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EU VOU DORMIR QUANDO ESTIVER MORTA. Era o
que muitas vezes eu costumava dizer. Falava isso quando
meu pai sugeria que eu desligasse a lanterna, que eu achava
que tinha escondido tão bem sob as cobertas. Ou na ocasião
em que o pastor Joe, do grupo de jovens, disse para fazer
mos silêncio durante a noite do pijama da igreja. Ou ainda
na noite abafada de verão em que convenci a Autumn a
sair escondida depois da meianoite para irmos dançar no
Nidda Park, com os nossos braços esticados em direção às
estrelas. Mas, então, morri.
E agora não consigo dormir. Exceto, porém, quando
tenho acesso às memórias do meu sono. Você não acredita
ria em quantas vezes vasculhei os dezessete anos e 364 dias
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de minha vida em busca daqueles raros e ininterruptos
períodos de letargia, livres de pesadelos. Porque dormir é
minha única e verdadeira pausa neste eterno carretel de
lembranças, tanto as minhas como as que aluguei.
Naturalmente, fiz uma lista das dez melhores. A maioria
inclui o Neil, embora eu com frequência reveja a memó
ria em que meu pai me embala junto ao peito, quando eu era
bebê. A sensação que tenho é de que nada de mau jamais
poderia acontecer comigo.
A canção de ninar envolveme com tal ternura que
quase consigo esquecer que estou presa aqui, nesta colmeia
imaculada com um bando de outras abelhas. Todas da mi
nha idade, todas norteamericanas, todas mulheres que
mor reram em acidentes no início do século XXI. E todas
tão viciadas em suas câmaras pessoais de memórias que mal
se atrevem a sair.
Não que eu não seja. Viciada, quero dizer. É que tudo
é tão nebuloso quando estou fora da minha câmara de me
mórias… sequer me lembro de como cheguei aqui. E embora
eu me recorde dos nomes, dos rostos e de todos os detalhes
importantes relativos às minhas companheiras, é difícil
assimilar muito mais que isso. No máximo, fragmentos das
minhas conversas com a Beckah e a Virginia, mas eles apa
recem e desaparecem da minha consciência como sonhos
de que mal me lembro. Nós três somos as únicas que fre
quentam a área comunitária no centro da colmeia. E, às
vezes, antes de escutarmos atentas o chamado da sirene de
nossas câmaras, sentamos desajeitadamente no chão branco,
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polido e ofuscante, da mesma cor e textura de todas as
superfícies de nossa prisão desolada. Refletimos sobre a
natureza deste lugar, se ele é tudo que nos resta ao longo da
eternidade, e sobre como é estranho não ter de comer ou
beber, ou suar e fazer xixi.
Mas raramente conversamos sobre nossas mortes. De
qualquer maneira, não lembramos muito bem depois de tanto
tempo. Tentamos manter um clima leve, sem nos importar
mos com nada. Sugiro “noites de cinema”, em que as três
extraem lembranças de um mesmo filme de nossas câmaras
de memórias e nos reunimos para discutilos em detalhes, até
que os pensamentos fiquem turvos demais para prosseguir
mos. A Virginia nunca desiste de nos ensinar saltos mortais
para trás e levantadas difíceis, mas não me importo, porque
meu corpo, completamente entorpecido nesta vida após
a morte, não sente dor ao aterrissar com tudo no chão. A
Beckah prefere conversar sobre livros e onde encontrar as
melhores memórias com edições dos favoritos dela na rede.
É o que planejo fazer agora: procurar novamente
por uma versão precisa da memória de Nossa Cidade, de
Thornton Wilder. Durante o colegial, foi um livro que li por
cima, o que significa que acessar a minha própria memória
não vai resolver muito. Descobri que, apesar de sua relativa
brevidade, muita gente o lê assim, por isso ainda estou para
encontrar uma leitura profunda, significativa, e já acessei
pelo menos duzentas cópias até agora.
Mas antes de embarcar em minha busca, decido dizer
“oi” para o Neil.
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Deito em minha câmara arejada e encaixo as mãos nas
reentrâncias laterais, sentindo um ligeiro zunido e uma
injeção de endorfina ao conectar a pele. Logo acima, a inter
face do holograma se acende, e uso um dos indicadores
para percorrer as minhas pastas de memórias até encontrar
uma das favoritas com o Neil. Aperto o play e chego lá.
