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155 A R osyane Trotta prática dos grupos teatrais brasileiros tem reivindicado – dos pesquisadores, do po- der público, dos patrocinadores – uma atenção especial ao seu modo de produ- ção e criação, como também às suas dico- tomias e impasses. Apesar da diversidade infini- ta em termos de organização e estética, boa parte destes grupos aponta para um projeto ar- tístico composto de três pilares: a criação que conjuga texto e cena na sala de ensaio, a presen- ça do diretor como eixo artístico e organizativo, a continuidade da equipe. Os três elementos – grupo, processo e espetáculo – estão historica- mente ligados à origem do teatro como arte au- tônoma, encarregada de encontrar seus própri- os materiais, sua própria visão de mundo, seu modo específico de formação. A possibilidade de trazer transformações teatrais em profundidade se vincula, desde o nascimento da encenação, à formação de uma equipe permanente, entregue a um trabalho re- gular. Os diretores propõem técnicas corporais a serem coletivamente praticadas, de modo a obter uma disciplina de conjunto e despertar uma ética necessária à descoberta de uma ex- pressão própria e à execução coletiva do ato cria- dor. E a própria função do ator encontra novos paradigmas. O espetáculo, em sentido moder- no, reúne diversas artes na construção de uma obra única assinada pelo diretor. Na primeira metade do século XX, pro- longa-se o debate entre dois territórios autorais, dramaturgia e encenação, colocando em oposi- ção o sentido e a forma. A arte recém inventada, diante dos protestos sobre sua excessiva liberda- de, ora argumentava que a forma elaborada ha- via surgido da mais profunda fidelidade ao tex- to, ora reclamava o direito de empreender uma leitura própria. A delimitação deste novo terri- tório se fazia por meio da interdependência e da harmonização entre os diversos elementos cênicos que, deste modo, evidenciavam uma linguagem específica. Entre o surgimento da encenação e a transformação que levaria o teatro à autonomia reivindicada por Gordon Craig, há um proces- so de meio século. A permanência do elemento literário como propulsor da encenação alimen- ta a insurreição artaudiana, na década de 20, contra o “palco teológico”, governado por um criador ausente da cena. O conceito de autoria, na visão de Artaud, deveria ser associado ao dis- curso cênico e não à palavra escrita, sendo atri- buição do encenador: “para mim ninguém tem o direito de se dizer autor, isto é, criador, a não ser aquele a quem cabe o manejamento direto A utoralidade, grupo e encenação utoralidade, grupo e encenação utoralidade, grupo e encenação utoralidade, grupo e encenação utoralidade, grupo e encenação Rosyane Trotta é pesquisadora e doutoranda do Centro de Letras e Artes da UNI-RIO.

TROTTA, Rosyane - Autoralidade, Grupo e Encenação

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    RRRRR osyane Trotta

    prtica dos grupos teatrais brasileiros temreivindicado dos pesquisadores, do po-der pblico, dos patrocinadores umaateno especial ao seu modo de produ-o e criao, como tambm s suas dico-

    tomias e impasses. Apesar da diversidade infini-ta em termos de organizao e esttica, boaparte destes grupos aponta para um projeto ar-tstico composto de trs pilares: a criao queconjuga texto e cena na sala de ensaio, a presen-a do diretor como eixo artstico e organizativo,a continuidade da equipe. Os trs elementos grupo, processo e espetculo esto historica-mente ligados origem do teatro como arte au-tnoma, encarregada de encontrar seus prpri-os materiais, sua prpria viso de mundo, seumodo especfico de formao.

    A possibilidade de trazer transformaesteatrais em profundidade se vincula, desde onascimento da encenao, formao de umaequipe permanente, entregue a um trabalho re-gular. Os diretores propem tcnicas corporaisa serem coletivamente praticadas, de modo aobter uma disciplina de conjunto e despertaruma tica necessria descoberta de uma ex-presso prpria e execuo coletiva do ato cria-dor. E a prpria funo do ator encontra novosparadigmas. O espetculo, em sentido moder-

    no, rene diversas artes na construo de umaobra nica assinada pelo diretor.

