314
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS Priscilla Adriane Ferreira Almeida OS GAULESES EM CÉSAR, TITO LÍVIO E PLÍNIO, O VELHO: SOBRE A RETÓRICA DA REPRESENTAÇÃO DO OUTRO E A CONSTRUÇÃO DO SI Belo Horizonte 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE POacuteS GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS LITERAacuteRIOS

Priscilla Adriane Ferreira Almeida

OS GAULESES EM CEacuteSAR TITO LIacuteVIO E PLIacuteNIO O VELHO

SOBRE A RETOacuteRICA DA REPRESENTACcedilAtildeO DO OUTRO E A

CONSTRUCcedilAtildeO DO SI

Belo Horizonte

2018

PRISCILLA ADRIANE FERREIRA ALMEIDA

OS GAULESES EM CEacuteSAR TITO LIacuteVIO E PLIacuteNIO O VELHO

SOBRE A RETOacuteRICA DA REPRESENTACcedilAtildeO DO OUTRO E A

CONSTRUCcedilAtildeO DO SI

Trabalho apresentado ao Programa de Poacutes

Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da

Faculdade de Letras da Universidade

Federal de Minas Gerais como requisito

parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor O

presente trabalho foi realizado com apoio

da CAPES Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil

Aacuterea de concentraccedilatildeo Literaturas Claacutessicas

e Medievais

Orient dor Prof Dr S ndr M ri

Gualberto Braga Bianchet

Belo Horizonte

2018

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai Elveacutecio e agrave minha saudosa matildee Sandra Aos meus irmatildeos Karla e Juninho

pelo companheirismo

Ao Flaacutevio amor e luz dos meus dias

Agraves irmatildes Juliana Nanda Priscilla e Marina pela amizade e carinho

Agrave Sandra que muito mais que uma boa orientadora representa verdadeiro oaacutesis no

meio acadecircmico Obrigada pela confianccedila e por ter topado fazer essa jornada comigo

Aos professores doutores Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo Rafael Scopacasa Faacutebio da Silva

Fortes e Artur Costrino que compuseram a banca e fizeram comentaacuterios muito

relevantes para o enriquecimento deste trabalho

Aos meus professores da Letras e da Histoacuteria da UFMG

Agradeccedilo a proacutepria FALE ao POSLIT CAPES Bibliothegraveque Nationale de France e a

Fondation Hardt (paraiacuteso dos classicistas) pela oportunidade de concretizar este

trabalho

Tu regere imperio populos Romane memento

(hae tibi erunt artes) pacique imponere morem

parcere subiectis et debellare superbos

Tu romano lembra-te de comandar os povos com tua autoridade

(essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz

poupar os vencidos e dominar os soberbos

(Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853)

RESUMO

Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nenhum material escrito e sua cultura e

histoacuteria nos satildeo conhecidas apenas por relatos de terceiros ou por estudos

arqueoloacutegicos Por isso o tema das representaccedilotildees dos gauleses em Ceacutesar Tito Liacutevio e

Pliacutenio que compreende o periacuteodo entre o seacuteculo I aC a I dC eacute o foco principal desta

pesquisa jaacute que corresponde ao momento em que a Gaacutelia eacute definivamente conquistada

pelos romanos e transformada em proviacutencia

Propomos no comeccedilo deste trabalho uma reflexatildeo sobre o proacuteprio eacutetimo

―baacuterb ro leacutem de bord mos o conceito de b rbaacuterie ndash e de civilidade ndash entre gregos e

romanos Em seguida falaremos sobre a expansatildeo do domiacutenio de Roma e como foi o

contato entre romanos e gauleses Apoacutes essa investigaccedilatildeo nos propomos a estudar a

fundo algumas passagens latinas sobre os gauleses cujas fontes satildeo o De bello Gallico

(Sobre a guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito

Liacutevio e a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho Nessa anaacutelise dos

trechos latinos veremos como se estrutura a retoacuterica de representaccedilatildeo dos gauleses e de

como se operava essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada e

faremos consideraccedilotildees sobre o que era considerado ser baacuterbaro (ou civilizado) pelos

romanos do seacuteculo I aC a I dC Igualmente realizaremos um estudo dos elementos

retoacutericos empregados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para caracterizar os gauleses bem como

analisaremos o tipo de vocabulaacuterio utilizado e as recorrentes figuras representativas

empregadas para essas descriccedilotildees Por fim encerraremos este trabalho com algumas

consideraccedilotildees sobre o que se sabe hoje dos gauleses atraveacutes de pesquisas

historiograacuteficas e arqueoloacutegicas

Palavras-chave Gauleses Ceacutesar Tito Liacutevio Pliacutenio o Velho Retoacuterica Alteridade

ABSTRACT

We know th t the G uls didnlsquot le ve ny written m teri l nd their culture nd

history are known today by third-part reports and by archeological studies Therefore

the theme of G ulslsquo represent tions in C es r Livy nd Pliny the Elder s it

comprehends the temporal period from the I Century BC to I AC is the main

objective of this academic paper as it coincides with the moment in wich Gaul was

conquered and transformed into a Roman province

In the beginning of this paper we offer a reflection about the word ―b rb ri n

itself besides we focus on the concept of barbarity ndash and civilization ndash among Greeks

nd Rom ns There fter we t lk bout the exp nsion of Romelsquos dom in nd how w s

the contact between Romans and Gauls In addition we put forward to research some

Latin passages about the Gauls and the sources are De bello Gallico (The Gallic War)

of Caesar Ab urbe condita (The History of Rome) of Livy and in the Historia

naturalis (Natural History) of Pliny the Elder In this analysis of the Latin passages we

will be ble to re lize how the rhetoric of G ulslsquo represent tions is structured nd how

the construction of the image of the barbarian worked We will also make some

considerations about what was by the Romans from the I Century BC to I AC

considered as barbarian (or civilized) Furthermore we make a research of the rhetoric

elements used by Caesar Livy and Pliny to distinguish the Gauls as well to analyze the

type of vocabulary and representative figures applied in these descriptions Finally we

close this academic paper by bringing some facts of what is know today by the Gauls

through historiographical and archeological researches

Keywords Gauls Caesar Livy Pliny the Elder Rhetoric Alterity

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 9

Do tema de pesquisa 16

Da traduccedilatildeo e estudo 21

Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas 29

11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas

romanitas 29

12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC 42

121 ndash Poliacutebio 46

122 ndash Catatildeo o Censor 58

13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC 63

131 ndash Posidocircnio 63

132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio 66

1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina 76

133 ndash Diodoro Siacuteculo 80

134 ndash Estrabatildeo 84

Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia 89

21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC 89

211 ndash O exeacutercito romano 90

212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo

imperialista 92

213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana 97

22 ndash A conquista da Gaacutelia 100

221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa

Ocidental 106

222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar 110

23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar 112

231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de

Ceacutesar 113

232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo 116

233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar 121

24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico 128

Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas 148

31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano 148

32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia 151

33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita 153

34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita 154

341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana 157

342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio 159

35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita 162

36 ndash Pliacutenio o Velho 195

361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis 195

362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder 196

363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis 199

Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celta 218

41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses 218

42 ndash Mecanismos retoacutericos 221

421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo 223

422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia 230

423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia 231

43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade 235

431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio 235

432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem 238

44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz 243

Consideraccedilotildees finais 250

Referecircncias bibliograacuteficas 255

Ediccedilotildees e traduccedilotildees de textos antigos 255

Dicionaacuterios 259

Bibliografia geral 260

Anexo ndash antologia de autores 271

1 ndash Ceacutesar 271

2 ndash Tito Liacutevio 280

3 ndash Pliacutenio o Velho 304

9

Introduccedilatildeo

Consideramos importante iniciar este trabalho ressaltando o caraacuteter da

historiografia antiga jaacute que as obras que seratildeo objeto de estudo e de referecircncia para essa

pesquisa pertencem em sua maioria a esse gecircnero A histoacuteria soacute passa a ser

consider d ―ciecircnci com metodologi e sistem tiz ccedilatildeo proacutepri s poacutes o seacuteculo XIX 1

O historiador antigo natildeo era um pesquisador mas sim um escritor Isso natildeo quer dizer

que ele jamais se preocupava com a realidade dos fatos Entretanto as suas ferramentas

de pesquisa historiograacutefica eram amiuacutede mas natildeo soacute os relatos de autores anteriores a

persistecircncia de uma soacutelida tradiccedilatildeo oral (mitos lendas etc) e a verossimilhanccedila dos atos

e personagens (MARTIN GAILLARD 1981 p 108)

Quanto ao uso de fontes documentais como Marincola ressalta (In ERSKINE

2009 p19) os historiadores antigos natildeo faziam uso dos mesmos da forma que os

pesquisadores passaram a fazer a partir do seacuteculo XIX ndash ou seja tendo por meacutetodo o

uso de documentos como uma base confiaacutevel para um relato histoacuterico Isso acontecia na

Antiguidade por vaacuterias razotildees a primeira eacute a de que as evidecircncias documentais natildeo

eram guardadas sistematicamente e natildeo eram facilmente acessiacuteveis segundo os

historiadores tinham o costume de inquirir testemunhas oculares e participantes dos

fatos terceiro o foco em grandes indiviacuteduos e em grandes batalhas ndash em suma em uma

grande histoacuteria ndash tornava os documentos irrelevantes para tais tipos de narrativa por

fim os antigos natildeo viam os documentos como testemunhas imparciais mas apenas

como um outro meio de testemunho que poderia ou natildeo ser confiaacutevel (MARINCOLA

In ERSKINE 2009 p 19)2 O historiador antigo portanto preocupava-se

primeiramente em recontar os fatos natildeo cientificamente mas artisticamente o

historiador atual preocupa-se com a anaacutelise dos acontecimentos (MARTIN

GAILLARD 1981 p 108) Como Nicolai (In MARINCOLA 2007 p 14) descreve o

objetivo da historiografia antiga estava relacionado agrave criaccedilatildeo de paradigmas sobretudo

os de cunho poliacutetico-militar ou eacuteticos todos esses paradigmas da historiografia tinham

em certo sentido uma finalidade poliacutetica a de formar uma classe governante

oferecendo modelos de anaacutelise e exemplos de comportamento (como em Tuciacutedides) dar

1 Gu rinello no c piacutetulo ―Um morfologi d Histoacuteri de su tese de livre docecircnci (2014 p 53 a 74)

faz uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria enquanto ciecircncia bem como sobre as questotildees metodoloacutegicas e campo

de estudo da mesma 2 Marincola no capiacutetulo 2 intitul do ―Historiogr phy (In ERSKINE 2009 p 13 22) det lh de

forma profunda a questatildeo da escrita historiograacutefica na Antiguidade bem como realiza um debate sobre os

pressupostos dos historiadores antigos quanto agrave sua maneira de escrever o gecircnero histoacuteria

10

destaque a grandes personalidades ndash de modo positivo ou negativo ndash a tiacutetulo de

exemplos de evoluccedilatildeo moral (como em Saluacutestio) ou ainda cumprir o objetivo de

construir memoacuteria e identidade coletiva como nas historiografias locais e ktiseis

relacionadas agraves origens e fundaccedilotildees Evidentemente o corpus de autores de

historiografia antiga eacute bastante heterogecircneo com caracteriacutesticas muito diferentes entre

si ndash sendo que o denominador comum a todos eles eacute o fato de terem escrito uma

narraccedilatildeo de evento ou eventos (NICOLAI In MARINCOLA 2007 p 14) Aleacutem

disso embora o gecircnero historiograacutefico pressupusesse a imparcialidade e a auto-anulaccedilatildeo

do autor evidentemente uma escrita completamente imparcial era algo inviaacutevel a

histoacuteria escrita por um indiviacuteduo natildeo deixa de ser um texto como qualquer outro e

como tal ele passa em maior ou menor grau a visatildeo de mundo de seu autor Como

Fornara (1983 p 169) lembra comumente um poeta desejava expressar a si mesmo em

sua obra (mesmo que fosse seu eu liacuterico) um historiador por sua vez optava por se

esconder por traacutes dos sentimentos dos personagens da narrativa (sobretudo por meio dos

seus discursos) ou poderia ser vagamente percebido na forma como ele descrevia os

eventos3

Sobre definiccedilatildeo d histoacuteri Veyne (1998 p 18) pontu ― histoacuteri eacute um

narrativa de eventos todo o resto resulta disso Jaacute que eacute de fato uma narrativa ela natildeo

faz reviver esses eventos assim como tampouco o faz o romance o vivido tal como

ress i d s matildeos do histori dor natildeo eacute o dos tores eacute um n rr ccedilatildeo ( ) Veyne f z

nessa citaccedilatildeo uma referecircncia importante que relaciona a histoacuteria ao romance jaacute que

ambos satildeo narrativas em prosa Brandatildeo em seu livro A invenccedilatildeo do romance

esclarece de forma didaacutetica e acessiacutevel como os antigos (sobretudo Platatildeo e

Aristoacuteteles) defini m os gecircneros n rr tivos nos c piacutetulos ―O est tuto d n rr tiv

dieacutegesis e miacutemesis e seguintes 4

Focaremos aqui de forma resumida na relaccedilatildeo entre a histoacuteria e o romance

Como Br ndatildeo (2005 p 50) lembr ―( ) histoacuteri enqu dr -se na modalidade da

3 Para maior aprofundamento sobre a composiccedilatildeo historiograacutefica e em que medida o ponto de vista do

autor antigo pode ser contestado cf JOLY (2007 p 7-9) 4 Como Brandatildeo (2005 p 40 e ss) destaca para Platatildeo a narrativa poderia ser classificada em narrativa

simples (haplegrave dieacutegesis) cujo exemplo eacute o ditirambo narrativa mimeacutetica (miacutemesis) cujo maior exemplo

eacute o drama e a narrativa mista (dieacutegesis e miacutemesis) que tem como exemplo a epopeia Aristoacuteteles segue o

modelo de Platatildeo mas efetua em sua classificaccedilatildeo uma enorme modificaccedilatildeo ele faz da mimese (e natildeo da

narrativa) o nuacutecleo central Para Platatildeo tudo quanto dizem prosadores e poetas eacute dieacutegesis Para

Aristoacuteteles todas as narrativas (de prosadores e poetas) bem como a escultura a muacutesica e a pintura eacute

miacutemesis Para Aristoacuteteles a mimese se daacute agraves vezes narrando tornando-se em algo outro (como faz

Homero) como si mesmo e natildeo mudando ou com todos mimetizados agindo e atuando

11

narrativa mista jaacute que comporta a fala do narrador e discursos diretos de personagens

(pelo menos em rel ccedilatildeo agrave m iori dos histori dores ntigos) ( ) Ess definiccedilatildeo de

narrativa mista tambeacutem se aplica ao romance ainda que esse gecircnero de composiccedilatildeo

tenha surgido em periacuteodo posterior agraves definiccedilotildees de narrativa descritas por Platatildeo e

Aristoacuteteles

Brandatildeo (2005 p 51 e 52) resume essa questatildeo

Assim trecircs caracteriacutesticas separam a narrativa literaacuteria da narrativa histoacuterica

a primeira refere-se ao universal ocupando-se do que poderia acontecer

enquanto a segunda se volta para o particular e visa ao acontecido a primeira

organiza-se segundo os criteacuterios da verossimilhanccedila e da necessidade

enquanto a segunda conforme as accedilotildees tenham acontecido num determinado

tempo guardando umas com as outras um nexo puramente casual

finalmente a primeira por suas caracteriacutesticas formais tem como objetivo

produzir prazer (poieicirc hedoneacuten) Embora Aristoacuteteles natildeo esclareccedila os

objetivos da histoacuteria eacute lugar comum admitir que ela visa ao uacutetil

Dessa forma o foco da narraccedilatildeo seraacute percebido por duas vias a da utilidade ou

da natildeo utilidade (ou seja o divertimento) e por consequecircncia pela via da verdade

(aleacutetheia) ou da ficccedilatildeo (pseucircdos) (BRANDAtildeO 2005 p 56) O historiador antigo

tod vi natildeo possuiacute ess concepccedilatildeo de ―verd de histoacuteric t l como se tem hoje de

acordo com Martin e Gaillard (1981 p 109) o historiador antigo presumia que seus

predecessores tinham dito a verdade e se acontecesse de ele suprimir um ou outro

detalhe que lhe parecesse inverossiacutemil em essecircncia ele considerava a tradiccedilatildeo como

conferidora da autoridade a partir do momento em que o relato fornecido era racional e

coerente era aceitaacutevel

No contexto romano jaacute existiam relatos rudimentares dos fatos ndash desde meados

de 300 aC o pontiacutefice maacuteximo escrevia em uma taacutebula branca os eventos cotidianos

conflitos beacutelicos bem como o calendaacuterio religioso e prodiacutegios diversos e essa placa era

afixada no foacuterum (ANDREacute HUS 1974 p 10) Aleacutem disso tinham-se registros de leis

tratados diplomaacuteticos anais religiosos e os registros das grandes famiacutelias patriacutecias

Quanto agrave literatura latina em si ndash e evidentemente a historiografia ndash tem-se uma

grande influecircncia dos gregos a partir do contato entre essas duas culturas sobretudo a

partir de meados do seacuteculo II aC quando Roma conquistou vaacuterias cidades helecircnicas O

proacuteprio termo grego ἱζηνξία do qual vem o vocaacutebulo latino historia a princiacutepio

signific v ―pesquis Com o tempo ἱζηνξία passou a designar conhecimento obtido

ou informaccedilatildeo e por fim tornou-se sinocircnimo de narrativa sobre fatos eou feitos de

algueacutem (LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 842) Em latim esse tipo de narrativa de

12

realizaccedilotildees pessoais eacute conhecido como res gestae (fatos realizados) ndash sendo as Res

Gestae do imperador Otaacutevio Augusto o exemplo mais conhecido5

Quanto agrave origem de narrativas historiograacuteficas em Roma jaacute em 220 aC Neacutevio

escreveu uma epopeia de cunho historiograacutefico intitulada Bellum Punicum (Da guerra

puacutenica) da qual existem poucos fragmentos Essa obra tratava dos primoacuterdios de Roma

e das suas origens troianas Ecircnio contemporacircneo de Catatildeo o Velho escreveu os

Annales (Anais) entre 180 e 169 aC em hexacircmetros datiacutelicos A obra possuiacutea 18

livros que tratavam desde os primoacuterdios de Roma ateacute a Guerra da Iacutestria entre 178 e 177

aC Depois de Ecircnio as obras historiograacuteficas latinas passam a ser escritas

exclusivamente em prosa O grande florescimento do gecircnero em Roma ocorreu

especialmente no periacuteodo entre o seacuteculo I aC ao seacuteculo II dC com autores como

Ceacutesar Saluacutestio Tito Liacutevio e Taacutecito

Como Martin e Gaillard (1981 p 109 e 110) afirmam episoacutedios dramaacuteticos

momentos eacutepicos discursos e perigos constituiacuteam parte da mateacuteria historiograacutefica

antiga ndash o esforccedilo de racionalismo e anaacutelise poliacutetica nunca estavam ausentes de fato o

saber histoacuterico era indispensaacutevel agrave clarividecircncia poliacutetica pois a historiografia latina era

endereccedilada ao homem de estado ao homem de accedilatildeo e deveria ter uma finalidade uacutetil6

Escrever histoacuteria na Antiguidade portanto consistia na preocupaccedilatildeo de conservar para

a posteridade a lembranccedila dos atos e feitos dos ancestrais () e a iniciativa de fazer um

relato literaacuterio do passado (MARTIN GAILLARD 1981 p 110) A historiografia

antiga era um gecircnero que abarcava vaacuterios subgecircneros como o commentarius (utilizado

por Ceacutesar) e os annales (utilizado por Tito Liacutevio)7

5 Tambeacutem conhecido pelo nome de Monumentum Ancyranum ndash Monumento de Ancira) jaacute que a

inscriccedilatildeo dos feitos de Otaacutevio se encontra em uma estela na atual cidade de Ancara 6 Abordaremos mais adiante no subcapiacutetulo 132 referente a Ciacutecero a concepccedilatildeo da historiografia latina

e a sua utilidade sobretudo como ferramenta poliacutetica ao orador 7O commentarius (comentaacuterio) do antecedente grego hypomnema (memoacuteria) consistia em narrativas

provenientes de materiais sem acabamento como anotaccedilotildees relatoacuterios etc e era bastante utilizado por

magistrados e chefes militares para informar o governo sobre suas atividades ou ainda como rascunho

para depois ser melhor desenvolvido Os maiores exemplos desse tipo de composiccedilatildeo satildeo os dois textos

de Ceacutesar Ciacutecero tambeacutem escreveu um comentaacuterio sobre seu consulado mas natildeo foi publicado (CONTE

1999 p226) Os annales (anais) formam um gecircnero de escrita no qual os acontecimentos satildeo narrados

ano a ano e foram o primeiro modelo historiograacutefico utilizado pelos romanos Segundo Conte (1999 p

368) a obra de Liacutevio Ab urbe condita teria uma subdivisatildeo de livros por deacutecadas Aleacutem de Tito Liacutevio

outro exemplo desse gecircnero satildeo os Annales de Taacutecito Todavia Liacutevio pelo fato de contar a histoacuteria de

Roma desde a sua fundaccedilatildeo ateacute os dias que lhe eram contemporacircneos tambeacutem se encaixa no subgecircnero

da histoacuteria universal Para explicaccedilatildeo mais detalhada sobre os subgecircneros da historiografia latina cf

ANDREacute HUS 1974 p 9-14

13

Sobre a evoluccedilatildeo da historiografia romana sob influecircncia heleniacutestica e o seu

desenvolvimento ao longo do tempo Lintott (In BOARDMAN et al 1986 p 641)

afirma

In the late second century a distinction was drawn between annales in the

strict sense of a chronicle of events year by year and historiae which

involved casual analysis In due course the term histori elsquo w s to be used by

S llust nd T citus for works bout their own lifetime while nn leslsquo tended

to mean ancient history Cato had been the pioneer in turning history into a

political weapon by 100 BC politicians were writing memoirs to set the

record right bout themselves This trend led in time to C es rlsquos

comment ries nd Augustuslsquo Res Gestae (hellip) However side by side with

contemporary history antiquarian history flourished as never before The

material in the earlier annals was expanded by material culled from a variety

of documents whether genuine or forged and supplemented by frequently

stereotyped inventions such as led Livy to wonder how the Volscians and

Aequians had enough men to be slaughtered so often by the Romans(grifos

do autor) 8

A respeito da proacutepria histoacuteria de Roma desde o seu iniacutecio a cidade sempre se

envolveu em guerras e conquistas em grande contato com povos estrangeiros De

acordo com relatos literaacuterios que bebiam na fonte das narrativas lendaacuterias o heroacutei

primordial Eneias fugiu de Troia e partiu em busca da Itaacutelia para ali estabelecer o novo

povo romano e a nova paacutetria Virgiacutelio narra esse episoacutedio nos primeiros versos do livro I

da Aeneis (Eneida) e tambeacutem nesse livro estaacute a passagem em que Eneias chega a

Cartago Nesse lugar o heroacutei troiano conta para Dido nos livros II e III sobre a queda

de Troia e tambeacutem sobre suas andanccedilas e aventuras em busca da costa da Itaacutelia Eneias

deixa Cartago e Dido suicida-se (livro IV) temos em seguida a narraccedilatildeo da viagem dos

troianos ateacute a Itaacutelia (livro V) e a ida de Eneias ao inferno onde ele tem uma visatildeo do

futuro grandioso de Roma (livro VI) Eneias finalmente chega agrave peniacutensula Itaacutelica e

encontra-se com o rei Latino a guerra entre itaacutelicos e troianos se inicia quando o rei

Latino oferece a matildeo da sua filha Laviacutenia a Eneias sendo que a mesma jaacute tinha sido

prometida ao priacutencipe Turno (livro VII) Virgiacutelio conta sobre os confrontos entre os

exeacutercitos de Turno e Eneias entre os cantos VIII e XI A guerra entre troianos e ruacutetulos

apenas se encerra quando em um duelo Eneias vence Turno no livro XII da Aeneis

8 ―No fin l do segundo seacuteculo uma distinccedilatildeo foi feita entre annales (anais) no sentido estrito de uma

crocircnica de eventos ano a ano e historiae (histoacuterias) que envolviam anaacutelise dos fatos Mais tarde o termo

histori elsquo er us do por S luacutestio e Taacutecito p r tr b lhos sobre o seu proacuteprio tempo enqu nto nn leslsquo

tendia a designar histoacuteria antiga Catatildeo foi o pioneiro em transformar a histoacuteria em uma arma poliacutetica jaacute

em 100 aC poliacuteticos escreviam memoacuterias para um registro correto sobre eles mesmos Essa tendecircncia

levou no futuro aos comentaacuterios de Ceacutesar e Res Gestae (feitos) de Augusto () Todavia lado a lado com

a histoacuteria contemporacircnea a histoacuteria antiga floresceu como nunca antes O teor dos antigos anais foi

expandido por materiais selecionados a partir de uma variedade de documentos tanto genuiacutenos quanto

forjados e acrescidos de frequentes invenccedilotildees estereotipadas como as que levaram Liacutevio a duvidar como

volscos e eacutequos pudessem possuir homens suficientes para serem mortos frequentemente pelos rom nos

