UAb - Antropologia Geral - Capitulo 4

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UAb - Antropologia Geral - Capitulo 4

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    SUMRIO

    4.1 A invariante: o mtodo

    4.1.1 A prtica de terreno: a observao directa (participante e no- -participante)

    4.1.2 Os meios tcnicos auxiliares do investigador

    4.1.3. A observao indirecta: o registo de imagens, a fotografia area e afoto-interpretao4.2 Em busca de objectividade4.3 Pontos de mtodo fundamentais: observar o infinitamente pequeno

    ,,_e.o,quotidiano - a etnografia; o estudo da totalidade - a etnologia; a anlise comparativa - a antropologia r. '

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  • Objectivos de Aprendizagem

    Aps a leitura do IV Captulo - Princpios metodolgicos, o leitor devercapaz de entender:

    O mtodo etnolgico geral

    A importncia da presena do investigador no terreno e a atitudeindispensvel

    A exigncia de constituio de um grupo pertinente de informantes

    A necessidade da elaborao de um protocolo de andamento no terreno

    A diferena entre plano de observao e plano de exposio

    O desenrolar do protocolo de investigao e a sua constantereformulao

    A diferena entre a observao participante e no participante

    O papel das diferentes fases na construo do objecto antropolgico

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  • 4.1 invariante: o mtodo

    "Em antropologia, o mtodo corresponde a uma totalidade constituda pordiferentes procedimentos e etapas de construo da investigao. Ou seja, ainvestigao o resultado de um conjunto de procedimentos metodolgicosassentes especialmente: 1) numaboainformao bibliogrfica; 2) num pontode partida terico em fornia de hiptese ou de um conjunto de questionamentos;

    3) num mtodo geral e mtodos especficos em funo dos quais se organizamos protocolos de investigao, segundo um plano concreto de observao e

    respectiva ordem de execuo no terreno; 4) em diferentes materiais e tcnicasauxiliares. A maior ou menor conjugao deste conjunto de procedimentosmetodolgicos depende das etapas - etnogrfica, etnolgica ou antropolgica

    " e tipo de objecto geral da investigao a realizar, tendo sempre em mente a"comparao e os elementos a comparar com outras investigaes de mesmanatureza.

    Assim, partida, no incio da etapa etnogrfica, o estudo de uma sociedadeou de um segmento temtico relativo a esta, requer uma preparao tericaprvia apurada, designadamente pela aquisio de informao bibliogrfica.Tal, principalmente se o estudo em causa no for indito e entretanto houver

    _ publicaes sobre o tema. Com efeito, a construo de novas hipteses tericaspassam pelo conhecimento do que outros cientistas j tenham dito e concludosobre areferida sociedade - caso contrrio corre-se o risco de rodear o assuntosem progredir.

    Uma vez esta informao terica adquirida, ser possvel levantar eventuais_Jpteses tericas ou mais modestamente questes sobre o que se pretende

    investigar. No caso de se querer elaborar uma monografia sobre a globalidade-de uma determinada sociedade, corrente partir-se para o terreno sem grandespriori, emergindo interrogaes mais profundas posteriormente.

    Quanto ao mtodo geral praticado pelos antroplogos, na fase etnogrfica,este consiste necessariamente na observao directa no terreno, porimpregnao longa e pessoal, relativamente a um determinado contexto social

    ' e resulta de diferentes aspectos especficos disciplina. Resulta, em primeirolugar, indirectamente, da dificuldade geral inerente as cincias sociais ao colocaro investigador naposio simultnea de observador e objecto de observaode mesmo carcter que ele. Esta dificuldade por natureza inerente cinciaantropolgica dado o seu mtodo consistir na observao directa das prticassociais de outros seres humanos, desde logo de mesma ndole que o observador.Assim, a dualidade, necessria objectivaco dos fenmenos observados praticamente nula e implica introduzir uma separao metodolgica artificialentre os dois termos, a qual se traduziu durante muito tempo pelo estudo de

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  • urn determinado tipo de sociedades com as caractersticas enunciadas nocaptulo anterior, ou seja as sociedades ditas primitivas.Pode dizer-se que, no seio das cincias sociais, a especificidade do mtodoempregue muito prprio da antropologia social e cultural, de certo modo semelhana das cincias ditas exactas. Mas contrariamente a estas ltimas,onde o objecto observado nitidamente exterior ao observador, ou histija,onde a distncia entre o observador e o objecto de estudo obtido atravs dotempo que separa o historiador do assunto que estuda, em antropologia anatureza da dualidade necessria implicapara obter as mesmas condies -a introduo de uma distncia metodolgica artificial entre os dois termos. Eesta separao foi - e ainda o hoje embora menos exclusivamente, como jreferi - obtida graas distncia geogrfica que pressupe a distncia culturalnecessria entre o observador e o objecto observado. Por outras palavras,distncia obtida pela introduo de uma dualidade fundadora:~a pressupostadiferena cultural (pressuposta, na medida em que possvel existiremcontinuidades culturais separadas por descontinuidades espaciais).De facto, a distncia geogrfica introduzida, ao eleger como objecto de estudosociedades distantes da do investigador, suposta oferecer (actualmente, cadavez menos dada a mundializao de modelos idnticos de desenvolvimento)um universo de observao social e culturalmente diferente da sociedade doobservador. Com efeito, a distncia geogrfica no significa neste caso meraseparao quilomtrica mas tambm um. afastamento espacial de naturezacultural. Nestas condies, a distncia geogrfica dever facilitar odescentramento psicolgico, social e cultural do observador a fim de lhe permitirurna melhor objectivao da sociedade estudada, a partir da sua integraopessoal nas categorias sociais e culturais locais.

    Porm, da natureza do tipo das sociedades ditas primitivas (na linguagem dosevolucionistas), privilegiadamente observadas at pouco tempo pelosinvestigadores, ou seja, na maioria dos casos, sociedades sem escrita, ousociedades ditas tradicionais (as quais, pertencentes a reas de escrita, assentamna oralidade como as sociedades camponesas) deriva - para alrn de outrasrazes - o facto do antroplogo se ter concentrado necessariamente no estudo da contemporaneidade do seu funcionamento. Por outras palavras, observaragrupamentos humanos onde no existem registos sob a forma de arquivos,livros, bibliotecas etc. que de algum modo relatem os seus modos de vidaanterior e possibilitem, para alm do estudo do presente, o seu estudo histrico.Nestes agrupamentos, o registo dos acontecimentos histricos depende dacapacidade da memria colectiva, em funo da qual a sua transmisso se fazoralmente. Contudo, apesar do que acaba de ser dito, tambm verdade que,em alguns contextos, certos acontecimentos passados podem ser conservadossob outras formas que no a oral nem a escrita: gravados em monumentos,

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  • no objectos diversos, na prpria natureza, etc. Porm, apesar de conservarem,alguma memria sob a forma material, o seu alcance histrico , como se

    :;;:I:pode.irnaginar, reduzido.

