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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, vol. 43, e20200486 (2021) Produtos e Materiais Did´ aticos www.scielo.br/rbef cb DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Licenc¸a Creative Commons Um experimento did´ atico potencialmente instigante envolvendo a reflex˜ ao da luz em um caso aparentemente misterioso A potentially thought-provoking didactic experiment involving light reflection in an apparently mysterious case Rodrigo Weber Pereira *1 , Leonardo Albuquerque Heidemann 1 , Eliane Angela Veit 1 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de F´ ısica, Porto Alegre, RS, Brasil. Recebido em 24 de novembro de 2020. Revisado em 13 de julho de 2021. Aceito em 13 de julho de 2021. Discute-se um experimento did´atico que envolve conceitos e leis da ´ otica (p. ex., ˆ angulo de Brewster, equa¸ oes de Fresnel, polariza¸ c˜ao) inseridos em uma atividade com enfoque no processo de modelagem cient´ ıfica concebida para aulas de laborat´ orio de cursos de gradua¸ ao em F´ ısica. A atividade ´ e motivada por uma situa¸ ao-problema que envolve um aparente mist´ erio relacionado com o desaparecimento de um objeto nas profundezas de um lago de ´aguas cristalinas. Para desvendar o aparente mist´ erio, ´ e aventado que a reflex˜ ao e transmiss˜ ao da luz solar pela superf´ ıcie do lago tˆ em papel determinante na explica¸ ao do fenˆ omeno. Um modelo te´ orico ´ e,ent˜ao,constru´ ıdo e avaliado por meio de um experimento em que a luz de um laser, polarizada na dire¸ ao paralela e perpendicular ao plano de incidˆ encia, ´ e refletida na superf´ ıcie da ´ agua contida em uma cuba. Mostra-se que esse modelo ´ e capaz de prever o desaparecimento, ao longo da tarde, de uma moeda contida em uma cuba com um pouco de ´ agua e iluminados pela luz solar. Entendemos que o presente artigo contribui para o ensino de F´ ısica na medida em que traz uma atividade que fomenta a vincula¸ ao entre conhecimentos te´ oricos e pr´ aticos a partir de um problema potencialmente instigante, contribuindo para que os estudantes construam sentido para conhecimentos cient´ ıficos e compreendam elementos centrais do trabalho experimental da perspectiva da modelagem cient´ ıfica. Palavras-chave: Equa¸ oes de Fresnel, polariza¸ ao da luz, modelagem cient´ ıfica, atividades experimentais, laborat´ orio did´ atico. A didactic experiment involving concepts and laws of optics (e.g., Brewster angle, Fresnel equations, polarization) is inserted in an activity focusing on the scientific modeling process designed for laboratory classes in an undergraduate Physics course. The activity is motivated by a problem that involves an apparent mystery related to the disappearance of an object in the dephts of a crystal clear lake. To unravel the apparent mystery, it is suggested that the reflection and transmission of sunlight across the lake’s surface has a determining role in explaining the phenomenon. A theoretical model is then built and evaluated by means of an experiment in which a laser light, polarized in the parallel and perpendicular direction to the plane of incidence, is reflected on the surface of water contained in a vat. It is shown that this model is capable of predicting the disappearance, during the afternoon, of a coin contained in a vessel with a little water and illumintated by sunlight. We understand that this article contributes to the teaching of Physics, as it brings an activity that promotes the connection between theoretical and practical knowledge from a potentially exciting problem, aiding students to build meaning from scientific knowledge and understand central elements of the experimental work from the perspective of scientific modeling. Keywords: Fresnel equations, polarization of light, scientific modeling, experimental activities, didactic laboratory. 1. Introdu¸ ao No livro intitulado “Surely You’re Joking Mr. Feynman” [1], Richard Feynman tece cr´ ıticas ao sistema educacio- nal brasileiro com base em suas experiˆ encias no Brasil durante a d´ ecada de 1950. Em aulas ministradas para um grupo de alunos que se tornariam professores de ısica, Feynman ficou surpreso ao constatar que mesmo * Endere¸co de correspondˆ encia: [email protected] alunos que conheciam o conceito de ˆangulodeBrewster sendo capazes de expor defini¸c˜ oes precisas para ele – tinham dificuldades em utilizar esse conhecimento em explica¸ oes sobre eventos reais. Em uma ocasi˜ ao narrada nesse livro, Feynman pergunta aos estudantes como seria poss´ ıvel determinar a dire¸ ao absoluta de polariza¸c˜ ao de um polarizador, tendo dispon´ ıvel um ´ unico polarizador. Percebendo que ao obteria respostas, provocou os alunos pedindo que olhassem para a luz refletida na ´ agua em uma ba´ ıa atrav´ es do polarizador, girando-o. Ao fazer Copyright by Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

Um experimento did´atico potencialmente instigante

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486 (2021) Produtos e Materiais Didaticoswww.scielo.br/rbef cb

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Licenca Creative Commons

Um experimento didatico potencialmente instiganteenvolvendo a reflexao da luz em um caso aparentemente

misteriosoA potentially thought-provoking didactic experiment involving light reflection in an apparently

mysterious case

Rodrigo Weber Pereira*1 , Leonardo Albuquerque Heidemann1 , Eliane Angela Veit1

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Fısica, Porto Alegre, RS, Brasil.

Recebido em 24 de novembro de 2020. Revisado em 13 de julho de 2021. Aceito em 13 de julho de 2021.

Discute-se um experimento didatico que envolve conceitos e leis da otica (p. ex., angulo de Brewster, equacoesde Fresnel, polarizacao) inseridos em uma atividade com enfoque no processo de modelagem cientıfica concebidapara aulas de laboratorio de cursos de graduacao em Fısica. A atividade e motivada por uma situacao-problemaque envolve um aparente misterio relacionado com o desaparecimento de um objeto nas profundezas de um lagode aguas cristalinas. Para desvendar o aparente misterio, e aventado que a reflexao e transmissao da luz solar pelasuperfıcie do lago tem papel determinante na explicacao do fenomeno. Um modelo teorico e, entao, construıdo eavaliado por meio de um experimento em que a luz de um laser, polarizada na direcao paralela e perpendicularao plano de incidencia, e refletida na superfıcie da agua contida em uma cuba. Mostra-se que esse modelo e capazde prever o desaparecimento, ao longo da tarde, de uma moeda contida em uma cuba com um pouco de agua eiluminados pela luz solar. Entendemos que o presente artigo contribui para o ensino de Fısica na medida em quetraz uma atividade que fomenta a vinculacao entre conhecimentos teoricos e praticos a partir de um problemapotencialmente instigante, contribuindo para que os estudantes construam sentido para conhecimentos cientıficose compreendam elementos centrais do trabalho experimental da perspectiva da modelagem cientıfica.Palavras-chave: Equacoes de Fresnel, polarizacao da luz, modelagem cientıfica, atividades experimentais,laboratorio didatico.

A didactic experiment involving concepts and laws of optics (e.g., Brewster angle, Fresnel equations,polarization) is inserted in an activity focusing on the scientific modeling process designed for laboratory classesin an undergraduate Physics course. The activity is motivated by a problem that involves an apparent mysteryrelated to the disappearance of an object in the dephts of a crystal clear lake. To unravel the apparent mystery,it is suggested that the reflection and transmission of sunlight across the lake’s surface has a determining role inexplaining the phenomenon. A theoretical model is then built and evaluated by means of an experiment in whicha laser light, polarized in the parallel and perpendicular direction to the plane of incidence, is reflected on thesurface of water contained in a vat. It is shown that this model is capable of predicting the disappearance, duringthe afternoon, of a coin contained in a vessel with a little water and illumintated by sunlight. We understand thatthis article contributes to the teaching of Physics, as it brings an activity that promotes the connection betweentheoretical and practical knowledge from a potentially exciting problem, aiding students to build meaning fromscientific knowledge and understand central elements of the experimental work from the perspective of scientificmodeling.Keywords: Fresnel equations, polarization of light, scientific modeling, experimental activities, didacticlaboratory.

