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Lúcio Lourenço Prado (Coord.) Desafios para a Docência em Filosofia: Teoria e Prática

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  • Lcio Loureno Prado (Coord.)

    Desafios para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica

  • Desafios Para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica

    COORDENADOR Lcio Loureno Prado

    AUTORES

    Alcibides Jos Steffenon

    Dominique Andr Hatoun

    Elaine Mussi Hunzecher Quaglio

    Gilson dos Santos

    Imerson Alves Barbosa

    Marcos Goulart dos Santos

    Odimar Domingos Gonalves

    Robrio Honorato dos Santos

    Rogrio do Amaral

  • BY UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAPr-Reitoria de Ps-Graduao UNESPRua Quirino de Andrade, 215CEP 01049-010 So Paulo SPTel.: (11) 5627-0561www.unesp.br

    Preparao e Reviso: Gabriela Alias RiosProjeto Grfico e Diagramao: Marco Aurlio Casson

    Todos os direitos reservados. No permitida a reproduo sem autorizao desta obra de acordo com a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

    Desafios para a docncia em filosofia : teoria e prtica / CoordenadorD441 Lucio Loureno Prado ; Autores Alcibides Jos Steffenon, Dominique Andr

    Hatoun, Elaine Mussi Hunzecher Quaglio, Gilson dos Santos, Imerson Alves Barbosa, Marcos Goulart dos Santos, Odimar Domingos Gonalves, Robrio Honorato dos Santos, Rogrio do Amaral. So Paulo : Universidade Estadual Paulista : Ncleo de Educao a Distncia, [2013]

    Disponvel em www.acervodigital.unesp.br Resumo: Trata-se dos melhores trabalhos de Concluso de Curso, pro- venientes da segunda edio do Programa Rede So Paulo de Formao Docente (Redefor).

    ISBN:

    1. Filosofia Estudo e Ensino. 2. Professores Educao Continuada. I. Prado, Lcio Loureno. II. Steffenon, Alcibides Jos. III. Oliveira, Claude-ni Rodrigues. IV. Hatoun, Dominique Andr. V. Quaglio, Elaine Mussi Hunzecher. VI. Santos, Gilson dos. VII. Barbosa, Imerson Alves. VIII. Santos,Marcos Goulart dos. IX. Gonalves, Odimar Domingos. X. Santos, RobrioHonorato. XI. Amaral, Rogrio do. XII. Universidade Estadual Paulista. N-cleo de Educao a Distncia. CDD 107

    Ficha catalogrfica elaborada pela Coordenadoria Geral de Bibliotecas da Unesp

  • GovernadorGeraldo Alckmin

    SECRETARIA DA EDUCAO DO ESTADO DE SO PAULO

    SecretrioHerman Jacobus Cornelis Voorwald

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    ReitorJulio Cezar Durigan

    Vice-ReitoraMarilza Vieira Cunha Rudge

    Chefe de GabineteRoberval Daiton Vieira

    Pr-Reitor de GraduaoLaurence Duarte Colvara

    Pr-Reitor de Ps-GraduaoEduardo Kokubun

    Pr-Reitora de PesquisaMaria Jos Soares Mendes Giannini

    Pr-Reitora de Extenso UniversitriaMaringela Spotti Lopes Fujita

    Pr-Reitor de AdministraoCarlos Antonio Gamero

    Secretria GeralMaria Dalva Silva Pagotto

    NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIA DA UNESP - NEaD

    CoordenadorKlaus Schlnzen Junior

    Coordenao Acadmica - RedeforElisa Tomoe Moriya Schlnzen

  • Sumrio

    Prefcio 6

    A essencialidade da forma para a experincia esttica 8Dominique Andr Hatoun

    Obsolescncia da psicanlise e conceito de indivduo em Hebert Marcuse 20

    Marcos Goulart dos Santos

    Direitos humanos e sua evoluo histrica: a necessidade da superao do egosmo 29

    Imerson Alves Barbosa

    Epistemologia gentica versus eugenia: um estudo sobre a construo do sujeito epistmico 37

    Elaine Mussi Hunzecher Quaglio

    Da vontade particular vontade geral 51Odimar Domingos Gonalves

    O conceito de poder em Michel Foucault 61Rogrio do Amaral

    Filosofia e totalitarismo 68Robrio Honorato dos Santos

    O ideal tico do homem grego: de Homero a Scrates 82Alcibides Jos Steffenon

    A indstria cultural e a fruio esttica 94Gilson dos Santos

  • PREFCIO

    O presente volume contm alguns artigos que foram selecionados entre os trabalhos apresenta-dos como exigncia para a concluso do curso de especializao em Filosofia do Programa Rede So Paulo de Formao Docente (Redefor), voltado para os professores da rede pbica estadual paulista e oferecido pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) em convnio com a Secretaria de Educao do estado de So Paulo. Ao final das duas edies do curso, realizadas entre 2010 e 2013, mais de quatro dezenas de artigos foram produzidos por nossos alunos, constituindo uma significativa produo filosfica e um importante patrimnio intelectual, dos quais os trabalhos mais destacados so agora premiados com esta publicao.

    Concebido e produzido por uma equipe de professores do Departamento de Filosofia da Unesp de Marlia atendendo a demanda apresentada pela pr-reitoria de ps-graduao da Unesp, o curso Redefor teve como principal caracterstica ser um fator de incentivo ao professor de filosofia da rede pblica para que ele se volte de forma mais aguda pesquisa, produo filosfica e reflexo. Partimos da premissa metodolgica elementar de que o professor de filosofia jamais pode deixar de ser um estudante, pois o saber filosfico algo que se constri e se reconstri de forma dinmica por meio do debate, da reflexo e da troca de opinies. O professor de filosofia deve ter sempre in-terlocutores capazes de lev-lo adiante em sua prpria formao que se d de forma continuada e permanente. Nesse sentido, a importncia dos trabalhos de concluso de curso (TCC) apresentados ao final de cada edio do curso inestimvel, uma vez que foi ali, na redao de um artigo filosfico, que seguiu normas compatveis com as principais revistas especializadas do Brasil, e na produo que contou com a orientao de profissionais competentes e experientes, que todo o processo que se iniciara quase um ano antes com as oito disciplinas que constituem a grade curricular do curso teve seu momento de culminao: os professores da rede estadual produziram e produziram de for-ma sistemtica, organizada, com metodologias rigorosas aplicadas e com resultados, embora muito heterogneos, bastante positivos.

    Antes de iniciarem a rotina de trabalho que culminou na produo e redao dos TCCs, os alunos cursaram e foram aprovados nas oito disciplinas que compem a grade curricular do curso: Problemas Metafsicos, Teoria do Conhecimento, Filosofia Poltica, tica, Esttica, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Mente e Lgica e Filosofia da Cincia. Ao final, os alunos puderam escolher entre quatro opes temticas ligadas a cada uma das disciplinas cursadas, perfazendo um total de 32 temas disponveis. Num primeiro momento, os alunos tiveram que escolher seu tema e encaminhar um pequeno sub-projeto a partir do qual todo trabalho se iniciou. Foi com base nos subprojetos que a coordenao do curso pode indicar os orientadores para cada trabalho. Em conjunto com os orientadores, os alunos tiveram trs meses para concluir seu texto, que foi submetido ao final a uma banca composta por um

  • especialista indicado pela Unesp e outro indicado pela Secretaria da Educao. Diferentemente do que costuma ocorrer nas defesas de trabalhos cientficos, o modelo adotado foi o de uma clssica mesa de comunicaes. Os cursistas tiveram 30 minutos para apresentar o trabalhar oralmente banca, que, ao final, fez perguntas e observaes sobre o que foi apresentado, seguido pela atribuio de nota. De posse da nota do orientador previamente atribuda e com peso maior, foi tirada a mdia final do trabalho. Todos os trabalhos que aqui se apresentam obtiveram notas finais superiores a 9,5.

    Vrias reas e ramos da filosofia foram contemplados nos trabalhos do presente volume: temas clssicos da filosofia antiga, como o trabalho Alcibides Jos Steffenon (O ideal tico do home grego: de Homero a Scrates); temas de esttica apresentados por Dominique Andr Hatoun (A essenciali-dade da forma para a experincia esttica) e Gilson dos Santos (Indstria cultural e fruio esttica); temas de filosofia poltica apresentados por Robrio Honorato dos Santos (Filosofia e totalitarismo), Imerson Alves Barbosa (Direitos humanos e sua dimenso histrica), Odimar Domingos Gonalves (Da vontade popular vontade geral) e Rogrio do Amaral (O conceito de poder em Michel Foucault); alm de trabalhos voltados reflexo sobre a psicanlise e epistemologia gentica, como os textos de Marcos Goulart dos Santos (Obsolescncia da psicanlise e o conceito de indivduo em Herbert Marcuse) e Elaine Mussi Hunzecher Quaglio (Epistemologia gentica versus eugenia: um estudo sobre a construo do sujeito epistmico).

    Esperamos que com a publicao deste volume esses trabalhos possam transcender os muros da universidade e os bites dos computadores da plataforma do Redefor para serem lidos e aprovei-tados por outros colegas, pesquisadores, estudantes e estudiosos da filosofia, e que a salutar prti-ca de produzir e publicar textos filosficos e acadmicos se torne cada vez mais difundida entre os professores da rede pblica estadual, pois entendemos que este um processo no suficiente, mas certamente necessrio para a formao continuada e sempre atualizada de nossos docentes. Nesse sentido, celebramos o presente livro torcendo para que, entre outras coisas, ele se constitua como um elemento incentivador e fomentador da pesquisa acadmica entre o professorado paulista.

    Lcio Loureno PradoCoordenador do curso Redefor em Filosofia

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    A ESSENCIALIDADE DA FORMA PARA A EXPERINCIA ESTTICA

    Dominique Andr Hatoun1

    IntroduoA Forma realiza o Belo e estimula a nossa capacidade de apreenso, de interesse, de contem-

    plao (Barros, 2012, p.13), ou seja, possibilita a experincia esttica. Esta formulao da esttica kantiana por Barros imps, imediatamente, a necessidade de elucidar a questo que se segue: uma vez que o Belo perdeu o seu lugar de conceito-guia na Esttica Contempornea e a noo de For-ma sofreu profundas modificaes, questiona-se quais seriam os fundamentos e a possibilidade da Experincia Esttica, hoje, considerando-se a ruptura daquela relao intrnseca da trade Forma Belo Experincia Esttica.