    Todavia, repita-se, a antropologia social uma cincia do Homem no sentodo que para atingir o seu objectivo se debrua especialmente sobre acontemporaneidade das sociedades, mas inclui naturalmente a sua dimensohistrica. Somente, dadas as caractersticas destes agrupamentos humanos sem

    ~scnt7 dimenso histrica posta entre parnteses, incidido a investigaoquase exclusivamente na actualidade dessas sociedades, atravs da observao

    rdifcta:

    Retomando a ideia da dualidade necessria objectivao dos fenmenosobservados, conveniente dizer que a distncia "g o grfico-cultural" no

    ' Intervm com a mesma acuidade no caso da antropologia europesta e emparticular quando efectuada por etnlogos autctones. Estou no entantoconvencido, por experincia prpria, que, na maioria dos casos das etnologias

    "domsticas, a aconselhvel distncia cultural obtida, numa certa medida,pela distncia social, a qual induz uma dualidade propcia objectivao darealidade estudada. Por exemplo, quando um etnlogo estuda no seu prprio

    ^pas a sociedade camponesa ou rural qual ele no pertence, a situao entre-.ele e o meio observado apresenta uma certa polaridade scio-cultural. Ouseja, o observador e os observados so de origens suficientemente diferentespara induzir uma certa distncia metodolgica necessria objectivao darealidade. Alm disso, a formao universitria recebida pelo investigador criauma certa polaridade social e cultural ern relao, ao meio que observa.

    ...Porm,, podem acontecer situaes inversas, quando o etnlogo se propeobservar meios sociais diferentes do seu mas de categoria social "mais elevada",

    - facto que lhe permite igualmente manter a polaridade cultural desejada. Ouainda, estudar meios sociais e culturais idnticos ao seu que, por ausncia dareferida polaridade, obrigam a uma objectivao bastante mais forada.Todas estas questes de metodologia so muito importantes, a ponderar casoa caso, e das quais depende a validao ou invalidao da investigao.

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  • 4.1.1 A prtica do terreno: observao directa, (participante e noparticipante)

    Assim, uma vez os princpios metodolgicos bsicos admitidos, o antroplogoprepara-se para se fixar pessoalmente no terreno e proceder a uma minuciosaobservao da sociedade em causa. Para tal, se houver investigao e literaturaproduzidas anteriormente sobre o tema. o investigador informa-se acerca doassunto a fim de poder iniciar um novo ponto de partida terico. Ou seja,poder formular novas hipteses ou novos questionamentos. Em certascircunstncias de proximidade geogrfica, ser possvel procederpreliminarmente a uma observao exploratria, a partir da qual se dar incio elaborao do primeiro plano de observao no terreno.

    Plano, a no confundir com o plano de exposio. Com efeito,, o plano de .. J|.observao no assemelhvel a urri plano de exposio, este ltimo nosendo mais do que o sumrio de uma obra j terminada (ternas tratados numlivro) correspondente aos resultados de uma investigao.A elaborao de um plano de observao articula-se necessariamente com otipo de investigao a efectuar - sociedade, instituio, segmento temtico ede onde emergem as respectivas hipteses ou questionamentos que por sua . 1.vez do corpo ao plano. Um plano de observao corresponde ao conjunto |das interrogaes que o antroplogo se coloca a propsito do objecto de estudo .5em causa, traduzidas em mltiplos aspectos a observar, segundo um fdeterminado protocolo a seguir no terreno. Os aspectos a observar articulam- *se e justificam-se uns emrelao aos outros, num todo coerente em relao ao . lponto de partida terico. Assim, os aspectos a considerar no devem ser |elaborados ao acaso mas respeitar uma certa coerncia e lgica relacionada Jcom os objectivos da pesquisa. Naturalmente, no h planos de observao *definitivos, estes so susceptveis de serem constantemente alterados em |resultado de sucessivas novas observaes e consequentes interrogaes. -l-

    f *!Porm, os planos devem ser minuciosamente organizados. E sabido que por fnorma s se encontra aquilo que se procura. A investigao no pode ficar Jdependente do acaso, embora por vezes deva alguma coisa a felizes imprevistos Fe at resulte, em certas circunstncias, da mera intuio do momento. Mas tal, 5corresponde a situaes excepcionais, com as quais no se dever contar. l

    i.-Em funo da problemtica, feita a escolha do local de observao e esta /deve ser justificada pela sua pertinncia em relao aquela. A partir deste 7momento, o antroplogo criar as condies da sua instalao junto daqueles ^que pretende observar, para proceder execuo do protocolo de andamentono terreno. Uma vez chegado ao terreno dever procurar um alojamento cuja J!"localizao estratgica depender, naturalmente, do tipo de investigao a ; _realizar e das disponibilidades existentes. No entanto, e na medida do possvel, '

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  • o stio da instalao deve ficar o menos possvel distante do centro das relaessociais quotidianas mais intensas a que o investigador pretende dedicar a sua'ateno. De preferncia procura-se residir em casa de um habitante. Para tal,ser necessrio que este ltimo reuna algumas condies adequadas ao papelde anfitrio. Ou seja, no mnimo, no se encontrar no centro de conflitos que

    ' possam limitar a aco do investigador e, de preferncia, usufruir de algumainfluncia ou prestgio junto dos outros membros do grupo. Enfim, todos estesaspectos gerais a respeitar dependem do facto de se tratar de sociedades extra-europeias ou europeias, sendo a situao nestas ltimas naturalmente diferente.Por exemplo, no caso de comunidades locais europeias, o cientista deve fazer

    '""."^tuopara guardar o mximo de liberdade e neutralidade face aos vrios poderese influncias particulares locais. Assim, deve evitar-se ser alojado por autarcasou outros notveis para no, pelas suas posies e opinies exclusivas,privilegiar relaes que possam condicionar o seu julgamento e limitar a sualiberdade de movimentos. Para alm destas prescries a cumprir, o resto docomportamento do observador no terreno uma questo de carcter pessoal,bom senso, adaptabilidade s condies do meio ambiente, aptido para orelacionamento social. No raro antroplogos nefitos falharem a sua tentativade insero no terreno por inexistncia de um mnimo de capacidade deadaptao a um meio estranho ao seu.

