa Vermelha, freqüentemente os cargos públicos eram

preenchidos por fazendeiros que também ocupavam cargos de oficiais da Guarda Nacional.

A metodologia, que utilizamos neste trabalho, partiu do levantamento bibliográfico.

Nesta etapa realizamos uma leitura na produção historiográfica existente sobre os municípios

política. 2.ed.ver.ampl. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996. E o recente trabalho de Richard GRAHAM, Clientelismo na cultura política brasileira. Toma lá dá cá. Disponível em: www.braudelorg.br/paper.15.htm. Acessada em 13/12/2000.

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em questão, constatando que predominam publicações produzidas por historiadores

autodidatas vacarianos e lagoenses. Entre estes, destacamos: Manuel Duarte, José Fernandes

de Oliveira, Demétrio Dias de Moraes e Fidélis Dalcin Barbosa.

Manuel Duarte16, ao que se tem notícia, foi o primeiro vacariano a pesquisar e

escrever sobre a história do seu município. De sua autoria, destacamos: “No planalto:

episódios e paisagens sobre o Nordeste Rio-grandense”(1930), “Nação e província” e

“Solilóquios nacionalistas”, não foi possível precisar a época da publicação desta última.

Deixou, também, uma série de artigos publicados na Revista do IHGRS 17.

O objeto de pesquisa de Manuel Duarte era o processo de ocupação dos campos de

Vacaria, região denominada por ele de “planalto”. A origem dos primeiros colonizadores no

município, o enfrentamento com as comunidades nativas, o estabelecimento das primeiras

fazendas no Nordeste do Rio Grande do Sul, a abertura das vias de comunicação, também,

foram temas trabalhados pelo pesquisador. Nas suas investigações, este autor tinha a

preocupação com a consulta às fontes e a fidelidade à documentação, característica que

permite encaixá- lo na tradição positivista.

O escritor José Fernandes de Oliveira18, também escreveu sobre a história do

município de Vacaria. Publicou o livro “Rainha do Planalto” (1959). Embora, o autor não

tenha apontado as fontes documentais que balizaram o seu trabalho, este livro é um

importante ponto de partida para se trabalhar com o método das biografias coletivas

envolvendo famílias tradicionais daquele município.

Demétrio Dias de Moraes19 publicou 14 livros literários e de cunho histórico. O autor

apresenta o resultado de suas pesquisas históricas em dois livros: “Brasil Grande e a história

16 Manuel Duarte foi membro do Instituto His tórico e Geográfico do Rio Grande do Sul na década de 1940. Duarte nasceu em 1882, bacharelou-se em Direito, atuando também como jornalista, além de deputado federal. Foi intendente em Vacaria e São Sepé na segunda década do século XX. Foi fazendeiro em Va caria e Lagoa Vermelha. 17 DUARTE, Manuel. “A conquista da terra e a iniciação pastórica no planalto e nos fundos de baqueria de los piñares” In: Revista do IHGRS. IV Trimestre de 1944. Ano XXIV. n. 96. Além de: “Velhos documentos rio-grandenses” In: Revista do IHGRS. II Trimestre de 1944. Ano XXIII. n. 94. 18 O professor José Fernandes de Oliveira nasceu no ano de 1884, em Vacaria. Baseou-se na tradição oral para reconstituir a genealogia de famílias tradicionais de Vacaria. 19 Demétrio Dias de Moraes nasceu nos primeiros anos do século XX, era fazendeiro em Lagoa Vermelha onde também exercia a profissão de “guarda-livros”. Não tinha curso superior, mas apreciava leitura e a preservação

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20

de Lagoa Vermelha”.(1977) e “Torrão Amado” (1953). O estilo narrativo de Demétrio Dias

de Moraes se aproxima muito da maneira com que Manuel Duarte escrevia. A exemplo do

último, Demétrio sempre indicava suas fontes de investigação. A história do município de

Lagoa Vermelha é trabalhada por este autor na narrativa cronológica, que contempla o tempo

de longa duração, enfatizando grandes eventos e personagens. Por estas prerrogativas,

Demétrio também, pode ser enquadrado como positivista.

Ainda, no grupo dos pesquisadores autodidatas da região está Fidélis Dalcin

Barbosa20. Este escritor publicou mais de meia centena de obras. No início eram livros

literários, essencialmente crônicas, a partir da década de 1970, porém, direcionou seus

trabalhos para o resgate da história de Lagoa Vermelha e Vacaria. Dentre os quais

destacamos: “A diocese de Vacaria” (1984), “Lagoa Vermelha e sua história” (1974), “Nova

História de Lagoa Vermelha”(1981) e “Vacaria dos Pinhais” (1978). A história que produziu

é narrativa e factual, nos moldes da história tradicional. Além disso, Fidélis Barbosa recorria à

história oral, valendo-se de entrevistas com idosos de Lagoa Vermelha e Vacaria, na tentativa

de recompor o passado de sua região. O autor não tinha por hábito citar suas referências

bibliográficas e locais e fontes de investigação.

O trabalho destes pesquisadores autodidatas, apesar de carecerem do elemento teórico-

metodológico, é um importante referencial para investigações históricas mais detalhadas sobre

estas localidades. Sob o enfoque político, este exercício viabiliza a recuperação de

experiências vividas permeadas por relações de poder até então pouco valorizadas pela

narrativa tradicional.

Fundamentais como ponto de partida, também, foram as pesquisas históricas de

orientação científica, realizadas sobre os Campos de Cima da Serra. São trabalhos resultantes

de cursos de pós-graduação realizados a partir da década de 1970. No rol desses historiadores

com formação acadêmica estão Véra Lúcia Maciel Barroso, Pércio de Moraes Branco, Mara

Regina Kramer Silva, Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos e Marcos Witt.

de documentos e mapas históricos referentes a Lagoa Vermelha, acervo que hoje está de posse dos seus familiares. 20 Fidélis Dalcin Barbosa foi Padre em Lagoa Vermelha. Suas obras foram baseadas nos trabalhos de Manuel Duarte e Demétrio Dias de Moraes.

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21

Véra Lúcia Maciel Barroso21 concentrou seus estudos na história de Santo Antônio da

Patrulha, município-mãe de Vacaria e Lagoa Vermelha. Na sua Dissertação de Mestrado,

“Santo Antônio da Patrulha, vínculo, expansão e isolamento: 1803-1889” (1979), Véra

Barroso realizou o resgate dos fatos mais relevantes da história patrulhense. Explorando um

amplo conjunto de fontes documentais primárias, a autora trabalhou a história de uma região

sem perder de vista o âmbito maior onde está inserida. Neste sentido foi uma das

idealizadoras do “Raízes”, evento anual que promove o encontro dos municípios originários

de Santo Antônio da Patrulha22.

A importância do trabalho de Véra Lúcia Maciel Barroso, está em possibilitar outras

formas de investigação, por se preocupar com a reconstituição da história de um dos quatro

primitivos municípios do atual Rio Grande do Sul23. A historiadora trabalhou com elementos

importantes a respeito dos municípios originários de Santo Antônio da Patrulha, reservando

um capítulo para tratar do processo de emancipação de Vacaria e Lagoa Vermelha. Apenas

neste capítulo estão uma série de elementos plausíveis de serem investigados a luz da nova

historiografia.

Pércio de Moraes Branco24 trabalhou com genealogia de famílias antigas de Lagoa

Vermelha. No campo da história publicou na década de 1990, “Lagoa Vermelha e municípios

vizinhos” (1993), além de artigos nos livros “Raízes de Vacaria” (1996) e “Raízes de Lagoa

Vermelha”(1996), No seu livro de 1993, Pércio aborda aspectos físico-geográficos de Vacaria

e Lagoa Vermelha, faz uma retrospectiva dos fatos históricos mais relevantes desses

municípios e passa para o trabalho de genealogia. Seu estilo difere dos escritores autodidatas,

pois não está centrado nos grandes eventos e nomes ilustres, procurando afastar-se da

narrativa factual. Este pesquisador oferece importantes pistas para investigações mais

específicas sobre o passado da região, apontando caminhos para novas abordagens. Após

percorrer arquivos públicos e particulares que armazenam dados históricos sobre Lagoa

21 Profª Véra Lúcia Maciel Barroso é natural de Santo Antônio da Patrulha. No início de suas pesquisas, trabalhou com a história de seu município, depois direcionou seus estudos para a história da colonização açoriana no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. 22 A importância do evento “Raízes” está em reunir pesquisadores acadêmicos e autodidatas que se dedicam ao resgate da história da região Nordeste do Rio Grande do Sul sob as mais diferentes óticas. Sobre a história do “Raízes” ver mais em: BENFICA, Corália Ramos (Org) et all. Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caará. Porto Alegre: EST, 2000. 23 Rio Grande, Rio Pardo, Porto Alegre e Santo Antônio da Patrulha foram os municípios mais antigos do Rio Grande do Sul. 24 Geólogo e professor, natural de Lagoa Vermelha, tem parentesco com o historiador Demétrio Dias de Moraes.

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22

Vermelha, o autor apresenta uma relação de fontes de consulta sobre o município disponíveis

nesses lugares de memória. Iniciativas como esta são preciosas à medida que auxiliam o

trabalho de pesquisadores que necessitam se dirigir a estes locais de pesquisa no intuito de

reconstruir a história de Lagoa Vermelha e Vacaria.

Outra pesquisadora que se enquadra neste grupo é Mara Regina Kramer Silva25, que

apresentou sua Dissertação de Mestrado com o título: “Linguagem simbólica de poder:

arquitetura gaúcha” (1996). Neste trabalho a autora analisa a linguagem simbólica de poder

expressa na arquitetura rural de propriedade de dois coronéis no período da Primeira

República na região dos Campos de Cima da Serra. O recorte temporal da autora é República

Velha, mas a questão principal que perpassa o seu trabalho, “relações de poder em Vacaria”,

se aproxima do tema desta dissertação.

Em sua Dissertação de Mestrado intitulada “O partido republicano rio-grandense e o

poder local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul” (1990), Eloisa Helena Capovilla da Luz

Ramos analisou as relações de poder no Litoral Norte do Rio Grande do Sul na última fase do

Império. O recorte temporal e espacial adotado pela pesquisadora é diferente do que

propomos neste trabalho, mas é uma referência importante porque ela trabalha com o poder

local no século XIX, um tema que também é privilegiado neste trabalho. Eloisa Ramos

considera o poder local como sinônimo de coronelismo, analisando as relações de mando e

obediência e, as relações de compromisso como elementos estruturais do poder local, numa

região fisiográfica bem próxima aos Campos de Cima da Serra e que no início do século XIX

pertenciam para o mesmo município, Santo Antônio da Patrulha.

A temática “Relações de poder no Litoral Norte do Rio Grande do Sul” tem inspirado

os trabalhos do pesquisador Marcos Witt26. Entre suas pesquisas ainda não publicadas estão:

“Novas contribuições acerca do assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti”

(2000)27, e “A política como fator de integração/Dispersão nas Relações Nacionais – Colonos

Alemães 1840-1889.” (2001)28. O objeto de investigação trabalhado por Marcos Witt,

25 Arquiteta, Mestre em História e Professora. 26 Mestre em História. 27 Comunicação apresentada no Encontro “Raízes de Canela”. Canela/RS, 20 a 24/05/2000. Original cedido do autor. 28 Comunicação apresentada no XXI Simpósio Nacional da ANPUH – Niterói, 22 a 27/07/2001. Original cedido do autor.

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aproxima-se do nosso tema, porque ele, também, analisa o poder local nos Campos de Cima

da Serra no século XIX.

Para a concretização deste trabalho, além da revisão da literatura, procuramos reunir

dados à luz dos novos referenciais que norteiam a produção historiográfica, especialmente, no

que tange às fontes primárias. É complexa a documentação existente sobre esta temática,

entretanto, na etapa de levantamento documental percebemos que a organização de um

arquivo histórico em Vacaria e Lagoa Vermelha via iniciativa pública é um trabalho a ser

feito. Nestes municípios, a maior parte do acervo documental existente encontra-se disperso e

em poder de particulares. Em situação diferente encontramos os arquivos de Porto Alegre,

Santo Antônio da Patrulha e o Arquivo Regional da Universidade de Passo Fundo, onde o

acervo já está organizado e catalogado à disposição dos pesquisadores. Nestes locais foi

possível averiguar os dados necessários e sem maiores transtornos.

Na fase de rastreamento da documentação, o historiador precisa atentar para o

problema da fragmentação das fontes. A partir da redefinição de paradigmas na historiografia,

abriu-se o leque das possibilidades de investigação documental. Isso trouxe alguns entraves

para os pesquisadores que passaram a buscar na documentação primária, como por exemplo,

as fontes judiciais, possíveis pistas de análise de fenômenos circunscritos, como um grupo de

indivíduos, uma família ou comunidade específica. Analisando a diversidade documental com

a qual o historiador passou a contar pelas lentes da micro-história, Carlo Ginzburg chama a

atenção para o problema da fragmentação das fontes:

Os registros civis apresentam-nos indivíduos enquanto nascidos e mortos, pais e filhos; os registros cadastrais, enquanto proprietários ou usufrutuários, os autos, enquanto criminosos, enquanto autores ou testemunhas de um processo. Mas assim corre-se o risco de perder a complexidade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade determinada. Isto também é valido para fontes mais ricas, de dados às vezes imprevisíveis, como os processos criminais ou inquisitoriais (...). 29

Mas, o mesmo autor enfatiza que se o âmbito da investigação for suficientemente

circunscrito, os documentos podem, perfeitamente, sobrepor-se no tempo e no espaço

29 GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Pág. 173.

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permitindo que o mesmo indivíduo ou grupos de indivíduos sejam encontrados em contextos

sociais diferentes. “O fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental é aquilo

que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome.”30

Na tarefa de privilegiar um aspecto da história regional no enfoque político,

investigamos fontes primárias referentes aos municípios de Vacaria, Lagoa Vermelha e Santo

Antônio da Patrulha como as correspondências oficiais das câmaras municipais e do governo

provincial, os debates da Assembléia Legislativa, além das atas de qualificação de votantes.

Além disso, percorremos a documentação da câmara municipal de Passo Fundo emitida do

período de 1857 a 1880. Os ofícios das autoridades municipais e os debates da Assembléia

tiveram um importante papel à medida que nos proporcionaram um quadro referenc ial da

conjuntura política e econômica dos municípios em questão. Outra fonte importante para a

nossa pesquisa foram os registros paroquiais de 1854-1871 e os autos de legitimação de terras,

documentos manuscritos que nos permitiram conhecer mais a respeito do processo de

ocupação dos Campos de Cima da Serra e da estrutura fundiária daquela região.

A documentação judicial, especialmente, os processos-crime e as correspondências da

polícia, preciosas fontes de investigação histórica, nos revelaram importantes detalhes a

respeito do cotidiano e dos procedimentos da polícia serrana e dos juízes que atuaram naquela

região, e sua atuação contrapondo-se ao poder local historicamente constituído pelos

fazendeiros vacarianos e lagoenses. Poder de mando que encontrava respaldo entre a

população daquelas localidades.

Trabalhamos com um conjunto abrangente de fontes documentais. O andamento da

pesquisa empírica foi revelando os nomes de pessoas que integraram a elite política de

Vacaria e Lagoa Vermelha. Decidimos, então, construir um quadro referencial arrolando o

nome de 64 homens, com dados genealógicos, profissão, funções públicas exercidas naqueles

municípios, participação na Guarda Nacional. Este quadro de referências ilustra, em linhas

gerais, o perfil sócio-econômico da elite vacariana e lagoense entre os anos de 1850-1880.

Organizamos uma cronologia reunindo acontecimentos relevantes na história desses

municípios. A cronologia e o quadro referencial estão na parte final deste trabalho31.

30 Idem, p. 174. 31 Anexos I e II respectivamente.

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25

Para atingir os objetivos propostos, organizamos a dissertação em três capítulos. No

primeiro capítulo retrocedemos no espaço temporal proposto pela temática e apresentamos o

processo de ocupação dos Campos de Cima da Serra desencadeado a partir do século XVIII.

A gradativa inserção do Nordeste sul-rio-grandense no ciclo do tropeirismo e a estruturação

dos povoados de Santo Antônio da Patrulha, Vacaria e Lagoa Vermelha que surgiram em

função da rota dos tropeiros. A aplicabilidade da Lei de Terras, os registros paroquiais e os

autos de legitimação de terras realizados naqueles locais são analisados nesta parte do

trabalho.

O capítulo seguinte trata do latifúndio como elemento gerador de poder e de jogo de

forças nos Campos de Cima da Serra. É o momento de analisar a configuração da estrutura

política de Vacaria e Lagoa Vermelha no século XIX, caracterizada pela presença marcante

de fazendeiros. Também, apresentamos uma discussão sobre o jogo de poder na câmara

municipal de Vacaria entre os anos de 1850 e 1857 em função do desmembramento daquele

município e posterior desvilamento, quando a sede municipal foi transferida para Lagoa

Vermelha. É o momento de analisar os reflexos do desvilamento no interior das elites locais e

no legislativo provincial.

No terceiro capítulo explicitamos a disputa pela primazia regional em Vacaria e Lagoa

Vermelha e suas graves repercussões naquelas localidades, extrapolando a esfera da câmara

municipal e adquirindo proporções de crimes, como o atentado sofrido pelo delegado de

polícia, capitão João Pereira de Almeida, em 1857 e o assassinato do juiz de direito Antônio

de Pádua Holanda Cavalcanti, em 1870. Estes dois crimes evidenciaram um fenômeno que se

notabilizou naquela região, durante o século XIX, que é o da violência contra a autoridade

pública no intuito de preservar o poder de mando personificado na figura do abastado

fazendeiro.

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1 A OCUPAÇÃO DOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA: 1730 - 1880

Os municípios de Vacaria e Lagoa Vermelha, que entre outros, compõem a região

Nordeste do Rio Grande do Sul apresentam, além de paisagens semelhantes, formadas por

campos e áreas de mato, características sócio-político-culturais que se aproximam. Elementos

físico-geográficos, como a abundância de pasto e o clima frio favoreceram o desenvolvimento

da atividade criatória. A exemplo das demais áreas do interior da Colônia, a terra era

abundante e, facilmente, adquirida neste espaço sul-rio-grandense, pelo menos até o século

XIX. Estes fatores favoreceram a propagação de fazendas de pecuária em toda a região.

A sociedade que se estruturou nos campos vacarianos e lagoenses, cuja tônica era a

grande propriedade fundiária, foi marcada pela presença do abastado fazendeiro, homem que

acumulava terras e cabedais, elementos que conjugados proporcionavam-lhe consideráve l

prestígio sócio-político não somente no âmbito local, mas como o processo histórico

demonstra, com alcance mais amplo. Em toda esta superfície, por muito tempo, a quantidade

de terra foi o indicativo de riqueza e de poder dos fazendeiros locais. Um dos caminhos que

possibilita a compreensão da história política de Vacaria e Lagoa Vermelha, com ênfase nas

relações de poder é, retroceder no tempo a fim de compreender o processo de ocupação deste

espaço pouco abordado pela historiografia tradicional.

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1.1 AS VACARIAS E A APROPRIAÇÃO DOS CAMPOS MERIDIONAIS

A organização da sociedade caracterizada pela presença da grande propriedade rural

influenciou na estruturação do caráter político e social dos municípios que atualmente

compõem a região Nordeste do Rio Grande do Sul, especificamente, os Campos de Cima da

Serra. Compreender a história política desta região pressupõe o conhecimento do processo de

ocupação da terra desencadeado, neste caso, a partir do século XVIII, quando a Coroa

Portuguesa, por força de um acordo diplomático com a Espanha, se apropria definitivamente

desta área tão importante do ponto de vista geopolítico.

Quando se toma para análise, a região fisiográfica dos Campos de Cima da Serra,

percebe-se que existe mais de uma forma de recortar este espaço. Segundo Joseph Love, os

Campos de Cima da Serra abrange a área que vai de norte e oeste de Porto Alegre até o rio

Pelotas e Uruguai, limitando-se ao sul com os rios Jacuí e Ibicuí, “a região constitui um

planalto: sua altitude variando cerca de 100 metros até mais de 900 metros acima do mar,

torna a região a mais fria do Estado.”32. Os campos e os pinheirais recobriam grande parte da

região. No extremo oeste localiza-se o vale do rio Uruguai.

Na delimitação desta região, Mário Maestri, aponta que os Campos de Cima da Serra

“são formados por uma sucessão de campos – os Campos de Vacaria, de Passo Fundo, de

Palmeira e de Cruz Alta. A oeste desses campos, nas Missões, o Planalto perde altura,

confundindo-se com o pampa gaúcho e argentino”33. Como se pode verificar no mapa a

seguir, o autor ilustra os Campos de Cima da Serra como uma área que integra o Planalto

sulino, situando-se no Nordeste do Rio Grande do Sul, ou seja, é um prolongamento das

paisagens de todo o Norte do Rio Grande do Sul. É um recorte espacial bem mais amplo se

comparado com outras demarcações.

32 LOVE, Joseph. O regionalismo gaúcho e as origens da revolução de 1930. São Paulo: Perspectiva, 1975, p.7. 33 MAESTRI, Mário. Uma história do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais. 1v. A ocupação do território. 2.ed. Passo Fundo: UPF, 2000, p. 76.

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Figura 1: REGIÕES FISIOGRÁFICAS DO RIO GRANDE DO SUL CONFORME

MAESTRI

Já para o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, em “Florestas nativas do

Rio Grande do Sul”, o Rio Grande do Sul é dividido, não em quatro áreas, conforme Maestri,

mas em 11 regiões fisiográficas, entre as quais estão os Campos de Cima da Serra no extremo

Nordeste do Rio Grande do Sul:

...fazendo divisa ao Nordeste com o Estado de Santa Catarina. Os principais municípios são: Vacaria, Bom Jesus, São Francisco de Paula, Cambará do Sul, Lagoa Vermelha, Esmeralda e outros. (...). O relevo é suave com recortes profundos de alguns rios. Esta região é formada de uma planície elevada de inclinação para Oeste34.

34 INSTITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL. Florestas nativas do Rio Grande do Sul. Brasília/UFSM, 1983, p.46.

FONTE: MAESTRI, Mario José. Uma história do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais.1v. A ocupação do território. 2.ed Passo Fundo: UPF, 2000 p. 55.

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Predominam neste espaço geográfico os campos e algumas áreas de araucária.

Próximo aos Aparados da Serra e na parte ocidental existe densos pinheirais. O presente

estudo adotará esta última delimitação espacial.

Figura 2: REGIÕES FISIOGRÁFICAS DO RIO GRANDE DO SUL

Por todo o século XVI, XVII e boa parte do século XVIII, enquanto a Coroa

Portuguesa explorava e ocupava o nordeste do Brasil, o atual território sul-rio-grandense

reduzia-se a uma vasta área de passagem até a banda Oriental. Na visão do colonizador, era

uma terra de ninguém35, no próprio sentido do termo. Comunidades nômades de indígenas,

além de aventureiros, cruzavam estas paragens com freqüência. Não há registro de moradia do

elemento europeu, pelo menos até 1720. A fronteira do atual Rio Grande do Sul ficou definida

35 Ver: RODRIGUES, José Honório. O continente do Rio Grande (1680-1807) . São Paulo: Brasiliense, 1986.

FONTE: INSTITUTO BRASILEIRO DE DESENVOLVIMENTO FLORESTAL: Florestas nativas do Rio Grande do Sul. IBDF/UFSM, 1993 p.43.

1-LITORAL 2-DEPRESSÃO CENTRAL 3-ENCOSTA DO SUDESTE 4-SERRA DO SUDESTE 5-CAMPANHA 6-MISSÕES 7-ALT O URUGUAI 8-PLANALTO MÉDIO 9-ENCOSTA INFERIOR DO NE 10-ENCOSTA SUPERIOR DO NE 11-CAMPOS DE CIMA DA SERRA

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somente em 1801, a partir da assinatura do Tratado de Badajoz36. O acordo entre as Coroas

ibéricas pôs fim às disputas pelo domínio da Colônia de Sacramento e das Missões.

Em princípios do século XVII, na tentativa de se proteger dos ataques dos

bandeirantes, os jesuítas retiraram-se com os índios aldeados para a margem direita do rio

Uruguai. Os guaranis missioneiros organizaram reservas de gado selvagem, em territórios

acessíveis para os povos, nas imediações do rio Jacuí, em direção ao extremo sul. Nessa

região, os rebanhos encontraram as condições naturais próprias para a multiplicação dos

animais. O gado reproduziu-se, facilmente, e espalhou-se pela campanha alcançando o litoral

e áreas adjacentes ao atual Uruguai. Estavam fundadas as Vacarias do Mar, que tanto

despertaram a cobiça do colonizador nas décadas subseqüentes. “Os territórios da Campanha

– cinqüenta mil quilômetros quadrados – formavam uma enorme hacienda trilhada

continuamente pelos vaqueiros missioneiros.”37

Com a reprodução natural dos animais das Vacarias do Mar, a Campanha tornou-se

um espaço insuficiente para abrigar as manadas. Os primeiros anos do século XVIII têm sido

apontados como o período em que os missioneiros dos Sete Povos ampliaram suas reservas de

gado, direcionando-as para os campos do Planalto, no atual território sul-rio-grandense38. Por

volta do ano 1700, toda esta região era protegida por matas de pinheirais, que acabou

formando uma barreira natural para os rebanhos. Os animais encontraram ambiente propício

para a reprodução e, logo formou-se outra reserva: a Vacaria dos Pinhais, nos Campos de

Cima da Serra.

Em importante pesquisa histórica sobre o caminho Vacaria-Passo Fundo, e as

povoações surgidas em função desta antiga estrada, o historiador Ruy Ruschel escreveu:

Certamente, o novo caminho oeste-leste passou a ser intensivamente utilizado pelos índios missioneiros. Sediados nos Sete Povos, eles precisariam não apenas vigiar o gado de sua Vacaria, como fazer rodeios periódicos para contar as cabeças,

36 Sobre o Tratado de Badajoz, ver: CAMARGO, Fernando da Silva. O Malón de 1801: A guerra das laranjas e suas implicações na América Meridional. Passo Fundo: Clio Livros, 2002. 37 MAESTRI, Mário. Op cit p.12. 38 Idem.

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construir muros de pedra para evitar escapes, retirar animais para o consumo dos Povos e ervais, etc.39

A fundação das vacarias coincidiu com a descoberta das minas de ouro no Sudeste da

Colônia40. A possibilidade de encontrar o metal mais precioso do mundo, atraiu um

contingente enorme de aventureiros aos atuais estados de Minas Gerais, Goiás e São Paulo.

Uma infra-estrutura foi montada em função da mineração. O gado muar, vacum e cavalar,

transformou-se em gênero de primeira necessidade na região mineira, tanto para o abate e

consumo quanto para o transporte.

Aclimatado ao campo nativo, o rebanho multiplicou-se extraordinariamente,

transformando-se no produto gerador de riqueza para os exploradores. Neste sentido

intensificaram as incursões pelo atual Rio Grande do Sul e a comercialização de mulas em

especial foi realizada sistematicamente ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. Em

conformidade com o projeto de conquista portuguesa no Sul do Brasil organizaram-se as

viagens de reconhecimento do território inaugurando a fase das estâncias. Neste sentido foi

relevante a Frota de João de Magalhães vinda de Laguna em 1725. Com ela iniciava-se o

povoamento do atual Rio Grande do Sul, com elementos luso-brasileiros oriundos de outras

capitanias, incitados pelo comércio muar que vinculou a região ao centro do Brasil. Os

primeiros “arranchamentos” surgiram no litoral norte, nos campos de Tramandaí e Viamão.

Paulatinamente, muitos outros foram requerendo terras ou legitimando suas posses nas

imediações, povoando-se a região norte com sesmeiros, que se dedicaram à pecuária

extensiva.

Nessa época, o Rio Grande do Sul não apresentava demarcações de terra, era uma

enorme hacienda. Os tropeiros reuniam os animais, muares em especial, em invernadas de

onde eram conduzidos por terra, desde a distante Colônia do Sacramento, cruzando os campos

do atual território sul-rio-grandense, até atingir a feira de animais de Sorocaba41, em São

Paulo. O percurso abrangia mais de dois mil quilômetros, numa seqüência de campos pouco

acidentados. O empreendimento envolvia alguns peões recrutados nas áreas pastoris do Brasil

39 RUSCHEL, Ruy Ruben. “Ponderações sobre a proto-história do caminho Vacaria -Passo Fundo”. In: BARROSO, Véra Lúcia Maciel. (Org). Raízes de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1993, p.69. 40 Colônia do Brasil. 41 A feira de registro e animais de Sorocaba foi criada em 1750.

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meridional. Sobre a formação das comunidades campeiras no atual Rio Grande do Sul,

articulada com o comércio do gado em pé, Roselys Vellozo Roderjan assinala:

No rastro das estradas do tropeirismo pode-se acompanhar a expansão das populações dos planaltos paranaenses para o Sul. Pela antiga Estada das Missões haviam alcançado os Campos de Cima da Serra e por eles o Planalto Médio do Rio Grande do Sul, onde participaram da fundação das suas primeiras comunidades campeiras42.

1.2 OS CAMINHOS DAS TROPAS

Os Campos de Cima da Serra passaram a integrar a rota dos mercadores de gado. Dois

caminhos permitiam a condução dos animais dos campos sulinos para o norte da Colônia: de

início era utilizada a rota do litoral, depois o caminho do Planalto (Figura 3). A estrada mais

antiga, partindo do extremo sul do atual Uruguai atingindo o norte via costa, revelou-se

dispendiosa para os tropeiros: “As pastagens da faixa litorânea eram pobres e, no atual litoral

de Santa Catarina, na altura de Laguna, o litoral estreita-se, impedindo a passagem das tropas

para o norte”43. Na altura dos rios Grande, Tramandaí, Mampituba e Araranguá, a travessia

das tropas era realizada a nado, o que resultava em afogamento de animais e conseqüentes

prejuízos para os tropeiros.

Na fase inicial de exploração dos rebanhos, os Campos de Cima da Serra eram

povoados pelos índios botocudos, principais adversários dos kaingangs (comunidades

coroadas). Esses grupos autóctones, inicialmente, viviam entre os rios Uruguai e Iguaçú, no

impulso natural de sobrevivência migravam para o sul, efetivando a exploração sistemática

nas matas de araucária, vegetação abundante na época. Sobreviviam da coleta do pinhão e do

mel, além de práticas caçadoras, pescadoras e horticultoras incipientes44.

42 RODERJAN, Roselys Vellozo. Os curitibanos e a formação de comunidades campeiras no Brasil meridional (séculos XVI a XIX). Curitiba: Works Informática – Editoração Eletrônica, 1992, p. 269. 43 MAESTRI, Mário. Op cit p.77. 44 Sobre as comunidades primitivas no Rio Grande do Sul ver mais em MABILDE, Pierre F. A. Booth. Apontamento sobre os indígenas selvagens da nação coroados dos matos da província do Rio Grande do Sul.

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Nos primórdios da ocupação dos Campos de Cima da Serra, os recém-chegados não

dispunham de segurança alguma. Suas famílias e seus bens ficavam a mercê da sorte, já que a

desocupação das terras pelos primitivos habitantes não se deu de forma pacífica. Os grupos

nativos ofereceram temerária resistência à exploração branca, e o enfrentamento entre eles e

os colonizadores era inevitável. Sobre a presença maciça de indígenas nessa região, Pierre

Mabilde registra que:

Entre outras, nas matas compreendidas entre os campos de Passo Fundo e os de Vacaria, cujos matos compreendiam o chamado Mato Castelhano – que sempre foi o foco ou o centro onde se concentravam os coroados – existia uma grande tribo daquela nação, sujeita ao cacique principal ‘Braga’.45

Numa necessidade de sobrevivência, mediante a defesa do seu território, repetidas

vezes os índios atacavam de surpresa os fazendeiros estabelecidos com a sua gente e seus

animais. Pânico para os colonizadores, estado de vigília para os indígenas. À medida que os

aventureiros se apossavam das terras e do gado, os nativos viam-se obrigados a se refugiar no

interior, abrigando-se em lugares até, então, inacessíveis para o colonizador, como as áreas de

mata densa. Na fase de estruturação das primeiras fazendas, certamente, as maiores vítimas

foram as comunidades nativas locais, aos poucos, confinadas nas regiões florestais. “Apesar

da resistência, os grupos indígenas capitularam diante da superioridade dos invasores.”46

De parte dos colonizadores, a alternativa foi estabelecer fazendas na Província de São

Pedro para facilitar a conquista do rebanho e assegurar a posse das terras, mesmo com o risco

eminente dos ataques dos nativos. Os primeiros povoadores, chamados fronteiros, decididos a

constituir fazendas nos Campos de Cima da Serra chegaram por volta de 1740, entretanto,

quase três décadas depois, a região ainda era um espaço a ser ocupado por luso-brasileiros.

Sob este aspecto, Manuel Duarte observa:

São Paulo: IBASA, 1983. Ver também: NONNENMACHER, Marisa Schneider. Aldeamento Kaingang no RS: séc XIX. Porto Alegre: EdiPUC, 2000. 45 MABILDE, Op cit p.159. 46 ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997, p.39. Sobre o asunto ver ainda: ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. UNIJUÌ, 2002.

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... ainda em 1778 nenhum só e único filho do lugar existia em idade de serviço militar. Entretanto, releva notar que, entre os mobilizados, crianças havia de apenas 14 anos de idade, mas naturais de outras localidades. Em verdade, longamente sesmeiros e aposseadores ali viviam entre escravos, enquanto as famílias ficavam nos lugares donde partiam aqueles povoadores ousados. Porque era absoluta a insegurança, nos primeiros tempos.47

Consoante com o projeto de ocupação e colonização do interior brasileiro, o governo

central, passou a conceder glebas de sesmarias48 aos tropeiros decididos a estabelecerem-se

com sua gente nos campos do Brasil meridional. Como no restante do Rio Grande do Sul, o

povoamento dos Campos de Cima da Serra procedeu-se nos princípios do militarismo com as

relações de autoridade historicamente constituídas. “Se o Rio Grande do Sul não atraiu nos

primeiros tempos, o olhar do colonizador, logo depois, colocar-se-ia numa posição de

importância, se não econômico-política, pelo menos estratégico-militar”. 49

Na época do tropeirismo, portanto, é que se inicia o processo de articulação do

território sulino ao centro da colônia, e a ocupação sistemática das terras por esses tropeiros

que acabavam por fixar-se nos locais que integravam a rota das suas andanças. A estrada por

onde cruzavam as tropas era o aproveitamento das antigas trilhas abertas pelos guaranis

missioneiros em tempos mais remotos, quando da fundação e desenvolvimento das vacarias.

Com o passar dos animais, estas trilhas foram sendo alargadas naturalmente. Sobre a abertura

dos caminhos no sul do Brasil, Aldomar Rückert escreve que não foi apenas uma iniciativa

dos tropeiros: “O próprio Estado português, que visa ampliar seus domínios no Sul, na

confluência das terras portuguesas e espanholas, também o faz deliberadamente.”50

47 DUARTE, Manuel. “Velhos documentos rio-grandenses” In: Revista do IHG -RS. II Trimestre de 1944. Ano XXIII. n. 94, p.204. 48 João Borges Fortes explica que sesmaria “era a propriedade destinada à estância, à criação do gado, distribuído aos homens que haviam prestado serviço de certa relevância, merecedores de recompensa, como os militares, ou àqueles que dispusessem de recursos pecuniários, suficientes para instalarem-se como estancieiros e manterem o seu estabelecimento. Era uma forma extensiva de povoamento e de exploração econômica da terra.” (apud BARROSO, Vera Lúcia Maciel. Santo Antônio da Patrulha: vínculo, expansão e isolamento (1803-1889). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUC, 1979, p.148. 49 RECKZIEGEL, Ana Luiza Gobbi Setti, A diplomacia marginal. Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF Editora, 1999, p. 13 50 RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra : ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul: 1827/1931. Passo Fundo: Ediupf, 1997, p. 47.

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O início do século XVIII inaugurou o povoamento e posse do Nordeste gaúcho,

abrangendo toda a faixa litorânea e a encosta superior da serra. A primeira doação de sesmaria

no atual Rio Grande do Sul efetivou-se exatamente neste espaço e, ainda, no ano de 1732.

Manoel Gonçalves Ribeiro recebeu glebas de terras na praia de Conchas, futuramente

Tramandaí, área que integrou o posterior município de Santo Antônio da Patrulha.

A Coroa Portuguesa já tinha experiência em doação de sesmarias em Portugal e nas

colônias conquistadas da África e Ásia. No Brasil, o regime foi implantado, ainda, no século

XVIII por d. João III que autorizou os capitães donatários a ofertar lotes de sesmarias a quem

esses julgassem merecedores. Era uma tentativa de “organizar” o sistema fundiário na maior

colônia portuguesa, legitimando a fixação a terra. A “lei de sesmarias” já preconizava a

estrutura fundiária no Brasil colonial, marcada pelo predomínio da grande propriedade.

Representantes da Coroa Portuguesa concediam as terras sem qualquer ônus e a quem bem

entendessem, com exceção dos súditos da Espanha. Os contemplados eram, geralmente, os

homens acessíveis à administração colonial. “Estes eram, no Sul, os oficiais superiores e

subalternos, os aventureiros e comerciantes bem sucedidos, os homens de posses.”51

Estabelecido o primeiro sesmeiro no meridião do Brasil, em 1732, os dois anos

consecutivos, marcaram a abertura do Caminho “Cristóvão Pereira de Abreu”. O

empreendimento proporcionou uma melhor infra-estrutura em toda a área e atraiu novos

povoadores que se estabeleceram a partir de então ao longo do seu trajeto. É pertinente

verificar as colocações de Véra Barroso quando se refere ao processo de ocupação do litoral

norte deste estado pelo elemento luso-brasileiro:

Vindos pelo litoral, os tropeiros com as mulas adentravam-se no território na altura do atual município de Palmares, seguindo na direção do Rio Rolante, afluente do Sinos, subindo depois até os Campos de Cima da Serra, passando depois pelo Rio Pelotas para atingir os Campos de Lages, depois os de Curitiba, chegando finalmente em São Paulo, onde na Feira de Sorocaba seriam os animais comercializados com os mineiros das Gerais. Este roteiro estratégico atava o Rio Grande do Sul ao centro do Brasil, resguardando a Portugal, ganhos e avanços na sua política expansionista de conquista e colonização.52

51 MAESTRI Fº, Mário José. O Escravo no Rio Grande do Sul – a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho. Caxias do Sul: EDUCS, 1984, p.47 52 BARROSO, Véra Lúcia Maciel. Açorianos no povoamento do litoral norte do Rio Grande do Sul. In: BARROSO, V. L. M. (Org). Presença açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1993, p. 34.

