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Uma história regional - A imigração suíça em Cantagalo- século XIX.
Marianny de Castro Camara. *
Resumo
Este trabalho tem por objetivo discutir sobre a construção de uma história regional, tendo
como ponto de partida a análise da história da imigração suíça na Vila de São Pedro do
Cantagalo no início do século XIX. Iremos refletir sobre as contribuições de historiadores que
trabalham com a história regional, e as maneiras de fazer o compartilhamento dessa história à
sociedade. Também iremos discorrer sobre como a educação é uma grande aliada na
divulgação da história e como o conhecimento da região e dos diversos grupos sociais que a
formaram são essenciais para a construção da própria identidade.
Palavras-chave: região, imigração, identidade, educação, Cantagalo.
1. Introdução
Gostaríamos de iniciar nosso texto com um trecho do historiador Marc Bloch em sua
obra Apologia da história ou o ofício do historiador: “[...] para que serve a história.” [...] Eis
portanto o historiador chamado a prestar contas. [...] que artesão envelhecido no ofício não se
perguntou algum dia, com um aperto no coração, se fez de sua vida um uso sensato?1. Eis
uma indagação que confronta o historiador até hoje. Que tipo de história estamos escrevendo,
e para que ela serve? Como transmitir esse conhecimento à sociedade e uma vez que essa
toma conhecimento, quais transformações lhe são provocadas?
O historiador Giovanni Levi levanta questões importantes e instigantes em seu artigo
O trabalho do historiador: pesquisar, resumir, comunicar, quando afirma que os
historiadores, muitas vezes, produzem livros chatos, pois lhes faltam pensar no leitor a qual se
destina a sua escrita. Esse é um problema relacionado à narrativa. O historiador afirma que o
* Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Salgado e Oliveira. 1 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, pp.41-42.
2
trabalho do historiador é também o de comunicar, mas que esse papel tem ficado um pouco de
lado pelo fato da história produzida não ter grandes significados à população em geral.
Mas, em geral, os livros acadêmicos são produzidos para acadêmicos. Essa
é uma verdadeira tragédia. Por que uma tragédia? Porque os historiadores
perderam seu papel. [...] A historiografia tinha o papel de falar com a
nação, de dizer coisas que eram interessantes para todos.2
A questão levantada por Giovanni Levi é realmente digna de reflexão, seria possível
produzir uma história acessível? Seria possível alcançar um público maior e não somente os
pares acadêmicos. A realidade é que ao produzir determinada pesquisa historiográfica, tal
pesquisa entrará no rol das muitas dissertações e teses sobre determinado assunto, sendo
acessada, por vezes, por outros pesquisadores que necessitam de um arcabouço teórico. Como
então assumir o papel de comunicar à um público maior a história? O estudo da região aliado
à educação podem ser facilitadores deste processo.
Para melhor entendimento da questão de divulgação da história, faremos uma breve
observação do artigo: Por uma história pública dos africanos escravizados no Brasil, dos
historiadores Hebe Mattos, Martha Abreu e Milton Guran. O texto gira em torno do projeto
Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos, desenvolvido por
historiadores que tem sua área de atuação na história da escravidão, unido ao projeto Rota do
Escravo da Unesco que tem por finalidade trazer à tona histórias ocultas sobre a escravidão. O
trabalho desses historiadores consistiu na visita e catalogação de diversos lugares de memória,
tais como: portos de chegada dos escravos, locais de venda, locais de desembarques ilegais,
terreiros de candomblés, igrejas e irmandades, quilombos etc., com a finalidade de registrar as
experiências ali vivenciadas.
Trazer toda essa história à tona vai muito além do resgate de memórias, ela estimula o
conhecimento e a valorização das origens, além de promover o não esquecimento da mesma.
Considerando que a sociedade brasileira é constituída por uma junção de diversos povos e
culturas, é essencial conhecer essas origens. E no que diz respeito à história dos africanos
2 LEVI, Giovanni. O trabalho do historiador: pesquisar, resumir, comunicar. Revista Tempo. vol. 20, pp. 1-20,
2014, pp. 6.
3
escravizados, por vezes essa é encoberta ou ignorada, portanto, projetos como o Inventário
dos Lugares de Memória, são essenciais para a divulgação dessa história à comunidade.
