150
UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO DE AGOSTINHO E LUTERO POR LUCAS ANDRADE RIBEIRO . São Bernardo do Campo 2015

UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

  • Upload
    hadan

  • View
    227

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO DE

AGOSTINHO E LUTERO

POR

LUCAS ANDRADE RIBEIRO

.

São Bernardo do Campo — 2015

Page 2: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO DE

AGOSTINHO E LUTERO

POR

LUCAS ANDRADE RIBEIRO

Dissertação apresentada em cumprimento às

exigências do Programa de Pós-Graduação em

Ciências da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, para obtenção do grau

de Mestre, sob a orientação do

Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg.

São Bernardo do Campo — Junho de 2015

Page 3: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

FICHA CATALOGRÁFICA

R354d

Ribeiro, Lucas Andrade

Um diálogo sobre o pensamento ético e político de Agosti-

nho e Lutero /-- São Bernardo do Campo, 2015.

149fl.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Facul-

dade de Humanidades e Direito, Programa de Pós Ciências da

Religião da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernar-

do do Campo

Bibliografia

Orientação de: Rui de Souza Josgrilberg

1. Reino de Deus 2. Agostinho, Santo, Bispo de Hipona – Crítica

e interpretação 3. Lutero, Martin, 1483-1546 – Crítica e inter-

pretação 4. Ética 5. Política I. Título

CDD

230.4

Page 4: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

A dissertação de mestrado sob o título Um diálogo sobre o pen-

samento ético e político de Agostinho e Lutero, elaborada por Lu-

cas Andrade Ribeiro foi defendida e aprovada aos 18 de Março de

2015, perante banca examinadora composta por: Dr. Rui de Souza

Josgrilberg (Presitente, UMESP), Dr. Dr. Luiz Jean Lauand (Titu-

lar, UMESP) e Dr. Jorge Pinheiro dos Santos (Titular, FTBSP).

Prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg ORIENTADOR E PRESIDENTE DA BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Helmut Renders COORDENADOR DO PROGRAMA

PROGRAMA

Pós-Graduação em Ciências da Religião

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO

Linguagens da Religião

LINHA DE PESQUISA

Teologias das Religiões e Cultura

Page 5: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

5

AUTOBIOGRAFIA

Meu nome é Lucas Andrade Ribeiro. Nasci em 16 de Novembro de 1987, em Ipatin-

ga, estado de Minas Gerais. Filho de Waldir Ribeiro de Paula e Sonia de Sousa Andrade

Ribeiro. Fiz o Ensino Fundamental no Colégio Tiradentes da Polícia Militar de Minas Ge-

rais, escola que ingressei mediante concurso público quando tinha seis anos de idade, já o

Ensino Médio cursei no Colégio São Francisco Xavier – escola com forte ênfase na prepa-

ração para o vestibular, ambos em minha cidade natal.

Desde muito novo me inclinei para as questões relacionadas à religião e a fé, pois

cresci em um ambiente bastante religioso, o que me levou a professar publicamente minha

fé em uma Igreja Metodista ainda com doze anos de idade.

Tive a oportunidade de ingressar no curso de Filosofia da Universidade Estadual de

Campinas (Unicamp) com apenas dezoito anos, no ano de 2006, fiz um bom curso e lá tive

a oportunidade de conhecer a amplitude do mundo acadêmico e as oportunidades, encantos

e dificuldades que este oferece. Porém, devido a um sentimento de chamado pastoral, resol-

vi que deveria prosseguir para o curso de Teologia da Faculdade de Teologia da Igreja Me-

todista na Universidade Metodista de São Paulo, ingressando no curso em São Bernardo do

Campo no ano de 2011. Desde que cheguei neste curso percebi o quanto este me satisfazia e

me fazia me sentir extremamente realizado em estuda-lo. Todavia, queria aprofundar meus

conhecimentos acadêmicos, e o curso de Filosofia que havia feito me deixou com uma pai-

Page 6: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

6

xão que não tive a oportunidade de estudar na Unicamp, o pensamento do teólogo/filósofo

antigo Agostinho de Hipona. Foi a partir disso, que iniciei ainda no ano de 2011 conversas

com o prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg, a quem tenho a honra de ser orientando, dialo-

gando sobre a possibilidade de uma orientação de mestrado nas reflexões do antigo bispo de

Hipona e as influências que este tem até os dias atuais nas mais diversas confissões cristãs,

sobretudo, dentro da tradição protestante.

Foi assim, que no início do ano de 2013, com vinte e cinco anos de idade, ingressei

no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP e, com incentivo dos

professores e do CNPq, busco o grau de Mestre em Ciências da Religião, na área de Lin-

guagens da Religião – Teologias das Religiões e Cultura. Pesquiso Agostinho de Hipona e

Lutero, que me inspiram e me levam a refletir sobre a magnitude das possibilidades de se

conhecer e se relacionar com Deus. Estudando suas Teologias e Filosofias que vêm moti-

vando homens e mulheres a se moverem na história ao longo de tantos séculos.

O interesse pela Filosofia e pela Teologia me impulsiona em minhas pesquisas e re-

flexões, levando-me a buscar por caminhos para vivenciar e experienciar uma fé que seja

cônscia e atuante na sociedade. Escolhi Agostinho e Lutero para serem os autores de refe-

rência desta pesquisa, pois me identifico com a trajetória destes pensadores, ambos foram

cultos nas ciências de sua época, e ao mesmo tempo foram fervorosos cristãos e pastores do

rebanho, um na pequena cidade de Hipona no norte da África e outro na efervescente região

alemã no século 16. Enquanto aluno de Mestrado, realizo meu estágio acadêmico na

graduação da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo junto com o

professor Rui de Souza Josgrilberg, lecionando disciplinas de Fundamentos de Teologia e

História, Estudos de Ética e Teologia Pública e Estudos de Teologia Sistemática. Também

participo do Grupo de Pesquisa Teologia no Plural, Grupo de Pesquisa Paul Tillich de Teo-

logia e Cultura, e Grupo de Pesquisa Archeion: Hermenêutica Fenomenológica de Textos

Religiosos.

Atualmente desejo estabelecer minha experiência de trabalho no campo da filosofia e

teologia da religião, em especial no pensamento agostiniano e na reflexão luterana.

Page 7: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

para Debora Kanhet Werderits Ribeiro

Page 8: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

“Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso

coração, enquanto não repousa em ti.”

Agostinho de Hipona

Page 9: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

Esta pesquisa foi patrocinada pelo

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

A essa instituição e aos professores e responsáveis

que me recomendaram à bolsa de estudos expresso aqui a minha gratidão.

Page 10: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus,

Agradeço à família,

Agradeço à Debora,

Agradeço ao meu orientador prof. Dr. Rui de Souza Josgrilberg,

Agradeço aos amigos e às amigas,

Agradeço à Igreja Metodista no Brasil.

Agradeço ao CNPq.

A todos, meu mais sincero obrigado!

Page 11: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

RIBEIRO, Lucas Andrade. Um diálogo sobre o pensamento ético e político de

Agostinho e Lutero. São Bernardo do Campo, 2015. 149f. Dissertação (Mestra-

do em Ciências da Religião – Linguagens da Religião) —

Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2015.

SINOPSE

Esta pesquisa procura entender o pensamento de Agostinho de Hipona e de

Martinho Lutero, especificamente, no que concerne a suas obras que abordam a

temática da ética e da política. Particularmente, a compreensão das metáforas

da Cidade de Deus e Cidade dos Homens em Agostinho, e a recepção e

ressignifição efetuada por Lutero e a construção de suas metáforas dos Dois

Reinos, ou Dois Regimentos, é foco central desta dissertação. Para tal, será

usada a concepção do filósofo contemporâneo Paul Ricoeur e seu entendimento

do papel da metáfora. Para articular estas ideias será necessário pensar e expor

as ideias agostinianas sobre sua Teologia da História. Após este momento, estu-

da-se duas doutrinas que são fundamentais para o pensamento teológico do re-

formador alemão: a questão sobre a Justificação pela Fé e a integração com as

Boas Obras. O estudo do pensamento destes autores terá como objetivo dialo-

gar dois pensadores cristãos que continuam sendo usados até os dias atuais pe-

las igrejas, buscando perceber as oportunidades e limitações que suas reflexões

podem trazer para a prática da igreja atual. Para que ela seja atuante e

relevante para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e marcada

pelos valores de Cristo, tendo o amor como sua base sustentadora.

Palavras-chave: Agostinho – Lutero – ética – política

Page 12: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

RIBEIRO, Lucas Andrade. A dialogue on the ethical and political thought of

Augustine and Luther. São Bernardo do Campo, 2015. 149f. Thesis (Master

Degree in Sciences of Religion – Languages of Religion) — São Paulo

Methodist University, São Bernardo do Campo, 2015.

ABSTRACT

This research seeks to understand the thoughts of Augustine of Hippo and Martin

Luther, specifically, regarding to their works that address the theme of ethics and

politics. In particular, to understand the metaphors of the City of God and City of

Men in Augustine, and the reception and resignification made by Luther in the

construction of his metaphors of the Two Kingdoms, or Two Regiments, is cen-

tral focus of this dissertation. To this end, will be used the understanding of the

role of metaphor in the contemporary philosopher Paul Ricoeur. To articulate

these ideas will be necessary to think and expose the Augustinian ideas about his

Theology of History. After this time, we study two doctrines that are fundamen-

tal to the theological thought of the german reformer: the issue of justification by

faith and the integration of that with the good works. The study of the thought of

these authors will aim to dialogue two Christian thinkers who are still used by

the churches nowadays, seeking to realize the opportunities and limitations that

your thoughts can bring to today's ecclesial practice. For this practice be active

and relevant to building a more Christian, just and fraternal society, with love as

its sustaining basis.

Key words: Augustine – Luther – ethics – politics

Page 13: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

SUMÁRIO

Introdução _____________________________________________________________ 15

CAPÍTULO I

Agostinho: ética e política na patrística _____________________________________ 20

1.1 Agostinho: formação e influências em seu pensamento ____________________ 20

1.1.1 Ascenção ao episcopado de Hipona __________________________________ 23

1.1.2 Motivos da escrita do livro A Cidade de Deus __________________________ 24

1.2 Teologia/Filosofia da História em Agostinho ____________________________ 27

1.2.1 Teologia e Filosofia ______________________________________________ 27

1.2.2 Teologia da História ______________________________________________ 29

1.2.3 História em sua profundidade ou Universal ____________________________ 30

1.2.4 História como narrativa ___________________________________________ 32

1.2.5 História como palco da salvação e seus estágios ________________________ 33

1.2.6 Implicações da Teologia da História _________________________________ 35

1.3 Conceituação de Metáfora ___________________________________________ 39

1.4 Cidade de Deus e Cidade dos Homens em Agostinho _____________________ 42

1.4.1 Urbis, civitas e societas ___________________________________________ 45

1.4.2 Sermão De urbis excídio __________________________________________ 46

1.4.3 A Cidade de Deus ________________________________________________ 50

1.4.4 Cidade dos Homens ______________________________________________ 52

1.4.5 Relação entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens ____________________ 53

1.5 Agostinho e a redefinição de populus___________________________________ 54

Page 14: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

14

1.5.1 Reformulação por Agostinho do entendimento ciceroniana de populus ______ 54

1.5.2 Recusa por Agostinho da definição de populus ser baseada na justiça _______ 56

CAPÍTULO II

Lutero: ética e política na Reforma _________________________________________ 59

2.1 Contexto do Sacro Império Romano Germânico e surgimento da imprensa __ 59

2.1.1 Lutero: primeiros anos, formação e chegada à Wittenberg ________________ 63

2.1.2 Lutero e sua teologia _____________________________________________ 65

2.2 Justificação pela Fé e Boas Obras _____________________________________ 66

2.2.1 Justificação pela Fé ______________________________________________ 68

2.2.2 Boas Obras _____________________________________________________ 72

2.3 Dois Reinos ou Dois Regimentos ______________________________________ 76

2.3.1 Desenvolvimento da Doutrina dos Dois Reinos ________________________ 79

2.3.2 Regimento Espiritual ou Reino de Deus ______________________________ 80

2.3.3 Regimento Secular ou Reino dos Homens _____________________________ 84

2.4 Lutero e as Revoltas Camponesas _____________________________________ 89

2.4.1 Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas ____________________________ 91

CAPÍTULO III

Agostinho e Lutero em diálogo ____________________________________________ 94

3.1 Iluminação Trinitária em Agostinho e a influência do Nominalismo em Lutero 94

3.2 A Cidade de Deus em Agostinho e o Reino de Deus em Lutero ____________ 103

3.3 Agostinho e Lutero: o ser humano e a busca pela paz ____________________ 109

3.3.1 Agostinho: A socialis vita ________________________________________ 110

3.3.2 Agostinho: o ser humano e a busca pela paz __________________________ 112

3.3.3 Lutero: a Paz social _____________________________________________ 116

3.3.4 Lutero: economia e política em busca pela paz ________________________ 118

3.4 Agostinho e Lutero: a dimensão ético-político-social, suas oportunidades e

limitações ___________________________________________________________ 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS _____________________________________________ 130

Referência Bibliográfica _________________________________________________ 140

Page 15: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem a intenção de conhecer o quadro do pensamento agostiniano no

que se refere às metáforas das duas Cidades, e a ressignificação empregada por Lutero em

suas metáforas dos Dois Reinos. Isso porque observar-se que tais alegorias têm sido usadas

até os dias atuais para justificar um discurso alienante. Tais ideias muitas vezes não permi-

tem que as igrejas protestantes1, herdeiras tanto do antigo bispo de Hipona quanto do refor-

mador alemão, sejam relevantes em suas sociedades, demonstrando uma possível falta de

interesse que seus líderes e membros têm na atuação da resolução de questões sociais pro-

blemáticas que circundam suas comunidades de fé.

Estas inquietações sobre a origem dessa alienação e qual o papel do pensamento

agostiniano e luterano neste processo levam às seguintes perguntas: à luz do pensamento de

Agostinho de Hipona2, que é base para o pensamento da Reforma3, é possível que exista um

discurso que privilegie uma atuação marcante e relevante frente às duras realidades sociais

hodiernas? Ou ainda: à luz do pensamento de Martinho Lutero, que é o precursor da Refor-

1 Cf. MARROU, Henri; LA BONNARDIÈRE, A. M. Santo Agostinho e o agostinismo. Tradução de Ruy Flores

Lopes. Rio de Janeiro: Agir, 1957. p. 167. 2 Cf. O’MEARA, John. Charter of Christendom: The Significance of the City of God. New York: The Macmil-

lan Company, 1961. p. 8. 3 Cf. GUITTON, Jean. The Modernity of Saint Augustine. Translated by A. V. Littledale. Baltimore; Maryland:

Helicon Press, 1959. p. 80.

Page 16: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

16

ma, é possível que exista um discurso que privilegie uma atuação marcante e relevante fren-

te às duras realidades sociais atuais?

Esta investigação é importante diante do fato de que muitas igrejas protestantes têm

limitado sua voz profética na sociedade. Elas separam, assim, a atuação que a igreja pode

ter na sociedade somente ao campo do recolhimento e oração que busca uma dimensão além

da vida presente. Em decorrência disso, observa-se forte alienação e despreocupação frente

aos mais diversos problemas sociais que poderiam ser resolvidos ou, pelo menos, mitigados,

se a igreja se posicionasse de forma corajosa e comprometida. Portanto, faz-se necessário

compreender o pensamento agostiniano sobre o que significa a metáfora das duas Cidades e

algumas das possibilidades de interpretação de sua compreensão, a fim de saber se justifi-

cam ou não a apatia dessas igrejas na sociedade. E, também, buscar apontamentos na pró-

pria obra do autor que possibilitem um discurso de atuação da Cidade de Deus na Cidade

dos Homens.

O objetivo geral da pesquisa é: analisar criticamente o pensamento de Agostinho de

Hipona e de Martinho Lutero, sobretudo, no que diz respeito à interação entre a Cidade de

Deus e a Cidade dos Homens, e a releitura que foi feita por Lutero sobre o prisma do Reino

de Deus e Reino dos Homens. E os objetivos específicos da pesquisa são: (1) Vasculhar a

bibliografia de Agostinho de Hipona, procurando por elementos que constituam a relação

entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, além de buscar entender como se articula a

Teologia/Filosofia da História do antigo escritor cristão. (2) Vasculhar a bibliografia de

Martinho Lutero, procurando por elementos que constituam a relação entre o Reino de Deus

e o Reino dos Homens, além de buscar entender como se articula seu pensamento no que

concerne a atuação política do cristão e da cristã no estado e o influxo que recebe do pen-

samento agostiniano.4 (3) Refletir hermeneuticamente os conteúdos da pesquisa em Agosti-

nho e Lutero, identificando possíveis possibilidades e limitações da construção de um fazer

teológico que favoreça a atuação social e presença marcante na vida da sociedade por parte

das igrejas em busca pela paz.

Nosso método de trabalho, bem como o referencial teórico, é o método analítico crí-

tico. Primeiramente, inserimo-nos na área da hermenêutica, conforme proposta pela linha de

pesquisa Linguagens da Religião, com o respaldo do grupo de pesquisa Archeion — Herme-

4 Cf. HOLLINGWORTH, Miles. Pilgrim City: St Augustine of Hippo and His Innovation in Political Thought.

London; New York: T & T Clark, 2010. p. 111.

Page 17: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

17

nêutica de Textos Religiosos e Grupo de Pesquisa Paul Tillich de Teologia e Cultura. Inici-

almente, a pesquisa terá caráter exploratório: será feita uma aproximação do tema, em torno

da vida e obra de Santo Agostinho e vida e obra de Martinho Lutero. Para tal, a metodologia

será: (1) Da leitura. Reunião e exame das fontes consideradas “primárias” (obras de Agos-

tinho de Hipona e Martinho Lutero), possibilitando vasta leitura nos textos dos autores. Nes-

te primeiro estágio, vasculhamos o maior número possível de livros e documentos publica-

dos por Agostinho e Lutero. (2) Da reflexão. Aprofundamento da leitura dos temas perti-

nentes à dissertação: Relação entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens, Filosofia e Teo-

logia da História, Relação entre o Reino de Deus e o Reino dos Homens e questões concer-

nentes a busca pela paz. (3) Da escrita. Confronto de diferentes ideias e perspectivas entre

Agostinho de Hipona e Lutero, sobretudo, e reflexão sobre a relação a possibilidade de se

construir uma atuação marcante na sociedade, e que busque a paz.

O texto desta pesquisa está dividido em três capítulos. No primeiro, Agostinho: ética

e política na patrística busca-se traçar o itinerário traçado pelo autor de Hipona no que con-

cerne ao pensamento ético e suas consequências. Para tal, inicia-se com sua vida, formação,

as influências que existiram em seu pensamento e a trajetória que o levou a escrever, sobre-

tudo, o livro A Cidade de Deus e outras obras relacionadas a atuação do cristão e da cristã

na sociedade. Isso porque a reflexão do bispo norte africano afetava todos os aspectos da

vida, pois ele estava “preocupado em secundar o papel que a Igreja desempenhava desde o

fim da Antiguidade – e continuaria a desempenhar ao longo da Idade Média – como educa-

dora do povo. E não apenas com relação à inteligência. A igreja era também a grande escola

de formação humana e moral.”5 A partir destes dados serão utilizados estudiosos e comen-

tadores da vida do antigo pensador cristão, já que sua vida vem sendo estudada desde a épo-

ca de sua morte, como se observa no seu primeiro biógrafo, que diz que “resolvi para tal não

calar sobre a vida e costumes de Agostinho, excelente bispo, que foi predestinado e viveu na

época por Deus determinada, o que vi e o que dele próprio ouvi.”6

Em seguida, ainda no mesmo capítulo busca-se entender a Teologia da História do

autor, que consiste numa ressignificação de texto bíblicos, para a construção de um pensa-

5 LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média: Textos do século V ao XIII. São Paulo: WMF

Martins Fontes, 2013. p. 12. 6 POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho – Prefácio, I. Tradução Monjas Beneditinas. São Paulo: Paulus, 1997. p.

35.

Page 18: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

18

mento sobre a história da humanidade7. Conceito este que é fundamental para que se com-

preenda a visão de mundo e a forma como Agostinho constrói suas reflexões, posto que ela

não é propriamente uma “filosofia da História, senão uma interpretação dogmático-histórica

do cristianismo, ainda que a verdade da doutrina cristã se mostra a ela com materiais da

história sagrada e da profana”8 Neste ponto, faz-se necessário conceituar o que é metáfora

para esta pesquisa, posto que metáforas tanto de Agostinho quanto de Lutero são trabalha-

das na dissertação, “a metáfora nesse caso é atuante sobre o modo de ser humano e o discur-

so metafórico abre as capacidades latentes do ser humano para o exercício de sua humani-

dade no contexto do sagrado. O discurso metafórico cumpre assim uma função ontológica,”9

já que a metáfora é uma viva expressão da existência do ser humano. E o principal referen-

cial no que diz respeito à interpretação metafórica é o filósofo francês do século 20 Paul

Ricoeur. Após isso, trabalhou-se sobre as metáforas da Cidade de Deus e do Reino de Deus,

e as relações que são estabelecidas nesta dinâmica de pensamento. E, ainda nesta primeira

parte se aborda a redefinição que Agostinho empregou no conceito ciceroniano de populus.

Conceito importante tendo em vista a constituição de ambas as cidades metafóricas empre-

gadas pelo bispo de Hipona: povo.

No segundo, Lutero: ética e política na Reforma examina-se a vida e obra de Marti-

nho Lutero, buscando encontrar suas influências teológicas dentro do contexto no qual vi-

veu. Especificamente, trilhar os passos de sua formação ajuda a compreender algumas cons-

truções teológicas do autor que são fundamentais para seu pensamento, sobretudo, no que

concerne a ética e a participação política. A seguir é necessário refletir acerca de algumas

concepções centrais na reflexão luterana, temas como a justificação pela fé e o papel das

boas obras são fundamentais para a compreensão do pensamento do autor no que se refere a

ação do cristão na sociedade. Na sequência, serão estudadas as metáforas de Lutero dos

Dois Reinos, e a análise que o pensador faz sobre o papel de cada um deles. Após isso, uma

análise do procedimento que o reformador adotou frente às Revoltas Camponesas pode aju-

7 Cf. DANIÉLOU, Jean. Essai sur Le Mystère de L’Histoire. Paris: Editions du Seuil, 1953. p. 11. 8 “No es una filosofia de la Histoira, sino una interpretación dogmaticohistórica del Cristianismo. Aunque la

verdad de la doctrina Cristiana se muestra em ella, con materiales de la Historia Sagrada y de la profana.”

LÖWITH, Karl. El Sentido de la Historia: Implicaciones Teologicas de la Filosofia de la Historia. Traduc-

ción Justo Fernandez Bujan. Madrid: Aguilar, 1968, p. 238. 9 JOSGRILBERG, Rui. “O mito, uma interpretação metafórica.” In: JOSGRILBERG, Rui; LAUAND, Luiz

Jean. Estudos em Antropologia e Linguagem. São Paulo: CEMorOc; Factash, 2014. p. 48.

Page 19: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

19

dar na compreensão de como algumas de suas ideias políticas foram aplicadas, mostrando,

desta forma, tanto os potenciais quanto as limitações de sua perspectiva.

Por fim, o terceiro intitulado Agostinho e Lutero em Diálogo parte de uma análise

sobre qual era a influência filosófica no pensamento dos autores. Dando destaque as corren-

tes do pensamento que os inspiraram ajuda a compreender como os respectivos autores

construíram suas reflexões. Especificamente, é importante destacar que Lutero apesar de ter

forte influência de Agostinho em sua teologia, recebeu também outras influências sobre seu

pensamento que afetaram a forma como o reformador alemão leu o bispo de hipona. Desta-

que-se, sobretudo o nominalismo, corrente filosófica surgida no final da Idade Média e iní-

cio da Idade Moderna, que marcam a forma de se analisar os textos pelo reformador. Depois

disso, analisa-se as metáforas dos dois pensadores, a das Duas Cidades e a dos Dois Reinos,

a fim de mostrar a relação entre elas na compreensão destes autores em diálogo.

Page 20: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

CAPÍTULO I

AGOSTINHO:

ÉTICA E POLÍTICA NA PATRÍSTICA

1.1 Agostinho: formação e influências em seu pensamento

Agostinho de Hipona (354-430), Aurelius Augustinus, é uma figura emblemática na

história do mundo ocidental, e existe certo desafio para falar sobre ele para pessoas do sécu-

lo 21, pois não bastasse o fato dele estar separado por mais de mil e quinhentos do atual

momento histórico, seu pensamento é riquíssimo e espalhado por uma infinidade de escritos

que foram desenvolvidos ao longo de toda sua longa caminhada cristã.

O autor patrístico nasceu em meados do quarto século em uma pequena cidade no

norte da África, esta era uma cidade já antiga de sua região, que já existia antes de ser colo-

nizada e inculturada pelos romanos, “Agostinho ali nasceu, em 354, na cidade de Tasgaste

(...) [que já] tinha 300 anos. Era um dos muitos núcleos de flagrante amor-próprio que os

romanos haviam espalhado por todo o norte da África.”10 Faz-se necessário ressaltar que as

10 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Page 21: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

21

províncias do Império Romano africanas gozavam de certo prestígio neste período devido a

proximidade que elas tinham da cidade de Roma. A educação que foi dada ao jovem pensa-

dor africano foi bastante rígida e seguia os padrões da época, onde muito se valorizava as

obras dos escritores gregos e latinos que já naquele período eram tidos por referência, como

Cícero, por exemplo. No que concerne a esta educação, ele se destacou desde novo e adqui-

riu uma aguda capacidade de memorizar e aprender, desta forma, “aos 15 anos (...) emergira

um rapazola talentoso, duramente exigido pelos pais e capaz de amar o que aprendia. Graças

a essa educação, desenvolvera uma memória fenomenal, uma atenção tenaz aos detalhes.”11

Mas, notadamente, a leitura que marcou profundamente o caráter de sua busca foi o

livro de Cícero12 intitulado Hortensius, onde o escritor e jurista romano faz uma exortação à

busca pela sabedoria por meio da Filosofia. Esta compreensão mudou a forma como o ainda

jovem norte africano viria a conduzir sua vida e suas escolhas ao longo dela, levando-o,

desta maneira, a uma busca que o moveu ao longo de muitos de seus anos. Observa-se este

fato nos próprios escritos agostinianos, especificamente, nas Confissões quando ele relata

que “o livro é uma exortação à filosofia e chama-se Hortensius. Devo dizer que ele mudou

os meus sentimentos e o modo de me dirigir a ti, ele transformou as minhas aspirações e

desejos.”13

Após a leitura desta obra ciceroniana, que infelizmente não chegou aos dias atuais,

Agostinho acabou ainda em sua mocidade por se afastar do cristianismo católico que era

professado por sua mãe, Mônica, e acabou se aproximando de uma seita que naquele perío-

do gozava de significativa expressão chamada Maniqueísmo,14 o contato com essa corrente

gerou uma importante expansão em seus horizontes intelectuais.15 Isso ocorreu, pois este

grupo religioso dotava de respeitabilidade e muitos contatos por todo o Império nesta época,

Record, 2012. p. 23. 11 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia, 2012. p. 44. 12 Este importante autor romano será abordado mais a frente nesta dissertação, quando será falado sobre a ressig-

nificação que Agostinho fará de populus. 13 “Sed liber ille ipsius exhortationem continet ad philosophiam et vocatur Hortensius. Ille vero liber mutavit

affectum meum et ad te ipsum, Domine, mutavit preces meas et vota ac desideria mea fecit alia.” AGOSTI-

NHO, Santo. Confissões III, IV, 7. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. p.

66. 14 Corrente filosófica e religiosa dualista que foi propagada por Manes (215-276) e que se espalhou por diversas

regiões do mundo da época. Divide o mundo entre um princípio bom provindo de Deus, e um mal advindo do

Diabo. 15 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 44. p. 59.

Page 22: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

22

o que, inclusive, levou o jovem africano a ter algumas oportunidades de trabalho na corte

imperial.

Após permanecer na doutrina maniquéia por quase uma década, desde os dezenove

até os vinte e nove anos, Agostinho se frustrou com esta corrente, uma vez que esta não

conseguiu corresponder a seus profundos questionamentos, isso fez com que, gradativamen-

te, o autor fosse se afastando deste grupo, o que, novamente, gerou uma ávida busca por

respostas que o fez se interessar pelos escritos neoplatônicos16. Nomeadamente, a leitura de

Plotino17 o impeliu a ser defrontado com questões difíceis e que ampliaram ainda mais seus

horizontes filosóficos:

tal leitura inclui tratados de Plotino, um dos autores mais notoriamente di-

fíceis do mundo antigo. Foi uma leitura tão intensa e minuciosa que as

ideias de Plotino foram cabalmente absorvidas, ‘digeridas’ e transformadas

por Agostinho (...) [nele] Plotino e Porfírio encontram-se enxertados de

maneira quase que imperceptível em seus escritos, como a base sempre

presente de seu pensamento.18

Após este período de intensas leituras neoplatônicas, o autor teve uma brevíssima

passagem pela forma cética como a Nova Academia encarava as questões filosóficas, 19 mas

rapidamente a rejeitou e logo acabou por se converter ao cristianismo católico, tanto no que

diz respeito à religião quanto à argumentação teológico-filosófica. O fenômeno do ingresso

de Agostinho ao catolicismo é narrado de forma dramática nos livro VIII das Confissões20

onde o escritor descreve de forma minuciosa os últimos passos que o levaram ao ponto de

sentir “estar explorando uma ‘Filosofia’ plenamente integrada e bem demarcada: os sacra e

os mysteria, os ritos e dogmas da Igreja católica, resumiam na integra as verdades que a

mente do filósofo um dia poderia aprender.”21

16 Neoplatonismo foi uma escola filosófica inspirada nos escritos de Platão (428 a.C.- 348 a.C.) que nasceu no

terceiro século depois de Cristo e que teve importante predominância até o sexto século, quando a Academia

de tenas foi fechada por ordens de Justiniano no ano de 529 d.C.. Sua influência ainda se estende por muitos

séculos devido a recepção que ela recebeu de autores como Agostinho, al-Farabi, Maimônides, dentre outros. 17 Plotino (205-270) foi um expoente filósofo neoplatônico, sua principal obra foi Enéadas. 18 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 113. 19 Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São

Paulo: Record, 2012. p. 124. 20 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. 21 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 132.

Page 23: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

23

1.1.1 Ascenção ao episcopado de Hipona

É essencial destacar que suas obras desde sua conversão giraram em torno de temas

cristãos, tendo como principal instrumento balizador os materiais bíblicos disponíveis a ele.

Porém, este mesmo cristão, sacerdote e bispo da diocese norte-africana de Hipona era um

grande conhecedor da cultura de sua época, sendo letrado nos clássicos e tendo durante qua-

se duas décadas de sua vida se dedicado à docência da Retórica, uma das mais destacadas

disciplinas de seu tempo. Devido a isso, Agostinho se tornou uma ponte que ligou a Idade

Antiga a Idade Média, que estava por começar após sua morte, tornando-se assim, “o Pre-

ceptor do Ocidente. Nenhum dos futuros sistemas cristãos irá poder ignorá-lo. E, com efei-

to, todos, de um modo ou doutro, lhe sofreram o influxo. Pois por quase um milênio exerceu

domínio incontestado no campo do pensamento.”22

De forma muita rápida, o então convertido acabou por se tornar sacerdote e posteri-

ormente bispo. Sua conversão ocorreu no ano de 386 e já “em 391 os seus planos de uma

vida entregue ao estudo e à oração são alterados. Numa viagem a Hipona é aclamado sacer-

dote e em 395 é sagrado bispo para auxiliar Valério, o bispo da diocese, a quem sucede

pouco depois na sede episcopal.”23 Sua intenção inicial era recolher-se a uma vida de medi-

tação e contemplação em sua cidade natal, intento que chegou a realizar durante estes pou-

cos anos iniciais de sua caminhada cristã. As primeiras narrativas que temos sobre este fato

se encontram na obra biográfica que Possídio24, contemporâneo de Agostinho, na qual ele

diz: “neste tempo o santo Valerius era o bispo da Igreja Católica em Hipona.

Mas devido às demandas crescentes no dever eclesiástico, este se dirigiu ao povo de

Deus e os exortou a que se providenciasse e se ordenasse um presbítero para a cidade.”25

Em outras palavras, “a congregação virou-se e, como esperava, descobriu Agostinho posta-

do em meio a ela, na nave; com a gritaria persistente que o método exigia, as pessoas em-

22 BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de

Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 203. 23 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 14. 24 Possídio (s.d - 437) foi um bispo católico da cidade de Calama, na província romana da Numídia. Foi o princi-

pal biógrafo de Agostinho de Hipona. 25 “Eodem itaque tempore in ecclesia Hipponensi Catholica Valerius sanctus episcopatum gerebat. Qui cum

fragitante ecclesiastica necessitate, de providendo et ordinanto presbytero civitati plebem Dei alloqueretur et

exhortaretur.” POSSÍDIO, São. Sancti Augustini Vita, 4. Edited, Introduction and notes by Hebert T.

Weiskotten. Princeton: Princeton University Press, 1919. p. 47 Disponível em:

<https://archive.org/stream/sanctiaugustini00weisgoog#page/n122/mode/2up>. Acesso em 04/11/2014.

Page 24: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

24

purraram-no até o trono elevado do bispo e os bancos dos padres.”26 Desta maneira que hoje

caiu em desuso é que ocorreu a rápida mudança em sua vida, de um religioso recolhido em

sua cidade natal, para um proeminente pensador e bispo.

Quando Agostinho foi para a cidade de Hipona, que ficava na província romana da

África, esta localidade já existia a mais de mil anos,27 pois “algumas como Hipona, eram

antigas cidades púnicas transformadas,”28 e foram incorporadas e inculturadas pelo Império

Romano. A partir de então, seu pensamento passou a ser respeitado por sua agudeza, tor-

nando-se um dos principais autores da história de todo o cristianismo. Dedicou-se até o final

de sua vida a escrita de obras que respondiam aos anseios de seu tempo, mas seus pensa-

mentos acabaram por se espalhar e chegam com vigor até os dias atuais. Neste mesmo local

o pensador cristão viveu até o final de sua vida, e presenciou a “dominação romana da Áfri-

ca simplesmente desmoronar. No verão de 429 e na primavera de 430, súbita e rapidamente,

os vândalos infestaram a Mauritânia e a Numídia.”29 Esta temática sobre a queda do mundo

romano na África é abordada de forma mais completa no livro Os vândalos e a África.30

1.1.2 Motivos da escrita do livro A Cidade de Deus

Especificamente, a temática da Cidade de Deus está presente em um momento de

crise do Império Romano, que já tinha sido cristianizado naquele momento. Isso ocorreu,

mormente, porque no ano de 410 d.C. Alarico31 conduziu um cerco que culminou com o

saque da cidade de Roma, o que foi considerado pelos romanos pagãos um terrível humilha-

ção, que foi debitada ao fato do Império ter adotado o cristianismo como a religião oficial

poucas décadas antes.

Agostinho, então, em resposta a estas críticas faz um famoso sermão que fala sobre o

saque à cidade de Roma e o sofrimento que este causou.32 E após isso, escreve sua maior

26 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 172. 27 Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São

Paulo: Record, 2012. p. 231. 28 HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu tempo. Tradução Álvaro Cunha e Revisão de Nair de Assis Oliveira.

São Paulo: Paulinas, 1989. p. 9. 29 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 530. 30 COURTOIS, Christian. Les Vandales et l’Afrique. Paris: Arts et Métiers graphiques, 1955. 31 Alarico foi um rei dos Visigodos que conduziu um levante que culminou no cerco e saque de Roma nos dias

25, 26 e 27 de outubro de 410, o que gerou grande escândalo e desconforto em todo o Império Romano. 32 Cf. AGOSTINHO, Santo. Sermon: The sacking of the city of Rome. In: Augustine Political Writings. Edited

Page 25: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

25

obra, A Cidade de Deus (De civitate Dei), que tem como um dos principais interesses de-

fender o cristianismo respondendo seus críticos da acusação de que esta religião era a res-

ponsável pelo desastre que se sucedeu a Roma. O ano de 410 foi extremamente complicado

não somente para a história do cristianismo, mas para todo o Império Romano. Porquanto,

Roma era considera uma cidade eterna, que nunca viria a sofrer uma destruição. Muitos

como Eusébio de Cesareia33 haviam exaltado as qualidades e características da associação

entre o Império e a igreja, posto que ele “chega a considerar o carácter sagrado e providen-

cial do império e vê no imperador Augusto um reflexo humano do monoteísmo, realizado

perfeitamente em Constantino, o imperador cristão.”34

Devido a este caráter triunfalista que foi dada a associação entre Império e a religião

cristã, explicar a invasão de Roma passou a ser um drama que afligiu aquela geração. Sobre-

tudo, porque em um mundo onde religião e política eram indissociáveis passou a ser recor-

rente a crítica de que a culpa era da mudança de religiosidade que havia sido imposta ao

Império Romano poucas décadas antes, quando Teodósio tornou o cristianismo católico à

religião oficial. Isso ocorreu:

Na última década do séc. IV assistimos a várias medidas, umas que expri-

mem a aliança crescente entre império e cristianismo e outras que encerram

definitivamente na vida cívica os rituais antigos. Segundo o Codex Theo-

dosianus, em 391 estabelecia-se a proibição de qualquer cerimónia pagã,

sacrifícios ou homenagem aos velhos deuses na cidade de Roma.35

Agostinho, então, pôs-se a escrever um tratado de proporções monumentais para res-

ponder a estes questionamentos, porém, não é sensato compreender que esta obra visa ser

apenas uma réplica aos questionamentos que vinham sendo feito ao cristianismo devido à

invasão de Roma, já que “A Cidade de Deus não se pode explicar em termos de sua origem

imediata (...) o que esse saque fez foi dar-lhe um público questionador e específico em Car-

tago, donde o saque de Roma assegurou que um livro que poderia ter sido uma grande

by E. M. Atkins and R. J. Dodaro. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 209. [Cambridge Texts

in the History of Political Thought] 33 Eusébio (265 – 339) foi bispo da cidade de Cesareia e é considerado o pai da história da Igreja, dado a impor-

tância que sua obra intitulada História Eclesiástica alcançou. 34 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 18. 35 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 16.

Page 26: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

26

obra.” 36 Destarte, a escrita desta obra encontrou lugar neste contexto, mas ela pode ser con-

siderada uma criação que veio “a tornar-se um confronto deliberado com o paganismo. Em

si mesmo, A Cidade de Deus não é um ‘tratado da época’; é a elaboração cuidadosa e pre-

meditada, por parte de um ancião.”37

A obra foi escrita em vinte e dois volumes, sendo que os três primeiros livros foram

publicados em 413, ou seja, três anos após a invasão de Roma liderada por Alarico. E os

últimos só seriam publicados treze anos após o início deste imenso livro, este foi “um gran-

de e árduo trabalho, magnum opus et arduum [que foi concluído] com uma frase compacta,

que resume o tom de deliberação vigoroso em que havia optado por escrever: ‘com a ajuda

do Senhor, pareço haver pago minha dívida com este livro gigantesco’.”38 A obra veio a se

tornar um tratado sobre a glória da Cidade de Deus, mas esta não é atrelada com a glória do

Império, como outrora havia sido feito, ele projeta esta para uma cidade que não pode ser

associada cabalmente com nenhuma instituição terrestre. Posto que “A Cidade de Deus é um

livro sobre a ‘glória’. Nele, Agostinho drena a glória do passado romano a fim de projetá-la

muito além do alcance dos homens, na ‘Gloriosíssima cidade de Deus’.”39

Na obra intitulada Retratações que o autor escreveu no final de sua vida, onde ele

refaz seu trajeto teológico-filosófico, Agostinho afirma que “o De Ciuitate Dei tivesse nas-

cido para responder à acusação pagã que responsabilizava o cristianismo pelos reveses so-

fridos por Roma, esta obra viria a transpor os limites de uma obra circunstancial e revelar-

se-ia monumental,”40 e isso ocorreu não só por causa do tamanho da obra, mas, sobretudo,

por seu conteúdo profundo e abre novas e profundas significações que serão lidas e relidas

ao longo da história.

36 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 385. 37 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 385. 38 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 377. 39 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 384. 40 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 20-21.

Page 27: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

27

1.2 Teologia/Filosofia da História em Agostinho

A primeira consideração que deve ser feita acerca da Teologia agostiniana da Histó-

ria é o fato de que ela não deve ser, de forma alguma, confundida com uma história eclesiás-

tica, como fez Eusébio de Cesaréia41, por exemplo. Pois a identificação plena da Cidade de

Deus com instituições humanas foi refutada pelo pensamento do escritor norte africano.

E por mais que ao longo da história tenha-se identificado uma determinada institui-

ção eclesiástica como sendo a Cidade de Deus, isso seria, na melhor das hipóteses, um es-

forço que poderia apontar para uma caricatura sobre o que de fato esta sociedade peregrina

na terra representa, como se observa em: “seria uma aplicação caricatural, grosseiramente

deformada de nossa teologia confundir a história da Cidade de Deus, sempre, em grande

parte, invisível a nossos olhos, com o que é acessível a nosso conhecimento da historia da

Igreja visível.”42

Espera-se que fique evidenciado que para Agostinho, o que se entende como Teolo-

gia/Filosofia da História é o tempo que decorre enquanto as duas Cidades se desenvolvem

neste mundo. Portanto, é justamente este lapso de tempo que pode ser denominado de histó-

ria, como será evidenciado a frente.

1.2.1 Teologia e Filosofia

Torna-se necessário fazer um esclarecimento para que se prossiga na exposição dos

conceitos que vem sendo abordados. Em várias ocasiões ao longo desta dissertação insiste-

se no entrelaçamento das palavras Teologia e Filosofia quando se refere ao pensamento de

Agostinho. Esta escolha faz parte da compreensão de que estas duas disciplinas podem e

andam de mãos dadas em seu pensamento, sendo improvável uma concepção que não capte

esta interdependência destas formas de pensar, a filosófica e a teológica. Isso influencia

muito a forma como se interpreta seu pensamento, uma vez que grandes estudiosos como

41 EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. Tradução Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe

de Cristo. 2 ª ed. São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção Patrística, v. 15) 42 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da tempo-

ralidade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 58.

Page 28: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

28

“Etienne Gilson argumentam vigorosamente que o que encontramos em Agostinho não é

uma filosofia, mas uma teologia da história.”43

Pois o pensador antigo nunca desenvolveu suas obras, fossem elas diretamente vol-

tadas a sua vida como clérigo ou não, sem levar em consideração o fato de que desde o

momento da sua conversão, brilhantemente narrado em suas Confissões44, suas crenças con-

forme elas eram expressas pela fé cristã. Com especial atenção, as suas interpretações das

Escrituras. Devido a isso, precisa-se ter em mente que “Agostinho quer ser, em primeiro

lugar, um teólogo, e não um filósofo. A inexistência de uma síntese filosófica, fora do con-

texto teológico é, em derradeira análise, simples decorrência do seu sistema.”45

O que não marca fraqueza em seu sistema, pelo contrário, mostra a sinceridade com

que ele buscou desenvolver sua fé até os limites que sua própria razão e tempo o permiti-

ram. Inclusive, a própria motivação da escrita da monumental da Cidade de Deus, que é

norte para a abordagem de suas temáticas nesta pesquisa, é fruto de uma situação concreta

que assolou a sociedade de seu tempo. Como já foi exposto sobre o motivo da obra.

