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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.04017
UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DA PRESENÇA DO MITO NA
REPÚBLICA DE PLATÃO
WIEZEL, Augusto Henrique Gaia (UEM-GTSEAM)
CAPORALINI, José Beluci (DFL/UEM-GTSEAM)
Introdução
Platão, filósofo ateniense, tratou dos mais variados assuntos durante o percurso de
sua vida. Em sua obra a República, composta entre 380 a 370 a.C., encontram-se vários
tópicos de vital importância em sua filosofia. Estes temas, muitas vezes, são abordados
através do mito, um dos aspectos peculiares do filosofar platônico. Os mitos filosóficos de
a República se dividem e distinguem por vários aspectos: alguns estão ligados a questões
políticas, ou problemas da alma, ou pedagógicos, ou problemas metafísicos. A seguir
examinam-se brevemente estes mitos procurando-se verificar qual o vínculo com a sua
filosofia em a República.
Mitos políticos
A lenda de Giges (República, II, 359d-360b)
O mito de Giges narra a história de um lídio, ancestral do Giges, que estava a
serviço do soberano da Lídia como pastor de ovelhas. Houve uma tempestade torrencial, e
um terremoto que fendeu o solo e criou um abismo. Giges, ao contemplar o abismo sentiu-
se perplexo, mas adentrou. Em seu interior ele se deparou com muitas maravilhas,
inclusive avistou um cavalo de bronze oco e com aberturas semelhantes a janelas; ao
verificá-lo encontrou um cadáver nu e com proporções superiores às de um homem comum
e em um dedo de uma das mãos havia um anel de ouro do qual se apoderou, (Rep, II, 359d-
360ª).
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Na reunião mensal de pastores onde eram feitos os relatórios mensais ao rei a
respeito do estado dos rebanhos que lhe tinham sido entregues, o lídio estava em posse do
anel. Ao girar sem querer o engaste tornou-se invisível para as pessoas ali presentes. Todos
continuaram a falar como se ele não mais estivesse ali; espantado ele reverteu o processo e
tornou-se visível novamente, e não tardou para que ele testasse o processo inúmeras vezes
e concebesse em sua mente que aquilo era realidade. Em seguida conseguiu com os
pastores que ele fosse um destes que levariam os relatórios ao rei. Chegando ao palácio
real seduziu a rainha e com a ajuda desta atacou e matou o rei, lhe tomando todas as
posses, inclusive o reino, (Rep., II, 360ª -360b).
Uma das possíveis leituras deste mito em a República talvez seja a alerta platônica,
posta na boca de Glauco, a respeito da justiça, a saber: as pessoas estimam a virtude não
como um bem, mas porque são demasiado fracas para cometer a injustiça com impunidade.
Aquele, todavia, que possui o poder de cometê-la e é um homem autêntico, não faria
acordo algum com ninguém para não fazer injustiça. Para ele isto seria loucura, (Rep, II,
359b).
Apesar disto, Glauco, irmão de Platão e interlocutor de Sócrates, aponta para a
dificuldade de defender a justiça como melhor que a injustiça. Daqui Sócrates leva o
argumento pela justiça, indo da noção da essência da justiça do campo ético e moral, para o
campo legal. Bini, tradutor de a República e que a aqui se segue, afirma que Glauco tem o
papel de expor a ideia sofística de justiça (República, tradução de Bini, p. 89, nota 66.)
Pode-se notar que a origem da justiça passa do natural para o convencional e dessa forma a
lei passa a ser justa e não a natureza. Em consequência disso, os sofistas colocam a justiça
como algo capaz de ser ensinado.
O mito vem para mostrar que a posição sofista está “plenamente” correta. Quando o
lídio usufrui do anel para seu proveito próprio ele demonstra, que a natureza humana
utiliza o poder, quando lhe é possível, para fazer como bem desejar, a menos que não
exista punição. A punição é justamente aquilo que separa a potencialidade, da ação efetiva.
Quando esta não é mais existente e existe a possibilidade de realizar qualquer uma dessas
ações injustas, sem um castigo iminente, mesmo o mais justo dos homens o fazem, porque
a justiça não é natural, (Rep, II, 360c); cf. (Rep, II, 360b). Assim sendo, Platão a apresenta
como virtude, como escolha do homem virtuoso, não como algo natural que acontece e
com o qual o cidadão nasce.