A estratégia de dar visibilidade a estes temas através da visitação dos locais
de memória não só consolidava novas formas de rememoração, para públicos que desconheciam ou se recusavam a falar desse passado, mas
também abria caminhos de sustentabilidade para os grupos que sofriam o
peso do estigma de serem descendentes dos antigos escravizados.3
O historiador Jörn Rüsen caracteriza a interpretação da história da vida cotidiana como
consciência histórica, na qual é possível inserir-se no processo histórico. Segundo Rüsen ao
relembrar e interpretar o passado, as pessoas desenvolvem uma perspectiva que orienta o
mundo presente4. Em outras palavras, ao tomar consciência de seu passado, a sociedade
consegue compreender o mundo na qual estão inseridos e conseguem inserirem-se como
atores do processo histórico.
Partindo do pressuposto da rememoração, temos como objetivo iniciar uma discussão
sobre a história regional, tendo como o foco a história dos imigrantes suíços em Cantagalo.
Essa história que pretendemos discutir ressalta as mentalidades, os sentimentos e incertezas,
os processos de adaptação ao novo mundo e reinvenção da realidade e a partir dessa
construção, compartilhá-la e torná-la pública, principalmente através da educação.
2. Por que uma história regional?
Iremos iniciar esse tópico discorrendo sobre a história regional, suas especificidades e
contribuições para a compreensão das relações sociais de determinada região. A história
regional é uma abordagem onde a o campo de observação do historiador é voltado a uma
escala menor. A partir de 1929 com a Nova História o conhecimento histórico e os olhares da
história foram ampliados e diversificados. O historiador José Mattoso explica que a partir da
Nova História a historiografia alcançou novos rumos e está interessada, além do macro, na
análise do particular, da vida cotidiana, dos micro espaços. Assim é possível fazer uma análise
mais específica de um espaço menor, como a história da região.
3 MATTOS, Hebe. ABREU, Matha; GURAN, Milton. Por uma história pública dos africanos escravizados no
Brasil. Est. Hist.,Rio de Janeiro, vol. 21, nº 54, 2014, pp.258. 4 RÜSEN, Jörn. Historiografia Comparativa Intercultural. In: MALERBA, Jurandir. (Orgs.). A história escrita:
teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006, pp.118.
4
Emerge, assim para a historiografia, a noção de que se podem reconstruir no
passado sistemas organizados de ações que mantêm um grau apreciável de
continuidade temporal, a que chamamos estruturas sociais. [...] Assim, a observação da família, do Direito, das classes sociais, das estruturas da
indústria, dos preços, etc., já não pertence em exclusivo ao antropólogo, ao
sociólogo ou ao economista, mas, na sua dimensão diacrônica, também ao
historiador. [...] Consequentemente, o espaço implicitamente considerado no discurso deixou de ser o nacional, para se buscarem os factores de coerência
independentemente das fronteiras políticas. Surgiram, então, em História,
ora as unidades regionais no interior dos países, ora as grandes áreas transnacionais ou os complexos histórico-geográficos.5
A região é uma unidade homogênea contendo diversos fatores internos que podem ser
o alvo de análise do historiador. Segundo José D’Assunção Barros “os elementos internos que
dão uma identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios
que favoreçam a sua percepção) não são necessariamente estáticos.”6 A região pode ser
definida por diversos critérios e cabe ao historiador definir os recortes. A análise pode ser
definida por fatores:
- Econômicos: a análise parte da produção e consumo local. A partir das relações comerciais
da região é possível compreender o sistema econômico da mesma.
- Culturais: a análise se volta às manifestações da cultura local, tais como festas típicas,
eventos cívicos e etc. “Uma região lingüística, ou um território sobre o qual são perceptíveis
certas práticas culturais que o singularizam, certos modos de vida e padrões de
comportamento nas pessoas que o habitam.”7
- Espaciais: a análise se desenvolve a partir de uma perspectiva geográfica, enfocando os
limites territoriais e as fronteiras com outras regiões. Há a possibilidade de se fazer
comparações entre as regiões limítrofes e a específica. “Seria o caso, então, de se definir o
peso que se atribui à determinação geográfica neste processo.”8
- Sociais: as relações sociais entre a comunidade são o alvo da análise. As diversas conexões
construídas entre a sociedade se tornam o objeto de estudo regional.
5 MATTOSO, José. Novos rumos da historiografia. In: _____. A escrita da história – Teoria e métodos. Lisboa:
Editora Estampa, 1988, pp. 45. 6 BARROS, José D’Assunção. História, região e espacialidade. Revista de História Regional. 10 (1), 2005,
pp.98. 7 BARROS, José D’Assunção. História, região e ... pp. 99. 8 BARROS, José D’Assunção. História, região e ... pp. 120.
