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Uma Guerra sem Sentido Drogas e Violência no Brasil A S e D F L I DOCUMENTOS DE DEBATE NOVEMBRO DE 2004 n o 11 Programa de Drogas e Democracia Programa Crime e Globalização TRANSNATIONAL TNI Briefing Series No 2004/8

Uma Guerra sem Sentido - KOINONIA · • Brasil rural: cannabis e violência 7 (A planta Ayahuasca 8 (Série histórica de apreensões nas regiões brasileiras 16 (Taxas de morte

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U m a G u e r r a s e mS e n t i d oD r o g a s e V i o l ê n c i a n o B r a s i l

A S eD

F L I

DOCUMENTOS DE DEBATE

NOVEMBRO DE 2004

no 11

Programa de Drogas e DemocraciaPrograma Crime e Globalização

T R A N S N A T I O N A L

TNI B r i e f i n g S e r i e sNo 2004/8

AUTORESJorge Atilio Silva IulianelliLuiz Paulo GuanabaraPaulo Cesar Pontes FragaTom Blickman

REDATORLuiz Paulo Guanabara

REVISORLuiz Paulo GuanabaraJorge Atilio Silva Iulianelli

PROJETO GRÁFICOJan Abrahim VosLogo Drugs & Conflict:Elisabeth Hoogland

PRODUÇÃO GRÁFICAMartha Braga

IMPRESSÃOReproarte

APOIO FINANCEIROMinisterio de AsuntosExteriores (Países Baixos)

CONTATOTransnational InstitutePaulus Potterstraat 201071 DA AmsterdamPaises BaixosTel: 31-20-6626608Fax: [email protected]/drugs

DISTRIBUIÇÃO E CONTATO NOBRASIL PARA ESTE NÚMEROKoinoniaRua Santo Amaro 12922211-230 Rio de Janeiro RJTel: (0XX-21) 2224-6713Fax: (0XX-21) [email protected]

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Amsterdam, Novembro 2004

S U M Á R I O

• Editorial 3

• Mapa 6

• Brasil rural: cannabis e violência 7A planta Ayahuasca 8Série histórica de apreensões nas regiões brasileiras 16Taxas de morte por homicídios de homens em algumascidades do Submédio São Francisco 16

• Nova Lei de Drogas: avanços e limitações 17Redução de danos 20

• Brasil urbano: narcotráfico e violência 22Grupos de extermínios 22Taxas de homicídios no Rio de Janeiro 23Apreensão de armas no Rio de Janeiro 24Pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro 24Cárceres e comandos 25Jogo do bicho 26Incursão militar 27Estrutura organizacional e fluxo de drogasnas bocas de fumo 28

• Conclusão e Recomendações 29

• Websites úteis e referências 31

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Europa y el Plan ColombiaDocumento de Debate No. 1, abril 2001

Fumigaciones y Conflicto en Colombia. Al calor del debateDocumento de Debate No. 2, septiembre 2001

Afganistan, drogas y terrorismo. Fusion de guerrasDocumento de Debate No. 3, diciembre 2001

Desarrollo alternativo y erradicacion. Un enfoque desequilibradoDocumento de Debate No. 4, marzo 2002

Polarizacion y paralisis en la ONU. Superando el impasseDocumento de Debate No. 5, julio 2002

Agenda para Viena. Cambio de rumboDocumento de Debate No. 6, marzo 2003

Desarrollo alternativo y conflicto en Colombia. A contraviaDocumento de Debate No. 7, junio 2003

Centros Operativos de Avanzada - FOLDocumento de Debate No. 8, septiembre 2003

Drogas y conflicto en Birmania. Los dilemas de las respuestaspoliticasDocumento de debate n. 9, diciembre 2003

Movimientos cocaleros en el Peru y Bolivia. – Coca o muerte?Documento de Debate No. 10, abril 2004

Todas as edições da série estão disponíveis no site em inglês e espanhol.

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E D I T O R I A L

o amanhecer da sexta-feira da Sema-na Santa de 2004, 60 membros de umafacção armada, carregando fuzis e me-tralhadoras, vestidos de preto e usan-do coletes à prova de bala, saíram da fa-

vela do Vidigal, no Rio de Janeiro. Eles desceram domorro, roubaram diversos carros no asfalto ma-tando uma mulher que tentou fugir com seu car-ro e foram em direção à favela da Rocinha, que ficaa poucos quilômetros de distância dali. Ao chegar,desfecharam um ataque sobre a facção local paraobter pela força o controle das “bocas de fumo”como são conhecidos os pontos de venda a vare-jo de maconha e cocaína mais lucrativas da cida-de, que gera cerca de 3,5 milhões de dólares pormês para a gangue que a controla. Embora confli-tos como esses não sejam incomuns nas mais de700 favelas no Rio, desta vez a violência chegou àsmanchetes internacionais.

O ataque e a subseqüente incursão da polícia pros-seguiram até segunda-feira, quando mais de 1.200policiais militares invadiram as duas favelas, tentan-do acabar com a disputa que deixou um saldo de10 pessoas mortas, entre transeuntes inocentes,membros das gangues e policiais. Enquanto isso, ti-roteios esporádicos entre os bandidos e a políciapartiu a cidade em duas durante o feriado da SemanaSanta, já que ambas as favelas se situam numa re-gião que separa os ricos bairros da Zona Oeste daZona Sul onde estão localizadas Copacabana e Ipa-nema, com suas famosas praias e do Centro da ci-dade. Enquanto naquele fim de semana os próspe-ros habitantes da Zona Oeste não sabiam comoiriam chegar aos seus escritórios, na semana seguin-te, muitos residentes da Rocinha uma das maioresfavelas da América Latina, com cerca de 150.000habitantes não conseguiam nem mesmo regressaraos seus modestos barracos.

O tiroteio ainda nem havia cessado, quando o vice-governador do Rio, Luiz Paulo Conde, propôs quese cercasse a favela da Rocinha com um muro detrês metros, indicativo de que a violência havia atin-gido um nível por demais perturbador para as clas-ses privilegiadas. A proposta foi duramente critica-da e rapidamente retirada de pauta, pois criariaapenas “apartheid social”, quando o que as comu-

nidades carentes precisam é de investimentos. En-tretanto, ela demonstra uma atitude inerente das au-toridades, que simplesmente abandonaram as fave-las, gerando um vácuo de poder que é preenchidopor gangues que encontraram uma lucrativa formade ganhar dinheiro na indústria das drogas ilícitas.

Os níveis de violência no Rio são comparáveis aosde uma zona de guerra. A cada ano as armas ma-tam mais jovens com menos de 18 anos no Rio doque em regiões mais tradicionalmente conhecidaspor seus conflitos, como Colômbia. No conflitoentre judeus e palestinos, por exemplo, 467 meno-res morreram em conseqüência da violência arma-da, entre 1987 e 2001, enquanto no mesmo perío-do as balas mataram 3.937 jovens apenas no Estadodo Rio, segundo um estudo sobre jovens envolvi-dos nas disputas territoriais travadas entre facçõesdo tráfico.1 Além disso, muitos habitantes das fave-las estão vivendo de fato em territórios ocupados,dominados pelos autoproclamados chefes da comu-nidade, enquanto o estado em grande parte se au-senta na promoção de segurança e de condiçõessociais e habitacionais adequadas.

O Brasil é o segundo maior país consumidor decocaína do mundo, depois dos EUA, e as drogas in-tensificam os tremendos problemas sociais e de vi-olência criminal do país. Estima-se que, apenas nacidade do Rio de Janeiro, cerca de 10.000 pessoasestão envolvidas na distribuição local de drogas. Deacordo com um estudo da Organização Mundial doTrabalho, muitas dessas são crianças.2 Originam-sedos mais pobres dos pobres. A maioria delas ingres-sa e permanece nas gangues de drogas para obterprestígio e poder e ganhar dinheiro para compraros objetos que de outra forma não poderiam pos-suir. Acabam inebriadas pela adrenalina do dia-a-diado tráfico de drogas, desfrutando os confrontosarmados com a polícia ou grupos rivais, como tam-bém demonstrando força e destemor. Os laçoscom a gangue são um fator importante e, depoisde um tempo, é quase impossível abandonar a redesocial, porque os envolvidos sabem demais e setornaram conhecidos dos grupos rivais e da polí-cia. Alguns ingressam com apenas oito anos de ida-de. Depois de entrar para a gangue, grande partedeles morre dentro de um ano.

1 Crianças Combatentes em Violência Armada Organizada: um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas terri-toriais das facções de drogas no Rio de Janeiro, Luke Dowdney, ISER/Viva Rio, Rio: 2002.2 Crianças no narcotráfico: Um diagnóstico rápido, Jailson de Souza e Silva e André Urani, Organização Internacional do Trabalho;Ministério do Trabalho e Emprego, Brasília: 2002. (http://www.ilo.org/public/por tugue/region/ampro/brasilia/info/download/livro_narcotraf.pdf)

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Tornando o problema ainda maior, existe uma dis-seminada corrupção policial e colaboração com asgangues de drogas, além de excessiva violência po-licial. A luta contra a violência no Brasil é caracte-rizada pelo emprego abusivo e indiscriminado daforça e desrespeito aos direitos humanos, de par-te dos efetivos policiais, que operam na certeza daimpunidade, de acordo com o sociólogo GeraldoTadeu M. Monteiro.3 Enquanto entre 1997 e 2003a força policial aumentou em 45%, entre 2001 e2003, o número de prisões decresceu 31%. Aomesmo tempo, o número de mortes resultantesde “resistência à prisão” aumentou 236% entre1998 e 2003, calculou Monteiro. Em média, as ví-timas tinham 4.3 ferimentos de bala, dos quais 61%localizados na cabeça. As execuções sumárias pa-recem ser o método preferido da polícia carioca.A “guerra contra o crime” tem resultado apenasnuma escalada de violência, e parece claro que atarefa não pode ser deixada nas mãos das forçasde segurança, sem que haja antes uma completa re-forma da polícia. Devido ao fracasso da polícia noenfrentamento da violência, os militares estão sen-do enviados às favelas.

Não são apenas os centros urbanos brasileiros queestão sujeitos a elevados níveis de violência. NoNordeste, no chamado “polígono da maconha”, lo-calizado nos estados de Pernambuco e Bahia, os ní-veis de violência são às vezes ainda maiores, porconta das brutais disputas pela terra e dos confli-tos relacionados ao cultivo ilícito de maconha. Deacordo com o Ministério Público do Trabalho doEstado de Pernambuco, existem 40.000 trabalhado-res rurais nas plantações de maconha, e muitos sãoforçados a trabalhar nesse plantio pelas ganguescriminosas. Entre estes, 10.000 são crianças e ado-lescentes. É claro que a indústria de drogas ilícitasnão é o xis do problema, mas também é claro queas atuais políticas de controle de drogas intensifi-cam a violência associada aos conflitos sociais, nasociedade brasileira.

Nesta edição de Drogas & Conflito, o cenário daviolência relacionada às drogas nas áreas de culti-vo de maconha localizadas no Nordeste, assimcomo nas favelas do Rio, é descrito por Jorge Atí-lio Iulianelli e Paulo César Fraga, enquanto Luiz PauloGuanabara faz uma crítica da nova lei de drogasaprovada pela Câmara e hoje em tramitação noSenado (outubro de 2004). Embora essa lei seja um

passo à frente no sentido de se buscar uma claradistinção entre um traficante de drogas e um usu-ário, permanece a dúvida se tratará efetivamente doproblema, dado o seu âmbito limitado.

Seria um erro, no entanto, limitar o problema à po-breza e à desigualdade que levam alguns a encon-trar na indústria de drogas ilícitas o seu meio de sub-sistência. Em 2000, uma Comissão Parlamentar deInquérito (CPI) sobre o narcotráfico revelou, em umgrande número de casos, o envolvimento de pes-soas que certamente podem ser classificadas como“colarinho branco”. O relatório recomendava o in-diciamento de três membros do Congresso nacio-nal, diversos deputados estaduais, empresários, ad-vogados, ex-juízes e ex-policiais e um punhado degente importante.

Relutantemente, mas cada vez mais, o Brasil é ar-rastado para a militarizada “guerra às drogas” docontinente, de inspiração americana. O Brasil é umaimportante rota para drogas produzidas nos vizi-nhos Colômbia, Bolívia e Peru, em trânsito para osEUA e Europa. Um dos chefões da droga mais im-portantes do Rio, Fernandinho Beira-Mar, foi pre-so na Colômbia, no que as autoridades descreve-ram como uma transação armas-por-drogas,envolvendo guerrilheiros das FARC. O Brasil estáenvolvido com o conflito colombiano por meio docompartilhamento de inteligência e de uma escala-da de atividades militares e policiais na fronteira,com o objetivo de deter o tráfico de armas e dedrogas e impedir um derramamento da violência co-lombiana no país. As forças militares e policiais sãoreforçadas numa inútil tentativa de monitorar a in-findável fronteira com a Colômbia e com o Peru.

O Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) queutiliza estações de radar, reconhecimento aéreo einformações de satélite para monitorar o tráfegoaéreo, o movimento marítimo, as atividades de fron-teira e para interceptar comunicações, foi todo im-plementado recentemente. Embora originalmenteprojetado para proteger a floresta amazônica de di-versos tipos de depredação ambiental, ele agoratambém será usado para impedir a entrada no Bra-sil de aviões transportando drogas, e fornecer in-formação em tempo real para unidades de frontei-ra.4 Em junho de 2004, o Senado aprovou uma leique permite às forças armadas assumir funções po-liciais na luta contra as drogas. Em julho, foi sancio-

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3 As forças de insegurança, Geraldo Tadeu Moreiro Monteiro,O Globo, 23 Julho de 2004.4 Sivam já abastece a PF com informações, Folha de São Paulo, 2 Novembro de 2003.

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nada a chamada Lei do Abate, que dá poderes à forçaaérea brasileira para derrubar qualquer aeronavenão identificada suspeita de contrabandear drogas.