    Dentre os autores que elegemos, Adorno situa-se a quase dois sculos dos demais. Entretanto, no h como evit-lo quando se pretende analisar a contemporaneidade. Nem mesmo as crticas di-rigidas ao seu elitismo e sua obsesso pela msica conseguem obscurecer a lucidez e atualidade que encontramos, por exemplo, em O Fetichismo Na Msica. Selecionamos algumas sentenas a ttulo de ilustrao

    A fora de seduo do encanto e do prazer sobrevive somente onde as foras de renncia so maiores, ou seja: na dissonncia, que nega f fraude da harmonia existente. Os mo-mentos de encanto e de prazer, ao se isolarem, embotam o esprito... como se na arte os valores dos sentidos no fossem portadores dos valores do esprito. (Adorno, 1974, p. 176)

    Para Adorno, encanto e prazer so proporcionados por momentos contraditrios, por tenses que surpreendem e que formam a unidade sinttica da obra. Isolar tais momentos para proporcionar o prazer passivo e fcil numa falsa harmonia significa furtar ao indivduo a sua faculdade de funda-mentar o gosto e o seu direito liberdade de escolha (Adorno, 1974, p. 173). Ora, como compreender esta remisso ao gosto quando o prprio Adorno reconhece estar, este conceito, ultrapassado? A categoria de gosto no descartada por Adorno, mas relegada a um segundo plano (Bastos

    1 Possui especializao em Filosofia para Professores do Ensino Fundamental e Mdio pela Universidade Estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (Unesp). graduada em Engenharia Qumica pela Escola Superior de Qumica Oswaldo Cruz em Filosofia pela Universidade de So Paulo.

  • Desafios para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica 9

    Gonalves Cachopo, 2011, p. 4). O problema, na crtica adorniana, est no fato da imposio do gosto pela Indstria Cultural que obstaculiza a possibilidade do seu desenvolvimento e, consequentemente, a conquista da autonomia.

    No nosso intuito, neste artigo, explorar a Crtica adorniana, mas to somente os fundamentos do potencial crtico da arte e a sua identificao com a Forma. Entretanto, compreender esta articulao requer recuperar o significado dos conceitos na matriz esttica de Kant que, mesmo no pretendendo propor uma Esttica, estabeleceu todas as categorias que, at hoje, atravessam o pensamento esttico. Alm disso, o redirecionamento de Schiller a estas mesmas categorias, o coloca entre Kant e Adorno, e por isso faz-se necessria, igualmente, a sua compreenso. Entretanto, o pensamento esttico de Adorno no pode ser entendido apenas atravs das apropriaes e crticas dirigidas a Kant e Schiller. Adorno posiciona-se a partir de, e pode-se dizer que constituem o fermento do seu pensamento, Kant, Hegel, Marx, Freud, Nietzsche e Benjamim. Como explicitar o significado das categorias estticas deste autor em espao to exguo e que, alm disso, no pretende ser um estudo aprofundado de suas teses e argumentos? Encontrar uma estratgia de abordagem constituiu, para ns, um desafio. Decidimos afinal por apontar na Teoria Esttica as suas categorias-chave, tendo em vista manter o foco na estrita explicitao dos novos significados que adquirem e do vnculo FormaExperincia Esttica. Esperamos que tal procedimento satisfaa o leitor.

    Acompanharemos, inicialmente, a Primeira Introduo Crtica do Juzo (Kant, 1974), pois a surgem todas as categorias em jogo, e as suas articulaes. Vemos a a razo do surgimento do Gosto e do Belo, e o seu papel na crtica kantiana, bem como a sua articulao com a noo de Forma. Na Introduo, Kant a ela apenas se refere sem mais, uma vez que j havia sido explicitada na sua Crti-ca Razo Pura. Por outro lado, em sua Tese de Doutoramento, Forma e Gosto na Crtica do Juzo, Castro Gonalves (2006, p.153) justifica:

    So dois os motivos que suscitam uma investigao acerca da noo de forma na Crtica do Juzo. O primeiro consiste no fato de tal noo, embora central para que se compreenda a prpria possibilidade da experincia esttica segundo Kant, no ser efetivamente definida por ele em nenhum momento, sendo, no lugar disso, ampliada ao longo de todo o texto, o que torna difcil apreend-la...

    Curiosamente, em sua Teoria Esttica Adorno refere-se noo de Forma da seguinte maneira: Incontestavelmente, [...], a consonncia das obras de arte o que se pode chamar a sua forma. espantoso quo pouco a esttica refletiu sobre esta categoria, quo frequentemente esta, enquanto distinta da arte, lhe pareceu aproblemtica.... (Adorno, 1970, p.162). Ser, portanto, a leitura desta obra a fonte de explicitao desta noo.

    Schiller aproxima-se de Adorno na defesa do potencial crtico e libertador da arte, e no ataque s imposies de uma sociedade cada vez mais cientificista. Schiller j temia a expanso unilateral da cincia que acaba por absorver todos os espritos. Era preciso forjar o mundo poltico no mun-do esttico que tem o privilgio de poder mover-se em uma esfera autnoma. Era preciso formar o Homem Esttico. Contudo, no podemos ignorar o vnculo que Kant estabeleceu entre a Esttica e a tica. No artigo A concepo Kantiana da experincia esttica: novidades, tenses e equilbrios, Santos (2010) explicita:

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    O filsofo reconhece que o cultivo do gosto prepara at o processo da moralizao da humanidade, na medida em que leva os homens a superar os prazeres sensveis e os in-teresses meramente privados e a partilhar os seus sentimentos, educando-os no sentido de abandonarem as formas rudes e brbaras de convivncia, prximas ainda da condio animal, para adoptarem progressivamente formas de civilidade que promovem o agrado geral e que os antigos designavam pela expresso humaniora, isto aquelas coisas ou as-suntos que so os mais humanos de todos e por isso so capazes de interessar a todos os homens ou ao maior nmero possvel de homens. O conjunto de competncias que sob esse termo se designa no resulta de regras e preceitos, mas supe o cultivo individual e livre das faculdades humanas estticas, nomeadamente da imaginao e do juzo, e Kant relaciona-o expressamente com o universal sentimento de participao que expresso pela palavra Humanitt e com o poder que os seres humanos tm de comunicarem entre si e universalmente os respectivos sentimentos ntimos, e de se associarem e organizarem em formas de existncia social e poltica, mormente naquela forma qualificada que compatibiliza a liberdade, a igualdade e a coero legal, como a forma da repblica. A cultura e educao estticas constituem uma propedutica para a cultura poltica.

    Ora, para ambos Kant e Schiller o cultivo do gosto, a cultura esttica, situa-se entre a natureza e a liberdade. Entretanto, Na Teoria Esttica, Adorno atribui ao crescente predomnio do conceito de liberdade e dignidade humana inaugurado por Kant e transplantado para a Esttica por Schiller e Hegel, o desaparecimento do Belo natural da Esttica (Adorno, 1970, p.37). O Belo natural que, em Kant, fornece o paradigma do juzo de gosto.

    Se em Kant o gosto est do lado da Natureza, em Schiller estar do lado da Liberdade. Esta nova inscrio do gosto levar consigo a modificao da compreenso do que seja o Juzo do Gosto e a Experincia Esttica. Embora tenhamos nos referido s obras de Schiller Kallias ou Sobre a Beleza, e Sobre a Graa e a Dignidade, ser a dissertao de mestrado A Ideia de beleza Moral em Schiller, de Surdi Junior que nos guiar nesta compreenso.

    Adorno ser radical em suas posies. Para ele, o juzo esttico ser reinscrito

    num processo em que criao artstica, experincia esttica e crtica surgem inseparveis[...] para Adorno, a experincia esttica no deve ser entendida maneira kantiana, enquanto jogo livre de faculdades transcendentais,[...] mas em Adorno estaria em causa uma viso da experincia esttica em que se jogam as condies de possibilidade da experincia e, antes de mais, do pensamento. Que estas condies sejam concebidas como histricas o que inevitvel na filosofia de Adorno no diminui a radicalidade da concepo de experincia esttica que assim se postula. (Bastos G. Cachopo, 2011, p. 94)

    Ao final deste percurso, tentaremos tecer consideraes sobre a possibilidade da Experincia Esttica em consequncia da perda de suas categorias fundamentais de gosto e de belo. Por ltimo, no nos sentiramos satisfeitos se no tentssemos responder sobre a importncia do tema, qual seja, o de ser possvel (ou no) a Experincia Esttica. Desde o incio, enunciamos o propsito formal desta investigao, mas temos de revelar o propsito ltimo e no explicitado at o momento.

    Vemos por toda parte, em nosso solo brasileiro brasileiro porque a autora conhece apenas vagamente o que se passa em outros solos, uma apologia ao cultivo da liberdade artstica. No h o que questionar a. Entretanto, difcil no concordar com Prado Junior (2007), sobre a aniquilao do gesto schilleriano, pois sabemos ainda estar na barbrie e que nela permanecemos com a esperana nica de seu recrudescimento e da impossibilidade da realizao das liberdades.

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    No tarefa fcil debruar-se sobre o trabalho de pensadores complexos, e eles mesmos procura de respostas. Restringimo-nos, aqui, relao FormaExperincia Esttica, pois consider-amos a compreenso desta o fundamento e a propedutica para a abertura posterior s questes que nos inquietam.

    KantDissemos anteriormente que Kant introduz as categorias que, at hoje, atravessam o pensamento

    esttico, embora, ele prprio, no estivesse preocupado em fundar uma esttica ou uma teoria sobre o belo e as artes. Da a necessidade de bem compreend-las para acompanharmos com clareza as crticas que a elas se sucederam e, ento, atingirmos o objetivo a que nos propusemos.

    A anlise dos pressupostos transcendentais do Juzo Esttico ou do Juzo de Gosto, inaugura a primeira parte da Crtica do Juzo. O lugar desta anlise na totalidade da Terceira Crtica deixa entrever que no se trata, simplesmente, de uma modalidade de Juzo ou de um paradigma para a crtica da faculdade de julgar. Entretanto, perguntar-se como surge e qual o papel desta categoria o gosto, e sua crtica ou, a crtica do gosto entendida como julgamento do belo, no interior do sistema kantiano, no encontra uma resposta simples. preciso debruar-se sobre a Primeira Introduo Crtica do Juzo.