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Uma série de consequências morais, legais, etc. podem ser retiradas daqui; isto,
contudo, não será explorado.
A origem do Estado (Rep, II, 369b-374b)
No surgimento, na origem do estado, Platão concebe que o mesmo surge a partir da
necessidade, não da convenção, como afirmavam os sofistas. Cada indivíduo apresenta
uma necessidade individual e a necessidade leva os homens a se unirem uns aos outros,
isto porque nenhum homem é auto-suficiente. Não é, não obstante, uma necessidade
natural no sentido aristotélico.
E porque as pessoas precisam de muitas coisas e porque uma pessoa recorre a uma segunda devido a uma necessidade e uma terceira devido a uma outra necessidade, muitas pessoas se reúnem num único lugar para viver juntas como parceiros e colaboradores, (Rep, II, 369b).
Após o nascimento do Estado Platão aponta um certo número de necessidades dos
habitantes as quais devem ser providas. Tem-se assim necessidade de: 1° o alimento
(agricultor); 2° o abrigo (construtor); 3° as roupas (tecelão). No diálogo, Sócrates apresenta
a hierarquia de necessidades, pressupondo o alimento como sendo o mais fundamental; a
partir do princípio de que é ele que mantém a vida dos cidadãos no Estado; logo a seguir
vem aquilo que os guarda, e depois o que os reveste, (Rep, II, 369d).
Em seguida, o filósofo se preocupa com a forma de como o Estado será capaz de
prover todas essas coisas. Os cidadãos são divididos de acordo com os trabalhos
necessários, nos quais, eles têm o dever de manter o Estado. Através do trabalho um
agricultor fornecerá a todos (Rep, III, 369e), mas não é suficiente para manter a cidade, é
preciso de alguém que forneça sapatos (sapateiro) e cuidados médicos (médico).
Concluindo, Sócrates define que essencialmente a cidade precisa de no mínimo cinco
profissões para poder existir e se sustentar.
Sócrates afirma que os homens nascem diferentes uns dos outros. Desse modo,
cada homem desempenha melhor seu trabalho quando ele se dedica apenas a uma profissão
e não a várias e essa profissão deve corresponder à própria natureza daquele que a realiza.
O homem exercitando a profissão conforme sua natureza, ou seja, inclinação, terá uma
melhor qualidade e desempenho. (Note-se que “natureza”, aqui, é entendida em um sentido
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lato de inclinação, pois no diálogo Platão mostra que a mesma pode ser modificada pelo
estudo. Portanto, não há castas na concepção platônica do Estado.) Sócrates conclui que:
O resultado, portanto, é que artigos em maior quantidade e de melhor qualidade são produzidos mais facilmente se cada indivíduo produzir algo para o que esteja naturalmente apto, produzi-lo no momento certo [e oportuno] e se achar liberado de produzir qualquer um dos outros, (Rep. III, 370c).
No decorrer do diálogo ficará evidente essa diferenciação natural dos homens
através da sua constituição física. [...] nos Estados bem organizados essas pessoas serão
geralmente aquelas de corpos mais frágeis, capazes de desempenhar qualquer outro
trabalho (Rep, II, 371c). Esta é, por exemplo, a constituição do comerciante e justamente é
um comerciante por causa desta constituição física. Sócrates afirma que a sua constituição
não o permite realizar outro trabalho exceto o que ela comporta. Porém, esta interpretação
não pode ser forçada, uma vez que a República apresenta a inteligência e o esforço, através
da educação, como sendo aquilo que verdadeiramente distingue as pessoas, e não a sua
“natureza” ou sexo. Natureza, é bom que se frise uma vez mais, quer dizer dom, vocação,
inclinação, faculdade, ou algo parecido, neste contexto; aqui e no que se segue.
A produção de todas as coisas exige artífices os mais diversos que constituirão a
cidade; eles produzirão segundo a sua habilidade; produzirão para si e para os demais
segundo a sua arte. Na cidade haverá necessidade, entre outros de agricultores, artífices,
carpinteiros, ferreiros e muitos outros profissionais que realizam suas ações como
complementares dos trabalhos primários e necessários à cidade.
Há a necessidade do comércio entre Estados e para suprir tal necessidade há que se
produzir para o intercâmbio, vendendo-se o que sobre e comprando o que falte. Daí, pois, a
necessidade de se aumentar a produção, com o aumento dos trabalhadores com as
habilidades respectivas.
