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Universidade Candido Mendes
Pós-Graduação Lato-Senso em Psicomotricidade
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOMOTRICIDADE À CLÍNICA
PSICOLÓGICA COM MULHERES VÍTIMAS DA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Autora: Vanessa Coutinho da Costa
Orientadora: Profª Maria Poppe
Rio de Janeiro
RESUMO
O presente trabalho se dedica a demonstrar, através de pesquisa
bibliográfica, que a utilização de vivências psicomotoras enriquece a terapia
de mulheres vítimas da violência doméstica, uma vez que a dor vivenciada
se reflete não apenas subjetivamente, como também objetivamente, no
corpo.
Assim sendo, esta pesquisa conclui que o trabalho terapêutico que
integra corpo e afeto é o mais indicado para o apoio a esta clientela.
ÍNDICE
Pág.
Introdução ............................................................................... 03
Capítulo 1 Breve histórico da psicomotricidade ................... 04
Capítulo 2 Considerações sobre a violência masculina ....... 09
Capítulo 3 A importância do apoio psicoterapêutico às
mulheres vítimas da violência doméstica ............ 12
Capítulo 4 Como a psicomotricidade pode enriquecer o
trabalho terapêutico com mulheres vítimas da
violência doméstica .......................................... 16
4.1 A imagem corporal feminina .......................... 16
4.2 A psicomotricidade como auxiliar na terapia de
de mulheres vítimas da violência doméstica ....... 22
Conclusão .............................................................................. 24
Bibliografia .............................................................................. 25
INTRODUÇÃO
O interesse pelo tema da psicoterapia de apoio à mulheres vítimas da
violência doméstica vem de longa data. Apesar disto, nunca havia
desenvolvido um trabalho diretamente voltado a esta causa.
Há pouco tempo, surgiu a oportunidade de coordenar alguns grupos,
constituídos apenas por mulheres, não especificamente em situação de
risco. Durante os encontros, eram utilizados vivências nas quais o corpo era
o instrumento da livre expressão. Confesso que, inúmeras vezes, me
surpreendi com os resultados, e as mensagens que aquelas mulheres, de
vidas, idades e aspirações tão diversas extraíram de seus corpos em
movimento.
Naturalmente, o velho interesse pela clínica de mulheres espancadas
ressurgiu, e, junto com ele, a indagação: “um grupo terapêutico que busque
trabalhar o resgate da auto-estima em mulheres vítimas da violência
doméstica pode se beneficiar da introdução de vivências psicomotoras em
seus atendimentos?”. Esta pesquisa busca responder à tal indagação,
iniciando com um breve histórico da psicomotricidade, passando por
algumas considerações a respeito da violência masculina e um capítulo que
trata da importância do apoio psicoterapêutico às vítimas de violência. Por
fim, esclarece as razões pelas quais a psicomotricidade pode realmente
constituir-se em uma técnica de extrema importância no enriquecimento da
terapia à esta clientela.
CAPÍTULO 1
BREVE HISTÓRICO DA PSICOMOTRICIDADE
O termo “psicomotricidade” surge a partir do discurso da medicina,
mais precisamente da neurologia, por ter sido necessário, no final do séc.
XIX, que se nomeassem as regiões do córtex cerebral situadas além das
zonas motoras.
Porém, a pré-história da psicomotricidade começa no surgimento do
homem que fala, uma vez que, ao apropriar-se do discurso verbal, falará
também de seu corpo.
O caminho deste corpo discursivo e simbólico (objeto da
psicomotricidade) está marcado pelas diversas concepções que o homem
vai construindo sobre seu corpo. A própria palavra “corpo” provém de
“garbhas” que, em sânscrito, significa embrião, de “karpós” que, em grego,
significa fruto, semente, envoltura, e de “corpus” que, em latim, significa
tecido de membros, envoltura da alma, embrião do espírito.
A psicomotricidade se funda no momento em que o corpo deixa de
ser apenas carne e transforma-se em um corpo falado. A história da
psicomotricidade caminha paralela à história do corpo. De que forma
responder à perguntas como: “como explicar as sensações do corpo?”, “qual
a relação entre corpo e alma?”, “corpo e alma são unidos?”.
Diversas respostas surgem. Desde a arte, com o teatro grego, onde o
corpo se transforma em “órgão do espírito” até a filosofia, com Platão, que
considerava o corpo como morada transitória de uma alma imortal.