    A Crtica do Juzo nasce da necessidade de completar a investigao da Ideia da filosofia en-quanto sistema do conhecimento racional por conceitos. A Crtica da Razo Pura contemplava a investigao da possibilidade deste conhecimento, no fazendo parte, entretanto, daquele sistema. Sua pretenso era a verificao daquela Ideia (Kant, 1974, p.262). O Juzo surgia na Crtica da Razo Pura enquanto parte da faculdade de pensar (seja na razo pura terica, seja na razo pura prtica), mais especificamente, a faculdade de subsumir o particular ao universal. Trata-se, agora, na Crtica do Juzo, de investigar o ato de julgar propriamente dito. Entretanto, preciso, de incio, fazer uma fundamental distino e eleger o juzo reflexionante como alvo de investigao. Distinto do juzo de-terminante, que subsume um particular a um universal dado, o juzo reflexionante a busca do funda-mento da determinao. Este procedimento do juzo deve repousar em um princpio transcendental, a priori, que fundamente o seu prprio exerccio (de busca) e lhe confira legalidade. Aqui, nos adverte Costa Rego (2004, p.231), acerca do juzo reflexionante

    um juzo, e no um ato comparativo preparatrio para a formulao de um juzo em geral... Se, na condio de busca de um universal, o juzo reflexionante j um juzo, mesmo sem encontrar o universal buscado ele expressa a subsuno de algo sob um universal.

    Assim, o princpio que subsume um particular a um universal no dado, ser, dir Kant, a fi-nalidade da natureza. Isso significa que, se na faculdade de conhecer, a natureza se constitui como um conjunto de objetos da experincia possvel segundo os conceitos do entendimento, no caso da indeterminao do conceito (o universal no dado) o juzo reflexionante deve pressupor que a natureza se oriente de acordo ou, em conformidade a uma finalidade (um conceito), mesmo quando esta no seja dada, em suma, a uma finalidade sem fim, sem um conceito dado (Kant, 1974, p. 265-266).

    Por isso, ao contemplar um objeto seja ele natural ou artstico , a exibio de uma aparente unidade formal ou de uma finalidade , na verdade, engendrada pelo prprio juzo reflexionante. a imaginao que, ao unificar a multiplicidade de sensaes, compe o diverso da intuio. Destituda

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    da funo cognitiva, a imaginao e o entendimento jogam livremente, promovendo, imaginando vrias associaes, vrias relaes. Por isso a finalidade subjetiva, ou seja, repousa sobre as faculdades da reflexo.

    Ora, neste momento, uma vez que o Juzo no tem em vista o conhecimento de um objeto, preciso investigar todas as faculdades da mente humana: alm das faculdades de conhecer e de dese-jar, encontra-se o sentimento de prazer e desprazer, quando a representao refere-se to somente ao sujeito, ou melhor, ao efeito que tem sobre ele. Da a satisfao ou insatisfao desinteressada (a representao desinteressada) de uma relao de finalidade, ou seja, de uma conformidade ou adequao da Forma (a unidade de uma multiplicidade) com o livre jogo entre imaginao e entendi-mento (as faculdades da reflexo). A partir do vnculo estabelecido entre juzo sentimento de prazer ou desprazer, Kant introduz a especificao esttico para o juzo reflexionante, e isso significa

    [...]que ele produzido a partir da referncia de uma representao dada ao sentimento de prazer ou desprazer do sujeito, sentimento pelo qual nada conhecido no objeto, mas que somente oferece uma conscincia sensvel de seu prprio estado de nimo (Gemtszu-stand) por ocasio de encontro com algo. (Costa Rego, 2004, p.234).

    O Juzo reflexionante esttico que futuramente desdobraremos sob o nome de juzos-de-gosto, nos diz Kant (1974, p.288), indica assim, a revelao desta categoria (o gosto) enquanto desdobra-mento. Mas, se o juzo-de-gosto ser um desdobramento do juzo reflexionante esttico, preciso, antes, observar que este ltimo uma modalidade da faculdade de julgar que tem a particularidade de conter em si as condies de possibilidade de todo o juzo. O Juzo pode ser determinante ou re-flexionante, sendo este ltimo o que torna possvel o conceito que desempenha o papel de princpio apriorstico do primeiro. O juzo reflexionante aparece como uma necessidade interna do prprio Juzo e da a necessidade de um princpio prprio a priori, que ser o de finalidade da natureza, condio de possibilidade de todo e qualquer juzo. O juzo reflexionante esttico, juzo esttico em universal, ter por fundamento de determinao a sensao, que, como todas, refere-se ao prazer ou desprazer, mas a nica sensao que jamais pode tornar-se conceito de um objeto o sentimento de prazer ou desprazer (Kant, 1974, p.288). Sentimento suscitado apenas pelo livre jogo das faculdades de reflexo e fundamento de determinao do juzo. Uma vez que aquelas faculdades so comuns a to-dos os homens, a universalidade desta faculdade de sentir repousa sobre a comunicabilidade deste sentimento. O acordo livre e indeterminado das faculdades define um senso comum propriamente esttico (o gosto) (Deleuze, 1986, p.68). Da que a faculdade de julgamento da finalidade da forma o Gosto, e o fundamento do Juzo-de Gosto o sentimento.

    [...] a possibilidade de um juzo da mera reflexo, esttico, e, no entanto fundado sobre um princpio a priori, isto , um juzo de gosto, se pode ser provado que este est efetivamente legitimado pretenso de validade universal, exige uma crtica do Juzo como uma faculdade de princpios transcendentais prprios (igual ao entendimento e razo), e somente atravs disso se qualifica para ser acolhido no sistema das faculdades-de-conhecimento puras; a razo disto que o juzo esttico, sem pressupor um conceito de seu objeto, atribui-lhe, no entanto finalidade, e, alis, com validez universal, e para isso, pois, o princpio deve estar no juzo mesmo[...] , pois, propriamente apenas no gosto, e, alis, quanto aos objetos da natureza, que o Juzo se manifesta como uma faculdade que tem seu princpio prprio, e com isso tem pretenso fundada a um lugar na crtica geral das faculdades-de-conhecimento superiores [...] (Kant, 1974, p.292).

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    Em suma, a Experincia Esttica do Juzo Esttico , portanto, a vivncia subjetiva da satisfao do sujeito. Por sua vez, o Juzo Esttico a capacidade para julgar a satisfao ocasionada por um objeto como um sentimento de prazer ocasionado meramente em virtude das relaes formais do objeto que podem ser percebidas. Ao conjunto destas relaes, Kant denomina Forma sem finali-dade, ou seja, independente de um fim, ou seja, de um conceito. Entretanto, estas relaes, como vimos acima, so atribudas pelo juzo reflexionante, princpio prprio da faculdade de julgar, ou seja, o princpio da conformidade a fins do sujeito que aprecia. Isto nos conduziu revelao do surgimento do gosto e do juzo de gosto enquanto determinante do juzo reflexionante.

    Entretanto, o juzo esttico atribui Beleza aos objetos. Porm, esta determinao est fundada no sentimento de prazer que, por sua vez, o julgamento da satisfao com um modo de representao que est no sujeito.

    [...] a forma de um objeto pode, primeiramente, j por si, na mera intuio sem conceito, para o Juzo reflexionante, ser percebida como final, e, nesse caso, a finalidade subjetiva atribuda coisa e prpria natureza. [Assim], o juzo atribui beleza aos objetos. (Kant, 1974, p. 296).

    Portanto, beleza nada mais que a finalidade da forma do fenmeno, e a faculdade de julga-mento da mesma o gosto (Kant, 1974.). O belo, enquanto objeto de um sentimento de prazer, tal qual este sentimento, no pode ser determinado enquanto conceito ou fim.

    Schiller preciso lembrar que, para Kant, o que importa o Juzo como faculdade que realiza a pas-

    sagem da natureza liberdade, do sensvel ao inteligvel, para que a totalidade dos fundamentos da faculdade de conhecimento se realize.

    A crtica do gosto [...] quando tratada em inteno transcendental, abre, ao preencher uma lacuna no sistema de nossas faculdades-de-conhecimento, uma perspectiva surpreendente e, ao que me parece, muito promissora, em um sistema completo de todos os poderes-da-mente, na medida em que, em sua determinao, so referidos, no somente ao sensvel, mas tambm ao suprassensvel, sem no entanto deslocar a marca de limite que uma crtica inflexvel imps a este ltimo uso dos mesmos. (Kant, 1974, p. 292)

    Ora, ser este limite inflexvel que Schiller ir transgredir. Se em Kant o gosto est do lado da Natureza, em Schiller estar do lado da Liberdade. Esta nova inscrio do gosto levar consigo a modificao da compreenso do que seja o Juzo do Gosto e a Experincia Esttica, ainda que fun-damentados na Forma.

    Em sua dissertao de mestrado, Surdi Jr. (2010) destaca o significado de Contemplao Esttica para Schiller, que seria um modo de ver as coisas na natureza ou os fenmenos no qual exigimos deles nada alm do que liberdade, um modo no qual apenas julgamos se a maneira como o objeto se apresenta pode ser sentida como livre, ou seja, se a sua forma dissimula toda influencia exterior (Surdi Junior, 2010, p. 34). E acrescenta que, a condio para esta representao a tcnica. Dito de outro modo a tcnica que permite identificar a liberdade no fenmeno ou a beleza.

    Ora, este turning point da noo de beleza, ou seja, de finalidade da forma no fenmeno em Kant, liberdade no fenmeno em Schiller, deve ser compreendido.

  • Desafios para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica 14

    Para Schiller, o que importa a universalidade do julgamento final, uma vez que a beleza deve orientar o cultivo do gosto. Se a Beleza, em Kant, o paradigma do juzo de gosto, que, por sua vez inscreve-se na razo terica, agora ela ser a forma da razo prtica e ser ela, a Beleza, o fundamento do princpio objetivo do gosto. Dito de outro modo, Schiller tem em vista a universalidade do gosto, o que, em Kant tornara-se impossvel dado o carter subjetivo do prazer. O universal era o sentimento - suscitado pelo processo livre do juzo, qual seja o jogo entre o entendimento e a imaginao sem intermediao da esquematizao - o que poderia ser comunicado, e no o julgamento final, produto do jogo, a exemplo do isto belo. Entretanto, Schiller denomina-se rigorosamente kantiano, por utilizar dos instrumentos que aquele lhe forneceu, mas porque este funda o juzo do belo sobre o sentimento do prazer - fundamento insuficiente que a objetividade do belo negada. A significao de beleza est, para sempre, encerrada em uma significao subjetiva (Surdi Jr, 2010, p. 28).