Ward, Felicia. Memória nº 32.105
Etiquetas: Ohio, Neil, Caminhadas, Grupo de jovens, Favorita
Número de visualizações: 100.235
Classificação do proprietário: 5 estrelas
Classificação do usuário: memória não compartilhada
É uma daquelas noites maravilhosas de primavera de que
nunca me canso, quando as árvores explodem em folhas
frescas e inacreditavelmente verdes, e o ar fica perfumado
de promessas. Estou chegando ao final de um dia de cami
nhada com as meninas do grupo de jovens da igreja e, de
vez em quando, aceno com a cabeça como se estivesse escu
tando as conversas ao meu redor. Mal percebo o que dizem,
pois minha mente rodopia com as lembranças da noite
anterior. Penso em como sentei pertinho do Neil no banco
de trás da van no percurso até aqui. Em como, casualmente
e sem olhar para mim, ele ajeitou o casaco no colo até que
se espalhasse sobre o meu. Em como depois, sem perder o
ritmo, deslizou os dedos pelo meu braço, detendose no final
como se medisse a pulsação. Em como a consciência do que
estava ao meu redor desapareceu, enquanto me concentrava
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em cada pequeno avanço da mão dele, lento, enlouquecedor.
E em como sentia a pele formigar e a minha mão morria
de vontade de retribuir o toque.
E em breve vou revêlo. Muito em breve.
– Felicia! – Savannah estala os dedos perfeitamente
manicurados na minha cara. – Você não acha que eu seria
uma Esther perfeita? O pastor Joe diz que sou loira demais
– ela bufa, sacudindo a cabeça, e os longos cabelos ondu
lados brilham à luz do sol poente. – Ele diz que o papel da
Esther tem que ir para uma morena. Como você. Mas nin
guém sabe, na verdade, como ela era. São apenas conjecturas.
– Peruca preta – consigo dizer, meu rosto enrubescendo
ao me lembrar da intensidade do olhar do Neil na noite an te
rior ao sairmos da van, a última vez que o vi antes de os me
ninos e as meninas serem colocados em cabines separadas.
– Você está ficando doente? – Savannah se retrai e ime
diatamente tira um frasco de higienizador de mãos da bolsa
corderosa.
Minhas narinas são preenchidas por moléculas de pês
sego artificial. Ela não espera pela resposta e se afasta de
mim, alcançando algumas das outras meninas, deixandome
para trás.
Ao ver as luzes de nossas cabines entre as árvores, aperto
o passo. Meu coração começa a bater mais forte, e enfio as
mãos nos bolsos do casaco de capuz. Olho para cima e o
vejo. Ele está à beira da fogueira, fazendo brincadeiras
com o pastor Joe e Andy, enquanto tentam acender o fogo
e fazêlo pegar.
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Neil ergue o olhar e me vê também. Os olhos azuis
dele cintilam. O sorriso é tão puro e luminoso, é como se
tivesse sido guardado a vida inteira só para mim. Andy
cutuca Neil de lado com um graveto e sussurra algo em seu
ouvido que o faz corar. Neil soca de leve o braço de Andy,
que balança a cabeça, quebrando o graveto ao meio.
– Oi! – digo ao Neil quando ele se aproxima.
A vertigem de estar novamente tão perto dele borbu
lha em minha garganta e, então, rio. Quero abraçálo. Abra
çálo de verdade. Mas não aqui. Não na frente do pastor Joe
e do Andy.
– Ei! – ele estende o braço e puxa e brinca com os
cordões do meu capuz. – Quer dar uma volta?
Eu rio de novo.
– Como se não tivéssemos caminhado o dia inteiro.
Os meninos foram caminhar também, mas seguiram
uma trilha diferente. Uma trilha mais desafiante.
– Ah! – ele cora, dá um sorriso vacilante e passa uma
das mãos pelos cachos castanhos. – Você deve estar exausta.
Estou. E com sede e suada também. Meus sapatos estão
cobertos de lama.
