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A~ UEOLOGIA &H i 5 Ó r i a (--~'
Titulo
Arqueologia e História
Volume
55
Ed ição
Associação dos Arqueólogos Portugueses Largo do Carmo, 1200-092 Lisboa Tel : 21 3460473 . Fax: 21 32442 52 e-mai l: [email protected]
Direcção
José Morais Arnaud
Coordenação
Paulo Almeida Fernandes
Projecto gráfico
oficina de design Nuno Vale Cardoso 8: Nina Barreiros
Impressão Publidisa
Tiragem
350 exemplares
© Associação dos Arqueólog os Portugueses ISSN
972/9451-39-7
Solicita-se permuta Exchange wanted
Ao artigos publicados nesta revista são da exclusiva responsabilidade dos respectivos autores
Benefícios e custos da musealização
arqueológica in situ Luís Raposo'
Detentores, como nos sentimos, de saberes científi
cos que nos conferem autoridade e nos individualizam
socialmente, nós, os arqueólogos, temos frequente
mente a tendência de pensarmos que somos donos
das melhores, senão das únicas soluções para o justo
entendimento e subsequente valorização social dos bens
arqueológicos. Dito de outra forma, somos consciente
mente corporativos e, o que é bem pior, somos também
tecnocratas, sem que disso nos apercebamos plenamente
no nosso dia-a-dia .
Ora, a verdade é que sempre (ou quase) que um
técnico diz a um político existir somente uma solu
ção para uma qualquer questão social, ele mente. Na
maior parte dos casos, apenas procurará (consciente ou
inconscientemente) que a sua proposta se constitua em
opção respeitada, acolhida e validada através do sufrá
gio político. E consegui-Io-á tanto mais quanto melhor
saiba "ler os sinais do tempo", extraindo deles as expec
tativas dominantes em cada momento histórico, no seio
de cada sociedade concreta .
Vêem estas considerações a propósito daquilo que
podemos designar por programas políticos e por opções
técnicas na valorização dos bens arqueológicos. Dando
continu idade a reflexões anteriormente feitas neste
domínio (vide a bibliografia final). escolhemos desen
volver nesta ocasião algumas considerações adicio
nais sobre um dos mais delicados problemas com que
a arqueologia e os arqueólogos se confrontam: o des
tino a dar aos sítios e colecções arqueológicos, depois
de terminados os trabalhos de campo.
Numa óptica estritamente tecnocrática , imersos
naquilo que são os "sina is do tempo" acima invocados,
incapazes ou indisponíveis para os discutir no plano polí
tico, os arqueólogos menos dados ao exercício da sua
cidadania, alinhariam seguramente as seguintes opções
técnicas, por ordem de preferência :
a) Conservação e musealização in situ de estruturas
e mobiliário, com a criação das necessárias condições
de salvaguarda, conservação e fru ição de ambos;
b) No mínimo e em face da falta parcial de tais con
dições, a musealização das ru ínas e a remoção dos bens
móveis para depósito arqueológico ou museu situado o
mais perto possível do local ;
VII Jornadas ArqUeológica } '59
c) Finalmente, em face da falta total de condições,
enterramento puro e simples das ruínas, com procedi
mento idêntico ao da alínea anterior quanto à trans
ferência dos bens móveis.
Trata-se de uma postura de êxito tão garantido,
pessoal e corporativa mente tão compensadora, que
depressa será dada como verdade técnica adquirida. Pos
sui tais e tão evidentes vantagens no plano do reforço
da cumplicidade do presente com o passado (quando
possível) e do corte radical com o mesmo (quando
necessário), que quaisquer alternativas, ou até meras
variantes, serão liminarmente recusadas, consideradas
desfasadas da realidade, ultrapassadas, logo inaceitá
veis. O aplauso será tanto que depressa esta postura
se verá convertida em "verdade técnica", rapidamente
adoptada como pensamento "politicamente correcto".
Inverte-se assim, subtilmente, a boa lógica das coisas:
primeiro os programas políticos, sempre plurais; depois
as opções técnicas que os possam servir, também elas
sempre diversificadas.