A constitucionalidade da lei está sendo questiona-da. Não existe pena de morte no Brasil, e, emborao governo afirme que não, alguns especialistas e ar-ticulistas em direito sustentam que a medida resul-ta de fato na execução de traficantes de drogas. “Osproblemas éticos e jurídicos levantados pela regu-lamentação da Lei do Abate são muito maiores doque os benefícios que essa medida extrema podetrazer”, diz o editorial do influente diário O Esta-do de São Paulo. “Essa pena será aplicada ao arre-pio da Justiça, por decisão administrativa do coman-dante da Aeronáutica, que terá poder de vida emorte sobre as tripulações e passageiros dos avi-ões em vôo irregular.” As sugestões do ex-secretá-rio antidrogas Wálter Fanganiello Maierovitch, deque se investigassem as compras suspeitas de ae-ronaves e se detivessem os aviões, as drogas e ospilotos na aterrissagem, foram desconsideradas.5

O sistema brasileiro para vigiar suas fronteiras ea bacia amazônica é semelhante à infra-estruturamilitar que o Comando Sul dos EUA montou naregião, por intermédio da instalação dos chamadospostos avançados de operação (ForwardOperating Locations FOLs, na sigla em inglês) noEcuador, Aruba, Curaçao e El Salvador, comple-mentadas por bases militares domésticas e postosde radares nas regiões caribenha e andina. Proje-tadas inicialmente para interditar o comércio dedrogas ilícitas na região, seus limites foram ampli-ados para incluir contra-insurgência e contra-ter-rorismo, e outras metas de longo alcance da polí-tica externa americana, tais como a garantia doacesso aos recursos naturais, especialmente ao pe-tróleo.6 Apesar da relutância do Brasil em se en-volver, parece ser apenas uma questão de tempoantes de os sistemas estarem integrados.

No entanto, a militarização da guerra às drogas, es-pecialmente nas vizinhanças pobres e nas áreas ru-rais, será um tiro pela culatra, a não ser que os pro-gramas de repressão sejam cuidadosamenteelaborados em combinação com políticas abran-gentes que levem em consideração a segregaçãosocial e os extremos níveis de desigualdade exis-tentes no Brasil. No plano geopolítico, o Brasil ten-de a ser cada vez mais arrastado para uma guerra

às drogas que não tem apresentado quaisquer re-sultados significativos: a cocaína, por exemplo, con-tinua disponível em abundância, com preços cadavez menores. Por outro lado, ela gerou uma devas-tação ambiental com as fumigações de herbicidassobre as plantações de coca, que podem afetar aAmazônia brasileira, e está instigando o cruel con-flito interno na Colômbia e inquietação social noPeru e na Bolívia.

Não há dúvida de que é preciso com urgência umanova abordagem para o controle de drogas. Isso de-veria ser uma tarefa para o governo de centroes-querda do presidente Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva, que,desde que assumiu o poder em janeiro de 2003, temsimplesmente dado continuidade às políticas de seusantecessores nesta área. O assunto está intimamen-te relacionado às questões de fome e de pobrezacom as quais o governo de Lula se comprometeu.O Brasil demonstrou liderança nas negociaçõesconduzidas no âmbito da Organização Mundial doTrabalho, para a formação de uma coalizão de re-forma da atual ordem econômica internacional. Emseu discurso na 59ª Assembléia Geral das NaçõesUnidas, Lula disse: “Poderosa e onipresente, uma en-grenagem invisível comanda à distância o novo sis-tema. Não raro, ela revoga decisões democráticas,desidrata a soberania dos Estados, sobrepõe-se agovernos eleitos, e exige a renúncia a legítimos pro-jetos de desenvolvimento nacional.”

Ele poderia muito bem estar se referindo ao atualregime global de controle de drogas, que não con-seguiu abordar o problema de uma forma humanae é utilizado para impor políticas que alimentamconflitos e miséria. O Brasil deveria seguir apenaso seu próprio exemplo. O país resistiu com suces-so à oposição de grandes companhias farmacêuti-cas e do governo dos EUA às suas políticas de re-dução de danos para usuários de drogas injetáveis,quando comercializou medicações de baixo custoproduzidas localmente, driblando desse modo as pa-tentes que impediam uma efetiva política de saúdepública para HIV/AIDS. A política brasileira de re-dução de danos tem sido aclamada como uma dasmais bem-sucedidas do mundo. Em coalizão com ou-tras nações orientadas para a reforma, o Brasil po-deria ajudar a construir uma política de redução dedanos na área de controle de drogas, englobandotoda a cadeia que vai da produção ao consumo umapolítica na qual a cura não é pior que a doença.

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5 A Lei do Abate, editorial O Estado de São Paulo, 21de julho de 2004.6 Ver Forward Operating Locations in Latin America: Transcending Drugs Control, TNI Drugs & Conflict, no. 8, setembro de 2003.

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BRASIL RURAL: C ANN ABIS E V IOLÊNCIAJorge Atilio Iulianelli 1

necessário considerar que o Brasil, di-ferentemente dos países amazônico-andinos, como Peru, Bolívia e Colôm-bia, não tem um histórico de cultivotradicional de coca. Em relação à maco-

nha, embora existam registros de absorção docultivo pelas culturas indígenas, como no casoda tribo dos Guajajara, no estado do Maranhão,não se trata de cultivo ancestral e milenar. Alémdisso, o emprego de mão-de-obra para o culti-vo da maconha nos dias de hoje segue o mo-delo do agronegócio, conforme comprovamnossas observações na região do Submédio SãoFrancisco. Os pequenos produtores são intro-duzidos nas áreas de plantio ou são instados aceder as terras para esse fim, recebem os in-sumos e tem a garantia de compra da colheita.Essa é uma relação estabelecida pelos empre-sários e gerentes da atividade agrícola para li-dar com os pequenos produtores e agriculto-res. E assim como no agronegócio – porexemplo, no caso dos integrados pela fruticul-tura de exportação, naquela mesma região –, ospagamentos que eles em geral recebem pela ati-vidade são superiores aos que se recebe em ati-vidades não-integradas.2

Um grande problema brasileiro, talvez o maior,são o alto grau de concentração de renda e oabismo da desigualdade social. No caso campo-nês, a isso se acresce a alta taxa de concentra-ção fundiária. Tudo isso implica na necessidadede realização da cidadania das classes subalter-nas – em termos de vigência de direitos –, tan-to no campo quanto na cidade. Essas classes su-balternas a que nos referimos são aquelas querealizam o serviço braçal, o trabalho pesado –o que aproxima esse segmento social do cam-po àquele da cidade (Marques: 2002, 109).

No Brasil, a exploração das classes subalternasnas zonas rurais tem sua força na própria con-centração fundiária e na exploração da massacamponesa, quer por meio do latifúndio, querpelo agronegócio. Ambas as formas de explo-ração, como registra o relatório da Comissão

Pastoral da Terra (CPT: 2004), têm uma sana as-sassina em relação aos camponeses. A violên-cia no campo, sob a forma do assassínio decamponeses, é uma constante da realidade agrá-ria brasileira – e nas regiões do agronegócioisso também é um fato. Um mapa da questãodo campo no Brasil precisa incluir esses dadosalarmantes.

O Brasil é um País de 8,3 milhões de km2, sendoque mais de 80% desse território é constituídopor espaços rurais. Temos a maior concentraçãofundiária do planeta: 1% do total de imóveis ca-dastrados ocupa 45% das terras cadastradas, en-quanto 89,1% dos imóveis cadastrados se aper-tam em 20% das terras cadastradas. Esse apertoe essa concentração explicam, em certa medida,o alto número de conflitos sociais agrários noBrasil. Além disso, temos a exploração do traba-lho infanto-juvenil no campo. E ainda mais estar-recedor, no início do século XXI ainda temos tra-balho escravo em várias fazendas no Brasil.

Após essa ilustração do contexto camponês noBrasil, observaremos como é o circuito econô-mico das substâncias qualificadas como ilícitasnos espaços rurais. Precisamos de um olhar queseja diacrônico e sincrônico. Iniciamos com aatualidade do contexto desses espaços rurais.Agora, é necessário identificar uma certa traje-tória histórica da presença dessas substânciasqualificadas como ilícitas, para depois podermosretornar ao momento presente.

Uma breve história

Podemos nos perguntar se é histórica a presençadas substâncias atualmente consideradas ilícitasnas áreas rurais no Brasil? A resposta é sim! Nocaso da maconha, há registros do século XVIII.Como algumas substâncias nativas foram quali-ficadas como entorpecentes, esse registro é ain-da mais ancestral: é o caso, por exemplo, do san-to daime, uma raiz amazônica com a qual se fazum chá (a origem do uso religioso contempo-

1 Filósofo, pesquisador da CAPES, professor de Filosofia da Educação na Estácio de Sá, coordenador do Programa TrabalhadoresRurais e Direitos de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço2 No caso da maconha, em comparação com as diárias para a cebola, a diferença é muito expressiva: enquanto a cebola pagaR$ 7,00/10,00 (US$ 2,00/3,30), a maconha paga entre R$ 20,00/100,00 (US$ 6,60/33,00).

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râneo é bastante curiosa, porém não há espaçopara explorar o assunto). Em relação à coca, háregistros de sua presença na região amazônicamuito anteriores ao século XVI.

Vamos nos concentrar no registro histórico dapresença da cannabis sativa, a maconha. Esse é umregistro que está vinculado ao processo de co-lonização e ao sistema escravocrata. Sabe-se dautilização do cânhamo nos encordoamentos evelas das naus, caravelas e galeões que conduzi-ram os ibéricos na travessia da Europa para aconquista da América e dos povos nativos. Oplantio de cânhamo na Europa – trazido da Índiae disseminado por causa da utilização de suas fi-bras na fabricação de tecidos resistentes – é umaetapa do mercantilismo e da industrialização. Poroutro lado, precisamos notar o uso recreativo dacannabis entre os povos de origem africana, quetambém possui registro histórico. Nesse caso,essa informação é relevante para a compreensãodo circuito das substâncias atualmente qualifica-das como ilícitas nas zonas rurais do Brasil.

No caso brasileiro, esse cultivo migrou, em es-pecial, para a região Nordeste. O cultivo dacannabis se alastrou do Nordeste setentrional,em especial do Maranhão, para o Nordeste cen-tral, de modo significativo na região que maistarde passou a ser conhecida como SubmédioSão Francisco, que inclui os atuais estados daBahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Essa ex-tensa área manteve cultivos e usos recreativo emedicinal muito antes de qualquer criminaliza-ção dessa planta e do seu cultivo. É importantefazer esse registro para que se note sua impor-tância nas sociedades rurais nordestinas. Efeti-vamente, há registro de uso histórico em pelomenos uma tribo indígena, que ora vive no atu-al estado do Maranhão: os Guajajara. Atualmenteexiste registro de cultivo da cannabis entre osTuxá, na Bahia. Porém, em relação a esse povo,nada permite argumentar contra ou a favor datese de cultivo e de uso ancestrais dessa erva.

São abundantes os registros do cultivo da ma-conha entre os povos de origem africana, os

afro-brasileiros, e as informações nos relatóri-os médicos do início do século XX se configu-ram como um elemento racista. Aliás, racismoe elitismo transpiram nesses relatórios que iden-tificam o uso da cannabis como um elementodefinidor do atraso das populações do sertãonordestino. De qualquer modo, fica evidenciadaa presença do cultivo da cannabis muito antesde sua criminalização. Assim como fica registradaa continuidade desse cultivo na mesma área, inin-terruptamente, apesar da política pública deerradicação3. Com efeito, em relação a esse ob-jetivo de erradicar o plantio, proeminente nes-sa política aplicada entre 1940-2004, cabe notarque, como se pode perceber, ele não logrou seralcançado.

No Brasil, a presença de substâncias qualificadascomo ilícitas no campo não se restringe à canna-bis. Nem os usos são restritos ao entretenimen-to pessoal e coletivo. Há usos medicinais e ritu-ais – no caso da cannabis, para o primeiro tipode uso, na região do Submédio São Francisco, notratamento da asma, e para o segundo tipo, en-

3 No Brasil, a erradicação é feita por meio da queimada da produção. Até onde se sabe, nunca houve operações de fumigação.Essas queimadas contam com mão-de-obra local arregimentada pela Polícia Federal. Segundo os trabalhadores rurais do Submé-dio São Francisco, há arregimentação de lavradores pela Polícia Federal, por meio de coerção física violenta, caracterizando traba-lho forçado e degradante.

A planta ayhuasca (daime) é tradicional-mente usada em cultos religiosos dos po-vos amazônico-andinos. No Brasil, ela foiqualificada como entorpecente pelo Confen,em 1984, e incluída na lista da Dimed. Em1986, foi retirada da lista após um primeiroparecer, ratificado em 1992. Os pareceresliberaram o uso do daime para finalidadesreligiosas. Em 2002, houve novo parecer queproíbe, mesmo em cultos religiosos, abeberagem da ayhuasca para menores de 18anos, ainda que acompanhados dos pais.Também nos EUA, onde o daime chegoupor meio da União do Vegetal, a planta eraconsiderada entorpecente até 2002. A partirdaquele ano, o uso religioso também foipermitido naquele país.

A planta Ayhuasca

Bras i l Rura l : cannab i s e v io lênc ia

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tre os Guajajara, conforme registros antropoló-gicos (Henman: 1986). No caso da cocaína, osregistros são muito recentes. Há indicativos desua presença nos anos 1970, especialmente naAmazônia. Nos anos 1980, aparecem suspeitasde uso de cocaína entre canavieiros no interiorde São Paulo, nas regiões de Ribeirão Preto eBauru. Não há muitos registros referentes à pre-sença de opiáceos, muito embora, em 1997, umaComissão Parlamentar Externa sobre o Polígo-no da Maconha tenha indicado a possível pre-sença de heroína na região do Submédio SãoFrancisco. Isso nos leva agora a uma exploraçãoda presença das substâncias qualificadas comoilícitas nas zonas rurais do Brasil.

As presenças das substânciasqualificadas como ilícita nas zonasrurais

Há duas presenças que são notadas. A primeiraé relativa ao circuito produtivo, o cultivo. A se-gunda se refere ao circuito comercial, aquele dasvias de transporte e do consumo. Em ambos oscasos, as questões pertinentes ao processo decomercialização são significativas. Assim, o quefaremos nos parágrafos seguintes será ofereceralgumas informações qualificadas sobre comoesses processos econômicos, esses circuitos, secombinam com elementos das culturas locais,perfazendo, muitas vezes, dramas trágicos paraa vida das populações subalternas. Há que sebuscar notar como as populações rurais são vul-nerabilizadas nesse processo, numa dupla ordemde fatores. O primeiro proveniente da organi-zação do agronegócio ilícito – que nasce com ailicitude. E o outro condizente com os proces-sos repressivos conduzidos pelo aparelho re-pressivo do Estado – as forças policiais e o sis-tema judiciário.