    Na primeira metade do sculo XX, pro-longa-se o debate entre dois territrios autorais,dramaturgia e encenao, colocando em oposi-o o sentido e a forma. A arte recm inventada,diante dos protestos sobre sua excessiva liberda-de, ora argumentava que a forma elaborada ha-via surgido da mais profunda fidelidade ao tex-to, ora reclamava o direito de empreender umaleitura prpria. A delimitao deste novo terri-trio se fazia por meio da interdependncia eda harmonizao entre os diversos elementoscnicos que, deste modo, evidenciavam umalinguagem especfica.

    Entre o surgimento da encenao e atransformao que levaria o teatro autonomiareivindicada por Gordon Craig, h um proces-so de meio sculo. A permanncia do elementoliterrio como propulsor da encenao alimen-ta a insurreio artaudiana, na dcada de 20,contra o palco teolgico, governado por umcriador ausente da cena. O conceito de autoria,na viso de Artaud, deveria ser associado ao dis-curso cnico e no palavra escrita, sendo atri-buio do encenador: para mim ningum temo direito de se dizer autor, isto , criador, a noser aquele a quem cabe o manejamento direto

    AAAAA uto ra l i dade , g rupo e encenaou to ra l i dade , g rupo e encenaou to ra l i dade , g rupo e encenaou to ra l i dade , g rupo e encenaou to ra l i dade , g rupo e encenao

    Rosyane Trotta pesquisadora e doutoranda do Centro de Letras e Artes da UNI-RIO.

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    da cena (Artaud, 1984, p. 149). Em 1946, JeanVilar, ao mesmo tempo em que defende a su-premacia do texto, reconhece que os encenado-res vinham sendo, h trs dcadas, os verdadei-ros criadores teatrais:

    Considerando que no h poetas, embora hajatantos autores dramticos; que a funo dedramaturgo no tem sido, nos tempos de hoje,efetivamente assumida; e que, por outro lado,os iniciadores, os tcnicos, quero dizer, osdiretores, tm ultrapassado, s vezes com fe-licidade, as fronteiras que uma moral con-formista do teatro lhes havia fixado, a estesltimos que devemos oferecer o papel de dra-maturgo, essa tarefa esmagadora; e, uma vezisso admitido, no mais importun-los nemtentar enfraquecer neles o gosto do absoluto(Vilar, 1963, p. 85).

    A luta contra o textocentrismo ganha umnovo ingrediente no final dos anos 60, com asprticas de Jerzy Grotowski. As palavras passampelo exerccio criativo do ator: podendo ser bal-buciadas, omitidas, recortadas, elas so matria,instrumento, e no mais territrio. J no se tra-ta de deixar o ator entregue a seus talentos na-turais, nem de reproduzir uma realidade pro-posta pelo texto e nem de executar no palco umdesenho criado em gabinete pelo encenador.O ator seria o criador de movimentos e aes; ocorpo, sua gramtica. No livro A linguagem daencenao teatral, Roubine utiliza a expressoautor coletivo, para caracterizar a especifici-dade e a transformao que o Teatro Laborat-rio anuncia para a histria do teatro moderno:

    O ator e a coletividade em que ele se insereparticipam da elaborao do texto. A partirde ento, no mais difcil imaginar umaoutra prtica, que excluiria a necessidade derecorrer a um texto-pretexto, a um texto an-teriormente construdo. De ento em diante, o conjunto de todos os que representam otexto que se constitui no seu autor coletivo(Roubine, 1982, p. 66-7).

    Se a autoria cnica ganha um novo com-ponente, a funo do diretor permanece pri-mordial, tanto para a referncia dos princpiosestticos e ideolgicos, quanto para a prpriaconcepo da obra (em Akrpolis, por exemplo,um texto que transcorre na catedral de Vars-via, com personagens do imaginrio religioso,transfere-se para um campo de concentrao eseus prisioneiros condenados morte).