A hora está, pois, na defesa da musealização in situ dos bens arqueológicos. Dir-se-ia que, num mundo ideal,
sem quaisquer constrangimentos de ordem financeira e
posto que a técnica permite já hoje resolver qualquer
dificuldade, todos os vestígios arqueológicos deveriam
ser conservados nos exactos locais de origem. Grande
parte da teorização patrimon ialista contemporânea vai
neste sentido e diversos textos internacionais acom
panham-na. O programa "Museu sem Fronteiras", por
exemplo, ao instituir como logótipo a representação
da proibição de remoção de uma coluna (supõe-se que
para um museu), exigindo antes a deslocação do visi
tante ao local, exprime emblematicamente este tipo
de pensamento.
Um tal unanimismo é, todavia , mais aparente do que
real. Uma vez tomada a decisão da musealização in situ de uma qualquer ruína arqueológica abre-se um amplo
campo de discussão quanto ao seu conteúdo concreto.
Desde logo, importaria perguntar quais as suas finali
dades sociais e qual o entendimento dado ao conceito
de transposição dos objectos móveis para "o mais perto
possível do local". Estarão os seus defensores preparados
para a situação- lim ite que já ocorre esporad icamente
160 { Arqueologia e História' n 55' Lisboa 2003
entre nós e é mais frequente no estrangeiro de por tal
ser admitida (senão incentivada) a posse privada dos
sítios musealizados e/ou a guarda dos bens móveis na
casa do proprietário das ruínas, especialmente se ele
se dispuser inteligentemente a fazer o papel de mece
nas e oferecer espaço para a exposição de peças, cujo
acesso se disporá a facultar algumas vezes ao ano? E,
não sendo a casa do proprietário, será a aldeia ou a fre
guesia imediatas, como já sucede, tornando-se cada vez
mais clãro que a tradicional fixação no plano munici
pal tenderá a ficar enfraquecida ? Depois, colocam-se
diversos problemas de índole mais técnica, tais como
a natureza das medidas conservacionistas a adoptar, a
amplitude e objectivo final das operações de restauro a
empreender, as medidas de monitorização a desenvol
ver, as modalidades e graus de reincorporação de bens
mobiliários a promover, etc.
É óbvio que existirão diferentes posturas em relação
a toda esta problemática. Os mais exigentes do ponto
de vista científico serão conduzidos a afirmarem que a
musealização in situ de sítios arqueológicos será tanto
melhor quanto menos se promovam acções de restauro
e mais se invista na criação em cada local de equipas
e estruturas permanentes, nas quais o estudo arqueo
lógico de base (a investigação dita fundamental) e a
conservação preventiva se conjuguem interdisciplinar
mente. Nesta óptica , o paradigma a seguir poderia ser
o da Gruta / Museu / Centro de Investigação de Alta
mira. O bem arqueológ ico original não fo i ali alvo de
acções de restauro significativas, sendo apenas moni
torizado e intervencionado do ponto da vista da con
servação preventiva; não é sequer aberto ao público;
e nas suas imediações fo i construída uma réplica par
cial em tamanho natural, essa sim acessível no âmbito
do percurso de visita a um museu de sítio moderno e
atractivo, no qual se reserva generoso espaço para um
centro de investigações dotado de algum pessoal, bons
equ ipamentos (inclusive uma biblioteca de referência)
e capacidade editorial própria .
Em Portugal , a melhor aproximação a este modelo
poder ia ser o das Ruínas / Museu Monográfico de
Con ímbriga. E é-o, de facto , embora com limitações sig
nificativas, que têm al iás vindo a crescer com o tempo :
por um lado, as ruínas foram primeiro objecto de impor
tantes, senão violentas, acções de restauro em meados
do século passado, a tal ponto que mesmo elementos
originalmente solidários com as estruturas construídas
foram delas desconectados, para depois serem reco
locados sobre suportes de cimento armado (caso dos
pavimentos em mosaico), e têm subsequentemente con
tinuado a ser protegidos das intempéries e dos visitan
tes através do recurso a meios porventura inevitáveis,
mas muito discutíveis pelo ruído (histórico e paisagís
tico) que introduzem no local; por outro lado, o museu
anexo vive com as dificuldades conhecidas e comuns a
todos os museus e centros de investigação arqueológica
portugueses, com reflexos tanto na sua capacidade ope
racional imediata, como na investigação fundamental
da antiga cidade romana e na acção central que pode
ria ter (e já teve) nas áreas da formação de pessoal e
definição de padrões de qualidade em matéria de con
servação in situ de ruínas arqueológicas.