1. Introducao

No livro intitulado “Surely You’re Joking Mr. Feynman”[1], Richard Feynman tece crıticas ao sistema educacio-nal brasileiro com base em suas experiencias no Brasildurante a decada de 1950. Em aulas ministradas paraum grupo de alunos que se tornariam professores deFısica, Feynman ficou surpreso ao constatar que mesmo

* Endereco de correspondencia: [email protected]

alunos que conheciam o conceito de angulo de Brewster –sendo capazes de expor definicoes precisas para ele –tinham dificuldades em utilizar esse conhecimento emexplicacoes sobre eventos reais. Em uma ocasiao narradanesse livro, Feynman pergunta aos estudantes como seriapossıvel determinar a direcao absoluta de polarizacao deum polarizador, tendo disponıvel um unico polarizador.Percebendo que nao obteria respostas, provocou osalunos pedindo que olhassem para a luz refletida na aguaem uma baıa atraves do polarizador, girando-o. Ao fazer

Copyright by Sociedade Brasileira de Fısica. Printed in Brazil.

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e20200486-2 Um experimento didatico potencialmente instigante envolvendo a reflexao da luz

isso, os estudantes perceberam que parte da luz refletidapela agua era polarizada na direcao horizontal, como ateoria descrita por eles mesmos previa. Assim, girando opolarizador ate que observassem a mınima intensidadeda luz transmitida, era possıvel identificar a direcaoabsoluta de polarizacao (vertical) do polarizador.

O episodio narrado evidencia como a mera memo-rizacao, desprovida de significado, se traduz em difi-culdade de operacionalizar um conhecimento cientıfico.Essa dificuldade, persistente nos dias atuais [2], eatribuıda, em grande parte, a forma desvinculada comque disciplinas teoricas e experimentais sao tradicional-mente tratadas nos cursos de Fısica. Neste artigo, propo-mos uma forma de articular teoria e pratica envolvendo ofenomeno de polarizacao da luz. Inspiramo-nos na lindapaisagem ilustrada na Figura 1.

Figura 1: Um lago de aguas claras em um dia ensolarado [3].

Na Figura 1, nota-se que, apesar das aguas do lagoserem cristalinas, somente as pedras mais proximasda margem sao visualizadas. Observando a agua emposicoes mais distantes da margem, percebe-se que aspedras desaparecem, dando lugar a imagem do ceu comsuas nuvens espelhadas na superfıcie do lago. Motivadospor esse fenomeno, propomos uma atividade didaticaexperimental, em nıvel de graduacao, na qual umasituacao-problema fictıcia potencialmente instigante aosestudantes serve como mote. Essa situacao-problema ea seguinte:

“Um boato sobre uma relıquia mıstica de umatribo ancestral motivou a expedicao de umgrupo de arqueologos na regiao em que alenda se refere. Segundo guias locais, a lendaconta que a relıquia pode ser vista no fundode um lago de aguas cristalinas a partirda sua margem e observando no sentidooeste. Porem, segundo a lenda, a relıquiaso e visıvel por volta do meio dia, desapa-recendo misteriosamente ao longo da tarde.Intrigada com a situacao, uma arqueologaquestiona se a reflexao da luz solar sobrea superfıcie da agua pode de alguma formaofuscar a imagem do fundo do lago. Quaisfatores influenciam na intensidade daluz solar refletida pela superfıcie? Emquais condicoes a relıquia e visıvel para

um observador parado na margem dolago?”

O fenomeno do desaparecimento da relıquia ao longoda tarde em um dia ensolarado pode ser constatadocom a observacao, em um mesmo dia e local, emhorarios diferentes, de uma moeda em uma cuba cheiad’agua, como ilustrado na Figura 2. Evidentemente, nasituacao descrita na lenda, a relıquia estaria em umaprofundidade maior, porem seu desaparecimento podeser explicado pelos mesmos mecanismos responsaveis porocultar a moeda dentro da cuba. Em outras palavras, odesaparecimento da relıquia e da moeda sao situacoesanalogas.

Figura 2: O desaparecimento de uma moeda ao longo da tardeem Porto Alegre, RS. As fotos foram tiradas no dia 10/03/2021,posicionando a camera no sentido oeste, as: (a) 12h50min,(b) 13h30min e (c) 17h34min.

Na Figura 2(a) fica evidente que, no inıcio da tarde,nao apenas a moeda pode ser vista, como tambem todoo fundo do recipiente e o piso abaixo. A imagem daFigura 2(b) foi tirada pouco depois, em outro angulode visada; ve-se que a moeda e visıvel mesmo quandoobservada diretamente contra o Sol. Ao longo da tarde,a intensidade da luz refletida pela superfıcie aumentasignificativamente, ofuscando a luz que vem do fundo dorecipiente: essencialmente se enxerga a imagem do Sol edo ceu refletidos na superfıcie da agua (Figura 2(c)).

Nossa proposta e que professores de cursos de gra-duacao em Fısica explorem essa situacao-problema emaulas de Fısica Experimental. Os alunos podem com-preender o desaparecimento da moeda e da relıquiaatraves de um experimento didatico envolvendo medidasdo coeficiente de reflexao de luz polarizada paralelae perpendicularmente ao plano de incidencia. Espera-se envolver os estudantes em uma atividade de cunhomais aberto do que as tradicionais, cabendo a eles,em pequenos grupos, tomar decisoes em uma inves-tigacao experimental que lhes permita avancar nosconhecimentos necessarios para uma resposta plausıvela situacao-problema. Desse modo, pretendemos motivaros estudantes a se engajarem em uma investigacao comapelo, que, apesar de fictıcia, e instigante e envolve umfenomeno real, ilustrado nas Figuras 1 e 2. No entanto,tratando-se de uma atividade com fins didaticos, naose tem a expectativa de que os estudantes construiraouma representacao como um fısico faria, mas sim de queprecisarao refletir sobre as simplificacoes da realidade

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486

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consideradas nos modelos cientıficos, possibilitando queatribuam sentido a conceitos do campo da Optica.Desse modo, espera-se contribuir para a superacao doparadigma educacional denunciado por Feynman, emque os estudantes se limitavam a decorar definicoes e naoconseguiam relacionar os conceitos com situacoes reais.

Na atividade, o professor se limita a apresentar asituacao-problema motivante, bem como as fotos damoeda desaparecendo, e dar algumas ideias e funda-mentos teoricos para o encaminhamento da solucao. Porexemplo, e essencial se compreender que:

(i) o tipo de polarizacao da luz solar e fundamentalpara entender o desaparecimento da moeda, ja quea intensidade da luz refletida e transmitida pelaagua e dependente dessa propriedade.

(ii) a visibilidade da moeda e determinada pela con-correncia de raios de luz vindos do Sol, sendo quealguns deles refletem na moeda, sofrendo trans-missao na interface ar-agua duas vezes (quandopenetram e saem da agua), e outros sofrem apenasreflexao na superfıcie da agua1. O observadorenxerga a moeda se a intensidade da luz solar nelarefletida chegar aos seus olhos com intensidademaior do que a da luz refletida na superfıcie daagua2.

Na investigacao proposta, o modelo teorico a serempregado e baseado nas equacoes de Fresnel. Se aatividade e proposta em nıvel de fısica geral, dificil-mente os estudantes ja tem conhecimento desse modelo.Entao, cabe ao professor explanar seus fundamentos eas equacoes relevantes, em particular equacoes relativasa polarizacao perpendicular e paralela ao plano deincidencia, e aos coeficientes de reflexao R e transmissaoT da luz na interface entre dois meios.