Em relação ao cultivo, devemos notar que ele éprincipalmente consignado à cannabis sativa,uma produção voltada para o consumo nacio-nal. Existe uma dúvida razoável. Ao analisarmosa magnitude dos dados da Polícia Federal refe-rente às apreensões de gramas de maconha,

pode-se deduzir que, ou a maior parte da ma-conha consumida no Brasil advém de fora dopaís – do Paraguai, como se tem notícia desde2002, referente ao consumo na cidade de SãoPaulo – ou a notificação de erradicações regis-trada pela Polícia Federal não corresponde auma devastação das áreas de plantio, como sealardeia. Efetivamente, como se pode notar pelatabela do Departamento de Polícia Federal, amaior área de cultivo ainda é a região Nordes-te. E nos anos 2000 – entre 2000 e 2003 – nota-se uma queda constante na quantidade de péserradicados.

Em um outro estudo, indicamos alguns dados re-ferentes à área de plantio na região da Bahia ePernambuco (Iulianelli: 2003). Inexistem estudosempíricos que quantifiquem as áreas cultivadascom maconha no Nordeste brasileiro. Entretan-to, na região do Submédio São Francisco (SMSF),considerando-se apenas os quatro estados quese intersectam (Bahia, Pernambuco, Alagoas eSergipe), estimativas como as da Polícia Federal,de uma área cultivável de 3,5 mil hectares, apa-rentemente não correspondem, por exemplo, àestimativa do Ministério Público do Trabalho doEstado de Pernambuco,4 de 40 mil agricultoresocupados nesse cultivo, dentre os quais 10 milcrianças e jovens. Pessoalmente, estimei em 118mil hectares a área de plantio na região, usandoas proporções do Escritório das Nações Unidasde Prevenção ao Crime e às Drogas (UNDCP),relativas ao produto apreendido, produção eárea agricultável. Essa estimativa foi considera-da incorreta pelo Superintendente da Polícia Fe-deral, Dr. Wilson Dalmázio, em Seminário da Or-ganização Internacional do Trabalho (OIT), doqual ambos participamos.

Em 2003, no Nordeste, foram apreendidos 642kg de maconha, especialmente nas capitais, e er-radicados 1,8 milhões de pés de maconha, so-bretudo no SMSF, mas também no Maranhão,Rio Grande do Norte e Paraíba. A Polícia Fe-deral e a Secretaria Nacional Anti-Drogas – quepor pressão do Ministério da Saúde e de seto-res da Sociedade Civil alterou seu nome paraSecretaria Nacional de Política de Drogas – ar-

4 O Ministério Público do Trabalho é um órgão da União que atua em diferentes regiões do Brasil. Nesse caso, estamos nos re-ferindo ao Ministério Público do Trabalho da 5a. Região. Nesse texto as referências serão sempre a essa secção desse Ministério.

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gumentam que as operações de erradicação doplantio de maconha têm sido bem sucedidas.Com efeito, como se pode observar no anexo1, há um decréscimo dos pés de maconha er-radicados entre 1999-2003, de 3 milhões para1,8 milhões.

Além disso, é verdade que as cidades que con-centravam uma alta taxa de mortes por homi-cídio, como era o caso de Floresta (Pe), têm con-seguido reduzir os índices.5 Em 2001, a taxaretorna ao patamar em que se encontrava nasegunda metade da década de 1980, com umataxa de homicídios de homens ao redor de 50/100 mil habitantes. Esses fatos não são nada des-prezíveis. Porém, também não o são a presençade uma mão-de-obra estimada em 40 mil pes-soas, nem o desemprego aberto na região, nemos pagamentos para a atividade do plantio ilíci-to. Tudo isso faz crer que o plantio de cannabispermanecerá existindo na região do SMSF e de-mais regiões do Nordeste, alimentado por umatradição histórica e por demandas de consumonada desprezíveis (segundo uma pesquisa de2001 do Observatório de Drogas, 6.9% da po-pulação brasileira consomem maconha nas prin-cipais capitais do país).6

É necessário indicar, além do plantio, outras mo-dalidades de presença das substâncias qualifica-das como ilícitas em outras zonas rurais brasi-leiras. Existem três áreas prioritárias para essapercepção. Primeiramente, a região Norte apre-senta particular importância. Tanto pelas zonasfronteiriças com alguns dos principais produto-res de coca, como Peru e Colômbia, como pelanatureza estratégica da região amazônica.

Em segundo lugar, é importante notar a regiãoCentro-Oeste, palco do aumento da violênciacontra os camponeses perpetrada por um novoator social – o agronegócio. Em vez do latifún-dio, que continua homicida, agora é o agrone-gócio, conforme o estudo da CPT (2004), que

interfere de modo violento e assassino contrao campesinato. Nessa região, como identifica-do pelo professor Carlos Walter (In CPT:2004), houve um aumento na intensidade dasagressões e dos homicídios realizados peloagronegócio contra os camponeses. Nessa re-gião, além da questão das vias abertas para otransporte das substâncias, sobretudo advindasdo Paraguai, conforme dados da Polícia Fede-ral, há um registro significativo de consumodesses produtos.

Existem indícios da presença de cultivo de ma-conha nas fronteiras entre o Paraguai e o Bra-sil, na região do Mato Grosso, Centro-Oeste doBrasil. Deve-se destacar que nessa área tambémé intensa a monocultura, sobretudo de soja. Éessa também a região em que se supõe haver umnovo aumento na escala de produção de maco-nha (torno a chamar a atenção para o fato de aPolícia Federal identificar a procedência da pro-dução como paraguaia). Ou seja, na região emque aumenta a violência provocada pelo agro-negócio no campo, conforme o relatório da CPT,também cresce a produção e circulação de ma-conha. Finalmente, em terceiro lugar, na regiãoSudeste, no interior de São Paulo, nas regiões deRibeirão Preto e de Bauru, há indícios de estí-mulo ao uso de substâncias qualificadas comoilícitas para indução de maior produtividade en-tre os canavieiros.7 Note-se que, conforme da-dos divulgados pelos próprios usineiros, a pro-dutividade nessa região mais do que triplicounos últimos dez anos.

No caso da Amazônia, há duas relevantes pes-quisas desenvolvidas. A primeira é de autoria deArgemiro Procópio, professor da Universida-de de Brasília. Ele indica a presença de rotas detráfico por todo o interior da Amazônia, inclu-indo a presença de pistas clandestinas de pou-so e decolagem e a existência de diversos la-boratórios de transformação da coca. Segundoele, a absorção da mão-de-obra local nas ati-

5 Isso pode ser observado no anexo 2.6 Pesquisa realizada pelo Cebrid em 2001 e divulgada pela Senad em 2002, no seu sítio eletrônico (http//www.senad.gov.br).Essa pesquisa indica que a população da região Nordeste é a segunda maior consumidora de maconha no país – 1.2% conso-me maconha.7 Neste último caso, registro entrevistas com três fontes: um professor de uma universidade pública do Rio de Janeiro que fezpesquisas na região (fev, 2003); uma pessoa ligada à Pastoral dos Migrantes (out, 2003); e uma liderança sindical rural da região(maio, 2004). As três fontes informaram a existência de consumo de crack e de cocaína entre canavieiros, e suspeitavam da inge-rência de fazendeiros dos canaviais na distribuição dessas substâncias, para aumentar a produtividades dos camponeses.

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vidades relacionadas ao tráfico é muito mais lu-crativa do que as atividades econômicas lícitasdisponíveis na região. Ele não nos oferece mui-tos dados, porém argumenta que o Brasil se-ria o segundo maior consumidor de cocaína domundo (1999; 2000).

A outra pesquisa é fruto do trabalho de um gru-po de estudiosos que conduziu uma investiga-ção sob o título Globalisation, Drugs andCriminalisation, coordenada pelo economistaMichel Schiray (2002). Esse grupo realizou umaanálise comparativa entre Brasil, China, Índia eMéxico. No Brasil, participaram da pesquisa asprofessoras Alba Zaluar (UERJ), Lia Osório Ma-chado (UFRJ) e Sandra Goulart, e os professo-res Ronaldo Araújo (Goeldi, Belém-PA) eChristian Geffray. As pesquisas sobre o Norte doBrasil, na região amazônica, foram particular-mente conduzidas por Osório, Araújo e Geffray.Eles analisaram diferentes regiões e recortestemáticos. Osório avaliou o Acre e os impactoseconômico-financeiros da presença naquele es-tado do comércio de substâncias qualificadascomo ilícitas. Araújo e Geffray, de modo distin-to, analisaram a formação organizativa da ope-ração comercial – o primeiro, no Acre, e o se-gundo, em Rondônia e Amapá.

As análises da professora Osório revelam aexistência de uma rede com altos investimen-tos financeiros, indicando o absoluto descom-passo entre a realidade agrícola e silvícola dascidades analisadas em comparação com o vo-lume de dinheiro circulante e a quantidade deagências bancárias existentes na região. Isso,por si só, demonstra a necessidade de haver al-guma anuência do setor financeiro para o fun-cionamento dessa atividade econômica do ilí-cito. Afinal os bancos não questionam aprocedência dos montantes nele depositados,ainda que a realidade econômica da região nãocorresponda aos mesmos.

O professor Araújo, por sua vez, faz uma análi-se das operações criminosas de HildebrandoPascoal e de Cameli, dois personagens nos pro-

cessos da Comissão Parlamentar de Inquéritosobre o Narcotráfico, ocorrida no final dos anos1990. Seus argumentos procuram desvendar omistério da intensidade da violência aplicada poresses grupos criminais. O professor Geffray,entre outras coisas, indica a necessidade de umainvestigação mais profunda dos diferentes ciclosda economia das drogas. Ele os denomina deciclo de baixo – o do varejo – e de ciclo de cima– o dos financistas –, para uma melhor compre-ensão do processo.

As condições de trabalho e asociabilidade na área de plantiode maconha

Entre 1997 e 2003, mantivemos investigaçõessobre a situação dos trabalhadores rurais, re-lativas ao plantio de maconha no SMSF. Ofere-cemos aqui alguns dados dessas pesquisas. Elasforam conduzidas em diferentes momentos,com diferentes metodologias: entrevistas aber-tas com agricultores que plantam cannabis esofrem o efeito das ondas de violência - tantode parte da repressão do Estado, quanto daque-la conduzida pelos gerentes do plantio; entre-vistas abertas com jovens que já foram alicia-dos e com jovens que conhecem outros queforam aliciados; grupos focais de camponesese jovens.8

O que faremos nessa seção é fornecer algumasindicações das condições de trabalho dessescamponeses, conforme identificado por meiodessas investigações.

Na região do SMSF, o plantio cresce em escalaa partir da segunda metade da década de 1980,especialmente a partir de 1986. Coincidente-mente, esse é o período de acirramento da re-pressão ao plantio de maconha no estado doMaranhão, que afeta a tribo dos Guajajara. Nomesmo período, houve a crise do preço de umdos principais produtos da região, a cebola, e oassim chamado escândalo da mandioca – umaséria corrupção financeira ocorrida durante o

8 Grupo focal é um método de entrevista que utiliza um espaço apropriado, uma abordagem soft com o grupo, e mantém oentrevistador na condição de um facilitador do diálogo exploratório. Descrições mais detalhadas podem ser obtidas, dentreoutros, em Minayo: 1994.

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governo de Collor de Mello. Agrega-se a esseconjunto de fatores, que pauperizaram os cam-poneses, a existência de guerras de famílias, so-bretudo na região de Pernambuco (Belém doSão Francisco e Floresta), verdadeiras batalhaspor domínio e ocupação territorial.9

Há um outro elemento que precisa ser agrega-do. Essa região foi palco de vultosos investimen-tos governamentais durante os governos milita-res, para a construção de hidrelétricas. Aconstrução de Sobradinho expulsou cerca de 70mil famílias da região, gerando profunda paupe-rização desses camponeses. A construção de Ita-parica desalojou cerca de 7 mil famílias. Porém,neste último caso, elas se organizaram em tor-no do Pólo Sindical e conseguiram conquistarum reassentamento irrigado. No entanto, por 18anos, o governo federal negou a essa populaçãoo resultado de sua conquista.

Durante esses 18 anos, a maior parte dos cam-poneses foi reassentada e permaneceu sem ir-rigação da terra. Isso implicou em que essa po-pulação foi impedida de manter uma atividadeagrícola formal. Por isso, durante esse tempo, ogoverno subsidiou-a com uma verba de manu-tenção temporária. Até 1997, apenas 32% dosreassentamentos estavam funcionando. No cor-rente ano de 2004, 15% dos projetos ainda nãoestão funcionando. Um dos resultados de todoesse processo é que, em áreas de reassentamen-to irrigado, também se encontra, embora raros,casos de plantio de maconha.

Essa é uma condição do crescimento em escalacomercial do plantio da cannabis no SMSF. Den-tre outras condições – tais como a presença his-tórica do plantio de cannabis, a crise nos preçosdos produtos locais (como a cebola, em 1987),o escândalo da mandioca no governo Collor deMello –, o desemprego dessa massa camponesacriou uma mão-de-obra virtual para essa ativi-dade. Especialmente os mais jovens, que não ti-nham uma tradição de trabalho agrícola, estavamprontos para ser associados a essa nova ativida-de lucrativa. Além disso, um outro ingredienteque explicaria a escala comercial nos anos 1990

é a associação em rede dos empreendedores doplantio. Conforme uma Comissão Parlamentardo Congresso Nacional, de 1997, haveria asso-ciação entre os agenciadores do plantio na re-gião do SMSF e o Comando Vermelho, do Rio deJaneiro.

As áreas de plantio de maconha nessa região sãoem geral pequenas propriedades rurais. São ocu-padas pelos gerentes do plantio, que oferecemos insumos agrícolas e o financiamento para alavoura, além de manter um grupo armado paraa segurança. A segurança em geral é realizadapor homens, adultos e jovens, que não são ori-ginários da mesma área em que ocorre o plan-tio. Os lavradores são adultos, jovens e crianças(há informações sobre a presença de crianças apartir de doze anos). Não temos até o momen-to informações sobre a presença de mulherescomo mão-de-obra.