René Descartes, no séc. XVII estabelece alguns princípios, entre os
quais a dicotomoia corpo-espírito. O corpo seria apenas uma coisa externa,
que não pensa, e o espírito, a parte pensante, totalmente diferenciada das
necessidades do corpo.
“É evidente que eu, minha alma, pela qual sou o que sou, é completa
e verdadeiramente diferente do meu corpo, e pode ser ou existir sem ele.”
(RENÉ DESCARTES, Mediaciones metafísicas, México, Porrúa, 1979, p.
84).
Porém, neste mesmo texto, parece que afirmação duvida de si
mesma:
“A natureza ensinou-me também por essas
sensações de dor, de fome, de sede, etc., que não
habito meu corpo, mas que estou unido a ele tão
estreitamente e de tal modo confundido e misturado
com o meu corpo, que compomos um todo. Se assim
não fosse, quando meu corpo está ferido eu não
sentiria dor, dado que sou uma coisa que pensa, e
perceberia a dor como o piloto percebe pela sua vista o
dano de seu barco; quando meu corpo necessitasse
comer ou beber, limitar-me-ia a entendê-lo
simplesmente, até mesmo sem ser advertido pelas
confusas sensações da fome e da sede, porque estas
sensações não são, com efeito, mais do que certas
maneiras confusas de pensar, que dependem e provêm
da união e da mistura do espírito e do corpo”. (RENÉ
DESCARTES, Meditaciones Metafísicas, p. 85).
O dualismo cartesiano marca, por um lado, a separação e por outro,
contraditoriamente, a união de corpo e alma.
No séc. XIX, com o desenvolvimento e as descobertas da
neurofisiologia, começa-se a constatar que várias disfunções podem se
manifestar sem que a lesão possa ser localizada claramente.
São descobertos “distúrbios da atividade práxica” que não estão
circunscritos a uma área do sistema nervoso. O esquema que determinava
para cada sintoma uma lesão focal correspondente já não podia explicar
algumas patologias. A necessidade da medicina de explicar certos
fenômenos clínicos nomeia, pela primeira vez, a palavra psicomotricidade,
em 1870.
As primeiras pesquisas em psicomotricidade têm um enfoque
eminentemente neurológico.
Dupré, em 1909, definiu a síndrome da debilidade motora, composta
de sincinesias, paratonias e inabilidades, que não podem ser atribuídas a
uma lesão extrapiramidal.
É de extrema relevância para a história da psicomotricidade a figura
de Dupré, pois ele afirma que a debilidade motora é independente de um
possível correlato neurológico. Ele rompe com os pressupostos da
correspondência entre a localização neurológica e as perturbações motoras.
Assim, a psicomotricidade separou-se da neuropsicopatologia do
movimento.
Henry Wallon, em 1925, fala do movimento humano como
fundamento da construção do psiquismo. Enquanto Dupré estuda a
correlação entre motricidade e inteligência, Wallon relaciona motricidade e
caráter. Para ele, o conhecimento, a consciência e o desenvolvimento geral
da personalidade não são isolados das emoções.
“Estas primeiras relações de similitudes e
diferenças entre a debilidade motora e a debilidade
mental, somadas à contribuição de Wallon relativa à
ação recíproca entre movimento, emoção; indivíduo e o
meio ambiente, fazem o delineamento de um primeiro
momento do campo psicomotor: é o momento do
paralelismo e, portanto, da relação (tentativa de
separação do dualismo cartesiano) entre o corpo,
expressado basicamente no movimento, e a mente,
expressada no desenvolvimento intelectual e emocional
do indivíduo”. (ESTEBAN LEVIN, “A clínica
psicomotora – o corpo na linguagem” – p. 25)
Em 1935, Edward Guilmain inicia a prática da psicomotricidade, que
estabelece um exame psicomotor, continuando as perspectivas teóricas
abertas por Wallon.
Guilmain determina a prática do que chamou reeducação
psicomotora, com exercícios provenientes do estudo da neuropsiquiatria
infantil, na intenção de reeducar a atividade tônica, a atividade de relação e
o controle motor.
Parece situar-se aí a origem clínico-pedagógica da prática
psicomotora, levada à prática através de exercícios para crianças instáveis
ou com debilidade motora, ou seja, crianças com dificuldades em seu
funcionamento motor, e que não comandavam seu corpo de maneira eficaz,
o que era um fato gerador de problemáticas sociais. Aí pode-se estabelecer
uma correlação entre a debilidade mental e a debilidade motora.