A moeda surge como uma solução para os problemas da comercialização dos
produtos dentro da cidade.
Platão não se esquece nem mesmo do problema da geração de filhos. Com efeito,
os filhos deverão ser gerados de acordo com os recursos disponíveis de cada um; esta
medida está justificada por ele porque caso contrário aconteceria o surgimento de guerras
ou pobreza na cidade. O aumento populacional aparece inconspicuamente, uma vez que
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com ele, haverá também outros tipos de necessidades no Estado, nem todas positivas, (Rep,
II, 373d-e). O amor ao detalhe em Platão aparece até mesmo na questão da alimentação
quando ele a aborda; além disso, o filósofo deixa claro que não se há de haver um Estado
nem muito luxuoso e nem tão simples.
Platão utiliza essa forma mítica para ilustrar a gênese do Estado e de seus
componentes. A gênese do Estado expresso em a República através desse mito possui
semelhanças, por exemplo, com a gênese dos deuses e do mundo segundo Hesíodo em a
Teogonia (115-155). O filósofo percebe a dificuldade de explicar tudo logicamente,
racionalmente e então, como neste e em outros casos, vale-se de uma linguagem que lhe
possibilite expressar muitas verdades que aconteceram além da história e nada melhor que
o mito para fazê-lo.
A desigualdade dos homens; o mito dos metais (Rep, III, 414d-415d)
A lenda dos metais é de origem fenícia e Platão a concebe em sua República, pela
voz de Sócrates, para unir os cidadãos em um bem comum. O que justifica essa decisão do
filósofo de empregar a lenda em sua filosofia é o fato dela dividir os homens pela sua
excelência e é necessariamente isto o que ele quer comprovar em sua tese, de que os
homens são diferentes naturalmente; a natureza, nota-se uma vez mais, para Platão não é
estática e imutável, mas sim mutável pela educação. A origem desta lenda se encontra em
Hesíodo. O poeta narra a lenda das raças de metal (Os trabalhos e os dias, v. 105-205) em
sua obra Os trabalho e os dias, para apresentar a origem do mundo humano e como os
homens estavam divididos de acordo com suas respectivas épocas.
Platão adapta esse mito de origem hesiódica para servir de fundamento e justificar
sua teoria da divisão entre os homens pela excelência. No diálogo, Sócrates narra o mito
contando aos homens como eles foram criados dentro da terra, mostrando que são frutos do
mesmo molde, (Rep, III, 414d). Os homens, assim, ganham uma noção de união e a partir
disso um estímulo para se unirem efetivamente, porque se alguém atacasse a terra em que
vivessem, deveriam se reunir em seu nome e defendê-la como sua mãe e nutriz e
considerar os cidadãos como seus irmãos gerados pela mesma terra, (Rep, III, 414e).
Nesse trecho, estão bem apresentados os argumentos que motivam os homens a se
unirem para uma finalidade em comum, se organizarem em comunidade. Todos vós no
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Estado são irmãos, (Rep, III, 415a-b). Defender seu espaço de terra na forma de
comunidade porque todos são filhos e frutos da terra, logo esse seria o motivo suficiente
para dar origem à cidade. Platão quer expressar assim por esse mito como e porque a
cidade se originou e não apenas para falar da cidade, como também para explicar qual o
motivo fundamental que os divide e que se encontra na constituição do homem.
O filósofo concebe filosoficamente a divisão de excelência humana e tal diferença
entre os homens se reflete no cargo que assumem na cidade, (República, III, 412c). O mito
mostra que
o deus que vos moldou misturou um pouco de ouro naqueles que estão aptos a governar, razão pela qual são mais preciosos; adicionou prata aos auxiliares e ferro e bronze aos agricultores e outros trabalhadores, (Rep, III, 415ª -b).
A natureza do homem está vinculada, no mito, a metais preciosos encontrados na
natureza sob a terra. Esse mito platônico dos metais é, como já se afirmou acima, uma
adaptação do mito hesiódico, mas com certas diferenças. Aqui no mito do diálogo os vários
metais estão presentes nos homens da mesma época e os descendentes desses homens
podem não ter a presença do mesmo metal que seus pais possuem. Diferentemente Hesíodo
reparte as épocas através dos metais, tendo sucessivamente: a era de ouro; a era de prata; a
era de bronze e a era de ferro. Portanto não há na obra do aedo uma miscigenação de
metais.