Os lavradores são aliciados pelo menos de doismodos. Em algumas regiões, conforme as infor-mações que coletamos, as pessoas são associ-adas ou porque buscam esse trabalho volunta-riamente ou porque são convidadas ao plantiopor alguém que as conhece, com quem têm in-timidade (um amigo, ou parente). Os mais jo-vens – há notícias de lavradores no plantio com12 anos de idade – são em geral levados pelospais. Em outras regiões, ocorre arregimentaçãoviolenta. Temos uma informação ilustrativa, den-tre outras, de um lavrador que andava de bici-cleta na área do plantio e teria sido seqüestra-do para trabalhar na lavoura. O plantio duro emmédia 90 dias. A planta requer três regas diári-as. As condições de trabalho desses lavradores– crianças, jovens ou adultos - são precárias. Aalimentação é feita no próprio campo, aquecen-do-se a comida com os meios disponíveis oualimentando-se com a caça. A água é um bemraro na região e é consumida em condiçõesmuito pouco saudáveis. Esses trabalhadores vi-vem inseguros, pois a qualquer momento algumoutro grupo pode querer ocupar aquela deter-minada área de plantio ou pode haver uma ope-ração policial, na qual eles, no mínimo, corremo risco de ser presos. Foi sob essas condições

9 Esses conflitos não eram propriamente fundiários, embora incluíssem ocupações de territórios. Eram conflitos gerados por “ques-tões de honra” e que ainda hoje repercutem em mútuos assassínios entre as famílias.

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que esses camponeses produziram, durante vá-rias décadas, o maior plantio de maconha doBrasil.

Há notícias de plantio na região de Petrolina.Segundo essas notícias, associada a essa preca-riedade e insegurança, há presença de um ou-tro tipo de exploração do trabalho infantil: aexploração sexual. Nos casos de Petrolina, deacordo com o Ministério Público do Trabalhode Pernambuco, a forma violenta de arregimen-tação de mão-de-obra é prioritária. É necessá-rio considerar que, na maioria dos casos, o in-gresso dos lavradores responde a uma questãode necessidade econômica. Porém, deve-seatentar para a presença de trabalho escravo(forçado) nesses plantios.

Podemos concluir essasnotas sobre as condiçõesde trabalho desses lavra-dores com uma indicaçãoanalítica das formas de so-ciabilidade existentes en-tre eles na região do SMSF.Nossas análises indicamtrês tipos-ideais de socia-lização. Um primeiro mo-delo é o da socialização laboral: o trabalho éconsiderado um valor social, uma forma de in-tegração social. Isso é tão mais verdade em seconsiderando as tradições camponesas da agri-cultura familiar. A atividade do plantio de maco-nha se torna desse modo uma ação legitima, con-quanto ilegal. A legitimidade é expressa nasafirmações dos lavradores, que indicam que elesse sentem humanizados pelo trabalho naquelalavoura, mas humilhados quando são presos, por-que perdem a legitimidade da rede de relaçõescom os amigos, os vizinhos e os companheirose companheiras: “somos hômi no trabalho,homilhados quando presos”.

Um segundo tipo de sociabilidade é aquela dasocialização por meio da violência. O lavradornesse plantio, porquanto o proibicionismo legalo criminaliza, se vê enredado numa atividade quesupõe sistemas de segurança e de combate de

parte dos aparelhos de repressão do Estado. Paracompreendermos essa socialização violenta pre-cisaríamos fazer algumas observações sobre oaliciamento violento para esse plantio, a corrup-ção policial, o papel das brigas de família. No en-tanto, indicaremos apenas três ordens ou seg-mentos dessa sociabilidade violenta.

Um primeiro segmento é da ordem da subordi-nação dos trabalhadores. Nesse aspecto, o plan-tio do ilícito radicaliza aquela subordinação ca-racterística da exploração dos agroempresáriose da auto-exploração camponesa (que inclui otrabalho infantil). Em segundo lugar, há a violên-cia no controle do deslocamento da produçãoe do produto, que tem a ver com os domínios

territoriais de grupos ar-mados.10 Em terceiro, há arepressão policial que im-plica em duas formas deviolência: a repressão ar-mada, com a detenção oueliminação do lavrador, ea coação de lavradorespara trabalharem na ativi-dade de erradicação damaconha.

A terceira e última forma de socialização quepodemos notar é o que chamamos de resistên-cia criativa (ou alternativa à ilicitude). Essa so-cialização é promovida pelos movimentos so-ciais, especialmente pelo sindicalismo rural epelas comunidades eclesiais da região. Em am-bos os casos, há um empenho na construção deuma cultura de paz, de mecanismos sociais paraa superação da violência. Esse modelo de soci-alização gera, no seio do sindicalismo rural, se-tores favoráveis a um debate público para al-terar a legislação que penaliza os camponeses.O que norteia essa discussão é a solidarieda-de em favor dos direitos sociais e econômicosdos camponeses.

Uma palavra para concluir essas notas a respei-to da violência criminal assassina e da repressãopolicial. O efeito letal de ambas é bastante se-melhante, senão maior aquele provocado pela

10 Essa noção de domínio territorial de grupos armados está sendo desenvolvida por Jailson Silva, com relação aos grupos quecontrolam territórios nas favelas no Rio de Janeiro. Utilizo-o aqui de forma livre e análoga.

É necessário considerarque, na maioria dos casos,o ingresso dos lavradores

responde a uma questão denecessidade econômica.

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repressão policial. O fato é que entre 1997 e1999, durante e após a Operação Mandacaru eOperações Asa Branca, a taxa de homicídios nascidades da região aumentou. A situação da cida-de de Floresta é paradigmática. Nessa cidade, oshomicídios de homens aumentaram dentro doperíodo citado, e a diminuição das taxas desseshomicídios, naquela cidade, no período seguin-te, implicou no aumento das mesmas taxas noentorno – como se pode notar na cidade de Pe-trolândia, por exemplo. As principais vítimasdesses homicídios são homens jovens, com ida-des entre 15 e 24 anos.

Considerações conclusivas erecomendações

Em relação à mão-de-obra empregada no cul-tivo da maconha é preciso chamar a atençãopara o fato de que, conforme relatos dos pró-prios trabalhadores rurais do Submédio SãoFrancisco, uma grande parte desses lavradoresingressam nesse cultivo por necessidade eco-nômica de subsistência. Ainda mais, há denún-cias de rapto de lavradores, de parte dos geren-tes do tráfico, que os mantêm durante trêsmeses nas áreas de cultivo e colheita. Isso ca-racteriza uma condição de trabalho escravo,por um período determinado e com remune-ração acima da média local. Não podemos dei-xar de agregar a informação do trabalho força-do para a erradicação da maconha, relatadapelos trabalhadores rurais do SMSF, como açãoconduzida pela Polícia Federal.

Não haveria como falar, em geral, dos efeitos dapresença do plantio, comércio e consumo dassubstâncias qualificadas como ilícitas nas zonasrurais. Porém, precisamos fazer algumas nota-ções, e talvez o melhor modo seja o de pontuá-las sinteticamente:11

• Aumento da morte de jovens de 15-24 anos,nos campos e na cidade.12

• Incriminação de camponeses que são encon-trados nas áreas de plantio de maconha ou quetenham atuado como vendedores varejistas doproduto, mesmo que forçados. Podem permane-cer detidos por até 15 anos.

• Trabalho infanto-juvenil no cultivo da maconhae no comércio de drogas no campo: conformeo Ministério Público do Trabalho de Pernambu-co, há 40 mil trabalhadores rurais no plantio damaconha, apenas no SMSF. Dentre estes, 10 milseriam crianças e jovens.

• Trabalho análogo ao escravo, trabalho forçadopara o plantio da maconha, ação dos agentes docrime (gerentes do plantio), assim como traba-lho forçado para a erradicação das áreas plan-tadas, em ações da Polícia Federal.13

• Morte de lideranças sindicais: nos anos 1980,Manequinha (Juazeiro) foi assassinado e, em1997, Fulgêncio Manoel da Silva – liderança doMovimento dos Atingidos por Barragens e doPólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do SMSF.Finalmente apresento algumas idéias de alterna-tivas possíveis. Precisamos notar que é uma fa-lácia a afirmação do crescimento do crime vin-culado à cadeia produtiva das substânciasqualificadas como ilícitas, diante da ausência doEstado. O Estado está presente na forma repres-siva, por um lado, e naquela da corrupção de seusagentes, por outro. O Estado também está pre-sente na medida em que o sistema financeiroatua e cresce nessas regiões rurais de transpor-te, comércio e consumo de drogas. Tais presen-ças do Estado também são notórias nas áreas deplantio de maconha.

A principal política pública do Estado em rela-ção a essa atividade agrícola, entretanto, tem sidoa repressão e as operações de erradicação doplantio de maconha. São poucas e tímidas asações de caráter educativo e preventivo realiza-das pelo Estado. Além disso, quando há propos-tas deste último tipo de ação, elas são formula-

11 Aproveito aqui par te do esquema que utilizei para relatar o tema na XVII Assembléia Nacional da Comissão de Pastoral daTerra, Goiânia, maio de 2004.12 Em anexo, a tabela da incidência de mortes entre jovens de 15-24 anos, referente a algumas cidades do SMSF.13 Os advogados Rogério Rocco e Erika Macedo foram os primeiros a investigar a possibilidade do uso de excludente jurídicopara os trabalhadores rurais no plantio da maconha. Erika Macedo, assistente do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos, deKoinonia, tem feito uma reflexão sobre o trabalho escravo do plantador de cannabis no SMSF.

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das com um discurso criminalizador e poucoesclarecedor do fenômeno. Ações de alternati-va econômica para os lavradores praticamenteinexistem.

No ano de 1998, durante uma operação da Se-cretaria Nacional Anti-Drogas, denominadaOperação Mandacaru, houve uma ação econô-mica. Por meio dela se ofereceu, para a regiãodo Submédio São Francisco, a proposta de de-senvolvimento alternativo. Para tanto, foi aber-ta uma linha de crédito para os pequenos pro-dutores. Porém, a burocracia bancária do acessoao crédito tornou essa ação inócua. Nenhum la-vrador obteve acesso aesse crédito. O limite dodesenvolvimento alterna-tivo é o acesso à alterna-tiva – bem como o pro-cesso por meio do qual aalternativa é gerada.

Há na legislação brasilei-ra um dispositivo de ex-propriação de terras usa-das para plantio demaconha – ou de outrasubstância ilícita qualquer-, para fins de reformaagrária. Entretanto, a situação fundiária na regiãodo plantio de maconha, formada praticamentepor pequenos produtores, com problemas de ca-dastramento agrário, e a violência em tornodessa atividade econômica, tornam essa uma al-ternativa pouco provável – e por isso muito pou-co usada pelo governo federal.

A construção de alternativas depende de medi-das muito mais profundas. Elas passam pela al-teração da legislação nacional referente às dro-gas e por um amplo debate nacional sobre avelocidade da Reforma Agrária. O debate loca-lizado sobre a questão da cadeia produtiva dassubstâncias qualificadas como ilícitas é insufici-ente. No caso camponês, como no demais nocaso dos países latino-americanos e do Brasil emparticular, o problema central a ser enfrentadoé o da desigualdade social. Sem medidas que re-duzam o abismo existente entre os mais ricos eos mais pobres, que construam possibilidades deinclusão social para todos, não haverá processos

sociais condizentes com o Estado democráticode direito.

Não se construirão alternativas socialmente vi-áveis à repressão e à violência social agregadasà ilicitude atribuída a certas substâncias, semque se discuta a possibilidade do controle so-cial de suas cadeias produtivas. A hipocrisia eo temor que o proibicionismo disseminou noimaginário social precisam ser superados. Paraos camponeses, a não penalização daqueles quese encontram em situação de trabalho força-do (escravo), ou em extrema necessidade, e adescriminal ização do plantio, são medidas

que poderiam diminuir aviolência social a que es-tão submetidos. Diferen-te dos países amazônico-andinos, os lavradoresdo plantio da maconhano Brasil – e os lavrado-res usados no processocomercial de outrassubstâncias qualificadascomo ilícitas – não pos-suem nenhuma organiza-ção formal. Esses lavra-dores não pleiteiamdireitos pessoais e cole-

tivos inerentes à cidadania. Para eles, a lei é ape-nas algo a temer, não uma ferramenta para aconstrução de seus direitos.

Para os lavradores que estão sendo assassinadospela violência dos que financiam e dos que re-primem o plantio da maconha, coloca-se a ques-tão da garantia do direito de viver. Já existem se-tores desses lavradores que identificam na açãorepressiva e punitiva do Estado um elemento de-sencadeador de mais violência social. É neces-sário que se leve em consideração o genocídioembutido nos processos sociais, gerados pelapresença da cadeia produtiva de maconha e darepressão dela, frutos da política de drogas proi-bicionista. No limite, é a discussão da políticaproibicionista que precisa ser enfrentada. Atéque isso ocorra, é preciso tomar medidas em fa-vor da sobrevivência dos camponeses, em espe-cial dos mais jovens, que favoreçam a não pena-lização de trabalhadores agrícolas, pelo simplesexercício de sua atividade laboral.

É necessário que se leve emconsideração o genocídioembutido nos processos

sociais, gerados pelapresença da cadeia produtivade maconha e da repressãodela, frutos da política de

drogas proibicionista

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TABELA

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ara falar de política de drogas no Brasil,em primeiro lugar é preciso definir quaissão as drogas a que estamos nos referin-do. Como no resto do mundo, aqui tam-bém existe a dimensão tabu da droga ilíci-

ta, onde se reúnem em uma só categoriasubstâncias psicoativas muito diversas entre si.Um de seus dogmas é que todas as drogas reuni-das nesta categoria fazem mal à saúde da mesmamaneira. Nos anos 70, quando o fenômeno doconsumo desses produtos no Brasil se tornoumais visível, a “droga” referíasse à cannabis, coca-ína, alucinógenos e alguns produtos farmacêuti-cos, como as anfetaminas.

Com o advento da ditadura em 1964, foi promul-gada em 1976 a “Lei de Entorpecentes” (6368),substituindo legislações anteriores menos repres-sivas. Em seu artigo 12, esta lei estabelece a penamínima de três anos e a máxima de quinze anosde detenção para os criminalmente enquadradoscomo traficantes de drogas. Já o seu artigo 16determina de seis meses a dois anos de prisãopara os usuários das drogas proibidas, pegos emflagrante. Esta lei atendeu aos interesses interna-cionais sobre a matéria, principalmente aos dosEstados Unidos. Quando em 1973 uma comissãode congressistas americanos veio à América La-tina para discutir com as autoridades locais oproblema das drogas, o grupo de trabalho forma-do foi dividido em quatro áreas: prevenção, tra-tamento, reabilitação e fiscalização e repressão. Eé exatamente dessa forma que a nossa Lei 6368é dividida, fundamentada nas idéias desta comis-são, com o agravante de ter sido elaborada du-rante a vigência de um estado de exceção, emplena ditadura militar.