    Esta outra prtica a que se refere Rou-bine se inicia com grupos como o Living Thea-tre e o Thtre du Soleil. O campo autoral dodiretor e dos atores avana para alm do mbitoda interpretao de um texto que, tendo deixa-do de ser territrio, deixa de ser tambm mat-ria-prima da criao, lugar ocupado agora pelatcnica, pela viso de mundo e pelo exercciocnico que se tornam o vocabulrio do proces-so criativo. A rea da sala de ensaio se converteem tela vazia, espao em branco onde se faroos esboos, as rasuras e a elaborao de uma par-titura que agrega a um s tempo ao e palavra.

    A expresso escrita cnica, que surge nosanos 70, reconhece por fim a arte autoral doencenador e o espetculo como obra autnoma.No verbete de Pavis, a escrita cnica decorre deuma encenao assumida por um criador quecontrola o conjunto dos sistemas cnicos, inclu-sive o texto, e organiza suas interaes, de modoque a representao no o subproduto do tex-to, mas o fundamento do sentido teatral.(Pavis, 1999:132)

    Pode-se dizer que a noo de escrita cni-ca, que sustenta a autonomia da arte teatral,compreende duas modalidades de estruturaorganizativa e de processo de criao do teatrocontemporneo: de um lado, a estrutura pira-midal em cujo topo est o diretor que imprimeno espao e no corpo do ator a escrita de umasubjetividade particular; de outro lado, a es-trutura circular em que o diretor recolhe omaterial criado pelos atores e costura a escritade um alfabeto coletivo. O gosto pelo absolu-to e a criao coletiva partilham um mesmotempo histrico e, em certos casos, um mesmoespao cnico:

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    Vale notar que encenadores como Peter Brooke Ariane Mnouchkine, se dizem grupo e noentanto so fortemente centralizados. H as-sim uma esquizofrenia: por um lado a artesuprema destas companhias est na encena-o, por outro lado coloca-se em questo aorganizao teatral e a relao entre as pesso-as (Bruno Tackels, em palestra no Ita Cul-tural, por acasio do Prximo Ato, So Pau-lo, novembro de 2006).

    Cabe perguntar se esta esquizofreniano constitui intrinsecamente o paradoxo doteatro contemporneo: valorizao do espetcu-lo como obra assinada por um autor e valoriza-o da originalidade que emerge de um proces-so coletivo de criao.

    A ausncia do coletivoA ausncia do coletivoA ausncia do coletivoA ausncia do coletivoA ausncia do coletivo

    A configurao da autoria que se ergue sobreestes dois pilares coletivo e encenao variade acordo com cada encenador e cada grupo.Em um extremo, pode-se colocar o ator que for-nece material bruto, partituras (fsicas, verbais,narrativas) a serem selecionadas e editadas peloencenador; em outro extremo, o ator participado projeto em toda a sua extenso, da concep-o composio da obra. Quanto maior aflexibilizao das funes, maiores os conflitosde que se constitui o processo. Esta obra coleti-vamente criada tende a ser menos unitria emenos contnua do que os espetculos em queas individualidades artsticas transitam no ter-reno seguro de um texto sobre o qual se dese-nha, antes do incio da prtica, uma concepo.

    Em palestra na Fundao Casa de Ma-teus, em Lisboa, 1984, sobre as relaes entre otexto e a cena, Bernard Dort analisa que, de-pois de sua deposio, nos anos 70, o texto vol-ta ao teatro e permanece como elemento inte-grante de sua linguagem, ocupando diferentesposies de acordo com o sistema teatral em quese inclui. Ele resume sua viso sobre o teatrocontemporneo nos seguintes termos:

    (...) para mim, em todo caso, o que interessahoje no teatro justamente o modo de rela-o que se institui entre os elementos relati-vamente autnomos da representao: o tex-to, o espao, a representao do ator, o tem-po. (...) A essncia do teatro no que o tex-to seja representado, mas uma interao detodos os elementos que o constituem, umaespcie de prova por que passam os elemen-tos, uns perante os outros. (...) um combateentre os diversos elementos que se confron-tam e afrontam e de certa maneira entramem conflito (Dort, 1984, p. 133).