Pode-se perceber a diferença substancial entre os dois mitos: ambos são mitos que
dividem os homens de forma a caracterizá-los por suas qualidades. Entretanto em Platão
eles pertencem à mesma época e em Hesíodo a épocas distintas. Platão quer mostrar com o
mito que existem diferentes homens para diferentes cargos no Estado e não apenas para
isso, mas justificar uma maneira de livrar os melhores homens (os de ouro e também os de
prata) do motivo de intrigas, disputas, ganância e riscos característicos ao Estado.
Nós diremos a eles que suas almas contêm sempre ouro e prata de qualidade divina, a título de uma dádiva dos deuses, de modo que não tem qualquer necessidade adicional de ouro humano. Na verdade, lhes diremos que é ímpio para eles macular essa posse divina através de qualquer mistura de ouro mortal, porque muitas ações ímpias tem sido perpetradas envolvendo a moeda corrente das pessoas ordinárias, ao passo que a riqueza que neles está alojada é pura. Por conseguinte, é ilícito que eles, somente eles entre os membros da população do Estado,
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toquem ou manuseiem ouro ou prata. Não devem estar sob o mesmo teto com eles, exibi-los com ornamento ou beber em taças de ouro ou prata. Eis a forma de preservar a si mesmos e a seu Estado, (Rep, III, 416e-417b).
Claro que se trata de uma alegoria, ou seja, que os elementos no mito aparecem
com significado de algo além deles mesmos. Platão sabe que estes tipos de mitos não são
literalmente verdadeiros; é por isso que ele se refere a eles como “mentiras nobres” ou,
melhor ainda, “nobres ficções”, pois em sua mente eles se justificam por servirem um
objetivo moralmente válido em sua cidade ideal, (Rep. III 414). Há que se observar,
incidentalmente, o uso que Platão faz do mito tradicional, modificando-o e adaptando-o
para as suas finalidades filosóficas.
Justiça no indivíduo - justiça na alma (Rep, IV, 434e-441c)
Esse mito de Platão revela detalhes sobre a alma humana e sobre o Estado. O
filósofo compara as virtudes da alma humana semelhantemente ao Estado que é regido por
essas almas virtuosas. Platão retrata o surgimento da justiça, ao abordar alegoricamente o
Estado e a alma com as suas virtudes típicas.
Se fizermos isso e os comparamos lado a lado, poderíamos fazer a justiça surgir como uma chama como se estivéssemos friccionando gravetos para obter fogo. E quando [finalmente] ela vir à luz, poderemos aprendê-la seguramente, (Rep, IV, 434e).
Por causa desse fator Sócrates afirma que o homem justo não se difere em nada do
Estado justo. O que ele quer mostrar é que a forma da justiça é única e se aplica tanto na
alma quanto na criação que esta realiza. O Estado torna-se justo quando cada uma das suas
três classes naturais no seu interior cumpre a sua função ou atividade que lhe é própria,
sendo estas: a atividade da moderação; a atividade da coragem; a atividade da sabedoria.
Estas atividades são as mesmas encontradas nas almas virtuosas, em outras palavras, as
virtudes das almas se manifestam no Estado, cada uma em sua devida área. A saber: a
virtude da sabedoria corresponde ao governante filósofo, que possui o caráter do ouro e
utiliza a razão; a coragem corresponde aos guardiães e a sua alma está imbuída de vontade
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e tem o caráter da prata e utiliza a coragem; já a virtude da temperança vincula-se aos
trabalhadores e a sua alma tem o caráter mais tosco do bronze e está eivada de desejos.
Essas classes não são castas imutáveis, pois o cidadão pode sair de uma para outra
dependendo de sua capacidade e esforço nos estudos, contudo, para isto tem que estar apto.
A ficção nobre apenas ilustra, porém o filósofo deixa claro em a República que homens e
mulheres, podem se destacar se o quiserem, dedicando-se com afinco aos estudos. É aí que
cada um destes “metais” se distingue; é distinção pessoal conquistada, não de caráter
ontológico imutável.
Observe-se no exemplo abaixo a necessidade que Platão da em se estar apto, para a
passagem em outra classe; ou seja, é possível a passagem para classes diversas, mas a
habilidade tem que ter sido desenvolvida antes.