    Segundo Surdi Junior (2010), esta perspectiva nasce em Schiller antes de ter tido contato com a filosofia kantiana que, contudo, vem preencher um ideal tico que j vislumbrava em dilogo com o helenismo. Ainda, participando do ideal da Alemanha de seu tempo, pretende fundamentar uma Esttica enquanto cincia filosfica autnoma. Apesar de Baumgarten ter estabelecido tal pretenso em 1755, ela s se consolida a partir da Crtica do Juzo de Kant, publicada em 1790. Schiller via na experincia da arte e da beleza o caminho para a formao (Buildung) do homem tico. Mas, porque via na conduta moral humana uma dimenso esttica que, para ele, a Beleza passa a significar a expresso ou a aparncia da liberdade e, portanto, possvel a manifestao e realizao da liber-dade no mundo sensvel. Diferentemente de Kant, Schiller no pretende mostrar como possvel a unio do sensvel e do suprassensvel, uma vez que tal unio est atestada na aparncia esttica da conduta humana. Assim, ser atravs e contra a Crtica do Juzo, que Schiller vai buscar um novo modo de se compreender o fenmeno do gosto e da beleza (Surdi Junior, 2010, p.14).

    Apropriando-se dos princpios fundamentais da filosofia kantiana, a Beleza ser deslocada da esfera da razo terica para a da razo prtica, uma vez que a estaria demonstrada a possibilidade de realizao da liberdade [entendida como autodeterminao prtica], fundada racionalmente (Surdi Junior, 2010, p.16). Assim, a posio crtica de Schiller explicita-se:

    A filosofia prtica no podia terminar no estabelecimento das condies de possibilidade de critrios necessrios e universais portanto, racionais para as aes morais: era preciso tambm mostrar a possibilidade de realizao dessa liberdade fundada racionalmente. (Surdi Junior, 2010, p.16)

    preciso retornar a Kant e lembrar que a filosofia enquanto sistema dividia-se em terica e prti-ca de acordo com os princpios da cincia que contm os objetos sobre os quais pensa: a natureza na primeira, os costumes (as aes morais), na segunda. Esta, diferentemente da filosofia terica, s poderia conter princpios puros a priori uma vez que a liberdade jamais poderia ser objeto da experin-cia: a filosofia prtica expe diretamente a determinao de uma ao como necessria meramente pela representao de sua forma (Kant, 1974, p. 261). Por sua vez, na Crtica da Razo Pura, a razo terica determina ao objeto o seu conceito; a razo prtica torna reais objetos que so apenas pen-sados. Tais objetos no so encontrados nas coisas que nos so dadas, portanto, a razo que se eleva acima dos limites da experincia possvel. Para encontrar o conceito racional transcendente, um conceito que apenas um pensamento possvel, neste campo do suprassensvel, Kant opera por analogia: se, na razo terica as determinaes de causalidade nos fenmenos so dadas pelo arbtrio,

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    pela vontade da razo, ento ser esta mesma vontade a determinante de uma coisa no dada, em si, no submetida lei natural. Esta coisa ser livre, e, portanto pensar a liberdade possvel. Trata-se de uma representao meramente intelectual, e a lei apenas formal submete os objetos. Ora, se a razo determina, o juzo (reflexionante) apenas pensa, e o faz a partir de uma legislao prpria. Por isso, embora no se refira a objeto algum, ele promove a conexo entre as razes, e, portanto, entre a natureza e a liberdade e, assim, fundamenta a determinao da razo seja ela pura, seja prtica (Kant, 1974, p. 261-297).

    A natureza, portanto, funda sua legalidade sobre princpios a priori do entendimento como uma faculdade-do-conhecimento; a arte orienta-se em sua finalidade a priori segundo o Juzo, em referncia ao sentimento de prazer e desprazer; por fim, os costumes (como produto da liberdade) ficam sob a Ideia de uma tal forma da finalidade, que se qualifica a lei universal, como fundamento-de-determinao da razo quanto faculdade-de-desejar. Os juzos, que desse modo se originam de princpios a priori que so prprios a cada faculdade fundamental da mente, so juzos tericos, estticos e prticos.(...) sob o nome de estticos (cujos princpios so meramente subjetivos), (...), so de espcie to particular que referem intuies sensveis a uma Ideia da natureza, cuja legalidade, sem uma relao da mesma a um substrato suprassensvel, no pode ser entendida... (Kant, 1974, p. 294)

    Fiel aos princpios kantianos, Schiller no pretende submeter o juzo esttico a conceitos determi-nados do entendimento ou da razo para assegurar um conhecimento a priori do que deve ser o belo. Mas, para ele, a nica maneira adequada de apreender a verdadeira beleza julgando a aparncia fenomnica do objeto como um anlogo da liberdade (Surdi Junior, 2010, p.34). [grifo nosso]. E, liberdade para Schiller autodeterminao prtica, isto , a vontade independente ser sua prpria causa e fundamento determinante (Surdi Junior, 2010, p.34). Assim, a Beleza, em Schiller, assume a forma da razo prtica e o juzo esttico julga segundo a forma da vontade pura (Surdi Junior, 2010, p. 58). A unio do sensvel e do suprassensvel est na aparncia da liberdade uma Ideia da razo no mundo dos sentidos, mas caber ao objeto despertar a ideia de liberdade. A tcnica ser a condio de viabilizao da representao da liberdade, ao promover a iluso de autodeterminao. Em suma, a forma do objeto deve estar em conformidade com a forma da razo prtica. A partir da, a contemplao esttica deve sua satisfao no s ao livre jogo da imaginao e do entendimento, mas tambm forma da razo prtica.

    Em Kant, tratava-se de, na contemplao, abstrair uma finalidade pressuposta na forma do objeto seja natural, seja artstico, sendo, portanto, uma operao creditada inteiramente ao sujeito. Em Schiller, no se tratar de abstrao dos fins, mas da percepo de autodeterminao que, no entanto, deve estar concretizada no objeto.

    AdornoSe Kant no pretende fundar uma Esttica propriamente dita, Schiller por sua vez preocupa-se

    com o Esttico, mas tem em vista o tico. Entretanto, ao faz-lo, devolve o objeto em sua existn-cia concreta. Ainda assim, lembremos, a forma deve dissimular toda influencia exterior para que a experincia esttica seja possvel. Somente em Adorno a concretude se realiza. A Teoria Esttica refere-se, imediatamente, ao objeto artstico e pretende salvar a sua autonomia, tanto quanto a do

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    sujeito seja este o artista, seja o fruidor. Agora o objeto que deve dizer o que tem a dizer. E o diz a forma esttica em sua imanncia. A experincia esttica ser, em Adorno, viva a partir do objeto, no instante em que as obras de arte, sob o seu olhar, se tornam vivas (Adorno, 1970, p.199). Viva signifi-ca a libertao do carter processual da obra. A vida est no objeto - concreto e singular. Portanto, na forma esttica que se condensa o dizer que se abre experincia esttica. Alm disso, Adorno identifica a prpria arte forma, e lana um novo olhar sobre o que isto, a arte, atravs da anlise do que contm em si mesma, em sua estrutura. Do que foi ao que se tornou a arte, de cuja existncia coloca-se a possibilidade de sua prpria impossibilidade, Adorno reabilita a sua possibilidade a partir da crtica e da reorientao terica das categorias tradicionais, os pressupostos atravs dos quais tem sido interpretada. A sua anlise faz-se do interior das obras singulares uma leitura crtica, filosfica da arte, e este novo olhar abraa a vanguarda artstica e fertiliza o campo dos mais recentes produtos artsticos para novas reflexes.

    A perspectiva histrica de um declnio da arte a ideia de toda e qualquer obra particular. Nenhuma obra de arte existe que no prometa que o seu contedo de verdade, tanto quanto ele aparece nela como simples ente, se realize e deixe atrs de si a obra, o invlucro sim-ples... (Adorno, 1970, p..153).

    Contudo, uma sentena lapidar: o xito esttico depende essencialmente de se o formado capaz de despertar o contedo depositado na forma (Adorno, 1970, p.161), uma vez que a forma, a qual devida ao contedo, em si mesma contedo sedimentado (Adorno, 1970, p.166). A relao forma-contedo o registro do seu afastamento das estticas anteriores e a marca do seu novo olhar.

    espantoso quo pouco a esttica refletiu sobre esta categoria, quo frequentemente esta, enquanto distinta da arte, lhe pareceu aproblemtica. A dificuldade em isolar a forma condi-cionada pelo entrelaamento de toda a forma esttica com o contedo: deve ser concebida no s contra ele, mas atravs dele, para no ser vtima daquela abstrao pela qual a esttica da arte reacionria costuma aliar-se. Alm disto, o conceito de forma constitui, at Valry, o ponto cego da esttica, porque toda a arte lhe fica de tal modo ligada que ele desdenha o seu isolamento como momento individual. Sem dvida, como no possvel definir a arte por qualquer outro momento, ela simplesmente idntica forma. (Adorno, 1970, p.162)

    Mas a arte, para Adorno, no se deixa definir, pois a arte tem o seu conceito na constelao de momentos que se transformam historicamente (Adorno, 1970, p.12). A esttica de Adorno, ele a define imediatamente como sendo materialista dialtica. Prova seu ponto de vista a incerteza que recai sobre a arte uma vez que a sua to apregoada autonomia e liberdade entrou em choque com o seu exterior, com um mundo cada vez menos autnomo e, no qual, a liberdade parece ter menos lugar. Uma humanidade que se tornou menos humana (Adorno, 1970, p.11). Se, por um lado, prprio de a arte destacar-se da realidade emprica, por outro, na mesma medida em que esta real-idade se transforma as obras de arte tambm, qualitativamente, se transformam historicamente: o que uma obra foi legitimado por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e quilo em que poder, talvez, tornar-se... o ter-estado-em-devir da arte remete o seu conceito para aquilo que ela no contm (Adorno, 1970, p. 13).

    A tenso entre o que animava a arte e o seu passado circunscreve as chamadas questes estticas de constituio. Aparte s interpretvel pela lei do seu movimento, no por in-variantes. Determina-se na relao com o que no . O carter artstico especfico que nela existe deve deduzir-se, quanto ao contedo, do seu Outro: apenas isto bastaria para qualquer

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    exigncia de uma esttica materialista dialtica. Ela especifica-se, ao separar-se daquilo por que tomou forma: a sua lei de movimento constitui a sua lei formal. Ela unicamente existe na relao ao seu Outro e o processo que a acompanha.

    A essncia afirmativa da arte, sua oposio realidade, condena a arte incerteza e, qui, morte. Ao contrrio, perceber que sua oposio se constri atravs da realidade, que a sua identidade afirma-se atravs do no idntico e por isso mesmo revela a identidade que, na realidade emprica, se impe fora a todos os objetos enquanto identidade com o sujeito. o no idntico, identi-dade da arte e o oprimido na sociedade administrada que fornece ao vivente emprico o que lhe recusado no exterior e assim libertam daquilo para que as orienta a experincia coisificante. (Adorno, 1970, p.15). Da a afirmao posterior de Adorno (p.165): Forma e Crtica convergem.