Nos anos de 1947 e 1948, Julián de Ajuiaguerra e R. Diatkine
redefinem “debilidade motora”, considerando-a uma síndrome, com suas
características peculiares. A partir daí, a psicomotricidade se diferencia e
adquire autonomia.
“Já na década de 70, diferentes autores (J. Bergès, R. Diatkine, B.
Joivet, C. Launay, S. Lebovici) definem a psicomotricidade como uma
motricidade em relação.” (LEVIN, p. 27)
Começa a se delinear a diferença entre reeducação psicomotora e
terapia psicomotora que se ocupa com o caráter mais abrangente do
conceito de “corpo” e, a partir daí, valoriza mais os aspectos afetivos.
“É por esta via que vários autores da psicanálise
como S. Freud, M. Klein, D. Winnicott, W. Reich, P.
Schilder, J. Lacan, M. Mannooni, F. Dolto, Samí Ali,
entre outros, começam a ser tomados e citados de um
modo fragmentado pelos psicomotricistas, a partir
desta preocupação que se lhes apresenta e em apoio
às suas hipóteses sobre a vida emotiva.” LEVIN, p. 28)
Assim, com uma abordagem afetiva baseada na psicanálise, são
introduzidos vários conceitos (inconsciente, transferência, imagem corporal,
etc), que marcam novas perspectivas no campo psicomotor.
Historicamente, a partir de 1900 até os dias atuais, a evolução do
campo de atuação da psicomotricidade se dá de acordo com diferentes
cortes epistemológicos, que vão modificando sua ação clínica.
Inicialmente, encontramos as práticas reeducativas determinadas pelo
paralelismo mental-motor. O primeiro corte epistemológico procura superar o
dualismo cartesiano a partir desta correspondência.
A neuropsiquiatria é a grande influência desta clínica, que se baseia
no aspecto motor e no corpo como ferramenta de trabalho para o
profissional de reeducação, que se propõe a consertá-lo.
A seguir, no segundo corte epistemológico, surgem contribuições do
âmbito psicológico, e o corpo passa a instrumento de construção da
inteligência humana. O foco de interesse já não recai mais sobre o motor,
mas sobre o corpo que se move.
Assim sendo, já não falamos de reeducação, mas de terapia, que se
ocupa de um corpo em movimento que se desloca, constrói a realidade,
sente e cujos afetos se manifestam tonicamente.
“Assim, o tônus muscular, as posturas, o gesto, a emoção
(representante da ordem psíquica do corpo) seriam produções do corpo que
poderiam ser abordadas num enfoque terapêutico psicomotor.” (LEVIN, p.
31)
O psicomotricista, nesta abordagem, dirige seu olhar para três
dimensões do corpo: uma instrumental, uma cognitiva e outra tônico-
emocional.
O terceiro corte epistempológico marca uma virada fundamental, com
a contribuição da teoria psicanalítica. O olhar do psicomotricista se centra
num sujeito com seu corpo em movimento.
“Já não se trata mais de uma globalidade, de
uma totalidade, mas de um sujeito dividido, escondido,
comum corpo real, imaginário e simbólico: este terceiro
corte epistemológico viria fundar uma clínica
psicomotora centrada no corpo de um sujeito
desejante, e não mais numa terapêutica fundamentada
em objetivos e técnicos.” (LEVIN, p. 31)
Em síntese, ao longo da história da psicomotricidade, há as seguintes
transições: do motor ao corpo, e do corpo ao sujeito com um corpo em
movimento. Sujeito e corpo já não se confundem. E, justamente por isto, e
por não poderem ser desamarrados um do outro, é que surge a
psicomotricidade.
CAPÍTULO 2
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA MASCULINA
Até o séc. XVIII, não havia um modelo de sexualidade à semelhança
do vigente hoje. O que dominava era o “one-sex-model”, no qual a mulher
era compreendida como sendo um homem invertido. Desta forma, o modelo
de perfeição anatômica, simbolizado elo corpo do homem, a regra fálica
demonstrava a idéia de superioridade masculina e inferioridade feminina.
Freud se utiliza deste pensamento para a construção de sua teoria da
sexualidade, em especial na aquisição da identidade sexual.
“Com o modelo de perfeição do corpo do macho, todas as outras
características dependerão desta forma. A relação entre reprodução, sexo e
orgasmo todas serão seguidas conforme o modelo masculino.” (SÉRGIO
GOMES DA SILVA).