No extremo oposto ao indicado através dos exem
plos anteriores, estarão todas as experiências, mu ito
maioritárias, de musealização de sítios arqueológicos,
no sentido da sua encenação mediática e entrega ao
público consumista. Ainda aqui haverá opções bastante
diversas, umas satisfatoriamente defensáveis do ponto
de vista patrimonial, outras nem tanto, porque guia
das exclusivamente pelos critérios da rentabilização do
mercado turístico.
Entre as primeiras encontram-se os casos, aliás
raros, de sacrifício científico consciente e assumido de
um local, no pressuposto que outros equivalentes se
mantém disponíveis para investigações futuras. Uma tal
opção, certamente arriscada e sempre discutível , pode
ser ditada por diversas razões aparentes. Mas conver
girão todas para uma só motivação de fundo, que os
arqueólogos mais conscientes não deixarão de assumir
civicamente : todo o bem arqueológico é propriedade
colectiva, subordinado a interesses legítimos diversos
e porventura opostos, sendo necessário negociá-los até
atingir plataformas de contratualização social em que,
perdendo todos um pouco, todos ganhemos também.
Ao sacrificar um local arqueológico ao turismo, acei
tando encená-lo da melhor forma , isto é, com o maior
rigor adentro das mitologias científicas de cada tempo,
está-se a respeitar (outros dirão, aplacar) os interesses
legítimos do mercado, salvaguardando diversos outros
locais equivalentes, situados nas imediações. Este é o
modelo seguido em Alcalar, por exemplo, sob orientação
de Rui Parreira, um dos mais clarividentes arqueólogos
portugueses com reflexão teórica e prática próprias no
domínio da musealização dos sítios arqueológicos.
No segundo caso, o mais comum, encontram-se
todas as inúmeras situações de sítios arqueológicos con
vertidos em pequenas "aldeias de Astérix", locais onde
a encenação submerge de tal modo o original, que este
só não é dispensável pela carga simbólica que encerra,
mas pode, em casos-limite, resumir-se à sua ideia, sem
qualquer concretização material - o que, há-de reco
nhecer-se, acaba por ser uma situação bem mais inte
ressante do ponto de vista intelectual.
Também aqui podem existir melhores ou piores apli
cações dos modelos adoptados. O Arqueoscópio de Car
nac, na Bretanha, possuindo o aspecto simpático de não
ter alterado fisicamente os alinhamentos de menires
adjacentes, surge-nos como o mau exemplo, porque se
trata de um mero espectáculo de som e luzes, com mui
tos efeitos especiais, mas sem qualquer conteúdo verda
deiramente significativo e, o que é pior, em competição
directa com as estruturas instaladas pelo poder político
central (centro de acolhimento e interpretação) e local
(museu municipal), desviando uma percentagem signi
ficat iva de visitantes, sem proveito de ninguém (nem
dos incautos que optem por essa via de acesso às ruí
nas, nem do interesse público). Já o arqueodromo de
Craggaunoven, no condado de Clare, Irlanda, apresen
tado como uma experiência de "história ao vivo", ins
talado sobre vestígios arqueológicos que apenas são
vislumbráveis em dois ou três pontos (na restante área
encontram-se enterrados), adopta uma via bem mais
interessante, onde à reconstituição pura e simples se
junta a transposição para aquele parque de originais
arqueológicos, provenientes doutros locais, e ali inscri
tos funcionalmente no circuito de visita proposto. Final
mente, no caso do Museu de Néandertal, próximo de
Dusseldórfia, aquilo que se "vende" é apenas o nome
do lugar. Da antiga gruta de Feldhofer, onde foram fei-
VII Jornadas ArqUeológica } 161
tos os achados do chamado Homem de Néandertal, em
1856, nada subsiste. Mas o apelo de visita ao local é
enorme, tendo em consequência sido construído de raiz
um edifício original e moderno, no qual se alberga o
único caso de museu sem colecções que conhecemos
e apreciamos: um museu que exibe modelos de homi
nídeos em tamanho natural, tirando partido de diver
sas tecnologias comunicacionais de ponta, dentro de
um quadro global de grande qualidade informativa e
extraordinário bom gosto mediático e visual.