Mas suponho que quando alguém, por natureza um artífice ou algum outro tipo de ganhador de dinheiro – impulsionado pela riqueza, pela posse de uma maioria de votos, por sua própria força física ou alguma outra vantagem similar –, tenta ingressar na classe dos soldados, ou um dos soldados tenta ingressar naquela dos juízes e guardiões, sem estar apto a isso, e estes permutam seus instrumentos e honras, ou quando a mesma pessoa tenta realizar todas essas funções simultaneamente, penso que concordarás que essas mútuas mudanças e esse tipo de recíprocas intromissões levarão o Estado à ruína, (Rep, IV, 434a).
Igualdade das mulheres (Rep, V, 451c-457c)
Platão investiga nesta passagem a respeito da origem do homem e da mulher e se
por natureza eles apresentam alguma diferença que os leva a ser divididos, tanto nas
atividades da casa (oikos), quanto nas atividades da cidade (polis). Desta forma, ele se
predispõe a questionar o papel considerado da mulher e demonstrar que as mulheres são
capazes de realizar os mesmos trabalhos e funções que os homens dentro da comunidade,
excluídos aí, claro, os pertinentes aos do parto.
Platão difere o homem e a mulher apenas nas funções relacionadas à sexualidade: a
mulher tem o dever de acordo com seu sexo de gestar e parir a crianças; o homem tem de
acordo com sua sexualidade o dever de gerar a criança (Rep, V, 454d). Através de
Sócrates, Platão derruba os antigos costumes de a mulher permanecer em casa cuidando da
mesma e dos filhos, enquanto o homem trabalha na cidade:
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...achas que as fêmeas de nossos cães de guarda deveriam guardar o que os machos guardam, caçar com eles e fazer tudo o mais em comum com eles? Ou deveríamos manter as fêmeas em casa, como incapazes de fazê-lo uma vez que elas têm de participar e criar os filhotes, enquanto os machos trabalham e assumem todo o cuidado do rebanho?
Segundo o filósofo, tudo deveria ser em comum, exceto pelo fato de que as fêmeas são mais fracas e os machos, mais fortes, (Rep, V, 451e).
O que há presente aqui é um “comunismo” de bens, de filhos e de tudo mais. Não
há bens que pertençam a alguém e não há pessoas que pertençam a alguém, tudo é
pertencente ao Estado apenas. O ofício das mulheres na cidade está em igual acordo com o
dos homens, logicamente a sua educação seria de igual maneira da dos homens: música e
ginástica, etc. Tendo uma mesma educação, então nos ginásios as mulheres participam
nuas com os homens dos mesmos exercícios de lutadores, e inclusive na função da guerra,
compartilhando das funções de montar cavalos e portar armas, (Rep, V, 452b).
Pode-se ver, entre outras coisas, que para Platão as mulheres podem ter as mesmas
aptidões que os homens. O sexo não é causa de diferença com o homem, exceto em relação
à procriação. Tudo o mais ela pode, em princípio, ser como o homem, até rainha da
Cidade-Estado. Platão, em a República, reconhece que mulheres têm imensos potenciais e
que se deve dar-lhes o devido crédito. Há de se lamentar, claro, que esta teoria não tenha
continuado, nem nos escritos de Platão, Leis, 781ª, nem nos de seu discípulo Aristóteles.
O sol, (Rep, VI, 507a-509b)
Neste mito Platão procura expor o vínculo entre as Ideias, como se verá melhor na
alegoria mítica da caverna, Cf. 514ª -519b, adiante, onde o sol exterior ilumina de algum
modo a escuridão da caverna. Nesta alegoria pode-se dizer que o sol representa a Ideia de
Bem. Assim como o Bem gera as Ideias o sol é a causa de toda vida. A Beleza e a Verdade
provêm da Ideia do Bem, assim como a Luz provém do sol. Isto porque somente se pode
ver algo claramente quando iluminado pelo sol. Esta semelhança entre as Ideias e o Sol
pode ainda ser vista uma vez que o Bem possibilita a Beleza e a Verdade serem
apreendidas pela mente; tal como o Sol possibilita os objetos serem vistos pela visão.
Assim sendo, na concepção platônica sobre a Ideia do Bem, o sol é assemelhado ao Bem
no que tange à possibilidade do entendimento.
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O que o próprio bem é no domínio inteligível, em relação ao entendimento e aos objetos inteligíveis, o sol é no domínio visível em relação à visão e às coisas visíveis (Rep, VI, 508b-c).