Ou seja, as concepções filosóficas que foram desenvolvidas pelo pensador norte afri-

cano são consequências de suas crenças teológicas, que por sua vez, foram extraídas da rea-

lidade que o circundava. Mas não é somente no agostinianismo que se observa esta intrínse-

ca relação entre Filosofia e Teologia, pois esta mesma relação também é defendida por pen-

sadores que foram influenciados pelo antigo bispo de Hipona. Por exemplo, à sua maneira

Paul Tillich, mesmo estando separado em muitos momentos das concepções agostinianas

afirma que “em qualquer interpretação religiosa da história acham-se implícitos elementos

filosóficos (...) sempre que estiver em jogo a interpretação da existência, diminuem as dife-

renças entre a filosofia e a teologia, uma vez que ambas se encontram nos domínios do mito

e do símbolo.”46

Muito se discutiu, então, sobre se Agostinho deveria ser considerado um filósofo ou

um teólogo, devido às suas posições fortemente influenciadas por suas concepções religio-

43 “Etienne Gilson has argued forcefully that what we find in Augustin is not a philosophy but a theology of

history”. (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J. “The City of God and History”. In: D. F. Donnelly. The

City of God: A Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995. p. 294. 44 AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus. 1984. 45 BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de

Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 203. 46 TILLICH, Paul. A Era Protestante. Tradução de Jaci Marashin. São Paulo: Ciências da Religião, 1992. p.

48.

Page 29: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

29

sas. Em geral, como vem sendo explicitado, entende-se que seu sistema compreende ao

mesmo tempo ambas as coisas, já que, para o pensador antigo, não fazia sentido separar a

Filosofia, que era a busca da verdade, da verdade que ele encontrou no pensamento teológi-

co cristão. Sendo assim: “Agostinho quer ser, em primeiro lugar, um teólogo, e não um filó-

sofo. A inexistência de uma síntese filosófica, fora do contexto teológico é, em derradeira

análise, simples decorrência do seu sistema.”47

1.2.2 Teologia da História

Isso justifica a posição adotada nesta dissertação de denominar sua Filosofia da His-

tória de Teologia da História, apesar do entendimento de que, para ele, em seu próprio tem-

po, não faria sentido debater acerca do caráter de suas discussões. Dessa forma, segue-se

nesta exposição à distinção adotada por um dos maiores estudiosos de Agostinho da con-

temporaneidade, o francês “Etienne Gilson [que] argumentou vigorosamente que o que en-

contramos em Agostinho não é uma filosofia, mas uma teologia da história.” 48

Gilson não encerra a forma como se pode remeter a este assunto, já que é comple-

mentado pela posição que é defendida por Bourke, que diz: “o uso agostiniano da sua filo-

sofia da história não se distingue de sua teologia.”49 E pode-se também encontrar a inferên-

cia que ele defende, dizendo que: “existe, então, em Santo Agostinho, uma visão cristã da

história; se vamos chamá-la de filosofia ou teologia, são pequenas as consequências.”50 Isso

mostra a riqueza dos trabalhos que já foram desenvolvidos nesta temática, e como os auto-

res tendem ora a assertivamente dizer que é uma teologia, enquanto outros preferem marcar

a multiplicidade disciplinar do conteúdo dos pensamentos agostinianos.

47 BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de

Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 203. 48 “Etienne Gilson has argued forcefully that what we find in Augustine is not a philosophy but a theology of

history”. (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J. “The City of God and History”. In: D. F. Donnelly. The City

of God: A Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995. p. 294. 49 “Augustine’s usage he has a philosophy of history but he would not distinguish it from a theology”. (Tradução

nossa) BOURKE, Vernon J. “The City of God and History”. In: D. F. Donnelly. The City of God: A Collec-

tion of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995. p. 294. 50 “there is, then, in St. Augustine a Christian view of history whether we call it philosophy or theology is of

small consequence.” (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J. “The City of God and History”. In: D. F. Don-

nelly. The City of God: A Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995. p. 294.

Page 30: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

30

1.2.3 História em sua profundidade ou Universal

Esta forma de compreender a história dentro do escopo teológico, ou seja, do campo

que dialoga com a revelação e a fé, ajuda a perceber que, para o pensador norte-africano,

não faz sentido fazer a história como os historiadores de sua época faziam, ou mesmo, como

ela é feita nos dias atuais. Para ele, a maior preocupação não está em narrar como acontece-

ram os eventos em uma sucessão infinita que tem como fim a narrativa dos eventos por si

mesma. Para o teólogo de Hipona, a história é pensada em sua totalidade, como parte de

algo maior que liga não somente as pessoas que vivem em seu tempo, mas liga toda a hu-

manidade:

ela [a História] deve bastar para que se compreenda que não se tratará mais

aqui da história dos historiadores, da história da ciência (...) mas antes do

problema que propõe à nossa consciência a história realmente vivida pela

humanidade através da totalidade da duração e à qual cada um de nós se

acha intimamente associado pelo próprio caráter histórico da existência. É,

para resumir tudo numa só frase, o problema do “sentido da história.51

Em outras palavras, a preocupação maior da Teologia da História agostiniana não es-

tá na narrativa por si só da história, mas na profundidade de sentido que ela encontra, ou

seja, de seu valor ontológico. Com isso, também é assegurado não somente o caráter de sen-

tido da história, mas também sua universalidade.

Não escapa das obras de Agostinho a crítica àquelas pessoas que, já em seu tempo,

adotavam uma posição que valorizava mais a história como fim em si própria, sem atrelá-la

a valores mais próximos à ontologia, ao sentido. Observa-se isso em vários trechos de seus

escritos, sendo que um dos momentos em que ele demonstra sua forma de pensar sobre o

assunto está na Verdadeira Religião52, quando ele diz que: “não poucas pessoas gostam

mais das coisas temporais do que da divina Providência que forma e dirige os tempos. Têm

amor ao fugaz e não querem que passe aquilo que amam”53 54

51 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 10. 52 AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira Religião. Tradução de Nair de Assis Oliveira. Revisão de Gilmar Coraz-

za. São Paulo: Edições Paulinas, 1987. 53 Textos em Latim do livro De Vera Religione, traduzido para o português como A Verdadeira Religião,

estão conforme a Patrologia Latina 34. Disponível em

<http://www.augustinus.it/latino/vera_religione/index.htm>. Acesso em: 04/08/2013. 54 “Ita multi temporalia diligunt, conditricem vero ac moderatricem temporum divinam providentiam non re-

quirunt; atque in ipsa dilectione temporalium nolunt transire quod amant.” AGOSTINHO, Santo. A Verda-

deira Religião XXII, 43. Tradução de Nair de Assis Oliveira. Revisão de Gilmar Corazza. São Paulo: Edi-

ções Paulinas, 1987. p. 75.

Page 31: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

31

O pensador antigo vê, mesmo nas situações mais contraditórias da realidade, fatos e

momentos que podem apontar para esta profundidade de sentido e universalidade da histó-

ria. Isso porque, em meio aos momentos mais complexos e paradoxais, ele não deixa de

entender que, mesmo diante de “todos estes dramas, todos estes sofrimentos, estes fracassos

aparentes, o plano divino da salvação ainda se realiza e avança com um passo seguro para o

triunfo de sua realização.”55

Logicamente, existe uma profunda e inescrutável distância entre a forma como os se-

res humanos e a divindade enxergam o desenrolar destes eventos, uma vez que “não se trata

de um limite na ciência humana do Cristo, mas de uma impossibilidade ontológica para nós

homens, ainda imersos na história, de receber a este respeito uma comunicação plena e to-

tal.”56 Em outras palavras, “a história, considerada em sua totalidade e em sua realidade

profunda, é também um mistério no sentido que o conhecimento que dela podemos adquirir

permanece sempre extremamente limitado.”57 Isso significa que existe um limite à forma

como os seres humanos podem interpretar e entender todos estes eventos, que, muitas vezes,

estão marcadas por situações tão complexas e paradoxais que são difíceis de entender de

forma plena pela racionalidade. Sobre este mistério da História, uma boa referência é o livro

Ensaio sobre o mistério da história de Jean Daniélou.58

Olhando por este prisma, pode-se observar o significado mais profundo e universal

da história. Nisso, entram as metáforas agostinianas da Cidade de Deus e da Cidade dos

Homens. A história universal, então, consistiria nas múltiplas relações humanas que estão

abarcadas nestas metáforas. Sendo assim, é no desenvolvimento dos diversos conflitos e da

vitória que haverá no final dos tempos, da Cidade de Deus sobre a Cidade dos Homens, que

se passa a significação mais profunda da história de toda a humanidade. Portanto, é “das

considerações sobre a natureza do Estado de Deus e do Estado terreno [que] Agostinho diri-

ge a vista para o papel histórico que lhes cabe no passado, no presente e no futuro, alçando-

se, assim, a uma interpretação realmente universal da história!”59

55 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 46. 56 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 48. 57 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 51. 58 Mais informações sobre o assunto em DANIÉLOU, Jean. Essai sur le mystère de l’histoire. Paris: Les Édi-

tions du Cerf. 1982. 59 BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de

Page 32: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

32

1.2.4 História como narrativa

Após a demonstração sobre o caráter de universalidade e profundidade da história,

passa-se, agora, a mostrar a História como uma narrativa. Sobre este fato, pode-se dizer que

Agostinho rejeita a ideia de que queria narrar fatos de tempos que se passaram, acerca de

batalhas, nomes de vencedores, como fazem os historiadores comuns. Sua preocupação está

em narrar à história acerca do que é relevante para o plano salvífico divino.

Para tal, é importante destacar que o conceito agostiniano de história não deve ser

confundido com o conceito que a modernidade atribui a este termo. Porque, em Agostinho,

o que se vê é uma narrativa dos eventos salvíficos da divindade que guia a temporalidade

rumo a um fim de redenção. Para elucidar melhor esta questão, faz-se necessário consultar

os próprios escritos de Agostinho, nos quais ele teve a oportunidade de mostrar como eram

suas concepções sobre este tema. Ver-se-á que, tanto em A Verdadeira Religião como em A

Cidade de Deus, existe uma forma de se olhar para a história valorizando seu caráter narra-

tivo; em outras palavras, como uma sucessão de eventos que acontece dentro da vivência de

um povo, ou de um grupo de pessoas, que aponta para objetivos que transpõem a própria

temporalidade.

A primeira passagem diz que “o fundamento para seguir esta religião é a história e a

profecia. Aí se descobre a disposição da divina Providência, no tempo, em favor do gênero

humano, para reformá-lo e restaurá-lo, em vista da posse da vida eterna.”60 E a outra fala:

“Como se cumpriram as promessas de Deus a Abraão (...) sabemos que pertencem não só o

Povo Israelita segundo a carne, mas também a todos os povos segundo a fé – é o que indica-

rá o desenvolvimento da Cidade de Deus no decurso dos tempos.”61 62

Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 200. 60 “Huius religionis sectandae caput est historia et prophetia dispensationis temporalis divinae providentiae, pro

salute generis humani in aeternam vitam reformandi atque reparandi.” AGOSTINHO, Santo. A Verdadeira

Religião VII, 13. Tradução de Nair de Assis Oliveira. Revisão de Gilmar Corazza. São Paulo: Edições Pauli-

nas, 1987. p. 48. 61 Todas as citações em Latim do livro A Cidade de Deus foram extraídas do texto latino dos beneditinos de S.

Mauro utilizado por Migne na Patrologia Latina XLI e reproduzido pela BAC (Biblioteca de Autores Cristia-

nos, Madrid, 1964) em Obras de San Augustin, XVI-XVIII – La Ciudad de Dios. 62 “Promissiones Dei, quae factae sunt ad Abraham, cuius semini et gentem Israeliticam secundum carnem et

omnes gentes deberi secundum fidem, Deo pollicente, didicimus, quemadmodum compleatur, per ordinem

temporum procurrens Dei civitas indicabit.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XX, 1. Tradução de

J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 1587.

Page 33: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

33

O que se atesta nestas passagens é a importância que Agostinho concede à interpre-

tação de uma narrativa dos eventos em que, em suas próprias palavras, Deus guia a Cidade

de Deus em sua caminhada pela história. Nisso, fica demonstrado que a forma como o anti-

go teólogo descreve a história difere substancialmente da maneira como os modernos histo-

riadores tendem a operar esta ciência.

O que diferenciaria, então, para o pensamento agostiniano, as narrativas cristãs das

outras presentes nas culturas que o circundavam era o fato de que ele entendia, por meio da

fé, que aquelas narrativas expressas na Bíblia faziam parte de uma revelação dada pelo cria-

dor do universo. Ou seja, o seu entendimento de que ela era revelação é o que a diferenciava

de ser considerada algo inválido, ou de menor valor. Vê-se isso em:

Então, falar sobre a encarnação cristã, crucificação e ressurreição não é di-

ferente de nenhum modo de estórias ordinárias sobre pessoas de diferentes

tempos e situações. Ela é sobre o mesmo tipo de coisa, a estória cristã só é

melhor porque ela é mais importante e porque ela é autorizada por quem é

a origem de qualquer estória verdadeira, seja lá sobre o que for.63

Nisso se percebe que as histórias, ou, para ser coerente com o que vem sendo abor-

dado, as narrativas dos eventos que compõem a religiosidade cristã, são mais verdadeiras

porque se entende que elas foram dadas por Deus.64

1.2.5 História como palco da salvação e seus estágios

Na continuidade desta pesquisa, faz-se necessário demonstrar, de forma mais clara,

um ponto que já estava implícito em partes anteriores: o fato de que, em Agostinho, a histó-

ria é palco onde ocorre o plano salvífico de Deus. Sendo assim, entende-se que a temporali-

dade ganha um valor imenso na visão agostiniana, já que é nela que ocorre a atuação da

63 “So to tell of Christ’s incarnation, crucifixion, and resurrection is not different in kind from ordinary stories

about what people did in various times and situations. It is the same sort of business, only the Christian story

is better because it is more important and because it is authorized by him who is the origin of whatever any

true story is about”. (Tradução nossa) BITTNER, Rüdiger. Augustine’s Philosophy of History. In: Augustini-

an Tradicion. Edited by Gareth B. Matthews. Berkeley: University of California Press. 1999. p. 347. 64 Ainda existe outra forma, que está dentro da lógica de se entender a história como narrativa, de se dizer que

Agostinho separa a história em dois termos, um que seria relativo à ‘história secular’ e um à ‘história sa-

grada’. Mas esta abordagem não será exposta com mais delongas, pois se entende que o que foi dito acima

já oferece um bom panorama sobre estas questões no pensamento do pensador de Hipona. Mais informa-

ções sobre esta perspectiva podem ser encontradas na obra de Markus, intitulada Saeculum: História e So-

ciedade na Teologia de Santo Agostinho.64 Nela, o autor, de forma bastante cuidadosa, trabalha estes con-

ceitos de separação entre história ‘sagrada’ e ‘secular’.

Page 34: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

34

divindade, pois é “o plano divino da salvação a intervenção do Deus salvador no seio da

humanidade arruinada pelo pecado, e isto através da temporalidade, na história.”65

A temporalidade, no teólogo antigo, é elevada ao estatuto no qual se pode construir

com segurança uma Teologia da História, conforme se vê em: “o tempo foi escolhido por

Deus como vetor da salvação, como modo de realização de sua oikonomia. Atingimos aí

esta base sólida sobre a qual se pode construir todo o edifício de nossa teologia da histó-

ria.”66 Nesta lógica de pensamento, observa-se que a história não deve ser rejeitada, ou

mesmo colocada em segundo plano, mas deve ser valorizada como local privilegiado e es-

colhido pelo próprio Deus como lugar de ação e atuação Dele em seu povo.

Com isso, se constrói um sistema de pensamento que valoriza a história, apesar de

conferir a ela uma limitação e uma transitoriedade que geram nela uma menor profundidade

ontológica do que a que existe na eternidade. Apesar disso, o que se tem é uma valorização

das atitudes humanas e divinas na temporalidade, mesmo que, em última análise, ela aponte

para outra realidade que se encontra no porvir, ou seja, na escatologia. Esta limitação, em

meio à valorização, está expressa no seguinte trecho da obra de Agostinho: “No que respeita

a esta vida mortal, que se desliza e acaba em poucos dias, que interessa sob que autoridade

vive o homem feito para morrer, se os que mandam não o obrigam a atos ímpios e iní-

quos?”67 Nesta pergunta, que está inserida na típica retórica antiga, na qual ele era especia-

lista, percebe-se a limitação que é concedida à história, sem que isso, de forma alguma, tor-

ne-a pouco importante, uma vez que ela é palco da ação divina.

A história, ou narrativa da salvação tem, na obra agostiniana, uma divisão que cons-

titui, basicamente, de uma interpretação baseada na Bíblia. Ele divide a humanidade em três

períodos: um, antes da queda, conforme narrado nos primeiros capítulos do Gênesis; outro,

que vai da queda até o ‘julgamento final’ que acontecerá no fim dos tempos, período no

qual a Cidade de Deus será separada definitivamente da Cidade dos Homens; e o último

período seria o inaugurado após este momento.

65 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 24-25. 66 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 27. 67 “Quantum enim pertinet ad hanc vitam mortalium, quae paucis diebus dicitur et finitur, quit interest sub cuius

império vivat homo moriturus, si illi qui imperant, ad ímpia et iníqua non cogant?” AGOSTINHO, Santo. A

Cidade de Deus V, 17. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p.

519.

Page 35: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

35

Então, a história, propriamente dita, ficaria neste momento intermediário entre a

queda e a separação entre as duas Cidades, conforme se vê em: “sobre esta base, a história

humana é dividida em três partes. Existiu um tempo da humanidade não caída, existe um

período da humanidade caída, e existirá um tempo de uma humanidade em parte redimida e

em parte condenada.”68 Soma-se a isso a seguinte frase: “a história pode parecer bastante

monótona no primeiro e no último estágio dos três.”69

Uma vez que estes dois momentos diferem bastante, qualitativamente, do tempo que

se encontra a humanidade, percebe-se, por meio desta separação do tempo, mais uma vez,

que o que Agostinho aponta como história não é semelhante ao que os historiadores moder-

nos entendem, reforçando assim o caráter de narrativa do processo salvífico de Deus com o

objeto de sua Teologia da História. A “história ‘real’ só pode vir a existir na segunda parte

da história humana, que é entre a queda e o julgamento, a nossa fase, que Agostinho algu-

mas vezes denominou de ‘hoc saeculum’ (neste período do mundo).”70 Em outras palavras,

sua conceituação sobre o que é história extrapola o próprio campo do que, atualmente, en-

tende-se como história.

1.2.6 Implicações da Teologia da História

A última parte desta seção buscará demonstrar as implicações da Teologia da Histó-

ria de Agostinho, mostrando que ela aponta para várias possibilidades, das quais optaremos

por explorar duas. A primeira, a interpretação de que existe outra realidade que transcende a

própria história. E a segunda, que apesar de apontar para uma realidade que transcende a

própria temporalidade, o cristão e a cristã não estão eximidos de atuar fazendo uma partici-

pação positiva e marcante na temporalidade.

Inicia-se por meio de uma citação do próprio teólogo de Hipona, na parte final do li-

vro A Cidade de Deus quando ele diz o seguinte acerca do último período da história: “lá

68 “On this basis human history is divided into three parts. There was a time of faultless humanity, there is the

time of sinful humanity, there will be a time of partly redeemed, partly dammed humanity”. (Tradução nossa)

BITTNER, Rüdiger. “Augustine’s Philosophy of History.” In: Augustinian Tradicion. Edited by Gareth B.

Matthews. Berkeley: University of California Press. 1999. p. 351. 69 “History would appear to be rather monotonous in the first and the last of three stages.” (Tradução nossa)

BITTNER, Rüdiger. “Augustine’s Philosophy of History.” In: Augustinian Tradicion. Edited by Gareth B.

Matthews. Berkeley: University of California Press. 1999. p. 352. 70 “‘Real’ history can only come in the second part of human history, that between fall and judgment, ours,

which Augustine sometimes just calls “hoc saeculum” (this time of the world)” (Tradução nossa) BITTNER,

Rüdiger. “Augustine’s Philosophy of History.” In: Augustinian Tradicion. Edited by Gareth B. Matthews.

Berkeley: University of California Press. 1999. p. 353.

Page 36: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

36

reinará a verdadeira paz, lá onde ninguém sofrerá qualquer adversidade provinda de si pró-

prio ou de outrem.”71 E completa: “lá repousaremos e veremos, veremos e amaremos, ama-

remos e louvaremos. Eis o que estará no fim sem fim. E que outro é o nosso fim senão che-

gar ao reino que não tem fim?”72 Nisso fica demonstrado o caráter altamente teológico de

suas afirmações, já que elas apontam para uma realidade transcendente que está embasada

na tradição cristã.

É importante fazer uma observação neste ponto para evitar mal-entendidos sobre o

pensamento agostiniano. Em muitos momentos da história, desde os tempos medievais que

sucederam a morte de Agostinho, existiram, inúmeras vezes, tentativas de associar a metá-

fora agostiniana da Cidade de Deus com um determinado Estado, ou mesmo com a Igreja

Católica. Porém, apesar de estarem presentes de forma embrionária estas concepções em

suas obras, não se pode afirmar que isso se dá por causa de seus escritos, pois isso extrapola

suas afirmações. Uma forma razoável de ver sua influência seria entender que ele nem de-

fendeu, nem proibiu que este tipo de associação fosse feita posteriormente por seus leitores,

como se lê em:

Não se pode, portanto, considerar Agostinho nem como tendo definido o

ideal medieval de uma sociedade civil submissa à primazia da Igreja, nem

tendo condenado antecipadamente tal concepção. O que é verdadeiro, estri-

ta e absolutamente, é que em nenhum caso a Cidade terrestre e, menos ain-

da, a Cidade de Deus poderiam ser confundidas com uma forma de Estado,

qualquer que fosse. 73

O que pode ser tirado da obra do pensador norte-africano é o convite que ele estende

à humanidade, dizendo que existe uma pátria que transcende esta temporalidade, pela qual

as pessoas são convidadas a trabalhar, na história. Isso se vê em: “para esta pátria te convi-

damos e exortamos. Junta-te ao número dos seus cidadãos porque ela tem como que por

asilo (...) Apodera-te agora já da pátria celeste. Por ela pouco trabalharás – e nela reinarás

na verdade e para sempre.”74

71 “Vera pax, ubi nihil adverse, nec a se ipso, nec ab alio quisquam patietur.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de

Deus XXII, 30. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 2366. 72 “Ibi vacabimus, et videbimus; videbimus, et amabimus, amabimus, et laudabimus. Ecce quod erit in fine sine

fine. Nam quis alius noster est finis, nisi pervenire ad regnum, cuius nullus est finis?” AGOSTINHO, Santo.

A Cidade de Deus XXII, 30. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2011. p. 2371. 73 GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub.

2ª. Ed. São Paulo: Discurso Editorial & Paulus, 2010. p. 345-346. 74 “Ad quam patriam te invitamus, et exhortamur ut eius adiiciaris numero civium, cuius quodammodo asylum

(...) Nunc iam caelestem arripe, pro qua minimum laboratis, et in ea veraciter semperque regnabis.” AGOS-

Page 37: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

37

Pode-se perceber que o ponto de partida de Agostinho, em todas estas citações, é a

Bíblia; isso se dá porque nela a revelação encontra um lugar central. É ela que ajuda que se

entenda a universalidade e a própria profundidade do tempo. Com isso, entende-se que o

universo é organizado por meio da palavra revelada. Conforme se observa em: “o ponto de

partida de Agostinho é, portanto, a revelação, que, confere à história a universalidade que

nosso empirismo fragmentário não pode alcançar.”75

Agostinho entende que é parte do ser cristão e cristã a atuação na vida social de uma

sociedade, sendo assim, não se pode ficar indiferente frente às realidades circundantes, pois

isso não seria algo condizente com o papel da Cidade de Deus. Um dos grandes intérpretes

do pensamento agostiniano, e que dá luz a esta seção sobre a Teologia da História, Henri

Marrou, questiona: “nossa teologia da história deve, se quiser ser maior do que um vão raci-

ocínio, contribuir para a fundamentação de uma espiritualidade: Que condições acarreta

para o cristão o fato de ser consciente de sua inserção na história da salvação?”76

Ou seja, a grande inquietação levantada pelo autor é sobre o que, na prática, o ser

cristão e cristã implica para a vivência da pessoa na sociedade. Isso é um convite explícito

para que haja um verdadeiro envolvimento na dinâmica social, buscando “redescobrir em

sua terrível simplicidade o sentido profundo da responsabilidade histórica do cristão.”77 De-

ve-se tentar, assim, ter uma atuação sempre marcante que gere transformações positivas não

somente para as pessoas que estão dentro do seio das igrejas, mas também para toda a reali-

dade que envolve a vida social. Portanto, “por causa desta condição temporal, embarcados

na história, seremos necessariamente atores e não simples espectadores ou testemunhas (re-

cusar-se a agir é, como vimos, ainda agir, e da pior maneira).”78

Portanto, a concepção agostiniana de Teologia da História está imbricada de uma

busca pelo sentido mais profunda existência humana. Ele busca entender os significados

profundos dos conflitos existentes, das dificuldades encontradas de maneira que todos estes

TINHO, Santo. A Cidade de Deus II, 29. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-

benkian, 2011. p. 279. 75 GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud Ayoub.

2ª. Ed. São Paulo: Discurso Editorial & Paulus, 2010. p. 349. 76 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 76-77. 77 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 85. 78 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 103.

Page 38: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

38

possam ser compreendidos em uma perspectiva que contemple a universalidade, ou seja,

que a história como um todo seja analisada por critérios que possam ser expressos pela lin-

guagem.

E é na evolução das duas sociedades opostas que a história se desenvolve em Agos-

tinho, pois ela é uma narrativa acerca da “evolução dos dois Estados, dos seus conflitos, e

da vitória final do Estado de Deus sobre o Estado terreno. Tal história já não é um simples

registro de fatos, e sim, interpretação deles, na perspectiva de uma luz superior.”79 Confor-

me já foi abordado anteriormente, o pensamento do antigo teólogo mesmo em sua filosofia

é concebida à luz da fé cristã.

A Teologia da História seria, então, uma busca pelo seu sentido em sua maior e mais

profunda realidade, em outras palavras, buscando entender a profundidade ontológica que

está presente nela, apesar da limitação que os seres humanos tem alcançar este sentido em

sua totalidade. Como se lê em: “a história, considerada em sua totalidade e em sua realidade

profunda, é também um mistério no sentido que o conhecimento que dela podemos adquirir

permanece sempre extremamente limitado.”80

Sendo assim, a totalidade e universalidade de suas concepções sobre a história se dá

pelo fato de que ela mostra os papéis que são exercidos pelas Cidades tanto no passado,

quanto no presente e ainda no futuro. É devido a este caráter de completude de sua interpre-

tação, que se pode afirmar que sua interpretação sobre a história é profundamente universal.

Outra forma de se interpretar o pensamento de Agostinho, que contempla sua univer-

salidade, mas que é crítica a esta forma de se ver a realidade, é o apontamento que Tillich

faz sobre a Teologia da História de Agostinho, ele diz:

a história tem [no agostinianismo] três períodos: antes da lei, sob a lei e

depois da lei. Temos aí uma completa interpretação da história. Estamos

vivendo no último período (...) Assim, torna-se evidente a luta entre o con-

servadorismo da filosofia da história de Agostinho e as tentativas revoluci-

onárias dos movimentos sectários.81

Com isso observa-se que Tillich critica a interpretação agostiniana que diz que se es-

tá no último período da história, pois isso seria a expressão de um conservadorismo que vai

79 BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de

Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. p. 202. 80 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da temporali-

dade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 51. 81 TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. Tradução de Jaci Marashin. São Paulo: ASTE, 2000. p.

134.

Page 39: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

39

contra revoluções ou grupos que discordem da visão majoritária. Em outras palavras, esta

ideia de que se está no último tempo da história antes do seu fim, só contribuiria para a ma-

nutenção do status quo social e eclesiástico, na visão tillichiana.

1.3 Conceituação de Metáfora

O uso da metáfora nesta pesquisa acompanha o trabalho do filósofo Paul Ricoeur.82

A questão central do estudo de Ricoeur está no problema hermenêutico da interpretação e

do sentido. A partir dos anos 1970, motivado pela pesquisa acerca da polissemia do símbo-

lo83 e da teoria narrativa84, Ricoeur percebeu a importância da metáfora para os estudos da

filosofia e da teologia.

Gosto muito da ideia de que a filosofia se dirige a determinados problemas,

a embaraços de pensamento muito delimitados. Assim, a metáfora é, antes

de mais, uma figura de estilo; a narrativa é, em primeiro lugar, um gênero

literário. Os meus livros tiveram sempre um caráter limitado; nunca abordo

questões maciças do tipo ‘O que é a filosofia?’. Trato de problemas parti-

culares: a questão da metáfora não é a da narrativa, embora observe que, de

uma à outra, há a continuidade de inovação semântica.85

Metáfora e narrativa ocupam ligares privilegiados na obra de Ricoeur, de modo que

a metáfora é situada na inovação semântica. Desenvolvida principalmente no capítulo seis

do livro A Metáfora Viva86, Ricoeur retoma Aristóteles, no assunto da argumentação do dis-

curso retórico e o discurso poético, para explicitar a inovação semântica da metáfora. O dis-

curso retórico pretende o convencimento, enquanto o discurso poético pretende a verdade.

Para Ricoeur, a força da metáfora reside na união do discurso retórico com o poético.87 Se-

gundo ele, nesta dinâmica, a metáfora acompanha o trabalho dos símbolos e os prolonga por

conter um excedente de significação.88 Trata-se de um estágio criativo da linguagem que vai

além do símbolo e no qual introduz-se um desvio que faz dizer algo novo.

82 Paul Ricoeur (1913-2005) foi um filósofo francês que trabalhou, sobretudo, com fenomenologia e hermenêuti-

ca. Inserido na mesma tradição de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, Ricoeur explorou e ampliou o

método fenomenológico ao trabalhar com os estudos da teoria narrativa, crítica textual, o sentido dos mitos, a

exegese bíblica e a metáfora. Dentre os seus principais trabalhos destaque para Tempo e Narrativa e A Metá-

fora Viva. Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 13-16. 83 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013. 84 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 85 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e Mard de Launay. Lisboa: Edi-

ções 70, 2009. p. 132. 86 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005. 87 Cf. RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 42-48. 88 RICOEUR, Paul. “Metáfora e símbolo” In: Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação.

Page 40: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

40

A metáfora é um momento teórico decisivo que permite à linguística e aos estudos

literários uma concentração capaz de enriquecer o trabalho dos símbolos e a compreensão

do ser humano.

Melhor do que o símbolo, de fato, a metáfora é, como dissemos, uma enti-

dade linguística cuja existência chama ao compromisso interpretativo de

seus leitores, o intérprete carregado, ao invés de destacar um sentido que já

está lá, embora não aparente, menor do que o explícito, como inventor,

correndo o risco de trair.89

A entrada do conceito de metáfora é dupla. Há uma ambiguidade no próprio termo

da metáfora, conforme observado em sua condição de convencimento e pretensão à verdade.

Trata-se de um aspecto transgressivo ou transformativo implícito na dinâmica da metáfora.

Segundo David Pellauer, um dos grandes especialistas de Ricoeur e tradutor de seus obras

ao inglês, “este aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora é o que a torna capaz

de criar novo significado ao perturbar a ordem da lógica existente, ao mesmo tempo que o

gera sob nova forma”90. Para a filosofia ricoeuriana, a hermenêutica tem no símbolo uma

reflexão autêntica de abordagem filosófica. A saber, símbolos são interpretações criadoras

de sentidos e promovem reflexões que possibilitam o pensar de uma vida. O produto her-

menêutico do símbolo na linguagem inaugura a metáfora. “O ser se dá ao homem mediante

sequências simbólicas, de tal forma que toda cisão do ser, toda existência como relação ao

ser, já é uma hermenêutica”.91 Pelo símbolo o ser humano é introduzido no estado nascente

da metáfora, que, por sua vez, introduz a inovação semântica da linguagem.92 A metáfora

revela sentidos profundos na intenção de transmitir a relação do ser humano com aquilo que

o constitui. Em suma, a metáfora promove a inovação semântica que posteriormente possi-

bilita a articulação filosófica e científica dos conceitos. A metáfora carrega uma inovação

semântica que evidencia os diferentes modos do ser, de modo que o itinerário filosófico

pressupõe a experiência simbólica e metafórica na compreensão do mundo dos conceitos.93

Deste modo, para além da experiência de palavras e de conceitos, a metáfora situa o ser em

sentidos profundos de interpretação capazes de revelar aspectos ontológicos. Dito de outra

Lisboa: Edições 70, 2009. p. 45-69. 89 “Mieux que le symbole, en effet, la métaphore est, comme nous l’avons rappelé, une entité langagière dont

l’existance appelle l’engagement interprétatif de son lecteur, l’interprète étant chargé, moins de surligner un

sens déjà là, bien que peu apparent, moins de l'expliciter, que d'inventer, au risque de trahir”. VINCENT,

Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p. 54. 90 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 95. 91 JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. RJ:

Francisco Alves, 1990, p. 3. 92 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145. 93 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 223.

Page 41: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

41

forma, o processo metafórico, original e a anterior à semiótica dos conceitos, é a relação do

ser humano com aquilo que o constitui.94

Importante destacar, para esta dissertação, o aspecto ontológico no plano semântico

da metáfora. A metáfora opera como uma espécie de manifestação do ser, a qual pretende a,

conforme já notado, ao invés de uma simples relação de correspondência ou alegoria. “Não

há outra maneira de fazer justiça à noção de verdade metafórica”, escreve Ricoeur, “do que

incluir a incisão crítica do ‘não é’ (literal) na veemência ontológica do que ‘é’ (metafóri-

co)”95. A filosofia deve compreender os limites do discurso conceitual para explorar um

novo nível da linguagem no discurso figurativo e ontológico da metáfora.96 Conforme Ke-

vin Vanhoozer, outro especialista na teoria narrativa ricoeuriana, a metáfora é a forma mais

original e primeira do ser humano se inserir no mundo.97 A fenomenologia hermenêutica

que trabalha com a metáfora torna-se fundamental para a análise da manifestação do ser na

linguagem. O aspecto ontológico da metáfora não esconde a diversidade de maneiras de

falar do ser. Esta característica ambígua da metáfora é produtiva, pois diz respeito à própria

condição do ser humano na atribuição referencial de sentidos.

Ricoeur é talentoso em fazer compatíveis ou mutuamente dependentes po-

sições que eram aparentemente opostas. Este “trazer próximo” (meta-

pherein=“trans-ferir”) é também a essência da metáfora, um “ver junto”,

que associa domínios aparentemente distintos em sentidos os dispõem em

uso criativo. (...) Ricoeur não poupa esforços para trazer o mundo da Bíblia

“próximo” ao indivíduo do século vinte ao criar “aproximações” filosóficas

das ideias teológicas. Ao fazer isso, Ricoeur espera ajudar aqueles que es-

tão cegos da graça para “ver” novamente. É justo, então, que a forma favo-

rita de linguagem do Ricoeur, a metáfora, deve caracterizar o espírito da

hermenêutica filosófica de Ricoeur. A mediação de Ricoeur é metafórica.98

94 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145. 95 RICOEUR, Paul. The Rule of Metaphor, apud PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes,

2009, p. 98. 96 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 465-469. 97 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics

and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990. p. 8. 98 “Ricoeur is particularly gifted in making positions which at first blush seem mutually exclusive to appear

compatible and even mutually dependent. This ‘bringing near’ (meta-pherein=‘trans-fer’) is also the es-

sence of metaphor, a ‘seeing together’, which associates seemingly disparate realms of meaning and puts

them to creative use. (...) Ricoeur ultimately strives to bring the world of the Bible "near" to the denizen of

the twentieth century by creating philosophical ‘approximations’ of theological ideas. By so doing, Ric-

oeur hopes to enable those who are blind to grace to ‘see’ again. It is only fitting, then, that Ricoeur’s fa-

vorite form of language, the metaphor, should itself characterize the spirit of Ricoeur’s hermeneutic phi-

losophy. Ricoeur’s mediation is metaphorical.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philoso-

phy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cambridge,

1990. p. 5.

Page 42: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

42

A metáfora trata-se, portanto, da raiz filosófica ricoeuriana, a essência metafórica do

“ver junto”, que associa domínios aparentemente distintos no uso criativo e aponta para a

possibilidade do ser. A metáfora, segundo a proposta ontológica de Ricoeur, opera, portan-

to, no conflito de interpretações e variações de sentidos, cujo movimento encontra pontos

distintos e coloca na linguagem a descrição que não cabe em conceitos, mitos ou símbolos.

Para o processo metafórico a mediação nunca é total ou completa. A metáfora assume a in-

completude do ser e tem seu efeito na esfera do que é possível. Em suma, em termos semân-

ticos e ontológicos, a metáfora é a celebração da linguagem em si mesma. E é nesta acepção

que se entende o conceito de metáfora nesta dissertação, concepção que será recorrentemen-

te utilizada.

1.4 Cidade de Deus e Cidade dos Homens em Agostinho

Faz-se necessário dizer que o que Agostinho faz é pegar emprestado do vocabulário

bíblico metáforas para construir seu sistema de pensamento. Nos seus Comentários aos

Salmos 99 já se vê presente este empréstimo das figuras da Cidade de Deus, que também

pode ser chamada de Celeste, Jerusalém etc; e Cidade dos Homens, que pode receber diver-

sos outros nomes como: Terrestre, do Diabo, Babilônia, dentre outros.

Estes nomes são alegorias de duas cidades, que são posturas diferentes frente a vida,

não podendo ser consideradas locais geográficos ou mesmo institucionais, como se vê em:

“Agostinho fala de duas cidades (civitates), a cada uma dá um nome alegórico – Jerusalém e

Babilônia – na Escritura (in scripturis mystice nominatur). Estas cidades agora estão mistu-

radas, mas serão separadas no final.”100 Sendo que esta indivisibilidade no atual momento

histórico entre estas duas é marca essencial de seu pensamento, como será destacado mais

adiante. Portanto, “ninguém sabe de ninguém, incluindo sobre si próprio, a qual cidade ci-

dade pertence, pois ninguém sabe se alguém é um dos santos eleitos ou não. Particularmen-

99 Presente em seus Enarrationes de Psalmos 61, 6-8. Disponível em português em: AGOSTINHO, San-

to. Comentário aos Salmos: Salmos 51-100. Tradução de Monjas Beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de

Cristo. São Paulo: Paulus, 1997. v. 2. 1202 p. (Patristica; v. 9/2). 100 “Augustine speaks of two cities (civitates), each given an allegorical name – Jerusalem and Babylon – in

Scripture (in scripturis mystice nominatur). These cities are now intermingled, but will be separated at the

end.” (Tradução nossa) O’DALY, Gerard. Augustine’s City of God: A reader’s guide. Oxford: Oxford Uni-

versity Press. 1999. p. 94.

Page 43: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

43

te, para pertencer a Cidade de Deus não é necessário nem suficiente ser membro de uma

igreja.”101

A ideia é que Deus dividiu a humanidade em dois grandes grupos de pessoas, umas

que vivem de acordo com a vontade de Deus, que são conhecidos como pertencentes à Ci-

dade de Deus102, e outros que andam conforme sua própria vontade, estes pertenceriam à

Cidade dos Homens103. Nas palavras de O’Daly, grande conhecedor dos escritores de língua

latina: “Agostinho fala de duas cidades (civitates), a cada uma é dada um nome alegórico –

Jerusalém e Babilônia – nas Escrituras. Estas cidades agora estão misturadas, mas serão

separadas no fim (in fine): uma é a cidade dos santos, outra dos ímpios.”104

É importante observar que, segundo o pensamento agostiniano, todas as pessoas da

Terra se encontram dentro de alguma das duas metáforas, sendo que o pertencimento a uma

ou a outra determinará, no final dos tempos, se a pessoa receberá a recompensa ou a dana-

ção eterna. Mesmo que os povos sejam tão diversos e que exista uma infinidade de costu-

mes, línguas e culturas, para o pensador de Hipona, estas diferenças não isentam o ser hu-

mano de se encaixar em uma de suas alegorias. E o que determina o pertencimento a uma ou

a outra é viver segundo a ‘carne’ ou de acordo com o ‘espírito’, fazendo uso, assim, dos

escritos paulinos, conforme se enuncia em: “uma [cidade], a dos homens que querem viver

segundo a carte, e a outra, a dos que pretendem seguir o espírito, conseguindo cada uma

viver na paz do seu gênero quando eles conseguem o que pretendem.”105

Portanto, para o pensador antigo não era possível definir o que era a Cidade de Deus

atrelando-a com alguma instituição humana, por mais perfeita e boa que esta pudesse pare-

cer. Pois o que é determinante para a vinculação de alguém à Cidade Santa não seria o estar

conectado a alguma agremiação facilmente distinguível; mas, seria estar enlaçado a um gru-

101 “nobody knows of anyone, himself included, to what city he belongs, for nobody knows of anyone whether

he is one of the elected saints or not. In particular to belong to the city of God it is neither necessary nor

suficient to be a member of the church.” (Tradução nossa) BITTNER, Rüdiger. “Augustine’s Philosophy

of History.” In: Augustinian Tradicion. Edited by Gareth B. Matthews. Berkeley: University of California

Press, 1999. p. 354. 102 Pode ser conhecida também como Cidade Santa, Cidade Celestial, Jerusalém Celeste etc. 103 Pode ser conhecida também como Cidade terrestre, Cidade do diabo etc. 104 “Augustine speaks of two cities (civitates), each given an allegorical name – Jerusalem and Babylon – in

Scripture. These cities are now intermingled, but will be separated at the end (in fine): one is the city of the

holy, the other that of the impious”. (Tradução nossa) O’DALY, Gerard. Augustine’s City of God: A reader’s

guide. Oxford: Oxford University Press. 1999. p. 94. 105 “Una quippe est hominum secundum carnem, altera secundum spiritum vivere in sui cuiusque generis pace

volentium et, cum id quod expetunt assequuntur, in sui cuiusque generis pace viventium.”AGOSTINHO,

Santo. A Cidade de Deus - XIV, 1. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-

kian. 2011. p. 1233.