Para enfrentar situacoes-problemas de Fısica, vincu-lando teoria e pratica, temos nos apoiado na ModelagemDidatico-Cientıfica (MDC+) [5, 6]. Em linhas gerais, es-peramos que os estudantes gradativamente desenvolvamcapacidades para empreender acoes fundamentais para amodelagem de situacoes-problemas, como selecionar osobjetos reais (ou supostos como tais) que serao conside-rados no modelo, idealizar, construir modelos conceituaise teoricos a luz de alguma teoria; leva-los a compreenderque investigacoes experimentais devem ser amparadaspor modelos cientıficos que dirigem o delineamento,execucao e analise dos resultados experimentais; quedeve haver controle de variaveis para evitar o efeito defatores nao considerados nos modelos e que os resultados

1 Estamos assumindo que a luz solar e muito mais intensa do quequalquer outra fonte luminosa no ambiente. Isso e plausıvel, comomostra a Figura 2(c), tirada com a camera orientada na direcaooeste ao entardecer, tentando visualizar a moeda.2 Apesar de o olho humano compensar diferencas de luminosidade,adaptando sua resposta sensitiva como uma funcao logarıtmicada intensidade luminosa [4], como pretendemos tao somenteresponder ao questionamento da arqueologa, desconsideramos esseefeito.

devem ser validados por meio da contrastacao empıricaentre predicoes e evidencias.

Em recente artigo [7], elucidamos como uma atividadeexperimental sobre o fenomeno da atenuacao da luzpela materia pode ser conduzida usando um Episodiode Modelagem [8] como estrategia para colocar emacao conceitos fundamentais da MDC+. Tınhamos comoobjetivo evidenciar o conceito de expansao de um modeloteorico atraves da Lei de Beer-Lambert, que descreve aperda da energia luminosa ao atravessar meios materiais.Nesta atividade sobre a interacao da luz polarizadacom a materia, privilegiamos o conceito de controlede variaveis. A situacao e adequada para dar enfoqueao controle de variaveis porque os estudantes precisamcontrolar, por exemplo, a direcao de polarizacao daluz que incide na agua (perpendicular ou paralela aoplano de incidencia), medir o angulo de incidencia daradiacao com alguma precisao, coletar as intensidadesda luz incidente e refletida na agua com a utilizacaode luxımetros, controlar o alinhamento entre fontes edetectores. Outros aspectos relativos ao controle devariaveis sao discutidos na Secao 3, quando sao debatidosos procedimentos de contrastacao empırica.

Na proxima secao, discutimos o modelo teorico dereferencia para a realizacao do experimento. Na Secao 3,apresentamos a montagem experimental e analisamos osdados. Na Secao 4, resolvemos o problema do desapare-cimento da moeda e da relıquia, e na Secao 5 tecemos asconclusoes e fazemos as consideracoes finais.

2. Interacao da RadiacaoEletromagnetica com MeiosDieletricos

Para entender o desaparecimento da moeda, passamosa representar a situacao de forma idealizada, levandoem consideracao apenas dois raios de luz provenientesdo Sol, como ilustrado na Figura 3. Essa representacaotambem considera a moeda como uma superfıcie per-feitamente plana, desprezando efeitos decorrentes dereflexao difusa. A comparacao entre as intensidades re-fletidas e transmitidas na superfıcie da agua desses raiosde luz para diferentes angulos de incidencia determinaa visibilidade da moeda. A intensidade da luz, por suavez, pode ser estimada conhecendo-se a amplitude docampo eletrico associado a radiacao, que varia quando aluz sofre reflexao/transmissao atraves de uma interface,dependendo da polarizacao da luz incidente e do angulode incidencia.

Um modelo teorico que representa essa situacao podeser construıdo baseado nas equacoes de Fresnel, que des-crevem a amplitude relativa do campo eletrico refletido etransmitido pela interface que separa dois meios. Atravesdessas equacoes, obtem-se os coeficientes de reflexao Re transmissao T , grandezas contrastaveis no laboratoriodidatico que essencialmente relacionam as intensidadesda luz ao sofrer reflexao/transmissao.

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021

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Figura 3: Dois dos principais raios de luz que formam imagemna retina do observador em diferentes horas do dia. Um deles,refratado na superfıcie da agua, reflete na moeda, contribuindopara a sua visualizacao; outro, reflete diretamente na superfıcieda agua, nao contribuindo para a visualizacao da moeda. Aconcorrencia entre as intensidades de raios como esses ajudama estimar se a moeda e visıvel ou nao. A espessura das linhasque representam os raios de luz diminuem gradualmente ate osolhos do observador, simbolizando a perda de intensidade.

Ainda que a atividade seja dirigida para estudantesde graduacao, como o publico-alvo deste artigo saoprofessores de Ensino Superior familiarizados com amanipulacao das equacoes exploradas, optamos por ex-por nas subsecoes seguintes o modelo teorico utilizadosem qualquer demonstracao. Uma deducao completadas equacoes, baseada na teoria eletromagnetica classica[9–13], e colocada a disposicao no Material SuplementarA deste artigo. Nele, apresentamos a teoria de formaintegral para: (i) destacar o processo de modelagemcientıfica da situacao fısica representada pela reflexaoe transmissao da luz nao polarizada pela interfaceentre dois meios; (ii) esclarecer alguns dos processos deinteracao da radiacao com a materia, podendo servirde material de apoio para professores interessados emaplicar essa atividade em sala de aula.

2.1. Luz polarizada

Considere uma onda eletromagnetica, com irradiancia Ii,em W/m2, incidindo na interface que separa dois meios.Apos a interacao, parte da luz e refletida com irradianciaIr, e parte e transmitida (It) atraves do meio. Define-seo coeficiente de reflexao R e transmissao T pela razao:

R = IrIi, (1)

T = ItIi. (2)

Pela definicao, os coeficientes representam o percen-tual da energia refletida e transmitida pela interface.A soma das intensidades da luz refletida e transmitidanao pode ser maior que a intensidade da luz incidente;logo, valem as relacoes R < 1 e T < 1. Admitindo quenao foi perdida energia para o meio, temos:

R+ T = 1. (3)

E possıvel determinar R e T no laboratorio didaticocom a utilizacao de um luxımetro (caso o laboratorionao disponha desse aparelho, o sensor de luminosidadede um celular pode ser usado3). Esse aparelho possuisensibilidade espectral apenas na regiao do visıvel esuas medidas levam em consideracao a sensibilidade doolho humano aos diversos comprimentos de onda nessafaixa, atraves da chamada Funcao Luminosidade [14].Ao trabalhar com radiacao monocromatica, no entanto,a iluminancia, em lux (1 lux = 1 lumen por m2), e dire-tamente proporcional a irradiancia absoluta. Por contadisso, em vez de medir a irradiancia I um luxımetromede a Iluminancia EV , em lux – uma grandeza tıpicada fotometria [7]. Conhecendo-se a eficacia luminosa deuma fonte de luz, podemos converter a irradiancia emiluminancia e vice-versa. Por exemplo, a eficacia lumi-nosa do Sol e de ∼100 lm/W [15]. Isso implica que, seuma regiao for iluminada pelo Sol com uma irradianciade 300 W/m2, a iluminancia medida por um luxımetrosera de 30 klux. Uma vez que R e T sao definidos atravesda razao entre as mesmas grandezas (Eqs. 1 e 2), oresultado independe da unidade de medida utilizada aocalcula-los. A partir de agora, desenvolvemos expressoesque permitem calcular esses coeficientes teoricamente.

Considere uma onda eletromagnetica monocromatica,linearmente polarizada4, incidindo em um meiodieletrico, isotropico e linear, como na Figura 4(a)e (b). A radiacao esta representada na forma de ondasplanas, sendo polarizada perpendicularmente ao planode incidencia (Figura 4a) e paralelamente ao plano deincidencia (Figura 4b). A representacao da radiacao pormeio de ondas planas nao diminui o grau de genera-lizacao dos resultados, ja que toda radiacao pode serescrita como uma combinacao de ondas planas. Estaorepresentados apenas a amplitude do campo eletrico ( ~E),

Figura 4: Luz polarizada incidindo na interface entre dois meios.O plano de incidencia corresponde ao plano da pagina. (a) Luzpolarizada perpendicularmente ao plano de incidencia. (b) Luzpolarizada paralelamente ao plano de incidencia.

