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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE JULIANA DE SÁ FRANÇA ATÉ COMO MARCADOR DISCURSIVO E OPERADOR ARGUMENTATIVO EM TEXTO ORAL-DIALOGADO CASCAVEL PR 2011

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE CENTRO DE …tede.unioeste.br/bitstream/tede/2504/1/Juliana de Sa... · 2017-07-10 · universidade estadual do oeste do paranÁ

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ - UNIOESTE CENTRO DE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LINGUAGEM E SOCIEDADE

JULIANA DE SÁ FRANÇA

ATÉ COMO MARCADOR DISCURSIVO E OPERADOR ARGUMENTATIVO EM TEXTO ORAL-DIALOGADO

CASCAVEL – PR 2011

JULIANA DE SÁ FRANÇA

ATÉ COMO MARCADOR DISCURSIVO E OPERADOR ARGUMENTATIVO EM TEXTO ORAL-DIALOGADO

Dissertação apresentada à Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade. Linha de Pesquisa: Processos Lexicais, Retóricos e Argumentativos. Orientadora: Profa. Dra. Aparecida Feola Sella.

CASCAVEL – PR 2011

JULIANA DE SÁ FRANÇA

ATÉ COMO MARCADOR DISCURSIVO E OPERADOR ARGUMENTATIVO EM TEXTO ORAL-DIALOGADO

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em Letras e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – Nível de Mestrado, área de Concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

______________________________________________ Profa. Dra. Aparecida Feola Sella

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Coordenadora

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________________ Profa. Dra. Esther Gomes de Oliveira

Universidade Estadual de Londrina – UEL Membro efetivo (convidado)

______________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Sebastião Ferrari Soares

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Membro efetivo (da Instituição)

______________________________________________ Prof. Dr. Jorge Bidarra – UNIOESTE

Membro efetivo (da Instituição)

______________________________________________ Profa. Dra. Aparecida Feola Sella

Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE Orientadora

Cascavel, 21 de março de 2011

Dedico este trabalho à minha mãe, a quem devo tudo o que sou e é a maior responsável por essa conquista. A meu pai (in memorian), pois sei que, onde quer que esteja, sempre me acompanha e guia meus passos.

AGRADECIMENTOS

À minha mãe, minha maior incentivadora, sempre presente e atuante em

minha vida. Obrigada por ser meu maior exemplo de luta, integridade, amor,

confiança e carinho.

À minha orientadora, professora Cida, sinônimo de profissionalismo e

competência. Obrigada pelo tempo dispensado em atendimentos e pelo privilégio de

compartilhar ideias.

À minha entrevistada, sem a qual não seria possível a realização deste

estudo. Obrigada por atender tão solicitamente ao meu pedido de gravação da

entrevista.

À professora Sanimar Busse, minha eterna e querida mestre, que, ainda na

graduação, confiou em meu potencial e me incentivou a participar do processo de

seleção do Mestrado.

Ao professor Alexandre Sebastião Ferrari Soares e à professora Márcia

Sipavicius Seide, por contribuírem, durante o Exame de Qualificação, com valiosas

considerações para o melhoramento da pesquisa.

Aos membros da Comissão Examinadora pela gentileza em lerem o

trabalho e por aceitarem o convite para participar da Banca de Defesa.

Ao corpo administrativo do Colégio Adventista de Cascavel, especialmente

a coordenadora pedagógica Edicléia Beackmann, que, por diversas vezes,

compreendeu a necessidade de ausentar-me do trabalho em função do Mestrado e

sempre me incentivou a prosseguir na caminhada.

A todo o corpo docente do Mestrado em Letras. Muito Obrigada!

“Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra [...]”

(Carlos Drummond de Andrade)

FRANÇA, Juliana de Sá. Até como marcador discursivo e operador argumentativo em texto oral-dialogado. 2011. 110f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Sociedade) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel.

RESUMO

Atualmente, os estudos linguísticos propõem análises a partir de uma abordagem que considera a língua em uso. A presente pesquisa recorre a este posicionamento porque está voltada para análises de falas gravadas e transcritas, revelando sondagem de fatos atrelados ao funcionamento real da língua. O corpus é composto pela transcrição de uma entrevista realizada com uma mulher trilíngue, falante de português, espanhol e guarani. Dentre as possibilidades de estudo do corpus, optou-se pela análise do vocábulo até, devido à frequência com que aparece na fala da entrevistada e às diferentes funções que assume no discurso. Para o desenvolvimento das análises, tomou-se como aporte teórico os pressupostos da Semântica Argumentativa, na qual propõe-se que a argumentatividade encontra-se inscrita na própria língua. Também fundamentam o trabalho, estudos pautados no desenvolvimento da visão ducrotiana no Brasil, em que se concebe que na língua há mecanismos que podem ser acionados para direcionar os sentidos dos enunciados. Os operadores argumentativos, desse modo, são considerados estratégias ativadas, explicitamente, na estrutura textual, pelos enunciadores para atingir determinados fins. As análises também são norteadas pelos estudos do NURC no que diz respeito aos marcadores discursivos, entendidos como unidades que buscam dar coesão às sequências discursivas. Consideram-se, ainda, os postulados da Análise da Conversação e desenvolvimentos no Brasil acerca da questão. Além de exercer as funções de operador argumentativo e marcador discursivo, as análises de até apontaram para uma possível flutuação entre as duas funções desempenhadas pelo termo. É possível, portanto, afirmar que não há uma regularidade no que se refere às funções desempenhadas por tal unidade, devendo-se considerar, no processo de interpretação, o contexto enunciativo. PALAVRAS-CHAVE: até, operador argumentativo, marcador discursivo.

FRANÇA, Juliana de Sá. Até como marcador discursivo e operador argumentativo em texto oral-dialogado. 2011. 110f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Sociedade) – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel.

RESUMEN Actualmente, los estudios de lenguaje proponen sus análisis desde un enfoque que considera el lenguaje en uso. El estudio se vuelve a análisis de hablas grabadas y transcriptas, demonstrando hechos del funcionamiento real de la lengua. El corpus está compuesto por una transcripción de una entrevista con una mujer trilingüe, hablante de portugués, español y guaraní. Entre las posibilidades para el estudio del corpus, se optó por analizar la palabra até debido a la frecuencia con que aparece en el discurso de la entrevistada y a las diferentes funciones asumidas por ésta en el habla. Para el desarrollo del análisis, se usó la Semántica Argumentativa, en la cual la argumentación está en la lengua. También apoyan el trabajo, estudios basados en el desarrollo de la visión ducrotiana en Brasil, según la cual se cree que existen mecanismos en el lenguaje que pueden ser activados para orientar los sentidos de los enunciados. Los operadores argumentativos, por lo tanto, son considerados como estrategias activadas explícitamente en la estructura textual para lograr ciertos fines. Los análisis también se guían por los estudios de NURC acerca de los marcadores del discurso, que son vistos como unidades que tratan de dar cohesión a las secuencias del discurso. Se consideraron, aún, los preceptos del Análisis de la Conversación y desenvolvimientos en Brasil. Además de ejercer las funciones de operador argumentativo y de marcador discursivo, los análisis de até apuntaron una flotación entre las dos funciones desempeñadas por el término. El análisis de los fragmentos, en los cuales aparece el término até, permite decir que no hay una regularidad en lo que respecta a las funciones desempeñadas por esta unidad, debéndose considerar el contexto de enunciación en el proceso de interpretación.

PALABRAS CLAVE: até, operadores argumentativos, marcadores discursivos.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 10

2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONVERSAÇÃO ................................................ 14

2.1 Falando um pouco sobre Análise da Conversação .............................................14 2.2 O Projeto de Norma Urbana Culta (NURC)..........................................................17 2.3 Conceituando a conversação ............................................................................. 19 2.4 A construção do texto falado .............................................................................. 23 2.4.1 O turno conversacional.................................................................................... 26 2.4.2 O tópico discursivo .......................................................................................... 27 2.4.3 O par dialógico pergunta-resposta .................................................................. 28 2.5 A interpretação dos enunciados em uma conversação....................................... 30 2.6 A conversação na pesquisa................................................................................. 31

3 O PLANEJAMENTO LOCAL DA FALA: MARCADORES DISCURSIVOS X OPERADORES ARGUMENTATIVOS ..................................................................... 35

3.1 Marcadores discursivos ...................................................................................... 36 3.2 Operadores argumentativos ............................................................................... 43 3.2.1 As orientações nos enunciados ....................................................................... 44 3.3 Considerações sobre o campo teórico................................................................ 51

4 ANÁLISE DAS FUNÇÕES DE ATÉ NO CORPUS ............................................. 52

4.1 Considerações sobre o vocábulo até ................................................................. 53 4.2 Até como marcador discursivo ........................................................................... 59 4.3 Até como operador argumentativo ..................................................................... 67 4.3.1 Até hierarquizando argumentos em escalas ................................................... 68 4.3.2 Até denotando concessão ............................................................................... 76 4.4 Casos de difícil classificação: aparente dualidade nas funções assumidas por até.............................................................................................................................. 78

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 83

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 86

APÊNDICES ..............................................................................................................91

APÊNDICE A – Instrumento de coleta de dados.......................................................92 ANEXOS ...................................................................................................................93 ANEXO 01 – Normas de Transcrição ANEXO 02 – Transcrição da entrevista

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1 INTRODUÇÃO

Os estudos linguísticos mais recentes tendem a propor análises que levem

em conta a língua em uso, ou seja, centram as atenções no estudo da língua como

processo. Nessa perspectiva, as funções dos elementos linguísticos não são

concebidas de forma estanque, mas dinâmica, considerando-se o constante

processo de ressignificação por que passam.

Nesse contexto, tomam relevo as pesquisas que se propõem a analisar o uso

da língua portuguesa em uma situação real de interação linguística. Tendo como

objeto de estudo um corpus autêntico, é possível lançar o olhar sobre diferentes

estruturas linguísticas ativadas pelo falante em uma dada situação de interação

verbal.

Levando em conta as possíveis formas de interação, Dionísio (2006) comenta

que o texto oral encerra uma prática humana mais comum, dado o destaque que

possui nas relações interpessoais. Segundo a autora, a análise desse tipo de texto

tem sido amplamente empregada, não só com o objetivo de conhecer a organização

estrutural dos enunciados, mas também de observar as estratégias conversacionais

adotadas pelos sujeitos nos processos de interação e comunicação cotidianas.

Tendo em mente essa orientação, esta dissertação objetiva verificar as

marcas linguísticas presentes na transcrição de entrevista realizada com uma

imigrante paraguaia que reside no Oeste do Paraná, há mais de 25 anos e que

trabalha como professora de espanhol no Ensino Fundamental.

A entrevista gravada primou pela conversação natural, conforme preconiza a

Análise da Conversação e pesquisas desenvolvidas no interior do Projeto de Norma

Urbana Culta (NURC). A esse respeito, Fávero e Andrade (1998) observam que o

objetivo das entrevistas é deixar o entrevistado falar livremente, pois o interesse do

documentador deve centrar-se no modo como a língua é usada e não no que o

interlocutor diz.

Como se trata de um estudo focado em uma única entrevista, seguiu-se, em

parte, o que está disposto em estudos da Análise da Conversação. Também se

consideraram as observações de Lüdke e André (1986), uma vez que se trata, de

certa forma, de um estudo de caso.

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Dentre as possibilidades de estudo do corpus, optou-se pela análise do

vocábulo até devido à frequência com que aparece na fala da entrevistada e às

diferentes funções que assume no discurso.

Ressalta-se que o termo “função” não é empregado nesta pesquisa como um

conceito marcado pelo desempenho estanque de um determinado papel, mas

relaciona-se a um termo e ao seu uso em contexto, isto é, alude à noção de que

cada elemento linguístico possui papel não só sintático, mas também significativo no

discurso. Esse posicionamento implica considerar que o uso pode modificar a função

de um dado vocábulo, no caso desta dissertação, fala-se especificamente do

vocábulo até.

Parte-se da hipótese de que, conforme o contexto, o termo pode

desempenhar diferentes funções. Desse modo, independentemente da

categorização tradicional que receba, a palavra até atua segundo papéis diversos

que assume na língua.

Para o desenvolvimento das análises, tomou-se como aporte teórico os

estudos de Ducrot (1981, 1987, 1989), que postula que a argumentatividade

encontra-se inscrita na própria língua. Na perspectiva do teórico, a orientação

argumentativa dos enunciados relaciona-se ao acionamento de determinados

morfemas, que implicam uma gradação de força em prol de uma determinada

conclusão.

Os estudos de Koch (2000, 2002, 2004, 2006a) também fundamentam o

trabalho desenvolvido, pois a autora considera que, no processo de interação,

busca-se a adesão dos interlocutores. Além disso, a estudiosa compartilha a visão

ducrotiana de que na língua há mecanismos que podem ser acionados para

direcionar os sentidos dos enunciados.

Tais elementos que imprimem valor argumentativo aos enunciados são

concebidos pela Semântica Argumentativa como marcas dotadas de relevância ao

se considerar o evento de enunciação. Os operadores argumentativos, desse modo,

são considerados estratégias ativadas, explicitamente, na estrutura textual, pelos

enunciadores para atingir determinados fins. Considera-se, nesta pesquisa, que tais

recursos linguísticos podem, ainda, revelar traços específicos de um falante trilíngue

diante de suas crenças e de suas experiências com as culturas brasileira e

paraguaia.

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Esta dissertação também é norteada pelos estudos do Projeto de Norma

Urbana Culta (NURC), no que diz respeito aos marcadores discursivos, entendidos

como unidades que buscam dar coesão às sequências discursivas. As pesquisas

empreendidas são importantes ferramentas para a compreensão da interação

humana por meio da linguagem e oferecem subsídios para o estudo dos marcadores

discursivos. Segundo Gonçalves (2006), por meio dos marcadores discursivos, é

possível observar como os interlocutores negociam entre si, como protegem suas

faces, formulam os enunciados e as intenções que permeiam a conversação. Trata-

se, portanto, de perceber como se organiza, em termos de planejamento, a atividade

conversacional. Consideraram-se, ainda, para o desenvolvimento das análises, os

postulados de Marcuschi (1991), Risso, Silva e Urbano (2006) e Koch (2006b)

acerca da questão, bem como dissertações e teses que abordam o tema.

A análise dos recortes em que aparece o termo até permite afirmar que não

há uma regularidade no que se refere às funções desempenhadas por tal unidade,

devendo-se considerar, no processo de interpretação, o contexto enunciativo.

Quanto às contribuições deste trabalho, espera-se que sirva para ampliar o

estudo dos operadores argumentativos e dos marcadores discursivos, com o intuito

de auxiliar professores de língua portuguesa na aquisição de conhecimentos que

sirvam de suporte ao trabalho docente, como, por exemplo, no momento de orientar

a produção de textos de caráter argumentativo. Além disso, pretende-se colaborar

para o entendimento das estruturas da língua de forma contextualizada e funcional,

principalmente com relação a marcas que podem orientar leituras acerca das

intenções, expectativas e crenças dos usuários da língua, o que poderia ser medido

por meio de marcadores discursivos.

Pesquisas assinalam que mais da metade dos falantes de espanhol está

inscrita em um contexto de contato com outras línguas. Em uma região de fronteira,

como a do Oeste do Paraná, segundo Aguilera (2008a), ocorre uma intensa

movimentação de imigração e migração, suscitando intensas trocas linguísticas e

culturais. Observa-se que tanto os marcadores discursivos como os operadores

argumentativos têm sido largamente estudados pela Análise da Conversação e pela

Semântica Argumentativa, respectivamente. Entretanto, conforme Gonçalves (2006),

tais estudos têm sido realizados em textos orais produzidos por falantes, em

situações de uso da língua materna, sendo poucas as pesquisas que se ocupam da

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análise e da descrição do funcionamento dos mecanismos linguísticos em questão

atualizados por falantes cuja língua materna não é o português.

Essa situação de trânsito e proximidade torna possível a inserção dos

imigrantes em um contexto de readaptação e adequação, no qual necessitam

aprender a viver em uma nova realidade social, cultural e linguística. Quanto à

questão linguística, observa-se que o papel desempenhado por alguns elementos

linguísticos pode ser revelador de traços de acomodação a uma dada cultura e

mesmo de formas de se lidar com essa acomodação. Dessa maneira, acredita-se

que este trabalho pode contribuir para os estudos sobre o tema, acrescentando

novos dados às pesquisas já realizadas, e para subsidiar outras na área.

A dissertação apresenta-se descrita em quatro capítulos, sendo esta

introdução o primeiro deles. No segundo, apresenta-se um panorama sobre a

conversação, sua organização e a forma como é considerada nesta pesquisa. O

terceiro capítulo enfoca o suporte teórico das análises, a definição e as

características dos marcadores discursivos, bem como focaliza as noções de

argumentação na língua, de operadores argumentativos e de escala argumentativa.

No quarto, e último, capítulo, traçam-se breves considerações sobre o vocábulo até

e propõem-se as análises dos recortes em que se observa a ocorrência desse

elemento. Adverte-se que o estudo empreendido não teve a pretensão de esgotar

as possibilidades de análise do termo em questão, mas sim de apontar

possibilidades de interpretação para o vocábulo.

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2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONVERSAÇÃO

Neste capítulo, encontram-se alguns conceitos referentes aos estudos do

texto oral-dialogado. Nesse sentido, apresenta-se um panorama da abordagem

preconizada pela Análise da Conversação. Em seguida, busca-se conceituar o que é

conversação, elencando suas características principais, sua organização e sua

estruturação. Por fim, apresenta-se o papel da conversação, considerado no

desenvolvimento da pesquisa.

2.1 Falando um pouco sobre Análise da Conversação

Segundo Marcuschi (1991), o interesse pela sistematização do estudo do

fenômeno conversacional tem suas origens na década de 60, quando a Análise da

Conversação ensaia os primeiros passos ligados a estudos sociológicos, mais

especificamente, à Etnometodologia, cujo objeto de pesquisa é constituído por

atividades práticas do cotidiano. O autor explica que

[...] a Etnometodologia, fundada por Garfinkel no início dos anos 60, é ligada à Sociologia da Comunicação e à Antropologia Cognitiva e se preocupa com as ações humanas diárias nas mais diversas culturas. Trata da constituição da realidade no mundo do dia-a-dia e investiga a forma de as pessoas se apropriarem do conhecimento social e das ações (daí o uso do radical etno); diz respeito à forma metódica de como os membros de uma sociedade aplicam aquele seu saber sociocultural (daí o radical metodologia) (MARCUSCHI,

1991, p. 7-8).

Na Etnometodologia, os pesquisadores devem permanecer atentos aos

fenômenos interacionais, de modo a observar as relações estabelecidas e as

conexões estruturais existentes no processo interativo, ou seja, os aspectos

essenciais na organização do texto conversacional.

Segundo Dionísio (2006), uma das principais diferenças entre as abordagens

sociológicas da conversação e a abordagem feita pela Análise da Conversação (AC)

refere-se ao fato de as primeiras procurarem responder questões do tipo “como nós

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conversamos?”, enquanto a segunda questiona “como a linguagem se estrutura para

favorecer a conversação?”.

Nas primeiras décadas de seu surgimento, de acordo com Marcuschi (1991),

a AC privilegiava estudos formais da conversação. Essa fase inicial baseava-se no

princípio de que as interações utilizam determinados mecanismos organizacionais,

passíveis de análise e descrição.

A partir dos anos 1970, o foco das investigações “ultrapassa a análise das

estruturas e atinge os processos cooperativos presentes na atividade

conversacional: o problema passa da organização para a interpretação.”

(MARCUSCHI, 1991, p. 6). Os estudos passam, então, a se ocupar da observação,

análise e descrição de fenômenos da linguagem atrelados a fatores

sociolinguísticos, culturais e pragmáticos para o sucesso da interação entre os

envolvidos.

Essa vertente da linguística pode, por conseguinte, ser considerada como

portadora de uma natureza holística na medida em que, conforme Petri (2001), seu

objeto de estudo são dados verbais empíricos analisados em seu contexto de

ocorrência.

Nesse sentido, a noção de interação torna-se essencial para o

empreendimento de pesquisas que versam sobre práticas conversacionais.

Um conceito fundamental na AC é o de interação, entendida como um jogo complexo de expectativas recíprocas no qual os sujeitos constituem sua identidade no sistema e pelo sistema interpessoal e nas ações sociais; um jogo complexo no qual a realidade social se constitui na intercompreensão (PETRI, 2001, p. 83).

Os conceitos utilizados pela AC, segundo Petri (2001), não implicam

restrições no significado do termo “conversação”, que pode se referir a todos os

textos orais, produzidos espontaneamente em situações de interação social. Desse

modo, podem ser objeto de análise tanto produções verbais oriundas de situações

de comunicação cotidianas informais, como aquelas provenientes de interações

orais relativas ao universo de trabalho, como a linguagem oral de um tribunal, por

exemplo.

Quanto às condições de produção, a conversação pode ser dividida em duas

modalidades: a artificial e a natural. A primeira representa a conversação

espontânea, em que o planejamento ocorre no momento da interação verbal. Já a

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segunda corresponde à conversação fílmica, por exemplo, em que há um

planejamento discursivo previamente elaborado.

Petri (2001) indica que os estudos empreendidos pela Análise da

Conversação consistem em pesquisas empíricas sobre discursos produzidos em

situações naturais, que são colhidos e armazenados por meio de dispositivos

eletrônicos. Posteriormente, o material coletado é transcrito e analisado,

observando-se as estruturas ativadas no desenvolvimento da comunicação, a

interação dos participantes, as pressuposições e os significados que se podem

verificar no discurso.

Da transcrição de uma comunicação verbal ocorrida no quadro de uma interação natural, buscam-se obter conhecimentos que ultrapassam as análises fonológicas, sintáticas, semânticas ou mesmo aqueles relativos à boa formação gramatical ou textual. Através da AC, procura-se entender, por exemplo, como a tarefa de conduzir uma conversação é realizada (PETRI, 2001, p. 81).

Ao longo dos anos, os analistas da conversação empreenderam estudos

sobre vários aspectos da atividade conversacional, tais como o estabelecimento de

tópicos conversacionais, o par dialógico pergunta-resposta, hesitações, repetições,

silenciamentos, referenciação, correções, parafraseamentos, entre outros.

Para a pesquisa empreendida, o par pergunta-resposta assume papel

relevante, uma vez que, para a coleta do corpus, a conversação foi motivada por

questionamentos feitos pela pesquisadora acerca da vida da participante. Para

Fávero, Andrade e Aquino (2006, p. 133), as perguntas e as respostas são

elementos cruciais na interação humana, sendo “difícil imaginar uma conversação

sem elas”. O par dialógico associa-se, então, aos princípios de cooperação da

conversação, tendo em vista que perguntas carecem de respostas.

Diante do exposto, a tomada de turno1 assume papel essencial para o

desenvolvimento conversacional, pois é a partir da distribuição deles entre os

envolvidos que ocorre a conversação.

Sobre a atuação dos interlocutores na constituição do texto verbal, Koch

(2006a) salienta que as intenções do enunciador para atingir determinado fim devem

ser consideradas na análise conversacional. Devido ao caráter argumentativo da

1 Pode-se definir turno, na Análise da Conversação, como aquilo que um falante faz ou diz enquanto

tem a palavra, incluindo também a possibilidade de silêncio.

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língua, sabe-se que o falante deseja produzir reações em seu interlocutor por meio

do texto verbal que constrói. De acordo com Petri (2001), o locutor se antecipa a

possíveis interpretações por meio da escolha de seus enunciados, considerando

para isso os possíveis sentidos que podem ser atribuídos e aquilo que ele considera

saber sobre as convenções válidas para seu interlocutor. O que a Análise da

Conversação considera, na realidade, não é a intenção do locutor, mas a intenção

que o interlocutor pode atribuir àquele ato. Para Petri (2001), é

[...] importante, também, para a AC, a compreensão do sistema complexo constituído pela identidade das pessoas, pelos papéis que desempenham, pela interação simbólica e pela própria comunicação que não subsistem sem uma estrutura reflexiva e sem o sistema da língua (PETRI, 2001, p. 91-92).

Assim, conforme Dionísio (2006), a Análise da Conversação, ao pesquisar a

maneira como os interlocutores realizam seu planejamento textual

momentaneamente em relação aos demais envolvidos na interação verbal, aponta a

utilização dos itens gramaticais como práticas sociais que cumprem ações

interpessoais na conversação.

No Brasil, a Análise da Conversação é representada, sobretudo, pelos

trabalhos desenvolvidos pelo Projeto de Norma Urbana Culta (NURC), que analisa

textos orais coletados em diversas regiões do país. Segundo Barros (1999), os

estudos do NURC versam sobre a organização textual-interativa da fala e os

procedimentos de construção dos discursos orais.

2.2 O Projeto de Norma Urbana Culta (NURC)

As raízes do projeto NURC encontram-se em Juan Lope Blanch, professor

mexicano, que propôs a organização de um projeto para descrever a norma culta do

espanhol falado. Assim, em 1964, surgiu o Proyecto de Estudio Coordinado de la

Norma Linguística Culta de las Principales Ciudades de Iberoamérica y de Península

Ibérica.

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Conforme Silva (2010)2, Nélson Rossi, professor da Universidade Federal da

Bahia, apresentou, em 1968, no IV Simpósio do Programa Interamericano de

Lingüística e Ensino de Idiomas, o trabalho intitulado O Projeto de Estudo da Fala

Culta e sua Execução no Domínio da Língua Portuguesa. Este foi o primeiro passo

para que, em 1969, o Proyecto fosse implantado no Brasil, recebendo o nome de

Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta no Brasil – Projeto NURC, que

manteve a mesma gênese do pioneiro mexicano.

Os trabalhos do NURC iniciaram-se em cinco capitais, cuja população

ultrapassava a marca de um milhão de habitantes. Dessa maneira, no nordeste,

Recife e Salvador foram abrangidas pelo projeto; no Sudeste, Rio de Janeiro e São

Paulo; e Porto Alegre foi a cidade sulina englobada. Para cada uma das localidades

foram designados professores responsáveis, a saber: José B. Villanova (Recife),

Nélson Rossi (Salvador), Celso Cunha (Rio de Janeiro), Isaac N. Salum (que, após

sua morte, foi substituído por Dino Preti) e Ataliba Teixeira de Castilho (São Paulo),

e Albino de Bem Veiga (Porto Alegre).

Segundo Silva (2010), para o desenvolvimento das atividades do NURC,

estimava-se que seriam necessários 600 informantes e 400 horas de gravação. Os

trabalhos baseavam-se em um guia-questionário e desenvolviam-se em três etapas:

gravações, transcrição e análise do corpus. O autor fornece, ainda, dados sobre os

informantes e a natureza das gravações:

Os informantes foram distribuídos em três faixas etárias:

1ª faixa etária: de 25 a 35 anos de idade (30%);

2ª faixa etária: de 36 a 55 anos de idade (45%);

3ª faixa etária: mais de 56 anos de idade (25%). Quanto à natureza, as gravações foram divididas em quatro tipos:

1º - Gravações secretas de um diálogo espontâneo (GS): 40 horas (10%);

2º - Diálogo entre dois informantes (D2): 160 horas (40%);

3º - Diálogo entre o informante e o documentador (DID): 160 horas (40%);

4º - Elocuções Formais (EF): 40 horas (10%) (SILVA, 2010)

O fato de São Paulo contar com dois responsáveis permitiu que, nessa

localidade, o NURC contasse duas sedes: uma na Universidade de São Paulo,

2 Todas as referências a Silva, nesta seção, dizem respeito ao artigo publicado em:

http://www.fflch.usp.br/dlcv/nurc/historico.htm

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coordenada por Dino Preti, e outra na Universidade Estadual de Campinas, sob a

supervisão de Ataliba Teixeira de Castilho.

O Projeto ganhou novo relevo quando a equipe de São Paulo passou a

contrariar o modelo de questionário empregado pelo NURC, que se baseava

naquele usado pelo Proyecto mexicano e privilegiava aspectos da língua escrita nas

análises dos dados.

Muitas reuniões foram feitas para se discutir a respeito das regras de

transcrição das gravações. Mas, segundo Silva (2010), somente em 1984, em um

seminário na Unicamp, que contou com a presença do professor Luís Antônio

Marcuschi, recém chegado da Alemanha, é que foram acordadas as normas para

transcrição do corpus e debatidas novas perspectivas para a realização das

análises, considerando, de fato, as características da língua falada.