Page 44: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

44

po de pessoas que está em diferentes locais, que falam diferentes línguas, e nem mesmo se

conhecem. Não obstante a tudo isso está ligado à mesma vontade de ter Deus como condu-

tor de suas vidas, buscando ter os valores divinos como norteadores, uma vez que “é uma

sociedade de pessoas que tem Deus como seu Chefe, unidas em um laço de amor e coopera-

ção, transcendendo diferenças de tempo, raça, nacionalidade e instituições .”106

Isso ao longo da história vem gerando diferentes interpretações, muitas das quais,

inclusive, buscaram associar a Cidade Divina com alguma instituição eclesiástica, como foi

feito frequentemente durante a Idade Média com a Igreja Católica. Tema que muito interes-

sará mais adiante quando será abordado o pensamento de Lutero. Retornando, a grande difi-

culdade está no fato de que não é possível definir quem pertence, e quem não pertence a

esta Cidade, pois só será evidente quem pertence a cada uma delas na consumação da histó-

ria; dessarte, não é possível dizer durante a história quem está nela. A única coisa que cabe,

por conseguinte, às pessoas que buscam seguir a vontade do Criador, seria perceber que a

cada ano, a cada novo período da história, Deus conduz aqueles e aquelas que pertencem a

esta Cidade rumo aos seus eternos propósitos, que um dia serão consumados. Esta visão

apocalíptica tem como base, o fato de que o sistema filosófico agostiniano não pode ser dis-

cernido de seu pensamento teológico. Então, sua concepção de o que significa seguir aos

caminhos divinos, bem como o que denota seguir seus próprios desejos, trata-se de uma

leitura bíblica que é colocada dentro de uma sistematização filosófico-teológica, vai acabar

por influenciar todo o Ocidente durante muitos séculos.107

Ademais, um tema que interessa bastante a este estudo é entender quais são as rela-

ções entre estas duas Cidades, uma vez que já foi exposto que elas não podem se associar a

nenhuma instituição humana, mesmo que esta seja eclesiástica. Tendo em vista o fato de

que o questionamento acerca da relação entre as duas é importante para saber qual a atuação

que a Cidade de Deus deve ter na Cidade dos Homens. Isto é, são muito complexas as rela-

ções existentes entre estas, dado que, na verdade, são dois grupos de pessoas que vivem nas

106 “it is a society of persons under God as their Head, United in a commom bond of love and cooperation,

transcending diferences of time, race, nationality and institutions”. (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J.

The City of God and History. In: The City of God: A Collection of Critical Essays. Edited by Dorothy F.

Donnelly. New York: Peter Lang. p. 292. 107 Cf. MARÍAS, Julián. Agostinho e a Filosofia. In: LAUAND, João Sérgio (org.). Temas e Figuras do Pensa-

mento Medieval. São Paulo: Factash Editora. 2009. p. 25-38.

Page 45: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

45

mesmas vilas, nos mesmos impérios ou países, pois o que os diferencia não é algo exterior e

facilmente identificável.108

1.4.1 Urbis, civitas e societas

Faz-se imprescindível destacar a diferença entre vocábulos latinos que são utilizados

pelo autor hiponense. A especificação entre os termos urbis e civitas tem uma origem de

caráter bastante simples de se entender, tanto uma quanto outra podem ser traduzidas como

cidade para o português, porém, elas se referem a dimensões distintas desta palavra.

A urbis diz respeito ao caráter mais geográfico, urbanístico, estrutural, ela vem de

uma “etimologia incerta, suspeita-se de que este termo é de origem etrusca. Embora seja

traduzido como "cidade" em textos medievais não se refere à Civitas, ou seja, a todos os

cidadãos, mas à cidade, ou seja, a cidade (urbe) como uma dimensão geográfica.”109 É dela

que vem as palavras portuguesas: urbanidade, urbano, urbanismo, dentre outras. Faz-se, por

exemplo, planejamento de quais edifícios devem ser construídos na cidade, onde devem

estar as praças, quais serão os estabelecimentos em um determinado setor da cidade, qual

será a largura das avenidas etc.

Esta palavra latina também foi utilizada para significar a cidade de Roma, como se

vê até os dias atuais na bênção papal que é impetrada no Natal e na Páscoa chamada Urbi et

Orbi, que pode ser como “à cidade de Roma e ao mundo,” posto que o papa é o bispo da

capital do Lácio e referência espiritual de católicos romanos de todo o mundo, demonstran-

do desta forma, que até os dias atuais esta expressão latina tem uso com esta acepção de se

referir esta cidade, ou mesmo “quando exibido sem dimensão, refere-se a Roma, como no

Sermão De urbis excidio de Agostinho de Hipona.” 110 Que será tratado com mais acuidade

no próximo tópico desta pesquisa.

108 Cf. MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da tem-

poralidade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes. 1989. p. 57. 109 “etimología incierta, se há conjeturado que este término es de origen etrusco. Aunque se traduce como “ciu-

dad”, en los textos medievales no hace alusión a la civitas, es decir, al conjunto de los ciudadanos, sino a la

urbe, esto es, a la ciudad en su dimensión geográfica.” MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía

Medieval. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires – Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila,

2005. p. 716. 110 “Cuando aparece sin acotación, refiere a Roma, como sucede en el Sermo de urb is excidio de Agustín de

Hipona.” MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Universidad de Bue-

nos Aires – Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila, 2005. p. 716.

Page 46: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

46

Já o vocábulo civitas, que também pode ser traduzido como cidade, refere-se a uma

sociedade, este é um termo que está no âmbito da política, não no âmbito da urbanidade,

como já foi explicado anteriormente, em outras palavras, “é importante esclarecer um pos-

sível mal-entendido: o termo se refere a uma determinada sociedade. É, por conseguinte,

uma palavra do léxico político, não urbanístico. Portanto, não se deve confundir com a ci-

dade, ou seja, os novos edifícios em uma cidade.” 111 Em sua origem, a palavra tem a ver

com as expressões cidadão, cidadania, pois estão envolvidos laços de concidadania, dos

direitos políticos e cívicos que são compartilhados por pessoas de uma determinada comu-

nidade, o conceito de coletividade é especialmente importante no seu entendimento. 112

Civitas tem uma intrínseca relação com o vocábulo societas, que seria o conjunto de

pessoas ou de seres vivos que habitam juntos. Estas expressões advogam sobre o caráter

intrinsecamente social do ser humano e demonstram que a vida em sociedade é inerente a

condição da humanidade. 113

Porém, é na obra de Agostinho que este termo ganha uma conotação tão forte, pois

ele interpreta este de forma metafórica, ou misticamente, pois no livro XV d’ A Cidade de

Deus ele separa toda a humanidade em dois gêneros, uns que pertencem à Cidade de Deus, e

outro que são da Cidade dos Homens, como será abordado nos próximos tópicos desta dis-

sertação, desta forma, existe uma “relação dialética entre as duas cidades estabelecidas ao

longo dos séculos.”114 Relação esta que é interpretada por seu caráter metafórico.

1.4.2 Sermão De urbis excídio

No ano de 410 d.C. Alarico tomou Roma e a saqueou, isso gerou todo o tipo de ques-

tionamento sobre o sofrimento humano e sobre qual a participação do Deus cristão e dos

próprios cristãos e cristãs frente a tamanha catástrofe social. Essas preocupações estão ex-

pressas no sermão que Agostinho escreve abordando este acontecimento, ele, inclusive,

111 “es importante despejar un posible equívoco: el término alude a una sociedad determinada; c. es, por tanto,

una palavra del léxico político y no urbanístico. Por eso, no se debe confundir com la urbe, es decir, con el

aspecto edilício de una ciudad.” MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires:

Universidad de Buenos Aires – Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila, 2005. p. 131. 112 Cf. MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires

– Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila, 2005. p. 131. 113 Cf. MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires

– Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila, 2005. p. 642. 114 “en la relación dialéctica que ambas ciudades establecen a lo largo de los siglos.” MAGNAVACCA, S. Léxi-

co Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires – Faculdad de Filosofía y Le-

tras; Miño y Dávila, 2005. p. 131-132.

Page 47: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

47

questiona: “certamente, as vítimas do tempo que Roma foi devastada ainda não estão so-

frendo?”115 O saque a cidade fez com que muitos pagãos acusassem o cristianismo de ser o

responsável pela perda do favor de suas divindades seculares, e esse seria o principal fator

de tamanha humilhação e desastre que eram enfrentados por eles, até mesmo alguns cristãos

começaram a questionar se Deus estava sendo justo ao permitir o que acontecera.116

Além do que, existia a crença de que a capital do Império seria indestrutível, e, por-

tanto, segura contra este tipo de calamidade, o que gerou que “de Roma a todas as provín-

cias do Império, entre pagãos e cristão, o saque da Cidade Eterna provocou um trauma.”117

Choque este que foi amplamente respondido pelo teólogo hiponense tanto por sermões, co-

mo pela obra A Cidade de Deus. Isso porque:

no Verão do ano 410, a cidade de Roma, o coração vital do mundo romano,

o baluarte inviolável de uma civilização que se reconhecia milenar, é inva-

dida, ferida e humilhada por um exército de bárbaros. Aquela que a história

tinha consagrado como cabeça do império e que a literatura imortalizara

como Roma Aeterna, que os romanos, cristãos ou pagãos, consideravam

sagrada.118

Agostinho, neste contexto, passa a ter que lidar com questões que vinham sendo pos-

tas por todo o Império, sobretudo, devido ao fato que muitos cristãos haviam se gabado pelo

fato de uma ‘Era Cristã’ havia se iniciado com a cristianização de Roma, que havia começa-

do com Constantino e que alcançou com Teodósio o estatuto de religião oficial do próprio

imperador. E após tantas demonstrações de orgulho e júbilo, o que agora se via era um esta-

do de desolação e desgraça sem paralelo.119

Passando a estrutura propriamente dita do sermão, ele é iniciado com uma exortação

conclamando todo o povo romano a se humilhar, penitentemente. Ele usa, mormente, o

exemplo bíblico de Daniel, afirmando que esta personagem passou por provações terríveis

mesmo sendo um homem justo. Como se lê em: “suas palavras mostravam-no não apenas

115 “surely the victims from the time that Rome was devasted aren’t still suffering?” (Tradução nossa)

AGOSTINHO, Santo. “Sermon: The sacking of the city of Rome.” In: E. M. Atkins and R. J. Dodaro. Au-

gustine Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 209. [Cambridge Texts in

the History of Political Thought] 116 Cf. ATKINS, E. M.; DODARO, R. J. “War and Peace”. In: AGOSTINHO, Santo. Augustine: Political Writ-

ings. Edited by E. M. Atkins and R. J. Dodaro. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. p. 205. 117 HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu tempo. Tradução Álvaro Cunha e Revisão de Nair de Assis Oliveira.

São Paulo: Paulinas, 1989. p. 271. 118 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 17. 119 Cf. BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São

Paulo: Record, 2012. p. 391.

Page 48: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

48

como suplicante, mas também como penitente – depois dessa mesma oração, eis que ele diz:

Enquanto eu rezava e confessava os meus pecados e os pecados do meu povo ao Senhor

meu Deus (Daniel 9.20).”120 Se até mesmo o profeta Daniel tem que confessar-se, dizia o

bispo de Hipona, ainda mais o povo de Roma de sua época. E completa: “castiga então, ao

mesmo tempo, o justo e o injusto (Hebreus 9,6). E, todavia, quem se dirá justo se até Daniel

confessa o seu pecado?”121

Após isso, o teólogo passa a discorrer sobre o pecado de Sodoma que é narrado no

livro de Gênesis, mostrando que o pecado desta cidade é de ordem diferente do que o ocor-

rido em Roma, posto que, segundo os relatos bíblicos, a cidade narrada no primeiro livro da

Bíblia nunca mais seria habitada, já a “cidade de Roma, porém, quantos fugiram e hão de

voltar, quantos ficaram e se salvaram, quantos, nos lugares sagrados, não foram atingi-

dos!”122 Diferentemente da cidade de Sodoma, a cidade de Roma não foi totalmente destruí-

da. Mostrando, assim, que existe uma significativa distinção entre o que ocorreu no passado

e o que aconteceu em seu tempo, apontando para um esperançoso retorno dos que haviam

buscado refúgio na África de que eles poderiam retornar a sua cidade em tempo oportuno.

Na continuidade é tomado mais um exemplo bíblico emblemático para ilustrar aos

seus ouvintes o caráter importante que o sofrimento teria para a vida dos cristãos e fieis.

Agostinho discorre sobre Jó, dizendo que ele “suportou esta tribulação e tal lhe foi imputada

como grande justiça. Ninguém cuide, pois, o que sofrer, mas o que fazer. No que sofres, ó

homem, não intervém o teu poder; é, sim, naquilo que fazes, que a tua vontade está ou não

inocente.”123 E prossegue: “‘Vós vistes todos os meus pecados e os selastes como num al-

120“Nam post ipsam orationem - verba eius indicabant eum non solum deprecatorem, sed etiam confessorem -

post ipsam ergo orationem: Cum orarem, inquit, et confiterer peccata mea et peccata populi mei Domino

Deo meo , quis ergo est qui sine peccato se esse profiteatur, cum Daniel peccata propria confite-

tur?”AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 1, 1. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros

sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coim-

bra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 39. 121 “Flagellat enim simul et iustos et iniustos 5; quamquam quis iustus, si Daniel peccata propria confite-

tur?”AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 2, 1, 5. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros

sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coim-

bra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 42. 122 “Ab urbe autem Roma quam multi exierunt et redituri sunt, quam multi manserunt et evaserunt, quam multi

inlocis sanctis nec tangi potuerunt!” AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 2,2,7, . In: AGOSTINHO, San-

to. O De excídio Urbis e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de

Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coim-

bra, 2010. p. 44. 123 “Sustinuit tamen tribulationem Iob, et deputatum est illi ad magnam iustitiam. Non ergo quisquam attendat

quid patiatur, sed quid faciat. Homo, in eo quod pateris, potestas tua non est; in eo quod facis, voluntas tua

vel nocens vel innocens est.” AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 3,3,9, . In: AGOSTINHO, Santo. O De

Page 49: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

49

forge’ (Jó 14, 16-17). Não ousou dizer-se sem pecado, ele que sofria não para ser punido

mas para ser provado. Diga o mesmo todo aquele que sofre.”124

Desta forma, o sofrimento que estava sendo afligido à Roma seria uma forma de for-

jar o caráter do povo romano, e não deveria, sob nenhuma hipótese, eximir-se da necessida-

de de clamar a misericórdia divina. E o teólogo afirma que “Deus nos guarde de tal insensa-

tez e vã argumentação. Diga o homem “Sou pecador”, porque o é; diga “tenho pecado”,

porque o tem. Se o não tiver, porém, é porque é mais sábio que Daniel.”125 Entendo, destar-

te, que todos os seres humanos, até mesmo aqueles considerados mais corretos e santos,

tinham motivo e necessidade de pedir perdão ao Criador.,

O pensador norte africano procede a sua linha de raciocínio evocando mais um

exemplo bíblico, agora evocando a passagem evangélica de Lucas, quando se diz que “pela

mão de Deus que corrige, então, a cidade foi mais castigada do que destruída, como o servo

que, mesmo conhecendo a vontade do seu senhor, faz coisas dignas de castigo e recebe mui-

tos açoites (Lucas 12,47).”126 E diz que a dificuldade “não nos perturbe, pois, o sofrimento

dos justos; trata-se de uma provação. A não ser que, porventura, nos horrorizemos quando

vemos algum justo suportar nesta terra pesados e indignos sofrimentos, e esquecemos o que

suportou o justo dos justos, o santo dos santos.”127

excídio Urbis e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota

Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010.

p. 46. 124 “ Exquisisti omnia peccata mea et ea tamquam in sacculo signasti 14. Non se ausus est dicere sine peccato,

qui patiebatur, non ut puniretur, sed ut probaretur. Hoc dicat unusquisque cum patitur.” AGOSTINHO, San-

to. De excídio Urbis, 4, 4, . In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões sobre a queda de

Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clás-

sicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 49-50. 125 “ Avertat Deus hanc amentiam, et hanc argumentationem vanam. Dicat homo: Peccator sum, quia peccator

est; dicat: Peccatum habeo, quia peccatum habet. Non enim si non habet, sapientior est quam Daniel.”

AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 5, 5, . In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros ser-

mões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra:

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 51. 126 “Manu ergo emendantis Dei correpta est potius civitas illa, quam perdita; tamquam servus sciens voluntatem

domini sui, et faciens digna plagis, vapulabit multis.”AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 7, 8, 20. In:

AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, In-

trodução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Uni-

versidade de Coimbra, 2010. p. 56-57. 127 “Non ergo nos moveat labor piorum; exercitatio est. Nisi forte horremus cum videmus indigna et gravia in

hac terra perpeti aliquem iustum, et obliviscimur quae pertulerit iustus iustorum sanctusque sanctorum.”

AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 8, 9, . In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros ser-

mões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra:

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 57-58.

Page 50: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

50

No final de seu famoso sermão, o teólogo africano convida seus ouvintes a resistirem

qualquer adversidade, conclamando que os cristãos e as cristãs entendam que mesmo as

mais duras realidades podem ser usadas pela divindade para gerar efeitos positivos em meio

ao seu povo. Já que é afirmado: “suportemos então o que Deus quiser que nós suportemos;

Ele que, para nos curar e para nos salvar, enviou o Seu Filho, também sabe, como o médico,

que sofrimento nos poderá ser útil.”128

É vital entender que quando o bispo de Hipona prega este sermão às províncias afri-

canas ainda se consideravam livres destas ameaças, uma vez que para ela evadiram muitos

moradores de Roma em busca de um local seguro para viver, isso se dá porque no momento

que ele é proferido a “África ainda se considera de certo modo a salvo e constitui um lugar

de refúgio para os que se vêm forçados a deixar as suas terras na Itália, vinte anos mais tar-

de, quando ele morre, a própria África está tomada pelos bárbaros.”129 Não obstante, real-

mente a própria morte de Agostinho vinte anos depois se dará em um tempo de cerco dos

vândalos a cidade de Hipona.

1.4.3 A Cidade de Deus

A metáfora da Cidade de Deus encontra lugar central nas obras agostinianas, princi-

palmente naquelas de sua maturidade, apesar dela estar citada de forma breve em obras an-

teriores. É a partir da monumental obra homônima deste conceito que se vê uma real, clara e

exaustiva demonstração sobre o que Agostinho entende nesta metáfora. Nada melhor para

compreender esta metáfora, que por sinal, está intrinsicamente ligado ao seu correlato Cida-

de dos Homens, do que observar um dos muitos trechos em que o autor faz uma contraposi-

ção das duas categorias de sociedade existentes em seu pensamento:

do próprio gênero humano, que separamos em dois grupos: o dos que vi-

vem como ao homem apraz e o dos que vivem como apraz a Deus. Em

linguagem figurada chamamos-lhes também duas cidades, isto é, duas so-

128 “Feramus ergo quod Deus nos ferre voluerit; qui nobis curandis atque sanandis, suum Filium misit, quis etiam

dolor, sicut medicus, novit utilis sit.”AGOSTINHO, Santo. De excídio Urbis, 8, 9,23. In: AGOSTINHO,

Santo. O De excídio Urbis e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas

de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de

Coimbra, 2010. p. 58. 129 URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e outros sermões

sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Cen-

tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010. p. 14.

Page 51: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

51

ciedades de homens das quais uma está predestinada a reinar eternamente

com Deus e a outra a sofrer um suplício eterno com o Diabo.130

O que se vê nestas palavras é a interpretação que o próprio autor norte africano faz

destas metáforas que foram tão marcantes ao longo de todo o seu percurso. Ou seja, nas

definições agostinianas estão, na verdade, duas posturas da pessoa frente à realidade, uma

tem como princípio o amor a Deus, enquanto a outra tem como fundamento o amor a si

mesmo.131

A Cidade de Deus passa ser, então, um grupo de pessoas que estão interligados por

Deus. Seu percurso final será no céu, no fim da história, que ainda será objeto de investiga-

ção neste trabalho. Ela tem cidadãos que peregrinam na terra e que buscam fazer a vontade

de seu criador enquanto estão aqui. Pois se lê em Agostinho: “Está escrito que Caim fundou

uma cidade; como peregrino que era não a fundou, porém, Abel. É que a cidade dos santos é

a do Alto, embora procrie cá cidadãos entre os quais ela vai peregrinando até que chegue o

tempo do seu reino.”132

Nesta citação fica claro como as metáforas agostinianas são, em grande medida, in-

fluenciados por sua fé cristã, sendo praticamente impossível dissociar suas construções teo-

lógicas/filosóficas da influência da Bíblia. O que não exclui, de maneira alguma, toda genia-

lidade e originalidade desenvolvida pelo autor, que transpassa tantos séculos e gera discus-

sões até a contemporaneidade. Assim sendo, a Cidade de Deus é na acepção de Agostinho

uma sociedade de pessoas unidas pelo amor a Deus. Superando toda e qualquer diferença

que possa existir, seja de raça, tempo histórico ou nacionalidade.

A ênfase de Agostinho está no fato de que esta Cidade (civitas) que ela é peregrina.

Isso foi entendido por prismas completamente diferentes ao longo da história. Alguns en-

tendem que ser peregrina significa que ela está nos locais onde estão seus representantes e

que estes fazem diferença nestes ambientes, marcando assim, uma posição política e cidadã

130“Generis humani: quod in duo genera distribuimus; unum eorum qui secundum hominem, alterum corum qui

secundum Deum vivunt. Quas etiam mystice appellamus civitates duas, hoc est duas societates hominum:

quarum est uma quae praedestinata est in eternum regnare cum Deo; altera aeternm supplicium subire cum

diabolo.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XV, 1. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Funda-

ção Calouste Gulbenkian, 2011. p. 1323. 131 Cf. GREGGERSEN, Gabriele. “Concepção de História em A Cidade de Deus de Santo Agostinho”. In:

Itinerários. Araraquara, n.23, p. 69-83, 2005. Disponível em

<seer.fclar.unesp.br/itinerários/article/download/2807/2560 >. Acesso em: 20/05/2013. 132“Scriptum est itaque de Cain, quod condiderit civitatem (Gen 4,17): Abel autem tanquam peregrinus non con-

didit. Superna est enim sanctorum civitas, quamvis hic pariat civer, in quivus peregrinatur, donec regni eius

tempus adveniat.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XV, 1. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lis-

boa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 1325.

Page 52: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

52

que busca fazer uma real modificação aonde se está. Em contrapartida, outros vão entender

que o verbo peregrinar marcaria uma forma de alienação, mostrando que a Cidade Divina

não está claramente identificada com as realidades que estão ao seu redor. Nas palavras do

antigo teólogo acha-se o seguinte:

“Do mesmo modo sucede que a cidade de Deus, durante a sua peregrinação

pelo mundo, conta no seio com pessoas a si unidas pela comunhão dos sa-

cramentos (conexos communione sacramentorum) que não partilham com

ela a herança eterna dos santos. Alguns mantêm-se escondidos; outros são

conhecidos. Como os inimigos, não hesitaram em murmurar contra Deus

de cuja marca sacramental são portadores. Tão depressa com eles enchem

as igrejas.”133

Marcando, desta maneira, mais uma vez o caráter oculto desta Cidade, que está presentes

nos mais diversos lugares, porém, sem poder ser identificada cabalmente por nenhum ser

humano.

1.4.4 Cidade dos Homens

A Cidade de Deus e a dos Homens são tratadas sempre uma em oposição uma a ou-

tra. É a dialética existente entre elas que garante a força destas metáforas nas obras do anti-

go autor. Sendo assim, vê-se que “dois amores fizeram as duas cidades: o amor de si até ao

desprezo de Deus – a terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si – a celeste.”134

Cidade dos Homens seria, desta forma, como um estado em que a pessoa esquece-se

de Deus, seu criador e sustentador, e passa neste processo a ser um fim em si mesmo. Esta é

uma das formulações que foi estabelecida por um dos principais autores que estudou o pen-

samento agostiniano no século 20: “é a cidade onde o homem esquecido de Deus se torna

idólatra de si mesmo.”135 Esta seria uma forma sucinta e direta na busca de definir o que

Agostinho de Hipona quis expressar com esta formulação.

133 “sicut ex illorum numero etiam Dei civitas habet secum, quamdiu peregrinatur in mundo, conexos communi-

one sacramentorum, nec secum futuros in aeterna sorte sanctorum, qui partim in occulto, partim in aperto

sunt, qui etiam cum ipsis inimicis adversus Deum, cuius sacramentum gerunt, murmurare non dubitant, modo

cum illis theatra, modo Ecclesias nobiscum replentes.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - I, 35,. Tra-

dução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2011. p. 191. 134“Fecerunt itaque civitates duas amores duo; terrenam scilicet amor sui usque ad contemptum Dei, caelestem

vero amor Dei usque ad contemptum sui.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XIV, 28. Tradução de J.

Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 1319. 135 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da tempora-

lidade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes. 1989. p. 40.

Page 53: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

53

Sendo assim, pode-se observar que alguns seres humanos estão interessados em vi-

ver para si próprios, em outras palavras, procuram apenas seus interesses individuais. En-

quanto a Cidade de Deus tem fins que não estão reclusos somente ao próprio indivíduo.

1.4.5 Relação entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens

Após o que já foi exposto acerca destas metáforas é importantíssimo fazer uma con-

sideração sobre elas. Apesar das duas formas de sociedade, ou nas palavras de Agostinho, as

duas Cidades (civitas) viverem de forma oposta e dialética entre si, não é possível imaginar

que alguma delas está plenamente distinta ou identificada da outra durante a história. Pois

elas estão mescladas e não poderão ser discernidas até que a história chegue ao seu fim.

Entender isso é parte fundamental daqueles e daquelas que buscam aprofundar no pensa-

mento deste autor, pois é grande a tentação em identificar uma ou outra com grupos sociais,

políticos ou religiosos que existem em nossa sociedade.

Tendo como pressuposto o fato de que elas estão mescladas, fica mais fácil compre-

ender o porque seu pensamento aponta para o fato de que elas só poderão ser claramente

separadas no fim da história, que será melhor abordado em uma parte posterior desta pes-

quisa. Estas duas sociedades são, de fato, metáforas de posturas que podem ser adotadas

frente à vida, não sendo, por isso, possível atrelá-las a nenhum grupo de pessoas de forma

inequívoca.

Inclusive, Bittner aponta para o fato de que as várias tentativas que já ocorreram ao

longo da história, tentando atrelar um grupo ou nação como sendo o representante verdadei-

ro da Cidade de Deus na terra, não pode ser considerado como algo válido, conforme se vê

em: “um estado Cristão é uma contradição em termos (...) nas instituições políticas deste

mundo eles permanecem estrangeiros.”136

Com isso, demonstra-se que ambas as Cidades (Civitas) andam misturadas e não

devem ser confundidas com nenhuma instituição histórica de forma plena e absoluta. E é

absolutamente indispensável neste estudo buscar entender a profunda complexidade envol-

vida nestas relações. Pois só assim será possível buscar uma compreensão que seja relevante

do pensamento de Agostinho, uma vez que “não bastava aprender a distinguir as duas cida-

136 “a Christian state is contradiction in terms” (...) In the political institutions of this world they remain foreign-

ers”. (Tradução nossa) BITTNER, Rüdiger. Augustine’s Philosophy of History. In: Augustinian Tradicion.

Edited by Gareth B. Matthews. Berkeley: University of California Press. 1999. p. 355.

Page 54: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

54

des e seu confronto; era ainda preciso especificar suas relações mútuas tais como nos são

dadas de fato na experiência histórica; relações complexas.”137 Observa-se que esta clareza

da indivisibilidade destas duas sociedades na história já está expressa no livro de Paul Til-

lich que aborda a História do Pensamento Cristão, quando ele diz que ambas estão em um

estado de corpus mixtum, ou seja, um corpo misturado que encontra-se em constante convi-

vência.138

1.5 Agostinho e a redefinição de populus

Interessa-nos, nesta parte da dissertação, a discordância de Agostinho com um dos

mais renomados expoentes da cultura romana, Cícero139 (106 a.C – 43 a.C.) que definia po-

pulus (povo) como: “E pois (...) a República coisa do povo, considerando tal, não todos os

homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consen-

timento jurídico e na utilidade comum.”140 A divergência entre a opinião destes autores será

destacada, mostrando as consequências que isso tem para a concepção agostiniana do que é

populus.

1.5.1 Reformulação por Agostinho do entendimento ciceroniana de po-

pulus

O motivo de Agostinho discordar e optar por uma reformulação do conceito cicero-

niana de populus reside em fatos eminentemente teológicos, o que levou o bispo de Hipona

a empregar metáforas em sua análise que são absolutamente imbricados com pressupostos

cristãos, pois “ao compreender populus fundamentado no amor e não na justiça, Agostinho

lê a definição ciceroniana segundo conceitos seus, tais como os de natureza, pecado, graça,

virtude, justiça, amor, eternidade, transcendência e presença.”141

137 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da tempora-

lidade. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes. 1989. p. 57. 138 Cf. TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. Tradução de Jaci Marashin. São Paulo: ASTE, 2000.

p. 133. 139 Destacado político, orador, jurista e filósofo romano. 140 CÌRERO, Marco Túlio. Da República, I, 25,39. Tradução e Prefácio de Amador Cisneiros. Rio de Janei-

ro:Athena Editora, 1941. p. 45. 141 SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com

Da República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 13.

Page 55: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

55

A primeira considerável ressignificação que é empregada pelo autor se coloca na

construção de o que define um populus não é a justiça, mas o amor que une as pessoas, nas

palavras do próprio autor se encontra “povo é a união duma multidão de seres racionais as-

sociados pela participação concorde nos bens que amam, então com certeza que, para se

saber o que é cada povo, necessário se torna tomar em consideração o objeto do seu

amor.”142 Logicamente, isso está interligado diretamente com sua concepção de Cidade de

Deus e Cidade dos Homens, que são as duas metáforas básicas usadas pelo autor para ex-

pressar dois grupos de pessoas que existem, uns que amam a Deus, enquanto outros amam a

si mesmos. Ele diz que estas duas podem ter o nome alegórico de Jerusalém e Babilônia,

uma é a dos santos e a outra dos ímpios (cf. O’DALY, 1999, p. 94).

Com isso, Agostinho infere que existe um povo (populus) no império romano, por

mais que este tenha erros recorrentes, falhas estas que segundo o autor são o real motivo da

decadência que Roma passa em meio às invasões que aos poucos começam a ficar evidentes

em seu território, portanto, “pela participação concorde nos bens que amam, não é desrazo-

ável que se lhe chame povo (...) o povo romano é povo e a sua empresa é, sem dúvida, uma

empresa pública, uma república (res publica).”143 Sendo que o propósito da obra que define

populus e res publica em Agostinho está expresso logo no prefácio da maior obra do antigo

teólogo, que enuncia que “a gloriosíssima Cidade de Deus – que no presente decurso do

tempo, vivendo da fé, faz a sua peregrinação no meio dos ímpios, que agora espera a estabi-

lidade da eterna morada com paciência até ao dia em que será julgada com justiça.”144

O autor hiponense acreditava que “as virtudes que os romanos haviam atribuído a

seus heróis só se realizariam nos cidadãos dessa outra cidade; somente dentro dos muros da

Jerusalém Celestial é que se poderia alcançar a nobre definição ciceroniana da essência da

república romana,”145 ou seja, mesmo que ele reconhecesse que existiram pessoas valorosas

142 “Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus", profecto, ut

videatur qualis quisque populus sit, illa sunt intuenda, quae diligit.” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus

XIX, 24. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. 143 “sed rationalium creaturarum et eorum quae diligit concordi communione sociatus est, non absurde populus

nuncupatur; tanto utique melior, quanto in melioribus, tantoque deterior, quanto est in deterioribus concors.

Secundum istam definitionem nostram Romanus populus populus est et res eius sine dubitatione respublica.”

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XIX, 24. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Ca-

louste Gulbenkian, 2011. 144 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, Prefácio. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2011. 145 BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª ed. Rio de Janeiro; São Paulo:

Record, 2012. p. 384.

Page 56: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

56

entre os cidadãos e cidadãs romanos, ele entendia que estas qualidades só se efetivariam de

maneira real na Cidade de Deus.

Em última instância para o pensamento agostiniano só pode existir verdadeiramente

populus onde está o povo que anda segundo os propósitos eternos divinos, que são encon-

trados apenas na Cidade de Deus, só esta é de forma mais elevada considerada como verda-

deiro povo. Visto que “uma civitas (cidade) será justa, ordenada, apenas se os cidadãos,

interiormente, estiverem ordenados, ajustados, por assim dizer, com o supremo bem.”146

Logo, “um populus, portanto, não pode ser justo, e não será populus, se os cidadãos não

oferecerem sacrifícios a Deus, não ajustarem toda a sua existência em direção a Deus .”147

Em outras palavras, a Cidade de Deus, que é a expressão do verdadeiro populus se encontra

em uma sociedade de pessoas que tem Deus como cabeça, e que estão ligados por um vincu-

lo de amor e afeição, isso transcende qualquer instituição humana, religiosa ou não.148

Devido a isso, para o pensador de Hipona uma “República Romana nunca existiu,

porque, segundos essas definições, nunca foi coisa do povo.”149 Já que para o ser deveria

estar submetida ao senhorio da divindade cristã e necessitaria estar ligada pelos verdadeiros

laços de amor, que só podem ser encontrados dentro daqueles e daquelas que justos por pa-

râmetros teológicos cristãs de suas interpretações bíblicas.

1.5.2 Recusa por Agostinho da definição de populus ser baseada na

justiça

A discordância básica de Agostinho em relação à clássica concepção de Cícero do

que é povo está na disparidade da opinião de ambos os autores no que diz respeito ao que é

justo, ou seja, o que é justiça. Esta diferenciação entre os pensadores é extremamente sutil,

146 SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com

Da República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 151. 147 SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com

Da República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 151.

148 Cf. BOURKE, Vernon J. “The City of God and History.” In: The City of God: A Collection of Critical Es-

says. Edited by Dorothy F. Donnelly. New York: Peter Lang, 1995. p. 292. 149 SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com Da

República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-

nas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 146.

Page 57: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

57

uma vez que para ser justo, significa atribuir a cada um o que lhe é devido.150 Ou nas pala-

vras do próprio bispo norte africano: “justiça, cuja função consiste em dar a cada o que lhe é

devido.”151

E mais duramente ainda é a afirmação que o teólogo cristão faz no livro XIX d’ A

Cidade de Deus, parte da obra dedicada em especial aos conceitos que vem sendo trabalha-

dos nesta dissertação, na qual ele chega a dizer que as pessoas que constituem o Império

Romano não podem ser, dignamente, chamado de populus, dado que não existe nele uma

verdadeira justiça, nem um verdadeiro amor que os conecte. E desqualifica asseverando

que:

onde não há verdadeira justiça, não pode haver uma multidão de homens

reunida em sociedade pela aceitação de um direito, nem povo (...) se não há

povo (populus), também não há empresa de povo (res publica), mas em-

presa duma qualquer multidão que não é digna do nome de povo.152

E considera ainda que não é possível, baseado nas próprias interpretações que ele faz do

corpo social no pensamento ciceroniano, acreditar que existiu uma verdadeira sociedade em

Roma, pois onde não reina a justiça cristã verdadeira não pode existir verdadeiramente um

populus.153

Portanto, na definição da Cidade de Deus se percebe qual é a opinião do autor para

que um povo possa ser denominado verdadeiramente de populus, essa questão está direta-

mente interligada a disputa sobre as distintas concepções de “deidade, não por acaso, imedi-

atamente após recusar a definição ciceroniana de povo por meio da verificação da injustiça

dos romanos devida ao paganismo, Agostinho passa a examinar justamente a concepção de

deidade do cristianismo e do paganismo.”154 Mostrando, assim, que para o autor cristão an-

150 Cf. SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com

Da República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-

manas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 11. 151 “Quid iustitia, cuius munus est sua cuique tribuere” AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XIX, 4,4. Tra-

dução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. 152 “Quocirca ubi non est vera iustitia, iuris consensu sociatus coetus hominum non potest esse et ideo nec popu-

lus iuxta illam Scipionis vel Ciceronis definitionem; et si non populus, nec res populi, sed qualiscumque mul-

titudinis, quae populi nomine digna non est.”AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus XIX, 21. Tradução de

J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. 153 Cf. GILSON, E. Evolução da Cidade de Deus. Tradução J. C. O. Torres. São Paulo: Editora Herder, 1965.

p. 45. 154 SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho: uma controvérsia com Da

República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Filosofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-

nas. São Paulo: Universidade de São Paulo – USP. p. 148.

Page 58: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

58

tigo não estar associado à fé cristã exclui a possibilidade de ser qualificado plenamente co-

mo justo, ou mesmo com populus de forma completa.

Sendo assim, Gilson, um dos principais especialistas de Agostinho, chega a sustentar

que “não bastaria, portanto, dizer que a república romana era injusta, pois, na verdade, ela

sequer era digna do nome república.”155 Porém, o autor continua fazendo uma ressalva, para

que evite interpretações extremas, afirmando: “por outra lado, não se pode negar que a re-

pública romana tenha sido uma república verdadeira, dado que, conforme nossa definição

do que é um povo, ela era um grupo de seres racionais associados para a fruição comum

daquilo que amavam.”156 Ou seja, o povo romano de fato era mau, na concepção agostinia-

na, mas ele ainda assim era um tipo de povo, populus, pois possuída atributos humanos que

os unia, mesmo que desprovido de virtudes que ele era considerava essenciais.

O pensador de Hipona faz, desta forma, um hierarquização entre as sociedades hu-

manas, uma que ama ao Deus cristão, a Cidade de Deus, e outra que ama as coisas terrenas

ou outras divindades, chamada de Cidade terrena.157 Inclusive, sua interpretação sobre o que

são os deuses fora do cristianismo é bastante dura e hostil quando ele diz que “nas Sagradas

Escrituras, apelidados de deuses, deuses não dos Hebreus, mas dos pagãos – o que a Septu-

aginta diz com clareza ao traduzir o salmo todos os deuses dos gentios são demônios (Sl

95,5).”158 Embora Garcia-Junceda afiança que não deve entender o pensamento político

agostiniano como teocentrismo, uma vez que “Santo Agostinho aceita como legítimas soci-

edades aquelas comunidades que, racionalmente, coincidem nos objetos amados.”159 Evi-

tando, assim, um exclusivismo em que só sociedades cristãs poderiam ser consideradas co-

mo verdadeiras sociedades.

155 GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub. 2ª. Ed. São Paulo: Discurso Editorial & Paulus, 2010. p. 332. 156 GILSON, Etienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane Negreiros Abbud

Ayoub. 2ª. Ed. São Paulo: Discurso Editorial & Paulus, 2010. p. 332. 157 Cf. COSTA, M. R. C. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho. Recife, São Paulo:

Universidade Católica de Pernambuco, Edições Loyola, 2009. p. 94. 158 “(quia et ipsi in Scripturis sanctis dicti sunt dii, non Hebraeorum, sed gentium; quod evidenter in Psalmo

Septuaginta interpretes posuerunt, dicentes: Quoniam omnes dii gentium daemonia 72)”AGOSTINHO, San-

to. A Cidade de Deus XIX, 23, 4. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2011. p. falta página 159 GARCIA-JUNCEDA, J. A. La sociedade y la paz. In: FITZGERALD, A. Diccionario de san Agustín. Trad.

C. Ruiz-Garrido. Burgos: Editoria Monte Carmelo, 2001. p. 181-182.

Page 59: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

CAPÍTULO II

LUTERO:

ÉTICA E POLÍTICA NA REFORMA

2.1 Contexto do Sacro Império Romano Germânico e surgi-

mento da imprensa

Conhecer o contexto no qual viveu Lutero é fundamental para se compreender como

se desenvolveu sua história, seus estudos e, consequentemente, seu pensamento teológico,

ético e político. O espaço geográfico no qual o reformador estava inserido é de uma com-

plexidade bastante notória, posto que o Sacro Império Romano Germânico era um local de

fronteiras fluidas. Devido a este fato, de tempos em tempos acabava por ter pequenas modi-

ficações em suas fronteiras, e elas “não se cobriam inteiramente com aquelas da Alemanha

moderna (...) o império se compunha de 350 entidades, maiores ou menores (territórios,

cidades livres, principados eclesiásticos), e tinha à sua testa um imperador eleito.”160

Esta diversidade que era expressa em seu território acaba por gerar tensões constan-

tes entre os territórios que faziam parte deste império. Estas inquietações que eram media-

160 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 17.

Page 60: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

60

das, em tese, pelo seu imperador eleito, apenas dele não desfrutar do poder que os impera-

dores e reis de outros países no estado moderno viriam a ter posteriormente, como os reis da

França, Espanha ou mesmo Portugal. Isso porque o processo pleno de unificação na Alema-

nha será muito posterior e só acontecerá séculos depois do início da Reforma Protestante.

Ou seja, a dinâmica territorial do Sacro Império Romano Germânico funcionava ainda den-

tro de regras expressamente medievais, e a própria eleição de seu imperador remetia a este

período.

Somente assimilando o contexto da hoje denominada Alemanha do início do século

16, explica-se como foi possível acontecer um movimento tão impactante na história, por

meio da vida de um simples monge agostiniano chamado Martinho Lutero (1483-1546), que

lecionava em uma universidade fundada há pouco tempo na cidade de Wittenberg. O estu-

dioso francês Lucien Febvre afirma que a situação econômica, política e social naquela re-

gião possibilitou que a própria Reforma acontecesse.161

A região do Sacro Império Romano Germânico era um local de ricos recursos mate-

riais. Cidades começavam a ser cada vez mais vigorosas e se destacavam, além dos antigos

recursos agrários já existentes na região. No entanto, não havia uma unidade política forte

como existia em outros países nos quais a monarquia absolutista já se sedimentara. Na Ale-

manha existia “um imperador, que não passava de um nome, e um império, que não passava

de uma moldura.” 162 Tanto império quanto o próprio imperador eram fracos, dado que, não

havia uma centralização de poder em sua mão.

O enriquecimento das cidades e dos príncipes era o que de fato acontecia cada vez

como mais força. Caminhava-se a passos largos para um país onde vários príncipes manda-

vam cada um em seu respectivo território. Sendo assim, existia um fraco Estado que se di-

vidia entre os príncipes, cidades e o imperador. Neste contexto, Lutero acabou por desen-

volver um papel que nenhuma destas autoridades conseguiu exercer, a função de unir a

Alemanha. Além do que, havia uma crescente insatisfação em sua área de atuação devido as

constantes ingerências e taxações que Roma impunha. Ideias conciliaristas, oriundas do da

última parte da Idade Média, estavam presentes em grupos imperiais, pois “muito dinheiro

parecia tomar o caminho da Itália. Em numerosos círculos se desenvolvia um anti-

161 Cf. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três

Estrelas. 2012. p. 95-141. 162 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estre-

las. 2012. p. 120.

Page 61: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

61

romanismo cada vez mais virulento. A ideia de um concílio nacional alemão pairava no

ar.”163 Essas ideias conciliaristas juntamente com o ideal reformador que o teólogo apresen-

tou em suas noventa e cinco teses acabou por encontrar um solo fértil. Uma vez que muitas

pessoas, sobretudo dentro das lideranças principescas e de algumas cidades, já estavam dis-

postos a romper relações com a Igreja Católica romana.

Existia na Alemanha daquele tempo certo ar de harmonia, expresso pela figura do

imperador e do próprio Império, que não correspondiam com os grandes questionamentos

que começavam a surgir em diversos estamentos daquela sociedade. As cobranças oriundas

da Igreja Católica bem como a venda de indulgências faziam com que vultuosas somas de

riqueza fossem enviadas para Roma. Esse fato gerava grande indignação nas elites locais,

que tinham por objetivo manter estes recursos dentro de seus próprios limites. “Tanto quan-

do a aparência de um Império pacífico disfarçava a falta de paz contenda social da época de

Lutero, a abundância de cruzes mitigava a chocante realidade que a cruz deveria representar

na vida e na teologia.”164 Estas cruzes eram expressas nas inquietações sociais que surgiram

logo após o início da Reforma, e que acabaram, por gerar situações complexas e contraditó-

rias, como é o caso, em especial, das Revoltas Camponesas que surgiram ainda dentro da

primeira década de existência do protestantismo, tema este que será tratado com mais deta-

lhes posteriormente, ainda neste capítulo.