Entre os extremos que indicámos nos parágrafos
anteriores, situa-se todo um vasto campo de experiên
cias que apenas são lím itadas pela imaginação criativa
dos seus autores. Na maior parte dos casos, a museali
zação in situ dos vestígios arqueológicos estará situada
algures a meio caminho entre os modelos teóricos e os
exemplos práticos referidos. Mais geralmente, ocorrerão
as situações limitadas "apenas" ao arranjo de acessos e
criação de percursos, assim como à limpeza e restauro
sumário das ruínas, porventura com o reposicionamento
de uma ou outra peça ou com a edificação didáctica de
um ou outro elemento arquitectónico. Sanfins e Miró
briga constituem dois bons exemplos desta prática , no
nosso país. No primeiro local, é toda uma citãnia que
foi preparada para a visita, com muros limpos e altea
dos a nível muito baixo, de modo a permitir visões de
conjunto do povoado, tendo-se escolhido uma pequena
área para a reconstrução total de um núcleo habitacio
nal familiar, conjugando a base material arqueológica
com as referências textuais antigas e até com o saber
etnográfico contemporâneo. O resultado é a obtenção de
um local de visita agradável, preenchendo bem o ima
ginário actual acerca de como deveriam ser os grandes
povoados castrejos. Nas proximidades, um museu local
assegura a retaguarda institucional permanente tanto
para a monitorização das ru ínas, como para a continu
ação do seu estudo científico. Em Miróbriga passa- se
algo idêntico, seja do ponto de vista das infra-estru
turas instaladas, neste caso no próprio local, seja em
matéria reconstrutivista, que D. Fernando de Almeida ali
chamou de anastil óse. Só que, enquanto em Sanfins as
reconstitu ições são assumidamente contemporâneas, em
Miróbriga a reconstru ção fo i fe ita com objectos arque-
162 { Arqueologia e Históna . n 55 · Lisboa 2003
ológicos reais, deslocados para onde aquele arqueólogo
entendeu que pertenceriam originalmente ou simples
mente estariam melhor colocados. O resultado foi a
construção de uma imagem de templo romano que
depressa penetrou no imaginário nacional, servindo
localmente como emblema comercial e verdadeiro ex
libris municipal - a tal ponto que se torna hoje incon
cebível a retirada das ditas apostilhas, mesmo que se
lhes reconheça falta de fundamento arqueológico.
Como se vê, a musealização in situ não constitui de
modo algum uma opção simples: contempla numerosas
variantes técnicas, dá origem a efeitos políticos profun
dos. Importa-nos agora ir mais longe, ou seja, discutir
as consequências de uma tal opção, quando encarada
como a solução ideal para todos os casos de valoriza
ção dos vestígios arqueológicos.
Retomamos, pois, o raciocínio que ficou suspenso
alguns parágrafos atrás: havendo seguramente grande
consenso em reconhecer que apenas uma ínfima parte
dos sítios arqueológicos poderão algum dia ser sus
ceptíveis de musealização em condições minimamente
garantidoras da sua integridade, o que fazer? Enterrá
los de novo, dir-se-á - opção que poderá até ser tida
por corajosa. E na realidade assim é em muitos casos,
porque contrairá as forças vivas das localidades onde os
vestígios se encontrem. No mínimo, salvem-se os objec
tos móveis para depósitos ou museus, situados nas pro
ximidades - e assim se acalmarão as ditas forças vivas.
Estará o arqueólogo condenado a este tipo de jogos de
poder? Não possuirá outras alternativas? Não lhe será
exigível ir mais além, introduzindo sempre que possa
elementos de maior racionalidade sobre situações vivi
das basicamente no plano da mais rasteira emotividade,
frequentemente de cariz populista?