    - Reunidas as condies, o investigador procurar constituir um grupopertinente de informantes. Para tal, no basta relacionar-se ao acaso comum certo nmero de indivduos. O grupo deve apresentar caractersticas derepresentatividade em relao ao conjunto dos habitantes locais. Seria um erroincluir no referido grupo exclusivamente homens, mulheres ou jovens. Ambosos sexos devero estar representados segundo as respectivas classes etrias,

    * ~~ncfso'rn funo da idade mas tambm das diferentes categorias de significadosocial local. Para exemplificar o melindre que pressupe a organizao dapertinncia de tal grupo, vem-me ideia um exemplo. No caso portugus, emcertos contextos sociais, seria um erro imaginar estar-se perante um indivduo

    . com estatuto de adulto pelo simples facto deste ser casado. Na realidade no exactamente assim, corrente no nosso pas, em meio rural tradicional, esteestatuto s ser plenamente adquirido aquando do nascimento do primeiro filho.

    l Desde logo, no presente exemplo, a idade (at certos limites desta,naturalmente) e o simples estatuto de indivduo casado no so critrios

    l suficientes para fazer parte de um grupo de adultos, sendo igualmente necessrioa condio de progenitor.

    Na constituio do grupo de informantes, dever ter-se igualmente em conta arepresentao das diferentes actividades por exemplo: caadores, cultivadores,artesos, etc.

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  • Enfim, a representatividade do grupo de informantes depende de todo umconjunto de variveis cuja lista no possvel elaborar priori e respectiva pertinncia s o cientista pode avaliar em funo da especificidade do terrenoonde trabalha.

    Mas qual a utilidade de um grupo de informantes? Em rigor, este grupodeveria designar-se preferencialmente grupo privilegiado de observados.De facto, para alm de informar, os membros que o constituem representam Tum grupo de indivduos onde o investigador se integra de fornia a poder observar vontade, de modo privilegiado, o que nem sempre fcil fazer com ltodos os restantes. Ou seja, poder observar o que no praticado em pblico imas na esfera mais ou menos privada. No entanto, tambm verdade que este "Jgrupo informa igualmente e de maneira directa, dado o investigador os poder J

    . interrogar acerca do que pretende e as informaes obtidas orientarem e "acelerarem o processo de investigao. Fica porm, se necessrio e possvel; a ~~^ Tfcondio de confirmar pela observao as informaes fornecidas.

    Nas diligncias para constituir um grupo pertinente de informantes, o sexo doinvestigador tem influncia na sua possibilidade de integrar mais facilmenteum grupo de homens ou de mulheres, segundo se trate do sexo masculino oufeminino. Tendo conscincia da dificuldade (ou mesmo absoluta

    impossibilidade) de penetrar na intimidade de um grupo de informantes desexo oposto ao do investigador, este tentar obter as informaes eventualmentenecessrias por vias indirectas, contudo sem as poder confirmar pela observaopessoal na maioria das vezes.

    O protocolo de andamento no terreno deve obedecer a uma programaoquotidiana e depender o menos possvel do acaso de eventuais acontecimentos,embora estes possam naturalmente ser sempre bem-vindos. As informaesso anotadas a cada instante, medida que vo acontecendo, mas no fim dodia devero ser estruturadas em cadernos de triagem e preservadas de eventuaisextravios. Mais tarde podero ser organizadas em fichas, como gostam defazer certos autores, para uma utilizao mais fcil.

    aptido de integrao e adaptao pessoal do investigador no terreno, junta-se a necessidade de capacidade de observao a qual , como facilmente secompreende, extremamente importante para a conduo da investigao e origor da descrio. Existem diversos nveis de observao e descrio ater emconta nesta fase do estudo. fase de inqurito exploratrio corresponde umprimeiro nvel de observao geral, impressionista (com a finalidade de daruma orientao ao seguimento da pesquisa), a partir do qual se seguemsucessveis nveis mais detalhados, consentindo inclusivamente, a medio, aquantificao, a compreenso do funcionamento.

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  • Para exemplificar a importncia das diferentes escalas de observao, torne-seo caso da descrio de uma realidade fsica como um edifcio. No presentecaso no teria rigor algum, nem grande interesse, referir unicamente quedeterminado edifcio apresenta a forma quadrada, redonda ou rectangular epossui um certo tipo de cobertura ou telhado com certo nmero de guas.Feito nestes moldes, este gnero de descrio no informa de modo aeventualmente permitirexigncia absoluta -, posteriormente, a reproduodo edifcio em causa. Para atingir esse objectivo torna-se necessrio realizaruma levantamento tcnico do edifcio, ou seja arquitectnico. E no caso deno sepossurem as competncias necessrias para tal, ser preciso recorrer a

    "uni especialista no assunto, no presente caso um arquitecto. Nem mais nemmenos. Porm, nestas condies, intervm necessariamente apluridisciplinaridade pela qual o antroplogo obtm a competncia necessriapara compreender e empreender a rigorosa descrio de uma determinadarealidade. Ou inversamente, o referido especialista arquitecto obtm igualmenteuma formao em antropologia para poder abordar o estudo de situaesparticulares, como no presente caso um edifcio antigo ou de caractersticastcnicas pouco comuns para um arquitecto modernamente formado (o quesignifica ter igualmente conhecimento das funes para que o edifcio foidestinado).Esta necessria atitude de rigor fundamental para a reconstituio oureabilitao de patrimnios em vias de desaparecimento. Realizarlevantamentos tcnicos exactos, a nica forma de conservar testemunhospatrimoniais sob a forma de descries e assim possibilitar posteriormente asua reproduo em termos idnticos.

    Resumindo, a fase denominada etnografia consiste na observao directa e.na descrio dos factos reais, tais como eles sobressaemno inqurito de terreno.Trata-se de um trabalho sado directamente da experincia pessoal do autor.Toda a descrio e anlise de fenmenos sociais e culturais particularesrepresentam o resultado de um estudo de carcter etnogrfico. A etnografiaconstitui a primeira etapa da investigao que em seguida desenvolvidaatravs da sntese etnolgica. De facto, as observaes directas, as descries,a experincia pessoal, no so suficientes. E necessrio explicar e sintetizar.Papel reservado etnologia.