    Por outro lado, as invariantes, antes utilizadas para interpretar a arte, no iro desaparecer na esttica adorniana, mas se estendero na lei formal. O Belo, enquanto regra o que nos remete a Schiller se historiciza como os demais momentos da esttica adorniana. Entretanto, em seguida, ressurge arrastado pela lei formal.

    O belo deve atingir o nvel do conceito, pois do contrrio cai numa mera descrio sem forma e ser reduzido contingncia. Ser relativizado, contingencializado. O belo reside na dimenso da universalidade... esta foi produzida num movimento conteudal, que, por sua vez, sim, contingente. Os motivos do belo grego so diferentes dos motivos do belo contemporneo. (Schaefer, 2012, p.81)

    O que, entretanto, no pode faltar a estes dois momentos [histricos] de constituio do belo a tenso entre as partes e o todo. As particularidades na obra de arte manifestam vida quando esto tensionadas em relao forma que o todo. Dessa tenso pode nascer a beleza. (Schaefer, 2012, p.81)

    A perda de tenso entre as partes e o todo significa que as partes no conseguem alcanar o a unidade. As partes tornaram-se indiferentes, relacionam-se com ares de indiferena. Isso no permite que a unidade seja constituda. A unidade relacional e s acontece se as diferenas so mantidas. O todo indiferente deixa de ser belo... (Schaefer, 2012, p. 85)

    Entretanto, o prazer esttico, o gosto da fruio, para Adorno, deveria ser banido e, por isso, agora podemos compreender, ele o reinscreve num processo em que criao artstica, experincia esttica e crtica surgem inseparveis (Bastos G. Cachopo, 2011, p. 94).

    Consideraes FinaisAo final deste processo, percebemos que, se o belo no mais conceito-guia, ele ainda subsiste:

    existe na satisfao com a forma, mas, principalmente, por ela constitudo. Se assim , suspeitamos ser possvel distinguir contemplao esttica e satisfao esttica. O interesse no o motivo da beleza, mas a forma o . A beleza pode ser interessante, pode interessar, dizia Kant. Igualmente, poderamos dizer que a beleza pode favorecer seja o cultivo do gosto seja a apreenso da individuao ou da no identidade e isto depende dos valores que se deseja cultivar em determinado perodo histrico. Assim, nos parece que a contemplao esttica pode prescindir do juzo de gosto. De Kant a Ador-no, o movimento tende concretizao da contemplao no objeto. Em Schiller e em Adorno o xito

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    esttico aparece no objeto, cabendo ao artista preocupar-se com a sua forma, e ao fruidor assumir (ou ser educado para) uma atitude esttica. Em Kant, o livre jogo das faculdades reflexivas suscita prazer ou desprazer e precede o julgamento. Schiller pretendia qualificar o belo objetivamente, mas, parece-nos, por um lado ter se absorvido em Kant no que tange s causas da satisfao subjetiva e por outro, ter se diludo em Adorno, no que tange historicidade do gosto. A beleza, portanto, no pode reduzir-se a conceitos, mas pode suscitar interesse e encanto para um olhar que se dispe a contemplar a forma exitosa que a constituiu.

    Sabemos das limitaes que nos impusemos para tratar de tema to complexo em espao to exguo, seja na apreenso e articulao dos conceitos-chave em cada autor, seja na abertura a prob-lematizaes que suscitam. Entretanto, no nos resta dvida a absoluta necessidade do conhecimento deste, que consideramos o marco zero para o seu aprofundamento e posterior abertura para pensar a promoo da vivncia esttica na contemporaneidade. Se conseguirmos transmitir tal necessidade ao leitor, para ns j consiste motivo de satisfao.

    Referncias Bibliogrficas

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    SURDI JNIOR, C. A. A Ideia de beleza Moral em Schiller, 2010. 121 f. dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade Federal do Paran Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes. Curitiba, 2010.

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    OBSOLESCNCIA DA PSICANLISE E CONCEITO DE IN-DIVDUO EM HEBERT MARCUSE

    Marcos Goulart dos Santos1

    Um intelectual algum que se recusa a fazer compromissos com os dominantes.Herbert Marcuse

    IntroduoEste trabalho tem como objetivo compreender como Herbert Marcuse afirmou em seu escrito a

    obsolescncia da psicanlise, em que afirma ter a psicanlise perdido seu objeto para compreenso do indivduo na medida em que a sociedade administrada provocou mudanas profundas na consti-tuio da psique. O indivduo, segundo ele, deve ser compreendido agora a partir de compreenso da sociedade. Para nosso entendimento, o caminho percorrido passou necessariamente pela leitura de Freud e sua concepo de indivduo, ou seja, a tese freudiana de conflito entre pai e filho (que formava o indivduo); como se constitui o sujeito no mbito da psicanlise, buscando lanar reflexo e entendimento da determinao da personalidade do indivduo, e sua interao com outros membros do grupo; e tambm os aspectos internos, que so a base do comportamento humano.

    Analisamos como esta teoria freudiana perde seu sentido e, a partir de ento, Marcuse afirma e argumenta que os tomos sociais aniquilam esta concepo de indivduo e, portanto, a necessidade de buscamos compreender porque lanou a afirmao da obsolescncia da psicanlise. No se tra-ta de tema novo ou indito, mas prima por manter-se a constante vigilncia numa sociedade que se fragmenta e se especializa, onde a informao abundante, o conhecimento vasto, e a sabedoria, contudo, negligenciada. Marcuse afirma que ocorreu uma obsolescncia emprica dos conceitos freudianos: eles no possibilitam mais compreender a realidade social, pois esta foi transformada. Todavia, eles guardam a verdadeira imagem do processo civilizatrio, essencialmente oposto feli-cidade e s necessidades individuais.

    1 Possui especializao em Filosofia para Professores do Ensino Fundamental e Mdio pela Universidade Estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (Unesp) e em Filosofia com Crianas e Adolescentes pela Pontifcia Universidade Catlica (PUC). graduado em Filosofia e Pedagogia, e atualmente professor da rede pblica do estado de So Paulo.

  • Desafios para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica 21

    Obsolescncia da psicanlise para conceito de indivduo de Freud em MarcuseNo so poucos os autores que, ao analisar o contedo de uma obra, identificam traos constituin-

    tes de obras pertencentes a outros autores. difcil imaginar uma leitura que no seja contaminada por leituras anteriores. O presente artigo tem como objetivo geral a compreender o conceito de indivduo presente em Herbert Marcuse construdo a partir da concepo que empreendeu em sua formulao acerca da psicanlise como teoria obsoleta para abranger o entendimento do indivduo. Porm, como o referido autor afirmava, a psicanlise freudiana pode ser ponto de entendimento da sociedade, e compreender como se deu esta conceituao, em que afirmou que a psicanlise perdeu seu objeto ao focar o indivduo, e tendo como suporte terico a psicanlise, o objeto que nos propomos. A psicanlise ainda cincia nova, e sua histria tem pouco mais de um sculo, mas sua juventude no impediu suscitar indagaes de seus contemporneos. Freud foi criticado e incompreendido em certos aspectos por seus contemporneos, e Marcuse, ao afirmar a obsolescncia da psicanlise, torna-se mais um nas fileiras dos crticos ao pensamento freudiano. Porm, sua crtica vai mais dire-tamente aos neofreudianos. O eplogo crtico de Marcuse inicia-se com uma afirmao importante: A Psicanlise alterou a sua funo na cultura do nosso tempo [...] (Marcuse, 1981, p.205). justa-mente sob essa perspectiva que sua anlise se segue: ele associa as mudanas que aconteceram no movimento psicanaltico rente s crises2 e transformaes sociais importantes ocorridas durante a primeira metade do sculo XX, ou seja, por causa das modernas formas de vida nas sociedades industriais avanadas. As prprias foras que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existncia serviram para reprimir (Marcuse, 1968, p.13).

    Ao tratar do desenvolvimento humano individual, Herbert Marcuse afirma que a liberdade e a felicidade que o indivduo pode ter so decididas pela dinmica pulsional; no mais no mbito da individualidade. Nas palavras do autor: O destino da liberdade e da felicidade humanas se jogam na luta dos instintos que so literalmente a luta entre a vida e a morte, a qual soma a psique, natureza e civilizao, participam3 (Marcuse, 1963, p.31). Nessa relao de foras, as pulses so reprimidas, refreadas e o sujeito impedido de realizar plenamente suas necessidades, isto , de ser feliz. Importante ressaltar que o autor entende que as pulses so frutos de processos histricos e podem, portanto, mudar de acordo com o contexto social.

    No contexto da psicanlise, preciso se ater ao fato de que quando se fala em psicanlise, fa-la-se de Freud primeiro, e depois dos outros. O nome de Sigmund Freud est to intimamente ligado psicanlise, que frequentemente se esquece de que este homem extraordinrio j tinha realizado uma grande carreira quando lanou as bases de sua nova doutrina. , Como formulador da teoria psi-canaltica, cabe a este a primazia no que concerne o objeto deste estudo e, portanto, partir de seu entendimento o caminho mais seguro para compreender em que sentido a teoria psicanaltica influ-enciou a Escola de Frankfurt a ponto de Herbert Marcuse dedicar parte de seu estudo criativo visando

    2 Atrs da palavra crise geralmente se esconde uma crise de talentos.

    3 Le destin de la libert et du bonheur humains se jouent dans la lutte des instincts qui est littralement la lutte entre la vie et la mort, laquelle soma et psych, nature et civilisation, participent. (MARCUSE, 1963. p. 31)