Além disso, a insatisfação com o papado tinha chegado a níveis insustentáveis em

muitas regiões do Sacro Império. Essa insatisfação somada ao contexto religioso e social

vivido pela Alemanha nos tempos de Lutero foi um dos grandes responsáveis pelo próprio

sucesso que o reformador teve em espalhar tão eficientemente suas ideias por vastas regiões

imperiais. Um dos maiores motivos de descontentamento, que uniam tanto camponeses

quanto príncipes, eram as altas tributações que Roma impunha aos católicos daquela região.

As indulgências, destarte, que foi o estopim da crise para Lutero, era apenas uma das várias

arrecadações que aconteciam constantemente naquela região.

Outro evento que é de conhecida importância para o desenvolvimento dos princípios

da Reforma é a invenção da imprensa por Gutenberg165, sobretudo, porque o primeiro livro

163 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 22-23. 164 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 28. 165 Johannes Gutenberg (1398-1468) viveu pouco antes do início da Reforma Protestante na região do arcebispa-

Page 62: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

62

que este imprimiu foi uma Bíblia. Isso gerou um interesse crescente por parte da população

mais elitizada, que tinha acesso à leitura, pelas interpretações que Lutero dava às Escrituras,

sendo que a difusão “em larga escala fora possibilitada pela invenção da imprensa. As tra-

duções na língua do povo se multiplicavam. Às edições completas (14 em alto-alemão antes

de Lutero) se acrescentavam edições parciais, em particular dos Salmos e das perícopes do-

minicais.”166

O reformador acabou, por conta disso, produzindo sua própria versão da Bíblia em

alemão. Esta se tornou, rapidamente, bastante popular dentro do Sacro Império, devido sua

clareza e qualidade. Esta eficiência na divulgação das mensagens luteranas também é, em

grande medida, devida ao impacto que as ilustrações tiveram nas Bíblias que eram impres-

sas pelos divulgadores das ideias reformadas, pois a “literatura panfletária, mas também

numerosas obras de Lutero não somente comportavam páginas ilustradas de frontispício,

mas continham ainda outras ilustrações significativas.”167 Essa utilização panfletária de ilus-

trações faziam com que não apenas uma pequena elite letrada tivesse acesso e se interessas-

se pela Reforma, mas mesmo as pessoas mais simples podiam ser atingidas pelas mensagens

luteranas.

Outro fator que foi decisivo na rápida expansão das ideias que foram propagas por

Lutero, foi o fato de muitos ex-religiosos católicos passaram a trabalhar para divulgar as

mensagens que o reformador alemão havia elaborado. Assim, junto com o papel decisivo

que a imprensa operou, pela possibilidade de alastrar em larga escala novas ideias, também

houve a emergência de muito pregadores que se aliaram a esta nova mensagem. Inclusive,

houve “aqueles que atingiram verdadeiramente multidões. A Reforma pode ser definida

como a emergência de uma nova pregação. Na maioria das vezes, tratava-se de ex-monges

que, tendo saído de seus conventos, encontrariam espaço de atuação como pregadores.”168

Com a junção destes fatores, sociais, históricos e religiosos, que foram expressos, pode-se

do da Mogúncia, dentro do Sacro Império Romano Germânico, sua invenção da prensa móvel e sua utiliza-

ção da tinta a base de óleo gerou uma revolução na produção de livros em larga escala. Contribuindo em me-

dida inestimável para a divulgação de materiais e ideias naquele período. 166 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 24. 167 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 97. 168 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 97.

Page 63: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

63

entender como este ex-monge agostiniano pode obter tanto êxito na expansão de sua men-

sagem.

2.1.1 Lutero: primeiros anos, formação e chegada à Wittenberg

O reformador “nasceu a 10 de novembro de 1483 em Eisleben. Se o dia está bem

atestado, menos o está o ano (...) de origem camponesa, o pai adquiriu, pouco a pouco, certo

bem-estar por seu trabalho na extração mineira.”169 Nota-se que este período já é posterior a

invenção da imprensa, aspecto que, como já foi abordado, tornou-se fundamental para difu-

são de suas concepções. Lutero nasceu no condado de Mansfeld, e passou praticamente toda

sua vida adulta, mesmo após a Reforma na pequena cidade de Wittenberg, localidade esta

que apesar de ter se tornada emblemática pela sua importância histórica neste evento, não

tinha mais que dois mil habitantes. Ela se encontrava na Saxônia eleitoral, região onde os

príncipes que se sucederam foram bastante receptivos e apoiadores da mensagem luterana.

Seu “príncipe tinha certo peso porque era um dos sete que elegiam o imperador (...) o prín-

cipe preocupava-se em dar impulso à sua pequena capital onde em 1502 tinha sido fundada

uma universidade.”170 Centro de formação este no qual o teólogo foi professor mesmo antes

de se tornar figura conhecida mundialmente.

Lutero iniciou seus estudos na escola municipal de Mansfeld entre os anos de 1488 e

1497, neste período aprendeu as primeiras letras, o latim, e sem sombra de dúvidas expres-

sões da fé cristã, como os Dez Mandamentos, Pai-Nosso e a Ave-Maria. Sua escola não ti-

nha sido marcado pelas reformas humanísticas que já chegavam a alguns centros de forma-

ção do período. O mais provável é que sua formação fosse baseada em grande medida por

exercícios de memorização e métodos tradicionais.171

Após este período de formação rudimentar, foi para Eisenach entre os anos de 1498

até 1501, onde “frequentou a ‘escola do trívio’, quer dizer uma escola que ensinavas as três

disciplinas fundamentais da gramática, da retórica e da dialética.”172 Ou seja, o conhecido

169 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 31. 170 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 20. 171 Cf. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H.

Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 32. 172 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 32.

Page 64: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

64

trivium medieval que era base para o conhecimento da época. Em seguida, Lutero iniciou

seus estudos universitários em Erfut, que naquele período era uma das principais e com uma

das melhores reputações entre as faculdades de Direito alemãs.173 Em 1505, assim, virou

mestre em Artes após ter cursado o quadrivium, o que o possibilitava prosseguir os estudos

para uma das três áreas de formação da época: a medicina, o direito que era o sonho de sua

família, e a teologia que acabou por seu caminho.

Um evento bastante obscuro acabou por marcar profundamente sua caminhada, se-

gundo contou posteriormente. Em junho de 1505 quando estava perto de Stotternheim, um

raio quase o fulminou. Isso fez com que aquele jovem estudante universitário ficasse em

pânico, neste momento ele clamou pela ajuda divina, dizendo “‘ajuda-me, Santa Ana, que

me tornarei monge’. De volta a Erfut, o estudante despediu-se de seus amigos e submergiu,

a 17 de junho de 1505, no convento dos agostinianos da cidade.”174 Foi, desta maneira, que

o jovem que iria para a faculdade de Direito, acabou por mudar o percurso de sua vida.

Apenas dois anos após este evento, ele já era consagrado diácono e em pequeno espaço de

tempo sacerdote. Ainda no de 1507 celebrou sua primeira missa.175

Por fim, no ano de 1511 foi definitivamente para a cidade de Wittenberg, localidade

na qual ele passaria toda sua vida. Sua chegada a esta universidade deveu-se a ordens que

recebeu de seus superiores de cursar o doutorado em teologia. Lá no de 1512 obteve o grau

de doutor e começou o exercício da docência no mesmo centro em que obteve seu doutora-

mento.176 “Lutero era um professor de estudos bíblicos da Universidade de Wittenberg, des-

de o semestre letivo de 1513-1514 até sua morte em 1546. Ele nunca realizou qualquer outra

função, e continuou suas atividades apesar de algumas interrupções.” 177

173 Cf. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H.

Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 32. 174 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 34. 175 Cf. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H.

Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 36. 176 Cf. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H.

Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 37. 177 “Luther was a professor of biblical studies at the University of Wittenberg from the win ter semester of the

academic year 1513-14 until his death in 1546. He never held any other position, and he continued to lec-

ture despite interruptions.” GRENDLER, Paul. F. “The Universities of the Renaissance and Reformation”.

In: Renaissance Quarterly. University of Chicago Press; Renaissance Society of America. Vol. 57, no. 1

(Spring), p. 1-42, 2004. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/1262373> . .Acesso em 18/11/2014 p.

17.

Page 65: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

65

2.1.2 Lutero e sua teologia

Os questionamentos luteranos que, em princípio, eram de ordem religiosa, ecoaram

fortemente nos mais diversos setores da sociedade, conseguindo assim unir um país sob uma

mesma bandeira. Notoriamente, houve barreiras e discordâncias, mas com o apoio de alguns

príncipes, este homem “piedoso procurando realizar obras grandes e belas, levando uma

vida devota, virtuosa e santa. (...) conciliava uma profunda unidade de um sentimento vivo e

dominador. Lutero, nem doutor, nem teólogo: um profeta.” 178 E a principal bandeira na

qual o reformador conseguiu unir a Alemanha foi a seu descontentamento contra o papado,

que nesta altura intervinha nas mais diversas esferas da sociedade.

Assim como Agostinho, Lutero não foi um teólogo de gabinete, que escrevia bus-

cando sistematizar seu pensamento. Posto que seus escritos têm um estilo e uma forma de se

desenvolver bastante semelhante à forma como antigo escritor de Hipona fazia. Assim, o

“pensamento político de Lutero, por exemplo, é desenvolvido principalmente em resposta a

alguma crise imediata diante dele.” 179 O próprio modo como o reformador alemão fazia

teologia já mostra sua forma não especulativa de construção do pensamento.

No prefácio da publicação de seus textos de 1539 ele “se afasta das populares regras

medievais tríplices para o fazer teológico – lectio, oratio, contemplatio – e introduz uma

regra própria: oratio, meditatio, tentatio.”180 Essa substituição da contemplatio pela tentatio

já mostra que o ponto propulsor de sua obra não são horas e horas de contemplação no

claustro, mas são os desafios que a vida o interpõe, a tentatio, que o move a buscar respos-

tas. “Ela é uma certa prática (usus); uma maneira de fazer teologia, uma disposição que sur-

ge da própria experiência da tentatio (...) o oposto de fatalismo ou triunfalismo; ela é, pelo

contrário, a prática de entrar no meio de uma batalha contra o sofrimento.”181 Essa é a expli-

cação de porque da inclusão da tentatio na sua regra de se fazer teologia, que foge, em

grande medida, as regras seculares da teologia escolástica medieval.

178 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Es-

trelas. 2012. p. 140. 179 “Luther’s political thought, for example, is developed primarily in response to some immediate crisis be-

fore him.” PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s War”. In:

Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406,

1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p. 390. 180 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 49. 181 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 50.

Page 66: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

66

Lutero é o primeiro que acaba por romper com a forma de fazer teologia escolástica,

que era representada por estar assentada sobre o pensamento recebido de Aristóteles a partir

do século 13 e que, rapidamente, espalhou-se e tornou-se majoritário em toda a cristandade

ocidental. “Heidegger foi provavelmente o primeiro nos tempos modernos a reconhecer na

teologia de Lutero (...) pelo Debate de Heidelberg, um gesto epistemológico que por primei-

ro desconstruiu a tradição filosófica ocidental conhecida como ontoteologia.”182 Mostrando,

assim, a importância que as formulações teológicas luteranas tiveram não apenas para o

período inicial da Idade Moderna, mas para toda a posteridade que se serviu de seu pensa-

mento.

2.2 Justificação pela Fé e Boas Obras

A primeira parte do pensamento de Lutero que merece uma seção específica nesta

pesquisa enuncia a respeito da justificação pela graça, mediante a fé, que é clássica da teo-

logia luterana e de toda a Reforma Protestante. Nesta concepção, se entende que o ser hu-

mano não pode fazer nada que o justifique perante Deus, diferentemente da concepção me-

dieval que enfatiza a possibilidade de obras que auxiliam no processo salvífico.

Uma das interpretações possíveis é que tal doutrina, a da justificação pela fé, geraria

uma alienação em relação aos problemas sociais, e mais do que isso, uma apatia frente às

diversas mazelas da sociedade, posto que nada que o ser humano faça poderá salvá-lo, en-

tão, ele nada precisaria fazer. Ou seja, “a doutrina da justificação de Lutero tem estado sob a

suspeita de ser individualizante e espiritulizante. Ela levaria ao desinteresse ou a paralisia

ética e, portanto, deveria ser abandonada ou pelo menos complementada pelo apelo à ação

ética ou à cooperação com Deus.” 183

Porém, existem também aqueles que defendem que esta concepção do reformador é

revolucionária, uma vez que rompeu com o ciclo de exploração que era mantido pela ideia

de fazer boas obras para chegar mais próximo à salvação eterna. “A liberdade cristã é pro-

veniente de Deus, é presente dele, e não é conseguido através de ativismo que busca de au-

torrealização religiosa. (...) Uma de suas consequências é um engajamento muito humano

182 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 63. 183 ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopol-

do: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 87.

Page 67: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

67

em prol da salvação plena para o próximo.” 184 Na compreensão de Martin Dreher, que foi o

tradutor da obra A Liberdade Cristã nas Obras Selecionadas de Lutero feita em parceria por

editoras luteranas em língua portuguesa, fica claro que a liberdade dada por Deus ao ser

humano gera um forte compromisso do salvo, ou da salva, em levar esta graça divina aos

outros seres humanas. Ou nas palavras do próprio reformador alemão: “por isso são verda-

deiros estes dois provérbios: ‘as boas obras não fazem o homem bom, mas o homem bom

faz boas obras.’ ‘As más obras não fazem o homem mau, mas o homem mau faz obras

más.’” 185 Pois as boas obras não deixam de existir, elas apenas passam a ser consequência

da justificação que já foi efetivada por meio da graça.

Nessa forma de conceber as boas obras como um ato que é uma consequência da

salvação, Lutero acaba por romper com a lógica de que existem obras que aproximam mais

o ser humano de Deus do que outras. O que é absolutamente revolucionário em uma socie-

dade que com esta distinção, dizia às pessoas que uns eram mais santos e próximos da di-

vindade do que outros; o que culminava numa gritante diferença entre clérigos e leigos,

concepção que o pensador buscou romper dizendo que não há tal distinção entre os seres

humanos.186 Para o teólogo, esta distinção seria não uma vantagem que aproxima as pessoas

dos desígnios divinos, mas apenas uma forma de manter a dominação dos considerados

mais santos sobre os menos santos. Em outras palavras, gerava uma manutenção do status

quo, onde a igreja romana ditada às normas para toda a sociedade. Assim, esta inversão de

que as obras sucedem ao invés de precederem a justificação, é uma mudança em todo o sis-

tema ético da época. 187 Posto que as obras vêm depois da justificação no sistema luterano.

Além disso, o fato de que é a graça que justifica, deve ser visto não como um convite

a apatia, mas como uma submissão a divindade, que não vem pra confirmar as injustiças

que acontecem, mas para julgar e mudar as realidade que geram morte e opressão. Como se

vê em: “Deus não deixa de ser um juiz radical. A solidariedade de Deus em Cristo não é a

184 DREHER, Martin N. Introdução. In: LUTERO, Martinho. Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade

Cristã. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520.

São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989. p. 436. 185 LUTERO, Martinho. Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã. In: LUTERO, Martinho. Obras

Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto

Alegre: Concórdia Editora. 1989. p. 449. 186 Cf. FISCHER, Joaquim. Introdução. In: LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal;

Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989. p. 99. 187 Cf. LUTERO, Martinho. Salmo 101 interpretado. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6:

Ética: Fundamentos da Ética Política, Governo, Guerra dos Camponeses, Guerra contra os Turcos, Paz Soci-

al. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1996. p. 151.

Page 68: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

68

confirmação do status quo, mas o seu juízo.”188 Uma vez que a divindade é o juiz sobre os

poderosos. Esta concepção luterana, segundo Altmann, está alicerçada no fato de que a pró-

pria história dos Evangelhos está centrada nos mais pobres e necessitados. O que gera a ne-

cessidade de um compromisso integral com a salvação do ser humano, superando assim

qualquer forma de conceber uma fé que se limite a alienação, já que “a história de Jesus,

pobre e desprezado, mas em favor de nós, dá de antemão uma dimensão que ultrapassa ple-

namente qualquer enfoque meramente individualizante.”189

2.2.1 Justificação pela Fé

O tema da justificação pela fé é absolutamente central na teologia da Reforma, em

especial, no pensamento luterano, já que “Lutero era de opinião que o ser da igreja depende

da resposta dada a esse artigo da justificação, que tudo o mais é secundário, que justamente

aí se decide se a igreja tem o Evangelho ou apenas o nome vazio.”190 Tamanha é a impor-

tância que é dada pelo teólogo alemão a sua compreensão da justificação mediante a fé. O

reformador escreve, inclusive, que “enquanto [o ser humano] estiver persuadido de poder

fazer ao menos um pouquinho em prol de sua salvação, ele permanece na confiança em si

mesmo e não desespera inteiramente de si, por esta razão não se humilha diante de Deus.”191

O reformador segue em suas ideias, escrevendo em debate com Erasmo de Roter-

dã192 acerca do livre-arbítrio, mostrando a incapacidade que a humanidade tem em justificar

a si mesma sem auxílio da ação graciosa divina. Lutero escreve em discordância do grande

humanista holandês, posto que defendia uma antorpologia pessimista, na qual o ser humano

é mal, se não contar com a ajuda e auxílio de Deus. Sendo assim, o autor afirma que o ser

humano não é livre, pois ele tende ao mal, argumentando que a melhor obra que o homem e

a mulher podem ter é “em todas as boas obras, devemos exercitar e utilizar a fé e deixar que

188 ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopol-

do: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 56. 189 ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopol-

do: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 88. 190 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 5. 191 LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 4: Debates e

Controvérsias, II. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1993. p. 46. 192 Erasmo de Roterdã (1466-1536) foi um importante humanística e filósofo holandês. Seus trabalhos, sobretu-

do, sobre o livre-arbítrio humano foram alvo de constante embate entre ele e Lutero, que em resposta formu-

lou o conceito de servo-arbítrio.

Page 69: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

69

ela seja a obra mais importante.”193 Posto que “devemos aprender a distinguir as boas obras

a partir dos mandamentos de Deus, e não baseados na aparência, na magnitude ou na quan-

tidade das obras em si mesmas, tampouco na opinião das pessoas ou em leis ou costumes

humanos.”194

A justificação pela fé tem a ver com a justiça que Deus opera no ser humano por

meio de Cristo, e existe um aspecto forense nesta lógica, pois é a divindade que justifica a

humanidade e propicia que se abra um caminho salvífico para todas as pessoas:

A justiça de Deus que é Cristo tem dois aspectos inter-relacionados. Pri-

meiro, ela implica a graça de Deus para nós em meio à nossa condição, de-

clarando-nos justos e justas e não simplesmente suplementado ou emen-

dando as deficiências que temos. Somos tornados inteiros em meio a nosso

quebrantamento. Nada mais do que isso quer dizer a fórmula simul iustus

et peccator.195

Nesta forma de se compreender a fé está implícito que o Criador age na história humana em

meio a suas deficiências e incompletudes, sendo que a única atitude que se espera da criação

é que esteja aberta para o agir divino para que ele complete sua justiça e faça com que a

humanidade seja restaurada pelo poder de sua graça. Um dos mistérios mais complexos des-

sa soteriologia protestante é que ela apresenta uma graça que atua em meio a um ser que é

ao mesmo tempo ‘justo’ e ‘pecador’. Deus não retira este paradoxo da questão, quando ele

age em meio sua justiça ele atua em um ser incompleto que é tornado completo por meio da

ação misericordiosa.

A própria confissão de pecados que é ponto central da justificação posto que, tanto

antes de Lutero quanto na própria teologia do reformador alemão, contempla esta dimensão

paradoxal de um de ambiguidade entre ser ao mesmo tempo justo e pecador. “Já que a con-

fissão do pecado nasceu da fé na revelação de Deus, o homem é nesse particular sempre

ambas as coisas: pecador e justo. Também é ambas as coisas totalmente: todo pecador e

todo justo.” 196 Este mistério é próprio de uma formulação soteriológica que contempla o

193 LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In: LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo; Porto Alegre: Si-

nodal; Concórdia. 1989. p. 101-102. 194 LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In: LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo; Porto Alegre: Si-

nodal; Concórdia. 1989. p. 102. 195 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 54. 196 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 21-22.

Page 70: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

70

mistério e o que não pode ser explicado, apenas compreendido. Esta formulação gerou um

grande alívio para o reformador, que desde os primórdios de seu envolvimento na vida reli-

giosa se preocupava de forma especial acerca do como ser justificado, sendo que “Lutero

descobriu essa simultaneidade como um conhecimento feliz e libertador.” 197

Tal descoberta resolveu a questão que ele tinha de porque o ser humano ainda deve-

ria confessar os pecados após participar da eucaristia, posto que acreditava-se que ela ope-

rava de forma sobrenatural em favor da purificação do ser humano. Isso foi resolvido, não

encerrado, com a compreensão de que sempre existe uma dimensão paradoxal em que se é

ao mesmo tempo ‘justo’ e ‘pecador’, é justo por meio do perdão dos pecados e de um Deus

amoroso que o ama e acolhe, e simultaneamente é pecador por que em si mesmo essa é sua

constituição. “Isto é, como ser humano que ele é (...) um verdade em relação ao severo jul-

gamento de Deus; o outro é verdade em relação à grande misericórdia de Deus.”198

Essa é uma formulação teológica que valoriza o caráter necessário da humildade e a

total incapacidade de qualquer obra da lei ser feita em favor da salvação de qualquer pessoa.

Posto que, por mais que se lute para se justificar a si mesmo, tema que era recorrente em sua

época e que era evidenciado por meio das indulgências que eram vendidas em larga escala

no Sacro Império, nunca se fará o suficiente para merecer a graça divina. “Esse duplo cará-

ter permanece através de toda a vida. Ambos são sempre verdade a mim, num e ao mesmo

tempo. Este é o grande paradoxo da existência cristã.”199

Mas salvação pela fé, mediante a graça, não deve gerar uma compreensão de que o

ser humano não participa dos sofrimentos. Iwand afirma que o ser humano “é transformado

pela fé, é a do crucificado. Lutero atrai todos os conceitos da teologia mística para a carne e

o sofrimento. Diversamente da mística, não ocorre aí a divinização do homem, mas ao con-

trário, a reconquista da autêntica humanidade.”200 É a cruz que justifica o ser humano. É o

Cristo em meio ao seu sofrimento que justifica a humanidade. Dessa forma, a justificação

perante a divindade tem sempre um caráter de tribunal, baseado na visão medieval forense

197 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 21-22. 198 ALTHAUS, Paul. A Teologia de Martinho Lutero. Tradução de Horst Kuchenbecker. Canoas; Porto Alegre:

Ulbra; Concórdia, 2008. p. 260. 199 ALTHAUS, Paul. A Teologia de Martinho Lutero. Tradução de Horst Kuchenbecker. Canoas; Porto Alegre:

Ulbra; Concórdia, 2008. p. 260. 200 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 27.

Page 71: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

71

que Lutero tinha. “A justiça de Deus não é, portanto, uma coisa com a qual o homem pode

contar, como um capital depositado a seu favor. Somente Deus pode presentear sua justi-

ça.”201 Apenas Deus pode justificar o ser humano, pois apenas ele tem pode e mérito para

tal.

No escopo da justificação pela fé um elemento essencial é a relação entre Lei e

Evangelho, estas duas palavras necessitam ser bem compreendidas para se captar de forma

mais ampla a teologia luterana. “Se perguntarmos a Lutero o que entende sob a palavra de

Deus, ele responde que a palavra de Deus é lei e evangelho. Quem não fizer essa distinção,

a esse nega a capacidade de expor corretamente a Escritura.”202 Essa é uma distinção clássi-

ca da teologia luterana entre lei e evangelho.

Existe uma tendência errônea de se valorizar apenas o evangelho, atribuindo a desva-

lorização do aspecto da lei a Lutero; porém, isso é injusto e não corresponde a construção

do pensamento do teólogo alemão. Pois “Lutero luta em favor do ‘e’: lei e evangelho; pro-

pugna porque não se inverta ambas as grandezas ou, pior ainda, se exclua totalmente a

lei.”203 Ele afirma que deve se valorizar ambas as dimensões das Escrituras, e que somente

usando estes dois aspectos é possível traçar um parâmetro sobre a fé cristã:

Precisamente porque a lei não pode justificar uma pessoa, ela acaba por

expor as tentativas humanas de autojustificação. A fragilidade da lei é, por-

tanto, também a sua força. Neste ponto, passamos pelo papel cívico e polí-

tico que a lei desempenha nas comunidades humanas (politicus / Civilis le-

gis usus) para o que Lutero chama de a função teológica da lei (theologicus

usus). A lei não é apenas um elemento de dissuasão; ela também acusa.204

A questão da autojustificação é posta em cheque a medida que ela aponta para o fato de que

o ser humano não tem capacidade de se autojustificar sem a intervenção da graça divina,

que se acolhe mediante a fé no Cristo. Nisso também é exposta a limitação que a lei tem em

201 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 69. 202 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 29. 203 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 34. 204 “precisely because the law cannot justify a person, it is eventually bound to expose humans' self-justifying

attempts. The weakness of the law is thus also its strength. At this point we are moving from the civil and

political role that the law plays in human communities (politicus/civilis usus legis) to what Luther calls the

theological function of the law (usus theologicus). The law is not only a deterrent; it also accuses.”

MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of Law, Justice, and Justification in Lu-

ther's Thought”. In: The Harvard Theological Review. Cambridge University Press; Havard Divinity

School. Vol. 100, no. 3 (July), p. 363-386, 2007. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/4495123>.

Acesso em 18/11/2014. p. 378.

Page 72: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

72

operar efetivamente a salvação na humanidade, ela serve, dessa forma, como um anteceden-

te que clarifica o evangelho da graça.205

Lei e evangelho se completam e são interdependentes, um ajuda no entendimento do

outro e se completam na efetuação na revelação da salvação divina à humanidade. Posto que

Iwand afirma que “a lei só é compreensível a partir do evangelho, mas também o inverso é

verdade, que sem a lei o evangelho permanece inconcebível; ademais, (...) lei precede ao

evangelho. A sequência, portanto deve ser: lei e evangelho.”206 E Althaus diz: “a proclama-

ção da lei, por si só, não é capaz de levar uma pessoa ao verdadeiro arrependimento e à fé

no evangelho (...) o Espírito de Deus precisa trabalhar junto com a pregação da palavra,

tanto no caso da lei como do Evangelho”207 e completa: “o Evangelho carrega a lei em si, e

a proclamação do evangelho é também proclamação da lei.”208 Dessarte, fica evidenciado o

caráter necessário, complementário e interdependente entre lei e evangelho, sendo que a

ordem em que são descritas faz diferença, primeiramente lei, após isso evangelho.

2.2.2 Boas Obras

Após falar sobre a justificação pela fé em Lutero, entende-se que é necessário com-

pletar a exposição com qual a definição e qual o papel das boas obras para o reformador

alemão. Para ele as obras devem ter um fim social, ou seja, as obras devem ser utilizadas

centradas no benefício do próximo, ao invés de serem feitas autocentradas. A concepção de

ação em favor do próximo está baseada no conceito cristão de amor, que é a base que justi-

fica a necessidade e o porque se faz algo em proveito de outrem. As boas obras “não são

para o serviço próprio, mas para servir ao próximo. Portanto, ser cristão não é um pecador

se autojustificando, mas um pecador que permite que Deus através da fé defina sua identi-

205 Cf. MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of Law, Justice, and Justification in

Luther's Thought”. In: The Harvard Theological Review. Cambridge University Press; Havard Divinity

School. Vol. 100, no. 3 (July), p. 363-386, 2007. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/4495123>.

Acesso em 18/11/2014. p. 385. 206 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 34. 207 ALTHAUS, Paul. A Teologia de Martinho Lutero. Tradução de Horst Kuchenbecker. Canoas; Porto Alegre:

Ulbra; Concórdia, 2008. p. 275. 208 ALTHAUS, Paul. A Teologia de Martinho Lutero. Tradução de Horst Kuchenbecker. Canoas; Porto Alegre:

Ulbra; Concórdia, 2008. p. 281.

Page 73: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

73

dade espiritual, e isso ocorre na liberdade de trabalhar pelos outros.” 209 Sendo o ser huma-

no, desta maneira, livre para amar e servir aos outros.

Ainda que o teólogo alemão tenha muita clareza e seja um ponto essencial em sua

teologia que a justificação não poder ser alcançada pelas boas obras, isso não quer dizer que

o cristão e a cristã não devem ser sempre esforçados em buscar o bem a todos, evocando

outra das marcas básicas da formulação do pensamento bíblico do cristianismo: o amor. “A

esta altura eu também gostaria de dizer que minha doutrina das boas obras é espiritual e

diferenciada, ou seja, [que é preciso distinguir entre] boas obras para justificação e boas

obras em louvor a Deus.”210 Em outras palavras, quem entende que a justificação é efetuada

pelas boas obras, como ocorreu no final da Idade Média e início da Idade Moderna no cato-

licismo romano, está se equivocando; porém, as boas obras são necessárias para o louvor ao

Criador, este é o motivo que deve motivar os seguidores e seguidoras de Cristo a se esforça-

rem por elas.

Esta é uma dimensão que evoca a encarnação, posto que o principal exemplo para

que um cristão entenda o porque ele deve buscar o benefício do próximo é o próprio exem-

plo salvífico, que a teologia cristã tem do Cristo, que, segundo os relatos evangélicos, en-

carna em amor à humanidade. “Essa ênfase radical na encarnação implica, como Lutero

reconhece, que sempre é necessário falar da encarnação de Cristo no tempo passado e no

presente bem como no futuro: ‘desde a eternidade [Cristo] nasce, sempre nasce.’”211 Ou

seja, assim como o protótipo do Deus encarnado fez, isso deve ser exemplar para que se

repita estes gestos de encarnação na história presente, levando a um comprometimento ético

com a cidadania e com a busca pela paz.

Este processo que foi defendido por Lutero transforma a perspectiva com que se en-

cara as boas ações em favor do próximo, uma vez que estas se diferenciam das obras da lei.

As obras da lei seriam o cumprimento de uma série de legislações religiosas com o objetivo

209 “they are not self-serving but neighbor serving. Therefore, it is the Christian, not the self-justifying sinner,

who, by allowing God through faith to define her spiritual and worldly identity, is alone free to work for

others' sake.” MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of Law, Justice, and Justi-

fication in Luther's Thought”. In: The Harvard Theological Review. Cambridge University Press; Havard

Divinity School. Vol. 100, no. 3 (July), p. 363-386, 2007. Disponível em

<http://www.jstor.org/stable/4495123>. Acesso em 18/11/2014. p. 369. 210 LUTERO, Martinho. Da Ceia de Cristo – Confissão. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 4:

Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1993. p. 287. 211 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 43.

Page 74: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

74

de se alcançar a salvação, seja por meio dos próprios méritos, ou pelos méritos que a igreja

Católica clamava ter por causa dos santos que haviam vivido e que garantiam, a validade

das indulgências plenárias que eram promulgadas. Nesse sentido, Iwand afirma que as

“obras da lei, em suma, quando [Lutero] inverteu toda a ordem do processo de formação do

homem na justificação: não nos tornamos justos por nos exercitarmos no agir, mas inversa-

mente só a partir do ser apreendido na fé o agir se torna possível.”212 Inversão entre a obra e

a fé, a obra passa a ser uma consequência da fé, e não um motivo de justificação do ser hu-

mano frente ao Criador.

A questão da encarnação é tão fundamental porque a soteriologia cristã evoca o fato

que o Cristo tomou o lugar do ser humano quando encarnou, mas, muito pouco se evoca o

contrário deste evento, o ato que a humanidade, em especial àqueles e àquelas que evocam

ao Cristo encarnado como exemplo, devem ter em também seguir os passos que ele teve,

isto é, encarnar-se em favor do bem comum. Isso porque “para o Reformador, a falha na

velha pergunta era que nela Cristo se tomou nosso lugar, mas nós não tomamos o dele. Isso

significa que a justiça podia ser feita por nós, mas não em nós. Para Lutero, isso é um so-

fisma.”213 Porquanto não faz sentido apenas um dos lados assumir sua parte, ambos deveri-

am comprometer-se, segundo o raciocínio do reformador na interpretação de Westhelle.

Inclusive, Lutero chega a dizer qual é a forma que Deus retribui uma boa obra no

livro Aos Pastores, Pra que Preguem contra a Usura, livro que ele enfaticamente conclama

os cristãos e cristãs a viverem uma vida digna e que valorize o bem, a paz e o amor entre

todos. Ele escreve: “assim diz Davi no Salmo 112,6: ‘o justo permanecerá em memória

eterna’. Deus jamais esquecerá uma boa obra cristã. Ele retribui as boas obras do mundo

aqui na terra, esquecendo-as depois.”214 Isso mostra que para o teólogo as boas ações são

atitudes desejadas, elas só não podem ser consideradas suficientes para efetuar a salvação.

Uma interpretação que se tornou bastante difundida e que tem suas limitações é a

cruz como sendo um instrumento de alienação. A cruz, pelo contrário deve apontar para o

envolvimento encarnado com o sofrimento do próximo, com uma humanidade que sofre que

212 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Tradução de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 56. 213 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 54. 214 LUTERO, Martinho. Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Por-

to Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 455.

Page 75: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

75

precisa de atos amorosos e que gerem paz e justiça; posto que “desde o século 4 tempos um

outro modo de evasão: a cruz era mais um símbolo de escárnio da piedade cristã; em vez

disso, ela representava o triunfo sublime, orgulhoso. A Reforma foi o momento em que se

desmascarou esse mecanismo de sublimação.”215 A cruz tem seu significado mudado de

sofrimento para glória, expondo assim, apenas um dos lados que ela representa, gerando,

desta forma, alienação. E essa não foi a mensagem defendida pelo protestantismo original

alemão, que deveria resgatar o caráter de sofrimento e comprometimento ético que a cruz

traz.

Westhelle, estudioso luterano brasileiro, inserido dentro do contexto da teologia lati-

no-americana da libertação rememora que os teólogos demoraram a perceber o potencial

que a fé cristã tinha para a transformação da sociedade, pois, segundo ele, as ideias revolu-

cionárias de Marx geram uma saída que responde aos grandes questionamentos da era mo-

derna, questões estas que estão denunciadas em Nietzsche216 e racionalizadas em Hegel217,

“para Marx, havia uma alternativa prometeica: insurreição. A história não estava fechada. O

que pode ser imaginado poderia ser feito. Levou mais de um século para os/as teólogos/as

apoderarem-se da ideia. A ressurreição de Jesus foi uma insurreição.”218 O mesmo teólogo

latino-americano afirma que já na Confissão de Augsburgo219 está expresso que as boas

obras devem ser feitas para o louvor a Deus, e não para que o ser humano busque se auto-

justificar perante a divindade. “Nada pode dar a Deus glória maior do que sermos coopera-

dores e cooperadoras de Deus no cuidado e na administração deste mundo.” 220 Ou seja, a

mordomia cristã deve ser incentivadas se se ler atentamente aos escritos do reformador.

Existe uma parceria entre o ser humano e a divindade para cuidar e zelar de toda a

criação, e atitudes cristãs como amor, justiça e paz devem ser norteadores na busca por esta

215 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 73. 216 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi filósofo alemão que escreveu vários textos críticos sobre a

religião, a moral e a cultura de sua época. Seus escritos marcaram fortemente sua geração e ainda são funda-

mentais para a formulação do pensamento filosófico atual. 217 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um proeminente filósofo do século 19, principalmente por

desenvolver um sistema filosófico abrangente cujo objetivo era explicara relação sujeito – objeto através da

dialética. 218 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 85. 219 A Confissão de Augsburgo, em latim Confessio Augustana, é um documento central na reforma de Lutero, foi

uma reação à Igreja Católica e apresentado na Dieta de Augsburgo de 1530. 220 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 113-114.

Page 76: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

76

sociedade mais justa e fraterna. A diferenciação está no livro A Vontade Cativa onde Lutero

demonstra que Deus cria do nada, enquanto o ser humano trabalho para preservação e ma-

nutenção da vida, uma vez que “o dom da criação como nos foi dada: Deus ‘não atua em

nós sem nós, já que nos criou e preservou para que atuasse em nós e nós cooperássemos

com ele (...) Assim, é por nosso intermédio que prega, tem misericórdia dos pobres e conso-

la os aflitos.”221 Esta é a necessidade da cooperação entre Deus e a humanidade.

Ou seja, a participação cristã na estrutura social é motivada não somente pelo fato

que o Criador incentiva a participação no mundo secular, como será abordado no próximo

tópico deste capítulo, porém, especialmente, pelo amor que deve ser balizador das atitudes

cristãs. Pois “livres da debilitante autojustificação pelo ato justificador de Deus, os cristãos

só podem se dar ao luxo de ser altruístas e verdadeiramente capazes de amar.”222

Afinal, a vida de Lutero mostra não uma passividade frente as mais diversas situa-

ções que a vida o impõe, pelo contrário, ele sempre se posicionou e tentou atuar e influenci-

ar a sociedade de sua época, por mais que em diversos momentos ele tenha se equivocado

nesta tentativa.223 Sendo assim, Altmann afirma que “a justificação por graça mediante a fé,

independente das obras da lei, passa a produzir incessantemente novas boas obras, centradas

nas necessidades reais das pessoas.” 224 Gerando, portanto, uma prática de fé atuante e liber-

tadora.

2.3 Dois Reinos ou Dois Regimentos

Após a exposição acerca da justificação pela fé e o papel das boas obras no pensa-

mento de Lutero, é possível traçar um paralelo com a metáfora dos dois reinos que foi de-

senvolvida pelo autor alemão, e que vem sendo lida e relida ao longo dos últimos séculos. O

reformador viveu em um período bastante conturbado da história do Sacro Império, con-

221 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 113-114. 222 “Freed from debilitating self-justification by the justifying act of God, Christians alone can afford to be

selfless and are truly able to love.” MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of

Law, Justice, and Justification in Luther's Thought”. In: The Harvard Theological Review. Cambridge

University Press; Havard Divinity School. Vol. 100, no. 3 (July), p. 363-386, 2007. Disponível em

<http://www.jstor.org/stable/4495123>. Acesso em 18/11/2014. p. 370. 223 Cf. ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São

Leopoldo: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 88. 224 ALTMANN, Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: Edi-

tora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 36.

Page 77: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

77

forme já foi explicado anteriormente, período este cuja a intervenção da igreja Católica so-

bre a vida dos germânicos chegou a limites insustentáveis.

Uma das maiores intervenções do catolicismo na época foi a venda de indulgências,

que prometiam a salvação eterna para aqueles que as adquirissem, uma vez que estas tinha

por característica serem plenárias, sendo que “a indulgência contra a qual Lutero iria se le-

vantar tinha sido promulgada em 1506 e renovada em 1517. As somas recolhidas estavam

destinadas a financiar a construção da basílica de São Pedro em Roma. Uma percentagem

cabia ao arcebispo Alberto.”225 Esta grande venda de indulgências plenárias ocorria porque

o arcebispo Alberto de Mainz226, filho da importante família dos Hohenzollern, precisava

quitar dívidas com banqueiros alemães. Além de ser interessante também para a Sé romana,

que passava por uma grande reforma na Basílica de São Pedro. Mesmo “antes de 1517 Lute-

ro tinha emitido sinais, em particular nas pregações, de que nutria reservas a propósito das

indulgências. Sem rejeitar o princípio, ele cria que a busca de uma indulgência desferia um

duro golpe na sinceridade da penitência.”227 Pois para ele isso desvirtuava a franqueza que

deve existir quando o ser humano se chega a Deus pedindo clemência.

Frente a isso, Lutero começou a desenvolver a metáfora que, posteriormente, foi sis-

tematizada sobre a alcunha de Doutrina dos Dois Reinos. Para diferenciar qual deveria ser a

área de atuação dos príncipes foi que ele a designou como o regimento secular. E, a fim de

explicitar qual deveria ser o papel das autoridades religiosas foi que ele a denominou de

regimento espiritual. Seu objetivo, portanto, era de evitar desvirtuações da função do reino

espiritual, como acontecia no caso da venda de indulgências.

Esta restauração do governo temporal foi o cerne de seu pensamento políti-

co em toda a sua vida como um reformador. Embora esta carreira tenha

começado como um protesto contra a venda de indulgências em 1517, logo

depois se expandiu para um protesto geral contra a Igreja Romana, Lutero

(e seus companheiros reformistas) descobriram que, por causa da intensa

225 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 60. 226 Alberto de Mainz (1490-1545), também conhecido como Alberto de Brandemburgo, foi príncipe-

eleitor do Sacro Império Romano Germânico e administrador apostólico da diocese de Halberstadt. Ele acabou

se tornando uma figura emblemática da Reforma, pois para pagar o pallium da Sé de Mainz teve que recorrer

a empréstimos com a família de banqueiros dos Fugger, o que o motivou a pedir autorização ao papa Leão X

para que ele pudesse vender indulgências dentro de seus domínios. 227 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 59.

Page 78: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

78

oposição da igreja católica, uma reforma eficaz era impossível sem a ajuda

das autoridades seculares.228

Inclusive, em uma de suas obras, especificamente na carta que Lutero escreve À No-

breza Cristã da Nação Alemã, redigida no ano de 1520, marca o momento no qual o teólogo

alemão expõe suas ideias sobre o papado aos príncipes, e formula: “que o papa entregue

Roma e tudo que ele possui do império, livre nosso país de sua insuportável tributação e

extorsão, devolva nossa liberdade, o poder, os bens, a honra, corpo e alma e deixe um impé-

rio ser aquilo que caiba a um império.”229 Ou seja, de forma veemente mostra a insatisfação

que se tinha em relação ao controle constante que Roma exercia nesta região. E este é ape-

nas um dos momentos em que ele se dirige as lideranças da nação, pois o pensador alemão

diversas vezes se posiciona desta forma.230

É dentro deste escopo de forte e constante ingerência da Igreja Romana na vida do

Sacro Império que Lutero escreve seus documentos, os quais posteriormente serão organi-

zados e denominados de doutrina dos Dois Reinos, que visava distinguir o papel do reino

secular e da igreja. Por exemplo, em uma resposta que ele dirige a um defensor do papado,

o reformador vai enfatizar que o Reino de Deus não pode ser confundido com nenhuma ins-

tituição humana. O que difere frontalmente da visão de cristandade desenvolvido durante a

Idade Média, que acabou identificando quase que absolutamente o Reino de Deus com a

própria Igreja Católica sediada em Roma. Lutero afirma ser absurda esta concepção, pois

está se amalgamando uma realidade divina a uma instituição humana. Portanto, a cristanda-

de não poderia ser confundida de nenhuma maneira com Roma. 231

Sua sistematização, em certa medida, assemelha-se com a de Agostinho, pois Lutero,

inserido dentro desta tradição, também inclui todos os seres humanos dentro de dois tipos de

228 “This restoration of temporal government was at the core of his political thought for his entire career as a

reformer. Though this career began with protest against the sale of indulgences in 1517, and soon thereaf-

ter expanded into a general protest against the Roman Church, Luther (and fellow reformers) discovered

that because of the intense opposition from the church,effective reform was impossible without the aid of

secular authorities.” CARTY, Jarrett A. “Martin Luther’s Political Interpretat ion of the Song of Songs”.

In: The Review of Politics. University of Notre Dame. no. 73, p. 449–467, 2011. p. 450. 229 LUTERO, Martinho. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: LU-

TERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo:

Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989. p. 335-336. 230 Cf. DREHER, Martin. N. Introdução. In: LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe

deve obediência. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentos da Ética Polí-

tica, Governo, Guerra dos Camponeses, Guerra contra os Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Editora Sinodal;

Porto Alegre: Concórdia Editora. 1996. p. 79. 231 Cf. LUTERO, Martinho. A respeito do Papado em Roma contra o Celebérrimo Romanista de Leipzig. In:

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leo-

poldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989. p. 208.