    Trata-se de resolver pela sntese etnolgica certos problemas tipolgicos. Nopassado, e num passado mais recente, na Europa sobretudo, considerou-se serinsuficiente esta sntese (foi o caso da etnologia alem). Em Frana pertenceu,durante muito tempo, sociologia (no sentido durkheimiano) ou mesmo filosofia, o cuidado de ir mais longe na compreenso dos fenmenos sociais.Porm, hoje cabe antropologia social e cultural realizar esta terceira etapada sntese e visar concluses vlidas para todas as sociedades, como j foireferido'.

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    Desde logo, facilmente se percebe que, segundo o assunto tratado ou tipo deproblema que se procura investigar, possvel situar-se ora ao nvel etnolgicoora ao nvel da antropologia social e cultural e na maioria das vezes situar-senos dois ao mesmo tempo. , por exemplo, o caso do artigo sobre "As estruturassociais no Brasil Central e Oriental" de Lvi- Strauss publicado na sua obra aAntropologia Estrutural [1985]. Perspectiva analtica que se situa ao nvellocal mas tambm a um nvel mais abstracto das estruturas cujo substrato socialultrapassa o plano local.

    Antes de terminar, gostaria de levantar a questo da interpretao dosfenmenos observados. necessrio notar que a interpretao de determinadosfactos pode representar uma tarefa mais difcil do que parece. A razo derivade nem sempre ser suficiente e adequado interpretar um certo fenmenounicamente luz da observao directa. Tomemos o seguinte exemplo, comumnas sociedades ocidentais: o ajuntamento de um grande nmero de pessoasnuma praia. A observao deste fenmeno social pode levar automaticamentea pensar que se essas pessoas se juntam de forma excessiva porque no osincomoda uma boa dose de promiscuidade humana e assim revelarem umforte grau de comportamento gregrio. Ora, o sentido da interpretao susceptvel de no passar da simples aparncia. De facto, no incongruentepensar que as razes podem ser mltiplas. Uma interpretao superficialinduzida pela mera observao (constatar um agrupamento de indivduos) podelevar a este tipo de concluso imediata e provavelmente a uma generalizaoabusiva acerca de uma populao ou categoria de pessoas.

    Por outras palavras, observar unicamente no suficiente na maioria das vezes.Independentemente da eventual dissimulao que pode conter urn discursoaquando de uma entrevista, esta no me parece dispensvel para se saber oque pensam efectivamente os actores sociais acerca das questes que elesprprios protagonizam. O dilogo representa um procedimento complementarindispensvel para compreender as verdadeiras razes de um dadocomportamento. Procedendo deste modo, eventualmente possvel que sechegue a uma concluso diametralmente oposta que aparentava umadeterminada situao. No exemplo da praia, o grande nmero de pessoasamontoadas poder dever-se ao caso de esta ser a nica do local, de reunircondies nicas, a isto ou aquilo (praia guardada, guas calmas, cafs erestaurantes, etc.). Inclusivamente, poderamos ficar a saber que, ao contrrioda aparncia, as pessoas frequentadoras da referida praia detestam apromiscuidade e se pudessem afastar-se-iam umas das outras para introduzir,tanto quanto possvel, uma distncia razovel entre elas.

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  • 4 1.2 Os meios tcnicos auxiliares do investigador

    O trabalho de pesquisa no terreno tem uma panplia prpria de instrumentosindispensveis ao investigador: cartas geogrficas e fotografias areas do local,se existirem; cadernos de diferentes dimenses ditos "minifold" (alguns de.pequenas dimenses sempre " mo" para fazer anotaes rpidas). Estes,tema particularidade de se apresentarem como folhas de papel qumico brancoem que a mesma folha serve para tornar notas no verso e no reverso parareproduzir as anotaes, duplicando-as assim (a duplicao facilita aestruturao das notas e a sua conservao em lugar seguro no caso de perdadas informaes principais); aparelho de fotografia (motorizado para obter

    . sequncias de imagens); gravador de som; binculos (para, observando

    . distncia, avaliar se uma determinada deslocao necessria, etc.); bssolade preciso; altmetro (para estabelecimento de alturas e valores dos declives);fitas mtricas (para pequenas e grandes mensuraes); estereoscpio de bolso'

    .(para. observar o relevo nas fotografias areas e facilitar a identificao doselementos de leitura no terreno).A necessidade de maior ou menor utilizao deste material depende do trabalho

    "de campo a realizar e a regio onde efectuado. Mas quer se trate de uma'aldeia transmontana ou um lugar em qualquer parte recndita do planeta, omaterial referido ser sempre, mais ou menos, todo necessrio. Naturalmente,se for questo de um inqurito com o simples fim de estabelecer genealogiasde parentesco por exemplo, alguns destes instrumentos no sero obviamentenecessrios.

    4.1.3 A observao indirecta: o registo de imagens, a fotografiaarea e a foto-interpretao

    \ este momento utilizei sempre a expresso observao directa para referiro procedimento do antroplogo no terreno. Ou seja, examinar com ateno afim de conhecer e constatar pessoalmente. Sendo esta a definio, os leitoresperguntaro se existe outra forma de observar seno directamente e, de facto,tm razo. Colocada a questo de modo geral, a observao sempre directacaso contrrio no haveria observao. Mas acontece porm que, graas srelativamente novas tcnicas, possvel actualmente, sem grandes abusos delinguagem, proceder a algumas observaes de forma indirecta cornoprolongamento da observao directa.

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  • Com efeito, a observao indirecta torna-se possvel pela existncia de tcnicastais como as fotografias e em particular as realizadas com aparelhos motorizadospermitindo a decomposio dos movimentos, em sequncias de vrias imagenspor segundo. As cmaras modernas de amador consentem hoje a fixao deimagens em movimento (de danas, rituais diversos, etc.) sem necessidadeabsoluta de grandes conhecimentos tcnicos de cinema. Soma-se atai, o registode som de alta definio que embora no seja dado observao (mas noterreno tambm no) fica disponvel para uma anlise indirecta (sobre msica,oralidades diversas).A eficcia cientfica destas tcnicas auxiliares deve obedecer porm a algumrigor na sua utilizao. No registo de imagens por exemplo, ser aconselhvelanotar a sensibilidade das pelculas (medida em asas ou dines), a data, a horado dia e sempre que possvel a que distncia do objecto foram tomadas, paraalm de outros elementos de identificao da imagem. A anotao da distncia" importante na medida em que susceptvel de ajudar a determinaraproximadamente a escala e assim permitir medies em situao delaboratrio.