Julgamos que existem, de facto, outras vias paralelas
quando se trata de abordar a problemática da valoriza
ção social dos bens arqueológicos, tão dignas e porven
tura em certos casos estrategicamente mais importantes
do que a musealização in situ. Importa tomar consci
ência delas e ter a coragem (essa sim, coragem) de as
de fender.
Antes do mais, a opção pelo reenterramento puro
e si mples de ru ínas arqueológicas, sendo certamente a
mais avisada em muitos casos, deve ser sempre sopesada
com a privação de acesso, não apenas (nem sequer tal
vez principalmente) pelos vizinhos das mesmas, mas por
toda uma geração, ou gerações sucessivas de cidadãos
em geral e investigadores em particular. Acresce que
dificilmente o arqueólogo pode assegurar terem ficado
controlados, através desse procedimento, os processos
de alteração pós-deposicionária que inevitavelmente
continuarão a actuar e poderão degradá-Ias profunda
mente. Finalmente, nada garante também que, a todo
o momento, o sítio não seja pura e simplesmente des
truído, malevolamente ou por mero desapego colectivo
a algo a que se deixou de dar sentido útil.
Daqui se conclui que a questão da transposição dos
vestígios, inclusive dos bens imóveis ou revestimentos
solidariamente agregados a suportes imóveis, para fora
do seu local de origem deve estar sempre sobre a mesa
e não ser pura e simplesmente descartada, em obedi
ência à cartilha corrente ou ao puro e simples facili
tismo intelectual.
Mas teremos de ir ainda mais longe, para vermos
melhor. A via da transposição de vestígios arqueológi
cos para fora do seu local de origem não há-de apenas
ser seguida devido a constrangimentos de ordem finan
ceira ou técnica, mas porque se trata de opção ditada
por razões de ordem cívica e política . E postas as ques
tões desta forma, pouco importa a escala de desloca
ção espacial, se para mais perto ou para mais longe dos
ditos locais de origem.
A plena compreensão dos bens arqueológicos está
longe de esgotar-se na leitura das suas envolventes ime
diatas. A própria arqueologia, de resto , enquanto forma
de fazer história , está longe de limitar-se ao particula
rismo de cada lugar, acantonada na reconstituição de
cada povoado ou cada necrópole, como se de cromos
etnográficos se tratassem. Sob pena de nos demitirmos,
enquanto historiadores, da nossa função social primeira,
forçoso será que procuremos ver para além dos limites
do "nosso" sitio - e é isso que fazemos no nosso dia
a-d ia, quando buscamos paralelos e produzimos sín
tese histórica. Muitas vezes a única forma de valorizar
um determinado vaso de cerâm ica ou peça escultórica ,
um certo objecto lítico ou elemento arquitectónico é
vê-los em confronto com outros, integrados em con
textos culturais alargados, em círculos culturais como
outrora era dito. Ora, a tendência para que remeteria a
tese mais radical da musealização in situ seria a de que
nós, arqueólogos, nos demitiríamos desta nossa função
mais essencial, sugerindo aos nossos concidadãos que
andassem permanentemente em visita a locais parti
culares, para depois construírem por si próprios, talvez
com o apoio de revistas de viagens e programas tele
visivos, as mensagens de síntese que afinal deveríamos
ser nós a fornecer.
Pelo nosso lado não nos resignamos a tal cenário.
Continuamos a considerar decisiva a produção de sabe
res que racionalizem os dados em níveis superiores e
mais englobantes dos da sua envolvência imediata. O
que pode ser feito em bibliotecas, através de livros, sem
dúvida. Mas pode e deve também ser feito em museus,
através de peças arqueológicas, móveis na maior parte
dos casos, ou até imóveis, quando se julgue que a des
localização espacial de uma sepultura, um mosaico, um
forno, etc. podem constituir opção não apenas mais
garantidora da sua preservação, como sobretudo mais
respeitadora da intenção final em construir e colocar
disponíveis mensagens históricas de síntese.