A partir de 1985, o NURC da USP constituiu um grupo permanente de

pesquisadores, que passou a centrar seus estudos em livros e artigos referentes à

Análise da Conversação para que os pressupostos dessa corrente teórica pudessem

subsidiar as análises dos dados obtidos.

No mesmo ano, foi acordado que as cidades abrangidas pelo NURC deveriam

intercambiar 18 entrevistas de seu acervo com as demais cidades participantes,

constituindo, assim, um corpus compartilhado.

O acervo do núcleo do NURC, no Rio de Janeiro, encontra-se disponível on-

line3 e conta com um total de 350 horas de gravações, realizadas nas décadas de 70

e 90. Os inquéritos são numerados, contam com a transcrição e um link para um

arquivo de som, que pode ser descarregado no computador do usuário ou ouvido

diretamente pelo navegador.

2.3 Conceituando a conversação

A conversação é descrita pelos teóricos consultados como a interação entre

dois ou mais interlocutores que possuem a intenção de entrar em contato uns com

os outros. Para Preti (2002, p. 45-46), a conversação “abrange um grande leque de

atividades de comunicação verbal, desde as falas descompromissadas do dia a dia,

3 Disponível em: <http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/>.

20

até diálogos com temas pré-determinados”. Ainda, segundo o autor, essas falas

“podem, à medida que decorrem, ir se modificando, em função das circunstâncias

criadas pela própria interação” (PRETI, 2002, p. 45-46).

Conforme Marcuschi (1991), dentre as manifestações da linguagem, a

conversação é aquela a que o ser humano se expõe primeiro e, geralmente, é

aquela de que faz uso pelo resto da vida. Tal relação, segundo noções da

psicanálise, apontadas por Ferrari4 durante a Qualificação deste trabalho, inicia-se

ainda durante a gestação humana, quando a mulher grávida interage oralmente com

o bebê que se encontra em seu ventre. Após o nascimento do indivíduo, o processo

de interação intensifica-se, pois a genitora interage de maneira dialógica com o filho

ao atribuir significados aos silêncios e aos sons emitidos pela criança.

Não é fundamental saber se a mãe está inferindo corretamente ou não; o fundamental é que a criança está aprendendo a interagir; está internalizando estilos entoacionais e prosódicos, e montando uma complexa matriz de valores simbólicos. Inserida num aprendizado sistemático e culturalmente marcado, onde as atenções para as regras de uso se sobrepõem às meramente linguísticas, ela está se introduzindo na atividade conversacional (MARCUSCHI, 1991, p. 14-15).

A relevância das considerações referem-se ao fato de o início da construção

da história conversacional humana ocorrer no interior das relações familiares, que

introduzem o homem no processo de interação e socialização com o mundo. É

possível afirmar, seguindo a perspectiva de Marcuschi (1991), que a conversação

configura-se como a atividade linguística básica, uma vez que está presente no

cotidiano de todas as pessoas, independentemente de questões econômicas ou

sociais.

Sobre os aspectos da conversação, o autor assinala cinco características

constitutivas que devem ser observadas para que a atividade seja considerada uma

interação verbal centrada:

a) interação entre pelo menos dois falantes; b) ocorrência de pelo menos uma troca de falantes; c) presença de uma sequência de ações coordenadas; d) execução numa identidade temporal;

4 Comentário feito pelo professor Alexandre Sebastião Ferrari Soares durante o Exame de

Qualificação, em 28 de setembro de 2010.

21

e) envolvimento numa "interação centrada" (MARCUSCHI, 1991, p. 15).

Nos eventos de fala, dois ou mais interlocutores possuem a mesma tarefa, ou

seja, trocar ideias sobre um assunto específico ou apenas romper o silêncio. É por

isso que Petri (2001, p. 23) considera o envolvimento como uma das características

da conversação, e ela é entendida como o “resultado de um trabalho cooperativo, ou

„a duas vozes‟”. No presente estudo, a conversação se dá entre a entrevistadora e a

entrevistada, atuando a primeira no sentido de motivar a segunda a discorrer sobre

aspectos de sua vida.

Dada a necessidade de interação entre falantes para configurar a

conversação, é imprescindível que os sujeitos envolvidos estejam inseridos no

mesmo espaço temporal, o que não implica necessariamente uma interação face a

face, haja vista a possibilidade de se interagir por meio de conversas telefônicas ou

de entrevistas radiofônicas, por exemplo.

Além disso, a exigência de troca de falantes implica a exclusão de algumas

categorias da denominação “conversação”. Os sermões, por exemplo, não se

enquadram no conceito, pois, ainda que dirigidos a um público, não contêm

alternância entre falantes, o que os assemelha à estrutura de um monólogo.

Atente-se também para o último item elencado por Marcuschi (1991), que

explicita a relevância de a interação estar centrada em um assunto, ou seja, em

temas comuns, mesmo que sejam observadas digressões. Assim, a conversação

requer uma interação cooperativa, na qual um tema seja mantido em foco.

Some-se às condições já mencionadas a ideia de que, para o

desenvolvimento conversacional, é necessário, também, que os interlocutores

compartilhem minimamente certos conhecimentos, não apenas em termos

linguísticos, pois “os esquemas comunicativos e a consecução de objetivos exigem

partilhamentos e aptidões cognitivas que superam em muito o simples domínio da

língua em si” (MARCUSCHI, 1991, p. 16). Desse modo, além da aptidão linguística,

a conversação requer o envolvimento cultural e o domínio de situações sociais entre

os interlocutores.

A conversação é, portanto, mais do que a ativação do código verbal. Ela

representa uma atividade cognitiva que possibilita ao ser humano comunicar-se e

interagir no contexto social em que se insere.

22

A modalidade corresponde, ainda, ao reconhecimento da função dialógica da

linguagem. Sobre a presença do “outro” no discurso, Koch (2006b) compara os

interlocutores na produção de texto nas modalidades oral e escrita.

Todo texto é resultado de uma co-produção entre interlocutores: o que distingue o texto escrito do falado é a forma como tal co-produção se realiza. No texto escrito, a co-produção se resume à consideração do Outro para o qual escreve, não havendo participação direta e ativa deste na elaboração lingüística do texto, em função do distanciamento entre escritor e leitor. [...] No texto falado, por estarem os interlocutores co-presentes, ocorre uma interlocução ativa, que implica um processo de co-autoria, refletido, na materialidade lingüística, por marcas da produção verbal conjunta (KOCH, 2006b, p. 40).

O texto oral produzido é, portanto, uma coprodução, uma vez que sua

construção é feita passo a passo em processo de cooperação entre os

interlocutores, que interagem em conjunto. Por isso, a fala produzida, no processo

de comunicação, pode apresentar marcas que denunciam essa presença, como os

questionamentos que visam à adesão do interlocutor.

Nota-se que a conversação é marcada por princípios de solidariedade e de

cooperação entre os interlocutores.

Um fato singular das interações faladas é o de o falante receber ajuda explícita do ouvinte, para complementar um enunciado que está processando. Diante de uma hesitação do locutor quanto à escolha de uma palavra, por exemplo, fornecendo-lhe uma opção lexical (KOCH, 2006b, p. 42).

A interação entre os interlocutores faz com que, mesmo quando detém a

palavra, o locutor não seja o único responsável pela produção de seu discurso, pois

os envolvidos, na atividade conversacional, não só atuam segundo princípios de

cooperação, como também conegociam e coargumentam. E, sob essa ótica,

Dionísio (2006, p. 69) aponta que “a conversação, é uma atividade semântica, ou

seja, um processo de produção de sentidos altamente estruturado e funcionalmente

motivado”.

Como afirma Koch (2006b), o texto falado, apesar de relativamente não

planejável de antemão, apresenta uma sintaxe característica, uma estruturação

própria, que é ditada pelas circunstâncias sociocognitivas de sua produção, e deve

ser avaliado a partir de tal perspectiva.

23

2.4 A construção do texto falado

Mesmo utilizando sistema linguístico idêntico, fala e escrita constituem duas

modalidades de uso da língua e, portanto, cada uma delas possui características

próprias, não sendo aceitável que a segunda seja vista como simples transcrição da

primeira.

As diferenças entre as duas manifestações apresentam-se ligadas às práticas

sociais e têm como parâmetro o maior ou o menor envolvimento dos interlocutores.

Koch (2006b) observa

[...] que existem textos escritos que se situam, no contínuo, mais próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam ao pólo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários (KOCH, 2006b, p. 44)

Tendo por base uma visão dicotômica que separa língua falada e língua

escrita, estabeleceu-se, a princípio, uma série de atributos que, em sua maioria,

opunham uma categoria à outra. Nesse viés, a fala, como aponta Koch (2006b), era

caracterizada como contextualizada, não planejada, fragmentada e pouco

elaborada, ao passo que a escrita era tida como descontextualizada, planejada e

elaborada. Percebe-se a fragilidade de tais considerações, pois tanto o discurso oral

quanto o discurso escrito precisam ser tratados, considerando-se a esfera discursiva

em que se realizam, ou seja, as condições efetivas em que o texto está sendo

produzido.

A necessidade de observar as condições de produção evidencia-se quando

há uma reflexão acerca da suposta contextualização da fala e descontextualização

da escrita. Ocorre, na realidade, que ambas as modalidades requerem a utilização

de recursos próprios. Na linguagem escrita, por exemplo, não é possível que uma

frase seja complementada com um gesto, já que o interlocutor não estará presente

fisicamente. Por outro lado, a escrita é contextualizada, uma vez que requer o

contexto de produção, constituído pelo autor, no momento da produção, e o de

publicação, que obedece às regras de editoração do veículo que o publicará, e

24

adquire sentidos no momento da leitura. No discurso oral, tais etapas (produção e

publicação) coincidem e são reforçados por elementos extraverbais, como os

gestos.

A modalidade escrita e a modalidade oral constituem, na realidade, duas

possibilidades de uso da língua, que se servem do mesmo sistema linguístico.

Apesar de possuírem características próprias, não devem ser analisadas a partir de

um prisma dicotômico. A respeito dos equívocos causados pelas comparações entre

fala e escrita, Koch (2006b) faz o seguinte comentário:

Na realidade, [...] o que ocorre é que [...] tais características foram sempre estabelecidas tendo por parâmetro o ideal da escrita (isto é, costuma-se olhar a língua falada através das lentes de uma gramática projetada para a escrita), o que levou a uma visão preconceituosa da fala (descontínua, pouco organizada, rudimentar, sem qualquer planejamento), que chegou a ser comparada à linguagem rústica das sociedades primitivas ou à das crianças em fase de aquisição de linguagem (KOCH, 2006b, p. 45).

Tais comparações relativas à língua falada decorrem de visões equivocadas,

pois, segundo Koch (2006b), devido à interação imediata, ocorrem pressões de

ordem pragmática que, muitas vezes, acarretam uma sobreposição das exigências

sintáticas.

São elas que, em muitos casos, obrigam o locutor a sacrificar a sintaxe em prol das necessidades da interação, fato que se traduz pela presença, no texto falado, não só de falsos começos, truncamentos, correções, hesitações, mas também de inserções, repetições e paráfrases, que têm, frequentemente, funções cognitivo-interacionais de grande relevância (KOCH, 2006b, p.46).

Segundo Marcuschi (1991), normalmente, a conversação divide-se em três

seções estruturais distintas, a saber: abertura, desenvolvimento e fechamento. “A

seção de abertura apresenta normalmente o contato inicial, com os cumprimentos

ou algo semelhante, vindo então, a seção com o desenvolvimento do tópico [...] e,

finalmente as despedidas [...], perfazendo a seção de fechamento” (MARCUSCHI,

1991, p. 51).

As fases de abertura e fechamento evidenciam o caráter interativo da

conversação. A primeira remete ao engajamento dos interlocutores a uma

determinada circunstância, sendo que, na comunicação cotidiana, qualquer um dos

25

falantes pode iniciar uma conversação informal, na qual não se observa hierarquia

de falantes. Todavia, pode ocorrer a restrição do início da atividade, como no

exercício de determinadas profissões ou no interior de instituições, em que a

interação entre os participantes apresenta-se atrelada ao papel que lhes cabe.

Já o fechamento deve ser percebido claramente e ser aceito pelo interlocutor.

Desse modo, segundo Petri (2001), há uma etapa preparatória nessa fase, em que

um dos participantes utiliza seu turno para a produção de enunciados conclusivos;

cabe ao outro falante demonstrar que também deseja encerrar a conversação ou,

então, levantar novo tema para debate.

O desenvolvimento da conversação compõe-se das atividades essenciais

para a execução ordenada da modalidade. Os estudos desenvolvidos pelo Projeto

de Norma Urbana Culta, observando o grupo de organização textual-interativa do

texto falado, consideram que o processo básico de construção do texto falado,

inserido no desenvolvimento, é a topicalidade.

[...] a topicalidade é o fio condutor da organização discursiva, e [...] a despeito da aparente fragmentariedade da fala, há, no nível, macro, uma estruturação orgânica do texto falado, que aponta para uma regularidade de construção. A organicidade do texto falado é manifestada por relações de interdependência tópica (JUBRAN, 2006a, p. 33).

Apresentando-se atrelado à organização do tópico discursivo, o par dialógico

pergunta-resposta propicia a instauração da coerência no texto falado, conforme

indica Jubran (2006a).

São fenômenos intrínsecos da construção do texto oral também a hesitação,

as pausas, as repetições, a correção, entre outros. Todavia, nesta parte do trabalho,

interessa discorrer sobre os conceitos de turno conversacional e de tópico

discursivo, bem como sobre o par dialógico pergunta-resposta, elementos

entendidos como organizadores tópicos do texto falado, que parecem justificar a

escolha do questionário como instrumento de coleta de dados para a presente

pesquisa.

26

2.4.1 O turno conversacional

De acordo com Marcuschi (1991), o princípio básico da conversação é: “fala

um de cada vez”. Com isso, a tomada de turno pode ser considerada como estrutura

básica para o desenvolvimento da atividade.

Quando não há nenhuma regulamentação institucional, são os próprios

interlocutores que decidem a repartição dos turnos de fala. De acordo com

Marcuschi (1991), é necessário que os participantes reconheçam quando uma

enunciação termina para que possam fazer uso da palavra. O autor indica que a

observação de alguns indícios, como a entoação e certas construções sintáticas,

propiciam a apreensão da completude do turno de fala do parceiro.

A alternância dos turnos entre os interlocutores representa um papel

disciplinador, uma vez que a tomada de turno representa a organização da

conversação. O respeito à tomada de turno significa que falas simultâneas e

sobreposição de vozes devem ser evitadas, possibilitando que a atividade

conversacional seja mais clara e livre de ruídos. Segundo Marcuschi (1991), duas

técnicas podem ser empregadas para a alternância de turnos:

Técnica I – O falante corrente escolhe o próximo falante, e este toma a palavra iniciando o próximo turno; Técnica II – O falante corrente pára e o próximo falante obtém o turno pela auto-escolha (MARCUSCHI, 1991, p. 20).

Todavia, em uma interação verbal cujo número de participantes é maior que

dois, a simultaneidade de falas pode ocorrer, sobretudo quando o falante de um

turno não dirige sua fala a outro interlocutor específico. Desse modo, para o

prosseguimento da atividade, podem ser usados recursos metalinguísticos, como a

expressão “deixa eu falar”; paralinguísticos, como um gesto; ou, ainda, um dos

falantes que iniciou o turno ao mesmo tempo que outro silencia-se para que seu

interlocutor prossiga. O número elevado de participantes na conversação pode

propiciar também o surgimento de conversas paralelas.

Uma nova quebra do princípio básico da conversação, aludido por Marcuschi

(1991), no início desta seção, pode ser observada na sobreposição de vozes

durante o turno de um falante. Segundo o próprio autor, o registro mais comum

27

dessa manifestação se dá sobre o pronunciamento de expressões de concordância

ou discordância à medida que se acompanha a fala do interlocutor.

2.4.2 O tópico discursivo

Em uma conversação, os turnos, além de sucessores temporais uns dos

outros, fazem referência a seus antecedentes. Dessa forma, um turno traz em si um

conjunto de possibilidades e sentidos desencadeados por aquele que o precedeu. É

nesse processo que está inserido o conceito de tópico discursivo.

O tópico decorre, portanto, de um processo que envolve colaborativamente os participantes do ato interacional na construção da conversação, assentada em um complexo de fatores contextuais, entre os quais as circunstâncias dos interlocutores, os conhecimentos partilhados entre eles, sua visão de mundo, o background de cada um em relação ao que falam (JUBRAN, 2006b,

p. 90).

A interação baseia-se, portanto, no envolvimento, ou seja, na atenção

dispensada a um assunto escolhido por ambos os interlocutores ou imposto pelo

contexto social. O tópico discursivo constitui-se, portanto, um elemento de grande

importância para o desenvolvimento da conversação, pois sua estruturação atua

como elo condutor na organização textual-interativa e, a partir dele, se empreende a

descrição da organização tópica de um texto.

Dentre suas características, citam-se a centração e a organicidade. Conforme

Jubran (2006a), pela primeira entende-se a relação de interdependência semântica

entre os enunciados de um segmento textual, bem como a relevância desse

conjunto. Já a segunda é manifestada por relações de interdependência tópica

estabelecidas pelo plano hierárquico (dependências de superordenação e

subordinação entre tópicos que se implicam pelo grau de abrangência do assunto) e

pelo plano linear (segundo articulações intertópicas em termos de adjacência ou

interposições de tópicos diferentes na linha do discurso).

O plano linear revela-se importante para este estudo, pois é nele que estão

contidas as noções de continuidade e descontinuidade tópicas, uma vez que a

28

entrevista nem sempre apresenta uma progressão linear do tópico que desenvolve,

o que é evidenciado em uma conversação natural pelo fato de os interlocutores

mudarem normalmente de tópico, conforme seus objetivos.

A continuidade decorre de uma organização sequencial dos tópicos, de forma

que a abertura de um se dá após o fechamento de outro, precedente. Já a

descontinuidade, segundo Jubran (2006b, p. 99), “decorre de uma perturbação da

sequencialidade linear”, ou seja, ocorre quando um novo tópico é introduzido antes

do esgotamento de seu precedente.

Ainda sobre a questão, salienta-se o uso de marcadores discursivos como

sinalizadores de introdução ou esgotamento de tópicos. “Eles são basicamente

sequenciadores e, no que diz respeito à organização tópica do texto falado,

estabelecem aberturas, encaminhamentos, retomadas e fechos de tópicos, em

posições inter ou intratópicas” (JUBRAN, 2006b, p. 111).

Segundo Jubran (2006b), a segmentação do texto em unidades tópicas é

procedimento básico para a análise, uma vez que “o analista focaliza a sequência

dos tópicos, da forma como aparecem na linha do discurso, em termos de

continuidade ou descontinuidade” (JUBRAN, 2006b, p.119, grifos de autora).

2.4.3 O par dialógico pergunta-resposta

Considerado como uma das sequências conversacionais mais comuns, o par

dialógico pergunta-resposta, conforme Petri (2001), é, ao mesmo tempo,

organizador da conversação e estratégia de seleção de falantes, além de funcionar

como proponente de tema.

Fávero et al. (2006) considera que perguntas (Ps) e respostas (Rs) são

elementos chaves nos processos de interação humana e, por isso, são indicadores

de compreensão, pois a segunda parte só pode ser produzida se a primeira foi

compreendida. Ou seja,

[...] as Ps antecipam e restringem semanticamente as Rs e parecem depender destas, que, por sua vez, são ainda mais dependentes das primeiras. Isso, além de implicar que uma P seja necessariamente

29

respondida, leva a uma definição circular em que a diferença entre os dois atos é o aspecto eleitor/eleito [...] (FÁVERO et al., 2006, p. 136).

Ressalta-se, todavia, que nem sempre a ativação do par dialógico implica

circularidade, pois uma pergunta pode ser seguida por outra pergunta. Sendo assim,

“não há uma determinação lógica na ordenação do par P-R” (FÁVERO et al., 2006,

p. 138).

Dentre os objetivos que impelem o sujeito a fazer uma pergunta, Petri (2001)

destaca:

1. L1 não possui uma informação e deseja possuí-la. Essa é a condição mais freqüente; 2. L1 quer saber se L2 possui a informação. Nesse caso é a questão didática; 3. L1 deseja que L2 admita uma verdade que ele (L1) já conhece ou suspeita, como ocorre em certos casos de interrogatório policial ou judiciário; 4. L1 quer a informação, mas para informar um terceiro, testemunha da interação. É o caso das entrevistas, quando o entrevistador faz uma pergunta, cuja resposta ele conhece, mas não o seu auditório; 5. L1 pergunta pelo simples prazer de perguntar ou de ouvir a resposta (PETRI, 2001, p. 119).

Pelo exposto, entende-se que a pergunta nem sempre é feita para que se

possa obter determinada informação, mas é produzida com as mais variadas

intenções. Conforme Ducrot (1977), qualquer pergunta cria no interlocutor uma

obrigação jurídica de responder, ou seja, produz uma reação que se realiza

verbalmente materializada em um enunciado linguístico, trazendo a informação

solicitada. Com isso, as perguntas podem ser vistas como meio de agir sobre o outro

e de fazê-lo reagir. As respostas, por sua vez, não são asserções comuns, mas se

produzem segundo as orientações presentes na pergunta.

Segundo Marcuschi (1991), os estudos acerca do organizador conversacional

distinguem as perguntas a partir de dois tipos: de sim-não e sobre algo. Para este

trabalho, os questionamentos foram elaborados de modo que se enquadrassem na

segunda modalidade, pois se objetivou que a entrevistada discorresse sobre os

temas topicalizados, questão que será aprofundada no Capítulo IV.

30

2.5 A interpretação dos enunciados em uma conversação

De acordo com Petri (2001), toda enunciação depende da intenção do

enunciador em atingir determinado objetivo ilocucional. Tal objetivo, por sua vez,

relaciona-se à aceitação do interlocutor diante do que lhe é exposto. Ocorre que,

para o êxito do objetivo pretendido pelo enunciador, é necessário, ainda, que o

interlocutor compreenda qual é esse objetivo. E, por fim, essa compreensão

depende da formulação adequada da enunciação.

Percebe-se, portanto, que não basta a produção dos atos de fala pelos enunciados; ele precisa produzir as condições para que o enunciatário reconheça sua intenção e aceite realizar o objetivo pretendido. Essas condições referem-se a atividades lingüístico-cognitivas que garantam a compreensão, estimulem, facilitem ou provoquem a aceitação. E, mesmo assim, a atividade ilocucional produzirá seus efeitos apenas a partir da compreensão e da aceitação do objetivo pelo enunciatário, mostrando a reação desejada (PETRI, 2001, p. 91).

Há, portanto, um jogo de relações imaginárias, no qual o locutor se antecipa

às possíveis interpretações e reações dos demais envolvidos na conversação, por

meio da seleção de seus enunciados. Dessa forma, a constituição de todo falar

representa a relação de seu interior com seu exterior, ou seja, há uma tentativa de

organização discursiva a partir de um destinatário. O sujeito, inconscientemente,

formula representações imaginárias acerca do lugar por ele ocupado, da posição de

seu interlocutor e da imagem do seu próprio discurso perante o outro, de modo que

seus enunciados sejam formulados de forma a “permitir ao receptor tirar as

conclusões que ele deseja que sejam tiradas” (PETRI, 2001, p. 91).

Os participantes da conversação são indivíduos diferentes e opacos uns em

relação aos outros, possibilitando que as interpretações recíprocas sejam

divergentes. Diante disso, segundo Petri (2001), é necessário um desenvolvimento

abstrato da interação, de seu funcionamento e das obrigações dela decorrentes,

formando um processo denominado “idealização de sociabilidade”.

Nesse processo, o princípio da cooperatividade torna-se essencial, pois

implica comportar-se de modo que sejam mantidas as idealizações fundamentais,

bem como garantidos esforços em direção à interpretação quando ocorrem

31

problemas na interação. A evidência mais significativa do princípio é dada pela

disposição entre os participantes de falar e escutar uns aos outros.

Petri (2001) resume o processo de interação e interpretação envolvido na

conversação da seguinte maneira:

A comunicação como interação simbólica realizada por meio da linguagem apresenta traços fundamentais que podem ser assim resumidos: seu caráter dialógico, que propicia a construção de uma reciprocidade e que repousa sobre um princípio de cooperação; a interpretabilidade dos símbolos em jogo, que acarreta a necessidade de procedimentos de negociação, para assegurar a intercompreensão; sua constituição como processo sequencial, sob a restrição do desenrolar temporal e da alternância dos participantes [...] (PETRI, 2001, p. 94).

A intercompreensão deve ser entendida como a compreensão recíproca

atrelada à interpretação semântica dos enunciados, não correspondendo à sua

avaliação. Assim, é preciso que o falante garanta a compreensão da enunciação

pelo parceiro. Para tanto, é necessário que o sujeito estabeleça as referências

pertinentes ao contexto de produção de sua fala, como o saber do cotidiano e os

objetos aos quais faz referência. Dessa forma, conforme Petri (2001), são

construídas idealizações para desencadear expectativas no interlocutor de maneira

a assegurar a compreensão.

Em uma conversação, portanto, o sujeito reage segundo sua compreensão do

enunciado, não significando que não haja mal-entendidos nesse processo. O

primeiro falante pode demonstrar, por sua reação, se aceita ou não a interpretação

feita por seu interlocutor, podendo corrigi-lo ou aceitar a interpretação produzida.

A significação dos enunciados, portanto, apresenta-se atrelada a um processo

de negociação entre os interlocutores, no qual os participantes demonstram

reciprocamente como interpretam os enunciados e, ainda, se aceitam as

significações que o interlocutor atribui à sua fala.

2.6 A conversação na pesquisa

32

Neste trabalho, a conversação ocorre entre a pesquisadora e a entrevistada,

atuando a primeira no sentido de motivar a segunda a falar da maneira mais

espontânea possível.

Com base nas teorias da Análise da Conversação, cujos princípios orientam a

análise de conversas naturais, optou-se por selecionar uma participante que já

conhecesse previamente a pesquisadora para que a coleta de dados ocorresse da

forma mais espontânea possível. Dada a proximidade entre entrevistada e

pesquisadora, esta se configura como uma pesquisadora-participante.

Desse modo, como sujeito da pesquisa, selecionou-se a mãe de uma colega

de colégio da pesquisadora, que possuía como característica peculiar o fato de ser

imigrante. Trata-se de uma mulher nascida e criada no Paraguai, divorciada e

residente na cidade de Cascavel há mais de 25 anos. A imigração para o Brasil

deveu-se ao fato de a participante ter se casado com um brasileiro.

Nos primeiros anos no Paraná, a entrevistada dedicou-se exclusivamente aos

cuidados dispensados às três filhas, ao lar e ao marido. Anos mais tarde, com o

divórcio, retomou os estudos no Brasil, ingressando no Magistério. No mesmo

período, começou a lecionar a disciplina de Língua Espanhola em escolas

particulares. Após terminar o curso de Magistério, ingressou em um curso superior

de licenciatura em Língua Portuguesa e Língua Espanhola, cuja conclusão ocorreu

em 2008.

Como as filhas mais velhas se casaram, atualmente, a entrevistada vive

apenas com a caçula; continua lecionando Espanhol e não tem pretensão de voltar a

viver no Paraguai.

Para a realização do estudo, foi gravada uma conversa com a participante,

primando-se pela conversação natural; para tanto, tentou-se criar um ambiente

favorável para a coleta do corpus. A opção pela entrevista oral deveu-se à tentativa

de se criar uma atmosfera informal, na qual a participante relatasse suas

experiências sem monitoramento do próprio discurso, conforme preconiza o Projeto

NURC.

A opção pela espontaneidade, na coleta do texto oral, segundo Preti (1998, p.

72), permite observar “que os diálogos, mesmo iniciando-se indecisos, acabam por

fluir naturalmente, ainda que os interlocutores quase sempre se comportem com

uma regularidade que indica que estão atentos à situação criada”. Ainda sobre as

premissas do NURC, Fávero e Andrade (1998) apontam que o objetivo das

33

entrevistas é deixar o entrevistado falar livremente, pois o interesse do

documentador deve centrar-se no modo como a língua é usada e não no que o

interlocutor diz.