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Três anos depois da concessão de sesmaria a Manoel Gonçalves Ribeiro já havia

registro de moradia de colonizadores que se estabeleceram nos Campos de Cima da Serra, no

futuro povoado de Vacaria. “O início do povoamento da sede do município de Vacaria,

segundo a melhor documentação, é de 1735. (...) A pequena localidade se firma e se

transforma em centro de uma imensa região.”53 Outras famílias se estabeleceram na área e em

1768 a capela curada de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria foi elevada à categoria de

freguesia54 pertencendo ao futuro município de Santo Antônio da Patrulha.

A entrada de casais açorianos no sul do Brasil, em meados do século XVIII, deve ser

entendida dentro da conjuntura de conquista portuguesa no extremo sul do Brasil. Oportunizar

a vinda de açorianos à maior colônia de Portugal atendia a dois interesses imediatos: amenizar

o problema do superpovoamento das ilhas dos Açores agravado com a carência de alimentos e

trabalho e povoar o atual Rio Grande do Sul necessitado de braços para a produção

alimentícia.

Em 1750, começaram a afluir para o meridião do Brasil os primeiros imigrantes

oriundos dos Açores, coincidentemente com a época da assinatura do Tratado de Madri,

celebrado entre d. João V (Portugal) e d. Fernando VI (Espanha), pelo qual a Colônia de

Sacramento fora permutada pelo território dos Sete Povos das Missões. O Tratado de Madri

explicitava os objetivos da política expansionista de Portugal: “tornar o sul do Brasil uma

unidade orgânica, com uma fronteira natural e estratégica que fosse um obstáculo à

penetração espanhola e desse segurança aos caminhos que demandassem às Minas Gerais.”55

53 GARDELIN, Mário. A contribuição de Vacaria para o desenvolvimento da região dos Campos de Cima da Serra. In: KRAMER, Anamaria de Lemos (Org). Raízes de Vacaria. Porto Alegre, EST, 1996, p.35. 54 Por freguesia se entende uma “área territorial delimitada que tem por sede uma igreja matriz onde se realizavam batizados, casamentos e óbitos.” Capela curada era uma igreja de pequeno porte subordinada a uma matriz. “No sistema colonial brasileiro, a capela serviu para congregar habitantes, até se transformar em sede de freguesia, elevada a categoria de igreja matriz, para depois se transformar em sede municipal.” Denomina-se comarca o “local, vila ou cidade em que ficava a residência do juiz” podendo abranger uma área de vários povoados. Termo era uma subdivisão da comarca. Ver: FLORES, Moacyr. Dicionário de história do Brasil. Porto Alegre. EDIPUCRS, 1996. Coleção história n.8, p. 230, 112 e.145. 55 ESPÍRITO SANTO, Miguel Frederico do. “Açorianos no sul do Brasil: da prata de Potosi ao ouro das gerais.” In: BARROSO Vera Lúcia Maciel (Org). Presença açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1993, p.22.

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1.3 NA ROTA LITORÂNEA SURGE SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA

No século XVII, a Fazenda Real Portuguesa instalou no Norte do atual território sul-

rio-grandense uma guarda para fiscalizar os rebanhos que cruzavam a linha divisória em

direção a parte setentrional da Colônia. O posto de fiscalização foi fixado junto à estrada

aberta com o movimento das tropas. Esta via foi a primeira comunicação interna dessa vasta

região, unindo os territórios sulinos ao antigo caminho dos tropeiros: Curitiba/Minas Gerais

do Ouro, via Sorocaba. No local, não fugindo à regra da época, erigiu-se uma capela sob a

égide de Santo Antônio 56. No intuito de burlar o pagamento das taxas, mercadores de gado

abriram uma picada nas proximidades do Caminho Velho. Visando reprimir a sonegação, uma

patrulha foi instalada junto à Estrada Nova. A localidade ficou conhecida como Santo

Antônio da Patrulha, enquanto que o antigo posto fiscalizador recebeu a denominação de

Santo Antônio da Guarda de Viamão.

Os postos fiscalizadores serviram de referência para o estabelecimento das primeiras

estâncias. Nas imediações destes locais iniciou o povoamento de Santo Antônio da Patrulha,

ainda em 172557. No ano de 1763, a exemplo de outras quatro localidades gaúchas58, o

povoado patrulhense foi elevado à freguesia. Estava lançada a semente dos primeiros núcleos

urbanos no meridião do Brasil.A instalação das patrulhas de Santo Antônio e de Viamão,

também, atendia ao propósito de frear a deserção de milicianos que se mudavam para o Sul

sem esperanças de voltar para sua terra de origem. Era complexa a estrutura física e

organizacional destas guardas, como é descrito a seguir:

Composta de dois oficiais, 20 soldados dragões e 80 cavalos, a Guarda Velha de Viamão ficava em cima de uma colina, a aproximadamente seis quilômetros do atual

56Como decorrência da união Estado e Igreja, em todo o processo de ocupação territorial pelos colonizadores, e início da urbanização no Brasil, era comum a construção de uma capela nas imediações da primeira edificação. 57 Conforme MACIEL JUNIOR, José. Reminiscências da minha terra: Santo Antônio da Patrulha. Porto Alegre: EST, s/d. 58 Em 1736, São Pedro do Rio Grande foi elevado à freguesia. Dez anos depois, foi a vez de Nª Srª da Conceição do Arroio. Em 1747 foi instituída a freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Viamão e no ano de 1754, Bom Jesus do Triunfo foi elevado a esta categoria. Ver: FLO RES, Moacyr. Op cit:

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centro de Santo Antônio. A segunda guarda funcionava no Rio Tramandaí.Dois anos mais tarde, a guarda transformou-se em registro e passou a ter a tarefa de controlar e cobrar impostos sobre a passagem do gado. Além do quartel, da casa dos oficiais e do depósito de couros, foram construídos três currais. Um guardava os cavalos dos militares, outro ficava com os animais presos por contrabando, um terceiro era conservado para a contagem do rebanho.(...) Numa espécie de terceirização pioneira, a Coroa outorgava direitos de cobrar a uma pessoa de confiança.59

1.4 OS “PASSOS”: A GÊNESE DOS PEDÁGIOS NO RS

O lugar de menor profundidade dos rios e córregos que integravam a rota do

tropeirismo permitia a passagem dos tropeiros que conduziam os animais rumo ao Norte da

Colônia ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. Eram os passos, locais de travessia dos

comboios e que logo se transformaram em pontos de arrecadação de tributos por parte de

representantes da Coroa60. Os tropeiros, por sua vez, além de subsidiar a compra do gado, os

animais de montaria, e todos os apetrechos indispensáveis para as tropeadas, providenciar os

mantimentos e salários dos seus peões, ainda tinham de financiar os direitos de passagem.

O fluxo de tropas e tropeiros que habitualmente transpunham o passo determinava o

tamanho da importância desses locais. No Nordeste do Rio Grande do Sul, o governo

provincial oficializou entre outros, o Passo de Santa Vitória, no Rio Pelotas, na divisa do atual

município de Bom Jesus com a cidade catarinense de Lages; também o Passo do Rio das

Antas, o Passo do Santa Rita - rio que limita as divisas dos municípios de Vacaria e Lagoa

Vermelha - e o Passo do Pontão61, localizado no Rio Pelotas, em terras que atualmente

integram o município de Barracão e que já pertenceram a Vacaria e depois ao município de

Lagoa Vermelha.

59 ZERO HORA. Origens do Rio Grande do Sul. “Uma velha vocação pelos pedágios”. Porto Alegre, 4 de dezembro de 1996, p.12. 60 Conhecemos pouco sobre a estrutura organizacional dos passos na história do Rio Grande do Sul. Não é nosso objetivo aqui esmiuçar esta questão, até porque as informações disponíveis não vão muito além das fontes primárias. Mas o estudo sistematizado dos antigos passos do território sul-rio-grandense, locais de arrecadação de tributos é uma temática importante que pode e deve ser recuperada à luz da nova historiografia. 61 Depois denominado “Passo do Barracão”.

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Utilizado com freqüência pelas tropas que cruzavam Santo Antônio da Patrulha e a

própria Vacaria, o Passo de Santa Vitória foi logo oficializado como ponto de travessia

integrante do caminho das tropas:

Por volta de 1770 apenas mulas e bois soltos passavam pela estreita picada de um metro de largura por 200 de extensão que ficava no outro lado do Pelotas. Um posto de registro para a coleta de impostos fiscalizava o número de animais e as mercadorias que cada tropa conduzia. Aos poucos Santa Vitória passou a receber mulas que carregavam bruacas com sebo e couro.62

Transformar os passos em locais transitáveis e mantê- los nesta condição era interesse

do governo local e central. Neste sentido, o Passo do Pontão recebeu melhorias por força da

Lei provincial de 1848. “A partir de 1850 ali passou a funcionar uma coletoria, aliás, a

responsável por grandes índices de arrecadação da Província no meio do século.”63 As

primeiras pousadas com currais e casas de moradia dos Campos de Cima da Serra foram

criadas nas cercanias desses passos.

Por toda a época imperial, o trabalho de conduzir o arremate dos passos por

particulares, pub licar o resultado dos leilões e informar ao governo provincial o nome dos

arrematadores, o valor e o período que estes administrariam os vaus 64 dos rios era tributado às

câmaras municipais. Através de leilões que periodicamente movimentavam os homens de

posses das vilas, o arrematador, normalmente, um fazendeiro, comprava o direito de explorar

os passos pelo período que poderia variar de um a três anos. Neste negócio investiam-se altas

somas em dinheiro para em troca usufruir os tributos arrecadáveis nos passos.

É pertinente verificar o teor das correspondências das câmaras municipais no que se

referiam aos leilões dos passos:

62 ZERO HORA. Origens do Rio Grande do Sul. “Tropeiros abriram caminhos para o Norte”. Porto Alegre, 4 de dezembro de 1996, p.53. 63 BARROSO, Vera Lúcia Maciel. Santo Antônio da Patrulha: vínculo, expansão e isolamento (1803-1889). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUC, 1979 p.138. 64 Trecho raso dos rios que possibilita o trânsito a pé ou a cavalo.

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Paço da Câmara municipal de Santo Antônio, 22 de março de 1870. Ilmo Exmo Srº A Câmara municipal desta vila depois de praticadas as formalidades de estilo, pôs hoje em praça pública o rendimento das passagens do Passo do Pontão situado no distrito da Vacaria, a fim de ser arrematado a quem mais deixe por tempo de um ano, o maior lance que houve foi o que ofereceu o Ten. João Jacinto Ferreira da quantia de 120 mil réis, pelo que esta Câmara resolveu que o dito Passo ficasse arrematado ao mesmo Ferreira pelo preço oferecido; cujo Passo esteve ultimamente arrematado por 42$000 por tempo de um ano, e a arrematação hoje feita é vantajosa e esta Câmara assim o participa a V. Excia para mandar o que for devido. Deus Guarde a V. Ecia.65

A leitura desta correspondência leva a crer que o fato de arrematar um passo era o

indicativo de que o arrematador era um homem de grande prestígio econômico dentro de uma

regionalidade específica. Neste caso, tratava-se de João Jacinto Ferreira, um abastado

fazendeiro e oficial da Guarda Nacional, portanto integrante da elite dos Campos de Cima da

Serra, posteriormente envolvido no assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti,

rumoroso caso que movimentou a região nos anos 1870-187166.

Três anos depois, em 1873, a mesma câmara municipal informou ao presidente da

província o resultado do arremate dos passos do município. Desta vez, um dos arrematadores

fora o tenente Máximo Paim de Andrade que ofereceu um lance de 1:000$000 (um mil conto

de réis) pelas passagens do Passo Real das Antas por um tempo de um triênio.67

1.5 FORMAS DE OCUPAÇÃO DA TERRA

O tropeirismo, como já mencionamos, ensejou a ocupação do atual Rio Grande do Sul.

Também já foi dito que para este fim, a Coroa Portuguesa, e depois o governo imperial optou

pelo sistema de sesmarias. De 1790 a 1822 efetivaram-se meia centena de concessões de

65 Correspondências – Autoridades Municipais: câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha, 1870-1874. AHRGS. 66 Este assunto será tratado no terceiro capítulo. Ver mais informações sobre João Jacinto Ferreira no Quadro Referencial – Anexo B. 67 Correspondências – Autoridades Municipais: câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha, 28/11/1873. AHRGS.

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sesmarias somente no Nordeste gaúcho 68. Em 1821, o governo interino da Capitania de São

Pedro do Rio Grande do Sul reconheceu a Antonio Manoel Velho a posse de uma sesmaria no

território que integrava o distrito da Vacaria. A sesmaria fora comprada de Ignácia de

Andrade. Cinco anos antes, Manoel Velho já havia sido beneficiado com glebas de terras nas

proximidades da então vila de Santo Antônio da Patrulha. A superfície concedida media uma

légua de frente por três léguas de fundos69. A partir de então o sesmeiro ampliou suas posses,

através da aquisição por compra, até atingir o topo da Serra Geral e a incipiente povoação de

Vacaria. Ao final de 1821 era bastante extensa a superfície territorial pertencente a Antonio

Manoel Velho. A documentação das posses de sesmarias comprova esta afirmativa:

Diz Antonio Manoel Velho, casado, morador em Cima da Serra, que ele possui um campo no distrito da Vacaria, denominado dos “Touros” ou “Chácara”, que houve por compra feita a Ignácia de Andrade como consta do documento junto, e para que nem esta nem o possuidor, de que houve o dito terreno, Pascoal Vieira da Roza tiveram títulos, e os suplicantes ainda irão tive graça (sic) de terrenos especial ali, tendo havido os que possui, e este mesmo por compra se acha povoado, e apro-veitado, roga à V. Exª e Srias se dignem conceder-lhes posse de sesmaria de campo com extensão que se acha dentro de suas confrontações não excedendo ao de sua sesmaria competente o foral de uma légua de largo e três de comprido, dividindo-se para lado qte.(sic) com o rio dos Touros, para outro com a estância denominada dos Ausentes, fundos para o Arroio “do Cara -á”, dividindo Adriano José de Castro. P. a V. Exª e Senias se dignem conceder a graça implorada. Procurador: Albino da Costa Moreira.70

A concessão de sesmarias fora consolidada pelo Alvará de 5 de outubro de 1795. De

acordo com a resolução, uma sesmaria não poderia exceder a extensão de três léguas em

quadro. A sesmaria concedida a Antonio Manoel Velho contemplava o limite estipulado pelo

Alvará, ou seja, uma légua de largura por três de comprido. As confrontações das terras

cedidas, normalmente, coincidiam com acidentes geográfico como arroios, rios e serras.

O sistema sesmarial71, inicialmente, objetivava garantir a cultura efetiva da terra ao

mesmo tempo em que proporcionava a fixação de colonizadores luso-brasileiros em terras

inexploradas, evitando a indesejável presença de aventureiros e contrabandistas estrangeiros 68 Conforme a Sinopse das Concessões de Sesmarias (1791 a 1822). APERS. 69 Uma légua de sesmaria corresponde a 4.356 hectares de terras. Uma sesmaria representava 13.068 hectares. 70 Posse Carta de Sesmaria. Porto Alegre, 26/03/1821. AHRGS. 71 A concessão de sesmarias no Brasil foi regulamentada pelo decreto de 22/06/1808. O Alvará de 25/01/1809 estabeleceu novas disposições sobre o sistema sesmarial. Ver mais em: FLORES, Moacyr. Op cit p. 483.

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numa área tão estratégica do ponto de vista geopolítico como era o extremo sul do Brasil no

século XVIII. Mas o processo de concessão de sesmarias com o tempo foi se afastando do

objetivo inicial. Não se cumpriam as normas de medição e demarcação judicial. Praticamente,

inexistiam propriedades com títulos regularizados e diversas posses concedidas antes de 1822

perderam a validade.

A prática de doação de sesmarias em território brasileiro acabou com a Independência,

em 1822. A resolução de 17 de julho daquele ano determinou o fim das sesmarias no território

brasileiro. A medida abriu caminhos para a aceleração da posse desordenada e a incorporação

de superfícies por particulares. Entretanto, oficialmente o regime jurídico das posses de terra

perdurou até a metade do século XIX. O ocupante da terra requeria a posse da área mediante

declaração de cultura efetiva da terra, afirmativa que deveria ser confirmada com depoimento

de testemunhas. O requerimento passava pelo crivo do governador ou capitão geral via

ouvidor. O primeiro emitia carta de concessão em caráter provisório. Os autos eram remetidos

para o registro na Secretaria e na Casa da Fazenda e Administração, em Portugal. 72

O ano de 1827 balizou as primeiras concessões de terras destinadas a estancieiros em

solo sul-rio-grandense. Era a reafirmação da estrutura de grande fazenda de pecuária no Norte

do Rio Grande do Sul. Mas, até 1850, prevaleceu como valor de referência de riqueza o

número de escravos pertencentes ao fazendeiro. A terra em si não tinha valor imobiliário

porque era abundante, relativamente fácil de ser obtida, mas ainda não era um bem

comercializável.

Ainda, no final do século XVIII, houve um esgotamento nas minas auríferas do

sudeste e centro-oeste brasileiro. A crise na mineração acarretou a diminuição do consumo de

mulas. Concomitantemente, a produção do charque gaúcho começou a crescer rapidamente.

Era preciso um novo abastecedor do produto para a Colônia, já que a produção nordestina de

carne seca ficou completamente comprometida em virtude das fortes secas que atingiram a

região nos anos de 1777, 1779 e 1792, provocando repentina diminuição dos rebanhos. Em

importante trabalho sobre as charqueadas no Rio Grande do Sul, Mário Maestri escreve:

72 Idem.

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Sendo, até então, “as oficinas ou saladeiros” cearenses importantes fornecedores de carne-seca para o mercado nacional e internacional, a escassez de gado a abater, determinada pela estiagem, termina levando à decadência a antiga produção. Abre-se, então, um espaço para as carnes gaúchas.73

O aumento da atividade charqueadora dava-se no mesmo ritmo da decadência da

produção e transporte de mulas para as áreas setentrionais da colônia. A introdução do fabrico

do charque no atual Rio Grande do Sul, determinou que os gados vacuns criados na

Campanha fossem conduzidos para as margens do rio Pelotas, Jacuí e Lagoas a fim de serem

abatidos nas charqueadas ali estabelecidas. Desses locais a carne e o couro eram destinados à

exportação via porto de Rio Grande.

Em 1808, visando estender o domínio luso em direção ao meridião da Colônia, d.

João, recém-chegado ao continente, ordenou a conquista de áreas do interior brasileiro. Neste

sentido determinou a abertura de uma estrada ligando Curitiba à capitania do Rio Grande, via

Guarapuava, no atual estado do Paraná. O estabelecimento do novo caminho enfrentou a

resistência dos nativos que por diversas vezes tentavam atacar os locais de acampamento dos

homens envolvidos no grande empreendimento. As investidas indígenas foram inúteis e os

exploradores, paulatinamente, iam ocupando áreas cada vez mais próximas do Rio Grande do

Sul.

Em 1816, temerosos de novos ataques dos nativos, os exploradores direcionaram suas

investidas rumo à região meridional do atual Paraná. Assim atingiram os Campos de Palmas,

descobriram os Campos Novos e na seqüência transpuseram o rio Pelotas até chegar ao

Campo do Meio, já no Rio Grande do Sul, de onde seguiram rumo às Missões. Acabava de

ser redescoberto o Caminho das Missões, que fazia a ligação dos Campos de Vacaria a Santo

Ângelo, via Planalto Médio (Figura 3). A antiga rota dos tropeiros e missioneiros foi

reaproveitada neste momento. Sobre este aspecto, Mário Maestri sublinha:

A abertura do caminho entre os Campos de Vacaria e as Missões acelerou a substituição das antigas estâncias missioneiras por latifúndios pastoris luso-

73 MAESTRI, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada escravista e a gênese do escravismo gaúcho.Op cit , p.58.

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brasileiros e a ocupação do Planalto Médio, onde surgiram, a seguir as povoações de Cruz Alta, Passo Fundo, Campo do Meio, Lagoa Vermelha, etc.74

O processo ocupacional de extensas áreas de terras estendeu-se para o Oeste dos

Campos de Vacaria e atingiu o Planalto. As melhorias empreendidas nas vias de comunicação

utilizadas pelo tropeirismo criaram uma infra-estrutura que logo atraiu novos colonizadores.

O movimento proporcionado pelo comércio do gado em pé e a pressão sobre as comunidades

nativas na região, possibilitaram a rápida ocupação do Planalto Médio.75

Nas regiões de campo, apropriadas à criação de gado, paulatinamente, diversas

famílias se estabeleceram, integradas no ciclo tropeiro sulino, e envolvidas diretamente em

trabalhos campeiros. Ao longo dos caminhos das tropas foram surgindo casas de pouso,

postos de recolhimento de impostos, armazéns onde eram comercializados desde mantimentos

para os birivas76 até alimentos para o trato animal. Uma infra-estrutura foi sendo construída

em função do comércio do gado em pé já que a viagem era um grande empreendimento que

envolvia diversas semanas num trajeto que carecia de postos de abastecimento. Muito logo,

como já foi referido, surgiram nestes locais os primeiros povoados.

Sobre a formação das comunidades pastoris do sul do Brasil, é pertinente observar as

palavras de Roselys Roderjan:

Nas comunidades campeiras as relações de parentesco lhes imprimem traços culturais que são transmitidos pela herança familiar e que vão se reproduzindo em novas comunidades e em novas gerações. O isolamento que caracterizou as primeiras comunidades originou populações diminutas que ocupavam vastos espaços físicos, vivendo em seus sítios e fazendas, enquanto que as vilas e povoados cresciam lenta e pobremente.77

74 MAESTRI, Mário. Uma história do Rio Grande do Sul : da pré-história aos dias atuais. Op cit p. 80. 75 Sobre o povoamento do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, além dos autores já mencionados, ver mais em: RODERJAN, Roselys Vellozo. Raízes e pioneiros do Planalto Médio. Passo Fundo: Gráfica e Editora Universidade de Passo Fundo, 1991. 76 Tropeiros de gado. 77 RODERJAN, Roselys Vellozo. Os curitibanos e a formação de comunidades campeiras no Brasil meridional (séculos XVI a XIX). Curitiba: Works Informática – Editoração Eletrônica, 1992, p. 291.

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Em todas as localidades nascidas em função do tropeirismo, as características se

assemelham, mesmo quando se desenvolviam bem distantes umas das outras. A fazenda era o

lugar de trabalho das famílias que se envolviam, diariamente, na agricultura de subsistência e

nas lides do campo. Dessas famílias se originavam os tropeiros, os vereadores, os delegados e

subdelegados de polícia, os inspetores de quarteirão, os chefes militares e os soldados

milicianos, enfim, a elite política local.

Figura 3: CAMINHO DAS TROPAS NO RS – SÉCULOS XVIII E XIX

Em 1842, estabeleceram-se os primeiros povoadores luso-brasileiros em Lagoa

Vermelha, praticamente, um século depois do surgimento da povoação de Vacaria. A

presença de comunidades indígenas no oeste dos Campos de Cima da Serra que ofereceram

resistência à fixação do colonizador e a precariedade das vias de comunicação que cruzavam

aquelas paragens, certamente, foram fatores que retardaram a ocupação das terras lagoenses.

O movimento de retirada dos indígenas para os sertões da província simultaneamente

ao estabelecimento de famílias luso-brasileiras em toda a região refletiu, diretamente, na

São Borja

São Luiz Gonzaga

Cruz Alta Passo Fundo

Lagoa Vermelha

Lages

Vacaria

Santo A. da Patrulha Porto Alegre

Viamão

• LOCALIDADE ------ ESTRADA DAS MISSÕES OU CAMINHO NOVO DA VACARIA ESTRADA DAS TROPAS

FONTE: RODERJAN, Roselys Vellozo. Os curitibanos e a formação de comunidades campeiras no Brasil Meridional (séculos XVI a XIX) Curitiba: Works Informática – Editoração Eletrônica, 1992. p. 267. (ADAPTAÇÃO)

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modificação da paisagem do quadrante norte do atual Rio Grande do Sul. O predomínio das

áreas de campo nativo e matas de araucária até então exploradas unicamente por comunidades

indígenas, foi sendo substituído pelo cercamento dos campos e a estruturação das fazendas de

pecuária, iniciativa do colonizador. Nas proximidades da casa do fazendeiro, os camaradas78 e

os poucos escravos construíam seus ranchos de acordo com as suas possibilidades.

As estâncias que se formaram nos Campos de Cima da Serra seguiam os moldes da

grande propriedade do sul da província, embora os processos de cercamento dos campos

tenham alterado significativamente o mapa das antigas sesmarias. Neste espaço de latifúndio

notabilizou-se a figura do estancieiro, elemento formador da elite política e econômica

regional com uma “identidade cultural- ideológica forjada no espaço latifundiário e nas

práticas sociais a ele vinculadas.”79

1.6 LEI DE TERRAS DE 1850 E A ORGANIZAÇÃO FUNDIÁRIA

O ano de 1850, representou um marcou decisivo na história agrária do Brasil. Em 18

de setembro a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Terras, de nº 601. Instituiu-se que a

aquisição de terras devolutas, a partir de então somente poderia ser operacionalizada mediante

a compra. A terra transformou-se em mercadoria, ou seja, um bem comercializável. A Lei de

Terras representa o auge no processo de acumulação mercantil escravista. O fenômeno que se

intensifica na década de 1840, foi tema de estudos de Aldomar Rückert:

A esse longo período corresponde à concepção tradicional da terra, isto é, ela é de domínio da Coroa; é uma recompensa por serviços prestados, representando prestígio social. (...) A renda capitalizada no escravo transforma-se em renda territorial capitalizada.80

78 Peões e agregados, na fase de ocupação do território eram comumente denominados de camaradas. Sobre o cotidiano desses trabalhadores livres nas estâncias sulinas no início do século XIX ver em: SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974. 79 COSTA, Rogério Haesbaert da. Latifúndio e identidade regional. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p.36. 80 RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: a ocupação e colonização do centro-norte do RS (1827-1931). Passo Fundo: Ediupf, 1997, p.65.

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No mesmo ano da aprovação da Lei de Terras, ficou proibido o tráfico de escravos

para o Brasil, por conta da Lei Eusébio de Queiroz. A Lei 601 e a Lei Eusébio de Queiroz

estavam intimamente vinculadas. Apresentada pela primeira vez em 1843, a Lei de Terras

explicitava a preocupação das elites governantes em promover a colonização de superfícies

até então inexploradas, garantindo a integridade do território nacional e preparar o país para o

gradativo fim da escravidão.

Em termos locais, o ano de 1850 assinalou o primeiro desmembramento político-

administrativo do município de Santo Antônio da Patrulha. Pela Lei provincial nº 185, de 22

de outubro foi emancipada a vila de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria que passou a

pertencer à comarca de São Borja. O território do novo município compreendia o 1º distrito,

ou seja, a sede, e a povoação de São Paulo da Lagoa Vermelha.81

Quatro anos depois, o decreto imperial nº 1318, de janeiro de 1854 regulamentou a Lei

de Terras. No mesmo ato foi criada a Repartição das Terras Públicas. O novo órgão fundiário

era subordinado ao Ministério e Secretário de Estado dos Negócios do Império. Ficava sob a

chefia de um Diretor Geral das Terras Públicas. Competia à Repartição: “§ 1º-Dirigir a

medição, divisão e descrição das terras devolutas, e promover sobre a sua conservação.”82 A

Repartição tinha delegacias em determinadas províncias. Foi a centralização do sistema

fundiário brasileiro instaurando a era dos processos de legitimação, vendas, medições e

litígios.

Na chefia da Repartição estava um Diretor Geral das Terras Públicas além de um

fiscal subordinado ao chefe, um oficial maior e outros oficiais, um amanuense além de um

porteiro e um contínuo. Os membros da Repartição das Terras tinham entre outras atribuições,

organizar um regulamento específico para as medições, promover o registro das terras

possuídas, fiscalizar a ocupação das terras devolutas e a regularidade das comercializações.

As deliberações do novo órgão dentro das atribuições competentes recebiam o visto do

81 Conforme DE PROVÍNCIA de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: 1803-1950. Porto Alegre, Fundação de Economia e Estatística, 1981. 82 SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da Legislação das Terras Públicas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: s/e 1961 p.9.

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Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império e, em seguida, eram encaminhadas

aos presidentes das províncias.83

Todas as províncias que dispunham de terras devolutas foram divididas em distritos de

medição. Estes ficaram sob a responsabilidade de um inspetor geral das medições, nomeado

pelo governo. O inspetor formava a sua própria equipe de trabalho, que deveria ser composta

por escreventes, desenhistas, agrimensores e ajudantes de cordas. Estes últimos trabalhavam

na examinação propriamente dita, da extensão das terras. Os inspetores não tinham

remuneração fixa, eram gratificados de acordo com a realização das medições.

Art.14º.- O Inspetor é o responsável pela exatidão das medições: o trabalho dos agrimensores lhe será, portanto submetido; e sendo por eles aprovado, procederá a formação dos mapas de cada um dos territórios medidos. Art. 17º - A medição começará pelas terras que se reputarem devolutas, e que não estiverem encravadas por posses, anunciando-se por editais e pelos jornais, se houver nos distritos, a medição que e vai fazer.84

Em 1854, por força do mesmo Decreto n.1318 foi criado o cargo de juiz comissário85

de medições, nomeado pelo presidente da província para assumirem em todos os municípios

onde houvesse sesmarias ou outras concessões ou posses sujeitas à revalidação. Era atribuição

dos juízes comissários medir e demarcar as sesmarias ou concessões a serem revalidadas ou

legitimadas. Da mesma forma que os inspetores gerais, os juízes comissários, também, tinham

amplos poderes para formar suas equipes. As medições eram realizadas mediante

requerimento emitido pelo possuidor da terra que tinha a obrigação de informar a localização

da propriedade e os seus confrontantes. Sob este aspecto, o Regulamento de 1854

determinava:

83 Idem. 84 BRASIL. Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854. In: SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit p. 11. 85 Ao juiz comissário eram delegados amplos poderes no que se referia a posses a serem legitimadas. De acordo com o Regulamento, o inspetor geral era responsável pela exatidão das medições. Pelo seu crivo passava o trabalho dos agrimensores. Já os juízes comissários das medições eram incumbidos de medir e demarcar as sesmarias e concessões a fim de revalidá-las. Também deveriam legitimar as posses. Tinham o atributo de escolher os seus escrivães e agrimensores formando a sua equipe. Sobre a estrutura fundiária no Rio Grande do Sul ver: KLIEMANN, Luiza Helena Schmitz. RS: terra e poder – história da questão agrária. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1986.

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Art. 37 – Requerida a medição, o Juiz Comissário, verificando a circunstância da cultura efetiva e morada habitual, de que trata o art. 6º da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, e que não são simples roçados , derrubados, ou queimados de matos, e outros atos semelhantes ou que constituem a pretendida posse, marcará o dia em que a deve começar, fazendo-o público com a antecedência de oito dias, pelo menos, por Editais, que serão afixados nos lugares de costume na freguesia em que se acharem as possessões, ou sesmarias que houverem de ser legitimadas, ou revalidadas, e fazendo citar os confrontantes por carta de editos.86

Nos processos de medição de terras, não raras vezes processos e documentos

desapareciam das delegacias. Por mais que o trabalho dos inspetores e juízes comissários

fosse de acordo com as determinações do Regulamento de 1854, era comum ocorrer incêndios

de benfeitorias nas terras em vias de demarcação e medição. Os prejudicados, normalmente,

eram caboclos, isto é, homens despossuídos de recursos e sem acesso aos procedimentos

legais para registrar a queixa ao delegado. Quando os caboclos denunciavam o prejuízo,

mesmo que fosse aberto o inquérito para apurar os culpados, muitas vezes não tinham o

menor sucesso e os mandantes, quando eram fazendeiros mais ricos, normalmente saíam

impunes.87

Um exemplo claro destes danos materiais sofridos por famílias de lavradores durante

os processos de medição de terras no interior do Rio Grande do Sul foi o incêndio criminoso

na casa de Romualdo Antônio Alves, no distrito de Vacaria em julho de 187088. O crime

ocorreu durante uma medição de campos e foi denunciado ao delegado de polícia pelo sogro

do prejudicado. O incêndio somente chegou a ser registrado porque o denunciante era oficial

da Guarda Nacional, tenente coronel Felisbino Antonio Alves. Feita a queixa, a autoridade

policial requereu ao juiz municipal o auto de vistoria no que restou da casa de Romualdo.

Assim, no dia 25 de julho o Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti procedeu a verificação

e fez os devidos apontamentos que, certamente, apontaram indícios de possíveis mandantes. A

investigação foi interrompida repentinamente com o assassinato do referido juiz,

86 BRASIL. Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854. In: SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit p. 13. 87 Mais dados sobre os caboclos no Rio Grande do Século XIX, ver em ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997. 88 Processo Crime de 1870 n. 409, folha 162. APERS.

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coincidentemente ou não, na mesma semana da vistoria. Os assassinos furtaram todos os

apontamentos do magistrado referentes a sua última diligência e que seriam incluídos neste

processo de investigação. As circunstâncias deste assassinato serão detalhadas num outro

momento deste trabalho.

1.7 OS PÁROCOS E OS REGISTROS DE TERRAS

Em todos os municípios das províncias imperiais foram criados os registros paroquiais

de terras. Nas localidades, os padres foram os mediadores do processo, ou seja, eram eles

quem deveriam registrar todas as terras pertencentes à área do seu município e remeter os

livros respectivos ao governo central. O delegado da Diretoria Geral das Terras Públicas da

Província reunia todos os livros paroquiais para formar o registro geral das terras

despossuídas da província, possibilitando a organização do registro geral das terras

despossuídas do império89. Recebendo informações dos municípios, o governo provincial

garantia o controle do processo de discriminação das terras em todos os recantos do Rio

Grande do Sul.

A confiabilidade dos párocos nos processos de registro de terras era duvidosa, já que,

normalmente, eles eram grandes proprietários particulares e a Igreja como instituição,

também, possuía latifúndios. O registro paroquial não funcionava como deveria. Os processos

eram lentos, os registros e envios dos livros pelos párocos não eram realizados com

regularidades. Havia dificuldades, também, na discriminação das terras públicas: “As

províncias ou não informavam ou o faziam de maneira extremamente vaga. Por outro lado, a

medição dessas terras se revelava muito onerosa e difícil pela falta de agrimensores.”90

Em Vacaria o livro do registro paroquial de terras foi aberto em 17 de setembro de

1854, pelo pároco Antônio de Moraes Branco91. Todos os registros do livro vinham assinados

89 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume -Dumará, 1996. 90 Idem, p.315. 91 Antônio de Moraes Branco era padre secular apesar de ter constituído família através da união com Maria Eufrásia com quem teve sete filhos. Pela escassez de párocos no interior do Brasil, obteve autorização dos seus

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pelo vigário e o respectivo proprietário, não se exigindo testemunhas muito menos provas

documentais das posses e suas confrontações. Os processos de registro de terras eram

marcados pela morosidade na operacionalização. “O governo queixava-se da lentidão do

processo, da resistência dos párocos em promover o registro e remeter os livros, e da

arbitrariedade das declarações”. 92

Foi grande a procura dos proprietários de terras em Vacaria para registrar suas posses.

Somente em 1854, em apenas três meses foram registradas 291 propriedades. Entre as quais

está a propriedade de Antônio Francisco Rodrigues em condomínio com seus irmãos,

localizada no distrito de Vacaria no lugar denominado “Quilombo”. A propriedade, registrada

no dia 19 de setembro de 1854, na folha dois do livro paroquial, fora herdada de seus pais e,

ainda, não se achava dividida entre os herdeiros93.

No ano de 1855, em doze meses o número de registros caiu para 22. João Mariano

Pimentel está entre os proprietários que legitimaram suas posses em janeiro daquele ano. A

folha 71v do livro de registros de terras de Vacaria atesta que o fazendeiro possuía “cinco

partes” no campo dos herdeiros de Francisco de Paula Antonio no lugar denominado “São

João”, terras que ele havia adquirido por compra. João Mariano não declarou os seus limites

porque, segundo ele, os campos não estavam divididos com os herdeiros. Em 1856 apenas 17

proprietários especificaram suas posses junto ao registro paroquial de terras, entre os quais, o

capitão João Pereira de Almeida que o fez no dia sete de julho, conforme a folha 80v94.

No ano de 1857, em função do desvilamento de Vacaria e posterior rebaixamento para

distrito jurisdicionado a Santo Antônio da Patrulha, os registros de terras daquela região

passaram a ser realizados no livro paroquial de Santo Antônio. Com a mudança de foro

jurisdicional, os fazendeiros de Vacaria e Lagoa Vermelha tinham de se deslocarem até a sede

do município patrulhense a fim de registrarem suas propriedades. As circunstâncias do

desvilamento de Vacaria serão tratadas no próximo capítulo.

superiores para continuar exercendo o sacerdócio. Seu relacionamento com Maria Eufrázia Justina foi público, assim mesmo desfrutou prestígio e respeito junto à sociedade serrana. Foi vigário em Viamão até 1852 de onde seguiu para Vacaria permanecendo até por volta de 1859. Ver mais em BRANCO, Pércio de Moraes. Lagoa Vermelha e municípios vizinhos. Porto Alegre: EST, 1993. Do mesmo autor: A região de Lagoa Vermelha – Aspectos históricos. Porto Alegre: EST, 2002. 92 CARVALHO, José Murilo de. Op cit p.314. 93 Registro paroquial de terras de Vacaria, folha 2. APERS. 94 Idem folhas 71 e 80.

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Se em Vacaria os fazendeiros se anteciparam em lançar suas posses no livro paroquial,

como atesta o grande movimento de 1854, o mesmo não ocorreu em Santo Antônio da

Patrulha, onde somente em 1856 incidiu o maior fluxo de registros, totalizando 802

lançamentos. Nos três anos consecutivos não consta sequer um único registro, e em toda a

década de 1860 apenas três fazendeiros lançaram suas posses. O livro paroquial deste

município encerrou em 187195.

Quadro comparativo: Propriedades declaradas nos registros paroquiais de terras

MUNICÍPIO ANO

VACARIA

SANTO ANTÔNIO DA

PATRULHA 1854 291 ---- 1855 22 61 1856 17 802 1857 2 ---- 1858 ---- ---- 1859 ---- ---- 1860 ---- 1 1864 ---- 2 1871 ---- 1

TOTAL DE REGISTROS

332 867

Os dados quantitativos deste quadro, que foi elaborado a partir da pesquisa empírica

nos registros paroquiais de terras de Vacaria e Santo Antônio da Patrulha, suscitam algumas

questões interessantes sobre a divulgação e aplicabilidade dos decretos imperiais nas

localidades do Nordeste gaúcho. Santo Antônio da Patrulha, como se sabe, localiza-se

próximo a Porto Alegre, sede do governo provincial e de onde partiam as determinações e

decretos imperiais com destino as vilas do interior sul-rio-grandense, era um município mais

antigo que Vacaria, e as vias de acesso àquela vila, também, tinham mais tempo de uso pelo

colonizador que as estradas para Vacaria, vila distante da capital em comparação com Santo

Antônio. Teoricamente, as determinações oficiais oriundas do poder central deveriam atingir

com mais rapidez aquela vila litorânea. Entretanto, o que se viu na prática foi outra realidade.