E assim, enquanto suas forças de repressão per-seguiam os subversivos de esquerda, a políciaperseguia toda uma nova gama de criminosos dadroga, definidos na Lei de Entorpecentes pro-mulgada em 1976.

Com a nova lei em vigor, as apreensões de dro-gas pela polícia começam a aumentar, assim comosua oferta e demanda. É curioso como uma re-pressão maior contra as drogas tem gerado maisoferta e consumo em toda parte onde é imple-mentada. Mas que drogas eram essas? Não deve-

mos nos esquecer de que o critério para a proi-bição de determinadas drogas pelas leis brasilei-ras é a sua capacidade de causar dependência. Eportanto não se pode negar que a única diferen-ça entre as drogas lícitas e as ilícitas é que essasúltimas são ilícitas. Afinal os maiores problemasde saúde pública associados ao uso de drogas nopaís estão relacionados às bebidas alcoólicas e aocigarro. Toda lei de drogas que não leva esse fa-tor em consideração tende a se tornar irrealista.

A realidade nacional nos permite afirmar que esteé um país em que se consomem duas plantas ilíci-tas: a cannabis e a coca. Todos os produtos deriva-dos dessas duas plantas também são proibidos, in-clusive chá de coca e roupas feitas de cânhamo oumedicamentos produzidos com cannabis. Quantoao não aproveitamento do cânhamo para usosindustriais, é o preconceito e uma falta de visãoeconômica que prevalecem. Em relação ao usomedicinal da cannabis, podemos dizer que a faltade pesquisas no Brasil é mais uma questão políti-ca e ideológica do que científica, já que diversospaíses em todo mundo já utilizam os cannabinói-des para fins terapêuticos, inclusive os EUA.

Quando o usuário vai comprar “drogas” nas ruase favelas do Brasil hoje em dia, o que ele encon-tra à venda são basicamente maconha e cocaína.Em outras cidades que não o Rio de Janeiro, éprovável que o crack esteja disponível, mas estasubstância também é um subproduto da coca. Ocrack não é vendido no Rio por determinação dagerência do comércio de drogas local, que nãoquer seus funcionários envolvidos com seu uso.

Em relação às drogas sintéticas, estas são consu-midas por um pequeno grupo, em geral de classemédia, e a dinâmica econômica da oferta dessesprodutos é outra, diferente do comércio nas regi-ões e comunidades pobres: seus vendedores tam-bém são de classe média e em geral fazem partedesses grupos ou tribos urbanas que costumamfreqüentar os circuitos de festas (raves) e shows.Em relação à heroína, praticamente não existedemanda, e somente muito de vez em quando seouve falar de pequenas apreensões dessa droga.

O fato de a violência oriunda do tráfico de dro-gas estar associada ao comércio de duas drogas

NOVA LEI DE DROGAS: AVANÇOS E L IMITAÇÕESLuiz Paulo Guanabara1

11111 Psicólogo e coordenador da ONG Psicotropicus.

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nos faz deduzir que uma divisão desse mercadoimplicaria em grande enfraquecimento do poderdo tráfico. Adotar um sistema tolerante semelhan-te ao da Holanda, regulando o consumo de canna-bis, deixaria nas mãos do crime apenas uma subs-tância ilícita: a cocaína (e derivados como ocrack). Com isso também se corrigiria uma dis-torção que é a falta de diferenciação entre dro-gas leves e pesadas. Não devemos nos esquecerque diversas drogas hoje proibidas já foramperfeitamente legais no passado: até 1938, porexemplo, a cocaína podia ser comprada em farmá-cias. Mas as autoridades estão longe de vislumbrare ter vontade política de experimentar novos ca-minhos para lidar com a problemática das “drogas”.

A Nova Lei de Drogas

O projeto para atualização da Lei de Entorpecen-tes tramitou por mais de dez anos no congressoantes de se transformar na Lei Antidrogas(10.409), sancionada em 11 de janeiro de 2002pelo então presidente Fernando Henrique Cardo-so. Ao sancionar a lei, o presidente vetou, total ouparcialmente, 33 dos seus 59 artigos, tornando ne-cessário a elaboração de um novo documento. Em20 de janeiro, nove dias depois, o governo enviouao congresso um projeto propondo mudanças naLei Antidrogas (PL 7134/02). A nova lei criava oSistema Nacional de Políticas Públicas sobre Dro-gas (SISNAD); prescrevia medidas para prevençãodo uso indevido, atenção e reinserção social deusuários e dependentes de drogas; estabelecianormas para repressão à produção não autoriza-da e ao tráfico ilícito de drogas; definia crimes edava outras providências.

O objetivo é endurecer o combate ao crime or-ganizado, dando caráter cumulativo às punições.A pena mínima para o tráfico de drogas passa detrês para cinco anos, e é mantida a pena máxi-ma de quinze anos. Esse crime, no entanto, temagora vários agravantes: financiamento da ativi-dade criminosa; tráfico praticado por policial ouservidor público; envolvimento de menor na ati-vidade criminosa; formação de quadrilha paravenda de drogas. Cada uma dessas tipificaçõesacarreta punições diferentes, e o traficante podeter sua pena máxima aumentada pelo acúmulodas infrações, uma fórmula que não tem funcio-nado em nenhum lugar do mundo.

Por outro lado, esse projeto de lei propõe umtratamento diferenciado para o consumidor dedrogas, que não será mais preso, e sim submeti-do a medidas de caráter educativo e penas alter-nativas - como prestação de serviços à comuni-dade e pagamento de multas. Ocorrendo prisãoem flagrante, o delegado de polícia fará, imedia-tamente, comunicação ao juiz competente e aoórgão do Ministério Público para encaminhamen-to do infrator. Caso isso não seja possível, esteterá de assinar um termo de compromisso, com-prometendo-se a comparecer ao tribunal em datafutura. O usuário poderá receber apenas umaadvertência do juiz, no tribunal a que foi encami-nhado pela autoridade policial. Entretanto a rela-ção entre usuário e polícia permanece obscura,pois se é o delegado de polícia quem encaminhaa pessoa detida com drogas ao juiz, ela tem de serlevada até uma delegacia. Ali, após assumir o com-promisso de comparecer ao juizado, é colocadaem liberdade. Mas mantido o envolvimento doconsumidor de drogas com a polícia, certamen-te continuará havendo a mesma corrupção poli-cial que ocorre hoje em dia: o policial ou delega-do extorquindo dinheiro do indivíduo detido parasoltá-lo imediatamente, para que ele não tenha decumprir as penas alternativas previstas na nova lei,para que seus parentes ou colegas de trabalhonão fiquem sabendo que ele foi detido com dro-gas. No entanto, em caso de processo judicial, ainfração não constará de sua ficha criminal, apósas penas alternativas terem sido cumpridas.

Cabe aqui a seguinte questão: como o juiz pode-rá determinar com certeza se a substância ilícitaapreendida se destina a consumo pessoal ou aocomércio? A lei não estabelece quantidades quediferenciam consumo de tráfico. Outras variáveisserão consideradas, como o local e as circunstân-cias em que se deu o flagrante, as condições so-ciais do detido, sua conduta e personalidade e aexistência ou não de antecedentes criminais. Es-ses critérios podem ser muito subjetivos e apon-tam para a manutenção do atual sistema puniti-vo em relação às infrações às leis de drogas: deum modo geral, apenas os pobres são presos.

O texto mantém a possibilidade de o consumi-dor ser submetido a tratamento compulsório,misturando justiça com terapia e não distinguin-do usuários de dependentes. Os debates sobreeste assunto vêm apontando que esta não é uma

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boa medida, o dependente de drogas quase nun-ca se beneficia de tratamento forçado. Quantomais o usuário de drogas estiver longe da justiça,melhor para ele e sua família e para a sociedadecomo um todo. Sua prisão, no entanto, poderáocorrer quando ele ou ela se recusar a cumprira pena alternativa determinada pelo juiz. Portan-to, a pena de prisão não foi abolida de todo, comoa mídia andou noticiando.

Essa nova lei que está em debate desde maio de2002, foi retirada da pauta da Câmara em abril de2003, época em que recebeu parecer contráriodo Ministério da Saúde, que apontou componen-tes que se conflitavam com a política de álcool eoutras drogas do atual governo – como a manu-tenção da penalização do consumo de drogas eo impedimento do uso desubstâncias ilícitas emambiente terapêutico. Umoutro grande problemadesse documento é a li-nha divisória entre usuá-rios e traficantes, pois éconsiderado traficantequem “importar, exportar,remeter, preparar, produ-zir, fabricar, adquirir, ven-der, expor à venda, ofere-cer, ter em depósito,transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,ministrar, entregar a consumo ou fornecer, aindaque gratuitamente, sem autorização ou em desa-cordo com determinação legal, produto capaz decausar dependência física ou psíquica”. Ao incluira expressão “ainda que gratuitamente”, o textopraticamente deixa de fazer distinção entre usu-ário e traficante, já que o consumo de drogas ilí-citas no Brasil – assim como as pessoas se reú-nem para consumir bebidas alcoólicas – é em suamaior parte realizado em grupo. Ou seja, a novalei pode ser considerada ainda mais severa e re-pressiva que a lei atual – que responsabiliza ape-nas o dono da substância ilícita, em caso de o fla-grante ocorrer em grupo. Pela nova lei, todos dogrupo podem ser suspeitos de tráfico.

Esse projeto também não foi considerado adequa-do pelos ministérios da Educação e da Justiça, nempela Secretaria Nacional de Direitos Humanos eo Gabinete de Segurança Institucional/SecretariaNacional Antidrogas – SENAD. Foi então consti-

tuído um grupo de trabalho para apresentar pro-postas de emenda ao documento. Em fevereiropassado, o deputado Aloysio Nunes Ferreira(PSDB-SP), em discurso na Câmara dos Deputa-dos, afirmou que faltava um passo ousado paraque o projeto atendesse àquilo que para ele da-ria tratamento adequado ao fenômeno do con-sumo de drogas em nosso país: “Sou da opiniãode que o mero consumo de drogas não deve es-tar submetido ao tratamento do Direito Penal”.Em seguida ele parece ter resumido o pensamen-to de uma parcela expressiva dos profissionaisdessa área ao dizer: “O tratamento repressivo aoconsumo obedece à estratégia inspirada pela po-lítica criminal norte-americana, é mais uma ma-nifestação da hegemonia dos Estados Unidos nomundo. Mas as estatísticas sobre esse mal que

afeta a sociedade mos-tram que, nas últimas dé-cadas, houve aumento doconsumo de drogas e dopoder do tráfico, com to-dos os desdobramentosque isso produz, inclusivecorrupção policial. Por-tanto, sou favorável à idéiada descriminalização douso das drogas”.

Em 11 de março de 2004,a Câmara dos Deputados aprovou a lei 7134/02,que agora tramita no Senado, onde provavel-mente também será aprovada, ao que parece,sem grandes modificações. O deputado Paulo Pi-menta (PT-RS), relator do projeto aprovado, afir-ma que “a grande virtude da proposta é a elimi-nação da possibilidade de prisão para o usuárioe dependente”, mas ressalva que usuário nãoestá sendo de forma alguma descriminalizado,pois “o Brasil é signatário de convenções inter-nacionais que proíbem a eliminação desse deli-to”. O relator explica que o novo documentoapenas modifica os tipos de penas a serem apli-cadas ao usuário, excluindo a privação da liber-dade como pena principal. “Para que o conde-nado não possa se subtrair ao cumprimento daspenas restritivas de direito previstas no substi-tutivo que ora apresentamos, estabelecemos apossibilidade de condenação do usuário nas pe-nas do artigo 330, do Código Penal em vigor.”Ou seja, caso o usuário não cumpra as penasrestritivas alternativas, novas medidas penais

Quanto mais o usuário dedrogas estiver longe da

justiça, melhor para ele esua família e para a

sociedade como um todo

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serão definidas, inclusive sua prisão, como jámencionamos.

Apesar de um parlamentar ter chegado ao cú-mulo de afirmar que essa pseudo-descriminali-zação do usuário era “praticamente a liberaçãodas drogas”, no fundo a nova lei não é muitodiferente da velha Lei de Entorpecentes da épocada ditadura: a maquiagem foi retocada, mas per-manece inalterada a mesma ênfase no sistemajurídico-policial como forma principal de lidarcom a problemática das drogas. Ao fazer umacrítica a esse projeto, no Editorial do jornal OGlobo de 21 de fevereiro de 2004, o advogadoRogério Rocco afirma: “O Legislativo tem umas

virtudes curiosas, e uma delas é a de garantirgrandes mudanças em textos legais que, de fato,não mudam quase nada”.

Em relação ao Brasil não ter autonomia para des-criminalizar o usuário, é verdade que o país é sig-natário das Convenções de Drogas das NaçõesUnidas. No entanto, é preciso considerar, em pri-meiro lugar, que entre os princípios fundamentaisda nossa constituição está o respeito à privacida-de, às liberdades individuais – uma esfera que nãodeve sofrer intervenção do Estado. A punição dousuário de drogas vai de encontro ao princípioda lesividade do direito penal, que consiste emnão punir atos que não ponham efetivamente em

Redução de Danos

A redução de danos surgiu no Brasil devido à grande disseminação do vírus HIV entre a populaçãousuária de drogas por via injetável. Suas primeiras ações ocorreram na cidade de Santos, São Paulo, em1989. Buscava-se implementar a medida sanitarista de troca de seringas e agulhas, visando à contençãoda epidemia entre usuários de drogas injetáveis (UDI) e promoção de sua saúde. No entanto, o programade troca de seringas proposto pelo governo municipal daquela cidade foi considerado crime pelo Minis-tério Público de Santos, baseado numa interpretação de um artigo da Lei de Entorpecentes, que consideracrime qualquer forma de facilitação do uso de drogas. Os médicos envolvidos no programa passaramentão a realizar suas ações preventivas e educativas de forma clandestina, já que na época 60% dos UDIde Santos estavam infectados com HIV. Mais que uma questão sanitarista, era uma questão humanitária.

Ao longo da década de 1990, a redução de danos foi se firmando como política de saúde públicagovernamental. O Ministério da Saúde financia hoje os mais de 200 programas espalhados pelopaís, com inusitado apoio da UNODC, em geral contrária às estratégias de redução de danos. Exis-tem duas principais redes de redutores de danos, a Associação Brasileira de Redutores de Danos(ABORDA) e a Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC).