Na passagem para o séc. XIX, o conceito passa a ser o de “two-sex-
model”, e de homem invertido, a mulher passa a inverso do homem, seu
complemento. Mesmo assim, a inferioridade feminina se mantém, com o
universo da mulher restrito ao âmbito doméstico, não por opção, mas por
imposição, enquanto o homem se dirige para a amplitude do mundo social.
Assim, a mudança de concepção acabou por simplesmente ratificar a
supremacia masculina.
“Da mesma forma como alguns homens costumam se descrever hoje,
ser homem no séc. XIX significava não ser mulher, e sobre todas as
hipóteses jamais ser homossexual.” (SERGIO GOMES DA SILVA
Segundo Sócrates Nolasco,
“no panorama de transição para o
individualismo, inicia-se um processo de
descaracterização dos valores pertencentes ao
patriarcado, bem como da representação social
masculina a ele associada. Encontramos ainda, neste
trajeto, a diminuição da importância dos argumentos
teóricos que no campo das ciências humanas e sociais
articulam prática social com sexo biológico. Diante
disto, podemos pensar que o sujeito empírico passa a
se envolver em situações de violência como um
recurso para encontrar par si representação social que
de algum modo lhe confira sentido e significado à sua
vida”. (NOLASCO, p. 61/62)
Ainda segundo este autor, os jornais brasileiros dos anos 50 já
mencionavam os meninos que gazeteavam aulas, num comportamento que,
se por um lado era contrário à moral vigente, por outro foi se tornando uma
referência masculina, ajudando a criar a figura do “bad boy”. A partir daí,
muitos meninos foram, cada vez mais, buscando envolvimento em situações
que os fizessem integrar o grupo dos “bad boys” e, assim, sentirem-se
identificados e reconhecidos em sua masculinidade.
A violência é estimulada de várias maneiras durante o processo de
socialização dos meninos, tornando-se elemento para a construção de certo
tipo de subjetividade masculina que se sustenta no conceito de viribilidade,
bem como em sua relação com a própria violência.
A identidade é conquistada, em grande parte, através da
interiorização de ideais sociais. Porém, muitas vezes, o determinante
biológico se confunde com estes ideais sociais e, na ausência de uma
reflexão acerca do significado de ser homem, é fácil acreditar que aquilo que
é socialmente aprendido é, na verdade, biologicamente determinado.
“A maneira como cada sujeito interpreta as
exigências sociais depositadas sobre a representação
masculina, somada ao arranjo emocional que ele adota
para sua vida e aos recursos internos de que dispõe,
pode aproximá-lo ou afastá-lo do percurso de
consolidação de seu sentimento de identidade.”
(NOLASCO, p. 71)
O controle sobre a parceira é uma característica da maneira pela qual
algumas culturas se organizam, na relação entre o social e o pessoal.
Existem dados que apontam diferenças entre homens e mulheres no que se
refere à violência. Uma delas é o fato de que os homens que usam de
violência extrema contra as mulheres, utilizam-na como uma forma de
domínio sobre o comportamento sexual de sua parceira. Outra, é que a
utilização da agressão diz respeito a questões de resgate da honra. Também
é característica masculina utilizar a agressão como caminho para a
resolução de conflitos.
Vários autores são categóricos ao afirmar que a violência homicida é,
predominantemente, masculina. Mesmo quando o homem se constitui em
vítima de uma homicida, este é, em geral, o desfecho de uma longa história
de agressões violentas pelas quais a mulher anteriormente passara.
“Daly e Wilson abordaram a violência masculina
como uma questão de gênero e não de classe social,
como ordinariamente ocorre. Embora miséria e
violência possam estar próximas, os motivos que levam
os homens a se envolver em situações de violência
exigem uma reflexão mais profunda, que inclua o modo
como foi produzida e vem se mantendo a memória
masculina, nas sociedades contemporâneas. Em seus
estudos encontramos os homens predominantemente
como agressores, com o vínculo social fundado na
intimidade sexual.” (NOLASCO, p. 121)
CAPÍTULO 3
A IMPORTÂNCIA DO APOIO PSICOTERAPÊUTICO ÀS
MULHERES VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
“Dia útil ele bate
Dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor
Na presença dele me calo
Eu de dia sou sua flor
Eu de noite sou seu cavalo.”