5
O historiador José D’Assunção Barros em seu artigo “História, região e
espacialidade”, faz uma comparação entre o trabalho do historiador Fernando Braudel “O
Mediterrâneo”, e a História Regional. Segundo ele, enquanto Braudel ousou analisar o macro
constituído de várias regiões, os historiadores que trabalham com a região trabalham com os
micro espaços, uma abordagem mais detalhada sobre questões econômicas, sociais, culturais,
políticas e etc. José D’Assunção ainda ressalta que a história regional “surgia precisamente
como a possibilidade de oferecer uma iluminação em detalhe de grandes [...] que até então
haviam sido examinadas no âmbito das nações ocidentais.”9
A região se apresenta sempre “integralmente relacionada” com objetos
maiores, e, portanto, o estudo de aspectos específicos da região pode permitir a sua compreensão no conjunto da sociedade, assim como as
“histórias gerais” nem sempre conseguem captar os mecanismos mais
profundos das diferentes dinâmicas da sociedade.10
Após discorrermos sobre a área de atuação da história da região, uma questão salta a
nossa frente, qual a importância dessa história? A história regional tem como objetivo o
compartilhamento das origens preservando a identidade da sociedade na qual essa é
direcionada, e trabalha com a consciência histórica. O historiador Jörn Rüsen caracteriza a
consciência histórica como a interpretação da história da vida cotidiana, na qual é possível
inserir-se no processo histórico. “A consciência história será analisada como fenômeno do
mundo vital, ou seja, como uma forma da consciência humana que está relacionada
imediatamente com a vida humana prática.”11 Ao tomar consciência de seu passado, a
sociedade consegue compreender o mundo na qual estão inseridos e conseguem inserirem-se
como atores do processo histórico.
O trabalho com a História Regional traz um detalhamento maior das relações sociais
num espaço específico. O historiador José Mattoso afirma que o trabalho com a história
regional parte de um estudo das relações do homem no espaço que habita e por ter a
necessidade de viver em comunidade, esse busca inserir-se no grupo construindo relações
9 BARROS, José D’Assunção. História, região e... pp. 108. 10 SANCHES, Marcos. Região e história: as diversidades do mundo colonial. In: Sanches, Marcos (Orgs.)
História da Região. v.1, Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2011, pp. 17. 11 RÜSEN, Jörn. pp. 57.
6
sociais.12, e o estudo dessas relações traz à tona personagens até então ocultos, mas que são
essenciais no processo histórico da região tais como as mulheres, crianças, índios, escravos,
imigrantes e etc. E a partir do compartilhamento dessas histórias é possível que a comunidade
possa valorizar suas origens, construindo a identidade e desconstruindo preconceitos.
O compartilhamento da história regional aproxima a sociedade do conhecimento
histórico e consequentemente o autoconhecimento no que diz respeito à sua própria
identidade social. Segundo a historiadora Juniele de Almeida a história se constitui como
pública quando vai além do compartilhamento do conhecimento científico, mas quando
compartilha o trabalho com a memória.13 No que se refere à memória Le Goff afirma que essa
“como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um
conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, que ele representa como passadas”14.
Trabalhar com a história regional e o resgate da memória não apenas molda a
sociedade a quem ela é compartilhada, fazendo-a valorizar suas raízes, mas também o
historiador que a produz. Antoine Prost afirma que a história molda o historiador. “A história
remete o historiador para a historicidade da condição humana e para a sua própria.”15 O
historiador como mediador e compartilhador do conhecimento histórico passa a refletir sobre
a sua própria história.
3. A história da imigração suíça em Cantagalo
Iniciaremos este tópico com um trecho do texto O ensino da História Regional nas
escolas brasileiras do historiador Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira:
A História Regional, conforme podemos ver, permite trazer “novos atores”
para o campo da História. Alguns personagens que, quando muito, eram
12 MATTOSO, José. História regional e local. In: _____. A escrita da história – Teoria e métodos. Lisboa:
Editora Estampa, 1988, pp. 169. 13 ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. Práticas de história pública – o movimento social e o trabalho de história oral.
In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (Orgs.). História pública no
Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, pp.55. 14 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 1996, pp. 423. 15 PROST, Antoine. Como a história faz o historiador. Anos 90, Porto Alegre, n.14, 2000, pp. 19.