    Nos processos criativos em que os ele-mentos cnicos, incluindo o texto, permanecemprovisrios, o jogo de construo e desconstru-o se opera simultaneamente em todas as reas,no havendo um elemento anteriormente aca-bado nem criaes margem do percurso cole-tivo. A funo-autor pode parecer fragmentadaou diluda se tomarmos como parmetro a lite-ratura dramtica, comparando um modelo su-postamente pleno (a obra fundada por um dis-curso individual e por isso estilisticamentefechado) a um modelo em que a unidade se per-de. No entanto, do ponto de vista da obra-es-petculo, no h diluio e sim pluralidade, e aidia de compartilhamento parece mais apro-priada por comportar dois movimentos: aquelede compartilhar (distribuir) e aquele de com-partilhar de (participar de). Aqui o foco no estna obra, mas no processo. A autoria deixa deser um atributo do sujeito, tornando-se umaao que mobiliza aqueles que a promovem e seconsuma no ato recproco de fazer, que necessi-ta tanto encontrar o consenso dentro do dissen-so quanto permitir o dissenso dentro do consen-so. Vem da o seu sentido poltico e, podemosdizer, mais profundamente poltico do queaquele impresso em formulaes verbais ou fa-bulares da obra acabada.

    A distino entre criao coletiva e pro-cesso colaborativo, embora j bastante discuti-da, merece ser reexaminada. Se, aos olhos de al-guns pesquisadores, o processo colaborativo

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    parece uma evoluo da criao coletiva1, estaanlise toma como princpio o modelo da espe-cializao, da profissionalizao e da racionali-zao do processo. Tambm no parece corretoafirmar que ambas as modalidades inserem odramaturgo no processo criativo.2 Os dois mo-delos abrigam distines que apontam maispara duas concepes distintas de teatro do quepara a persistncia de um modo de criao quese adapta s condies de seu tempo.

    A criao coletiva, nos grupos brasileirosdos anos 70, aboliu a funo do dramaturgocom o objetivo de fazer do processo de criaocnica a fonte primordial e, em muitos casos,nica da autoria. Alguns grupos (AsdrbalTrouxe o Trombone, Navegando, Po&Circo,Jaz-o-corao) a utilizaram em determinadosespetculos, enquanto outros (Pod Minoga,Diz-ritmia, Manhas e Manias, Contadores deHistrias) fizeram deste processo o elementodefinidor de sua linha de trabalho. A direoesteve sempre presente nas fichas tcnicas, comexceo do grupo Pod Minoga, que suprimiutambm esta funo, juntamente com todas asdemais, e assinava unicamente o nome do gru-po em criao coletiva. curioso notar, nocaso do Asdrbal, o modo como os crditosmudam ao longo de sua trajetria. Nos pri-meiros espetculos, que so, mais que releituras,trituraes de um texto de base, o crdito aogrupo feito na funo adaptao. Na se-gunda fase, utiliza-se o termo criao coletivacreditado, com direo e texto final assinadospor Hamilton Vaz Pereira. No ltimo espet-culo, quando alguns dos integrantes antigos sosubstitudos, o diretor assina concepo, ro-teiro e direo e j no h crdito autoral parao grupo.

    Os processos colaborativos, embora este-jam associados pratica de um teatro contnuo,geralmente ligada ao trabalho de um grupo oucompanhia, no se constitui como expresso deuma identidade comum, mas como contrapo-sio e justaposio de diversidades individuaisem que o elo comum e o fio condutor o espe-tculo. Na criao coletiva, o grupo em geral anterior ao projeto, j est reunido quando tra-ta de se colocar a pergunta o que faremos, aopasso que os espetculos produzidos em proces-so colaborativo nascem de um projeto pessoaldo diretor, que rene a partir de ento a equipede que necessita para empreender a criao.Cabe perguntar se a potica do processo cola-borativo vem conseguindo efetivamente negaro ator-linha-de-montagem (Arajo, 2002,p. 42), e transform-lo em sujeito, se a funo-autor tem tido condies de se formar na prti-ca daqueles que nomeiam colaborativo o pro-cesso que empreendem.