3 Um aplicativo util para esse fim e o PhysicsToolbox, que permiteusar o sensor de luminosidade do telefone para medir iluminancia.Nesse caso, e preciso verificar as especificacoes tecnicas do sensordo celular para evitar danifica-lo com luz de intensidade muitoelevada.4 A direcao de polarizacao da luz e definida pela direcao deoscilacao do campo eletrico.

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486

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para evidenciar a direcao de polarizacao, o vetor de onda(k), que determina a direcao de propagacao da luz, e osangulos de incidencia (θi), reflexao (θr) e transmissao(θt) pela superfıcie – considerada perfeitamente plana.A interface separa dois meios com ındice de refracao n1e n2, tal que n2 > n1.

Os primeiros resultados importantes que emergemdessa representacao sao as conhecidas identidadesθi = θr (lei da reflexao) e n1senθi = n2senθt (lei deSnell), que podem ser derivadas a partir de imposicoes

puramente cinematicas sobre o comportamento ondu-latorio da luz.

Por meio das equacoes de Fresnel, e possıvel relaci-onar as amplitudes dos campos eletricos da radiacaoincidente, refletida e transmitida. A partir dessas ampli-tudes, calcula-se teoricamente os coeficientes de reflexaoR e transmissao T pelo vetor de Poynting, que relacionaa amplitude do campo eletrico com a irradiancia I daluz. No Quadro 1 apresentamos as expressoes para cadatipo de polarizacao.

Quadro 1: Coeficientes de reflexao e transmissao da luz polarizada perpendicular ou paralela ao plano de incidencia. Esses coeficientessao deduzidos no Material Suplementar A.

Polarizacao Reflexao Transmissao

Perpendicular ao plano de incidencia R⊥ =(n1 cos θi − n2 cos θt

n1 cos θi + n2 cos θt

)2T⊥ = tgθi

tgθt

( 2n1 cos θi

n1 cos θi + n2 cos θt

)2

Paralela ao plano de incidencia R‖ =(n2 cos θi − n1 cos θt

n2 cos θi + n1 cos θt

)2T‖ = tgθi

tgθt

( 2n1 cos θi

n2 cos θi + n1 cos θt

)2

As equacoes no Quadro 1 permitem calcular a fracaode energia refletida ou transmitida por uma interface,dependendo da polarizacao da luz. Lembramos que osangulos de incidencia e transmissao nao sao independen-tes, ja que um pode ser escrito em funcao do outro pelalei de Snell, isto e: θt = sen−1[(n1/n2)senθi]. Portanto,para calcular os coeficientes de reflexao e transmissao,basta conhecer os ındices de refracao de cada meio e oangulo de incidencia.

Mostramos que e possıvel estimar a fracao de energiarefletida e transmitida pela interface ar-agua quandoa direcao de polarizacao e perpendicular ou paralelaao plano de incidencia. A luz do Sol, no entanto,nao e polarizada. Abordamos essa situacao na proximasubsecao.

2.2. Luz nao polarizada

Os coeficientes de reflexao e transmissao da luz naopolarizada podem ser obtidos considerando o caso geralde luz linearmente polarizada em direcao arbitraria.Considere a situacao na qual a luz incidente (com angulode incidencia θi arbitrario) tem polarizacao que formaum angulo Φ com o plano de incidencia, como represen-tado na Figura 5. Nesse caso, a radiacao tem, simulta-neamente, componentes perpendiculares e paralelas aoplano de incidencia e a direcao de propagacao da luz.

Por decomposicao das componentes do campo eletrico,obtem-se os seguintes coeficientes de reflexao e trans-missao, que sao deduzidos no Material Suplementar Adeste artigo:

RΦ = R‖ cos2 Φ +R⊥sen2Φ e (4)

TΦ = T‖ cos2 Φ + T⊥sen2Φ, (5)

Figura 5: Luz polarizada em direcao arbitraria. A linha verdecontida no plano representa a luz incidente.

onde R‖, R⊥, T‖ e T⊥ estao especificados no Quadro 1.Usaremos esse resultado para estudar a luz nao polari-zada, como a que vem diretamente do Sol.

Luz nao polarizada (ou luz natural) e caracterizadapela ausencia de direcao preferencial na oscilacao docampo eletrico. Alem disso, diferentes componentes docampo eletrico nao apresentam coerencia entre si, es-tando fora de fase. No entanto, e possıvel conceberque, a qualquer instante, a componente resultante docampo eletrico paralela ao plano de incidencia e igual acomponente perpendicular, situacao na qual o angulo Φna Figura 5 e 45◦. Dessa forma, os coeficientes de reflexaoRnp e transmissao Tnp da luz nao polarizada podem sercalculados substituindo Φ = 45◦ nas Equacoes 4 e 5:

Rnp =R‖ +R⊥

2 e (6)

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021

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Tnp =T‖ + T⊥

2 , (7)

ou seja, a media aritmetica entre os coeficientes dereflexao e transmissao da luz polarizada paralela ouperpendicularmente ao plano de incidencia (Quadro 1).A relacao que expressa a conservacao de energia e validaem todas as situacoes de polarizacao, de forma que evalido escrever, por exemplo: Rnp + Tnp = 1.

E importante destacar que as equacoes apresentadaspara descrever a reflexao e transmissao da luz sao validasapenas para meios dieletricos. A interacao da luz commetais, por exemplo, e mais complicada porque as cargaslivres desse meio absorvem parte da radiacao. Nao estano escopo desse artigo tratar desse tipo de interacao emdetalhes, apesar de utilizarmos resultados da literaturamais adiante para estimar a fracao de energia refletidapela moeda e pela relıquia – supostamente metalica.

Nesta secao, foi apresentado um modelo para represen-tar a interacao da radiacao eletromagnetica com meiosdieletricos. Essas relacoes dao suporte teorico as inves-tigacoes empıricas que permitem dar sentido ao conceitode polarizacao da luz, bem como resolver o problema dodesaparecimento da moeda e da relıquia. Na proximasecao, explicitamos a montagem usada na investigacao eo processo de contrastacao empırica entre as predicoesdo modelo teorico e evidencias experimentais.

3. Medida da Reflexao da Luz na Agua

Nosso objetivo foi determinar a condicao de visibilidadede objetos submersos na agua quando a luz solar con-corre para formacao de sua imagem. Para isso, cons-truımos um modelo teorico capaz de prever a intensidadeda luz refletida e transmitida pela agua. Por meioda investigacao realizada, buscamos simultaneamentevalidar o modelo – avaliando sua capacidade preditiva – econstruir evidencia empırica que fundamenta explicacoessobre o fenomeno.

3.1. Delineamento experimental e controle devariaveis

O experimento consistiu em incidir a luz de um lasercom iluminancia conhecida (EV0) em uma porcao d’aguade torneira e medir a iluminancia da luz refletida (EV )para alguns angulos de incidencia (θi), como mostra aFigura 6. O angulo de incidencia e medido com auxılio deum anteparo. Foi possıvel, assim, calcular o coeficientede reflexao da luz. O coeficiente de transmissao pode sercalculado teoricamente a partir da Equacao 3.