7
secundários ou que tradicionalmente eram totalmente “negligenciados” pela
História tradicional, podem, a partir do prisma da História Regional, ser
incluídos no processo histórico, caso dos ameríndios, das mulheres, das crianças, dos trabalhadores, dos escravos etc.16
Assim se constitui a história de Cantagalo. Uma junção de atores ora desconhecidos,
ora ignorados que constituíram a sociedade cantagalense. Quem passeia pelos caminhos de
areia branca protegidos pelas espaçosas sombras das grandes árvores da praça do centro de
Cantagalo, nem imagina que o município foi palco de importantes eventos durante fins do
século XVIII e XIX. Este território foi parte significativa da história da região serrana do Rio
de Janeiro, foi um importante centro cafeeiro e escravocrata, também foi região receptora de
imigrantes suíços e alemães. Porém, com mais de duzentos anos de criação, a história de
Cantagalo ainda tem se mantido nas sombras.
O historiador José Mattoso destaca que ao fazer uma história regional, os aspectos
naturais da região não podem ser descartados, antes esses são parte essencial da trama
historiográfica. “Toda a monografia regional ou local tem de começar por caracterizar o
espaço escolhido. [...] Na verdade, trata-se não apenas descrever [...], mas também de o
analisar, para compreendermos a sua função histórica.” 17 As características naturais de
Cantagalo o favoreceram a tardia ocupação desse espaço. Até a primeira metade do século
XVIII a área era habitada apenas por índios, sem qualquer interferência do governo colonial.
O território fluminense do Rio de Janeiro permaneceu por muito tempo oculto em meio à
floresta densa que compunha a paisagem local. Segundo Alberto Lamego Filho, foi esta selva
imensa e não a montanha que, bissecularmente retardou a penetração civilizadora.18
O primeiro ponto a se destacar é a presença dos índios que traz informações sobre as
relações sociais e culturais em Cantagalo, pois a essa última influenciou muito na formação da
região. A partir da segunda metade do século, este espaço atraiu a curiosidade e a ambição de
muitos. Com o declínio do ouro em Minas Gerais, a região foi sendo ocupada por garimpeiros
ilegais. Manoel Henriques, o famoso Mão de Luva que foi o nome mais destacado no garimpo
16 MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. O ensino da história regional nas escolas brasileiras. Disponível
em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-regional/. Acessado em: 01 de julho de 2019. 17 MATTOSO, José. História regional e ... pp. 171. 18 LAMEGO FILHO, Alberto Ribeiro. O homem e a serra. 2.ed. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, 2007, pp. 98.
8
ilegal em Cantagalo, chegou por volta dá década de 1860, em busca de ouro. Chegando na
região, iniciou sua empreitada garimpando os rios e córregos da região. Um grupo de
aventureiros se uniu a ele para a exploração do ouro, trazendo suas mulheres, filhos e escravos
para a região dos sertões. Tão logo, em meio às matas, um arraial escondido se formou com
mais de duzentas pessoas. O assentamento social estava iniciado.
Em 1786, o garimpo ilegal foi descoberto e tropas do governo foram enviadas ao
sertão para prender Mão de Luva e seu bando. Após a prisão do bando e seu líder, o arraial
começou a ser fiscalizado por centros policiados que impediram que a região caísse
novamente nas mãos de novos contrabandistas. O arraial do Mão de Luva a partir de então,
passou a se chamar Cantagalo e com a prisão dos garimpeiros ilegais o governo colonial
passou a promover a ocupação da região através de sesmarias, concedidas à pessoas de posses
que pudessem tornassem a terra produtiva e que tivesse escravos para tal empreitada. Segundo
o historiador Rodrigo Marreto ainda no século XVIII, Cantagalo seguia a produção escravista,
e mesmo antes da ocupação feita pelo governo colonial a presença dos escravos no garimpo
ilegal era marcante. Após o domínio do governo colonial o uso de escravos irá se intensificar,
primeiramente com a extração aurífera e posteriormente com o florescimento do café.
Em segundo lugar destacamos a presença dos africanos escravizados que viviam na
região. A contribuição sociocultural deles também influenciou a construção da sociedade
cantagalense. Em 1814, o arraial foi elevado a vila com o nome de São Pedro do Cantagalo. A
vila começou a crescer mediante o avanço da agricultura. As matas foram dando lugar à
lavouras e pastagens. A esperança de encontrar o ouro já não existia, o novo empreendimento
eram as lavouras, e devido à vastidão das terras, os gêneros excedentes começaram a ser
exportados para o Rio de Janeiro nos lombos de burros.