Segundo Dionísio (2006), existem variedades, no grau de formalidade da

conversação natural, e na presente investigação optou-se pela conversação

informal, beirando à espontaneidade. Dessa maneira, o local escolhido para a

realização da entrevista foi a própria residência da entrevistada, por se considerar

que ali a participante se sentiria mais à vontade para a gravação de sua fala. Esse

cuidado visou à obtenção de um corpus que refletisse o uso cotidiano da língua feito

pela entrevistada, ou seja, uma fala sem monitoramentos.

Optou-se pelo questionário como forma de motivar as falas da entrevistada,

mas se priorizou a fala espontânea da informante em todos os momentos, ou seja,

as interferências feitas pela entrevistadora foram evitadas, deixando a informante

livre para falar. A esse respeito, Fávero (2000) esclarece que, nas entrevistas do

Projeto NURC,

[...] as formulações do entrevistador são representadas, quase sempre, por perguntas, já que não importa o que o entrevistador diz, mas de que maneira o diz. Assim, as perguntas não buscam a informação, mas são colocadoras de situação [...] (FÁVERO, 2000, p. 85).

A entrevistada respondeu a doze perguntas (Vide apêndice A) que versaram

sobre temas gerais de sua vida, desde a infância no Paraguai até seu percurso

acadêmico e profissional no Brasil. Os questionamentos foram elaborados de modo

que a participante pudesse falar o mais livremente possível sobre os tópicos. Assim,

as questões não foram pontuais, mas elaboradas de maneira aberta para que a

entrevistada discorresse espontaneamente.

As interferências, por parte da pesquisadora, foram evitadas, sendo que esta

apenas proferiu palavras de assentimento durante a fala da entrevistada, bem como

interagiu, por meio de gestos ou risos, como forma de incentivar a falante a

prosseguir em seu texto oral.

Após a gravação da entrevista, que teve duração aproximada de 70 minutos,

procedeu-se à transcrição, utilizando como referência as normas de transcrição do

Projeto NURC, já que elas, além dos aspectos verbais, consideram a codificação de

aspectos entoacionais e de informações adicionais, conforme preconiza a AC.

34

Da transcrição de uma comunicação verbal ocorrida no quadro de uma interação natural, buscam-se obter conhecimentos que ultrapassam as análises fonológicas, sintáticas, semânticas ou mesmo aqueles relativos à boa formação gramatical ou textual (PETRI, 2001, p. 81).

No texto oral coletado, foram registradas 22 ocorrências do item até, que

foram tomadas como corpus da pesquisa.

Embora a coleta do corpus tenha se baseado no princípio da entrevista, a

análise das ocorrências e funções do item até está centrada apenas nas respostas

da informante, sem perder de vista as perguntas que as motivaram. Dessa forma, a

organização estrutural da fala da entrevistadora não será considerada, já que serve

apenas de mote para a fala da entrevistada e, devido às respostas longas, infere-se

que ela se sentiu à vontade para falar.

Das respostas da informante, foram selecionados os trechos em que se

observa a presença do vocábulo sob análise. Ressalva-se, contudo, que essa

sistematização aconteceu apenas como forma de facilitar o olhar sobre as relações

estabelecidas entre o termo até e seus precedentes e procedentes, pois o contexto

linguístico do qual fazem parte os recortes não pode ser desconsiderado no

processo de análise.

Assim, os trechos analisados nesta pesquisa não apresentam uniformidade

nem seguem uma lógica preestabelecida, mas demonstram como ocorre o uso

funcional do item até em fragmentos extraídos de um texto oral-dialogado, que beira

à espontaneidade.

A análise do corpus, além do conteúdo de cunho linguístico, revela trechos

em que se percebem alguns conflitos vividos pela imigrante paraguaia. A falante faz

comparações entre brasileiros e paraguaios e expõe modos de vida, considerados

por ela, aparentemente, como antagônicos.

De acordo com Risso e Jubran (1998), a comunicação verbal entre

interlocutores está contextualizada em um complexo conjunto de circunstâncias que

atuam na dinâmica das relações sociais entre os interlocutores. Desse modo, a

construção do texto oral está diretamente relacionada ao desejo expresso pelo

produtor discursivo de ser compreendido por seus interlocutores.

No capítulo procedente, traça-se um panorama sobre as teorias a partir das

quais se analisará, no Capítulo IV, o termo até.

35

3 O PLANEJAMENTO LOCAL DA FALA: MARCADORES DISCURSIVOS x

OPERADORES ARGUMENTATIVOS

A conversação natural é entendida como uma modalidade espontânea da

linguagem, no sentido de que não possui um planejamento prévio e corresponde,

localmente, às exigências do contexto no qual se insere.

Salienta-se que, mesmo sendo localmente planejada, a conversação natural

não elimina a existência de uma organização textual. Ocorre que sua organização

deve ser entendida como um processo que obedece a regras próprias, que podem

tanto se afastar quanto se aproximar daquelas seguidas na produção do texto

escrito.

Conforme já comentado no capítulo anterior, Marcuschi (1991) observa que o

texto oral não se distancia do escrito no que se refere à estrutura e à organização,

haja vista a presença de elementos sintático-semânticos no texto falado, assim

como estratégias adotadas pelos falantes para manter a coerência e a coesão do

discurso que produzem.

Segundo Gonçalves (2006), os estudos atuais da Análise da Conversação

enfatizam a necessidade de se analisarem os elementos que estão envolvidos no

evento da enunciação. De acordo com a autora, observa-se o avanço de pesquisas

na área no que se refere às questões de coesão e coerência do texto oral, em que

se analisam, sobretudo, as trocas de turno, o tópico discursivo, as atividades de

formulação e os marcadores discursivos.

Conforme já exposto no Capítulo II, bem como na introdução, a entrevista

promovida seguiu os parâmetros do NURC, em termos de concepção de texto e do

funcionamento dos operadores e marcadores analisados, devido ao perfil tomado

pelo texto no decorrer da entrevista, descrito neste trabalho como espontâneo e com

poucas interferências da pesquisadora.

Nesta pesquisa, entende-se a fala espontânea como aquela que não é

planejada previamente, é produzida em tempo real e atende às exigências do

contexto imediato, ou seja, neste caso, a fala produzida a partir da motivação dada

pela pesquisadora.

Em uma das faces desta dissertação, os interesses voltam-se para a

descrição de marcadores discursivos no corpus, entendendo-os como mecanismos

36

importantes na efetivação da progressão textual, pois, por meio deles, a falante tenta

articular sua fala.

Concebe-se, na presente pesquisa, que todo falar possui essência

argumentativa. Reconhecem-se as interações comunicativas como manifestações

impregnadas pela argumentação, e considera-se que a produção do enunciado se

dá a partir da seleção de estratégias que possibilitam o êxito do processamento

argumentativo.

Por isso, procurou-se também verificar como a entrevistada procedeu no

direcionamento da argumentação, tendo como base a teoria de Ducrot (1989), que

considera os operadores argumentativos como elementos de papel relevante na

constituição dos enunciados, pois atuam como indicadores em prol de uma

determinada conclusão em detrimento de outras.

Partindo das noções de marcadores discursivos e de operadores

argumentativos, observou-se, especificamente, o comportamento do vocábulo até no

corpus, com enfoque nas funções por ele desempenhadas, ora como marcador

discursivo, ora como operador argumentativo, em uma situação real de uso da

língua em que esta é localmente planejada.

Nas sessões seguintes deste capítulo, traça-se breve comentário a respeito

dos conceitos que norteiam a análise procedida.

3.1 Marcadores discursivos (MDs)

A conversação, a partir da perspectiva-textual interativa proposta por estudos

desenvolvidos em conformidade com a proposta do NURC, indica a existência de

relações que sustentam os elementos participantes da organização linguística e das

estratégias acionadas pelos falantes durante a conversação.

Dentre os elementos envolvidos na construção dos textos de língua falada,

segundo Gonçalves (2006), há aqueles que são responsáveis por sua organização,

exercendo a função de conectivos textuais: “são os chamados Marcadores

Conversacionais” (GONÇALVES, 2006, p. 85, grifos de autora).

Ressalva-se que, no presente estudo, a denominação “marcadores

conversacionais” apresenta-se inserida no conceito de “marcadores discursivos”,

37

como orienta o NURC. A esse respeito, Risso, Silva e Urbano (2006, p. 404) afirmam

que, “para efeitos de designação, adotamos aqui a denominação de marcadores

discursivos [...], que nos parece ser mais adequada e abrangente que a de

marcadores conversacionais” (RISSO; SILVA; URBANO, 2006, p. 404, grifos de

autores).

Para os autores, embora seja mais corrente entre os estudos linguísticos

brasileiros, a designação “marcadores conversacionais” sugere um

comprometimento exclusivo com a língua falada. Já a denominação “marcadores

discursivos” permite a aplicação do conceito também aos textos escritos.

Guerra (2007) amplia a questão terminológica, expondo as nomenclatura

observada na literatura para se referir aos elementos que desempenham função de

MDs.

Não há, inclusive, em torno dos MDs, um consenso terminológico, aparecendo, para se referir a mecanismos que desempenham basicamente a mesma função, expressões como articuladores textuais, marcadores conversacionais, conectivos discursivos, operadores discursivos, operadores argumentativos, marcadores de estruturação da conversação, apoios do discurso, sinais de estruturação etc. (GUERRA, 2007, p. 10, grifos da autora).

Assim, este trabalho apoia-se em estudos que utilizam as terminologias

mencionadas, que serão tomadas como sinônimas, pois o objeto de análise é um

texto oral. Contudo, para efeito de padronização do texto deste trabalho, optou-se

pelo termo “marcador discursivo”.

Segundo Gonçalves (2006), a presença de palavras e expressões enunciadas

espontaneamente, atreladas a determinadas condições, está, normalmente,

relacionada a uma intenção bem delimitada do locutor em relação ao interlocutor, ou

seja, revela a tentativa de adequação da linguagem em relação ao sujeito com quem

se fala. Ou seja, o que move o recurso a esse tipo de organizadores textuais são

justamente nas condições típicas do texto oral-dialogado, as quais envolvem

refacções, retomadas e reelaborações, por exemplo.

Para Marcuschi (1991), os marcadores discursivos apresentam característica

multifuncional ao atuarem, simultaneamente, na organização da interação, na

articulação do texto e na indicação da força ilocutória. Tais recursos, ao mesmo

38

tempo que dão coesão ao texto, também o segmentam e pontuam, pois podem

suprimir o papel dos signos de pontuação.

Além disso, o estudo dos marcadores discursivos implica reconhecimento das

noções de cooperação e interação, inerentes à dinâmica conversacional. Segundo

Gonçalves (2006), por meio de tais elementos

[...] podemos observar como os interlocutores negociam entre si, como protegem suas faces, como elaboram seus pensamentos, como reagem ao que ouvem, que intenções apresentam durante o ato; enfim, é descobrir um pouco como se organiza, em termos de planejamento, o texto falado e como é levado a cabo pelos ouvintes (GONÇALVES, 2006, p. 92).

Dessa forma, os marcadores discursivos são vitais ao texto falado, pois

possibilitam sua construção e organização. Tais recursos, segundo Marcuschi

(1991), podem ser divididos em “três tipos de evidências: (a) verbais, (b) não-verbais

e (c) supra-segmentais”. (MARCUSCHI, 1991, p. 61, grifos de autor).

O grupo (b) diz respeito aos elementos paralinguísticos, como o riso e a

gesticulação, que desempenham papel relevante durante a conversação. Os

marcadores inseridos nessa classificação “estabelecem, mantêm e regulam o

contato” (MARCUSCHI, 1991, p. 63). Já os supra-segmentais, grupo (c), de acordo

com Marcuschi (1991), apresentam natureza linguística, mas não caráter verbal,

como as pausas e o tom de voz.

Esta pesquisa centra o olhar nos marcadores discursivos inseridos no grupo

(a), ou seja, os verbais, cujas características são explicitadas por Marcuschi (1991):

Os recursos verbais que operam como marcadores formam uma

classe de palavras ou expressões altamente estereotipadas, de grande ocorrência e recorrência. Não contribuem propriamente com informações novas para o desenvolvimento do tópico, mas situam-se no contexto geral, particular ou pessoal da conversação (MARCUSCHI, 1991, p. 62, grifo de autor).

No plano dos marcadores verbais, estão envolvidos sons não lexicalizados –

como hum e ahã – palavras, locuções e sintagmas mais desenvolvidos. Segundo

Urbano (1999), percebe-se que os marcadores verbais podem assumir formas

simples (apenas uma palavra, como entende?), complexas (expressões como quer

dizer) ou oracionais (tenho a impressão de que).

39

Para ilustrar as categorias dos marcadores discursivos elencadas acima,

Urbano (1999, p. 87) formula o seguinte esquema:

lexicalizados (sabe?)

verbais

linguísticos não lexicalizados (ahn)

marcadores prosódicos (pausas, alongamentos)

não-linguísticos (ou paralinguísticos)

Quanto às características apresentadas pelos marcadores discursivos

verbais, Risso, Silva e Urbano (2006) descrevem oito traços fortes aplicáveis a esse

grupo de palavras:

a) alta recorrência; b) exterioridade ao conteúdo proposicional; c) transparência semântica parcial; d) invariabilidade formal ou variabilidade restritiva; e) independência sintática; f) demarcação prosódica; g) não-autonomia comunicativa;

h) massa fônica reduzida (RISSO; SILVA; URBANO, 2006, p. 415).

O primeiro traço5 considerado, na caracterização de um marcador discursivo,

na perspectiva dos autores, atrela-se à frequência com que aparece em textos orais,

ou seja, observa-se a “alta reiteração da forma ao longo do discurso” (RISSO;

SILVA; URBANO, 2006, p. 406). A constante ativação da palavra até, na fala da

entrevistada, permite situar esse vocábulo dentro da alta recorrência, concernente

aos marcadores discursivos.

A variável (b) sobre a relação com o conteúdo proposicional6, na perspectiva

de Risso, Silva e Urbano (2006), considera a relação das unidades em estudo com

as informações conteudísticas dos fragmentos tópicos analisados. Os autores

indicam que a alta frequência de unidades exteriores ao conteúdo das proposições

revela ser este um forte traço para a identificação dos marcadores discursivos.

5 Alta recorrência 6 Exterioridade ao conteúdo proposicional

40

Quanto à transparência semântica (traço c), observa-se que os marcadores

passam por um processo de adaptação semântica no que se refere ao seu conteúdo

gramatical ou lexical. Exemplifica-se esse traço com os enunciados abaixo,

apresentados por Risso, Silva e Urbano (2006) em análise do vocábulo agora:

(3) L1 – agora eu assumi também... uma:: secretaria da APM...

(D2 SP 360:165-166) [...] (4) L1 – agora:: o Luís... desde pequeno... gosta da história do homem...

(D2 SP 360: 1.415-20) (RISSO; SILVA; URBANO, 2006, p. 431).

Observa-se que, em (3), a palavra agora atua como adjunto adverbial de

tempo; logo, possui transparência semântica, o que não a caracteriza como

marcador discursivo. Já em (4), a palavra não coincide com a representação

temporal e é ativada pelo falante numa tentativa de articulação textual. A não

transparência semântica observada no último exemplo faz dessa ocorrência de

agora um marcador discursivo.

O item (d)7, dos traços caracterizadores das unidades em questão, indica que

els se apresentam, normalmente, cristalizadas, sendo ativadas automaticamente,

nos discursos e não propriamente formuladas.

Quanto à característica (e)8, os estudos sobre os marcadores discursivos

evidenciam predominância de independência sintática sobre as manifestações de

dependência, sendo a não integração sintática um forte indicador de MD.

Quando se consideram os marcadores verbais [...] uma outra questão se impõe: qual é o seu estatuto sintático dentro da estrutura oracional. Para tanto, deve-se levar em conta, inicialmente, os marcadores verbais lexicalizados ou não, cujas emissões são completas por si e autônomas entonacionalmente, caracterizando, uns e outros, a partir disso, total independência sintática. [...] costuma-se dizer que eles são sintaticamente independentes, principalmente quando “iniciais” [...] ou quando não constituídos por verbo (URBANO, 1999, p. 89).

Assim, os marcadores discursivos não desempenham uma função sintática no

que se refere à estrutura gramatical da oração.

7 Invariabilidade formal ou variabilidade restritiva 8 Independência sintática

41

A variável (f)9 aponta que os marcadores discursivos podem se apresentar

demarcadas por pausas ou por outro elemento prosódico em relação aos segmentos

que as precedem, procedem ou, ainda, em ambos os casos.

A penúltima característica10 diz respeito à não autonomia comunicativa dos

marcadores discursivos, ou seja, as palavras que integram a categoria são

insuficientes por si mesmas para a constituição de enunciados.

Por fim, os estudos textual-interativos apontam que as unidades apresentam

reduzida massa vocabular, pois a maioria das ocorrências corresponde ao limite de

até três sílabas tônicas, em confronto com as que ultrapassam esse limite.

Exemplifica-se esse traço com o objeto de análise desta pesquisa: o termo até.

Contudo, conforme alerta Gonçalves (2006, p. 97), não é incomum encontrar

marcadores formados por locuções ou frases completas: “frases de infinitivo com

valor temporal, condicional ou de outro tipo”.

Ressalva-se a possibilidade de desvios em um ou outro dos padrões

elencados, o que não implica, necessariamente, a eliminação do vocábulo da

categoria “marcadores discursivos”. “O fato de uma mesma forma poder prestar-se a

diferentes funções e ter, em decorrência, diferentes enquadramentos reflete-se

automaticamente em alterações nos padrões de traços acima delineados” (RISSO;

SILVA; URBANO, 2006, p. 418).

Apesar da admissão de desvios dos traços caracterizadores dos marcadores

discursivos, segundo Guerra (2007), algumas das características elencadas acima –

denominadas pela autora como variáveis - se sobressaem em relação às outras:

Dessas variáveis, cinco são definidas como mais decisivas na identificação de MDs, uma vez que apresentam os traços que, por serem os mais prototípicos de MDs, formam o denominado núcleo piloto de definição dos MDs. (GUERRA, 2007, p. 31, grifos de

autora).

Segundo a autora, os cinco traços decisivos são a articulação dos segmentos

do discurso, a orientação da interação, a exterioridade ao conteúdo proposicional, a

independência sintática e a não-autonomia comunicativa, sendo que os três últimos

seriam a referência preliminar para que uma unidade seja considerada ou não como

um marcador discursivo.

9 Demarcação prosódica 10 Não-autonomia comunicativa

42

Para Berenguer (1995, p. 110), na conversação, “los marcadores actúan tanto

en el nivel de la estructura del discurso, contribuyendo a la constitución del sentido,

como en el nivel del cuadro participacional, manifestando las relaciones entre los

hablantes”11. Na mesma perspectiva, Castilho (1989) atrela aos elementos uma

função textual, que pode ser considerada segundo dois grupos: os elementos

basicamente interacionais e os basicamente sequenciadores.

Segundo Castilho (1989), os primeiros representam os processos de relação

interpessoal, administrando os turnos conversacionais; esse grupo não será

abordado nesta pesquisa. Já os segundos, que interessa a este trabalho,

apresentam-se envolvidos “no amarramento textual das informações

progressivamente liberadas ao longo do evento comunicativo e, simultaneamente,

no encaminhamento de perspectivas assumidas em relação ao assunto, no ato

interacional” (RISSO, 2006, p. 427). Assim, segundo a autora, a atuação desse

grupo centra-se no processamento da informação e na tessitura dos tópicos que se

lhe associam, ou seja, são marcadores articuladores de partes do texto. Risso

(2006) adverte-se que, não raro, os marcadores podem desempenhar funções

sequenciadoras e interacionais concomitantemente.

Na função de marcadores sequenciadores, as unidades podem atuar na

articulação da estrutura tópica e se destacam pela condição de elemento não

integrante da estrutura sentencial. Conforme Risso (2006), elas se antecipam às

sentenças e assumem independência sintática relativamente aos componentes

sentenciais.

A não-integração do articulador tópico à construção da sentença pode gerar a impressão de estarmos diante de um elemento descartável, que parece sobrar na fala [...]. Basta, porém, excluí-lo, para que se perceba quantos dados se perdem sobre a orientação que o falante dá a seu discurso, sobre a administração do tópico, enfim, sobre o controle da informação (RISSO, 2006, p. 434-435).

Nessa perspectiva, a atuação dos marcadores discursivos sequenciadores

confere o estatuto funcional de estruturador textual, tida por Urbano (1999) como

uma função genérica desempenhada por tais elementos.

11

“[...] os marcadores atuam tanto no nível da estrutura do discurso, contribuindo para a constituição do sentido, como no nível do quadro participativo, manifestando as relações entre os falantes” (BERENGUER, 1995, p. 110, tradução nossa).

43

O aspecto relevante dos marcadores é o das funções que desempenham. Pode-se dizer que desempenham funções mais genéricas e funções mais específicas, sendo bem genérica a função articuladora ou estruturadora. São específicas as funções de monitoramento do ouvinte ao falante ou a de busca de aprovação discursiva pelo falante em relação ao ouvinte, ou, ainda, de sinalizadores de hesitação, de atenuação ou de reformulação por parte do falante, ou, ainda, de sua intenção de asserir ou perguntar (URBANO, 1999, p. 100).

Pelo exposto e considerando o posicionamento de Gonçalves (2006), conclui-

se que os marcadores discursivos constituem-se como:

[...] um grupo heterogêneo de elementos de variada estrutura gramatical que se distinguem por suas funções semântico-pragmáticas e se dedicam a precisar, contrastar, confirmar o significado da oração, a marcar a sua ordem com relação a uma oração anterior ou posteriormente enunciada durante o ato conversacional ou, ainda, iniciar, acompanhar, finalizar ou dar continuidade (fazer com que haja avanço) aos turnos conversacionais (intra ou inter-turnos) (GONÇALVES, 2006, p. 97-98).

Assim, segundo Urbano (1999), os marcadores discursivos atuam como

articuladores das unidades cognitivo-informativas, revelando as condições de

produção do texto, ou seja, “são elementos que amarram o texto não enquanto

estrutura verbal cognitiva, mas também enquanto estrutura de interação

interpessoal” (URBANO, 1999, p. 86).

3.2 Operadores argumentativos

Embora algumas vertentes linguísticas classifiquem os operadores

argumentativos como elementos pertencentes à classe dos marcadores discursivos,

opta-se, nesta dissertação, pela classificação à parte dos vocábulos que

desempenham função argumentativa em determinados enunciados.

A opção por não considerar os operadores como variantes dos marcadores

discursivos deve-se à observação de que nem sempre os primeiros respondem aos

três quesitos básicos observados nos segundos (exterioridade dos MDs em relação

ao conteúdo proposicional; independência sintática; falta de auto-suficiência

44

comunicativa), sobretudo no que diz respeito à exterioridade em relação ao

conteúdo proposicional e à independência sintática.

No que tange às marcas linguísticas presentes nos enunciados que cumprem

a função de orientação a uma determinada conclusão, ou seja, os operadores

argumentativos, recorreu-se aos postulados de Ducrot (1981, 1987), considerando-

se a teoria de que a argumentação está inscrita na língua.

3.2.1 As orientações nos enunciados

Na abordagem da argumentação, vertentes que se ocupam de questões

especificamente linguísticas enfocam o estudo das marcas que orientam o

interlocutor. Esse viés de análise é assumido pela Semântica Argumentativa,

corrente teórica em que se inserem as pesquisas desenvolvidas por Ducrot (1981,

1987).

Para o teórico, o ato linguístico fundamental é o de argumentar, ou seja, por

meio da língua, o falante orienta os interlocutores a determinada conclusão. Desse

modo, a compreensão de uma enunciação implica apreender as pistas deixadas na

superfície linguística.

Ao postular que a argumentatividade apresenta-se inscrita na língua, Ducrot

(1981) inaugura uma nova forma de analisar o texto, observando elementos que até

então as outras teorias, como a vertente estruturalista, consideravam irrelevantes.

Estudando, desde a década de 70, fenômenos atrelados à pressuposição, Ducrot

(1981, 1987) passa a considerar o conhecimento extralinguístico possuído pelos

falantes como importante fator para apreensão dos significados no processo de

interação verbal.

Ducrot (1987) postula que a argumentação é inerente à língua e, por isso,

constitutiva dos enunciados. A partir da decodificação das pistas que o locutor deixa

na superfície discursiva, é possível uma leitura mais aprofundada dos textos. O

acionamento de um adjunto adverbial, por exemplo, pode revelar posições do locutor

que permitem a apreensão das diferentes significações do enunciado. Assim, na

perspectiva ducrotiana, a argumentação revela-se mais em sua estruturação

linguística do que na própria informação que veicula.

45

Na teoria da argumentação postulada por Ducrot, a língua não é vista como

tendo a função principal de representar a realidade, mas é concebida como

dependente da enunciação e de um contexto. Nessa perspectiva, ao utilizar a língua,

os interlocutores realizam escolhas significativas entre as múltiplas possibilidades

oferecidas pelo sistema linguístico. Por conseguinte, os falantes, além de atuarem

segundo regras combinatórias, recorrem a artifícios linguísticos que buscam

direcionar a argumentação para determinada conclusão.

Dentro desta concepção, entende-se como significação de uma frase o conjunto de instruções concernentes às estratégias a serem

usadas na decodificação dos enunciados pelos quais a frase se atualiza, permitindo percorrer-lhe as leituras possíveis (KOCH, 2000, p. 104, grifo de autora).

Tais orientações para a apreensão do significado da frase estariam

codificadas e possuiriam natureza gramatical, o que, segundo Koch (2000), implica o

“reconhecimento de um valor retórico (ou argumentativo) da própria gramática”

(KOCH, 2000, p. 104, grifo de autora).

Depreende-se daí o fato de que existem enunciados articulados de modo a

conduzir o interlocutor a determinadas conclusões em detrimento de outras, ou seja,

o enunciado orienta discursivamente.

De acordo com Guimarães (2001, p. 25), quando bem articulada, a

argumentação cria o efeito de verdade, isto é, resulta em um sentimento de

realidade. Por conseguinte, “orientar argumentativamente com um enunciado X é

apresentar o conteúdo A como devendo conduzir o interlocutor a concluir C”. Em

outras palavras, em A, o produtor deve estruturar o enunciado de modo que, a partir

dele, se acredite em C. O autor ilustra as considerações com enunciados ditos por

alguém em um contexto de Copa do Mundo, em que o Brasil foi desclassificado pela

França:

O Zico errou um pênalti no jogo de hoje.

e

Até o Zico errou um pênalti no jogo de hoje.

Segundo Guimarães (2001), é possível interpretar o primeiro enunciado como

uma informação sobre o jogo; essa análise não é extensiva ao segundo enunciado.

46

Pela presença da palavra até, o enunciado pode ser interpretado como um

argumento a favor da conclusão de que a seleção do Brasil jogou muito mal.

Desse modo, a escolha dos recursos linguísticos a serem empregados torna-

se essencial para que o locutor atinja o efeito pretendido com sua fala. Salienta-se

que a seleção das estratégias acontece a partir da situação na qual estão inseridos

os interlocutores e que o acionamento de um determinado recurso linguístico deve

levar em consideração a força argumentativa que assume em prol da tese

defendida.

Assim, os enunciados só podem ser compreendidos se estiverem inseridos

em um lugar comum argumentativo, no qual são compartilhados valores, normas e

bases culturais, que confere sentidos à produção linguística. Depreende-se, pelo

exposto, que o sentido do enunciado se constitui a partir da junção do conjunto de

elementos linguísticos que atua como instrução na frase, da situação de ocorrência

e da enunciação, representada pelo próprio enunciado.

Para o linguista, a frase pode conter elementos cujo significado extrapola o

limite do informacional e passa a atuar como indicador de uma determinada

conclusão.

Essa função tem marcas próprias na estrutura do enunciado: o valor argumentativo de uma frase não é somente consequência das informações por ela trazidas, mas a frase pode comportar diversos morfemas, expressões ou termos que, além de seu conteúdo informativo, servem para dar uma orientação argumentativa ao enunciado, a conduzir o destinatário em tal ou qual direção (DUCROT, 1981, p. 78).

Ducrot (1981) usa a expressão “operadores argumentativos” (OAs) para

designar os elementos explícitos na organização gramatical da frase que indicam a

argumentatividade dos enunciados. Essa classificação engloba conectivos,

advérbios, preposições, locuções adverbiais, conjuntivas e prepositivas, além de

palavras que não se enquadram nas categorias preconizadas pela gramática, como

as palavras que denotam exclusão (só, somente, apenas), inclusão (até, também,

inclusive) e retificação (aliás, melhor).