    Um grupo instaura e sofre a contradioentre os valores que cultiva entre si e que pre-tende afirmar artisticamente e os valores so-cialmente aceitos em relao aos quais ele pre-tende se contrapor. Evidentemente os valoressociais esto dentro do grupo, ainda que comovia negativa de onde ele tira a motivao que oempurra para fora, para fincar sua bandeira forade si. L onde se cultivam valores que ele recusa tambm onde ele imagina encontrar seus pa-res, o pblico cmplice que poder acompanh-lo, partilhando de suas obras. A tenso entre odentro e o fora do grupo podem ser suaprincipal ferramenta no desafio de escapar, pelatransgresso, de modelos estticos.

    A constituio de um grupo que, com aexperincia de diversos processos, tem a opor-

    1 Stela Fischer, em sua dissertao, fala sobre o avano do coletivo para o colaborativo (2003, p. 55).2 Adlia Nicolete escreve que em ambos os procedimentos o dramaturgo desceu, finalmente, de sua

    torre de marfim e foi para a sala de ensaio (2002, p. 319). No entanto, nas fichas tcnicas dos espetcu-los em que o termo criao coletiva aparece, no h a funo de dramaturgo.

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    tunidade de amadurecer suas relaes pessoais eartsticas e sua intimidade criativa, se apresentacomo um terreno propcio ao exerccio da au-toria coletiva. No entanto, o conceito de gruposofreu substancial transformao nas ltimasdcadas. A palavra, que na dcada de 70 identi-ficava um coletivo definido por uma ideologia(ou, no mnimo, pela afinidade de gosto) e pelacontinuidade da maioria dos integrantes, se re-fere, trinta anos depois, no mais reunio dedeterminados artistas, mas ao diretor e con-cepo de teatro que ele desenvolve em umamesma linha de projetos de encenao. Nestaacepo, grupo definido como ncleo arts-tico estvel. Ncleo, que significa ponto cen-tral e parte proporcionalmente minoritria dotodo, difere enormemente da idia de coletivo.A palavra ncleo dimensiona uma estrutura emque uma minoria concebe, realiza e mantm acontinuidade do projeto, enquanto os convi-dados, que representam a maioria, entram noesquema do trabalho avulso. No difcildeduzir que a esta nova configurao de grupocorresponde uma tambm nova configuraoda autoria.

    O centro nervoso do processo de criaocnica se localiza nas funes de direo, atua-o e dramaturgia, embora outras funespossam participar do percurso. Podemos consi-derar que quanto menor a afinidade e a expe-rincia do coletivo, maior a necessidade de cen-tralizao do processo na figura do diretor. Emoutras palavras, quanto mais efetivos os elos queligam os integrantes ao grupo e sua proposta principalmente no que diz respeito a um enten-dimento comum da concepo que se colocaem prtica e a um vocabulrio cnico geradopor experincias anteriores maior a possibi-lidade de autonomia destes artistas. Neste sen-

    tido, o coletivo no se instaura pela simplesreunio de indivduos dedicados a um mesmoprojeto, mas depende da construo de umacultura de grupo3 baseada em uma subjetivi-dade coletiva.

    A criao coletiva, embora tenha emergi-do de um contexto histrico especfico, no serestringe ao passado, sendo praticada ainda hojepor grupos cujos integrantes se responsabilizamno apenas pela cena, mas pelo projeto e suacontinuidade. Nestes grupos entre os quaispodemos citar a Tribo de Atuadores Oi NisAqui Traveiz (RS) e o Grupo Pedras (RJ) osatores se ocupam tanto das questes cnicasquanto extra-cnicas produo, distribuio,divulgao. Pode-se considerar que a qualidadede engajamento e a continuidade necessrias aesta modalidade teatral exigem uma relao es-treita entre o teatro que se pratica e os valoresque orientam a vida pessoal do artista. Talvezpor isso sua presena esparsa no cenrio mun-dial. Entrevistas4 com diretores e atores de gru-pos mostram duas variaes de resposta para aorigem desta ausncia: de um lado, os atoresapontam a tendncia de centralizao do diretorem relao a todas as opes que dizem respeito obra, informando que a funo do dilogo noabrigaria de fato uma instncia decisria, masapenas uma espcie de ouvidoria; de outro lado,os diretores apontam a tendncia de alienaodo ator em relao a todas as instncias que fo-gem ao mbito do personagem e de seu espaona obra. O efeito daquilo que chamamos au-sncia do coletivo sobre o processo colaborati-vo produz uma configurao da autoria muitodistinta daquela encontrada na criao coletiva,uma vez que, pela falta de identidade entre osparticipantes, recai sobre o encenador a tarefade fabricar o coletivo autor.