Page 79: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

79

pessoas, cada uma serve a um senhor. Nas palavras do próprio Lutero no ano de 1525, ano

chave em que ocorrem as revoltas camponesas, diz que “existem dois reinos no mundo que

se combatem mutuamente, que num deles reina Satanás que, por isso, é chamado de ‘prínci-

pe do mundo’ por Cristo [João 12.31], e por Paulo, ‘Deus do presente século’ [2 Coríntios

4.4].”232 As citações bíblicas acabam por mostrar o que já se espera de um teólogo piedoso

daquela época, o seu sistema tem referência direta as passagens escriturísticas.

2.3.1 Desenvolvimento da Doutrina dos Dois Reinos

O desenvolvimento dessas metáforas que diferenciam o âmbito secular do campo

espiritual acabaram por gerar as mais duras críticas sobre o teólogo alemão. Alguns acusam

de Lutero ter sido muito conservador, outros por ele ter sido liberal demais. Mas indepen-

dente da corrente teológica defendida, um fator permanece, estas críticas advêm da teologia

dos Dois Reinos.233

Além disso, é necessário destacar que o reformador nunca sistematizou sua teologia

a tal ponto de formular um pensamento político coeso, escrito em apenas uma obra. Em esti-

lo semelhante ao de Agostinho, o teólogo alemão escrevia motivado pelas necessidades que

iam surgindo. Seu pensamento ético e político, na verdade, é baseado em um seleção de

várias obras nas quais ele aborda a temática. “Lutero jamais apresentou em nenhum lugar

uma ‘doutrina dos dois reinos’ de forma sistemática (...) Isto estaria em desacordo com seu

estilo teológico anti-escolástico, cheio de vida.”234 Conquanto, cada vez mais ao longo de

sua vida, em um período tão conturbado do Sacro Império, ele passou a ponderar sobre

questões que respondessem sobre o papel da igreja na sociedade.235

O teólogo germânico, assim, nunca organizou uma doutrina dos dois regimentos, is-

so se deve ao seu estilo de fazer teologia que difere do modelo escolástico de construção do

pensamento. Na verdade, “foi somente na década de 1930 que se fixou o uso da expressão

232 LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 4: Debates e

Controvérsias, II. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1993. p. 210. 233 Cf. WHITFORD, David M. “Cura Religionis or Two Kingdoms: The Late Luther on Religion and the State in

the Lectures on Genesis”. In: Church History. Cambridge University Press; American Society of Church His-

tory. Vol. 73, no. 1 (March), p. 41-62, 2004. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/4146598> . Acesso

em: 18/11/2014. p. 41. 234 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 13. 235 Cf. DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getú-

lio Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 13.

Page 80: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

80

‘doutrina dos dois reinos’. Isto ocorreu quando os luteranos alemães fizeram uso de uma

interpretação política da ‘doutrina dos dois reinos’ para justificar o nacional-socialismo.”236

Esta formulação teológica foi utilizada neste período para justificar e apoiar, por parte de

alguns grupos, a ascensão nazista na Alemanha. Devido a essa associação com uma dos

momentos mais obscuros e terríveis da história recente da humanidade, a Doutrina dos Dois

Reinos vem estado sob constante suspeita.

Esta forma de concepção do mundo baseada na separação entre dois regimentos, a

propósito, remete a formulações medievais, em razão disso que “não foi Lutero que desen-

volveu o ensinamento sobre um governo espiritual e um secular de Deus (...) Guilherme de

Ockham237 o aprofundou e divulgou no século 14. Lutero recorreu a esse ensinamento sobre

os dois governos.”238 Lutero, dessa forma, fez uma diferenciação entre o que é espiritual,

que ele entende como de caráter interno; e o que é temporal, que é compreendido com ex-

terno.239 Ou seja, “Deus estabeleceu dois governos, o espiritual e o secular. (.. .) Este gover-

no secular serve para preservar a justiça secular externa (...) já o governo espiritual ajuda os

homens a alcançar a verdadeira justiça cristã e com isso a vida eterna,”240 na interpretação

que Althaus tem dessa concepção do teólogo da Reforma.

2.3.2 Regimento Espiritual ou Reino de Deus

Compreender a função e a diferenciação de esferas que existe nas metáforas acerca

dos Dois Reinos que são usadas por Lutero é um grande desafio. E Whitford ajuda a clarifi-

car esta distinção utilizando os vocábulos germânicos da formulação:

Contidos nesses dois reinos está à ideia de Lutero de Dois regimentos

(Zwei Regimente Lehre). Os dois regimentos são o outro lado da moeda

para os Dois Reinos. O primeiro (das Geistliche Regiment) é o regimento

espiritual da igreja exercido através da proclamação da Palavra de Deus e

236 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 15. 237 Guilherme de Ockham (1285-1347), também conhecido como Willian de Ockham, foi um fra-

de franciscano, filósofo, lógico e teólogo escolástico inglês, considerado como o representante mais eminente

da escola nominalista 238 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 50. 239 Cf. JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M.

Sander e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 50. 240 “God has established two governments, the spiritual and the secular. (...) This secular government serves to

preserve external secular righteousness (...) this spiritual government helps men to achieve true Christian

righteousness and therewith eternal life.” ALTHAUS, Paul. The Ethics of Martin Luther. Translated by

Robert C. Schultz. St. Louis; Philadelphia: Concordia; Fortress, 1972. p. 45.

Page 81: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

81

da boa administração dos sacramentos. O segundo (das Weltliche Regi-

ment) é o regimento mundano dos imperadores, governantes e governados,

que é regido pela lei e executado mediante a coerção. A responsabilidade

da esfera secular é limitar os efeitos do pecado e da prevaricação e, portan-

to, para garantir que os injustos não vão desenfreadamente oprimir os fra-

cos. 241

Mesmo fazendo-se esta discriminação entre o círculo de atuação entre os dois regimentos,

parece evidente que para o reformador, um regimento necessita do outro, ambos são com-

plementares entre si, numa relação de interdependência.242

Ou seja, para Lutero os dois Reinos se diferenciariam quanto à área de atuação. O de

Deus é cheio de benevolência, amor, justiça e misericórdia; já o do mundo é um “reino da

ira e severidade, visto que nele se castiga, repreende, julga, condena, para dobrar os maus e

proteger os justos. Por isso este possui e usa também a espada, e um príncipe ou um senhor

representa à ira de Deus, ou a vara de Deus, conforme Isaías 14.5.” 243 Isto é, ele entende

que o Reino do Mundo é onde se deve aplicar duras penas para se garantir a coesão social.

Inclusive, esta passagem citada se encontra na controversa Carta aberta sobre o livrinho

contra os Camponeses, na qual o reformador apoia abertamente que os príncipes podem e

devem usar seu poder secular para punir aqueles que se rebelam contra o estado e a ordem

pública. Em última instância, isso seria para ele uma revolta contra o próprio Deus.

Segundo Porter, Lutero tem pelo menos três usos das metáforas dos dois reinos. A

primeira, que interessa bastante este trabalho está diretamente ligada a sua origem como

monge agostiniano, pois nela ele diz que “seguindo Agostinho, Lutero usa os do is reinos

para expressar duas orientações radicalmente diferentes e dois amores, por exemplo, dois

241 “Contained within these Two Realms is Luther's idea of Two Governments (Zwei Regimente Lehre). The

Two Governments are the flip side of the coin to the Two Realms. The first (das geistliche Regiment) is

the spiritual government of the church exercised through the procla-mation of the Word of God and proper

administration of the sacraments. The second (das weltliche Regiment) is the worldly government of em-

perors, rulers, and ruled, which is governed by law and enforced by coercion. The responsibility of the

secular realm is to limit the effects of sin and malfeasance and thus to ensure that the unjust will not run

rampant over the weak and downtrodden.” WHITFORD, David M. “Cura Religionis or Two Kingdoms:

The Late Luther on Religion and the State in the Lectures on Genesis”. In: Church History. Cambridge

University Press; American Society of Church History. Vol. 73, no. 1 (March), p. 41-62, 2004. Disponível

em <http://www.jstor.org/stable/4146598> . Acesso em: 18/11/2014. p. 44-45. 242 Cf. ALTHAUS, Paul. The Ethics of Martin Luther. Translated by Robert C. Schultz. St. Louis; Philadelphia:

Concordia; Fortress, 1972. p. 59. 243 LUTERO, Martinho. Carta Aberta a Respeito do Rigoroso Livrinho contra os Camponeses. In: LUTERO,

Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentos da Ética Política, Governo, Guerra dos Cam-

poneses, Guerra contra os Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Ed-

itora. 1996. p. 347.

Page 82: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

82

tipos ‘ideais’ de existência”.244 A segunda, que vem sendo trabalhada de forma mais deta-

lhada neste capítulo, fala sobre a delimitação das responsabilidades, obrigações e fronteiras

que deve existir entre o estamento secular e o estamento eclesiástico. E, por fim, também

afirma que o reformador usa a doutrina dos Dois Reinos para iluminar as obrigações políti-

cas individuais. Isto é, o cristão e a cristã devem preencher sua função política neste mundo,

seja como governante ou como governado.245 Esta é uma forma bastante abrangente de en-

tender algumas das facetas possíveis na interpretação e compreensão do pensamento do teó-

logo alemão.

Sobre a primeira forma que Porter afirma ser possível de se interpretar o pensamento

de Lutero, observa-se nas palavras do próprio reformador no Da Autoridade Secular, até

que ponto se lhe deve Obediência: “temos que dividir os filhos de Adão e todas as pessoas

em dois grupos: uns que pertencem ao reino de Deus, os outros, ao reino do mundo. Os que

pertencem ao reino de Deus são todos os que, como verdadeiramente crentes, estão em Cris-

to e sob Cristo.”246 Nesse ponto, parece bastante que o pensador da Saxônia concorda em

grande medida com a interpretação que Agostinho dá as suas próprias metáforas de Cidade

de Deus e Cidade dos Homens.

Porém, a continuidade do escrito luterano já começa a expressar que existem dife-

renças significativas na forma como estes dois grandes teólogos concebem suas respectivas

metáforas, posto que Lutero afirma que os cristãos “não precisam de espada ou direito secu-

lar. E se todas as pessoas fossem cristãos autênticos, isto é, verdadeiros crentes não seriam

necessários nem de proveito príncipes, rei ou senhor, nem espada nem lei.”247 O poder secu-

lar existe, portanto, apenas devido as pessoas que não são consideradas pelo autor como

sendo ‘verdadeiros crentes’. Já que “ambos os governos foram estabelecidos por um único e

244 “following Augustine, Luther uses the two kingdoms to express two radically diferent orientations and loves,

i. e., two ‘ideal’ types of existence.” PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the

Peasant’s War”. In: Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. –

Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p.

394. 245 Cf. PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s War”. In: Journal of the

History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível

em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p. 394. 246 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 84. 247 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 85.

Page 83: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

83

mesmo Deus. Sendo que o governo secular existe por causa do pecado, ainda assim, ele não

tem a sua origem no pecado e não é uma cidade do diabo; ao contrário, é uma instituição

divina.”248 O que evita interpretações que desvalorizam o papel e a dignidade do poder se-

cular, como era comum ao longo da Idade Média coloca-lo como ordem inferior ao gover-

no espiritual, ou seja, ao governo eclesiástico.

Uma definição sucinta da forma como o Lutero entende os dois regimentos é que ele

diz que os “dois reinos e o duplo governo descrevem a dupla estratégia empregada por Deus

em sua luta na história contra os poderes do mal, bem como a cooperação receptiva e ativa

dos seres humanos e de suas instituições na recuperação do através da justiça.”249 Isto é,

ambos pertencem a divindade e servem aos seus propósitos de redimir a humanidade, eles

apenas atuam em áreas diferenciadas. No seu sermão sobre o Comércio e Usura Lutero sus-

tenta que “Deus instituiu a espada secular bem como o poder espiritual da Igreja, e ordenou

a ambas as autoridades a punir os maus e libertar os oprimidos, como ensina Paulo em Ro-

manos 13 e como é ensinado em muitas outras passagens, p. ex. Isaías 1,23ss. E Salmo

82,3s.”250 Essa e outras vezes, o reformador usou textos escriturísticos para assegurar suas

posições sobre o papel que o cristão e a cristã devem ter sobre a política.

No comentário que o reformador tece sobre o Magnificat251, presente no início da

obra o evangelista Lucas, ele mostra como a concepção que se tem do que é ‘servir a Deus’

tem tomado uma dimensão muito limitada, enfatizando-se apenas o aspecto litúrgico, con-

tudo, esquece-se do aspecto de serviço comunitário à sociedade, visto que se “compreende e

usa hoje a palavrinha ‘serviço de Deus’252 numa acepção tão imprópria que quem ouve não

pensa nas obras de Deus, mas no badalar dos sinos (...) cantamos o Magnificat diariamente

(...) silenciamos cada vez mais seu verdadeiro sentido e tom.”253 Pois se perdeu o sentido de

248 “both governments have been established by one and the same God. Even insofar as secular government

exists because of sin, it still does not have its source in sin and is not a city of the devil; rather, it is a di-

vine institution.” ALTHAUS, Paul. The Ethics of Martin Luther. Translated by Robert C. Schultz. St. Lou-

is; Philadelphia: Concordia; Fortress, 1972. p. 54. 249 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 70. 250 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 403. 251 Magnificat é a primeira palavra do Cântico de Maria presente no Evangelho de Lucas na Vulgata Latina:

“Magnificat anima mea dominum”, traduzindo, “minha alma engradece ao Senhor”. 252 No alemão Gottesdienst, que significa tanto o “serviço prestado a Deus”, como sendo o ato litúrgico do culto,

quanto o “serviço de Deus”, que é entendido como aquele que se presta a qualquer ser humano. 253 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

Page 84: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

84

que se serve a Deus quando se serve aos seres humanos, enfatizando-se, tristemente, apenas

o aspecto cúltico. Ao contrário do que o Cântico de Maria deve apontar, que é para o servi-

ço humilde e abnegado ao próximo e ao Deus Criador, assim como a própria Maria relatada

nos evangelhos o fez.

Sendo assim, todas as instituições humanas que existem servem ao Criador, e elas se

complementam. “Isto significa que, na opinião de Lutero, o duplo governo de Deus (espiri-

tual e temporal) e as instituições humanas empregadas para esta tarefa não se opõem um ao

outro de forma dualista nem são independentes, mas complementários e inter-

relacionados.”254 Esta é a complementariedade que existe entre os dois reinos ou dos dois

regimentos.

2.3.3 Regimento Secular ou Reino dos Homens

Após ser abordada a importância do regimento espiritual, também é importante des-

tacar a função da autoridade secular: “a primeira tarefa é seguramente a manutenção da paz,

ao mesmo tempo no plano interior (polícia) e no plano exterior (exército). Ao lado dessa

tarefa, a autoridade secular deve velar pelo direito, que evidentemente condiciona as rela-

ções sociais.”255 E também está dentro do escopo dele a preocupação com o todo da vida

social, seja na área econômica, ou mesmo cultural.

Realmente apesar de toda a dignidade que Lutero concede a este reino, ele sempre

faz a ressalva que este só se faz necessário porque os seres humanos são maus, e são muitas

as pessoas que não são verdadeiramente cristãs, não apenas no aspecto de se denominarem

pertencentes ao cristianismo, mas que de fato vivem e expressam os valores do evangelho

em suas vivências, uma vez que:

“Ao reino do mundo ou sob a lei pertencem todos os não-cristãos. Pois,

visto que são poucos os crentes e somente a minoria age como cristãos, não

resistindo ao mal, ou até não fazendo ela própria o mal, Deus criou para es-

ses, ao lado do estado cristão e do reino de Deus, outro regimento (Regi-

ment) e os submeteu à espada, a fim de que, ainda que o queiram, não pos-

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 71. 254 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 11. 255 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 218.

Page 85: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

85

sam praticar sua maldade e, caso a pratiquem, não possam fazer sem tre-

mor e em paz e felicidade.”256

Esta é a definição de Reino do mundo, ou dos homens, para Lutero. Onde fica evi-

denciado a posição do reformador que ele considera válido, e oriundo de Deus a punição,

que é expressa pela palavra ‘espada’, que aparece recorrentemente em sua formulações so-

bre a política e a ética. “O governo secular (...) se estende às coisas externas. Deve manter a

paz, o direito e a vida em proveito do bem comum. Aqui domina a razão, que pode reconhe-

cer os mandamentos de Deus e a justiça externa”257 Sendo que todo egoísmo humano, que

gera falta de escrúpulos deve ser controlado com o poder da espada, dos líderes do governo

secular.

Em diversos escritos o teólogo alemão endereça para lideranças de seu país que, em

geral, já tinha se associado aos princípios da Reforma Protestante. Na interpretação sobre o

Magnificat Dreher ratifica que o reformador espera “orientar, admoestar e alertar o duque e

a todos os governantes, pois Deus quer incutir nas autoridades temor a ele, para que não

confiem em si próprios. (...) O poder só existe como serviço em favor das pessoas que estão

confiadas ao que exerce poder.”258 Isto é, o governante deve entender que sua função é do-

tada de tanta dignidade quanto de um líder religioso, posto que ambos efetuam um propósito

divino na terra. Nesta obra Lutero admoesta o príncipe João Frederico259 da importância de

sua função, pois dela “depende o bem estar de muita gente, quando ele, subtraído a si mes-

mo, é governado pela graça de Deus (...) com isso Deus quer inculcar seu nos grandes se-

nhores, para que aprendam que não podem propor-se senão o que Deus lhes inspira especi-

almente.”260 Ou seja, se o governante busca ser guiado por atributos da bondade e justiça

divina, não só ele será beneficiado, mas uma grande quantidade pessoas será igualmente

favorecida.

256 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 86. 257 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 50. 258 DREHER, Martin N.. Introdução – Fundamentações da Ética Política. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra

contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 17. 259 Príncipe João Frederico I da Saxônia (1503-1554), duque da Saxônia, Landgrave da Turíngia e Margrave de

Meissen. Destacou-se como um dos líderes da Liga da Esmalcalda, aliança defensiva de príncipes protestan-

tes do Sacro Império Romano Germânico criada em 1531. 260 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 21.

Page 86: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

86

E o teólogo do século 16 continua em sua explanação sobre o Magnificat, mostrando

como detalhes desse texto, devem ser usado pelos príncipes para norteá-los a um melhor e

mais justo governo. “Por isso não diz: ‘eu enalteço a Deus’, mas ‘minha alma’, como se

quisesse dizer: minha vida com todas as minhas faculdades se move no amor de Deus, em

louvor e grande alegria, de modo que, deixando de ser dona de mim mesma.”261 Lutero faz

uma comparação entre a expressão dita por Maria a como deve ser a vida e o pensamento

executado pelos príncipes, eles devem ser humildes e buscar sabedoria, luz e direção em

Deus para que saibam guiar com equidade e justiça seus respectivos territórios.

Dentro desta mesma perspectiva, ele ressalta que uma das principais características

que um líder do regimento secular deve ter é a humildade, já que o reformador diz: “traduzi

a palavra humilitas com ‘nulidade’ ou ser ‘insignificante’. Portanto, Maria quer dizer o se-

guinte: Deus contemplou a mim, pobre, desprezada, e insignificante moça. (...) Laçou, po-

rém, seu olhar sobre mim por pura bondade.”262 Maria é, mais uma vez, exemplo para os

príncipes pois ela é uma mulher que tem consciência de sua própria pequeneza, posto que é

Deus quem opera tudo, por meio e devido sua bondade e graça para com os seres humanos.

Este deve ser o espírito que os líderes e príncipes devem ter frente a si próprios, de que exe-

cutam e lideram não porque são merecedores das mais altas honras, mas porque são agraci-

ados por Deus para por meio de seus governos exaltarem ao Criador.

Desta maneira, o poder secular deve proteger os habitantes sob seu governo contra

perigos, é por esta causa que ele “carrega a espada: para impor temor aos que não se sujei-

tam a este ensinamento divino e deixam os demais em paz e sossego. Nisto também não

procura seu próprio proveito, mas o proveito do próximo e a honra de Deus.”263 Enfim,

marcando o caráter que esta interpretação do Cântico de Maria tem em auxiliar o príncipe

João Frederico na condução de seu governo, Lutero diz no final desta obra qual foi o objeti-

vo de escrevê-lo acerca dessa temática: “para que vossa alteza principesca tenha um exem-

plo para este sermão e crie uma consoladora confiança na graça de Deus, a fim de que per-

261 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 26. 262 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 37. 263 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 59.

Page 87: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

87

maneçam as duas coisas: o temor e a sua misericórdia (...) que seja encomendada a Deus

para um bom governo.”264

A argumentação do reformador, entretanto, a favor do direito que os governantes do

poder secular têm em usar a força, não fica restrita apenas a este comentário sobre o texto

mariano. Ele se encontra em várias outras obras, sendo que o dito no Da Autoridade Secular

merece especial destaque, pois ele fundamenta que as autoridades têm “o direito e a espada

secular para que ninguém duvide que ela existe no mundo por vontade de Deus. As palavras

que as fundamental são Romanos 13,1-2: ‘toda alma esteja submissa ao poder e à autorida-

de; pois não há poder que não seja de Deus’.”265 Este texto paulino da epístola de Romanos

é um dos mais recorrentemente utilizados pelo teólogo alemão para sustentar a necessidade

e o íntegro uso que a ‘espada’ secular pode ter.

Neste mesmo escrito reafirma que o líder secular, não deve se considerar acima do

bem e do mal, mas, por outro lado, deve se perceber dependente e constantemente buscar

orientação divina sobre como deve conduzir sua função, “um príncipe também deveria por-

tar-se cristãmente em relação a Deus, isto é, deve submeter-se a ele em total confiança e

pedir-lhe sabedoria para bem governar, como o fez Salomão.”266 E evoca o clássico exem-

plo bíblico do rei Salomão para embasar sua argumentação.

Lutero mantém também, em grande medida, a ideia medieval de cristandade. O que

ele discorda é do fato de se identificar esta realidade com alguma instituição na história, isso

porque aquelas pessoas “que vivem a verdadeira fé, daqueles que, crendo nas mesmas ver-

dades, encontram-se unidos (...) por laços íntimos e secretos que tecem, de coração a cora-

ção, de espírito a espírito, uma comunhão profunda dentro das alegrias espirituais.” 267 Con-

sequentemente, a igreja invisível, que se identificaria com o Reino de Deus, diferencia-se

em grande medida da Igreja visível, que pode ser identificada com o papa. Em outras pala-

vras, é a comunhão entre os santos que tece esta concepção de igreja. Devido a esta e outras

264 LUTERO, Martinho. O Magnificat. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Funda-

mentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social.

São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 77-78. 265 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 82 266 LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 112. 267 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estre-

las. 2012. p. 185.

Page 88: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

88

elaborações, que Lutero combate com veemência a posição corrente em seu período de que

era necessária uma cega submissão ao papado. Isso porque nenhuma igreja pode ser consi-

derada absoluta e infalível.268

À vista disso, é necessário fazer a ressalva que para o reformador alemão, não era

problemática a relação entre igreja e Estado, como aconteceu após o advento do Iluminis-

mo:

“Lutero nunca abandona o mundo político à autoadministração autônoma;

em vez disso, ele constantemente se esforça contra a autoglorificação dos

príncipes e o mau uso do governo secular. Ele adverte fortemente dizendo

que as consciências dos políticos devem estar em conformidade com a von-

tade de Deus. A emancipação dos governos políticos de qualquer preocu-

pação moral religiosa não tem a sua fonte na Martinho Lutero, mas no Re-

nascimento.” 269

Pode-se dizer que o teólogo nunca pretendeu criar uma autonomia entre igreja e Es-

tado, pois como já foi dito anteriormente, ele se insere dentro da lógica de pensamento ainda

medieval de cristandade. O que o autor propõe é que os Dois Reinos deveriam atuar de for-

ma a se complementar, um ajudando ao outro. Esta é a visão do teólogo luterano contempo-

râneo Walter Altmann, que escreveu um livro intitulado Lutero e Libertação no qual ele

busca conciliar as ideias de Lutero com a possibilidade de transformação social defendida

pela teologia latino-americana. À vista disso, é construída a ideia de que os escritos lutera-

nos que remetem a doutrina dos Dois Reinos não remetem, necessariamente, a alienação.

Pelo contrário, eles podem remeter a práticas libertadoras, caso sejam lidos de forma atenta,

cito: “cabia à autoridade política efetuar reformas políticas, econômicas e sociais que afe-

tassem também a igreja. E competia a esta confrontar as autoridades políticas com a vontade

de Deus. Pois os assim chamados ‘dois reinos’ se distinguem em atribuição e meios, mas se

cobrem em espaço.”270

268 Cf. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três

Estrelas. 2012. p. 186. 269 “Luther never abandons the political world to autonomous self-administration; rather, he constantly strug-

gles against the self-glorification of the princes and their misuse of the secular government. He clearly

admonishes the consciences of politicians to conform to the will of God. The emancipation of political

governments from any moral concern does not have its source in Martin Luther but in the Renaissance.”

ALTHAUS, Paul. The Ethics of Martin Luther. Translated by Robert C. Schultz. St. Louis; Philadelphia:

Concordia; Fortress, 1972. p. 82. 270 ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopol-

do: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática. 1994. p. 161.

Page 89: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

89

2.4 Lutero e as Revoltas Camponesas

Se a justificação pela fé é um dos pontos centrais da teologia de Lutero e a doutrina

dos Dois Reinos é um dos tópicos mais controversos da formulação de seu pensamento polí-

tico, sem sombra de duvidas, o posicionamento do reformador frente às Revoltas Campone-

sas que ocorreram nos entornos do ano de 1525 é o evento mais controverso da história do

teólogo alemão. Isso porque suas posições explicitam opiniões e argumentos do autor que

foram utilizados para justificar a matança de milhares de camponeses rebelados contra o

Sacro Império; “embora o debate tenha diminuído, essa discussão sobrevive na busca de

saber se o grande reformador religioso poderia ter sido tão cruel e desumano, sendo capaz

de defender a supressão sangrenta dos camponeses.”271 Tendo em vista que a Revolta Cam-

ponesa vem sendo reinterpretada de diversas formas ao longo dos séculos.

Os motivos que justificam tamanha rebelião e celeuma que ocorreu na Alemanha no

final do primeiro quarto do século 16 são muitos. No entanto, merece destaque o fato que as

taxações e tributações, as mesmas que vinha sendo observada há muitos anos, chegavam a

números exorbitantes, o que gerava caba vez mais dificuldade tanto aos camponeses quanto

as classes mais subalternas dos centros urbanos. “Em particular, os camponeses foram ame-

açados pelo aumento da tributação, da imposição do direito romano e aplicação de conceitos

de propriedade privada, que severamente limitaram o uso comum de prados, bosques e ria-

chos.”272 O resultado disso foi que grandes massas populacionais não conseguissem arcar

mais nem com o básico para a sobrevivência. Esses são alguns dos motivos das revoltas

camponesas, as severas condições deploráveis que eram enfrentadas pelos mais humildes

das regiões germânicas.

Na Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso escrita aos príncipes

no ano de 1524, já estavam presentes orientações sobre como eles deveriam proceder frente

as revoltas que estavam começando ocorrendo na Alemanha, “por isso

271 “Although the debate has softened this discussion survives in the form of the question as to whether the great

religious reformer could have been cruel and inhumane enough to advocate the bloody supression of the pea-

sants.” ARNAL, Oscar L. “Luther and the Peasants: A Lutheran Reassessment”. In: Science & Society. Vol.

44, n. 4 (Winter), p. 443-465, 1980-1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/40402275>. Acesso

em 14/11/2014. p. 443. 272 “In particular, the peasants were threatened by increased taxation and the imposition of Roman law and priva-

te property concepts which severely limited their common use of meadows, woods, and streams.” PORTER,

J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s War”. In: Journal of the History of

Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível em <

http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p. 395.

Page 90: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

90

V. A. P.273 não pode cochilar e vacilar nessa questão. Deus vai cobrá-lo e exigir prestação

de contas sobre o uso permissionário e a seriedade da espada confiada. Nem perante o povo

e o mundo seria desculpável V. A. P.”274 O que com muita clareza, evidencia a posição de

Lutero sobre como os governantes do regimento secular deviriam proceder frente as rebe-

liões.

E prossegue dizendo: “se quiserem fazer algo mais que esgrimar com a palavra, se

quiserem usar a violência, bater e quebrar, aí

V. A. P. deve intervir, sejam eles ou nós, expulsá-los do território (...) nada de usar a vio-

lência; isso é nosso ofício; ou então, saiam do território.”275 Quando falava acerca de justifi-

cativas teológicas que os camponeses faziam para embasar seu direito a rebelião, o reforma-

dor evoca a separação entre a função do regimento terreno e a do regimento espiritual, re-

lembrando aos príncipes que são eles que tem a égide sobre o poder secular, e não os cam-

poneses rebelados. “Pois nós, que lidamos com a palavra de Deus, não devemos usar a vio-

lência física. É a luta espiritual que arranca os corações e as almas do poder do diabo (...)

nosso ministério é pregar e tolerar, não usar violência e lutar.”276 Reafirmando, assim, a

separação que já foi destacada entre regimentos feita em parte anterior dessa dissertação.

Esta é uma parte do reformador, que como já foi dito, extremamente controversa,

devido à virulência com que, aparentemente, ele permite a ação das autoridades seculares

para extirpar toda e qualquer tipo de rebelião. Lutero vai defender, evocando a separação

entre os poder espiritual e secular, que o papel do religioso é pregar e sofrer, com isso ele se

opunha ao “incêndio da capela de Mallerbach por partidários de Müntzer277 em 24 de março

de 1524 (...) Ele via sua tarefa em buscar imitar os apóstolos e conquistar corações com a

273 Vossa Autoridade Principesca. 274 LUTERO, Martinho. Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 291. 275 LUTERO, Martinho. Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 296. 276 LUTERO, Martinho. Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso. In: LUTERO, Martinho.

Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Campone-

ses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 296-

297. 277 Thomas Müntzer (1490-1525) foi um dos primeiros teólogos alemães a aderir a Reforma Protestante do sécu-

lo 16. Porém, ele também se tornou um dos mais proeminentes líderes das Revoltas Camponesas e foi captu-

rado, torturado e morto devido seu envolvimento nesta rebelião. Tornou-se no final de sua vida forte opositor

de Lutero, devido ao alinhamento deste ser favorável aos príncipes. Para maiores informações: BLOCH,

Ernst. Thomas Müntzer - Teólogo da revolução. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário, 1973. E

também: GRITSCH, Eric. Reformer without a Church: Thomas Müntzer, Philadelphia: Fortress Press, 1967.

Page 91: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

91

palavra de Deus. Para ele o que importava era a salvação de almas”278 Essa é a interpretação

empregada por Junghans a esta postura do teólogo da Saxônia.

2.4.1 Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas

Dito que a posição de Lutero frente às Guerras Camponesas está entre as mais ques-

tionadas sobre a história do reformador, faz-se necessário introduzir a obra que detêm a fa-

ma de ser a mais complexa do autor sobre a temática, o documento Contra as Hordas Salte-

adoras e Assassinas dos Camponeses escrita em 1525. Nela o teólogo “desenvolve e racio-

naliza (justifica) a tese de que é preciso eliminar (mesmo que pela força) os camponeses

rebelados contra as autoridades (príncipes e nobres) na Alemanha do século 16.”279 Justifi-

cativas estas, que foram colocadas em prática pelos príncipes protestantes, o que gerou um

custo de milhares de vidas.

O reformador entendia que era função dele como líder religioso, pregador da palavra

de Deus, advertir os governantes do Sacro Império a se posicionarem contrários e implacá-

veis em relação as rebeliões. Em outras palavras, “Lutero queria convencê-lo [o chanceler]

acerca da necessidade e da legitimidade de enfrentar os camponeses rebelados fazendo uso

da força (...) [pois] além de ter acompanhado a escalada da violência quando de sua estadia

na Turíngia,”280 foi informado de que em outras partes da Alemanha as negociações com os

rebelados também não estavam avançando.

Logo no início desde pequeno documento endereçado aos príncipes protestantes, o

teólogo alemão expõe qual é o objetivo de sua obra:

já que esses camponeses e gente miserável se deixam seduzir e agem dife-

rente daquilo que haviam falado, vou ter que, em primeiro lugar, escrever

diferente deles e mostrar-lhes seu pecado, como Deus ordenou a Isaías e a

Ezequiel, para que, porventura, alguns caiam em si; em segundo lugar, te-

nho que instruir a consciência da autoridade secular para saber que atitude

tomar no caso.281

278 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 46. 279 DITTRICH, Ivo José. “O discurso de Lutero contra os camponeses: retórica da ação”. In: Antares. Caxias do

Sul, vol. 4, no. 8, p. 111-124, julho/dezembro, 2012. Disponível em

<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/1407/1161>. Acesso em 29/11/2014. p. 112. 280 RIETH, Ricardo. Introdução – Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras

Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses –

Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 330. 281 LUTERO, Martinho. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleciona-

das. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra con-

Page 92: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

92

O alvo do reformador era sensibilizar as autoridades sobre os perigos das terríveis conse-

quências que as atitudes dos camponeses poderiam ter para o futuro do Império.282 E essa

tese que o produto das rebeliões seria terrível, por sua vez, estava baseada em três pecados

que os camponeses cometeram que foram descritos por Lutero.

O primeiro pecado que eles cometeram foi à desobediência às autoridades, porquanto

“juraram fidelidade e reverência a suas autoridades, bem como submissão e obediência,

como Deus o ordena quando diz: ‘dai a César o que é de César’ (Lucas 20,25), e em Roma-

nos 13: ‘todo homem esteja sujeitos às autoridades superiores’.”283 Este era, segundo o teó-

logo, primeiro grande erro cometido pelos que participavam das rebeliões, já naquela altura,

Guerra dos Camponeses.

Já o segundo pecado era promover a rebelião, posto que eles “assaltam e saqueiam

escandalosamente conventos e castelos que não lhes pertencem, pelo que, como notórios

assaltantes e assassinos, já merecem a morte duas vezes em corpo e alma.”284 E o reforma-

dor completa de forma ainda mais veemente: “se houver provas, qualquer rebelde já está

proscrito por Deus e pelo imperador, de maneira que quem primeiro pode e quer exterminá-

lo, age certo e faz bem.”285 Nessa afirmação fortíssima, percebe-se o porque deste documen-

to ter um caráter tão polêmico.

E o terceiro pecado, segundo o teólogo da Saxônia, é que os rebelados abusam do

evangelho, pois “acobertam esse terrível e horripilante pecado com o Evangelho, dizendo-se

irmãos cristãos”286 Ou seja, o fato de que alguns líderes dos camponeses, como Müntzer,

eram teólogos e formulavam eles também suas justificativas teológicas para suas ações, o

que foi considerado por Lutero um erro grave e pecaminoso.

tra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 332. 282 Cf. DITTRICH, Ivo José. “O discurso de Lutero contra os camponeses: retórica da ação”. In: Antares. Caxias

do Sul, vol. 4, no. 8, p. 111-124, julho/dezembro, 2012. Disponível em

<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/1407/1161>. Acesso em 29/11/2014. p. 118. 283 LUTERO, Martinho. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleciona-

das. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra con-

tra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 332. 284 LUTERO, Martinho. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleciona-

das. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra con-

tra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 332. 285 LUTERO, Martinho. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleciona-

das. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra con-

tra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 332. 286LUTERO, Martinho. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleciona-

das. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra con-

tra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 333.

Page 93: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

93

Porter afirma acerca destas alegações do teólogo alemão dizendo, que para o refor-

mador, os rebelados “têm quebrado o mandamento de Cristo por violar seu juramento de

obediência à autoridade temporal. Segundo, eles começaram uma rebelião e causaram todos

os horrores da guerra. Terceiro, encobrem este terrível pecado de rebelião com o evange-

lho.” 287 Estes são, os argumentos principais deste controverso escrito luterano. Isto é, a

forma de pensar baseada na separação entre dois reinos, ou regimentos, levou o proeminente

teólogo a condenar a atuação dos camponeses, e a justificar a necessidade de os punir por

meio dos mais extremos meios que pudessem ser usados pelos líderes seculares.288 E “tem-

se, assim, um elemento a mais para favorecer a tese de que a rebelião camponesa deveria ser

sufocada, ainda que implicasse o uso da força. A ação precisaria, no entanto, ser legitimada

em bases éticas, jurídicas e religiosas.”289 Papel este que foi desempenhado por Lutero em

seus escritos aos príncipes.

287 “First, the peasants have broken Christ’s commandments by violating their ‘oath of obedience’ to the tempo-

ral authority. Second, they started a rebellion and caused all the horrors of war. Third, they cloak this horrible

sin of rebellion with the gospel.” PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Pea-

sant’s War”. In: Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.),

p. 389-406, 1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p. 398. 288 PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s War”. In: Journal of the

History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível

em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p. 400. 289 DITTRICH, Ivo José. “O discurso de Lutero contra os camponeses: retórica da ação”. In: Antares. Caxias do

Sul, vol. 4, no. 8, p. 111-124, julho/dezembro, 2012. Disponível em

<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/1407/1161>. Acesso em 29/11/2014. p. 119.

Page 94: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

CAPÍTULO III

AGOSTINHO E LUTERO EM DIÁLOGO

3.1 Iluminação Trinitária em Agostinho e a influência do

Nominalismo em Lutero

É necessário destacar as diferenças que existem entre as formas de compreensão de

mundo entre Agostinho e Lutero, pois neste longo período de muitos séculos que os sepa-

ram não foram poucas as interpretações e reinterpretações do pensamento do autor patrísti-

co. Inclusive Lutero foi um destes autores que se utilizou do pensamento do bispo de Hipo-

na ao seu próprio modo, porém, não apenas repetindo-o, e justamente nestas inovações e

releituras que se encontra a criatividade das ideias do reformador alemão.

Agostinho tem uma forma de interpretar os eventos que ocorrem no mundo por meio

da iluminação divina nas criaturas, sendo que “o estudo sobre o tema da iluminação é dos

mais instigantes na obra de santo Agostinho. De fato, versa sobre a ação divina em todas as

criaturas e ganha maior complexidade ao considerar o homem.”290 Posto que nesta forma de

290 AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011. p.

17.

Page 95: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

95

se entender como o conhecimento é obtido concebe-se que é o próprio Deus que ilumina

diretamente todas as criaturas, inspirando para que se capte as mais diversas realidades que

se encontram no mundo. “O auxílio divino opera como inspiração iluminando o homem e,

assim como a luz física torna visíveis as coisas, a luz de Deus proporciona a visão da Ver-

dade imutável e o gozo da Sabedoria, a partir dos quais a alma julga.”291 Esta é a forma co-

mo uma das maiores especialistas brasileiras na temática sumariza a concepção agostiniana.

No que se refere a forma como Agostinho constrói seu pensamento filosófico-

teológico, entende-se que a divina iluminação é a atuação de Deus em tudo aquilo que foi

criado, tendo como pressuposto que a divindade é a luz que ilumina todas as criaturas, “por-

tanto, em linhas gerais, trata-se de uma ação unilateral em que o agente só pode ser Deus, e

ele tem como correlato o universo criado. Ademais, será preciso adequar esse panorama à

definição de que Deus é Trindade; Deus é Luz; a Trindade é Luz.”292 E baseada nesta com-

preensão de um Deus triúno está alicerçada o desenvolvimento da epistemologia agostinia-

na.

Esta doutrina de Agostinho da iluminação está baseada na influência neoplatônica,

especificamente, em suas leituras em Plotino, conforme já foi abordado anteriormente nesta

dissertação. Na própria obra sobre A Cidade de Deus o destaque que o pensador de Hipona

concede ao pensamento platônico é notório. Ele chega a afirmar que Platão293 uniu o melhor

que havia em sua época, tanto no que diz respeito ao pensamento que ele denomina de ativo

quanto àquilo que existia de melhor na reflexão contemplativa, pois “atribui-se a Platão a

glória de ter unido uma à outra levando a filosofia à sua perfeição. Dividiu-a ele em três

partes: a moral, que trata da ação; a natural, que se confina à contemplação; a racional que

distingue o verdadeiro do falso.”294 Este excerto mostra com clareza o destaque que o bispo

norte africano tinha pelo pensador de Atenas. E completa dizendo:

291 AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011. p.

133. 292 AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação trinitária em Santo Agostinho. São Paulo: Paulus, 2011. p.

163. 293 Platão (428 a.C. – 348 a.C.) foi uma filósofo, matemática e pensador do período clássico da Antiga Grécia.

Foi o autor de diversas obras filosóficas e fundador da Academia de Atenas. Foi aluno de Sócrates e profes-

sor de Aristóteles. Ele ajudou a construir os alicerces da filosofia e da ciência ocidental. Sua influência é no-

tada ao longo da Antiguidade, passando pela Idade Média e chegando até aos dias atuais. 294 “Proinde Plato utrumque iungendo philosophiam perfecisse laudatur, quam in tres partes distribuit: unam

moralem, quae maxime in actione versatur; alteram naturalem, quae contemplationi deputata est; tertiam rati-

onalem, qua verum disterminatur a falso.”AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus VIII, 4. Tradução de J.

Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 709-710.

Page 96: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

96

Talvez, de fato, aqueles que com mais agudez e verdade compreenderam

Platão, filósofo tão acima de todos os dos gentios, e adquiriram uma maior

fama ao tornarem-se seus discípulos, tenham de Deus essa concepção: é

n’Ele que se encontra a causa da existência, a razão da inteligência e a re-

gra da vida – três aspectos que se relacionam: o primeiro com a parte natu-

ral da filosofia, o segundo com a parte racional e o terceiro com a parte

moral.295

Demonstrando, assim, que para Agostinho o pensamento platônico, que ele conheceu por

meio do neoplatônico Plotino, é o mais completo porque em sua interpretação ele pode ser

usado para que se aponte para a relação entre a divindade e as criaturas. Em outras palavras,

ele faz uma releitura do escritor grego lendo-o segundo pressupostos cristãos.

Por muitos séculos o pensamento do teólogo de Hipona foi dominante até que nos

séculos 12 e 13 Aristóteles296 foi redescoberto no ocidente pela influência, sobretudo, dos

árabes na península Ibérica. Então, em plena Idade Média “será por intermédio dos árabes –

com a conquista da região do Mediterrâneo e da Península Ibérica – que a obra aristotélica

voltará a ser lida na Europa, mas já traduzida para o árabe e para o hebraico.”297 Desta ma-

neira, durante este período a obra do Estagirita voltaria a ser lida.298

Neste período subsequente da história o autor que teve maior destaque foi Tomás de

Aquino299, que assimilou a filosofia de Aristóteles e colocou elementos da teologia cristã

nela. O interessante é que “sempre que a doutrina agostiniana da iluminação se encontra em

questão, São Tomás assimila os textos litigiosos e os conduz à sua própria opinião com uma

sutileza às vezes desconcertante, como se sua posição já estivesse completamente tomada e

295 “Platonem ceteris philosophis gentium longe recteque praelatum acutius atque veracius intellexisse ac secuti

esse fama celebriore laudantur, aliquid tale de Deo sentiunt, ut in illo inveniatur et causa subsistendi et ratio

intellegendi et ordo vivendi; quorum trium unum ad naturalem, alterum ad rationalem, tertium ad moralem

partem intellegitur pertinere.”AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus VIII, 4. Tradução de J. Dias Pereira.