    As fotografias areas, em especial, representam um precioso documento deanlise do terreno como tambm de vista de conjunto e sntese em situao delaboratrio, tanto antes da ida como aps o regresso do terreno. A/ofo-interpretaao, realizada graas aos diferentes parmetros registados aquandoda realizao da fotografia area: como o sentido do voo, a altitude do avio,a hora do dia, o ms, o ano, as condies geogrficas do terreno, etc., permitemvisualizar distncia uma quantidade de aspectos existentes no local dafotografia. Para alm disso, a fotografia area transposta para o papel, segundocertas convenes, apartir de grelhas de interpretao preexistentes, permite aelaborao de pequenos mapas escala que so da maior utilidade. Merceste documento, possvel, pela vista de conjunto que oferece do local,observar distncia elementos particulares difceis de detectar directamenteno terreno (e confront-los no local com uma observao mais minuciosa) e,pela vista de sntese panormica que oferece, permitir uma avaliao sistemticado todo.

    Esta fonte de observao indirecta quando disponvel - das mais ricas e umpreciosssimo documento para um bom andamento no terreno. Realizadasperiodicamente ao longo do tempo (pelos servios geogrficos e cadastrais),as fotografias areas autorizam ainda a comparao entre os diferentesmomentos espaciais da sua obteno e assim as eventuais alteraes dasconfiguraes scio-morfolgicas locais.

    Deve incluir-se ainda nesta categoria de procedimentos de estudo distncia,a cartografia, os grficos, os diagramas. A cartografia de campo, uma imagemdo terreno onde so distribudos os dados de que dispe o investigador, um

    "TT"'!

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  • documento informativo distncia dos mais importantes. Em regies onde acartoarafiajexiste, as diferentes cartas geogrficas elaboradas segundo vriasescalas e outras convenes, so de uma grande preciso quanto representaoda morfologia geogrfica e scio-geogrfica. Mas nas regies, zonas ou locais,onde esta cartografia no existe, o prprio investigador poder ver-se obrigadoaelaborar cartas demogrficas e etno-sociolgicas de diferentes tipos: comomapas de densidade (de populao), cartogramas (acerca de diferentescaractersticas etnolgicas, sociolgicas, etc. susceptveis de caracterizar uma'regio, uma zona ou um pequeno local).

    Outros tipos de representao grfica, cuja finalidade fornecer uma informaoquantificada, podem ser igualmente necessrios, segundo os diferentes mtodosde apresentao de dados: como os grficos, diagramas de barras (a fim derepresentar uma grandeza numrica segundo barras alongadas em que ocomprimento destas proporcional grandeza representada), diagramas desectores (estes diagramas so particularmente utilizados na construo daspirmides por grupos etrios), diagramas de parentesco (para representar

    "genealogias concretas ou modelos de parentesco). Como se pode imaginar,nem sempre todos os estudos efectuados requerem estes documentos. Porm,nos casos em que so indispensveis, no s permitem, atravs de uma espcie

    - de observao distncia, a anlise aprofundada dos diferentes dados recolhidosno terreno - segundo certos parmetros de medio e quantificao - comosobretudo ilustrar e demonstrar as concluses retiradas; enquanto condioabsoluta de validao de qualquer investigao.

    Gostaria de terminar, chamando incidentemente a ateno para o facto dametodologia e os meios auxiliares, terem outros contornos que convm evocar,

    -para alm dos aspectos prticos que j referi. Como indiquei no incio dolivro, o campo da antropologia alargou-se a diferentes universos at poucoexcludos da sua esfera de estudo, abrindo assim a via a novos desafios. Defacto, com o alargamento do projecto antropolgico s sociedades de massaocidentais, dificuldade prpria da dualidade do objecto de investigao(simultaneamente sujeito observado e sujeito observando), acrescenta-se umaoutra. Esta, relacionada, precisamente, com o facto de a antropologia terdedicado (pelas razes histricas j abordadas) toda a sua ateno ao mundoextra-europeu, onde os investigadores deparavam com sistemas sociais muitodiversos e diferentes dos europeus. Com efeito, o quase exclusivo estudo decontextos culturais exticos (ou dito s primitivos) levaram os investigadores aforjar conceitos, mtodos e instrumentos de observao adaptados explicaodesses mesmos contextos. Contudo, alguns deles, quando transpostos para osdiferentes terrenos europeus, apresentaram dificuldades de ajustamento s novasrealidades. Nestas condies, no de admirar que os investigadores europestasse encontrem por vezes face a situaes para as quais esto mal preparados,tentando fazer encaixar realidades em teorias elaboradas sobre outras

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  • 1 Assunto considervel men-te estudado era alguns pa-ses da Europa. JacquesGoody na Gr-Bretanha eGeorges Augustins em Fran-a apresentaram excelentestipologias sobre a devolu-o dos bens. A prpriaFrana tem sido objecto denumerosas pesquisas sobreo assunto. Em Portugal estetipo de estudos tm bastanteexpresso, tanto por partedos juristas e historiadoresdo direito como por antro-plogos, em particular Brian0'Neil.

    existncias. Desfasados, certos conceitos e mtodos emperram dificultando oavano da investigao no terreno. Apropriadamente, os diferentes instrumentosde metodologia e anlise devem ser, e felizmente tm-no sido pouco a pouco,repensados em funo dos novos terrenos de observao, se queremos obterresultados fiveis (corno o caso, por exemplo, em matria de devoluo dosbens de partilha e respectiva tipologia').

    4.2 Em busca de objectividade

    No que respeita a observao directa praticada pelos antroplogos e anecessidade de objectividade, convm dizer que esta advm da novidade dasprticas sociais e culturais com-que se confronta o observador- de- uma-determinada sociedade. A distncia cultural suposta permitir dar conta dessanovidade e dispor de uma posio de maior objectividade comparadamentecom as condies de estudo na sua prpria sociedade. Nesta, a dificuldade deobj activao resulta do facto do mais habitual dos comportamentos sociais eculturais dos seus conterrneos serem susceptveis de parecerem banais epassarem despercebidos, tanto eles fazem parte das suas prprias prticashabituais.