(Francisco Buarque de Holanda)
Muitas vezes romantizada pelo teatro e pela literatura, a violência na
relação entre homem e mulher acaba por ser encarada como algo que,
embora desagradável, pode ser aceitável, e até faz parte do jogo sexual
entre os parceiros.
O que é visto, através de relatos em consultórios e delegacias, nas
poucas vezes em que estes chegam até lá, e pela veiculação de notícias
pela imprensa, é que a violência e a dominação que o homem julga possuir
sobre a parceira, não raro resultam em homicídio.
Há alguns anos surgiram as delegacias especializadas no
atendimento à mulher. Estas foram criadas a partir dos inúmeros
constrangimentos pelos quais era obrigada a passar a mulher que, enfim, se
decidia a dar queixa contra seu parceiro nas delegacias tradicionais, onde
predominavam policiais homens, que sugeriam que alguma razão para a
violência ela provavelmente dera.
Mais uma vez, a parceria sexual não é vista como uma relação
igualitária. Existe um dominador e um dominado e, entre os direitos do
dominador, está o de castigar o dominado pelos motivos que considerar
pertinentes, desde uma suspeita de traição até a insatisfação com a refeição
ou o cuidado com a casa. Ou mesmo por motivo algum.
Na contra-mão disto, a parte subjugada parece acreditar que não
sobreviveria sem o dominador. É comum em depoimentos a fala de “ruim
com ele, pior sem ele” ou “mulher sem homem, lá onde eu moro, ninguém
respeita”. São os ecos ainda muito presentes, da idéia da superioridade
masculina, abordada no capítulo anterior.
“Aquele a quem amamos diretamente ou pelo
avesso, corresponda ao nosso apelo ou dele se
esquive, tem sempre a estrutura de um objeto, pois
empresta seu corpo para que nossas fantasias sejam
ali depositadas”. (FERNANDA OTONI DE BARROS)
Neste contexto de violência doméstica, é comum que à própria
violência sejam somados o descrédito e a inversão dos papéis vítima-
agressor, o que acaba por alimentar a idéia da legitimidade do ato.
Este pensamento não está restrito às camadas da sociedade
culturalmente mais carentes, embora pareça que a violência recorrente seja
mais rara em relações nas quais a mulher é cônscia de seus direitos e
economicamente independente. Para ilustrar isto, reproduzo a fala de uma
empresária, 34 anos, terceiro grau completo, por ocasião da tentativa de seu
ex-marido de forçá-la a uma relação sexual, chegando a feri-la fisicamente:
“não consigo sentir raiva dele. Agora já passou. Eu sempre confiei tanto
nele... não acredito que tenha querido me machucar.”
Em alguns casos, parece se misturar à vergonha, uma negação de
que aquela pessoa, tão próxima, possa ser um agressor. A vítima se
defende psiquicamente da forte carga de decepção e confusão, e até da
culpa, ora por acreditar que possa ter provocado a situação, ora por
perceber-se violentada por alguém em quem depositou confiança.
O apoio psicoterapêutico é, então, muito importante. Parece ainda
mais favorável que este apoio se dê em um contexto de grupo, onde outras
mulheres falarão de situações semelhantes. Segundo Marin Liebmann, “as
razões para a escolha do trabalho em grupo podem ser assim resumidas:
1. Muito do aprendizado social é feito em grupos; portanto, o trabalho
grupal fornece um contexto pertinente para a prática deste
aprendizado.
2. Pessoas com necessidades semelhantes podem apoiar-se
mutuamente e sugerir soluções para problemas comuns, ajudando
umas às outras.
3. Os integrantes de um grupo podem aprender com o feedback dos
outros: são necessárias duas pessoas para enxergar uma.
4. Os integrantes de um grupo podem experimentar novos papéis, ao
verem qual é a reação do outro diante deles (modelagem de papéis) e
podem ser apoiados ou reforçados nisso.
5. Os grupos podem ser catalisadores para o desenvolvimento de
recursos e habilidades latentes.
6. Os grupos são mais adequados para algumas pessoas, por exemplo,
àquelas que consideram intensa demais a intimidade do trabalho
individual.
7. Os grupos podem ser mais democráticos, compartilhando o poder e as
responsabilidades.
8. Alguns terapeutas consideram o trabalho grupal mais satisfatório do
que o individual.