Da linha dividida (Rep, VI, 509d-511e)
Platão é um filósofo cheio de curiosidade e que procura sempre e cada vez mais
descobrir, porém ele adota critérios. Não se podem confundir as coisas. É o que ele
apresenta a seguir com o símile da linha dividida em segmentos. De fato, para Platão
aquilo que deve caracterizar o verdadeiro filósofo é o fato de que ele conhece a verdade;
conhecer significa não se confundir com opiniões; significa saber. Ele chama de amantes
da opinião aqueles que não são capazes de distinguir o que é do que parece; aqueles,
contudo que são capazes de fazer tal distinção são chamados por ele de amantes da
sabedoria, ou seja, filósofos, (Rep. 479e-480ª ). Ele ressalta a clara distinção entre os que
sabem, os filósofos, e os demais, os que parecem, porém de fato não sabem, aqueles que
não são filósofos. A linha dividida, pois apresenta a distinção clara entre o mundo visível,
mundo de imagens, de sombras e de reflexos, ou seja, o mundo dos objetos sensíveis, com
os respectivos modos de conhecimento dos mesmos, a imaginação e a crença. Por outra
parte, o segundo segmento da linha, representa o mundo inteligível, o mundo da
matemática e o da filosofia; esta ciência do ser, da Ideia, com os conhecimentos
respectivos, o discursivo e a intelecção. Estes dois processos constituem o mundo da
verdade, diferentemente dos outros dois. Uma coisa final a ser dita é que Platão parte
metodologicamente do sensível para alcançar o princípio não mais hipotético, a Ideia,
como pode ser visto neste símile.
Alegoria mítica da caverna (Rep, VII, 508a ss)
A Alegoria Mítica da Caverna é apresentada e interpretada por Platão em a
República, no começo do Livro VII. Como já se menciou acima ela está vinculada à
metáfora do sol e à linha dividida em segmentos. Platão, pela boca de Sócrates, imagina
prisioneiros encadeados desde pequenos em uma caverna, atrás dos quais há um muro.
Atrás dos prisioneiros há um grande fogo e entre os prisioneiros e o fogo um caminho, pelo
qual passam transeuntes carregando coisas diversas. A sombra destas coisas é projetada na
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parede e quando os transeuntes falam os prisioneiros crêem que são as sombras que falam;
estas recebem nomes dos prisioneiros de acordo com a sua aparência.
Supondo-se que um prisioneiro liberte-se ele se depará com a luz do sol que o
cegará; a sua visão voltará só gradualmente. Aos poucos ele começará a ver as coisas até,
por último, o sol. Platão, então, imagina que este prisioneiro que se libertara volte à
caverna para alertar os antigos colegas que tudo aquilo não era verdadeiro; apenas
aparência, distante da realidade. Contudo, se eles pudessem agarrá-lo, matá-lo-iam, uma
vez que para eles a verdadeira realidade era aquela presente na caverna.
As coisas deste mundo não possuem ser verdadeiro, apenas um tornar-se
verdadeiro, daí, pois, que o conhecimento das mesmas seja apenas aproximado, não real.
As sombras dentro da caverna estão relacionadas às coisas; aquelas fora estão vinculadas
às Ideias. Uma possível interpretação teria, talvez, implicações políticas com a ênfase
platônica na volta do antigo prisioneiro para ajudar os antigos colegas; ou seja, o
conhecimento na polis traz consequências éticas para com os demais cidadãos. Outra coisa
que se poderia dizer é que o conhecimento máximo apontado por Platão na alegoria é a
Ideia de Bem; mas o conhecimento desta exige um grande esforço, ou seja, o processo
cognitivo, o passo pedagógico, a passagem da ignorância para o conhecimento do Bem não
é algo fácil. Nunca é muito ressaltar que o significado que se pode mencionar a respeito da
educação é que esta só se efetua para aqueles que se esforçam mais e que acontece só
gradualmente, após grande esforço pessoal do educando. Em ambos os aspectos, o
epistemológico e o pedagógico, o elemento ético está muito presente, pois supõe um querer
e uma escolha daquele que quer conhecer e aprender. Esta alegoria mítica se presta a
inúmeras interpretações; para a finalidade desta pesquisa basta o que se disse acima.