O movimento dos registros paroquiais de terras nesses dois municípios atesta que a

95 Registro paroquial de terras de Santo Antônio da Patrulha. APERS.

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publicação do Regulamento da Lei de Terras em Santo Antônio chegou um ano mais tarde ao

conhecimento dos fazendeiros patrulhenses, assim mesmo, estes não tiveram pressa em

registrar suas propriedades. Já no caso de Vacaria em 1854, ou seja, no mesmo ano em que foi

decretado o Regulamento que determinava a execução da Lei de Terras, os fazendeiros se

anteciparam em lançar suas posses no registro do pároco. Entre os vacarianos, a notícia da

obrigatoriedade das declarações chegou bem mais rápido que no município patrulhense. Em

Vacaria os fazendeiros apressaram-se a declarar suas posses, evitando com isso, possíveis

multas de atraso, ao passo que na vila patrulhense os fazendeiros não demonstraram a mesma

preocupação com o cumprimento dos prazos estipulados pelo Decreto.

A leitura criteriosa do registro paroquial de terras de Vacaria suscita alguns elementos

importantes para análise desta sociedade do século XIX, cuja tônica era a grande propriedade.

Entre eles nota-se a imprecisão nas informações, que perpassava a maioria dos registros,

especialmente no que se referia às extensões dos campos. Entre as declarações constantes no

livro paroquial, freqüentemente, se encontram terras sem terem sido medidas ou demarcadas.

Para os fazendeiros que lançavam suas posses no livro do pároco, o mais importante era

cumprir as determinações do Decreto Imperial que regulamentava o registro paroquial de

terras. Quem não declarasse suas posses no prazo legal estipulado pelo Decreto de janeiro de

1854 receberia uma multa que seria administrada pelo pároco96. Apenas como exemplo da

imprecisão nos dados lançados pelos fazendeiros, e da ausência de demarcações nas

propriedades declaradas no registro paroquial, é pertinente observar o conteúdo do registro

das posses de José Joaquim Ferreira:

Eu abaixo assinado sou senhor e possuidor de uma estância neste distrito de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria, no lugar denominado ‘Socorro’ cuja estância é composta de várias partes de campo que por diversas vezes hei comprado a seus possuidores como consta das competentes escrituras que se acham em meu poder, esta estância ainda não foi medida nem demarcada e sua extensão será de duas sesmarias e meia, mais ou menos (...). Paguei as liras correspondentes a todas as compras que fiz, sendo feitas a primeira em 1845 a Manuel Rodrigues Lisboa, como procurador de seu pai, a segunda em 1847 a Mâncio Ivo da Fonseca, a terceira em 1847 a Maria Gabriela de Andrade, a quarta em 1847 a José Lourenço de Lima e a quinta em 1851 a Antonio Pereira Borges. Vila da Vacaria a 22 de setembro de 1854. José Joaquim Ferreira. O pároco, Antonio de Moraes Branco97. (grifo nosso).

96 BRASIL. Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854. In: SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit Capítulo IX, Art. 95. 97 Registro paroquial de terras de Vacaria, folha 2, nº 4. APERS.

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Já nesse processo de legitimação observam-se nomes que iriam compor a elite local98,

todos eles ligados a grande propriedade. Para fins desta pesquisa elaborou-se um quadro de

referências99 com os nomes das pessoas mais proeminentes na sociedade de Vacaria e Lagoa

Vermelha, entre os anos de 1850 e 1880, relacionando as suas posições no jogo político

daquelas localidades. Neste registro de terras, as palavras “sou senhor e possuidor”, traduzem

a força do poder pessoal que se estabelecia nas relações sociais de uma época em que as

posses rurais de um homem determinavam a força e o alcance de sua influência.

A sistemática de registro aponta para elementos peculiares. Consoante com as

determinações da Lei de Terras, os fazendeiros deveriam comprovar a cultura efetiva da terra

a ser registrada. Este requisito atestava a efetiva ocupação da superfície declarada:

Art. 15 – Os possuidores de terras de cultura e criação, qualquer que seja o título de sua aquisição, terão preferências na compras das terras devolutas que lhes forem contíguas, contanto que mostrem, pelo estado da sua lavoura ou criação, que têm os meios necessários para aproveitá-las.100

O capítulo III do Regulamento de Terras, de 1854 determinava que estariam sujeitas à

legitimação as sesmarias e concessões do governo geral ou provincial que apresentassem

áreas de lavouras e “morada habitual do respectivo sesmeiro, ou concessionário ou de quem o

represente, e que não tiverem sido medidas e demarcadas.”101 Era necessário a presença de

98 Para fins deste trabalho, usamos o conceito de elite na seguinte acepção: “Elite seria um termo empregado em um sentido amplo e descritivo, com referência a categorias ou grupos que parecem ocupar o ‘topo’ de ‘estruturas de autoridade ou distribuição de recursos’. Entender-se-ia, por esta palavra, segundo o caso, os ‘dirigentes’, as pessoas ‘influentes’, os ‘abastados’ ou os’privilegiados’.” Ver HEINZ, Flávio. Considerações acerca de uma história das elites. Disponível em: www.humanas.unissinos.br/docentes/heinz. Acessado em 24/11/2000. p.2. Ver também: BOTTOMORE, T.B. As elites e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. 99 Ver Anexo B. 100 SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit p. 7. 101 BRASIL. Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854. In: SECRETARIA DA AGRICULTURA (RS). Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit p. 12.

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um morador fixo nas terras a serem legitimadas. Não precisava ser, obrigatoriamente, o

próprio sesmeiro a habitar no local, mas teria de haver um representante seu.

Todos os fazendeiros tinham a preocupação de informar ao pároco que haviam

adquirido suas posses antes de 1850, quando da Lei de Terras. Com o receio de perdê- las,

sempre declaravam que haviam comprado suas terras e na maioria das vezes já haviam

estabelecido lavouras e construído benfeitorias. Este registro de terras de 1854 atesta esta

preocupação:

Antônio Francisco Rodrigues e seu irmão José Francisco Rodrigues possuem no “Pontão da Serra das Antas” no fundo do rincão do Faxinal umas terras de mato e cultura onde plantam e onde moram pessoas que os representam. Mede ½ légua de largura e ½ légua de cumprimento, não divide com ninguém. 102

O capitão Manoel Thomaz Gonçalves, presidente da câmara de vereadores de Vacaria

de 1852 a 1856 foi um dos últimos fazendeiros a registrar suas terras no livro paroquial.

Somente o fez em julho de 1856, praticamente, dois anos após a inauguração do registro

paroquial de Vacaria. A resistência em observar as normas permeava as atitudes dos

mandatários nas localidades do Império. Era a cristalização do poder pessoal sobrepondo-se

ao poder público ao passo que o governo estava completamente desaparelhado para enfrentar

as resistências.

Politicamente, nos moldes coronelísticos, Manoel Thomaz Gonçalves era um

fazendeiro com uma rede de influências muito sólida nos Campos de Cima da Serra e,

inferimos que, por este motivo, sentia-se muito à vontade para solicitar favores aos deputados

provinciais ou mesmo ao presidente da província. O atendimento aos seus interesses

encontrava respaldo em Porto Alegre. Tinha um considerável poder de barganha. “Os

políticos do século XIX estavam principalmente preocupados com o favor, distribuindo-o ou

102 Registro paroquial de terras de Vacaria. Folha 22v. APERS.

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buscando-o, ou freqüentemente ambas as coisas. Legitimavam assim a estrutura social

existente, dominada pelos donos da terra.”103.

Sistema político notabilizado em todo o território nacional, o coronelismo envolvia

uma reciprocidade de ações entre o coronel e o governo. Na presidência da câmara municipal

de Vacaria, em 3 de fevereiro de 1856, Manoel Thomaz Gonçalves enviou uma

correspondência ao presidente da província, Dr. Manoel Vieira Tosta, reforçando a urgência

da criação do Distrito da Capela de São Paulo da Lagoa Vermelha. Na mesma carta havia uma

indicação de nomes para ocupar cargos públicos:

A Câmara municipal se antecipa a oferecer a indicação inclusa das pessoas que mais no caso estão de serem Subdelegados naquele novo distrito: Para Delegado: Manoel Bento da Costa, suplentes: 1º- Ignácio Bueno Candea, 2º - Francisco do Amaral Tolledo, 3º - Baltasar Mariano Pimentel, 4º - Pedro Vieira Gonçalves, 5º - Claro José da Lima, 6º - Luis Pessoa da Silva.104

A situação de isolamento dos municípios gaúchos propiciou a formação e manutenção

do fenômeno coronelismo por todo o século XVIII e XIX. “Seu habitat são os municípios

rurais, ou predominantemente rurais; sua vitalidade é universalmente proporcional ao

desenvolvimento das atividades urbanas...”105. Esta questão será tratada com mais detalhes no

próximo capítulo.

Quando o fazendeiro era também um oficial da Guarda Nacional, muitas vezes o

registro de terras enfatizava esta peculiaridade. Foi o caso de Miguel Joaquim de Camargo. O

pároco de Vacaria iniciou o registro nestes termos: “O capitão Miguel possui um campo no

lugar denominado São Paulino.”106 Aqui fica claro o tratamento diferenciado que tinham os

homens detentores de cargos militares durante toda a época imperial. A Guarda Nacional nas

localidades funcionava como instrumento de domínio dos grandes senhores, que se

transformavam em coronéis de tropas formadas de acordo com o critério censitário. Ocupar o 103 GRAHAM, Richard. Clientelismo na cultura política brasileira. Toma lá dá cá. Disponível em: www.braudelorg.br/paper.15.htm. Acessada em 13/12/2000, p.2. 104 Correspondências da câmara municipal de Vacaria ao presidente da província, 3/02/1856. AHRGS. 105 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1978, p.251. 106Registro paroquial de terras de Vacaria, folha 42. APERS.

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posto de coronel, capitão, tenente ou alferes era condição de prestígio, até mesmo frente à

maior autoridade da Igreja Católica nos municípios e neste caso, representante também do

Estado na medida em que os párocos foram os mediadores no processo de registro das terras

no interior do Brasil107.

Luiza Helena Schmitz Kliemann realizou um estudo minucioso da Lei de Terras e suas

implicações na história agrária do Rio Grande do Sul. Segundo a autora:

Teoricamente, a Lei de Terras de 1850 resolveria inúmeros problemas: acesso à terra, reorganização da produção e da sociedade e satisfação dos anseios das elites produtoras e dos intelectuais anti-escravagistas, partidários da necessidade de uma purificação do sangue e da cultura brasileira através da colonização estrangeira Na prática, ela foi geradora de novos conflitos, pois a centralização forçada não conseguiu atenuar o descompasso entre o projeto do governo central e dos governos provinciais, ou seja, entre a legislação e as realidades agrárias regionais.108

Na tentativa de superar os aspectos deficitários das Leis de 1850 e 1854, revelados na

prática, com os processos de legitimação das terras devolutas, no ano de 1861 foi extinta a

Repartição Geral das Terras Públicas e criado o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras

Públicas. Gradativamente as delegacias das províncias foram sendo fechadas restando a do

Rio Grande do Sul, extinta em 1871109.

1.8 MEDIÇÃO E LEGITIMAÇÃO DE TERRA NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA

Os últimos anos da década de 1850, conforme exposto, corresponderam ao período em

que, por determinação da Lei de Terras, todas as propriedades fundiárias tiveram de ser

declaradas ao pároco de cada freguesia. Este, por sua vez, lançava uma a uma as declarações

107 Sobre a estrutura organizacional da Guarda Nacional, ver mais no próximo capítulo. 108 KLIEMANN, Luiza Helena Schmitz. RS: terra e poder – história da questão agrária . Porto Alegre, Mercado Aberto, 1986, p.20. 109 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume -Dumará, 1996 p.316.

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no registro paroquial de terras. Através dessas informações foi possível mapear a quantidade

aproximada (porque não se sabe ao certo se todas as posses foram lançadas no registro

paroquial ou se houve omissões por parte de fazendeiros) de estâncias e terras devolutas no

Rio Grande do Sul nas décadas, imediatamente, posteriores à publicação da Lei de Terras.

Para todos os proprietários que haviam declarado suas posses junto ao livro do vigário,

o passo seguinte, conforme determinação legal, era requerer ao juiz comissário a medição de

sua propriedade. Este procedimento era o requisito necessário para dar início ao processo de

legitimação das respectivas terras.

No Rio Grande do Sul, os autos de medição e legitimação de terras iniciaram apenas

na década de 1860, devido à absoluta falta de agrimensores, únicos especialistas devidamente

habilitados para realizar as medições e esboçar a planta exata da propriedade, discriminando

as áreas de campo e de mato, as partes agriculturáveis e as confrontações das posses de terras.

Para realizar este serviço, os agrimensores poderiam formar a sua própria equipe de trabalho.

O período em que tramitavam os autos de medição variava conforme o caso. Algumas

sentenças saíam em poucos meses, outras demoravam mais tempo. No município de Vacaria,

por exemplo, José Mariano Pimentel, proprietário na localidade do “Turvo”, encaminhou

requerimento ao juiz comissário solicitando a medição de uma terra em 10 de maio de 1882.

Obteve o título de propriedade quinze meses depois, em 8 de agosto de 1883110. Já o processo

de Theodoro de Souza Duarte Júnior se desencadeou com maior rapidez. Iniciou em agosto de

1881, seis meses depois, em fevereiro de 1882 o proprietário já estava com o título em seu

poder111.

A leitura dos autos de legitimação possibilita a reconstrução de uma época vivida num

espaço que se configurou com base no latifúndio, como foi o caso da região dos Campos de

Cima da Serra. A análise desta importante documentação primária permite recuperar o

processo de apropriação de uma determinada fazenda, apontando quais eram os primeiros

proprietários da superfície legitimada e de que maneira a área fora adquirida. Outra

possibilidade não menos importante é a enumeração dos principais produtos agrícolas

110 Auto de Medição de Terras n.1522 (Vacaria) – Legitimação de Posse (Lei 1850). AHRGS 111 Auto de Medição de Terras n.1347 (Vacaria) – Legitimação de Posse (Lei 1850). AHRGS.

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cultivados, das espécies e quantidades de animais criados, além de discriminar a quantidade e

extensão de áreas de mato e de campo.

O Capítulo IX do Regulamento da Lei de Terras determinava que os possuidores de

terras que não declarassem suas posses nos prazos estabelecidos seriam multados pelo vigário

encarregado do registro na respectiva freguesia: “findo o primeiro prazo, em 25$; findo o

segundo, em 50$ e o terceiro em 100$.”112. Folheando os autos de medição de terras do

município de Vacaria encontrou-se o pedido de fazendeiros ao presidente da província

solicitando que fosse abonada uma multa cobrada pelo pároco referente ao não cumprimento

do prazo estipulado pelo Regulamento da Lei de Terras. Foi o que se observou nos autos de

José Paim de Andrade:

... apresentando registro de sua posse de terras de cultura ao reverendo vigário desta paróquia, fora pelo mesmo multado na quantia de 200 mil réis, por não o ter feito no prazo legal. O suplicante recorre a V. Excia da multa imposta visto que naquele tempo que publicou-se a lei das terras sua publicação nesta vila fora feita com muita morosidade e o povo lutando com toda a sorte de dificuldades, principalmente aqueles que como o suplicante tratavam da lavoura, tendo necessidade de constantemente acharem-se atesta de seus trabalhos por causa dos indígenas que faziam seguidas correrias assim foi que tardiamente chegou ao conhecimento de semelhante dever ao suplicante quando já estava findando o prazo legal, portanto em vista do exposto impetrado (sic) V. Excia a relevação de semelhante multa por ser ela bastante onerosa. Nestes termos pede a V. Excia deferimento. E.R.M. Vacaria, 7 de Dezembro de 1881. José Paim de Andrade.113 (grifo nosso)

Pelo valor cobrado, 100% maior que a maior multa estipulada pelo Decreto, infere-se

que o proprietário extrapolou até mesmo o terceiro prazo concedido para a declaração de suas

posses. Ou, na pior das hipóteses, exercitava-se em Vacaria a cobrança abusiva de multas114.

O abono de multas cobradas por determinação legal era uma atribuição exclusiva do

presidente da província.

112 BRASIL. Regulamento para a execução da Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850. Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854. In: SECRETARIA DA AGRICULTURA. (RS) Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul. Op cit p.19. 113 Auto de Medição de Terras n.1420 (Vacaria) – Legitimação de Posse (Lei 1850). AHRGS. 114 Não é nosso objetivo aqui apontar se a desonestidade era prerrogativa do pároco ou dos fazendeiros no processo de declaração e legitimação de terras em Vacaria. Apenas fica uma sugestão para uma investigação mais detalhada sobre a sistemática de cobrança de multas por extrapolação de prazos no século XIX.

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O fato de Vacaria adiantar-se na publicação do Regulamento da Lei de Terras não era

a garantia de que a totalidade dos fazendeiros cumprisse os prazos determinados para

registrarem suas terras. No âmbito das localidades, o vigário era o principal meio de

divulgação das determinações oficiais. Acredita-se que o pároco vacariano divulgava estas

determinações oficiais de forma oral, durante as missas realizadas na freguesia, assim, mesmo

os fazendeiros analfabetos recebiam a notícia sem precisar ler nem interpretar o conteúdo das

leis e decretos imperiais. Além da morosidade nas informações, muitos fazendeiros tinham de

se afastar da sua vila para tratar de negócios. A ausência dos proprietários na região gerava

atraso nas declarações de posses junto ao livro do pároco, e como já foi dito, os registros

deveriam ser lançados pelo próprio dono das terras.

Apenas a título de ilustração, é pertinente acompanhar o processo de legitimação de

uma posse de terras pertencente ao major Theodoro de Souza Duarte115, desde a publicação do

Decreto 1318, que regulamentava a Lei de Terras. Como determinava a lei, o fazendeiro foi

um dos primeiros a lançar suas posses no registro paroquial de terras. Este compareceu junto

ao pároco no dia 26 de setembro de 1854, para declarar duas áreas a ele pertencentes, ambas

localizadas em Vacaria:

Theodoro de Souza Duarte possui campos no lugar denominado “Capão Alto” houve por herança de seus finados pais. De comprimento tem pouco mais ou menos de légua e meia a duas de largura légua e meia mais ou menos. Divide com Manuel de Souza Duarte e Miguel Soares d’Oliveira. Possui também umas terras de agricultura com lavouras e benfeitorias há 4 para 5 anos, desde 1850 com que está de posse na Serra das Antas para dentro do lajeado denominado “Faxinal”, dividindo com terras de Manoel Domingues Vieira.116

Theodoro de Souza Duarte e sua esposa solicitaram ao juiz comissário, Jerônimo

Savignone Marques a medição da propriedade situada na Serra das Antas em setembro de

1877, vinte e três anos depois de declará-la junto ao registro paroquial. Sabe-se que para

determinar a extensão exata da fazenda era necessário o trabalho especializado de

115 Theodoro de Souza Duarte também ocupou o posto de oficial da Guarda Nacional. Ver mais no segundo capítulo e Quadro de Referências – Anexo B. 116 Registro paroquial de terras de Vacaria, folha 5v, n. 10. APERS.

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agrimensores e ajudantes de cordas, pessoal qualificado que as localidades não dispunham. A

carência de técnicos certamente foi o fator que ocasionou a demora nas medições.

Diz o Major Theodoro de Souza Duarte e sua mulher Herculana Borges Vieira que eles suplicantes são possuidores de uma posse de terras de cultura por eles tomadas mansa e pacificamente em época legal cuja posse é situada na Serra das Antas pertencente ao primeiro distrito da freguesia de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria e como aconteça achar-se a dita posse sujeita a legitimação querem os mesmos suplicantes faze-la legitimar a fim de obterem título legítimo requerem portanto a V. Sª se digne admiti-los a legitimação de que se trata ordenando todas as diligências legais e mandando citar aos confrontantes Firmino Pacheco Paim d’Andrade, Francisco Paim de Andrade, José Ribeiro de Sousa e sua mulher a fim de comparecerem dia e hora apesado (sic) e alegarem o que lhes convier. Nestes termos E.R.M. Vacaria, 12 de setembro de 1877. Theodoro de Souza Duarte.117

O juiz comissário encarregou o agrimensor Clemente Roth e para ajudante de corda da

medição Antonio José Ferreira de Albuquerque. Também, foram nomeados para procederem

ao exame das posses precedido de juramento, Manoel d’Oliveira e Esequiel de Souza

Oliveira. Essas pessoas deveriam acompanhar o serviço de medição da fazenda, que deveria,

também, ser acompanhado pelos confrontantes. O trabalho iniciava sempre pela manhã para o

melhor rendimento, e envolvia um grupo de, no mínimo seis pessoas, além do proprietário.

Medição concluída, desenho da fazenda esboçado, restava ao agrimensor emitir por

escrito a sua declaração: “que a configuração do terreno medido e demarcado é de um

polígono irregular. Que a área superficial da posse medida e demarcada é de vinte e nove

milhões setenta e oito mil seiscentos e vinte metros quadrados”. O mapa da propriedade ficou

assim configurado:

117 Autos de Medição de Terras n. 941. Vacaria. AHRGS.

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Figura 4: PLANTA DE UMA POSSE DE TERRAS

Todos os papéis referentes ao processo de legitimação da propriedade eram

organizados e enumerados um a um para no conjunto formarem o Auto de Medição. Depois, a

documentação era armazenada na delegacia de terras da província em Porto Alegre e,

atualmente, se encontra no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, disponível para

pesquisas. Todas as terras legitimadas em Vacaria nas décadas de 1870 e 1880, a rigor,

obedeciam a este mesmo procedimento.

FONTE: Autos de Medição de Terras n. 941 – Vacaria. AHRGS.

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O estudo do processo de apropriação/colonização das terras nos Campos de Cima da

Serra, especificamente, os municípios de Vacaria e Lagoa Vermelha, mediante a análise dos

registros paroquiais de terras e dos autos de legitimação de propriedades, permite o

levantamento de nomes dos fazendeiros locais mais proeminentes entre 1850 e 1880. Ao

mesmo tempo, este exercício possibilita traçar o perfil sócio-econômico-político desta elite

regional. Portanto, o processo de ocupação do espaço que abrange os Campos de Cima da

Serra é um caminho plausível para perceber a ação política engendrada pela disputa de

jurisdição política por parte de fazendeiros vacarianos e lagoenses na segunda metade do

século XIX. A emancipação político-administrativa de Vacaria, em 1850 e posterior

desvilamento, em 1857, suscitou enfrentamentos de posições entre os vereadores daquela

câmara municipal e na Assembléia Legislativa Provincial. Os protagonistas deste jogo de

poder eram abastados fazendeiros locais que além de ocuparem posições no legislativo

municipal, ainda integravam a oficialidade da Guarda Nacional. Este quadro de instabilidades

revelou que no interior das elites políticas serranas havia uma acirrada disputa pelo poder

local, assunto que será abordado nos próximos capítulos.

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2 LATIFÚNDIO: A GÊNESE DO JOGO DE PODER

NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA

O processo de apropriação dos Campos de Cima da Serra ofereceu as diretrizes para o

desenvolvimento da fazenda de pecuária, atividade que caracterizou a sociedade de Vacaria e

Lagoa Vermelha ao longo do século XIX. A condição de abastado proprietário de terras

conferia ao fazendeiro serrano o poder de controlar uma complexa rede de influências na sua

localidade. Latifúndio, neste espaço sul-rio-grandense, muito mais do que riqueza material

simbolizava força, autoridade e conseqüentemente, poder de mando. Para reforçar o seu

prestígio econômico, esses fazendeiros, ainda, acumulavam funções públicas e militares nos

seus municípios.

As deliberações nas câmaras municipais, instituição que regulamentava a vida dos

cidadãos no âmbito local, passavam pelo crivo desses verdadeiros mandatários. Em Vacaria e

Lagoa Vermelha, eram estes fazendeiros que compunham as elites políticas. O que se

pretende nas próximas páginas é analisar as disparidades existentes no interior dessas elites na

época em que estes locais começavam a dar os primeiros passos na sua trajetória como

unidades político-administrativas. E este exercício é possível mediante a leitura das

correspondências emitidas pela câmara municipal daqueles municípios serranos no período

entre os anos de 1850 e 1870.

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2.1 O MUNICIPALISMO SUL-RIO-GRANDENSE

As fronteiras do extremo sul do Brasil, como já foi dito no primeiro capítulo, somente

foram estabelecidas em 1801, pelo Tratado de Badajoz. Definidos os limites jurisdicionais do

estado sulino, coube ao brigadeiro Francisco João Róscio liderar interinamente o “Governo do

Rio Grande de São Pedro, independente do de Santa Catarina, mas subordinado ao do Rio de

Janeiro.”118 Em setembro de 1807, o Rio Grande foi elevado à categoria de Capitania Geral e

as primeiras medidas no sentido de organizar internamente a capitania foram tomadas por

iniciativa do governador e chefe-de-esquadra, Paulo José da Silva Gama119. Palco de

constantes lutas pela definição da fronteira, a situação do espaço sul-rio-grandense em

princípios do século XIX era caótica. Sobre este aspecto, Amyr Borges Fortes escreve:

Suas plantações e rebanhos estavam abandonados, de vez que os homens válidos haviam sido chamados para o serviço das armas. (...) Também as tropelias pela campanha eram freqüentes, com roubos e assaltos às estâncias e vilas.120

Preocupado com este quadro difícil que se estabeleceu, e não conseguindo atenuar os

problemas que se impunham num espaço tão grande e com tantas especificidades internas121,

como era o atual Rio Grande do Sul na primeira década de 1800, o governador Paulo Gama

passou a reivindicar às Cortes Portuguesas, a divisão da capitania em distritos judiciários,

118 DE PROVÍNCIA de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: 1803-1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatís tica, 1981 p.9. 119 O governo de Paulo Gama durou de 1803 até 1809. “Por sua sugestão foi instituída a Junta de Fazenda que organizou a receita pública”. Sobre as realizações de Paulo Gama no governo da Capitania do Rio Grande, ver mais em FERREIRA FILHO, Arthur. História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1978. p.68. 120 FORTES, Amyr Borges. Compêndio de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Sulina, 1962. p.61 121 Em 1801, quando se definiu a linha fronteiriça separando o Rio Grande do Sul dos países platinos, quase toda a região Norte do estado ainda era povoada pelos indígenas. As áreas ocupadas por elementos luso-brasileiros limitavam-se às imediações das primeiras sesmarias, doadas ainda no século XVII. A metade sul do estado, por outro lado, já era um espaço que se diferenciava pela disseminação de fazendas criatórias destinadas às charqueadas.

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cujas sedes seriam gradativamente elevadas à categoria de vila.122 As suas propostas somente

foram acatadas depois da transferência do governo português ao Rio de Janeiro, em 1808.

Figura 5: CAPITANIA DO RIO GRANDE DE SÃO PEDRO DO SUL

A primeira divisão político-administrativa do atual território sul-rio-grandense

processou-se em 1809, por conta da Provisão Real de 7 de outubro daquele ano. A Capitania

do Rio Grande, ainda sob o governo de Paulo Gama, ficava subdividida em apenas 4

municípios: Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha. Estas unidades

administrativas foram o embrião do municipalismo no espaço sul-rio-grandense. “Subdividido

o Rio Grande do Sul nas quatro vilas, configurou-se a primeira estrutura administrativa

territorial do nosso Estado”.123

122 FORTES, Amyr Borges. Op. cit. 123 DE PROVÍNCIA de São Pedro a estado do Rio Grande do Sul: 1803-1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1981 p.33.

FONTE: DE PROVÍNCIA de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803 – 1950. FEE. Porto Alegre, 1981.

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A área municipal de Santo Antônio da Patrulha, em 1809, compreendia o espaço

territorial que, hoje, corresponde aos municípios de São Francisco de Paula, Vacaria e Lagoa

Vermelha além da faixa litorânea de Torres até Conceição do Arroio124. Integravam o

município as freguesias de Nª Srª da Conceição do Arroio e Nª Srª da Oliveira de Vacaria,

além dos povoado de Santa Cristina do Pinhal e Cima da Serra. A exemplo dos outros três

primitivos municípios gaúchos, era bastante extenso o território jurisdicionado a Santo

Antônio da Patrulha. A vasta área municipal totalizava 34.184 Km2, espaço este caracterizado

por uma paisagem bem diversificada, formada pela presença de praias, serras e áreas de

planalto:

Figura 6: MUNICÍPIO DE SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA EM 1809

O povoado mais distante da sede municipal era Vacaria, e para deslocar-se até lá, via

Estrada da Serra Velha era preciso intermináveis horas de viagem por caminhos íngremes

124 Depois de 1954, em homenagem ao conterrâneo General Osório o município passou a ser denominado de Osório.

FONTE: DE PROVÍNCIA de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul – Censos do RS 1803 – 1950. FEE. Porto Alegre, 1981. (Adaptação)

Nª Srª Oliveira da Vacaria

Cima da Serra

Sta Cristina Sto Antº da Patrulha

Nª Srª da Conceição do Arroio

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onde predominavam obstáculos de toda a natureza: “Morros, matos, pedras, várzeas, sangas,

rios se mesclavam, apresentando ao ousado viajante, ao tropeiro, dificuldades de toda sorte,

até alcançar os Campos de Cima da Serra.”125 Subir a serra em princípios do século XIX, no

lombo de eqüinos e muares, transpondo rios caudalosos como o das Antas e o Rolante além

de todos os demais entraves geofísicos era um empreendimento árduo.

Como já mencionamos anteriormente, nos primeiros anos do século XIX, não se tinha

registro de elementos luso-brasileiros estabelecidos em Lagoa Vermelha. A área povoada

estendia-se apenas até o atual município vacariano. Daquele ponto rumo ao Planalto Médio

eram as comunidades coroadas que ocupavam os campos e áreas de mato. Referindo-se ao

avanço de colonizadores luso-brasileiros em direção ao oeste dos Campos de Cima da Serra,

ainda em fins do século XVIII, alcançando as paragens do atual município lagoense, Manuel

Duarte escreveu:

A pouco e pouco ia avançando essa maré de pretendentes fazendeiros, até a extrema linha com os índios missioneiros. Tal apelativo era simbólico e importava a significação de limite aleatório, naquele rude entrementes longínquo: - Extrema era a raia vedada à penetração portuguesa, e esse topônimo culminante ficaria para sempre a assinalar decisivo relevo panorâmico daquele vigoroso ciclo histórico.126

A instalação do município de Santo Antônio da Patrulha efetivou-se em 1811, dois

anos após a sua criação. A partir do ato solene de juramento e posse dos primeiros

legisladores locais instituiu-se de fato o poder público e iniciaram-se os trabalhos da primeira

sessão da câmara de vereadores daquele município. Durante todo o período colonial, mesmo

após a instalação da Corte portuguesa no Brasil, até a Independência em 1822, as câmaras

“foram declaradas corporações meramente administrativas, que não podiam exercer qualquer

jurisdição contenciosa.”127 As atribuições das câmaras municipais no Império somente foram

ampliadas por força da lei de 1º de outubro de 1828, que organizou o sistema representativo

125 BARROSO, Vera Lúcia Maciel. Santo Antônio da Patrulha: vínculo, expansão e isolamento (1803-1889). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1979. p. 131. 126 DUARTE, Manuel. “A conquista da terra e a iniciação pastórica no planalto e nos fundos de baqueria de los piñares” In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – Porto Alegre: IV Trimestre de 1944. Ano XXIV. Nº 96. p.195. 127 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1978. p.74.

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no Brasil no âmbito municipal. O artigo 71 da referida lei determinava que as câmaras

deliberariam sobre “os meios de promover e manter a tranqüilidade, segurança, saúde e

comodidade dos habitantes, asseio, segurança, elegância e regularidade externa dos edifícios e

ruas das povoações.”128

Instalado o novo município do Nordeste gaúcho, o primeiro desdobramento político-

administrativo de Santo Antônio aconteceu em virtude da emancipação de Vacaria, em 1850.

Analisando a evolução político-administrativa do atual Rio Grande do Sul na primeira metade

do século XIX, percebe-se que, dos quatro primeiros municípios sul-rio-grandenses, Porto

Alegre, Rio Pardo, Rio Grande e Santo Antônio da Patrulha, até a década de 1850, apenas o

último não sofreu alteração no seu “desenho”. Não houve desmembramentos em Santo

Antônio, permanecendo a mesma delimitação por 41 anos. Os demais municípios, ao

contrário, tiveram sua área inicial alterada pelas sucessivas emancipações desencadeadas nas

quatro primeiras décadas do século XIX.

Até o século XIX, em toda a região Nordeste do Rio Grande do Sul, a atividade

produtiva estava baseada na criação de gado. Extensas áreas de terras com baixas densidades

demográficas caracterizaram aquele espaço. A metade sul da província, ao contrário, já

desenvolvia a indústria saladeira, ramo produtivo que proporcionou um considerável

incremento populacional nas áreas envolvidas.

A partir de 1780, na metade sul deste estado, que na época ainda não apresentava sua

linha fronteiriça definida, desenvolveram-se as charqueadas, atividade produtiva que lançou

mão do trabalho escravo. Como já destacamos antes, a produção saladeira revelou-se um

negócio lucrativo, o que intensificou a ocupação dos pampas sulinos por fazendas de

latifúndio, especializadas na criação de gado bovino para o provimento de carne e couro. A

disseminação de fazendas provocou um aumento na densidade demográfica em todas as áreas

envolvidas com a produção do charque.

O próspero negócio da pecuária destinada à indústria charqueadora impôs a

necessidade de desmembrar de Rio Pardo o povoado de Cachoeira, o que foi concretizado em

1819. O mesmo destino teve as freguesias de Pelotas e Piratini, em virtude da prosperidade

128 Idem p.75.

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das estâncias e charqueadas, em poucas décadas multiplicou o contingente populacional

nesses povoados. Assim, essas freguesias foram emancipadas de Rio Grande em 1830. Neste

ritmo prosseguiram as emancipações nos pampas sulinos. O município de Santo Antônio da

Patrulha ficava fora da área das charqueadas, fator que, provavelmente, influenciou na

preservação dos seus limites por tanto tempo.

2.2 MANIFESTAÇÕES DE AUTONOMIA NOS CAMPOS DE CIMA DA SERRA

A década de 1850 constituiu um marco na história político-administrativa da

província. Finda a Revolução Farroupilha129, uma das medidas adotadas pelo presidente da

província, Luiz Alves de Lima e Silva, então conde de Caxias, foi a ampliação das vias de

comunicação no interior sul-rio-grandense. Neste sentido receberam melhorias o “Caminho

Novo da Vacaria” e a estrada dos matos castelhano e português até a povoação de Passo

Fundo. O alargamento da última via se deu por motivo de segurança para os viajantes. Como

já mencionamos no primeiro capítulo, os índios coroados representavam uma “ameaça

latente” para os tropeiros e caixeiros viajantes que cruzavam o local. Após várias tentativas de

negociação para resolver o impasse entre indígenas e colonizadores, em 1845 as comunidades

nativas aceitaram ser aldeadas e o Caminho Novo da Vacaria transformou-se na rota preferida

dos tropeiros.

Amenizado o “perigo” dos ataques coroados, novos povoados surgiram e, logo, se

desenvolveram ao longo do caminho das tropas. Um dos locais em que iniciou o processo de

urbanização em função do ciclo do tropeirismo, foi Lagoa Vermelha. O povoado, que se

formou a oeste de Vacaria, surgiu na década de 1840, a beira do Caminho das Missões, num

dos locais preferidos pelas comunidades coroadas, mas que após o aldeamento desses

indígenas, praticamente, não ofereceu mais perigo para os colonizadores. O historiador

129 Sobre a Revolução Farroupilha ver: FLORES, Moacyr. Modelo político dos farrapos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. Ainda: FERREIRA FILHO, Arthur. História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1978. Outra importante leitura é: PESAVENTO, Sandra Jatahy. A revolução farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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lagoense Demétrio Dias de Moraes realizou importante estudo sobre os primeiros habitantes

luso-brasileiros a atingir Lagoa Vermelha. São dele estas palavras:

Finalmente, em 1842, foi erguida a primeira habitação da cidade de Lagoa Vermelha, sobre uma restinga, onde havia uma fonte de água cristalina, que se constituía parada preferencial de viandantes solitários vindos de Santa Catarina e de caçadores de gado bravio que abundava na região.130

Para construírem as suas moradias, normalmente, os colonizadores preferiam locais de

fácil acesso, preferencialmente próximo das estradas, com fontes de água, áreas de mato e

campos onde pudessem estabelecer lavouras para a subsistência além de criar animais vacuns,

cavalares e muares para a comercialização e o abate. A sede da estância era erigida

estrategicamente sobre uma colina, de onde era possível enxergar longe. Por estes elementos

que eram levados em conta no momento de colonizar uma área, infere-se que os recém

chegados tinham a intenção de estabelecer sua residência na área e ali permanecerem por

muitos anos. “Em redor dos grandes estancieiros agrupavam-se parentes, amigos, protegidos,

aventureiros, índios e mestiços. Isso tudo, somado aos escravos pretos, formava reduto

forte...”131, elementos estes que outorgavam ao chefe local amplos poderes.

A forma com que se estabeleceram os primeiros povoadores luso-brasileiros em Lagoa

Vermelha não fugiu à regra. Em 1845, foi inaugurada uma pequena capela sob o orago de São

Paulo. Nas proximidades da capela outras famílias constituíram suas estâncias, atraídas pela

abundância de terras e pela facilidade de possui- las. “Os pioneiros seguiam o princípio

filosófico Res nullius primo ocupanti, coisa de ninguém é do primeiro ocupante”132.

Em pouco tempo, alguns recém-chegados, em especial os descendentes dos antigos

sesmeiros133 expandiram suas posses e se destacaram como latifundiários poderosos

economicamente e com ampla participação na política local. O fato de ser abastado

130 MORAES, Demétrio Dias de. Torrão Amado. Lagoa Vermelha: Gráfica Lagoense, 1953. p.16. 131 FERREIRA FILHO, Arthur. Op cit p.65. 132 BARBOSA, Fidélis Dalcin. Nova História de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1981 p. 42. 133 Entre os primeiros habitantes de Lagoa Vermelha estavam o paranaense Felipe José de Sousa, Joaquim Dias de Morais, João Soares de Barros, Claro José de Lima e Manuel Leite. Sobre o assunto ver mais em BARBOSA, Fidélis Dalcin. Op. cit.

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proprietário rural no século XIX era o indicativo de que o fazendeiro pertencia a uma elite

específica e tinha, portanto, o seu lugar garantido no jogo político da região.

Outros povoadores não tiveram a mesma sorte que os ricos latifundiários e por uma

vida inteira não passaram de humildes lavradores e agregados, prestando serviços na condição

de trabalhadores livres aos fazendeiros bem estabelecidos em troca de um lugar para morar e

um pedaço de terra para fazer a sua roça de subsistência. Esses homens livres despossuídos

trabalhavam como peões ou capatazes para os criadores de gado; “o peão solteiro trabalhava

apenas em troca de abrigo e de uma pequena remuneração. No caso de ser casado ou vir a

casar-se, poderia ‘arranchar-se’, tornando-se uma espécie de agregado do estancieiro.”134 A

coexistência destes dois grupos economicamente distintos, somada a presença, ainda que

pequena, de trabalhadores cativos, marcou a sociedade que se formava nos Campos de Cima

da Serra.