O museu de arqueologia surge assim como ins
trumento de mediação patrimonial e científica abso
lutamente capital. Longe de ser, como muitos hoje
pretendem, uma instituição ultrapassada e em vias de
extinção, herdeiro dos gabinetes de curiosidades, dos
armazéns das casas reais e do espírito das luzes, subs
tituível pouco a pouco pela musealização in situ, ele
poderá reassumir de forma mais clara um papel axial
na formação de cultura histórica, através da confron
tação dos originais entre si, e do observador com eles,
papel que sempre teve, mas algumas décadas de "nova
museologia" obscureceram, porque o desviaram para
um terreno que lhe é espúrio: a competição directa
com o mercado dos jogos de "luz e som", mu ito mais
próprio das experiências de encenação de monumen
tos e sítios.
Insist imos que, ao equacionar a possib ilidade de
musealização in situ de um qualquer local , o arqueó
logo não pode apenas ser gu iado por considerações de
VII Jornadas ArqUeológica } 163
ordem técnica, perguntando-se da existência, ou não,
de condições logísticas para a realizar. Há-de também
reflectir no plano cívico, questionando-se a si e aos
seus interlocutores, locais e nacionais, sobre se essa
é a melhor opção - e não apenas pelas razões que já
aduzimos atrás, mas também por um outro e não des
piciendo motivo: a "sua" cruzada pessoal, ou a da ins
tituição a que pertence, pela musealização in situ de
um certo local, com a mobilização de recursos sem
pre escassos, poderá implicar a menor atenção, ou até
abandono, de bens porventura igualmente estimáveis,
situados a distâncias relativamente curtas. Tenha-se em
atenção, por exemplo, os efeitos perniciosos que teve
no Alentejo, nos últimos anos, a concentração de meios
financeiros nuns quantos sítios arqueológicos (caso de
Torre de Palma). para a construção de roteiros de visita
e aproveitamento de fundos europeus, com o manifesto
desinvestimento noutros (caso de Pisões) .
Adoptado, enfim, o princípio da valorização patri
monial in situ, importa definir que tipo de musealização
se pretende. Certos projectos, pela sua ambição apa
rente e pela riqueza potencial das ruínas sobre que se
implantam, apenas poderão ser seriamente considera
dos se forem levados às últimas consequências, ou seja,
se forem perspectivados como Conímbriga . E mais uma
vez o caso de Torre de Palma, que envolve a proble
mática delicadíssima do eventual regresso ao local dos
mosaicos retirados para o Museu Nacional de Arque
ologia em 1947, surge como exemplo paradigmático
desta situação. Se existisse a perspectiva de criar ali
um museu de sítio e um centro de restauro e investi
gação, ambos com quadros de pessoal próprios, se tudo
isto se inscrevesse num plano de estudo e reescavação
da villa em toda a sua superfície, enfim, se o propósito
fosse criar uma segunda Conímbriga, o regresso dos
originais dos ditos mosaicos poderia ser encarado, não
até, talvez, para recolocação nos seus exactos sítios,
mas no museu monográfico anexo às ruínas. Mas não
é essa manifestamente a intenção que tem presidido
às acções ali empreendidas: pretende-se tão-só a rea
lização de mais um centro interpretativo e a limpeza
e consolidação das estruturas arqueológicas, servidas
por uma cobertura deslocada na paisagem e ineficaz
164 { Arqueologia e História· n 55· Lisboa 2003
do ponto de vista da protecção contra as intempéries.
Pois bem, neste caso, depois de garantida a maior efi
cácia da referida cobertura, a opção mais interessante
do ponto de vista técnico e seguramente a melhor do
ponto de vista político será a da instalação no local de
cópias fiéis dos mosaicos, ficando os originais disponí
veis para apresentação em museus, no plano nacional
ou até com representação no plano municipal - insti
tuições em que serão com certeza melhor conservados,
melhor"apreciados e melhor estimados, exercendo além
disso uma muito mais eficiente acção formativa de cida
dania e de consciencialização histórica. Por outro lado,
importa questionar quantas Conímbrigas poderão ser
criadas no País, sendo certo que a já existente sobre
vive mal, em grande parte precisamente porque a divi
são dos mesmos recursos se faz agora por muito maior
número de cestos.