    Por outro lado, a observao directa dos factos relativiza as informaesfornecidas pelos informantes. Com efeito, as informaes podem resultar desimples representaes de prticas a que no correspondem, a no ser ideiaque os indivduos fazem delas. Assim, graas observao, o investigadorpode abranger um nmero de factos considervel e impossveis de prever noinqurito ou na conversa informal. Pode ainda constatar eventuais hiatos entreo que afirmado por um indivduo ou um grupo de indivduos, enquantorepresentao social colectiva, e o que na realidade praticado. A observaono s consente a validao ou invalidao das afirmaes do locutor, comopermite ainda avariar o significado da diferena entre representao, ou discursoestratgico de camuflagem eventual, e prtica real. Por outras palavras, umaobservao apurada possibilita uma descrio meticulosa, pelo que facilmentese percebe que sem o rigor de uma no pode haver a qualidade da outra.

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  • 4.3 Pontos de mtodo fundamentais: observar o infinitamentepequeno e quotidiano - a etnografia; o estudo da totalidade- etnologia; a anlise comparativa - a antropologia

    "UnToutro aspecto importante inerente ao mtodo, consiste na fundeaao dapesquisa no infinitamente pequeno para, graas a uma construo indutiva2,

    -poder explicar o geral: ou sej a, importa partir do particular para o geral.Obviamente, esta construo ope-se ao andamento dedutivo3. Andamento,praticado designadamente pela sociologia cuja investigao consiste geralmenteno enunciado de uma hiptese seguida pela sua verificao, segundo mtodosde pesquisa prprios.

    A abordagem etnolgica, pela sua natureza, autoriza, graas ao mtodoetnogrfico, a tomada em considerao dos factos mais humildes da actividadehumana, os pormenores do quotidiano que regra geral escapam ou interessammenos o observador comum. Este ponto mais que evidente no domnioeuropeu, quando se tratam de factos que ningum se digna consignar por no'representarem fenmenos de importncia nacional ou no implicarem grupossociais dominantes.

    -Na realidade, uma sociedade constituda por vrias partes ou componentesque, em muitos aspectos, se articulam umas com outras ou se influenciammutuamente e do forma a urn todo; facto sociolgico que conduz necessidade de percepo das totalidades sociais. Mas estas no devem serconfundidas corn a soma dos diferentes elementos que constituem cada todosocial. Durante algum tempo, o no entendimento do fenmeno neste sentido,

    ""deu"origem, designadamente em Portugal, anumerosas monografias de caracterextensivo. Nelas, se caracterizava uma determinada sociedade em funo decertas categorias sociais (ou nveis) mais ou menos preestabelecidas e quegeralmente retratavam o seguinte: 1) aspecto da povoao; 2) estrutura social;3) economia; 4) crenas populares; 5) festas cclicas do ano; 6) artes populares;7) provrbios; etc.Nas monografias de carcter mais impressionista, uma vez concluda acaracterizao do local estudado, apartir dos factos observados, consideradosmais ou menos particulares, alguns autores limitavam-se a deixar estes mesmosfactos, organizados em captulos, justapostos uns aos outros (tentando em algunscasos induzir as suas origens histricas), sem tentar evidenciar precisamenteas respectivas articulaes entre eles e proceder respectiva anlise. Esta atitude v. de facto vo imaginar poder contabilizar tudo quanto existe numasociedade, tentando fazer uma descrio supostamente exaustiva e somar aspartes para tentar obter a totalidade social. E com tal, pensar poder conseguiros meios de compreenso de uma determinada sociedade na sua globalidade.

    2 O raciocnio indutivo con-siste era construir um termogeral a partir de factos par-ticulares.

    3 O raciocnio dedutivo con-siste em retirar de uma ouvrias proposies {enunci-ado verbal susceptvel de ser

    .dito verdadeiro ou falso)outras, segundo leis lgicasprprias. Por outras pala-vras, qualquer argumenta-o mais ou menos lgica apartir de dados iniciais.

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  • 4 Basicamente, o facto soci-al corresponde s realizaese acontecimentos ocorridosnuma sociedade, decorren-tes de processos de aco creaco social entre mem-bros de um grupo ou entregrupos sociais. A definiogeral de E. Durkheim[19S7] a seguinte: "Factosocial toda a maneira defazer, fixa ou no, suscept-vel de exercer sobre o indi-vduo urna coero exteri-or; ou ento, que geral nombito de urna dada socie-dade tendo, ao mesmo tem-po, uma existncia prpria,independente das suas ma-nifestaes individuais."

    3 Por excluso da maioriaou vontade prpria da mi-noria.

    6 vendetta, palavra de ori-gem italiana que serve paraindicar a aco de represli-as de uma pessoa em vistasde compensao de um actolesivo praticado a esta poroutra.

    Na prtica, em consequncia da impossibilidade em revelar a articulao dosdiferentes elementos que nele operam (devido orientao inicial dada investigao), dificilmente possvel vislumbrar o sistema e a sua lgica (algica do sistema no deve ser entendida no sentido de coerncia social masde um sistema de relaes mais ou menos interdependentes). A ausncia decompreenso da lgica do sistema e, desde logo, de compreenso profundada organizao social do contexto em observao, torna, por sua vez. impossvela comparao com outras sociedades.

    Entretanto, a questo passou a colocar-se de outro modo. O investigador passoua preocupar-se fundamentalmente com a procura dos pontos de passagem, derelao, de articulao ou influncia entre as diferentes componentes do sistema,

    De facto, dar importncia percepo da lgica que preside s relaes entrecomponentes de um sistema social extremamente relevante para a perspectiva-comparativa que a antropologia se prope realizar. Sobretudo se atendermosque as respectivas funes de um mesmo facto social4 existente em sociedadesdistintas podem ser diferentes em cada uma delas. Por exemplo, a aplicaoda pena de morte a crimes de sangue pode ter efeito dissuasivo, (funoexpressa), ou algum efeito, numa determinada sociedade (ou em certos gruposda criminalidade organizada), e noutra, ao contrrio, ter pouca dissuaso ounenhuma (inclusivamente no crime organizado). Assim, no caso das sociedadesciganas - sociedades fraccionadas e acfalas, existentes no seio de sociedadesmais vastas e corn Estado, vivendo significativamente margem das suasinstituies dominantes5 e privilegiando as suas prprias regras internas -, ondese pratica a vindicta (vendetta.6) como preo a pagar por crimes de sangue, asimples existncia desta sano no escrita mas admitidapor todos, passvelde ser aplicada por qualquer um em idnticas circunstncias, joga, na maioriadas vezes, umpapel preponderante naregulao do controlo social e contenodos conflitos graves.