14

Muitos outros exemplos de conflitos com outros povos podem ser encontrados na

histoacuteria miacutetica de Roma como as lendas que envolvem Horaacutecio Cocles Muacutecio Ceacutevola

Reacutegulo9

No campo historiograacutefico jaacute no seacuteculo V aC Roma iniciou a conquista de

outros povos itaacutelicos como os eacutequos os volscos e os sabinos Em 390 aC Roma

(exceto o Capitoacutelio) foi tomada pelos gauleses e obrigada a pagar um pesado tributo

para recuperar a cidade10

Posteriormente Roma e Cartago se envolveram em violentas

disputas pela hegemonia do mar mediterracircneo que resultaram nas Guerras Puacutenicas A

primeira dessas guerras ocorreu entre 264 e 241 aC a segunda entre 218 e 201 aC e a

terceira entre 149 e 146 aC Entrementes Roma entrou em conflito contra a Hispacircnia

de 218 a 206 aC e no periacuteodo entre 201 e 175 aC Roma conseguiu a submissatildeo

definitiva da Gaacutelia Cisalpina11

Novamente temos confrontos entre romanos e gauleses

Entre 105 e 101 aC o general Maacuterio aniquilou os cimbros e os teutotildees em Aix na

Gaacutelia (102 aC) e em Vercelas na Itaacutelia (101 aC) Posteriormente Juacutelio Ceacutesar

conquistou a Gaacutelia definitivamente entre os anos 58 e 51 aC12

Cabe aqui fazer um esclarecimento sobre os termos celta e gaulecircs nas palavras

do proacuteprio Ceacutesar no comeccedilo de sua obra De bello Gallico (I1) em traduccedilatildeo nossa

Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam Aquitani

tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur ―Tod Gaacuteli eacute dividid

em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a terceira

h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss

g uleseslsquo Or p r os rom nos h vi distinccedilatildeo entre os celt s e outros povos que

habitavam a Gaacutelia Neste trabalho ao conjunto dos povos da Gaacutelia (belgas aquitanos e

celtas) vamos nos referir a todos eles indistintamente como gauleses galos e celtas13

9 Pereira faz uma raacutepida antologia sobre os heroacuteis miacuteticos de Roma (1993 p 11 a 32)

10 Tito Liacutevio narra o episoacutedio no livro V (48 a 51) de Ab urbe condita Schmidt (2010) narra todos os

enfrentamentos entre gauleses e romanos desde o seacuteculo IV aC ateacute o fim do impeacuterio romano no seacuteculo V

dC 11

Para mais detalhes sobre a conquista da Gaacutelia Cisalpina ver SCHMIDT (2010 p 105 e 106) 12

Para todas as datas citadas nesse trecho e tambeacutem as datas mencionadas anteriormente sobre

acontecimentos entre 264 e 175 aC usamos a cronologia de Bornecque e Mornet (2002 p 6 a 12) 13

O termo celta era um atributo eacutetnico usado primeiramente pelos gregos para se referir aos povos que

viviam ao norte da colocircnia de Marselha Possivelmente tem ligaccedilatildeo com a raiz kel tendo o obscuro

significado de exaltado ou combativo O termo gaulecircs por sua vez jaacute era usado pelos romanos para se

referir ao povo que veio do norte e saqueou a cidade no comeccedilo do seacuteculo IV aC e posteriormente para

se referir a todos os povos que possuiacuteam linguagem e cultura ceacutelticas (RANKIN 1996 p 1 e 2)

15

Tais incursotildees romanas eram motivadas por vaacuterios aspectos poliacuteticos

econocircmicos e sociais No plano poliacutetico Goudineau (2007 p 324) resume a nova

posiccedilatildeo de Roma ao conquistar a Gaacutelia ao afirmar

L conquecircte ceacutes rienne modifieacute de fond en comble llsquoeacutequilibre du monde

rom in jusqulsquo lors centreacute sur l Meacutediterr neacutee (agrave llsquoexception tout juste du

Pont-Euxin) En superficie les ―nouve ux territoires repreacutesentent environ

30 de ce monde Italie exclue ndash ce qui est eacutenorme () La guerre des

Gaules a radicalement et deacutefinitivement transformeacute les donneacutees geacuteo-

politiques du monde ntique Inversement llsquohistoire des G ules tient en

grande partie agrave leur environnement aux nouvelles donneacutees strateacutegiques (les

frontiegraveres germaniques la proximiteacute de la Bretagne) qui eurent de

conseacutequences agrave la fois sociales et eacuteconomiques14

Quanto ao aspecto econocircmico Roma passou a ter maior matildeo de obra escrava

para os grandes latifuacutendios receita maior com tributos pagos pelos povos vencidos e

tambeacutem maior nuacutemero de soldados jaacute que as proviacutencias deveriam fornecer tropas

auxiliares (DELAPLACE FRANCE 2011 p 53) Aleacutem disso Roma aumentou a zona

de comeacutercio e circulaccedilatildeo de mercadorias e explorou minas de ouro e prata na Gaacutelia

Transalpina (GOUDINEAU 2007 p 340)

No campo social Roma em seus domiacutenios tornou-se mais versaacutetil em termos

culturais Ao contraacuterio dos gregos que jamais concederam a cidadania aos povos

estrangeiros em Roma esse processo foi diferente Apoacutes a conquista definitiva da Gaacutelia

empreendida por Ceacutesar o territoacuterio passou a ser romanizado e as elites locais foram

mantidas Delaplace e France (2011 p 53) afirmam o seguinte sobre esse fenocircmeno

En effet les aristocraties locales profitent quant agrave elles de la romanisation

qui mecircme si elle s`accompagne de mesures contraignantes leur apporte le

soutien de Rome pour renforcer leur domination sociale et leur permet de

beacuteneacuteficier de privilegraveges lieacutes agrave llsquoobtention de l citoyenneteacute rom ine Degraves ce

moment plusieurs de ces not bles g ulois beacuteneacuteficient en effet de llsquooctroi de

la ciuitas(grifo do autor)15

14

―A conquist ces ri n modificou complet mente o equiliacutebrio do mundo rom no gor centr do no

Mediterracircneo (com exceccedilatildeo t lvez do Ponto Euxino) Em superfiacutecie os ―novos territoacuterios represent m

cerca de 30 desse mundo excluiacuteda a Itaacutelia - o que eacute enorme () A guerra das Gaacutelias transformou de

forma radical e definitiva os domiacutenios geopoliacuteticos do mundo antigo Inversamente a histoacuteria das Gaacutelias

se deve em grande parte ao seu ambiente e aos novos domiacutenios estrateacutegicos (as fronteiras germacircnicas a

proximid de d Bret nh ) que c rret r m consequecircnci s t nto soci is qu nto econocircmic s 15

―De f to s ristocr ci s loc is desfrut v m el s mesm s d rom niz ccedilatildeo que mesmo se

acompanhada de medidas restritivas lhes concedia o suporte de Roma para reforccedilar a sua dominaccedilatildeo

social e lhes permitia se favorecer dos privileacutegios relacionados agrave obtenccedilatildeo da cidadania romana A partir

desse momento muitos desses notaacuteveis gauleses passaram a se beneficiar da concessatildeo da ciuitas

16

Dessa maneira ao longo do seacuteculo I aC e do seacuteculo I dC temos a conquista de

territoacuterios da Europa ocidental e esses lugares permaneceratildeo de certa forma sob

influecircncia definitiva da romanizaccedilatildeo mesmo apoacutes a queda do impeacuterio romano com o

predomiacutenio das liacutenguas latinas (BASSETTO 2005 p 99 e 100)

Os romanos tiveram um contato muito grande com os ditos baacuterbaros jaacute que

lutaram contra eles durante quase a totalidade de sua histoacuteria ampliando e defendendo

suas fronteiras Todavia esse processo de conquistas natildeo foi unilateral apesar de os

romanos terem dominado povos diferentes eles tambeacutem adquiriram muitos dos haacutebitos

estrangeiros ndash como o culto persa a Mitra o culto a deuses egiacutepcios e a grande

influecircncia cultural dos gregos sobre Roma dentre outros exemplos Quanto aos povos

conquistados Roma possuiacutea uma dupla forma de tratar com os vencidos Os

estrangeiros que eram inimigos da cidade e que resistiam agrave conquista quando

derrotados eram subjugados e obrigados a pagar altos tributos Todavia alguns povos

se aliavam a Roma de maneira diplomaacutetica O grande aspecto que diferenciava Roma

dos outros povos antigos contudo era a manutenccedilatildeo das elites locais dos territoacuterios

conquistados pacificamente e ateacute mesmo a concessatildeo de cidadania plena ou parcial a

essas elites Esse fenocircmeno visava tanto a diminuir revoltas contra Roma quanto coibir

alianccedilas entre os inimigos do impeacuterio (GUARINELLO 2014 p 296)16

Roma que

desde as suas origens jaacute se relacionava com outros povos tornou-se entatildeo um domiacutenio

multicultural17

Do tema de pesquisa

Vimos que Roma ampliou seus territoacuterios atraveacutes das conquistas obtendo terras

e matildeo de obra para os latifuacutendios aleacutem de receitas com tributos e aumento do seu

territoacuterio18

Sobre esses escravos obtidos em conquistas militares jaacute Bloch e Cousin

(1964 p 123) afirmaram que ―( ) Luacuteculo Muren Serviacutelio Pompeio vatildeo enviar do

Oriente verdadeiros carregamentos de homens entre os anos 80 e 63 Ceacutesar passa por ter

16

Mencionamos anteriormente vaacuterias conquistas que foram realizadas durante o periacuteodo da Repuacuteblica

romana Ao falar de impeacuterio estamos considerando aqui o sentido de conquista e dominaccedilatildeo dos romanos

perante outros povos e natildeo a forma de governo iniciada por Otaacutevio Augusto 17

No capiacutetulo 2 deste trabalho voltaremos ao tema da conquista romana bem como ao processo de

romanizaccedilatildeo de forma mais profunda 18

A discussatildeo sobre os motivos que impulsionaram as conquistas de Roma natildeo se esgota apenas nessa

justificativa econocircmica aprofundaremos m is esse ssunto di nte no subc piacutetulo 2 1 2 intitul do ―o

romano como o povo-rei e justific tiv ideoloacutegic d exp nsatildeo imperi list

17

trazido das suas campanhas consoante os autores 150000 400000 e mesmo um

milhatildeo de prisioneiros este recrut mento contiacutenuo de g dolsquo hum no desafia todo o

numer mento T mbeacutem sobre o genociacutedio dos g uleses C nfor (2002 p 157) firm

que ― Gaacuteli o mundo ceacuteltico foi dess form com violecircnci e o genociacutedio

mergulh d no circuito d civiliz ccedilatildeolsquo rom n Muito se f l sobre exp nsatildeo do

impeacuterio romano mas ao ler as citaccedilotildees anteriores temos uma ideia de quatildeo violento esse

processo foi

No tocante aos gauleses diferem os discursos e escritos tanto os antigos quanto

os contemporacircneos Aleacutem da miscelacircnea de fontes antigas temos ainda o preconceito de

estudiosos da aacuterea que agraves vezes valorizam a supremacia greco-romana em detrimento

de outras culturas Sobre esse aspecto temos um exemplo neste trecho escrito por

Anderson (1982 p 67)

A Espanha e a Gaacutelia e mais tarde a Noacuterica a Reacutetia e a Bretanha eram terras

remotas e primitivas povoadas por comunidades tribais celtas muitas delas

sem qualquer contacto histoacuterico com o mundo claacutessico A sua integraccedilatildeo

neste levantou problemas de ordem completamente diversa dos da

helenizaccedilatildeo do Proacuteximo Oriente Tratava-se natildeo somente de povos social e

culturalmente atrasados mas de regiotildees interiores de um tipo que a

Antiguidade claacutessica fora ateacute entatildeo incapaz de organizar economicamente

O utor firm cim que os povos baacuterb ros er m ―social e culturalmente

tr s dos De cordo com outros pesquis dores n verd de os g uleses natildeo seri m tatildeo

atrasados como Anderson escreveu No livro Roma e o seu destino por exemplo Bloch

e Cousin (1964 p 234) afirmam o seguinte sobre os gauleses na eacutepoca da conquista

romana

Os gauleses conhecem com efeito os processos de heranccedila e de estremas a

venda em leilatildeo o dote da mulher uma espeacutecie de vassalidade comparaacutevel agrave

clientela romana ateacute mesmo a escravidatildeo o arrendamento da cobranccedila de

impostos taxas pesagens e postagens os seus sistemas econoacutemicos e sociais

que eram os que tinham servido de base aos Celtas de Hallstatt e de La Tegravene

serviratildeo aos Romanos conquistadores para estabelecer sobre uma aristocracia

fundiaacuteria jaacute em contacto com as civilizaccedilotildees danubiana renana oceacircnica e

mediterracircnea em resultado das migraccedilotildees e das osmoses o seu poder e a sua

propaganda

Desde a Antiguidade era comum que esses povos fossem por vezes retratados

como oriundos de um c tegori civiliz cion l ―inferior agrave dos rom nos A p l vr

baacuterbaro que para os gregos e romanos designava os povos estrangeiros depois se

18

tornou sinocircnimo de falta de civilizaccedilatildeo selvageria crueldade Os pesquisadores

Delaplace e France (2011 p 43) a esse respeito escrevem

De mecircme llsquoim ge ethnique du G ulois se nourriss it plus volontiers de

clicheacutes que de connaissances positives Le Gaulois eacutetait un Barbare

quelqulsquoun qulsquoon ne comprend p s et qui est eacutetr nger ux bienf its comme

aux exigences de la civilisation Les Romains comme les Grecs nlsquo v ient

sans doute pas de preacutejugeacutes raciaux mais leurs a priori culturels eacutetaient

exclusifs Cette infeacuterioriteacute culturelle conditionn it llsquoinfeacuterioriteacute mor le du

Barbare sa cruauteacute sa sauvagerie et le caractegravere primitif de ses structures

eacuteconomiques sociales et politiques Ce peu de consideacuteration pour le monde

b rb re en geacuteneacuter l explique llsquo bsence de scrupules et llsquo rrog nce dont les

Rom ins f is ient preuve agrave llsquoeacuteg rd des provinci ux ( ) Cette ttitude eacutet it

heacuteriteacutee des topoi de llsquoethnogr phie grecque depuis Heacuterodote m is elle doit

ecirctre nuanceacutee et eacutevolua certainement au contact des realiteacutes et agrave cause du

nombre de plus en plus important de non-Rom ins d ns llsquoEmpire On ne

trouve pas chez Ceacutesar ou chez Tacite la mecircme veacuteheacutemence et le mecircme meacutepris

vis-agrave-vis des Gaulois voire des Germains Ils leur reconnaissent des qualiteacutes

et l c p citeacute de slsquo d pter ux modegraveles culturels de Rome Ceacutes r estime

dlsquo illeurs qulsquoil pouv it y voir des degreacutes d ns l b rb rie comme ceux qulsquoil

eacutetablit entre Gaulois Belges et Germains19

O que nos propomos a fazer nesta pesquisa eacute justamente estudar a fundo alguns

registros antigos sobre os gauleses como eles eram representados e de como se operava

essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada nos autores romanos do

corpus escolhido imagem essa que poderia ser bastante complexa jaacute que nem sempre

os baacuterb ros er m retr t dos como os ―vilotildees Empreg remos s seguintes fontes p r

anaacutelise da representaccedilatildeo do gaulecircs em nossa pesquisa o De bello Gallico (Sobre a

guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito Liacutevio e

a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho20

19

―Do mesmo modo im gem eacutetnic do g ulecircs se sustent v m is com clichecircs do que com

conhecimentos positivos O gaulecircs era um baacuterbaro algueacutem que natildeo era compreendido e que era alheio

aos benefiacutecios como requisitos da civilizaccedilatildeo Os romanos assim como os gregos sem duacutevida natildeo

possuiacuteam preconceitos raciais mas a priori esses preconceitos eram exclusivamente culturais Essa

inferioridade cultural constituiacutea a inferioridade moral do baacuterbaro sua crueldade sua selvageria e o caraacuteter

primitivo de suas estruturas econocircmicas sociais e poliacuteticas Essa consideraccedilatildeo sobre o mundo baacuterbaro em

geral explica a ausecircncia de escruacutepulos e a arrogacircncia dos romanos perante os provincianos () Essa

atitude eacute herdeira dos toacutepoi da etnografia grega desde Heroacutedoto mas ela foi atenuada e certamente

evoluiu em contato com as realidades e tambeacutem devido ao nuacutemero cada vez mais importante de natildeo

romanos dentro do impeacuterio Natildeo se encontrou em Ceacutesar ou em Taacutecito a mesma veemecircncia e desprezo

perante os gauleses ateacute mesmo os germanos Eles reconheceram as qualidades deles e a sua capacidade

de se adaptar aos modelos culturais de Roma Ceacutesar aleacutem disso considerou que poderia haver gradaccedilotildees

dentro da barbaacuterie como aquelas que ele estabeleceu entre g uleses belg s e germ nos 20

Do trabalho de Ceacutesar temos no Brasil pesquisas recentes mais concentradas no De bello ciuili do que

no De bello Gallico Desse uacuteltimo temos uma traduccedilatildeo do seacuteculo XIX feita pelo maranhense Francisco

Sotero dos Reis Sobre o tema relacionado agrave Gaacutelia temos tambeacutem a dissertaccedilatildeo de mestrado de Diego

Verissimo Oliveira sobre o perfil de Vercingetoacuterige em Ceacutesar do ano de 2008 Quanto a Tito Liacutevio os

estudos atuais concentram-se mais em aspectos poliacuteticos ou historiograacuteficos romanos Temos por

exemplo a tese de doutorado de Juliana Bastos Marques sobre renovaccedilatildeo da identidade romana em Liacutevio

e Taacutecito (2007) de Marco Antonio Collares haacute um livro sobre representaccedilotildees do senado romano em

19

Escolhemos Ceacutesar porque em se tratando de gauleses sua obra eacute fundamental

para esse estudo21

Durante seus nove anos de campanha na Gaacutelia ele penetrou em um

territoacuterio alheio em um universo ateacute entatildeo desconhecido e temido pelos romanos Ceacutesar

aprendeu a conhecer os diferentes graus de ferocitas a diversidade de povos ceacutelticos e

de tribos germacircnicas e observou a instabilidade poliacutetica e social dos gauleses e tambeacutem

sua cultura e sua bravura (DAUGE 1981 p 93) Apesar de autores gregos como

Poliacutebio22

jaacute terem escrito sobre os celtas na verdade eacute de Ceacutesar que temos um relato

mais detalhado (o primeiro em liacutengua latina) e mais aprofundado23

Alguns autores

gregos jaacute escreveram sobre os gauleses antes de Ceacutesar mas nunca tiveram contato

duradouro com esse povo Nas palavras de Gruen (2011a p 141) temos

That corpus offers an invaluable entrance to a critical subject the mode of

representing to a Roman readership a foe with a long history of hostility and

one that had recently claimed many Roman lives while straining the

manpower and resources of the nation for several bloody years24

Sobre Tito Liacutevio um traccedilo essencial de sua obra Ab urbe condita tambeacutem

conhecida por Histoacuteria romana eacute a preocupaccedilatildeo em retratar o romano como um povo

que vence os baacuterbaros ao longo de vaacuterios seacuteculos de luta A esse respeito Dauge (1981

p 170) firm que ―les 142 livres de cette veacuterit ble eacutepopeacutee en prose dont l richesse

slsquoordonne en structures rigoureuses eacutetaient destineacutes agrave illustrer le geacutenie romain et agrave

retr cer les luttes du premier peuple du mondelsquo contre l b rb rie au cours des

Liacutevio (2010) A respeito de Pliacutenio as pesquisas realizadas no Brasil atualmente concentram-se em

aspectos bioloacutegicos da Historia naturalis Destacamos aqui dentre outros trabalhos o artigo de Roberto

de Andrade Martins sobre descriccedilatildeo das aves em Aristoacuteteles e Pliacutenio (2006) e ainda o artigo de Ana

Thereza Basilio Vieira que trata do conceito de natureza em Pliacutenio (2010) 21

Todavia em maior ou menor grau os comentaacuterios de Ceacutesar possuem distorccedilotildees histoacutericas com a

finalidade de propaganda para a sua ascensatildeo ao poder Falaremos mais sobre essa questatildeo no capiacutetulo 2

deste trabalho 22

Desde o seacuteculo IV aC temos relatos gregos sobre os povos da Gaacutelia sobretudo de Massalia (hoje

Marselha) Momigliano (1991 p 57 a 60) faz um levantamento de todos os autores gregos (antes do

domiacutenio de Roma) que mencionaram os gauleses 23

De fato Catatildeo o Censor jaacute tivera contato com os celtiberos em 195 aC quando se dirigiu para a

Hispacircnia a fim de estabelecer a administraccedilatildeo romana durante seu consulado Momigliano (1991 p 63)

resume de forma exemplar a experiecircncia de Catatildeo com os celtiberos e afirma que ele foi o primeiro

romano a demonstrar maior interesse sobre os gauleses Infelizmente de toda a obra de Catatildeo atualmente

possuiacutemos apenas fragmentos e pouco pode ser depreendido desse material 24

―Esse corpus oferece um inestimaacutevel entrada para um assunto criacutetico o modo de representar ao leitor

romano um inimigo com uma longa histoacuteria de hostilidade e que ateacute recentemente reivindicou muitas

vidas romanas enquanto constringia a matildeo-de-obra e recursos da naccedilatildeo por muitos anos sangrentos

20

siegravecles 25

No livro V por exemplo Liacutevio narrou os primeiros contatos entre romanos e

gauleses e tambeacutem o saque de Roma por estes uacuteltimos

Quanto a Pliacutenio em sua vasta obra enciclopeacutedica o autor mencionou uma

enorme quantidade de povos das mais variadas regiotildees O autor tambeacutem se preocupou

em retratar a ferocitas (ferocidade) baacuterbara mas foi aleacutem descreveu os haacutebitos

culturais a diversidade dos costumes alguns aspectos de alimentaccedilatildeo a constituiccedilatildeo

fiacutesica dos indiviacuteduos e a vida social desses povos (dentre eles os gauleses)

Consideramos portanto que esse relato bastante heterogecircneo seja de grande interesse

para o tema de nossa pesquisa jaacute que mostra um ponto de vista diferente do gaulecircs

retratado em histoacuterias de campanhas militares e guerras Um exemplo que temos desse

ponto de vista diverso eacute que Pliacutenio chegou a elogiar a forma como os gauleses fiavam a

latilde em Historia naturalis VIII 73 Ceacutesar (BGall VII 22) tambeacutem fez uma descriccedilatildeo

menos estereotipada dos gauleses e elogiou a forma como eles se defendiam do asseacutedio

dos romanos ao dizer

Singulari militum nostrorum uirtuti consilia cuiusque modi Gallorum

occurrebant ut est summae genus sollertiae atque ad omnia imitanda et

efficienda quae ab quoque traduntur aptissimum Nam et laqueis falces

auertebant quas cum destinauerant tormentis introrsus reducebant et

aggerem cuniculis subtrahebant eo scientius quod apud eos magnae sunt

ferrariae atque omne genus cuniculorum notum atque usitatum est Totum

autem murum ex omni parte turribus contabulauerant atque has coriis

intexerant Tum crebris diurnis nocturnisque eruptionibus aut aggeri ignem

inferebant aut milites occupatos in opere adoriebantur et nostrarum turrium

altitudinem quantum has cotidianus agger expresserat commissis suarum

turrium malis adaequabant et apertos cuniculos praeusta et praeacuta

materia et pice feruefacta et maximi ponderis saxis morabantur moenibusque

adpropinquare prohibebant

Ao singular valor dos nossos soldados opunham-se os projetos de todo tipo

dos gauleses pois satildeo um povo de enorme habilidade e muito apto a imitar e

praticar as invenccedilotildees alheias Na verdade natildeo soacute desviavam as foices com

laccedilos mas como as prendessem de novo impeliam-nas para dentro com

maacutequinas eles tambeacutem muito habilmente destruiacuteam o talude26

atraveacutes de

cavas porque eles dispunham de grandes jazidas de ferro e todo tipo de

escavaccedilotildees eacute conhecido e utilizado por eles Aleacutem disso de todos os lados os

gauleses guarneceram o muro com torres de taacutebuas e as cobriram com peles

Depois com frequentes saiacutedas de dia ou de noite ora incendiavam o talude

25

―Os 142 livros dess verd deir epopei em pros d qu l riquez se orden em estrutur s rigoros s

er m destin dos ilustr r o gecircnio rom no e retr t r s lut s do ―primeiro povo do mundo contr

b rbaacuterie o longo dos seacuteculos 26

O talude (agger) consistia em um caminho elevado criado a partir da terra retirada do fosso Em cercos

como na situaccedilatildeo descrita nesse trecho o talude era um aterro feito para tentar invadir uma fortificaccedilatildeo

em sua extremidade os romanos construiacuteam torres moacuteveis de madeira para facilitar a passagem das

muralhas As cavas (cunniculi) eram passagens subterracircneas feitas sob o talude que permitiam minar a

base do muro inimigo Para mais detalhes sobre engenharia militar cf Bornecque e Mornet (2002 p 119

a 123) Tambeacutem sobre esse assunto o Compecircndio da arte militar de Vegeacutecio fornece detalhes preciosos