Decadência da Cidade Ideal (Rep, VIII, 545c-IX, 576b)
Este mito de Platão é de caráter político, descrevendo como e porque as várias
formas de Estado se originam uns dos outros. Platão, aqui, tem em mente Os trabalhos e os
dias, 106-200, de Hesíodo, que fala das quatro idades; de fato, cinco idades. Observe-se
que a interpretação que a seguir se faz é baseada no artigo A Guide to Plato’s Republic, e
que se encontra em PDF, no Site,
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http://languages.siuc.edu/classics/Johnson/Reacting/Athens/Guides/RepublicGuide
09.pdf, acesso em 02/02/2011.
Timocracia, Rep, VIII, 543ª-550c. Quer dizer o governo fundamentado na honra. Sócrates
começa a mostrar como a cidade ideal pode efetivamente cair em desordem que é o oposto
da justiça, que é a harmonia entre todas as partes, dos regimes e das almas. O timocrata
surge quando um cidadão falha em defender a sua honra a fim de evitar problemas
maiores. É o começo da decadência social.
A oligarquia, Rep, VIII, 550c-555b. Surge quando o homem aparece e valoriza mais o
dinheiro que a honra, a virtude. Desse modo a cidade dá mais valor às riquezas que à
virtude e, algo que Platão não suporta, há a divisão entre ricos e pobres; Platão “explica” as
diferenças “sociais”; não suporta a divisão. A competência, a capacidade típica de cada
cidadão é deixada de lado pelo dinheiro. Platão pinta o oligarca como se ele fosse
mendigo, ladrão e inútil na e para a cidade. A degeneração toma um rumo muito perigoso.
A democracia, Rep, VIII, 555b-562ª. O surgimento da democracia se dá porque os
cidadãos são empobrecidos pela atitude irresponsável por parte dos oligarcas. Platão,
apesar da reticência em relação ao ganho do dinheiro, não apresenta o pobre do melhor
modo possível. Ele o vê sendo um indivíduo capaz de derrubar o governo e não tendo o
autocontrole. Como se pode deduzir o filósofo tolera a democracia, mas não nutre grandes
amores pela mesma. Porém, se o timocrata valorizava a honra e o oligarca a riqueza, a
democracia valoriza a liberdade. Contudo, o excesso desta torna-se desordem o que o
filósofo não aplaude. Portanto, a decadência continua.
A tirania, Rep, VIII, 562a-569c. O excesso de liberdade causa o aparecimento da tirania.
O povo empobrecido pelos oligarcas que procuravam apenas o seu interesse e riqueza
pessoal parte para uma série de ações contrárias à lei. Juntos podem causar revoltas e depor
o governo. Surge então o demagogo, inicialmente moderado, porém, que aos poucos
recorre à força e à eliminação de seus oponentes; aparece o tirano. A liberdade antes
havida desaparece; a justiça que havia, passa a dar lugar à máxima injustiça. É o máximo
de decadência a que se pode chegar, na concepção platônica.
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O mito de Er, o panfílio, (Rep. X, 614ª -621d)
Este mito apresenta algumas dimensões importantes de caráter moral e em relação à
concepção grega post-mortem. Sócrates já apresentou a sua prova a favor da justiça; a
definiu e a mostrou como valendo a pena; digna de por ela se lutar e viver. E a seguir
apresenta o mito de Er onde se mostra, entre outras coisas, as recompensas que o justo
receberá após essa vida. Há que se notar também, que as muitas histórias míticas narradas
na Grécia antiga apresentam o Hades como um lugar terrível e cheio de fantasmas e sangue
ao qual os maus vão depois da morte, onde sofrerão durante toda a eternidade dores e
torturas pelas faltas cometidas em vida.
A lenda inicia-se quando Sócrates começa a contar a história de um soldado
chamado Er (Rep, X, 614b). Er era filho de Armênio, originário de Panfília, morreu em
uma batalha e dez dias depois de sua morte, quando foram recolher o cadáver, ele ainda
estava intacto e seu corpo foi levado para casa, e os preparativos para o funeral foram
feitos. Entretanto, dois dias depois disto, ele ressuscitou e contou que sua alma deixou o
corpo e caminhou junto a outras almas para um lugar divino (Rep, X, 614b). Nesse mundo
pós-morte havia duas aberturas na terra, lado a lado, e também duas no céu. Entre as
aberturas, havia juízes que davam as sentenças a quem chegava. Aos justos, para que
fossem à direita na entrada do céu e aos injustos, à esquerda na entrada da terra. Ambos
levavam consigo sinais, os justos no peito e os injustos nas costas, relatando todas as suas
ações. Os juízes disseram a ele que seria um mensageiro do além e deveria contar aos
homens tudo o que visse naquele lugar, portanto não seria julgado, (Rep, X, 614c).