Muito logo outros paulistas e lagunenses, com sua gente e seus bens, afluíram,

também, aos povoados mais antigos, como foi o caso de Vacaria. Habitando distante de Santo

Antônio da Patrulha, os vacarianos tinham de viajar por longas horas desde as suas

propriedades até atingir a sede municipal, como já falamos. Mas com as melhorias

empreendidas no Caminho Novo da Vacaria, aumentaram as possibilidades dos vacarianos

atingirem os centros comerciais. Os viajantes preferiam transitar por vias de comunicação

mais largas e que oferecessem maior segurança. Com o aumento do fluxo de tropeiros que

cruzavam os Campos da Vacaria e o crescimento populacional registrado no distrito da

Vacaria, não tardou para que esta adquirisse foros de vila, emancipando-se em 1850. Foi o

primeiro desmembramento político nos Campos de Cima da Serra depois de 1809.

134 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Sobre as cinzas da mata virgem: Lavradores nacionais na província do Rio Grande do Sul (Santa Maria, 1845-1880). Porto Alegre. Dissertação de Mestrado PUCRS, 1999. p.61.

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Figura 7: CAMINHO DAS TROPAS SÉC. XVIII E XIX – NORDESTE DO RS

Por toda a década de 1850, Santo Antônio da Patrulha ficou isolada em relação as

demais localidades serranas. O movimento dos viajantes era direcionado aos poucos para

outros caminhos, enquanto que a antiga Estrada da Serra Velha foi sendo abandonada.

Situação curiosa a desta vila litorânea: Santo Antônio, que teve o seu povoamento

impulsionado por se localizar nas imediações da primeira via de comunicação interna do atual

Rio Grande do Sul, lentamente foi sendo isolada.

Até pelo menos a terceira década do século XIX, quem partia da vila patrulhense em

direção aos distritos planaltinos de Cima da Serra precisava enveredar pela trilha dos rios

Rolante e Rolantinho nos locais mais rasos, via Estrada da Serra Velha. De lá rumava para o

passo das Antas, que, ao contrário dos primeiros rios era facilmente atravessado. Deste passo

CONVENÇÕES: Caminho da Praia Caminho de Cristóvão Pereira,

partindo das proximidades de Palmares

----- Caminho das Missões

FONTE: FERREIRA FILHO, Arthur. História Geral do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1978 p.38. (Adaptação)

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seguia-se em direção ao oeste, pelo caminho do Mato Português135 até atingir a freguesia de

Vacaria.

Vacaria mantinha contato com os mercados abastecedores nas diversas direções,

através de vários caminhos. As vantagens econômicas e financeiras dos vacarianos

contrapõem-se à situação calamitosa de Santo Antônio da Patrulha. Sobre este aspecto é

pertinente verificar o que Véra Lúcia Maciel Barroso tem a dizer:

São Francisco de Paula e Vacaria ligavam-se à sede municipal por caminhos só transitáveis por bestas e cavalos, secundarizando a Serra Velha diante da abertura Planaltina em leque na direção noroeste-centro-sul. Assim, os distritos planaltinos de SAP [Santo Antônio da Patrulha] impunham-se como centro polarizador de caminhos.”136

Tanto Vacaria quanto São Francisco de Paula passaram a integrar o cenário que se

transformou na rota preferencial dos tropeiros. A opção dos mercadores de gado contemplou

os interesses do governo provincial que na primeira metade do século XIX, ainda, estava

preocupado em proporcionar maior fluxo de viajantes e o conseqüente avanço populacional

para o centro-oeste a fim de incorporar economicamente toda aquela região ao território sul-

riograndense, inibindo todas as supostas intenções de reconquista por parte dos vizinhos do

Prata. O Nordeste e a faixa litorânea, áreas já asseguradas pelo domínio luso não

preocupavam o governo da província. As atenções deste voltaram-se para outro lado do Rio

Grande do Sul que passou a ter maior importância geopolítica.

A instalação da Vila de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria e posse dos novos

vereadores realizou-se em 10 de setembro de 1851. Não fugindo à regra, o presidente da

câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha compareceu em Vacaria para empossar os

vereadores eleitos para a nova Vila. Na casa designada para servir de Paço da câmara

135 O Mato Português localizava-se no Planalto Médio, confrontando-se com o Mato Castelhano, entre Lagoa Vermelha e o rio Passo Fundo. A região do Mato Português e do Mato Castelhano, até meados do século XIX era território Kaingang. Sobre este tema, ver mais em: MAESTRI, Mário. Uma história do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais. 1v. A ocupação do território. 2.ed. Passo Fundo: UPF, 2000. Ver também: NONNENMACHER, Marisa Schneider. Aldeamento Kaingang no RS: séc XIX. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 136 BARROSO, Vera Lúcia Maciel. Santo Antônio da Patrulha: vínculo, expansão e isolamento (1803-1889). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1979. p. 133.

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municipal, prestaram juramento e assumiram seus postos na primeira sessão do legislativo

local, os sete vereadores presididos pelo mais votado que, automaticamente, assumiu como

presidente da câmara, o padre João Antônio de Carvalho 137.

É pertinente observar que até 1889, a maior autoridade política no âmbito do

município era o presidente da câmara de vereadores. Na época imperial não havia sido

instituído o cargo de intendente e nas localidades o vereador presidente ocupava a função que

hoje equivale ao chefe do executivo. Sobre a eletividade da administração municipal no

Império, Victor Nunes Leal sublinha:

Sete vereadores nas vilas e nove nas cidades compunham as câmaras, que funcionavam sob a presidência do vereador mais votado. Para votar na eleição dos vereadores, exigiam-se os requisitos mencionados nos arts. 91 e 92 da Constituição. Eram elegíveis todos os que pudessem ser votantes e tivessem pelo menos dois anos de domicílio no termo. O mandato durava quatro anos.138

Além desses quesitos, para ser vereador, também, era necessário saber ler e escrever.

Em Vacaria, houve casos de vereadores que permaneceram na câmara municipal por mais de

quatro anos139. A principal ocupação dos personagens da política nesta região era a criação de

gado, em grandes extensões de terras. A câmara de vereadores de Vacaria e Lagoa Vermelha

durante o século XIX, era formada, portanto, de fazendeiros, negociantes e oficiais da Guarda

Nacional. Não raro, acumulavam essas três posições de prestígio naquela sociedade140.

137 A composição da primeira câmara municipal de Vacaria era a seguinte: Padre João Antônio de Carvalho (presidente), tenente coronel José Luis Teixeira, Estevão Malaquias de Figueiredo, José Joaquim Ferreira, Antônio Francisco Rodrigues, Miguel Joaquim de Camargo e Mâncio Ivo da Fonseca. Ver mais no Anexo B. 138 LEAL, Victor Nunes. Op. cit. p. 110. 139 José Luis Teixeira foi vereador de 1851 a 1857. 140 Ver Quadro de Referências – Anexo B.

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2.3 JOGO DE INTERESSES NA CÂMARA MUNICIPAL DE VACARIA

A lei provincial de 26 de novembro de 1857, determina o retorno de Vacaria a sua ex-

sede municipal. Local que havia passado por todas as categorias legais até adquirir foros de

vila, Vacaria já havia sido capela, freguesia, distrito e município, entretanto, por força de uma

deliberação da Assembléia Legislativa em Porto Alegre, retornava à condição de simples

distrito de Santo Antônio da Patrulha. Operacionalizou-se um episódio político-administrativo

inusitado nos Campos de Cima da Serra: o desvilamento de Vacaria, quando a sede da vila foi

transferida para Lagoa Vermelha, e depois ambas as localidades voltam a pertencer à

jurisdição do município patrulhense.

O espaço de tempo compreendido entre 1851 e 1857 configurou-se como uma época

de jogo de forças políticas em Vacaria. Registraram-se desencontros entre a estrutura de poder

político e a de poder econômico, conflitos pessoais entre vereadores vacarianos e entre estes e

líderes de outra esfera partidária. As correspondências oficiais emitidas pela câmara

municipal de Vacaria são o indicativo destas rivalidades, como se pode observar neste ofício

endereçado ao presidente da província em 1855:

Constando a esta Câmara que o seu Presidente Manoel Thomaz Gonçalves tem increpado (sic) na presença de V. Excia, por negligente, e que pela falta dos seus membros comparecerem as sessões quando convocados tem deixado de haver sessões ordinárias, é do seu rigoroso dever não esquecer tão injusta acusação e restabelecer os fatos na sua pureza e verdade . Exmo Sr., a verdade é que esta Câmara não tem funcionado com a devida ordem e regularidade, reunindo-se nos tempos marcados por lei, por que o mencionado Presidente da Câmara tendo-a convocado, por mais de uma vez ele mesmo tem faltado no dia ou dias designados, (...) dando-se destarte e talvez de propósito motivo a tais faltas, levando-as depois ao conhecimento de V. Excia adulterados por tão injustamente se poder argüir esta Câmara. (...) Theodoro de Souza Duarte, João Francisco Gomes, Manoel Antonio da Paixão F°, Mâncio Ivo da Fonseca, Manoel Ignácio Vieira, Antonio Silveira dos Santos.141 (grifo nosso)

141 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 17/02/1855. AHRS.

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Em outra oportunidade, os vereadores de Vacaria ao se corresponderem com o

presidente da província deixavam claro o clima de enfrentamento político vivido naquele

Paço Municipal. Por ocasião do desvilamento de Vacaria aqueles vereadores foram

categóricos nas suas manifestações de repúdio à decisão da Assembléia Legislativa. Todas as

pessoas que haviam trabalhado em prol da remoção da sede da vila para Lagoa Vermelha

eram classificados por aqueles vereadores de “inimigos do bem estar do povo vacariano”.

“Assim correu o tempo e a última eleição deste município trouxe em resultado a remoção

desta Vila para a Lagoa Vermelha para a satisfação de mesquinhas vinganças... e para mais

atear a discórdia entre os vencedores e os vencidos”142.

Em meio a toda esta efervescência política onde estava em jogo a supremacia regional,

onde os negócios privados falavam mais alto que os interesses de uma comunidade, foi criado

o distrito da Lagoa Vermelha, em 1856. Núcleo urbano que surgiu nos Campos de Cima da

Serra tardiamente, em comparação com a vila de Vacaria, em apenas catorze anos, a Capela

Curada de São Paulo da Lagoa Vermelha fora elevada à freguesia, distrito e sede municipal.

Quando se fala em esferas político-partidárias no primeiro e no segundo Império,

convém lembrar que no século XIX os partidos não tinham a mesma configuração que tem na

atualidade. O sentido de agremiação de homens regidos pelos mesmos programas ideológicos

no início era apenas fachada. Era corriqueira a prática dos políticos saírem do Partido

Conservador e filiarem-se no Partido Liberal e vice-versa. Poucos foram fiéis a um

determinado princípio patidário143. O mais importante era quem conseguiria ocupar os cargos

públicos nas localidades. “O dever político tinha a ver não com o programa, mas com a

lealdade e, em última análise, a lealdade era pessoal.”144.

Para o homem comum do século XIX, em cada eleição, o que estava em jogo não era

o predomínio deste ou daquele partido, mas o atendimento dos seus interesses imediatos.

Havia durante o Império a vigência do bipartidarismo, onde o Partido Liberal e o Partido

142 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 23/02/1857. AHRS. 143 Sobre a estrutura partidária no Império, ver mais em: MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889) Panorama da história do Brasil no século XIX. Maringá: Eduem, 1999. Também: GRAHAM, Richard. Clientelismo na cultura política brasileira. Toma lá dá cá. Disponível em: www.braudelorg.br/paper.15.htm. Acessada em 13/12/2000. Outra leitura importante é: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Vida política no século 19: da descolonização ao movimento republicano. Porto Alegre: Ed. da Universidade UFRGS, 1991. 144 GRAHAM, Richard. Op. Cit p . 10.

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Conservador iam definindo a sua identidade. Sobre a representatividade dos liberais e

conservadores no jogo político do século XIX, José Murilo de Carvalho escreve:

Embora o sistema fosse bipartidário, os partidos não possuiam solidez e disciplina suficientes para sustentar o governo com base em pequenas minorias. Eram freqüentes as dissidências de caráter provincial, pessoal ou ideológico. Mais comum no Partido Liberal, o Conservador também não estava imune às fraturas. A maioria governamental precisava ser a mais ampla possível para reduzir o efeito das dissidência.145

No Rio Grande do Sul, nos anos subseqüentes ao término da Revolução Farroupilha a

atuação dos deputados provinciais era marcada por uma indefinição político-partidária. A

questão chave evidenciada nos discursos era reconstruir a economia gaúcha de base

agropecuária, prejudicada com as ações bélicas. Assim mesmo, entre os parlamentaristas

gaúchos havia dois grupos claramente distintos: os liberais e os conservadores146.

Entre os anos de 1852 e 1856, a presidência da câmara municipal de Vacaria era

exercida pelo capitão Manoel Thomaz Gonçalves147, fazendeiro com terras na localidade do

Serrito. O abastado proprietário enviava correspondências à presidência da província

reivindicando a remoção da sede da Vila de Vacaria para Lagoa Vermelha, pretendendo fixar

lá a administração da câmara. As suas justificativas para tal reivindicação eram restrições que

impossibilitavam os vereadores de se reunirem em sessão. Esses empecilhos, de acordo com

Manoel Thomaz Gonçalves, eram de caráter geográfico dentro do município. Argumentava

ele que por ser bastante extensa a área municipal, com seus habitantes muito dispersos, além

dos rios, especialmente o vale das Antas, e outros menos caudalosos como o rio Santa Rita

que cruzavam a região e que no inverno ficavam cheios inviabilizando a travessia, acabava

por transformar-se em elemento condicionante da atividade política e administrativa da

câmara municipal de Vacaria. No ano de 1852, Manoel Thomaz Gonçalves já notificava ao

145 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume -Dumará, 1996 p.370. 146 Sobre a trajetória dos partidos políticos no Rio Grande do Sul durante o Império ver: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Op cit. 147 Nas atas de formação da mesa paroquial de Lagoa Vermelha no ano de 1857 consta o nome do capitão Manoel Thomaz Gonçalves. Como não encontramos no restante da documentação este tipo de referência, inferimos que Thomaz Gonçalves pertencia aos quadros da oficialidade da Guarda Nacional, como a maioria dos fazendeiros lagoenses e vacarianos.

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desembargador João Luis de Sinimbu, então presidente da província, as ausências dos

vereadores nas sessões presididas por ele:

Em data de 18 do mês pretérito oficiei a V. Excia participando que não me tinha sido possível reunir a Câmara para a segunda sessão ordinária que devia ser no dia 19 de maio e tendo nesta mesma ocasião marcado o dia 16 de junho para a dita sessão igualmente faltaram todos os vereadores agora me vejo de novo precisado de levar ao conhecimento de V. Excia a terceira falta dos mesmos pois que havendo marcado o dia 11 do presente só compareceu um vereador. Não sei, Exmo Senhor, a que atribuo tantas e tão repreensíveis faltas e sinto que tenho de não convocá-los mais (...) conheço que baldados são os meus esforços a fim de reunir a Câmara, tendo até pedido por favor a sua reunião. Nestes termos aguardo as salutares providências de V. Excia por sua ilustração e tino administrativo, porá fim a tantos escândalos, para então mancharem os trabalhos da Câmara com a devida ordem de regularidade. Deus Guarde a V. Excia muitos anos. Vila de Vacaria, 16 de julho de 1852. Manoel Thomaz Gonçalves - Vereador Presidente da Câmara.148 (grifos nossos)

A análise dos ofícios das câmaras municipais enviados ao governo central no período

em apreço pode apontar indícios capazes de revelar mais a respeito do cotidiano das

localidades enquanto unidades político-administrativas do Império. Os pequenos

acontecimentos, aparentemente sem importância, também, proporcionam a recuperação de

elementos importantes na composição das elites, evidenciando os princípios norteadores da

ação dos chefes políticos locais. São dados importantes que permitem a reconstituição da

complexidade de diferentes conjunturas e que, via de regra, são desprezados em análises

históricas tradicionais que priorizam as macro-estruturas. A propósito, convém observar o que

Ginzburg afirma:

A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis dentro das quais aquele vivido se articula.149

148 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 16/07/1852. AHRS. 149 GINZBURG, C. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p.178.

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Correspondências das autoridades municipais; debates da Assembléia Legislativa ; atas

de qualificação de votantes; documentos do judiciário, especificamente inventários e

processos crimes; registros paroquiais e autos de legitimação de terras são apenas alguns

exemplos de fontes primárias que podem ser levadas em conta na tarefa de reconstituir o

“vivido” de determinadas comunidades dentro de uma temporalidade específica e à luz da

nova historiografia.

No caso de Vacaria, nas correspondências enviadas pelo legislativo local ao presidente

da província por toda a década de 1850, constam sempre dois conjuntos distintos de

assinaturas, evidenciando as duas esferas políticas existentes em Vacaria. Esta constatação,

aliada a fala dos vereadores manifestada nos mesmos documentos escritos pode ser o

indicativo de que havia entre os legisladores locais duas tendências, um grupo conivente com

os interesses de Manoel Thomaz Gonçalves e outra facção oposta à conduta política deste

presidente da câmara. Este não poupava argumentos para notabilizar a necessidade da

elevação do povoado de Lagoa Vermelha à condição de distrito e freguesia. Os opositores de

Thomaz Gonçalves eram liderados pelo vereador Theodoro de Souza Duarte.

Em 23 de fevereiro de 1853, Manoel Thomaz Gonçalves solicitava ao presidente da

província, Dr. João Luis de Sinimbu a criação de dois distritos no município vacariano: “para

a comodidade de seus habitantes, a vista da longa distância de suas habitações a esta vila e

para que neles possa haver melhor policiamento.”150 Os distritos seriam: um na Capela de São

Paulo da Lagoa Vermelha e outro na Costa da Serra que segue para Laguna, os mesmos

ficavam a aproximadamente 12 léguas distantes da Vila de Vacaria. O chefe municipal

argumentava que sua reivindicação era justificável para o bem-estar dos vacarianos, de forma

genérica. Na fala de Manoel Thomaz Gonçalves, percebe-se que ele procurava convencer o

presidente da província de que a urgente criação do distrito de Lagoa Vermelha era o desejo

unânime dos habitantes de Vacaria.

O objetivo maior de Manoel Thomaz Gonçalves, na verdade, era transferir a

administração municipal para a vizinha povoação lagoense. Este foi o ponto de discórdia na

câmara municipal. Enquanto o apelo fixava-se na criação do distrito, praticamente, não havia

discordância entre os vereadores quanto a esta necessidade. A maioria dos legisladores

150 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 23/02/1853. AHRS.

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vacarianos passou a fazer oposição ferrenha a Manoel Thomaz Gonçalves quando este

declarou as suas reais intenções, que não se limitavam à instituição de um novo distrito, mas

ao simultâneo rebaixamento de Vacaria. Em outras palavras: pela vontade política daquele

chefe local, Lagoa Vermelha deveria ser elevada à vila ao passo que Vacaria retornaria à

condição de simples distrito. As correspondências oficiais daquela localidade, enviadas ao

governo provincial no período analisado aqui, atestam bem esta situação de descompasso na

política local.

Na mesma correspondência de 23 de fevereiro de 1853, os vereadores incluíram uma

manifestação por escrito dos representantes dos moradores da capela de São Paulo da Lagoa

Vermelha insistindo na urgência da criação daquele distrito. Em outubro de 1854, os mesmos

vereadores reiteraram as suas reivindicações quanto à criação do distrito de Lagoa Vermelha

em ofício enviado à presidência da província.

A Câmara municipal da Vila de Vacaria (...) resolveu pedir a V. Excia a criação de um distrito na Lagoa Vermelha o qual estando na circunstância de ser Freguesia por ser já uma povoação maior de 60 casas, tem além disto uma Igreja decente (sic), boa praça, ruas alinhadas e comércio; e no caso de V. Excia atender a tão justo pedido, a Câmara espera a brevidade desta criação, elevando V. Excia a povoação de Lagoa Vermelha a categoria de Freguesia com a denominação de Freguesia de São Paulo da Lagoa Vermelha (...). Quanto a criação de mais distritos a Câmara julga por aval desnecessário, e de pouca vantagem. Deus Guarde V. Excia por muitos anos. Paço da Câmara municipal da Vacaria em sessão ordinária de 24 de outubro de 1854. Manoel Thomaz Gonçalves, vereador presidente; Pedro O. Gez; Theodoro de Souza Duarte; João Francisco Gomes; Antonio Silveira dos Santos e Manoel Antonio da Paixão Filho.151 (grifo nosso)

Cópias deste ofício foram remetidas por Manoel Thomaz Gonçalves à Assembléia

Legislativa em outubro e novembro de 1857. Naquela ocasião, os deputados provinciais

discutiam a lei n. 337, de 16 de janeiro de 1857 que estabeleceu a remoção da sede da vila de

Vacaria para Lagoa Vermelha. Enviando a cópia deste documento de 1854 contendo a firma

da maioria dos vereadores vacarianos concordando com a criação do distrito de Lagoa

Vermelha, porque a localidade tinha toda a infra-estrutura para ser elevada àquela categoria,

151 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 24/10/1854. AHRS.

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Manoel Thomaz Gonçalves acreditava estar provando que promover a criação daquele distrito

e sua posterior emancipação não era um desejo somente seu.

Pelas correspondências enviadas por Manoel Thomaz Gonçalves ao legislativo

provincial, infere-se que este fazendeiro empenhava-se para a criação da Freguesia de Lagoa

Vermelha porque tinha propriedades naquela área que futuramente integrou o município

lagoense. Neste sentido, o chefe local percorria determinadas residências em Vacaria e

propagava as suas intenções de lutar pela criação do novo distrito. Certamente, tinha uma boa

oratória aliada a um considerável poder de convencimento junto aos habitantes do município,

depois de externar sua posição, o vereador presidente colhia assinaturas dos homens que

acatavam a idéia da criação da nova freguesia. Com isso, Manoel Thomaz Gonçalves

aumentava sua rede de aliados em toda a área municipal. O “abaixo-assinado” acompanhava

as correspodências reivindicatórias do vereador presidente152. Além de propriedades, o

fazendeiro tinha um círculo maior de pessoas dependentes de seus favores e que residiam na

povoação de Lagoa Vermelha. É o caso, por exemplo, da indicação que o fazendeiro influente

podia fazer para o preenchimento de cargos públicos nas localidades, como delegado e

subdelegado de polícia 153. Durante o Império, via de regra os interesses pessoais muitas vezes

se sobrepunham às reais necessidades de uma região.

O intento do vereador presidente de Vacaria encontrava respaldo entre alguns dos

deputados provinciais em Porto Alegre. Esta situação outorgava- lhe um considerável poder de

barganha frente aquela assembléia. Havia uma reciprocidade de int eresses entre Manoel

Thomaz Gonçalves e o deputado Antonio José Moraes Junior154, que em 1854 ocupou o posto

de segundo secretário da Mesa Diretora da Assembléia Provincial. Provavelmente, eram do

mesmo partido, ao menos comungavam dos mesmos interesses políticos. Em outubro de

1854, entrou em discussão o projeto de lei n.10, propondo a elevação à freguesia a capela de

São Paulo da Lagoa Vermelha. O assunto figurou na pauta dos debates na Assembléia

Provincial por quatro sessões daquele mês.

152 Conforme Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 23/02/1857. AHRS. 153 Ver nota n. 104 do primeiro capítulo. 154 O deputado Moraes Júnior ocupou uma das 30 cadeiras do legislativo provincial em 1854 e 1857. Opositor político do deputado Antônio Ângelo Cristiano Fioravante, do Partido Liberal. Por esta peculiaridade, infere-se que Moraes Junior fosse do Partido Conservador.

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Projeto de lei nº 10: A Assembléia Legislativa decreta: Art. 1º) Fica elevada á categoria de freguesia, com a mesma denominação e com as prerrogativas que pertencem as outras da província, a capela de São Paulo da Lagoa Vermelha, no município de Vacaria. Art 2º) O pároco respectivo terá a côngrua e guisamentos que competem aos demais da província. Art. 3º) O presidente da província marcará os limites d’esta freguesia, que submeterá à aprovação d’esta assembléia.155

Depois de subemtido à discussão pelos deputados provinciais, este projeto de lei não

obteve os votos necessários para a sua aprovação. A capela curada de Lagoa Vermelha

somente foi elevada à categoria de freguesia, praticamente três anos depois, no dia 17 de

fevereiro de 1857, por força da Lei n.358.

2.4 A PERSONIFICAÇÃO DO PODER EM VACARIA

A partir de 1854, algumas correspondências da câmara municipal da Vacaria eram

assinadas por um grupo de vereadores presididos por Manoel Thomaz Gonçalves, enquanto

que outros ofícios continham a firma de Theodoro de Souza Duarte além de outros

legisladores que, numa espécie de boicote político, não compareciam às sessões marcadas

pelo primeiro. Felisberto Telles de Souza, João José Dutra, Delfino de Paula Nery e Manuel

Pereira Bueno foram os vereadores que se mostraram descontentes com a idéia da remoção da

sede da vila para Lagoa Vermelha. Logo aliaram-se a Theodoro de Souza Duarte na causa

contrária a transferência da sede municipal para Lagoa Vermelha.

Fazendeiro com propriedade no Capão Alto, serra das Antas, Theodoro de Souza Duarte

era integrante de família tradicional nos Campos de Cima da Serra, bisneto de José de

Campos Branderburg, primeiro proprietário da fazenda do “Socorro”. Casou-se com sua

prima Herculana Borges Vieira, descendente do doador do terreno em que se iniciou o 155 Jornal “Tribuna Rio-Grandense”, vol II nº 3, Sexta-feira, 13/10/1854. 4ª sessão ordinária em 10/10/1854. CPDHPRS.

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povoamento de Vacaria. A união matrimonial entre primos era corriqueira entre famílias

tradicionais na região dos Campos de Cima da Serra. Casar-se com um parente próximo era

uma estratégia de famílias que representava a manutenção do sobrenome e a preservação das

propriedades rurais, elementos que conjugados convertiam-se no sustentáculo do poder de

famílias tradicionais.

Theodoro de Souza Duarte exerceu a vereança no município vacariano nos anos de 1852,

1854 e 1855156, quando presidiu o legislativo local, foi membro da mesa paroquial para

qualificação de votantes em Vacaria nos anos de 1857 e 1858. Além destes cargos públicos,

este fazendeiro, também, era capitão da Guarda Nacional da Terceira Companhia em Vacaria.

Compondo a oficialidade da Guarda, este fazendeiro tinha equiparidade de forças com o seu

opositor, Manoel Thomaz Gonçalves.

Não raras vezes, em localidades interioranas do Império, as funções públicas eram

combinadas com altos postos da Guarda Nacional, sendo atributo de abastados donos de

terras. Fazendeiros e comerciantes mais ricos formavam o quadro de oficiais da Guarda no

âmbito local. “De 1831 a 1873, a Guarda Nacional tinha a seu encargo quase todo o

policiamento local além de constituir poderoso instrumento de controle da população livre e

pobre pelos chefes locais.”157

Desde a época colonial, pertencer aos quadros oficiais de primeira linha era o indicativo

de prestígio social. O oficial da Guarda Nacional era equiparado ao oficial de linha em

importância, por isso tinha vantagens semelhantes. Se o contexto democrático da primeira

fase da Guarda Nacional158 não permitiu o aparecimento de pretensões de nobreza entre o

efetivo da corporação, no Segundo Reinado esta situação mudou completamente. Depois de

1850 os altos cargos da Guarda passaram a ser equiparados aos postos oficiais do Exército.

Não raro, os primeiros eram agraciados com o título de barão, o mais cobiçado na escala

nobiliárquica do Império brasileiro.

156 Ver Evolução Político-Administrativa de Vacaria e Lagoa Vermelha – Anexo A. 157 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume -Dumará, 1996 p.142. 158 Conforme Sérgio Buarque de Holanda, a época compreendida entre 1831 e 1850 correspondeu a primeira fase da Guarda Nacional. Este período costuma ser chamado de período de “Menoridade”, quando a Guarda atuou diretamente na campanha da pacificação nacional. Holanda utiliza a expressão “milícia cívica” como sinônimo de Guarda Nacional. Ver mais em: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral da civilização brasileira . São Paulo: Difel, 1985. v. 4 p.291

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Quanto mais alta a posição ocupada na hierarquia da Guarda, maiores privilégios tinha o

oficial daquela corporação. Não pelo retorno financeiro, já que eram funções não

remuneradas, mas pelo reconhecimento do seu “poder de mando” por parte dos moradores da

sua localidade e do governo central em especial em épocas de eleição. A condição de

abastados donos de terras combinada com os cargos oficiais da Guarda Nacional outorgavam

a esses mandatários locais o controle quase que absoluto de uma população inteira nas vilas.

Sobre este aspecto, Sérgio Buarque de Holanda escreve:

O reconhecimento de condições de nobreza entre a oficialidade da Guarda Nacional se foi reafirmando a partir de 1848, à medida que a milícia se foi aristocratizando, como corporação das classes mais abastadas, sobretudo nos fins do Império.159

À medida que os quadros dirigentes da Guarda Nacional passavam por esse processo

de “aristocratização”, reafirmava-se nas localidades a personificação do poder em torno do

oficial civil. As modificações determinadas pela reforma da Guarda Nacional no início do

Segundo Reinado refletiram diretamente, na vida política municipal e provincial, tanto mais

que permitiu às forças políticas a utilização da Guarda como agente de politização partidária.

O município de Vacaria foi emancipado, exatamente, nesta fase de redimensionamento

funcional da Guarda Nacional, quando ampliaram as atribuições da corporação nas

localidades. A presença da Guarda no cotidiano dos municípios do Império criou vínculos

estreitos entre a corporação e a comunidade. Na câmara de vereadores de Vacaria, os capitães

Manoel Thomaz Gonçalves e Theodoro de Souza Duarte foram exemplos típicos da força de

oficiais sem soldados mas com amplos poderes sobre uma população civil, no caso, os

vacarianos.

A ambigüidade de forças na câmara de vereadores de Vacaria convertia-se na

debilidade do funcionamento dos seus trabalhos. Por falta de quorum, diversas sessões

daquela instituição foram transferidas ou suspensas. A ausência de vereadores aos trabalhos

no Paço Municipal, mesmo após notificados pelo presidente do legislativo local, entravava as

159 Idem p.291.

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deliberações competentes àquela câmara. É lícito supor que as faltas dos vereadores às

sessões ocorriam porque não havia, ainda, entre eles a consciência de serem homens públicos

representantes políticos de uma coletividade, no caso, os habitantes de Vacaria. Na prática o

que prevalecia naquele município eram os interesses individuais. O trabalho em conjunto com

os demais vereadores em prol do bem comum de sua comunidade estava longe de ser

concretizado nos Campos de Cima da Serra.

Em setembro de 1852, já no terceiro ano de funcionamento daquela câmara, o então

vereador presidente de Vacaria, José Luis Teixeira oficiava ao vice-presidente da província

que alguns membros da câmara não cumpriam com os seus deveres públicos. São dele as

seguintes palavras: “Alguns vereadores se tem subtraído as mais necessárias reuniões da

mesma câmara, mal grado os reiterados convites que lhes tenho feito. Destarte se acham em

completo desleixo os negócios deste município...”160

Dois anos depois, em 1854, prosseguiam as faltas de quorum nas sessões no Paço

Municipal de Vacaria. Este comportamento dos vereadores vacarinos, ausentando-se das

reuniões na câmara indica que os negócios particulares daqueles políticos, via de regra, eram

colocados acima dos interesses da coletividade que eles representavam. É o que se pode

constatar nesta correspondência enviada por Manoel Thomaz Gonçalves vereador à

presidência da Província:

Não tendo sido possível reunir-se a Câmara municipal desta vila, em sessão ordinária no dia 24 de julho próximo passado por causa do tempo invernoso, e rios cheios; marquei o dia 25 do corrente e ainda não houve número para dar sessão, e recorrendo eu a lista da Eleição conheci, que não é possível reunir a Câmara, por quanto estando a maior parte dos vereadores impedidos por seus empregos públicos os suplentes que devem ser chamados moram a tão longas distâncias que impossível é a junção em tempo de a Câmara poder reunir-se (...) esta Câmara jamais poderá trabalhar em tempo, e cumprir com seus deveres pelos motivos acima ponderados e por que a falta de vereadores residentes na Vila, ou sua proximidade faz com que deixe de haver sessões no tempo próprio, e quando as há são feitas, com as maiores sacrifícios e dificuldades.161 (grifo nosso)

160 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 10/09/1852. AHRGS. 161 Correspondências das Autoridades Municipais da Vacaria, 27/09/1854. AHRGS.

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A incidência de chuvas nos meses de inverno, freqüentemente, ocasionava enchentes,

quando os rios ficavam instransponíveis. Isso acabava impedindo o deslocamento dos

vereadores até o Paço Municipal, mesmo em dias de sessões. Não bastasse a condição

climática dos Campos de Cima da Serra, outra dificuldade para o bom andamento dos

trabalhos deliberativos nas câmaras era que os homens da política em Vacaria, habitualmente,

acumulavam funções públicas. Um vereador muitas vezes, também, era delegado ou

subdelegado de polícia, inspetor de quarteirão ou juiz de paz. Exemplo disso era o caso do

vereador Narcizo Paim de Andrade, em 1852 compôs a câmara municipal e, ainda, era

subdelegado do termo em Vacaria. João José Dutra, também, era vereador e segundo mais

votado para juiz de paz em Lagoa Vermelha. O próprio Manoel Thomaz Gonçalves assumiu

como juiz municipal e órfãos além de juiz de paz de Vacaria. O capitão Theodoro de Souza

Duarte assumiu cargos públicos simultaneamente a sua vereança. Em 1857, foi o mais votado

para a mesa paroquial de qualificação dos votantes em Vacaria.162

Como já foi mencionado no primeiro capítulo, Manoel Thomaz Gonçalves reunia em

torno de si as características do coronel, que intermediava a relação entre o poder privado e a

população. A figura do chefe local expressava um componente do particularismo regional que

auxiliava a política centralizadora do Estado. Em épocas de eleições para vereadores e juízes

de paz, a força do voto proporcionava- lhe prestígio político, numa espécie de “coroamento”

de sua distinta situação sócio-econômica de fazendeiro. Assim, o coronel exercia “uma ampla

jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes,

verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitam.”163

E, com certeza, era grande o número de pessoas que contavam com o amparo

clientelista de Manoel Thomaz Gonçalves. Como já mencionamos no primeiro capítulo, o

chefe municipal enviava ao presidente da província a indicação de nomes para ocupar cargos

públicos no caso da criação do distrito de Lagoa Vermelha.164 O grupo de protegidos que

vivia dos favores daquele mandatário, certamente, não tinha perspectivas de progressão

econômica pessoal, se habituaram a depender daqueles favores. Não tinham possibilidades de

alterar esta situação. Porque os únicos benefícios que aqueles recebiam nas suas existências

eram provenientes da ação do chefe local.

162 Conforme Ata da formação da mesa paroquial da qualificação dos votantes de Nossa Senhora da Oliveira de Vacaria. AHSAP-RS. Ver mais detalhes no Quadro de Referências – Anexo B. 163 LEAL, Victor Nunes. Op. Cit. p . 23. 164 Ver nota n. 104 no primeiro capítulo.

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Sobre esta relação de dependência que se estabelecia entre o rico fazendeiro e o

humilde peão ou capataz nas localidades interioranas do Rio Grande do Sul oitocentista, Luis

Augusto Farinatti escreve:

As amarras de dependência que os ligavam a seus patrões eram bastante fortes. Serviam aos estancieiros nos seus campos em tempos de paz, e partiam com eles para as inúmeras guerras em que os habitantes da província se viram envolvidos ao longo do século XIX. Afinal, muitos dos estancieiros eram também chefes militares locais, e sua capacidade de arregimentar pessoal sob o seu comando era um símbolo de poder reconhecido em todo o território sul-rio-grandense.165

Ao presidente da província, por sua vez, não restava outra alternativa senão ser

conivente com a rede de influências que se estabelecia via coronel. A situação de isolamento

das localidades, a precariedade nas vias de comunicação e a distância entre as comarcas

favorecia o estabelecimento de relações coronelísticas no interior do Rio Grande do Sul. Além

do mais, é preciso lembrar que na época imperial, o presidente provincial era um homem de

confiança do Ministério. A autonomia que tinha como “carro-chefe” do poder no âmbito da

província era relativa, porque era um homem que, enquanto ocupante de um cargo público de

alto escalão no governo provincial, ficava a mercê das estratégias políticas dos membros da

Corte, no Rio de Janeiro, quando decidiam pela sua permanência ou substituição.

A situação de instabilidade na presidência da província pode ser medida pela grande

circulação de homens neste posto político num curto espaço de tempo. Na década de 1850, no

Rio Grande do Sul, ocuparam a presidência da província nada menos que doze pessoas166.

Sobre a limitada atuação do presidente de província no Brasil do século XIX, José Murilo de

Carvalho escreve:

... não tinha poder próprio, podia a qualquer momento ser removido, não tinha condições de construir suas bases de poder na província à qual era, muitas vezes

165 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Op. cit. p. 62. 166 Ver FORTES, Amyr Borges. Op. cit.

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alheio. No máximo, podia preparar sua própria eleição para deputado ou para senador.167

A debilidade operativa da presidência da província durante o Império contrastava com

a força do poder local, personificada na figura do abastado fazendeiro. Enquanto o presidente

da província não tinha poder próprio para administrar, governando de acordo com os

interesses do partido situacionista no plano ministerial, o chefe local, ao contrário, contava

com amplos poderes para deliberar sobre os destinos do seu município. E mais do que isso,

por uma rede de reciprocidades estabelecida entre as localidades e a capital da província, o

mandatário local tinha livre acesso entre os deputados provinciais, o que praticamente

garantia o atendimento de suas reivindicações.

A sessão de abertura dos trabalhos da câmara municipal em Vacaria foi marcada para

o dia 5 de fevereiro de 1855. Entretanto, não houve esta sessão porque o vereador presidente

Manoel Thomaz Gonçalves não compareceu. Na ausência do chefe local, assumiu a

presidência da câmara o mais votado entre os presentes, Theodoro de Souza Duarte. Este

convocou todos os vereadores para o dia 12 de fevereiro darem início às sessões ordinárias no

Paço Municipal. Cinco dias depois, mais uma vez reunidos ordinariamente, os vereadores

notificaram ao presidente da província, Dr. Sinimbu, a ausência do vereador Manoel Thomaz

Gonçalves àquela sessão, além da falta de documentos pertinentes ao funcionamento interno

daquela instituição pública que, na fala dos remetentes, teriam sido retirados pelo próprio

vereador:

Exmo Senhor, a Câmara não achou em seu arquivo as coleções das Leis Provinciais, que lhe consta terem sido levadas pelo dito presidente, nem o relatório de V. Excia à Assembléia provincial nesta sessão, nem ao menos a Lei de 20 de outubro de 1828 o Regimento das Câmaras. Neste estado pois se achou o seu arquivo que esta Câmara trata de organizar168.