21

ora atacavam os soldados ocupados nas manobras tambeacutem eles igualavam a

altura das nossas torres juntando os postes das suas quanto o talude a cada

dia as elevara Eles fechavam as cavas abertas com madeira queimada e

pontuda pez fervente e pedras de enorme peso e impediam-nos a

aproximaccedilatildeo das muralhas

Evidentemente ao longo de toda a literatura latina os galos apareceram em

vaacuterios textos historiograacuteficos e de outros gecircneros de composiccedilatildeo Em nossa pesquisa

achamos menccedilatildeo aos celtas e gauleses em autores como Catulo (poemas 37 e 39)

Saluacutestio (Bellum Iugurthinum 114) Valeacuterio Maacuteximo (Facta et dicta memorabilia II 6

e III 2) Virgiacutelio (Aeneis VIII 656) Oviacutedio (Amores I 15 e Fasti IV 361) Lucano

(Bellum ciuile IV 10) Amiano Marcelino (Rerum gestarum XV 12 1) dentre outros

Restringimos nosso corpus a Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho devido ao recorte

temporal do seacuteculo I aC a I dC que coincide com a conquista da Gaacutelia e o

estabelecimento de proviacutencias romanas nesse territoacuterio Aleacutem disso nos concentramos

nesses trecircs autores pois os consideramos inseridos no gecircnero historiograacutefico ndash embora

Pliacutenio seja considerado por muitos como enciclopedista julgamos que a Historia

naturalis possa ser incluiacuteda na historiografia pois Pliacutenio a escreveu com finalidades de

pesquisa e compilaccedilatildeo de conhecimento

Da traduccedilatildeo e estudo

Foram os gregos em nossa zona de cultura os primeiros a desenvolverem o

conceito de baacuterbaro Para eles baacuterbaro simbolizava tudo aquilo que natildeo fosse grego

existindo assim uma oposiccedilatildeo eacutetnica cultural e linguiacutestica27

Com o tempo esse

conceito passou a ser revestido de julgamentos de valor nos quais os baacuterbaros eram

considerados inferiores aos helecircnicos Gruen (2011a p 2) resume bem esse conceito

The line of reasoning has had a potent impact on scholarship regarding

antiquity Negative images misrepresentations and stereotypes permitted

ncients to invent the ―Other thereby justifying marginalization

subordination and exclusion Creation of the opposite served as a mean to

establish identity distinctiveness and superiority28

27

Dauge na introduccedilatildeo de seu livro Le Barbare (1991 p 10 e 11) aborda de forma abrangente a

experiecircncia grega com o estrangeiro ao longo de sua histoacuteria 28

―A linh de r ciociacutenio teve um potente imp cto no estudo sobre ntiguid de Im gens neg tiv s

deturpaccedilotildees e estereoacutetipos permitir m os ntigos invent r o Outrolsquo dessa forma justificando a

marginalizaccedilatildeo a subordinaccedilatildeo e a exclusatildeo A criaccedilatildeo do antagocircnico serviu como meio para estabelecer

identid de distinccedilatildeo e superiorid de

22

Gruen (2011a p 344 e 345) destaca que os romanos natildeo possuiacuteam tradiccedilotildees que

preconizavam uma pureza de linhagem nem sequer tinham um eacutetimo especiacutefico para

designar o natildeo romano ndash de fato eles buscaram no grego a noccedilatildeo de estrangeiro inserida

no termo baacuterbaro A identidade helecircnica se definia em fundamentos eacutetnicos culturais e

genealoacutegicos a identidade romana por sua vez se estabelecia especialmente em

pressupostos culturais e poliacuteticos como veremos a seguir Contudo a experiecircncia

romana com os estrangeiros foi diferente da vivecircncia que os gregos tiveram com outros

povos

Roma desde os primoacuterdios e durante toda a sua histoacuteria teve contato com outros

povos e os conquistou seja no Ocidente europeu seja no Oriente Roma lutou contra

esses estrangeiros e durante muito tempo conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto

impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave

civilizaccedilatildeo romana ocidental Dessa forma o contato dos romanos com povos

considerados baacuterbaros foi mais duradouro e profundo do que o contato que os gregos

tiveram com os povos externos Dauge (1981 p 18 e 19) assim falou sobre a

experiecircncia do romano perante o estrangeiro

( ) le concept de b rb rie ne concerne p s uniquement llsquoexteacuterieur les gentes

ou nationes exterae mais se trouve eacutetroitement mecircleacute agrave son activiteacute ndash

politique social eacutethique religieux artistique etc Ayant ducirc combat pour

maicirctriser la violence et la deacutemesure inheacuterentes agrave son tempeacuterament ayant

longuement reacutefleacutechi sur llsquoessence de l civilis tion et const mment lutteacute pour

eacuteviter le reproche de barbarie et se rendre digne dlsquoecirctre reconnu comme le

civilis teur il beacuteneacuteficieacute dlsquoune expeacuterience personnelle uthentique de l

nature de la barbarie et de ses dangers Aussi deacutepasse-t-il aiseacutement le point de

vue strictement ethnique ou national qui fut celui des Grecs pour eacutelargir la

notion de b rb rie ux dimensions de llsquouniversel (grifos do autor) 29

Nesta tese pretendemos aprofundar o estudo do conceito de baacuterbaro e de como

se operava a dicotomia romanobaacuterbaro na Antiguidade latina nos relatos

historiograacuteficos Esse tema seraacute tratado no capiacutetulo 1 bem como falaremos das fontes

greco-latinas que abordaram os galos entre os seacuteculos III e I dC Temos tambeacutem por

objetivo estudar a representaccedilatildeo do povo gaulecircs agrave luz dos escritos de Ceacutesar Tito Liacutevio e

29

―( ) o conceito de b rbaacuterie natildeo se plic unic mente o exterior agraves gentes ou agraves nationes exterae mas

se encontra ligado estreitamente agrave sua atividade ndash poliacutetica social eacutetica religiosa artiacutestica etc Tendo o

combate para controlar a violecircncia e o excesso inerentes ao seu temperamento tendo longamente pensado

sobre a essecircncia da civilizaccedilatildeo constantemente lutado para evitar a degradaccedilatildeo da barbaacuterie e se tornar

digno de ser reconhecido como o civilizador que se beneficiou de uma experiecircncia pessoal autecircntica

sobre a natureza da barbaacuterie e os seus perigos Tambeacutem isso facilmente ultrapassa o ponto de vista

estritamente eacutetnico ou nacional que foi o dos gregos para alargar a noccedilatildeo de barbaacuterie agraves dimensotildees do

universal

23

Pliacutenio o Velho Concentraremos nosso estudo nos gauleses jaacute que a seu respeito

possuiacutemos fontes antigas mais bem documentadas do que por exemplo sobre os povos

da Ibeacuteria Aleacutem disso os gauleses foram um dos povos que mais resistiram agrave conquista

romana e soacute foram subjugados apoacutes vaacuterias tentativas e confrontos sangrentos podendo

desse modo exemplificar com excelecircncia o contato com a alteridade Quanto aos

trechos especiacuteficos dos autores latinos que compotildeem o corpus deste trabalho tecircm-se

estas passagens

De bello Gallico de Ceacutesar

Livro I ndash 1 (descriccedilatildeo da Gaacutelia) 31 (Diviciacuteaco se queixa do asseacutedio do

germano Ariovisto) 33 (Ceacutesar ao perceber o perigo dos germanos promete

socorrer os gauleses)

Livro II ndash 4 (descriccedilatildeo da origem dos belgas) 15 (Ceacutesar se prepara para lutar

com os neacutervios)

Livro IV ndash 5 (Ceacutesar desconfia dos gauleses que satildeo inconstantes) 12 (os

germanos atacam a cavalaria de Ceacutesar morte do aquitano Pisatildeo)

Livro VI ndash 11 13 14 15 16 18 19 (passagem de maior interesse

conhecid como ―etnogr fi descriccedilatildeo dos costumes dos g uleses) 21 22

(costumes dos germanos) 24 (o valor dos gauleses passou para os

germanos)

Livro VII ndash 22 (defesa dos gauleses sitiados pelos romanos) 42 (os eacuteduos

massacram os romanos)

Ab urbe condita de Tito Liacutevio

Livro V ndash 34 35 36 37 38 39 41 42 48 (passagem de grande interesse

pois narra os primeiros contatos entre romanos e gauleses e o saque de

Roma em 390 aC)

Livro VII ndash 10 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Tito Macircnlio

e um gaulecircs) 26 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Marco

Valeacuterio e um gaulecircs)

24

Livro XXIII ndash 24 (os gauleses preparam armadilhas contra Roma que sofre

derrota para os gauleses ao optar por se dedicar mais agrave guerra contra

Cartago)

Livro XXXVIII ndash 17 (migraccedilatildeo dos gauleses para a Aacutesia Menor e o

surgimento da Galaacutecia vitoacuteria dos romanos sobre os gaacutelatas)

Historia naturalis de Pliacutenio o Velho

Livro III ndash 5 (descriccedilatildeo geograacutefica da Gaacutelia Narbonense) 6 (elogio da Itaacutelia

e o papel de Roma governante do mundo)

Livro IV ndash 31 32 33 (descriccedilotildees geograacuteficas da Gaacutelia Beacutelgica da Gaacutelia

Lugdunense e da Gaacutelia Aquitacircnia)

Livro VIII ndash 73 (Pliacutenio admira o jeito como os gauleses fazem a latilde)

Livro XXX ndash 4 (descriccedilatildeo dos druidas das proviacutencias gaulesas)

Livro XXXIII ndash 5 (a respeito de como os gauleses utilizavam o ouro como

ornamento)

Para todos esses trechos empregaremos os textos latinos estabelecidos pela

Socieacuteteacute dlsquoEacutedition Les Belles Lettres e f remos tr duccedilatildeo de todo o corpus para nos

debruccedilarmos sobre os originais Aleacutem disso todas as demais citaccedilotildees de textos latinos

complementares deste trabalho tambeacutem teratildeo traduccedilotildees nossas salvo quando vierem

com referecircncia de outro tradutor Visamos em nossa transposiccedilatildeo ao leitor que natildeo

conhece a liacutengua ou a literatura latina Manteremos a traduccedilatildeo em prosa e procuraremos

sempre nos manter o mais proacuteximo possiacutevel do sentido dos trechos originais Todavia

satildeo necessaacuterias certas adaptaccedilotildees para que a traduccedilatildeo em portuguecircs possa manter o

sentido e transmitir mais claramente a mensagem do texto latino Para Roacutenai (1981 p

78) todo texto eacute alguma coisa mais do que simples soma das palavras que o compotildeem

O que devemos traduzir eacute sempre algo mais isto eacute a mensagem Faremos tambeacutem o uso

das notas de rodapeacute para pontuar aspectos que natildeo poderiam ser facilmente inseridos na

proacutepria traduccedilatildeo ou ainda para esclarecer quanto a elementos histoacutericos estiliacutesticos etc

Sobre a abreviatura dos nomes de obras gregas e latinas seguiremos os paracircmetros dos

dicionaacuterios A Greek-English Lexicon (LIDDEL SCOTT JONES 1996) e Oxford Latin

Dictionary (GLARE 1982) respectivamente

25

Nessa anaacutelise das passagens latinas veremos como se estrutura a retoacuterica de

representaccedilatildeo do gaulecircs em cada um desses autores latinos Hartog em seu livro O

espelho de Heroacutedoto define bem certos mecanismos retoacutericos de identificaccedilatildeo do outro

e tambeacutem de si mesmo30

Embora analise as Histoacuterias sua pesquisa sobre a retoacuterica de

alteridade tambeacutem poderia estender-se a outros autores que natildeo Heroacutedoto Destacamos

aqui o seguinte trecho no qual Hartog (1999 p229) afirma

Dizer o outro eacute enunciaacute-lo como diferente - eacute enunciar que haacute dois termos a

e b e que a natildeo eacute b Por exemplo existem gregos e natildeo-gregos Mas a

diferenccedila natildeo se torna interessante senatildeo a partir do momento em que a e b

entram num mesmo sistema Natildeo se tinha antes senatildeo uma pura e simples

natildeo-coincidecircncia Daiacute para a frente encontramos desvios portanto uma

diferenccedila possiacutevel de ser assinalada e significativa entre os dois termos Por

exemplo existem gregos e baacuterbaros Desde quando a diferenccedila eacute dita ou

transcrita torna-se significativa jaacute que eacute captada nos sistemas da liacutengua e da

escrita Comeccedila entatildeo esse trabalho incessante e indefinido como os das

ondas quebrando na praia que consiste em levar do outro ao proacuteprio (grifos

do autor)

Como cit do n not cim H rtog firm que ―dizer o outro eacute enunciaacute-lo como

diferente Eacute just mente ess m neira de se referir ao outro no caso o gaulecircs que seraacute

objeto de estudo desse trabalho Ceacutesar seraacute o objeto principal de nossa pesquisa pela

extensatildeo e importacircncia da obra sobre a guerra da Gaacutelia e por ter sido o primeiro a ter

contato direto com os gauleses31

Por conseguinte o capiacutetulo 2 seraacute dedicado a Ceacutesar e

ao De bello Gallico igualmente nesse capiacutetulo trataremos do contexto histoacuterico em que

se deu a conquista da Gaacutelia aleacutem de uma discussatildeo sobre questotildees de romanizaccedilatildeo e

subjugaccedilatildeo de um novo territoacuterio De fato o De bello Gallico aleacutem de interessar pelo

tipo de composiccedilatildeo feita por Ceacutesar32

encerra ainda vaacuterias informaccedilotildees importantes

como a passagem etnograacutefica do livro VI que detalha os costumes dos gauleses

Veremos quais as fontes empregadas por Ceacutesar para compor essa obra e tambeacutem como

30

Tambeacutem sobre esse tema recomendamos o livro de Hall Ethnic identity in Greek antiquity (1997) 31

Jaacute mencionamos o contato de Catatildeo o Censor com os celtiberos na nota n22 (p 19) mas dele temos

apenas fragmentos Por isso consideramos Ceacutesar o primeiro a ter contato direto com os gauleses jaacute que

seu relato foi mais bem preservado 32

Ceacutesar levou o commentarius (usado apenas como anotaccedilotildees raacutepidas que depois seriam refinadas) a

outro patamar A esse respeito Conte (1999 p226) afirma ―Both Cicero (Brutus 262) and Hirtius in the

preface to the eighth book of the De bello Gallico spe k of C es rlsquos Commentarii as a work written to

offer to other histori ns the m teri l out of which to construct their own n rr tive (hellip) Cicero nd Hirtius

himself emphasize that no one would have dared to attempt to rewrite what Caesar had already said with

incomparable simplicity In f ct C es rlsquos ttitude m y h ve conce led cert in trickery bene th the

humble clothing the commentarius as he conceived and practiced it probably came close to historia

26

a retoacuterica e a ideologia influenciam em razoaacutevel medida o De bello Gallico33

Ao final

do capiacutetulo 2 traremos o estudo dos trechos especiacuteficos de Ceacutesar levando em

consideraccedilatildeo os argumentos e o vocabulaacuterio empregado por ele para as suas

representaccedilotildees dos galos destacando alguns dos frequentes adjetivos usados para

descrevecirc-los como ferox hostilis barbarus etc Examinaremos ainda as recorrentes

figuras representativas como por exemplo o clicheacute de retratar os gauleses como

homens altos fortes e corajosos poreacutem natildeo muito inteligentes ou confiaacuteveis (DAUGE

1981 p 20) o interesse dos celtas por cultura e erudiccedilatildeo atraveacutes do papel dos druidas

a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos dentre outros aspectos culturais A seguir no capiacutetulo

3 falaremos sobre o momento histoacuterico da ascensatildeo de Augusto e enfocaremos Tito

Liacutevio e Pliacutenio o Velho bem como trataremos dos aspectos literaacuterios de Ab urbe condita

e Historia naturalis Ao final do subcapiacutetulo dedicado a Liacutevio traremos os trechos de

sua obra e do mesmo modo assim o faremos com Pliacutenio sendo cada passagem

analisada em termos literaacuterios e retoacutericos O foco por conseguinte seraacute a anaacutelise desses

discursos visando a uma discussatildeo dos argumentos vocabulaacuterio e figuras de linguagem

empregados pelos autores Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para descrever os gauleses No capiacutetulo

4 retomaremos alguns dos trechos jaacute citados ao longo dos capiacutetulos 2 e 3 para realizar o

estudo comparativo entre Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e os seus gecircneros de composiccedilatildeo

destacando os mecanismos retoacutericos da representaccedilatildeo dos gauleses entre os gecircneros de

composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Cabe aqui fazer

algumas consideraccedilotildees sobre a retoacuterica jaacute que ela eacute tratada ao longo de todo este

trabalho

Entendemos aqui a retoacuterica claacutessica em um sentido amplo de uma disciplina que

buscava um estudo unificado dos discursos (fossem eles pronunciados ou escritos) que

regulava a sua produccedilatildeo e delimitava limites sobre os gecircneros de composiccedilatildeo Aleacutem

disso como dest c Rezende (2009 p 16) retoacuteric possui ―especi l ecircnf se n su

funccedilatildeo de gerar um efeito praacutetico imediato mas previamente estabelecido e esperado

sobre aquele a quem se destin um discurso produzido P r se obter esse efeito

especiacutefico em um puacuteblico-alvo o discurso era regido por regras e normas de conduta

com finalidades especiacuteficas Aristoacuteteles em sua Retoacuterica estabeleceu esses gecircneros

discursivos que posteriormente foram seguidos por Ciacutecero e Quintiliano os grandes

33

De fato Ceacutesar escreve seu commentarius sobre a guerra gaulesa natildeo apenas para descrever seus feitos

mas especialmente como forma de propaganda de sua figura para rivalizar com o seu grande oponente

Pompeu Magno (CONTE 1999 p 229)

27

nomes desse tema em Roma Segundo o Estagirita havia trecircs gecircneros do discurso o

deliberativo (projetava uma accedilatildeo futura tem funccedilatildeo de aconselhar ou dissuadir o

puacuteblico para uma deliberaccedilatildeo) o juriacutedico (sua motivaccedilatildeo era um fato passado lidava

com acusaccedilatildeo ou defesa) e o epidiacutectico (tambeacutem conhecido por demonstrativo seu

tema era localizado especialmente no presente e consistia em fazer elogio ou

censura)34

Cada gecircnero portanto era dirigido a um puacuteblico especiacutefico dessa maneira

cada um possuiacutea traccedilos proacuteprios para se alcanccedilar os objetivos propostos Segundo

Tringali (1988 p 19) o ponto crucial da retoacuterica que a diferenciava das outras

disciplinas era a implicaccedilatildeo na existecircncia de um emissor (orador ou autor) um receptor

(audiecircncia ou leitor) e um discurso que apresentava uma questatildeo provaacutevel elaborada de

modo a persuadir o receptor sobre certa ideia ou conceito35

Por essa importacircncia em

contexto poliacutetico e judiciaacuterio o estudo da retoacuterica era parte essencial da formaccedilatildeo

(paideia) do cidadatildeo grego e posteriormente do cidadatildeo romano tambeacutem36

A retoacuterica claacutessica em contexto romano era dividida em cinco partes inuentio

(invenccedilatildeo) dispositio (disposiccedilatildeo) elocutio (enunciaccedilatildeo)37

memoria (memoacuteria) e actio

(accedilatildeo) Essas cinco partes formavam a ferramenta com a qual o emissor do discurso

estruturava sua composiccedilatildeo38

Como dest c Rezende (2009 p 25) ―eacute n praacutetic da

elocutio que por exemplo o or dor conform raacute o seu estilo su identid de or toacuteri

34

Cf Retoacuterica 1358b Na mesma passagem Aristoacuteteles destaca que a proacutepria retoacuterica era fundamentada

em trecircs elementos essenciais aquele que profere o discurso aquele que recebe esse discurso e o proacuteprio

discurso 35

Tringali (1988 p 20 e ss) aprofunda a questatildeo da persuasatildeo na retoacuterica antiga sobretudo em

Aristoacuteteles e tambeacutem sobre os mecanismos formais (persuasatildeo pela loacutegica pela afeiccedilatildeo ou pela esteacutetica)

e os mecanismos materiais (sofiacutestica analiacutetica e dialeacutetica) utilizados para esse fim 36

Os autores greco-romanos de fato como parte de uma elite letrada natildeo eram apenas testemunhas dos

fatos histoacutericos mas muitas vezes eram os proacuteprios agentes dos acontecimentos Para maior

aprofundamento sobre esse tema cf Marincola (In ERSKINE 2009 p 13) A paideia era importante

ferramenta na formaccedilatildeo moral oratoacuteria e literaacuteria desses indiviacuteduos como afirmou o proacuteprio Ciacutecero (cf

subcapiacutetulo 1321) De todas as personalidades que citamos neste trabalho Tuciacutedides Xenofonte

Poliacutebio Catatildeo Ciacutecero Ceacutesar e Pliacutenio desempenharam carreiras puacuteblicas importantes A exceccedilatildeo eacute Liacutevio

que natildeo ocupou nenhum cargo puacuteblico Para mais detalhes sobre o papel da retoacuterica tanto na vida literaacuteria

quanto na vida poliacutetica na tradiccedilatildeo helecircnic e l tin cf o c piacutetulo ―History nd rhetoric de Gr h m (In

BUGH 2006 p 113-135) 37

Como discute Rezende (2009 p 22) o vocaacutebulo elocuccedilatildeo embora muito utilizado natildeo traduziria

completamente o eacutetimo elocutio por isso assim como o professor tambeacutem adotamos a traduccedilatildeo desse

termo por enunciaccedilatildeo (ou seja a expressatildeo da palavra) que se aproxima mais do sentido original latino 38

Sobre cada uma dessas partes tem-se a invenccedilatildeo (coleta ou seleccedilatildeo do material que constituiraacute o

conteuacutedo do texto) a disposiccedilatildeo (colocaccedilatildeo de cada elemento do discurso em seu devido lugar ou seja a

organizaccedilatildeo do discurso) a enunciaccedilatildeo (ou elocuccedilatildeo que em uma definiccedilatildeo simplista consistia no ato de

compor o discurso escolha de vocabulaacuterio enfim o estilo) a memoacuteria (o equiliacutebrio entre decorar e

memorizar um discurso sobretudo em contexto de linguagem oral) e por fim a accedilatildeo (tambeacutem em

contexto de transmissatildeo oral de um enunciado consistia na forma como o orador proferia o seu discurso

para a audiecircncia) Natildeo nos aprofundamos muito nesta nota sobre o termo elocuccedilatildeo jaacute que ele seraacute tratado

mais detalhadamente no corpo do texto deste trabalho Para esse resumo utilizamos Tringali (1988 p 62

e ss) que discutiu essas cinco partes de forma bastante abrangente

28

Por conseguinte a elocutio no campo da literatura torna o discurso retoacuterico mais

eficiente ao assimilar as qualidades do texto literaacuterio constituindo-se ―num poderoso

mec nismo de cesso e consolid ccedilatildeo de um cultur ger l (REZENDE 2009 p 25)

Dessa maneira eacute atraveacutes da elocutio que as ideias satildeo expressas por meio de palavras

levando a figuras de linguagem conceitos e toacutepoi literaacuterios e culturais Por essa razatildeo

nosso objetivo aqui seraacute tratar sobretudo da elocutio jaacute que eacute a parte que consideramos

como essencial para desenvolver as anaacutelises sobre a figura do gaulecircs nos escritos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho Como destaca Rezende (2009 p 30) a civilizaccedilatildeo

rom n fez d retoacuteric ―um poderoso instrumento de ccedilatildeo soci l Embora a elocutio

seja o objetivo principal tambeacutem levaremos em conta nas anaacutelises a inuentio jaacute que a

seleccedilatildeo do material empregado por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio foi obtida a partir de fontes

literaacuterias que tambeacutem satildeo parte importante desta tese e tambeacutem porque de acordo com

a Retoacuteria a Herecircnio a proacutepria narraccedilatildeo eacute parte da inuentio39