Koch (2003) faz uma distinção entre duas classes de operadores: os lógico-

semânticos e os argumentativos. Os primeiros estabelecem uma relação entre fato e

verdade, ou seja, conectam o conteúdo de duas proposições. Já os segundos, além

47

de exercer a função citada, inserem argumentos que indicam a intenção em

persuadir o interlocutor.

Ainda para a autora (2000), cabe à Semântica Argumentativa a análise do

papel desempenhado pelas palavras que atuam como operadores argumentativos.

É a macrossintaxe do discurso – ou semântica argumentativa –

que vai recuperar esses elementos, por serem justamente eles que determinam o valor argumentativo dos enunciados, constituindo-se, pois, em marcas linguísticas importantes da enunciação (KOCH, 2000, p. 105, grifos de autora).

Guimarães (2001) critica a abordagem feita pelas gramáticas tradicionais no

que se refere às conjunções, pois, na visão do estudioso, os compêndios

apresentam-se destituídos de reflexão sobre a língua como atividade discursiva,

uma vez que apenas aludem à classificação de tal classe de palavras em

coordenativas e subordinativas. Assim, percebe-se que o tratamento dado pela

gramática tradicional a esses termos é classificatório, uma vez que aponta suas

funções relacionais apenas quando considera a possibilidade de tais elementos

agirem na conexão de enunciados.

Os operadores argumentativos constituem, dessa maneira, uma categoria

linguística que direciona a interpretação dos enunciados. Em outras palavras, trata-

se de recursos acionados pelo locutor para que seja realizada uma leitura autorizada

na qual são apreendidos os sentidos que o produtor pretende instaurar no

enunciado.

Segundo as premissas de Ducrot (1989, p. 18-19),

[...] um morfema X é O.A. em relação a uma frase P se três condições são preenchidas. 1) Pode-se construir a partir de P uma frase P‟ pela introdução de x em P. O que descrevo “P = P + x”. Mas deve-se entender que a introdução de x pode fazer-se não somente por adição, mas também por uma substituição acompanhada, eventualmente, de certas modificações sintáticas. [...] 2) Em uma situação de discurso determinada, um enunciado de P e um enunciado de P‟ têm valores argumentativos nitidamente diferentes: não se pode argumentar da mesma forma a partir de um e a partir do outro. 3) Esta diferença argumentativa não pode ser derivada de uma diferença factual entre as informações fornecidas, na situação do discurso considerada, pelos enunciados de P e de P‟. Ter-se-á notado que esta terceira condição liga a aplicação da definição às possibilidades de derivação que o linguista se dá a si mesmo (DUCROT, 1989, p. 18-19).

48

A palavra até pode atuar como operador argumentativo, pois, em

determinados contextos, estabelece argumento considerado relevante para orientar

o interlocutor à conclusão desejada. É possível ilustrar o exposto com o enunciado:

Prefeitos, governadores e até o presidente da República compareceram ao evento,

no qual se observa que o termo em questão evidencia o argumento mais forte

utilizado para enaltecer a importância do acontecimento.

Koch (2000) apresenta classificação do que denomina de principais

operadores argumentativos. O até é apontado, juntamente com outras marcas

linguísticas, como organizador de hierarquia dos elementos numa escala,

assinalando o argumento mais forte para uma conclusão R.

Ressalva-se que, embora haja sistematizações acerca das funções

assumidas pelos operadores argumentativos, como a formulada por Koch (2000), o

valor semântico apresentado por esse grupo de palavras deve ser observado a partir

do contexto do qual emergem.

Diante disso, adquire relevo o conhecimento das funções desempenhadas

pelos operadores argumentativos, já que eles contribuem para a construção de

sentidos na progressão discursiva. Admite-se, de acordo com Koch (2002), que tais

elementos, ao implicitarem determinadas conclusões e abrirem possibilidades para a

interpretação dos enunciados, podem se apresentar imbuídos de juízos de valores e

conter manifestações das concepções ideológicas do produtor do texto.

O papel desempenhando pelos operadores argumentativos pode ser

observado a partir de uma hierarquização, denominada por Ducrot (1981) de “escala

argumentativa” (EA), que se refere às gradações que os enunciados podem assumir

quanto à sua eficácia no processo argumentativo. Tal organização em escala

baseia-se no conceito de classe argumentativa (CA), cuja definição é apresentada

por Guimarães (2001):

[...] uma classe argumentativa é constituída pelos enunciados cujos conteúdos, regularmente, se apresentam como argumentando para uma conclusão que define a classe argumentativa. E não só numa situação particular específica, mas como uma regularidade que se apresenta como se desse em todas as situações de enunciações possíveis (GUIMARÃES, 2001, p. 27).

O autor ainda considera que uma escala argumentativa é uma classe

argumentativa na qual é possível observar uma relação de força maior ou menor

49

sobre o conteúdo dos enunciados. Ducrot (1981) assevera que “um locutor [...]

coloca dois enunciados de p e p’ na CA determinada por em enunciado r, se ele

considera p e p’ como argumentos a favor de r” (DUCROT, 1981, p. 180).

Esquematizando os conceitos, tem-se:

C.A. E.A.

r r

p‟

p p‟ p

Ilustrando os conceitos, é possível formular o exemplo abaixo:

r: Paulo é ambicioso.

até governador

Ele deseja ser prefeito

pelo menos vereador

No exemplo, observa-se que a função de governador, antecedida pelo termo

até, revela o argumento mais forte utilizado pelo enunciador no sentido de convencer

o interlocutor sobre a ambição de Paulo. Do mesmo modo, o desejo de Paulo em ser

“pelo menos vereador” tem por objetivo apresentar o sujeito como ambicioso,

embora o cargo seja considerado inferior ao de prefeito e governador. Por levar à

mesma conclusão, os operadores até e pelo menos, nesse caso, pertencem à

mesma classe argumentativa, mesmo não pertencendo à mesma hierarquia

argumentativa.

50

Do exposto, observa-se a hierarquia estabelecida pelos operadores em favor

de uma conclusão r.

[...] certos operadores estabelecem a hierarquia de elementos numa escala, assinalando o argumento mais forte para uma conclusão r (mesmo, até, até mesmo, inclusive) ou, então, o mais fraco (ao menos, pelo menos, no mínimo), deixando, porém, subentendido

que existem outros mais fortes [...] (KOCH, 2000, p. 106, grifos de autora).

Retomando a ilustração apresentada anteriormente, não poderiam fazer parte

da mesma classe argumentativa, por permitir conclusões diferentes, os operadores

quase e só em enunciados do tipo:

quase R$1000,00

Helena recebe R$ 1000,00

só R$1000,00

No primeiro caso, o operador quase, situado no ápice da escala, remete à

conclusão r de que Helena recebe um valor considerável, enquanto, no último

exemplo, só implica uma conclusão r, de que o valor recebido por Helena é baixo.

Assim, os operadores em questão apontam para conclusões distintas e, portanto,

não podem ser classificados dentro da mesma classe argumentativa.

De acordo com Ducrot (1989), os enunciados inserem-se em uma classe

argumentativa por conter uma marca da língua. Desse modo, argumentar a favor de

uma conclusão C, por meio de A, implica apresentar A de modo que se possa

concluir C, sendo, por isso, a argumentação constitutiva dos enunciados.

Considerando a importância da orientação de sentido exercida pelos

operadores argumentativos, no interior do discurso, esta dissertação propõe-se,

conforme já anunciado, a pesquisar as diferentes ocorrências do operador até, em

um texto oral, e o efeito de sentido produzido nesse texto, visto que

[...] a significação não se encontra no sentido como parte sua: ela é, no essencial pelo menos, constituída de diretivas, ou ainda

51

instruções, de senhas, para decodificar o sentido de seus enunciados (DUCROT, 1989, p. 14).

Desse modo, o desenvolvimento do estudo implica prolongamento das

pesquisas acerca da língua escrita desenvolvidas por Ducrot em direção ao texto

oral. A conjugação de teorias, segundo Sella (2008, p. 312), desde que observados

objetivos claros, pode “elucidar o funcionamento dos elementos linguísticos em

determinados contextos discursivos”.

Assim, optou-se pela análise do operador argumentativo até, presente em um

texto oral e sua utilização, em um contexto comunicativo real, em que há, segundo

Koch (2006b), uma certa relativização de planejamento.

3.3 Considerações sobre o campo teórico

Os estudos consultados neste capítulo servem para reflexões acerca da

linguagem em funcionamento e da relevância de se observar o estatuto de certos

elementos linguísticos.

Pensando nos marcadores discursivos, pode-se avaliar o importante papel

das pesquisas desenvolvidas no interior da Análise da Conversação, no que tange

ao uso da língua e ao fato de que tal reconhecimento gera reflexões sobre o ensino

dessa língua.

É expressiva a percepção de funções atreladas mais diretamente ao processo

interativo, o que rende ampliação quanto a noções acerca do papel da língua. Sai de

cena o esforço meramente prescritivista, que condena o recurso aos dispositivos da

oralidade, e sai de cena também a primazia que as gramáticas tradicionais dão às

descrições.

Com relação aos operadores argumentativos, percebe-se um avanço mais

evidente, pois estudos propostos pela Semântica Argumentativa e pela Linguística

Textual, por exemplo, têm sido referendados com mais frequência em obras que

versam sobre a língua em uso.

52

4 ANÁLISES DAS FUNÇÕES DE ATÉ NO CORPUS

Neste capítulo, pretende-se, primeiramente, apresentar considerações sobre

o vocábulo até e, posteriormente, apresentar as análises de alguns recortes

extraídos do corpus, a fim de analisar os papéis desempenhados pelo item até

segundo os fenômenos descritos ao longo desta dissertação.

De acordo com Marcuschi (1991), na conversação, as unidades linguísticas

obedecem não só a princípios sintáticos, mas, sobretudo, a princípios comunicativos

para sua demarcação.

Para fins de análise, optou-se por classificar e analisar a palavra até de

acordo com a observação de duas funções por ela desempenhadas no enunciado:

marcador discursivo ou operador argumentativo.

A distinção tem por base a consideração de que esses elementos foram

observados nos recortes selecionados e as funções percebidas acenavam para

duas direções:

a) uma atuação mais relacionada ao mecanismo argumentativo inserido no

interior das informações descritas e/ou apresentadas como argumentos

propriamente ditos; nesse sentido, os elementos sob análise incidem nos enlaces

sintático-semânticos e também argumentativos, o que permite classificá-los como

operadores argumentativos;

b) a outra atuação refere-se mais propriamente ao papel de articulação do

processo de interação e situa “o tópico no contexto geral, particular ou pessoal da

conversação” (MARCUSCHI, 1991, p. 62). Nesse sentido, conforme analisa o autor,

os elementos em questão não “contribuem para o desenvolvimento de informações

novas para o desenvolvimento do tópico”. Tais elementos atuam como marcadores

conversacionais e se apresentam como uma tentativa de organização e elaboração

da conversação.

Desse modo, acredita-se que a análise dos valores e usos dos operadores

argumentativos pode contribuir para ampliar os estudos que versam sobre o tema,

além de possibilitar a reflexão de sua ativação, em uma situação real, na qual os

usuários da língua buscam interagir socialmente por meio do uso da linguagem.

Salienta-se que, embora o foco do trabalho seja a análise do vocábulo até,

considerou-se o sentido constituído no interior dos recortes, ou seja, as possíveis

53

interpretações da fala da própria informante, haja vista o vínculo dos os elementos

sob análise ao contexto linguístico do qual emergem.

4.1 Considerações sobre o vocábulo até

Considerando as classificações e definições apresentadas para o vocábulo

até, em dicionários de Língua Portuguesa, reproduzem-se aqui duas explicações

extraídas de conceituados compêndios:

Até prep. 1. expressa um limite posterior de tempo.

2. expressa um limite espacial, o término de uma distância ou superfície. adv. 3. também, inclusive, mesmo, ainda. 4. no máximo. (HOUAISS, 2001, p.80) Até prep. 1. É usada: a) Para indicar a distância a que se pode chegar [...]. b) Para dizer em que horário alguma coisa termina ou deve terminar [...]. c) O máximo que se pode fazer, ou a que se pode chegar a fazer. adv. 2. ainda, também, mesmo (FERREIRA, 2001, p. 78).

Observa-se que a noção de limite de até está presente em ambas as

definições do termo descritas pelos dicionários, atrelando a ideia de limite, tanto no

plano concreto (espaço e tempo) como no plano abstrato. Percebe-se, ainda, que os

dicionários apontam para a mudança de classe gramatical de acordo com a

significação adquirida pelo termo, indicando que ele pode ser tomado ora como

preposição, ora como advérbio.

Bosque e Demonte (2000) indicam que, na língua espanhola, o termo hasta

apresenta características semelhantes àquelas atribuídas à palavra até pelos

dicionários brasileiros mencionados, podendo ser classificado como advérbio ou

preposição. Na abordagem dos autores, o vocábulo possui apenas as duas funções

citadas e ilustram a diferença entre até preposicional e até adverbial com os

seguintes exemplos: Subiram até o último andar (preposição) e Até subiram ao

último andar (advérbio).

54

Para Neves (2000), o termo pode ser considerado advérbio de inclusão com

incorporação de outros elementos, explicação que a autora exemplifica com o

enunciado: Eu soube até que ele vai usar palmatória em quem agir contra os

interesses do município. Na perspectiva da autora, os advérbios de inclusão e

exclusão atuam sobre a veracidade que se pensa atribuir ao enunciado.

Nesse sentido, conforme indica Rosário (2007), há uma extrapolação da

função tradicional do advérbio, segundo a qual esse termo atua intensificando

palavras, mas não orações.

A difícil delimitação do escopo de um determinado advérbio como o próprio até também pode estar ligada a uma ambigüidade potencial

da frase e com uma hierarquia de análises possíveis e previstas no ato de elocução. Assim, contextos de ambigüidade quanto ao escopo do advérbio podem ser, de fato, um instrumento bastante útil na transmissão de diferentes sentidos no texto (ROSÁRIO, 2007, p. 74).

Desse modo, a alternância de papéis do item até acontece devido a seu

caráter funcional, que altera suas propriedades segundo o contexto em que é

ativado. Ocorre, todavia, que, segundo a perspectiva adotada nesta pesquisa, as

significações de até não se esgotam em sua atuação como preposição ou advérbio,

podendo também atuar no plano discursivo e, assim, configurar-se ainda como

operador discursivo ou operador argumentativo.

Segundo Rosário (2007), as mudanças de significado observadas em relação

ao item até, ao longo dos anos, podem ser observadas em uma relação de espaço,

tempo e texto; o primeiro representa o uso mais comum do item, e o último,

acepções mais inovadoras baseadas no plano discursivo. Assim, a pesquisadora

esquematiza as significações do termo na seguinte tabela:

12

55

(ROSÁRIO, 2007, p. 133)12

De acordo com o esquema, a mudança de classe do vocábulo implica alterar

também a função por ele exercida. Conforme Rosário (2007), há uma tendência de

as formas adquirirem, progressivamente, significados mais abstratos, passando pela

noção de espaço e culminando em uma perspectiva mais abstrata, ligada ao âmbito

textual. Dessa forma, tem-se o seguinte esquema: espaço > tempo > texto, sendo os

itens à direta sempre mais abstratos que os da esquerda.

Esse processo de ressignificação das formas, que se dá ao longo dos anos, é

chamado de gramaticalização, entendida como “o processo pelo qual itens e

construções lexicais passam, em determinados contextos lingüísticos, a servir a

funções gramaticais” (NEVES, 2004, p. 115, grifo de autora). Essa transformação

não ocorre de maneira repentina, mas é fruto de usos em distintos contextos durante

um período considerável de tempo.

O item até, conforme aponta Rosário (2007), inicialmente era considerado

uma forma transparente, sendo empregado apenas para circunscrever a delimitação

espacial. Ilustra-se tal função do vocábulo com um fragmento extraído do corpus:

Recorte Linha Fragmento

1 550 556 558

“[...] JÁ era amiga dos professores também... quando eu falei... “professores... eu vou desistir”... porque era prova de todas as matérias né?... primeiro e segundo grado... e quando veio aquello... falei nossa... eu me apavorei... falei no vou fazer... de aí eu comentei com os professores... e a Fátima... una professora MUIto querida... me falou... “você vai... claro que você vai passar... e... nós vamos te ajudar”... de aí eu ( )... “mas eu não tenho os LIvros... eu tenho os livros da minha filha...no no sé como comenzar”... daí ela... nunca esqueço que ela é::: me trouxe até aqui e falou... “Maria... tá aqui os livros... é só comenzar a estudar”... um MONte de livros... veio de carro... colocou aí na mesa... e de aí comencé:::... comencé a estudar... [...]”

Nesse fragmento, percebe-se que o termo aponta uma limitação concreta no

espaço, indicando o lugar para o qual a amiga da falante levou os livros. A esse

12 Domínio de re: “mundo” exterior ao discurso/ Mundo de dicto: “mundo” interior ao discurso. Segundo

Tavares (2001), o percurso re > de dicto refere-se à transferência do mundo da experiência sensório motora, dos

objetos tangíveis e visíveis, de relações espacio-temporais para o mundo do texto.

56

respeito, Rosário (2007) propõe distinguir a natureza dos referentes aos quais o

termo se atrela, sugerindo as categorias abstratos – lugar abstratizado no discurso –

e concretos – entidades físicas. Desse modo, na ocorrência acima, o termo em

análise é um limitador espacial atrelado a um referente concreto – a casa da

entrevistada – representado pelo advérbio de lugar aqui.

Todavia, nesse caso, o item até não funciona como único elemento com a

capacidade de indicar lugar. Tal noção, propriamente dita, apresenta-se sobretudo

atrelada ao advérbio de lugar aqui, este sim indispensável, nesse recorte, para a

dimensão espacial. Até funciona, então, como um sinalizador para o fim de uma

trajetória iniciada, ou seja, indica o local para onde os livros foram levados.

Segundo os estudos de Rosário (2007), a construção discursiva até aqui é

empregada com bastante frequência pelos falantes. Entretanto, ressalva-se que seu

uso nem sempre se apresenta atrelado à noção de lugar. A locução pode estar

ligada à ideia de tempo, possibilitando sua substituição por até agora, sem que se

perca sua significação original considerando o contexto em que se insere.

Segundo Rosário (2007), foi durante o latim tardio que o termo até passou a

ser utilizado para denotar tempo. Essa face do vocábulo também é ilustrada com

quatro fragmentos retirados do corpus:

Recorte Linha Fragmento

2 69 73

“[...] na quinta série... eu me lembro que nós tínhamos que fazer algunas... é:::... redacciones... eu era péssima em redacción... porque as professoras... né:::... elas:::... colocavam lá... era... e:::.. e:::... ensinava uma vez e... coitado de nós... nós tínhamos que ( )... depois... é::::... oitava série:::... oc... octavo año... no... quinto grado... SEXTO... ATÉ sexto grado era... eu terminé mi sexto grado... daí comencé primer curso... [...]”

3 164 165

“[...] estudávamos inGLÊS... eso sí... inglês... em... desde o:::... desde o segundo... no:::... en el::... en el...primer curso... PRIMER curso... até o sexto curso... era obrigatório inglês... [...]”

4 292 294

“[...]a la noche... las chicas van en la discoteca... ay eso está muy lindo en Paraguai... discotecas internacionales né?... y:::... continuando las fiestas se baila mucho... mediodía até noche... tranquilo... [...]”

57

5 22 25 26

“[...] tínhamos que estudiar eles os professores eram muito exigentes com nós... e o castigo... quando nós não fazíamos as nossas tarefas... eles o que que faziam conosco?... Pegavam así a mão... né?... os quatro dedos... e pegava com a régua... e tchitchi... com a régua... quando no fazíamos a tarefa ou puxava a orelha... né?... e puxava... e os meninos eles iam no cantinho lá no::: num lugar... e ficavam aí até:::... até que...

a::: professora falava para eles que... podiam sair de lá... [...]”

Tanto em 2 quanto em 3, a falante reflete sobre seu período escolar,

circunscrevendo a duração das ações descritas à série que cursava. Desse modo, o

acionamento de até marca um limite para a duração da ação no tempo, que se

apresenta atrelada ao percurso escolar da falante.

Em 2, a ação descrita foi prejudicada pela dificuldade na transcrição da fala

da entrevistada, mas o acionamento de até na sequência permite inferir que a

falante delimita o tempo transcorrido do fato narrado. Por sua vez, em 3, ao traçar

uma linha do tempo, a entrevistada indica até que época apenas o ensino da língua

inglesa era praticado de forma obrigatória na escola, em detrimento de outros

idiomas, como o próprio guarani, uma das línguas oficiais do país.

A noção de limitação temporal apresenta-se mais evidente ainda em 4,

porque o termo está ladeado pelos advérbios mediodía (meio-dia) e noche (noite).

Nesse caso, a falante enuncia a duração das festas paraguaias, que começam ao

meio-dia e se estendiam até à noite de maneira tranquila.

Diante do exposto, observa-se que o termo, quando usado como limitador

temporal, não atua como um marcador discursivo ou operador argumentativo, mas

exerce função clássica de preposição, pois sua presença na sentença é obrigatória,

ou seja, retirá-lo implica perda sintática e semântica para o discurso, portanto.

A gramática tradicional classifica a união preposição + conjunção como uma

locução conjuntiva devido ao caráter, aparentemente, de conector apresentado pela

estrutura. Sendo assim, a ativação de até atuaria no sentido de imprimir à sequência

discursiva a ideia de limite temporal, inclusive quando o vocábulo não se apresenta

anteposto à conjunção que. Todavia, segundo esse viés, ao se unir a tal conjunção,

formando o par até que, obtém-se uma locução com propriedades conjuntivas.

58

Entretanto, no quinto recorte13, a presença de até anteposto à palavra que

rompe com esse parâmetro cristalizado ao não apenas conectar estruturas

discursivas, como também, imprimir a indicação de limite temporal que a falante

pretende atestar quanto à duração dos castigos na escola. Caso atuasse apenas

com o valor conjuntivo, a locução até que poderia ser substituída, sem prejuízo de

sentido, por qualquer outra conjunção temporal, como a palavra quando, por

exemplo. Ocorre que, nesse caso, essa substituição implicaria a perda do sentido de

limite temporal – que a falante deseja demarcar –, explicitado pela enunciação de

até.

A função do item de estabelecer um limite para a ação descrita pela falante

possui uma força tão grande que a sequência discursiva permaneceria com o

mesmo valor semântico, mesmo sem a presença da conjunção que: “Os meninos

ficavam no cantinho, num lugar, ficavam aí até a professora falar que eles poderiam

sair de lá”.

Desse modo, no fragmento em questão, o segundo item até é essencial na

sentença e se assemelha à locução conjuntiva até que por duas características: a

indicação de limite temporal, no campo semântico; e a capacidade de união de

orações, no campo sintático.

Observa-se também que a estrutura até que se apresenta precedida por outro

até, sendo que este apresenta características de marcador discursivo, uma vez que

se percebe, por sua ativação, uma tentativa de articulação discursiva, comprovada

pelo prolongamento vocálico e pela pausa que o procede, para então culminar na

estrutura até que.

Desse modo, a trajetória do termo até pode ser sintetizada nas palavras de

Pereira (2004, p. 51):

Com a sua origem dêitica espacial, na estrutura latina clássica, com o posterior uso como marcador de caso no latim tardio e com seu emprego em relações mais abstratas no português do século XIV e no português do século XVI, com uma maior quantidade de acepções, observa-se a evolução ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE (PEREIRA, 2004, p. 51).

13

“[...] tínhamos que estudiar eles os professores eram muito exigentes com nós... e o castigo... quando nós não fazíamos as nossas tarefas... eles o que que faziam conosco?... Pegavam así a mão... né?... os quatro dedos... e pegava com a régua... e tchitchi... com a régua... quando no fazíamos a tarefa ou puxava a orelha... né?... e puxava... e os meninos eles iam no cantinho lá no::: num lugar... e ficavam aí até:::... até que... a::: professora falava para eles que... podiam sair de lá... [...]”.

59

O objeto desta pesquisa, o item até, pode ser tomado como exemplo da

gramaticalização, uma vez que, conforme o exposto, originalmente era empregado

para indicar limite espacial, passando pelo limite temporal e culminando com a

significação textual, ou seja, podendo caracterizar-se como operador argumentativo

ou como marcador discursivo. No caso dos recortes 1, 2, 3 e 4, o até funciona

apenas como preposição.

As transformações históricas sofridas pelo termo não são o alvo deste

trabalho; portanto, essa questão não será aprofundada. Entretanto, não se exclui a

possibilidade de enfatizar, em estudos posteriores, a história de transformação do

vocábulo. Considerando os objetivos deste trabalho, nas seções seguintes,

observam-se os papéis que o vocábulo sob análise pode exercer em um texto oral-

dialogado, de caráter espontâneo.

Para as análises, dividiu-se o papel de até segundo seu caráter concreto

(limite de tempo e espaço) ou abstrato (textual), e centraram-se as atenções na

atuação de até em sua acepção textual, ou seja, em sua ativação em função do

discurso, fazendo a diferenciação entre até como operador argumentativo e até

como marcador discursivo.

Os fragmentos analisados estão dispostos em tabelas, divididas em três

colunas. A primeira coluna apresenta o número do recorte, situando o leitor em

relação às análises desenvolvidas, pois elas obedecem à numeração elencada na

coluna. Para facilitar a localização do recorte na transcrição da entrevista, a segunda

coluna indica as linhas inicial e final do fragmento, bem como aquela em que se

encontra o termo até na transcrição constante nos anexos da pesquisa. A última

coluna expõe o recorte feito da entrevista.

4.2 Até como marcador discursivo

Nesta seção, serão expostos fragmentos do corpus em que se observa a

presença de até atuando como marcador discursivo. De acordo com Penhavel

(2005, p. 1), os marcadores discursivos “são mecanismos que atuam no nível do

discurso [...], estabelecendo algum tipo de relação entre unidades textuais e/ou entre

os interlocutores”.

60

Nesse grupo, a atuação de até refere-se à inclusão discursiva, ou seja, a uma

estratégia de encadear as partes do texto, numa tentativa de adicionar ao discurso

mais um elemento.

Recorte Linha Fragmento

6 41 43 48

“L1: e na escola... vocês tinham aula de outros idiomas... assim ou não? L2: não... não... era só o... o... castelhano... espanhol na época... só... Quem falava na época em guarani... é:::... davam risada... porque até enton/... até na época... naquela época em

que:::... o que tá fazendo ciquenta... quarenta e pouco anos... eu tinha oito anos né?... É::::... quem falava guarani chamavam de guaranga... guaranga... eu tinha meio que vergonha porque os meus pais falavam... todo guarani... e os meus amigos tudo espanhol né?... E o que que nós tínhamos que fazer?... tínhamos que... que... aprenDER... o... espanhol né?... […]”

7 127 128

“[...] era muy... muy exigente... el segundo grado lá era muito exigente... até hoje... entonces que que que pasó?... [...]”

8 397 403 407 412 414

“[...] o Franco já subiu como gerente...ele era muito esforçado também né... e::::... no no banco... eu eu lembro quando:::... o Franco demorava mais ele me chamava... eu e a Romina íamos caminhando... en el... no banco... e ( ) voltávamos com ele né... e no banco... o pessoal do banco... nossa... tinha o maior respeito conmigo... achava muito lindo eso aí... e ACHAvam bonito quando eu FALAva... falava tudo atrapalhado... é claro até hoje falo... porque no é fácil... no é... no é... fácil... você falar... duas... dois idiomas... así misturam muito... eu quando vou a Paraguai todo mundo fica me olhando porque EU misturo português... sabe?... e tem... tem coisas que::: que:::.. que eu esqu/ esQUEço... no me lembro por exemplo do::: do::: Paraguai... eu agora estava estuDANdo espanhol... e::::... porque daí enton/... MAS... com com... com o correr do tempo... ATÉ enton/... depois eu vim me separei:::...

e todo mais perdi todos ah:::... muitas amizades né... MAS continuei tendo OTRAS.. muito... ah:::... amizades muito lindas né... e daí cuando o:::... quando estuDEI agora na faculdade... aí si... aí eu senti o que que é o preconceito L1: na faculdade? L2: na faculdade... aí eu fiquei muito... aí si... até HOJE por

causa de eso... eu... me bloqueei:::... é::... as colegas... eu percebia que as colegas... se cutucavam né... quando eu tentava falar alguma coisa... elas... davam riSADA.... [...]”