Em 1817, D. João VI recebeu do suíço Sebastien-Nicolas Gachet, a proposta de
estabelecer no Brasil uma colônia suíça. No momento, a Suíça passava por uma grave crise
econômica. Em 1818, concluída as negociações, D. João VI autorizou a criação de uma
colônia na fazenda do Morro Queimado. Segundo Jorge Miguel Mayer, a ideia de criação da
colônia suíça supria a necessidade de mão-de-obra qualificada, de povoamento e a formação
do Brasil nos moldes europeus. Após as negociações, iniciou-se o período de recrutamento
9
das famílias que viriam para o Brasil. Os navios trazendo os imigrantes chegaram ao Brasil
entre novembro de 1819 e fevereiro de 1820. Desde a saída da Suíça até a chegada o porto do
Rio de Janeiro muitos imigrantes morreram.
Desembarcaram 1.631 suíços, no Rio de Janeiro, que a partir de então iniciariam a
subida da serra até a Fazenda do Morro Queimado. O estabelecimento da colônia favoreceu a
criação de uma nova vila, emancipada de Cantagalo, a Vila de Nova Friburgo. Ao chegarem,
os colonos suíços se depararam com várias condições adversas da qual não imaginavam. Os
terrenos doados aos colonos suíços em sua grande maioria eram terras incultiváveis. Nesse
momento o café estava florescendo em Cantagalo, transformando esta freguesia em uma
grande produtora de café. Rapidamente as matas foram dando lugar às grandes plantações.
Com o florescimento do café, muitos colonos migraram para a região e ao chegarem a
Cantagalo, muitos suíços iriam se envolver ativamente com o cultivo do café. O modo de vida
rural foi assimilado por eles.
Nesse momento, com a chegada desses imigrantes a Cantagalo, iniciará o processo de
adaptação à um mundo diferente, assim com as influências na cultura local. Os suíços
rapidamente se adaptaram à cultura do café e passaram a fazer parte da elite cafeeira
cantagalense. Além da produção os suíços estiveram ativamente envolvidos com o transporte
do produto à Porto das Caixas. A presença suíça no local traz novas perspectivas sobre a
história regional. A imigração tomou novas configurações ao se deparar com o sistema
cafeeiro escravista, o que foi assimilado grandemente por eles.
A imigração suíça em Cantagalo aponta para o terceiro elemento que destacamos, a
presença a cultura europeia na região. Consequentemente a sociedade cantagalense foi
construída a partir da junção de diversos povos e culturas diferentes e essa junção é refletida
até hoje. Esses elementos são essenciais para a construção da identidade e valorização das
origens dessa região e cabe a nós historiadores compartilhar esse conhecimento com a
sociedade, pois além da região de Cantagalo, que no período de sua formação a região
compreendia os atuais municípios de: Cantagalo, Cordeiro, São Sebastião do Alto, Itaocara,
Carmo, Sumidouro, Nova Friburgo, Duas Barras, Bom Jardim, Trajano de Moraes, Santa
10
Maria Madalena e Teresópolis, os reflexos das conexões socias entre imigrantes, escravos,
índios e portugueses, estão expressos hoje em dia.
4. O papel da educação no compartilhamento da história regional
Após termos discorrido sobre a história regional, e sua importância na construção da
identidade social, chegamos a uma questão importante, como a divulgação desse
conhecimento acontecerá? Já ressaltamos o papel do historiador como mediador desse
conhecimento, mas como fazê-lo chegar à sociedade em geral?
As mídias constituem-se em ferramentas eficazes nessa divulgação. Museus, arquivos,
televisão, cinema, centros de memória, redes sociais e etc., entram em cena no
compartilhamento da história regional. “[...] a divulgação científica e o entretenimento pode
resultar em interessantes modalidades de produção em história que, se realizadas com
qualidade, têm um importante papel educativo.”19 Porém a educação a educação torna-se uma
grande aliada na divulgação do conhecimento histórico.
A Lei de Diretrizes e Bases educacional propõe que o ensino da história dos diversos
povos formadores da cultura brasileira seja incluído aos currículos de forma transversal, ou
seja combinando com os conteúdos a serem ministrados. De acordo com a Lei de Diretrizes e
Bases nº 9394/96:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem
ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada
estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e
locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
europeia.20
19 FONSECA, Thais Nívia de Lima. Ensino de história, mídia e história pública. In: MAUAD, Ana Maria;
ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (Orgs.). História pública no Brasil: sentidos e
itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, pp. 193. 20 BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Casa Civil, Brasília, 20 de dezembro de 1996. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acessado em 25 de junho de 2019.