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    dar sustentao filosfica as suas reflexes com base na cincia criada por Freud. O indivduo que constitudo na psicanlise dotado de id, ego e superego. O comportamento do individuo adulto explicado por Freud a partir do modo como o indivduo viveu o seu Complexo de dipo e as diversas fases do seu desenvolvimento psicossexual, o que constitui a sua conscincia e sua relao com o mundo. Desde Descartes, a conscincia foi considerada como o trao caracterstico que distingue os fenmenos psquicos das outras manifestaes da vida humana. O equilbrio entre estas foras que permite a formao do Eu4, e portanto, da prpria conscincia, que so as elaboraes da identidade. A noo de Eu, em Freud, s pode ser entendida a partir de sua teoria do funcionamento mental. Porm, o indivduo est inserido num contexto social, coletivo e o ponto principal, para Freud, talvez esteja na constatao de que as prprias exigncias da vida civilizada, de modo geral, seriam em grande parte responsveis por esse mal-estar que assola o indivduo na humanidade, pois entram em contradio com as reais aspiraes dos indivduos, gerando perturbaes oriundas das exigncias pulsionais de satisfao. Uma das diferenas entre o processo de desenvolvimento do indivduo e o da civilizao, de acordo com Freud, que para o indivduo, o objetivo da felicidade mantido em primeiro plano, ao passo que no desenvolvimento da civilizao tais objetivos no sero necessaria-mente considerados. Herbert Marcuse parece deitar-se sobre esta concepo do Eu e em seu artigo de 1941 - Algumas implicaes sociais da tecnologia moderna -, publicado em ingls na revista do Instituto de Pesquisas Sociais e contm o primeiro esboo empreendido por Herbert Marcuse sobre o papel da sociedade moderna. Neste artigo, ele apresenta o declnio do individualismo e sua concepo do indivduo, e desenvolve sua palestra para a mesma ocasio com uma discusso mais abrangente do problema do indivduo na sociedade atual. Segundo o autor, os indivduos tem de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais (Marcuse, 1968, p.13). No se trata da elaborao de um tratado psicanaltico, ou uma postura revisionista. Marcuse, ao afirmar que a psicanlise perde sua funo para entendimento do indivduo no mbito da sociedade tecnolgica, aponta que ele agora pode ser instrumento de anlise social, contribuindo para dar a ideia de Ns, vez que na sociedade industrial, da cultura de massa administrada, o sujeito individual passar dar lugar a um Eu social. As dinmicas da existncia passam a ser definidas externamente e no mais internamente, o que segundo ele provoca a desconstruo de um indivduo at ento constitudo. A sociedade industrial oprimiu o indivduo, suprimiu o sujeito histrico que foi gradualmente perdendo seus traos racionais como autonomia, crtica, poder de negao, discordncia etc., produzindo assim o declnio da individualidade, substitudo por um sujeito administrado.

    Stuart Hall (1992, p.7) inicia um debate sobre a formao da identidade nos dias de hoje nos seguintes termos:

    [...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, esto em de-clnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivduo moderno, at aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada crise de identidade vista como parte de um processo mais amplo de mudana, que est deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referncia que davam aos indivduos uma ancoragem estvel no mundo social.

    4 A fundao do Eu, como a instncia que surge para discernir o mundo interior (subjetivo) do mundo exterior (objetivo). Contudo, para Freud o Eu no apenas essa conscincia segura, firme que nos permite discernir nossa interioridade, nossos sentimentos e pensamentos da realidade que nos cerca, o mundo exterior. H algo de profundo, subterrneo e irracional na noo de Eu. o que veremos a seguir.

  • Desafios para a Docncia em Filosofia: Teoria e Prtica 23

    O autor introduz, desse modo, o conceito de fragmentao na nova sociedade globalizada. Esse momento histrico-cultural chamado por Hall de modernidade tardia; para Herbert Marcuse, a sociedade lanou mo de mecanismos de controle social que afetam diretamente a individualidade. As prprias foras que tornaram a sociedade capaz de amenizar a luta pela existncia serviram para reprimir nos indivduos a necessidade de tal libertao. (Marcuse, 1975, p.73) O indivduo torna-se fragmentado, submetido a uma lgica social que no lhe permite exprimir sua subjetividade, que est agora suprimida pela engenharia social. Os processos psquicos anteriormente autnomos e identi-ficveis esto sendo absorvidos pela funo do indivduo no Estado (Marcuse, 1963. p.25). No mbito desta realidade, e segundo o autor, o indivduo tem que se adequar a esta engenharia, no existindo assim espao de satisfao para realizao pessoal Realizar-se agora atender s dinmicas en-gendradas no seio da dinmica da obsolescncia em que o suprfluo assume papel preponderante. ,No entanto, o indivduo acredita estar realizando-se, acredita-se livre, e nessa falsa sensao que a sociedade administrada engendra seus mecanismos de dominao.

    Cabe ressaltar que a perda da subjetividade sempre foi um motivo de crtica para Herbert Mar-cuse, inclusive no que diz respeito a interpretaes no capitalistas, como o caso de sua crtica viso ortodoxa marxista da arte que a entendia verdadeiramente como uma expresso no subjetiva. Como diz Herbert Marcuse (1975), existe uma relao entre o obsoleto e subjetivo na constituio da identidade social:

    Como a sociedade afluente depende cada vez mais da ininterrupta produo e consumo do suprfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e dos meios de destruio, os indivduos tm de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais. (Marcuse, 1975, P. 13)

    Por consequente, a subjugao do homem por meio da satisfao das suas necessidades dadas pelo mercado lhe torna livre liberdade esta no deliberada fundada na autorreflexo, mas administra-da submetida lgica da manipulao, que exercida com sabedoria pelos agentes dominadores. O sujeito considera-se em estado de graa a partir do momento que consegue satisfazer seus desejos por meio do consumo ordenado. Tem-se a falsa ideia da realizao de desejos, ou seja, o Princpio de Prazer, a partir do consumo. A ideologia da sociedade industrial, o homem unidimensional, consumista, que no se atm a essncia das coisas est como vemos no captulo A conquista da conscincia infeliz: dessublimao repressiva, submetido aos mecanismos dominantes engendrados pela socie-dade administrada. Ele sublinha que no processo de absoro da cultura pela esfera material, ou seja, na transformao dos bens culturais em mercadorias, o que ocorre no a deteriorao da cultura superior numa cultura de massa (Marcuse, 1982, p. 69), mas uma assimilao dos valores ideais pela realidade. O progresso tecnolgico torna possvel a materializao de ideais (Marcuse, 1982, p. 81) graas realizao da sociedade industrial desenvolvida, que cumpre com eficincia o seu projeto de subjugao da natureza, aliviando a escassez e oferecendo uma quantidade impressionante de mercadorias.

    Marcuse, em A ideologia da sociedade industrial, denuncia aspectos totalitrios tanto do co-munismo sovitico quanto do capitalismo ocidental. Na introduo da obra citada, Marcuse descreve:

    [...] a sociedade industrial desenvolvida confronta a crtica com uma situao que parece priv-la de suas prprias bases. O progresso tcnico, levado a todo um sistema de dominao e coordenao, cria formas de vida (e de poder) que parece reconciliar as foras que se

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    opem ao sistema e rejeitar ou refutar todo o protesto em nome das perspectivas histricas de liberdade de labuta e de dominao. A sociedade parece conter a transformao social transformao qualitativa que estabeleceria atribuies essencialmente diferentes, uma nova direo dos processos produtivos, novas formas de existncia humana. Essa conteno da transformao , talvez, a mais singular realizao da sociedade industrial desenvolvida [...] (Marcuse, 1979, p.16)

    Na sociedade em que o indivduo perde sua identidade, ocorre a fragmentao dos instintos para melhor controle, sendo negada ao sujeito sua identidade como processo individual. Esta passa a ser atribuda pelo grupo social, e socorrer a histeria individual implica em abordar a histeria coletiva. Nesse sentido, todas as manifestaes humanas que denominamos cultura e arte passam a ser instrumento que atendem ao processo de massificao. A sociedade sublima desejos e a:

    Alienao artstica sublimao. Cria as imagens de condies que so irreconciliveis com o Princpio da Realidade, mas que, como imagens culturais, tornam-se tolerveis, at mes-mo edificantes e teis. Agora essas imagens mentais esto invalidadas. Sua incorporao cozinha, ao escritrio, loja; sua libertao para os negcios e a distrao , sob certo aspecto, dessublimao substituindo satisfao mediada por satisfao imediata. Mas dessublimao praticada de uma posio de vigor por parte da sociedade, que est ca-pacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interesses se terem tornado os impulsos mais ntimos de seus cidados e porque os prazeres que ela concede promovem a coeso e o contentamento sociais. (Marcuse, 1979, p.82)

    No contexto da sociedade administrada, nada lhe escapa, e toda a produo artstica visa um fim, o de controle das necessidades, dando sustentao a mecanismos de controle social, alienao coletiva. A irradiao de pensamentos homogneos permeia todas as manifestaes culturais com um nico fim: criar uma identidade coletiva, em contraposio ao indivduo unssono. O princpio do prazer, oferecido pelas produes culturais, visa aniquilar a capacidade crtica, contribuindo sobre-maneira para o controle social. A cultura agora atende a uma ideologia engendrada no seio do capital.

    A celebrao da personalidade autnoma, do humanismo, do amor trgico e romntico parece ser o ideal de uma etapa superada do desenvolvimento. O que est ocorrendo agora no a deteriorao da cultura superior numa cultura inferior de massa, mas a refutao dessa cultura pela realidade. A realidade ultrapassa sua cultura (Marcuse,1982, p. 69).

    Assim, segundo a teoria freudiana os processos mentais so regulados pelo princpio de prazer, e seu amadurecimento implicaria na constituio do Eu e este constitui a subjetividade do indivduo. Como supracitado, Herbert Marcuse aponta que o Eu constitudo d lugar s afetaes sociais; o mercado, agora, que determina e fragmenta ou descontri o sujeito, toda forma de manifestao social engendra e atende ao ideal segundo qual a subjetividade se deteriora ou se constitui segundo os interesses das foras da sociedade. Nisto parece haver uma consonncia entre Herbert Marcuse e Sigmund Freud, pois a frustrao do indivduo ante o princpio de realidade fruto da represso d espao para que as instituies assumam papel de controle dos desejos, e ento, o controle esta-belecido visando atender a dinmica civilizatria da produo e do trabalho como pilar econmico da nova ordem estabelecida. Assim, o id, que alimentado pela necessidade de prazer, atendido nesta necessidade, porm agora um prazer massificado, que se realiza no consumo. A libido direcionada e, assim, h uma constante necessidade do novo, do ressignificado, do belo etc. Neste sentido, a indstria cultural constantemente busca satisfazer as necessidades individuais para uma sociedade

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    cada vez mais homognea. Segundo Freud (2001, p.60) Ora, as restries externas que, primeiro, os pais e, depois, outras entidades sociais impuseram ao indivduo so introjetadas no ego e conver-tem-se na sua conscincia. Esta introjeo no ego que se transforma em conscincia se d segundo uma dinmica social de obedincia, submetida fora ideal dada pela sociedade administrada, e no mais individual. Para Freud, o Eu no fixo, lgico e estvel, e nesta flexibilidade, ilogicidade e instabilidade do Eu que as relaes de utilidade do mercado encontram espao para atuar no processo de sujeio do Eu nesta flexibilidade do indivduo que o controle social age segundo suas dinmicas do modelo econmico e satisfao de suas necessidades. De acordo com Herbert Marcuse:

