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“A elevação dos direitos a benefícios tangíveis leva as pessoas, inevitavelmente, a uma mentalidade
vil que oscila entre ingratidão, na melhor das hipóteses – pois por que razão elas deveriam ser gratas
por receberem algo que é um direito – e, na pior das hipóteses, ressentimento.
O ressentimento, a única emoção humana que pode durar a vida inteira, provê infinitas
justificativas para suas más ações.” Theodore Dalrymple
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“A coragem não lhes salvará, mas mostrará que suas almas ainda vivem.”
Bernard Shaw
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Em homenagem a todos que estão fugindo
Filme Mediterrâneo, de Gabriele Salvatores
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“Não temo nada. Não espero nada. Sou livre.”
Nikos Kazantzakis
Escrevo esta abertura voando de volta do
Oriente Médio. Do alto de 35 mil pés,
voando a uma velocidade de 800 quilôme‑
tros por hora, podemos ver melhor, com
pavor muitas vezes, o quão insustentável
é a existência do ser. Nossa vida se dá, em
grande parte, como a de um animal que vive
fora de seu lugar: sonhamos em ser imortais
mas sempre acabamos por experimentar o
mundo finito e o limite de nossos sonhos. O
Oriente Médio é sempre um bom antídoto
para o mundo contemporâneo, afogado no
ressentimento de seus habitantes, “revolta‑
dos” contra essa mesma insustentabilidade
da vida. Nossa cultura contemporânea se
desmancha diante da violência que paira
sobre o Oriente Médio (não só lá, claro).
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Mas não faço aqui um julgamento desta região do mundo,
aliás, muito bela. Quero apontar o fato evidente de que as
manias de luxo dos mimados ocidentais que creem fazer
alguma diferença com suas causas do Facebook se dissol‑
vem contra a realidade que se vê nas fronteiras políticas,
étnicas ou religiosas em guerra nesses países. Ali os povos
se matam há, no mínimo, 5 mil anos ininterruptamente.
Deveríamos olhar para essa constância na morte com al‑
guma reverência, no mínimo com algum silêncio respeito‑
so, porque eles, provavelmente, se matarão para sempre,
e nisso carregam uma marca humana indelével: a de ser
uma espécie violenta que consegue vencer sua natureza
a muito custo. A mentira, a moda contemporânea mais
perene, não ajuda nesse esforço descomunal de arrancar
a humanização das pedras.
No deserto, sempre somos chamados a essa reverên‑
cia e a esse silêncio.
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“Os velhos mestres repudiam o realismo.”
Otto Maria Carpeaux
É urgente sobrevivermos ao ridículo do
mundo contemporâneo. E, para sobreviver
a ele, devemos desprezá ‑lo de alguma for‑
ma, como dizia o mestre Carpeaux (maior
intelectual que já viveu entre nós no Bra‑
sil) acerca do realismo. Segundo ele, como
cito na abertura deste capítulo, os grandes
mestres repudiam o realismo. A verdadeira
sabedoria passa, em algum momento, pelo
desprezo do mundo a sua volta.
Em mil anos seremos esquecidos. Nossa
época não ocupará mais do que um parágra‑
fo nos livros de História no futuro. Passarão
da bomba atômica – que verão com bons
olhos porque terão recuperado a consciên‑
cia dos verdadeiros riscos do mundo (sem a
bomba atômica a guerra no Japão teria du‑
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rado, no mínimo, mais um ano e mais gente teria morrido;
só os idiotas da paz não entendem isso), ao contrário de
nós, que nos afogamos em mimos de gente rica e chique
que falam de um mundo melhor enquanto tomam vinho
chileno em segurança – para as grandes trevas do final
do século XXI, causadas por nossas manias com saúde,
luxo, alimentação, sexualidade (aquilo que os picaretas
das Ciências Humanas chamam de “gênero”), opções se‑
xuais, democracia, direitos humanos, liberdade e narcisis‑
mo. A Idade Média perderá seu título de era das trevas e
nós receberemos essa maldição. Lembrarão de nós como
mimados, ressentidos e covardes. Rirão de nosso apego
ao voto democrático e de nossa fé em manifestações do
povo. Ouvirão falar vagamente de nossas redes sociais e
de nossa crença em seu potencial revolucionário, como
hoje ouvimos falar, com desdém, da crença antiga no po‑
der de se ler o futuro nas entranhas dos animais. Aliás, a
própria ideia de revolução será vista como uma forma de
animismo. Levarão mais a sério os gregos, romanos e he‑
breus, porque verão neles povos que buscavam o conheci‑
mento, e não suas próprias imagens no rosto do universo.
Uma agenda para o contemporâneo é um ato de cora‑
gem. Sua missão é nos fazer ver quem somos numa épo‑
ca afogada em narcisismo. Assim como quem atravessa
o deserto, sem água e comida, alguns de nós, contem‑
porâneos, que não desistimos do fardo animal de nossa
consciência, apontaremos o dedo indicador em direção
ao horizonte, acreditando que pensar, trabalhar, falar e es‑
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crever ainda são as melhores formas de resistir ao nosso
abandono na Terra. Continuaremos a retirar o sentido das
pedras, como antes de nós faziam nossos patriarcas pré‑
‑históricos, porque ele não habita nenhum outro espaço a
não ser o das nossas entranhas. Ofereço esta agenda a to‑
dos que, como eu, estão fugindo das modas de um mun‑
do viciado em seus ridículos fantasmas de sucesso. Assim
como Freud traiu nossa falsa inocência infantil, pretendo
trair nossa mediocridade.