Tambeacutem levaremos em

conta a dispositio uma vez que a ordem em que os argumentos foram empregados

dentro dessas obras eacute igualmente relevante

Atraveacutes desse estudo tambeacutem no capiacutetulo 4 perceberemos como foi se

modificando a imagem do gaulecircs ao longo dos seacuteculos I aC a I dC ndash e tambeacutem a

proacutepria mentalidade latina jaacute que esses discursos eram especialmente dirigidos a um

puacuteblico-alvo romano Veremos nesse mesmo capiacutetulo como as imagens figurativas do

gaulecircs surgiram e foram reelaboradas pelas fontes greco-romanas e por Ceacutesar Liacutevio e

Piacutenio o Velho Aleacutem dos autores antigos pesquisaremos tambeacutem a bibliografia

histoacuterica e arqueoloacutegica atual para resgatar o que se sabe hoje a respeito dos gauleses

da organizaccedilatildeo de suas sociedades e quais eram seus haacutebitos e costumes Ao fim do

trabalho traremos uma antologia biliacutengue dos trechos traduzidos do De bello Gallico

Ab urbe condita e Historia naturalis para maior facilitaccedilatildeo da leitura e do estudo

comparativo do corpus

39

Cf I34

29

Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas

11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas

romanitas

Como o termo baacuterbaro eacute parte importante deste trabalho faz-se necessaacuteria uma

apresentaccedilatildeo do que significava esse termo para os antigos gregos e romanos

O termo baacuterbaro eacute de origem grega Esse eacutetimo com a repeticcedilatildeo de barbar

seria uma onomatopeia que designaria quem tem dificuldade de elocuccedilatildeo de

pronunciaccedilatildeo que gagueja ou tem uma fala entrecortada (BEEKES 2010 p 201)

As primeiras descriccedilotildees que os gregos fizeram sobre outros povos e regiotildees

eram apenas relatos dos navegadores (periploi) e relatos creacutedulos de maravilhas de

terras distantes ateacute que no seacuteculo VI aC temos narrativas de pesquisas etnograacuteficas em

Heroacutedoto com suas Histoacuterias (VASALY 1993 p 146) Segundo Gauthier ateacute entatildeo o

termo μέλνο era mais utilizado no periacuteodo arcaico para designar na Greacutecia o

estrangeiro e tambeacutem o hoacutespede como podemos ver nas relaccedilotildees de hospitalidade

representadas nos poemas homeacutericos Gauthier (1973 p 5) poreacutem ressalta

Comme on s it llsquoopposition entre Grecs et non-Grecs nlsquoest nette ni chez

Homegravere ni agrave la peacuteriode archaiumlque elle apparaicirct peut-ecirctre au VIegraveme siegravecle

d ns llsquooeuvre dlsquoHeacutec teacutee et devient cour nte seulement u deacutebut du Vegraveme

siegravecle Aux peacuteriodes reculeacutees llsquo ire dlsquoextension de l μελία et de llsquoeacutetr nger-

μέλνο est donc elle aussi assez indeacutecise on en aperccediloit neacuteanmoins quelques

contours Chez Homegravere il faudrait distinguer autant que faire se peut le

monde mythique du monde reacuteel Dans le monde mythique la μελία est

pratiqueacutee par tous les peuples laquociviliseacutesraquo elle est absente chez les autres

appeleacutes ἄγξηνη ainsi les Cyclopes les Lestrygons40

Jaacute em Heroacutedoto μέλνο passou a designar no contexto helecircnico o proacuteprio grego

que habitava em outra cidade mas que compartilhava os mesmos deuses costumes e

idioma (GAUTHIER 1973 p 7) Jaacute o termo βάξβαξνο era usado para designar o natildeo

grego que natildeo partilhava da mesma cultura e liacutengua sem conotaccedilatildeo pejorativa41

A esse

40

―Como eacute s bido oposiccedilatildeo entre gregos e natildeo gregos natildeo eacute cl r nem em Homero nem no periacuteodo

arcaico ela aparece talvez no seacuteculo VI aC na obra de Hecateu e torna-se corrente somente no comeccedilo

do seacuteculo V Quanto aos periacuteodos remotos a aacuterea de extensatildeo da μελία e do estrangeiro eacute entatildeo ela

mesma bastante imprecisa contudo pode-se perceber alguns contornos Em Homero eacute necessaacuterio

distinguir tanto quanto possiacutevel o mundo miacutetico do mundo real No mundo miacutetico a μελία eacute praticada

por todos os povos ―civiliz dos el eacute inexistente p r os outros ch m dos ἄγξηνη como os ciclopes e os

lestrigotildees 41

Gruen no capiacutetulo ―Greeks and non-Greeks (In BUGH 2006 p 296) lembra que em Heroacutedoto a

divisatildeo entre gregos e natildeo gregos eacute sutil e complexa Gruen ressalta que Heroacutedoto demonstrou

30

respeito H rtog (2014 p 108) firm que ―em todo c so eacute entre o sexto e o quinto

seacuteculo C que baacuterb rolsquo no sentido de natildeo grego form ssoci do gregolsquo um

conceito antocircnimoassimeacutetrico acoplando um nome proacuteprio Heacutellenes e uma

designaccedilatildeo geneacuterica baacuterbaroi Ateacute entatildeo n liter tur rc ic baacuterbaro simplesmente

assinalava o estrangeiro sem qualquer conotaccedilatildeo negativa ou inferior e sem o valor de

distinguir entre categorias ou subgrupos42

Como Rochette ressalta (1997 p 37) as

populaccedilotildees que natildeo falam a liacutengua do paiacutes seratildeo reagrupadas sob a geneacuterica

denominaccedilatildeo de baacuterbaro para os egiacutepcios os que natildeo falavam a liacutengua egiacutepcia para os

romanos os que ignoravam o latim etc43

Para se pensar em uma identidade cultural proacutepria geralmente eacute necessaacuterio

definir esse conceito levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo ndash e o contraste ndash com o outro

Com as Guerras Meacutedicas no seacuteculo V aC o baacuterbaro para o grego assumiu o rosto do

persa Como Herring lembra (In ERSKINE 2009 p 129) a identidade grega

gradualmente tornou-se definida em termos de diferenccedila (e superioridade) perante o

baacuterbaro ndash especialmente o oriental essa nova identidade contrastante condenou o outro

como sendo decadente sacriacutelego e subserviente tudo o que os gregos (a seus proacuteprios

olhos) natildeo eram Dessa maneira se ser grego tornou-se sinocircnimo de ser civilizado o

contraacuterio tambeacutem valia pois o baacuterbaro tinha a caracteriacutestica oposta ndash era o primitivo

Com os conflitos dos gregos contra os persas tambeacutem surgiu uma visatildeo poliacutetica da

diferenciaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros jaacute que os gregos conheciam a poacutelis enquanto os

baacuterbaros ignorando-a natildeo podiam viver senatildeo submetidos a reis44

Segundo Hartog

(2014 p 111) o grego er ―poliacutetico isto eacute livre e o baacuterb ro er ―re l submisso um

senhor (deacutespotes) Os baacuterbaros natildeo escapavam ndash ou natildeo escapavam de forma duradoura

ndash da realeza O termo baacuterbaro tambeacutem passou a ter uma concepccedilatildeo marginalizada

segundo Champion (2004 p 34) eacute com a vitoacuteria grega sobre os persas que os

atenienses fomentaram a autoconfianccedila de terem vencido tatildeo forte inimigo e por

imparcialidade e ndash ateacute mesmo em certas passagens ndash admiraccedilatildeo pelas peculiaridades caracteriacutesticas e

realizaccedilotildees de povos natildeo gregos especialmente os egiacutepcios persas e feniacutecios 42

Gruen no mesmo capiacutetulo citado na nota cima (p 297 e ss) aprofunda mais a questatildeo das nuances da

utilizaccedilatildeo do termo baacuterbaro (ora pejorativo ora respeitoso) por parte de vaacuterios autores gregos do periacuteodo

claacutessico ateacute o contexto de dominaccedilatildeo romana 43

Rochette (1997 p 38 e ss) detalha o uso do termo baacuterbaro desde Homero e autores arcaicos passando

tambeacutem pela filosofia e trageacutedia ateacute o periacuteodo heleniacutestico 44

Nesse contexto de diferenciar o aspecto poliacutetico e cultural entre gregos e baacuterbaros estamos

considerando aqui como referencial os gregos de Atenas

31

conseguinte adotaram a noccedilatildeo cultural de que os gregos eram superiores aos outros

povos45

De fato durante o periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) as cidades gregas possuiacuteam

poucos laccedilos que as ligavam umas agraves outras sobretudo porque eram cidades-Estado

independentes As relaccedilotildees eram mais estreitas entre as famiacutelias e os indiviacuteduos

Embora as semelhanccedilas linguiacutesticas os ritos religiosos os deuses e a produccedilatildeo literaacuteria

fossem compartilhados as cidades-Estado como Champion (2004 p 33) ressalta

possuiacuteam organizaccedilatildeo variada padrotildees proacuteprios de pesos e medidas e calendaacuterio O

sentimento de pan-Helenismo era reforccedilado sobretudo em periacuteodos de guerra contra

inimigos externos em comum ndash como os proacuteprios persas ndash ou crise poliacutetica ndash como a

guerra do Peloponeso que motivou a mobilizaccedilatildeo das cidades-estado em alianccedilas

capitaneadas por Atenas e Esparta respectivamente (GAUTHIER 1973 p 14)46

Com os seacuteculos quarto e terceiro antes de Cristo se o par antocircnimo

gregosbaacuterbaros permaneceu em operaccedilatildeo para classificar e distinguir os gregos dos

outros povos sua definiccedilatildeo foi-se modificando com aspecto menos poliacutetico acentuou-

se claramente o lado cultural Com os reinos heleniacutesticos o contato entre gregos e

baacuterbaros aumentou consideravelmente e estereoacutetipos puderam ser contestados mas

tambeacutem muitos laccedilos culturais do que era ser grego puderam ser reforccedilados o processo

de assimilaccedilatildeo dos baacuterbaros comeccedilou mas de forma alguma acabou com essa distinccedilatildeo

cultural pelo contraacuterio ser grego talvez passou a ser mais importante nessa eacutepoca do

que nunca de acordo com Herring (In ERSKINE 2009 p 130)

Desde Heroacutedoto a identidade grega estava circunscrita por um conjunto de traccedilos

culturais (ao lado da comunidade de sangue)47

mas como sublinha Hartog (2014

p127) essa grecidade apresentava-se como algo que pode ser adquirido atraveacutes da

educaccedilatildeo ―haacute mestres ness m teacuteri (hellip) O que t is propoacutesitos nunci m eacute o universo

cultur l d eacutepoc heleniacutestic A paideia que primeiramente significava a criaccedilatildeo ou a

45

Resumimos aqui a questatildeo do tratamento do baacuterbaro em contexto grego jaacute que esse natildeo eacute o foco deste

trabalho Para estudo mais abrangente sobre o baacuterbaro na literatura grega recomendamos o livro de

Dejardin (2010) 46

Para discussatildeo mais profunda sobre a questatildeo do que era ser grego para os proacuteprios helenos

recomendamos o subcapiacutetulo ―Identity in the Greek World escrito por Herring (In ERSKINE 2009 p

126 a 130) Tambeacutem nesse mesmo livro Harrison aprofunda o tema da evoluccedilatildeo do conceito de grego

frente ao baacuterbaro ao longo do periacuteodo histoacuterico que vai desde as Guerras Meacutedicas ateacute o periacuteodo

heleniacutestico no seu capiacutetulo ―The Greeks (In ERSKINE 2009 p 213 a 221) 47

Em Heroacutedoto (Histoacuterias VIII 144) os atenienses em resposta aos espartanos deixaram claro que natildeo

se aliariam aos persas uma vez que eles partilhavam dos mesmos laccedilos culturais de Esparta ambas as

cidades-Estado cultuavam os mesmo deuses e possuiacuteam os mesmos ritos tinham a mesma identidade

linguiacutestica e racial e possuiacuteam haacutebitos e costumes similares

32

educaccedilatildeo de uma crianccedila jaacute no seacuteculo V aC tornou-se sinocircnimo de cultura sobretudo

a partir de Isoacutecrates a diferenccedila entre o grego e o baacuterbaro era antes de tudo um

problema natildeo de natureza mas de cultura Assim Isoacutecrates disse no discurso Panegiacuterico

(50)

ηνζνῦηνλ δ᾽ ἀπνιέινηπελ ἡ πόιηο ἡκλ πεξὶ ηὸ θξνλεῖλ θαὶ ιέγεηλ ηνὺο

ἄιινπο ἀλζξώπνπο ὥζζ᾽ νἱ ηαύηεο καζεηαὶ ηλ ἄιισλ δηδάζθαινη γεγόλαζη

θαὶ ηὸ ηλ Ἑιιήλσλ ὄλνκα πεπνίεθε κεθέηη ηνῦ γέλνπο ἀιιὰ ηῆο δηαλνίαο

δνθεῖλ εἶλαη θαὶ κιινλ Ἕιιελαο θαιεῖζζαη ηνὺο ηῆο παηδεύζεσο ηῆο

ἡκεηέξαο ἢ ηνὺο ηῆο θνηλῆο θύζεσο κεηέρνληαο

Nuestra ciudad aventajoacute tanto a los demaacutes hombres en el pensamiento y

oratoria que sus disciacutepulos han llegado a ser maestros de otros y ha

conseguido que el nombre de griegos se aplique no a la raza sino a la

inteligencia y que se llame griegos maacutes a los partiacutecipes de nuestra educacioacuten

que a los de nuestra misma sangre48

O termo grego portanto se aplicava mais para designar uma mentalidade do que

a uma questatildeo de raccedila ou naccedilatildeo Como Gruen frisa (In BUGH 2006 p 296) essa

afirmaccedilatildeo de Isoacutecrates indicava que a obtenccedilatildeo da grecidade era viaacutevel aos natildeo gregos

mas que poucos poderiam alcanccedilaacute-la Isoacutecrates escrevendo em apoio agrave cruzada pan-

helecircnica contra os persas manteve forte essa distinccedilatildeo

O traccedilo caracteriacutestico do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era explicado por

questotildees geograacuteficas Com Hipoacutecrates e seus preceitos de medicina abordados na obra

Sobre o ar aacuteguas e lugares do seacuteculo V aC entrou em voga a teoria geograacutefica na

qual o ambiente de algum modo determinava a constituiccedilatildeo fiacutesica e o caraacuteter das

pessoas que habitavam em aacutereas especiacuteficas do mundo conhecido ateacute entatildeo De acordo

com essa teoria fatores como a temperatura local a qualidade da aacutegua e a topografia da

regiatildeo determinariam as forccedilas e fraquezas de grupos que habitavam lugares diferentes

dessa forma pessoas de aacutereas quentes tenderiam a ser moles e lentas por outro lado

pessoas de aacutereas frias seriam fortes e corajosas poreacutem estuacutepidas49

Como Vasaly (1993

p 133) ressalta para cada cultura o mundo fora do territoacuterio natal era visto como uma

seacuterie de ciacuterculos concecircntricos nos quais o centro era o lugar mais civilizado e por

conseguinte as fronteiras distantes menos civilizadas Acreditava-se que no ―centro do

48

―Noss cid de superou t nto os dem is homens no pens mento e n or toacuteri que seus disciacutepulos se

tornaram mestres dos outros e conseguiu que o nome dos gregos se aplicasse natildeo agrave raccedila mas sim agrave

inteligecircncia e que se chame de gregos mais aos que participam da nossa educaccedilatildeo do que aos do nosso

proacuteprio s ngue Esse trecho foi retirado de Isoacutecrates (1979 v 1 p 212 e 213) 49

O livro de Borca (2003) detalha de forma profunda esses conceitos em Hipoacutecrates e outros autores da

Antiguidade greco-romana Abordaremos mais sobre como a teoria geograacutefica caracteriza o baacuterbaro no

c piacutetulo 4 ―Noacutes e os outros retoacuteric de representaccedilatildeo do celta

33

mundo o clima natildeo era tatildeo quente nem tatildeo frio e isso era uma condiccedilatildeo favoraacutevel para

um povo ser mais civilizado ndash no caso helecircnico do periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) os

gregos estariam no centro do mundo

Atraveacutes de toda essa tradiccedilatildeo helecircnica para a etnografia ndash que chegou a Roma

sobretudo via Poliacutebio e Posidocircnio ndash tal ideia tambeacutem passou a ser parte do contexto

romano Certamente os contemporacircneos de Ciacutecero consideravam habitar o centro do

mundo (VASALY 1993 p 133)50

Ainda de acordo com Vasaly (1993 p 144) a

importacircncia da obra Sobre o ar aacuteguas e lugares consistia no fato de a conexatildeo crucial

entre ethos e locus ou seja o jeito como a pessoa eacute e seu caraacuteter ser definido de acordo

com seu ambiente fiacutesico Esse tipo de relaccedilatildeo entre ethos e locus posteriormente tornou-

se parte dos toacutepoi de representaccedilatildeo do baacuterbaro

Ateacute entatildeo no periacuteodo claacutessico grego (seacuteculo V aC) a cultura helecircnica ficara

geograficamente concentrada na Greacutecia Com o Helenismo atraveacutes das conquistas de

Alexandre o Grande no seacuteculo IV aC a cultura grega se espalhou e fez contato com

outras civilizaccedilotildees (PERNOT 2005 p 57) Os ideais gregos e o tograve Hellenikoacuten

tornaram-se patrimocircnio literaacuterio que se compartilhava e que se ensinava (HARTOG

2014 p 141) Durante o Helenismo o pensamento grego a filosofia a retoacuterica e a

literatura se espalharam pelo mundo helenizado

Posteriormente ao Helenismo sob o contexto da ascensatildeo romana esse

pensamento helecircnico se difundiu por todo o mundo romanizado Sabemos que desde os

primoacuterdios Roma jaacute tivera contato com os gregos Pereira (1993 p 38) lembra que jaacute se

conhecem duzentos e trecircs vasos gregos dos anos 530 a 500 aC que confirmam

relaccedilotildees comerciais entre os dois povos Esse contato tornou-se regular quando no

seacuteculo III aC os romanos ampliaram seu domiacutenio geograacutefico para o sul da Itaacutelia

regiatildeo conhecida ateacute entatildeo como Magna Greacutecia Em 272 aC com a tomada de

Tarento Liacutevio Andronico foi levado a Roma e ateacute onde foi possiacutevel saber pelo que nos

restou da literatura dessa eacutepoca foi considerado como o fundador da literatura latina

com sua traduccedilatildeo da Odisseia Posteriormente com o ciacuterculo dos Cipiotildees no seacuteculo II

aC as altas esferas da sociedade romana passaram a ter ainda mais contato com a

cultura helecircnica o que acarretou em uma profunda contaminatio entre as literaturas e

50

Falaremos mais sobre Ciacutecero e a representaccedilatildeo de um povo baacuterbaro no caso o gaulecircs mais adiante no

subcapiacutetulo 132

34

costumes desses dois povos51

Depois disso os romanos ampliaram cada vez mais seu

domiacutenio em direccedilatildeo agrave Greacutecia e em 146 aC ela foi completamente subjugada Essa

aproximaccedilatildeo e o contato mais profundo entre romanos e gregos consolidou a proacutepria

civilizaccedilatildeo romana que se distanciava da barbaacuterie52

Oliveira fala em helenizaccedilotildees para

definir esse fenocircmeno de contato cultural entre romanos e gregos ndash de fato natildeo houve

um movimento contiacutenuo e geral de adoccedilatildeo dos costumes gregos (In BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 265) Os primeiros contatos foram muito antigos desde os

primoacuterdios de Roma como a arqueologia evidenciou Oliveira tambeacutem lembra que

―desde s m is remot s origens Rom bri -se agrave influecircncia grega de forma direta e

indireta e isso eacute visiacutevel de form p rticul r n religiatildeo como proacutepri doccedilatildeo de

deuses gregos no panteatildeo romano (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269)53

Pernot chega a usar o termo globalizaccedilatildeo no seu livro Rhetoric in Antiquity para falar

desse fenocircmeno Segundo o utor (2005 p 58) o termo ―glob liz ccedilatildeo p l vr muito

em voga hoje resume os avanccedilos e contato cultural daquela eacutepoca em que a retoacuterica se

tornou um sistema global pelo menos dentro do mundo greco-romano Apesar do livro

Rhetoric in Antiquity se referir agrave retoacuterica esse conceito de globalizaccedilatildeo defendido por

Pernot pode ser aplicado agrave literatura e tambeacutem ao proacuteprio conceito de baacuterbaro e o que

era considerado civilizado ou natildeo pelos romanos

Em Roma o contexto de contato entre povos baacuterbaros diferiu bastante da

realidade grega Embora Roma partilhasse certos aspectos com outras cidades do Laacutecio

(liacutengua religiatildeo costumes) existiu no periacuteodo arcaico o domiacutenio dos etruscos a

invasatildeo dos gauleses em Roma no ano de 390 aC aleacutem de outros inimigos que

habitavam do outro lado dos Alpes como os germanos Sobre o contato dos romanos

com os povos do ocidente G uthier (1973 p 14) firm ―Rome est en cont ct tregraves tocirct

51

Consideramos aqui a contaminatio no amplo sentido de que a cultura grega exerceu forte influecircncia na

literatura latina levando esta uacuteltima a composiccedilotildees de temas e gecircneros narrativos comuns aos helecircnicos 52

Para anaacutelise mais profunda do conceito de um romano ser considerado baacuterbaro cf Gouvecirca Juacutenior

(2012 p 5 a 27) 53

Oliveira fala que na verdade Roma controlava a influecircncia que vinha dos helenos tanto eacute que alguns

elementos da cultura grega soacute vieram a ter alcance em Roma jaacute no seacuteculo I aC a I dC com Catulo

Horaacutecio e Oviacutedio O utor defende que ―A origin lid de de Rom eacute pois c p cid de de sintetiz r

outras culturas sem perda de identidade e foi isso o que a urbe aprendeu a fazer desde as origens () A

postura psicoloacutegica dos romanos perante as culturas estrangeiras eacute pois seletiv e pr gmaacutetic ( ) (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269) Oliveira entatildeo define que os romanos possuiacuteam trecircs

mecanismos para lidar com uma cultura estrangeira a interpretatio como por exemplo nas comeacutedias de

Plauto que possuiacuteam certos elementos proacuteprios a imitatio postura de veneraccedilatildeo ao modelo e a emulatio

que era o desejo de rivalizar e fazer melhor do que o modelo (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 270

e ss)

35

vec laquollsquoeacutetr nger culturelraquo eacutetr nger qulsquoelle subit qulsquoelle comb t et uquel elle

emprunte be ucoup 54

No periacuteodo arcaico o termo latino usado para designar o estrangeiro era hostis

Isso jaacute foi atestado na Lei das Doze Taacutebuas (taacutebuas II e III) de meados do seacuteculo V aC

Como lembra Gauthier (1973 p 15) entre os pesquisadores haacute consenso de que os

hostes citados na Lei das Doze Taacutebuas eram os estrangeiros que possuiacuteam em Roma

certos direitos ndash essa relaccedilatildeo de proximidadeigualdade se pareceria com o grego μέλνο

Assim todos os que natildeo eram romanos nessa eacutepoca eram chamados de hostes natildeo

importava a sua origem Varratildeo jaacute no seacuteculo I aC notara a mudanccedila de significado de

hostis que passou a designar inimigo ndash d iacute temos em portuguecircs o termo ―hostil 55

Assim Varratildeo escreveu (De lingua latina V 1 3)

Quae ideo sunt obscuriora quod neque omnis impositio verborum exstat

quod vetustas quasdam delevit nec quae exstat sine mendo omnis imposita

nec quae recte est imposita cuncta manet (multa enim verba litteris

commutatis sunt interpolata) neque omnis origo est nostrae linguae e

vernaculis verbis et multa verba aliud nunc ostendunt aliud ante

significabant ut hostis nam tum eo verbo dicebant peregrinum qui suis

legibus uteretur nunc dicunt eum quem tum dicebant perduellem Assim essas coisas satildeo obscuras pois nem toda imposiccedilatildeo de palavras se

manteacutem jaacute que o tempo apaga algumas nem toda palavra imposta perdura

sem erro nem a que foi posta corretamente permanece iacutentegra (na verdade

muitas palavras foram mudadas com a troca de letras) nem toda origem estaacute

na nossa liacutengua ou nas palavras vernaacuteculas muitas palavras agora designam

uma coisa mas antes significavam outra como inimigo de fato com esse

termo chamavam o peregrino que utilizasse as suas leis agora assim o

chamam aquele que antes nomeavam inimigo (traduccedilatildeo e grifos nossos)