    3 Termo empregado por Ferdinando Taviani para definir o trabalho do Odin Theater.4 A autora vem realizando pesquisa para uma tese de doutorado sobre a autoria coletiva no processo de

    criao teatral.

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    Deste ponto de vista, o processo colabo-rativo seria uma modalidade que procura con-jugar ao mesmo tempo individualismo e plura-lidade, e sua principal utopia estaria expressa nopapel preponderante conferido ao dilogo en-tre os sujeitos, na tentativa de exercitar o con-senso na ausncia de condies propcias paragerar uma identidade coletiva. No ser por aca-so que o processo de criao que conjuga textoe cena, hoje disseminado entre os mais diversosgrupamentos teatrais (mesmo entre aqueles queno pretendem ser ou se tornar grupo), se ba-seie algumas vezes no conceito de performance.O performer individualiza a criao, como au-tor-ator-encenador que em si mesmo o espe-tculo. O diretor Fbio Ferreira, por exemplo,fala sobre o processo do espetculo Discursos:5

    Existiu desde o incio um desejo meu de traba-lhar com material de seleo individual e sub-jetiva, para tornar a cena um lugar de pro-priedade e intimidade de cada um dos atorese de todos. Depois, durante os ensaios exis-tiu muito espao para proposies de cena,com abertura plena para estilos e soluesparticulares. (...) No chegamos a uma perfor-

    mance, mas lidamos com fatos e composiesda performance e da dana contempornea.6

    Assim, o processo que parte da noo deperformance para a construo da dramaturgia,minimiza o problema da falta de identidade co-letiva fazendo o trajeto oposto, ou seja, partin-do do indivduo (de cada um) para criar umambiente (de todos). Este trajeto deixa a con-figurao do todo a cargo do trabalho do dire-tor, sem que haja necessidade de um entendi-mento coletivo sobre a linguagem, a narrativa,a abordagem. Pode-se perguntar se ainda cabefalar de um ator-autor, na medida em que ele convidado a participar de uma experinciapr-definida na qual, tendo liberdade para criarseus prprios textos e cenas, permanece dentrode um territrio individual, sem atingir o m-bito do espetculo.

    Para sintetizar as caractersticas consti-tutivas das duas modalidades em um quadrocomparativo, tomamos por base o processo co-laborativo tal como descrito e definido na dis-sertao de Antnio Arajo sobre a Trilogia B-blica e a criao coletiva praticada pelo grupoOi Nis Aqui Traveis, de Porto Alegre.

    5 Estria no Sesc Copacabana, Rio de Janeiro, 2005, com direo de Fabio Ferreira. O espetculo Discur-sos se estrutura em solos independentes, de que participam eventualmente os demais atores para a com-posio da cena.

    6 Depoimento autora, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2005.

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    Encenao e autoral idadeEncenao e autoral idadeEncenao e autoral idadeEncenao e autoral idadeEncenao e autoral idade

    Em La Reprsentation mancipe, 1988, BernardDort identifica o surgimento de uma nova con-cepo de representao que, baseada na auto-nomia dos criadores do espetculo, no postu-la mais uma fuso ou uma unio entre as artes(Dort, 1988: 181). O teatro contemporneoconsistiria na interao ou mesmo na rivali-dade, como escreve Dort entre os sistemassignificantes que o compem. Constatando, nadcada de 80, a renncia a uma unidade org-nica prescrita a priori e caixa mgica quecontm uma totalidade Dort defende umacrtica a Wagner e a Craig, por uma nova defi-nio de representao teatral que, em lugar defazer uma articulao esttica de signos ou um

    meta-texto, a enfocaria como um processo di-nmico que ocorre no tempo e efetivamenteproduzido pelo ator. (p.177/178)