9. Os grupos podem ser econômicos, permitindo que um especialista
auxilie diversas pessoas ao mesmo tempo.” (Liebmann, p. )
Para algumas mulheres, romper com o ciclo vicioso de uma parceria
violenta significa romper com diversas coisas, necessitando, inclusive,
afastar-se de sua casa, de seus pertences, e se manter em abrigos com
endereço sigiloso. E estas mulheres, muitas vezes, contam com o apoio
terapêutico para conseguirem levar até o fim a decisão que tomaram.
Naturalmente, nem todas as mulheres conseguem perceber o grau de
adoecimento contido em uma relação baseada em agressão e submissão.
Mas existem aquelas que desejam romper e buscam ajuda, apesar do medo,
da vergonha e da incerteza quanto às conseqüências de seus atos. Ao
primeiro grupo resta a tentativa, por parte de grupos que militam pelas
causas das minorias, de conscientização. O segundo grupo, o das mulheres
que reuniram afetos suficientes para uma tomada de decisão, mesmo
encontrando-se confusas e inseguras quanto às suas escolhas, sua auto-
imagem e seu futuro, com a auto-estima severamente abalada, sem dúvida
se beneficiará de uma vivência psicoterapêutica. Esta vivência será mais
uma possibilidade de auxiliar estas mulheres na tarefa de voltar a olhar para
si mesmas, e sedimentar a escolha pela mudança do papel que desejam
desempenhar nas relações afetivas.
CAPÍTULO 4
COMO A PSICOMOTRICIDADE PODE ENRIQUECER O
TRABALHO TERAPÊUTICO COM MULHERES
VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
4.1. A imagem corporal feminina
Os trabalhos experimentais sobre a noção corporal feminina
datam, predominantemente de 40 anos para cá. A obra de
Schilder, que se constitui em uma vasta exposição de dados
fisiológicos, psicológicos e sociológicos sobre esta questão, é
fundamental nestes estudos.
Schiler pesquisa a respeito da catexe corporal, juntamente
com Jourard e Secord. Inicialmente, estes autores propuseram
uma operacionalização do conceito de catexe, originalmente
relativo à distribuição da libido. Os pesquisadores propõe que a
“catexe corporal” pode ser medida pelo grau de satisfação que se
tem com as várias partes e funções corporais, e relacionaram-na
a outras variáveis da personalidade. Testaram três hipóteses: a
primeira dizia que os sentimentos para com o corpo comparam-se
aos sentimentos sobre o “eu”; na segunda, os sentimentos
negativos sobre o corpo associam-se a ansiedade, que envolve o
medo da dor, da doença e de qualquer tipo de injúria corporal. Na
terceira, os sentimentos negativos sobre o corpo estão
correlacionados aos sentimentos de insegurança envolvendo toda
a personalidade.
“As mulheres estudadas, entretanto,
valorizaram mais intensamente os seus corpos,
independentemente da direção desta catexe.
Assim, elas obtiveram índices mais altos, tanto
na direção positiva quanto na negativa,
respondendo em menor proporção aos pontos
neutros do que os homens. Uma resposta
tipicamente neutra é: não tenho sentimentos
específicos com relação a tal parte. Podemos
nos perguntar se as mulheres têm uma
presença mais consciente dos seus corpos do
que os homens.” (PENNA, p. 30)
Qual a importância do corpo no ajustamento total de uma
mulher? Daquelas estudadas por Jourard e Secord, nenhuma
admitiu estar satisfeita ao comparar-se com os padrões
internalizados. Em muitos casos, notou-se que a segurança de
uma mulher estava condicionada ao grau pelo qual ela se
percebe atraente para os homens, independente de seus outros
valores pessoais. Portanto, para estas mulheres, não estar
“bonita” pode constituir-se em grave fracasso, levando à perda de
auto-estima e insegurança.
E como o ideal parece sempre tão difícil de atingir, é
provável que muitas mulheres, atualmente, sintam-se ansiosas,
culpadas e frustradas, lutando tiranicamente contra sua própria
natureza através de dietas, cosméticos e exercícios.
Segundo Jourard, há uma correlação entre o grau de
atratividade e a disponibilidade ao contato direto. As pessoas que
não se consideravam atraentes eram muito menos tocadas pelos
outros do que aquelas cuja autopercepção era satisfatória.