Felizmente, a generalidade dos projectos de muse
alização in situ têm o bom senso de não pretenderem
ir tão longe e retiram daí as devidas consequências.
Mas importa ainda assim que resultem, em cada caso,
de reflexão madura sobre a sua vantagem, ou não, e
sobre as articulações que desejavelmente deverão pro
mover com outras instituições de mediação patrimonial,
entre as quais os museus. É apenas este o sentido das
nossas observações: introduzir elementos reflexivos, de
racionalidade e de problematização séria, num terreno
onde nem sempre as ideias mais sedutoras, porque mais
populares, serão as melhores.
Ou seja e em conclusão : se o arqueólogo julgar que
a única solução possível para a preservação de um local
arqueológico é o seu reenterramento (solução que pes
soalmente julgamos dever ser a mais comum). ele nem
por isso deve sentir-se desobrigado de reflectir sobre a
gravidade que constitui a privação do acesso ao mesmo
por parte de uma ou mais gerações; em consequên
cia, deve também incluir na sua ponderação as possí
veis vantagens da remoção para museu não apenas de
bens mobiliários como também, em certos casos, de
estruturas imóveis. Se, por outro lado, o arqueólogo
for solicitado para, e entender desejável e exequível, a
manutenção visível das ruínas, deve obviamente aplicar
se na garantia da sua preservação, podendo tal supor a
sua museal ização in situ. Neste caso, a situação ma is
comum será certamente a da procura de articulações
institucionais com museus próximos. Se, f inalmente,
o arqueólogo considerar, na sua exclusiva capacidade
avaliadora, que os bens que pôs à vista devem ser reu
nidos a outros situados a maior ou menor distância,
postos todos ao serviço de mensagens históricas mais
englobantes, deve igualmente afirmá-lo, contribuindo
para a sua remoção para museus de âmbito mais alar
gado, locais, regionais ou nacionais. É, aliás, isso a que
está vinculado por força do Regulamento de Trabalhos
Arqueológicos (arto 16° do Decreto-Lei n° 270/99, de
15 de Julho). que estabelece ficar o destino final dos
espólios arqueológicos dependente de acto adminis
trativo ministerial, "tendo em conta a rede nacional de
museus" e "o justo equilíbrio da representação daqueles
bens nas colecções das instituições de âmbito nacio
nal, regional e local, desde que sejam reconhecidas a
estas últimas as necessárias condições para a sua con
servação, bem como critérios que evitem a dispersão de
espólios provenientes de uma mesma jazida". Ou seja,
cabe aos arqueólogos e aos organismos especializa
dos do Ministério da Cultura darem o impulso técnico,
tendo em conta as dimensões local, regional e nacio
nal, apresentando as propostas de encam inhamento a
dar aos espólios arqueológicos e, por extensão, à valo
rização patrimonial do conjunto dos bens exumados.
Mas cabe depois e em última instância ao poder polí
tico decidir que programa adoptar. Porque, afinal, ter
minamos como começámos : o património arqueológico
constitui recurso colectivo que deve ser gerido de forma
não tecnocrática, ou seja, subordinando a técnica ao
primado da política.
Notas
1 Arqueólogo. Director do Museu Nacional de Arqueologia. Email: [email protected]
Referências Bibliográficas
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IDEM, "A acção do Museu Nacional da Arqueologia no estabelecimento de parcerias e sistemas cooperativos em rede", Actas do Fórum Internacional Redes de Museus, Lisboa, ed. da Rede Portuguesa de Museus, 2002, pp. 91-108 (edição bilingue: The Museu Nacional de Arqueolog ia's action in establ ish ing networks of partnerships and systems of cooperation, 2002, pp. 207-224)
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IDEM, "Le Musée National d'Archéologie dans le cadre de la muséologie archéologique portuga ise", (2003b) Musées et Collections, Paris (no prelo)
VII Jornadas ArqUeológIca } 165
Associação dos Arqueólogos
Portugueses