A montagem da Figura 6 tem a vantagem de permitiro calculo do angulo de incidencia θi com razoavelprecisao, tendo incertezas iguais ou menores que 0,5◦nessa variavel. Um aparente problema advem do fato deque a luz solar, alvo do nosso estudo, e policromatica,enquanto o laser utilizado projeta luz monocromatica.Destacamos, no entanto, que o modelo teorico foi ori-

Figura 6: A posicao do anteparo pode ser ajustada para que aluz refletida incida sempre na mesma altura “h” (p. ex. sua bordasuperior). Uma vez que “a” – a altura da superfıcie da agua –permanece constante, apenas a distancia “d” varia ao mudar oangulo de incidencia, sendo a unica variavel a ser medida cadavez que se muda a direcao de incidencia da luz.

ginalmente concebido para descrever situacoes de ra-diacao monocromatica, de forma que um experimentousando qualquer fonte de luz nao monocromatica (p. ex.,lampada incandescente) – simulando luz solar – deixariade satisfazer esse pressuposto teorico. Esse fato naorepresenta um problema porque, em vez de estudar aluz do Sol propriamente dita, podemos nos concentrarem entender o comportamento de uma componenteespecıfica do espectro eletromagnetico solar (o laserutilizado tem comprimento de onda 670 nm). O enten-dimento promovido nesse estudo, ainda que limitado,pode servir de base para entender o comportamento maiscomplexo da radiacao solar. Dessa forma, o professortem a oportunidade de discutir um aspecto importantesobre a natureza da construcao do conhecimento ci-entıfico, a saber: experimentos cientıficos sao sempresituacoes artificiais, controladas, que podem ser usadaspara compreender um fenomeno complexo a partir deuma situacao produzida.

De fato, uma maneira de estudar a luz nao polarizada emonocromatica – representando uma unica componenteda radiacao proveniente diretamente do Sol – consisteem produzir, separadamente, luz polarizada paralela eperpendicular ao plano de incidencia com um laser decomprimento de onda bem definido. Como vimos, aluz nao polarizada pode ser representada simplesmentecomo a media aritmetica entre as grandezas R⊥ e R‖.Podemos assim avaliar a reflexao da luz polarizada per-pendicular e paralela ao plano de incidencia, e via mediaaritmetica desses resultados, obter o comportamentopara luz nao polarizada.

Assim, torna-se fundamental controlar a direcao depolarizacao da luz do laser. Embora existam laserspotentes e/ou superestaveis, os lasers mais comunsnos laboratorios didaticos sao os de gas He-Ne e olaser semicondutor (ponteira laser). Enquanto os laserssemicondutores apresentam polarizacao linear imediata-mente apos ligados, os de gas geralmente demoram cercade uma hora para estabilizar a direcao de polarizacao,embora existam variedades de lasers de gas com pola-rizacao perfeitamente definida imediatamente ao serem

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ligados5 [16]. Por conta dessa oscilacao, da limitacaode tempo das aulas de laboratorio e do menor custo6,recomenda-se a utilizacao de lasers semicondutores.O diodo laser utilizado nesse experimento foi da marcaPHYWEr 41736.0E (670 nm, 7 mW, com adaptador de12 mm). Independente da qualidade do laser utilizado,o tempo de estabilizacao pode aumentar com o usorotineiro no laboratorio. Por isso, neste experimento,como forma de estabilizar a direcao de polarizacao da luzdo laser, que pode oscilar levemente em funcao do temponesse tipo de instrumento, colocamos um polarizadorna frente do equipamento. Assim, girando o laser eo polarizador, podemos incidir luz com polarizacao nadirecao desejada (perpendicular ou paralela ao plano deincidencia) conforme indica a Figura 6.

No experimento, medimos os angulos de incidencia θie calculamos os coeficientes de reflexao para cada tipode polarizacao, de forma que foi possıvel construir umatabela com R⊥(θi) e R‖(θi). Usamos, entao, as equacoesdo Quadro 1 para fazer o ajuste de uma curva aos dadosexperimentais. Mantivemos o ındice de refracao do arconstante igual a 1 e deixamos o ındice de refracao daagua variar, sendo o parametro de ajuste. O angulode transmissao θt foi escrito em funcao do angulo deincidencia usando a lei de Snell.

Explicitamos a montagem experimental utilizada naFigura 7.

Para calcular o coeficiente de reflexao da luz, e precisoconhecer a iluminancia EV0 (antes de incidir na agua) ea iluminancia EV (depois de refletida na agua), de formaque R = EV /EV0 . Todas as medidas de iluminanciaforam feitas com um luxımetro da marca PHYWEr

Figura 7: Na esquerda, a ponteira do luxımetro presa a umahaste; no centro, sobre o trilho, uma cuba com agua; e nadireita, o laser e o polarizador (montados sobre a mesma hastede apoio). Os materiais usados para apoiar o laser, luxımetro epolarizador foram hastes, eixos giratorios, garras de aco, muflasduplas e simples. A cuba d’agua foi apoiada sobre um trilho.

5 Em alguns lasers a oscilacao da direcao de polarizacao podeser verificada colocando um polarizador na sua frente: observa-seque a luz projetada ascende e apaga em intervalos cada vez maislongos.6 Lasers de diodo sao relativamente baratos em comparacao comos de gas.

(Modelo Handmeßgerat Lux 07197.00). Assim, medimosa iluminancia da luz (EV0) depois de passar pelo pola-rizador e assumimos que esse valor nao muda ate queatinja a agua. Essa medida foi feita uma unica vez antesdo experimento. A mesma hipotese e aceita para a luzrefletida, isto e, qualquer ponto do feixe refletido tema mesma iluminancia. Esse argumento se apoia no fatode que a variacao da largura do feixe do laser, assimcomo a atenuacao da luz no ar, e desprezıvel a curtasdistancias [17]. Assim, os dados coletados para cada novoangulo de incidencia sao EV e “d” (ver Figura 6).

As medidas ocorreram da seguinte forma: primeiro, olaser foi fixado firmemente em alguma posicao incidindoluz na agua contida em uma cuba sobre o trilho. A seguir,o anteparo foi colocado sobre o trilho, de forma que a luzrefletida pela agua estivesse em um plano que contemo trilho e o anteparo, conforme a Figura 6. Com isso,obtivemos os parametros “a”, “d” e “h”, necessarios paracalcular o angulo de incidencia θi. Feito isso, o anteparofoi removido do trilho e a posicao da haste que apoiao laser pode ser alterada (o que nao muda o angulo deincidencia do laser, ja que a mesa sobre a qual a haste e olaser estao apoiados e plana) para que a luz refletida pelaagua incidisse no luxımetro, colocado ao lado do trilho.Nesse ponto, ajustamos o angulo e altura do luxımetropara que a luz refletida incidisse normalmente em suasuperfıcie de deteccao. Antes de tomar as medidas, asluzes da sala foram apagadas para garantir que apenasa luz do laser incidisse no detector. Apesar de atenuadapelo polarizador, a luz do laser ainda representa perigo avisao. Por isso, e preciso sempre tomar cuidado para naoincidir a luz laser nos olhos, tanto direta quanto refletida.Repetimos esse processo para angulos cada vez maiores.

O arranjo experimental indicado na Figura 7 permiteque o laser e o polarizador girem em torno do eixoque contem o feixe emitido pelo proprio laser, de formaa produzir a polarizacao perpendicular ou paralela aoplano de incidencia. A polarizacao da luz emitida pelolaser pode ser determinada empiricamente incidindo ofeixe na agua em diferentes angulos: se para algumangulo nao houver luz refletida (angulo de Brewster),entao a polarizacao e paralela. A partir daı, para obtera polarizacao perpendicular, basta girar o laser e opolarizador por 90◦. Uma forma de verificar se a novapolarizacao do laser esta na direcao correta e verificarse a iluminancia inicial EV0 , depois de passar pelo po-larizador, e igual a medida anterior. Esse procedimentode controle tambem justifica a presenca do polarizadorno experimento.

3.2. Resultados experimentais e o processode contrastacao empırica

Para realizar a coleta de dados, utilizou-se um laser comiluminancia EV0 = (18, 55 ± 0, 01)klux, medida depoisda luz passar pelo polarizador. Para cada configuracaode polarizacao, mediu-se a iluminancia EV da luz refle-tida para diversos angulos de incidencia uma unica vez,

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021

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depois que o sistema estabilizava (o conjunto, montadosobre uma mesa, vibrava por algum tempo cada vez queo angulo era alterado). Os valores obtidos de R⊥ e R‖para cada angulo θi sao apresentados na Figura 8, juntocom os respectivos ajustes de curva para a polarizacaoparalela e perpendicular ao plano de incidencia.