4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 710-711. 296 Aristóteles (384 a.C – 322 a.C) foi um importante e destacado filósofo grego. Seu pensamento teve grande

influência durante a Antiguidade e após sua redescoberta no Ocidente, tornou-se o principal influenciador das

filosofias que vieram a ser desenvolvidas. Seus escritos falam sobre as mais diversas temáticas do pensamen-

to humano, e sua abrangência vai desde textos teológicos que se baseiam em seu pensamento, como é o ex-

poente Tomás de Aquino, até as ciências em geral. 297 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia

das Letras, 2002. p. 341. 298 Cf. DE BONI, Luis Alberto. A entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. Porto Alegre: EST Edi-

ções/Editora Ulisses, 2010. 299 Tomás de Aquino (1225 d.C.- 1274 d.C.) foi um frade dominicano, cujas obras tiveram uma impactante

influência na teologia e na filosofia, em especial na Escolástica. Seu pensamento influencia até os dias atuais

a doutrina de diversas igrejas cristãs, sobretudo, a Igreja Católica Apostólica Romana, e ele refletiu de temá-

ticas que concernem a ética, a lei natura, metafísica, teoria política. Sua obra mais famosa é a monumental

Suma Teológica.

Page 97: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

97

definida.”300 Ou seja, ele lia Agostinho com uma visão que discordava do pensamento e das

construções teológicas do bispo de Hipona, mas, evita conflitar frontalmente.

Em outras palavras, a reflexão de Agostinho na baixa Idade Média foi lida via Aris-

tóteles, sendo que o maior expoente deste período é o dominicano Tomás de Aquino. O des-

taque é necessário, pois o próprio Agostinho, tinha formulado suas construções baseado em

uma leitura cristã neoplatônica cujo eixo está mais na concepção do que propriamente do

que em uma dependência da experiência. Ou seja, a experiência é caminho para a concepção

centrada no espírito humano, na interioridade.

Para Agostinho as realidades criadas compreendem uma concepção que tem sua ori-

gem no intelecto divino e na realidade divina. O conhecimento humano, assim, dá-se por

participação no intelecto da Trindade. Isso difere substancialmente o pensador antigo, tanto

de Tomás de Aquino, quanto de Lutero. Por isso em seu pensamento as palavras e as com-

parações têm um valor de verdade. O bispo de Hipona pensa a realidade como sendo alcan-

çado pela razão. É possível organizar teologicamente a razão, posto que toda a criação res-

ponde a inteligência divina.

A teoria agostiniana da iluminação permite que a linguagem esteja a serviço do inte-

lecto, ela não é o intelecto, mas está ao seu serviço, pois ajuda a compreender as coisas cri-

adas. Já Tomás trabalha com outra perspectiva. As coisas para o Aquinate trazem elas mes-

mas elementos para a interpretação humana. Funciona por meio de abstração, cria-se o con-

ceito das coisas e isso é posto em linguagem. A análise das coisas, o funcionamento delas é

feito por meio do sensível, e este é um fator determinante para o conhecimento. Em Aquino

o começo sempre é sensível. Já para Agostinho o sensível é apenas uma ocasião, que não é

determinante.

O agostinianismo forjou profundamente o caráter da igreja medieval e não somente

durante a Idade Média. Na própria Idade Moderna o monge agostiniano Martinho Lutero

reconduziu as ideias de Agostinho ao destaque, quando “devido a requisitos de interiorida-

de, autonomia e segurança da fé, mudou a forma e o conteúdo do dogma decretado em Ni-

ceia para mudar a doutrina da apropriação da graça.”301 Neste processo de assimilação do

300 GILSON, Étienne. Por que São Tomás criticou Santo Agostinho / Avicena e o ponto de Partida de Duns

Escoto. Tradução de Tiago José Risi Leme. São Paulo: Paulus, 2010. p. 6. 301

“por exigencias de interioridad, autonomia y seguridad de la fe, cambió la forma y el fundamento de los

dogmas decretados en Nicea al cambiar la doctrina de la apropriación de la agracia.” DILTHEY, Wilhelm.

Page 98: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

98

pensamento de Agostinho, Lutero “permaneceu com atitude negativa em relação teísmo

religioso universal, ao abrigo de suas suposições nominalistas. (...) O íntimo processo da fé

encontra sua expressão e seu campo de ação na conformação de toda a ordem exterior da

sociedade.”302 E Lutero, por sua vez, tem forte influência nominalista303 em seu pensamen-

to, apesar de ser considerado um autor que retoma, em grande medida, o pensamento do

antigo bispo de Hipona. Isto é, o reformador utilizou-se das ideais de Agostinho lendo-as

com uma ótica do nominalismo do final da Idade Média. Opondo-se desta maneira, ao pen-

samento escolástico vigente de Tomás de Aquino.

O pensamento de Lutero enfatiza que só a palavra e a fé governam a alma, o que é

típico do nominalismo: “a presença da palavra de Deus na alma do crente é uma experiência

indivisível, caracterizada pela confiança em Deus. ‘Só a palavra e fé governam a alma. Co-

mo é a palavra, a alma por ela’.”304 Uma obra que ajuda a compreender esta influência no-

minalista sobre o reformador é Lutero: comentador das Sentenças, no qual Vignaux estuda

os comentários que Lutero fez à obra de Pedro Lombardo.305 Este livro mapeia a influência

que esta corrente de pensamento tem sobre o reformador.306

Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. Traducción Eugenio Ímaz. Cidade do México: Fondo de Cul-

tura Económica, 1944. p. 66. 302

“Y si Lutero se mantuvo em actitud negativa frente al teísmo religioso universal, a cubierto de sus supues-

tos nominalistas (...) el íntimo processo de la fe encuentra su expresión y su campo de acción em la con-

formación de todo el orden exterior de la sociedade.” DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos

XVI y XVII. Traducción Eugenio Ímaz. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1944. p. 69. 303 Nominalismo é uma corrente filosófica surgida no século 11 por meio de Roscelino de Compiègne. Ele atri-

buía universalidade aos nome, daí se origina seu nome. O nominalismo é uma doutrina segundo a qual as

ideias gerais, como gêneros ou espécies, não passam de simples nomes, sem realidade fora do espírito ou da

mente. A única realidade são os indivíduos e os objetos individualmente considerados. Já no segundo período

da filosofia escolástica medieval, que começou no século 13 com santo Alberto Magno e santo Tomás de

Aquino, prevaleceu a posição do realismo moderado. O nominalismo reviveu mais tarde, no século 14, com o

filósofo inglês Guilherme de Ockham. Para este, todo conhecimento se baseia na experiência sensível, de

que, por abstração, extraímos as ideias gerais, de que se servirá a ciência. Ockham ensinava que qualquer ci-

ência é ciência só de proposições e de proposições enquanto são conhecidas. Todos os termos dessas propo-

sições são só conceitos e não substâncias externas. O nominalismo dos séculos 14 e 15 não é ortodoxo em re-

lação à teoria escolástica tomista, mas, em compensação, favorece o estudo das ciências naturais. Esta última

fase do nominalismo, por meio de autores do final da Idade Média e início da Idade Moderna, como Gabriel

Biel, acabou por influenciar a construção e formulação do pensamento do reformador Martinho Lutero. 304

“la presencia de la palabra de Dios en el alma creyente es una experiencia indivisible, caracterizada por la

confianza em Dios. ‘Sólo la palabra y la fe gobiernan el alma. Así como es la palabra, así el alma por ella.”

DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. Traducción Eugenio Ímaz. Cidade do

México: Fondo de Cultura Económica, 1944. p. 69. 305 Pedro Lombardo (1100 d.C. – 1160 d.C) foi um filósofo escolástico e bispo de Paris por breve período do

século 12. Sua obra mais famosa é intitulada As Sentenças, onde é feita uma compilação de escritos bíblicos,

patrísticos e de autores expoentes da Idade Média. Este estilo ganhou prestígio e muitos autores que o suce-

deram, fizeram comentários sobre suas obras, dentre eles Tomás de Aquino, Duns Scoto, e o próprio Lutero. 306 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie

Philosophique J. Vrin, 1935.

Page 99: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

99

Foi no seu período de formação universitária em Erfurt que Lutero entrou em contato

com o pensamento nominalista, “como teólogo, ele vai explicar as Sentenças; para isso, ele

faz uso de grandes comentadores dos séculos 14 e 15, Gabriel Biel307 e o cardeal d’Ailly,

Ockham e Duns Escoto. Ele também lê santo Agostinho,” 308 sendo que as obras que mais o

influenciaram neste período foi A Trindade e A Cidade de Deus, que foi abordada anterior-

mente. Nesta obra na qual ele faz comentário as Sentenças de Pedro Lombardo o teólogo

alemão começa dizendo que não irá, em princípio, abolir o uso da filosofia em sua interpre-

tação teológica.309

A inovação de Lutero em relação ao seu período histórico está, no campo da ética e

da moral, ligado ao fato de que não é na Ética a Nicômaco310 de Aristóteles que busca os

balizadores destes assuntos, como vinha sendo feita ao longo da Escolástica deste a reentra-

da do Estagirita no ocidente. Mas é nas obras de Agostinho, sobretudo, em A Cidade de

Deus e no A Trindade311que o reformador vai buscar pressupostos para sua construção teo-

lógica, embora ele o faça com a influência de leituras nominalistas que o ajudam a balizar

sua interpretação.312 Segundo o reformador não se pode ser plenamente feliz a não ser que

esta felicidade esteja embasada na esperança da vida em função da morte. “O problema da

salvação está além da ética aristotélica. Esta é a vida eterna – ou a morte eterna: seria não

compreender a experiência de Lutero não insistir neste aspecto.”313

307 Gabriel Biel (1420 – 1495) foi um filósofo e teólogo alemão. Formado em Heidelberg e Erfurt. Seu pensa-

mento se insere dentro da escola nominalista, sobretudo, uma continuação da obra de Duns Escoto e Gui-

lherme de Ockham. Ele também desenvolveu trabalhos comentando as Sentenças de Pedro Lombardo. Foi li-

do por Lutero em Erfurt, e acabou por influenciar a forma como Lutero desenvolveu suas ideias. 308

“A Erfurt, il est théologien: il va expliquer les Sentences; pour ce faire, il disoise des grands commenta-

teurs du XVe ou du XIVe siècle, Gabriel Biel et le cardinal d’Ailly, Occam et Scot. Il lit aussi saint Au-

gustin.” VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie

Philosophique J. Vrin, 1935. p. 6. 309 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 8. 310 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 4ª ed. São Paulo: Abril

Cultural, 1991. (Os pensadores; vol, 2) 311

AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. de Frei Agustinho Belmonte, O.A.R. São Paulo: Paulus, 1994. 312 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 11-12. 313 “Le problème du salut se situe au delà de l’éthique aristotélicienne. Il s’agit d’une vie éternelle, - ou d’une

mort éternelle: ce serait méconnaître l’expérience de Luther que de ne point insister sur le second as-

pect.”VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Phi-

losophique J. Vrin, 1935. p. 13.

Page 100: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

100

Faz-se necessário destacar os pontos principais do nominalismo. Esta foi uma cor-

rente filosófica que surgiu no contexto da Escolástica, criticando alguns das principais vi-

sões do grupo que seguia, por exemplo, a Tomás de Aquino:

“O final do século XIII e o inicio do século XIV viram aparecer sínteses

doutrinais de grande estilo, como as de Duns Escoto e Guilherme de

Ockham (...) o que é verdade, no caso dos homens dessa geração, é que

eles pensaram, inevitavelmente, em função dos da geração precedente,

aceitando algumas posições e criticando outras.”314

O que conta são as coisas na sua realidade, e a possibilidade das coisas. O possível está li-

gado ao poder, a palavra poder é essencial para o nominalista, porque o que importa para

esta corrente não é à força do nome, o que interessa para o nominalista é quem determina o

poder. E neste caso em que o poder é o determinante, no que se refere a mais força e menos

limitações, apenas Deus é absoluto, posto que ele tem a possibilidade de exercer qualquer

atividade, tem a potentia absoluta Dei, diferentemente das outras criaturas que tem si limi-

tações inerentes.315 Um dos maiores expoentes desta corrente de pensamento foi “João Duns

Escoto (...) que seguiu as grandes linhas do pensamento platônico-agostiniano, aproximan-

do-se ou afastando-se de Aristóteles, conforme o caso.”316 Ou seja, para o nominalista im-

porta o poder criador de Deus e o poder com limitações do ser humano. Logo, para o nomi-

nalista a criatura é incapaz de amar ou adorar uma divindade simplesmente pela sua própria

força, sem ajuda externa e de outros.317

No nominalismo enfatiza-se as coisas criadas e não os conceitos gerais como se eles

fossem substâncias. Para Lutero, influenciado pelas ideias nominalistas, a palavra de Deus

escapa a plena compreensão humana. Ou seja, ela está ligada a potência de Deus – potentia

Dei. Tudo se define pela palavra de Deus. Se no conhecimento da ciência humana existem

palavras relativas, na palavra de Deus existe a orientação para a salvação. Habitualmente na

exposição das análises nominalistas da justificação da potencia absoluta, coloca-se aqui o

ponto de vista da potentia ordinata, que recebe em Gabriel Biel um desenvolvimento que

será lido por Lutero em seu tempo de formação em Erfurt. É nesta referência que se destaca

314 GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,

1995. p. 735-736. 315 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 20. 316 GARCIA, Antônio (org.). Estudos de Filosofia Medieval: a obra de Raimundo Vier. Petrópolis; São Paulo:

Vozes; Universidade São Francisco, 1997. p. 215. 317 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie

Philosophique J. Vrin, 1935. p. 28.

Page 101: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

101

a importância para os nominalistas da ideia do possível, isto é, a concepção de quem tem a

possibilidade de realizar ou não atividades e atos.318

Outra coisa que é típica do nominalista é o voluntarismo. Ter o poder e a possiblida-

de de executar, estas são palavras relacionadas. Além disso, a vontade também é um concei-

to importante que é usado por Lutero. Posto que para ele a vontade do ser humano está cor-

rompida. A vontade livre provem apenas de Deus. “Há uma Justiça que resiste a todas as

críticas de voluntarismo: é a fidelidade às promessas.”319 Não é pelo mérito do ser humano

que se pode executar todas as coisas, mas é por Deus, laus propie Deo debetur. No nomina-

lismo a liberdade divina é exaltada.320

Uma das obras da reforma que melhor destaca a opinião de Lutero em relação a co-

mo atua a liberdade divina e como atua a liberdade humana é o clássico livro Servo Arbítrio,

no qual o reformador combate e responde as ideias do humanista Erasmo de Roterdã. E o

modo como o reformador faz esta oposição de ideias é fruto de suas concepções agostinia-

nas, que por sua vez, passaram pelas leituras nominalistas do teólogo alemão.

Lutero cita as Escrituras bíblicas para combater o humanista holandês. Isso se dá

porque as Escrituras seriam, em sua opinião, palavra absoluta, “para sustentar essa opinião

de Paulo em Romanos 11: ‘ó profundidade das riquezas da sabedoria e do conhecimento de

Deus!’ E também o profeta Isaías no capítulo 40: ‘quem ajudou o Espírito do Senhor, quem

foi seu conselheiro?’”321 Nestas passagens bíblicas citadas o teólogo da reforma mostra esta

concepção de que a palavra divina é absoluta, e por conseguinte, autoridade acima de qual-

quer raciocínio humano independente. E completa afirmando que: “Assim, a palavra de

Deus e tradições humanas lutam entre si com uma discórdia implacável, igualmente Deus e

318 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 47. 319

“Il y a une Justice qui resiste à toutes les critiques du volontarisme: c’est la fidélité aux promesses.”

VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie

Philosophique J. Vrin, 1935. p. 48. 320 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 51. 321

“para esa opinión aquel texto de Pablo, Romanos 11: ‘!oh profundidad de las riquezas tanto de la sabiduría

como del conocimiento de Dios!’ y también el de Isaías 40: ‘?quién ayudó al Espíritu del Señor, o quién

fue su consejero?’” LUTERO, Martinho. De servo Arbitrio (La volutad determinada). Trad. Erich Sexau-

er. Buenos Aires: Escudo; Paidós, 1976. p. 44.

Page 102: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

102

Satanás combatem um ao outro.”322 Em adição a esta ideia: “resoluções humanos e palavra

de Deus não podem ser vistas em conjunto, porque aquelas prendem as consciências, en-

quanto estas libertam.”323

Portanto, para Lutero Deus é potentia absoluta, já a criação é uma potentia ordinata.

A criação perdeu a dominação direta de Deus e se desordenou com o pecado, a ordenação

do mundo é precária. E nesta ordenação pobre, as duas cidades – ou dois regimentos - vão

ser pensadas por Lutero como sendo as duas subordinadas ao poder absoluto de Deus. Mas a

cidade terrena está submetida a várias fraturas, limitações impostas pelo pecado. Então, um

chefe cristão deve governar buscando o máximo possível a paz. Logo, no pensamento do

reformador isso garante aos cristãos uma chance de viver a fé na sociedade terrena. Não é

possível ao cristão viver plenamente a felicidade por causa das fraturas e limitações. Mas,

de certa forma esta ordenação já mostra uma prévia do que poderá ser a bendição futura

onde não haverá mais limitações.

Ou seja, Lutero é marcado pelo nominalismo em sua leitura de Agostinho. O nomi-

nalismo tem a ver com como se estabelece o poder. É uma inversão de Aristóteles porque a

ênfase não está mais no ato, mas na potência. Aristóteles tende a manter como determinante

o que foi realizado, o ato. Enquanto no nominalismo é potência que tem destaque. A cidade

de Deus e a cidade dos homens – ou regimento de Deus e dos homens – tende a ser lido pela

questão do poder, do poder que está em jogo. Esta é a importância dos governantes cristãos,

pois eles têm o poder de fazer o bem, de salvaguardar a paz. Cada cristão vive a possibilida-

de da graça mesmo na cidade terrena, “o poder do livre-arbítrio é muito limitado, é uma

força que, sem a graça de Deus é totalmente ineficaz.”324 Não porque o governante cristão

seja bom por si próprio, mas porque ele pode buscar seguir os desígnios divinos.

A Idade Média fez releituras de Agostinho para fortalecer o poder central da igreja,

já Lutero fez uma releitura usando princípios nominalistas em Agostinho. O que na verdade

conta é no que estabelece as possibilidades das coisas. O poder do ser humano, do rei, é

322 “Así, la palabra de Dios y las tradiciones humanas luchan entre sí com implacable discórdia, de igual ma-

nera como Dios mismo y Satanás conaten uno al outro.” LUTERO, Martinho. De servo Arbitrio (La volu-

tad determinada). Trad. Erich Sexauer. Buenos Aires: Escudo; Paidós, 1976. p. 74. 323

“resoluciones humanas y palabra de Dios no pueden observarse juntamente, porque aquéllas atan las con-

ciencias, y ésta las desata.” LUTERO, Martinho. De servo Arbitrio (La volutad determinada). Trad. Erich

Sexauer. Buenos Aires: Escudo; Paidós, 1976. p. 76. 324

“la fuerza del libre albedrío como muy lmitada, y como fuerza que sin la gracia de Dios es totalmente

ineficaz.” LUTERO, Martinho. De servo Arbitrio (La volutad determinada). Trad. Erich Sexauer. Buenos

Aires: Escudo; Paidós, 1976. p. 77.

Page 103: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

103

relativo, posto que o único absoluto venha do poder divino. A vontade é determinante no

nominalismo, apesar de que Lutero muda a interpretação destes autores do final da Idade

Média, uma vez que para ele o voluntarismo está determinado pelo mal, pois a boa vontade

no ser humano só pode ser recuperada na boa articulação entre a vontade humana e a graça

de Deus que atua nas criaturas. O nominalismo de Lutero faz com que ele seja contra a filo-

sofia, mas a filosofia para ele não é o nominalismo, é a escolástica e seus representantes,

como Tomás de Aquino, por exemplo. Posto estas explicações sobre as influências que exis-

tiram sobre o pensamento do reformador alemão, é possível tratar como ele desenvolveu

suas leituras de Agostinho, entendendo-se, desta forma, a ótica que instigou suas leituras.

3.2 A Cidade de Deus em Agostinho e o Reino de Deus em

Lutero

Agostinho desenvolve as metáforas das Duas Cidades baseadas sempre em sua práti-

ca pastoral. Ele escreve a partir das inquietações que surgiam ao seu redor em seu tempo de

pastorado no norte da África, algumas destas questões não surgiam de sua própria cidade

paroquial, mas surgiam de outras localidades e até mesmo de além-mar, já que eventos que

ocorriam na península itálica tinham forte influência em todas as áreas que estavam dentro

do Império Romano.

E é ainda nos primeiros anos após sua conversão, na obra sobre A Verdadeira Reli-

gião, que já começa a aparecer esta temática. Um pouco adiante, no exercício de seu epis-

copado ele encontrou a necessidade de fornecer um bom material que pudesse ser utilizado

para instruir os novos cristãos, inquietação que deu origem a obra A Instrução dos Catecú-

menos325. Esta temática nas obras do antigo bispo é “esboçada em 390 no De vera Religio-

ne, e repetida no De catechizandis rudibus, o tema das duas cidades é uma dos primeiros

pensamentos teológicos de Agostinho formado.”326 Ela encontra-se associada a sua prega-

ção, combinando interpretação de textos bíblicos em que ele elucida acerca do primeiro ho-

325 AGOSTINHO, Santo. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática da catequese. 2. ed. Petrópolis: Editora

Vozes, 2005. 326

“esquissé dès 390 dans le De vera Religione, repris avec fermeté dans le De catechizandis rudibus, le

thème des deux cités forme l’une des données premières de la pensée théologique d’Agustin.” LAURAS,

A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint Augustin.” In. H. Rondet; M. Le

Landais; A. Lauras; C. Couturier. Études Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953. p. 101.

Page 104: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

104

mem dos relatos bíblicos: Adão. E ela é tomada de forma a apontar para a metáfora do cor-

po místico de Cristo na terra.

Esta metáfora das duas cidades originalmente é tomada da interpretação que o pen-

sador norte africano oferece sobre o Salmo 26, quando ele opõe as cidades de Jerusalém e

Babilônia, construindo todo um sistema metafórico de pensamento que se baseia no fato que

existem dois grupos de pessoas, cada um associado a uma cidade. Nesta explanação sobre o

“Salmo 26, Agostinho opõe Jerusalém e Babilônia. Uma ou outra são nossa mãe, apesar de

serem completamente diferentes uma da outra. Elas se opõem entre Satanás, pai dos pecado-

res, e Deus, pai dos justos.”327 E nesta diferenciação traçada entre aqueles que seguem sua

própria vontade, e os que seguem a vontade do criador, que Agostinho embasa este tema:

É certa cidade, chamada Babilônia. É constituída pela sociedade de todos

os perdidos do oriente ao ocidente. Possui ela os reinos da terra. Nesta ci-

dade acha-se certa república, que agora como presenciais, está decrépita e

decadente. Foi ela nossa primeira mãe, pois nela nascemos. Viemos a co-

nhecer outro pai, Deus, e abandonamos o diabo. Quando este ousará apro-

ximar-se daqueles que foram adotados por aquele que está acima de todas

as coisas? Viemos também a conhecer outra mãe, a Jerusalém celeste, a

santa Igreja. Uma porção dela peregrina na terra. Deixamos Babilônia.328

Neste excerto da obra agostiniana se observa como a interpretação do autor se fortalece,

utilizando sempre das metáforas bíblicas para construir as suas próprias, que segundo ele,

nada mais seriam do que uma forma de se entender os desígnios divinos para a humanidade.

É neste desenvolvimento das metáforas da Cidade de Deus e Cidade dos Homens

que o ocidente, de forma mais especial o cristianismo ocidental, entrou em contato com a

ideia de uma teologia da história, ou filosofia da história como foi sendo desenvolvido ao

longo dos séculos. Posto que foi com “a Cidade de Deus de santo Agostinho que o cristia-

nismo verdadeiramente toma consciência do conceito próprio de história na sua originalida-

327 “psaume 26, Augustin oppose Jérusalem et Babylone. L’une et l’autre sont notre mère, mais combien diffé-

remment. Elles s’opposent entre elles comme Satan, père des pécheurs, et Dieu, Père des justes.” LAURAS,

A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint Augustin.” In. H. Rondet; M. Le Lan-

dais; A. Lauras; C. Couturier. Études Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953. p. 110. 328 “Est quaedam civitas, quae Babylonia dicitur: civitas ista, societas est omnium perditorum ab oriente usque in

occidentem; ipsa habet regnum terrenum. Secundum hanc civitatem respublica quaedam dicitur, quam modo

videtis senescere et minui: haec prima fuit mater nostra, in hac nati sumus. Cognovimus alium patrem,

Deum; reliquimus diabolum. Quando enim audet accedere ad eos, quos ille suscepit qui superat omnia? Cog-

novimus aliam matrem, Ierusalem coelestem, quae est sancta Ecclesia, cuius portio peregrinatur in terra: reli-

quimus Babyloniam.” AGOSTINHO, Santo. Comentário aos Salmos 26, II, 18. Tradução Monjas beneditinas

Mosteiro de Maria Mãe do Cristo. São Paulo: Paulus, 1997. (Patrística 9/1). p. 262-263.

Page 105: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

105

de paradoxal: a história sagrada é feita de começos absolutos que são eternamente concedi-

dos.”329

Isso acontece porque o bispo antigo entende que o método que é peculiar de se com-

preender não somente a história da igreja cristã, mas a história universal dá-se por meio da

aplicação de princípios bíblicos a sua formulação teológica do que é história, e o “primeiro

exemplo mostra-nos a teologia da história. Ela consiste na aplicação de princípios bíblicos

àquelas questões que as Escrituras não tinha explicitamente falado sobre.”330 Ou seja, mes-

ma em questões que não são desenvolvidas de forma mais clara pela Bíblia, o autor concebe

que é possível encontrar resoluções que ajudam na forma como as pessoas devem viver.

Existem autores que interpretam que Agostinho associava a Cidade de Deus com a

igreja, apesar de durante esta pesquisa, não ser feita esta abordagem, pois apesar de ser pos-

sível se fazer esta leitura do pensador de Hipona, preferiu-se por optar por uma compreen-

são que não encerra a Cidade de Deus apenas a igreja, posto que se entende que isso seria

limitar a visão do autor apenas a uma das facetas possíveis. Daniélou afirma que “para

Agostinho, a história da cidade de Deus coincide com a da Igreja, e a da cidade de Satanás,

corresponde ao poder político, e estas são bastante diferentes e até opostas entre si.”331 Dis-

corda-se dessa interpretação e busca-se enfrentar esta posição de uma das grandes autorida-

des do século 20 no pensamento do bispo norte africano por meio de excertos do próprio

antigo pensador.

Merece destaque, para tal, a obra da Cidade de Deus, que vem sendo o livro que

mais constantemente é usada para se entender o pensamento do hiponense nesta dissertação.

Logo no primeiro livro deste monumental escrito encontra-se a seguinte afirmação:

É bom que ela não esqueça que até entre os seus inimigos se ocultam al-

guns dos seus futuros concidadãos (...) até ao dia em que ela os acolherá

como crentes. Do mesmo modo sucede que a cidade de Deus, durante a sua

peregrinação pelo mundo, conta no seu seio com pessoas a si unidas pela

329 “C’est avec la Cité de Dieu de saint Augustin que le christianisme prend vraiment conscience de as con-

ception propre de l’histoire dans son originalité paradoxale: l’histoire saint est faite de commencements

absolus qui restent ensuite éternellement acquis.” DANIÉLOU, Jean. Essai sur Le Mystère de L’Histoire.

Paris: Editions du Seuil, 1953. p. 11. 330

“Ce premier example nous montre bien la méthode de la théologie de l’histoire. Elle consiste à appliquer

les principes bibliques à des questions auxquelles l’Ecriture ne les avait pas explicitement appliqués.”

DANIÉLOU, Jean. Essai sur Le Mystère de L’Histoire. Paris: Editions du Seuil, 1953. p. 11. 331

“Pour saint Augustin, l’histoire de la cité de Dieu, que coincide avec celle de l’Eglise, et celle de la cité de

Satan, qui correspond aux puissances politiques, sont tout à fait distinctes et même opposées.” DANI-

ÉLOU, Jean. Essai sur Le Mystère de L’Histoire. Paris: Editions du Seuil, 1953. p. 21.

Page 106: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

106

comunhão dos sacramentos que não partilham com ela a herança eterna dos

santos. Alguns mantêm-se escondidos; outros são conhecidos.332

Neste excerto observa-se um trecho que frontalmente se opõe a ideia que muito se difundiu

na Idade Média, e que até os dias atuais tem seguidores, de que Agostinho associava a Ci-

dade de Deus como pertencente a uma determinada agremiação de pessoas que se reúne

sobre a tutela de uma igreja. E afirma algo ainda mais preciso e duro, quando assegura que

mesmo dentro daqueles que participam da comunhão dos sacramentos acham-se pessoas

que não pertencem, de fato, a Cidade Celestial. E completa que o oposto também é válido,

que se deve ter paciência mesmo com aqueles e aquelas que parecem ser inimigos, pois

muitos dentre eles podem vir a serem futuros concidadãos dos que pertencem a Cidade de

Deus.

A ideia que merece maior destaque nesta pesquisa sobre o ponto de vista de Agosti-

nho no desenvolvimento destas metáforas é a concepção de que tanto a Cidade de Deus

quanto a Cidade dos Homens estão entrelaçadas no presente tempo da história, e que é im-

possível distingui-las, posto que esta separação só se efetivará no final dos tempos, em ou-

tras palavras, no futuro escatológico. Entende-se que um dos escritos de Agostinho que me-

lhor explicita esta realidade é: “quippe sunt istae duae civitates in hoc saeculo invicemque

permixtae, donec ultimo iudicio dirimantur”, que pode ser traduzido por: “de fato, no pre-

sente século estas duas cidades estão mutuamente entrelaçadas e mescladas uma na outra

neste século, até que no último juízo serão separadas.”333 Excerto este que já foi apresentado

na primeira parte desta pesquisa mas que merece novo destaque devido ao seu caráter cen-

tral para a dissertação. Ou seja, entende-se que para o antigo bispo as duas cidades, que re-

presentam duas categorias de seres humanos, estão invicemque permixtae, isto é, são insepa-

ráveis antes do devido tempo. Por mais que diversas vezes se tente absolutizar uma igreja

como sendo detentora e como contendo os cidadãos e cidadãs da Cidade Celestial.

Passando a interpretação metafórica dos Dois Regimentos de Lutero, que tem sua

origem nas metáforas das Duas Cidades de Agostinho, é necessário destacar que o reforma-

332 “Meminerit sane in ipsis inimicis latere cives futuros, ne infructuosum vel apud ipsos putet, quod, donec

perveniat ad confessos, portat infensos; sicut ex illorum numero etiam Dei civitas habet secum, quamdiu pe-

regrinatur in mundo, conexos communione sacramentorum, nec secum futuros in aeterna sorte sanctorum,

qui partim in occulto, partim in aperto sunt, qui etiam cum ipsis inimicis adversus Deum, cuius sacramentum

gerunt, murmurare non dubitant, modo cum illis theatra, modo Ecclesias nobiscum replentes.”AGOSTINHO,

Santo. A Cidade de Deus - I, 35. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

2011. p. 191. 333 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - I, 35. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calous-

te Gulbenkian. 2011. p. 191.

Page 107: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

107

dor não comete o equívoco da Idade Média, que foi o de confundir a Cidade de Deus com a

igreja católica. Porém, ele tende a identificar a cidade de Deus também com a atuação do

estado; posto que ele interpreta o bispo de Hipona enfatizando um pouco mais a ambiguida-

de do autor, evitando, desta forma, absolutizações da metáfora. Mesmo ainda tendo uma

mentalidade fortemente marcada pelo mundo medieval, e tendo como balizador de mundo a

ideia de cristandade, o pensador alemão avança – em consonância com Renascença – e bus-

ca nas origens, no mundo antigo, na patrística cristã e na Bíblia resposta para os dilemas de

sua própria época. Ele utiliza-se, assim, das Escrituras cristãs para traçar suas opiniões, lo-

gicamente, tendo como filtro diversas leituras, dentre as quais destacamos sua recepção das

ideias agostinianas, e as leituras nominalistas que marcam sua forma de interpretar os textos

escriturísticos.

E é possível identificar que Lutero tem, ao menos, três usos da interpretação da me-

táfora das Duas Cidades, que ele denomina de Dois Regimentos, como já vem sendo abor-

dado na pesquisa. A primeira forma é que mais está em consonância com o pensamento de

Agostinho que vem sendo trabalhado neste trabalho, posto que nesta maneira se entende que

“seguindo Agostinho, Lutero usa os dois reinos para expressar duas orientações radicalmen-

te diferentes e dois amores, por exemplo, dois tipos ‘ideais’ de existência” .334 A outra ma-

neira de se compreender a interpretação luterana do pensador de Hipona, que foi discutido

com bastante afinco no segundo capítulo, diz sobre a delimitação das responsabilidades,

obrigações e fronteiras que devem existir entre o que ele denominou de Reino de Deus e o

que ele chamou de Reino dos Homens. Uma última forma que também pode ser destacada

para entender a forma como o teólogo moderno compreende o bispo antigo é afirmando que

a doutrina dos Dois Reinos pode ser usada para iluminar as obrigações políticas do indiví-

duo. Ou seja, o cristão e a cristã devem preencher sua função política neste mundo, seja

como governante ou como governado. Esta é uma forma bastante abrangente de entender

algumas das facetas possíveis na interpretação e compreensão do pensamento do teólogo

alemão.335

334 “following Augustine, Luther uses the two kingdoms to express two radically diferent orientations and loves,

i. e., two ‘ideal’ types of existence.” PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the

Peasant’s War”. In: Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. –

Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p.

394. 335 Cf. PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s War”. In: Journal of the

History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível

Page 108: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

108

Para Lutero o estado tem a função de cumprir sua vocação, assim como a igreja tam-

bém deve cumprir a sua. Estes dois regimentos são igualmente importantes. Tanto em um

quanto na outra existe a ambiguidade do terreno com o espiritual. No presente século, para o

pensador alemão, separar o espiritual e o não espiritual é prematuro. Pois essa separação só

é feita escatologicamente, neste sentido, inclusive, ele se parece com Agostinho. O pensador

alemão faz uso de vários textos neotestamentários para justificar suas posições e opiniões

sobre o papel dos cristãos frente ao estado.

Ele destaca que Cristo manda seus discípulos darem “a César o que é de César” que

está presente nos Evangelhos sinóticos. Além de destacar as passagens das Escrituras em

que Paulo fala da obediência às autoridades estatais instituídas. O apóstolo dos gentios, des-

ta maneira na visão luterana, reforça a ideia de que ele é um cidadão romano, ao mesmo

tempo em que é um cidadão da igreja. Inclusive, na epístola de Romanos 13, conclama-se a

obediência às autoridades porque elas provem de Deus. Ou seja, o reformador se apropria

destes textos, para inverter a relação que se estabeleceu durante a Idade Média, onde a igreja

sobrepujava o estado; dizendo que o estado e sobre a igreja. Tanto a igreja medieval, que

buscava justificar seu poderio frente aos reis e senhores feudais, quanto Lutero, que visava

justificar a igreja perante João Frederico I, o sábio, acabaram por penderem ora para um

lado, ora para o outro. Não mantendo, assim, o caráter de ambiguidade que é tão próprio dos

textos de Agostinho neste assunto. É necessário, então, sempre tentar observar o uso da me-

táfora das Duas Cidades no bispo antigo em sua amplitude, e em sua abrangência. Buscando

manter sempre este caráter de ambiguidade que é próprio da obra do autor.

Para o pensador moderno do Sacro Império a doutrina medieval dos dois reinos não

pode ser interpretada por ele como supremacia da igreja sobre o estado, como se um fosse

mais importante do que o outro. Pois para ele Cristo não tem dois corpos na terra, um que

trate das questões das questões espirituais e outro das seculares, para ele Deus é o cabeça de

um corpo só, que se manifesta em dois estamentos, ou em duas esferas diferenciadas.336 E

no domínio secular, ainda, ele incentiva que existam leis contra vestido de luxo, e contra

toda a importação que gere, em sua visão, o empobrecimento constante de grandes massas

de população germânica. Tornando-se, assim, um veemente opositor de toda e qualquer

em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. 336 Cf. DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. Traducción Eugenio Ímaz. Cidade do

México: Fondo de Cultura Económica, 1944. p. 72.

Page 109: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

109

forma de enriquecimento que advenha da usura e de práticas de mercado que banalizem o

consumo de uma classe, em detrimento da outra.337

Pois para o reformador é necessário, em certo grau, sofrer um mal presente, pois não

é a superação do mal que traz a felicidade, é o fato de se ter esperança. É o estado do cristão

segundo a cidade de Deus. Para Lutero, assim, não são os males que determinam a felicida-

de do cristão, os males têm que ser tratados por uma questão prática. Curiosamente, Lutero

vai dizer que cabe aos governantes manter a melhor coesão social possível, e aguardar a

beatitude futura. A esperança é a questão decisiva em seu pensamento, e esta não pode se

realizar plenamente na cidade terrena.338 Ela é um momento que tem sua função a sua reali-

dade. Para ele é o filósofo que tem esperança na cidade terrena, lembrando-se da oposição

que ele tinha contra a escolástica. Mesmo assim, a cidade terrena é importante para fé, é o

lugar o cristão tem que viver e o governante tem que cumprir sua vocação de governar, pos-

to que ele proporciona as condições para que os cristãos e cristãs possam viver os males e os

bens da cidade terrena, mas sua fé está no amor e na graça de Deus.339 Sua esperança está na

cidade de Deus que aponta para uma realização escatológica.

3.3 Agostinho e Lutero: o ser humano e a busca pela paz

É indispensável entender que o ser humano para Agostinho e Lutero é um ser social.

Está absolutamente interligado a sua existência a necessidade de se relacionar com seus pa-

res. As metáforas das Duas Cidades, que poderiam ser chamadas de duas sociedades, estão

justamente nesta lógica. O homem e a mulher são seres sociais, em outras palavras, “é pre-

ciso também perceber e solidamente professar que a condição humana, e a condição cristã

não constitui exceção, é a de uma existência coletiva, socialis vita, como Santo Agostinho

frisou.”340

Inclusive, o livro XIX d’ A Cidade de Deus é dedicado e centrado na ideia de paz,

conceito sempre presente nas obras agostinianas. É importante para o pensamento do antigo

337 Cf. DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. Traducción Eugenio Ímaz. Cidade do

México: Fondo de Cultura Económica, 1944. p. 73. 338 Cf. VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII). Paris: Librairie Philo-

sophique J. Vrin, 1935. p. 12-13. 339 Cf. LAURAS, A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint Augustin.” In. H. Rondet;

M. Le Landais; A. Lauras; C. Couturier. Études Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953. p. 158. 340 MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da humanidade através da tempora-

lidade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 15.

Page 110: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

110

bispo a concepção de que mesmo que seja temporal, a paz no estado é necessária para os

cidadãos da Cidade Celestial. E mais do que isso, seus membros são obedientes às leis e aos

governantes.341 Mesmo a paz terrestre não sendo nem de perto parecida com a verdadeira

paz celeste, ela é útil aos propósitos do avanço do reinado de Deus.342

Além disso, tanto para Agostinho quanto para Lutero, a ideia de que o cidadão e a

cidadã da Cidade Celestial, ou do reino de Deus, necessariamente também são membros

atuantes da sociedade civil, posto que os deveres políticos são inerentes aos cristãos. Da

mesma forma é muito necessária a compreensão de que ser membro da Cidade de Deus não

exclui ninguém de seus deveres cívicos, pelo contrário, deve fortalecer a noção de que se

participa ativamente da vida social. “A questão sobre a natureza do dever político do cristão

que reconhece sua membresia na cidade Deus, e que também entende sua inescapável cida-

dania do Estado.”343 Nisso fica evidenciado que não é possível participar de uma sem estar

necessariamente imbricado na participação e atuação na outra. Não sendo saudável e nem

recomendável pela interpretação dos dois autores a alienação e não participação na vida

pública.

3.3.1 Agostinho: A socialis vita

A socialis vita – vida social – sustenta-se em seus escritos, quando ele mostra que a

vida social é própria das pessoas sábias, categoria esta tão cara à Filosofia. Portanto, o agos-

tinianismo sustenta que a vida das pessoas que pertencem a Cidade de Deus deve ser mar-

cada vivência social. Ou seja, não é possível se entender uma fé genuinamente identificada

com esta metáfora de forma isolada, pois a coletividade é conditio sine qua non para a vida

na Cidade Celestial, cito:

Querem que a vida do sábio seja uma vida social. Isso aprovamo-lo nós

muito mais que eles. Efetivamente, donde surgiria esta Cidade de Deus da

qual trata esta obra e cujo livro décimo nono temos em mãos , ou avançaria

341 Cf. LAURAS, A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint Augustin.” In. H. Rondet;

M. Le Landais; A. Lauras; C. Couturier. Études Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953. p. 150. 342 Cf. LAURAS, A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint Augustin.” In. H. Rondet;

M. Le Landais; A. Lauras; C. Couturier. Études Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953. p. 159. 343

“The matter for discussion is the nature of the political duty of a Christian who does recognize his mem-

bership of the city of God and also his inescapable citizenship of the State.” BROOKES, Edgar H. The

City of God and the Politics of Crisis. London; New York, Cape Town: Oxford University Press, 1960. p.

51.

Page 111: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

111

no seu desenvolvimento ou atingiria os fins que lhe são devidos, se a vida

dos santos não fosse uma vida social?344

Como já foi demonstrado anteriormente, em algumas ocasiões no pensamento medi-

eval, desenvolveu-se uma ideia de que a Cidade Celeste pudesse ser identificada com a cris-

tandade, asserção que não se sustenta pelas obras de Agostinho. Outro erro comum seria o

de identifica-la com a alguma nação ou confederação que tenha existido ou que possa existir

na terra, pois “a filosofia da história de Agostinho traçou um programa para a paz mundial.

Este plano não tem nada a ver com uma federação de nações, com pactos e ligas das nações

(...) a Cidade de Deus não é uma instituição política.”345

O que se vê nos escritos do teólogo antigo está muito mais na direção para que haja

uma reforma das instituições políticas. Esta tem que começar nos corações humanos, ou

seja, na vontade dos indivíduos que engendram a Cidade de Deus, uma vez que é “bastante

evidente que Agostinho chama é para uma reforma individual do coração humano, ao invés

de instituições políticas. Para uma sociedade mundial melhor, nós simplesmente precisamos

de homens melhores.”346

A verdadeira societas – sociedade – é fundada sobre o fato de pessoas que buscam

estar em um propósito comum, esta forma de viver em conjunto, comunidade de fé comum

realiza-se no “amor mútuo (diligere invicem), exige o homem por inteiro - ao contrário de

todas as comunidades mundanas, na medida em que estão cidades (civitates) que nunca iso-

lam senão uma determinação do ser, exige o homem por inteiro tal como Deus o exige.”347

Nesta explicação da filósofa e pensadora Hannah Arendt, que viveu no século 20, percebe-

mos uma rica leitura das implicações do pensamento agostiniano para a vivência em socie-

dade. Esta ideia de uma sociedade que se baseia em uma crença comum só é possível a par-

344 “Quod autem socialem vitam volunt esse sapientis, nos multo amplius approbamus. Nam unde ista Dei civi-

tas, de qua juius operis ecce iam undevicesimun librum versamus in manivus, vel inchoaretur exortu, vel

progrederetur excursu, vel appregenderet devitos fines, si non esset socialis vita sanctorum?” AGOSTINHO,

Santo. A Cidade de Deus XIX, 5. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

2011. p. 1891. 345

“augustine’s philosophy of history charted a program for world Peace.This plan has nothing to do with a

federation of nations, with internacional pacts and leagues of nations (...) the City of God is not a political

institution.” (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J. “The City of God and History.” In: The City of God: A

Collection of Critical Essays. Edited by Dorothy F. Donnelly. New York: Peter Lang, 1995. p. 295-296. 346

“It is quite evidente that what Augustine called for was a reform of the hearts of individual men, ra ther

than of political institutions. For a better world society, we simply need better men”. (Tradução nossa)

BOURKE, Vernon J. “The City of God and History.” In: The City of God: A Collection of Critical Essays.