    A criao em processo coletivo contesta-ria a prpria noo de linguagem, libertando oteatro da concepo totalitria por meio da qualo encenador estabelecera um outro palco teo-lgico, em que o conceito antecede a experi-ncia. O encenador deixa de solicitar ao atorque destine suas habilidades a uma concepoartstica elaborada fora de seu corpo, rompen-do com um sistema teatral inaugurado h umsculo e lentamente implantado ao longo daprimeira metade do sculo XX. A passagem daencenao moderna ao que Bernard Dort cha-mou de representao emancipada ou, doponto de vista do processo, a passagem da cen-tralizao para a pluralizao da autoria pode

    Criao Coletiva Processo Colaborativo

    O texto no existe antes do processo O texto no existe antes do processo

    Os atores e o diretor elaboram Os atores participam da construo do espetculoem conjunto a concepo, a construo

    e a produo do espetculo

    Elimina-se o autor dramtico Insere-se o escritor no processo de criao,como funo especfica e especializada como funo especfica e especializada

    O ponto de partida para a experimentao O ponto de partida para a experimentao cnicacnica a proposta criada pelo grupo e para a criao do texto o projeto apresentado

    pelo encenador

    O texto emerge da cena O texto construdo em dilogo com a cena

    As escolhas ligadas ao texto cabem As escolhas ligadas ao texto cabem ao escritoraos atores e ao diretor

    Texto e cena so instncias indissociveis Cabe ao diretor e ao escritor estabelecer a formacomo se opera o dilogo entre o texto e a cena

    O grupo se forma por afinidade entre O grupo se forma por afinidade com o projeto,os participantes e as funes se estabelecem cada integrante tendo sido convidado pelo diretor

    no processo a ocupar determinada funo

    Campo autoral coletivo, unidade Campo autoral plural, hibridismo

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    ser identificada como a abertura das diversasreas do espetculo subjetividade de seus res-pectivos criadores. A partir desta reflexo, po-demos identificar trs aspectos da configuraoda autoria na criao teatral:

    1) A dinmica entre concepo e processo:relao entre a criao que vem do espaopblico do ensaio e a criao que, ocorren-do em um espao reservado, antecipa-se primeira. De um lado, a concepo que ante-cede o processo; de outro, a concepo queemerge do processo.2) A dinmica entre as funes: de um lado acentralizao do encenador; de outro, a au-tonomia nas funes.3) A relao que os elementos cnicos estabe-lecem entre si, caminhando para a pluralida-de ou para a unificao.

    A princpio, os trs aspectos se agrupa-riam em duas vertentes: a primeira, reunindoanterioridade da concepo em relao ao pro-cesso, centralizao autoral do encenador e uni-dade de linguagem; a segunda comportaria a an-terioridade do processo em relao concepo,a autonomia das funes e a pluralidade de sen-tido e forma. A encenao, histrica e estetica-mente assimilada, liberta-se de si mesma e podeser tomada pelos demais artistas-autores. Noentanto, pluralidade no significa coletivizao talvez, muito pelo contrrio, seja o indicativode uma individualizao da autoralidade teatral e nem sempre indica uma valorizao do pro-cesso coletivo como fonte de criao.

    Nas prticas teatrais em que o percursoque conduz ao espetculo j no consiste na re-alizao de um texto e uma linguagem previa-mente definidos, em que a sala de ensaio se tor-na o lugar onde se engendra o projeto, o fazerteatral resulta do dilogo da equipe consigomesma e a concepo se detm sobre o proces-so. A funo do encenador sofre uma transfor-mao paradigmtica, uma vez que j no se tra-ta da competncia de realizao de uma idia,da fisicalizao de uma linguagem, mas da fun-

    dao das formas e das relaes de criao. Eleno pode mais ser comparado ao pintor que as-sina o quadro: ele est diante do espao vazio eda necessidade de conceber a gnese da autoria,de promover a apropriao dos meios de pro-duo da subjetividade, individual e coletiva-mente. Sua concepo se refere, antes de tudo, funo que ele confere a si prprio e aos de-mais: como configura o coletivo, como colocaem relao os diversos autores, atravs de quecaminhos deflagra a autoralidade.