    Inversamente, noutras sociedades - inclusivamente nas organizadas ern Estados -, afuno da mesma pena (reduzir os crimes graves) pode ter pouco ou no ter oefeito desejado.A diferena de grau de integrao social e de tenses internas pode explicar avariao. A dinmica interna, onde se produz uma menor integrao social econcomitantemente uma maior tenso social, susceptvel de se sobrepor tomada de conscincia da pena que se torna remota e abstracta em relao imediao do acto em vias de ser praticado.

    O exemplo penal referido, serve para enfatizar o facto de urn dado elementosocial ou cultural s fazer sentido em relao ao contexto onde ele se produz.Nestas condies, ao compararem-se elementos ou factos sociais entre sistemas tambm necessrio, e sobretudo, compararem-se lgicas globais. Noutros

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    !tlij.-!.-/-.

  • -ms necessrio compararem-se relaes e respectivos usos sociais parantender as razes de ser de um determinado facto.

    Sendo assim, a apreciao necessria de um elemento isolado do seu contexto,motivos de estudo meticuloso, conduzir a reintroduzi-lo imediatamente

    no seu contexto social a fim de avaliar o seu papel e sentido na totalidadesocial.

    A conceptualizao de fenmeno social total que acabei de referir, foielaborada a partir dos contributos fornecidos pelas obras de BronisawMalinowski, os Argonauts ofthe Western Pacific [1922], e de Mareei Mauss,o Essai sur l don, forme archaique de l 'change [1923]. Ambas, cada uma sua maneira e a urn ano de diferena, concorreram decisivamente para aelaborao do conceito de fenmeno social total. As duas obras completam-sena medida em que M. Mauss, para elaborar a sua teoria, era suposto conheceros materiais recolhidos por Malinowski e a recolha do material por este tinhasubjacente a teoria que o primeiro veio a formulai'.Nos Argonauts of lhe Western Pacific, Malinowski d conhecimento daextraordinria instituio da "Kula", praticada nas ilhas melanesianas daNova-Guin. Trata-se de um amplo priplo martimo inter-tribal de trocaspraticadas entre habitantes de uma vintena de ilhas da Melansia, na parteoriental da Nova-Guin7. O vasto circuito consistia na troca de braceletes ecolares de conchas e levava vrios anos a completar a volta at ao ponto departida. Braceletes e colares faziam circuitos inversos. A troca realizava-seentre pessoas de uma posio social determinada que procuravam alargar arede das suas relaes e adquirir maior prestgio. O interesse terico destasinstituies reside no facto das operaes no se resumirem a meras trocascomerciais e implicarem um conjunto de outros fenmenos - tcnicos,econmicos, de ostentao, redes de alianas diversas, cerimnias de carcterreligioso, de comunicao, etc. - interrelacionados nurn todo complexo.

    No Essai sur l Don, a partir de urna tentativa de explicao da "Kula", Mausselabora o conceito de "fenmeno social total", um dos mais interessantes dasua obra, e reala assim a importncia de no se poder apreender os factos davida social a um s nvel3. Para o autor, " [Os factos sociais] pem emmovimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e das suas instituies[.-.] e noutros casos, somente um grande nmero de instituies, [..] todosestes fenmenos so ao mesmo tempo jurdicos, econmicos, religiosos, emesmo estticos, morfolgicos, etc. [...] So "todos", sistemas sociais inteiros[...]". Por outras palavras, so factos sociais totais, segundo Mauss [1950:274-275].

    7 As ilhas mais conhecidasso as do arquiplagoTrobriand que estudou B.Malinowski e a ilha de Dobuestudada por R. Fortune.

    3 Para analisar a maioria dosfenmenos sociais neces-srio realizar um levanta-mento significativo da tota-lidade que cada ura delesrepresenta. Em seguida,procede-se sua leitura oua uma interpretao efec-tuada segundo um pomo devista particular. Diversifican-do estes pontos de vista, evi-ta-se que a observao dofenmeno e sua anlise ul-terior no deixem aspectosdemasiado importantes porcompreender. Sendo aindaque estes vrios pontos devista, sucessivamente aplica-dos, correspondem a outrostantos nveis da realidade es-tudada: entre outros, os n-veis econmico, tecnol-gico, ideolgico, etc. A rea-lidade destes nveis no passade uma existncia metodo-lgica e no devem ser con-fundidos com a realidade,porque efectivamente nopassam de pontos de vista.Como vimos mais atrs, al-guns autores atribuem-lhesum estatuto de realidade cmsi, fazendo-os assim adqui-rir uma realidade to forteque a noo de totalidadeacaba por perder sentido. Orecurso a um nvel de leitu-ra ou interpretao permiteobter unicamente a signifi-cao parcial de umfenmeno. O recurso ao n-vel econmico, por exem-plo, d a significao ou as-pecto econmico de umainstituio complexa, a qualcontm, para. alm deste,outros tantos pontos de vis-ta e nada mais. Torna-sesempre necessrio ir alm doconhecimento autnomo decada um dos elementos par-ciais apreendidos a diversosnveis e recoloc-los no con-junto das intcr-relaes queos ligam uns aos outros [M.Panoff, M. Perrin,1973.]

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  • 9 A palavra potlach perten-ce lngua ndia nootka esignifica "dar", no sentidode se ter a capacidade de ri-validade e provocao. Acerimnia do polach erapraticada pelas populaesda costa setentrional do Pa-cfico, na Amrica do Nor-te. Porrn, este tipo de com-portamento verifcvel,sob outras formas, noutraspartes do mundo, designa-damente em Portugal e emparticular durante as bodasde casamento onde se inves-tem avultadas somas de di-nheiro em prestaes deprestgio exacerbado.