9 462 463

“[...] e foi aí que sufri:: preconceito... antes no... nossa... antes no... MEU Pai... ADOro eso aqui... eu ADOro Brasil... até

hoje... só foi na faculdade que... daí eu já no quis estudar mais

61

465

no quis continuar... no quis fazer mais a minha:::... a minha::: a minha pós... [...]”

As ocorrências de até expostas acima aparentemente possuem a mesma

função daquela descrita na seção anterior por denotarem a duração dos

acontecimentos descritos pela entrevistada. A própria presença de adjuntos

adverbiais explicita a função temporal implicada nos enunciados. A expressão até

hoje, presente em 7, 8 e 9, por exemplo, é comumente empregada em situações em

que se pretende fazer saber que desde algum tempo atrás até o momento presente

ocorre ou ocorria determinada ação. Contudo, além da delimitação de tempo, o

acionamento das estruturas de cunho temporal implica a interrupção do fluxo

informativo para a inserção de comentários sobre a narração apresentada. Em

outras palavras, tais enunciações revelam também a posição da falante quanto ao

que relata à entrevistadora.

No sexto fragmento14, a falante comenta sobre as disciplinas de língua

estrangeira que eram obrigatórias na escola e revela o preconceito linguístico contra

o guarani, que era utilizado apenas em contextos informais, como na esfera familiar.

Ao enunciar “porque até enton/... até na época”, a entrevistada não só situa

temporalmente a ação, como também indica que atualmente a relação com o

guarani não é mais a mesma. Note-se, ainda, que o fluxo discursivo é interrompido

pela a inserção do comentário relacionado ao tempo, sendo enfatizada ainda mais a

relação de distância entre o momento atual e o vivenciado pela falante, quando ela

faz cálculos sobre o passar dos anos.

Essa estratégia linguística adotada circunscreve o período em que as línguas

faladas no país dividiam os estratos sociais. Para Calvet (2002), a existência das

línguas é dependente das pessoas que as falam, assim como a história de uma

língua é a história de seus falantes.

14

“L1: e na escola... vocês tinham aula de outros idiomas... assim ou não? L2: não... não... era só o... o... castelhano... espanhol na época... só... Quem falava na época em guarani... é:::... davam risada... porque até enton/... até na época... naquela época em que:::... o que tá fazendo ciquenta... quarenta e pouco anos... eu tinha oito anos né?... É::::... quem falava guarani chamavam de guaranga... guaranga... eu tinha meio que vergonha porque os meus pais falavam... todo guarani... e os meus amigos tudo espanhol né?... E o que que nós tínhamos que fazer?... tínhamos que... que... aprenDER... o... espanhol né?... […]”.

62

Com efeito, existe todo um conjunto de atitudes, de sentimentos dos

falantes para com suas línguas e para com aqueles que as utilizam, que torna superficial a análise da língua como simples instrumento. Pode-se amar ou não um martelo, sem que isso mude em nada o modo de pregar um prego, enquanto as atitudes lingüísticas exercem influências sobre o comportamento lingüístico (CALVET, 2002, p. 65).

Dessa maneira, mais do que instrumento de comunicação, a língua pode ser

fator de integração, estigmatização ou prestígio social segundo o contexto no qual

se inserem os falantes. Revela-se, no fragmento em questão, a existência da

depreciação da língua guarani e a valorização da língua espanhola, pois a primeira

seria adequada apenas a esferas informais, enquanto a segunda estaria atrelada à

detenção de cultura.

Evidencia-se, assim, que o acionamento da estrutura “até enton/... até

naquela época” restringe e especifica o contexto em que o enunciado deve ser

interpretado, além de constituir uma tentativa de articular coesivamente a fala,

expressa pelas pausas e hesitações do sujeito. Constata-se, no recorte em questão,

que a repetição do marcador discursivo até é intercalada por pausas, o que permite

à falante momentos de organização e planejamento interno na constituição de seu

texto oral. Além disso, embora fixe uma marca temporal, a expressão atua como um

elemento anafórico ao se referir a um evento prévio anteriormente mencionado.

Revela-se, ainda, a alternância entre os códigos linguísticos utilizados pela

falante. Ao enunciar “até enton/”, há uma alusão ao uso da língua espanhola, dado o

pronunciamento de enton, entendido como uma interrupção da palavra espanhola

entonces, em uma tentativa de empréstimo linguístico, que é substituída, na

sequência, pela expressão correspondente em língua portuguesa. De acordo com

Gonçalves (2006), tal fato ocorre por conta de as línguas portuguesa e espanhola

serem originárias do latim, com grande similaridade linguística (lexical, sintático-

semântica e fonética), sendo que “alguns dos marcadores utilizados são

extremamente semelhantes” (GONÇALVES, 2006, p. 104).

Se, em 6, o marcador discursivo até foi acionado para afastar a época

descrita do momento presente, em 715 ocorre o movimento contrário. Ao comentar

sobre a rigidez do sistema de ensino paraguaio, a falante enfatiza o adjetivo

exigente por meio do emprego do advérbio intensificador muy, pronunciado duas

15

“[...] era muy... muy exigente... el segundo grado lá era muito exigente... até hoje... entonces que que que pasó?... [...]”.

63

vezes, intercaladas por pausas. Em seguida, novamente, a falante assevera o

predicativo em uma sentença em que mescla o espanhol com o português e finaliza

como uma pausa, como se estivesse refletindo acerca do que enunciou. Essa pausa

é finalizada quando enuncia “até hoje”, revelando que as premissas do sistema

acadêmico paraguaio permanecem as mesmas e permitindo a inferência de que a

própria entrevistada possui certa admiração em relação a esse fato.

Percebe-se que há a interrupção do fluxo informativo para a inserção do

comentário em questão, avaliado como pertinente pela entrevistada, que é

procedido pela retomada do tópico discursivo sobre sua escolarização. O marcador

discursivo pode ser visto, então, como uma estratégia de correção adotada pela

falante. Nas palavras de Marcuschi (1991), o recurso atua “como processo de edição

ou auto-edição conversacional e contribui para organizar a conversação localmente”

(MARCUSCHI, 1991, p. 29). A falante reflete sobre seu enunciado, considera que

houve uma falha ao enunciar o rigor acadêmico paraguaio por meio do emprego do

verbo no pretérito e se autocorrige no mesmo turno em que a falha aparece.

No recorte 816, observa-se a demarcação do tempo de forma mais acentuada

com ocorrências da expressão “até hoje”. A primeira delas (linha 403) possui uma

característica curiosa, pois, antes da construção em tela, apresenta-se o marcador

discursivo claro, classificado por Urbano (2006) como um fático produzido depois de

enunciado declarativo. Assim, o marcador conversacional é composto por toda a

expressão “é claro até hoje falo”, expressão que, toda ela, serve para avaliar o

conteúdo que vinha sendo relatado.

Berenguer (1995, p. 111) caracteriza marcadores desse tipo como “frases

hechas ya convencionalizadas que los hablantes usan como una unidad gramatical,

16

“[...] o Franco já subiu como gerente...ele era muito esforçado também né... e::::... no no banco... eu eu lembro quando:::... o Franco demorava mais ele me chamava... eu e a Romina íamos caminhando... en el... no banco... e ( ) voltávamos com ele né... e no banco... o pessoal do banco... nossa... tinha o maior respeito conmigo... achava muito lindo eso aí... e ACHAvam bonito quando eu FALAva... falava tudo atrapalhado... é claro até hoje falo... porque no é fácil... no é... no é... fácil... você falar... duas... dois idiomas... así misturam muito... eu quando vou a Paraguai todo mundo fica me olhando porque EU misturo português... sabe?... e tem... tem coisas que::: que:::.. que eu esqu/ esQUEço... no me lembro por exemplo do::: do::: Paraguai... eu agora estava estuDANdo espanhol... e::::... porque daí enton/... MAS... com com... com o correr do tempo... ATÉ enton/... depois eu vim me separei:::... e todo mais perdi todos ah:::... muitas amizades né... MAS continuei tendo OTRAS.. muito... ah:::... amizades muito lindas né... e daí cuando o:::... quando estuDEI agora na faculdade... aí si... aí eu senti o que que é o preconceito”. L1: na faculdade?. L2: na faculdade... aí eu fiquei muito... aí si... até HOJE por causa de eso... eu... me bloqueei:::... é::... as colegas... eu percebia que as colegas... se cutucavam né... quando eu tentava falar alguma coisa... elas... davam riSADA.... [...]”.

64

especialmente en la conversación”17. Do mesmo modo, embora considerem a massa

fônica reduzida um dos traços característicos dos marcadores discursivos, Risso,

Silva e Urbano (2006) observam que 3,3% dos registros de marcadores discursivos

apontam para formas mais longas de realização das unidades, como no caso em

questão.

Nesse sentido, enunciar a expressão implica interromper o fluxo

informacional, que volta a atenção para o próprio processo interacional. Essa

ocorrência lembra um dos direcionamentos presentes na Análise da Conversação,

que diz respeito à preservação da face, segundo o qual “como não há previsibilidade

quanto às ações a serem desenvolvidas pelo(s) outro(s) interlocutor(es), o falante

adota mecanismos que assegurem o resguardo do que não deseja ver exibido”

(GALEMBECK, 2005, p. 173).

Segundo os princípios de preservação da face, os sujeitos possuem uma face

negativa, que compreende sua liberdade de ação e a esfera do território pessoal a

ser defendido, e outra face positiva, correspondente aos anseios de reconhecimento

e aceitação de suas vontades. As pessoas utilizam, então, estratégias para a

preservação dessas faces porque, ao se engajar em uma conversação, os

indivíduos ameaçam as faces dos outros, bem como as suas próprias.

Nas interações verbais, os falantes têm consciência de que se encontram em

uma posição vulnerável, visto que podem ser interrompidos ou contestados por seus

interlocutores. “Por esse motivo, o falante adota procedimentos que lhe permitam

controlar a construção dessa auto-imagem” (GALLEMBECK, 2005, p.172), ou seja,

mudar a significação de uma fala, transformando aquilo que poderia ser considerado

como ofensivo ou intolerável em algo aceitável.

O emprego da expressão sob análise, portanto, pode ser entendido como

uma tentativa de preservação da face, pois a falante faz uma ressalva em relação ao

que havia enunciado anteriormente, em uma tentativa de autocorreção, que se

antecipa a uma possível contraposição do interlocutor a respeito de sua proficiência

linguística.

[...] existe uma motivação estrutural ou pressão estrutural para que o falante faça a autocorreção no interior do mesmo turno e na mesma sentença em que a falha ocorre. Pois é possível que no final da

17

“[...] frases feitas e convencionais que os falantes usam como unidade gramatical, especialmente na conversação” (BERENGUER, 1995, p. 111, tradução nossa).

65

sentença ele perca a palavra e não tenha a chance de seu autocorrigir (MARCUSCHI, 1991, p. 32, grifo de autor).

Assim, a expressão “é claro até hoje falo” é uma estratégia conversacional de

autocorreção que contribui para a intercompreensão durante o processo interacional,

cumprindo, também, um papel de preservação da face. Por meio da atividade

reparadora, foi restaurado o equilíbrio rompido, numa tentativa de amenizar os riscos

de ameaça à face.

Na segunda ocorrência de “até hoje”, na linha 411 do mesmo recorte,

observa-se novamente a descontinuidade no tópico discursivo por meio de sua

ativação. A locutora pretende discorrer sobre o preconceito sofrido na esfera

acadêmica, mas hesita ao tentar descrever seu sentimento em relação à agressão.

A esse respeito, Marcuschi (2006, p. 47) argumenta que as hesitações, recorrentes

na língua falada, “têm a função de ganhar mais tempo para o

planejamento/verbalização do texto, sendo condicionadas por pressões situacionais

das mais diversas ordens a que estão sujeitos os interlocutores”. Desse modo, após

a hesitação, a falante enuncia a expressão como uma tentativa de garantir coesão

entre as sequências do tópico sobre o qual discorre.

No fragmento 8, há ainda a ocorrência do marcador conversacional até –

linha 406 –, usado de maneira enfática, com a elevação do tom de voz da

entrevistada. Há, nesse ponto, o que Jubran (2006b, p. 97) descreve como quebra

na linearidade da organização tópica, uma vez que um dos princípios que a regem é

a continuidade, oriunda de “uma organização seqüencial dos tópicos, de forma que a

abertura de um se dá após o fechamento de outro, precedente”. A ruptura tópica é

representada pelo desvio no curso do relato, em que, inicialmente, a falante

descreve a visão dos brasileiros em relação a seu modo de falar e sua dificuldade

em articular os dois idiomas sem mesclar traços de um no outro, para, na sequência,

narrar as perdas afetivas sofridas com sua separação matrimonial.

Além do marcador discursivo em questão, há a remissão à palavra espanhola

entonces, que, devido a um corte lexical, é enunciada apenas como enton. Mais do

que desempenhar a função de marcação temporal, a expressão “até enton/”

representa uma tentativa de articulação e progressão discursiva.

A falante, aparentemente, perde-se no desenvolvimento do tópico discursivo

sobre sua relação com as línguas portuguesa e espanhola, pois se percebe uma

66

considerável ocorrência de pausas e repetições antecedendo a expressão em

análise, que orienta a fala para um novo tópico discursivo, centrado nas relações de

amizade entre a entrevistada e os brasileiros

Registra-se, quanto a esse particular, uma tendência para, mais frequentemente, o marcador introduzir uma mudança de perspectiva do locutor relativamente à informação que é dada por ele próprio em momento anterior do discurso (RISSO, 2006, p. 444).

Percebe-se, então, que a ativação do marcador discursivo articula a fala da

entrevistada para a retomada do questionamento, feito pela entrevistadora, acerca

da receptividade dos brasileiros em relação a ela. Foi a partir dessa pergunta que a

falante discorreu sobre sua habilidade como trilíngue, retomando o foco da questão

somente no final do enunciado, após a introdução de “até enton/”. Na sequência, a

informante declara de que foi vítima de preconceito durante a faculdade.

Apesar de relatar a discriminação sofrida, no âmbito acadêmico, a falante

afirma, no trecho 918, que gosta do Brasil. Novamente, o acionamento da estrutura

“até hoje” não só delimita a duração do acontecimento, como também, aliada ao

termo “só”, que é ativado na sequência, expõe o posicionamento da entrevistada.

Nesse sentido, a expressão “até hoje” carrega em si um sentimento positivo,

relacionado às experiências no país; e uma conotação negativa ao enunciar “só”,

referindo-se a experiência na faculdade, que estaria excluída das boas recordações

englobadas por “até hoje”. Desse modo, ao enunciar “até hoje”, a entrevistada

parece fazer uma concessão, como se dissesse “Apesar do que aconteceu, continuo

gostando do Brasil”.

Pelos recortes expostos, observa-se que, embora seja acionado com a função

básica de articular as sequências discursivas, promovendo a coesão entre elas, o

marcador discursivo até é ativado, no fio discursivo, com diferentes propósitos,

confirmando a análise feita por Risso, Silva e Urbano (2006, p. 418): “[...] dificilmente

um determinado MD exerce uma única função em caráter permanente e absoluto”.

Em todas as ocorrências analisadas, até apresenta-se antecedido por pausas,

recurso que garante ao termo, segundo Gonçalves (2006), certo valor retardatário,

pois a falante utiliza-se da palavra, bem como da frase que esta introduz, para

18

“[...] e foi aí que sufri:: preconceito... antes no... nossa... antes no... MEU Pai... ADOro eso aqui... eu ADOro Brasil... até hoje... só foi na faculdade que... daí eu já no quis estudar mais no quis continuar... no quis fazer mais a minha:::... a minha::: a minha pós... [...]”.

67

ganhar tempo na organização mental do enunciado. Desse modo, ao mesmo tempo

que articula o texto, a presença do marcador discursivo o segmenta.

O marcador discursivo utilizado pela falante não é ativado a esmo, mas se

apresenta atrelado à situação de comunicação em que aparece. Percebe-se que,

além de o elemento linguístico atuar como articulador discursivo, seu uso apresenta-

se ligado à necessidade de expressão emotiva, ou seja, a falante mostra intenção

bem delimitada em relação à interlocutora, pois o acionamento do marcador provoca

uma alteração no valor do enunciado. Assim, a falante tenta adequar a linguagem ao

contexto de interlocução, tendo em vista a presença da interlocutora.

4.3 Até como operador argumentativo

De acordo com Ducrot (1981), o valor argumentativo de um enunciado não

veicula apenas informações, pois, por intermédio de determinados morfemas,

expressões ou termos, há o encaminhamento do interlocutor para uma determinada

direção.

Para o autor, alguns elementos linguísticos devem ser considerados na

interpretação de qualquer enunciado, principalmente daqueles que orientam

argumentativamente de forma a conduzir o interlocutor a determinada conclusão.

Segundo o linguista, o sentido dos enunciados deve ser compreendido com as

combinações possíveis desses enunciados com outros da língua, ou seja, como

função de sua orientação argumentativa.

Nessa perspectiva, segundo Sapata (2006), a enunciação é entendida como

um evento cuja descrição encontra-se, de certa forma, dentro do próprio enunciado.

Entender o sentido de um enunciado como o “retrato” de sua enunciação é admitir que ele implica (mostra) o modo como aquilo que se diz é dito, ou seja, tanto a sua força ilocucionária, como o futuro discursivo que, a partir dele, se abre às conclusões para as quais ele se apresenta como argumento (SAPATA, 2006, p. 476).

A enunciação é definida, em Guimarães (2001), como um acontecimento de

linguagem; ela se constitui pelo funcionamento da língua, no cruzamento com a

exterioridade da língua. A compreensão da enunciação, desse modo, significa

68

apreender as marcas deixadas pela língua, pois, conforme Koch (2000), não há

discurso descomprometido, uma vez que todo enunciado aponta para determinadas

conclusões.

Segundo Guimarães (2001), a argumentação estrutura o discurso, pois marca

as possibilidades de sua construção e garante a continuidade ao articular

enunciados de modo a transformá-los em texto. Sendo assim, por meio da língua, o

falante orienta seu interlocutor para determinada conclusão, ou seja, há uma

orientação argumentativa que estabelece o modo de interpretar o texto. A exposição

de um conteúdo objetivando um sentido é mais facilmente percebida quando há

operadores argumentativos, tais como até.

Ao eleger determinados recursos em detrimento de outros, o sujeito

compromete-se com as estratégias escolhidas. Por outro lado, o interlocutor, situado

no campo da interpretação, é orientado a seguir algumas pistas que buscam adesão

em relação à ideia defendida.

Considerando tais concepções teóricas, selecionaram-se fragmentos da

entrevista em que a palavra até orienta argumentativamente os enunciados.

Observou-se que, no corpus, o termo, como operador argumentativo, atua em dois

direcionamentos: hierarquiza elementos em escala e demarca concessão.

4.3.1 Até hierarquizando argumentos em escalas

Percebe-se que, em todas as ocorrências elencadas a seguir, o operador até

enquadra-se no rol dos operadores que assinalam o argumento mais forte de uma

escala de orientação no sentido de dada conclusão, conforme explicita Koch (2000).

Segundo a autora, trata-se de uma função cujo sentido é o de hierarquizar os

argumentos em escala, apontando para aquele considerado o mais forte em prol de

uma conclusão r. No mesmo grupo de até, enquadram-se os termos inclusive,

mesmo e até mesmo, sendo que estes não foram verificados no corpus desta

pesquisa.

Nos exemplos expostos nessa seção, inserem-se todas as ocorrências de até

como estratégia argumentativa, isto é, aquelas que chamam a atenção do

interlocutor para as intenções comunicativas do produtor do discurso.

69

Recorte Linha Fragmento

10 38 40

“[...] Mas foi bem sofrido... sabe?... Porque nós queríamos se forMAR... queríamos estuDAR...é:::... só que chegávamos da escola e tínhamo/ que ir trabalhar... vender leche... frutas... e verduras... até bananas eu vendia. [...]”

11 439 446 447

“[...] enton/ todo eso vino naqule tempo em que eu me formei... eu sufri MUIto... porque eu no esperava... realmente eso aí das minhas colegas... eu NO tenho culpa... eu... eu estudei basTANTE litertura... e por coICIDENCIA... claro... habrá sido una coiciDENCIA... de que aquello que eu estudei... caiu en ese dia... porque LÓGICO que eu no vou saber toda a literaTUra::: né?... é ÓBVIO eso aí...eu no no estudei aqui... MAS... infelizmente eu tirei CEM... eu fiz TUDO... eu::... acertei TOdas as questões...e por eso elas... meu Deus do céu... de ahí elas colocaram até advogado que:::... eles queriam que eu... é:::... fizesse outra prova né? [...]”

12 472 474 475

“[...] eu vejo nas crianças... elas são sinceras... né... nós adultos temos um pouco essa maldade... temos inveja né... que... um é melhor que o outro... e o que que eu percibi até entre os pro/ professores também existe eso aí... eu particularmente NO [...]”

13 658 661 662

“[...] MAS o povo no GEral eles ADOram o brasileiro sabe por quê?... porque o povo brasileiro::... um povo muito trabalhor né?... e lá a veces o::: povo de Paraguai toma así toma o famoso tererê de eles... atrasa TUdo... e já:::... estão acostumados... no adianta... porque ATÉ a empregada doméstica tem que sentar e tomar o tererê de eles... e eu fico LOUca quando eu vou.... quando vejo essas coisas lá... […]”

Segundo Guimarães (2001), os enunciados apresentam-se marcados por

uma orientação argumentativa. No fragmento 10, linha 40, percebe-se que tal

direcionamento é dado pela presença de até.

Ao ser atualizado pela falante para descrever o trabalho que desenvolvia

concomitantemente aos estudos, o operador argumentativo, antecedendo o

substantivo banana, pode ser visto como uma razão apresentada, na enunciação, a

favor de uma conclusão, como, por exemplo, a de que as condições financeiras da

família não eram boas. Tal conclusão pode ser inferida a partir da associação de até

com os demais elementos elencados pela falante na descrição feita.

Considerando-se o contexto atual, onde se insere a falante, percebe-se que é

comum entre os sujeitos o emprego do ditado “a preço de banana” para fazer

70

referência a produtos ou serviços cujo valor é relativamente insignificante. Numa

possível alusão à frase popular, a participante aciona o operador argumentativo,

com o sentido de inclusão, para indicar sua situação financeira na época.

Nota-se que a falante não necessitaria citar o item banana isoladamente, pelo

fato de ele já estar contido no grupo frutas, mas opta por fazê-lo de maneira enfática

ao utilizar o operador argumentativo, constituindo uma avaliação do locutor sobre o

que enuncia.

r= A família da entrevistada não dispunha de muitos recursos

financeiros.

A entrevistada precisava vender até banana.

A entrevistada precisava vender leite, frutas e verduras.

Conforme Guimarães (2001), o operador em questão seleciona o argumento

mais forte de uma escala para se chegar a uma conclusão. Assim, o item até orienta

argumentativamente o enunciado ao situar a fruta banana no topo dos argumentos

utilizados para indicar o nível financeiro da família.

Observa-se, ainda, que essa interpretação é amparada pelo uso de “só que”

no início do relato. As considerações de Ducrot (1981) a respeito do elemento mas

podem ser estendidas à combinação “só que”: o acionamento do operador evidencia

o jogo enunciativo que se dá a partir das intenções do locutor e da maneira como

este as demonstra. Desse modo, no fragmento 10, percebe-se que, mais do que

opor dois enunciados, a expressão “só que”, linha 40, assinala uma quebra de

expectativa quanto ao que se enuncia antes do acionamento da estrutura. Assim,

primeiramente, há o relato sobre o desejo em relação à conclusão dos estudos;

entretanto, o operador argumentativo instaura uma sequência que rompe com a

conclusão esperada sobre a vida acadêmica da falante.

Da afirmação da entrevistada, depreende-se que o ato de estudar requer

dedicação e concebem-se como incompatíveis – ou, pelo menos, dificultosas – as

71

atividades de estudar e trabalhar quando executadas ao mesmo tempo. Em termos

argumentativos, o dado “precisavam trabalhar” imprime maior força ao enunciado.

A expressão “só que”, somada ao acionamento do operador até, permite

concluir que os operadores foram utilizados pela entrevistada no sentido de orientar

a interlocutora a compartilhar a ideia de que a infância e o processo de

escolarização da informante no Paraguai estiveram permeados por adversidades.

O operador constitui-se, nos recortes analisados, uma estratégia discursiva

acionada pela falante, que busca focalizar o argumento mais relevante, em termos

de escala, para se chegar a uma conclusão r.

No fragmento 1119, até, linha 446, imprime maior força argumentativa ao que

a entrevistada relata. Quando questionada se já havia sofrido algum tipo de

preconceito por ser uma imigrante, a participante relata que as colegas não

admitiam o fato de uma paraguaia ter um desempenho melhor do que as brasileiras

na disciplina de Literatura e, por isso, exigiram, junto à administração da

universidade, que a entrevistada fosse submetida a uma nova avaliação. Entretanto,

a reivindicação das colegas descontentes não se limitou à reclamação na diretoria

da instituição de ensino, tendo culminado na procura de um advogado – nas

palavras da entrevistada, “elas colocaram até advogado” – para se instaurar um

processo sobre o caso.

Observa-se que o termo até poderia ser retirado da sentença sem que isso

acarretasse danos à estrutura sintática, sendo facultativa sua presença. Ocorre que

a retirada do vocábulo implicaria prejuízos semânticos para o enunciado devido à

perda do relevo que a falante pretendeu dar ao fato de um jurista ter sido acionado.

Segundo Ducrot (1981), considerando p e p’, inseridos em uma mesma classe

argumentativa orientada pelo enunciado r, “diremos que o enunciado p’ é mais forte

que p, se toda classe argumentativa que contém p contém também p’, e se p’ é nela,

cada vez superior a p” (DUCROT, 1981, p. 182). Assim, em uma sequência

discursiva do tipo p até p’, infere-se que uma conclusão r é determinante de uma

escala argumentativa em que p’ é mais forte do que p.

19

“[...] enton/ todo eso vino naqule tempo em que eu me formei... eu sufri MUIto... porque eu no esperava... realmente eso aí das minhas colegas... eu NO tenho culpa... eu... eu estudei basTANTE litertura... e por coICIDENCIA... claro... habrá sido una coiciDENCIA... de que aquello que eu estudei... caiu en ese dia... porque LÓGICO que eu no vou saber toda a literaTUra::: né?... é ÓBVIO eso aí...eu no no estudei aqui... MAS... infelizmente eu tirei CEM... eu fiz TUDO... eu::... acertei TOdas as questões...e por eso elas... meu Deus do céu... de ahí elas colocaram até advogado que:::... eles queriam que eu... é:::... fizesse outra prova né? [...]”

72

Dessa forma, o fragmento 11 pode ser organizado, em termos de argumento,

da seguinte maneira:

r = A entrevistada foi vítima de preconceito.

p’ = Até um advogado foi acionado para que a entrevistada

refizesse a prova de literatura.

p = As colegas queriam que a entrevistada refizesse a prova

de literatura.

Conforme Ducrot (1981, p. 185), “toda conclusão autorizada por um

enunciado „fraco‟ de uma escala, é autorizada ainda melhor por um enunciado forte

desta escala.” Há, portanto, uma gradação nos argumentos empregados pela

falante, sendo que o mais forte deles apresenta-se introduzido pelo operador até.

Percebe-se, assim, que o fato de as colegas buscarem auxílio jurídico é o

argumento máximo utilizado pela falante para declarar-se como vítima de

discriminação devido à sua nacionalidade.

Em sua dissertação de mestrado, Angnes (2004, p. 40) alerta para as

questões de alteridade no que diz respeito ao uso da língua. A autora afirma que

parte da população brasileira tende a estigmatizar os imigrantes paraguaios, bem

como o espanhol falado no Paraguai, ao “realizar comentários discriminatórios em

relação às diferenças culturais e mesmo linguísticas em direção a paraguaios e

produtos lá comercializados”.