No trecho acima Varratildeo fez distinccedilatildeo entre hostis (que antes servia para se

referir ao peregrino mas que na sua eacutepoca jaacute designava o inimigo) e perduellem (nom

perduellis) eacutetimo usado com o significado de inimigo e depois suplantado pelos termos

hostis e inimicus no latim claacutessico (FARIA 2003 p 723) Ainda sobre esses vocaacutebulos

como atestado no dicionaacuterio de Faria (2003 p 456) durante a Repuacuteblica romana o

termo hostis nomeava o inimigo puacuteblico enquanto inimicus era o inimigo particular jaacute

durante o periacuteodo imperial hostis passou a significar inimigo em geral assim como

inimicus se tornou sinocircnimo de hostilis O fato de vaacuterios termos latinos que antes

designavam o adversaacuterio depois se resumirem a hostis ou inimicus sobretudo a partir do

54

―Rom desde muito cedo esteve com cont to com o estr ngeiro cultur llsquo estr ngeiro que el sujeit

comb te e do qu l muito incorpor 55

Gauthier descreve de forma aprofundada a evoluccedilatildeo do termo hostis e a relaccedilatildeo desse termo com o

eacutetimo hospes (1973 p 14 a 19)

36

seacuteculo I aC denota a proacutepria mudanccedila cultural pela qual Roma passava

Simultaneamente agraves suas inuacutemeras conquistas militares nesse periacuteodo a Urbe passou a

reconhecer indiviacuteduos e naccedilotildees em amigos ou rivais Gauthier (1973 p 19 a 21) resume

bem essa questatildeo

En grec un seul terme μέλνο deacutesigne agrave l fois llsquoeacutetr nger grec vec lequel

entente et meacutefiance sont eacutegalement ou tour agrave tour possibles et llsquohocircte lieacute p r

des obligations reacuteciproques () Au contraire en latin hostis deacutesigne

llsquoeacutetr nger proche reconnu comme p rten ire de droit ccueilli et proteacutegeacute u

sein de l commun uteacute t ndis qlsquoun terme composeacute hospes deacutesigne llsquohocircte

personnel ou f mili l ( ) Encore utiliseacute vec le sens dlsquolaquoeacutetr ngerraquo u milieu

du Vegraveme siegravecle hostis ser it devenu un siegravecle plus t rd llsquolaquoennemiraquo ( ) En

derniegravere n lyse llsquoetude de l notion dlsquoeacutetr nger renvoie elle ussi agrave l

opposition cl ssique entre les citeacutes grecques dlsquo ut nt moins ouvertes ux

eacutetr ngers que l notion dlsquoEacutet t y est moins deacuteveloppeacutee et l citeacute rom ine plus

disciplineacutee et plus ouverte Les guerres entre citeacutes grecques entretiennent les

particularismes elles ne saur ient boutir agrave llsquo ssimil tion ou agrave l conquecircte

Le μέλνο nlsquoest p s ougrave nlsquoest guegravere proteacutegeacute m is les commun uteacutes de μέλνη ne

sont pas de proies A Rome on protegravege ses voisins puis on les absorbe

Llsquoeacutetr nger devient un ennemi ou il devient Rom in 56

Quanto aos estrangeiros Roma lutou contra eles e durante muito tempo

conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as

invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave civilizaccedilatildeo romana ocidental Como

vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Roma teve relaccedilotildees mais profundas de contato

cultural com os baacuterbaros

Os gregos possivelmente foram os primeiros a estudar os costumes e cultura dos

estrangeiros atraveacutes de relatos de mercadores ou colonizadores De fato desde tempos

muito antigos os gregos empreenderam viagens pelo Mediterracircneo estabelecendo

colocircnias e tendo contato com outros povos (JARDEacute 1977 p 5) Por volta do seacuteculo VI

aC temos jaacute algumas obras de pesquisa etnograacutefica ou historia (no sentido de

pesquisa) Desse seacuteculo temos as Histoacuterias de Heroacutedoto que conta sobre povos que

habitavam em terras distantes os citas os persas os egiacutepcios dentre outros Apesar

56

―Em grego um soacute termo μέλνο designa tanto o estrangeiro grego com o qual tanto a compreensatildeo

quanto a desconfianccedila satildeo igualmente possiacuteveis quanto o hoacutespede ligado por obrigaccedilotildees reciacuteprocas ()

Ao contraacuterio no latim hostis designa o estrangeiro proacuteximo reconhecido como parceiro por direito

acolhido e protegido no seio da comunidade enquanto um termo composto hospes designa o hoacutespede

pesso l ou f mili r ( ) Aind utiliz do com o sentido de ―estr ngeiro dur nte o seacuteculo V C hostis se

tornaria um seacuteculo depois o ―inimigo ( ) Em uacuteltim naacutelise o estudo d noccedilatildeo de estr ngeiro remete

ela mesma agrave oposiccedilatildeo claacutessica entre as cidades gregas ndash embora menos abertas ao estrangeiro pois a

noccedilatildeo de Estado eacute menos desenvolvida ndash e agrave cidade romana mais disciplinada e mais aberta As guerras

entre as cidades gregas mantecircm suas particularidades elas natildeo podem conduzir agrave assimilaccedilatildeo ou agrave

conquista O μέλνο natildeo costuma ser protegido mas as comunidades de μέλνη natildeo satildeo viacutetimas Em Roma

jaacute se protege os vizinhos e tambeacutem os absorve O estrangeiro ou deve se tornar inimigo ou deve se tornar

rom no

37

desse interesse etnograacutefico os gregos natildeo se aprofundaram no contato com os

estrangeiros ou se preocuparam em civilizaacute-los de maneira sistemaacutetica (DAUGE 1981

p 12)

Ateacute o seacuteculo III aC Roma era principalmente considerada como um territoacuterio

baacuterbaro para os proacuteprios gregos O contato direto entre essas duas civilizaccedilotildees contudo

trouxe grandes mudanccedilas Em 280 aC na costa de Tarento pela primeira vez os

exeacutercitos grego e romano se encontraram Os gregos entatildeo possuiacuteam duas formas de

abordar o estrangeiro a assimilaccedilatildeo (ou analogia) em que um povo teria sua origem

relacionada aos gregos e a alienaccedilatildeo em que o povo considerado baacuterbaro seria mantido

lheio agrave ―civiliz ccedilatildeo (HARTOG 2014 p 211) A p rtir dos seacuteculos III I C

portanto essas duas abordagens em relaccedilatildeo aos romanos foram contraditoacuterias eles

foram considerados anaacutelogos ou alienados perante os gregos de acordo com as grandes

transformaccedilotildees poliacuteticas e as relaccedilotildees ora amistosas ora adversas entre esses dois

povos A esse respeito Champion (2004 p 46) afirma ― ncient Hellenism like ny

ethnic-cultural identity formation was an adaptable and negotiable cultural tool that was

deployed for politic l purposes 57

Desde a literatura grega arcaica jaacute temos alguns registros que posteriormente

for m us dos como ―g nchos p r definir origem grega dos romanos Um exemplo

disso pode ser encontrado em Hesiacuteodo que disse que Latino era filho de Odisseu e

Circe58

Como Herring pontua (In ERSKINE 2009 p 130) o orgulho grego tornava

mais faacutecil ver os romanos como gregos e natildeo outros Dentre outros modelos desse fato

um dos mais significativos eacute o de Dioniacutesio de Halicarnasso autor grego do seacuteculo I

aC que justificou a origem helecircnica dos romanos pela genealogia dizendo que os

primeiros habitantes do Laacutecio eram gregos que tinham migrado da Arcaacutedia para a Itaacutelia

antes da Guerra de Troia e tambeacutem pelo fato dos proacuteprios troianos terem origens

gregas Segundo Dioniacutesio Daacuterdano antecedente dos troianos seria neto de Atlas o

primeiro rei da Arcaacutedia Teucro entatildeo rei da regiatildeo onde depois seria fundada Troia

deu a Daacuterdano a terra para ele fundar a cidade Teucro tambeacutem seria grego pois sua

origem era da Aacutetica Teucro entatildeo se aliou ao grego Daacuterdano contra os baacuterbaros que ali

habitavam para que a futura cidade de Troia natildeo sucumbisse Daacuterdano se casou com a

57

―o helenismo ntigo como qu lquer form ccedilatildeo de identid de eacutetnico-cultural era uma ferramenta

cultur l d ptaacutevel e negociaacutevel que foi us d p r propoacutesitos poliacuteticos 58

Na Teogonia (2003 v 1011 1016) Hesiacuteodo ssim escreveu ―Circe filh de Sol Hiperionid m d

por Odisseu de sofrida prudecircncia gerou Aacutegrio Latino irrepreensiacutevel e poderoso e pariu Teleacutegono graccedilas

agrave aacuteurea Afrodite Bem longe no interior de ilhas sagradas e eles reinam sobre os iacutenclitos tirrenos Esse

trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Torrano (HESIacuteODO 2003)

38

filha de Teucro e da sua linhagem nasceria Eneias dessa forma descendente de

arcaacutedios59

Essa assimilaccedilatildeo dos romanos por parte de alguns gregos natildeo foi contudo uma

via de matildeo uacutenica jaacute que os proacuteprios romanos tambeacutem escreveram sobre suas origens

estrangeiras o que resultou em divers s lend s com vaacuteri s conexotildees que ―borr r m s

fronteiras entre gregos e romanos Citamos o exemplo de Faacutebio Pictor (seacuteculo III aC)

um dos primeiros a escrever histoacuteria latina que abordou a origem helecircnica dos romanos

pois escreveu sobre a passagem de Heacuteracles pela Itaacutelia e o arcaacutedio Evandro que teria

estabelecido uma colocircnia na colina do Palatino60

Gruen (2011a p 244) a esse respeito

firm ―The Rom n histori n stepped in Hellenic lore unequivoc lly embr ced

legends that postulated Greek ancestry for Rome indeed acknowledged that cultural

underpinnings went back to the Phoenicians Far from shunning alien associations he

proudly procl imed them 61

Paralelamente agrave tradiccedilatildeo da origem helecircnica dos romanos tecircm-se ainda relatos

mitoloacutegicos ndash como na Iliacuteada de Homero ndash que servir m de ―g ncho p r utores

posteriores relacionarem o surgimento de Roma com os gregos Na Iliacuteada o heroacutei

troiano Eneias simplesmente eacute mencionado como o precursor de uma nova raccedila Assim

temos a fala de Posecircidon a Hera (XX 293 a 308)

ὢ πόπνη ἦ κνη ἄρνο κεγαιήηνξνο Αἰλείαν

ὃο ηάρα Πειεΐσλη δακεὶο Ἄτδνο δὲ θάηεηζη

πεηζόκελνο κύζνηζηλ Ἀπόιισλνο ἑθάηνην

λήπηνο νὐδέ ηί νἱ ρξαηζκήζεη ιπγξὸλ ὄιεζξνλ

ἀιιὰ ηί ἢ λῦλ νὗηνο ἀλαίηηνο ἄιγεα πάζρεη

κὰς ἕλεθ᾽ ἀιινηξίσλ ἀρέσλ θεραξηζκέλα δ᾽ αἰεὶ

δξα ζενῖζη δίδσζη ηνὶ νὐξαλὸλ εὐξὺλ ἔρνπζηλ

ἀιι᾽ ἄγεζ᾽ ἡκεῖο πέξ κηλ ὑπὲθ ζαλάηνπ ἀγάγσκελ

κή πσο θαὶ Κξνλίδεο θερνιώζεηαη αἴ θελ Ἀρηιιεὺο

ηόλδε θαηαθηείλῃ κόξηκνλ δέ νἵ ἐζη᾽ ἀιέαζζαη

ὄθξα κὴ ἄζπεξκνο γελεὴ θαὶ ἄθαληνο ὄιεηαη

Γαξδάλνπ ὃλ Κξνλίδεο πεξὶ πάλησλ θίιαην παίδσλ

νἳ ἕζελ ἐμεγέλνλην γπλαηθλ ηε ζλεηάσλ

ἤδε γὰξ Πξηάκνπ γελεὴλ ἔρζεξε Κξνλίσλ

59

Resumimos aqui a histoacuteria narrada por Dioniacutesio de Halicarnasso em sua obra Antiguidades romanas

livro II 1 e 2 Existiam ainda vaacuterias outras lendas sobre as origens helecircnicas dos romanos as quais

citamos rapidamente agrave guisa de exemplo como Gruen (In BOUGH 2006 p 300 a 302) pontua as

variantes nas quais Odisseu e seus descendentes desempenharam papel importante na fundaccedilatildeo de Roma

as narrativas sobre os arcaacutedios (como Enotro e Evandro) e tambeacutem Heacuteracles que teria percorrido a Itaacutelia

se relacionado com a filha de Evandro e ali deixado seus filhos Palante e Latino ndash esse uacuteltimo ao ser

adotado pelo rei dos aboriacutegenes Fauno depois se tornaria sogro de Eneias 60

Pictor fragmentos 1ndash2 (In BECK WALTER 2005 v1) 61

―O histori dor rom no mergulh do n tr diccedilatildeo greg sem duacutevid br ccedilou s lend s que postul v m

ancestralidade grega de Roma de fato reconhecendo que os fundamentos culturais remontavam aos

feniacutecios Longe de evit r ssoci ccedilotildees estr ngeir s ele orgulhos mente s procl m v

39

λῦλ δὲ δὴ Αἰλείαν βίε Τξώεζζηλ ἀλάμεη

θαὶ παίδσλ παῖδεο ηνί θελ κεηόπηζζε γέλσληαη

―Ah que sofrimento o meu pelo m gnacircnimo Enei s

Ele que rapidamente subjugado pelo Pelida desceraacute ao Hades

por se ter deixado convencer por Apolo que atinge de longe

estulto pois o deus natildeo afastaraacute dele a funesta desgraccedila

Mas por que razatildeo deve ele homem sem culpa sofrer dores

em vatildeo por causa de sofrimentos que satildeo de outros ele que sempre

ofereceu dons aos deuses que o vasto ceacuteu detecircm

Conduzamo-lo entatildeo noacutes para longe da morte

para que se natildeo enfureccedila o Croacutenida se Aquiles

o matar Pois estaacute fadado que ele sobreviva agrave guerra

para que desprovida de esperma natildeo pereccedila a raccedila de Daacuterdano

a quem o Croacutenida amou mais do que todos os filhos

que lhe foram gerados por mulheres mortais

Entretanto o Croacutenida pocircs-se a odiar a raccedila de Priacuteamo

e agora seraacute a Forccedila de Eneias a reger os Troianos

ssim como os filhos de seus filhos que de futuro n sceratildeo 62

Na Eneida temos o maior exemplo latino da origem troiana dos romanos

Virgiacutelio seguindo a narrativa mitoloacutegica que jaacute fora abordada por Homero utilizou essa

profecia que apareceu na Iliacuteada ndash de que Eneias estava destinado a fundar uma nova

raccedila ndash para justificar a origem miacutetica dos romanos em seu poema63

Na Eneida (IV)

quando Eneias se encontra em Cartago ele eacute lembrado por Hermes do destino que

deveria cumprir o troiano entatildeo deixa Dido e parte em direccedilatildeo agrave Itaacutelia64

No canto VII

Eneias finalmente chega ao Laacutecio e se encontra com o rei Latino que por recomendaccedilatildeo

dos deuses oferece-lhe a matildeo de sua filha Laviacutenia65

Eneias em algumas narrativas

lendaacuterias eacute considerado o antecessor de Rocircmulo e Remo e por conseguinte se deve a

ele a origem miacutetica dos romanos

Natildeo deixa de ser curioso o fato de que natildeo temos registros de uma possiacutevel

resistecircncia por parte dos romanos em remontar suas origens em povos indiacutegenas ou em

r iacutezes no Laacutecio como Gruen lembr (2011 p 244) ―But we h ve no sign of Rom n

resistance to foreign roots or insistence on native beginnings The reverse holds

62

Traduccedilatildeo citada de Lourenccedilo (HOMERO 2005) 63

Virgiacutelio escreveu a Eneida a pedido de Augusto Primeiro imperador romano Otaacutevio Augusto queria

um poema eacutepico agrave altura de Homero para exaltar as gloacuterias e faccedilanhas do incipiente impeacuterio atraveacutes de

suas origens lendaacuterias Virgiacutelio encontrou no troiano Eneias tanto o heroacutei de sua epopeia como tambeacutem o

elo miacutetico que ligou a Iliacuteada agrave Eneida Aleacutem disso Eneias era considerado por Ceacutesar e por Augusto o

miacutetico fundador da gens Julia ndash da qual faziam parte ndash remontando a origem da famiacutelia ateacute a deusa Vecircnus

(MARTIN GAILLARD 1981 p 33-36) 64

Na narrativa de Virgiacutelio Dido era a rainha da cidade de Cartago e acolheu Eneias quando ele chegou a

sua terra Abandonada pelo heroacutei ela suicidou-se desesperada de paixatildeo esse seria o motivo mitoloacutegico

que provocou as Guerras Puacutenicas 65

Todavia o vieacutes de Dioniacutesio era o de considerar os proacuteprios troianos em sua origem como sendo

gregos Dessa maneira o encontro de Latino e Eneias ndash segundo Dioniacutesio ndash seria novamente a

confluecircncia de descendentes de gregos em uma nova terra da mesma maneira que ele narrou a respeito

dos troianos (cf nota 59)

40

Historians and poets welcomed that association with the Easter Mediterranean reshaped

nd perpetu ted it 66

Gruen (2011a p 247 e 248) ainda reforccedila

Greek authors converted the sagas of Troy to bring Romans within the matrix

of Hellenic traditions And Romans in turn spun those stories to their own

taste embracing a Trojan lineage that gave them a character distinct from that

of Greeks but solidly within the Greek construct This was no linear

development but an intricate overlapping in which Romans defined

themselves as a constituent element in a broader cultural network67

Falamos aqui sobre a assimilaccedilatildeo dos romanos quanto a suas possiacuteveis origens

gregas Mais adiante no subcapiacutetulo 121 referente a Poliacutebio abordaremos a questatildeo

da alienaccedilatildeo dos romanos por parte dos gregos em um fenocircmeno no qual os romanos

eram considerados baacuterbaros

Os gregos consideravam que uma forma de deixar a condiccedilatildeo baacuterbara era atraveacutes

da paideia como vimos anteriormente Em Roma temos um termo que se aproximaria

desse conceito helecircnico eacute a humanitas palavra que deriva de homo (homem) e humus

(terr ) Desse eacutetimo temos em portuguecircs p l vr ―hum nid de deriv d de

―hum no Em contexto rom no no periacuteodo rc ico humanitas designava a natureza e

o sentimento dos homens posteriormente a partir do seacuteculo II aC humanitas adquiriu

o significado de civilidade que se opunha agrave crueldade primitiva (ferocitas)68

Humanitas grosso modo significava a pertenccedila ao gecircnero humano e tudo que lhe

estava relacionado a cultura os aspectos literaacuterio filosoacutefico e religioso Terecircncio

resumiu esse conceito ao escrever o seguinte verso na peccedila Heautontimorumenos (ato I

v 25) ―homo sum humani nihil a me alienum puto 69

Segundo Veyne (1992 p 283)

humanitas se referia agrave cultura literaacuteria virtude de humanidade e estado de civilizaccedilatildeo

Para Pereira (1993 p 421) os termos paideia e humanitas se aproximaram durante o

tempo dos Cipiotildees Inicialmente o termo humanitas serviu para traduzir a palavra grega

paideia e a humanitas assim como aconteceu com a paideia em contexto grego

tornou-se mais um meacuterito do que uma caracteriacutestica universal um instrumento atraveacutes

66

―Natildeo temos sin l de resistecircnci rom n frente agraves r iacutezes estr ngeir s ou insistecircnci em primoacuterdios

nativos pelo contraacuterio Historiadores e poetas receberam bem a associaccedilatildeo com o oriente mediterracircneo

remoldando-a e perpetuando- 67

―Autores gregos converter m as sagas de Troia para inserir os romanos na matriz das tradiccedilotildees

helecircnicas Os romanos por sua vez adaptaram essas histoacuterias ao seu proacuteprio gosto abraccedilando a linhagem

troiana que deu a eles um caraacuteter distinto do dos gregos mas solidamente inserido na construccedilatildeo grega

Esse natildeo foi um desenvolvimento linear mas sim uma intrincada sobreposiccedilatildeo na qual os romanos

definir m si mesmos como elemento constituinte de um rede cultur l m is mpl 68

Pereira (1993 p 415 a 421) detalha mais o surgimento do termo humanitas bem como a evoluccedilatildeo do

seu sentido A autora tambeacutem aborda sobretudo os escritos de Ciacutecero a respeito de humanitas 69

―sou homem penso que nada que eacute humano me eacute estr nho em tr duccedilatildeo noss

41

do qual um indiviacuteduo ou povo poderia se afastar da barbaacuterie A humanitas poderia ser

conquistada ou alcanccedilada e ensinada aos povos considerados primitivos

Em Ceacutesar por exemplo temos em algumas passagens a denominaccedilatildeo dos

germ nos como sendo ―baacuterb ros e ferozes (por exemplo em BGall I 31 e 33) e dos

gauleses (no caso os belgas) descritos como ―homens ferozes e de gr nde virtude

(BGall II 15) Nesse sentido o baacuterbaro diferia do romano porque ele natildeo tinha os

valores relacionados agrave humanitas (a civilidade que se opotildee agrave crueldade primitiva ndash a

ferocitas)70

A esse respeito Dauge (1981 p 19 e 20) explica

Il est bien entendu que pour le Romain le barbare ne constitue pas une

espegravece diffeacuterente mais un eacutetat infeacuterieur ndash soit collectif soit individuel ndash de

l`homme une maniegravere d`ecirctre deacutefectueuse inacheveacutee incomplegravete - non pas

deacutefinitive mais variable Le barbare comme d`ailleurs le civiliseacute est sujet agrave

mutation et peut toujours eacutevoluer l`accegraves agrave l`humanitas est toujours possible

de mecircme que la chute ou rechute dans la barbarie Du reste le Romain sait

bien qu`aux deux extreacutemiteacutes du cycle eacutevolutif se trouvent deux formes

compleacutementaires de la barbarie et qu`il est tregraves difficile dans la mobiliteacute du

reacuteel d`ecirctre et de rester civiliseacute Le tout est de controcircler l`eacutevolution pour

atteindre le point d`eacutequilibre et s`y maintenir ndash en associant agrave cet effort le

plus possible d`individus ce qui a eacuteteacute l`ideacuteal romain proprement dit71

Especificamente em relaccedilatildeo aos celtas embora Roma desde muito cedo fora

ameaccedilada por eles e inclusive saqueada no iniacutecio do seacuteculo IV aC o conhecimento

que se tinha desse povo pelo menos em termos literaacuterios era muito escasso e vinha

sobretudo de fontes gregas como veremos a seguir Roma tinha mais conhecimento dos

povos orientais considerados decadentes e paradigma de luxo excessivo Apoacutes a

conquista da Gaacutelia de forma definitiva sob Juacutelio Ceacutesar o conhecimento dos povos

ocidentais se aprofundou O romano ateacute entatildeo considerado baacuterbaro pelo homem grego

passou a tratar como baacuterbaro o homem gaulecircs considerado rude e ignorante (VEYNE

In GIARDINA 1992 p 295) Com o alargamento das fronteiras do impeacuterio e com a

romanizaccedilatildeo o termo humanitas deu lugar ao termo romanitas o modo de vida dos

romanos passa a ser gradualmente o modelo de vida dos povos conquistados ndash

70

Pereira (1993 p 317 a 428) aleacutem da humanitas analisa outros conceitos morais e poliacuteticos dos

romanos como a fides a clementia o mos maiorum etc 71

―Estaacute bem entendido que para o romano o baacuterbaro natildeo constitui uma espeacutecie diferente mas um estado

inferior - seja coletivo seja individual - do homem uma maneira de ser defeituosa inacabada

incompleta - natildeo definitiva mas variaacutevel De qualquer maneira o baacuterbaro como o civilizado estaacute sujeito

agrave mudanccedila e pode sempre evoluir o acesso agrave humanitas eacute sempre possiacutevel bem como a queda ou a

recaiacuteda na barbaacuterie De resto o romano sabe bem que nas duas extremidades do ciclo evolutivo se

encontram duas formas complementares de barbaacuterie e que eacute muito difiacutecil dentro da mobilidade do real

ser e se manter civilizado Tudo se resume a controlar a evoluccedilatildeo para atingir o ponto de equiliacutebrio e aiacute se

manter - acrescentando a esse esforccedilo o maacuteximo possiacutevel de indiviacuteduos o que foi o ideal romano

propri mente dito

42

sobretudo na Europa ocidental Todavia esse foi um processo lento e de amaacutelgama

cultural entre conquistadores e conquistados como Guarinello (2014 p 297) define

Os historiadores mais antigos da primeira metade do seacuteculo XX descreviam

a aparente homogeneidade cultural do Impeacuterio atraveacutes dos conceitos de

romanizaccedilatildeo e helenizaccedilatildeo como se as populaccedilotildees conquistadas tivessem

acolhido de braccedilos abertos as benesses de civilizaccedilotildees superiores romana no

ocidente grega no oriente Satildeo ideias ultrapassadas A proacutepria criaccedilatildeo de

uma identidade romana foi um processo complexo acelerado no seacuteculo final

da repuacuteblica e agrave eacutepoca de Augusto72

Nesse periacuteodo de raacutepida expansatildeo entre os seacuteculos III aC a I aC a proacutepria