A nova Lei de Drogas incorpora a redução de danos como uma de suas políticas. Ao relatar as atribui-ções do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), a lei especifica em seu artigonono que cabe a esse Sistema regulamentar as atividades que visem à redução de danos e riscossociais e à saúde. E em seu artigo vigésimo, rege que constituem atividades de atenção ao usuário edependente de drogas e respectivos familiares, para efeito desta Lei, aquelas que visem à melhoria daqualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de drogas.

O Brasil pode desempenhar um importante papel internacional não apenas de oposição às aborda-gens repressivas a que estão sujeitos os usuários de drogas, como para ajudar a angariar apoio para

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risco um bem jurídico tutelado. São os chamados“crimes sem vítima”, como por exemplo a auto-lesão, a prostituição e o suicídio, que em geral nãosofrem qualquer espécie de punição de parte dalegislação penal do mundo. Ou seja, a criminali-zação ou penalização do usuário de drogas ferea constituição brasileira.

Em segundo lugar, o Supremo Tribunal Federal járeconheceu que as normas contidas nos textosdas convenções internacionais são incorporadasao Direito Interno com o estatuto de lei ordiná-ria. Portanto, podem ser alteradas por decisão dainstância legislativa competente, no caso, o Con-gresso Nacional.

Infelizmente, a nova Lei de Drogas não se fun-damenta nessas diretrizes e sustenta uma situ-ação de vigilância sobre os usuários de drogasilícitas que, se pegos em flagrante pela polícia,serão penalizados de uma forma ou de outra.Ou seja, o autoritarismo e a intolerância pre-sentes na lei 6368 de 1976 continuam a funda-mentar a nova lei. Como diz Rocco em seuartigo mencionado acima, “Por não ousar tra-tar da legalização da produção e do comérciode drogas, após a aprovação final deste proje-to, o Brasil continuará tentando sobreviver aoaumento da violência gerada pelo tráfico, e osusuários permanecerão alvos prediletos depoliciais corruptos”.

uma política baseada em princípios de redução de danos. Em 2004, o Ministério da Saúde brasilei-ro demonstrou que estava disposto também a promover suas estratégias no interior do ambientepoliticamente conturbado da Comissão de Entorpecentes das Nações Unidas (Commission onNarcotic Drugs - CND) e da Comissão Interamericana de Controle de Abuso de Drogas (Inter-American Drug Abuse Control Commission - OEA/CICAD).

Na sessão da CND em Viena, em março, o Brasil apresentou uma resolução controversa sobreHIV/AIDS e Redução de Danos que gerou tensos debates. Era um sinal significativo de que oBrasil havia conseguido que todos os países da América Latina e do Caribe (grupo GRULAC?)aderissem à iniciativa. Subseqüentemente, o texto da resolução foi consideravelmentedesprestigiado por pressão dos EUA, da Rússia e de diversos países asiáticos. Referências dire-tas à importância dos programas de troca de seringas e de outros serviços de redução de danos,assim como o apelo para que se apoiasse o fortalecimento de organizações de usuários de drogasforam deixados de fora da versão por fim adotada.

Na 35a. sessão da CICAD em Washington, um mês depois, o Ministério da Saúde apresen-tou um quadro geral, mostrando como a abordagem de redução de danos brasileira resultouem um significativo decréscimo no número de novos casos de HIV entre usuários de drogainjetável. A delegação explicou que a intenção do governo é expandir os programas de redu-ção de danos para o sistema prisional e enfatizou a importância de garantir a participaçãode usuários na elaboração e implementação de políticas públicas de drogas. Uma atitudeativa contínua do Brasil em nível internacional pode contribuir significativamente para for-talecer a opção pela redução de danos, visível em diversos países da América Latina, comoa Argentina e o Uruguai, e pode, de modo mais amplo, ajudar a levantar o astral do debatesobre política de drogas mundial.

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BRASIL URB ANO: N ARCOTRÁFICO E V IOLÊNCIAPaulo Cesar Pontes Fraga1

o longo dos anos 1980, ocorre no Brasilum fenômeno que os epidemiologistasclassificaram como transição epidemio-lógica. As doenças infecto-parasitárias,que iniciaram a década como o princi-

pal motivo de mortalidade da população, encerramo período como a segunda causalidade. Passam aocupar a liderança, como agentes principais de óbi-tos, as denominadas causas externas, que significamas mortes ocorridas por violência. No início daqueladécada, as causas violentas representavam o quar-to motivo de abreviamento da vida. Para além deum problema de saúde pública, a alteração dessesindicadores assinalou mudanças no comportamen-to da população e nas relações interinstitucionais,culturais e sociais. A violência ganha maior visibili-dade no contexto da sociedade brasileira.

O aspecto paradoxal do fenômeno é a constataçãodo incremento da violência, notadamente a criminal,se intensificando justamente no fim da ditadura mili-tar e início da chamada transição democrática. É em1989, coincidentemente no ano da primeira eleiçãolivre para presidente da república desde 1960, que ascausas externas tornam-se a principal razão de mor-talidade. Ou seja, o período que abrange o regime mi-litar, mantido no poder por meio do uso constantee indiscriminado de extrema violência – como per-seguições e prisões arbitrárias e ilegais, torturas depresos políticos e comuns, assassinato de liderançaspolíticas de esquerda e/ou opositoras ao regime –,teve seus índices de mortalidade violenta superadosnas gestões de governos civis que o sucederam.Como veremos adiante, nos anos 1990 ocorre umrecrudescimento dos indicadores.

Quanto aos seus aspectos institucionais, este para-doxo tem sido elucidado pelo fato da sucessão degovernos militares e civis ser a expressão de ummesmo sistema de dominação de elites, e se darnum contexto em que o restabelecimento das elei-ções livres não foi capaz de gerar instituições efe-tivamente democráticas, estáveis, que gozassem deconfiabilidade e pudessem estar submetidas ao con-trole da sociedade.2 Análises apontam que, além douso legítimo da violência e da construção de umconsenso, os organismos de contenção e repressãoutilizam largamente, como recurso de controle, o

abuso de poder e as práticas de torturas, dirigidosa determinados setores da população. Consolida-seainda uma institucionalidade na qual os tirocínios decorrupção se efetivam e se tornam elementos ca-racterísticos da ação policial – práticas que na rea-lidade já existiam no período autoritário e se inten-sificaram após o fim da ditadura, que representamuma continuidade institucional.

Em sua dimensão criminal, a ampliação dos indicado-res de violência possui um elemento que se destaca:há uma coincidência entre o aumento dos homicídi-os e a presença cada vez maior do tráfico de drogasno meio urbano (e rural) brasileiro. No período abar-cado entre o final dos anos 1980 até os dias de hoje,o tráfico de drogas, gradativamente, se incorpora aocotidiano de várias cidades do país, principalmente nasRegiões Metropolitanas, e se destaca como a ativi-dade criminal que mais cresce. São Paulo, Recife, Belo

Desde 1958 já se registrava a presença de gru-pos de extermínios que tinham como objetivo“diminuir” os índices de criminalidade, as-sassinando criminosos. A partir de 1964, con-tudo, com a criação da Scuderie Le Cocq, umgrupo de policiais de elite, intensificam-se asações de eliminação de bandidos, geralmentepessoas pobres da periferia. Esses policiais,em determinados momentos, se uniram aosórgãos de repressão da polícia política paracolaborar na perseguição aos militantes deesquerda. Tornaram-se com isso intocáveispela justiça, e aqueles que se propunham adenunciar suas ações ou incriminá-los passa-vam a ser vistos como inimigos do Regime.Esse grupo inspirou outros grupos, paramili-tares ou não, que nas décadas seguintes se pro-liferariam nas periferias dos principais cen-tros urbanos, principalmente do Rio de Janei-ro e de São Paulo, com apoio da imprensa con-servadora e de parte da população. Além dematar, extorquiam assaltantes e traficantes.3

Grupos de extermínio

11111 Professor e Pesquisador da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA22222 Pinheiro, P. S.“Violência, Crime e Sistemas Policiais em Países de Novas Democracias. Tempo Social”, Rev. de Sociologia da USP, 9 (1):43-52, mayo de 1997.33333 Coimbra, C.“Operação Rio: O mito das classes perigosas”. Intertexto/Oficina del Autor : Niterói/Ro de Janeiro, 2001.

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Horizonte e, principalmente, o Rio de Janeiro se ca-racterizam pela presença cada vez mais marcante dotráfico de drogas em seus territórios.

É importante destacar ainda que as taxas de ho-micídio e de criminalidade associadas ao tráfico dedrogas aumentam em um contexto marcado poruma grave crise econômica.Após um enorme cres-cimento durante os anos 1970, os anos 1980 se-rão conhecidos como a década perdida, devido aofraco desempenho da economia brasileira, às altastaxas de desemprego e ao corte significativo de in-vestimentos públicos e extinção de programas pú-blicos na área social4. Não se trata aqui de fazeruma correlação imediata entre taxas de desempre-go ou o aumento da pobreza com o incrementoda criminalidade, mas compreender que essa con-juntura, aliada a outros fatores culturais, políticose sociais corresponde a um ambiente propício parao aumento da violência.

O Rio de Janeiro tornar-se-á, no contexto do qua-dro exposto anteriormente, um caso específicoque merece destaque, pela forma como o tráficose organizou, saindo dos guetos tradicionais e ine-rentes às atividades ilícitas, estendendo a sua in-fluência sobre áreas que até então estavam fora deseus domínios, e promovendo conflitos nessas áre-as. Os homicídios tornam-se, a partir de 1998, aprincipal causa de abreviamento da vida no muni-

cípio, na longa faixa etária que vai de 10 a 49 anos.Os indicadores revelam que na cidade do Rio deJaneiro, em 20 anos, no período 1983-2002, as ta-xas de homicídios cresceram 444% (Gráfico 1).

Variados índices criminais também aumentam suaincidência, com destaque para as armas apreendidase os desaparecimentos. Nos últimos 10 anos, a apre-ensão de armas pelo efetivo da Polícia da Capital Flu-minense cresceu consideravelmente. Em 1994, apre-enderam-se 745 armas; no ano passado, a apreensãochegou a 6068, um aumento de 714% (Gráfico 2).

As armas confiscadas pela polícia no período 1994-2003 totalizaram 25.490 unidades, número suficientepara equipar o efetivo da corporação na cidade.Temos ainda uma cifra pouco explorada por analis-tas e especialistas da área de segurança pública, masque merece atenção: o número de desaparecidos nacidade. Entre 1993 e 2002, foram registrados 16.426desaparecimentos (Gráfico 3), em sua maioria depessoas jovens. Grande parte ainda continua desa-parecida, e avalia-se que um número consideráveldesses desaparecidos foi morto por grupos ligadosao tráfico de drogas ou em ações ilegais de mem-bros da polícia e/ou grupos de extermínio.

O aumento dos homicídios, os desaparecimentose as apreensões de armas não são mera coincidên-cia e têm estreitas ligações com o tráfico de dro-

Bras i l u rbano : narcot rá fi co e v io lênc ia

44444 Dados recentes divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo revelam que entre 2001 e 2003 noMunicípio de São Paulo, maior e mais importante cidade brasileira, há uma correlação entre o percentual de aumento do desem-prego e o sucedimento de 33 tipos de ocorrências policiais. Para cada percentual de aumento na taxa de desemprego dá-se omesmo percentual de aumento dessas ocorrências.

Gráfico I: Taxas de homicídios (100.000) no Rio de Janeiro 1983-2002

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gas. As armas utilizadas pelos traficantes em seuspontos de vendas são de alto poder de destruição,e algumas são de uso exclusivo das forças arma-das, por se configurarem como armas de guerras(fuzis, granadas, submetralhadoras, metralhadorase até minas terrestres).

As armas, em sua maioria, não são fabricadas no Bra-sil, mas contrabandeadas de países como os EUA,Israel, Rússia e Suíça, sendo utilizadas pelo tráficopara defesa do território de seus negócios. No en-tanto, já se observam casos de desvio de armamen-tos das forças armadas para grupos de traficantes,como ficou claro na recente apreensão de minasterrestre que tinham numeração do mesmo lote dasminas adquiridas pela Força Aérea Brasileira5.

A presença de armas poderosas, o constante con-flito entre facções que disputam os pontos de ven-da de drogas, o confronto entre estas facções e apolícia, a migração de parte dessas armas para ou-tras atividades criminosas e a própria eliminaçãode pessoas ligadas ao tráfico, por seus comparsas,são algumas das razões do aumento substancial dehomicídios na cidade.

É importante, no entanto, entender o porquê dacidade do Rio se tornar a principal metrópole bra-sileira do tráfico de drogas. O Rio já registrava apresença de venda de maconha na década de 1920.6

Entretanto a maior repressão a esse tipo de ativi-dade e o aumento mais significativo do consumose dará nos anos 1960, apesar do Código Penal Bra-

Bras i l u rbano : narcot rá f i co e v io lênc ia

55555 Segundo dados da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (Dfae) da Polícia Civil, entre 1950 e 2001 foram identificadas,entre as mais de 200 mil apreensões realizadas no Rio, cerca de 35 mil armas de guerra de uso exclusivo da polícia e das ForçasArmadas. A polícia realizou um rastreamento que comprovou que a partir de 1995 cerca de um terço dessas armas (cerca dedez mil armas) saiu dos quar téis diretamente para os morros. Representam muitas vezes lotes inteiros de granadas, fuzis, subme-tralhadoras e pistolas automáticas, encontradas nos últimos sete anos com traficantes.66666 Misse, M. Os Malandros, Marginais e Vagabundos & a Acumulação Social da Violência no Rio de Janeiro.Tese de Doutoramento,IUPERJ. Río de Janeiro, 1999. Misse, M.“O Movimento: redes de mercado de drogas”.Tempo e Presença, nº 323. Pág. 7-12: Mai/Jun,2002. // Souza, M. J. L.“O tráfico de drogas no Rio de Janeiro e seus efeitos negativos sobre o desenvolvimento sócio-espacial”.Cadernos IPPUR/UFRJ, ano VIII, n.° 2/3, set/dez, 1994. // Fraga, P. C. P.“Da Favela ao Sertão: Juventude, Narcotráfico e Instituciona-lidade”. En: Fraga, P.C.P. & Iulianelli, J.A. “Jovens em tempo real”, Río de Janeiro: DP&A, 2003.

Gráfico 2: Apreensão de armas pela Polícia na Cidade do Rio de Janeiro – 1994 - 2003

Gráfico 3: Pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro - 1994-2003

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sileiro considerar crime o consumo e a venda dedeterminadas substâncias psicoativas, como a ma-conha, desde a década de 1940.