Este livro deve ser lido como uma série de ondas (en‑
saios e aforismos) que atingem a praia e se acumulam,
uma depois da outra, desenhando nosso rosto na areia.
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Antes de avançar, um reparo teórico impor‑
tante. Não lido com a ideia de uma histó‑
ria “integrada” ou “orgânica”, portadora de
um “telos” (sentido) como é a História para
Hegel ou Marx; prefiro abordagens como a
do sociólogo americano Daniel Bell em sua
obra magistral The Cultural Contradictions
of Capitalism. Se você pensa, como eu, que
o mundo contemporâneo tem problemas,
mas não crê na religião de Marx, leia esse
livro. Penso que a esquerda só atrapalha
nosso esforço de compreensão das contra‑
dições do capitalismo, justamente porque
ela é infantil e mitológica em sua visão de
mundo.
Para Bell, a sociedade e a História são
“disjuntivas em suas dimensões constituin‑
tes”, ou seja, não está indo para lugar ne‑
nhum e é bem contraditória se somarmos
todos os elementos que compõem a socie‑
dade e a vida como um todo. Não há in‑
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tegração ou organicidade nenhuma, nem essa bobagem
de que está na moda falar: vivemos numa “sociedade em
rede” em que as pessoas se comunicam cada vez mais
construindo um mundo melhor. O fato das pessoas se
comunicarem e de haver relações econômicas globais e
computadores “que se comunicam”, não implica “redes”
de significado integrado ou processual, isto é, não há ne‑
nhum avanço total da sociedade. Cada pessoa ou grupo se
move em culturas de significado e valores distintos e con‑
flitantes, como diria o filósofo britânico Isaiah Berlin, no
século XX. Cada um vê o mundo de um jeito e muitas ve‑
zes de formas antagônicas e excludentes. No Brasil, essa
bobagem atingiu mesmo o nível político partidário (“A
Rede”) para fingir que não é partido. Como se darmos as
mãos imaginariamente num grande círculo de “boa vonta‑
de” fosse um ato possível. Até Jesus, aquele visionário in‑
gênuo, não acreditaria em “abraçar” o planeta como forma
de amor. Essa ideia é um caso típico de bens invisíveis de
consumo que os inteligentinhos adoram cultuar em seu
jantares seguros e chiques na zona oeste de São Paulo. O
“bem” virou mais um objeto de consumo.
A disjunção da qual fala Bell (o fato de a história não
estar indo para lugar nenhum e viver em conflito consigo
mesma) se dá entre as dimensões que, segundo ele, com‑
põem a sociedade, a saber:
1. Estrutura tecnoeconômica, responsável pela geração
e distribuição da produção que visa reduzir a escassez
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natural da condição humana (a vida é pobre e frágil e
lutamos contra isso o tempo todo).
2. Política, instância que gera e administra o poder e a
violência legítima numa sociedade (a organização de
quem manda e quem obedece de forma legal).
3. Cultural, dimensão que produz, organiza e distribui os
significados que tornam uma sociedade uma identida‑
de de sentido (as religiões, assim como as tendências
de comportamento, nascem nessa dimensão, apesar
de se materializarem também nas duas anteriores).
Essa identidade de sentido nos diz quem somos e por
que vivemos do modo que vivemos.
A disjunção dessas três dimensões se dá dentro das
sociedades modernas avançadas (conceito muito mais
geopolítico e cultural do que geográfico ou temporal), ge‑
rando conflitos contínuos dentro da estrutura, causando
problemas intermináveis a serem administrados pelas ins‑
tâncias responsáveis por cada uma delas ou pelo conjun‑
to disjuntivo (ou desintegrado) da vida social, política e
cultural.
Assumo essa disjunção como pano de fundo amplo do
que chamo “era do ressentimento” e de “contemporâneo”.
Ambos os conceitos se estendem pelas três dimensões,
apesar de que nascem na cultural e é prioritariamente nela
que me movo ao longo desses ensaios e aforismos, mesmo
quando resvalo em temas tecnoeconômicos ou políticos.
O fato de a sociedade contemporânea ser cada vez mais
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disjuntiva (conflituosa, contraditória, sem nenhuma cura
possível) em sua operação, faz com que o movimento de
nossa História tenda cada vez mais ao conflito e jamais a
um “mundo de paz e igualdade”, como falam os idiotas
do bem. Estamos mais no âmbito do agon grego (confli‑
to, agonia) do que do messianismo barato que sustenta o
marxismo hegeliano.
Não há nenhuma metafísica nesse mundo em que me
movo (como há no marxista), apenas homens e mulheres
numa batalha cotidiana para lidar com essa disjunção que
atravessa a nós todos, do trabalho ao amor, do consumo
às crenças religiosas, dos sonhos noturnos aos pesadelos
da vigília diurna.
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