Roma natildeo tinha uma identidade definida Como Guarinello (2014 p 297) ressalta a

urbe era formada por um complexo conjunto de romanos italianos estrangeiros

escravos e libertos vindos de vaacuterias partes do mundo ateacute entatildeo conhecido Com a

ascensatildeo de Otaacutevio Augusto a identidade romana teve que ser recriada para servir de

paracircmetro para o Impeacuterio contudo ela nunca foi baseada em uma identificaccedilatildeo eacutetnica

nem monoliacutetica nem mesmo imune agrave accedilatildeo do tempo (GUARINELLO 2014 p 297)73

Dessa forma a partir do seacuteculo I aC o termo baacuterbaro natildeo designava mais o

estrangeiro qualquer que fosse ele Esse termo passou a definir o primitivo o rude e

violento que constantemente ameaccedilava as fronteiras do Impeacuterio como Veyne (In

GIARDINA 1992 p 300 e 301) afirma

As palavras laquoromanoraquo laquolatinoraquo ou laquoperegrinoraquo indicavam um estatuto natildeo

uma origem eacutetnica e natildeo se estabelecia nenhuma diferenccedila entre os cidadatildeos

romanos de origem itaacutelica e de origem provinciana As diferenccedilas eacutetnicas

contavam tatildeo pouco para os Romanos que no final da Antiguidade natildeo

tiveram nenhuma repugnacircncia em recrutar os seus soldados e generais entre

os Germanos

12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC

Os gregos desde muito cedo jaacute escreviam obras de cunho etnograacutefico devido ao

fato de eles terem estabelecido colocircnias fora da Greacutecia (jaacute na eacutepoca arcaica) e entrado

em contato com outras naccedilotildees ndash sendo tambeacutem o contato com os celtas muito antigo

Vasaly (1993 p 144) lembra que os primeiros textos etnograacuteficos de outros povos e

72

Aprofundaremos nossa discussatildeo sobre o conceito de romanizaccedilatildeo no subcapiacutetulo 221 ― lgum s

consider ccedilotildees sobre questatildeo d rom niz ccedilatildeo n Europ Ocident l 73

Discutiremos de forma aprofundada o estabelecimento da identidade romana a partir do principado de

Augusto no capiacutetulo 3 deste trabalho

43

regiotildees eram apenas relatos superficiais dos primeiros navegadores e narraccedilotildees de

maravilhas e fatos fantaacutesticos relacionados a terras distantes e desconhecidas O proacuteprio

Heroacutedoto nas suas Histoacuterias herda esse traccedilo da narrativa etnograacutefica ao escrever

sobre aspectos assombrosos de outros povos74

Posteriormente a etnografia voltou a

entrar em voga no periacuteodo heleniacutestico com a expansatildeo dos territoacuterios helenizados e

contato entre populaccedilotildees diferentes e com a expansatildeo romana as digressotildees

etnograacuteficas tambeacutem se tornaram comuns em autores latinos Como Dihle (apud

VASALY 1993 p 146) ress lt ―( ) the Hellenistic material was strongly influenced

by the inclination to ascertain the rational causes of observed phenomen 75

Abordaremos mais a fundo no subcapiacutetulo sobre Poliacutebio essa questatildeo sobre a anaacutelise

racional das causas de fenocircmenos e eventos

A respeito de Marselha uma das mais importantes colocircnias gregas Tuciacutedides

contou que a cidade foi fundada por emigrantes da Foceia que ao fugirem dos persas se

estabeleceram no sul da Franccedila76

Marselha de acordo com fontes antigas e com

pesquisas arqueoloacutegicas atuais teria sido fundada no seacuteculo VI aC77

A cidade

mantinha-se em constante vigilacircncia contra os seus vizinhos celtas Momigliano (1991

p 53) ressalta

Em seu comeacutercio Massilia era sem duacutevida auxiliada pelas outras colocircnias

gregas ao longo das costas da Franccedila e da Espanha que se natildeo pela origem

ao menos de fato eram as suas proacuteprias subsidiaacuterias Nicaea Antiacutepolis

Rodes Emporiae Mainace etc Mas eacute difiacutecil avaliar o esforccedilo de

coordenaccedilatildeo militar e social que tais postos avanccedilados isolados devem ter

exigido tanto eram um risco quanto um auxiacutelio78

O alfabeto grego usado pelos celtas se deveu agrave influecircncia dos massaliotas entre

os seacuteculos III e II aC de acordo com inscriccedilotildees celtas e tambeacutem com o relato do

74

Segundo Fornara (1983 p 12 e ss) a etnografia natildeo constituiacutea um gecircnero literaacuterio em si e os antigos

textos escritos pelos gregos nesse formato geralmente eram designados pelo nome do povo a que se

referiam Lydiaka Babyloniaka etc Ess espeacutecie de ―subgecircnero de composiccedilatildeo foi b st nte popul r o

longo dos seacuteculos desde primoacuterdios do seacuteculo V aC ateacute o periacuteodo tardio do impeacuterio romano jaacute que

sempre se recorria agrave etnografia para a descriccedilatildeo de outros povos sua cultura e costumes Jaacute em Homero e

Hesiacuteodo temos trechos de cunho etnograacutefico mas foi sobretudo a partir de Heroacutedoto que a etnografia

passa a ser comumente escrita em digressotildees dentro de obras de cunho historiograacutefico 75

―O m teri l heleniacutestico foi fortemente influenciado pela inclinaccedilatildeo para averiguar as causas racionais

de fenocircmenos observ dos 76

Cf Tuciacutedides I 13 6 (1990 p 149) 77

De acordo com Esbarranch em nota agrave sua traduccedilatildeo do texto de Tuciacutedides a dataccedilatildeo da fundaccedilatildeo da

cidade situa-se no seacuteculo VI aC O tradutor cita outras fontes aleacutem de Tuciacutedides como Heroacutedoto e

Aristoacuteteles bem como pesquisadores do assunto (TUCIacuteDIDES 1990 p 149) 78

Para maiores informaccedilotildees acerca dos contatos entre os celtas e Massilia e de como os gregos

influenciaram essa naccedilatildeo vide Momigliano (1991 p 53 e ss)

44

proacuteprio Ceacutesar Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nada escrito a respeito de si

mesmos e sua histoacuteria e cultura desse periacuteodo apenas satildeo conhecidas no campo literaacuterio

atraveacutes de relatos de terceiros A respeito da falta de escrita por parte dos gauleses e do

uso do alfabeto grego Ceacutesar escreveu no De bello Gallico (VI 14)

Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX

in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum

in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur

Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum

disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus

memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum

diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant

Diz-se que aiacute eles decoram um grande nuacutemero de versos Assim alguns

permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais

preceitos agrave escrita ndash como geralmente nos demais assuntos ndash e quanto aos

registros puacuteblicos e privados utilizam-se das letras gregas Parecem-me tecirc-lo

assim determinado por dois motivos por natildeo querer que seu saber passe ao

vulgo nem que aqueles que aprendem confiando nas letras se dediquem

menos a memorizar isso de ordinaacuterio sucede agrave maioria de modo que com o

respaldo da escrita afrouxem-se a dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de

aprendizado

Momigliano ainda ressalta que Massilia (Marselha) buscando manter-se

helecircnica e aristocraacutetica nunca se preocupou em explorar o interior da Gaacutelia ou

transmitiu aos outros gregos qualquer conhecimento sobre os costumes dos galos O

autor (1991 p 57) afirma

Ateacute o seacuteculo II aC os gregos sabiam deploravelmente pouco sobre o mundo

celta ndash e a Franccedila em particular () As primeiras autoridades sobre os celtas

que encontramos Eacuteforo e Timeu eram tiacutepicos historiadores de gabinete

Foram pioneiros simplesmente porque os massaliotas nunca fizeram

qualquer esforccedilo para conhecer os seus vizinhos Eacuteforo que escreveu os

primeiros livros em torno de 350 aC incluiu os celtas em sua descriccedilatildeo de

mundo79

Sobre esses dois historiadores gregos temos pouco material aleacutem de fragmentos

Eacuteforo e Timeu viveram no seacuteculo IV aC Eacuteforo de Cumas (405 ndash 330 aC) era

conhecido por ter sido aluno de Isoacutecrates de acordo com Oswyn Murray (In

BOARDMAN et al 1986 p 198) por esse motivo Eacuteforo teria comeccedilado a perigosa

relaccedilatildeo entre histoacuteria e retoacuterica com a tendecircncia de se sacrificar a verdade em prol do

efeito O autor escreveu uma obra chamada Histoacuteria que teria 30 livros que tratavam

79

Tem-se notiacutecia de que Hecateu de Mileto geoacutegrafo que viveu no final do seacuteculo VI aC jaacute escrevera

sobre os celtas Contudo como haacute pouquiacutessimos fragmentos de sua obra consideramos Eacuteforo e Timeu

como os mais antigos que deixaram um registro que nos chegou mais consistente

45

da histoacuteria grega dos primoacuterdios ateacute o seu tempo dedicando um livro a cada regiatildeo da

Heacutelade (OLIVER in BUGH 2006 p 117) Poliacutebio (Hist V 33 2) considerava que

foi Eacuteforo o primeiro a escrever histoacuteria de caraacuteter universal Ele tambeacutem redigiu uma

obra sobre a histoacuteria de Cumas e tratados sobre invenccedilatildeo e sobre estilo Muito do que

se sabe sobre a perdida obra de Eacuteforo depende de Diodoro Siacuteculo que o teria usado

como fonte De cordo com H rtog (2014 p 130) Eacuteforo ―pertence jaacute ess c tegori

de intelectuais poliacutegrafos historiadores sim mas que trabalham a partir dos textos dos

outros compiladores Diodoro da Siciacutelia atribui-lhe expressamente a opiniatildeo de que os

baacuterb ros er m m is ntigos que os gregos 80

Quanto a Timeu era de Taormina na Siciacutelia e viveu no comeccedilo do seacuteculo IV

aC Sua Histoacuteria teria sido composta em 38 livros e abordava sobretudo a Siciacutelia e

eventos de lugares proacuteximos como a Liacutebia e a Itaacutelia Sua importacircncia se deveu ao fato

dele ter servido de fonte para Poliacutebio como veremos mais detalhadamente adiante81

Aleacutem de Eacuteforo e Timeu que falaram sobre os celtas no seacuteculo IV e III aC

Momigliano (1991 p 58) afirma

Aristoacuteteles por certo deve tecirc-los incluiacutedo em sua obra perdida sobre os

costumes dos baacuterbaros Em Poliacutetica ele soube interpretar as instituiccedilotildees

celtas no contexto da sua classificaccedilatildeo Embora fossem um povo guerreiro os

celtas ao contraacuterio dos espartanos natildeo eram dominados pelas mulheres

porque tendiam ao homossexualismo mas assim como os espartanos

educavam os filhos austeramente Para aleacutem da poliacutetica Aristoacuteteles conteacutem

mistura costumeira de informaccedilotildees curiosas ndash por exemplo que determinadas

regiotildees da terra celta satildeo frias para que os burros procriem (De gener anim

28748a) Ele natildeo parece ter pesquisado muito a respeito dos celtas Mais

tarde poreacutem se descobriu que mesmo Eacuteforo e Timeu eram informantes

superficiais sobre eles

Antes que os romanos passassem a expandir seu territoacuterio para a Europa

ocidental os proacuteprios gregos sabiam muito pouco sobre os celtas82

Massilia

(Marselha) que poderia ter servido como ponto de exploraccedilatildeo do territoacuterio celta acabou

se concentrando em explorar o litoral Todavia os celtas natildeo passaram despercebidos

80

Para maior detalhamento sobre Eacuteforo e sua produccedilatildeo historiograacutefica recomendamos o subcapiacutetulo

―Ephorus de Marincola (2007 v1 p 172 a 174) 81

Para estudo mais profundo de Eacuteforo e Timeu bem como de outros historiadores gregos do seacuteculo IV e

III C recomend mos o c piacutetulo ―Polybius nd his predecessors (USHER 2001) 82

Sobre o que os gregos do seacuteculo IV C escrever m sobre os celt s cf o c piacutetulo ―Notices in some

fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48)

46

sobretudo apoacutes o saque de Roma em 390 aC83

Jaacute durante o governo de Alexandre o

Grande os celtas assediavam as fronteiras macedocircnias Chegaram a capturar Delfos em

278 aC por um curto espaccedilo de tempo e posteriormente se instalaram na Aacutesia Menor

na regiatildeo conhecida como Galaacutecia84

Os proacuteprios celtas segundo Momigliano teriam

servido como estopim para que certas cidades se organizassem de forma efetiva e por

consequecircncia se tornassem fortes impeacuterios Momigliano (1991 p 59 e 60) ainda

acrescenta

Cada uma dessas intervenccedilotildees dos celtas provava a sua importacircncia ao

produzir importantes desenvolvimentos nos sistemas poliacuteticos que atacavam

Por volta de 350 aC Roma surgiu como a maior potecircncia na Itaacutelia quando os

latinos por temor aos celtas renunciaram agrave sua independecircncia O novo reino

da Macedocircnia sob a autoridade firme de Antiacutegono Gocircnatas foi o resultado

direto da invasatildeo celta da Macedocircnia e da Greacutecia A vitoacuteria sobre os gaacutelatas

consolidou o estado de Peacutergamo e provavelmente forneceu a Aacutetalo I a

oportunidade certa para se declarar rei Por fim foi a vitoacuteria de Gnaeus

Manlius Vulso sobre os gaacutelatas em 189 aC que justificou a intervenccedilatildeo dos

romanos na Aacutesia Menor e lhes forneceu os clientes de que necessitavam para

controlar as ambiccedilotildees de Peacutergamo Inuacuteteis nos ataques contra estados

defendidos por falange ou legiatildeo os celtas tinham a superioridade numeacuterica

a coragem e a rapidez do saqueador completo

121 ndash Poliacutebio

Os gregos durante a expansatildeo do impeacuterio romano passaram a escrever sobre os

celtas a serviccedilo da elite romana O primeiro grande nome de que temos notiacutecia que

tratou mais profundamente sobre os celtas ndash e tambeacutem sobre os romanos ndash foi Poliacutebio

Poliacutebio era filho de Lycortas um importante cidadatildeo de Megaloacutepolis na Arcaacutedia ndash com

isso teve uma educaccedilatildeo refinada Quando Poliacutebio nasceu Roma jaacute tinha vencido a

Segunda Guerra Puacutenica obtendo a hegemonia no Mediterracircneo e comeccedilava a avanccedilar

em direccedilatildeo agrave Greacutecia Os romanos em conflitos com os monarcas heleniacutesticos Filipe V

Perseu da Macedocircnia e Antiacuteoco da Siacuteria passaram tambeacutem a se envolver em disputas

com a Liga Aqueia e Etoacutelia Depois que venceram Perseu em 168 aC em Pidna os

romanos acusaram os aqueus de fomentar revoltas e exigiram mil refeacutens de famiacutelias

83

Ogilvie (1965 p 629) detalha o motivo da confusatildeo de datas entre a cronologia romana e a grega

afirmando que o saque se deu provavelmente em 387 ou 386 aC Para todos os efeitos consideramos a

tradicional data de 390 aC 84

A questatildeo da assimilaccedilatildeo cultural tambeacutem foi empregada pelos gregos para se referir aos celtas Como

destaca Rankin (1996 p 81) a Galaacutecia na concepccedilatildeo helecircnica teria recebido esse nome devido a Gaacutelato

(filho do Ciclope e de Galateia) outra variaacutevel registrada por Timeu (FHG 1200 ediccedilatildeo Muumlller) dizia

que eles eram descendentes de um gigante chamado Keltos e tambeacutem haacute a variaacutevel de que Heacuteracles

quando esteve no oeste teve um breve relacionamento com a princesa Celta e se tornou o ascendente

dessa naccedilatildeo (Diodoro Siacuteculo V 24)

47

proeminentes Dessa forma Poliacutebio chegou a Roma onde permaneceu entre 167 e 150

aC depois retornando agrave sua terra natal85

Poliacutebio mostrou aos seus captores que natildeo tinha envolvimento nas revoltas e

conseguiu a liberdade concedida aos estrangeiros livres Sobretudo por sua amizade

com o jovem Cipiatildeo Emiliano da proeminente famiacutelia dos Cipiotildees e filho de Emiacutelio

Paulo vencedor de Pidna Poliacutebio decidiu permanecer em Roma Na cidade ele se

dedicou a escrever sobre as fontes literaacuterias e documentais que Roma estava obtendo

com suas conquistas Cipiatildeo Emiliano agrave frente dos exeacutercitos da Repuacuteblica liderou

campanhas militares na Hispacircnia e Poliacutebio estava com ele em Cartago em 146 aC

quando na Terceira Guerra Puacutenica a cidade caiu de forma definitiva Quando Corinto foi

conquistada tambeacutem em 146 Poliacutebio voltou para a Greacutecia para interceder a favor dos

seus conterracircneos conseguindo acordos favoraacuteveis e aiacute viveu ateacute sua morte Aleacutem

dessas viagens militares Poliacutebio acompanhando Cipiatildeo ainda fez viagens

exploratoacuterias visitando as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) navegando pela

costa da Ibeacuteria e da Aacutefrica e refazendo a rota dos cartagineses pelos Alpes

As viagens empreendidas por Poliacutebio forneceram material para as suas

Histoacuterias obra que infelizmente nos chegou bem fragmentada Originalmente composta

em 40 livros as Histoacuterias cobririam os fatos desde a Segunda Guerra Puacutenica ateacute a queda

de Corinto Os cinco primeiros livros chegaram mais ou menos intactos enquanto os

outros estatildeo incompletos Poliacutebio foi o primeiro grego de que temos notiacutecia a percorrer

a Hispacircnia onde provavelmente foi por duas vezes entre 151 e 134 aC e visitou

tambeacutem a Gaacutelia e o norte da Aacutefrica como ele mesmo afirma em sua obra (Histoacuterias III

59 5 a 8)

δένλ ἂλ εἴε θαὶ βέιηηνλ γηλώζθεηλ θαὶ ἀιεζηλώηεξνλ ὑπὲξ ηλ πξόηεξνλ

ἀγλννπκέλσλ ὅπεξ ἡκεῖο αὐηνί ηε πεηξαζόκεζα πνηεῖλ ιαβόληεο ἁξκόδνληα

ηόπνλ ἐλ ηῇ πξαγκαηείᾳ ηῶ κέξεη ηνύηῳ ηνύο ηε θηινπεπζηνῦληαο

ὁινζρεξέζηεξνλ βνπιεζόκεζα ζπλεπηζηῆζαη πεξὶ ηλ πξνεηξεκέλσλ ἐπεηδὴ

θαὶ ηὸ πιεῖνλ ηνύηνπ ράξηλ ὑπεδεμάκεζα ηνὺο θηλδύλνπο [θαὶ ηὰο

θαθνπαζείαο] ηνὺο ζπκβάληαο ἡκῖλ ἐλ πιάλῃ ηῇ θαηὰ Ληβύελ θαὶ θαη᾽

Ἰβεξίαλ ἔηη δὲ Γαιαηίαλ θαὶ ηὴλ ἔμσζελ ηαύηαηο ηαῖο ρώξαηο ζπγθπξνῦζαλ

ζάιαηηαλ ἵλα δηνξζσζάκελνη ηὴλ ηλ πξνγεγνλόησλ ἄγλνηαλ ἐλ ηνύηνηο

γλώξηκα πνηήζσκελ ηνῖο Ἕιιεζη θαὶ ηαῦηα ηὰ κέξε ηῆο νἰθνπκέλεο

Seriacutea conveniente y necesario un conocimiento maacutes real de lo que antes se

ignoraba Esto es lo que intentaremos hacer cuando encontremos en nuestra

Historia un lugar adecuado Querriacuteamos que los que quieren saber por

curiosidad participaran de un conocimiento maacutes completo de lo enunciado

85

Para a biografia de Poliacutebio bem como os outros eventos histoacutericos narrados nos proacuteximos dois

paraacutegrafos utilizamos como referecircncia o livro de Usher (2001 p 105 a 107)

48

Fue principalmente por esto por lo que afrontamos los peligros y las

penalidades que nos ocurrieron en un viaje por Africa por Espantildea por la

Galia y por el Mar Exterior que cierra estos paiacuteses para proporcionar a los

griegos el conocimiento de estas partes del universo y corregir la ignorancia

de nuestros antepasados sobre estos temas86

A primeira vez que os gauleses foram mencionados na obra de Poliacutebio foi em

Histoacuterias I 6 2 a 4 em que ele narra rapidamente o saque de Roma no seacuteculo IV aC

Sobre a Gaacutelia Cisalpina temos uma descriccedilatildeo geograacutefica da regiatildeo no livro II das

Histoacuterias entre os capiacutetulos 14 e 17 Poliacutebio (II 17 9 a 12) assim descreveu alguns

costumes dos gauleses

ᾤθνπλ δὲ θαηὰ θώκαο ἀηεηρίζηνπο ηῆο ινηπῆο θαηαζθεπῆο ἄκνηξνη

θαζεζηηεο δηὰ γὰξ ηὸ ζηηβαδνθνηηεῖλ θαὶ θξεαθαγεῖλ ἔηη δὲ κεδὲλ ἄιιν

πιὴλ ηὰ πνιεκηθὰ θαὶ ηὰ θαηὰ γεσξγίαλ ἀζθεῖλ ἁπινῦο εἶρνλ ηνὺο βίνπο

νὔη᾽ ἐπηζηήκεο ἄιιεο νὔηε ηέρλεο παξ᾽ αὐηνῖο ηὸ παξάπαλ γηλσζθνκέλεο

ὕπαξμίο γε κὴλ ἑθάζηνηο ἦλ ζξέκκαηα θαὶ ρξπζὸο δηὰ ηὸ κόλα ηαῦηα θαηὰ ηὰο

πεξηζηάζεηο ῥᾳδίσο δύλαζζαη παληαρῇ πεξηαγαγεῖλ θαὶ κεζηζηάλαη θαηὰ ηὰο

αὑηλ πξναηξέζεηο πεξὶ δὲ ηὰο ἑηαηξείαο κεγίζηελ ζπνπδὴλ ἐπνηνῦλην δηὰ ηὸ

θαὶ θνβεξώηαηνλ θαὶ δπλαηώηαηνλ εἶλαη παξ᾽ αὐηνῖο ηνῦηνλ ὃο ἂλ πιείζηνπο

ἔρεηλ δνθῇ ηνὺο ζεξαπεύνληαο θαὶ ζπκπεξηθεξνκέλνπο αὐηῶ

Habitaban aldeas no amuralladas y no usaban de maacutes ajuar que el

estrictamente necesario Dormiacutean en lechos de hojarasca comiacutean carne y soacutelo

practicaban la agricultura o la guerra por lo cual su vida era muy simple

Entre elles artes y ciencias eran algo desconocido Sus uacutenicos bienes eran el

ganado y el oro ya que dado su geacutenero de vida era lo uacutenico que podiacutean

llevarse faacutecilmente a todas partes y trasladarlo seguacuten sus preferencias Poniacutean

su maacuteximo empentildeo en formar clanes porque entre ellos se consideraba el

maacutes poderoso y el maacutes temible el que diera la impresioacuten de tener el maacuteximo

nuacutemero de clientes y de asociados87

No trecho acima Poliacutebio ressaltou o caraacuteter bruto dos gauleses que natildeo

possuiacuteam qualquer tipo de instruccedilatildeo formal ou organizaccedilatildeo social e se dedicavam

apenas a satisfazer suas necessidades baacutesicas Poliacutebio que conviveu com os romanos e

86

―Seri conveniente e necessaacuterio um conhecimento mais real do que antes se ignorava Eacute isso que

tentaremos fazer quando encontrarmos em nossa histoacuteria um lugar adequado Queriacuteamos que os que

querem saber por curiosidade participem de um conhecimento mais completo do enunciado Foi

principalmente por isso que afrontamos os perigos e as penalidades que nos ocorreram em uma viagem

pela Aacutefrica pela Espanha pela Gaacutelia e pelo Mar Exterior que cerra esses paiacuteses para proporcionar aos

gregos o conhecimento dessas partes do universo e corrigir a ignoracircncia de nossos antepassados sobre

esses tem s Ess cit ccedilatildeo de Poliacutebio bem como s cit ccedilotildees n s proacutexim s not s (87 89 e 90) foi retirada

da traduccedilatildeo feita por Recort (POLIBIO 1981) 87

―H bit v m ldei s sem muros e natildeo us v m de m is objetos do que o estritamente necessaacuterio