167 CARVALHO, J. M. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual.” In: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 40, n. 2, 1997 p. 230. 168 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 17/02/1855. AHRGS.

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Esta correspondência, enviada no dia 17 de fevereiro de 1855 foi assinada por

Theodoro de Souza Duarte, João Francisco Gomes, Manoel Antonio da Paixão F°, Mâncio

Ivo da Fonseca, Manoel Ignácio Vieira, Antonio Silveira dos Santos, todos presentes naquela

sessão.

A leitura desta correspondência dá uma idéia da imagem que Manoel Thomaz

Gonçalves tinha da câmara municipal. Pela maneira que ele sentia-se à vontade para retirar

documentos importantes pertinentes ao funcionamento daquela instituição pública, infere-se

que o mandatário tinha a casa da câmara como um prolongamento de sua propriedade. O

longo tempo que Manoel Thomaz Gonçalves permaneceu encabeçando os trabalhos como

vereador presidente em Vacaria favoreceu para isso.

O grupo de vereadores presididos em caráter extraordinário por Theodoro de Souza

Duarte, na mesma sessão do dia 17 de fevereiro de 1855, aproveitou para enviar outro ofício

ao presidente da província manifestando o seu total inconformismo quanto à conduta política

de Manoel Thomaz Gonçalves, ausente naquela reunião. Afirmavam eles que o último não

tinha interesse no bom funcionamento das sessões daquela câmara municipal porque ele

mesmo costumava faltar nos dias designados, “dando-se destarte e talvez de propósito motivo

a tais faltas, levando-as depois ao conhecimento de V. Excia adulterados por tão injustamente

se poder argüir esta câmara. O fato ocorrido na presente sessão ordinária, (...) ainda confirma

a mesma verdade.”169 A correspondência prossegue com sérias acusações ao vereador Manoel

Thomaz Gonçalves:

Tanto mais persuadida está a Câmara do que leva dito, que ela esperava (sic) a V. Excia que o mencionado presidente é um influente e muito interessado na intriga de que esta povoação seja rebaixada da sua categoria de Vila, (...), porém, Exmo Sr, ela esperava e protesta a V. Excia (...) da Vacaria e nem as suas autoridades merecerem tão infame e áspero tratamento. Não duvida esta Câmara que erros se hajam cometido por ignorância e falta de prática em uma vila tão recentemente criada, acrescendo a isto a cobiça de vários aventureiros e rábulas, que por desgraça do lugar aqui tem parado , mas o que espera é que as suas autoridades se têm errado é na boa fé, e que nem uma tem prevaricado, e rendido à justiça. Deus Guarde a V. Excia. Paço da Câ mara municipal da Vila de Vacaria em sessão ordinária, 17 de fevereiro de 1855. Theodoro de Souza Duarte, João Francisco Gomes, Manoel Antonio da Paixão F°, Mâncio Ivo da Fonseca, Manoel Ignácio Vieira, Antonio Silveira dos Santos.170 (grifos nossos)

169 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 17/02/1855. AHRGS. 170 Idem.

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Aqui fica evidente que os vereadores reconheciam a força do poder pessoal de Manoel

Thomaz Gonçalves na região. Mais do que isso perceberam que a intenção do fazendeiro era

elevar a povoação de Lagoa Vermelha para o seu benefício próprio. O rebaixamento do

município de Vacaria evidenciava o desejo de Thomaz Gonçalves de neutralizar as

possibilidades de atuação política e até mesmo o favorecimento pessoal dos demais

vereadores que residiam na sede do município. Ao contrário de Theodoro de Souza Duarte,

como já foi dito, Manoel Thomaz Gonçalves não era de família tradicional de Vacaria e

residia na povoação lagoense, local onde concentrava suas propriedades e seus cabedais,

elementos que conjugados lhe conferiam considerável prestígio social. Na condição de chefe

local, o abastado fazendeiro identificava-se mais com Lagoa Vermelha, a “sua terra”, do que

Vacaria, então sede municipal e lugar onde atuava como vereador e presidente da câmara.

Outra questão que vem à tona neste documento expedido pela câmara de Vacaria é o

sentimento de rivalidade política que começou a ser notabilizado entre vacarianos e lagoenses.

Muito logo os descompassos entre os vereadores de Vacaria extrapolaram o âmbito das

sessões da câmara, e passaram a adquirir contornos mais amplos, atingindo um maior número

de pessoas residentes naquela região e transformando-se num sentimento de competitividade

entre os habitantes de Vacaria e Lagoa Vermelha.

O presidente da província, tão logo recebeu a correspondência de 17 de fevereiro

acusando Manoel Thomaz Gonçalves, oficiou ao vereador vacariano solicitando a sua posição

frente àquelas denúncias. Apontado como o “motor das irregularidades e faltas de suas

sessões”171, o vereador se defendeu:

É menos verdadeira a gratuita acusação que essa Câmara (ou antes alguns de seus vereadores) fez contra mim, por quanto seria mais acertado que eles se acusassem reciprocamente (...), a fim de que tal Câmara marche dentro da linha de suas obrigações, melhor cumpra com seus deveres...172

171 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 3/05/1855. AHRGS. 172 Idem.

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Manoel Thomaz Gonçalves argumentava que tinha provas que justificavam sua

ausência na sessão de 31 de janeiro, ocorrida por motivo de doença, o que, segundo ele era

“raríssimo” acontecer nos últimos dois anos em que presidiu a câmara. As faltas cometidas,

segundo ele, eram involuntárias e esporádicas. Pelas palavras do chefe local ele estava sendo

vítima de calúnias proferidas pelos seus próprios colegas de vereança. No mesmo envelope

enviado no dia três de maio, o vereador dirigiu outra correspondência ao presidente da

província noticiando que em convocação extraordinária da câmara municipal para a posse dos

novos juízes municipais, dos sete vereadores, compareceram somente dois. Mais uma vez a

sessão fora transferida por falta de quorum. As constantes faltas dos vereadores às reuniões

ordinárias em Vacaria, ainda que involuntárias, na prática significavam entraves às

deliberações naquele Paço Municipal. Esta situação reforça a tese de que naquela sociedade

serrana as questões pessoais dos vereadores, a maioria fazendeiros, estavam acima dos

interesses da coletividade que eles representavam politicamente.

2.5 VACARIA X LAGOA VERMELHA: DISPUTA PELA PRIMAZIA LOCAL

O início do ano de 1857, registrou a remoção da sede da vila de Vacaria

“arbitrariamente” para a povoação de Lagoa Vermelha, elevada à freguesia em 17 de

fevereiro de 1857. No dia 16 de janeiro daquele ano, a Assembléia Legislativa aprovou e o

presidente da província sancionou a Lei Provincial de número 337. Era o coroamento das

artimanhas políticas de Manoel Thomaz Gonçalves:

Art. 1º - Fica pertencendo a comarca de Porto Alegre o município da Vacaria. Art. 2º - A sede da vila deste nome fica removida para a capela de São Paulo da Lagoa Vermelha, com a denominação de Vila de Lagoa Vermelha.173

173 Lei n. 337 de 16/01/1857. Leis da Província do Rio Grande do Sul 1853-1857. AHRGS.

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Os efeitos da Lei 337 repercutiram como uma bomba na câmara municipal de Vacaria.

Imediatamente, os vereadores vacarianos representados pelo então presidente da câmara, José

Luis Teixeira rejeitaram a idéia e inconformados reclamaram ao presidente da província que

voltasse atrás na decisão. Transferir a sede municipal para a capela curada da Lagoa Vermelha

e mudar o nome do município de Vacaria para Vila de Lagoa Vermelha, no pensamento

daqueles vereadores foi uma atitude precipitada e infeliz. Neste momento de indignação o

bairrismo 174 falou mais alto entre os vacarianos.

No dia 23 de fevereiro, a câmara municipal de Vacaria reuniu-se em sessão

extraordinária. O teor desta reunião pôde ser medido num longo manifesto endereçado ao

presidente da província com cópia para a Assembléia Legislativa. No documento os

vereadores daquele município são diretos nos argumentos e iniciam nestes termos:

A Câmara municipal da Vila da Vacaria: como órgão de seus munícipes e a requisição dos mesmos, seria indigna de representa-los na mais fria indiferença se conservasse muda e quieta à vista da remoção desta Vila para a povoação da Lagoa Vermelha, que a digna Assembléia Provincial julgou de justiça e utilidade pública decretar. Não, Exmos Srs, os vacarianos sempre briosos jamais trepidarão na obediência às leis e autoridades constituídas, e fiéis às instituições do País, não hesitarão em mostrar-se sempre dignos da consideração do governo.(...). A Câmara, pois, vai expor a V. Excia com aquela franqueza que lhe é característica, a causa motriz da remoção desta vila para a povoação da Lagoa Vermelha e quanto de injustiça sofre este novo, mas esperançoso município com tal medida.175

O manifesto prossegue, com palavras carregadas de indignação, onde os remetentes

lembram que a povoação de Lagoa Vermelha localizava-se na extremidade do Mato

Português, portanto, a 50 léguas da outra extremidade do município, enquanto que Vacaria

situava-se bem no centro da área municipal, portanto, bem mais acessível aos habitantes que

precisassem buscar os recursos necessários para a sua sobrevivência e, ainda, num tom

apelativo, apontam: “Os gêneros são aqui mais baratos que na Lagoa Vermelha. O pessoal

para todos os empregos é aqui indubitavelmente maior.”176

174 Sentimento extremado de defesa da sua comunidade, do seu lugar de existência. 175 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 23/02/1857. AHRGS. 176 Idem.

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Ao mencionarem que entre os vacarianos havia mais habitantes qualificados para os

cargos públicos, os vereadores apresentavam outra versão àquela formulada por Manoel

Thomaz Gonçalves em 1856, quando este chamava a atenção do governo e da Assembléia

provincial para o rápido desenvolvimento de Lagoa Vermelha, local de moradia de pessoas

indicadas por ele para os empregos177. A convicção dos vereadores na sua argumentação é

tamanha que os mesmos chegaram a afirmar com veemência: “Fica provado que tais

vantagens não pode (sic) oferecer aquela povoação, elevada em uma só ‘sessão da Digna

Assembléia’ à categoria de Distrito, Capela Curada, Freguesia e Vila !!!!”178

Nessa altura da correspondência, os remetentes passam, novamente, a proferir

acusações cada vez mais graves ao seu ex-vereador presidente, que, no pensamento deles, foi

o maior responsável pela remoção da vila para Lagoa Vermelha:

Há tempos que certo indivíduo morador neste município para seus fins tratou do rebaixamento desta Vila para o que formulou um = nós abaixo assinados = e angariou assinaturas de pessoas incultas algumas, e outras ignorantes; levou-o ao conhecimento da Digna Assembléia Provincial, esta julgou em sua sabedoria que a devia rebaixar, mas ressentidos outros de um tal procedimento, fixaram uma outra representação popular em maior número de assinaturas e obtiveram que esta vila fosse conservada em sua categoria o que foi devido ao Exmo Sr. Sinimbú e outras pessoas (...) aquele por não querer sancionar um projeto que a apreciava e estas por instruírem esse digno Brasileiro a cerca do nosso estado e precisões.179 (grifo nosso)

Estas palavras demonstram o clima de revolta que se estabeleceu no Paço Municipal.

Os vereadores afirmam, abertamente, que os projetos pessoais de Manoel Thomaz Gonçalves

foram colocados acima dos interesses dos vacarianos. No final do manifesto reforçam seus

apelos à Assembléia e ao presidente da província:

Exmo Srº, todo o bem, ou mal dos povos, provém dos bons ou maus governos que regem os seus destinos; e como esta Câmara tem perfeita convicção da integridade; e nobreza que há sempre presidido aos atos da vida pública de V. Excia pede respeitosamente a V. Excia seja revogada, ou suspensa tal transferência desta Vila

177 Ver capítulo 1 deste trabalho, nota n.104. 178 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 23/02/1857. AHRGS. 179 Idem.

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para a Lagoa Vermelha, tão prejudicial ao bem estar deste povo, como ofensiva de dignidade desta Câmara, como representante de seus direitos (...). Paço da Câmara municipal da Vila da Vacaria, em sessão extraordinária de hoje 23 de fevereiro de 1857. José Luís Teixeira – presidente; João José Dutra; Manuel Pereira Bueno; Daniel J. Ribeiro; Theodoro de Souza Duarte; Felisberto Telles de Souza; Delfino de Paula Nery 180. (grifo nosso)

A indignação dos membros da câmara municipal de Vacaria repercutiu na Assembléia

Legislativa. Tão logo o ofício de 23 de fevereiro chegou ao conhecimento dos deputados em

Porto Alegre, esquentaram os debates em torno da questão do desvilamento de Vacaria. Entre

os legisladores as opiniões divergiam. Enquanto o deputado Moraes Júnior, autor do projeto

n. 337 - transformado em lei – permanecia irredutível nos seus argumentos, outros membros

da Assembléia, como Antônio Fioravante181 retomaram o debate em torno da polêmica Lei n.

337, determinando a remoção da sede municipal para Lagoa Vermelha. Apesar da distância

que separava os municípios dos Campos de Cima da Serra da capital sul-rio-grandense, e da

morosidade nas informações no contexto do século XIX, havia uma sintonia nas posições

políticas entre os homens do poder público local e os membros da Assembléia Legislativa,

instituição centralizadora das deliberações no âmbito provincial.

Já foi dito que havia uma reciprocidade nas ações do vereador vacariano Manoel

Thomaz Gonçalves e o deputado Moraes Júnior. Existia a mesma parceria política entre o

vereador Theodoro de Souza Duarte, de Vacaria e o liberal Antônio Fioravante, legislador em

Porto Alegre. Este comportamento é, perfeitamente, perceptível na leitura criteriosa dos

ofícios da câmara municipal de Vacaria e nos debates da Assembléia Provincial. Cruzando as

informações destes documentos é possível chegar a esta constatação com segurança.

Em junho de 1857, a câmara municipal de Vacaria enviou nova correspondência à

Assembléia Provincial reiterando seus pedidos de revogação da Lei n. 337. Munindo-se de

fortes argumentos, apontavam que os vereadores moravam longe da povoação de Lagoa

Vermelha e tinham que transpor dois rios caudalosos que no inverno ficavam cheios e não

davam passagem. Alegavam eles que era, materialmente, impossível desempenhar o mandato

na estação chuvosa, como, também, era impossível transferir o arquivo, cofres e objetos da

180 Idem. 181 Dr. Antônio Ângelo Cristiano Fioravante era bacharel em Direito pela Faculdade de São Paulo. Integrou o Partido Liberal. Foi deputado provincial em 1846, 1847 e 1857.

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câmara, os cartórios forenses e os presos detidos na cadeia em Vacaria, “quando nada se acha

preparado para esta mudança, nem há necessidade de a fazer numa estação imprópria,

sofregamente, e com a maior despesa.”182 Os vereadores destacavam que antes de se fazer a

remoção era necessário certificar-se da infra-estrutura de Lagoa Vermelha, verificando a

existência e o estado das casas na nova sede, não só para as sessões, cadeia e arquivo, mas

para audiência e hospedagem de juízes e reunião do Júri. Encerram o ofício reforçando o seu

apelo:

Todas estas razões obrigam esta Câmara a demorar a transferência material da sede municipal para a Lagoa Vermelha e é para esta sua resolução que pede e espera a benigna e justa aprovação de V. Excia. Deus Guarde a V. Excia. Paço da Câmara municipal da Vacaria em sessão extraordinária, 16 de junho de 1857. José Luís Teixeira, presidente; João José Dutra; Manuel Pereira Bueno; Daniel J. Ribeiro; Theodoro de Souza Duarte; Felisberto Telles de Souza; Delfino de Paula Nery.183

O choque de interesses entre os moradores da Capela de São Paulo da Lagoa

Vermelha e os moradores da Vila de Vacaria ficou evidente conforme relatório do vice-

presidente da província em 11 de outubro de 1857. O então presidente da província, Patrício

Correia da Câmara através de correspondências procurava serenar os ânimos dos vereadores

apelando para que confiassem plenamente nas deliberações da Assembléia Legislativa

Provincial. Como já foi dito, no jogo político, o presidente da província era quem menos tinha

o poder de decisão quanto aos destinos dos municípios gaúchos. Mesmo assim, teoricamente,

ocupando o cargo de condutor político do Rio Grande do Sul, procurava mediar a situação de

inconformismo que se instalou em Vacaria.

Ainda, em outubro de 1857, o deputado provincial Antônio José Moraes Junior entrou

com um projeto de lei propondo a divisão do termo da Vacaria formando com o termo de

Passo Fundo184, uma outra comarca. Era este o teor do discurso de Moraes Junior em 1857:

182 Correspondências das Autoridades Municipais de Vacaria 16/06/1857. AHRGS. 183 Idem. 184 A exemplo de Lagoa Vermelha, Passo Fundo começou a ser efetivamente povoado por luso-brasileiros a partir da abertura do “Caminho das Missões” ou “Caminho Novo da Vacaria”. Em 1834 Passo Fundo passou a constituir o 4º distrito de Cruz Alta, desmembrado de Rio Pardo. A Lei Provincial nº340, de 28/01/1857 instituiu o município de Passo Fundo. A primeira câmara municipal foi instalada em 07/08/1857. Sobre a história deste município ver em: OLIVEIRA, Francisco Antonino Xavier e. Annaes do município de Passo Fundo. Coord. Por

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Vós todos, Srs, tereis por certo uma lembrança que a idéia da remoção da sede do termo da Vacaria para Lagoa Vermelha foi bem aceita por esta casa, sem a menor oposição. Deveis também ter em lembrança os destinos que tiveram lugar, e mesmo o desrespeito contra a lei que partiu da assembléia. Houve alguém que declarou ser capaz de esgotar a última gota de sangue se não conseguisse do governo da província a revogação da lei.185 (grifo nosso)

Ao contrário do que afirmou na tribuna, o projeto de Moraes Junior suscitou opiniões

contrárias desencadeando debates fervorosos na Assembléia. Alguns se colocavam a favor do

projeto e outros, como o deputado Antônio Ângelo Cristiano Fioravante eram bem

categóricos ao manifestar o repúdio ao projeto de Moraes Junior. Pelas alianças que os

deputados faziam com os vereadores nas localidades, infere-se que as disputas políticas pela

primazia regional que se estabeleceram entre os vereadores Manoel Thomaz Gonçalves e

Theodoro de Souza Duarte repercutiram, diretamente, nos seus aliados da Assembléia

Provincial. Se em Vacaria havia o enfrentamento de forças entre estes fazendeiros, em Porto

Alegre as rivalidades constituíram-se entre Moraes Junior e Antônio Fioravante.

Na 6ª sessão ordinária da Assembléia Legislativa Provincial, realizada em 24 de

outubro de 1857, o deputado Fioravante justificava a sua oposição ao projeto, no seguinte

discurso:

Seria nesta ocasião bastante útil que alguém esclarecesse a um bisonho, a um ignaro como eu, quais as boas razões e fundamentos, que teve o ilustre autor deste projeto para elevar Vacaria à vila, quais as razões que teve para posteriormente rebaixá-la a freguesia. (...) Não quero com isso dizer que de um momento para outro não possam haver mudanças, mas quero que me concedam também que era mais provável que a Vacaria, no tempo em que progredia, tivesse um proporcional aumento de desenvolvimento do que de decadência. (...)É pois evidente que a Vacaria não poderia ter, Srs., a não ser invadida por alguma

Marília Mattos (e outros). Passo Fundo: Gráfica e Editora UPF, 1990. DIEHL, Astor A. (Org). Passo Fundo: uma história, várias questões. Passo Fundo: EDIUPF, 1998. 185 DEBATES da Assembléia 3ª sessão ordinária de 19/10/1857. Correio do Sul. Porto Alegre, 28/10/1857. CPDHPRS.

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circunstância extraordinária de força maior, sofrido decrescimento: ao contrário, por via de razão e ordem deveria ter crescido, aumentado.186 (grifo nosso),

Nos seus argumentos, o deputado Fioravante, natural de Santo Antônio da Patrulha,

chamava a atenção para o fato de que, antes da votação da lei que rebaixou Vacaria e elevou

Lagoa Vermelha, deveria haver na Assembléia uma “madura reflexão”. A idéia teria de ser

bem discutida entre os parlamentares já que os rumos dos municípios rio-grandenses eram

traçados de acordo com as deliberações no âmbito da Assembléia Provincial. No parecer do

deputado Fioravante pode-se perceber o seguinte:

E a Vacaria que depois de ser elevada a vila, depois de ter entrado no uso e gozo de seus direitos, quando a Lagoa Vermelha não era mais do que uma obscura capela, nem isso ainda, um agregado de casas de capim, pauapicadas onde se demoram os tropeiros (...) o que ficou sendo depois que a lei provincial criou vila a mesma Lagoa Vermelha, mudando a sede daquela?187 (grifo nosso).

Neste discurso, Fioravante contesta a tese que Manoel Thomaz Gonçalves apresentara

em 1854, na qual aquele vereador afirmava que Lagoa Vermelha era uma povoação de mais

de 60 casas alinhadas, com igreja bem construída e com todas condições de ser elevada à

Freguesia 188. A argumentação de Fioravante, ainda, encontrava respaldo no fato de, segundo

ele, Lagoa Vermelha não possuir o número mínimo de cidadãos “aptos” a desempenhar as

funções de tabeliães, coletores e outros agentes públicos, além de trabalhar como jurados. Era

preciso no mínimo saber ler e escrever para ocupar estes cargos. E, segundo o legislador,

Lagoa não poderia ser um termo porque não preenchia os quesitos necessários e de

conformidade com a lei, como por exemplo, a quantidade mínima de 96 pessoas nessas

condições de preencher as funções públicas.

186 DEBATES da Assembléia 6ª sessão ordinária de 24/10/1857. Correio do Sul. Porto Alegre, 28/10/1857. CPDHPRS. 187 DEBATES da Assembléia 6ª sessão ordinária de 24/10/1857. Correio do Sul. Porto Alegre, 28/10/1857. CPDHPRS. 188 Correspondência da câmara municipal de Vacaria de 27/10/1854.

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A conveniência de se elevar uma freguesia a vila estava diretamente relacionada a

criação de novos cargos públicos nas localidades. Sobre esta prática comum na época

imperial, Véra Barroso escreve:

A elevação à vila, à comarca, criava automaticamente cargos, os quais, não tanto pelos ordenados, mas pela posição social que delegavam constituíam-se para estes, outros elementos designatários de seu alto ‘status’ político. Era o reforço, o coroamento da sua alta posição social. Assim, para estes proprietários, a vereança, o juizado ou pertencer à Guarda Nacional granjeava um posicionamento de destaque na vila. Era uma forma de solidificar o poder econômico com a capa da força do poder político.189 (grifo nosso)

A criação dos municípios de Vacaria e Lagoa Vermelha e sua posterior extinção não

foram casos isolados na história político-administrativa deste estado. Somente na região

Nordeste do Rio Grande do Sul houve mais dois casos semelhantes. O antigo povoado de São

Francisco de Paula de Cima da Serra foi por três vezes emancipado e extinto outras duas

vezes190, isto tudo num período de pouco mais de duas décadas. Outro exemplo típico foi a

história da emancipação política do município litorâneo de Torres. Desmembrado de

Conceição do Arroio em 1878, o município de São Domingos das Torres191 foi extinto em

1887. Três anos depois, em 1890, foi novamente criada esta unidade político-

administrativa.192

Após vários debates, os deputados provinciais entraram num consenso e aprovaram a

Lei nº 391, de 26 de novembro de 1857, através da qual tanto Vacaria quanto Lagoa Vermelha

retornariam a sua ex-sede, Santo Antônio da Patrulha. Tudo leva a crer que foi o desfecho

mais aceitável em meio a tantas polêmicas. Entretanto, a aprovação da Lei nº 391 acabou 189 BARROSO, Véra Lúcia Maciel. Vacaria foi distrito de Santo Antônio da Patrulha. In: KRAMER, Anamaria de Lemos (Orgs). Raízes de Vacaria. Porto Alegre: EST, 1996 p. 85. 190 Em 1878 esta localidade foi emancipada para no ano seguinte ser extinto o município e anexado a Santa Cristina do Pinhal e Bom Jesus da Taquara do Mundo Novo, para ser novamente extinto em 1889. No mesmo ano o Ato n. 26 determina a elevação de São Francisco à vila, que foi mais uma vez extinta três anos depois. Finalmente o Decreto 563 estabeleceu a definitiva criação do município de São Francisco de Paula. 191 Primitivo nome do município de Torres. 192 Conforme FELIZARDO, Júlia Netto. Evolução Administrativa do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Instituto Gaúcho de Reforma Agrária. s/d. A freqüência com que eram criados e posteriormente extintos os municípios deste estado, especialmente na região Nordeste, (área recortada para este estudo) durante o Império e posteriormente, na Primeira República, é um fenômeno que merece um estudo acadêmico específico, pelas lentes da nova historiografia. E as correspondências oficiais das câmaras municipais juntamente com os debates da Assembléia Legislativa são fontes primárias importantes que podem ser utilizadas para este fim.

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demonstrando que o empecilho de ordem geográfica, que forçava o desvilamento de Vacaria,

revelou-se insignificante frente às pretensões políticas do legislativo provincial. Esta situação

mais uma vez confirma que os interesses privados muitas vezes se sobrepunham aos

interesses públicos.

Vereadores lagoenses e vacarianos passaram a reivindicar junto ao governo provincial

a remoção da sede municipal para a sua localidade. Após várias discussões na Assembléia

Legislativa, os deputados provinciais optaram pelo retorno das duas povoações à antiga sede

municipal Santo Antônio da Patrulha, ainda no ano do desvilamento de Vacaria. O ano de

1857, foi caracterizado por uma série de conflitos no interior da elite da região nordeste, que,

como já vimos anteriormente, era composta, basicamente, de fazendeiros que direta ou

indiretamente estavam envolvidos na estrutura administrativa destas localidades, ocupando

cargos públicos como juízes de paz, delegados, subdelegados, inspetores de quarteirão,

vereadores, etc.

Por força de lei, Santo Antônio da Patrulha reincorpora Vacaria e Lagoa Vermelha

como seus distritos. No mesmo ano de 1857, o município patrulhense perde toda a faixa

litorânea em decorrência da emancipação da Vila da Conceição do Arroio, que passou a

abranger as povoações de Torres, Maquiné e Palmares193. Este desmembramento significou

uma sensível diminuição da arrecadação de Santo Antônio da Patrulha, que na época recebia

mais rendas da faixa litorânea que dos distritos da serra. A vila de Conceição do Arroio

destacava-se na produção de aguardente, gênero com lugar de destaque na lista de

exportações da região além de geradora de altas somas para o município, portanto, era natural,

que os vereadores patrulhenses reclamassem ao presidente da província a perda deste

importante reduto arrecadatório194.

A situação político-administrativa de Vacaria e Lagoa Vermelha só encontrou

estabilidade em 1881, quando o município lagoense foi definitivamente desmembrado de

Vacaria. De 1850, data da primeira emancipação de Vacaria até 1881 foi um longo período

em que esteve em jogo a primazia regional. Esta disputa envolveu personagens proeminentes

como fazendeiros vacarianos e lagoenses que ocupavam posição de grande prestígio político e

193 Lei n. 401 de 16/12/1857. Leis da Província do Rio Grande do Sul 1853-1857. AHRGS. 194 Correspondências da câmara municipal de Santo Antônio da Patrulha ao presidente da província em 1858. AHRGS.

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agiam como verdadeiros mandatários locais em contraposição às autoridades judiciárias e

policiais, respectivamente instituídas para garantir o cumprimento das leis e preservar a ordem

nas localidades. Este confronto de forças nos Campos de Cima da Serra muitas vezes assumia

proporções de crimes com repercussões no âmbito provincial e até nacional, como o atentado

sofrido pelo delegado de polícia de Vacaria, capitão João Pereira de Almeida, em 1857 e o

assassinato do juiz de direito Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, em 1870. As

circunstâncias em que ocorreram estes dois crimes, no caminho entre Vacaria e Lagoa

Vermelha, revela o descompasso entre o público e o privado e a violência contra as

autoridades policial e judiciária constituídas, situação bem presente no cotidiano daquelas

localidades na segunda metade do século XIX. Este será o assunto do terceiro capítulo.

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3 CRIME E PODER EM VACARIA E LAGOA VERMELHA

A disputa pela primazia regional evidenciada em meados do século XIX, no interior

das elites políticas de Vacaria e Lagoa Vermelha, repercutiu amplamente naquelas

localidades, excederam a esfera da câmara municipal e adquiriram caráter de extrema

violência. O atentado sofrido pelo delegado de polícia, capitão João Pereira de Almeida, em

1857 e o assassinato do juiz de direito Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, treze anos

depois, em 1870, são ilustrativos desta trama de poder que se estabeleceu naquela região.

Estes dois crimes ocorridos nos Campos de Cima da Serra evidenciaram um fenômeno que se

cristalizou nas relações sociais dos municípios do Império que é o da dicotomia entre o

público e o privado. Entre os anos de 1850 e 1880, o cotidiano das localidades serranas foi

marcado por momentos de extrema violência contra a autoridade pública policial e judiciária,

eram estratégias que objetivavam preservar o poder de mando, atributo dos abastados

fazendeiros.

3.1 GRAVES REPERCUSSÕES DO JOGO DE PODER LOCAL

Os ressentimentos políticos entre vacarianos e lagoenses não ficaram limitados à

esfera da câmara de vereadores ou ao âmbito da Assembléia Provincial, como se viu

anteriormente. Assumiram novas proporções, à medida que a notícia do desvilamento de

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Vacaria foi chegando ao conhecimento dos moradores daquele município. As atitudes de

inconformismo dos vacarianos com a remoção da sede municipal contrastavam com o

sentimento de satisfação daqueles lagoenses que se empenharam para a aprovação da lei

provincial n.337, determinando a remoção da sede da vila para Lagoa Vermelha.

Esta situação de ambigüidade política nos Campos de Cima da Serra em que estava

em jogo a primazia regional foi o elemento motivador de discussões ásperas e até ações

violentas registradas na delegacia de polícia daquelas localidades. O clima de indignação

experimentado pelos vacarianos repercutiu entre os deputados provinciais em Porto Alegre.

Aqui mais uma vez os discursos parlamentares de 1857 são ilustrativos. Numa sessão da

Assembléia Legislativa Provincial em que se discutia a reação dos vacarianos e lagoenses

frente à remoção da sede municipal, o deputado Moraes Junior, autor do projeto que propôs o

desvilamento de Vacaria, expressava-se na tribuna: “Entretanto, o espírito de partido e

conveniências meramente individuais e egoísticas, produziram todos estes desatinos de que

temos notícia...”195 Moraes Junior referia-se aos distúrbios registrados nas duas localidades,

especialmente, depois de fevereiro daquele ano. Além de Moraes Junior, outros parlamentares

manifestaram-se diante desta situação196. Na sessão de 24 de outubro, novamente, a questão

do desvilamento veio à tona. Na oportunidade o deputado Fioravante expressou-se:

...sempre encarei esses atos e fatos como imediata conseqüência, como corolários de questões individuais, que superabundam em localidades, (...) que as vezes concorrem para desenvolverem-se odiosidades e dão pasto a ressentimentos, não me sendo pois estranho que na Lagoa Vermelha e mesmo na Vacaria tivesse aparecido fatos que a primeira vista parecem de origem política, ameaçando conflagrar até a ordem pública da nossa província.197

O acontecimento mais grave desenrolado naquela região, certamente, foi uma tentativa

de assassinato ocorrida em Vacaria, dia 27 de abril de 1857. Neste crime de grande

195 DEBATES da Assembléia. Correio do Sul, 20/10/1857. Porto Alegre. CPDHPRS. 196 Neste grupo de parlamentares estavam, além de Moraes Júnior, os deputados Antônio Fioravante, Manoel Pereira Ubatuba, Antonio Mariante, Israel Barcelos. Conforme DEBATES da Assembléia. Correio do Sul, 27 de outubro de 1857. Porto Alegre. CPDHPRS. 197 DEBATES da Assembléia. Correio do Sul, 20/10/1857. Porto Alegre. CPDHPRS.

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repercussão, a principal vítima fora o delegado de polícia 198 capitão João Pereira de Almeida.

A historiografia tradicional, praticamente, omitiu este fato criminoso ocorrido no calor das

discussões em torno do desvilamento de Vacaria. Na fase de revisão de literatura, encontrou-

se a referência deste atentado numa rápida passagem de um livro do lagoense Fidélis Dalcin

Barbosa. Segundo o escritor:

No dia 27 de abril daquele ano de 1857, o suplente de Delegado de polícia de Lagoa Vermelha, João Pereira de Almeida, indo a Vacaria para dar audiência, foi atacado de emboscada por 20 homens armados, que o perseguiram longamente, deixando-o ferido.199

Fidélis Barbosa chegou até a insinuar a ligação entre esta tentativa de assassinato e o

clima de animosidades estabelecidas entre vacarianos e lagoenses. No parágrafo anterior ao

relato deste crime, o autor tece um breve comentário a respeito da transferência da sede da

vila para Lagoa Vermelha e suas repercussões na região: “o fato originou uma série de

conflitos entre os dois povoados.”200 Entretanto, o escritor não aprofundou a discussão em

torno do violento acontecimento, relacionando-o com as questões políticas latentes nos

Campos de Cima da Serra. Mas para fins desta dissertação localizou-se o Processo Crime n.

846 no Arquivo Público do Estado do RS.

O ofício do historiador é pelas lentes do presente trazer à tona questões que não foram

bem explicadas pela história dita oficial. Assim, pareceu prudente percorrer a documentação

do Judiciário, depositada no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, no intuito de

fazer uma análise do referido Processo Crime em que foi vítima o delegado de polícia de

Vacaria. Com este objetivo chegou-se ao processo nº 846, de 167 folhas manuscritas, por

sinal, o mais extenso daquele ano. Numa primeira leitura do processo foi constatado que a

vítima deste atentado era delegado de polícia em Vacaria, e não Lagoa Vermelha, como

equivocadamente sugeria Fidélis. O equívoco do historiador pode ser justificado pelo fato da

sede municipal de Vacaria ter sido removida para Lagoa Vermelha em janeiro de 1857. 198 Em cada município do Império havia um delegado de polícia, submisso ao chefe de polícia da província. Cada paróquia contava com um subdelegado de polícia. 199 BARBOSA, Fidélis Dalcin. Vacaria dos Pinhais. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1978 p.31. 200 Idem.

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Na historiografia, é o vestígio textualizado a referência de um crime, mas é o

cruzamento de diversas fontes documentais que possibilitam a reconstituição de um quadro de

referências sócio-culturais que marcaram a sociedade de Vacaria e Lagoa Vermelha em

meados do século XIX. A análise do Processo Crime n. 846, das Correspondências Oficiais da

câmara municipal de Vacaria e dos Discursos Parlamentares de 1857, apontam indícios

capazes de revelar mais a respeito do sentimento de rivalidade instaurado entre vacarianos e

lagoenses num momento específico da história política destes municípios. As próximas

páginas ilustrarão, sob a forma narrativa, as circunstâncias em que aconteceu esta tentativa de

assassinato sofrida pelo delegado João Pereira de Almeida e sua relação com o contexto do

desvilamento de Vacaria.

3.1.1 1857: O crime nos Campos de Vacaria

Findava o mês de abril de 1857, quando em plena luz do dia uma tentativa de

assassinato foi registrada nas imediações na vila de Vacaria, região Nordeste do Rio Grande

do Sul. Uma emboscada no caminho entre a vila e o vizinho povoado de Lagoa Vermelha

deixara um saldo de três homens feridos. Entre as vítimas estava o delegado de polícia em

exercício, capitão João Pereira de Almeida que fora atingido por disparos de armas de fogo.

No mesmo dia o acontecimento foi registrado na delegacia de polícia do termo e as primeiras

providências legais foram tomadas no sentido de desvendar o crime: auto de corpo de delito

nos ofendidos, interrogatório feitos nos mesmos para apontar os culpados e a indicação das

testemunhas.

Este poderia ser apenas mais um ato violento nos Campos de Cima da Serra sem

maiores repercussões, resultando num processo de algumas páginas e que décadas depois

ficaria esquecido na memória dos vacarianos e lagoenses. Entretanto, as circunstâncias em

que o atentado fora cometido e as pessoas envolvidas direta e indiretamente nele tiveram

grande repercussão não só em termos locais, mas com reflexos no legislativo provincial.

Ressalta-se que o ocorrido foi num tempo em que os meios de comunicação limitavam-se a

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correspondências morosamente levadas ao seu destinatário, e quando muito aos escassos

periódicos impressos na época e que faziam com que as notícias chegassem aos leitores com

alguns dias de atraso Além do que numa sociedade de maioria analfabeta, como era o Rio

Grande do Sul do século XIX, poucos tinham acesso a informação escrita.

O delegado de polícia em exercício, capitão João Pereira de Almeida, um dos

atingidos no atentado de abril, era filho do tenente coronel Joaquim Pereira de Almeida e

Dona Francisca Julia Pereira de Almeida. A família Pereira de Almeida era formada de

fazendeiros e o fato de ser criador nos Campos de Cima da Serra, no século XIX e obter um

cargo de oficial da Guarda Nacional, como se viu, eram indicativos de pertencer à elite local.

Em 1857, João Pereira tinha 30 anos, era solteiro e trabalhava como criador no lugar

denominado “Estrela”, nas terras deixadas pelo seu falecido pai, além de ocupar o cargo de

delegado de polícia, 3º suplente em exercício de Vacaria.

No dia 27 de abril de 1857, pela manhã, o capitão João Pereira de Almeida viajava a

cavalo, como era de costume, para Vacaria, retornando de uma audiência em Lagoa

Vermelha. Acompanhando-o seguiam também montados, o ordenança Felício de Santiago e

seu escravo Fabiano. Mal o delegado imaginava que em instantes seria vítima de uma tocaia.

A certa altura do caminho, meia légua distante de Vacaria, João Pereira de Almeida foi

surpreendido por um bando de homens armados que o cercaram, deram-lhe voz de prisão e

lhes desferiram vários tiros. Depois de tantos disparos à queima-roupa, como os autos do

processo revelam, João Pereira de Almeida sobreviveu, embora tenha ficado gravemente

ferido e impossibilitado de reagir já que um dos tiros atingiu o seu braço direito.

Assim que o crime foi levado ao conhecimento do 4º suplente de delegado do termo

de Vacaria, Narcizo Paim de Andrade201, foi aberto o processo para apurar os responsáveis

pela emboscada. Através de notificação do juiz municipal de Vacaria, foram nomeados

peritos para examinar os ferimentos sofridos por João Pereira. Foram eles, o Dr. João Roberto

Simão e o cidadão Luiz Augusto Branco. Testemunharam o procedimento do exame João

Faustino de Oliveira e o policial José de Souza Jardim.