O consumo até então restrito às áreas próximas aospontos de vendas (Bocas de Fumo), em bairros po-bres ou em “franjas” do submundo do crime ou emzonas de prostituição7, se estenderá aos setores daclasse média impulsionado pelo movimento contra-cultural, como forma de expressão e de rebeldia deintelectuais e artistas ante a dura realidade do país,sob uma ditadura militar. Isso acarretará à atividadeilícita maior status no mundo criminal, devido aoaumento do dinheiro que ela passa a movimentar.

As “Bocas de Fumo”, em sua maioria, estavam lo-calizadas em favelas e bairros da periferia nesse pe-ríodo, e, como se observa por meio dos relatos demoradores mais antigos dessas comunidades, eramuito comum a presença de consumidores dosbairros de classe média nas favelas e periferias, quese deslocavam ate lá para comprar a substância. Apolícia passará a fazer achaques nas bocas de fumo,iniciando um tipo de conduta de corrupção quenão somente se tornará uma prática difundida nacorporação, mas que será fundamental para o de-senvolvimento da atividade Ilícita.

A entrada da cocaína no mercado varejista da dro-ga, na segunda metade dos anos 1970, tornar-se-á aatividade mais lucrativa8. A maior adesão à cocaínapelos consumidores se deu pela diminuição do pre-ço desse produto, em um período em que há umamaior oferta da mercadoria, do que propriamentepor um aumento de sua procura. No entanto, ogrande impulso da atividade criminosa e sua maiorletalidade ocorrerão com a maior organização dotráfico, que passa a ter uma estrutura empresarial:assalariamento dos participantes, entrada massiva depessoas na atividade, forte hierarquização e maioresquema de segurança. 8 Essa maior organização seefetivará primeiro com grupos que, a partir de rei-vindicações por melhores condições de vida nas pe-nitenciárias do Rio de Janeiro9, trazem para a vida

criminal um melhor planejamento e a conseqüentepossibilidade de maiores lucros e êxito. A estrutu-ra da organização se dá na forma de oligopólio deuma cúpula de negócios, como já ocorria anterior-mente com o jogo do Bicho. Isso significa que de-terminados grupos dividem o território da cidade,e cada um deles monopoliza as vendas em determi-nados bairros ou favelas. É bastante comum os gru-

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77777 Misse, op cit., 200288888 A maior presença de drogas e, em especial, de cocaína no mercado brasileiro, a partir desse período, aparentemente se deve àiniciativa de produtores de coca de menor porte, na Bolívia, de buscar mercados regionais para escoamento do seu produto dequalidade inferior, como os do Rio de Janeiro e de São Paulo devido principalmente à concorrência dos Car téis de Cali e deMedelín. A Cidade do Rio de Janeiro também foi usada como base de venda de drogas para outros países. Há controvérsia quan-to ao volume de cocaína que passa por terras brasileiras. Segundo a Polícia Federal, o volume nunca foi muito significativo. A maioriada cocaína do tráfico no Rio se destina ao consumo interno. Mas há investigadores que acreditam que 8% de toda a droga pro-duzida em países andinos passam pelo Brasil (Misse, 2002).99999 Fraga, Misse, op cit. // Peralva,A.“Violência e Democracia: O Paradoxo Brasileiro”, São Paulo: Paz e Terra, 2001.

No final dos anos 1970, os presos do Presí-dio da Ilha Grande, em Angra dos Reis, Es-tado do Rio de Janeiro, se organizaram parareivindicar melhores condições de tratamentoe se opor às torturas e aos maus tratos prati-cados por agentes penitenciários. A idéia eraevitar confrontos entre os presos e produzirentre eles uma solidariedade, visando ao ob-jetivo comum, que era sair da prisão e me-lhorar a vida em seu interior. O êxito dessegrupo, autodenominado Falange Vermelha,extrapolou o sistema e influenciou ativida-des criminais, como os assaltos a bancos,mas, principalmente, o ascendente negócioda venda de cocaína. O grupo inicial foi pre-so e desmantelado pelos organismos de re-pressão no Governo de Moreira Franco, en-tre 1987 e 1990. Houve uma rearticulaçãono início da década de 1990. Esses novosgrupos se mostraram mais violentos e poucoligados às comunidades, impondo-se cadavez mais pela força das armas. Apenas o ca-ráter de organização empresarial do crime foimantido, mas subdividiram-se os grupos.Hoje as favelas do Rio são mapeadas e divi-das entre diversas facções. As mais impor-tantes são: Comando Vermelho, Terceiro Co-mando e Amigo dos Amigos. Mas há umaconstante fragmentação desses grupos.

Cárceres e comandos

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pos rivais se hostilizarem, buscando tomar os pon-tos de venda alheios para ampliar seus lucros e raiode ação. Essas hostilidades geralmente resultam namorte de muitas pessoas envolvidas ou não com avenda, ampliando seus efeitos para além dos limi-tes dos pontos de venda. Foi o que ocorreu recen-temente, em junho de 2004, na Favela da Rocinha,quando um grupo rival tentou invadir o morro paratomar os pontos de venda ali situados. Morreramcerca de 10 pessoas, os moradores foram impedi-dos de entrar e sair da Favela e seus reflexos fo-ram sentidos nas vias públicas adjacentes, num raiode 4 km, de onde podia se podia ver e ouvir os in-tensos tiroteios com fuzis e submetralhadoras. Essaprática é bastante comum, e somente no mês deagosto de 2004 houve tentativas de tomada deBocas de Fumo em favelas como o complexo daMaré, o Morro dos Macacos e o Complexo do Ale-mão, onde morreram cerca de 20 pessoas. A açãoda polícia limita-se geralmente à ocupação do mor-ro, depois de o conflito estar instalado.

As atividades proliferam-se nos morros cariocas, embairros da periferia e em outras cidades da RegiãoMetropolitana e do Estado do Rio de Janeiro. Esti-ma-se que das 704 favelas existentes na Cidade, ape-nas em duas não haja a compleição do narcotráfi-co. Esta presença ao longo dos anos mudoucompletamente a rotina da cidade e, notadamente,a vida nas favelas. Em determinados períodos deconflito entre os grupos rivais, os traficantes im-põem um “toque de recolher”: a partir de determi-nado horário, os moradores devem permanecer emsuas casas com as luzes apagadas e ninguém devecircular nas ruas, sob risco de ser punido. Quandoalgum integrante do bando é morto pela polícia ouem confronto com grupos rivais, imprime-se um“luto” que força os estabelecimentos comerciais eas escolas no interior dos morros e nas ruas adja-centes a fecharem as portas. A lista de arbitrarie-dades e mandonismos é grande, seus itens incluem“grampear” telefones, tomar casas consideradas es-tratégicas para o negócio, entre outros, visando acontrolar o território de seus negócios.

No entanto, o fato mais marcante foi a paralisaçãode praticamente todos os municípios situados naRegião Metropolitana do Rio, no segundo semestrede 2002. Segundo versão mais fidedigna, uma ordempartida dos presídios, onde estão encarcerados tra-ficantes influentes na hierarquia do tráfico, impôs atodos os estabelecimentos comerciais e industriais,

ônibus e escolas, que paralisassem suas atividadesdurante todo o dia, ou seriam retaliados. Apesar dosapelos das autoridades e da presença de efetivos dapolícia na rua, para que as pessoas desempenhassemsuas funções normalmente naquele dia, parecia queera feriado nos municípios. Demonstrou-se comisso que os códigos do tráfico são conhecidos por

O jogo do bicho é um jogo de azar, cuja explo-ração é considerada uma contravenção penal,um crime menos grave. Criado no início doSéculo XX, consiste em que as pessoas apos-tem em uma numeração (dezena, centena oumilhar), a que correspondem determinadosanimais. Iniciado na cidade do Rio de Janeiro,existe hoje em quase todo o Brasil. A explora-ção é feita por pessoas cuja origem dos seusrecursos está associada geralmente a outrasatividades ilícitas, como o contrabando. A suaforma de funcionamento implica na divisão dacidade em várias regiões, e cada dono de umadetermina região ou ponto deve respeitar oespaço de exploração do outro. Quando issonão se dá, ocorre uma série de conflitos e mor-tes, que geralmente resultam em uma redefi-nição de áreas, dos pontos de exploração edos próprios responsáveis pelo funcionamen-to. Existente até hoje, esse tipo de atividadeperdeu espaço nas últimas décadas no gostopopular e sua exploração não rende mais tan-to dinheiro quanto em outras épocas. Os bi-cheiros ou banqueiros do bicho, denomina-ções usualmente utilizadas para definir o chefedas áreas, têm bastante poder e influência nasregiões em que atuam, pois realizam açõesde cunho paternalista em benefício das popu-lações mais pobres. Historicamente, sempreestiveram atrelados aos desfiles das escolasde samba, que eram patrocinados por eles. Apolícia tem uma relação bastante ambíguacom esse tipo de contravenção: em algunsperíodos reprime mais e, em outros, não fazqualquer tipo de hostilidade. Essa oscilaçãose dá por conta dos acordos realizados entreos bicheiros e as autoridades policiais, medi-ados por propinas e achaques.

Jogo do Bicho

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praticamente toda a população, e que esta não vênas autoridades e nos agentes de segurança públi-ca a capacidade para lhes oferecer proteção.

Apesar da extrema violência com que se manifestae atua, o tráfico do Rio não é uma máfia, nos mol-des que se conhece. Segundo Misse (2002), ele nãoestá subordinado diretamente nem a grandes ata-cadistas, nem a organizações verticais estrangeiras,ou organizações do tipo família, como as máfias no-vaiorquinas e italianas. Embora possa ter uma basefamiliar local, esta dificilmente extrapola o “dono”ou o “gerente” da “Boca de Fumo”. Outra caracte-rística é que a organização das redes que lhes dãosustentação é bastante fragmentada e vulnerável. O“capital inicial” empregado para a compra de dro-gas (cocaína e maconha) advém, em sua maior par-te, de roubos a bancos e de trocas no Paraguai decarros roubados no Brasil por esses produtos.

O narcotráfico no Rio de Janeiro é hoje, sem dúvi-da, o maior desafio de segurança pública do país.Seus reflexos se dão principalmente no espaço daRegião Metropolitana: entrada massiva de jovens emsuas fileiras; constantes tiroteios entre facções eentre estas e a polícia, que atemorizam a população;corrupção das instâncias de poder constituído; ins-titucionalidade que funda uma nova escala de valo-res, onde a vida é um elemento precário e a impo-sição da força bruta e do consumismo de massaganham relevância; ocorrência do esvaziamento dasredes de solidariedade; aumento da violência poli-cial; e maior dispêndio de recursos públicos para secontrapor aos efeitos dessa conjuntura, como nocaso das emergências hospitalares.

Suas causalidades mais profundas e possíveis solu-ções estão, todavia, para além dos limites metro-politanos. O combate à corrupção em diversos ór-gãos, como as polícias Civil, Militar e Federal, éfundamental para evitar a chegada de armas pelasfronteiras e o seu escoamento pelos aeroportos,rodovias e portos. É urgente um maior controle so-bre o Judiciário, para impedir que juizes e promo-tores facilitem habeas corpus a traficantes e fun-cionários públicos igualmente comprometido comatos de corrupção e prevaricação. Necessita-seretirar as favelas, que representam 40% da popu-lação carioca, do isolamento em que foram histo-ricamente colocadas, como se não pertencessem

à cidade, excluídas de políticas públicas de educa-ção, saúde, emprego e renda, promoção social e se-gurança. E evitar com isso que o único órgão es-tatal que chegue às favelas seja a polícia, cujaatuação sempre se pautou pelo descaso e desres-peitos aos seus moradores.

As políticas para a juventude são urgentes, pois éeste o setor da população mais atingido pela vio-lência e criminalidade. Vários programas já exis-tentes em diversas favelas cariocas têm demons-trado que o que empurra os jovens para comporas fileiras do narcotráfico é muito mais o abando-no que se encontram em termos de políticas cul-turais e educacionais que valorizem a sua criativi-dade, do que a mera necessidade de sobrevivência.Em termos internacionais, o sistema da ONU pre-cisa rever a política proibicionista expressa nasConvenções Sobre Entorpecentes, buscando for-mas eficientes de desmantelamento das redes cri-minosas, sem criminalização dos pequenos agricul-tores e usuários.

Em novembro de 1994, após pressões de se-tores da mídia e de empresários e numa cam-panha de desmoralização das polícias civile militar, o Exército ocupa os morros do Riode Janeiro em ações denominadas OperaçõesRio I e II. As operações se tornam ineficien-tes nos seus propósitos e desfazem o mitode que o Exército é incorruptível e está pre-parado para qualquer ação. Denúncias vêmà tona, como os desvios de armas, oficiaiscirculando com carros roubados e a mortemisteriosa de alguns oficiais que investiga-vam esses casos, não divulgados pela im-prensa.10 As operações ficaram marcadastambém por casos de torturas praticadas poragentes do exército. Recentemente, com oconfronto entre traficantes na Favela da Ro-cinha que deixou 11 mortos entre trafican-tes, moradores e policiais, voltou-se a soli-citar apoio do Exército, desta feita para mis-são especial com armamentos.

Incursão militar

1010101010 Coimbra, C.“Operação Rio: O mito das classes perigosas”. Intertexto/Oficina del Autor : Niterói/Ro de Janeiro, 2001.

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A situação é complexa. Uma sucessão de governosestaduais nas últimas décadas não foi capaz deenfrentar o problema de maneira competente. In-siste-se apenas na solução armamentista, bélica.Aumenta-se o efetivo da polícia, equipa-se a cor-poração com armamentos mais poderosos, recor-re-se ao auxílio das forças armadas como forma demaior repressão. No entanto, a cada ano os resul-tados mostram-se mais ineficientes. Não há solu-ção ou diminuição da criminalidade sem um amploinvestimento na reforma das instituições de segu-rança pública, visando a sua eficiência, melhorescondições de trabalho e, principalmente, à trans-parência de suas ações e respeito aos preceitosconstitucionais. Da mesma forma, não é possívelqualquer melhoria efetiva dos números sem a in-clusão da população em geral e, mais particular-mente, dos moradores das favelas, na formulaçãoe implementação de políticas públicas que efetiva-mente invistam em sua inclusão social e, finalmen-te, os integrem à vida da cidade.