Dormiam em leitos de folhas comiam carne e soacute praticavam a agricultura ou a guerra pelo que sua vida

era muito simples Entre eles as artes e as ciecircncias eram algo desconhecido Seus uacutenicos bens eram o

gado e o ouro jaacute que dado seu tipo de vida era o que se podia transportar facilmente a todas as partes e

mudaacute-los segundo suas preferecircncias Colocavam seu maacuteximo empenho em formar clatildes porque entre eles

se considerava o mais poderoso e o mais temiacutevel o que dava a impressatildeo de ter o maior nuacutemero de

clientes e ssoci dos

49

viu seus conflitos com os gauleses escreveu sobre esse povo de forma ora cortecircs ora

temerosa A esse respeito Gruen (2011 p 142) lembr ―Celts h d gener l reput tion

for greed and untrustworthiness so the historian maintains perfectly capable of

appropriating the property of neighbors or llies 88

Um dos aspectos negativos

mencionado por Poliacutebio eacute a falta de compromisso dos gauleses com juramentos e

promessas Um exemplo dessa falta de credibilidade estaacute na seguinte passagem na qual

Poliacutebio escreveu que os romanos receavam fazer acordo com os gauleses Assim temos

(Histoacuterias II 32 8) ηὰ δὲ ζπιινγηζάκελνη ηήλ ηε Γαιαηηθὴλ ἀζεζίαλ θαὶ δηόηη πξὸο

ὁκνθύινπο ηλ πξνζιακβαλνκέλσλ κέιινπζη πνηεῖζζαη ηὸλ θίλδπλνλ εὐιαβνῦλην

ηνηνύηνηο ἀλδξάζηλ ηνηνύηνπ θαηξνῦ θαὶ πξάγκαηνο θνηλσλεῖλ (―Sin emb rgo les

preocupaba la posible deslealtad de aquellas gentes que iban a entrar en combate con

hombres de lin je fiacuten)89

Eckstein (1995 p 123) lembra que em Poliacutebio o grande

nuacutemero dos baacuterbaros a sua violecircncia deslealdade ganacircncia e comportamento insano

compunham um retrato de terriacutevel desordem de fato o conceito de baacuterbaro conduzia o

indiviacuteduo para uma vida indisciplinada Contudo Poliacutebio fez tambeacutem descriccedilotildees que

louvavam algumas caracteriacutesticas dos celtas como em II157 ηό γε κὴλ πιῆζνο ηλ

ἀλδξλ θαὶ ηὸ κέγεζνο θαὶ θάιινο ηλ ζσκάησλ ἔηη δὲ ηὴλ ἐλ ηνῖο πνιέκνηο ηόικαλ ἐμ

αὐηλ ηλ πξάμεσλ ζαθο ἔζηαη θαηακαζεῖλ (―L s cciones beacutelic s explic raacuten por siacute

mismas el gran nuacutemero de hombres su estatura y prestancia corporales e incluso su

ud ci en l guerr )90

Como lembr Gruen (2011 p 142) ―Polybius sketches those

qu lities th t m de G uls worthy dvers ries for Rome 91

Sobre a influecircncia de Timeu na obra de Poliacutebio Usher (2001 p 104) afirma que

Poliacutebio comeccedilou sua obra historiograacutefica a partir do ponto em que Timeu parou e ainda

dedicou boa parte do livro XII a criticar os meacutetodos de Timeu De fato Poliacutebio buscou

escrever histoacuteria de forma metoacutedica sempre justificando aos leitores seus propoacutesitos e

intenccedilotildees Momigliano (1991 p 64) afirma

Poliacutebio foi o primeiro a fazer um relato de primeira matildeo do interior da

Espanha Descreveu a Gaacutelia ndash ou ao menos a Gaacutelia meridional ndash de uma

forma que representou uma novidade para o puacuteblico grego (3597) Podemos

ver como utilizou o seu conhecimento para os capiacutetulos sobre Aniacutebal na

88

―Os celt s tinh m reput ccedilatildeo comum de serem g n nciosos e natildeo confiaacuteveis ssim sustent v o

historiador perfeitamente capazes de se apoderar d propried de dos vizinhos ou li dos 89

―No ent nto os preocup v possiacutevel desle ld de d quel s gentes que i m entr r em comb te com

homens de linh gem fim 90

―As ccedilotildees beacutelic s explic r m por si mesm s o gr nde nuacutemero de homens su est tur e estrutura

corpor l inclusive su udaacuteci n guerr 91

―Poliacutebio esboccedil ess s qu lid des que torn r m os g uleses dversaacuterios difiacuteceis p r Rom

50

Gaacutelia do livro 3 de suas histoacuterias mas o livro 24 em que resumia as suas

descobertas se perdeu Quando afirmou no livro 12 que ao contraacuterio de

Timeu se dera ao trabalho de visitar as terras dos liacutegures e dos gauleses

estava sendo fiel aos fatos Mas pelo menos no livro 3 e no livro 12 se

esqueceu de dizer que as suas exploraccedilotildees foram possibilitadas pelos

romanos e beneficiaram os romanos

Poliacutebio por conseguinte especialmente criticava em Timeu a metodologia desse

uacuteltimo ndash pois Poliacutebio natildeo soacute escreveu sobre os fatos mas tambeacutem testemunhou vaacuterios

acontecimentos bem como teve uma carreira poliacutetica de prestiacutegio Jaacute Timeu por ter

escrito histoacuteria sem ter tido uma participaccedilatildeo direta na vida puacuteblica deveria ser ndash na

criacutetica de Poliacutebio ndash menos digno de autoridade92

De toda a obra de Poliacutebio o livro mais estudado eacute o VI (embora fragmentado)

pois nele Poliacutebio escreveu uma anaacutelise dos romanos do seu sistema poliacutetico e militar e

de como eles obtiveram a hegemonia no Mediterracircneo Eckstein (In CARTLEDGE et

al 1997 p 190) afirma

The point of the spectacular funeral-processions of the wax imagines of the

ancestors of the telling of traditional stories about the great Roman heroes

was ndash Polybius insisted ndash to create a fierce desire in the new generation to

emul te the virtues of their predecessors (6 53 10 54 3 55 d) (hellip) Thus it

was not physis but nomos that made the Romans great and it is precisely

because the Romans are but men to Polybius that he spends so much time in

Book 6 analyzing the social systems that created Roman success93

Poliacutebio entretanto tambeacutem teve um tom pessimista ao longo de sua obra jaacute que

para ele apoacutes a derrota de Aniacutebal e do grande fluxo de riqueza o nomos (cultura)

romano mais faacutecil de ser corrompido do que a physis (natureza) se perdeu com o

grande fluxo de luxo e riqueza a partir dos espoacutelios de Siracusa em 211 aC94

Usher

92

Oliver no seu c piacutetulo ―History nd rhetoric (In BUGH 2006 p 120 122) det lh m is criacutetic de

Poliacutebio a Timeu ndash bem como a outros historiadores Oliver tambeacutem ressalta que embora o trabalho de

Timeu natildeo tenha sobrevivido ele gozava de grande popularidade entre gregos e romanos e que o fato de

Poliacutebio o ter criticado denota a importacircncia que esse historiador teve (In BUGH 2006 p 122) 93

―O ponto dos espet cul res funer is-procissotildees das imagens de cera dos ancestrais de se contar

histoacuterias tradicionais sobre os grandes heroacuteis romanos era ndash Poliacutebio insistia ndash para criar na nova geraccedilatildeo

um forte desejo de emular as virtudes dos predecessores (VI5310 VI543 VI552) () Assim natildeo

foi a physis mas sim nomos que tornou os romanos grandes e eacute precisamente porque os romanos eram

apenas homens para Poliacutebio que ele gastou bastante tempo no livro VI analisando os sistemas sociais que

cri r m o sucesso rom no 94

Para maior detalhamento sobre esse pessimismo em Poliacutebio e tambeacutem das constataccedilotildees parecidas que

Catatildeo o Censor faz a esse respeito recomendamos o artigo de Eckstein ―Physis and Nomos Polybius

the Romans and Cato the Elder (In CARTLEDGE et al 1997 p 191 e ss) Eckstein nesse mesmo

artigo (p 192 e ss) questiona o suposto pragmatismo de Poliacutebio e afirma que Poliacutebio e Catatildeo

considerado moralista na verdade partilhariam muito a visatildeo de mundo romano que tinham

especialmente a respeito do que eles consideravam como a causa da decadecircncia romana ndash isto eacute as

riquezas obtidas com as conquistas

51

(2001 p 108) ressalta que a grande inovaccedilatildeo de Poliacutebio consistiu no fato de um autor

grego ter usado Roma como seu principal foco e buscado a escrita de uma genuiacutena

histoacuteria universal natildeo centrada na Greacutecia como os antecessores Eacuteforo e Timeu

buscaram fazer Usher tambeacutem afirma (2001 p 109)

Polybius describes his conception of history s pr gm ticlsquo by which he

means that the factual material should consist primarily of events which

directly affect the political situation and their interpretation should likewise

be concerned primarily with political implications This rule out everything

that is merely marvellous terrifying or amusing history is to be a serious

subject if it is to provide instruction for men of state as he intends it

should95

Poliacutebio visou a escrever histoacuteria de forma pragmaacutetica realccedilando aspectos

poliacuteticos e militares que teriam um valor praacutetico para o seu leitor tanto por causa das

explicaccedilotildees e motivaccedilotildees por traacutes dos eventos quanto porque tambeacutem julgava

criticamente o espiacuterito dos homens como exemplos para uma conduta futura

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639) Lintott tambeacutem afirma (In

BOARDMAN et al 1986 p 639)

Because the whole history of the Mediterranean had become united through

Roman power he believed it was possible to write a universal history which

w s t the s me time coherent nd h d n expl n tory v lue Polybiuslsquo work

was thus the culmination of Hellenistic historiography in that politico-

military history traditionally focused on the city-state was given the breadth

of a universal chronicle His narrative chronologically based on Olympiads

and their constituent years dealt successively with the different regions of the

world known to the Greeks cross-cutting in order to keep parallel stories in

step with one another and stressing their interrelation and convergence At

the same time he transformed the Greek historiography because his central

theme was the rise of an alien empire96

Como Strasburger (1965 p 46) destaca o grande objetivo de Poliacutebio era

descrever e explicar o fenocircmeno da ascensatildeo de Roma em um periacuteodo relativamente

95

―Poliacutebio descreveu su concepccedilatildeo de histoacuteri como ―pr gmaacutetic pelo que ele entendia que o material

factual deveria consistir primeiramente nos eventos que diretamente afetavam uma situaccedilatildeo poliacutetica e a

sua interpretaccedilatildeo deveria do mesmo modo se ater primeiramente agraves implicaccedilotildees poliacuteticas Essa regra

excluiu tudo que eacute meramente maravilhoso aterrorizante ou divertido a histoacuteria deveria ser um assunto

seacuterio se for p r prover instruccedilatildeo os homens de Est do como ele credit que dev ser 96

―Como tod histoacuteri do Mediterracircneo se uniu tr veacutes do poder rom no ele creditou que era possiacutevel

escrever uma histoacuteria universal que seria ao mesmo tempo coerente e de valor explanatoacuterio O trabalho

de Poliacutebio entatildeo foi o apogeu da historiografia heleniacutestica nessa histoacuteria poliacutetico-militar

tradicionalmente focada em cidade-estado a qual foi dada a abrangecircncia de uma crocircnica universal Sua

narrativa cronologicamente baseada nas Olimpiacuteadas e seus anos constituintes lidou sucessivamente com

as diferentes regiotildees do mundo conhecido pelos gregos fazendo um corte para manter histoacuterias paralelas

no mesmo ponto uma com a outra e acentuando sua inter-relaccedilatildeo e convergecircncia Ao mesmo tempo ele

tr nsformou historiogr fi greg porque seu tem centr l er scensatildeo de um impeacuterio estr ngeiro

52

curto de tempo bem como esclarecer as origens da superioridade romana e os fatores

poliacuteticos militares e morais que proporcionaram essa supremacia97

Dessa forma

Poliacutebio escreveu no comeccedilo de suas Histoacuterias (I15)

ηίο γὰξ νὕησο ὑπάξρεη θαῦινο ἢ ῥᾴζπκνο ἀλζξώπσλ ὃο νὐθ ἂλ βνύινηην

γλλαη πο θαὶ ηίλη γέλεη πνιηηείαο ἐπηθξαηεζέληα ζρεδὸλ ἅπαληα ηὰ θαηὰ

ηὴλ νἰθνπκέλελ νὐρ ὅινηο πεληήθνληα θαὶ ηξηζὶλ ἔηεζηλ ὑπὸ κίαλ ἀξρὴλ

ἔπεζε ηὴλ Ῥσκαίσλ ὃ πξόηεξνλ νὐρ εὑξίζθεηαη γεγνλόο

En efecto iquestpuede haber alguacuten hombre tan necio y negligente que no se

interese en conocer coacutemo y por queacute geacutenero de constituicioacuten poliacutetica fue

derrotado casi todo el universo en ciquenta y tres antildeos no cumplidos y cayoacute

bajo el imperio indisputado de los romanos Se puede comprobar que antes

esto no habiacutea ocurrido nunca98

Todavia Poliacutebio natildeo buscou justificar o fenocircmeno do poderio romano mas

apenas admirava a dominaccedilatildeo de um grande poder ndash da mesma forma que o faraacute Catatildeo

o Censor (BARONOWSKI 2011 p61) Tambeacutem de acordo com Dubuisson (1985 p

227) Poliacutebio buscava compreender e natildeo julgar o sucesso dos romanos ele buscava

apreciar esse sucesso em termos de eficaacutecia e natildeo de valor moral natildeo se encontram em

Poliacutebio ndash como mais tarde se encontraraacute em Posidocircnio ndash as tentativas de cunho estoico

de se justificar a dominaccedilatildeo dos romanos devido a suas eminentes qualidades

Em suas Histoacuterias Poliacutebio tambeacutem apresentou retratos de grandes

personalidades como Aniacutebal e o proacuteprio Cipiatildeo Emiliano Ele buscou uma escrita

neutra narrando os acontecimentos de forma clara e precisa pois condenava os usos da

retoacuterica da eacutepica e da trageacutedia na historiografia escrita por autores que foram seus

contemporacircneos (como a longa criacutetica a Timeu) e Poliacutebio teve Tuciacutedides como modelo

de escrita (USHER 2001 p 109 e ss) assim como Tuciacutedides ele foi um historiador

com consciecircncia de seus princiacutepios e metodologia de seu trabalho e sua prioridade

maacutexima era procurar a verdade atraveacutes das mais autecircnticas evidecircncias possiacuteveis

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639)

Ao ser o primeiro grego de que temos notiacutecia que foi a Roma viu e conheceu a

cidade ndash e sobretudo escreveu sobre a sua histoacuteria ndash eacute importante notar que Poliacutebio

algumas vezes se referiu aos proacuteprios romanos como baacuterbaros Esse eacute um ponto

97

Para maior detalhamento sobre o estilo de escrita de Poliacutebio recomendamos o capiacutetulo ―Poliacutebio de

Marques (in JOLY 2007 p 45 a 63) 98

―Com efeito pode h ver lgum homem tatildeo neacutescio e negligente que natildeo se interesse em conhecer como

e por que gecircnero de constituiccedilatildeo poliacutetica foi derrotado quase todo o universo em cinquenta e trecircs anos

incompletos e caiu sob o impeacuterio incontestaacutevel dos romanos Pode-se comprovar que antes isso nunca

tinh ocorrido Ess cit ccedilatildeo t mbeacutem foi retir d de Polibio (1981 p 56)

53

polecircmico pois alguns pesquisadores como Hartog (2014 p214) consideram que

Poliacutebio o grego passou a se identificar com os romanos e ao fazer parte desse grupo

ele natildeo se referi os rom nos como baacuterb ros Ch mpion em seu rtigo ―Rom ns s

βάξβαξνη three Polybian speeches and the politics of cultural indetermin cy discord

dessa opiniatildeo e afirma que Poliacutebio chamou os romanos indiretamente de baacuterbaros em

trecircs discursos mencionados em sua obra

De acordo com Champion em apenas uma passagem das suas Histoacuterias Poliacutebio

falou da sua proacutepria boca que os romanos eram baacuterbaros No trecho que Champion

destaca Poliacutebio estaacute criticando Timeu No livro XII Poliacutebio acusou o erro de Timeu na

descriccedilatildeo de um ritu l religioso ch m do ―c v lo de outubro Ness cerimocircni de

acordo com Timeu os romanos sacrificavam um cavalo no campo de Marte em um dia

especiacutefico para relembrar o desastre da guerra de Troia por causa do famoso cavalo de

madeira que levou agrave queda da cidade ndash Timeu considerava os romanos descendentes dos

troianos (CHAMPION 2000 p431) Ao criticar essa explicaccedilatildeo de Timeu Poliacutebio

afirmou que essa praacutetica romana era um costume rotineiro entre quase todos os povos

baacuterbaros Ele disse que se fosse seguir o argumento de Timeu entatildeo todos os baacuterbaros

seriam descendentes dos troianos Poliacutebio acusou Timeu de falta de experiecircncia e

conhecimento superficial ao relacionar o sacrifiacutecio do cavalo em Roma com o mito das

origens troianas dos romanos Champion (2000 p 432) assim explica

In this inst nce Polybius t kes exception to both Tim euslsquo linking of Rome

to the Homeric tradition and his implication that the original Romans were

refugees from the civilized city of Troy Greater learning and diligence

Polybius maintains would have led Timaeus to realize that the answer was

much simpler horse sacrifice is nearly univers l mong βάξβαξνη Rom ns

as barbarians act according to a widespread barbarian custom If Timaeus

had realized this he would not have relayed the silly story of the Trojan

horse in this context99

Quanto aos discursos nos quais Poliacutebio chamou os romanos de baacuterbaros de

forma indireta temos trecircs passagens A primeira delas eacute a fala do embaixador etoacutelio

Agelau no final do livro V das Histoacuterias no contexto da conferecircncia de paz realizada

99

―Dess form Poliacutebio f z objeccedilatildeo t nto o f to de Timeu lig r Rom agrave tr diccedilatildeo homeacuteric qu nto su

implicaccedilatildeo de que os romanos originais eram refugiados da civilizada cidade de Troia Maior estudo e

diligecircncia Poliacutebio sustenta teriam levado Timeu a perceber que a resposta era muito mais simples o

sacrifiacutecio do cavalo eacute quase universal entre os baacuterbaros Os romanos como baacuterbaros agem de acordo

com um costume baacuterbaro muito difundido Se Timeu tivesse percebido isso ele natildeo teria confiado na

boba histoacuteri do c v lo troi no nesse contexto

54

em Naupactus (atual Lepanto) em 217 aC100

Agelau afirmou que seria melhor que os

gregos ao inveacutes de lutarem entre si se unissem contra os invasores baacuterbaros que

assediavam as suas cidades para ele qualquer lado que fosse o vencedor da guerra

entre Roma e Cartago invadiria a Greacutecia e teria um comportamento exacerbado para

com os vencidos Assim Poliacutebio escreveu o discurso de Agelau (Hist V 104 1-7)

ὃο ἔθε δεῖλ κάιηζηα κὲλ κεδέπνηε πνιεκεῖλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιιήινηο ἀιιὰ

κεγάιελ ράξηλ ἔρεηλ ηνῖο ζενῖο εἰ ιέγνληεο ἓλ θαὶ ηαὐηὸ πάληεο θαὶ

ζπκπιέθνληεο ηὰο ρεῖξαο θαζάπεξ νἱ ηνὺο πνηακνὺο δηαβαίλνληεο δύλαηλην

ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο ἀπνηξηβόκελνη ζπζζῴδεηλ ζθο αὐηνὺο θαὶ ηὰο

πόιεηο νὐ κὴλ ἀιι᾽ εἰ ηὸ παξάπαλ ηνῦην κὴ δπλαηόλ θαηά γε ηὸ παξὸλ ἠμίνπ

ζπκθξνλεῖλ θαὶ θπιάηηεζζαη πξντδνκέλνπο ηὸ βάξνο ηλ ζηξαηνπέδσλ θαὶ

ηὸ κέγεζνο ηνῦ ζπλεζηηνο πξὸο ηαῖο δύζεζη πνιέκνπ δῆινλ γὰξ εἶλαη παληὶ

ηῶ θαὶ κεηξίσο πεξὶ ηὰ θνηλὰ ζπνπδάδνληη θαὶ λῦλ ὡο ἐάλ ηε Καξρεδόληνη

Ῥσκαίσλ ἐάλ ηε Ῥσκαῖνη Καξρεδνλίσλ πεξηγέλσληαη ηῶ πνιέκῳ δηόηη θαη᾽

νὐδέλα ηξόπνλ εἰθόο ἐζηη ηνὺο θξαηήζαληαο ἐπὶ ηαῖο Ἰηαιησηλ θαὶ

Σηθειησηλ κεῖλαη δπλαζηείαηο ἥμεηλ δὲ θαὶ δηαηείλεηλ ηὰο ἐπηβνιὰο θαὶ

δπλάκεηο αὑηλ πέξα ηνῦ δένληνο δηόπεξ ἠμίνπ πάληαο κὲλ θπιάμαζζαη ηὸλ

θαηξόλ κάιηζηα δὲ Φίιηππνλ εἶλαη δὲ θπιαθήλ ἐὰλ ἀθέκελνο ηνῦ

θαηαθζείξεηλ ηνὺο Ἕιιελαο θαὶ πνηεῖλ εὐρεηξώηνπο ηνῖο ἐπηβαιινκέλνηο

θαηὰ ηνὐλαληίνλ ὡο ὑπὲξ ἰδίνπ ζώκαηνο βνπιεύεηαη θαὶ θαζόινπ πάλησλ

ηλ ηῆο Ἑιιάδνο κεξλ ὡο νἰθείσλ θαὶ πξνζεθόλησλ αὑηῶ πνηῆηαη

πξόλνηαλ ηνῦηνλ γὰξ ηὸλ ηξόπνλ ρξσκέλνπ ηνῖο πξάγκαζη ηνὺο κὲλ

Ἕιιελαο εὔλνπο ὑπάξρεηλ αὐηῶ θαὶ βεβαίνπο ζπλαγσληζηὰο πξὸο ηὰο

ἐπηβνιάο ηνὺο δ᾽ ἔμσζελ ἧηηνλ ἐπηβνπιεύζεηλ αὐηνῦ ηῇ δπλαζηείᾳ

θαηαπεπιεγκέλνπο ηὴλ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο αὐηὸλ πίζηηλ εἰ δὲ πξαγκάησλ

ὀξέγεηαη πξὸο ηὰο δύζεηο βιέπεηλ αὐηὸλ ἠμίνπ θαὶ ηνῖο ἐλ Ἰηαιίᾳ ζπλεζηζη

πνιέκνηο πξνζέρεηλ ηὸλ λνῦλ ἵλα γελόκελνο ἔθεδξνο ἔκθξσλ πεηξαζῇ ζὺλ

θαηξῶ ηῆο ηλ ὅισλ ἀληηπνηήζαζζαη δπλαζηείαο

Declaroacute que lo maacutes necesario era que los griegos no se hicieran nunca la

guerra mutuamente debiacutean dar muchas gracias a los dioses si lograban decir

todos la misma cosa y estar de acuerdo daacutendose las manos como los que

cruzan un riacuteo con ello rechazariacutean las incursiones de los baacuterbaros se

salvariacutean ellos mismos y sus ciudades En el caso con todo de que ello no

fuera totalmente posible pidioacute que al menos en aquel momento se pusieran

de acuerdo y se precavieran era preciso tener en cuenta los formidables

ejeacutercitos y la magnitud de la guerra que se desarrollaba en occidente Porque

es evidente incluso al que ahora no estaacute muy metido en poliacutetica que en esta

guerra da lo mismo que los romanos venzan a los cartagineses o que eacutestos

triunfen de los romanos ya que miacuterese como se mire lo loacutegico es que los

vencedores no se den por satisfechos con la posesioacuten de Italia y de Sicilia

acudiraacuten aquiacute y ampliaraacuten sus operaciones y desplegaraacuten sus fuerzas maacutes

allaacute de lo que es justo (grifos nossos) 101

100

Trata-se da negociaccedilatildeo de paz entre os etoacutelios e Filipe da Macedocircnia Poliacutebio narrou esse

acontecimento em V 103 e 104 101

―Decl rou que o m is import nte er que os gregos nunc tr v r m guerr mutu mente devi m dar

muitas graccedilas aos deuses se conseguissem dizer todos a mesma coisa e estar de acordo dando-se as matildeos

como os que cruzam um rio com isso rechaccedilariam as incursotildees dos baacuterbaros salvariam a eles mesmos e

as suas cidades No caso contudo de que isso natildeo fosse totalmente possiacutevel pediu que ao menos naquele

momento entrassem em acordo e se preparassem era preciso ter em conta os formidaacuteveis exeacutercitos e a

magnitude da guerra que se desenrolava no ocidente Porque eacute evidente inclusive ao que agora natildeo estaacute

muito metido em poliacutetica que nessa guerra daacute no mesmo os romanos vencerem os cartagineses ou que

estes vencedores triunfem sobre os romanos jaacute que de uma forma ou de outra o loacutegico eacute que os