201 Substituto imediato de João Pereira de Almeida.

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No mesmo dia do atentado procedeu-se o auto de corpo de delito nas vítimas, detendo-

se mais tempo naquele que fora mais atingido pelos tiros, João Pereira. Neste os peritos

verificaram ferimentos graves feitos a bala na curva do braço direito, no lado esquerdo,

caroços provocados por chumbo, inclusive, registraram que a palha da aba do chapéu ficara

estraçalhada pelos tiros disparados à queima-roupa202.

Mas, afinal de contas, porque alguém desejaria a morte do capitão Pereira de

Almeida? Ele possuía inimigos? Os homens que lhe atacaram tinham a intenção de assassiná-

lo ou apenas lhe intimidar? Foi uma ação premeditada? Havia um mandante? Os motivos

seriam por questões de terra ou questões políticas? A investigação criteriosa do processo

aponta que as razões estavam intimamente ligadas com o clima de rivalidade no interior das

elites políticas locais. O capitão João Pereira de Almeida era irmão de Agostinho Pereira de

Almeida, homem atuante politicamente em Lagoa Vermelha, tendo participado de diversas

mesas paroquiais na eleição para juízes de paz naquela localidade. Agostinho, também, era

aliado político do fazendeiro Manuel Thomaz Gonçalves, oficial da Guarda Nacional e por

diversas vezes vereador e presidente da câmara em Vacaria.

Assim que foi aberto o Processo Crime, o escrivão interino, Antonio de Sousa Maia,

que registrou todos os passos da investigação até 25 de maio de 1857, solicitou ao juiz

municipal a sua substituição por motivo de doença. Os reais motivos dessa substituição não

ficaram bem esclarecidos. Estaria ele sofrendo ameaças? Haveria alguém interessado no seu

afastamento do caso ou teria ele ligações com os envolvidos no atentado? Imediatamente foi

nomeado para escrivão neste processo o cidadão Rodrigues Antonio Moreira. Os quesitos

para preencher a vaga eram morar na localidade e saber ler e escrever.

3.1.2 O depoimento da vítima e das testemunhas

No mesmo dia da substituição do escrivão, transcorrido quase um mês do atentado na

Vila de Vacaria, João Pereira de Almeida prestou depoimento na presença do delegado

202 Nos exames de auto de corpo delito realizado na época, todos os indícios de violência evidenciados inclusive nas vestimentas e objetos carregados pela vítima eram levados em conta e mereciam registros.

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Narcizo Paim de Andrade. Este procedeu ao interrogatório, perguntando se a vítima conhecia

as pessoas que o acometeram. João Pereira respondeu que:

... conhecia parte delas, entre as quais perfeitamente: O velho João de Moares Camargo, dois filhos do mesmo: Hermenegildo de Moraes e José de Morais. Conheceu mais Manoel Bento e Antonio Bento, filhos de Felisberto Telles de Souza, mais Manoel Rodrigues de Jesus, Agostinho de Siqueira, Manoel Domingues Vieira Francisco de Paula Felipe, Cândido José Maciel conhecido por ‘Candinho da Vilinha’, Domingues Teles da Silva, João de Anhaia, morador na Lagoa Vermelha, mais um camarada do já referido ‘Maneco Bento’, Ventura, irmão do polícia Luis, destacado nesta vila. Disse mais que tem uma leve idéia destes reconhecido a Francisco de Marques Antunes, Valério de Siqueira e Bernardino Antônio de Jesus. Reconheceu perfeitamente fazer parte da força que me acometeu.203

Prosseguindo o interrogatório, o delegado Narcizo indagou a que motivo João Pereira

de Almeida atribuía semelhante atentado, questionando se dentre todas essas pessoas que o

acometeram haveria inimigos? O interrogado manifestou-se afirmando que atribuía o atentado

sofrido por ele a desavenças originárias dos acontecimentos políticos recentes na região:

...intrigas surgidas das questões próximas findas nas quais ele trabalhou e se pronunciou pelo lado oposto de que esses agressores são submissos partidários, mas também os julgava ofendidos quão grandemente com certeza pela a remoção desta vila para a povoação de Lagoa Vermelha. Dentre estas pessoas que o tentaram assassinar tem por desafeto a Francisco de Paula Felipe, e contra os mais, nenhum motivo em particular tem de inimizade.204 (grifo nosso)

Não tendo mais perguntas a fazer, o delegado Narcizo deu por encerrado o

interrogatório. Terminado o depoimento, João Pereira de Almeida não pôde assinar, devido

aos ferimentos no seu braço direito. O interrogatório foi assinado pelo seu irmão, tenente

Agostinho Pereira de Almeida. Em seguida, foi expedido o mandato de prisão contra os

acusados.

203 Processo Crime 846, folha 14. APERS. 204 Idem.

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João Pereira de Almeida entendia que os criminosos eram aliados a pessoas influentes

politicamente na localidade e que se sentiram profundamente ofendidos com a remoção da

sede da vila para a capela de Lagoa Vermelha. Estranho o fato de a vítima ter sido inquirida

somente no dia 25 de maio, praticamente um mês depois do crime. Talvez tenha ficado

realmente com a saúde extremamente debilitada em virtude dos disparos sofridos.

No dia 27 de maio, dois dias após o depoimento da vítima, registrou-se o auto de

qualificação contra Manuel Domingues Vieira e Cândido José Maciel, apontados como

autores dos disparos que atingiram o capitão Pereira. Manoel Vieira era filho de Francisco

Domingues Vieira, tinha aproximadamente 32 anos, era casado e se ocupava com a profissão

de criador, desde que chegara em Vacaria, vindo das Missões. Cândido Maciel, por sua vez

tinha 35 anos, mais ou menos’205, era casado e vivia do seu trabalho e alguma criação, natural

de Vacaria, era analfabeto.

Nove pessoas serviram de testemunhas do atentado, entre os quais estavam Procópio

Manoel da Silva, 18 anos, paranaense, natural de Castro; Felício de Santiago, 40 anos mais ou

menos206, residente em Lagoa Vermelha, mas natural de São Borja e Joaquim Paz Maciel, 20

anos de idade207.

No seu depoimento, a primeira testemunha, Procópio Manoel da Silva revelou que no

dia 27 de abril pela manhã quando voltava da casa de João Orives, no caminho presenciou

uma descarga de tiros. Pouco depois viu um homem correr a todo o galope sendo perseguido

por três outros: Manoel Bento, Antonio Bento e Maneco das Almas. Estes homens gritaram

para ele atacar pela frente ao homem que vinham perseguindo. Atendendo ao pedido, ele

atacou ao referido homem, julgando que era um criminoso de morte conhecido como

“Martinho”. Mas quando percebeu que se tratava de um outro homem, deixou-o partir em paz.

Procópio indagou aos que o perseguiram a causa dos disparos, mas os autores não lhe

quiseram responder. Disse mais, que pouco depois viu que vinham correndo atrás do homem

205 Note-se a imprecisão na idade informada pelo depoente. Ele não tinha a certeza da sua própria idade. Esta era uma situação bastante comum à época. Processo Crime n. 846, folha 19. APERS. 206 Idem. 207 Também serviram de testemunhas: Manoel Thomé (...) branco, 26 anos mais ou menos, nascido no Paraná; Jacinto José dos Santos, 30 anos, paulista, morador de Vacaria; Antonio Machado, pardo, viúvo, nascido no Paraná e morador de Vacaria, Leandro Dias de Almeida, 35 anos, solteiro, natural de Curitiba. Além destes, os escravos Fabiano e Manoel, pertencentes a Manoel Mendes Guimarães.

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perseguido, muitos outros cavalheiros entre os quais ele, reconheceu Maneco Rodrigues,

Antonio Rodrigues, o velho Moraes, pai de Hermenegildo e João de Moraes, também estes

dois e mais Agostinho de Siqueira , um índio chamado Ventura, irmão do soldado Luiz da

Guarda Nacional destacado na vila de Vacaria. A testemunha falou que viu perfeitamente que

havia muitos outros homens, mas não pôde reconhecê- los por que estavam mais longe e

perseguiam a um outro acompanhante do capitão Pereira que fugia dos disparos.

Assim que chegou na vila, Procópio certificou-se de que as pessoas perseguidas eram

o capitão João Pereira de Almeida e seu escravo Fabiano, um ordenança do capitão, além de

um homem chamado Maneco Batalha. No final do seu depoimento, Procópio ainda revelou

que reconheceu entre as pessoas que atacaram o capitão Pereira, além dos já citados os

seguintes homens: Chico Marques, Bernardino Pato, João de Anhaia, Chico Felipe e Candido

de Tal.

Em seguida passou-se a inquirir a segunda testemunha, Felício de Santiago. Este

revelou que vinha de ordenança do capitão João Pereira de Almeida no dia 27 do mês de abril

estando já perto de Vacaria quando viu grande número de cavalheiros cercarem ao dito

capitão e lhe deram a voz de preso. Imediatamente lhes dispararam tiros de pistolas. Neste

ato, Felício reconheceu muitas das pessoas, entre os quais perfeitamente os dois réus

presentes, Manuel Domingues Vieira, conhecido como “Maneco das Almas” e Candido José

Maciel, por alcunha “Candinho da Vilinha” além de Chico Marques, Chico Felipe, um índio,

Bernardino Pato, Maneco Bento, Manoel Rodrigues, Antonio Rodrigues, o velho João de

Moares com seus dois filhos Hermenegildo e José, Agustinho da Siqueira, um índio Ventura,

irmão do soldado da Guarda Nacional de nome Luiz. As declarações desta testemunha

coincidiram com o depoimento de Procópio, primeiro declarante.

Perguntado sobre como ele, testemunha, pôde em tão pouco tempo reconhecer a tantos

indivíduos, respondeu que por ser ele morador neste lugar desde menino pôde reconhecer

perfeitamente a todos eles. Quando foi dada a palavra aos réus presentes, estes contestaram as

palavras de Felício de Santiago e disseram que o depoimento era falso.

A terceira testemunha, Joaquim Paz Maciel contou que vinha no dia 27 de abril, antes

do meio dia, buscar remédio na Vacaria, quando viu Maneco Bento, Antonio Bento e Maneco

Rodrigues perseguirem e atropelarem o capitão João Pereira de Almeida que galopava

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correndo para adentrar nesta vila. Naquele instante a testemunha ouviu uma descarga de tiros,

mas não pôde identificar os autores dos disparos. A testemunha ficou impedida de se afastar

de Vacaria sem participar ao juiz municipal. A qualquer momento Joaquim Paz Maciel

poderia ser novamente convocado para depor na delegacia.

Ouvidas todas as testemunhas, o delegado Narcizo Paim de Andrade, nomeado para

investigar o atentado, julgou procedentes o exame de corpo de delito, o interrogatório feito ao

ofendido, capitão João Pereira de Almeida, depoimento das testemunhas e informantes.

Dentre os mais de vinte homens que atacaram a vítima, foram bem reconhecidos pelas

testemunhas e vítimas um total de quinze pessoas, entre elas: João de Moraes Camargo,

Hermenegildo de Moraes, e José de Moraes, filho de João de Moraes Camargo, Manoel Bento

e Antonio Bento, filhos do vereador Felisberto Telles de Souza208.

3.1.3 O indiciamento dos acusados

O delegado julgou conveniente prender os acusados “Maneco das Almas” e

“Candinho da Vilinha”. Com base no depoimento das demais testemunhas, Narcizo Paim de

Andrade concluiu que embora não participando diretamente do atentado, também, foi

cúmplice da emboscada, com seus conselhos e instigações, José Joaquim de Castro.

Todos os acusados foram pronunciados como incursos209,e todos sujeitos à

julgamento, inclusive Manoel Bento e Antonio Bento, filhos do vereador Felisberto Telles de

Souza. O escrivão foi ordenado pelo delegado a expedir mandado de prisão contra os réus que

ainda não se achavam presos. No dia dois de junho o processo foi encaminhado ao juiz

municipal para que fossem tomadas as providências cabíveis.

208 Também foram reconhecidos como participantes no atentado: Manoel Rodriguez de Jesus, Bernardino de Jesus, vulgo “Bernardino Pato”, Antonio Rodrigues de Jesus, Agostinho de Siqueira, Francisco de Paula Felipe, Índio João de Anhaia, camarada de Francisco Felipe, Índio Ventura, camarada de Manoel e Antonio Bento, Francisco Marques Antunes, Manoel Domingues Vieira vulgo “Maneco das Almas”. Sobre o vereador Felisberto Telles de Souza, ver mais no Quadro de Referências – Anexo B. 209 Ver Artigos 34, 35 e 192 do Código Criminal vigente em 1857.

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No parecer do promotor público este crime foi praticado pelos réus impelidos por

motivos reprovados e frívolos. A promotoria foi categórica em afirmar que o fato criminoso

foi premeditado e não existia uma razão e nem “motivos justos” para tentar dar um fim em

João Pereira de Almeida. Nestes termos, pediu a condenação dos primeiros dezesseis réus, por

ter sido o crime revestido das circunstâncias agravantes conforme o Código Criminal vigente

na época. A acusação também recaiu sob o réu José Joaquim de Castro, que foi apontado

como cúmplice210.

Em julho de 1857, os presos Cândido José Maciel e João de Anhaia foram enviados

para a Cadeia Civil de Porto Alegre. Seis meses depois, em fevereiro de 1858, Vacaria e

Lagoa Vermelha já haviam retornado à condição de distritos de Santo Antônio da Patrulha.

Rebaixadas essas vilas, era necessário organizar os processos existentes nas delegacias de

Vacaria e Lagoa Vermelha para fazer a transferência dos autos, papéis e livros do arquivo

para a nova sede municipal.

A Lei n. 401, de 16 de dezembro de 1857 criou a comarca de Santo Antônio da

Patrulha, que abrangia os termos de Santo Antônio e Conceição do Arroio. O Rio Grande do

Sul ficou dividido em sete comarcas, cada uma com uma extensa área jurisdicionada, cujas

confrontações não coincidiam com os limites municipais211.

Em fevereiro de 1858, o delegado de polícia de Santo Antônio, Luiz Ignácio de Mello

Barreto212 solicitou uma revisão nos autos do processo que resultou na prisão desses dois réus,

já que estavam detidos há mais de seis meses sem jamais serem intimados de pronúncia, ou

qualquer outra ordem, que em direito pudessem legitimar a prisão, considerada pelo juiz como

inconstitucional e abusiva 213.

O chefe de polícia, João Guilherme d’Aguiar, na qualidade de maior autoridade

policial da província, em março de 1858, recebeu notificação do delegado de polícia de Santo

Antônio comunicando que havia desaparecido do cartório o sumário crime nº 846, instaurado

210 O promotor pediu a acusação dos indiciados no grau máximo do Art. 192 combinado com o Art. 35 do Código Criminal vigente em 1857. 211 Sobre o assunto, ver mais em: FÉLIX, Loiva Otero. Tribunal de Justiça do RS: 125 anos de história 1874-1999. Porto Alegre: Projeto Memória do Judiciário Gaúcho, 1999. 212 Era comum nas localidades do Império encontrar processos onde o delegado de polícia era também o juiz municipal. Sobre este aspecto, ver mais em: FÉLIX, Loiva Otero. Op. Cit. p.29. 213 Processo Crime n.846, folha 156. APERS.

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em virtude dos ferimentos feitos em João Pereira de Almeida. Do referido processo somente

foi encontrado no cartório um traslado214 do auto de corpo de delito feito naquela vítima. Em

vista do sumiço desses papéis, aliás, prática comum nas localidades brasileiras durante o

século XIX, o chefe de polícia enviou correspondência ao delegado de Santo Antônio

ordenando:

...cumpre que V. Sª com a maior urgência reunindo aquele traslado aos assentamentos que devem estar nos cartórios e que se referem ao antigo processo, trate de formar nosso sumário de sorte que não fique impune tamanho crime só porque a violência de outros criminosos, que também espero serão punidos, tentam frustrar a ação da justiça215.

Somente depois de reunidos os papéis solicitados pelo chefe de polícia, o delegado de

Santo Antônio da Patrulha teria os instrumentos necessários para interrogar os dois presos,

João de Anhaia e Candido José Maciel, que se achavam detidos na Cadeia Civil de Porto

Alegre até aquela data.

Feita a verificação nos papéis que restaram do processo, os presos foram

encaminhados até Santo Antônio para serem inquiridos pelo delegado de polícia do termo,

Luis Ignácio de Mello Barreto. No dia 30 de março de 1858, o delegado dirigiu o inquérito no

sentido de tentar esclarecer se a tentativa de assassinato estava vinculada as questões políticas

entre Vacaria e Lagoa Vermelha, em especial ao desvilamento de Vacaria. João de Anhaia

respondeu que não sabia se o capitão João Pereira de Almeida era estimado ou odiado pelo

povo da Vacaria.

No dia seguinte, foi a vez do preso Candido José Maciel ser interrogado se sabia da

reação do povo de Vacaria e Lagoa Vermelha no ano de 1857 por ocasião da mudança da vila

para Lagoa Vermelha. José Maciel respondeu que não sabia e que ouviu dizer que o capitão

João Pereira de Almeida foi acometido por vários homens que o tentaram assassinar. Não

sabia se o capitão gozava de simpatias no lugar porque morava longe e nem sabia se o

ofendido era amigo do capitão Theodoro de Souza Duarte.

214 Cópia do original. 215 Sumário Crime 846 folha 2 (apenso). APERS.

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3.1.4 O caráter político do atentado

No momento em que o delegado mencionou o nome do capitão Theodoro de Souza

Duarte, ficaram reforçados os fortes indícios da vinculação deste ato criminoso com o

desvilamento de Vacaria e a reação dos vereadores daquele lugar. O capitão Theodoro de

Souza Duarte era presidente da câmara municipal quando foi aprovada a lei que transferiu a

sede da vila para Lagoa Vermelha. Foi uma das pessoas que mais se sentiu lesada com esta

transferência, tratando logo de liderar o movimento de oposição ao desvilamento no âmbito

da câmara de vereadores. Poderia até pretender dar um susto em João Pereira de Almeida já

que este último havia se pronunciado favorável à remoção da sede municipal para Lagoa

Vermelha.

Em 1861, quatro anos depois do conflito político em Vacaria, o escrivão no Processo

846, Rodrigo Antônio Moreira remeteu correspondência ao juiz de direito da comarca de

Santo Antônio, Doutor Francisco de Souza Cirne Lima, informando que a testemunha

Joaquim Paz Maciel não fora escoltada quando do seu depoimento no processo que se

procedeu contra os que tentaram contra a vida do delegado João Pereira de Almeida. Rodrigo

Moreira, também, informou ao juiz que o delegado Narcizo Paim de Andrade, que investigou

o caso mandou algumas praças de linha para acompanhar a testemunha Manoel Thomé Freire

que tinha sido ofendido no mesmo ato em comum com aquele delegado, isto porque a mesma

testemunha reclamou quando foi citada, por que temia uma nova agressão em caminho de seu

sítio até a freguesia da Vacaria. O escrivão Rodrigo Moreira segue a sua correspondência

nestes termos:

Recordo-me especialmente das seguintes pessoas que estiveram presentes quando se procederam estas inquirições: O Ilmº Senº Doutor Juiz de Direito e Chefe de Polícia interino Mascarenhas com assessor do Juiz processante = Capitão Fulano Rozas = Tenente Fulano Camargo, e o Alferes José Maria Correa Vasques, oficiais estes que comandavam a companhia de Cavalaria de linha que veio de guarnição com o dito Ilmº Semº Doutor Juiz de Direito Mascarenhas; que veio manter a ordem

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e a tranqüilidade pública. Este último oficial sei o nome dele por inteiro por ter ficado algum tempo aqui destacado com algumas praças garantindo ao dito Delegado Cap. João Pereira de Almeida para não ser novamente assaltado. É o quanto posso informar a V. Sª a quem Deus Guarde por muitos anos! Freguesia da Lagoa Vermelha, 26 de junho de 1861. Rodrigo Antonio Moreira. Escrivão Interino.216

Causa estranheza o fato de que quatro anos depois do atentado de Vacaria,

permanecerem imprecisões quando à legitimidade do depoimento das testemunhas. Outras

dúvidas surgem na leitura da folha 165: Porque apenas uma testemunha do atentado dirigiu-se

para depor escoltado por praças de acordo com ordens do delegado Narcizo Paim de

Andrade? Haveria pessoas influentes interessadas em calar a voz das testemunhas no atentado

contra João Pereira?

De acordo com o depoimento do capitão João Pereira de Almeida, confirmado na fala

de algumas testemunhas, quinze homens foram apontados como participantes do tiroteio de

abril de 1857. Com exceção de “Candinho da Vilinha” e “Maneco das Almas”, todos os

demais suspeitos não foram presos. Infere-se que isso ocorreu por que os prováveis

envolvidos contavam com a proteção de pessoas influentes na localidade. O caso dos dois

filhos do vereador de Vacaria, Felisberto Telles de Souza é ilustrativo. Provavelmente,

Manoel Bento e Antonio Bento escaparam de ser presos porque seu pai, na qualidade de

abastado fazendeiro e capitão da Guarda Nacional, tinha amplos poderes de convencimento

até mesmo frente à autoridade policial instituída. Integrante da elite política de Vacaria, Telles

de Souza era, notadamente, um dos homens que personificava o poder na região serrana.

Em 1857, a tentativa de assassinato sofrida por João Pereira de Almeida pode ser vista

como resultado das animosidades desencadeadas entre vacarianos e lagoenses a partir do

desvilamento de Vacaria. A mola propulsora deste crime estava, portanto, intimamente ligada

ao momento político vivido pelos habitantes daquelas localidades serranas. Os interesses

pessoais e a concessão de favores sob o manto do clientelismo permeavam as relações sociais

tanto em Vacaria quanto em Lagoa Vermelha no século XIX, onde imponentes fazendeiros

acumulavam cabedais, que lhes conferiam o poder de controlar funções públicas e cargos de

destaque na Guarda Nacional, posições que conjugadas garantiam ao fazendeiro um lugar de

216 Processo Crime 846 folha 165. APERS.

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destaque naquelas comunidades. A situação de isolamento dos municípios do Império, como

já foi dito, favorecia para isso.

A Reforma do Código de Processo Criminal em 1841, criou o cargo de chefe de

polícia em cada província. Ao chefe de polícia estavam subordinados os delegados e

subdelegados, funções públicas não-remuneradas. Da mesma forma que os oficiais da Guarda

Nacional, os delegados e subdelegados eram autoridades patrimoniais recrutadas pela elite

local. No interior, a maioria das autoridades policiais era de fazendeiros que cobiçavam estes

postos oficiais para aumentar a sua rede de influências concedendo benefícios e proteção a

sua clientela.

Nos Campos de Cima da Serra, durante o século XIX, a ação da polícia esteve

diretamente vinculada aos interesses particulares dos mandatários locais. O desenrolar do

Processo Crime n. 846, que investigou a tentativa de assassinato contra o delegado João

Pereira de Almeida, deixando impune todos os acusados de participação que estavam

vinculados a elite política local revela a força do poder pessoal naquela região, sobrepondo-se

até mesmo à autoridade policial. Por isso, a presença do subdelegado de polícia e das praças

de linha em Vacaria e Lagoa Vermelha no século XIX, não atendia aos anseios de segurança

da população local.

3.1.5 Violência contra a autoridade

O atentado contra o delegado de polícia, João Pereira de Almeida, demonstrou que

nem mesmo os “homens da ordem” estavam imunes às arbitrariedades dos chefes locais.

Como já foi exposto no capítulo anterior, estabeleceu-se um jogo de forças no interior da elite

dos Campos de Cima da Serra. O delegado de Vacaria, capitão João Pereira de Almeida

tomou partido de uma das facções que disputavam a primazia regional. Aliou-se ao capitão

Manoel Thomaz Gonçalves, mentor do desvilamento de Vacaria e acabou pagando caro pela

sua opção política. Sofreu represálias daqueles que se sentiram lesados com a transferência da

câmara de vereadores para Lagoa Vermelha.

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Treze anos depois da tentativa de assassinato sofrida por João Pereira de Almeida,

outro crime de grandes proporções abalou a comunidade dos Campos de Cima da Serra. Em

1870, um grave fato criminoso resultou numa vítima fatal, o juiz de direito Antônio de Pádua

Holanda Cavalcanti. Desta vez, o violento acontecimento esteve ligado a um complexo

contexto político local que incluía as disputas de poder e os autos de legitimação das terras

daquelas localidades marcadas pela presença de fazendeiros que dispunham de uma complexa

rede de influência, como já foi mencionado no primeiro capítulo.

O assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti tem sido objeto de estudo

de historiadores que pesquisam sobre Lagoa Vermelha e Vacaria 217. Estes trabalhos são

importantes na medida em que oferecem ao pesquisador novas possibilidades de análise

histórica acerca deste fato aparentemente singular, mas que é capaz de elucidar aspectos

significativos que não foram bem explicados pela historiografia tradicional sobre os Campos

de Cima da Serra no século XIX.

Já foi dito que a apreciação de um único vestígio textualizado, no caso, as folhas

envelhecidas de um processo crime, não é o suficiente para reconstituir o vivido de uma

sociedade. Este exercício só é viabilizado através do cotejamento de diversas fontes

documentais. Com base na análise do Processo Crime 409 e na documentação do Fundo de

Polícia, as próximas páginas elucidarão, de forma narrativa, o violento acontecimento em que

fora vítima o Dr. Antônio Holanda Cavalcanti, revelando a posição da força policial e dos

oficiais da Guarda Nacional daque la região frente às circunstâncias deste assassinato.

217 Sobre o assunto ver mais em: MORAES, Demétrio Dias de. Brasil Grande e a história de Lagoa Vermelha. Lagoa Vermelha: Impressora Planalto, 1977. Também BRANCO, Pércio de Moraes. O assassinato, em Lagoa Vermelha, do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, de Santo Antônio da Patrulha. In: BENFICA, Corália Ramos (Org). Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Porto Alegre: EST, 2000. p.150. Outra leitura importante é o trabalho do pesquisador Marcos Witt ainda não publicado: WITT, Marcos Antonio e BRANCO, Pércio de Moraes. Novas contribuições acerca do assassinato do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. Comunicação apresentada no Encontro Raízes de Canela, de 20 a 24 de maio de 2000. Canela/RS. Original do autor (cedido).

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3.2 TERRA E PODER: O ASSASSINATO DO JUIZ MUNICIPAL DE LAGOA

VERMELHA

Iniciava o ano de 1870, quando os combatentes rio-grandenses sobreviventes da

Guerra do Paraguai retornavam para os seus municípios de origem. Parecia que, depois de

seis anos de batalhas em solo brasileiro e paraguaio, o cotidiano nas localidades interioranas

do Rio Grande do Sul voltava a sua normalidade. Nos Campos de Cima da Serra não foi

diferente218. Oficiais e subalternos da Guarda Nacional219 e do Exército paulatinamente

retomavam as suas atividades habituais. Porém, novamente o Nordeste do Rio Grande do Sul

voltou a ser o cenário de um crime bárbaro, a exemplo da tentativa de assassinato contra o

subdelegado de polícia de Vacaria ocorrido em 1857. Desta vez as repercussões tiveram

alcance nacional, dadas as qualidades tradicionais da família da vítima. O juiz de direito de

Lagoa Vermelha, Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti fora brutalmente assassinado.

Em fins da década de 1860, estabeleceu-se em Lagoa Vermelha com sua família, o

juiz pernambucano Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, formado na faculdade de direito

daquela província. Nomeado juiz municipal e de órfãos para Cruz Alta em 1865, no ano

seguinte, o Dr. Holanda Cavalcanti assumiu a mesma função judiciária em Santo Antônio da

Patrulha, onde permaneceu por dois anos consecutivos. No município patrulhense, em 1868 já

como juiz de direito fora transferido para Lagoa Vermelha220. O título de bacharel e a função

de magistrado tinham a mesma envergadura que os títulos nobiliárquicos, tão cobiçados pelos

bem-nascidos221 do século XIX.

218 Um grande contingente de rio-grandenses participou da Guerra contra o Paraguai (1864-1870). Dos Campos de Cima da Serra partiram o médico do Exército João Jorge Moojen, além dos combatentes Francisco Henriques de Carvalho, Manoel Baptista Pereira Bueno, Valeriano de Siqueira Borges, estes últimos sob o comando do Ten. Cel. João José Dutra, do 16º Corpo da Cavalaria da Guarda Nacional em Vacaria. Ver: OLIVEIRA, João Viterbo de. “Vacaria ontem, hoje e perspectivas de futuro”. In: KRAMER, Anamaria de Lemos (Org). Raízes de Vacaria I. Porto Alegre: EST, 1996. p. 119 - 159. 219 De inspiração francesa, a Guarda Nacional foi instituída pelo governo no período regencial para rebater as rebeliões urbanas manifestadas após a abdicação de d. Pedro I. Sobre a GN ver mais em HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). Op. cit . v. 4. Ver também CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma discussão conceitual.” In: Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: v. 40, n. 2, 1997, pp.229 - 250. 220 Conforme Fichário onomástico – juízes. AHRGS. 221 Expressão que denota todas as pessoas privilegiadas economicamente.

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No conjunto da sociedade intelectualizada do Império, notadamente, os magistrados

eram homens imbuídos de privilégios. Os juízes eram profissionais “ungidos para interpretar e

aplicar a legalidade estatal, garantir a segurança do sistema e resolver os conflitos de interesse

das elites dominantes.”222 Na tarefa de cumprir a lei e exigir o cumprimento dela por todos os

cidadãos, o Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti logo contraiu inimizades e desafetos

nos locais de sua atuação223. Tradicionalmente, como na maioria dos municípios do Império

brasileiro, o engavetamento ou mesmo o sumiço de processos crimes eram práticas comuns

no contexto da época. Suborno, impunidade, corrupção e mandonismo permeavam as relações

entre os magistrados e a sociedade civil nos Campos de Cima da Serra por todo o primeiro e

segundo reinado.

Prerrogativa da política tradicional, o mandonismo esteve presente desde a época

colonial brasileira. A própria organização político-administrativa do Império, outorgando

amplos poderes deliberativos as câmaras municipais, acabava por favorecer o surgimento e

manutenção de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder. Fator preponderante para o

desenvolvimento deste fenômeno era a situação de isolamento das localidades em relação aos

grandes centros administrativos. Sobre a noção de mandonismo, José Murilo de Carvalho

esclarece:

O mandão, o potentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aquele que, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedade política.224

Em 1841, houve a Reforma do Código de Processo Criminal, imprimindo um caráter

conservador ao Código. Por força desta Reforma, as funções policiais e judiciárias nas

localidades foram entregues aos delegados e aos juízes municipais. Estes eram nomeados e

subordinados ao chefe de polícia provincial, que por sua vez era designado e vinculado ao

Ministério da Justiça. As diretrizes descentralizadas que, em 1832 haviam balizado o Código 222 WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.90. 223 Conforme revela o Processo Crime n. 409, de 1870 e o Fundo de Documentação – Polícia (Santo Antônio da Patrulha) – 1870. APERS e AHRS respectivamente. 224 CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo , Clientelismo: Uma discussão conceitual.” Op cit p.232.

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de Processo Criminal, foram substituídas pela rígida centralização. “Reforçava-se com isso o

aparato burocrático da dominação patrimonialista ao longo do regime monárquico, em que o

exercício da Justiça era sustentado pelo mais absoluto policiamento judiciário.”225

3.2.1 Atuação do juiz X arbitrariedade da polícia

Os últimos dias de vida do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti revelam que a

sua atuação como magistrado nos Campos de Cima da Serra desestabilizava uma comunidade

historicamente marcada pela desmoralização da polícia, instituição representada por pessoas

que muitas vezes agiam sem o respaldo legal, práticas influenciadas diretamente pelas

estratégias dos fazendeiros locais.

Em julho de 1870, seriam apresentados ao juiz municipal do termo de Santo Antônio

da Patrulha, Antônio Cavalcanti, os presos Miguel José Maria, Manoel da Silva Padilha e

Felizardo Antônio para serem processados. Estes estavam detidos a mais de seis meses na

cadeia civil da capital, acusados por crimes de abigeato e resistência. Entretanto, ainda, não

haviam sido ouvidos pela autoridade competente. As prisões foram feitas no distrito da

Vacaria por ordem do alferes do Corpo Policial, Manoel Carlos de Carvalho Monteiro. Depois

de analisar os fundamentos dessas prisões, o magistrado oficiou ao chefe de polícia da

província em 18 de julho. No parecer do juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, estas

prisões não tinham base legal suficiente, motivo pelo qual ele expediu uma ordem de soltura

em benefício daqueles detentos. Neste ofício o juiz alegava que a redação da ordem de prisão

expedida pelo alferes Monteiro continha falhas. O policial narrava que houve resistência à

prisão de forma genérica, mas não especificou quem reagiu; também, havia defeitos quanto ao

registro do flagrante, não se observando o disposto no artigo específico do Código Criminal.

Diante disso, Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti escreveu de Lagoa Vermelha, em 18 de

julho:

225 WOLKMER, Antonio Carlos. Op cit, p.88.

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Como V. S. bem sabe, só é permitida a prisão antes da culpa, formada contra aqueles, que se acham indiciados em crimes inafiançáveis, portanto, clara está que a captura das pessoas mencionadas na dita parte do Alferes é a completa infração do artigo 145 do Código de Processo Criminal. (...) sou de opinião de que o dito Dr. Chefe de Polícia para considerar como base legítima de prisão daqueles indivíduos a referida parte do oficial militar, que fez as prisões, deveria exigir esclarecimentos mais amplos, ordenando que o Alferes desse uma parte mais circunstanciada.226

O magistrado criticou a atuação do alferes Manoel Carlos Monteiro, que no seu

entender ordenava as prisões sem base legítima. A manutenção de pessoas presas sem

respaldo legal, certamente, tinha uma intenção. Atitudes como esta do juiz, que tornava sem

efeito o motivo de prisões, provocou descontentamento em algumas pessoas influentes de

Vacaria e Lagoa Vermelha. Homens imbuídos de privilégios, com amplos poderes

reconhecidos pelos seus dependentes, mandatários que já estavam habituados a salvaguardar

exclusivamente os seus interesses, agindo muitas vezes na ilegalidade, sentiram-se,

diretamente, lesados com a conduta do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. No ofício

enviado ao chefe de polícia, o magistrado foi categórico ao delatar: “portanto, é evidente que

ainda mais uma vez a lei foi infringida.”227 No dia 31 de julho, treze dias depois de se

corresponder, oficialmente, com o chefe de polícia da província denunciando irregularidades

nas ações do policial em Vacaria, o juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti foi

assassinado.

Além das arbitrariedades da polícia de Lagoa Vermelha e Vacaria, frente as quais este

magistrado não se manteve indiferente, outros elementos poderiam ter provocado a

desestabilização de homens influentes. O andamento dos processos de medição de terras no

distrito da Vacaria, não agradou alguns fazendeiros que tiveram os seus interesses ameaçados

pela ação do inspetor geral e do juiz comissário 228.

Em 1870, dezesseis anos depois da institucionalização do Regulamento de Terras, o

juiz comissário de Lagoa Vermelha, na sua função de legitimar as posses, realizou uma

medição de campos no distrito da Vacaria. Conforme os autos do Processo Crime n. 409, uma

das partes interessadas nesta medição de terras invadiu e ateou fogo na casa de Romualdo

Antonio Alves, localizada na área demarcada e a ser legitimada. Depois do incêndio, o sogro

226 Correspondências Expedidas de Santo Antônio da Patrulha em 1870. Fundo Documental – Polícia. AHRGS. 227 Idem. 228 Juiz comissário foi um cargo criado no Regulamento das Terras em 1854.

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de Romualdo solicitou ao juiz municipal, Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti a vistoria

da casa arrasada. Atendendo a solicitação, no dia 25 de julho de 1870, o magistrado e o seu

assistente, Francisco Teixeira Guimarães deslocaram-se de Lagoa Vermelha e procederam ao

auto de vistoria na residência. A atitude do magistrado instigou a ira nos autores do delito,

provavelmente, interessados em apossar-ser das áreas ocupadas com a casa incendiada.

De acordo com o descrito no processo, o trabalho de vistoria terminou no sábado, 30

de julho. Depois dessa diligência, Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti e seu assistente

retiraram-se do local com destino à freguesia de Lagoa Vermelha:

O Dr. Juiz Municipal Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, atendendo o requerimento do Ten. Cel. Felisbino Antonio Alves, sogro de Romualdo, no dia 25 de julho de 1870 procedeu ao auto de vistoria na casa derrubada. O auto provocou raiva contra o Juiz que com o seu companheiro de viagem, Francisco Teixeira Guimarães se retiraram com destino à freguesia da Lagoa Vermelha, na noite de 30 de julho.229

A viagem era longa, normalmente, levava dois dias a cavalo. Estava anoitecendo e era

arriscado prosseguir viagem num caminho ermo e escuro, era uma noite fria, havia chovido e

o céu permanecia encoberto. Precavendo-se, de infortúnios, os viajantes pernoitaram na

estrada, na casa de Aurora Ignácia de Lima. Quando amanheceu o último domingo de julho,

bem cedo, Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti e Francisco Teixeira Guimarães retomaram

a viagem.

3.2.2 Uma emboscada no meio do caminho.

Às oito horas da manhã os cavaleiros já se aproximavam da lagoa conhecida como

“Lagoa Vermelha”, nas imediações da freguesia com o mesmo nome. A essa altura, num

relance, surgiram de um capão de mato, três homens montados, armados e mascarados com

229 Processo Crime n. 409, de 1870, folha 162. APERS.

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lenços. Os indivíduos cercaram o juiz Holanda Cavalcanti e passaram a atirar com suas

pistolas contra ele que não pôde reagir, já que estava desarmado na ocasião. Três tiros

certeiros tiraram-lhe a vida imediatamente, fazendo-o cair do cavalo. Enquanto os assassinos

atiravam, Francisco Guimarães implorava para que não matassem o magistrado. Não sendo

ouvido, disparou “a toda rédea” pela estrada afora procurando socorro. Como se não

bastassem os tiros que imobilizaram o juiz, os matadores ainda agrediram o rosto da vítima

com golpes de relhos.

Os assassinos vinham seguindo todos os passos do juiz. Sabiam onde ele e seu

assistente Guimarães haviam pernoitado, tinham conhecimento exato do caminho trilhado por

eles. Planejaram o assassinato e tiveram o cuidado de usar disfarces para não serem

reconhecidos. Atacaram num momento em que as vítimas estavam desarmadas e não havia

movimento na estrada. Roubaram do juiz uma grande quantia em dinheiro além de

documentos referentes a sua última diligência. A correspondência do promotor João Francisco

d’Aguiar Junior endereçada ao subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha atesta que os

assassinos, além de desferirem tiros de pistolas contra Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti,

“lhe roubaram uma bolsa contendo papéis, cerca de 24:000$000 réis em dinheiro e um

alfinete de brilhante”230. O crime foi praticado com premeditação e teve um mandante que

pretendia dar um fim na carreira do magistrado, ou então apenas intimidá- lo com uma boa

“sova” encomendada231.