Apesar dos graves problemas que o tráfico de dro-gas traz para a população do Rio de Janeiro, a ci-dade não está em guerra, como querem fazer acre-ditar os setores conservadores, a própria polícia

e parte significativa dos meios de comunicação. Aquestão do tráfico se insere, além dos fatores ex-postos anteriormente, no âmbito da segurança pú-blica, e não é de forma alguma um problema de se-gurança nacional. Impulsionar essa mentalidade,reforçar esse argumento, significa dar salvo condu-to para o aumento de violações aos direitos hu-manos de grande parcela da população pobre dacidade, que já são alarmantes. As drogas viraram asenha para chacinas, prisões arbitrárias e inculpardeterminadas pessoas de crimes. A perseguição aosinimigos do regime militar parece ter sido substi-tuída nesses tempos neoliberais pelo estigma detraficante. A ilegalidade do tráfico de drogas foitransformada em uma prática delinqüente pelasinstituições do poder. Entendo com isso que suainstitucionalização nos morros cariocas, a práticaviolenta de seus principais atores e sua capacida-de de se tornar elemento de socialização na vidade milhares de crianças, adolescentes e jovens nãosão ações paralelas ao poder. Não se constituem,portanto, como estranhas às artimanhas do poder,mas fazem parte de seu continuum, que envolve ajustiça penal, os órgãos de detenção e repressão.Enfim, para usar uma expressão consagrada porFoucault (1997), é uma delinqüência útil.

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s análises precedentes permitem notaruma situação gerada por um nó de re-lações que brota do emaranhado dedisputas das políticas de drogas noBrasil. Se, do ponto de vista da pro-

dução de substâncias ilícitas o Brasil não se en-contra na mesma situação que os países andino-amazônicos, nem por isso ele não é um paísprodutor. Aliás, essa discussão sobre países pro-dutores, consumidores e pontes é absolutamenteideológica visto que, de alguma maneira, todosos países pertencem ao circuito econômico dasdrogas. Por outro lado, a situação de violênciaurbana teve um incremento conjuntamente àpresença do comércio de drogas. Há, também, aviolência nas áreas rurais produzida a partir dapresença dessa cadeia produtiva.

Atualmente, no Brasil, existem três tendênciasrelativas a política de drogas. A que possui posi-ção hegemônico na prática e discurso governa-mental é aquela proibicionista, repressiva e mi-litarizada. Os atores principais dessa política sãoa Senad, o Ministério do Exterior, o Ministérioda Defesa e o Ministério da Justiça. Por meio delase implementam o reforço legal – com justiça te-rapêutica e lei do abate, com o fito de coibir aoferta e a demanda. Uma segunda é aquela daredução de danos.O principal agente dessa po-lítica é o Ministério da Saúde. Essa é uma políti-ca que surge ligada à ação de contenção dapandemia do HIV/AIDS, especialmente com amedida terapêutica da substituição deseringas.Tal medida se apóia, também, no suces-so das políticas públicas relativas à prevenção doHIV/AIDS. Uma conquista dessa postura da re-dução de danos foi a alteração do nome daSenad, de Secretaria Nacional Anti-Drogas paraSecretaria Nacional de Política de Drogas.

Uma terceira tendência, muito mais débil que asanteriores, tem que ver com o debate públicosobre controle social das drogas. Os atores prin-cipais são o Ministério da Justiça e a SecretariaEspecial de Direitos Humanos. Nesse caso, sechega até a formular a possibilidade do uso te-rapêutico da cannabis. De fato, no Seminário doCebrid, realizado em 2003, recomendou-se quea cannabis fosse retirada da Lista 1, deentropecentes, e aposta na Lista 4, de fármacoscontrolados. Trata-se de um cenário ainda emconstrução.

As conseqüências das políticas de drogas e daorganização empresarial para a cadeia produtivadas drogas têm sido nefastas para a sociedadebrasileira. Do ponto de vista imediato, é a ques-tão do alto índice de homicídios, de jovens, po-bres, negros, entre 15-24 anos, o que maispreocupa.Um outro efeito nefasto é provocadopara o mundo rural com a prisão de trabalhado-res rurais que constroem estratégias de sobrevi-vência possíveis. Preocupante, também, é a situa-ção dos jovens nas comunidades das periferiasurbanas que encontram nas atividades comerci-ais relativas às drogas estilos de vida que lhespermitem sentir-se superior. Finalmente, éatordoante o tratamento legal que se tem ofereci-do à situação dos usuários de drogas,tratadoscomo doentes e delinqüentes. É necessário queuma série de medidas possa ser tomada paramodificar o quadro atual. Isso tudo nos leva asugerir que se aprofunde o debate público e, porisso, apresentamos as seguintes recomendações:

1. Nada significativo em termos de políticas dedrogas será realizado em países tão socialmen-te desiguais como o Brasil sem que políticassociais sejam implementadas. Para a questão daeconomia política das drogas, da produção aoconsumo, são indispensáveis políticas como aReforma Agrária – políticas agrícolas, fundiárias,crédito rural –; ações educativas e formativas dapopulação – especialmente voltada para as cri-anças e jovens das periferias, ações que saldemo déficit habitacional – em especial nos centrosurbanos; e uma séria política cultural.

2. Em relação aos produtores rurais envolvidosna cadeia produtiva das substâncias ilícitas é ne-cessário que se atente ao fato da necessidadeeconômica que os lança a tal atividade. Aindaantes de um debate público sobre a proprieda-de ou não de produzir-se tais substâncias é im-perioso que se discuta a ilegitimidade da deten-ção e apenação dos agricultores encontrados emáreas de cultivo. Até mesmo, há operadores dodireito que propõem o uso do excludente jurí-dico nesse caso e, dependendo das circunstân-cias, que se avalie o fato desses trabalhadoresestarem submetidos a condições de trabalhodegradante e de trabalho escravo.

3. Em relação aos jovens envolvidos nas ativida-des laborais do circuito das substâncias ilícitas

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

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nas áreas rurais e urbanas, deve-se promover,como nos demais campos de atividades laborais,a erradicação do trabalho infantil – com a con-seqüente ação de promoção de atividades edu-cacionais e formativas para essas jovens em ida-de escolar e a uma formação cultural e cidadãintegral. Além disso, há que se construir alterna-tivas de geração de emprego e renda.

4. O problema da violência urbana precisa ser tra-tado com a especificidade necessária. Deve havera identificação do tipo de crime cometido edissociar-se as atividades vinculadas ao porte euso de drogas daqueles outros atos criminososcom os quais são imiscuídos. Dessa forma, ao ho-micida que se lhe julgue o homicídio e não o fatode ser, também, portador ou usuário de drogas.

5. No marco do Estado de direito, a segurança éuma das principais e mais urgentes necessidades.E necessário que se incentive campanhas pelo de-sarmamento e a aprovação de legislação sobre essetema. Assim como é importante que se debata osimpactos que uma legislação menos repressiva notrato da questão da cadeia produtiva de substân-cias ilícitas teria para esse fim. É importante esti-mular-se experiências de comunidades não defen-didas, nas quais as populações possam, por meiospacíficos, com o auxílio de atores locais, comoescolas e igrejas traçar acordos de paz – que nãoseja a lei do silêncio. É necessário uma completareforma da polícia para combater a corrupçãopolicial, além de excessiva violência policial.

6. Ainda em relação à violência urbana, é impor-tante que os legisladores observem na propostade lei que ainda se encontra em tramitação noSenado a criação da figura do usuário difusor. Essafigura termina por imputar ao usuário o crime detráfico que, conforme a atual legislação, é crimehediondo. Isso imputará ao usuário penalidadepara traficante, detenção de 3 a 15 anos.É impor-tante que não se permita que esse e outros as-pectos daninhos da lei em pauta sejam aprovados.

7. O conjunto dos temas referentes às drogasdeveria ser tratado a partir do marco de um de-bate sobre a redução de danos e o controle so-cial das drogas. É necessário que se produzamestudos mais acurados sobre os processos pro-dutivos e de circulação, seus efeitos societáriosnas comunidades camponesas e urbanas, bemcomo políticas públicas de redução de danospara as populações mais afetadas. Sem um tra-tamento mais objetivo do tema permanecere-mos com políticas repressivas de impacto duvi-doso para os propósitos que se atêm – reduçãoda oferta e da demanda.

8. É necessária uma discussão sobre a coopera-ção internacional e a questão regional nessetema no marco dos direitos humanos – especi-almente relativos aos direitos econômicos, so-ciais, culturais e ambientais.O processo políticoregional faz com que o Brasil tenha um papelsignificativo que pode permitir um tratamentodo tema a partir do desenvolvimento sustentá-vel. O Brasil poderia contribuir para reduzir osdanos sociais e ambientais que a atual política dedrogas em América Latina produzem. Seria ne-cessário contribuir para que estudos sobre osnefastos efeitos das fumigações sobre a popula-ção humana e o meio ambiente na Amazôniafossem feitos, e solicitar ao governo colombia-no que interrompesse essa ação. Bem comopoderia solicitar que se discutisse na América La-tina usos industriais e terapêuticos – sob o es-trito controle do Estado – de plantas cultivadassecularmente no continente, para o benefício daspopulações.

9. Seria oportuno se o Ministério da Saúde emseu Grupo de Trabalho sobre Política de Dro-gas, vinculado à Secretaria de Redução de Da-nos, ampliasse o espectro de discussão.Para tan-to, seria importante que se oportunizasse espaçopara os discursos dos usuários, das vítimas deviolência, dos trabalhadores rurais, e de especi-alistas dessas áreas.

Conc lusões e recomendações

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SITIOS WEB UTEIS

http://www.aborda.org.brAssociacão Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA)

http://www.ibgf.org.brInstituto Brasileiro Giovanni Falcone

http://www.koinonia.org.brKoinonia

http://www.psicotropicus.orgPsicotropicus – Movimento Antiproibicionista

http://www.senad.gov.brSecretaria Nacional Antidrogas (SENAD)

http://www.unodc.org/brazilUnited Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) Brazil Regional Office

REFERÊNCIAS

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• Emenda Substitutiva Global ao Projeto de Lei no 7.134, de 2002 Senado Federal PLS 115/2002.

• Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis. Ed.Vozes, 1997.

• Fraga, P. C. P. “Juventude, Violência e Narcotráfico no Brasil, Para Além do Rural e do Urbano”.En: Iulianelli, J. A. & Mota. A. M. Narcotráfico e Violência no Campo. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

• Fraga, P. C. P. “Violência no Brasil e vínculos com a organização criminal”. Tempo e Presen-ça, no 323. Pág. 13-17: Mai/Jun. 2002.

• Projeto de lei sobre drogas. Segue o modelo americano e não trata do lucro do narcotrá-fico. Brasília, página web (http://noticias.correoweb.com.br) 14 de janeiro de 2004.

• “Repressão, Descriminalização e Legalização”, Revista Crítica. Publicação do Centro Aca-dêmico Cândido de Oliveira. Editora Forense, outubro/novembro de 1993.

• De Souza, Jailson & Urani, Andre, Children in Drug Trafficking: A Rapid Assessment, Geneva:International Labour Organization, International Programme on the Elimination of Child Labour(IPEC), 2002. (www.ilo.org/public/english/standards/ipec/simpoc/brazil/ra/drug.pdf)

• Sustitutivo ao Projeto de Lei no 7.134, de 2002, Senado Federal PLS 115/2002.

• Tema em Discussão: Consumo de Drogas. O Globo, 21 de fevereiro de 2004.

• Sergio Seibel, “Uma grande mudança que nada altera”. Folha de São Paulo, 11 de maio de 2004.

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FALTA CRESCENTAR ITENS

A indústria de drogas ilícitas impulsiona os tre-mendos problemas sociais e de violência crimi-nal no Brasil. Os níveis de violência relacionadosao tráfico de drogas em centros urbanos sãocomparáveis ao de uma zona de guerra. As armasmatam mais jovens com menos de 18 anos a cadaano no Rio de Janeiro do que na Colômbia. NoNordeste rural brasileiro, no chamado “polígonoda maconha”, os níveis de violência são às vezesainda mais elevados, em virtude das brutais dis-putas pela terra e dos conflitos relacionados aocultivo ilícito de maconha.

Nesta edição de Drogas & Conflito, é descrito opano de fundo da violência relacionada às dro-gas nas áreas de cultivo de maconha doNordeste.A nova lei que está em tramitação noCongresso também é avaliada. Embora a nova leiseja um passo à frente para se fazer uma claradistinção entre um traficante e um usuário, per-manece a dúvida se tratará efetivamente do pro-blema, dado o seu âmbito limitado.

É claro que as drogas não são a essência do pro-blema, mas as atuais políticas para controle de-las apenas intensificam a violência que acompa-nha os conflitos sociais no Brasil. Esse é umenorme desafio para o governo do presidenteLula. Fazendo uma aliança com outras nações quequerem reformar as leis de drogas, o Brasil po-deria ajudar a desenvolver uma política de redu-ção de danos na área de controle de drogas, oque implica toda a cadeia que vai desde a produ-ção até o consumo – uma política na qual a curanão é pior que a doença.

Fundado em 1974, TNI é uma rede in-ternacional de ativistas e pesquisadorescomprometidos com uma análise críti-ca dos problemas globais presentes efuturos. Tem por objetivo proporcionarapoio intelectual aos movimentos soci-ais preocupados em conseguir um mun-do mais democrático, eqüitativo e sus-tentável.

O programa Drogas e Democracia doTNI, criado em 1996, analisa as tendên-cia da economia das drogas qualificadascomo ilícitas e as políticas globais dedrogas, suas causas e efeitos no conjun-to da economia mundial, nos processosde paz e de afirmação da democracia.

O programa realiza pesquisas de campo,promove o debate político, provê infor-mação a oficiais de governo e jornalistas,coordena campanhas internacionais econferências, produz artigos e documen-tos de análise, e mantêm um serviço ele-trônico de informação sobre o tema.

O objetivo do programa e da série Dro-gas e Conflito é promover umareavaliação das políticas atuais e pres-sionar em favor de políticas fundadasem princípios que estejam de acordocom a redução de danos, o comérciojusto, o desenvolvimento, a democracia,os direitos humanos, a proteção da saú-de e do meio ambiente, e a prevençãode conflitos.

O projeto Criminalidade e Globalizaçãoestuda a relação entre a globalização eo delito, e seus efeitos criminológicoscomo a marginalização e o incrementode economias informais, que obrigam àspessoas a se fixar na ilegalidade. O pro-jeto examina também os acordos multi-laterais e convenções sobre a lavagem dedinheiro, crime transnacional organizadoe terrorirsmo, assim como seu impactosobre as liberdades civis, os direitos hu-manos e a soberania nacional.

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