    Tais necessidades tm contedo e uma funo sociais determinados por foras externas sobre as quais o indivduo no tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfao des-sas necessidades so heternomos. Independentemente do quanto suas necessidades se possam ter tornado do prprio indivduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condies de existncia; independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua satisfao, elas continuam a ser o que eram de incio produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige represso. (Marcuse, 1982, p. 26)

    A satisfao do ego que procura afastar tudo que desprazer, na teoria freudiana, encontrava-se no interior

    do indivduo e fundamenta os princpios dos distrbios patolgicos. Para Herbert Marcuse, os fundamentos dos

    distrbios patolgicos no se explicam pelo individual e sim pelo social. Entretanto, Marcuse, apesar de evidenciar que

    a teoria tornou-se obsoleta, ultrapassada no sentido individual, explicita sua verdade de forma ainda mais necessria

    ao nvel social. Enquanto que ao nvel do indivduo e voltada para a terapia (adequando o indivduo ordem), esta

    teoria parece inadequada; pode ela servir apenas para auxiliar na compreenso dos processos psquicos individuais

    nas sociedades industriais avanadas. Isto porque nestas sociedades, onde j no existe a figura do pai - concepo

    terica da psicanlise -, constitui-se um modelo heternomo em relao ao indivduo. Nas sociedades de massas, o

    sujeito histrico foi substitudo pela produtividade. Isto :

    Esta a verdadeira fonte de dominao que, uma vez posta em movimento, atingiu um estgio no qual se movimenta a si mesma. ela que determina os valores sociais a serem seguidos porque estabelece uma relao com os indivduos. Visando satisfazer as necessidades bsi-cas dos seres humanos, com o tempo criou-se necessidades suprfluas que precisam ser consumidas e que tal consumo se apresenta como satisfao compensatria das energias pulsionais erticas, fazendo-se acreditar que se livre por poder obter bens (basta ver as propagandas da Honda, Coca-cola, Volkswagen, por exemplo, em que se associa a ideia de liberdade apenas adquirindo tal produto!). (Cabral, online)

    A felicidade no encontra plenitude na sociedade civilizada. , O indivduo, para Freud, o de-tentor da liberdade, o que se contrape ao social. A liberdade do indivduo no constitui um dom da civilizao. Ela foi maior antes da existncia de qualquer civilizao, muito embora, verdade, naquele ento no possusse, na maior parte, valor, j que dificilmente o indivduo se achava em posio de defend-la.. Segundo Freud(2001, p.21), a ideia de liberdade um conceito histrico que no encontra abrigo na contemporaneidade.

    Como apontado anteriormente, Herbert Marcuse afirma a obsolescncia da psicanlise por ela no dar conta de explicar o indivduo nas sociedades industriais. O indivduo no est submetido ordem do pai, o Complexo de dipo no mais se evidencia na figura do pai que tinha por papel a trans-misso do Princpio de Realidade, em que coagia, submetia, punia o sujeito, tornando-o obediente. Nas sociedades modernas, os filhos so desde cedo terceirizados ao processo social, ingressam

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    na educao coletiva, so submetidos e subjugados figura do pai. Este, que interditava e orientava, perdeu a fora. Sem a figura forte do pai, a teoria psicanaltica perde seu sentido, segundo Herbert Marcuse. Mas a perde, como apontamos, quando se atm na questo da compreenso do indivduo, e prope que a mesma se sustenta para compreender a sociedade.

    A teoria da civilizao de Freud, que se desenvolveu na viso do processo histrico dos me-canismos mentais dos indivduos, no se justifica, no encontra elo com a realidade. Portanto, no existe sujeito dominante, no h aquele que interdita, que impe processos morais, que era at en-to centralizada na figura do pai. Esse vazio substancial que a figura paterna torna-se onipresente d lugar assim a uma massa amorfa que oscila entre produtos fungveis, que necessita de lderes e estes, de forma secundria (j que dominante o sistema produtivo que atende a lgica do modelo econmico) so tambm fungveis e suprfluos. Estes lderes, ou grupos aos quais certa massa cole-tiva pertence, estabelecem vnculos sentimentais com seus indivduos e a identificao do Ego com o pai substituda pela identificao com o Ego coletivo A desindividualizao se caracteriza pelo coletivo. O problema consiste no desequilbrio entre as duas pulses. Se se altera a pulso de Eros, sobrecarrega-se a de Thnatos, gerando uma grande quantidade de energia agressiva destrutiva acumulada. Esta redirecionada para um inimigo arquetipicamente construdo. o risco da irracion-alidade, que forma as sociedades afluentes, onde a manuteno do sistema alienado de produo se d pela represso camuflada que ocasiona o estado beligerante de carter permanente e em que outros agentes sociais so formadores de comportamento. A indstria cultural assume papel prepon-derante de perpetuao do sistema alienado de produo, contribui para a ideia de liberdade a qual est sustentada na alienao, na falta de autonomia, na sujeio e heteronomia.

    Enfim, a formulao da teoria psicanaltica de Freud buscou compreender a constituio psquica do sujeito, e o desenvolvimento desta a base da psicanlise. O indivduo se constitui a partir do id, ego e superego, e o Princpio de Prazer transforma-se em Princpio de Realidade1. Credita-se a esses dois prazeres a base da interpretao do aparelho psquico. O indivduo se desenvolve, aprende a examinar a realidade, diferenciar o bom e o mau, torna-se sujeito consciente, cristaliza-se, e a figura do pai, ao qual na psicanlise cabe interditar, punir e contribuir para o amadurecimento psquico do sujeito e subjugao dos instintos humanos, so a base da civilizao. Portanto, o indivduo, segundo Freud, constitui-se no seio da famlia, e so nas relaes primrias em que se constata a gnese do denominado indivduo.

    Herbert Marcuse no acredita mais nas relaes primrias e aponta a obsolescncia da psicanlise. Em outras palavras, o indivduo no mais originrio da relao intrafamiliar, a sociedade administrada substitui e age para a constituio do indivduo, que s pode ser compreendido ao se compreender o ser social. a partir da fragmentao do indivduo que a sociedade administrada aglutina e encontra condies frteis para que o capitalismo monopolista possa agir e manter os processos que atendam seus interesses ideolgicos. A sociedade administrada aniquila as possibilidades de autodeterminao, suprime ideais de autonomia e liberdade, e todos seu mecanismos visam dar sustentao ao iderio consumista, plastificado numa sociedade que valores morais, ticos esto submetidos chancela do capitalismo monopolista como nico e hegemnico no processo de dominao.

    Portanto, o indivduo no contexto da teoria marcusiana s entendido enquanto quantificao, ou seja, enquanto um entre tantos, mas no no sentido daquilo que o constitui enquanto personali-dade, pois a compreenso da sociedade em que a psicanlise encontra utilidade e o indivduo no tem lugar ele massificado, alienado e heternomo.

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    Consideraes finais

    Partimos da elaborao da teoria psicanaltica da formao do indivduo - no de forma apro-fundada - e no buscamos uma nova elaborao conceitual, mas nos atemos no que diz respeito aos aspectos subjetivos da formao do indivduo no contexto da teoria freudiana. Tendo como pilar de sustentao o Complexo de dipo, foi possvel chegarmos at a afirmao da sua obsolescncia enquanto mecanismo de compreenso do individuo no contexto da Teoria Crtica sustentada na viso marcusiana.

    Herbert Marcuse aborda a relao entre as estruturas psquica (conceito presente na teoria freudiana) e social, sob a tutela e manipulao do capitalismo monopolista, aniquilando as individuali-dades, massificando e administrando as conscincias, aludindo falsa ideia de liberdade, inserindo o indivduo numa coletividade abstrata. neste sentido que a psicanlise, enquanto terapia do indivduo, tornou-se obsoleta no que se refere constituio do indivduo, dando lugar a uma sociedade que massifica, administrada pelo controle cientfico. Segundo Herbert Marcuse, urgente compreender o indivduo a partir do social e no o contrrio. Freud revelou at que ponto os prprios indivduos internalizam e reproduzem inconscientemente a sociedade repressiva5.

    No se trata de tema original, porm a atividade relevante ao tentar cristalizar a compreenso da realidade numa sociedade em constante transformao. O artigo buscou compreender os aspectos que permeiam a teoria marcusiana na compreenso do indivduo na sociedade administrada, e pre-tende-se com ingresso nos estudos strictu sensu aprofundar as leituras dos conceitos empregados.

    Notas(Endnotes)1 Vale ressaltar que em muitos casos essas duas foras atuam combinadas.

    5 Mostrando como as instituies ossificadas das sociedades industriais sabotam a realizao de suas prprias potencialidades, Marcuse contava com uma revoluo diferente, que partisse da libido e empregasse conscientemente a energia instintiva como explosivo para a transformao objetiva e subjetiva do mundo: Nessa luta, razo e instinto podem unir-se.

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    RefernciasCABRAL, J. F. P. A obsolescncia da psicanlise e suas consequncias para a noo de indivduo

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    In: MARCUSE, H. Cultura e Psicanlise. So Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 112-139. ROUANET, S. P. Teoria Crtica e Psicanlise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.

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    DIREITOS HUMANOS E SUA EVOLUO HISTRICA: A NECESSIDADE DA SUPERAO DO EGOSMO

    Imerson Alves Barbosa1

    Vivemos em tempos difceis, assustados em meio a tantos fatos que ameaam a existncia e a dignidade humana, tornando a to sonhada paz como algo distante de ser concretizado. Mas tal sonho possvel e deve ser perseguido sem cessar.

    Resgatar os aspectos histricos dos Direitos Humanos, o surgimento das principais declaraes e o que cada uma delas tem como objetivo.

    Este trabalho tem por intuito demonstrar algumas lutas que deram origem aos direitos humanos at ento existentes, que em sua essncia buscam a paz. A importncia necessria do tema escol-hido est em tornar mais conhecida os direitos que dizem respeito liberdade do ser humano, sua dignidade tendo em vista que uma vez comprometidos geram guerras, responsveis pela inibio da almejada paz.

    No h dvida que vivemos em tempos complicados, que ameaam a existncia humana, assim como tambm apavora o pelo temor do fim de suas vidas e a paz to sonhada pela humanidade esta cada dia mais distante. Bobbio (1992, p. 25) afirma que [...] o problema grave de nosso tempo, com relao aos direitos do homem, no so mais o de fundament-los, e sim o de proteg-los.