    No mesmo sentido concorre o exemplo da cerimnia de ostentao dopotlach9,a qual Mauss interpreta como uma "prestao total de tipo agonstico" emconsequncia do sistema troca-ddiva que ela implica. A cerimnia dopotlach constava na distribuio de prendas ou na destruio de bens deprestgio, propriedade do autor da ostentao (aquando de um casamento,funeral, iniciao, rivalidade entre chefes etc.), a fim de adquirir ou reafirmaro seu estatuto social. A cerimnia era competitiva com outros participantesque concorriam num esprito de grande rivalidade e desafio, obrigando ehumilhando os rivais. No caso de distribuio de prendas, o donatrio nopodendo recusar a prenda que lhe era feita, encontrava-se na obrigao defazer uma contra ddiva, tanto quanto possvel superior, (o dobro segundoFranz Boas [1899]) sob pena de admitir a sua incapacidade de retribuio e,assim, a sua inferioridade social.

    A teoria de Mauss torna todo b s~entid no Essai 'silr l Dn hd concrtizconstruo do objecto de conhecimento em antropologia. Este objecto deixade centrar-se nos diferentes elementos institucionais como os ritos, o casamento,o direito, etc., considerados "abstraces" e isolados do seu contexto social,para se fixar na totalidade ern que se inserem e assumir assim sentido sob aforma de sistema.

    No extremo limite da fundamentao de Mauss, emerge a ideia de que s ofacto social total corresponde a uma realidade, na medida em que a actividadesocial constitui um sistema em que todos os aspectos esto interligados entresi.

    Ontro aspecto da perspectiva de M. Mauss consiste em deixar de se concebero "complexo" como decorrente do "simples" (invertendo desde logo aperspectiva evolucionista) e considerar imperativamente "os factos nas suasrelaes com o conjunto do corpo social de que fazem parte" e a "compreend-los a partir dos seus usos sociais" [1968]. O etnlogo tem assim por tarefarecompor o todo social, dar sentido a este todo e, simultaneamente, a cadauma das partes.

    Deste ponto de vista, as sociedades "primitivas" deixam de ser consideradascomo organizaes "particulares", ao atribuir-se~lhes arbitrariamente"originalidade" e "elementaridade" (quando se consideram separadamente assuas instituies), para passarem a ser concebidas como sociedades dotadasde uma "complexidade", simplesmente diferente da que caracteriza associedades de tipo ocidental. No mesmo sentido, poderia postular-se que noh sociedades mais complexas que outras, mas unicamente "complexidadesdiferentes"; postulado que inverte a perspectiva simplista de conceber ocomplexo como derivado do simples.

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  • Todos os aspectos que acabei de referir aoiongo do presente captulo, soelementos de metodologia a ponderar no seu conjunto aquando de uma

    r"nvestiCTaco, na medida em que conduzem a uma atitude indispensvel noterreno que condiciona a anlise posterior.

    -Fica igualmente claro que nenhuma afirmao poder ser validada sem ademonstrao da prova concreta ou mesmo terica. Sempre que possvel oselementos recolhidos no terreno devero ser quantificados, para estabelecer

    " ev"entuals"modelos reduzidos de formas complexas e impossveis de representarsecundo modelos mecnicos.

    A. comparao e a sntese antropolgica transcendem os particularismosdas monografias etnolgicas e permitem verificar a existncia de pontes oucortes entre os elementos de comparao, classificar em categorias, em

    -subcategorias. Obviamente, estes elementos no podem ser arbitrrios namedida em que s se pode comparar o que comparvel, ou seja o que denatureza idntica. Alm disso, a comparao e a sntese podem ser apreendidas

    -a diferentes nveis de universalidade. Dos mais simples aos mais complexos,do inter-local ao regional, deste ao universal.

    Lvi-Strauss, para estabelecer a sua teoria da aliana, apoiou-se em numerosos"Estudos monogrficos sobre determinados tipos de sistemas de parentesco."No lhe era materialmente possvel ter realizado todas aquelas investigaes.Dedicou-se, porm, tarefa de as analisar e comparar, reduzindo os numerosossistemas de parentesco a uns quantos diferentes tipos - em particular no casodas estruturas elementares do parentesco - e, finalmente, a um princpiosubjacente'aeles todos: a universalidade daregra social da proibio do incesto,

    jundamento da aliana matrimonial."Mas o autor no se ficou por aqui e repetiu este gnero de estudo em relaoa outros casos como a comparao dos mitos de uma determinada rea cultural.

    Estes estudos comparativos de Lvi-Strauss, tiveram o mrito, para alm detoda a novidade revelada, recolocar no centro da actividade da antropologiasocial e cultural a finalidade dos seus objectivos, os quais na maioria das vezesso perdidos de vista.

    Naturalmente, este autor no foi o nico a ter a preocupao comparativa,antes dele outros investigadores tiveram este objectivo, designadamente osevolucionistas. Enquanto Lvi-Strauss procedia anlise das suas estruturaselementares do parentesco [1949], no mesmo momento, G.P. Murdockanalisava e afinava a tipologia das terminologias do parentesco e respectivasorganizaes sociais [1949]. Alm disso, na prtica quotidiana da maioria dosinvestigadores, tambm estes se dedicam elaborao de snteses de diversaordem. Assim, quando num artigo comparei as diferentes formas de atribuio

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  • do nome na Europa, tendo como referncia o modelo portugus foi uma formade comparao, classificao e sntese que procurei realizar [A. dos Santos,1999].Pode concluir-se, dizendo que, nos casos referidos, esto exemplificados osdiferentes nveis de comparao, do mais geral ao mdio e deste aorelativamente pequeno e local, repetindo contudo que o objectivo central daantropologia reside nas caractersticas gerais do gnero humano. Convergindoneste objectivo, no se deve, sem dvida, deixar de colocar no centro daproblemtica o essencialismo humano deLvi-Strauss.

    Para saber mais:

    BOAS,Franz,,' 1899 "Twelfth and Final Report on the North-Western Tribes of

    Canada", Twelfth and Final Report for the Advancement ofScience for 1898.

    CRESSWEL, Robert, GODELIER, Maurice1976 Outils d'enqute etd'analyse anthropologiqites,~Paris: Maspero.

    GUIA ETNOGRFICO1874 Notes and Queries on Anthropology (regularmente corrigido e

    publicado desde o incio).

    MALINOWSKI, Bronislaw,1922 Argonauts ofthe Western Pacific, Londres: Routledge and Kegan

    Paul.

    MAUSS, Mareei,1993 Manual de Etnografia, Lisboa: Dom Quixote.

    1968-69 Oeuvres Completes, Paris: Editions Minuit, 3 vol.

    QUIVY, Raymond, VAN CAMPENHOUDT, Luc,1992 Manual de Investigao em Cincias Sociais, Lisboa: Gradiva.