– Estou bem – suspiro. Adoraria trocar de roupa. – Mas
talvez entre para, pelo menos, pegar mais uma garrafa d’água.
– Não precisa – o sorriso de Neil retorna com força total.
Ele me leva até onde colocou a mochila, perto de uma
árvore, e se agacha para retirar uma garrafa d’água. Ao
pegála, meus dedos esfregamse nos dele, e a memória sen
sorial da noite passada pulsa através de meu corpo.
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Eu levo a garrafa até os lábios e observo como o olhar
dele me acompanha e se demora. Ele engole, eu engulo.
Nossos olhares se encontram.
Eu desvio o meu bruscamente para a fogueira, onde a
chama agora arde, e o pastor Joe gesticula para que o Andy
passe um dos pedaços maiores de lenha. Isto é errado. Eu
não deveria estar aqui, não deveria estimular o interesse do
Neil por mim, não importa o quanto eu queira. Ele é bom
demais. E merece coisa melhor.
– Talvez seja melhor ajudarmos com o fogo – balbucio.
Meus olhos ardem, e eu os fecho, bem apertados, para
impedir que lágrimas de raiva escapem. É tudo tão injusto.
Ele provavelmente pensa que sou como ele, despreocupada.
Mas isso não poderia estar mais longe da verdade.
Sinto uma das mãos do Neil no meu rosto, virandoo
de frente para ele.
– Ei, qual é o problema?
Ergo o olhar até ele e sou arrebatada pelo brilho de preo
cupação em seus olhos. Todos os sentimentos que venho
sufocando nos meses mais recentes vêm à tona. Duas lágri
mas quentes descem pelo meu rosto e sinto o nariz coçar.
Neil me pega pela mão, desta vez de propósito, sem se
importar se alguém está olhando, e me leva até a floresta,
onde anoitece. Atravessamos os arbustos devagar, lado a
lado, e a cada passo me sinto melhor. Mais forte. Mais segura.
Paro finalmente. O Neil para também e me encara. Apesar
de estar a poucos centímetros de distância, mal consigo
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discernir seus contornos. Mas sinto seu calor e ouço sua res
piração áspera.
– Hum, Neil, você tem uma lanterna? – sussurro.
A respiração dele faz cócegas em minha orelha.
– Um escoteiro está sempre de prontidão – ele pega
a minha mão e a guia até o bolso inferior das calças cargo.
– Aqui dentro – o tom é inocente, apesar do gesto ousado.
Sou ligeiramente pega de surpresa, mas mexo no bolso
e tiro uma míni Maglite. Ligo a lanterna e, sem soltar a mão
do Neil, faço um movimento circular, e feixes de luz rico
cheteiam nas árvores ao redor.
– É melhor a gente ir embora – digo.
A seguir, desligo a lanterna e a coloco de volta no bolso
do Neil.
Chego mais perto e a imprudência me domina. Ergo a
mão, toco de leve o lábio inferior dele com um dedo e fecho
os olhos.
Uma sirene dispara. Cacos de vidro cortam meu rosto.
Uma dor intensa lateja simultaneamente em todas as partes
do meu corpo. Uma, duas, três batidas e, então, arranco as
mãos das reentrâncias. Estou de volta à câmara de memórias,
quase surpresa de não estar ferida.
Há algo errado. Não foi assim que a noite acabou, de
forma alguma.
Vozes zunzunam ao meu redor, um som incomum.
Sento e olho por sobre a beirada para investigar. As outras
abelhas fazem o mesmo.
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Vocês sentiram aquilo? – Virginia pergunta em voz alta.
Um coro de “sins” responde, e todas descem das câ
maras de memórias e se reúnem no centro.
Eu vou até onde está Virginia, e Beckah juntase a nós.
– O que foi que acabou de acontecer? – Beckah per
gunta, trêmula. A expressão no rosto dela é de tormento,
algo que vejo refletido em todos os demais.
Uma menina chamada Amber está apontando para algo
atrás de mim.
– Meu Deus! – ela dá um gritinho estridente, excitada.
– Tem um menino entrando por uma porta!
Impossível. Nunca vimos meninos aqui. Nunca. Eu me
viro e fico de boca aberta. Porque conheço esse menino. E
ele está chamando o meu nome.
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