11
Por que não ensinar a história dos índios de Cantagalo quando os conteúdos das
sociedades ameríndias estiverem em pauta? Ou por que não incluir o ensino da história dos
imigrantes suíços? A história alcançará sentido aos olhos dos alunos e esses passarão a se
inserir como atores no processo histórico. Portanto a inserção da história regional nos
currículos escolares proporcionará uma leitura do mundo onde os alunos estão inseridos de
forma mais crítica e reflexiva.
“Ler o mundo dessa forma significa criar as bases de uma vida emancipada
pelo conhecimento crítico e democrático. Conhecimento que não aceita uma única grande narrativa explicativa acerca do passado, sem que isso signifique
a impossibilidade de assumir uma dentre as tantas possíveis como a mais
verossímil ou a mais justa.”
5. Concluindo
A história regional tem muito a se desenvolver ainda. O que buscamos aqui é iniciar
uma discussão em torno da construção de uma narrativa que se volte para a história de
personagens ocultos na história regional, mas que são de suma importância para a mesma.
O estudo da história regional proporciona um olhar mais detalhado à História geral. O
historiador Giovanni Levi afirma que “a História é a ciência das perguntas gerais, mas das
respostas locais. Não podemos imaginar uma generalização em História que seja válida.”21 E
a publicização dessas respostas é essencial para que a sociedade possa construir sua
identidade e refletir sobre a formação da sociedade brasileira.
A história dos imigrantes em Cantagalo ainda tem muito a nos revelar. Esse povo teve
participação relevante na construção da sociedade regional, pois até hoje encontramos os
vestígios dessa herança, tanto nos descendentes dessas famílias, tanto na vida cotidiana e é
essencial trazer essa história à tona e compreender as aspirações, frustrações, adaptações e
reinvenções dessas pessoas em solo brasileiro.
Nessa questão a educação entra como uma parceira na divulgação dessa história
fazendo com que os alunos possam inserirem-se no processo histórico e construam suas
histórias dando voz a esses personagens históricos por vezes abandonados: o índio, o escravo,
o imigrante, a mulher, as crianças, os garimpeiros e etc.
21 LEVI, Giovanni. O trabalho do historiador... pp. 1.
12
Na construção da história regional é importante perceber as conexões particulares.
José Mattoso ressalta que a construção da história não se baseia apenas na observação dos
grandes fatos extraordinários, mas também dos simples, aqueles referentes à vida cotidiana,
pois dessa maneira que o historiador poderá perceber o que é simples e o que é acidental.
Afinal, o historiador está atento as relações humanas, pois nas palavras de Marc Bloch, esse é
como o ogro da lenda, onde fareja carne humana sabe que ali está sua presa.22
6. Referências Bibliográficas
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de história oral. In: MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO,
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2016. pp. 47-56.
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10 (1), pp. 95-129, 2005.
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BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Casa Civil, Brasília, 20 de dezembro de 1996. Disponível em
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Ana Maria; ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; SANTHIAGO, Ricardo (Orgs.). História pública
no Brasil: sentidos e itinerários. São Paulo: Letra e Voz, 2016, pp. 185-194.
LAMEGO FILHO, Alberto Ribeiro. O homem e a serra. 2.ed. Rio de Janeiro: Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2007.
LE GOFF, Jacques. “História e Memória”. Campinas: Editora UNICAMP, 1996.
LEVI, Giovanni. O trabalho do historiador: pesquisar, resumir, comunicar. Revista Tempo.
vol. 20, pp. 1-20, 2014.
22 BLOCH, Marc. Apologia da história... pp. 54.
13
MATTOS, Hebe; ABREU, Matha; GURAN, Milton. Por uma história pública dos africanos
escravizados no Brasil. Est. Hist.,Rio de Janeiro, vol. 21, nº 54, pp.255-273, 2014.
MATTOSO, José. História regional e local. In: _____. A escrita da história – Teoria e
métodos. Lisboa: Editora Estampa, 1988, pp. 169-180.
______. Novos rumos da historiografia. In: _____. A escrita da história – Teoria e métodos.
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brasileiras. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-regional/. Acessado em:
01 de julho de 2019.
PROST, Antoine. Como a história faz o historiador. Anos 90, Porto Alegre, n.14, 2000, pp. 7-
22.
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WANDERLEY, Sonia. Didática da história escolar. Um debate sobre o caráter público da
história ensinada. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; MENESES, Sônia (Orgs.). História
Pública em debate: patrimônio, educação e mediações do passado. São Paulo: Letra e Voz,
2018, pp.95-108.