“O contato corporal funciona como uma
confirmação do ser humano, da sua presença
real neste mundo e da aceitação desta
presença pelos outros. A aceitação do outro se
manifesta através do contato, que pode ser
visual, tátil ou ambos, incluindo também o nível
da palavra. A atitude das pessoas com relação
ao próprio corpo está relacionada com as
atitudes de seus pais em relação aos corpos
deles próprios e ao corpo do sujeito. Isto é,
espera-se que uma pessoa tenda a apreciar a
sua aparência se ela acredita ou sente que os
seus pais a apreciam. Estas afirmações, bem
conhecidas em clínica, têm certa
correspondência com as informações trazidas
pelas pesquisas de Jourard. A hipótse é que,
se os pais manifestam a aceitação do corpo de
seus filhos através do contato físico, então as
crianças podem chegar a experimentar a si
mesmas como agradáveis, tornando-se
satisfeitas com a sua aparência pessoal.”
(PENNA, p. 32)
A experiência de ser tocado fornece a consciência da
corporalidade. Em geral se vivencia tamanho distanciamento da
realidade física que várias áreas corporais são esquecidas,
exceto quando despertam pela dor. Laing desenvolveu uma
interessante concepção a este respeito, mostrando que a
insanidade é um reflexo de alienação da própria encarnação, um
estar-fora-de-si, e ao mesmo tempo estar fora da realidade.
“Na base dos pressupostos de Laing,
podemos interpretar os dados de Jourard e
Secord, de modo a perceber que somente uma
pessoa que tem relações, as quais incluam
contatos e carícias, terá um corpo plenamente
experienciado e um self totalmente encarnado.”
(PENNA, p. 33)
Quando a mulher busca, incessantemente, modificar seu
corpo para submetê-lo a padrões supostamente ideais está,
freqüentemente, traindo a si mesma para submeter-se ao outro.
Este outro é percebido como o homem, mas sabe-se que grande
parte das imagens internalizadas sobre os valores do físico são
transmitidas e perpetuadas pelas gerações anteriores das
próprias mulheres (mães, avós, etc.).
Analisemos o antigo costume chinês de enfaixar os pés das
meninas, buscando mantê-los pequenos a custa de sua
deformação. Esse procedimento era realizado pelas mulheres
adultas em crianças, que não tinham como questioná-lo ou
defender-se, e consagrou-se como um fator importante para o
padrão de beleza feminino.
“Entretanto, a mutilação dos pés
representa, simbolicamente, a submissão da
mulher frente ao desejo masculino, o ser
considerada como objeto em troca do poder de
seduzir. Além da beleza dos pés, para os
padrões da época, a mulher adquiria um tipo de
andar bamboleante, considerado sexualmente
mais atraente. Podemos conjecturar como se
sentiriam essas mulheres, privadas do seu
apoio natural, a andarem cambaleantes,
fragilmente femininas.” (PENNA, p. 37)
Outro costume absurdamente violento é a ablação parcial
ou total dos órgãos sexuais de meninas africanas, num ritual
realizado pelas mulheres mais velhas.
Do Senegal ao Fêmem do Sul, mais de 30 milhões de
mulheres são, hoje, mutiladas. As ablações podem ser de quatro
tipos, variando entre a excisão do prepúcio clitoridiano à ablação
total dos clitóris, ou ainda dos pequenos lábios. A forma mais
completa consiste na retirada do clitóris e pequenos lábios e na
posterior sutura do que resta dos grandes lábios, deixando
apenas um orifício para que escoem a urina e o sangue
menstrual. Ao casar, a mulher é descosturada pelo marido, que
pode solicitar que novamente a costurem no caso de ele
necessitar ausentar-se por prolongados períodos.
Estas práticas, em sua maioria, não são acompanhadas de
anestesia ou procedimentos de higiene. São executados pela
“matrona” da aldeia, que se utiliza até de cacos de vidro para
fazer os cates. As mulheres são operadas para não serem muito
excitáveis sexualmente, o que garantiria a sua submissão ao
homem. A matrona é investida de poder pela comunidade e
perpetua o conceito que permeia o imaginário do grupo: que a
mulher é inferior ao homem.