Edited by Dorothy F. Donnelly. New York: Peter Lang, 1995. p. 296. 347 ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa:

Instituto Piaget, 1997. p. 152.

Page 112: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

112

tir do momento em que se compreende o outro seu humano, como um associado, um com-

panheiro de caminhada, pois “a fé comum que outrem só é, também, compreendido a partir

da fé possível, que faria dele um companheiro (socius). E essa fé é ao mesmo tempo com-

preendida (...) como a possibilidade última, a mais radical, do ser humano.”348 Isto é, só é

possível compreender a vida em sociedade, pelo menos como deveria ser, pelo prisma de

uma conjunto de seres humanos que buscam cooperação que gera a paz.

3.3.2 Agostinho: o ser humano e a busca pela paz

O pensamento agostiniano, então, aponta para o fato de que o ser humano é um ser

social. Esta definição do autor não é nova, ela remonta aos clássicos gregos. Por outro lado,

o pensador e bispo de Hipona apresenta novas significações a esta compreensão. Visto que

ele vai exprimir que o principal norte da vida em sociedade é busca pela paz.

A compreensão do antigo teólogo destaca que a própria Cidade de Deus caminha e

se desenrola em contornos sociais. Isso significa que ao longo de sua caminhada, Agostinho

vai percebendo que a existência humana deve ser vivida juntamente com outros indivíduos.

Deste modo, percebe-se em seus escritos que ele questiona como é possível seguir a vontade

de Deus sem viver plenamente em sociedade, conforme se expressa em: “querem que a vida

do sábio seja uma vida social. Isso aprovamo-lo nós muito mais do que eles. Efetivamente,

donde surgiria esta Cidade de Deus (...) se a vida dos santos não fosse uma vida social?”349

E para que exista vida em sociedade é necessário que exista outra formulação que

parece extremamente cara ao bispo norte-africano: a paz. Entendê-la passa a ser essencial

para se prosseguir no intento de revelar os desdobramentos que o teólogo considerava im-

portantes na forma como a Cidade de Deus e seus cidadãos deveriam se portar. Ele entende

que, primeiramente, deveria existir paz entre o ser humano e seu Criador, que seria expressa

pela obediência ordenada pela fé. Concomitantemente, a paz entre as pessoas seria efetivada

quando há concórdia e benevolência; o que leva ao fato de que deve também existir paz

entre governantes e governados. Percebe-se com isso, que a postura agostiniana em relação

348 ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa:

Instituto Piaget, 1997. p. 152-153. 349 “Quod autem socialem vitam volunt esse sapientis, nos multo amplius approbamus. Nam unde ista Dei civi-

tas, de qua huius operis ecce iam undevicesimum librum versamus in manibus, vel inchoaretur exortu vel

progrederetur excursu vel apprehenderet debitos fines, si non esset socialis vita sanctorum?” AGOSTINHO,

Santo. A Cidade de Deus - XIX, 5. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulben-

kian. 2011. p. 1891.

Page 113: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

113

à paz não se resume apenas a relação desenvolvida verticalmente entre seres humanos e

Deus, mas enseja que a paz deve se estender por todas as relações humanas, mesmo que se

saiba que esta só acontecerá em sua plenitude na consumação dos tempos. Portanto, “a paz

da Cidade celeste é a comunidade absolutamente ordenada e absolutamente harmoniosa no

gozo de Deus, no gozo mútuo em Deus.”350

Consequentemente, não se podem confundir as intenções do autor no tema da

paz, que permeia a relação cujos cidadãos da Cidade de Deus devem ter e buscar, com um

programa político específico, visto que a ideia presente na concepção do autor não era uma

federação de nações, ou mesmo uma série de acordos que garanta certa estabilidade social.

O que estava no pensamento do antigo teólogo e filósofo é o fato de que os seres humanos

estavam sendo “chamados para uma reforma do coração dos indivíduos, em vez de institui-

ções políticas. Pois para uma sociedade mundial melhor, nós simplesmente precisamos de

melhores homens.”351

Logo, a paz é um fim procurado por todos e se expressará perfeitamente na Cidade

Celeste.352 Entretanto, deve ser buscada com afinco no presente, de forma que a vida das

pessoas seja melhor e mais cordada. Sem, contudo, deixar de entender de que a paz só se

efetivará plenamente no final dos tempos, no momento em que, segundo o autor, serão sepa-

radas as duas Cidades. Até que isso aconteça, cabe aos cidadãos e cidadãs engendrados nes-

ta Cidade de Deus buscar a paz e concórdia, pois “graças a sua santidade, possuirá então,

por uma suprema vitória, a paz perfeita.”353

Cristãos e cristãs buscam a vida social, e para que ela se realize é necessário que

exista paz. Desta forma, cidadãos e cidadãs da Cidade de Deus não se encontram eximidos

de trabalhar na construção da paz, pelo contrário, o fato de pertencerem a esta Cidade (civi-

tas) os leva a se envolver ativamente nas questões inerentes a sociedade. Inclusive, nos pró-

350 “pax caelestis civitatis ordinatissima et concordissima societas fruendi Deo et invicem in Deo, pax omnium

rerum tranquillitas ordinis.”AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - XIX, 13,1. Tradução de J. Dias Perei-

ra. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2011. p. 1915. 351 “called for was a reform of the hearts of individual men, rather than of political institutions. For a better world

society, we simply need better men”. (Tradução nossa) BOURKE, Vernon J. The City of God and History.

In: The City of God: A Collection of Critical Essays. Edited by Dorothy F. Donnelly. New York: Peter Lang.

p. 296. 352 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - XIX, 12. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian. 2011. p. 1909-1910. 353 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - Prólogo. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian. 2011. p. 97.

Page 114: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

114

prios escritos do antigo pensador já se vê, de forma bastante evidente, o questionamento de

que não é possível existir de forma sábia sem estar em uma vivência social.

É notável atentar-se que em Agostinho não existe um programa explícito que produz

um plano para a paz mundial, algo como uma federação de países, pois o que em última

instância está nos escritos do pensador é sua compreensão de Cidade de Deus, aquele grupo

de pessoas que foram agraciadas pela divindade, ou nas em suas próprias palavras: “uma

[cidade], a dos homens que querem viver segundo a carte, e a outra, a dos que pretendem

seguir o espírito, conseguindo cada uma viver na paz do seu gênero quando eles conseguem

o que pretendem.”354 Ou como diz O’Daly, grande conhecedor dos escritores de língua lati-

na: “Agostinho fala de duas cidades (civitates), a cada uma é dada um nome alegórico –

Jerusalém e Babilônia – nas Escrituras. Estas cidades agora estão misturadas, mas serão

separadas no fim (in fine): uma é a cidade dos santos, outra dos ímpios.”355

O que está no horizonte do pensamento agostiniano é a reforma dos corações, ou se-

ja, a preocupação que as instituições são transformadas quando indivíduos são modificados.

Pois, para que seja construída uma sociedade melhor, simplesmente faz se necessário me-

lhores homens.”356 Porém, independente da forma que se compreenda,357 fica claro para o

antigo pensador, a busca pela paz é digna dos mais honrados esforçados e trabalhos.358

Uma vez que para o bispo de Hipona, em última instância, a verdadeira paz só pode-

ria ser obtida, em plenitude, na eternidade da consumação dos tempos, como se vê em: “en-

tão é que a virtude será verdadeira, quando, com todos os bens de que ela faz bom uso e

com tudo o que ela faz no bom uso dos bens e dos males, ela própria se referir àquele fim

onde teremos uma paz tal e tão grande que melhor e maior não pode haver.”359 Será neste

354 “Una quippe est hominum secundum carnem, altera secundum spiritum vivere in sui cuiusque generis pace

volentium et, cum id quod expetunt assequuntur, in sui cuiusque generis pace viventium.” AGOSTINHO,

Santo. A Cidade de Deus, XIV, 1. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

2011. p. 1233. 355 O’DALY, Gerard. Augustine’s City of God: A reader’s guide. Oxford: Oxford University Press. 1999. p. 94. 356 BOURKE, Vernon J. “The City of God and History.” In: The City of God: A Collection of Critical Essays.

Edited by Dorothy F. Donnelly. New York: Peter Lang, 1995. p. 296. 357 Isso se diferencia em grande medida da forma que a teologia no continente latino-americano tem se desenvol-

vida, pois esta tem maior preocupação com as questões estruturais que cercam a sociedade. Então, fica per-

ceptível que para o antigo teólogo a concepção do que seria a busca pela paz tem algumas similitudes com o

pensamento atual da Teologia Latino-americana; porém, não é possível desconsiderar as claras diferenças

que estão nestas duas expoentes construções teológicas cristãs. 358

Cf. BITTNER, Rüdiger. “Augustine’s Philosophy of History”. In: G. B. Matthews. Augustinian Tradicion.

Berkeley: University of California Press, 1999. p. 356. 359 “Sed tunc est vera virtus, quando et omnia bona, quibus bene utitur, et quidquid in bono usu bonorum et ma-

lorum facit, et se ipsam ad eum finem refert, ubi nobis talis et tanta pax erit, qua melior et maior esse non

Page 115: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

115

momento que se encontra, que poderia em certa medida ser associado com a utopia, que de

fato se efetivará a paz de forma perfeita e completa.

Já nas obras de Agostinho também se observa um destacado espaço dado ao tema da

busca pela paz, posto que ela é um fim almejado, mesmo que só se revele de maneira plena

na Cidade Celeste.360 Apesar disso, a paz já deve ser buscada com bastante dedicação ainda

no tempo presente, de maneira a possibilitar que todos tenham uma vida mais igualitária e

fraterna. Pois o fato de sua plena efetivação só ocorrer na consumação dos tempos, não im-

pede que os cidadãos e cidadãs cristãos conscientes já se esforcem com afinco na busca pela

concórdia entre todos os seres humanos ainda na atualidade, pois também conservará a es-

perança utópica que “graças a sua santidade, possuirá então, por uma suprema vitória, a paz

perfeita.”361 Porém, é importante destacar que no pensamento agostiniano a verdadeira paz e

felicidade, se encontra na busca pelo próprio Deus criador, conforme a célebre frase das

Confissões: “tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto

está o nosso coração, enquanto não repousa em ti. Dá-me sabedoria Senhor, saber e com-

preender qual seja o primeiro: invocar-te ou louvar-te; conhecer-te ou invocar-te.”362 Nesta

fica destacado uma das principais diferenças entre o pensamento do antigo teólogo e da con-

temporânea estudiosa da religião.

Portanto, seguindo a tradição teológica latino-americana, deve se enfatizar mais a

associação entre felicidade com o agir ético, dizendo que só é possível encontrar a satisfa-

ção verdadeira na busca por ideias de justiça e igualdade. E isso se efetiva no “agir moral

[que] são expressões da crença nessa possiblidade de construir um tempo e um espeço feli-

zes, onde a pessoa humana possa atingir e desfrutar o desenvolvimento completo e o gozo

pleno de suas potencialidades.”363 Entendendo-se que só é possível estar satisfeito, como

cristão ou cristã, quando de fato se percebe uma harmoniosa convivência pacífica e harmô-

possit.”AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, XIX, 10. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Funda-

ção Calouste Gulbenkian. 2011. p. 1906. 360 Cf. AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, XIX, 12. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian. 2011. p. 1909-1910. 361 AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus - Prólogo. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian. 2011. p. 97. 362 “Tu excitas, ut laudare te delectet, quia fecisti nos ad te et inquietum est cor nostrum, donec

requiescat in te. Da mihi, Domine, scire et intellegere 4, utrum sit prius invocare te an laudare

te et scire te prius sit an invocare te. Sed quis te invocat o nesciens te?” AGOSTINHO, Santo.

Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1984. p. 15. 363 BINGEMER, Maria Clara Luccheti.. Alteridade e vulnerabilidade: Experiência de Deus e pluralismo religio-

so no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993. p. 65-66.

Page 116: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

116

nica em toda a sociedade. E isso é obtido por meio de árduo trabalho que não fica recluso

apenas ao nível individual, mas que avança destemidamente no combate as estruturas que

acabam por manter pessoas empobrecidas e desprovidas de direitos básicos.

3.3.3 Lutero: a Paz social

Assim como foi exposto à necessidade que a busca pela paz tem na obra agostiniana,

também se faz de grande valia demonstrar a importância que esta procura também tem para

o pensamento do reformador alemão, “a relação que aí se estabelece entre ordem social, o

bom governo e a paz social (...) é preciso lembrar que ele está enraizado na tradição clássica

e, portanto, não consegue a ordem social senão em termos da justiça, que dá a cada um o

que lhe é devido.”364 Ou seja, este enraizamento na cultura clássica que Lutero tinha, fez

com que ele desse grande consideração a temática, o que coloca os dois principais autores

desta dissertação em grande contato, apesar das inerentes diferenças entre os seus pensa-

mentos que vêm sendo mostradas.

O governo ou regimento secular tem uma valiosa contribuição para o pensamento do

teólogo do Sacro Império, pois para ele este deve garantir a paz por meio da justiça, que é

valorizar e retribuir a cada um o que lhe é devido, isso deve ser feito tanto com recompensas

quanto com exortações. Iisto é, para sua reflexão o governantes tem não apenas o direito,

mas a prerrogativa de punir aqueles e aquelas que por acaso venham atrapalhar a paz e coe-

são social. E a função deste deve ser promover o que é justo e assegurar o bem comum.

“Confrontado com o mau governo, faz uso do recurso que lhe é próprio e, mediante a pala-

vra, exorta à justiça e retidão. Não admite, nem fomenta a rebelião, pois considera que al-

gum governo, ainda que mau, seja preferível à anarquia.”365

Evidentemente, isso não significa que em nenhum momento o pensador moderno

não discorde dos governantes, inclusive, quando estes tentaram cercear a liberdade de culto

dos luteranos ele “reivindica, em suma, que sejam respeitadas a consciência dos luteranos e

a ordem jurídica do Império, para que pudesse resolver a questão religiosa mediante a pala-

364 BECK, N. L. J. A Paz Social – Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética:

Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz so-

cial. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 469. 365 BECK, N. L. J. A Paz Social – Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética:

Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz so-

cial. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 469.

Page 117: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

117

vra, vale dizer, por meio do diálogo.”366 Isso se deu quando o imperador quis proibir que os

seguidores das ideias da Reforma continuassem a praticar uma religiosidade que não fosse

submissa ao papado em 1530. Mas confrontar por meio das ideias os governantes que impe-

dissem sua liberdade religiosa não fez com que ele fosse a favor de conflitos sangrentos,

como os que de fato ocorreram na Europa após o período do surgimento do protestantismo,

“permanece, porém, a singela exortação de Lutero como testemunho de que jamais admitiu,

nem estimulou a guerra e rebelião como formas de resolver questão religiosa e realizar a paz

social.”367 Posto que quando os príncipes luteranos foram derrotados belicamente pelo im-

perador ele os incentivou a não prosseguir em conflitos armados, já que isso poderia gerar

cada vez um maior aprofundamento do caos social, o que é diametralmente oposto a sua

insistência e valorização pela busca da paz.

Na ocasião do avanço dos turcos sobre a Hungria e a Boêmia, que amedrontava o

povo e governo do Sacro Império Romano Germânico, Lutero se pronunciou e fez a seguin-

te exortação ano de 1539: “considero que a melhor defesa doravante será armar-nos contra

eles em oração, para que Deus queira conduzir os acontecimentos misericordiosamente,

afastando este açoite, e perdoando os nossos pecados que são grandes e numerosos.”368 Nes-

ta posição, o reformador desincentiva a posição que se tornara corrente naquele período de

lutar, belicamente, contra o avanço dos turcos. Estas posições fazem parte da visão do pen-

sador alemão de que:

Ao enaltecer o governo secular como governo de Deus, Lutero vol-

tou-se contra um desprezo do poder secular (...) [Lutero] viu o cris-

tão comprometido a assumir tais funções [serviço militar, o ofício do

juiz, função pública] instituídas por Deus, porque justamente o cris-

tão – liberto da ânsia de poder e de ganância pelo Espírito Santo –

pode exercê-las conforme a determinação dada por Deus. Envolvi-

mento social era, para ele, dever cristão.369

366 BECK, N. L. J. A Paz Social – Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética:

Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz so-

cial. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 471. 367 BECK, N. L. J. A Paz Social – Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética:

Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz so-

cial. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 469. 368 LUTERO, Martinho. Exortação a Todos os Párocos à Oração pela Paz. In: LUTERO, Martinho. Obras Sele-

cionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra

contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996. p. 520-521. 369 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 52.

Page 118: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

118

Ou seja, a posição de Lutero em se opor a guerras e a rebeliões não significa, de maneira

alguma, um desprezo do governo secular para se favorecer apenas a vida dita religiosa. Mas

está embasada no fato de que para o autor a paz deve ser uma busca constante e que sempre

permeia as relações sociais, e que os cristãos e as cristãs são agentes dessa busca, seja por

meio de suas funções no campo do regimento religioso, ou mesmo no regimento secular.

Pois “Deus não institui os distintos estamentos para que indivíduos deles tirassem proveito

material ou espiritual próprio, mas a fim de propagar sua mensagem, resguardar a paz.”370 E

acrescenta: [para] promover a vida em comunidade, para cada pessoa brota de sua respecti-

va função em um governo ou estamento a responsabilidade ético-social a ele associada por

Deus.”371 Isso procura demonstrar que assim como é para Agostinho, para Lutero a busca

pela concórdia, justiça, ordenança e paz também é imperativo e dever daqueles são partíci-

pes do reino de Deus.

3.3.4 Lutero: economia e política em busca pela paz

Lutero viveu em um período bastante conturbado da história, e tendo tido influência

da lógica nominalista de pensamento, deu prioridade à práxis e a experiência. Este trata-se

de uma época em que ocorreram diversos levantes religiosos e sociais dentro e fora do Sa-

cro Império Romano Germânico. Ele viveu em um período imensamente “marcado por tran-

sições nas formas de organizar a produção e a reprodução material. (...) A atividade manual

individual foi dando lugar a uma divisão do trabalho cada vez mais complexa, acompanhada

do uso de energia hidráulica e maquinário.”372 Especificamente, uma das questões que ficam

bastante claras na forma do reformador construir o seu pensamento é que não é possível

pensar em busca pela paz sem falar de política, e, consequentemente, de economia. E como

para o pensador o regimento secular era uma área onde o cristão deveria opinar e ser um

agente de busca pela paz, ele escreveu sobre diversos temas que influenciam a vida em soci-

edade, de forma destacada, a questão da usura ocupa boa parte de sua obra, pois:

Em numerosos escritos, Lutero exprimiu o seu ponto de vista sobre o as-

sunto. Já em 1519, publicara um Sermão (breve) acerca da usura. O seu

370 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 55. 371 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 55. 372

RIETH, Ricardo. Introdução - Economia. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 367.

Page 119: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

119

proposito ganhou extensão no Sermão (extenso) acerca da usura, de 1520,

e posteriormente no opúsculo que apareceu 1524 e que tratava de Comér-

cio e usura. Evocar-se-á também a opinião que redigiu a pedido do conse-

lho da cidade Dantzig (1525) e a sua exortação Aos pastores para que pre-

guem contra a usura (1540).373

Nestas obras o precursor da Reforma opõe-se frontalmente e duramente contra esta

prática que para ele era um mal terrível que consumia sua nação. “No começo de seus escri-

tos sobre questões econômicas ou políticas, Lutero colocou com frequência sua percepção

básica do problema, que, contudo, não oferecia sua hipótese de trabalho, mas sim o resumo

de uma analise prévia da situação.”374 Sendo assim, o pensador estava certo de que não era

possível entretecer o que era velho com algo novo, conforme Lucas 5.36. “Ele queria encon-

trar ou inclusive provocar uma rachadura, uma crise, nos sistemas que controlavam e orga-

nizavam as instituições básicas para um consenso medieval geral: ecclesia, oeconomia e

politia.”375 Para com isso poder corrigir o que estava cindido em sua sociedade. Em outras

palavras, para o reformador reparar estes erros sociais o caminho principal seria o de pro-

clamar o evangelho, que são boas novas.

Lutero, então, frente às injustiças e às mazelas sociais que via crescer em sua socie-

dade, mesmo em sua própria cidade, começa a buscar na Bíblia princípios que pudessem

nortear sua posição frente a estes problemas. Para o reformador, a análise da situação social

era parte necessário e importante de teologia, e “o passo mais importante para Lutero era

obter da Escritura Sagrada critérios com cuja ajuda pudesse avaliar a situação constata-

da.”376 Ou seja, o conhecimento bíblico deveria ser usado para iluminar as mais diversas

instâncias da vida. Nisso se vê que a “‘Ortopráxis’ é a palavra para essa abordagem metodo-

lógica, que era para Lutero o caminho do teólogo e teóloga da cruz, o de alguém preocupado

com a teologia prática. Melhor chamá-la de uma prática da solidariedade com a dor do

mundo, que segue o encontro com o Cristo crucificado.”377 Essa era a forma do teólogo

alemão de agir, que tem a ver com um caminho que busca ser correto na prática, e não ape-

nas na teoria. E “os escritos sobre comércio e usura são importantes à medida que revelam

373 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 203. 374 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 46. 375 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 55. 376 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 48. 377 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 121.

Page 120: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

120

exemplarmente o método seguido por Lutero para formar um juízo ético a respeito de ativi-

dades, práticas, comportamentos e relações presentes na realidade social.”378 Mostrando a

forma de fazer teologia do autor preocupada com prática e a realidade.

Uma das maiores mazelas que se expandiram na época, e que continua a existir até

os dias atuais, é a forma de relação econômica que aquela sociedade experimentou. Naquele

momento histórico, na região do Sacro Império começava a se desenvolver um nascente

capitalismo, onde “a concentração econômica nas mãos de poderosas casas comerciais –

Fugger, Welser e Höchstetter estavam entre as mais destacadas – deveu-se muito à partici-

pação direta de algumas delas no financiamento da invasão e conquista do Novo Mundo.”379

Isso fez com que algumas famílias começassem a acumular grande quantidade de capital,

em detrimento das grandes massas, que frequentemente sentia o efeito da especulação de

alimentos, bens, vestimentas e mesmo terras de plantio. O que gerava uma situação cada vez

mais caótica nos arredores imperiais, gerando profundas insatisfações. E esta contrariedade

não se resumia apenas aos mais empobrecidos daquela sociedade, posto que a “essa altura,

membros da alta nobreza dirigente – inclusive o imperador (...) já se encontravam na depen-

dência financeira dos grandes responsáveis pelos monopólios.”380 E adiciona:

Reis e príncipes deveriam cuidar disso e coibi-lo com justiça rigorosa. Po-

rém ouço que eles estão com o rabo preso, e as coisas acontecem segundo

diz Isaías 1,23: ‘os teus príncipes são (...) cúmplices de ladrões.’ Enquanto

isso mandam enforcar ladrões que furtaram um ou meio florim, e transitam

com aqueles que saqueiam o mundo inteiro e roubam mais do que todos os

outros.381

Mostrando, dessa forma, a abrangência que estes comerciantes passaram a ter já neste mo-

mento e a culpabilidade que os governante têm em não coibir estas práticas. Posto que mui-

tos já estavam tão imbricados com o sistema de empréstimos e usura, que já se apropriavam

deste método para seu benefício próprio. Negligenciando, assim, a nobre função de exercer

a autoridade no regimento secular.

378 RIETH, Ricardo. Introdução - Economia. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 368. 379 RIETH, Ricardo. Introdução - Economia. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 367. 380 RIETH, Ricardo. Introdução - Economia. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 367-368. 381 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 398.

Page 121: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

121

Durante todo o período medieval a prática dos juros, ou como era conhecido na épo-

ca, da usura, era proibida pelas autoridades eclesiásticas. Ainda em seu período no Sacro

Império “permanecia em vigor a proibição do direito canônico – renovada formalmente no

Concílio de Latrão, em 1515 (...) comerciantes cristãos muitas vezes tinham problemas de

consciência, tendo em vista a proibição eclesiástica oficial.”382 O que fazia muitos cristãos

que aderiam a Reforma a questionar Lutero sobre esta questão. Foi frente a estes questio-

namentos e devido às discrepâncias sociais que ocorriam que o reformador se motivou a

escrever várias obras que abordassem direta ou indiretamente o assunto.

Na obra Comércio e Usura o reformador tece várias recomendações faz muitas as-

serções sobre a prática do comércio, especificamente, sobre a prática da importação de pro-

dutos oriundo do Oriente, que começava a abarrotar o mercado europeu:

Apesar de tudo, não se pode negar que comprar e vender são atividades ne-

cessárias, as quais não se pode dispensar, podendo ser praticadas de forma

cristã, particularmente no tocante às coisas necessárias e honrosas. Porque

também os Patriarcas, por exemplo, venderam e compraram gado, lã, cere-

ais, manteiga, leite e outros bens. São dádivas de Deus que ele concede da

terra e reparte entre os seres humanos. O comércio exterior, entretanto,

aquele que traz mercadorias de Calcutá e da Índia e outros lugares estran-

geiros, como preciosa seda, ouriversaria e especiarias, que somente servem

para ostentação e não têm utilidade, sugando dinheiro do país e das pesso-

as, não deveria ser permitido, se tivéssemos um governo e príncipes.383

Este texto foi escrito possivelmente em 1524, e já demonstra a grande dificuldade que o

reformador alemão tinha em aceitar o comércio externo, vendo-o como uma forma de esco-

amento de preciosos recursos nacionais, para sustentar o luxo e ostentação de alguns, en-

quanto uma grande maioria permanece na miséria e exploração. E completa: “seria simples

lidar com todos os comerciantes, o que também combateria a prática de outros vícios peca-

minosos. (...) [pois] teriam que limitar-se a condições humildes e a um consumo modes-

to.”384

Inclusive, uma das leis do mercado que existem até os dias atuais, e que parece até

mesmo ter se naturalizado na sociedade atual, gerava enorme estranhamento no pensamento

do teólogo, o que pode gerar uma ótima reflexão hodierna sobre esta atividade. Os que pra-

382 RIETH, Ricardo. Introdução - Economia. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 371. 383 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 377-378. 384 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 389.

Page 122: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

122

ticam as vendas, os comerciantes, têm uma regra que eles repetem constantemente e parece

ser sua prática áurea, “seu lema principal e fundamento de todo o negócio; eles dizem: ‘pos-

so vender minha mercadoria tão caro quanto puder.’ Acham que este é um direito deles. Aí

se dá espaço para a ganância e se abrem todas as portas e janelas para o inferno.”385 Esta

forma de fazer negócio que Lutero condena com veemência e dureza, inclusive, chegando a

evocar a danação eterna para punir os que praticam o comércio desta maneira mostrando

que estes são vilões e gananciosos insaciáveis que se aproveitam de “gente que depende de

sua mercadoria, ou que o comprador é pobre e dela carece, ele se aproveita e eleva o preço

(...) certamente deixaria no mesmo valor, caso não houvesse carência do próximo.”386

E o reformador se contrapõe a este lógica demonstrando que ela é maléfica e cruel e

usa suas interpretações das Escrituras e da tradição para dizer que a “regra não deveria ser:

‘posso vender minha mercadoria tão caro quanto puder ou quiser’, mas, sim: ‘posso vender

minhas mercadoria tão caro quanto eu devo ou quanto é correto e justo’.”387 Isso está basea-

do em um ensino de Aristóteles, retomado por Tomás de Aquino e outros medievais, que foi

recorrentemente trabalhado na Idade Média denominado de iustum pretium (preço justo).

Lutero passa, portanto, a sugerir medidas que os governantes deveriam tomar para

que os produtos não fossem vendidos a população com preços abusivos, e diz que “a forma

mais adequada e segura seria que a autoridade governamental nomeasse pessoas sensatas e

honestas que avaliassem todos os tipos de mercadoria quanto a seus custo e estabelecessem,

a partir daí, o preço máximo que elas deveriam custar.”388 Isto é, ele propõe uma espécie de

regulação da economia que fosse baseado na opinião de pessoas idôneas, evitando-se, as-

sim, injustiças como as que vinham acontecendo. E diz que sua “fundamentação está no

Evangelho [Lucas 10,7]: o trabalhador merece seu salário. Em 1 Coríntios 9,7 Paulo diz:

‘quem pastoreia o rebanho tem direito ao leite. Quem pode ir à guerra a sua própria custa e

soldo?’”389 Isso mostra que para o reformador é possível existir um pequeno lucro, que seja

suficiente para que o comerciante sobreviva com dignidade, mas sem, contudo, aceitar os

385 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 378. 386 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 379. 387 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 380. 388 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 380-381. 389 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 382.

Page 123: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

123

lucros exorbitantes que eram praticados pela significativa maioria dos que viviam do co-

mércio.

Além disso, o teólogo propõe que o empréstimo poderia ocorrer, sobretudo, entre

cristãos. Mas o critério que deveria guiar é que o pagamento só seria feito se a pessoa pu-

desse, posto que “cada qual devolveria espontaneamente o que tivesse tomado emprestado,

e aquele que tivesse cedido o empréstimo o dispensaria de bom grado, caso o outro não con-

seguisse devolver.”390 E a regra que norteia esta opinião está no fato de que “tens a obriga-

ção de dar emprestado somente aquilo que te sobra e que podes dispensar, como diz Jesus a

respeito da esmola: ‘dai de esmola o que tiverdes de sobrea, e tudo será limpo’ [Lucas

11,41].391 Pois a maneira correta de se lidar com os bens é entendendo que estamos “dispos-

tos a emprestar espontaneamente, sem qualquer acréscimo ou juros.”392

Em outras palavras, ele evoca mais um texto evangélico para justificar como deveri-

am ser guiadas relações mais justas no que concerne ao comércio e aos empréstimos. Não

escapa de sua argumentação, a valorização da Cidade Celestial, assim como se vê em vários

dos escritos de Agostinho, já que em meio a sua discussão ele diz que “um centavo certo e

eterno é melhor do que um florim incerto e temporal.”393 Isso mostra que é necessário se

desapegar dos bens terrenos, estando disposto, atém mesmo na visão do reformador, a sofrer

algumas injustiças, pois por meio delas somos “exercitados a desprender nossos corações

dos falsos bens temporais deste mundo, abrindo mão deles em paz, e a colocarmos a espe-

rança nos invisíveis bens eternos.”394

Em um dos sermões que ele escreve sobre a temática ele diz enfaticamente que

mesmo que, aparentemente, estas práticas estejam envoltas na capa de serem justas e esta-

rem dentro da legalidade, ele rebate dizendo que estas são prática que contrariam as Sagra-

das Escrituras e que são divergentes das práticas evangélicas. Posto que “a ganância e a usu-

390 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 387. 391 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 388. 392 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 412. 393 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 398. 394 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 404.

Page 124: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

124

ra não apenas se instalaram imensamente em todo o mundo, mas que alguns também se

atrevem a descobrir alguns subterfúgios sob os quais se podem praticar livremente sua mal-

dade sob o manto da justiça.”395 Esta prédica foi escrita no ano de 1520, e posteriormente

anexado ao tratado maior que foi publicado em 1524, que vem sendo tratada deste o início

desta seção. Toda esta temática sobre economia e política vem sendo tratada porque para o

autor da Reforma é necessário perceber que “Cristo ordenou esse mandamento [Mateus

5,40] para estabelecer entre nós uma vida pacífica, pura e celestial.”396 E complementa:

“ora, se todos estão demandando a devolução de seus bens e ninguém quer sofrer nenhuma

injustiça – este não é o caminho para a paz, como pensam esses cegos, a respeito dos quais

está escrito no Salmo 14: ‘não conhecem o caminho da paz’.”397 Ou seja, a paz é o que se

obtêm quando existem relações mais fraternas, desinteressadas e justas.

A lógica do reformador baseia-se nos textos bíblicos, como vem sendo dito, o que

em grande medida tem várias similitudes com Agostinho, pois ambos têm seu sistema base-

ada em interpretações e construções de metáforas baseadas em textos das Escrituras. Inclu-

sive, Lutero evoca que deste de texto vetero testamentários já estava a lógica do cuidado

que devia existir na sociedade, posto que em “Deuteronômio 15,4: ‘não haja entre vós pobre

nem carente’. Ora, se Deus ordenou isso no Antigo Testamento, quanto mais deveríamos

nós cristãos assumir o compromisso de não apenas deixarmos a ninguém passar necessidade

ou mendigar.”398 E adiciona a isso um texto evangélico que é bastante duro e demonstra a

gravidade que ele dava ao fato de não se cuidar dos menos favorecidos da sociedade, ele diz

que na hora da morte e no dia “derradeiro Deus não te perguntará pelo montante que deixa-

rás em testamento, se deste essa ou aquela quantia para igrejas, embora não rejeite, mas di-

rá: ‘estive com fome, e vós não me destes de comer, estive nu, e vós não me vestistes’. [Ma-

teus 25,42s].”399 O que mostra como é sério para o teólogo alemão este assunto.

395 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 399. 396 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 403. 397 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 403. 398 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 405. 399 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Page 125: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

125

Neste ponto, o pensador germânico destaca que é necessário se lembrar da lei natu-

ral, ou lei áurea, que deve existir nas relações de uma sociedade em que existam cristãos.

Para ele o normal deveria ser querer e desejar para si o mesmo que para o próximo, “pois é

da natureza do amor (como diz S. Paulo em

1 Coríntios 13,5) que ele não busca seu próprio proveito e vantagem, mas dos outros.”400 E

o raciocínio aplicado a lucro e a usura para o reformador é muito simples, “se queres ter

participação no lucro, também deves ter participação nos prejuízos, como é da natureza de

toda transação. Todos os credores que não querem sujeitar-se a isso são tão honestos como

assaltantes e assassinos, pois arrancam o sustento dos pobres.”401 E encerra fazendo uma

imprecação, acentuando severidade da atitude de quem é usurário e busca apenas seu pró-

prio benefício. Posto que “assim também o credor teria que arcar com o risco da eventuali-

dade, tanto quanto o devedor, e ambos teriam que se confiar às mãos de Deus.”402 Sobre a

impossibilidade para Lutero de se fixar um valor fixo para os juros anuais, uma vez que é

impossível se controlar todas as variáveis econômicas, políticas e sociais. Além do que, ten-

tar prevê-las seria uma tentativa humana fracassada de se colocar no lugar do próprio Cria-

dor.

Outra obra do autor que enfatiza a relação entre economia, política e paz é a obra

Aos Pastores, para que Preguem contra a Usura, que foi escrita no final dos anos de 1530:

“Peço em nome de Deus a todos os pregadores e párocos que não queiram calar-se nem dei-

xar de pregar contra a usura, admoestar e alertar o povo (...), erguer nossa voz, proclamando

de alto e bom que a usura não é virtude, mas grande pecado e vergonha.”403 Esta foi redigi-

da porque a própria região de Lutero começou a sofrer com constantes faltas de alimentos e

dos mais básicos itens, em grande medida, devido a ganância desenfreada que era movida

pelos grandes comerciantes e usurários da época. “Lutero se viu envolto em campanhas para

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 409. 400 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 418. 401 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 423. 402 LUTERO, Martinho. Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura. In: Obras Selecionadas. Volume 5: Ética:

Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Con-

córdia. 1995. p. 427. 403 LUTERO, Martinho. Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Por-

to Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 447-448.

Page 126: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

126

dar alimentos aos mais atingidos. Ele exigiu energicamente a intervenção das autoridades,

pois estava convencido de que se tratava de uma situação provocada por setores do campe-

sinato e da baixa nobreza rural.”404 Isso o motivou a não só admoestar os que estavam perto

dele quanto esta prática, mas passou a incentivar os pregadores que haviam aderido as ideias

da Reforma, a também se oporem com intensidade.

O reformador entendia que o que os usurários e grandes comerciantes estavam fa-

zendo era roubar o povo,405 tirando dos mais humildes para seu enriquecimento e bem-estar,

não se preocupando com fato de que isso deixava milhares à míngua. E criticou os gover-

nantes, os quais ele tinha como pessoas que exerciam um poder instituído por Deus, o do

regimento secular, por não estarem se posicionando suficientemente contrários às estas prá-

ticas espoliantes. E disse aos seus pregadores que “deixamos nesse ponto os príncipes faze-

rem o que puderem ou quiserem. A nós, pregadores, contudo, não compete festejar. Seja-

mos, nesse sentido, bispos, isto é, estejamos atentos e vigiemos; pois está em jogo nossa

bem-aventurança.”406 E, inclusive, fez afirmações duríssimas sobre qual deveria ser a posi-

ção dos pregadores que seguiam seu pensamento frente a usura:

Pois bem. Deixe-os [os usurários]. No entanto, você, pastor, cuide para não

tornar-se cúmplice de seus pecados, como já dissemos acima. Deixe-os

morrer como cachorros, que o diabo os devore com corpo e alma. Não ad-

mita-os ao Sacramento, nem ao Batismo, nem ainda a uma comunhão cris-

tã. (...) Em especial, porém, os príncipes e senhores terão que pagar duro

por isso, porque não fazem uso de sua autoridade, permitindo que assassi-

nos e assaltantes (usurários e gananciosos) assassinem e roubem livremente

em seus territórios com usuras e carestias deliberadamente provocadas.407

Asseverado, dessarte, a gravidade que existe intrinsecamente impregnada na prática da usu-

ra. Questão esta que já havia sido condenada ao longo da Idade Média, e que retomada pelo

reformador, mostrando, desta maneira, sua compreensão de como os dois Reinos deveriam

atuar na sociedade. E que ambos devem existir para que a paz seja obtida e vivenciada.

404 ALTMANN, Walter; KAYSER, Ilson. Introdução – Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LU-

TERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação -

Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 446. 405 Cf. LUTERO, Martinho. Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LUTERO, Martinho. Obras

Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopol-

do; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 451. 406 LUTERO, Martinho. Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Por-

to Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 465-466. 407 LUTERO, Martinho. Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura. In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Por-

to Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995. p. 492-493.

Page 127: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

127

3.4 Agostinho e Lutero: a dimensão ético-político-social, suas

oportunidades e limitações

É necessário evidenciar que tanto em Agostinho quanto em Lutero, existem possibi-

lidades abertas e é impossível determinar apenas uma leitura possível entre estes autores que

já foram tantas vezes lidos e relidos. O que existe é sempre a oportunidade de uma nova

aproximação, de uma nova leitura. Sabendo que ambos contêm em seus textos, tanto opor-

tunidades para a construção de uma sociedade mais ética, onde o social e a boa política são

valorizados, mas, ao mesmo tempo, estes autores que estão separados por tantos séculos da

presente época, também contem em si limitações, algumas que são próprias de seus perío-

dos, outras porque advêm de suas formas de analisar, pensar e refletir a realidade. “À sua

maneira agostiniana, Lutero deixa claro que a liberdade cristã não é privada ou comunitária

atingindo a perfeição mística aqui na terra pela fé. O pecado se expressa sempre na vida dos

salvos que são individualmente iustus et peccator simul.”408 Ou seja, esta dimensão ambígua

de ser ao mesmo tempo justificado, sem deixar de ser ao mesmo tempo pecador, é uma

constante na vida do ser humano.

Nisso vê-se sempre este aspecto de contrariedade que existe intrinsecamente ao ser

humano, o que gera oportunidade e limitações, e que se atém as “declarações ético-sociais

de Lutero não pode ignorar que ele argumenta em dois níveis.”409 Uma que é dirigida aos

governantes, ou pessoas que dirigem o reinos secular, e outra que é dirigida “expressamente

aos cristãos, que são movidos a agir pelo amor cristão, isto é, pelo Espírito Santo.”410 Se-

gundo Westhelle estas recomendações e asserções são feitas pelo reformador baseadas em

duas chaves, e que isso remonta a antiguidade cristã. Posto que “desde Agostinho, a tradição

oscilou entre esses dois, o que a cruz por si e o que ela nos leva a fazer, muitas vezes ten-

tando combiná-los. Essas são as duas ‘faces’ da cruz de Cristo que Lutero distingue cuida-

408 “In his Augustinian manner, Luther makes clear that Christian liberty is not a private or comunal state of

mystic perfection attained here on Earth by Faith. Sin expresses itself even in the lives of the saved who are

individually justus et peccator simul.” PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the

Peasant’s War”. In: Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press. Vol. 42, n. 3 (Jul. –

Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível em < http://www.jstor.org/stable/2709183>. Acesso em 14/11/2014. p.

391. 409 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 58. 410 JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M. San-

der e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 58.

Page 128: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

128

dosamente,”411 um sendo a dimensão sacramental, ou do sacramentum, e a outra a dimensão

do exemplo de como se deve viver na terra, ou o exemplum.

Outra concepção que está presente tanto em Agostinho quando em Lutero, é a di-

mensão de que a fé cristã aponta para a novidade de vida, novas possibilidades surgem tanto

no nível individual, mas, sobretudo, também no nível coletivo e social, porque:

A imagem do deslocamento como abertura para a nova formação que está

para acontecer sugere que esse novo (o novum que o Ocidente tantas vezes

projetou para o futuro) talvez esteja de fato em um outro lugar. O pensa-

mento utópico ocidental, que traduz o não-lugar (u-topos) para um tempo

futuro por vir, é movido na imagem espacial de Lutero, para um outro-

lugar (hetero-topia). Se concebermos a visão escatológica como um outro

mundo que acontece, esse outro mundo poderia ser o próprio mundo do ou-

tro, do que é diferente e excluído de nosso mundo.412

Esta visão escatológica que está presente em seus pensamentos gera possibilidades de uma

tentativa de modificar a visão, projetando o novum. Ampliando a visão e permitindo que se

construa novos projetos de justiça e paz.