    A relevncia do tema escolhido provm do fato da necessidade de trazer tona as origens dos Direitos Humanos, partindo de sua evoluo compreendendo sua importncia, uma vez que se faz necessrio a conscientizao acerca do perigo de no se valorizar as questes inerentes dignidade da pessoa humana, vida do ser humano e as questes necessrias para a continuidade da existncia humana no mundo em que vivemos.

    No que diz respeito origem dos direitos humanos, muito se discute sobre sua origem e surg-imento. H os que defendem seus primrdios no antigo Egito e Mesopotmia, com o aparecimento dos direitos individuais do homem no terceiro milnio a.C., onde j eram previstos alguns mecanismos para proteo individual em relao ao Estado.

    O fato que na Antiguidade, inicialmente, no havia nenhuma previso normativa para regular a vida das pessoas em sociedade. Dessa maneira, cada pessoa defendia seus interesses da forma que melhor lhe convinha. Assim sendo, a desproporcionalidade se mostrava como uma caracterstica

    1 Possui especializao em Filosofia para Professores do Ensino Fundamental e Mdio pela Universidade Estadual Paulista Jlio de mesquita Filho (Unesp). mestre e atualmente professor da rede pblica do estado de So Paulo.

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    patente. No entanto, normas surgiram para regulamentar a conduta das pessoas em sociedade. Vamos verificar a presena dos Cdigos de Ur-Nammu , Hamurabi, a Lei das 12 Tbuas etc.

    O Cdigo de Hamurabi foi elaborado por volta do sculo XVIII a. C., e pode ser considerado como a primeira codificao a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens, tais como a dignidade, a vida, a propriedade, a honra. O Cdigo foi elaborado pelo rei Hamurabi para regular a vida na sociedade Assrio-Babilnica, e antes disso no havia regras na sociedade para que pudesse determinar aos seus integrantes o segmento. Podemos verificar de forma bastante clara que o Cdigo de Hamurabi tinha apenas clusulas cruis, infamantes, desumanas, e a sanso mortal era largamente empregada, a pena capital no raro era aplicada em uma srie de hipteses.

    No entanto, preciso pensar em defesa dos direitos humanos com os olhos da Antiguidade. Se imaginarmos em tutela de interesses fundamentais com os olhos da modernidade, no vamos conseguir enxergar o surgimento dos Direitos Humanos naquele perodo. O Cdigo de Hamurabi, portanto, trazia uma srie de regras que as pessoas deveriam seguir, mas importante salientar que as pessoas eram tratadas de maneira diferente, observando a classe social que ocupava e o Cdigo de Hamurabi estabeleceu trs diferentes classes sociais.

    A classe mais alta era denominada awelum, em que as pessoas, se eventualmente descumpris-sem as normas do Cdigo de Hamurabi, deveriam configurar com o patrimnio eventual violao. A essas pessoas, poucas vezes eram aplicadas sanses cruis.

    Existia uma classe intermediria, denominada muskenum. Essa classe, por vezes, tinha integrantes que violavam as normas do Cdigo de Hamurabi. Algumas vezes, penas cruis eram aplicadas, ou havia necessidade de exposio do patrimnio pelo infrator.

    A ltima classe da sociedade assrio-babilnico, considerada a classe mais baixa, a classe wardum. A esta classe pertenciam os escravos marcados, que apesar dessa condio tinham dire-ito propriedade. A essa classe, as penas eram cruis, infamantes, de morte, e eram amplamente empregadas.

    importante notar que na Antiguidade outra regra que se mostrou muito importante foi a Lei das Doze Tbuas. Essas Leis constituam em um conjunto de regras que serviu para regular a vida do povo Romano. Essas regras so assim intituladas porque a Lei das Doze Tbuas era composta por doze peas de madeiras, e foram colocadas diante do frum romano para que todas as pessoas da sociedade conhecessem o seu contedo. As Leis das Doze Tbuas levavam em considerao o princpio de igualdade entre todos os integrantes da sociedade, ao contrrio do que acontecia com o Cdigo de Hamurabi, segundo o qual as pessoas no eram tratadas de forma diversa, em virtude da classe social que ocupava. Dessa maneira, possvel memorar que o principio da igualdade, preceito to importante inerente aos Direitos Humanos teve seu surgimento expressivo a partir desse instante.

    A Lei das Doze Tbuas tem destaque na histria porque alguns sculos depois houve a compi-lao pelo Rei Justiniano. Compilao esta que acaba chegando aos dias atuais, influenciando muito o pensamento filosfico e as normas hodiernamente. Somem-se a isso colaborao dos gregos, que protagonizaram as ideias acerca da necessidade de igualdade e liberdade do homem, concedendo aos cidados participao poltica na sociedade grega.

    Na Idade Mdia, houve um maior desenvolvimento na proteo dos Direitos Humanos, com destaque para o surgimento da Magna Carta no territrio onde hoje se encontra a Inglaterra em 1215. Esse diploma surgiu inicialmente para finalizar a contenda existente entre o rei Joo Sem Terra e o Papa Inocncio III. Para ser mais claro, havia uma controvrsia entre a Monarquia e a Igreja, e podemos verificar que, a partir da Magna Carta, tornou-se um dever do Rei submeter-se Lei, o que ainda no

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    acontecia at ento. A Magna Carta tambm trouxe consigo a previso de proteo de direitos no presentes na histria, como a existncia do Habeas Corpus. Alm disso, tambm possvel afirmar a previso do direito de propriedade e tambm do devido processo legal.

    necessrio ressaltar que a Antiguidade e a Idade Moderna no trouxeram ainda uma proteo suficiente para os Direitos Humanos, sendo evidente que quando se fala em aparecimento de uma primeira dimenso dos Direitos Humanos, verificamos na Magna Carta o seu nascedouro. No en-tanto, possvel afirmar que um enorme desenvolvimento dos Direitos Humanos surgiu com a Idade Moderna, perodo compreendido entre 1453, a tomada de Constantinopla pelos turcos-otomanos at 1789 com a Revoluo Francesa.

    Em 1648, especificamente no territrio onde hoje se encontra a Alemanha, foi elaborado um Tratado bastante importante, denominado Mnster, e outro denominado Osnabrck, que conjunta-mente compem o Tratado de Vestflia. Esse Tratado foi muito importante para os Direitos Humanos por uma razo muito simples, e houve pela primeira vez na histria a concepo de Estado Moderno em que se tornou necessria a presena de elementos objetivos, territrio bem definido ou governo soberano e elementos subjetivos como o reconhecimento para sua existncia Alm disso, o Tratado de Vestflia tambm apresentava o conceito de soberania at ento inexistente, e acabou por mostrar a sua face como uma renncia hierarquia baseada na religio. Podemos, ento, concluir que com esse Tratado, cresceu a proporo de proteo aos Direitos Humanos, mas no foram esses os nicos Tratados que podem ser destacados.

    A Idade Contempornea ir sem dvida marcar a existncia dos direitos humanos, o que aconte-cer a partir do sculo XVIII at meados do sculo XX, que ter como incio a Revoluo Francesa, em 1789, com os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e posteriormente, com as Declaraes que foram promulgadas defendendo e garantindo os direitos humanos. A conquista alcanada por meio dos movimentos revolucionrios do liberalismo, havidos de modo especial na Frana, que eleva a pessoa humana condio de cidado, com direitos iguais e deveres, e fez surgir a figura do Esta-do, ente capaz de fazer garantir estes direitos. A Declarao de Independncia dos Estados Unidos da Amrica, de 1776 essencial na compreenso desses aspectos, pois, a partir desta Declarao, todos os Estados americanos instituram um sistema prprio, baseado num conjunto de princpios sendo que estes estabeleceram verdadeiros instrumentos de proteo aos direitos humanos. Em 1789, surgiu a Declarao de Direitos do Homem e do Cidado. Esse diploma surgiu na Frana e foi amplamente influenciada pela Revoluo Estadunidense e pela prpria declarao de direitos do povo da Virginia, que estabeleceu que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido, preconizando que todo ser humano titular de direitos fundamentais.

    As previses ali consignadas eram inditas como, por exemplo, a presena de um Estado laico, sem religio oficial e, portanto a previso especfica do principio de legalidade, estado de inocncia, relevante para a tutela dos Direitos Humanos.

    No sculo XX, constatamos a presena de duas Constituies que muito influenciam as dis-posies de direito interno de muitos Estados. A Constituio mexicana, de 1917, a e alem, de 1919, so diplomas importantes porque elegeram e elevaram a mesma condio de direitos fundamentais os interesses trabalhistas e previdencirios como nenhum outro diploma ainda havia feito. necessrio destacar que foram elaborados no mbito da Primeira Grande Guerra, no caso da Constituio Alem especificamente, logo aps a assinatura do Tratado de Versalhes, um acordo internacional que levou a Alemanha a runa, pois foi obrigada a ressarcir todos os Estados vencedores da Primeira Grande

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    Guerra. Isso trouxe um grande prejuzo aos Direitos Humanos, visto que surgiu o Ultranacionalismo no interior da Alemanha, capitaneado pelo lder Adolf Hitler.

    Em 1923, houve um levante, considerado golpe de Estado, cujo lder era Hitler. Esse golpe foi frustrado, Hitler foi preso, julgado e condenado, mas no cumpriu mais de nove meses de pena. Du-rante o tempo em que esteve preso, criou sua obra que o tornou popular - Minha Luta [Mein Kampf2]. A popularidade de Hitler cresceu tanto na dcada de 1930, que em 1933 j tinha enorme poder. As-sim, com a morte do presidente alemo Paul von Hindenburg, Hitler assumiu definitivamente o posto de lder mais importante da Alemanha. O exrcito fez a ele um juramento de lealdade pessoal. Sua ditadura baseava-se em suas posies como Presidente do Reich (chefe de estado), Chanceler do Reich (chefe de governo), e Fhrer (chefe do Partido Nazista). Segundo o princpio Fhrer, Hitler colocava-se fora do estado de direito e passou a determinar as questes polticas. Ele reestruturou seus exrcitos, e para o primeiro passo para a Segunda Grande Guerra faltava muito pouco.

    Em primeiro de setembro de 1939, Hitler promove a invaso da Polnia, e com isso a Segunda Grande Guerra Mundial se desenvolveu. Nesse contexto, os Direitos Humanos foram frontalmente atingidos, o que terminaria somente em 2 de setembro de 1945, com a capitulao do Japo a bordo do encouraado Missouri, na Baa de Tquio.

    A partir da, inmeras organizaes internacionais e intergovernamentais surgiram com o objetivo de tutelar os Direitos Humanos. Faz-se necessrio destacar o surgimento da ONU (Organizao das Naes Unidas)