Figura 8: Dados experimentais e ajuste de curva do modeloteorico aos dados. Os ajustes foram feitos utilizando as funcoespara R⊥ e R‖ do Quadro 1.

Os ajustes foram implementados com o programaSciDAVis 2.3.0, na plataforma Windows 10, usando o al-gorıtimo de Levenberg-Marquardt (parte do programa)e ponderando as incertezas na variavel dependente7.Como ja mencionado, assumimos que o ındice de re-fracao do ar vale n1 = nar = 1 e o ındice de refracaoda agua n2 = nH2O = n foi deixado como parametrode ajuste. Os coeficientes de determinacao8 R2 obtidos(0,988 e 0,996) em ambos os casos mostram que o modelode reflexao da luz na agua se ajusta bem aos dados.Tambem observa-se concordancia – dentro do limite deincerteza atribuıdo pelo metodo de ajuste – entre osvalores obtidos para o ındice de refracao da agua:

n‖ = 1, 33± 0, 01, n⊥ = 1, 31± 0, 01.

A literatura aponta um ındice de refracao de nH2O =1, 331 ± 0, 001 para agua destilada a 20◦C no com-primento de onda do laser usado na investigacao(670 nm) [19, 20]. Tendo em vista que o experimentofoi realizado com agua de torneira, que contem mineraise impurezas [21] nao presentes na agua destilada, a dife-renca entre o valor ajustado e o resultado da literaturanao foi considerada um problema.

7 Por exemplo, para a polarizacao paralela, as incertezas dasmedidas para angulos proximos de 80 graus sao aproximadamente7 vezes maiores do que para pequenos angulos. Em funcao dissoe da natureza da equacao ajustada, a qualidade do ajuste obtidoe bastante sensıvel aos procedimentos utilizados. Assim, com ometodo utilizado neste artigo, se nao consideradas as incertezasdos dados, o valor ajustado para o ındice de refracao da agua serian‖ = 1, 25±0, 02, implicando uma diferenca de 0,08 em relacao aovalor ajustado ponderando-se as incertezas na variavel dependente.8 O coeficiente de determinacao informa o quanto do erro deprevisao e eliminado ao usar o metodo de regressao dos mınimosquadrados. Assim, um R2 = 0,988 implica que 98,8% do erro(soma dos quadrados dos resıduos) na variavel dependente foi eli-minado. Uma discussao conceitual interessante sobre o coeficienteR2 pode ser consultada em [18].

A maior fonte de erro desse experimento consistiu nadificuldade em produzir polarizacao perpendicular aoplano de incidencia – exatamente a medida que geroumaior divergencia com resultados da literatura para oındice de refracao. Ao contrario da polarizacao paralela,obtida pela observacao do desaparecimento da luz refle-tida no angulo de Brewster, a polarizacao perpendicularfoi estabelecida girando 90◦ o laser e o polarizador apartir da posicao com polarizacao paralela, introduzindoerro nesse processo. Dessa forma, garantimos que a luzdo laser tem a mesma direcao de polarizacao do polariza-dor, isto e, perpendicular ao plano de incidencia9. Outrafonte de erro e uma pequena distorcao observada na luzrefletida do laser para angulos de incidencia maiores.Essa distorcao comeca a ser significativa por volta deθi ≈ 75◦, onde a largura do feixe do laser passa aser maior que a superfıcie de deteccao do luxımetro.Tambem e possıvel que certo erro na medida tenhasido introduzido pela dificuldade de alinhar o luxımetrocom o feixe incidente: a medida de EV deve ser feitaobservando a maxima iluminancia detectada, que ocorrequando o feixe incide normalmente em sua superfıcie dedeteccao.

Por meio da atividade desenvolvida, foi possıvel evi-denciar empiricamente como a polarizacao determinaa forma que a energia eletromagnetica e refletida e,consequentemente, transmitida, pela agua. Observou-se que a intensidade da luz refletida aumenta com oangulo de incidencia, exceto para a polarizacao paralela,que vai a zero no angulo de Brewster. A partir dosresultados obtidos, os estudantes podem: (a) fazer amedia aritmetica e estimar o coeficiente de reflexaoRnp da luz nao polarizada; (b) calcular o coeficientede transmissao Tnp pela conservacao da energia; e (c)ao menos sobre o ponto de vista qualitativo, construirargumentos, pautados nas evidencias empıricas, sobrecomo a moeda e a relıquia poderiam desaparecer nascondicoes enunciadas na situacao-problema.

Fundamentados nesses conhecimentos, expomos umapossıvel explicacao para o fenomeno na proxima secao.

4. Resolvendo o Problema da Moedae da Relıquia

Antes de resolvermos a questao do desaparecimento damoeda e da relıquia, e importante destacar que, por maisque a atividade forneca as ferramentas teoricas para lidarcom a questao de forma quantitativa, nao se espera queum estudante faca uma analise completa do fenomeno.Mais do que obter respostas precisas, a riqueza da ativi-dade consiste em tornar evidente aos estudantes comoconhecimentos cientıficos podem ser mobilizados para

9 Tomamos o cuidado de verificar se a iluminancia medida aposa luz atravessar o polarizador era a mesma nas duas polarizacoes.Alem disso, constatamos que a iluminancia nao se alterava como tempo, evidenciando que, de fato, a direcao de polarizacao dolaser se manteve estavel.

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486

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atacar problemas complexos atraves da construcao derepresentacoes simplificadas da realidade. Centraremosa explicacao do fenomeno no desaparecimento da moedaporque, como dito na introducao, o problema da relıquiae fictıcio, enquanto o da moeda e real.

Em termos fısicos, afirmar que a moeda submersae visıvel para um observador significa afirmar que aintensidade da luz que parte da moeda e chega aos olhosdo observador e maior, ou comparavel, com a intensidadeda luz que e refletida na superfıcie da agua, chegando aosseus olhos provinda de outras regioes (como a luz difusado ceu, por exemplo). Pela natureza do problema –a moeda desaparece ao longo da tarde, olhando parao oeste – assumimos a hipotese de que a reflexao daluz solar direta e a principal responsavel por ofuscara imagem da moeda. A situacao esta representadaesquematicamente na Figura 9.

Figura 9: Representacao esquematica da reflexao da luz solarna agua. Cada raio de luz vindo do Sol chega aos olhos doobservador com intensidade diferente da inicial.

A Figura 9 mostra dois raios de luz paralelos pro-venientes do Sol incidindo na superfıcie da agua. Essesraios concorrem para formar a imagem na retina doobservador, a direita na figura. Um deles reflete nasuperfıcie da agua (a luz transmitida para a agua nao emostrada para fins de clareza). Ja o outro, entra na agua,reflete na moeda e sai da agua (aqui nao sao mostradosos raios de luz refletidos na interface).