“A heterogeneidade dos costumes nos
revela que não podemos falar do corpo da
mulher sem delinearmos o cenário social e
cultural correspondente. Através do seu
impulso adaptativo ao meio externo, as
mulheres tanto foram levadas a vestir os
espartilhos, que comprimiam e deformavam o
seu tórax, quanto as reduzidas tangas de hoje,
que o Brasil se orgulha de ter exportado para o
mundo.” (PENNA, p. 40)
Miller dedicou-se ao estudo das questões femininas dentro
da psicanálise. Para este autor, a psicologia da mulher deve
considerá-la em sua integralidade, e não como um ser mutilado,
castrado. O desenvolvimento feminino difere muito do masculino
e o ponto fundamental deste desenvolvimento é que ele se
constrói e se mantém através de ligações e associações com o
outro. Muitas vezes, para uma mulher, o rompimento de uma
relação é visto não apenas como a perda de um companheiro,
mas como uma perda de identidade, o que pode se confirmar
pelo número significativamente maior de mulheres, em relação
aos homens, que entram em depressão após uma separação.
“Considerando o ponto de partida do
impulso feminino para a unificação e para a
criação de laços, podemos ter um horizonte
aberto para compreender os comportamentos
femininos. O seu modo de ser e de parecer, a
sua maneira de relacionar-se com o próprio
corpo dependem do seu grau de consciência
desse impulso. Ele é um motivo básico na
psicologia feminina. Orienta-a de dentro, como
se fora o tema central de uma sinfonia,
sensivelmente presente, apesar de todas as
variações.” (PENNA, p. 44)
4.2. A psicomotricidade como auxiliar na terapia de
mulheres vítimas da violência doméstica
“O mais importante e bonito do mundo é isto, que as
pessoas não estão sempre iguais; não foram terminadas – mas
que elas vão sempre mudando.” (GUIMARÃES ROSA)
Acreditar que as pessoas possam mudar aquilo que as
violenta, que as machuca, que as faz sofrer. O terapeuta precisa
acreditar neste potencial do ser humano, o de sair de uma zona
de sofrimento, mesmo quando o sofrimento é tudo o que
conhece.
Muitas vezes, as mulheres que vivenciam relações
baseadas em violência, assistiram suas mães ou irmãs passarem
por isto, ou foram, elas mesmas, vítimas de violência, cujos
autores eram pessoas afetivamente importantes.
Quando as mulheres buscam ajuda, seja policial, seja
jurídica, seja terapêutica, geralmente foi preciso romper com uma
série de circunstâncias: desde a vergonha e a culpa até o medo
de perder a casa, os filhos e a vida.
É indiscutível que esta mulher precisa ser acolhida, e
passar por um processo terapêutico que a auxilie a compreender
as razões que a levaram a uma relação baseada em violência, e
o que pretendem construir dali para frente. Normalmente, a auto-
imagem desta mulher está profundamente abalada.
Nas mulheres vitimizadas, a dor é afetiva, mas também é
física. As marcas são internas, mas muitas vezes, as marcas
externas (cicatrizes, queimaduras) seguirão por toda a vida. É
necessário que a terapia possa “ouvir” também este corpo
sofrido, que precisa ser resgatado, revisto, visto de outra forma. A
psicomotricidade, que dá voz aos movimentos corporais e
autoriza o corpo a se expressar pode enriquecer a terapia.
A psicomotricidade trata de um corpo que se move, e se
move porque deseja. Tem um olhar abrangente sobre o ser
humano, integrando aspectos psíquicos e aspectos somáticos.
“As vicissitudes do movimento corporal
de um sujeito nos levam a perguntar pela
complexa trama de relações significantes que
se tecem nas primeiras etapas da vida.”
(LEVIN, p. 23)
Ao proporcionar um espaço de confiança para que este
corpo “fale”, o psicomotricista pode resgatar no sujeito os
caminhos afetivos pelos quais passou, e ressignificá-los. E pode,
no espaço protegido da terapia, ajudar as pessoas a reaprender a
confiar e a considerar seus corpos dignos de respeito e afeto.
CONCLUSÃO
Ao concluir a pesquisa realizada com o capítulo que fala sobre a
imagem corporal feminina, e as atrocidades realizadas contra a mulher em
todas as épocas, em vários locais do mundo, parece evidente que o
terapeuta que possuir conhecimentos técnicos que lhe permitam incluir o
corpo no processo terapêutico ganha uma importante possibilidade.
Com o respeito e a ética pertinentes, associados ao apoio vindo do
grupo, resgatar e ressignificar este corpo sofrido pode ser o primeiro passo
de um resgate mais amplo, total e abrangente.
BIBLIOGRAFIA
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LEVIN, Esteban. “A clínica psicomotora – o corpo na linguagem”. Ed.
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