O fragmento em análise expõe as questões de alteridade, envolvendo

julgamentos e percepções sobre os outros. No caso específico, a situação relaciona-

se às manifestações de falantes de uma localidade relativas à cultura de outros

sujeitos e à sua própria cultura.

73

O termo maldade é tomado como tópico pela informante e ainda como mote

para o estabelecimento da escala argumentativa acionada no recorte 1220. Dessa

forma, traça-se comparação entre criança e adulto e, depois, orienta-se para a

seguinte escala, mediante correlação adulto/maldade: maldade adulto

professor.

Sistematizando a hierarquização dos argumentos utilizados pela falante em

prol de uma possível conclusão r, tem-se:

r= Os adultos são maldosos

Até professores são maldosos.

Outra profissão qualquer

Questionada sobre sua preferência quanto ao público a quem ministra aulas,

a falante afirma preferir as crianças pelo fato de elas não terem maldade. Em

contrapartida, os adultos não a atraem por competirem entre si. Essa

competitividade exposta pela entrevistada é realçada quando enuncia que tal

característica foi observada por ela até entre os professores.

É importante observar que, via de regra, o grupo de professores é constituído

pelos adultos anteriormente mencionados pela falante, portanto, seria dispensável

uma referência aos profissionais. Contudo, a entrevistada opta por citá-los

separadamente e de maneira enfática, sendo essa menção antecedida pelo

operador até. É possível interpretar essa enunciação da entrevistada como

reveladora de seu ponto de vista sobre os professores, que, segundo a visão

popular, deveriam servir de exemplo aos alunos.

Dessa maneira, a falante revela, ao mesmo tempo, surpresa e indignação por

constatar que o grupo que deveria ser modelo também apresenta valores que

20

“[...] eu vejo nas crianças... elas são sinceras... né... nós adultos temos um pouco essa maldade... temos inveja né... que... um é melhor que o outro... e o que que eu percibi até entre os pro/ professores também existe eso aí... eu particularmente NO [...]”.

74

considera negativos. É por isso que os professores são apresentados como

argumento máximo para explicar a preferência da falante pelo público infantil.

Em 1321, o operador argumentativo até continua distribuindo os argumentos

elencados pela falante em posição de escala. Questionada sobre os hábitos do povo

paraguaio, a entrevistada indica uma suposta tranquilidade dos conterrâneos.

r= Os paraguaios são sossegados.

Até a empregada doméstica toma tererê. (b)

O povo paraguaio toma tererê. (a)

De acordo com Guimarães (2001, p. 28), “toda sequência X até Y é de uma

escala argumentativa cujos conteúdos de A e B são argumentos para r e B é um

argumento mais forte do que A”. Assim, ambos os enunciados podem ser vistos

como argumentos para a conclusão suposta. Entretanto, o argumento do enunciado

(b) apresenta-se como superior ao do enunciado (a).

Além de estabelecer a hierarquia de argumentos, no recorte 13, linha 661, o

operador até pode ser tomado, ainda, como um indicador do espanto da

entrevistada sobre o fato de as empregas domésticas interromperem suas atividades

em nome do costume nacional. O acionamento do operador argumentativo, portanto,

evidencia o jogo enunciativo que se dá a partir das intenções do locutor e do modo

como este as revela.

Nos argumentos usados, a locutora revela percepções culturais, que, é óbvio,

não foram criadas por ela; algumas, inclusive, depõem contra ela, visto que

descreve o povo paraguaio como se sua condição de imigrante no Brasil a

distanciasse dos atributos dados por ela mesma aos compatriotas do Paraguai.

21 “[...] MAS o povo no GEral eles ADOram o brasileiro sabe por quê?... porque o povo brasileiro::... um povo muito trabalhor né?... e lá a veces o::: povo de Paraguai toma así toma o famoso tererê de eles... atrasa TUdo... e já:::... estão acostumados... no adianta... porque ATÉ a empregada doméstica tem que sentar e tomar o tererê de eles... e eu fico LOUca quando eu vou.... quando vejo essas coisas lá... […]”.

75

Dessa maneira, acredita-se que todos os falantes têm a capacidade de emitir

juízos de valor, tanto positivos quanto negativos, sobre determinada língua. A esse

respeito, Aguilera (2008b) afirma que

A atitude lingüística assumida pelo falante implica a noção de identidade, que se pode definir como a característica ou o conjunto de características que permitem diferenciar um grupo de outro, uma etnia de outra, um povo de outro (AGUILERA, 2008b, p. 106).

Por meio da experiência, todavia, as pessoas passam a manter ocultas

algumas de suas atitudes: “na realidade, é uma característica comum do

pensamento humano fazer inferências sobre as atitudes dos outros e regular nossas

próprias ações em conformidade” (LAMBERT; LAMBERT, 1968, p. 79). A falante

revela, assim, por meio das estruturas linguísticas, especialmente do uso de até,

traços de acomodação à cultura brasileira, pois avalia negativamente os hábitos dos

nativos do Paraguai.

Ressalta-se que nem sempre todos os argumentos da escala apresentam-se

explícitos no texto. Deve-se também observar o contexto em que o discurso insere-

se, considerando o conhecimento de mundo que se tem acerca de determinado

assunto.

Diante do exposto, constata-se que, mesmo quando atua como operador

argumentativo, o termo até possui ainda as propriedades de indicador de limite, uma

vez que aponta para o argumento derradeiro em prol de uma conclusão r, ou seja,

indica o limite entre os argumentos acionados pela falante. Segundo Rosário (2007),

isso ocorre devido ao fenômeno da persistência, em que os termos tendem a

conservar alguns traços de seus matizes de origem.

No corpus, não foi constatada nenhuma ocorrência de termos similares a até,

como inclusive ou mesmo, indicando que, no texto oral sob investigação, o termo até

foi utilizado como único recurso linguístico para introduzir os argumentos mais fortes.

Pelos fragmentos analisados, evidencia-se que os estudos norteados pela

Semântica Argumentativa podem colaborar para a apreensão das estratégias

argumentativas de que o falante lança mão, por meio das pistas linguísticas

deixadas no enunciado – neste caso, especialmente o acionamento do operador

argumentativo até –, com o intuito de provocar a adesão do interlocutor à tese

defendida.

76

4.3.2 Até denotando concessão

Além da função de hierarquizar elementos em escala, observada na seção

anterior, três ocorrências de até como operador argumentativo agregam uma nova

carga semântica ao item. Nos fragmentos abaixo, o termo possui, aparentemente,

um significado atrelado à ideia de concessão.

Recorte Linha Fragmento

14 482 484 489

“[...] eu SEMpre gostei de lecionar crianças... eu já... já aaa.. aprendi... lá já lecionava né?... agora por eso que eu fico entre... entre lecionar adulto o adolescente... adulto até dá pra

pensar... adulto né... bem adulto... porque eles vão para estudar mesmo... no brincar... em... que nem essa... eu estava esses dias... eu fui sustituir a professora... una professora lá na Harpa... e aí tem seNHOres...que QUErem estudar... enton/ com ESSE... tudo bem... é:::... é gostoso porque eles vão para para esTUDAR... no van para brincar... e as crianças também... as crianças brincam... mas se você falar para criança ... pode parar... até no vai parar no né... mas aí... três

o dos dos três vezes ele para... e eles son sinceros [...]”

15 497 501 512

“[…] L1: e você acha que você leva alguma.... algum tipo de vantagem quando você vai procurar um emprego... pra dar aula de espanhol... você paraguaia por já falar o espanhol... leva alguma vantagem sobre um professor que se forma aqui no Brasil por exemplo? L2: en una... é... po pode até ser... porque eu... eu sou

paraguaia mas eu sou... é:::... sei faLAR o espanhol... lógico agora que eu esTUdei... aí tudo bem... en una das escolas que eu fui aqui... é:::... eles me falaram... o:::... o::::... dono da escola me falou... “eu prefiero una:::... una:::... professora que fala já... o espanhol”... porque ele também foi para Estados Unidos...ficou lá dieciséis anos com a esposa... e hoje eles están aí... abriram una escola... e ele... ele me falou... ele me falou... “eu prefiero porque de ahí tem... tem...” según ele... eu estou te falando o que ele me comentou né... según ele disse que tem professoras aí que já foram aí que están esTUDANdo ainda o espanhol né... que ele percebeu que:::... no:::... é:::... que.... que ela fala tudo errado... e que ele preferia realmente una:::... una:::... una que já é nativa no caso... MAS aí eu falo que tem ÓTImas professores porque... é:::.. tem... están se formando professores muito bons em espanhol... claro... […]”

77

Nesses três registros do operador argumentativo até, a falante parece acioná-

lo com a intenção de abrir uma concessão diante do que está narrando.

No recorte 14, em que manifesta sua preferência em ministrar aulas para

crianças, a falante emprega o termo até em uma conotação de possibilidade. Ela

poderia abrir uma exceção (“até dá pra pensar”) para trabalhar com adultos. Desse

modo, a entrevistada mantém, no topo da escala sua predileção pelo público infantil,

mas faz uma concessão ao analisar a possibilidade de dar aulas para adultos,

demonstrando uma opinião contrária a que vinha sendo evidenciada em sua linha de

raciocínio.

Fato idêntico é observado na linha 489 do mesmo fragmento. A falante

discorre sobre o comportamento das crianças em sala de aula, e o modo como

conduz seu discurso leva o interlocutor a inferir que são obedientes, que acatam

imediatamente as instruções dadas pela professora. Ocorre que, ao enunciar “até no

vai parar no né”, a entrevistada opera uma quebra na expectativa produzida

anteriormente e abre uma concessão, segundo a qual as crianças não mudariam de

comportamento ao primeiro comando, sendo necessário insistir para a obtenção do

comportamento desejado: “mas aí... três o dos dos três vezes ele para”.

Dinâmica semelhante é percebida em 15. Questionada sobre uma suposta

vantagem que teria ao procurar emprego em escolas de idiomas por ser uma falante

de espanhol nativa, a entrevistada vacila ao responder. Inicia uma fala permeada por

pausas, gagueja e enuncia que “pode até ser”. As hesitações, aliadas à gagueira e

ao uso de até, evidenciam o caráter de incerteza da declaração da entrevistada. O

operador apresenta-se, ainda, ladeado pelo verbo modalizador poder, que reforça o

caráter de possibilidade, visto que a falante não está convicta do que diz.

Segundo Petri (2001), a forma como a pergunta está organizada é portadora

de restrições e expectativas, além de pressupor determinadas situações. Assim, na

sequência do enunciado, é possível confirmar que a falante não compartilha o

posicionamento apresentado na pergunta de que levaria vantagem sobre as demais

professoras formadas no Brasil, pois afirma que o país possui bons docentes da

disciplina. Percebe-se, então, um processo de negociação da significação do

enunciado caracterizado pela pergunta da entrevistadora.

Desse modo, os três usos de até elencados nesta seção apresentam um

caráter de concessão. Nesses casos, a falante empregou o item quando não estava

segura quanto ao tópico discursivo.

78

Observa-se que, nesses casos, o acionamento de até parece estar mais

relacionado à inserção de comentários, no fio discursivo, do que propriamente à

hierarquização dos argumentos, fato que poderia ser considerado como um aceno

para a aproximação entre os papéis de operador argumentativo e marcador

discursivo desempenhados pelo termo.

4.4 Casos de difícil classificação: aparente dualidade nas funções assumidas

por até

Observou-se, no corpus, a ocorrência de casos em que a classificação do

termo até apresenta-se nebulosa, pois parece ocorrer uma dualidade em seu

comportamento, podendo o termo ser classificado tanto como operador

argumentativo quanto como marcador discursivo.

Vejam-se os casos no quadro abaixo:

Recorte Linha Fragmento

16 148 153 157

“[...] porque o Paraguai é bilíngue tem o espanhol e o guarani junto... Agora tem o::... de::... o:::... como que o povo... como que nós falávamos... nós misturamos... el... castelhano.... com o guarani... e o que nós... e e... em esses... em... em... em esses dos... duas misturas... se forma Jopará... é o que o povo fala... no... o povo de Paraguai no fala o verdadeiro guarani... eles falam Jopará... enton/ que eu estava lendo até me informé lá quando eu fui... é::::.... con alguns... é que praticamente tem três idiomas... porque o espanhol... que falam los de la classe social mais alta e:::... a:::... as pessoas que vão.... trabalhar né?... TEM que ser espanhol... exigem... no POde misturar aí... guarani no... e::: de ahí falam... tem pessoas que falam BEM o guarani... mas a MAIORIA do povo fala o Jopará... [...]”

17 160 163 165

“[…] nas esCOlas... están ensinando... o guarani... é um idioma MUITO difícil... MUITO difícil... que EU sí... eu tenho dicionários... é:::... a minha:::... a minha sobrinha desistió de ensinar e ela ensinava guarani... era profeSOra de guarani... enton/ ela me deu de presente os... eu tenho os livros de ela... até están com uns professores... e guarani é MUITO difícil... e

na época nós no:::... nós no... NADA em guarani...estudávamos inGLÊS.. […]”

79

No recorte 16, linha 153, no qual a entrevistada descreve as línguas faladas

coloquialmente no Paraguai, observa-se que até busca relacionar coesivamente os

enunciados proferidos pela falante. Tradicionalmente, o vocábulo até é classificado,

conforme Bechara (2003), como uma preposição essencial, isto é, como uma

palavra que, em língua portuguesa, só pode assumir esse papel. Entretanto,

observa-se a opacidade semântica apresentada pelo item no fragmento em questão,

peculiaridade considerada como um dos traços apresentados pelos marcadores

discursivos. Nesse contexto, a unidade extrapola os limites funcionais da preposição

e atua enfatizando a fala que a procede.

Percebe-se, ainda, que o marcador apresenta-se inserido em uma sequência

cujo objetivo é introduzir um dado particular no assunto narrado pela entrevistada. A

falante interrompe o tópico discursivo sobre o falar paraguaio e insere um

comentário com o intuito de imprimir credibilidade sobre aquilo que descreve, ou

seja, sobre a relação entre o espanhol, o guarani e o dialeto jopará. Entretanto, tal

informação não é suficiente “para constituir um novo conjunto de centração, isto é,

um novo tópico” (RISSO, 2006, p. 441).

Desse modo, o encerramento do comentário é anunciado por alongamentos

vocálicos e pausas, que evidenciam a tentativa de planejamento do uso da língua

empreendido pela falante. Na sequência, observa-se a retomada do tópico

discursivo anteriormente interrompido.

Após o detalhamento dos dados nos quais se baseia, constata-se uma pausa

na fala da entrevistada, em um provável processo de elaboração discursiva, e, na

sequência, o tópico sobre a articulação entre espanhol, guarani e jopará é retomado

pela falante.

Dinâmica semelhante pode ser observada no fragmento 17, linha 163, em

que, novamente, há a interrupção do fluxo discursivo para a inserção de um

comentário da falante. Mais uma vez, a atuação de até apresenta-se vinculada à

articulação intratópica, em que “estabelece conexões circunscritas ao âmbito de um

segmento tópico específico, promovendo, em sua estruturação, o sequenciamento

de proposições integradas no mesmo conjunto de referentes em centração” (RISSO,

2006, p. 441). Assim, embora comente sobre quem detém os livros atualmente, o

dado não é representativo para constituir um novo tópico discursivo, que se volta

novamente para a dificuldade de aprendizado do guarani.

80

O intratópico inserido no fluxo discursivo pelo acionamento do marcador até

apresenta-se delimitado por demarcação prosódica, representada pelas pausas

demarcativas que sinalizam para uma autonomia entonacional do segmento,

semelhante aos que se observa nos vocativos.

As pausas são tomadas, ainda, segundo Marcuschi (1991, p. 63), como

marcadores discursivos suprassegmentais e “constituem um fator decisivo na

organização do texto conversacional”. Desse modo, no fragmento sob análise,

ocorre a ativação concomitante de dois marcadores discursivos, de natureza distinta,

na tentativa de estabelecer coesão entre as partes do discurso.

Por outro lado, os mesmos itens podem ser tomados como operadores

argumentativos, já que até atua hierarquizando os argumentos em escala.

Tal função pode ser observada ainda em 1622, quando a entrevistada faz um

relato sobre as línguas faladas no Paraguai. A falante menciona o jopará, que seria

um dialeto local, mais falado do que o próprio guarani, e parece querer dar

credibilidade à própria fala ao mencionar que leu e que até se informou sobre o

assunto com os nativos quando esteve no Paraguai. Desse modo, o termo até, que

pode ser substituído por inclusive, sem prejuízo semântico para o enunciado, revela

o argumento mais forte utilizado pela entrevistada para atestar a veracidade do que

está enunciando.

Em escala, é possível criar o seguinte esquema:

r= É comprovado que o Jopará é mais usado no Paraguai do

que o Guarani.

A entrevistada até se informou sobre o assunto com os nativos.

A entrevistada leu sobre o assunto.

22

“[...] porque o Paraguai é bilíngüe tem o espanhol e o guarani junto... Agora tem o::... de::... o:::... como que o povo... como que nós falávamos... nós misturamos... el... castelhano.... com o guarani... e o que nós... e e... em esses... em... em... em esses dos... duas misturas... se forma Jopará... é o que o povo fala... no... o povo de Paraguai no fala o verdadeiro guarani... eles falam Jopará... enton/ que eu estava lendo até me informé lá quando eu fui... é::::.... con alguns... é que praticamente tem três idiomas... porque o espanhol... que falam los de la classe social mais alta e:::... a:::... as pessoas que vão.... trabalhar né?... TEM que ser espanhol... exigem... no POde misturar aí... guarani no... e::: de ahí falam... tem pessoas que falam BEM o guarani... mas a MAIORIA do povo fala o Jopará... [...]”.

81

Tais argumentos evidenciam as vozes de autoridade sobre as quais a lógica

argumentativa manifestada apóia-se. Mesmo considerando que ambos os

argumentos conduzem à tese defendida, pode-se dizer que a falante considera que

o contato com o povo paraguaio imprime mais credibilidade à conclusão

apresentada do que a própria literatura referente ao assunto. Os compatriotas são

usados, assim, como o argumento de autoridade máximo, conferindo um status de

verdade ao enunciado proferido.

Por sua vez, em 1723, o termo até pode ser interpretado como operador

argumentativo que atesta a relevância dos livros de guarani que a entrevistada

possui.

r= É necessário material especializado para aprender guarani.

Até professores se interessam pelos livros que a entrevistada ganhou.

A entrevistada ganhou livros que tratam do guarani.

Nesse sentido, o uso de até, no enunciado da entrevistada, deixa de se

constituir como introdutor de simples comentário – marcador discursivo – e adquire

peso de indicador de argumento de autoridade, utilizado pela falante para enaltecer

o material que lhe foi presenteado pela sobrinha.

Essa ambiguidade, dualidade ou flutuação nas funções desempenhadas por

até, nos exemplos acima, atesta o fato de que a língua é viva e está em permanente

processo de adequação, readequação e transferência de valor conforme a situação

em que é empregada.

Assim como o termo já foi usado somente para demarcar noções espaciais,

como apontado neste trabalho, seus empregos e significações foram se modificando

23

“[…] nas esCOlas... están ensinando... o guarani... é um idioma MUITO difícil... MUITO difícil... que EU sí... eu tenho dicionários... é:::... a minha:::... a minha sobrinha desistió de ensinar e ela ensinava guarani... era profeSOra de guarani... enton/ ela me deu de presente os... eu tenho os livros de ela... até están com uns professores... e guarani é MUITO difícil... e na época nós no:::... nós no... NADA em guarani...estudávamos inGLÊS.. […]”.

82

com o passar do tempo até chegar ao nível textual. Pode-se dizer, portanto, que as

diferentes funções de até coexistem e que podem, inclusive, ocorrer

simultaneamente em uma ocorrência, como nos casos apresentados acima.

83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises realizadas evidenciam que o locutor produz seu enunciado a partir

de estratégias que possibilitam o sucesso no processamento argumentativo.

Nesse sentido, os falantes empreendem ajustamentos nos vocábulos

selecionados para constituir os enunciados. É por isso que se observa que o item

até é ativado ora como marcador discursivo, ora como operador argumentativo. O

enquadramento em categorias aqui proposto relaciona-se ao modo como ocorreu o

desencadeamento dos vocábulos para a constituição do texto oral.

Uma vez que a conversação natural não possui planejamento prévio, o falante

utiliza recursos linguísticos para garantir a coesão discursiva. Desse modo, os

marcadores discursivos não só articulam o texto, como também evidenciam o

planejamento local da linguagem empreendido pelo falante. Percebe-se que, embora

independentes sintaticamente, os marcadores discursivos são dependentes

discursivamente; ou seja, segundo a Análise da Conversação, é necessário

considerar as relações interpessoais envolvidas no processo comunicativo. Já os

operadores argumentativos atuam como pistas que direcionam o interlocutor para

determinada conclusão em detrimento de outras.

O item até alterna as funções desempenhadas no discurso, sendo

significativas as ocorrências tanto como marcador discursivo quanto como operador

argumentativo.

Quando assume função de marcador discursivo, o termo não apresenta seu

significado original de limitador, atuando mais como elo entre as sequências que

compõem o discurso. Já com relação à sua função de operador argumentativo, é

possível considerar a execução de dois papéis assumidos pelo item: hierarquiza os

elementos em escala e mantém os traços de limitador, mais abstratos do que os

espaciais e temporais – uma vez que introduz o argumento mais relevante utilizado

pelo falante, portanto, o argumento máximo – e abre concessões durante a

argumentação.

Quanto às semelhanças entre as funções do vocábulo como marcador

discursivo e operador argumentativo, aponta-se o fato de ambos envolverem a

noção de inclusão. No primeiro grupo, a inclusão ocorre de maneira discursiva,

encadeando discursos na fala, como se novos elementos fossem somados ao texto.

84

A inclusão, no caso de operador argumentativo, é dada pela escala argumentativa,

na qual o argumento mais relevante é incluído por último.

As análises apontaram, ainda, para uma possível flutuação entre as funções

textuais desempenhadas pelo termo, uma vez que se evidenciou em algumas

ocorrências que o vocábulo poderia ser classificado tanto como operador

argumentativo quanto como marcador discursivo.

Diante do exposto, fica evidente que o uso da língua influi de maneira decisiva

na classificação e determinação de um elemento linguístico. Somente em função da

língua em uso foi possível classificar e analisar o papel desempenhado em cada

uma das ocorrências do vocábulo até ativadas no discurso da entrevistada.

Muitos detalhes foram percebidos no texto oral sob análise, inclusive questões

relativas aos conflitos da informante trilíngue em uma situação de hegemonia da

língua de prestígio, quando ainda vivia no Paraguai. E essa percepção é guiada

pelos encaminhamentos teóricos percorridos, o que serviu para vislumbrar como

algumas marcas linguísticas atuam ora para tecer o próprio trajeto interativo, ora

para conduzir o interlocutor a determinadas conclusões.

Em algumas passagens do texto, o papel desempenhado pelo termo até,

considerando-se os demais elementos linguísticos com os quais se relaciona, revela

traços de acomodação da falante à cultura brasileira e mesmo formas de se lidar

com essa acomodação. Concebe-se, nesta pesquisa, que as atitudes linguísticas

estão diretamente relacionadas às manifestações dos falantes de uma localidade

acerca da língua de outros sujeitos e de sua própria língua. Acredita-se que todos os

falantes possuem a capacidade de emitir juízos de valor, tanto positivos quanto

negativos, sobre determinada língua e cultura.

Percebe-se que a falante, em alguns momentos, empreendeu avaliações

acerca dos hábitos do povo paraguaio, chegando a classificar, de maneira negativa,

os compatriotas, como quando discorre sobre o costume de tomar tererê, e enaltece

o modo de vida do povo brasileiro, com o qual se assimila nesse momento. Dessa

forma, é possível afirmar que a identidade sociolinguística adquirida pela falante nos

anos de vivência no Brasil influencia o modo como se relaciona com o Paraguai.

Por fim, vale ressaltar que o processo de interação verbal é constituído por

esquemas de negociação entre os interlocutores e se apresenta permeado pela

necessidade de preservação da face, pela disposição para negociar e pela

progressão do tópico discursivo, por exemplo. Entretanto, o fundamento básico de

85

toda conversação apresenta-se não só atrelado àquilo que o falante deseja expor,

bem como à interpretação feita pelo interlocutor acerca daquilo que lhe é

apresentado.

86

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91

APÊNDICES

92

APÊNDICE A – Instrumento de coleta de dados

1. Fale sobre sua infância.

2. Comente como foi sua vivência escolar no Paraguai.

3. Relate alguns dos costumes do seu país.

4. Como foi sua decisão de morar no Brasil?

5. O que você pensa sobre a língua portuguesa? Foi fácil aprendê-la?

6. Suas filhas nasceram e foram educadas no Brasil, por isso tem como

língua materna o português. Mas, quando crianças, você ensinou a elas o

Espanhol? Como era a relação delas com as duas línguas?

7. Comente sobre sua vida acadêmica no Brasil. Sendo você uma falante

nativa do espanhol em um curso que visa formar professores de língua

espanhola, como era seu relacionamento com os colegas de turma e

docentes?

8. Comente sobre seu trabalho como professora de espanhol no Brasil.

9. Você gostaria de ministrar aulas de língua portuguesa no Brasil?

10. Se você decidisse voltar a viver no Paraguai, ministraria aulas de

Português lá?

11. Como você caracterizaria o povo brasileiro?

12. Como você caracterizaria o povo paraguaio?

93

ANEXOS

94

ANEXO 01 – NORMAS DE TRANSCRIÇÃO

95

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO*

Incompreensão de palavras ou segmentos

( ) do nível de renda...( ) nível de renda nominal...

Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio preocupado (com o gravador)

Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre)

/ e comé/ e reinicia

Entoação enfática maiúscula porque as pessoas reTÊM moeda

Prolongamento de vogal e consoante (como s, r)

:: podendo aumentar para :::: ou mais

ao emprestarem os... éh::: ...o dinheiro

Silabação - por motivo tran-sa-ção

Interrogação ? eo Banco... Central... certo?

Qualquer pausa ...

são três motivos... ou três razões... que fazem com que se retenha moeda... existe uma... retenção

Comentários descritivos do transcritor

((minúsculas)) ((tossiu))

Comentários que quebram a seqüência temática da exposição; desvio temático

-- -- ... a demanda de moeda -- vamos dar essa notação -- demanda de moeda por motivo

Superposição, simultaneidade de vozes

{ ligando as linhas

A. na { casa da sua irmã B. sexta-feira? A. fizeram { lá... B. cozinharam lá?

Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo.

(...) (...) nós vimos que existem...

Citações literais ou leituras de textos, durante a gravação

" "

Pedro Lima... ah escreve na ocasião... "O cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma baRREIra entre nós"...

* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP No. 338 EF e 331 D2. (Disponível em:

http://www.fflch.usp.br/dlcv/nurc/normas_para_transcricao.htm)

96

ANEXO 02 – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA

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TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA 1 2

L1: fale sobre sua infância... como é que foi sua infância no Paraguai? 3

L2: minha infância?... eh:::... foi muy:::... foi linda e ao mesmo tempo muy sufrido... porque 4

éramos gente muy humilde... mi hermana y yo teníamos que trabajar y::: teníamos que ir a la 5

escuela a ca... a pie digamos... no teníamos condición de... é:::... de:::... de pagar un 6

colectivo... entonces íamos a pie... é:::... no teníamos juguetes... é:::... trabajábamos... 7

vendíamos leche... frutas... y verduras... entonces... no... no... era una infancia muy linda... 8

pero también... al mismo tiempo... é... disfrutamos de:::... de todo que nuestros padres nos... 9

nos podrían pro-por-cio-nar. 10

L1: e era uma família numerosa? 11

L2: éramos... diez... cinco me... cinco niñas y cinco... cinco niños... entonces... hoy claro... 12

estamos todos... unidos... hasta hoy... e::: una de ellas faleceu... Sarita... con cincuenta y ocho 13

años... y quedamos ahora nueve... ((a entrevistada diminuiu o tom de voz ao falar da irmã 14

morta)) 15

L1: pode falar em português também... tia... se quiser... É::: eu quero que você fale um 16

pouquinho agora como que foi a época de escola no Paraguai... como que era a escola de lá... 17

como que era tudo... 18

L2: meu Deus... enton/... a escola LÁ... era como eu tinha te:: comentado... era um poco é::: 19

longe de casa... era longe e nós tínhamos que ir a pe e a escola é::::... era tudo misturado 20

gente... gente pobre... gente::: ricas... é::: de todo un poco né?... e nós tínhamos que estudiar 21

eles os professores eram muito exigentes com nós... e o castigo... quando nós não fazíamos as 22

nossas tarefas... eles o que que faziam conosco?... Pegavam así a mão... né?... os quatro 23

dedos... e pegava com a régua... e tchitchi... com a régua... quando no fazíamos a tarefa ou 24

puxava a orelha... né?... e puxava... e os meninos eles iam no cantinho lá no::: num lugar... e 25

ficavam aí até:::... até que... L1::: professora falava para eles que... podiam sair de lá... de aí 26

o:::... eu me lembro que... que no primeiro segundo... grado naquela época né?... é... para mim 27

me falavam de ratito... ratón... ratoncito... porque eu era muito magrinha... esqueletinha... né? 28

e... vivia llevando unas galletas... galletas duras ne?... Que o meu pai ganhava dL1:... do 29

quarTEL... daí eu levava isso aí ... com... no recreo... e minhas colegas davam risada de mi... e 30

por eso que chamavam de ratoncito... ((risos)) e un dia de esas... una... uma das colegas... 31

lembro que levou um pan con tortilla... aquellas tortillas coloCAdas así encima con... con 32

pan... e una vontade menina de comer... MEU DEUS DO CÉU... e o que que eu fiz?... Eu vi 33

um dinheirinho que caiu lá... não sei de quem que era... e peguei esse dinheiro e fui 34

comPRAR esse:::... essL1::: tortilla.. menina... foi... eu acho que foi o:: dia mais feliz da 35

minha vida ((risos)) quando eu fui lá comprar essa tortilla... com... con... pancito... sabe? 36

((risos))... Mas foi bem sofrido... sabe?... Porque nós queríamos se forMAR... queríamos 37

estuDAR...é:::... só que chegávamos da escola e tínhamo/ que ir trabalhar... vender leche... 38

frutas... e verduras... até bananas eu vendia. 39

L1: e na escola... vocês tinham aula de outros idiomas... assim ou não? 40

L2: não... não... era só o... o... castelhano... espanhol na época... só... Quem falava na época 41

em guarani... é:::... davam risada... porque até enton/... até na época... naquela época em 42

que:::... o que tá fazendo ciquenta... quarenta e pouco anos... eu tinha oito anos né?... É::::... 43

quem falava guarani chamavam de guaranga... guaranga... eu tinha meio que vergonha porque 44

os meus pais falavam... todo guarani... e os meus amigos tudo espanhol né?... E o que que nós 45

tínhamos que fazer?... tínhamos que... que... aprenDER... o... espanhol né?... para ir na escola 46

para que ninguém dê risada de... de nós... porque falar guarani naquela Época... meu Deus do 47

céu... davam risada de nós... e daí eu me vi obriGADA a aprender o... espanhol. 48

L1: então... em casa você só falava o guarani 49

11

[ 50

L2: sí 51

L1: e quando ia pra escola... o espanhol? 52

L2: espanhol... mas só com meus pais... os pais e irmãos... né?... e agora... com os 53

amiguinhos de así da... da... os vizinhos e as vizinhas tudo espaNHOL... tudo espanhol... e eu 54

mais preferia assim espanhol porque... porque as minhas colegas davam risada que eu falava 55

guarani né?...e eu não queria eso aí... era humiLHANTE... ta entendendo?... enton/ de aí... eu 56

estudava... estudava mesmo... SEMpre quis estudar... e aí lógico... casteLHAno ah... a 57

matéria MAIS difícil era o castelhano... era a que::: tínhamos que fazer redação... já depois... 58

no quinto... sexto grado né?... porque no... no primeiro aninho no... era só fazia... eu me 59

lembro que nós tínhamos um caderninho com::... de doble raya que chama né?... e nesse nós 60

tínhamos que fazer caliGRAFIA... e:::... lembro também que... os... os livros... tinha um 61

livrinho... que vinha tudo em castelhano... eu me lembro que falava así... “Mi pa-pá se lla-ma 62

PE-pe... Mi ma-má se lla-ma María”... e aí... era era... sabe... era uma coisa repetitiva... 63

tínhamos que só:::... no aprendíamos... tínhamos que só:::... decorar... sabe?... mas aí no dia 64

seguiente... nós tínhamos que ir lá en el pizarrón... e... e mostrar aquilo que nós aprendemos... 65

mas depois así que na... na... na... na quinta série... eu me lembro que nós tínhamos que fazer 66

algunas... é:::... redacciones... eu era péssima em redacción... porque as professoras... né:::... 67

elas:::... colocavam lá... era... e:::.. e:::... ensinava uma vez e... coitado de nós... nós tínhamos 68

que ( )... depois... é::::... oitava série:::... oc... octavo año... no... quinto grado... SEXTO... 69

ATÉ sexto grado era... eu terminé mi sexto grado... daí comencé primer curso... em um... em.. 70

el Instituto Juan Batista Albergue... ele era um colégio muito bom... já com... acho que eu 71

tinha doce, trece años... e a minha mãe pagava... era... esse.. esse colegio era solamente de 72

gente rica... mas o que que aconteceu?... Esse senhor... o:::... o diretor lá da:::... do colégio... 73

Martin Almada que... hoje é famoso lá em Paraguai... ele... era é:::... ele era compadre do 74

vizinho... da minha comadre da minha mãe... e a minha mãe é:::... matava galinha... e levava 75

para eles né?... e daí um dia de eses o don Martin foi lá em casa e preguntó pra mamãe se 76

tinha ga... gallina né... e ela falou que tinha e fez aquela sopa... e mando para él... e ele 77

começou a fazer amizade com minha mãe... e de aí preguntó... “mas você tem TANTOS 78

filhos”... dez né?... “Cuantos hijos doña Hilária y no están estudiando?”...”Si...están 79

estudiando Todos”... e daí ele falou que ele era director de una:::... de uma::::... de um:::... de 80

um instituto... que se queríamos estudiar ele iria:::: dar CHANce para nós... e daí a minha mãe 81

falou así... “Mas yo no tengo doutor Martín para pagarle... somos diez... tengo que dar de 82

comer a mis hijos”... e aí el dijo “no... pero::... me pague como usted pueda... puede hacerme 83

estas coMIDAS... me pague... me puede mandar gallina... frutas... carne”... porque a minha 84

mãe também vendia carne depois... leche... e con eso ela foi pagando... e se formamos... um 85

colegio MUITO bom... muito bom mesmo... que eu... aí SÍ... aí nunca esqueço que a minha 86

professora Benefrida... nós tínhamos é:::... una matéria... dibujo... dibujo... diseño... 87

maravilhoso... tipo:::... sei lá... é::: arquitetura... daí nós tínhamos que fazer aqueles::.. 88

pirâmides... pirâmides de Egipto... sei lá... que que... Es em Egipto que fica aqueles pirâmides 89

né? 90

L1: sim 91

L2: tá.. e:::.. ela... mas era bem exigente ela... e daí que que aconteceu?... ela ela tinha falado 92

que::... tal dia nós tínhamos que levar nosso álbum... um álbum de ese tamanho... né? 93

((gesticula mostrando a dimensão do álbum))... e que íamos ter a prova... só que eu não sé o 94

que aconteceu conmigo eu não sé... acho que esqueci da DAta e... no dia que chegou eu não 95

levei o meu meu álbum... e::::.... ela me de... me deixou com cero... ela ela colocou CEro en 96

na minha::::... na minha materia... e eu comencé a chorar... daí eu falei “ma dona Benefrida eu 97

tenho... eu vo vo... me da::: me da uma chance eu tenho que ir só buscar”... “No Mendonza”... 98

ela falava... Mendoza só ( )... “No no no NO NO...”... eu falei... mas daí eu falei... “pelo 99

12

aMOR de Deus... a señora me deixou para examen ni final... sabe... en janeiro... daí... eu... 100

“no... no interesa Maria... no inteRESA...”... que que eu fiz?... eu fui chorar no... pedi 101

licença...e fui... eu falei com Don Martín... es el... direcTOR.. ((toca o interfone)) eu fui direto 102

para... o:::... director... daí ela::::... ele:::... daí ele falou:::... eu falei... o meu... meu caso para a 103

esposa... e a esposa me chamou... e fui lá pra o director... daí me falou “Maria... que que tá 104

acontecendo?”... e daí eu falei assim para ele::: “o Martín::::... o::::... o profesor... ah::::... a 105

profesora Benefrida me dejó con cero e::::... eu não tenho ni direito a exámen porque eu tenho 106

só oito... siete e meio no meu::::... na minha nota... na minha liBREta” falei... e daí ele falou 107

así... “Aai::... donde está tu albun?”... (( interrupção pela chegada de uma vizinha)) 108

L2: (...) pronto... Eu di una planta para ela... essa é minha comadre (...) tá::: e daí ah:::... -- voy 109

hablarte en español ahora... puede ser? -- 110

L1: pode 111

L2: de ahí... a::::... doctor Arman me disse... “ah... entonces anda a traer tu albun” y:::... y:::... 112

yo no tenía dinero para mi pasaje... y andé a pedirle a mi esposa y... co...correr... ( ) a 113

conversar... meu fui atrás de mi albun... y:::... le mostré todo... y él me coloco ocho... pero 114

para mí... foi MUY... frustrante:::... marCÓ... me marcó porque la::::... la profesora me 115

humilló en la frente de todo el mundo... entonces me dijo... me recuedo que me me dijo... “no, 116

vos vas a pasar... cualquier cosa viene hablar conmigo... y tu albun está lindo... está hermoso... 117

pinta bien...” y le digo... pero la:::: la Benefrida... yo sé que me va::::... me va a segurar... le 118

dijo... cuando vienen los supervisores... porque allá cuando nosotros ( ) nuestro examen... 119

final... venían dos profesores de:::... del... de la:::::... de Ministerio de Educación... era muy... 120

muy exigente... el segundo grado lá era muito exigente... até hoje... entonces que que que 121

pasó?... cuANdo me fui yo para... estar en las primeras filas... ella me humilló de novo y me 122

disse “que estás haciendo acá?”... dije “voy a hacer mi prueba”... “y quién te:::... quién te dijo 123

que vas a hacer prueba?”... “el direcTOR”... y ella no firmó mi... mi prueba... porque tenía que 124

firmar... Antes todos les tenían que firmar... y no firmó... y así... ( )... el... el.. director... el 125

vino... y miró... y el vino firmó mi... el:::... mi papel... y cuando vio eso mi profesora ni le 126

habló al... al director... entoces con eso... eso me marcó mucho... porque yo me... ella... ella 127

tanto me humilló enfrente a... a los... los supervisores del ministerio... como me humilló ante 128

mis colegas... pero yo tuve el apoyo total del director... porque él sabe de donde venía... y 129

porque... porque:::... este no foi por causa de irresponsabilidad de algo que hice... y así fue... 130

eso fue una cosa que más me marcó... y cuanto a estudios del segundo... tercero... tercer 131

curso... é:::... mudé de colegio... e::... sufrimos mucho para... formarmos... el tercer curso yo 132

terminé::... y no teníamos más condiciones fui para Buenos Aires... quedé un año y medio en 133

Buenos Aires... y de ahí VOLví a estudiar... junté mi dinero... trabajando allá con mis 134

hermanos... mis hermanas... conviví con los porteños allá... y:::... continué mis estudios... y::: 135

me formé... me recibí 136

L1: e nesse... nesse tempo de escola... nenhuma outra língua você aprendeu... assim... na 137

escola... teve algum momento que o guarani... eles ensinaram para vocês? 138

L2: não... naquela época... o guarani no... o guarani lo começaram a ensinar depois já... que 139

de... depois entrou como:::... é:::... como era... como idioma... como idioma nacional 140

também... porque o Paraguai é bilíngüe tem o espanhol e o guarani junto... Agora tem o::... 141

de::... o:::... como que o povo... como que nós falávamos... nós misturamos... el... 142

castelhano.... com o guarani... e o que nós... e e... em esses... em... em... em esses dos... duas 143

misturas... se forma Jopará... é o que o povo fala... no... o povo de Paraguai no fala o 144

verdadeiro guarani... eles falam Jopará... enton/ que eu estava lendo até me informé lá quando 145

eu fui... é::::.... con alguns... é que praticamente tem três idiomas... porque o espanhol... que 146

falam los de la classe social mais alta e:::... a::::... as pessoas que vão.... trabalhar né?... TEM 147

que ser espanhol... exigem... no POde misturar aí... guarani no... e::: de ahí falam... tem 148

pessoas que falam BEM o guarani... mas a MAIORIA do povo fala o Jopará... que é una 149

13

mistura... enton/ praticamente estamos com três idiomas lá... enton/... é é:::... en la época 150

NO... nossa... nós no podíamos falar na escola em o guarani... agora é tudo contrário... agora 151

como ah... o guarani foi nacionaLIZADO né?... é:::.... nas esCOlas... están ensinando... o 152

guarani... é um idioma MUITO difícil... MUITO difícil... que EU sí... eu tenho dicionários... 153

é:::... a minha::::... a minha sobrinha desistió de ensinar e ela ensinava guarani... era 154

profeSOra de guarani... enton/ ela me deu de presente os... eu tenho os livros de ela... até 155

están com uns professores... e guarani é MUITO difícil... e na época nós no:::... nós no... 156

NADA em guarani...estudávamos inGLÊS... eso sí... inglês... em... desde o:::... desde o 157

segundo... no:::... en el::... en el...primer curso... PRIMER curso... até o sexto curso... era 158

obrigatório inglês... entonces sé um pouco de inglês... foi daquela época... e português ni... ni 159

tínhamos idea... me lembro que ERA:::: a professora Rita que falava... que ela vinha para o 160

Brasil na época ela falava “Mas esses brasileiros falam tudo errado” ((risos))... e agora é tudo 161

contrário... aqui eu aprendo que os paraguaios falam tudo errado né?... por causa dos acentos 162

ortográficos né?... e eu no tinha ni idea como era Brasil né?... daí eu... eu falava así... “Mas 163

aONDE que é o Brasil... professora?”... “Passando... de Puerto Presidente Estrosner...”... que 164

en la época ERA... Ciudad del Este era Puerto Presidente Estrosner... ela já era una señora de 165

idade... e daí um dia eu fui... MEU DEUS... eso aí eu nunca esqueço também... que eu fui... 166

ela me mandou ler um texto... e eu peguei e:::... tinha acho que... no... aqueles acentos... e eu 167

no pronunciei... e foi aí que ela me falou... “O:::. ( ) me parece que vos sos brasileira”... eu 168

nunca esqueço... eu falei... “NO... pues yo ni conozco Brasil... professora Rita”... “Y como no 169

has pronunciado? No te das cuenta que ese lleva acento?”... Meu Deus do céu... ((risos))... e.. 170

de ahí... e nunca pensé para você ver... Brasil... e hoje estou aqui em Brasil... Ni sabia como... 171

que... ni tinha IDEA... como que era o Brasil... e agora eu aDOro Brasil... Não quero voltar 172

para Paraguai no... 173

L1: eu queria saber de algum costume do... do Paraguai... um costume... alguma festa... 174

alguma coisa que vocês tenham lá bem próprio do Paraguai... 175

L2: é... bem próprio do Paraguai... bom... lá por exemplo o:::... o nosso povo lá... é... as festas 176

así... festas de aniversário... pode ser o mais pobre...mas tem que ter festa de aniversário... o 177

primeiro aninho de um filho... o aniversário de una mãe... o aniversário de um pai... tem que 178

ser sempre tem que ser é:::... tem que ter una festa tem que ter um bolinho... enton/ é así... um 179

asadito... com una mandioca... con una sopa paraGUAYA... una ensaLADA... eso tem que 180

ter... e o de repente o para quem tem mais condições claro... bebidas... de whisky para... né... 181

cervejas finas é:::... vinho... vinho se toma muito lá... vinho vai muito bem... e de ahí para 182

quem::... para quem tem menos possibilidades né::... fazem aquela festinha... um bolinho... 183

para as crianças pequenas e... de ahí um:::... unos globos... e unos chocolates... e já para festa 184

así... dependendo da::::... da festa de... de quem que vai ser a festa... se vai ser aniversário 185

de:::... muito... muito alto::... né... de quem tem condições ((interfone))... daí aquela festa... 186

que nem lá é:::... também se faz assado... eu vou te mostrar depois no vídeo... 187

((entrevista é interrompida para que a entrevistada possa atender uma pessoa que está na 188

portão. A entrevistada volta e comenta que se trata de um paraguaio)) 189

L2: hablas guarani? 190

L3: si... 191

L2: de que lugar? 192

L3: é:::... De San Pedro ( ) 193

L2: ( )y como veniste para Brasil?? 194

L3: ( ) voluntariamente 195

L2: voluntariamente?? 196

L3: si... 197

L2: para religión? Cuál religión? 198

L3: iglesia de Unificación 199

14

L2: de Unificación... Y hay más gente acá? 200

L3: sí... ( ) 201

L2: en sério:::?... Es muy bueno colaborar contigo... Ellas son amigas... é... 202

L2: ella es profesora de español... 203

L3: ah sí? 204

L1: sí... 205

L2: ella se recibiu en la facultad... 206

L3: en la facultad? Hablas inglés también? 207

L1: no no... muy poco 208

L2: y vos hablás inglés? 209

L3: sí... sí... he recibido clases ( ) 210

L2: en sério? ( ) Y como están le recibiendo las personas? 211

L3: ah:::... más o menos... 212

L2: ( ) ((fala em guarani)) 213

L3: ((fala em guarani)) 214

L2: es lindo el trabajo de ustedes... Yo recibí a:::::... hace cuatro años.... a tres hermanas aquí 215

en casa... tres hermanas:::... de:::... bolivianas... parece que era Bolívia sí... y hician también 216

un trabajo de misiones... um trabajo... 217

L3: y ustedes... cuanto tiempo ya llevan aquí? 218

L2: yo treinta años... 219

L3: ella también? 220

L2: ella VIve acá 221

L1: sí, soy brasileña 222

L3: ((fala em guarani)) 223

L2: ((fala em guarani))... eu falei para ele que você sabe mais do que eu... 224

L1: no... 225

((risos)) 226

L3: ustedes no tienen una tarjeta para llevar para mí? 227

L2: ah:::... no tengo... Voy a marcarte la ruta y escribimos cartas. 228

L3: ahan... está bien... 229

L1: hace cuanto está acá en Brasil? 230

L3: ah... tiene algo como:::... quince días... 231

L1: quince días? Y ya has venido para cá otras veces? 232

L3: sí? 233

L1: sí? Y por lo visto las personas no están recibiendote bien? 234

L3: más o menos:::... no muy bien... pero:::... ( ) ahora sí que me recibieron bien 235

L1: tú hablas portugués o no? 236

L3: sí 237

L1: si? 238

L3: yo tuve en secundaria en Ciudad del Este 239

L1: y tenían clases de portugués alla? 240

L3: ahn? 241

L1: tenían clases de portugués allá? 242

L3: no no... tenía sólo:::... aprendí con:::... con gente así... con mis compañeros... 243

L1: y crees que es fácil aprenderlo? 244

L3: ahn? 245

L1: crees que es fácil aprender portugués? 246

L3: sí... escribiendo se aprende todo... Por que?... No tienes así un cartoncito para me dar? 247

L1: no... no tengo... infelizmente no... 248

L3: en sério? 249

15

L1: ( ) pero ella va a apuntar allí la dirección para que ustedes se correspondan... 250

L3: ((risos)) Profesora de portugués? 251

L1: también... profesora de portugués y de español... dicto español para los chicos y... para los 252

mayores también 253

L3: sí... 254

L1: les encanta a las personas acá hablar español... por eso que le pregunté si las personas acá 255

le estaban recibiendo bien... 256

L3: algunas... 257

L2: qué bien... manda cartas... revistas... né... para... 258

[ 259

L3: ahan 260

L2: de dónde estás... 261

L3: está bien... 262

L2: y te deseo suerte. 263

L3: ok 264

L2: suerte que tu trabajo es muy lindo ah... 265

L3: ahan... 266

L2: verdad? 267

L3: sí 268

L2: sí... que bien... 269

L3: para... la próxima ya va a ser mejor... muchas gracias... buena suerte 270

L2: obrigada... suerte a usted... chao 271

L2: enton/... estos son os meninos que:::... batalham para ser alguém... estos meninos vem de 272

longe... que lugar longe 273

L1: que coicidencia... ne tia... vir bem na casa da uma paraguaia... 274

L2: ixi... esos son os meninos que no tem condições... lá em Paraguai no... enton... o que que 275

eu estava te falando?... do:::... que que eu tava te falando? 276

L1: das festas de aniversário... 277

L2: ah festas de aniversário... vou te mostrar o que que nós fizemos para mamãe... outra 278

coisa... é::: HOJE... hoje as festas como que é?... porque antigamente nós não tínhamos muitas 279

condições né?... é:::... fazia... é:::... um asadito...reunían toda la família con harpa y guitarra... 280

para quem puede harpa y guitARRA... generalmente todos... el más pobre puede ser... tiene 281

que tener... una música... a la noche... las chicas van en la discoteca... ay eso está muy lindo 282

en Paraguai... discotecas internacionales né?... y:::... continuando las fiestas se baila mucho... 283

mediodía até noche... tranquilo... e comida típica es aquello que yo te hablé 284

L1: sobre religião... tia... aquele menino que veio aqui... ele era missionário... tem alguma 285

ligação com alguma religião do Paraguai... ou não? 286

L2: deve ter... deve ter... mas generalmente é mais de:::... de outros países... garanto que ele 287

foi convidado e como é um menino que não tem condições de... de estudar ou de trabalhar... 288

de ahí vem oh:::... as pessoas de... de fora... é:::... geralmente são de Estados Unidos né?... y 289

levam esses meninos para eso aí...claro que tem que ter sempre cuidado né?... porque já 290

aconteceu que... prometem trabalho para algunas meninas e van levam elas para:::: lugar para 291

se prostituir... mas eu acredito que eles sejam así::: é:::... tenha... tenha alguna ligación con 292

alguna:::: igreja lá em Paraguai né?... enton/...de ahí... vai a ser esses meninos son os meninos 293

que no tem condições de estudo... porque lá em Paraguai... meu Deus do céu... é uma... é uma 294

tristeza... ih... GENte cada vez que eu vou e volto... eu volto::: revoltada... fico TRISte... por 295

causa das condições né?... a:::::... a diferença social... lá quem é rico é rico quem é pobre é 296

pobre... eso... eso.... ta... ta... por todo lugar... crianças muito pobres nas ruas pidiendo... 297

coMIda... diNHEIro:::... lá em Asunción mesmo... meu Deus... tudo muito triste...enquanto 298

que você vai NOUtro lugar... numa rua... que tem mansões... que tem... NOSsa... tem quatro 299

16

cinco carros importados dentro da garagem... e eso revolta um pouco a gente ((entrevistada 300

fala mais baixo quando menciona as diferenças sociais do país)) 301

L1: lembrando seu povo... assim... lá do Paraguai... da sua terra natal... como que você 302

descreveria o povo paraguaio... se você fosse contar sobre eles para alguém... como que você 303

descreveria? 304

L2: ah ta...bom... é:::... eles... eu describiria así... o povo em si é:::... é:::... um povo muy... 305

muito humilde... e eles são muito:::... como que eu vou te falar?... é:::... eles são... é:::... é:::... 306

é:::... não é bondadoso a palavra... hospitalarios pode ser? 307

L1: hospitaleiros? 308

L2: isso:::... em Paraguai... é:::... eles são así... o povo sufrido... MUITO sufrido... e:: que::: 309

sempre están batalhando por alguna coisa né?... e:::... é:::... eu pessoalmente tenho muita dó 310

do povo de Paraguai... PARA aqueles que NO tem condições... eu tenho MUITA pena de eses 311

de ese povo... fico às vezes como eu te já te falei... fico MUITO revoltada contra os que TEM 312

mais condições... porque eles ni olham para esses... para esse povo humilde... sabe?... enton/... 313

é... no no geral... así...cuan/ cuando eu vou lá... eu GOSto de ficar lá... justamente por eso... 314

e... e... o que que acontece?... o povo em si se une muito... você trás... é:::... os teus amigos... 315

vem é... con/ convida por exemplo para ir en una reunión em... em una fiesta lá em 316

casa...vamos se reunir... vamos fazer un... un asadito... enton/ todo mundo... eles son muito 317

uNIdos... em ese sentido... y:::... enquanto... a::::... CLARO que tem o outro lado...que tem 318

povo muito... muito bem de vida que eles... lógico... é de outra::::... é de outro... de outro:::... 319

é:::... como que se diz?... de outra::::... de outra classe social né?... enton/::: no::::... a esse 320

povo así de... de... de esa outra classe eu não conheço muito... eu convivo más com meu 321

povo... o povo huMILDE né?... é:::... que que também sabem se divertir:::... sabem... sabem o 322

que é:::... tomar um pouco alguna cerveja::::... tomar um bom vinho::... sabe?... E:::... eles son 323

muito... NOSSA... son um povo muito hospitalarios né?... não tem nada que falar... só que 324

CLARO... tem costumes así que... eu particularmente no sé se vou conseguir morar mais... ya 325

me acostumé com os costumes do Brasil... eles são um poco:::... um poco:::... um poco 326

meio:::... desordeNAdos:::... relaxaDInhos:::... é:::... tem a culTURA né?... não adianta... eu 327

sufro muito quando eu vou lá porque na casa da minha mãe né... una casa bonita::::... cheio de 328

flores... cheio de jardim... se coloca uma pessoa aí... é:::... é:::... de confianza así para::::... 329

para cuidar da casa e toda aquela bagunça... eso me incomoda muito sabe?... enton/... um 330

povo que::: NOSSA... no... no... no foi BEM eduCADA... né:::... faz... ta tudo BEM:::... um 331

povo sossegado sabe?... enton/... eu.... nesse sentido no concordo... porque eu já faz trinta 332

anos que eu estou morando aqui...eu sempre fui uma::::... um pouco exigente... quando eu 333

moRAVA lá já era assim... eu queria buscar outras.... outras coisas... sabe?... e fui para 334

Buenos Aires já vim aqui... aqui vim e fiquei né?...quando me formei lá já::: com quin/ com 335

diecisiete anos ya estaba lecionando né?... mas eu fui lecionar LÁ... no OUtro lado... 336

Hernandarias... só brasiLEIros... italianos... é::::... alemanes... enton/... eu só tinha diecisiete 337

anos já era professora... mas aí três anos eu já estava casada e já estava aqui no Brasil 338

L1: e como que foi mudar pra cá? Como que foi a decisão de deixar o Paraguai e vir pro 339

Brasil? 340

L2: ah:::... eu estava apaixonada ((risos))... estava apaixonada né menina... encontré para mi o 341

homem ideal ((risos))... NOSSA... achei meu... meu parceiro... achei meu... como que era?... 342

o:::.. a minha alma gêmea... na época né... tava com vinte:::... dezoito:::... é... dezoito años eu 343

tinha quando comencé a namorar com Franco... o Carlos né... para mi foi o homem PERfeito 344

né:::... era tudo que eu sonhava... porque lá em Paraguai sempre pensava... lá dos paraguaios 345

eram sin verGUENZA::::... né... e nunca namorei lá... porque eu era muito... eu era... nossa... 346

era muito exigente em esse sentido... em TOdos os sentidos... e daí quando me:::... quando 347

tivemos essa proposta de vir lecionar longe... né... primeiro veio a minha irmã que se 348

formou... ela É professora... agora eu só no... eu fiz o segundo grado... mais... o ministério...eu 349

17

tinha autorização do:::... do::: MEC también Ministério de Educación... que eu podia le... 350

lecionar né?... e daí eu vim na::::... na:::: colônia aqui desse lado... mais perto aqui de::::... de 351

Ciudad del Este... junto com minha irmã... e foi lá que eu conheci esse cara né... e lógico que 352

eu me apaixonei... era a família ideal... né... nós inclusive estábamos hospedadas na casa dos 353

pais de él... só que eles moravam aqui em Cascavel... é... e nós estávamos... como éramos 354

professoras de... professora lá em Paraguai é PROFESSORA... é palavra maior né... e daí nós 355

não tínhamos que dar MAU exemplo... e aonde que íamos íamos morar?... en la casa dos pais 356

do FRANco... só que eles não moravam lá... MAS quando eu conheci esse rapaz MEU Deus 357

do céu... a família unida... porque eu sempre quis una família né... e:::::... él muito... bonitón... 358

muito metido né... estudava aqui:::... e daí eu pensé... a mi hermana me ( ) ... ela me falava... 359