A iluminancia da luz solar na superfıcie da Terra e daordem de 100 klux, com o Sol a pino [22]. A medida que oSol se move no ceu, esse valor se modifica gradualmenteem funcao da atenuacao da luz pela atmosfera. Umaexpressao para calcular a iluminancia E0 da incidenciadireta da luz solar ao longo do dia, considerando o ceusem nuvens, e [23]:

E0 = 127.500exp(−0, 21cosθi

)lux, (8)

onde θi e o angulo de incidencia da luz solar nasuperfıcie10. A Equacao 8 e derivada da lei de Beer-Lambert [24], sendo que o termo negativo representa o

10 Observe que para θi = 0◦ (Sol a pino), E0 ≈ 100 klux.

coeficiente de extincao da luz pela atmosfera11 e a funcaotrigonometrica, a massa de ar atravessada pela luz solar,que muda ao longo do dia. Se em determinada hora dodia a luz solar incidir na agua com angulo de incidenciaθi, entao a iluminancia da luz refletida pela agua e dadapelo coeficiente de reflexao

Er = E0(θi)Rnp(θi), (9)

conforme representado na Figura 9. Para calcular ailuminancia da luz que passa pela agua (refletindo namoeda), dividimos a descricao do raio de luz na Figura 9em cinco partes, lembrando que E0 = E0(θi):

(a) Em “a”, a iluminancia da luz transmitida para aagua e dada pelo coeficiente de transmissao Ea =E0Tnp(θi). A mudanca na direcao de propagacaoe controlada pela lei de Snell n1senθi = n2senθt.Alem disso, pode-se mostrar pelo emprego diretodas equacoes do Quadro 1 que a luz nao polarizadatransmitida pela agua permanece essencialmentenao-polarizada, ja que suas componentes paralelase perpendiculares sofrem atenuacoes muito seme-lhantes.

(b) De “a” para “b” a luz percorre uma distanciaD perdendo energia por absorcao e espalhamentona agua. Pela lei de Beer-Lambert, sendo Eb ailuminancia da luz em “b” e Ea a iluminanciada luz no ponto “a”, vale: Eb = Eae

−µD, ondeµ e o coeficiente de atenuacao linear, com unidade[µ] = m−1. Para aguas de lagos, essa grandeza temvalores tıpicos na faixa de µ ∈ [0, 7; 11]m−1 [25],dependendo da quantidade de algas ou sedimentospresentes. Assim, ao atingir o ponto “b”, a ilu-minancia do feixe e Eb = E0Tnp(θi)e−µD.

(c) De “b” para “c” ocorre reflexao da luz na su-perfıcie da moeda: novamente, parte da energiae perdida nesse processo, dependendo do angulode incidencia. Como a superfıcie da moeda emetalica – digamos, de ouro – nao podemos usar osmodelos teoricos construıdos, validos apenas parameios dieletricos12. Ao incidir luz nao polarizadano ouro, a luz refletida sofre mais atenuacao na suacomponente paralela em comparacao com a com-ponente perpendicular, sendo por isso consideradaparcialmente polarizada (na direcao perpendicu-lar) [26]. No entanto, o coeficiente de reflexao noouro e maior do que 90% para qualquer angulo deincidencia, em qualquer direcao de polarizacao, nocomprimento de onda considerado (670 nm) [27].

11 O coeficiente de extincao seria −0, 80 se o ceu estivesseparcialmente encoberto com nuvens [23]. Com ceu nublado aEquacao 8 nao se aplica, pois sem a incidencia direta de Sol, amaior parte da luz incidente em qualquer superfıcie e fruto doespalhamento pela atmosfera.12 Uma discussao mais precisa sobre a reflexao da luz nos metaise complicada e foge do escopo deste artigo, tendo em vista que aatividade e planejada para alunos em nıvel de Fısica Geral.

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021

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Por isso, consideramos uma boa aproximacao con-siderar que a luz nao polarizada se mantem naopolarizada ao refletir na superfıcie do ouro. Assim,chamando o coeficiente de reflexao do ouro de k, ailuminancia do feixe depois de refletido pela moedae Ec = Ebk, isto e: Ec = E0Tnp(θi)e−µDk.

(d) De “c” para “d” ocorrem novamente perdas deenergia pela atenuacao da luz na agua. Por sime-tria, o caminho percorrido e o mesmo que o deantes, logo a iluminancia do feixe em “d” fica:Ed = E0Tnp(θi)e−µDke−µD.

(e) Finalmente, podemos calcular a iluminancia dofeixe no ponto “e” pelo coeficiente de transmissao,com o cuidado de que agora a troca de meio e daagua para o ar (inverte-se o ındice de refracao e osangulos na equacao), isto e, Ee = EdTnp(θt).

Assim, a iluminancia da luz refletida pela moeda edada pela expressao:

Ee = E0(θi)kTnp(θi)Tnp(θt)e−2µD, (10)

conforme indicado na Figura 9. Repare que, nesse pro-cesso, desprezamos a atenuacao da luz pelo ar entrea agua e o observador. Alem disso, consideramos aluz proveniente do Sol como essencialmente colimada,devido a grande distancia entre o Sol e a Terra, que fazcom que seus raios cheguem a sua superfıcie pratica-mente paralelos. Assim, reunindo esses termos, obtemosa expressao indicada na Figura 9 para a intensidadeda luz que passou pela agua. A distancia D pode sercalculada com auxılio do triangulo formado na figura:D = h/ cos θt, onde h e a profundidade da moeda.

4.1. Explicacao sobre o desaparecimentoda moeda

Para avaliar a adequacao do modelo construıdo, vol-tamos a analisar a situacao ilustrada na Figura 2,produzida na cidade de Porto Alegre no dia 10/03/2021.De acordo com [28], no dia em questao, o angulo deincidencia solar variou no intervalo θi ∈ [26◦; 90◦]. Nessecaso, θi = 26◦ corresponde a posicao mais alta doSol no ceu (12h35min) e θi = 90◦ representa o por-do-sol (18h47min). Uma descricao detalhada de comoobter o angulo de incidencia em funcao da hora deuma localidade qualquer da Terra pode ser consultadano Material Suplementar B, embora essa nao seja umadiscussao essencial para resolver o problema.

Na Figura 2, a profundidade da cuba que continhaa moeda era de h = 10 cm. A agua utilizada – apesarde ser de torneira – era razoavelmente lımpida, por isso,nesta estimativa, adotamos µ = 2 m−1 para o coeficientede atenuacao, apenas um pouco acima do valor tıpico deagua cristalina, porem bastante abaixo do valor tıpicopara agua turva. Sobre o coeficiente de reflexao da luz,nao encontramos na literatura o valor desse parametropara o material que compoe a moeda de 10 centavos

usada (aco revestido com bronze) sob a incidencia daluz do Sol. Supomos, no entanto, que esse valor deve sermenor que o do ouro puro, pois o bronze reflete menosa luz que nele incide; alem disso, a superfıcie da moedanao e polida. Assim, usamos um valor conservador dek = 0, 6 para esse parametro. O resultado fornecido pelasEquacoes 9 e 10 esta representado na Figura 10.

Figura 10: Comparacao entre os raios de luz solar refletidosdiretamente pela agua (Equacao 9) e pela moeda (Equacao 10).A intensidade da luz vai a zero com um angulo de incidencia de90◦ porque o Sol se poe.

Pela Figura 10, vemos que a intensidade da luz refle-tida pela moeda e maior que a refletida diretamente pelaagua na maior parte do tempo, indicando que a moedae visıvel quando o Sol esta alto no ceu. Isso pode serverificado empiricamente, como mostra a Figura 2(b).Ao longo da tarde, a intensidade da luz solar refletidadiretamente pela agua aumenta, superando a luz refle-tida pela moeda, que diminui abruptamente. Isso ocorrequando as duas curvas na Figura 10 se cruzam, situacaona qual a iluminancia da luz vinda do Sol e da moedae cerca de 12 klux13. Com isso, infere-se que a moedadesapareceria14. O ponto de cruzamento entre as linhasna Figura 10 e θi = 75◦, que corresponde ao horariodas 17h34min. Como se pode constatar pela Figura 2(c),a moeda nao estava mais visıvel. Nessa foto, tomou-seo cuidado de alinhar a camera simultaneamente com aposicao da imagem do Sol e da imagem da moeda, comona Figura 9, ja que nosso modelo assume essa geometriade raios de luz.