Uma das possibilidades que é aberta é a de se estender a ideia de escatologia, apli-

cando para que ela tenha um pressuposto mais abrangente, que não seja apenas temporal,

mas também espacial. Este “discurso escatológico da modernidade ocidental é que ele tem a

ver com o tempo e somente com o tempo – sua suspensão, sua consumação ou seu fim (...)

ignora-se a relação entre escatologia e nossa experiência de espaço.”413 Deve-se buscar uma

escatologia que não observe apenas a dimensão temporal da utopia, mas faz-se necessário

entender a experiência espacial que está presente na esperança cristã. Esta esperança está

baseada:

Na tradição apocalíptico-neotestamentário-agostiniana, Lutero percebe um

dualismo antitético. O poder de Deus na história está empenhado numa luta

sem tréguas com o poder do mal (isto é, o reino do demônio) até o fim dos

tempos. Este poder do mal procura desviar a criação da relação salutar com

seu criador (isto é, da fé), de forma que, por fim, chegue a destruir a si

mesma. Deus luta contra o poder do mal em todas as dimensões da existên-

cia criatural, com o propósito de estabelecer o seu reino último de perfei-

ção (isto é, o reino de Deus).414

411 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 93. 412WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 118. 413 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 151. 414 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Page 129: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

129

Nesta lógica que Deus opera na humanidade existe a concepção de que ele conduz

pessoas aos seus eternos desígnios, sendo que especificamente o pensador de Hipona, en-

tende “a história do mundo numa tela gigantesca com a luta de dois grupos (civitates). Um é

governado pelo demônio, o outro por Deus. Todavia, no presente éon ambos estão fundidos

de uma maneira que não pode ser distinguida claramente pelo olho humano.”415 O que é

bastante similar quando, por exemplo, “Lutero, em seu discurso contra Erasmo, intitulado

De servo arbítrio (Do servo arbítrio), afirma que os seres humanos estão ou sob o jugo de

Deus ou sob o jugo do demônio.”416 Mostrando, assim, como este autores têm notórios pon-

tos de contato.

A recepção das metáforas agostinianas e luteranas se desenvolveram ao longo dos

anos, e, sobretudo no século 20, acabaram por gerar uma compreensão cada vez mais arrai-

gada nas igrejas de que elas não deveriam participar das decisões que tocassem a esfera fora

do ‘religioso’. “Isto põe em perigo não apenas a participação teologicamente adequada dos

cristãos e das Igrejas na vida social e pública.”417 O que, claramente, é uma má interpretação

da ideia destes autores, pois tanto Agostinho quanto Lutero enfatizam a possibilidade de um

ser humano cristão que atua, fazendo diferença na vida da sociedade. Inclusive, este último

afirma que o reino de Deus e o reino secular são igualmente dignos de atenção.

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 9. 415 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 40. 416 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 40. 417 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 57.

Page 130: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário destacar que tanto para Agostinho quanto para Lutero o procedimento

ético, preocupado com o benefício da sociedade, e com relações mais justas e fraternas é

marca evidente do cristão e da cristã. Ambos em suas respectivas épocas se preocuparam

em fazer diferença em suas localidades, e não apenas nelas, mas se preocuparam em influ-

enciar além de suas próprias cidades e influenciaram muitos outros ao longo de suas áreas

de atuação. Como já foi dito no último capítulo, eles tiveram suas limitações e seus pensa-

mentos podem trazer tanto uma interpretação que marca uma forte e séria atuação ética,

quanto também podem ser usados para justificar alienações, como inclusive, já foram na

história utilizada por grupos que não se preocupam com o bem comum. Cite-se o exemplo

do nacional-socialismo alemão do século 20, que se utilizou de alguns pequenos excertos de

Lutero para justificarem sua luta constante por uma dita ‘raça’ superior. Porém, apesar des-

tes graves desvios, acredita-se e buscou se defender nesta dissertação que também existem

claras e ótimas oportunidades de uma rica reflexão que visa à melhora da sociedade e de

relações mais equitativas nas reflexões destes dois importantes autores da história cristã.

Um dos critérios comuns que existem entre estes pensadores que podem contribuir

para construção de propostas equilibradas e que favoreçam o bem comum está no fato de

Page 131: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

131

que eles baseiam seus escritos na Bíblia. E as Escrituras contêm em si, estas mesmas opor-

tunidades e limitações para a construção de um mundo melhor, dependendo da interpretação

e da ênfase que se dá a ela. Acredita-se que o melhor prisma para se analisar e se erigir um

grupo social mais justo está no mandamento áureo, que já está registrado no Antigo Testa-

mento e que se renova nos escritos no Novo Testamento, a noção de que se amar a Deus e

ao próximo, pois é claro que o balizador e que “guia a gama das possíveis interpretações

espirituais está no duplo mandamento, o amor a Deus e ao próximo. Ele combina a alegoria

com o que mais tarde foi considerado o sentido tropológico ou moral e sentido anagógico ou

escatológico.”418 Isto é, uma forma saudável de se edificar uma análise ética profunda destes

autores é a própria percepção de que tanto o antigo bispo quanto o reformador moderno

buscam balizar suas ações e pensamento tendo este conceito escriturísticos como central.

A partir desta proposição dos autores, de que as relações humanas devem se basear

no amor fraternal e caritativo, reside e possibilidade principal da formulação de Estados que

sejam mais justos e interessados em gerar melhora na qualidade de vida das pessoas e gru-

pos sociais, posto que edificação de uma visão ética e política, “o amor é o princípio nortea-

dor das relações político-sociais, havendo, assim, um prolongamento da ordem moral interi-

or para a ordem social”,419 ou seja, é possível arquitetar uma sociedade melhor porque

quando as pessoas têm princípios norteadores que se baseiam no amor interiormente, é pos-

sível se estender este raciocínio para que as relações exteriores também sejam beneficiadas

por esta moral e ordem interna. Logicamente, esta interpretação na qual a interioridade pre-

cede a as ações sociais tem suas limitações, já que elas podem ser utilizadas também para

justificar uma atuação individual despreocupada com a prática social, inclusive, esta forma

alienante de se pensar já se apropriou destes autores na história, como já foi dito, mas, ao

que parece, não é esta a proposta dos autores.

Uma explanação que se defende nesta pesquisa é que para os autores a organização

interior da vida do ser humano deve ser, necessariamente, seguida de atos práticos em favor

da vida. E que é incoerente tanto com o Evangelho quanto com o pensamento destes gran-

des autores cristão a compreensão de que as atitudes individuais são constituem-se como um

fim em si mesma, sem que isso se aponte para que “a organização dos homens em sociedade

418 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 29. 419 COSTA, M. R. C. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho. Recife, São Paulo: Universi-

dade Católica de Pernambuco, Edições Loyola, 2009. p. 196.

Page 132: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

132

não tenha outra finalidade senão garantir a paz temporal, ou felicidade dos homens, em vista

da paz eterna.”420 É evidente que tanto para o pensador de Hipona quanto para o teólogo

alemão a paz na Terra não é a finalidade última, já que ambos defendem que existem uma

realidade eterna. É neste ponto que se acredita existirem as questões mais complexas do

pensamento dos autores. Porque nesta altura pode se correr o risco de que o fato deles apon-

tarem para a realidade eterna exclui o compromisso ético-político-social no presente, na

construção de uma sociedade que seja mais marcadamente conhecida por relações que se

baseiam no amor, e que, consequentemente, tem pessoas que lutam mais para que todos

possam ter uma vida digna e justa.

Nisso, é importante destacar que para estes pensadores o Estado, a organização

social, a política e a vida organizada em leis estabelecidas não é ruim. Pelo contrário, estes

pensadores cristãos entendem e defendem a necessidade da organização social para garantir

o bem estar comum. Pois “os estados preservam a paz externa e a ordem (.. .) a paz é absolu-

tamente necessária para todos os homens, incluindo os peregrinos da Cidade de Deus, en-

quanto eles viverem aqui neste mundo,”421 ou seja, não é possível falar em paz celestial e

eterna sem antes falar de uma paz que também exista no mundo. Logicamente, como já vem

sido explorado, estes autores possuem em si possibilidades de libertação e de alienação con-

comitantemente, porquanto o fato de que se denomina os pertencentes à Cidade de Deus de

‘peregrinos’ pode trazer uma noção de que eles não pertencem a esta terra, e que, assim, não

se importam com os rumos dela.

Porém, a interpretação que se defende neste trabalho é que estes peregrinos são

cidadãos e cidadãs atuantes e que buscam dar sua contribuição para uma sociedade melhor,

onde a paz reine, e onde as pessoas tenham oportunidade de viver dignamente:

no tratado Sobre a Cidade de Deus e nas demais obras mencionadas, não é

defender uma ‘teoria política’, mas a busca da felicidade do homem indivi-

dual e coletivo. E que a preocupação com o Estado é apenas decorrência

disso, uma vez que o homem não vive isolado, mas em sociedade (...) por

tudo isso, defendemos que, em Agostinho, o Estado tem um duplo papel:

por um lado, uma finalidade terrena – promover a paz temporal entre os

420 COSTA, M. R. C. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho. Recife, São Paulo: Universi-

dade Católica de Pernambuco, Edições Loyola, 2009. p. 196. 421 “The states preserves external peace and order (...) this peace is absolutely necessary for all men, including

the way faring pilgrims from the City of God, as long they live in this world.” DEANE, Herbert A. The Po-

litical and Social Ideas of Saint Augustine. New York; London: Columbia University Press, 1963. p. 221.

Page 133: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

133

homens -; por outro, uma dimensão teleológica, como instrumento de pre-

paração para a Vida Eterna.422

Neste excerto de um dos maiores estudiosos do pensamento agostiniano brasileiro vê-se a

importância que é dada na obra do bispo de Hipona para a questão política do Estado. É

necessário ressaltar que Agostinho, diferentemente de Lutero, não constrói claramente um

pensamento que fala sobre o papel do Estado na sociedade, em outras palavras, não é possí-

vel destacar naturalmente no antigo pensador uma teoria política segundo os moldes moder-

nos, ou mesmo como alguns dos antigos faziam, o que existem nele é uma dignificação da

vida em comunidade, de uma compreensão de que a busca pela felicidade, tanto no nível do

indivíduo quanto na coletividade passa, intrinsecamente, pela obtenção da paz. E esta tem

uma dimensão que não é exclusivamente terrena, posto que ela seja uma prefiguração, uma

parcial preparação teológica de como será a eternidade.

Nisso é marcante relembrar que para o pensamento do bispo antigo a concepção tão

necessária de paz não reside no conceito de justiça apenas, mas, sobretudo, no conceito de

amor. Entender isso é necessário para se compreender as instâncias do pensamento deste

autor que influenciou a tantas pessoas ao longo da história, inclusive dentre estes, o próprio

Lutero que era um monge da ordem dos agostinianos antes de se torna o precursor da

Reforma Protestante. Ou seja, em Agostinho diferentemente de Cícero, que era o grande

pensador de política reconhecido no mundo romano, onde deve residir o seguro sustentáculo

da paz é no amor. Isso se dá porque para o pensador Deus é o próprio criador e sustentador

do amor e de toda a vida humana, de outra maneira, se é a divindade que sustenta todas as

coisas e ele é quem potencialmente pode assegurar a paz entre os homens, e este Deus é

descrito nas páginas bíblicas como sendo amor acima de todos os outros atributos, a paz que

é uma necessidade humana deve ser baseada nele, em Deus e no amor.423

Esta lógica da paz que é construída tendo como principal baluarte o amor, acima

mesmo da justiça, mesmo que esta não perca a importância e também faça parte secundari-

amente. Foi inserido dentro desta dinâmica que “Jesus sofreu porque nomeou a causa do

sofrimento, a lei que mata. E nessa nomeação reside o poder de superá-lo. O poder da cruz

ensina-nos a reconhecer de onde vem essa nomeação e onde temos que nos posicionar para

422 COSTA, M. R. C. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho. Recife, São Paulo: Universi-

dade Católica de Pernambuco, Edições Loyola, 2009. p. 197. 423 Cf. TESELLE, Eugene. Living in Two Cities: Augustinian Trajectories in Political Thought. Scranton: Uni-

versity of Scranton Press, 1998. p. 110.

Page 134: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

134

exercê-lo.”424 Ou seja, a condenação e morte do Cristo faz parte da luta contra as forças do

mal e contra toda a opressão, nomeando quem são os agentes destas maldades. Isso fez com

que o próprio Cristo sofresse a punição capital devido sua coragem e intrepidez em superar

o mal, o egoísmo e o abuso pelo pode que há no amor que gera a verdadeira justiça. É den-

tro deste escopo que a compreensão de Agostinho e Lutero está inserida, pois ela propicia

que se olhe as realidades pela ótica da necessidade de se superar as incoerências e locais de

morte por meio da equidade, da justiça, da fraternidade, e todas estas são sustentadas pelo

atributo do amor, que sustenta todas as demais qualidades e boas potencialidades humanas.

Isso é graça do Criador operando na humanidade. Inclusive, “a palavra ‘caritativo’ deriva da

palavra latina caritas, com sentido de assistência direta e ativa aos que se acham em neces-

sidade. Ela é motivada pelo amor cristão ou por humanitarismo.”425 É sobre esta qualidade,

que se baseia a atuação cristã, sobre esta atitude amorosa em relação ao próximo.

Porém, isso pode gerar uma interpretação perigosa e que limita o pensamento dos

autores, sobretudo, o de Lutero que delineia com mais clareza qual é o papel do cristão

frente à política, diferentemente de Agostinho, onde a ação política e a ação eclesiástica

parecem andar juntas sem que sejam separadas em duas esferas da vida, ou em dois regi-

mentos na linguagem luterana. Um erro comum é se pensar que a atuação humanitária ou

caritativa, derivada da palavra caritas, é mais cristã do que a atuação política ou mesmo

institucional. Isso é um erro que deve ser evitado, pois nos pensamentos dos autores o cris-

tão e a cristã são agentes ativos na busca de uma sociedade mais justa, que se baseia no

amor, e que busca a paz, que aponta para a vida eterna. Portanto, “a opinião generalizada de

que a ajuda ‘humanitária e caritativa’ é de alguma forma mais cristã do que a ação social e

política, ou mesmo de que é a única forma legítima de ação cristã, precisa ser corrigida com

base em Lutero.”426 Posto que o reformador em seus escritos dignifica o papel das institui-

ções seculares, colocando-os como dignos de receber a maia alta atenção dos seguidores do

cristianismo. Isto é, faz-se necessário distinguir o que é a função caritativa, ou amorosa,

oriunda dos cristãos e das cristãs, entendendo-se que ela não deve ser executada apenas no

sentido individual e assistencialista, mas deve se buscar uma atuação que rompa com todo e

424 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 101. 425 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 67. 426 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 67.

Page 135: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

135

qualquer sistema que cause opressão, isso deve incluir o nível comunitário, institucional,

político e econômico.

Esta compreensão de que o ser humano deve buscar a vida comunitária que aponta

para a paz, ajuda a entender que para Agostinho e Lutero a doutrina da justificação não deve

ser recebida como uma prática individual apenas, onde apenas se enfatiza a atuação de Deus

no ser humano enquanto indivíduo. Porque é importante destacar que a justificação que a

divindade opera no ser humano, que é defendida tanto por Agostinho quanto por Lutero,

ambas baseadas, principalmente, nos escritos do apóstolo Paulo enfatiza a encarnação e a

busca por justiça, por meio de um amor incondicional que está disposto a se doar em favor

do outro. Esta tônica paulina aponta para o fato de que “quando deixamos valer sua palavra,

quando sobretudo deixamos valer sua verdade na palavra encarnada, Jesus Cristo.”427 Pois

“Deus quer chegar a seu direito (recht), por isso se revela; assim como ele é em si verdade,

justiça e vida, assim também quer sê-lo fora de si, ou seja em nós.”428 Esta ênfase da encar-

nação que busca a paz e a justiça, baseia-se na concepção de amor, que possibilita as demais

qualidade de existirem sobre firme fundamento.

Um prisma possível que foi usado ao longo desta dissertação para trazer uma leitura

ética e política tanto de Agostinho quanto de Lutero se baseia na leitura de alguns

intérpretes latino-americanos destes clássicos autores, posto que, “usando a terminologia

atual, a opção preferencial de Deus pelos pobres, os excluídos, as pessoas que sofrem doen-

ça devastadora, é uma redundância na medida em que essas são as pessoas que, por se sabe-

rem como tais.”429 Complementado por: “na medida em que o fazem, estão dispostas a se

fiar na graça de Deus que as erguerá, como Deus fez com aquela humilde moça solteira e

grávida da Galileia.430 Esta é uma atualização do pensamento destes teólogos sobre uma

ótica eminentemente latino-americana, que valoriza a vida, a justiça e a busca pela paz. Isso

tudo, por sua vez, baseia-se no amor que deve se ter pelo próximo assim como se tem a si

mesmo, e este é consequência do amor que se tem a Deus.

427 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Traduçã de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 11. 428 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Traduçã de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 11. 429 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 68. 430 WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 68.

Page 136: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

136

Esta temática perpassa as obras do antigo bispo de Hipona e também do reformador

alemão, visto que neles a justificação que a divindade opera e que impulsiona os cidadãos e

as cidadãs da Cidade de Deus a viver uma vida mais amorosa e abnega tem, necessariamen-

te, a propagação de boas obras. Pois diferentemente do erro comum de se interpretar que a

justificação pela fé exclui as boas obras, pelo menos na leitura atenta destes grandes autores

mostra-se inadequada, pois eles enfatizam ao longo de suas obras a necessidade não apenas

de se fazer boas obras como consequência da fé no nível individual, mas também no nível

comunitário, em meios as instituições políticas e econômicas. Já que “a fé bem com as boas

obras, ou se as ganha ou se as perde simultaneamente. Não há meio-termo, nenhuma justifi-

cação sem santificação e nenhuma santificação sem justificação. A pergunta religiosa e a

ética são uma só em sua raiz.”431 Não é possível distinguir uma da outra, não há salvação no

campo religioso se ela também não existe no campo humano, uma contempla a outra. Isso

está expresso, de forma mais detalhada, na metáfora dos Dois Reinos, ou dos dois regimen-

tos de Lutero, que diz:

a doutrina dos dois reinos e do duplo governo expressa verdadeiramente a

luta multidimensional de Deus contra os poderes do mal para salvação e o

bem-estar do ser humano todo, bem como a participação do cristão (e

também de todo o povo de Deus) nesta luta, então a atual compartimenta-

lização da vida institucional da Igreja clama por uma revisão. Este é um

dos problemas urgentes da teologia e da prática da Igreja que devem re-

ceber atenção em primeiro lugar.432

A compartimentalização que acontece de forma cada vez mais clara nas igrejas, acaba por

prejudicar e muito a atuação destas contra as mais diversas injustiças que ocorrem na socie-

dade. Calam-se, desta forma, por entender que não é sua função intrometer-se na vida como

um todo da sociedade buscando a paz, a justiça e o bem comum na integralidade do ser hu-

mano.

Uma observação que se faz necessária nesta conjuntura é entender que nem Agosti-

nho, nem Lutero, conheceram o Estado moderno, que é composto por um conjunto de insti-

tuições que perpassa por uma realidade transpessoal. Nenhum deles pretendeu fazer uma

detalhada teoria sobre a natureza da política, do Estado e da economia, refletindo acerca de

suas origens e desenvolvimento como se faz contemporaneamente. Ambos conceberam es-

431 IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero. Traduçã de Walter Alt-

mann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 52-53. 432 DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico luterano. Tradução de Getúlio

Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 60.

Page 137: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

137

tas questões sobre os prismas de suas épocas, baseados na conjuntura política e social em

que eles próprios viveram.

Um e outro escreveram baseados em situações reais que os cercavam, o bispo de Hi-

pona escreveu, sobretudo, baseado nas questões que afligiam o Império Romano do período,

que já enfrentava incursões dos denominados ‘bárbaros’ em seus limites, sendo que a obra

mais importante do autor para esta pesquisa, A Cidade de Deus, desenvolve-se após a inva-

são da emblemática cidade de Roma no de 410 d.C., ou seja, ele escreveu suas obras que

falam sobre política, ética e economia baseado em fatos reais que estavam ao alcance de sua

visão. Da mesma forma, Lutero redigiu suas obras em um período de profundas mudanças

no Sacro Império Romano Germânico, era esta em que profundas mudanças ocorriam no

campo da economia, das relações de poder, e mesmo da religiosidade. Assentados e alicer-

çados sobre estas questões eles buscaram criar respostas, a partir de premissas bíblicas, para

como os cristãos e as cristãs deviam viver sua fé, desde o mais símplice até a mais alta auto-

ridade do Estado.433 Sendo assim, o dever dos pregadores do evangelho não seria “a de es-

tabelecer ele próprio novas instituições, nem elaborar programas políticos, mas contribuir

com um esclarecimento crítico acerca das estruturas que existem na sociedade e convocar as

pessoas a atuarem nos diferentes âmbitos a serviço do próximo.”434

Um dos grandes avanços que foi trazido por Lutero, utilizando-se e ressignificando

as metáforas agostinianas das Duas Cidades, sobre o novo selo dos Dois Reinos, foi o fato

de que nesta distinção em dois regimentos, o reformador contestou as pretensões da igreja

romana papal de se impor sobre o poder secular. Isso trouxe uma nova compreensão da dig-

nidade que existe no governo secular, que pode desta forma, alcançar autodeterminação

independente da igreja. Apesar de ser necessário destacar, como foi dito logo acima, que

isso não significa que existia completa autonomia do Estado, como aconteceu posteriormen-

te na época do Iluminismo, e pós Revolução Frances, pois neste momento da Reforma o

Estado ainda continuava a ser um âmbito do governo de Deus, que tinha de cumprir os

mesmos mandamentos divinos que a igreja, eles apenas atuavam em dimensões diferentes,

433 Cf. LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H.

Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 215. 434 LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter Altmann e Roberto H. Pich.

São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 222.

Page 138: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

138

mas ambos, regimento secular e regimento religioso, tinham sua força emanada da autorida-

de divina.435

A atuação dos cristãos e das cristãs no regimento secular se dá não somente porque

ele também faz parte do escopo em que Deus atua, a motivação é mais profunda do que es-

ta. A participação acontece porque o reino secular é o responsável principal pela manuten-

ção da paz social, e isso deve acontecer por meio de autoridades que busquem promover a

justiça e a fraternidade que se dá por meio do amor, que é graça de Deus, atuante na huma-

nidade. A preservação do direito e da concórdia é, em última instância, uma forma de ex-

pressão da vida eterna.436

Por fim, o desafio para o cristianismo deve ser buscar entender, assim como fizeram

Agostinho e Lutero em seus respectivos períodos, como atuar na promoção de uma vida

mais digna e justa em meio a um mundo quebrado, cindido pelas feridas da desigualdade,

do desamor e da ganância.437 Faz-se urgente e necessário praticar neste mundo um papel de

voz profética, que anuncie a nova vida que há em Deus, e que o mesmo amor que sustentou

e operou no ministério do Cristo, deve também operar na vida de seus seguidores e seguido-

ras, sendo que isso não deve se resumir apenas ao campo individual e transcendente, mas

também deve ser praticado e vivido no campo da economia, da política e da ética, de forma

que seja inaugura uma era onde as boas novas do Evangelho não se limitem apenas a di-

mensão transcendental. Mas que elas também marquem a vida das pessoas na existência

comunitária, entendendo-se que é na sociedade e na busca pela paz que reside à oportunida-

de da construção de um mundo melhor.

Buscou-se, ao longo desta dissertação, erigir estes valores por meio do pensamento

de dois autores significativos da história do cristianismo: Agostinho e Lutero, esperando que

o revisitar de suas obras traga nova iluminação aos problemas e questões da sociedade con-

temporânea, sabendo que seus escritos contem tanto oportunidades quanto limitações, mas

buscando em meio a isso ter o mesmo espírito que eles tiveram em suas respectivas épocas,

435 Cf. JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ricardo W. Rieth, Luís M.

Sander e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 51. 436 Cf. MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of Law, Justice, and Justification in

Luther's Thought”. In: The Harvard Theological Review. Cambridge University Press; Havard Divinity

School. Vol. 100, no. 3 (July), p. 363-386, 2007. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/4495123>.

Acesso em 18/11/2014. p. 367. 437 Cf. WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de Geraldo Korndörfer. São

Leopoldo: Sinodal/EST, 2008. p. 72.

Page 139: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

139

o de opinar e construir noções teológicas novas que pudessem trazer respostas às pessoas,

conjunturas e sociedades de suas épocas. Esta mesma intenção deve guiar a atuação das

igrejas atualmente.

Page 140: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA438

I. Obras de Agostinho

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Tradução de J. Dias Pereira. 4ª ed. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.

__________. A Doutrina Cristã: manual de exegese e formação cristã. Tradução de

Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1991.

__________. A Graça (I). Tradução Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998.

__________. A Graça (II). Tradução Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus,

1999.

__________. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática da catequese. 2. ed.

Petrópolis: Editora Vozes, 2005

__________. A Trindade. Trad. de Frei Agustinho Belmonte, O.A.R. São Paulo:

Paulus, 1994.

__________. A Verdadeira Religião. Tradução de Nair de Assis Oliveira. Revisão de

Gilmar Corazza. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.

__________. Comentário a Primeira Epístola de São João. São Paulo: Paulinas,

1989.

438 Esta pesquisa serviu-se de inúmeras obras que ajudaram, em um momento ou outro, a nortear a

reflexão, mas não foram citadas ao longo do trabalho. Mesmo assim, listamos todas as obras con-

sultadas.

Page 141: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

141

__________. Comentário aos Salmos: Salmos 51-100. Tradução de Monjas Benedi-

tinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. São Paulo: Paulus, 1997. v. 2. 1202

p. (Patristica; v. 9/2)

__________. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Pau-

lo: Paulus, 1984.

__________. “De excídio Urbis.” In: AGOSTINHO, Santo. O De excídio Urbis e

outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, Introdução e no-

tas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Hu-

manísticos da Universidade de Coimbra, 2010.

__________. La Ciudad de Dios. Edición preparada por Jose Moran. In: Obras de

San Agustín (Edición Bilíngue). Vol. XVI-XVII. Madrid: La editorial Catolica,

1964. (Biblioteca de Autores Cristianos)

__________. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus, 1995.

__________. S. Aurelii Augustini Opera Omnia: Patrologiae Latinae Elenchus. Vol.

32 ao vol. 45. Disponível em: < http://www.augustinus.it/latino/index.htm >

__________. Sermon: The sacking of the city of Rome. In: Augustine Political Writ-

ings. Edited by E. M. Atkins and R. J. Dodaro. Cambridge: Cambridge Univer-

sity Press, 2001

II. Obras de Lutero

LUTERO, Martinho. “À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do

Estamento Cristão.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume

2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sino-

dal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989.

__________. “A respeito do Papado em Roma contra o Celebérrimo Romanista

de Leipzig.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O

Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal;

Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989.

__________. “Aos Pastores, Para que Preguem contra a Usura.” In: LUTERO,

Martinho. Obras Selecionadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração –

Sexualidade – Educação - Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal;

Concórdia. 1995.

__________. “Carta Aberta a Respeito do Rigoroso Livrinho contra os Campone-

ses.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fun-

Page 142: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

142

damentos da Ética Política, Governo, Guerra dos Camponeses, Guerra con-

tra os Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre:

Concórdia Editora. 1996

__________. “Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o Espírito Revoltoso.” In:

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamenta-

ções da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra

os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia.

1996.

__________. “Comércio e Usura – (Sermão) Sobre a Usura.” In: Obras Selecio-

nadas. Volume 5: Ética: Fundamentos – Oração – Sexualidade – Educação -

Economia. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1995.

__________. “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas.” In: LUTERO, Marti-

nho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Políti-

ca – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz

social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996.

__________. “Da Autoridade Secular, até que ponto se lhe deve obediência.” In:

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamenta-

ções da Ética Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra

os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia.

1996.

__________. “Das Boas Obras.” In: LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In:

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Re-

forma, Escritos de 1520. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia.

1989.

__________. “Da Vontade Cativa.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas.

Volume 4: Debates e Controvérsias, II. São Leopoldo; Porto Alegre: Sino-

dal; Concórdia. 1993.

__________. De servo Arbitrio (La volutad determinada). Trad. Erich Sexauer.

Buenos Aires: Escudo; Paidós, 1976.

__________. “Exortação a Todos os Párocos à Oração pela Paz.” In: LUTERO,

Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética

Política – Governo – Guerra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos –

Paz social. São Leopoldo; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996.

Page 143: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

143

__________. “O Magnificat.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vo-

lume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guerra dos

Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Porto

Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996.

__________. “Salmo 101 interpretado.” In: LUTERO, Martinho. Obras Selecio-

nadas. Volume 6: Ética: Fundamentos da Ética Política, Governo, Guerra

dos Camponeses, Guerra contra os Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Edito-

ra Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1996.

__________. “Tratado de Martinho Lutero sobre a Liberdade Cristã.” In: LUTE-

RO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Reforma,

Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia

Editora. 1989.

III. Outras obras consultadas

ALTHAUS, Paul. A Teologia de Martinho Lutero. Tradução de Horst Kuchen-

becker. Canoas; Porto Alegre: Ulbra; Concórdia, 2008.

ALTMANN, Walter. Lutero e Libertação: Releitura de Lutero em perspectiva

latino-americana. São Leopoldo: Editora Sinodal; São Paulo: Editora Ática.

1994.

ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Tradução de Alber-

to Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

ATKINS, E. M.; DODARO, R. J. “War and Peace”. In: AGOSTINHO, Santo. Au-

gustine: Political Writings. Edited by E. M. Atkins and R. J. Dodaro. Cambrid-

ge: Cambridge University Press, 2001.

AYOUB, Cristiane Negreiros Abbud. Iluminação trinitária em Santo Agostinho. São

Paulo: Paulus, 2011.

BASTIAN, Jean-Pierre. Protestantismos y modernidad latinoamericana: historia

de unas minorias religiosas activas en América Latina. [S.l.]: Fundo de Cul-

tura Econômica, 1994.

BECK, N. L. J. “A Paz Social – Introdução.” In: LUTERO, Martinho. Obras Seleci-

onadas. Volume 6: Ética: Fundamentações da Ética Política – Governo – Guer-

ra dos Camponeses – Guerra contra os Turcos – Paz social. São Leopoldo; Por-

to Alegre: Sinodal; Concórdia. 1996.

Page 144: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

144

BINGEMER, Maria Clara Luccheti.. Alteridade e vulnerabilidade: Experiência de

Deus e pluralismo religioso no moderno em crise. São Paulo: Loyola, 1993.

BITTNER, Rüdiger. “Augustine’s Philosophy of History.” In: Augustinian Tradi-

cion. Edited by Gareth B. Matthews. Berkeley: University of California Press.

1999.

BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde

as Origens até Nicolau de Cusa. Tradução de Raimundo Vier. 9ª ed. Petró-

polis: Vozes, 2004.

BONNER, Gerald. “St. Augustine of Hippo: Life and Controversies.” In: The Li-

brary of History and Doctrine. London: SCM Press Ltd, 1963.

BOURKE, Vernon J. “The City of God and History”. In: D. F. Donnelly. The City

of God: A Collection of Critical Essays. New York: Peter Lang, 1995.

BROOKES, Edgar H. The City of God and the Politics of Crisis. London; New

York, Cape Town: Oxford University Press, 1960.

BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Tradução de Vera Ribeiro. 7ª

ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2012.

BURLEIGH, John H. “S. Augustine: Earlier Writings.” In: The Library of Chris-

tian Classics. Philadelphia: The Westminster Press, 1953.

BURNABY, John. “Augustine: Later Works.” In: The Library of Christian Clas-

sics. Philadelphia: The Westminster Press. 1955.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristó-

teles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CÍRERO, Marco Túlio. Da República. Tradução e Prefácio de Amador Cisneiros.

Rio de Janeiro: Athena Editora, 1941.

CASTRO, Roberto C.G. [Org.]. O Intérprete do Logos: Textos em Homenagem a

Jean Lauand. São Paulo: Factach Editora, 2009.

CAYRÉ, A. A. Manual of Patrology and the History of Theology. Translated by H.

Howitt, A. A. Paris; Tournai; Roma: Society of St John the Evangelist;

Descleé & Co,1935.

Page 145: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

145

COSTA, M. R. C. Introdução ao pensamento ético-político de Santo Agostinho.

Recife, São Paulo: Universidade Católica de Pernambuco, Edições Loyola,

2009.

COURTOIS, Christian. Les Vandales et l’Afrique. Paris: Arts et Métiers graphiques,

1955.

DANIÉLOU, Jean. Essai sur Le Mystère de L’Histoire. Paris: Editions du Seuil,

1953.

DEANE, Herbert A. The Political and Social Ideas of Saint Augustine. New

York; London: Columbia University Press, 1963.

DE BONI, Luis Alberto. A entrada de Aristóteles no Ocidente Medieval. Porto Ale-

gre: EST Edições/Editora Ulisses, 2010.

DILTHEY, Wilhelm. Hombre y Mundo em los siglos XVI y XVII. Traducción Euge-

nio Ímaz. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1944.

DREHER, Martin. N. “Introdução.” In: LUTERO, Martinho. Da Autoridade Secu-

lar, até que ponto se lhe deve obediência. In: LUTERO, Martinho. Obras Se-

lecionadas. Volume 6: Ética: Fundamentos da Ética Política, Governo, Guer-

ra dos Camponeses, Guerra contra os Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Edi-

tora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia Editora, 1996.

__________. “Introdução.” In: LUTERO, Martinho. Tratado de Martinho Lutero

sobre a Liberdade Cristã. In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volu-

me 2: O Programa da Reforma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sino-

dal; Porto Alegre: Concórdia Editora. 1989.

DUCHROW, Ulrich. Os Dois Reinos: Uso e abuso de um conceito teológico lute-

rano. Tradução de Getúlio Bertelli. São Leopoldo: Sinodal, 1987.

EUSÉBIO DE CESARÉIA. História Eclesiástica. Tradução Monjas Beneditinas do

Mosteiro de Maria Mãe de Cristo. 2 ª ed. São Paulo: Paulus, 2008. (Coleção

Patrística, v. 15)

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée de Bru-

chard. São Paulo: Três Estrelas. 2012.

FISCHER, Joaquim. “Introdução.” In: LUTERO, Martinho. Das Boas Obras. In:

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 2: O Programa da Re-

forma, Escritos de 1520. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre:

Concórdia Editora. 1989.

Page 146: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

146

GARCIA, Antônio (org.). Estudos de Filosofia Medieval: a obra de Raimundo

Vier. Petrópolis; São Paulo: Vozes; Universidade São Francisco, 1997.

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão.

São Paulo: Martins Fontes, 1995.

__________. Evolução da Cidade de Deus. Tradução J. C. O. Torres. São Paulo:

Editora Herder, 1965.

__________. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. Tradução de Cristiane

Negreiros Abbud Ayoub. 2ª. Ed. São Paulo: Discurso Editorial & Paulus,

2010.

__________. Por que São Tomás criticou Santo Agostinho / Avicena e o ponto de

Partida de Duns Escoto. Tradução de Tiago José Risi Leme. São Paulo:

Paulus, 2010.

GUITTON, Jean. The Modernity of Saint Augustine. Translated by A. V. Little-

dale. Baltimore; Maryland: Helicon Press, 1959.

HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu tempo. Tradução Álvaro Cunha e Revi-

são de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1989.

HOLLINGWORTH, Miles. Pilgrim City: St Augustine of Hippo and His Innova-

tion in Political Thought. London; New York: T & T Clark, 2010.

IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé: exposição conforme a doutrina de Lutero.

Tradução de Walter Altmann e Lindolfo Weingärtner. São Leopoldo: Sino-

dal, 1977.

JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul.

Interpretação e ideologias. RJ: Francisco Alves, 1990

JOSGRILBERG, Rui. “O mito, uma interpretação metafórica.” In: JOSGRIL-

BERG, Rui; LAUAND, Luiz Jean. Estudos em Antropologia e Linguagem.

São Paulo: CEMorOc; Factash, 2014.

JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. Tradução Ilson Kayser, Ri-

cardo W. Rieth, Luís M. Sander e Leticia Schach. São Leopoldo: Sinodal,

2001.

LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média: Textos do século V

ao XIII. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

LAURAS, A.; RONDET, H. “Le Thème des Deux Cités dans L’Ouvre de Saint

Augustin.” In. H. Rondet; M. Le Landais; A. Lauras; C. Couturier. Études

Augustiniennes. Paris: AUBIER, 1953

Page 147: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

147

LIENHARD, Marc. Martim Lutero: tempo, vida, mensagem. Tradução Walter

Altmann e Roberto H. Pich. São Leopoldo: Sinodal, 1998.

LÖWITH, Karl. El Sentido de la Historia: Implicaciones Teologicas de la Filoso-

fia de la Historia. Traducción Justo Fernandez Bujan. Madrid: Aguilar, 1968

MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da hu-

manidade através da temporalidade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Pe-

trópolis: Vozes, 1989.

MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998.

MAGNAVACCA, S. Léxico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Uni-

versidad de Buenos Aires – Faculdad de Filosofía y Letras; Miño y Dávila,

2005.

MARÍAS, Julián. Agostinho e a Filosofia. In: LAUAND, João Sérgio (org.). Te-

mas e Figuras do Pensamento Medieval. São Paulo: Factash Editora. 2009.

MARKUS, R. A. Saeculum: History and Society in the Theology of St Augustine.

Cambridge: Cambridge University Press, 1970.

MARROU, Henri-Irénée. Teologia da História: O sentido da caminhada da hu-

manidade através da temporalidade Tradução de Roberto Leal Ferreira. Pe-

trópolis: Vozes, 1989.

MARROU, Henri; LA BONNARDIÈRE, A. M. Santo Agostinho e o agostinismo.

Tradução de Ruy Flores Lopes. Rio de Janeiro: Agir, 1957.

MENDONÇA, Antônio Gouvea. O celeste porvir: a inserção do Protestantismo no

Brasil. São Paulo: USP, 2008.

__________. Introdução ao Protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002.

__________. Protestantes, Pentecostais e Ecumênicos: o campo religioso e seus

personagens. São Bernardo do Campo: UMESP, 2008.

MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998

O’DALY, Gerard. Augustine’s City of God: A reader’s guide. Oxford: Oxford

University Press. 1999.

O’MEARA, John. Charter of Christendom: The Significance of the City of God.

New York: The Macmillan Company, 1961.

PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009

Page 148: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

148

POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. Tradução Monjas Beneditinas. São Paulo:

Paulus, 1997.

RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção: Conversas com François Azouvi e

Mard de Launay. Lisboa: Edições 70, 2009.

__________. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

__________. A Simbólica do Mal. Lisboa: Edições 70, 2013.

__________. “Metáfora e símbolo” In: Teoria da Interpretação: o discurso e o ex-

cesso de significação. Lisboa: Edições 70, 2009.

__________. Tempo e Narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

RIETH, Ricardo. “Introdução” – Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas. In:

In: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Volume 6: Ética: Fundamen-

tos da Ética Política, Governo, Guerra dos Camponeses, Guerra contra os

Turcos, Paz Social. São Leopoldo: Editora Sinodal; Porto Alegre: Concórdia

Editora. 1996.

TESELLE, Eugene. Living in Two Cities: Augustinian Trajectories in Political

Thought. Scranton: University of Scranton Press, 1998.

TILLICH, Paul. A Era Protestante. Tradução de Jaci Marashin. São Paulo: Ciên-

cias da Religião, 1992.

__________. História do Pensamento Cristão. Tradução de Jaci Marashin. São

Paulo: ASTE, 2000.

__________. Teologia da Cultura. Tradução de Jaci Marashin. São Paulo: Fonte

Editorial, 2009.

__________. Teologia Sistemática. Tradução de Getúlio Bertelli e Geraldo Korndör-

fer. 5ª Ed. São Leopoldo: EST & Sinodal, 2005.

URBANO, Carlota Miranda. “Introdução”. In: AGOSTINHO, Santo. O De excí-

dio Urbis e outros sermões sobre a queda de Roma. Tradução do Latim, In-

trodução e notas de Carlota Miranda Urbano. Coimbra: Centro de Estudos

Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2010.

VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A

study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cam-

bridge, 1990.

VIGNAUX, Paul. Luther: commentateur des setences (Livre I, Distinction XVII).

Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1935.

Page 149: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

149

VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions

Ouvrières: Paris, 2008,

WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. Tradução de

Geraldo Korndörfer. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2008

IV. Artigos e publicações em periódicos

ARNAL, Oscar L. “Luther and the Peasants: A Lutheran Reassessment”. In: Sci-

ence & Society. Vol. 44, n. 4 (Winter), p. 443-465, 1980-1981. Disponível

em < http://www.jstor.org/stable/40402275>.

BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. “Estado e Educação em Martinho Lutero: A

origem do direito a educação.” In: Caderno de Pesquisa, São Paulo, vol. 41,

no. 144, 2011, p. 866-885. Disponível em

http://www.scielo.br/pdf/cp/v41n144/v41n144a12.pdf

BUSQUEST D, Joan. “Recepción de Agustín em El pensamiento de Lutero.” In:

Teologia viva. Vol. 43, no.2-3, 2002, p. 121-137. Disponível em:

http://www.scielo.cl/pdf/tv/v43n2-3/art04.pdf

DREHER, Martin N. “Martinho Lutero (1483-1546) e Tomás Muntzer (1489-

1525): A justificação teológica da autoridade secular e da revolução políti-

ca.” In: Veritas, Porto Alegre, vol. 51, no. 3, Setembro de 2006, p. 145-168.

Disponível em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/1836/136

6

__________. “A theologia crucis de Lutero e o tema da teologia da Libertação.”

In: Estudos Teológicos, América do Note, no. 28, fev. 2014. Disponível em:

http://est.tempsite.ws/periodicos/index.php/estudos_teologicos/article/view/

1156/1122

DITTRICH, Ivo José. “O discurso de Lutero contra os camponeses: retórica da

ação”. In: Antares. Caxias do Sul, vol. 4, no. 8, p. 111-124, julho/dezembro,

2012. Disponível em

<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/view/1407/1161>.

GREGGERSEN, Gabriele. “Concepção de História em A Cidade de Deus de San-

to Agostinho”. In: Itinerários. Araraquara, n.23, p. 69-83, 2005. Disponível

em <seer.fclar.unesp.br/itinerários/article/download/2807/2560 >.

Page 150: UM DIÁLOGO SOBRE O PENSAMENTO ÉTICO E POLÍTICO …tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/344/1/Lucas Andrade Ribeiro.pdf · AGOSTINHO E LUTERO POR ... que se refere às metáforas

150

GRENDLER, Paul. F. “The Universities of the Renaissance and Reformation”. In:

Renaissance Quarterly. University of Chicago Press; Renaissance Society

of America. Vol. 57, no. 1 (Spring), p. 1-42, 2004. Disponível em

http://www.jstor.org/stble/1262373

SIMIELLE, Javier. “Lutero y la política.” In: Enfoques, vol. 22, no.1, p. 71-90.

2010. Disponível em:

http://www.scielo.org.ar/pdf/enfoques/v22n1/v22n1a06.pdf

MALYSZ, Piotr J. p. 367. “Nemo iudex in causa sua as the Basis of Law, Justice,

and Justification in Luther's Thought”. In: The Harvard Theological Re-

view. Cambridge University Press; Havard Divinity School. Vol. 100, no. 3

(July), p. 363-386, 2007. Disponível em

<http://www.jstor.org/stable/4495123>.

PORTER, J. M. “Luther and Political Millenarianism: The Case of the Peasant’s

War”. In: Journal of the History of Ideas. University of Pennsylvania Press.

Vol. 42, n. 3 (Jul. – Sep.), p. 389-406, 1981. Disponível em

<http://www.jstor.org/stable/2709183>.

WHITFORD, David M. “Cura Religionis or Two Kingdoms: The Late Luther on

Religion and the State in the Lectures on Genesis”. In: Church History.

Cambridge University Press; American Society of Church History. Vol. 73,

no. 1 (March), p. 41-62, 2004. Disponível em

http://www.jstor.org/stable/4146598

V. Dissertações e teses

SILVA FILHO, L. M. A definição de populus n’ A Cidade de Deus de Agostinho:

uma controvérsia com Da República de Cícero. 2008. 205p. Mestrado em Fi-

losofia – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. São Paulo:

Universidade de São Paulo – USP.