O assistente Francisco Teixeira Guimarães entrou na primeira casa que avistou no

caminho. Era a sede da fazenda de Ignácio Bueno Candeia. Ali, muito assustado, a

testemunha ocular do crime relatou o acontecido com o seu companheiro de viagem e voltou

para seguir a trilha dos assassinos deixada na estrada, na tentativa de capturá-los. Mas como

estava sozinho, a busca foi infrutífera porque os criminosos já estavam bem longe dali.

Francisco Guimarães e Ignácio Candeia trataram de notificar o delegado e socorrer a vítima.

Chegando ao local do crime avistaram o corpo de Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti

estirado no chão junto ao seu cavalo que permaneceu encilhado. Observando o cadáver, logo

deram falta de um alfinete de brilhante que o juiz usava na ocasião além da bolsa que ele

carregava consigo a tiracolo na hora do crime. Na bolsa havia documentos referentes a sua

última diligência além da importância de 24 contos de réis.

230 Processo Crime n. 409, folha 162. APERS. 231 Idem folha 18. APERS.

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Resgatado o corpo, as primeiras providências foram tomadas pelo delegado de polícia

do termo, Ten. Cel. Francisco Antonio de Morais. Às duas horas da tarde do domingo na

presença do delegado e subdelegado de polícia, além do Ten. José Francisco Ribas, major

Dominiciano de Sousa Marques e Vicente Loureiro do Amaral que serviram de testemunhas,

o Dr. João Jorge Moojem procedeu ao exame de auto de corpo de delito no cadáver do juiz

Holanda Cavalcanti. O local da examinação foi a residência do Cap. João Soares de Barros.

Os peritos concluíram que a morte fora provocada por três tiros, sendo que o último disparo

atingiu o coração. Também, encontraram contusões na cabeça e constataram o poncho e o

pala, completamente, furados de chumbo. Interessante é a riqueza de detalhes com que os

peritos descreviam este tipo de exame, numa época em que poucos recursos havia na área de

medicina legal.

O sogro da vítima, capitão Diogo de Oliveira232 soube do crime na noite do dia 31 de

julho. No dia seguinte dirigiu-se para Lagoa Vermelha com uma força de dezesseis homens

armados, na certeza de capturar os assassinos. Na condição de oficial da Guarda Nacional,

Diogo de Oliveira conseguia, facilmente, mobilizar homens para agirem na defesa dos seus

interesses. Percebendo que o subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha não conseguia

localizar os assassinos, o capitão Diogo de Oliveira decidiu agir por conta própria. Mas não se

manteve indiferente frente ao desempenho da força policial daquela localidade. Denunciou ao

presidente da província a negligência do subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha,

Francisco Teixeira Coelho em esclarecer o crime, descobrindo e prendendo os criminosos. No

parecer de Diogo de Oliveira, houve má vontade da parte do policial em mandar perseguir os

assassinos. Havia chovido no dia do crime, e eram visíveis na estrada os rastros de pisadas

dos cavalos dos matadores. O subdelegado dispunha de uma força de trinta homens, nessas

condições era fácil seguir os vestígios. Passados alguns dias do crime, inconformado, o sogro

do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti desabafou:

...porém o que fez o Ilmº Subdelegado? Apenas mandou conduzir o cadáver para a freguesia e mais nada! Seria por ignorância, covardia ou omissão? Porque aquele Subdelegado não pediu reforço ao Cap. Diretor da Colônia Militar Caseros para este

232 Diogo José de Oliveira, pai de Maria Salomé de Oliveira Cavalcanti, viúva do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, era fazendeiro no Campo do Meio, município de Passo Fundo. Além disso, era capitão da Guarda Nacional. Ver mais no Anexo B.

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mandar ir buscar no Mato Português por onde passaram os assassinos no dia seguinte?233

Na opinião de Diogo de Oliveira, aquele subdelegado deixou de tomar as providências

necessárias no sentido de perseguir imediatamente os matadores. Se a força policial de Lagoa

Vermelha era insuficiente, o subdelegado deveria, automaticamente, articular os oficiais da

Guarda Nacional de toda a região no sentido de arregimentar o maior número possível de

homens para perseguir e capturar os assassinos, imediatamente, após o assassinato.

3.2.3 As limitações da polícia serrana.

O subdelegado, por sua vez, justificava que a dificuldade em desvendar o crime devia-

se ao número insuficiente de policiais naquela localidade, o que tornava infrutífero o trabalho

da busca aos assassinos. Questionado pelo delegado de polícia de Santo Antônio da Patrulha,

seu superior imediato na hierarquia policial, quanto à morosidade das investigações, o

subdelegado Francisco Teixeira Coelho defendeu-se:

...achando-se até o presente mês nas trevas o autor ou autores de tão nefasto crime, cumpre-me participar a Vossa Senhoria que até o presente tenho investigado com energia a ver se se descobre os criminosos, ainda não me foi possível descobri-los depois de já grande número de pessoas terem sido interrogadas, cumprindo-me mais cientificá-lo, que no estado em que me acho, sem forças que auxilie e sendo a todos os momentos minha existência em perigo, porque a impunidade de certos criminosos tem acoroçoado a malvadeza, pois que publicamente se diz que ser criminoso e ter dinheiro equivale a uma absolvição (...) Frustradas seriam minhas diligências numa localidade como esta, sem apoio moral de uma força respeitável, tendo quiçá (sic) de lutar com pessoas quem sabe avezadas (sic) ao crime... (grifos nossos)234

233 Correspondência de Diogo José de Oliveira ao presidente da província, Dr. João Sertório, 7/09/1870. Fundo Documental – Polícia Santo Antônio da Patrulha. AHRGS. 234 Correspondência enviada pelo subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha, Francisco Teixeira Coelho, em 28/08/1870. Fundo Documental Polícia Santo Antônio da Patrulha. AHRGS.

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A correspondência do subdelegado revelava que ele recebia ameaças de pessoas

supostamente envolvidas no assassinato. Nas entrelinhas deste documento é possível perceber

a trama política que havia nos Campos de Cima da Serra entre a autoridade pública instituída

para garantir a ordem e o poder de mando dos chefes locais. Reforçando a situação, o próprio

policial revela que naquela região, historicamente construiu-se como regra, que os ricos

sempre tinham a seu favor a impunidade. Era uma maneira de justificar a inércia da polícia

em certos crimes que envolviam pessoas proeminentes.

O crime demonstra um tipo de violência específica contra a autoridade. É o ataque ao

poder da autoridade, o que revelava que nesse complexo jogo de forças local, o poder público

constituído pouco podia coibir os abusos dos mandões da região. A violência contra o poder

representado pela autoridade legal era uma prática habitual naquelas localidades serranas.

Francisco Teixeira Coelho, na função de subdelegado de polícia, solicitou ao delegado

de Santo Antônio da Patrulha que enviasse apoio à força policial daquele distrito, na forma de

patrocínio para as diligências que aconteciam na tentativa de capturar os assassinos do juiz

Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. Em outubro de 1870, três meses depois do crime, o

delegado municipal, Francisco Antonio de Moraes, subiu a serra rumo a Lagoa Vermelha a

fim de esclarecer o crime e prender os matadores. Uma comitiva formada pelo promotor

público da comarca de Santo Antônio, três oficiais e cinqüenta praças policiais

acompanharam o delegado Moraes nessa empreitada235. Os resultados da diligência eram

notificados ao chefe de polícia da província, na forma de correspondências oficiais, onde o

delegado relatava os pormenores dos últimos acontecimentos desencadeados após a sua

chegada àquela localidade.

Nos ofícios enviados, reservadamente, ao chefe de polícia, o delegado Moraes

manifestava a sua insatisfação diante do desenrolar das investigações. Em apenas uma

correspondência remetida no dia 22 de outubro de 1870 é possível levantar elementos

importantes capazes de revelar mais a respeito da atuação da polícia de Lagoa Vermelha

frente ao assassinato do juiz pernambucano. Depois de ouvir as testemunhas, o delegado

registrou:

235 Correspondência remetida ao chefe de polícia da província, em 22/10/1870. Fundo Documental – Polícia. Santo Antônio da Patrulha. AHRGS.

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Não tem o mau tempo permitido se fazer o serviço, mas pelas diligências, o que já procedi resultam indícios veementes contra o Capitão João Jacinto Ferreira e Athanásio José d’Oliveira como mandantes do assassinato praticado na pessoa d’aquele Doutor Cavalcanti.236

A esta altura o delegado já sabia que os principais suspeitos de envolvimento no crime

eram homens influentes na região. No depoimento de algumas testemunhas, Francisco

Antônio de Moraes percebeu que determinados depoentes omitiam a verdade sobre o que

sabiam sobre o fa to, revelando receio em manifestar tudo o que sabiam sobre a participação

daqueles abastados fazendeiros no assassinato do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti.

Provavelmente, estas testemunhas temiam represálias. Na correspondência é revelada a

situação difícil em que se encontrava o delegado, “lutando com dificuldades parecendo haver

conluio em alguns do povo para abafar a verdade”237, mesmo assim ele prometia empregar

todos os recursos que estivessem ao seu alcance para desvendar a verdade. No mesmo ofício

enviado de Lagoa Vermelha no dia 22 de novembro, o delegado Francisco Antônio de Moraes

denunciou ao chefe de polícia da província a falta de vontade do subdelegado major Francisco

Teixeira Coelho em investigar o crime.

Muito teria a justiça lucrado, descobrindo e capturando os criminosos se o atual Subdelegado deste Distrito Major Francisco Teixeira Coelho, melhor compreendendo seus deveres tivesse anuído ao oferecimento de muitos cidadãos preparados de irem em ato seguido em procura dos assassinos em seguida ao rasto de seus cavalos pela estrada cujo rasto era visível por ter chovido e ser possível a Francisco Teixeira Guimarães reconhecer os mesmos três indivíduos que haviam praticado semelhante crime.238

Chegando em Lagoa Vermelha, o delegado entrou em contato com Diogo de Oliveira,

sogro do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. Este desabafou que o subdelegado só não

capturou os assassinos por que não quis. Havia meios para isso. A falta de policiais no distrito

não justificava a demora em prender os matadores. Francisco Antônio de Moraes concordava

236 Idem. 237 Idem. 238 Idem.

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com o capitão Diogo de Oliveira e atribuía a inoperância da polícia da localidade à

incompetência do subdelegado Teixeira Coelho. O delegado Moraes foi categórico nas suas

argumentações, propondo a demissão do major Teixeira Coelho do cargo de subdelegado,

“para o qual é inapto”239, e a nomeação de Ignácio Bueno Candeia ou Francisco Alves do

Amaral Toledo para substitui- lo nesta posição. O delegado Francisco Antônio de Moraes

sugeriu ao seu superio r hierárquico que nomeasse para os distritos de Serra-Cima240 uma

força pública comandada por um oficial da Guarda Nacional na função de subdelegado, mas

que este fosse da inteira confiança do chefe de polícia da província. No seu entender, eram

providências necessárias numa região de base pecuária onde os criadores sofriam muito com o

furto de gado.

3.2.4 A inoperância dos homens da ordem

Os delegados e subdelegados durante o século XIX, como já foi dito, não recebiam

salários e eram recrutados entre os abastados fazendeiros da localidade. Eram postos

cobiçados por que significava a ampliação do leque de influências. As falhas na polícia de

Lagoa Vermelha e Vacaria não ficavam apenas na esfera administrativa. Referindo-se ao

corpo policial comandado pelo major Francisco Teixeira Coelho, o delegado notifica à chefia

da polícia:

Quanto aos destacamentos de polícia por Guardas Nacionais das freguesias de Vacaria e Lagoa Vermelha é mal e pessimamente organizado (...) e fora das condições necessárias, consentiam-se até que o guarda designado para tal serviço substituído por indivíduos inúteis e imprestáveis e só dignos das vistas da polícia criminal.

239 Idem. 240 “Serra -Cima”,em 1870 incluía os distritos de Vacaria, Lagoa Vermelha e São Francisco de Paula.

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Na sua diligência para desvendar o assassinato, o delegado Francisco Antônio de

Moraes ficou inconformado com o estado das coisas nos Campos de Cima da Serra. Ao tomar

conhecimento do completo desleixo em que se encontrava a polícia local e do quadro de

insegurança que rondava a população daqueles lugares, o delegado aproveitou para informar

ao chefe de polícia sobre a situação criada naquela região ao longo do tempo:

Não devo perder a ocasião para informar a V. Sa que encontrei estes distritos de Serra -Cima em decadência e desmoralização, estando sem garantias as pessoas úteis e honestas devido à incúria das autoridades locais e a falta de força pública para que possa ser a lei respeitada em sua plenitude. As relações de amizade, parentescos e proteção de influências de lugarejos em que muitas vezes recaem nomeações de cargos público dão origem a tais males241. (grifos nossos)

A ausência de segurança pública em Lagoa Vermelha e Vacaria nas últimas décadas

do século XIX, incentivava a proliferação do banditismo e garantia a impunidade dos

criminosos, numa região em que predominava a força do poder de mando dos abastados

senhores de terras. Aos habitantes, daquelas localidades, não restava outra alternativa, senão,

armar-se por conta própria ou valer-se da proteção oferecida pelos mandatários locais.

As diligências comandadas pelo delegado Francisco Antônio de Moraes em Lagoa

Vermelha, uma autoridade policial fora de Lagoa Vermelha e Vacaria, portanto, supostamente

imune à teia de influências dos chefes locais apontados como mentores do crime, deram bons

resultados. O principal suspeito de ser o mandante do assassinato do Dr. Antônio de Pádua

Holanda Cavalcanti foi preso, conduzido a Porto Alegre para aguardar o julgamento “visto

que nesta vila não tem a segurança necessária para presos de semelhante importância.”242

Sobre os possíveis mandantes do assassina to que vitimou o Dr. Holanda Cavalcanti, o

processo referia: “Através da voz do povo”, os assassinos foram o alferes José Mariano

Pimentel, Francisco Gregório e o índio Manoel Umbelino. Os dois últimos eram agregados do

capitão João Jacinto Ferreira, fazendeiro e oficial da Guarda Nacional em Lagoa Vermelha.

241 Correspondência remetida ao chefe de polícia da província, em 22/10/1870. Fundo Documental – Polícia. Santo Antônio da Patrulha. AHRGS. 242 Correspondência remetida ao chefe de polícia da província em 15/12/1870. Fundo Documental – Polícia. Santo Antônio da Patrulha. AHRGS.

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José Mariano Pimentel, por sua vez, era cunhado de João Jacinto Ferreira. Também, se

presumiu que este último seria o mandatário.

3.2.5 Dicotomia entre o público e o privado

Era público e notório o desafeto entre o Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti e o

capitão João Jacinto Ferreira. Ambos já haviam manifestado descompassos quanto às suas

posições. No dia 28 de julho, quinta-feira anterior ao assassinato, os dois encontraram-se em

Santo Antônio da Patrulha quando o juiz Holanda Cavalcanti cobrou uma multa do Cap. João

Jacinto pelo seu não comparecimento em um Júri243. O último negou-se a pagar a multa, não

deu o braço a torcer perante o juiz e tiveram uma discussão que foi presenciada por algumas

pessoas. O fato de estar frente a frente com uma autoridade da justiça não intimidava o

capitão João Jacinto Ferreira. Sinônimo de amplo prestígio, os postos da Guarda Nacional244

eram bastante aspirados nas localidades do Império brasileiro.

Mais de duas dezenas de depoentes foram ouvidos, entre testemunhas245 e outras

pessoas que ajudaram a resgatar o corpo. A maioria atribuía a autoria do homicídio aos

agregados do Cap. João Jacinto Ferreira, Francisco Gregório e o índio Manoel Umbelino além

do cunhado do mesmo capitão, o alferes da Guarda Nacional, José Mariano Pimentel.

Diversos depoentes mencionaram o nome do capitão João Jacinto como o possível mandante

do crime, já que três dias antes havia discutido com o Dr. Antônio de Pádua Holanda

Cavalcanti em Santo Antônio de Patrulha. Alguns, também, cogitaram outros nomes como

desafetos do juiz. Os nomes levantados foram Athanásio José d’Oliveira, o capitão Antonio

Luiz Teixeira, o Ten. Cel. Alberto Marques d’Almeida, além do tenente Máximo Paim de

243 A instituição do Júri foi adotada no Brasil por força de um decreto imperial em 1822 e mantida pela Constituição de 1824, passando a integrar o Poder Judiciário quando ampliaram as atribuições no cível e crime. Sobre a história do Judiciário no Rio Grande do Sul, ver mais em: FÉLIX, Loiva Otero e GRIJÓ, Luiz Alberto. Histórias de vida: entrevistas e depoimentos de magistrados gaúchos. Op cit. Ver ainda: FÉLIX, Loiva Otero: Tribunal de Justiça do RS .Op cit. 244 Os postos de oficial da Guarda Nacional não eram remunerados, inclusive os oficiais tinham de prover o fardamento das tropas com recursos próprios. Por outro lado a Guarda garantia aos senhores o controle da população nas localidades. Sobre a Guarda nacional ver mais no segundo capítulo desta pesquisa. 245 Entende-se por testemunha toda e qualquer pessoa que comparece perante o juiz para prestar depoimento sobre o que viu ou o que sabe por ouvir dizer de determinado acontecimento.

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Andrade, estes últimos, também, eram da Guarda Nacional. É crível que Máximo Paim fosse

irmão de Narcizo Paim de Andrade, delegado de polícia em Lagoa Vermelha em 1857,

trabalhando no processo nº 846, que investigou a tentativa de assassinato contra João Pereira

de Almeida.

Logo que a comissão liderada pelo delegado de polícia de Santo Antônio da Patrulha

se instalou no distrito da Lagoa Vermelha para prosseguir nas investigações a respeito do

assassinato de Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, os três apontados como autores deste

crime, se retiraram de Lagoa Vermelha. Francisco Gregório teria ido embora para a Vila da

Lapa, José Mariano Pimentel teria ido ao município de São Borja e o índio Manoel Umbelino

talvez tivesse rumado para as capoeiras da Serra de Santa Bárbara já que costumeiramente se

dirigia para lá a procura de trabalho esporádico.

Athanásio José d’Oliveira, fazendeiro, morador do distrito no lugar denominado

“Prata”, foi convocado para depor como testemunha. Compadre e amigo do Cap. João Jacinto

Ferreira, Athanásio reafirmou, que os assassinos foram o alferes João Mariano Pimentel,

Francisco Gregório e o índio Manoel Umbelino246. Prosseguindo na sua fala, o depoente

contou que soube através do seu compadre João Jacinto Ferreira que o mesmo teve uma

discussão na vila de Santo Antônio com o Dr. Holanda Cavalcanti. João Jacinto Ferreira teria

ficado com raiva do Juíz e, por isso, mandaria dar- lhe uma “sova”, mesmo que fosse preciso

esperá- lo na Serra das Antas, entre Santo Antônio e Vacaria.

Prosseguindo no depoimento, Athanásio José d’Oliveira falou que domingo, dia 31 de

julho, o capitão contou- lhe que mandou José Mariano Pimentel, juntamente, com seus dois

agregados Francisco Gregório e o índio Manoel Umbelino fazer o serviço naquele Doutor.

Disse, também, que o capitão e o seu cunhado José Mariano Pimentel tinham garantias porque

eram oficiais da Guarda Nacional. Aqui mais uma vez o coronelismo se expressa nas relações

sociais. Os postos da Guarda, como já foi dito anteriormente, durante o Império eram bastante

aspirados no âmbito distrital e provincial. Para muitos lagoenses e vacarianos que

vivenciaram o contexto de 1870 perpassava a idéia de que o fato de ser oficial da Guarda

Nacional bastava para garantir a imunidade dos acusados247.

246 Conforme Processo Crime n. 409, folha 18. APERS. 247 Conforme documentação do Fundo Documental – Polícia Santo Antônio da Patrulha – AHRGS.

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Athanásio José d’Oliveira, ainda, afirmou perante o delegado, que havia emprestado

os cavalos para que os assassinos fossem montados para a efetivação do crime, mas disse que

não tinha participação alguma neste plano. Em sua longa manifestação, o depoente fez

acusações graves contra o seu compadre:

Disse mais, que o Cap. João Jacinto Ferreira lhe pediu emprestado 400 mil réis para na freguesia em casa do Cap. João Soares de Barros arranjar aposentadoria e obsequiar o Ten.Cel. Francisco Antonio de Moraes, atual Delegado de polícia que vinha deste distrito proceder as necessárias indagações e instaurar o processo contra os criminosos no assassinato do referido Dr. Cavalcanti248.

Athanásio d’Oliveira falou que a quantia destinada ao delegado se perdeu no caminho.

Esta declaração não foi respaldada por provas, portanto, pairou a seguinte dúvida: O dinheiro

teria mesmo desaparecido no caminho ou Athanásio estaria caluniando o seu compadre? Se a

primeira alternativa era a correta, aqui se teria um exemplo cristalino da prática do suborno

nas localidades do Império.

O acusado José Mariano Pimentel negou, veementemente, que o verdadeiro culpado

desse crime fosse Athanásio José d’Oliveira e que ele, José Mariano Pimentel não mandou

matar o Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, somente dar- lhe umas “bordoadas”.

Portanto, não sabia porque fatalidade os agregados “exorbitaram aquela ordem”. O acusado

José Mariano Pimentel disse que manteve silêncio até o dia do seu pronunciamento por dois

motivos: “um pelo parentesco chegado com esse infeliz que cometeu o crime, outro pelo

sentimento de amizade e reconhecimento de alguns favores”249 Convém lembrar que José

Mariano também deveria ser parente de Athanásio d’Oliveira, já que sua assinatura completa

era José Mariano de Oliveira Pimentel. A testemunha, Athanásio, sustentou seu depoimento

como verdadeiro e disse que as palavras de José Mariano eram falsas e que este não tinha

como provar o que declarou.

248 Processo Crime 409, folhas 17 e 18. APERS. 249 Processo Crime n. 409 folha 18. APERS.

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João Soares de Barros, amigo bem próximo da vítima também foi chamado a depor no

inquérito. João Soares de Barros era advogado e negociante, morador da freguesia de Lagoa

Vermelha. Esta testemunha acrescentou um elemento novo às investigações, dizendo que:

(...) pela intimidade que tinha com o finado, eram seus desafeiçoados neste distrito: O Ten.Cel. Alberto Marques de Almeida, o Cap. João Jacinto Ferreira e Athanásio José d’Oliveira e que os dois primeiros poderiam lhe fazer mal (...) e que sabe também que não lhe poderia ser afeiçoado o Alferes José Mariano Pimentel por ter o finado censurado a sua nomeação de Alferes visto que era notoriamente sabido que no Barracão tinha furtado umas onças de ouro, das canastras do Ten. Leopoldino J. dos Reis.250

As nomeações de pessoas proeminentes politicamente para oficiais proporcionavam

amplo prestígio, tanto que o termo coronel transformou-se em sinônimo de chefe político.

Como a maioria dos oficiais da Guarda Nacional, José Mariano Pimentel era fazendeiro em

Lagoa Vermelha onde estabeleceu fazenda de lavoura e pastagens em 1847251.

A esta altura ficou evidente que os maiores desafetos do Dr. Antônio de Pádua

Holanda Cavalcanti eram tanto o capitão João Jacinto Ferreira quanto Athanásio José

d’Oliveira. Também o alferes José Mariano Pimentel era cogitado como mandante devido a

sua nomeação ter sofrido restrições por parte daquele magistrado. A oportunidade de José

Mariano Pimentel entrar para o rol dos privilegiados com cargos de oficial tinha sido barrada

pelo magistrado. A notícia do impedimento deixou José Mariano inconformado e disposto a

revidar na primeira oportunidade.

Em novembro de 1870, o capitão João Jacinto Ferreira passou procuração ao

advogado Ten. Cel. Alberto Marques de Almeida para promover a sua defesa neste Processo

Crime. Depois de orientado pela defesa, João Jacinto Ferreira prestou depoimento na

delegacia. Interrogado pelo delegado Francisco Antonio de Moraes, se teve algum motivo

particular a que atribui a denúncia da queixosa, viúva Maria Salomé, o acusado respondeu que

a mulher transformou-se em sua inimiga depois de uma altercação que ele teve com o marido

dela na casa do juiz de direito em Santo Antônio da Patrulha. Indagado se este tinha fatos a 250 Processo Crime 409, folhas 28 e 29. APERS. 251 Auto n. 1522 Medição e Legitimação de Terras – Lei 1850. AHRGS.

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alegar que pudessem provar a sua inocência, João Jacinto declarou que tinha provas da sua

inocência, “mas este Tribunal não é competente para receber estas provas, as guardo para

apresentá- las no Tribunal Competente, e como fatos que provam que foi Athanásio José

d’Oliveira quem mandou dar bordoadas no Dr. Pádua.”252 Aqui o acusado declarou que só

apresentaria as provas que sua defesa estava armazenando em plenário para o corpo de

jurados.

A esta altura do interrogatório, o réu apresentou ao delegado uma correspondência

que, na sua opinião, seria um elemento apontando indícios do “mau caráter” de Athanásio e

conseqüentemente este último poderia ter sido o mandante das bordoadas sofridas pelo Dr.

Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. A carta vinha publicada no “Jornal do Comércio” de

Porto Alegre, de 28 de dezembro de 1866, assinada por Ana Maria de Almeida: “Athanásio J.

d’Oliveira é dado ao vício contínuo de embriaguez, como é sabido de todos que tem a

infelicidade de conhecê-lo, mas devo dizer que este estado se manifesta nele pela tarde.”253

Na correspondência consta que por volta de 1863 ou 1864, Athanásio d’Oliveira deu uma

bofetada em Manoel Bento da Costa porque este último negou-se a emprestar- lhe uma vaca.

Na ocasião veio o inspetor de quarteirão, Venâncio de Moraes Abreu e deu voz de prisão ao

agressor, que reagiu à prisão com muita violência, praticamente, espancando o inspetor. João

Jacinto Ferreira prosseguiu na argumentação no sentido de incriminar o seu compadre,

prometendo apresentar no Tribunal do Júri todos os documentos que provassem a qualidade

de seu delator e que mostrassem a sua inocência: para provar a sua inocência ne ste

assassinato, o acusado utilizou até fragmentos impressos como recurso. Neste caso é preciso

lembrar que em 1870 a imprensa, ainda, era incipiente. Pela rede de influências que o capitão

João Jacinto Ferreira dispunha, não se descarta a possibilidade desta notícia ter sido forjada.

Durante todo o tempo da investigação policial, estabeleceu-se entre Athanásio

d’Oliveira e João Jacinto um jogo de forças. Ambos mantinham boas relações de compadrio

pelo menos até o assassinato do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. Instaurado o

Processo Crime, porém, passaram a acusar-se, mutuamente, em todos os depoimentos. O

primeiro, na condição de testemunha e o último como réu preso. A maioria dos depoentes

descartou, categoricamente, o envolvimento de Athanásio, como possível mandante ou

252 Processo Crime n. 409 folha 55. APERS. 253 Processo Crime n. 409 folha 57. APERS.

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cúmplice na morte do juiz municipal. Quanto à afirmativa de que o último era acostumado ao

vício da embriaguez, esta não foi confirmada na fala dos depoentes.

Ouvidas todas as testemunhas e os réus, no dia 28 de dezembro de 1870, perante o

tribunal, o promotor público, João Francisco d’Aguiar, na luta por um veredicto favorável, fez

a leitura do libelo acusatório contra os réus presentes João Jacinto Ferreira e Francisco

Antonio de Oliveira. Os acusados de participação no assassinato, alferes José Mariano

Pimentel e o índio Manoel Umbelino estavam ausentes na ocasião, por encontrarem-se

foragidos.

1º) Que o réu Cap. João Jacinto Ferreira declarando-se inimigo capital do Juiz Municipal e de órfãos deste termo, Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, por motivo de desavença que houve entre ambos concebeu o plano de assassiná-lo, e assim o mesmo réu em sua própria casa reuniu aos réus José Mariano Pimentel, Francisco Antonio de Oliveira e Manoel Umbelino pelos quais mandou e estes, aceitando o seu mandato, víveres e cavalos suficientes, trataram de procurar saber do dito Juiz e quando este ia passando pela estrada junto da lagoa denominada ‘Lagoa Vermelha’ (...) os mesmos réus estando com o rosto cobertos com lenços em trajes dis far-çados repentinamente saíram de dentro de um capão onde se achavam de emboscada e aí às 9 horas da manhã do dia 31 de julho de 1870 dispararam três tiros de pistolas no dito Dr. (...) 2º) Que o assassinato foi praticado em lugar ermo e com premeditação por se terem combinado os réus para a realização desse fato criminoso. 3º) O que os réus na realização de semelhante crime foram induzidos por motivos frívolos e reprovados. 4º) O que o crime foi cometido com superioridade em forças e armas de maneira que o ofendido não podia se defender (...) era míope e estava sem armas. 5º) Que o crime foi cometido com surpresa e disfarce (...)254

A promotoria pública pediu a condenação dos réus Cap. João Jacinto Ferreira, alferes

José Mariano Pimentel, Francisco Antonio de Oliveira e o índio Manoel Umbelino255.

Solicitou, também, que fossem notificadas e convocadas todas as testemunhas da formação de

culpa para comparecerem às sessões do Júri, que ficou marcada para o dia 20 de fevereiro de

1871 em dias consecutivos.

254 Processo Crime n. 409, folha 185. APERS. 255 Ver Art. 192 do Código Penal vigente em 1870.

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3.2.6 O Tribunal do Júri

Santo Antônio da Patrulha por ser a sede da comarca, sediou o tão esperado Júri que

acabou durando cinco dias. Depois do pronunciamento dos réus, testemunhas, promotor

público e advogado de defesa, o corpo de jurados passou para a sala secreta do Júri e em

julgamento presidido pelo juiz Antonio Vicente de Siqueira Leitão por escrutínio secreto, os

jurados votaram sim ou não em 10 quesitos:

1º) Não por unanimidade de votos o réu Capitão João Jacinto Ferreira não mandou matar o Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, Juiz Municipal deste termo, cuja morte se efetivou a 31 de julho de 1870 no distrito da Lagoa Vermelha. O Júri deixa de responder os mais quesitos por ficar prejudicado. Sala secreta das sessões do Júri. Santo Antônio, 25 de fevereiro de 1871.256

Era grande a expectativa do réu capitão João Jacinto Ferreira, seus familiares e

correligionários. A partir da manifestação silenciosa do corpo de jurados expressa nos votos

secretos, o magistrado, finalmente, lavrou- lhe a seguinte sentença: “Em virtude da decisão do

Júri absolvo o réu o capitão João Jacinto Ferreira da acusação que lhe foi intentada. Dê-se-lhe

baixa na culpa e passe-se-lhe Alvará de soltura (...).”257 O réu Francisco Antonio de Oliveira,

ou “Chico Gregório” não teve a mesma sorte que o seu patrão. No dia 27 de fevereiro foi

condenado a 10 meses e 20 dias de prisão além de uma multa correspondente a dois terços da

pena.

Não importa aferir a culpa ou a inocência do capitão João Jacinto Ferreira no

assassinato do Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti. Para fins desta análise, o que

importa são os elementos que possibilitam a remontagem do cotidiano e do posicionamento

das pessoas que direta ou indiretamente estiveram envolvidas com este violento

acontecimento.

256 Processo Crime 409 folha n. 261. APERS. 257 Idem.

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À primeira vista, este crime nada teve a ver com a tentativa de assassinato de 1857,

contra o delegado João Pereira de Almeida. Não chegou a repercutir no Legislativo

Provincial, pois em virtude da Guerra contra o Paraguai, as sessões da Assembléia foram

suspensas, para voltar à normalidade apenas em março de 1871, quando já havia saído a

decisão do Júri absolvendo o réu capitão João Jacinto Ferreira. Mas tanto o Processo Crime

846 de 1857, quanto o Processo 409 de 1870, revelam questões da violência contra a

autoridade. Era a dicotomia entre o público e o privado, tão presente no cotidiano das

localidades do século XIX no Brasil.

No contexto analisado, percebe-se que a impunidade era conseguida pela ação

coronelista, essência do sistema político brasileiro no século XIX. Era uma situação que

encontrava respaldo no Júri, “quando, antes os coronéis, seus próceres ou comandados já não

tinham providenciado e conseguido a impronúncia do réu ou o engavetamento do processo.

Principalmente, na preparação da lista dos jurados exercia-se o controle coronelista.”258

Então, como esperar justiça num universo onde, acima do bem e do mal imperava o poder

ilimitado dos fazendeiros locais? Se até o corpo de jurados, instituição que sempre deve ser

imparcial e estar acima de qua lquer suspeita era manipulável por esses coronéis?

O corpo de jurados que trabalhou no Júri do capitão João Jacinto Ferreira era formado

por um presidente, Bernardo José da Silva, além de sete membros: Francisco Luis Pereira,

Joaquim Correa da Fonseca, José Nunes Benfica, João Rodrigues Lisboa, Manoel Luis

Sobrinho, João José da Costa Vianna e Manoel Silveira Ramos. Notoriamente os jurados

reconheciam o poder econômico e político do capitão João Jacinto. Ao que parece, os jurados

encontraram apenas suposições na declaração dos depoentes, julgando, talvez insuficiente o

fato do réu preso ser reconhecidamente inimigo do assassinado.

O corpo de jurados é sempre uma representação da sociedade e, naturalmente, faz

parte de um círculo de convivência. Em função disso, agrega uma série de valores

historicamente construídos no âmbito de uma regionalidade. Num Tribunal do Júri, o jurado é

sempre o elemento decisor, mas que está muito próximo dos protagonistas do crime.

Normalmente, conhece quem matou e quem morreu. No caso analisado aqui, todos os que

trabalharam como jurados neste Tribunal do Júri, tinham em mente mais a pessoa do capitão

258 FÉLIX, Loiva Otero e GRIJÓ, Luiz Alberto. Op cit p.46.

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João Jacinto Ferreira, na condição de réu preso do que a figura da vítima, que era um juiz com

pouco tempo de convivência na região, portanto, com um círculo de amizade bastante restrito

se comparado ao primeiro.

O juiz Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti fora vítima, ao que tudo indica, das

artimanhas de mandatários locais que tiveram os seus interesses pessoais completamente

ameaçados com a ação do juiz, que na forma da lei procurava dar o mesmo tratamento para

todos os cidadãos independente de posição social. A conduta do magistrado denunciando ao

chefe de polícia da província os atos ilícitos dos policiais dos Campos de Cima da Serra,

exigindo o cumprimento da lei, inclusive, pelos ricos fazendeiros serranos, desestabilizou

todos aqueles que estavam habituados a perpetuar o seu poder de mando.

O fazendeiro João Jacinto Ferreira era um mandatário local cuja influência era muito

sólida na região de Lagoa Vermelha. Além do poder econômico, era oficial da Guarda

Nacional, esta posição de prestígio ocupada por ele contrapunha-se até mesmo a autoridade

judicial constituída.

O desenrolar dos acontecimentos em torno do assassinato do juiz Antônio de Pádua

Holanda Cavalcanti, em Lagoa Vermelha revela a relação conturbada entre o poder público e

o poder privado nas localidades serranas do Império, mais do que isto ilustra nitidamente a

rede de poder pessoal que perpassava as esferas institucionais. Sobre este aspecto Marcos

Antonio Witt escreve:

Por debaixo da polícia, órgão oficial regulador das relações estabelecidas entre os espaços público e privado, operava-se uma trama em que titulados da Guarda Nacional impunham outras regras como, por exemplo, aproveitar-se do seu poder para não prestar contas a ninguém, inclusive, a própria polícia.259

Na análise destes dois crimes, mesmo que se distanciem no tempo, se verificam o

mesmo fenômeno, que é o fenômeno da violência contra a autoridade com o intuito de

preservar o poder nas mãos dos mandatários locais. A região, neste caso, é impermeável à

259 Witt, Marcos Antonio. Op. Cit .

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autoridade constituída. A força legal externa não consegue romper com a teia de poder

informal, que não é legal, mas que se sobrepõe à lei, através de suas práticas nas quais a

violência foi o principal elemento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta inicial deste trabalho consistiu na análise das relações de poder local no

Nordeste do Rio Grande do Sul, especificamente, em Vacaria e Lagoa Vermelha na segunda

metade do século XIX, época em que estes municípios adquiriram autonomia político-

administrativas desmembrando-se de Santo Antônio da Patrulha, um dos quatro primitivos

municípios sul-rio-grandenses. A problemática em torno da qual se estruturou esta pesquisa

era de que a elite política vacariana e lagoense, controladora do poder local entre os anos de

1850 e 1880, era formada, basicamente, por abastados fazendeiros que atuavam como

verdadeiros mandatários na região serrana.

No período delimitado para este trabalho (1850-1880) pretendeu-se identificar as

circunstâncias em que a trama de poder se notabilizou naquela região. A escolha de uma

temática localizada acompanha o movimento de reorientação de modelos explicativos na

historiografia brasileira, que nas últimas décadas vem contemplando temas regionais.

Os estudos de poder local no Brasil, oferecem importantes subsídios à produção

historiográfica de cunho científico por que procuram mostrar a influência da família

possuidora de terras em determinadas localidades, como por exemplo, Vacaria e Lagoa

Vermelha, e as implicações destas influências no cotidiano da região. No caso da sociedade

vacariana e lagoense do século XIX, havia a presença dos abastados fazendeiros em

contraposição a um conjunto de homens que dependia da proteção na forma de favores dos

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mandatários locais. É a constatação, na prática, da teoria de José Murilo de Carvalho quando

afirmava que em muitos casos “a estrutura de poder é realmente monolítica e piramidal”260.

Os Campos de Cima da Serra, tradicionalmente, têm sido caracterizados como um

espaço que se configurou em função do tropeirismo, atividade comercial desenvolvida nos

estados sulinos ao longo dos séculos XVIII e XIX. Desde então, organizou-se nesta região

uma sociedade caracterizada pela presença da grande propriedade rural. A remontagem do

processo de ocupação da terra mediante a utilização de fontes documentais primárias permitiu

compreender a organização desta sociedade, cuja tônica era a presença de extensas fazendas

de pecuária distribuídas numa área de baixa densidade demográfica.

A análise dos registros paroquiais de terras de Vacaria e Santo Antônio da Patrulha

além dos Autos de Legitimação de Terras de Vacaria e Lagoa Vermelha, procedimentos

vinculados à aplicabilidade do Regulamento da Lei de Terras de 1850, forneceu um quadro de

referências sócio-culturais em torno da sociedade vacariana e lagoense do século XIX. O

Quadro de Referências, apresentado nos Anexos, resultou da pesquisa empírica. É um

instrumento que ofereceu subsídios para uma análise mais consistente das relações políticas

locais em Vacaria e Lagoa Vermelha na segunda metade do século XIX. O conjunto dos

nomes que integravam a elite política vacariana e lagoense indica que esta elite era composta,

basicamente, de abastados fazendeiros que muitas vezes obtinham cargos de oficial da Guarda

Nacional, além de funções públicas. Dos 64 nomes levantados, 60% eram fazendeiros e 34%

ainda compunham a oficialidade da Guarda Nacional261. A investigação dessas fontes

primárias além de possibilitar o levantamento do perfil sócio-econômico e político da elite

regional revelou indícios das estratégias políticas geradoras da disputa de poder local por

parte dos fazendeiros serranos.