A alma dos injustos recebia, para cada falta, dez vezes a sua punição e cada
punição durava cem anos. Em contrapartida, os justos recebiam na mesma proporção a
recompensa merecida.
Se, por exemplo, alguns deles haviam causado muitas mortes mediante a traição de Estados ou exércitos e os reduzira à escravidão ou, mediante a participação em outros crimes, tinham de sofrer dez vezes a dor que haviam ocasionado a cada indivíduo (Rep, X, 615b).
A pena ou recompensa aumenta de acordo com os atos realizados em relação aos
deuses, aos pais e suicídios. Existem casos como o do tirano Ardieu (Rep, X, 615c), que foi
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irrecuperavelmente perverso em vida; este e casos similares vão para o Tártaro, para
pagarem para sempre pelas coisas más em vida cometidas, (Rep, X, 615e ss).
Depois de perambular pelo Hades e verificar diferentes almas que fazem as suas
escolhas, Platão, através de Er, apresenta-nos alguns aspectos interessantes, como a
escolha do tipo de vida e nascimento que é sempre do homem, Rep. 617d-619b; 619b-
621b. Com isto ele deixa absolutamente claro que “a responsabilidade é de quem escolhe;
a divindade é sem culpa”, Rep., 617e.
Mas este mito também é interessante, pois além de muito bem elaborado com ele
Platão conclui a República. É provável que na escolha de cada alma e na afirmação de que
a divindade não é responsável por isso, esteja a chave final do significado deste mito.
“E assim, Gláucon, sua história (mythos) não foi perdida, mas preservada, e nos salvaria se nela acreditássemos porque assim faríamos uma boa travessia do Rio do Esquecimento e nossas almas não seriam maculadas. Mas, se formos persuadidos por mim, acreditaremos ser imortal a alma e seremos capazes de suportar todos os extremos do mal e do bem e nos manteremos sempre firmes na senda ascendente, praticando a justiça acompanhada da sabedoria em todas as situações. Dessa forma, seremos amigos tanto de nós próprios quanto dos deuses enquanto estivermos aqui sobre a Terra de, depois – como vencedores dos Jogos que caminham colhendo os seus prêmios – receberemos nossas recompensas. E assim aqui nesta vida e na jornada de mil anos que descrevemos estaremos bem”, Rep. 621c-621d. (Tradução de Bini; ênfase do autor deste trabalho.)
Observe-se por fim, a ênfase platônica na justiça e na sabedoria, coração de todo o
diálogo, particularmente a primeira e que ao final de a República a justiça já foi definida e
que se mostrou que ela é digna e que vale sim a pena viver-se justamente. Então se pode
pensar também que talvez este mito aponte para o fato de que os mitos usados em a
República não tenham meramente um significado ilustrativo, mas sim, filosófico. É,
provavelmente, um modo de o filósofo fazer filosofia que tem que ser levado em
consideração e não apenas em a República. Pode-se concluir que em a República Platão
restaura os mitos a seu devido lugar, pois se pode afirmar que há sim uma relação entre a
dialética, argumento racional e às teorias platônicas do conhecimento, ética, política e
estética.
Seja como for, mito e logos quase sempre foram tidos como significando duas
abordagens diversas e não poucas vezes até oposta da realidade. O mito, por um lado, com
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sua tendência ao irracional e até mesmo à superstição, enquanto que, por outro lado, o
logos, a razão, conduzindo ao conhecimento racional sistematizado. Esta divisão procede
desde a aurora da Filosofia. Os pré-socráticos lutaram contra o uso do mito, ainda que o
tenham usado ocasionalmente. Em Platão, como se pode ver em vários de seus diálogos, e
como se acabou de ver em a República, mito e logos não são apresentados como conceitos
completamente separados um do outro. Não, isso não ocorre. Não ocorre porque Platão não
poucas vezes usa os mitos para tornar as suas ideias mais claras e para expressar o
inexpressável, como bem ilustra o mito de Er, o Panfílio. Isso ocorre porque o filósofo
insere o mito em sua filosofia de modo que ela possa expressar aquilo que está além da
exprimível pela linguagem. E esta é a tese do mito filosófico, exposta e aceita nesta
Pesquisa por MORGAN, 2000.
REFERÊNCIAS
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