    Se na modernidade admite-se que o su-jeito, ao invs de determinar as relaes, jus-tamente por elas definido, tambm a funo doator se forma na dinmica do processo. A possi-bilidade de reconhecer em um grupo a presen-a da categoria de ator-autor no est ligada existncia prvia ou no de um texto, presen-a ou no do dramaturgo na sala de ensaio, mas concepo do teatro como lugar de uma plu-ralidade autoral, renncia ao espetculo comounidade forjada por uma funo singular.

    A noo de espetculo como unidade cor-responde a uma configurao piramidal daautoralidade. No topo est o autor do espetcu-lo, funo que concentra a concepo da obra ecentraliza as relaes chamando para si cada ele-mento e cada criador, que mantm com ele umdilogo privado e exclusivo. A noo de plurali-dade, ao contrrio, postula a autonomia dos dis-cursos artsticos, sem que haja predomnio deum elemento sobre os demais: o encenador, aoinvs de soldar os elementos em uma unidadede estilo e um sentido comum, promove o afas-tamento entre eles.

    A autoria coletiva, ao contrrio, se confi-gura por meio do constante e quase exaustivodilogo coletivo que, se no forma necessaria-mente um sentido unificador, promove a m-tua interferncia e mtua contaminao entreos autores. O encenador no toma para si a ex-clusividade de interlocuo das demais funesartsticas mas, ao contrrio, coloca em circula-o as diversas subjetividades. Nas trs concep-es, portanto, o diretor desempenha um papelfundamental, embora distinto.

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  • AAAAA utoral idade, grupo e encenao

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    A terceira via de configurao da autoriatoma a pluralidade no como objetivo, mascomo ponto de partida, matria-prima para odilogo e o conflito das diferenas. Neste tipode processo, a autoralidade avana alm dos ter-ritrios individuais que produzem fragmentoscriativos a serem inseridos na obra: ela se proje-ta no espao que se estabelece como territrioexistencial coletivo. A concepo sai da privaci-dade para o espao pblico da sala. Se ao eu-autor plural vem se reunir um ns-autores,pode-se falar ento em produo de uma subje-tividade, fonte para a coletivizao da autoria.

    Neste caso, ao invs da esquizofreniaapontada por Bruno Tackels, talvez se possa fa-lar em hibridismo, como no exemplo da Cia dosAtores (RJ), em que, no campo das decises ar-tsticas, ora as escolhas so totalmente do dire-tor, ora so coletivas (Santos, 2004, p. 58). Odiretor Enrique Diaz, ao se referir ao modo decriao do grupo, considera que os atores soghosts directors, uma vez que...

    em todos os espetculos h sempre uma oumais proposies estticas que so lanadas

    como enigmas e que so seguidas de uma bus-ca incessante de verificaes, raciocnios,questionamentos, novos materiais, dvidas econcluses, sempre feitas em grupo (EnriqueDiaz, programa do espetculo Melodrama,Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Ja-neiro, 1995).

    A noo de autoralidade nasce em funodo processo criativo, quando j no se necessitalutar pela autonomia do teatro em relao li-teratura, quando o encenador foi liberado dedelimitar o seu territrio em uma autoria indi-vidual. As trs concepes de autoralidade como unidade, como pluralidade e como cole-tivizao divergem esttica e eticamente. Teo-ricamente, o teatro de grupo seria a modalida-de organizativa mais propcia ao exerccio de ummodo coletivo de criao, mas apenas se admi-tirmos que o conceito grupo tem uma moti-vao poltico-existencial que antecede a obra ese instaura na fundao do coletivo-autor, pas-sando inevitavelmente pelo modo como o dire-tor e os atores exercem suas funes.

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  • sssss a l a ppppp r e t a

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