O processo de emancipação político-administrativa de Vacaria e Lagoa Vermelha,

ocorrido a partir de 1850, foi mais bem compreendido levando-se em conta as

correspondências das câmaras municipais daquelas localidades e ainda de Santo Antônio da

Patrulha, célula-mater dos municípios serranos. A análise desta documentação, juntamente,

com a leitura criteriosa dos debates da Assembléia Legislativa Provincial reforçou a hipótese

260 CARVALHO, Murilo. “Es tudos de poder local no Brasil”. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 25/26, julho/68 p.244. 261 Para os próximos estudos, até mesmo a produção de uma biografia coletiva da elite local, este quadro é um importante instrumento para aprofundar a análise.

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de que naquela região estabeleceu-se um jogo de forças no interior das elites políticas,

marcadas pelo poder de mando personificado nos fazendeiros locais.

Os vereadores de Vacaria, além de fazendeiros, na sua maioria eram também oficiais

da Guarda Nacional, como o capitão Manoel Thomaz Gonçalves e o capitão Theodoro de

Souza Duarte, chefes locais que presidiram os trabalhos do legislativo em Vacaria e tinham

posições políticas divergentes. A análise revelou que tanto um quanto o outro tinha a câmara

municipal como um prolongamento de suas propriedades, um espaço onde agiam,

arbitrariamente, em defesa dos seus negócios. A presidência da câmara municipal era uma

posição cobiçada pelos integrantes da elite política serrana, porque significava a possibilidade

de controlar postos, empregos públicos e votos além de negociar benefícios e favores com o

poder central, via deputados provinciais de Porto Alegre.

O confronto de interesses no interior da elite dos Campos de Cima da Serra ficou

evidente em 1857, ano do desvilamento de Vacaria, quando a sede municipal fora

arbitrariamente transferida para Lagoa Vermelha. A disputa política entre vacarianos (grupo

de vereadores partidários de Theodoro de Souza Duarte e contrários ao desvilamento de

Vacaria) e lagoenses (aliados de Manoel Thomaz Gonçalves, favoráveis ao desvilamento) não

ficou limitada ao Paço Municipal ou no âmbito da Assembléia Provincial em Porto Alegre,

mas adquiriu novas proporções, abrangendo famílias tradicionais que viram seus interesses

ameaçados com a transferência da sede administrativa para a vizinha povoação de Lagoa

Vermelha.

O desvilamento de Vacaria pode ser visto como resultante da trama de poder local

engendrada por fazendeiros proeminentes de Vacaria e Lagoa Vermelha. Eram chefes locais

que controlavam uma complexa rede de compromissos, que ia, desde os cidadãos comuns, ao

presidente da província, passando pelos homens que ocupavam postos públicos na localidade.

A maioria dos cargos públicos, como inspetores de quarteirão, subdelegados, delegados,

escrivãos, vereadores e juízes de paz, não eram remunerados, mas significavam status,

posição que encont rava respaldo na sociedade, por isso eram tão cobiçados nos municípios do

Império.

O quadro de indignação vivenciado pelos vacarianos e lagoenses em função da Lei

Provincial n.337, de janeiro de 1857, determinando o desvilamento de Vacaria, reforçava a

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disputa de forças em que estava em jogo a primazia regional e motivou atos violentos

registrados na delegacia daquela localidade. Esta constatação originada, ainda, na fase de

revisão bibliográfica foi o elemento motivador de uma busca nas fontes judiciais daquele

período. Os Processos-Crime n. 846, de 1857 e n. 409, de 1870 referentes ao atentado sofrido

pelo delegado de polícia, capitão João Pereira de Almeida e o assassinato que vitimou o juiz

de direito Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, respectivamente, foram fundamentais para

as evidências deste trabalho.

Na narrativa histórica, o vestígio textualizado é a referência de um crime. É o

processo-crime que reúne todos os registros do fato criminoso, seus protagonistas, suas

circunstâncias e implicações numa sociedade. Mas o conteúdo dos processos-crime n. 846 e n.

409, não foi suficiente para reconstituir a trama política desencadeada com a transferência da

sede municipal para Lagoa Vermelha. Foi preciso buscar nos arquivos históricos outros

recursos capazes de esclarecer questões que não foram bem explicadas pela narrativa

tradicional. O cotejamento de fontes documentais viabilizou a remontagem de um quadro de

referências sócio-culturais que marcaram aquelas sociedades do século XIX.

No caso do atentado contra o capitão João Pereira de Almeida, a análise dos autos do

Processo-Crime n. 846, de 1857, combinada com a leitura das Correspondências Oficiais da

câmara municipal de Vacaria e dos Discursos Parlamentares daquele ano, apontaram indícios

reveladores do quadro de indignação instaurado entre vacarianos e lagoenses nos meses

consecutivos a determinação da transferência da sede municipal para Lagoa Vermelha.

A investigação mostrou que o delegado de polícia, capitão João Pereira de Almeida

havia se manifestado favorável à remoção da sede municipal. Ao revelar-se partidário às

pretensões do capitão Manoel Thomaz Gonçalves, mentor do desvilamento de Vacaria, o

delegado de polícia foi vítima do inconformismo de alguns vacarianos, diretamente,

prejudicados com a Lei do desvilamento. Todos os acusados de participação no atentado de

1857 que tinham vinculações com a elite política local saíram impunes, porque contavam com

a proteção de homens de influência, capazes de manipularem os procedimentos das

autoridades competentes. Este resultado revela a força do poder de mando nos Campos de

Cima da Serra, sobrepondo-se até mesmo à autoridade policial. A presença dos policiais em

Vacaria e Lagoa Vermelha no século XIX, não bastava para garantir segurança pública local.

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Os motivos do atentado sofrido pelo delegado de polícia João Pereira de Almeida,

estavam ligados ao momento político vivido pelos vacarianos e lagoenses. Em Vacaria quanto

em Lagoa Vermelha, no século XIX, estabeleceu-se uma rede de compromissos, via

clientelismo, onde tradicionais fazendeiros acumulavam terras e cabedais, que lhes

outorgavam o controle de cargos públicos e funções de destaque na Guarda Nacional,

posições que combinadas garantiam ao fazendeiro um lugar de destaque na região serrana.

A leitura criteriosa do Processo-Crime n. 409, de 1870, que investigou o assassinato

do juiz de direito Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti e a análise da documentação do

Fundo de Polícia de Santo Antônio da Patrulha, também, revelaram elementos fundamentais

que ajudam a compreender aspectos do cotidiano e das idéias de uma sociedade sul-rio-

grandense do século XIX cuja tônica era as relações de poder local. O crime que vitimou o

magistrado pernambucano em 1870 foi ilustrativo de um tipo de violência específica contra a

autoridade.

O Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti era de família tradicional de

Pernambuco, onde se bacharelou numa das primeiras faculdades de Direito do Brasil.

Integrava o grupo de magistrados nordestinos que durante o século XIX e início do século XX

predominou no Judiciário do Rio Grande do Sul. Na região serrana era, praticamente, um

estrangeiro. Sua atuação como juiz de direito em Vacaria e Lagoa Vermelha não agradou

alguns membros da elite política local. A análise mostrou que a violênc ia contra o poder

representado pela autoridade pública constituía um hábito naquelas localidades serranas, onde

era praticamente impossível coibir os abusos dos tradicionais mandatários da região.

A leitura das folhas envelhecidas desta documentação primária somando-se a

investigação de outras fontes documentais proporcionou um panorama mais nítido do

enfrentamento de forças estabelecidas nos Campos de Cima da Serra. A análise criteriosa das

execuções criminais ocorridas em 1857 e 1870 nos municípios em questão possibilitou a

remontagem do cenário sócio-econômico e político, recuperando os personagens dessa trama

política desenrolada na região serrana.

A consulta nos autos dos processos-crime n. 846 e n. 409 descortinou um fenômeno

até então pouco conhecido que caracterizou o cotidiano das localidades serranas do século

XIX: a dicotomia existente entre o público, representado pelo aparato policial e pelos juízes e

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o privado, neste caso, os mandatários locais, ou seja, os abastados fazendeiros serranos. O

delegado de polícia, capitão João Pereira de Almeida, atingido no tiroteio de abril de 1857 e o

juiz de direito Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti, morto com requintes de crueldade em

1870 foram vítimas da violência a que ficavam expostas as autoridades da ordem e da justiça,

neste caso, os delegados de polícia e os juízes de direito, respectivamente.

A presença da polícia e de um magistrado em Vacaria e Lagoa Vermelha não bastava

para garantir a ordem e o cumprimento da lei naquelas sociedades acostumadas com a ação

arbitrária dos fazendeiros oriundos de famílias tradicionais da região. A investigação desses

dois crimes, ainda que distantes no tempo, mas ambos ocorridos no meio do caminho entre os

dois povoados revela que tanto o capitão João Pereira de Almeida quanto o Dr. Antônio

Holanda Cavalcanti perceberam a trama de poder local existente naquela região. Mais ainda,

nas suas atuações nos Campos de Cima da Serra, tanto um quanto o outro pode ter tentado

romper com esta trama de poder, fazendo prevalecer a justiça ou então, no caso do

magistrado, até denunciado as artimanhas dos tradicionais mandatários serranos, como

demonstrou a documentação do Fundo de Polícia de Santo Antônio da Patrulha.

Eram inúmeras as práticas ilícitas que faziam parte do cotidiano desses municípios no

século XIX: sumiço de processos, prisões infundadas, impunidade, perseguições, ameaças de

morte, suborno, incêndios encomendados e até mesmo a coação de testemunhas, como os

autos dos processos, objeto de análise do presente trabalho revelam. Os envolvidos no

atentado contra João Pereira de Almeida, em 1857, que tinham vínculos com a elite política

local, mesmo reconhecidos pelas testemunhas e pela vítima, não chegaram a ser presos. Estes

contavam com a proteção dos mandatários que agiam na obscuridade, mas sempre em defesa

dos seus interesses. Já a sentença do Processo n. 409, em que foi vítima o Dr. Antônio de

Pádua Holanda Cavalcanti, absolveu o réu capitão João Jacinto Ferreira, quando todos os

indícios constantes nos autos do Processo o apontavam como mandante do crime. A força

legal instituída nos Campos de Cima da Serra revelou-se impotente diante da teia de poder

informal que se sobrepunha à lei. Neste jogo de forças, em que a violência foi a tônica,

prevaleceu o poder dos fazendeiros.

No conjunto documental analisado, percebeu-se a conjuntura que consagrou os

proeminentes fazendeiros como verdadeiros mandatários nas suas localidades. O sobrenome

tradicional aliado à posse da terra simbolizava status e outorgava a estes proprietários de terra

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o poder de controlar uma complexa rede de influências na região serrana, com alcance no

âmbito do poder central. Este prestígio, inerente da posição social dos fazendeiros, com raras

exceções, era respaldo pela sociedade serrana do século XIX.

Ao final desta pesquisa outras questões foram sendo levantadas e ainda podem ser

avançadas no sentido de recuperar o “vivido” das sociedades serranas no século XIX, seja no

enfoque político, que privilegie as relações de poder; seja no enfoque cultural. São caminhos

que podem revelar outros elementos não menos importantes e plausíveis de investigação,

capazes de descortinar a trama histórica de grupos humanos que viveram em épocas mais

remotas.

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FONTES DOCUMENTAIS

ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL

1. Autos de Medição de Terras – Legitimação de Posses – Lei 1850. Município de

Vacaria. Números: 1522, 1420, 941, 1347;

2. Coleção de Atos, regulamentos e instruções expedidas pela Presidência da

Província;

3. Correspondências das autoridades municipais de Vacaria, Lagoa Vermelha e

Santo Antônio da Patrulha (1850-1880);

4. Estatísticas. Diversos. 1845, 1856, 1860;

5. Fichário onomástico – juízes;

6. Fundo Documental - Polícia - Santo Antônio da Patrulha (1870);

7. Guarda Nacional –Corpo de Cava laria (1850-1872);

8. Leis da Província do Rio Grande do Sul;

9. Posses Carta de Sesmarias (1821).

ARQUIVO HISTÓRICO DE SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA

1. Atas eleitorais e eleitores paroquiais de Vacaria e Lagoa Vermelha

ARQUIVO HISTÓRICO REGIONAL DE PASSO FUNDO

1. Correspondências expedidas – Câmara municipal de Passo Fundo

2. Copiador da câmara municipal de Passo Fundo, 1874-1880 (AHR/PF);

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ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL

1. Inventário post-mortem, Cartório Civil e Crime de Vacaria. Número 4.

2. Processos-crime. Cartório Civil e Crime. Vacaria e Lagoa Vermelha. (1857 e

1870). Números: 846 e 409.

3. Registros Paroquiais de Terras. Vacaria e Santo Antônio da Patrulha.

4. Sinopse das Concessões de Sesmarias 1791 – 1822.

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA POLÍTICA DO RS

(ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RS)

1. Annaes da Assembléia Legislativa da Província de São Pedro do Sul. Porto

Alegre: Typografia A Reforma 1871-1881.

2. Jornal Correio do Sul. Debates da Assembléia Legislativa Provincial. Ano V.

Outubro de 1857.

3. Jornal Tribuna Rio-Grandense, nos 3, 11, 16 e 23. Outubro de 1854. Debates da

Assembléia Legislativa Provincial. 4ª sessão ordinária em 10 de outubro de 1854.

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OBRAS CONSULTADAS

AMARANTE, Zeli Maria do (Org). Raízes de Lagoa Vermelha – I Encontro dos municípios originários de Lagoa Vermelha. Vol II. Porto Alegre: EST, 1996. BARBOSA, Fidélis Dalcin. A diocese de Vacaria. Caxias do Sul: EDUCS, Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1984. BARBOSA, Fidélis Dalcin. Lagoa Vermelha e sua história. Lagoa Vermelha: Impressora Planalto Ltda, 1974. BARBOSA, Fidélis Dalcin. Nova História de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1981. BARBOSA, Fidélis Dalcin. Vacaria dos Pinhais. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1978. BARROSO Vera Lúcia (Org). Presença açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio

Grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1993.

BARROSO, Vera Lúcia (Org). Raízes de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1993. BARROSO, Vera Lúcia Maciel. Santo Antônio da Patrulha: vínculo, expansão e isolamento (1803-1889). Porto Alegre, 1979. Dissertação (Mestrado em História) PUCRS. BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 1998. BORGES, Vavy Pacheco. “História e Política: laços permanentes.” Revista Brasileira de História. São Paulo. v.12, n. 23/24. Set.91/Ago/92. p.7-18. BOTTOMORE, T.B. As elites e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974. BRANCO, Pércio de Moraes. Lagoa Vermelha e municípios vizinhos. Porto Alegre: EST, 1993.

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MORAES, Demétrio Dias de. Brasil Grande e a história de Lagoa Vermelha. Lagoa Vermelha: Impressora Planalto, 1977. MORAES, Demétrio Dias de. Torrão Amado. Lagoa Vermelha: Gráfica Lagoense, 1953. NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão – No Rio Grande miscigenado surge Santo Antônio da Patrulha. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes / Sulina, 1975. NEPOMUCENO, Davino Valdir Rodrigues (Org). O primeiro século: Grande Lagoa Vermelha 1881-1981. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, 1981. NONNENMACHER, Marisa Schneider. Aldeamento Kaingang no RS: séc XIX. Porto Alegre: EdiPUC, 2000. NORONHA, Márcio Pizarro.Região, identificações culturais. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, v.1 n.1, junho de 1999. OLIVEIRA, Francisco Antonino Xavier e. Annaes do município de Passo Fundo. Coord. Por Marília Mattos (e outros). Passo Fundo: Gráfica e Editora UPF, 1990. OLIVEIRA, José Fernandes de. Rainha do planalto. Caxias do Sul: Editora São Miguel, 1959. PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. “A política rio-grandense no Império” In: DACANAL, José Hildebrando (Org.) RS: Economia e política. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1979. p.93-117. PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Vida política no século 19: da descolonização ao movimento republicano. Porto Alegre: Ed. da Universidade UFRGS, 1991. RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz. O partido republicano rio-grandense e o poder local no Litoral Norte do Rio Grande do Sul – 1882/1895. Porto Alegre, 1990. Dissertação (Mestrado em História) UFRGS. RECKZIEGEL, Ana Luiza Gobbi Setti, A diplomacia marginal. Vinculações políticas entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai (1893-1904). Passo Fundo: UPF Ediupf, 1999. RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. História Regional. Dimensões teórico-conceituais. In: História: debates e tendências. Passo Fundo, Ediupf, jun/1999. RODERJAN, Roselys Vellozo. Os curitibanos e a formação de comunidades campeiras no Brasil meridional (séculos XVI a XIX). Curitiba: Works Informática – Editoração Eletrônica, 1992. RODERJAN, Roselys Vellozo. Raízes e pioneiros do Planalto Médio. Passo Fundo, Gráfica e Editora UPF, 1991.

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RODRIGUES, José Onório. O Continente do Rio Grande. 1680-1807. Rio de Janeiro: Edições S. José, 1954. RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: a ocupação e colonização do centro-norte do RS (1827-1931). Passo Fundo: Ediupf, 1997. RUSCHEL, Ruy Ruben. “Ponderações sobre a proto-história do caminho Vacaria-Passo Fundo”. In: BARROSO, Vera Lúcia Maciel. (Org). Raízes de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1993. SADER, Emir (Org.) Gramsci: sobre poder, política e partido. São Paulo: Brasiliense, 1992. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820-1821). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1974. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: d. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SECRETARIA DA AGRICULTURA (RS). Coletânea da legislação das terras públicas do Rio Grande do Sul, 1961. SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura gaúcha. São Leopoldo, 1996. Dissertação (Mestrado em História) UNISINOS/RS. SILVA, Marcos (Org.) República em Migalhas: história local e regional. São Paulo: Marco Zero, 1990. STENZEL Filho, Antônio. A vila da Serra, Conceição do Arroio: sua descrição física e história, usos e costumes até 1872. Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1980. ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. UNIJUÌ, 2002. ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho 1850-1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997. ZERO HORA. Origens do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 4 de dezembro de 1996.

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ANEXOS

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ANEXO A

Evolução político-administrativa de Vacaria e Lagoa Vermelha (séc XVII – séc XIX)

Séc XVII:

Campos de Cima da Serra são povoados por comunidades indígenas.

Fazenda Real instalou no Litoral Norte da Capitania de São Pedro um posto de fiscalização para o recolhimento de impostos sobre a passagem dos rebanhos.

1702: Fundação da Vacaria dos Pinhais pelos índios missioneiros. 1725: Início do povoamento de Santo Antônio da Patrulha. 1732: Doação da 1ª sesmaria no Nordeste do RS (praia de Conchas, Tramandaí). 1735: Início do povoamento de Vacaria. 1763: Povoado de Santo Antônio da Patrulha é elevado à freguesia. 1768: Capela Curada de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria é elevada à freguesia. 1809: (7/outubro) Primeira divisão político-administrativa da Capitania de Rio

Grande em quatro municípios: Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande e Santo Antônio da Patrulha.

1816: Redescoberta do Caminho das Missões, ligando os Campos da Vacaria a Santo Ângelo.

1822: Brasil independente de Portugal. Início do Primeiro Reinado. Fim do sistema de concessão de sesmarias.

1827: Início das concessões de terras aos estancieiros. 1831-1840: Período Regencial: Instituiu-se a Guarda Nacional. 1835-1845: Revolução Farroupilha

1840: Início do Segundo Reinado. 1842: Primeiros moradores de Lagoa Vermelha. 1850: (22/outubro) Lei n.185: emancipação de Vacaria do município de Santo

Antônio da Patrulha. (18/setembro) Lei de Terras n.601.

1857: (16/janeiro) Lei n.337 Município de Vacaria passa a pertencer à comarca de Porto Alegre. A sede da Vila de Vacaria removida para a capela de São Paulo da Lagoa Vermelha. (17/fevereiro) Capela curada de São Paulo da Lagoa Vermelha é elevada a Freguesia, pertencente ao município de Vacaria. (24/abril) Atentado contra o subdelegado de polícia de Vacaria, João Pereira de Almeida. (26/novembro) Lei n.391: Freguesias de São Paulo da Lagoa Vermelha e N. S. da Oliveira da Vacaria voltam a pertencer ao município de Santo Antônio da Patrulha.

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(16/dezembro) Le i n.401: criação da comarca de Santo Antônio da Patrulha. 1864-1870: Guerra contra o Paraguai.

1870: (31/julho) Assassinato do juiz municipal de Lagoa Vermelha, Dr. Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti.

1876:

(12/abril) Lei n.1018: Povoado de São Paulo da Lagoa Vermelha é elevado à condição de Vila, compreendendo os territórios da sua Freguesia e o da Vacaria, integrando a comarca de Passo Fundo.

1878: (1º/abril) Lei n.1115: Elevação a categoria de Vila a freguesia de N. S. Oliveira da Vacaria. Lagoa Vermelha é rebaixada, fazendo parte do município da Vacaria e pertencendo a comarca de Passo Fundo. (7/maio) Lei n.1141: O município da Vacaria abrange o território que pertencia a freguesia da Lagoa Vermelha, desanexado de Passo Fundo, constituindo a nova comarca de N. Srª. da Oliveira.

1881: (10/maio) Lei n.1309: Freguesia de São Paulo da Lagoa Vermelha é elevada a categoria de Vila e sede municipal.

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ANEXO B

QUADRO DE REFERÊNCIAS 262

Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos 263

Observações:

1) Agostinho Pereira de Almeida

Criador. Seu pai era proprietário de terras

na localidade de “Estrela”

Membro da mesa

paroquial na eleição para juízes de paz do distrito de Lagoa Vermelha em 1857, juntamente com

Manoel Thomaz Gonçalves.

Tenente

Irmão de João Pereira de Almeida,

vítima na tentativa de assassinato de 1857

(Processo 846)

2) Alberto Marques de Almeida

Advogado

Tenente coronel

Advogado de defesa de João Jacinto

Ferreira, indic iado como mandante do

assassinato de Antônio de Pádua

Holanda Cavalcanti em 1870 (Processo n.

409).

3) Antônio de Pádua Holanda Cavalcanti

Magistrado

Juiz municipal e de órfãos em Cruz Alta e

Santo Antônio da Patrulha e juiz de direito

em Lagoa Vermelha

Natural de

Pernambuco, casado com Maria Salomé

de Oliveira Cavalcanti

Assassinado em

Lagoa Vermelha no ano de 1870.

Processo Crime n.409.

262 Informações retiradas dos Processos Crimes 846 e 409; do Registro Paroquial de Terras de Vacaria e Santo Antônio da Patrulha; Atas de Qualificação de Votantes e Correspondências da Câmara Municipal de Vacaria, Lagoa Vermelha e Santo Antônio da Patrulha (1850-1881). Também serviu de referencial aqui a documentação do Fundo de Polícia. Os dados genealógicos foram retirados de: OLIVEIRA, José Fernandes de. Rainha do Planalto . Caxias do Sul: São Miguel, 1959, MOOJEN, João Anselmo Augusto. Os Moojen – Genealogia. Lagoa Vermelha: s/editora, 1992, a DUARTE, Theodoro Carneiro. Genealogia da família Borges Duarte. São Leopoldo: s/e, 1981; além de: BARBOSA, Fidélis D. Nova história de Lagoa Vermelha. Porto Alegre: EST, 1981; além de: BRANCO, Pércio de Moraes. Lagoa Vermelha e municípios vizinhos. Porto Alegre: EST, 1993. 263 Os espaços em branco indicam a falta de informações.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

4) Antonio Fialho

de Vargas

Fazendeiro com propriedade na localidade de

“Carauno”(sic)

Vereador em

Vacaria em 1853

5) Antônio Francisco Rodrigues

Fazendeiro

Membro da mesa paroquial da

qualificação dos votantes de N. Srª da

Oliveira da Vacaria em 1857 e 1858.

Vereador em

Vacaria em 1851, 1852 e 1853.

Casou-se com Virgínia Maria

Teixeira em 1846 e teve 4 filhos: Virgílio

Antonio / Libório Antonio / Antonio

Francisco / José Luis

6) Antonio Rodrigues de

Oliveira Diogo

Vereador em Lagoa Vermelha em 1877

e 1878

Alferes

7) Antonio Silveira

dos Santos

Fazendeiro

Vereador em

Vacaria em 1854, 1855 e 1856.

Favorável ao desvilamento de

Vacaria, em 1857.

8) Antonio Zeferino

Moreira

Vereador e

secretário da câmara municipal de Lagoa Vermelha em 1878.

Tenente

9) Athanásio José d’Oliveira

Fazendeiro Compadre e amigo de João Jacinto

Ferreira.

Suspeito no assassinato de

Holanda Cavalcanti. 10) Aurélio Correa

de Andrade Vereador em

Vacaria em 1872

11) Claro José de

Lima

Fazendeiro com propriedade na localidade do

“Serrito”, Vacaria.

Juiz de paz, presidente da mesa paroquial de Lagoa

Vermelha em 1878.

Capitão

12) Daniel Julio

Ribeiro

Fazendeiro Vereador em Vacaria em 1857.

Tenente da 2ª Companhia da

GN

Filho de Júlio Ribeiro da Costa

Foi contra o desvilamento de

Vacaria.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

13) Delfino de

Paula Nery

Fazendeiro

Vereador em

Vacaria em 1857.

Capitão da GN

1857

Filho de Francisco de Paula Nery e Inácia

Silvana de Jesus

Foi contra o

desvilamento de Vacaria.

14) Estevão Malaquias de

Figueiredo

Vereador em Vacaria em 1851.

15) Evaristo Telles

de Souza

Fazendeiro

Quinto eleitor mais

votado para juiz de paz na paróquia de Lagoa Vermelha em 1857.

16) Felisberto Telles de Souza

Fazendeiro

Quarto eleitor mais votado para juiz de paz

em Vacaria em 1872

Vereador em Vacaria em 1855 e

1857.

Capitão

comandante interino do 16º Corpo da GN.

Casou-se com Inácia

Borges. Pai de Manoel Basto e Antonio Basto, envolvidos no

atentado de 1857.

Foi contra o desvilamento de

Vacaria.

17) Francisco

Antonio de Moraes

Delegado de polícia em

Santo Antônio da Patrulha em 1870.

Tenente coronel

Instaurou o Processo Crime 409 que

investigou o assassinato de

Holanda Cavalcanti 18) Francisco de Paula Cesimbra

Moura

Vereador de Vacaria

em 1872

19) Francisco Delfino de Carvalho

Promotor público

Vereador de Lagoa Vermelha em 1878

Capitão comandante

20) Francisco Pereira de Souza

Fazendeiro Vereador em Lagoa Vermelha em 1877,

1878 e 1883

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

21) Francisco Henriques de

Carvalho

Juiz distrital

Vereador em Lagoa Vermelha em 1877

Natural de Santo Antônio da Patrulha

Participou da Guerra do Paraguai.

22) Francisco

Ignácio Ferreira

Fazendeiro, proprietário da fazenda “Santa

Isabel”, no Pontão.

Coronel comandante em

Santo Antônio da Patrulha em 1859

e Lagoa Vermelha de 1860 a 1864.

Cunhado do Dr. João

Jorge Moojen.

23) Francisco

Teixeira Coelho

Subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha em

31 de julho de 1870.

Major

Em diligência resgatou o cadáver de Holanda Cavalcanti e

iniciou as investigações.

24) Hermenegildo de Moraes Borges

Fazendeiro Membro da junta de qualificação dos votantes

de Vacaria em 1857.

Casou-se com Rosa Rodrigues Barbosa.

Pai de Benício Moraes Borges.

25) Ignácio Bueno Candeia

Fazendeiro Terceiro mais votado para juiz de paz em Lagoa Vermelha em

1857.

Vereador em Lagoa Vemelha em 1877

Alferes

Natural de Vacaria.

Testemunha no assassinato do juiz

Holanda Cavalcanti.

26) Inocêncio José de Souza

Fazendeiro Vereador em Vacaria em 1852.

27) Isidoro de Souza Duarte

Membro da junta de qualificação dos votantes na freguesia de Vacaria

em 1858.

Capitão

Possivelmente parente de Theodoro

de Souza Duarte.

28) Jacinto Francisco d’Aguiar

Escrivão em Santo Antônio da Patrulha em

1867.

Vereador em Vacaria em 1872

29) João de Souza Machado

Fazendeiro e proprietário na localidade do “Quilombo”

Vereador em Vacaria em 1852.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no

legislativo local Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

30) João Francisco

Gomes

Vereador em

Vacaria em 1854, 1855 e 1856.

Favorável ao desvilamento.

Assinava sempre com Thomaz Gonçalves.

31) João Jacinto

Ferreira

Fazendeiro

Capitão da 1ª Companhia do 45º Corpo da Cavalaria de

Lagoa Vermelha

41 anos em 1870, filho de Jacinto José

Ferreira

Indiciado como mandante no

assassinato de Holanda Cavalcanti.

32) João Jorge

Moojen

Médico e fazendeiro.

Imigrante natural da Inglaterra. Cunhado de Francisco Inácio

Ferreira.

Participou da Guerra do Paraguai como

médico cirurgião do Exército. Realizou a necropsia no cadáver

de Holanda Cavalcanti em 1870.

33) João José da Luz

Subdelegado de polícia de Lagoa Vermelha em

1870.

Vereador em Lagoa Vermelha em 1878

34) João José Dutra

Fazendeiro

Membro da mesa paroquial da qualificação dos votantes de Vacaria

em 1857 e 1858 na freguesia de Vacaria. Segundo mais votado para juiz de paz do

distrito de São Paulo da Lagoa Vermelha em

1857.

Vereador em

Vacaria em 1853 e 1857.

Tenente coronel do 16º Corpo da Cavalaria da GN em Vacaria, nos anos 1861, 1864,

1871 e 1872.

Não assinava com Manoel Thomaz

Gonçalves depois de 1855. Era contra o desvilamento de

Vacaria. Comandou tropas em batalhas na Guerra do

Paraguai.

35) João Pereira de

Almeida

Fazendeiro

Delegado de polícia, 3º

suplente em exercício na vila de Vacaria em 1857

Capitão

Filho de Joaquim Pereira de Almeida Proença e irmão de

Agostinho Pereira de Almeida

Vítima no atentado em 2 de abril de

1857. Processo Crime n. 846.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

36) João Soares de

Barros

Fazendeiro, advogado (possivelmente rábula)

e negociante

Juiz de paz, delegado de

polícia

Oficial

Natural de Itu (SP), morador de Lagoa Vermelha, em 1870

tinha 41 anos de idade.

Testemunha no Processo 409, que

investigou o assassinato de

Holanda Cavalcanti.

37) Joaquim José Alves de Quadros

Membro da mesa paroquial na Vila de Lagoa Vermelha na

eleição para juízes de paz do distrito em 1857.

Alferes

38) Joaquim Luis

Teixeira

Quinto mais votado para juiz de paz em

Vacaria em 1872. juiz comissário em Vacaria

em 1882.

Capitão

39) Jorge Guilherme Moojem

Médico “prático” e comerciante.

Juiz de direito em Lagoa Vermelha.

Vereador em Lagoa Vermelha em 1877

Capitão, depois major cirurgião

Filho do Dr. João Jorge Moojen.

40) José Joaquim Ferreira

Fazendeiro, com propriedade na localidade do

“Socorro”.

Vereador em Vacaria em 1851 e

1853.

41) José Luis Collor Vereador em Vacaria em 1872

42) José Luis Teixeira

Proprietário de terras na localidade do

“Turvo”, em Vacaria, 6 léguas de fundos por

3 léguas de largo.

Vereador em Vacaria em 1851,

presidente da Câmara em 1852 e

1857.

Do Comando Superior da GN. comandante em

Santo Antônio da Patrulha, Vacaria e Porto Alegre em

1858. tenente Coronel,

comandante na Vacaria em 1850

e 1851.

Contra o desvilamento de

Vacaria.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

43) José Mariano

Pimentel

Fazendeiro

Alferes

Cunhado do capitão João Jacinto Ferreira

Reconhecido como um dos assassinos de Holanda Cavalcanti.

44) José Ramos Nunes

Vereador eleito para Vacaria em 1872

45) Luis Borges Vieira

Fazendeiro

Juiz de paz na Vila de Lagoa Vermelha em novembro de 1857 e janeiro de 1858 em

Vacaria quando presidiu a junta de qualificação.

Formou a mesa de qualificação dos

votantes de N. Srª da Oliveira da Vacaria em

fevereiro de 1857.

Tenente da

Primeira Companhia da

GN em Vacaria.

Filho de Francisco

Borges Vieira e Inácia Rodrigues

Vieira, casou-se com sua prima Paula

Borges Pereira, filha de Francisco Borges

Pereira e Ana Joaquina Rodrigues

de Jesus. Luis Borges Vieira era

cunhado de Theodoro de Souza

Duarte

46) Luiz Pessoa (ou Pereira)264 da

Silva

Fazendeiro e proprietário na localidade de “Potreiros”.

Vereador em Lagoa Vermelha em 1878

47) Mâncio Ivo da

Fonseca

Fazendeiro com propriedade na

localidade de “Boa Vista”, em Vacaria.

Vereador em Vacaria em 1851,

1853 e 1855.

Contra o desvilamento de Vacaria.

48) Manoel Antonio da

Paixão Filho

Fazendeiro

Vereador em Vacaria em 1854 e

1855.

Contra o desvilamento de Vacaria.

264 Letra ilegível nos documentos.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

49) Manoel Bento

da Costa

Fazendeiro

Capitão

Indicado para o cargo de delegado no

distrito da Lagoa Vermelha em

fevereiro de 1856, por Manoel Thomaz

Gonçalves.

50) Manoel Ignácio Vieira

Fazendeiro

Vereador em Vacaria em 1855 e

1856.

Favorável ao desvilamento de

Vacaria.

51) Manoel Thomaz Gonçalves

Fazendeiro, proprietário de terras

na localidade do “Serrito”, 2 léguas de fundos por 1 légua de largo, criador de gado

vacum, cavalar e muar.

Membro da mesa

paroquial em Lagoa Vermelha na eleição para

juízes de paz em novembro de 1857.

Segundo mais votado para juiz de paz em Lagoa Vermelha em

1857. Em 1855 assumiu provisoriamente como juiz municipal e órfãos até a posse dos novos

juízes eleitos. juiz de paz em Vacaria em 1859.

Vereador e presidente da

Câmara em Vacaria de 1852 á 1856.

Capitão

Mentor do desvilamento de Vacaria. Enviava

correspondências ao presidente da

província solicitando a elevação de Lagoa Vermelha a distrito e posteriormente à sede

de município.

52) Manoel Baptista

Pereira Bueno

O segundo mais votado

para juiz de paz em Vacaria, em 1872

Vereador em

Vacaria em 1878

Filho de Manuel Pereira Bueno,

Vereador em Vacaria de 1855 a 1857.

Participou da Guerra do Paraguai sob o

comando do Ten.Cel. João José Dutra.

53) Manuel de Souza Duarte

Fazendeiro

Juiz de paz presidente de mesa de qualificação de votantes de Vacaria em

1857.

Irmão de Theodoro de Souza Duarte.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no legislativo local

Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

54) Manuel Pereira

Bueno

Membro da mesa paroquial da qualificação dos votantes de N. Srª da Oliveira da Vacaria em

1857 e 1858.

Vereador em Vacaria em 1855,

1856 e 1857.

Capitão comandante do 16º Corpo de Cavalaria de Vacaria em

1868.

Casou-se com Teresa Maria de Siqueira.

Pai de Manoel Baptista Pereira

Bueno.

Contra o desvilamento de

Vacaria.

55) Máximo Paim de Andrade

Fazendeiro

Subdelegado de polícia em Vacaria no ano de

1870.

Tenente

Possivelmente irmão de Narcizo Paim de

Andrade.

Dono da propriedade a ser medida e legitimada em

Vacaria onde foi incendiada uma casa

em julho de 1870. Apontado como

suspeito no assassinato de

Holanda Cavalcanti. 56) Miguel Joaquim

de Camargo Fazendeiro Vereador em

Vacaria em 1851, 1853 e 1855.

Capitão Sogro de Theodoro de Souza Duarte

Júnior

Favorável ao desvilamento de

Vacaria.

57) Narcizo Paim de Andrade

Subdelegado do termo da Vacaria em 1857.

delegado de polícia em Lagoa Vermelha em

1878.

Vereador em

Vacaria em 1852.

Oficial ajudante tirou patente em

1850.

Substituiu João Pereira da Almeida

quando este foi ferido no atentado em 1857

58) Serafim Luis Ferreira

Vereador eleito para Vacaria em 1872

59) Sezefredo da

Costa Torres

Fazendeiro no distrito

de Miraguaia, município de Santo Antonio da Patrulha

Vereador Presidente

da Câmara Municipal de Santo Antônio da Patrulha em 1877. Vereador

eleito para a Câmara de Vacaria em 1872.

Tenente coronel Comandante da

15ª Seção de Cavalaria em

Santo Antônio da Patrulha, de 1860 a 1873. Em 1878

integrou o Comando

Superior da GN.

Participou da Revolução

Farroupilha e da Guerra do Paraguai.

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Nome Profissão Funções públicas Funções no

legislativo local Guarda Nacional

Dados biográficos Observações:

60) Sinphronio Olimpio Barreto do

Amaral

Fazendeiro

Vereador presidente da Câmara

Municipal de Lagoa Vermelha em 1877

Coronel comandante

61) Theodoro de

Souza Duarte

Fazendeiro,

proprietário da fazenda no “Capão Alto”, 2 léguas de

fundo por 1 légua de largo.

Membro da mesa

paroquial para qualificação dos votantes

em Vacaria no ano de 1857, quando foi o mais

votado. Também foi membro da mesa

paroquial em 1858.

Vereador em

Vacaria em 1852, 1854 e 1855.

Capitão da Terceira

Companhia em Vacaria.

Filho de Manuel de Souza Duarte e Maria

Rodrigues de Jesus (neta do pioneiro José

de Campos Branderburg,

primeiro proprietário da fazenda do “Socorro” em

Vacaria). Theodoro casou-se com sua prima Herculana

Borges Vieira, filha de Francisco Borges

Vieira (doador do terreno em que se

assenta a cidade de Vacaria). Pai de

Theodoro de Souza Duarte Junior.

Foi contra o

desvilamento de Vacaria.

62) Theodoro de Souza Duarte Júnior

Fazendeiro Juiz imediato Alferes e Tenente Filho de Theodoro de Souza Duarte

63) Valeriano de Siqueira Borges

Sexto mais votado para juiz de paz em Vacaria

em 1872

Participou da Guerra do Paraguai sob o

comando do tenente coronel João José

Dutra 64) Venâncio

Antonio Coelho de Moraes Vargas

Vereador em Lagoa Vermelha em 1877.

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