“olha... esse é um bom partido né?...” ((risos)) Daí eu comencé a namorar... com três anos 360

estava casada. 361

L1: mas ele é brasileiro? 362

L2: ele é brasileiro... daí eu me casé lá em Paraguai... lá onde eu lecionava... o meu casamento 363

foi na capela da escola... e os meus convidados eram meus alunos ((risos))... eles que 364

decoraram tudo... a escolinha CHEIA de flores... sabe?... margarida... margaridas do jardim... 365

do... do... ((risos)) das crianças... é:::... e a minha meu cabelo estava cheio de 366

margaridas:::...enton/... algo bem natural MUIto lindo... sabe?... e:::... de ahí...é::: de ahí... 367

algunos dias... nós:::... é:::... os meu presentes vino tudo na frente...eu fiquei mais lá mais 368

unos días... depois eh... eu tinha que colocar em ordem as:::... a::: escola... os materiais da 369

escola... e depois eu vim para cá e::: nunca mais voltei lá...e foi así que... e foi así que::... é:::... 370

que:::... que comenzó a minha história de::: de vir para o Brasil 371

L1: e foi bem recebida quando chegou aqui? 372

L2: fui. 373

L1: foi? 374

L2: fui... muito bem recibida... NOSSA::::... no comenzo foi MUIto lindo... porque eu 375

conhecia:::: os pais já da::::... do Franco já... porque eu já morei junto com eles lá né... depois 376

eu vim para cá... o pai do Franco tinha falecido né... e:::... eu fui... vim morar com a minha 377

sogra... mas daí a algunos tempos já o Franco já estava trabalhando no banco já... depois 378

veio:::... é:::... unos unos tiempos eu já fiquei grávida da Romina né... veio o bebê... e já:::... o 379

Franco já subiu como gerente...ele era muito esforçado também né... e::::... no no banco... eu 380

eu lembro quando:::... o Franco demorava mais ele me chamava... eu e a Romina íamos 381

caminhando... en el... no banco... e ( ) voltávamos com ele né... e no banco... o pessoal do 382

banco... nossa... tinha o maior respeito conmigo... achava muito lindo eso aí... e ACHAvam 383

bonito quando eu FALAva... falava tudo atrapalhado... é claro até hoje falo... porque no é 384

fácil... no é... no é... fácil... você falar... duas... dois idiomas... así misturam muito... eu quando 385

vou a Paraguai todo mundo fica me olhando porque EU misturo português... sabe?... e tem... 386

tem coisas que::: que:::.. que eu esqu/ esQUEço... no me lembro por exemplo do::: do::: 387

Paraguai... eu agora estava estuDANdo espanhol... e::::... porque daí enton/... MAS... com 388

com... com o correr do tempo... ATÉ enton/... depois eu vim me separei:::... e todo mais perdi 389

todos ah:::... muitas amizades né... MAS continuei tendo OTRAS... muito... ah:::... amizades 390

muito lindas né... e daí cuando o:::... quando estuDEI agora na faculdade... aí si... aí eu senti o 391

que que é o preconceito 392

L1: na faculdade? 393

L2: na faculdade... aí eu fiquei muito... aí si... até HOJE por causa de eso... eu... me 394

bloqueei:::... é::... as colegas... eu percebia que as colegas... se cutucavam né... quando eu 395

tentava falar alguma coisa... elas... davam riSADA... ah::::... as colegas que não gostavam de 396

mi... porque a maioria gostava... e os professores enton/... nossa... e foi MAIS quando eu fiz 397

essa prova de:::... de literatura... eu tive a infelicidade... infelicidade digo eu porque:::...eu 398

sufri muito de tirar cem em literatura portuguesa né... elas no aceitavam... aí sí elas me 399

18

massacraram... e aí eu vi... eu sufri muito preconceito... porque daí una de elas falou que... 400

como que uma paraguaia... é:::... que no sabe falar o português ia tirar cem em literatura 401

portuguesa... enton/ eu:::... efoi una das professoras... foi professora que esCUTOU... que me 402

comunicou... que ela falou... enton/ no era mentira...eu fiquei muito triste inventaram um 403

monte de coisas de mi... disse que a PROfessora de literatura::::... ela:::::... disse que:::... eu 404

fiz a prova... a minha prova a lápis... e que ela se encarregou de... de completar... eso é uma 405

calúnia.. LÓGIco que eu fazia a lápis... por pela minha insegurança... e depois borraba tudo... 406

tirava tudo... mas... com a... com a... com a professora que nós tínhamos... no tinha eso... ela 407

era MUIto exigente... eu NI ERA amiga da professora... e eso me doeu MUIto... já faz dois 408

anos atrás... eso aí... eu... nossa... e DAÍ eu fui consultar com a minha... um dia eu fui 409

comentar com a minha:::: minha coorDENADORA...eso aí... ela me falou... “você sufriu 410

desde o primeiro ano esse preconceito... desde o primeiro ano eu BATAlhei por você”... daí 411

eu falei... “eu percebi professora”... e daí ela me falou... “acontece que elas é:::... morriam de 412

ciúme de você... porque você com a TUA idade... com TOdos teus problemas... que você... 413

tinha... era... elas... eram meninas irresponsáveis... e voCÊ se inteRESSAVA... você se 414

acercaba aos professores e preguntaba... e porque que eso aí... porque um um dia para nós elas 415

falaram... elas chegaram a falar que NÓS puxamos muito o teu saco...”... eh... era ela... no 416

eu... sabe?... “e daí nós no:::... una de esa quando você no estava aí... nós falamos que VOCÊ 417

era uma pessoa muito esforçada... e que nós tínhamos que te ajudar... MAS você estudava... 418

nunca te dimos de presente... UNA vírgula... porque nós percibimos que você estudava”... 419

enton/ todo eso vino naqule tempo em que eu me formei... eu sufri MUIto... porque eu no 420

esperava... realmente eso aí das minhas colegas... eu NO tenho culpa... eu... eu estudei 421

basTANTE litertura... e por coICIDENCIA... claro... habrá sido una coiciDENCIA... de que 422

aquello que eu estudei... caiu en ese dia... porque LÓGICO que eu no vou saber toda a 423

literaTUra:::: né?... é ÓBVIO eso aí...eu no no estudei aqui... MAS... infelizmente eu tirei 424

CEM... eu fiz TUDO... eu::... acertei TOdas as questões...e por eso elas... meu Deus do céu... 425

de ahí elas colocaram até advogado que:::... eles queriam que eu... é:::... fizesse outra prova 426

né? 427

L1: acionaram advogado? 428

L2: SÍ:::... de ahi a::::... de ahí a:::: Rocio e a Romina acionaram outro... e falaram... de ahí ela 429

falou com una das colegas... falou así... “fale para a menina que falou da minha mãe... que vai 430

ser processada por três coisas... ou vocês param com eso aí... ou nós estamos também com 431

advogado”... porque elas queriam que eu fizesse outra prova... daí o Douglas... o diretor 432

falou... “o que... o que vocês tem contra a Maria?... No é o problema a Maria o problema son 433

VOCÊS... vocês que no pasSARAM... ela no VAI fazer outra prova... no vai fazer”... enton/ 434

de ahí a Rocio ligou para una das meninas e falou... “fulana falou así... e ela vai ser 435

processada... avise ela... aí já não é minha mãe que está nesta história... já são nossas filhas... 436

porque é um absurdo o que vocês están fazendo por ela... eu conheço ela... ela tinha de 437

madrugada... tinha que levantar para estudar... e essas preguiÇOSAS... além de de estar 438

fofocando... caluniando ELA... están falando ainda do país... que TIpo de professores están 439

formando... porque para ser um bom professor no tem que comentar NAda de um país... 440

enton/ o preconceito está aí”... aí que eles pararam... a menina ficou com medo né?...e foi aí 441

que sufri:: preconceito... antes no... nossa... antes no... MEU Pai... ADOro eso aqui... eu 442

ADOro Brasil... até hoje... só foi na faculdade que... daí eu já no quis estudar mais no quis 443

continuar... no quis fazer mais a minha::::... a minha:::: a minha pós... porque as minhas 444

colegas continuam... e TEM é:::... me... me convidaram para ir dar aula agora... em uma das 445

escolas... está a menina que me caluniou... eu não vou... mas eu gosto aqui... aqui do Brasil 446

447

L1: e você... tia... dando aula de::: de espanhol... para as crianças e agora você está com 5ª a 448

8ª... como que é a experiência? 449

19

L2: A-DO-RO... MEU Deus... como eu gosto... EU gosto... porque porque Ju... eu vejo nas 450

crianças... elas são sinceras... né... nós adultos temos um pouco essa maldade... temos inveja 451

né... que... um é melhor que o outro... e o que que eu percibi até entre os pro/ professores 452

também existe eso aí... eu particularmente NO... na faculdade... como eu te falei... para mi... 453

para mi os professores foram MARAvilhosos... e no sé se independente se:::... porque eu 454

nunca quis criticar...eu no vou falar do meu colega de jeito nenhum...e eu escutava eso aí 455

ENtre os profe... é:::... entre os professores no... entre os COLEgas que estavam se 456

formando... e:::...eu defendia sempre essa::::... ah:::... o lado dos professores né?... e o que que 457

acontece?... eu... eu vi muita maldade en ese sentido... e as crianças no... as crianças eles eles 458

o que te falam é verdade... tá entendendo?... eu SEMpre gostei de lecionar crianças... eu já... 459

já aaa.. aprendi... lá já lecionava né?... agora por eso que eu fico entre... entre lecionar adulto o 460

adolescente... adulto até dá pra pensar... adulto né... bem adulto... porque eles vão para 461

estudar mesmo... no brincar... em... que nem essa... eu estava esses dias... eu fui sustituir a 462

professora... una professora lá na Harpa... e aí tem seNHOres...que QUErem estudar... enton/ 463

com ESSE... tudo bem... é:::... é gostoso porque eles vão para para esTUDAR... no van para 464

brincar... e as crianças também... as crianças brincam... mas se você falar para criança ... pode 465

parar... até no vai parar no né... mas aí... três o dos dos três vezes ele para... e eles son 466

sinceros... e te dizem ah maestra... você é así asado... é porque eles son sinceros...LÓGIco que 467

tem crianças né?... que:::... é cheio de problemas... mas aí você entra um pouco no mundo de 468

ele... e você escuta ele o que que tem atrás a historinha de eles... você vai ver porque que essa 469

criança é así... porque que ele é rebelde... enton/ eu me apaix/ eu me apaixonei de... de... da... 470

das crianças... ADOro... eu sinto saudades... en ese tempo así... que eu no estava dando mais 471

aula... eu sentia... é:::... sentia saudades de eles... enton/ eu gosto de lecionar mais crianças 472

L1: e você acha que você leva alguma.... algum tipo de vantagem quando você vai procurar 473

um emprego... pra dar aula de espanhol... você paraguaia por já falar o espanhol... leva 474

alguma vantagem sobre um professor que se forma aqui no Brasil por exemplo? 475

L2: en una... é... po pode até ser... porque eu... eu sou paraguaia mas eu sou... é:::... sei faLAR 476

o espanhol... lógico agora que eu esTUdei... aí tudo bem... en una das escolas que eu fui 477

aqui... é:::... eles me falaram... o:::... o::::... dono da escola me falou... “eu prefiero uma::::... 478

uma::::... professora que fala já... o espanhol”... porque ele também foi para Estados 479

Unidos...ficou lá dieciséis anos com a esposa... e hoje eles están aí... abriram una escola... e 480

ele... ele me falou... ele me falou... “eu prefiero porque de ahí tem... tem...” según ele... eu 481

estou te falando o que ele me comentou né... según ele disse que tem professoras aí que já 482

foram aí que están esTUDANdo ainda o espanhol né... que ele percebeu que:::... no:::... é:::... 483

que.... que ela fala tudo errado... e que ele preferia realmente uma::::... uma::::... una que já é 484

nativa no caso... MAS aí eu falo que tem ÓTImas professores porque... é:::.. tem... están se 485

formando professores muito bons em espanhol... claro... e:::... eu vi aí na unioeste quando 486

estaba aí fazendo unos é:::... unos cursos... na unioeste... nossa... tem unos professores 487

MARAvilhosos que... olha... eu tenho MUIto que aprender de eles... no tenha dúvida... 488

porque... o:::... o::... que acontece Ju... as pessoas pensam... NOSsa... aquela professora é 489

nativa... ela deve ser ÓTIma... mas no é por aí... a parte de... de espanhol é difícil... a parte 490

gramatical... você sabe que é MUIto difícil... e eu... depois de quantos anos faz que voltei a 491

estudar de novo?... faz três anos que estou morando aqui... TREINTA anos aliás... trinta 492

anos...em trinta anos depois... depois de trinta anos que eu comecei a estudar de novo 493

espanhol... tá entendendo?... e português enton/ tem MUIta coisa ainda para aprender em 494

português... EU... eu no teria coragem de dar aula de português... 495

((fim do primeiro lado da fita, que acabou cortando a resposta da entrevistada)) 496

L1: ((o início da pergunta ficou comprometido por ter iniciado gravação no outro lado da 497

fita)) e daí você aprendeu na casa do Franco? 498

20

L2: foi... foi com as crianças que eu lecionava... porque daí eram todos brasiLEIROS... a 499

maioria... eu me lembro que tinha dentro una aula... quarenta crianças... e essas crianças 500

tinham que estudar... veja só... olha a dificuldade... primeira coisa que nós tínhamos que 501

fazer... era ensinar as crianças... a:::... aprender espanhol... para DEpois:::... passar os 502

conteúdos da:::::... do que nós iríamos dar... porque eles no compreendiam NAda... tadinhos 503

no entendiam nada... o que... que... “que habla professora?”... “que habla?”... sabe?... enton/ 504

nós tínhamos que praticar DENtro::... o idioma espanhol... probrecinhos de eles... eles... 505

sufriran muito... e lógico que nós também sufrimos... e daí o que que acontecia?... daí eles 506

fala/... daí eu falava así... bom... eu vou ensinar a vocês o:::... espanhol... e vocês me ensinam 507

o:::... português... e foi assim que eu comencé... depois que eu fui... e donde... donde nós 508

morávamos... todos eles eram... eram brasileiros né?... e foi aí eu no entendia nada... no 509

compreendia nada... eu falava pra minha irmã... que que ele ta falando?... né?... e depois 510

depois com as crianças e junto depois... com a minha sogra::::... futuro sogra... futura 511

sogra::::... e o meu enamorado... e o povo de lá... comencé a... eu comencé a... a falar esp/ o 512

português... SÓ falAR... porque eu no... en la época eu no estudei... nunca estudei... eu só falei 513

así com... aprendi a falar com o povo né? 514

L1: estudar... estudar... foi na faculdade tia que você... ah... não... você fez magistério... 515

L2: eu fiz magistério... mas aí para fazer magistério eu tinha que fazer aquela prova seletiva... 516

foi no Wilson Joffre nunca esqueço... e daí o que que aconteceu?... né... eu me lembro que a 517

Rocio estava estudando né... na época... e ela me trouxe é:::... ela me falou así... “mãe... acho 518

que você vai ter que dar um exame para ir no magistério”... e eu fui lá no colégio Maria 519

Auxiliadora e me falou... “no... pode comenzar”... daí eu falei... “mas no vou fazer nenhuma 520

prova?”... e ela me falou así... a diretora me falou así... “nós vamos te avisar... você vai fazer 521

uma prova si”... de aí eu já comencé o magistério... já fazia unos... unos quatro cin/ quatro 522

meses né... e aí veio a ordem que eu tinha que ir fazer essa prova seletiva... JÁ era amiga dos 523

professores também... quando eu falei... “professores... eu vou desistir”... porque era prova de 524

todas as matérias né?... primeiro e segundo grado... e cuando veio aquello... falei nossa... eu 525

me apavorei... falei no vou fazer... de aí eu comentei com os professores... e a Fátima... una 526

professora MUIto querida... me falou... “você vai... claro que você vai passar... e... nós vamos 527

te ajudar”... de aí eu ( )... “mas eu não tenho os LIvros... eu tenho os livros da minha filha...no 528

no sé como comenzar”... daí ela... nunca esqueço que ela é::: me trouxe até aqui e falou... 529

“Maria... tá aqui os livros... é só comenzar a estudar”... um MONte de livros... veio de carro... 530

colocou aí na mesa... e de aí comencé:::... comencé a estudar... e a Rocio... a minha filha 531

Rocio me falava... “mãe... você no precisa estudar todos... você vai fazer ese”... e ela 532

comenzava a me ensinar COmo que eu tinha que estudar... eu falei... “filha... tô.. estou com 533

medo... no vou passar... é MUIta coisa”... daí a Rocio oRALmente...nós estudávamos así... e 534

ela me falava... “mãe”... daí eu no entendia o que que era um... suponhamos... una... una 535

palabra... “que que significa eso filha?” e ela me falava... enton/ ela me falava “relaciona com 536

alguma coisa”... e o que eu fiz... né... e eu lembro que:::... história era uma das matérias que 537

eu mais gostava... e fiquei em história... engraçado... acho que confundi um pouco... né... 538

passei português... passei literatura::::...tudo::... passei tudo e fiquei... e daí na segunda:::: 539

chance né... acho que te dão duas três oportunidades... daí na segunda eu tirei acho que no me 540

engano... tirei o/ oito nove... e passei... passei fiz tudo essas provas seletivas...para depois 541

é:::... ir no magistério... só que eles já me tinham me:::... a irmã me falou... “vem já assistir as 542

aulas... que depois nós vamos te matricular”... e passei... foi así que comencé com português... 543

dePOIS fui... me deixei... me formei... quando veio a doença da Rocio né... eu deixei tudo 544

meus materiais lá... mas já tinha me formado em magistério eu no fiz a... é:::... o:::... como 545

era?... o baile da formatura... essas coisas... no participei de eso aí... de nada... porque foi na 546

época em que... a:::: Rocio veio a:::... adoecer... eu larguei tudo lá... mas eu me formei... 547

21

magistério... eu passei tudo com boas notas... agora na faculdade que eu vi que::: e:::... em 548

espanhol... justo em espanhol... que eu::: eu... fui com nota bem baixa 549

L1: em espanhol? 550

L2: em espanhol... MAS eu acho... eu não acredito... eu acho que eso foi:::... eles me 551

colocaram de propósito... porque eu... eu sei o que eu fiz lá... tem professores que... sei lá... 552

e::.. nosotros... no... nas outras matérias... fui bem né... e:::... em:::... magistério:::... as... as 553

minhas notas são bem ( ) 554

L1: e na faculdade as suas colegas... na parte do espanhol... vinham pedir sua ajuda para fazer 555

trabalho? 556

L2: sim... eles vinham... mas eu... o que eu sabia... porque sempre deixei claro Ju... que eu... 557

por exemplo... no sabia:::... no... no era que sabia tudo... eu sabia FAlar como eu te falei... eu 558

precisava de um estudo... eu tinha que comenzar a estudar... em coMENZÈ a estudar de 559

novo... e o que... o que que eu percibí que as colegas... suponhamos... é é é... eles vinham me 560

preguntar suponhamos uma coisa bem difícil... que às vezes eu no saBIA responder...enton/ 561

eu tinha né... du/ dúvidas né... daí eu falava... “oh... eu vou me informar bem” porque eu 562

penso así... no pelo fato de ser nativo vai saber tudo... no... eu... por exemplo... eu... a parte 563

gramatical tem muitas coisas... agora LÓGIco... tá tudo aqui né?... mas aí você tem que ir 564

estudando... eu parei de estudar há quarenta anos... né?... agora eu comencé a estudar... outra 565

vez né... fiz MUItos cursos... por eso que eu insisto... continuo fazendo cursos de espanhol 566

né?... aí depois eu quero comenzar o português... e:::... eso é claro... o que... o que eu podia 567

ajudar no... no... no::... primeiro e segundo ano... eu mostrava así minha folha para eles ((a 568

entrevistada mostra por gesto que levantava sua folha para que o colega que sentava atrás 569

pudesse ver))... fazia tudo né?... tranquilo... ( ) eu ajudo mesmo... o que eu sei... nossa... no 570

penso duas vezes... no tenha essa... essa coisa de “nossa... ela... eu no vou ajudar porque... 571

é:::... eu quero ser a melhor” no... se é por mi... eu... olha::::... eu... me faz minha prova e eu 572

vou fazer tua prova... eu quero ajudar e eu acho que:::... sei lá... é:::... porque eu... eu penso 573

así... quando... se você quer ser alguém... você vai estudar... as meninada só que coitada... 574

tinha meninas que eram empregada doméstica na faculdade... e ela me falava “eu no vou 575

lecionar espanhol... enton/... Maria... se você faz minha prova... tranquilo”... só que... 576

CLARO... eu no fiz a ninguém... mas eu... mostrava así... faziam tudo... passavam tudo 577

L1: você teve a Romina, a Rocio e a Ana... elas tinham um pai brasileiro e uma mãe 578

paraguaia... com que língua... que língua que você ensinava para elas? 579

L2: aqui o português... 580

L1: e daí quando elas iam para lá como que funcionava? 581

L2: para lá daí elas aprenderam o espanhol 582

L1: mas lá?... não em casa com você aqui? 583

L2: não... não... aqui em casa no... eu falava tudo português com elas... mas só que elas 584

aprenderam é... a Rocio... por exemplo... vocês estudavam espanhol... em... no Santa Maria 585

né?... com o professor lá... que eu inclusive ia ser a professora de vocês... ((risos)) e por medo 586

eu voltei para trás... Meu Deus... nunca esqueço... é a::::... a::::... a irmã Olmira... é Olmira 587

né?... Se lembra da irmã? 588

L1: uhun 589

L2: eu fui... firmei tudo lá e depois voltei para trás... é que na época estava me separando 590

né.?... e quando ela me ofreceu essa::::... esse... essa::::... essa oportunidade de lecionar é:: 591

espanhol... meu Deus... eu fiquei MUIto feliz menina do céu... e fui e assinei tudo e daí voltei 592

para trás... eu no esTAva bem... eu estava me separando na época né?...e de aí a Rocio 593

aprendeu aí a parte gramatical... e a parte oral así aprendia conmigo... nós praticávamos... mas 594

eso porque ela tinha que::... estudar né?... mas aqui eu... tudo em português... elas me 595

entendiam né?... daí quando nós íamos lá... as meninadas falavam em português... mas elas 596

estavam aPRENDENdo o espanhol... hoje a Rocio... a Rocio fala perfeitamente o 597

22

espanhol...eles vão se comunica lá::... tudo mundo conhecendo o espanhol... enton/ AQUI em 598

casa sempre foi o português 599

L1: e agora a Romina lá... só no espanhol... 600

L2: mas só que así... aquele:::... aquele espanhol TOdo mal falado... a Romina... é aquele que 601

te falei... aquele Jopará... ela por exemplo fala así é:::... é:::... ((a entrevista reproduz uma frase 602

de difícil compreensão por conter palavras em guarani))... (nambrena) no existe no::: no::: no 603

dicionário espanhol... (nambrena)... (nambrena) é una... um idioma inventado pelo Paraguai... 604

e olha que tem muitos... muitos escritores muito:::... é:::... aqueles que estudam... um idioma... 605

como que fala?... o::::... que son cuRIOsos pelo:::... pela forma que o paraguaio fala... porque 606

eles vivem inventando coisas... daí a Romina eu falo así... “Romina... meu Deus do céu... o... 607

o... te/... teu espanhol é péssimo”... ela mistura português... guarani e espanhol... enton/ sai um 608

idioma que ELA misma inventou... ((risos))... “RoMIna... meu Deus do céu”... “ah... mãe fica 609

quieta... eu sei que você é formada... e me está chamando a atenção... eu falo do jeito que eu 610

quero”... (nambrena)... (maena)... ((enumera uma série de palavras em guarani)) só eles que se 611

entendem 612

L1: e lá na sua comunidade... onde você morava... onde a Romina mora ainda... como vocês 613

veem os brasileiros lá?... qual é a visão que eles tem do povo brasileiro? 614

L2: Ah::... eles gostam... NÓS gostamos dos brasileiros... no tenha DÚvida de eso... gostamos 615

MUIto... quando o povo brasileiro vai lá... lá é:::... lá no meu povo principalmente.... a 616

minha::::... minha família... eles no sabem que fazer por um brasileiro... LÓgico que eles tem 617

um pouQUInho né... eles sabem que aqui é TUdo una maravilha que é tudo povo brasileiro é 618

MUIto limpo um povo muito limpo né?... e o povo paraguaio ao contrário né?... LÓgico que 619

tem também... povo muito... muito limpo né? Porque lá é así... “ah... eu sou pobre” ela te fala 620

“yo soy pobre”... mas no porque sea pobre...vai ser po/ puerca né?... enton/ de aí é así... e lá 621

em casa... em casa por exemplo... che/ chega una que nem a dona Ema por exemplo... a mãe 622

do Franco... a família lá de de brasileiros... e... a minha mãe se preocupa... coitadinha... faz de 623

TUdo por eles... MAS o povo no GEral eles ADOram o brasileiro sabe por quê?... porque o 624

povo brasileiro::... um povo muito trabalhor né?... e lá a veces o::: povo de Paraguai toma así 625

toma o famoso tererê de eles... atrasa TUdo... e já:::... estão acostumados... no adianta... 626

porque ATÉ a empregada doméstica tem que sentar e tomar o tererê de eles... e eu fico 627

LOUca quando eu vou.... quando vejo essas coisas lá... porque atrasa tudo né Ju?... é:::... 628

MAS o povo em si ADOra o... o brasileiro:::... o brasileiro é sempre muito bem vindo... é 629

LÓgico que tem os policiais que daqui para:::: ir de carro... é mais difícil... por quê?... porque 630

tem os policiais que son coRRUPtos né?... que... piden dinheiro:::... propina... o:::... pai 631

mesmo das meninas... o meu ex marido... no quer ir mais para lá... por que?... porque... no 632

caminho eles vêem que é brasileiro e aseguran e:::... COmo aqui também é así... vêem o:::... a 633

chapa paraguaia sempre de carro importado... eles aseguran é:::... o... meu genro... o Gabriel 634

que que fizeram por ele?... aqui no Brasil... quando era a:::::... a formatura da Rocio o Gabriel 635

a Romina já estava aqui... com a fami/... com a sogra e o sogro... e o Gabriel iria vir mais 636

tarde com o irmão né?... e quando vinha vindo... eles tinha... eu no me e:::... se no me engano 637

foi um:::... una camionete o um carro:::... aqueles carros imporTAdos... e chamou atenção da 638

polícia... a... aqui de Medianeira... e vieram detrás... do::... do Gabriel... e pararam ele... ele 639

estava com o irmão... eles deixaram PElados sabe?... que... capar tudo... sei lá... tirou TUdo... 640

porque pensavam que eles... eles estavam trazendo droga... tá entendendo?... eles queriam 641

sabe por que que ele::: tinha aquele::: aquela camionete daquele porte lá sei lá... e de aí ele 642

falou así... “mas eu traBAlho... meu Pais trabalham... a MInha muLHER trabalha conMIgo... 643

e porque lá em Paraguai nós temos condições de comprar um carro que nem esse”... enton/ 644

foi::.. ele no chegou a tempo... quando nós estávamos chegando aqui duas horas da 645

madrugada... ele estava chegando... com o irmão... no deu tempo de ir na festa da Rocio... 646

enton/ é así... eu acho que eso aí é muito relativo né?... mas o povo:::... a tua pregunta era se... 647

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como que era da::::... como que era:::: é::: o:::: em relação aos brasileiros... o... o povo 648

brasileiro é muito bem recibido pelos paraguaios... gostamos muito de eles... é::: 649

L1: é isso então... acho que já está bom... 650

L2: mas no era pra ser espanhol?... agora falei só português... 651

L1: não tem problema... 652

L2: no hay problema? 653

L1: não... não tem problema nenhuma... podia misturar... falar do jeito que você se sentisse 654

mais a vontade... 655

L2: Ai::: que legal... enton/ tá jóia... vai te ajudar?... maravilha... 656