13 Para fins de comparacao, considere a situacao em que seolha diretamente para uma lampada LED, de 4000 lumens.Admitindo que a lampada seja pontual, projetando toda suapotencia luminosa em um feixe com abertura total de 60◦ (comoum cone de angulo solido ∼0,84 Sr), a iluminancia a uma distanciade 63 cm da lampada e de ∼12 klux. Essa estimativa foi feitaa partir da definicao de iluminancia: potencia luminosa (4000lumens) dividido pela area (A = 0, 84 × 0, 632 = 0, 33 m2).14 O desaparecimento da moeda aconteceria tambem no horario damanha, porem em ordem inversa: no amanhecer estaria invisıvel,passando a ser visıvel em torno do meio dia. De fato, o grafico naFigura 10 e simetrico para horarios do amanhecer ao meio dia.

Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021 DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486

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4.2. Explicacao sobre o desaparecimentoda relıquia

Para formular uma possıvel resposta para o problema darelıquia, precisamos apenas modificar os parametros usa-dos. Admitindo h = 2 m (relıquia em uma profundidadeconsideravel na margem do lago), µ = 0, 7 m−1 (agua delago cristalina, como comentado) e k = 0, 9 (coeficientede reflexao do ouro, assumindo que essa e a composicaoda relıquia), podemos prever que o desaparecimentoocorreria por volta das 15h20min. O calculo foi feitopara o mesmo dia e local anterior (Porto Alegre no dia10/03/2021).

Relembramos que o problema foi modelado compa-rando dois raios de luz que vem diretamente do Sol. Essedesenvolvimento, feito em detrimento de uma descricaomais completa, – que leve em consideracao, por exemplo,a reflexao difusa de varios raios de luz na relıquia –e uma representacao que possivelmente superestima ailuminancia que chega aos olhos do observador. Issoporque existem diversos angulos possıveis de visada quepermitem a visualizacao da relıquia sem a incidenciadireta da luz solar refletida (como a Figura 2(a)).Mesmo assim, a representacao simplificada do eventonos permite dar respostas aproximadas para as questoesfeitas inicialmente.

A primeira questao de pesquisa, “Quais fatoresinfluenciam na intensidade da luz solar refletidapela superfıcie?”, pode ser respondida pelo exame daFigura 8. A polarizacao da luz e um fator determi-nante na dinamica da reflexao. Por exemplo, para luzpolarizada paralelamente, existe um angulo em que naoha nenhuma luz refletida (angulo de Brewster). Ja aluz polarizada perpendicularmente e sempre refletida,aumentando de intensidade com o angulo de incidencia.

A segunda questao de pesquisa, “Em quaiscondicoes a relıquia e visıvel para um obser-vador parado na margem do lago?”, pode serrespondida analisando a Figura 10, que representa omesmo fenomeno responsavel pelo desaparecimento darelıquia. A relıquia sera visıvel quando a intensidade daluz que compoe sua imagem for maior, ou pelo menoscomparavel, com a da luz do Sol refletida na agua.A partir de certo horario (ou angulo de incidencia)a intensidade da luz solar refletida na agua cresce,enquanto a imagem da relıquia diminui de intensidade,favorecendo seu desaparecimento.

5. Consideracoes Finais e Conclusao

Nesse artigo, descrevemos uma atividade didatica, cen-trada no processo de modelagem cientıfica, em nıvel deFısica Geral IV, cujo objetivo era resolver um “misterio”envolvendo o desaparecimento de uma relıquia nas pro-fundezas de um lago. Tınhamos como hipotese basicao fato de que a luz solar, refletida na superfıcie daagua, ofuscava a imagem da relıquia, contribuindo para

seu desaparecimento. Para solucionar o problema, mo-bilizamos conhecimentos cientıficos como o conceito deangulo de Brewster, polarizacao e coeficientes de reflexaoe transmissao da luz, alem de construirmos um modeloteorico – calcado nas equacoes de Fresnel – para explicaros processos de transferencia de energia luminosa entreo ar e a agua. Esse modelo teorico foi avaliado por meiode uma investigacao empırica, na qual se buscou estudara reflexao da luz nao polarizada pelas suas componentespolarizadas paralelas e perpendiculares ao plano deincidencia. Para isso, utilizou-se um laser, uma cubad’agua, um luxımetro, hastes e suportes. A atividadese mostrou adequada para se explorar diversos aspectosdo processo de modelagem cientıfica. O conceito decontrole de variaveis, no entanto, foi privilegiado. Umasituacao em que isso fica evidente e quando os estudantesprecisam controlar a direcao de polarizacao da luz queincide na agua, medir o angulo de incidencia da luz poralgum metodo, bem como sua iluminancia. Alem disso,a atividade se mostrou propıcia nao apenas para evi-denciar como experimentos sao delineados e executadostendo em vista os pressupostos teoricos assumidos naconstrucao do modelo subjacente a investigacao, comotambem para ilustrar como tais modelos podem serusados para descrever situacoes reais mais complexas.

Atraves da investigacao, buscamos responder as se-guintes questoes: “Quais fatores influenciam na inten-sidade da luz solar refletida pela superfıcie? Em quaiscondicoes a relıquia e visıvel para um observador paradona margem do lago?”. A investigacao realizada deusuporte empırico para a criacao de explicacoes sobreo fenomeno: levando em consideracao que a luz quevem diretamente do Sol e nao polarizada, descrevemoso desaparecimento de uma moeda em termos da com-paracao entre a intensidade de raios de luz concorrentes,que refletem na moeda e na superfıcie da agua. Emparticular, determinamos o horario em que a moedacomecaria a desaparecer em Porto Alegre (RS) no dia10/03/2021 e confrontamos esse resultado com um ex-perimento que corrobora a explicacao construıda. Ainda,fazendo algumas suposicoes, fornecemos respostas parao caso da relıquia. Por meio da atividade, o estudantenao apenas desmistifica o desaparecimento da relıquia,como tambem adquire uma compreensao conceitual dofenomeno indicado na Figura 1.

A atividade descrita foi aplicada em uma disciplinade Fısica Experimental IV do curso de Fısica da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).A metodologia de ensino utilizada foram os Episodiosde Modelagem (EM) [8]. Resumidamente, os EM saocaracterizados por serem atividades de cunho aberto,que valorizam a argumentacao e tomada de decisaopor parte dos alunos. Todos os EM sao motivadospor uma situacao-problema instigante, com significadoalem do contexto academico – nesse caso a questao darelıquia. Durante a aplicacao deste EM, os estudantestinham a liberdade de realizar experimentos sugeridos

DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2020-0486 Revista Brasileira de Ensino de Fısica, vol. 43, e20200486, 2021

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e20200486-12 Um experimento didatico potencialmente instigante envolvendo a reflexao da luz

pelo professor ou de delinear seus proprios experimentos.Assim, alem do experimento descrito nesse artigo, sugeri-mos outros dois: um semelhante, onde acrılico e utilizadoem vez de agua, e outro completamente diferente, noqual os estudantes avaliam o grau de adequacao da leide Malus com polarizadores.

Entendemos que atividades como a descrita temgrande potencial instigante para o estudante na medidaem que trazem para o contexto do laboratorio didaticosituacoes contextualizadas que demandam a solucao deproblemas autenticos por meio do emprego de conhe-cimentos cientıficos. No presente caso, tal emprego sejustificou pela necessidade de resolver um “misterio”evocado de uma situacao que, por mais que fictıcia, seamparou em um fenomeno real (o desaparecimento damoeda ou as pedras de um lago). Entendemos assim,que tais atividades podem contribuir para diminuir adistancia entre teoria e pratica no contexto dos cursosde Fısica, uma vez que o engajamento dos estudantesna resolucao de um problema autentico da sentido aosconhecimentos cientıficos que estao sendo trabalhados.

Agradecimentos

Agradecemos a professora Cilaine Veronica Teixeira e aoprofessor Ricardo Rego Bordalo Correia pelas crıticase sugestoes feitas sobre as atividades descritas nesteartigo.

Material suplementar

O seguinte material suplementar esta disponıvel onlineMaterial Suplementar AMaterial Suplementar B

Referencias

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