55

No original grego Agelau disse ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο (as incursotildees dos

baacuterbaros) para se referir aos romanos ou aos cartagineses ndash que haveriam de invadir a

Greacutecia natildeo se contentando apenas com a Itaacutelia ou a Siciacutelia O comportamento baacuterbaro

tambeacutem consistia em usar a forccedila mais do que necessaacuterio

O segundo discurso eacute o de Licisco no livro IX 32 a 40 Licisco embaixador

arcaacutedio foi a Esparta em nome dos macedocircnios para formar uma alianccedila contra Roma e

os seus aliados etoacutelios Sua fala enfatizou os grandes serviccedilos que os macedocircnios

prestaram aos gregos ao ajudar a combater os baacuterbaros no norte e que uma nova alianccedila

deveria ser feita para rechaccedilar os romanos que satildeo comparados com os persas Poliacutebio

dessa forma escreveu o discurso de Licisco (Hist IX 37 5-8) em que ele se dirigiu aos

etoacutelios

ηίζη δὲ λῦλ θνηλσλεῖηε ηλ ἐιπίδσλ ἢ πξὸο πνίαλ παξαθαιεῖηε ηνύηνπο

ζπκκαρίαλ ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ ὅκνηά γε δνθεῖ ηὰ πξάγκαζ᾽

ὑκῖλ ὑπάξρεηλ λῦλ θαὶ πξόηεξνλ ἀιι᾽ νὐ ηἀλαληία ηόηε κὲλ γὰξ ὑπὲξ

ἡγεκνλίαο θαὶ δόμεο ἐθηινηηκεῖζζε πξὸο Ἀραηνὺο θαὶ Μαθεδόλαο ὁκνθύινπο

θαὶ ηὸλ ηνύησλ ἡγεκόλα Φίιηππνλ λῦλ δὲ πεξὶ δνπιείαο ἐλίζηαηαη πόιεκνο

ηνῖο Ἕιιεζη πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπονὓο ὑκεῖο δνθεῖηε κὲλ ἐπηζπζζαη

θαηὰ Φηιίππνπ ιειήζαηε δὲ θαηὰ ζθλ αὐηλ ἐπεζπαζκέλνη θαὶ θαηὰ πάζεο

Ἑιιάδνο

Y ahora iquestcon quieacuten compartiacutes los ideales iquestCon quieacuten exigiacutes de eacutestos que

hagan una alianza iquestNo es con los baacuterbaros iquestY os parece que las cosas

estaacuten como antes iquestNo es exactamente lo contrario Antes disputabais la

hegemoniacutea y el prestigio a aqueos y a macedonios que son linaje vuestro

concretamente a su caudillo Filipo pero en la guerra de ahora unos hombres

baacuterbaros extranjeros pretenden esclavizar a Grecia entera(grifos nossos) 102

Licisco acusou abertamente os etoacutelios de estarem fazendo uma alianccedila com um

povo baacuterbaro ndash no original grego temos ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ Vemos

novamente a ameaccedila de os romanos escravizarem toda a Greacutecia ndash em grego os homens

estrangeiros (πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπο)

vencedores natildeo se deem por satisfeitos com a possessatildeo da Itaacutelia e da Siciacutelia chegaratildeo ateacute aqui

mpli ratildeo su s oper ccedilotildees e us ratildeo d s su s forccedil s muito leacutem do que eacute justo (POLIBIO 1981 p 138 e

139) 102

―E gor com quem comp rtilh is os ide is O que exigis desses com quem f zem um li nccedil Natildeo

eacute com os baacuterbaros Parece-vos que as coisas estatildeo como antes Natildeo eacute exatamente o contraacuterio Antes

disputaacuteveis a hegemonia e o prestiacutegio com aqueus e macedocircnios que satildeo uma linhagem sua

concretamente ao seu liacuteder Filipe mas na guerra de agora os homens baacuterbaros estrangeiros pretendem

escr viz r Greacuteci inteir (POLIBIO 1981 p 338 e 339)

56

O uacuteltimo discurso eacute atribuiacutedo de maneira incerta a Trasiacutecrates103

que estaria na

embaixada grega aliada aos macedocircnicos Em 207 aC essa delegaccedilatildeo se dirigiu agrave

Confederaccedilatildeo Etoacutelia (aliada dos romanos) para negociar um tratado Esse discurso

apareceu no livro XI 4-7 das Histoacuterias e o legado destacou aos etoacutelios que todos os

gregos corriam o risco de serem arruinados pelos romanos na descriccedilatildeo de Poliacutebio (XI

5 1-6)

θαηὲ κὲλ γὰξ πνιεκεῖλ ὑπὲξ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο Φίιηππνλ ἵλα ζῳδόκελνη κὴ

πνηζη ηνύηῳ ηὸ πξνζηαηηόκελνλ πνιεκεῖηε δ᾽ ἐπ᾽ ἐμαλδξαπνδηζκῶ θαὶ

θαηαθζνξᾶ ηῆο Ἑιιάδνο ηαῦηα γὰξ αἱ ζπλζῆθαη ιέγνπζηλ ὑκλ αἱ πξὸο

Ῥσκαίνπο αἳ πξόηεξνλ κὲλ ἐλ ηνῖο γξάκκαζηλ ὑπῆξρνλ λῦλ δ᾽ ἐλ ηνῖο

πξάγκαζη ζεσξνῦληαη γηλόκελαη θαὶ ηόηε κὲλ αὐηὰ ηὰ γξάκκαηα ηὴλ

αἰζρύλελ ὑκῖλ ἐπέθεξε λῦλ δὲ δηὰ ηλ ἔξγσλ ὑπὸ ηὴλ ὄςηλ ηνῦην γίλεηαη

πζη θαηαθαλέο ινηπὸλ ὁ κὲλ Φίιηππνο ὄλνκα γίλεηαη θαὶ πξόζρεκα ηνῦ

πνιέκνπ πάζρεη γὰξ νὐδὲλ δεηλόλ ηνύηῳ δὲ ζπκκάρσλ ὑπαξρόλησλ

Πεινπνλλεζίσλ ηλ πιείζησλ Βνησηλ Δὐβνέσλ Φσθέσλ Λνθξλ

Θεηηαιλ Ἠπεηξσηλ θαηὰ ηνύησλ πεπνίεζζε ηὰο ζπλζήθαο ἐθ᾽ ᾧ ηὰ κὲλ

ζώκαηα θαὶ ηἄπηπια Ῥσκαίσλ ὑπάξρεηλ ηὰο δὲ πόιεηο θαὶ ηὴλ ρώξαλ

Αἰησιλ θαὶ θπξηεύζαληεο κὲλ αὐηνὶ πόιεσο νὔη᾽ ἂλ ὑβξίδεηλ ὑπνκείλαηηε

ηνὺο ἐιεπζέξνπο νὔη᾽ ἐκπηπξάλαη ηὰο πόιεηο λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ

ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ

Afirmaacuteis que luchaacuteis contra Filipo en pro de Grecia entera la cual una vez

liberada no deberaacute obedecer las oacuterdenes de aqueacutel La verdad es sin embargo

que combatiacutes para arruinar y esclavizar a todos los griegos Esto es lo que

dice vuestro pacto con los romanos establecido primero en la letra pero que

ahora vemos trasladado a la realidad Y a entonces lo escrito os llenoacute de

oprobio pero ahora los hechos lo han hecho perceptible a todos Filipo es

soacutelo un pretexto nominal para la guerra Eacutel no corre riesgo Se ha aliado con

la mayoriacutea de peloponesios con los beocios los eubeos los focenses los

locros los tesalios y los epirotas y es contra todos estos uacuteltimos que vosotros

habeacuteis pactado en los teacuterminos que siguen l s person s y los ju res

corresponderaacuten los rom nos l s tierr s y l s ciud des los etolioslsquo Si

fuerais vosotros los que tomarais las ciudades no tolerariacuteais que sus

habitantes fueran maltratados ni que se pegara fuego a las poblaciones En

efecto estaacuteis convencidos de que esto es cruel y salvaje(grifos nossos) 104

No discurso acima o comportamento dos romanos eacute tido como cruel e selvagem

ndash em grego Poliacutebio escreveu λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ Nos trecircs

103

Poliacutebio natildeo especificou quem pronunciou esse discurso mas mencionou apenas que essa foi a fala de

um embaixador Em nota de rodapeacute da sua traduccedilatildeo das Histoacuterias Recort (POLIBIO 1981 p 422 nota

14) afirma que de acordo com Tito Liacutevio quem fez esse discurso foi Trasiacutecrates de Rodes 104

―Afirm stes que lut is contr Filipe em prol de tod Greacuteci qu l um vez libert d natildeo deveraacute

obedecer agraves ordens daquele A verdade eacute poreacutem que combateis para arruinar e escravizar a todos os

gregos Eacute isso que diz o vosso pacto com os romanos estabelecido primeiro na letra mas que agora o

vemos transformado em realidade Jaacute entatildeo o escrito os encheu de vergonha mas agora os feitos o tornou

perceptiacutevel a todos Felipe eacute soacute um pretexto nominal para a guerra Ele natildeo corre risco Se aliou com a

maioria dos peloponesos com os beoacutecios os eubeus os focenses os locros os tessaacutelios e os epirotas e eacute

contra todos esses uacuteltimos que voacutes fizestes o p cto nos termos que se seguem s pesso s e os bens

corresponderi m os rom nos s terr s e s cid des os etoacutelioslsquo Se focircsseis voacutes os que tomaacutesseis s

cidades natildeo tolerariacuteeis que seus habitantes fossem maltratados nem que se ateasse fogo agraves populaccedilotildees

De f to est is convencidos de que isso eacute cruel e selv gem (POLIacuteBIO 1981 p 424)

57

trechos mencionados anteriormente os romanos foram retratados como baacuterbaros que

ameaccedilavam a liberdade grega Champion (2000 p 437) afirma que Poliacutebio teve certo

cuid do o escrever esses discursos ―Polybius then h s f ithfully reported historic l

speeches with the degree of accuracy that his historiographical conventions allowed but

the conditions in which he worked entailed a good deal of what we should call authorial

license 105

Para Poliacutebio o uso desses discursos ndash e desse recurso retoacuterico ndash tinha a

finalidade de causar certo efeito de ressaltar as accedilotildees dos indiviacuteduos seu caraacuteter ou

personalidade ndash ou no caso dos discursos das embaixadas ressaltar a posiccedilatildeo de certos

grupos como por exemplo os etoacutelios (OLIVER In BUGH 2006 p 124) Champion

(2000 p 438) a respeito da criacutetica aos romanos nos discursos acima mencionados

ameniza o tom dessas passagens ao afirmar que esses discursos ndash e o retrato dos

romanos como baacuterbaros ndash devem ser lidos dentro do contexto das interaccedilotildees da poliacutetica

aqueia com os romanos e como o patriota Poliacutebio que era originaacuterio da Aqueia via o

domiacutenio romano Finalizando essa discussatildeo Champion (2000 p 441 e 442) resume

Polybius clearly admired many qualities in the Romans but the Achaean

patriot was also able to assert his independence in giving voice to the

negative aspects of Roman behavior His representations of Romans as both

―honor ry Greeks nd s b rb ri ns le ve the Rom ns in n indetermin te

cultural position106

Na primeira metade do seacuteculo III aC as opiniotildees dos gregos em relaccedilatildeo aos

romanos eram bastante contraditoacuterias ora os romanos eram os descendentes dos

troianos (povo considerado ora civilizado ora baacuterbaro) ora baacuterbaros Champion (2000

p 427) a esse respeito afirma

As early as the mid-fourth century Pl tolsquos pupil Her clides of Pontic

referred to Rome as a Greek city Timaeus writing c 280 incorporated

Rome into the Hellenic-Homeric tradition when he maintained that the

Rom ns were descend nts of the Troj ns (hellip) Cle rly then the Greeks were

willing to think of Romans as part of the civilized world insofar as they lived

in an impressively organized city But Greek attitudes towards Rome in the

late third and second centuries were for the most part instrumental when

Romans acted in Greek interests as in the case of the Acarnanians Greeks

engaged what I have called a politics of cultural assimilation treating

105

―Poliacutebio entatildeo fielmente reportou os discursos histoacutericos com o gr u de cuid de que su s

convenccedilotildees historiograacuteficas lhe permitiram mas as condiccedilotildees nas quais trabalhou implicaram em um

bom acordo do que noacutes chamariacuteamos de licenccedil utor l 106

―Poliacutebio cl r mente dmir v muit s qu lid des dos rom nos m s o queu p triot t mbeacutem er c p z

de afirmar sua independecircncia ao dar voz aos aspectos negativos do comportamento romano As suas

represent ccedilotildees dos rom nos t nto como gregos honoraacuterioslsquo quanto baacuterbaros deixam os romanos em uma

posiccedilatildeo cultur l indetermin d

58

Rom ns s ―honor ry Greeks when they cted in brut l f shion in Greek

l nds the Rom ns bec me βάξβαξνη through Greek politics of cultural

alienation 107

Poliacutebio ao falar dos conflitos entre gauleses e romanos retratou os romanos

como civilizados (Histoacuterias I a V) Para o autor grego o termo baacuterbaro era

essencialmente negativo e soacute faria sentido se oposto ao Helenismo esse termo servia

para designar a falta de temperanccedila moderaccedilatildeo e razatildeo consideradas como as balizas

da sociedade helecircnica civilizada Assim como Isoacutecrates Poliacutebio tambeacutem achava que a

paideia era uma ferramenta para combater a barbaacuterie (CHAMPION 2000 p431)

Poliacutebio profundamente pragmaacutetico defendia o ensino e a escrita da Histoacuteria

como sendo algo positivo aos homens Ele ressaltou que o historiador deveria conhecer

os locais dos quais fala utilizar as fontes disponiacuteveis buscar a exatidatildeo em sua obra e

ser imparcial O historiador tambeacutem deveria buscar as causas dos eventos e narrar as

tradiccedilotildees costumes e instituiccedilotildees das naccedilotildees ou povos mencionados (JARDEacute 1977 p

85 e 86)

122 ndash Catatildeo o Censor

O contato dos romanos com os gauleses foi bem diferente da experiecircncia que os

gregos tiveram Desde os primoacuterdios de sua histoacuteria os romanos sofriam com as

ameaccedilas dos povos que estavam proacuteximos o que resultou no saque de Roma e

posteriormente durante a consolidaccedilatildeo do impeacuterio romano com inuacutemeras batalhas

contra povos estrangeiros como vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Os romanos

embora mais proacuteximos dos celtas todavia recorriam aos escritores gregos para tratados

de etnografia jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo natildeo era o foco dos romanos ndash pelo menos

natildeo haacute fontes latinas que tratam de etnografia que nos chegaram Do material que haacute

disponiacutevel Catatildeo se destacou como o primeiro nome romano que escreveu a respeito

dos gauleses jaacute no seacuteculo II aC

107

―Jaacute em me dos do seacuteculo qu rto o pupilo de Platatildeo Heraacuteclides de Pocircntica referiu-se a Roma como

uma cidade grega Timeu escrevendo por volta do ano 280 incorporou Roma na tradiccedilatildeo helecircnica-

homeacuterica quando afirmou que os romanos eram descendentes dos troianos () Claramente entatildeo os

gregos ansiavam por considerar os romanos como parte do mundo civilizado jaacute que eles viviam em uma

cidade impressionantemente organizada Mas as atitudes dos gregos perante Roma no fim do seacuteculo III e

no seacuteculo II aC foram na maior parte instrumentais quando os romanos agiam de acordo com os

interesses gregos como no caso dos acarnacircnios os gregos aderiram ao que chamei de poliacutetica de

ssimil ccedilatildeo cultur l tr t ndo os rom nos como ―gregos honoraacuterios qu ndo eles gi m de m neir

brutal nas terras gregas os romanos se tornaram baacuterbaros atraveacutes d poliacutetic greg de lien ccedilatildeo cultur l

59

Catatildeo o Censor tambeacutem conhecido como Catatildeo o Velho viveu durante o

periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica Nasceu em Tuacutesculo em 234 aC oriundo de uma

proacutespera famiacutelia plebeia de fazendeiros e obteve vaacuterias magistraturas Em 204 aC

Catatildeo entatildeo questor acompanhou Cipiatildeo ateacute a Siciacutelia e agrave Aacutefrica Em 198 aC foi pretor

no governo da Sardenha e em 195 aC obteve o consulado exercido por ele e por

Valeacuterio Flaco108

Dois anos antes em 197 aC a proviacutencia da Hispacircnia fora dividida em

Citerior e Ulterior para facilitar o domiacutenio romano sobre esse territoacuterio que se rebelara

tanto com o jugo de Cartago quanto com o jugo de Roma Catatildeo apoacutes ter sido eleito

cocircnsul recebeu o governo da Hispacircnia em 195 aC para colocar fim a essa revolta

(CONTE 1999 p 85) Em 184 aC Catatildeo tornou-se censor e combateu com rigor o

luxo excessivo dos romanos causado sobretudo pelas riquezas que afluiacuteram para Roma

atraveacutes das vitoacuterias obtidas em Siracusa (211 aC) e posteriormente em Pidna (168

aC) Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 361) destaca que Catatildeo tentou criar

taxas para coibir esse luxo excessivo mas que falhou nesse propoacutesito Em 155 aC

tentando combater a corrupccedilatildeo dos valores romanos perante a cultura grega que fazia

sucesso entre a elite da Cidade Catatildeo se manifestou contra uma embaixada de filoacutesofos

enviados por Atenas expulsando-os de Roma109

Apesar das tentativas de coibir a

crescente influecircncia grega os romanos passaram cada vez mais a considerar que a

educaccedilatildeo helecircnica era sinocircnimo de refinamento os filhos da elite eram criados com

pedagogos e educadores helecircnicos muitas vezes trazidos a Roma na condiccedilatildeo de

escravos e depois esses jovens iam completar seus estudos em cidades gregas Em 153

aC Catatildeo ao visitar Cartago ndash que ressurgia apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica ndash

manifestou a ideia de que essa cidade devia ser destruiacuteda apoacutes uma proliacutefica vida

puacuteblica ele faleceu em 149 aC110

Pela sua produccedilatildeo literaacuteria Catatildeo eacute considerado em

alguns compecircndios de literatura ndash como no proacuteprio livro de Conte (1999 p 86) ndash como

o fundador da prosa latina pela sua obra que nos chegou quase completa o De

108

Durante a Repuacuteblica romana o consulado ndash mais alto degrau das magistraturas ndash era exercido por dois

indiviacuteduos que tinham as seguintes atribuiccedilotildees convocar e presidir o Senado e os comiacutecios fazer

executar as decisotildees do Senado e do povo recrutar e comandar exeacutercitos (BORNECQUE MORNET

2002 p 91) 109

Gruen no capiacutetulo ―C to nd Hellenism (1992 p 52 83) question tatildeo bem est belecid ntip ti

de Catatildeo com os gregos discutindo certos aspectos filohelecircnicos por parte de Catatildeo bem como sobre sua

educaccedilatildeo e conhecimento da cultura grega 110

Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Catatildeo o livro de Conte (1999 p 85 e

86)

60

agricultura (Sobre a agricultura) com conselhos sobre a vida no campo111

Dos

discursos que proferiu no senado temos apenas fragmentos

Outra obra bastante conhecida de Catatildeo eacute Origines (Origens) em sete livros

escrita por ele quando jaacute estava em idade avanccedilada (CONTE 1999 p 86) O primeiro

livro era dedicado agrave fundaccedilatildeo de Roma o segundo e terceiro livros falavam sobre as

origens das cidades italianas O quarto livro era sobre a Primeira Guerra Puacutenica o

quinto sobre a Segunda Guerra Puacutenica e os dois uacuteltimos livros narravam os eventos

romanos ateacute a pretura de Seacutervio Sulpiacutecio Galba em 152 aC (CONTE 1999 p 87)

Origines eacute considerada a primeira obra latina em prosa dedicada agrave histoacuteria de que temos

notiacutecia112

Os romanos Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento (que nasceram alguns anos antes de

Catatildeo) escreveram sobre a histoacuteria latina em prosa mas em liacutengua grega ndash dos quais

temos apenas poucos fragmentos (ASTIN 1978 p 221) Pelo que nos eacute possiacutevel

conhecer Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento foram os primeiros historiadores a escrever

exclusivamente sobre a histoacuteria romana113

Como Lintott (In BOARDMAN et al

1986 p 637) ressalta ambos viveram no periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica e

ocuparam cargos puacuteblicos aleacutem disso eles tambeacutem escreveram suas obras histoacutericas

desde os primoacuterdios de Roma Deve-se levar em conta que Faacutebio Pictor e Ciacutencio

Alimento evidentemente ao escrever sua obra histoacuterica em grego tinham em mente o

puacuteblico helecircnico tanto o da Magna Greacutecia e da Siciacutelia como tambeacutem o da proacutepria

Greacutecia De cordo com Emilio G bb (2000 p 66) ―questo interess mento per un

pubblico greco () voleva presentare Roma nel quadro della storia greca per garantirne

in certo senso l legittimitagrave non solo dell presenz m nche delllsquoegemoni che

nd v conquist ndo 114

Conhecido por seu caraacuteter anti-helecircnico Catatildeo escreveu suas

obras em latim como citamos acima sobre as Origines para impor a liacutengua latina como

veiacuteculo de tratados em prosa

111

Em portuguecircs temos a traduccedilatildeo do De agricultura feita por Trevizam (2016) 112

Para maior aprofundamento sobre as Origens e do que pode ser entendido a seu respeito a partir de

seus fragmentos e de fontes sobre essa obra recomendamos Astin (1978) 113

Beck escreve de forma mais aprofundada sobre Faacutebio Pictor e sua obra no capiacutetulo ―The early Roman

tradition (In MARINCOLA 2007 v 1 p 259 e 260) Nesse mesmo capiacutetulo (p 263 e ss) Beck

tambeacutem fala sobre outros autores de histoacuteria latina como Luacutecio Calpuacuternio Pisatildeo Frugi Luacutecio Caacutessio

Hemina entre outros cujo trabalho nos chegou de forma bastante fragmentada 114

―Esse interesse por um puacuteblico grego ( ) vis v present r Rom no qu dro d histoacuteri greg p r

garantir em certo sentido a legitimidade natildeo soacute da presenccedila mas tambeacutem da hegemonia que ela andava

conquist ndo

61

Ecircnio imigrante de origem messaacutepia que foi trazido a Roma por Catatildeo compocircs

um poema eacutepico em latim sobre a histoacuteria de Roma desde a queda de Troia ateacute a eacutepoca

que lhe era contemporacircnea Pelo fato de a narrativa desenrolar-se ano a ano a obra

recebeu o nome de Annales (Anais) Aleacutem da inovaccedilatildeo de uma obra historiograacutefica em

latim ter sido escrita em versos outro fator ateacute entatildeo ineacutedito foi o fato de a histoacuteria de

Roma ter sido escrita por algueacutem que natildeo era da elite da urbe (BECK In

MARINCOLA 2007 v 1 p 262) Em 184 aC Ecircnio conseguiu a cidadania romana

Essa premissa de autores latinos de escrever em grego para um puacuteblico helecircnico

ndash que durou ateacute metade do seacuteculo II aC ndash cessou com a hegemonia de Roma no

Mediterracircneo ao vencer Cartago e conquistar a Greacutecia a necessidade de se justificar ou

de convencer os outros povos do poderio romano se encerrou (GABBA 2000 p 66 e

67) Gabba (2000 p 67) afirma

Catone aveva giagrave reagito alla tendenza e alle finalitagrave della storiografia in

greco con le sue Origines nelle quali pur accanto al riconoscimento di

presenze greche nella fase protostorica di Roma si insisteva piuttosto sulle

connessioni italiche di Roma e della sua storia Catone si rivolgeva ad un

pubblico romano-italico e per questo inseriva nel suo texto anche alcune

importanti orazioni politiche da lui pronunciate115

A escolha de Catatildeo por escrever em latim tambeacutem se justificava pelo seu notaacutevel

repuacutedio agrave influecircncia da cultura grega em Roma Ao contraacuterio dos autores analistas isto

eacute que escreviam a histoacuteria ano a ano Catatildeo escolheu escrever sua histoacuteria por temas e

acontecimentos Pimentel (1997 p 53) ressalta outro aspecto interessante dessa obra

Catatildeo inovou tambeacutem porque entendeu a histoacuteria natildeo soacute em funccedilatildeo de Roma

mas sim de toda a Itaacutelia e dos povos que a habitavam e porque sobretudo nos

quatro uacuteltimos livros encarou a gesta de Roma sob o prisma de todos os

conflitos em que se envolveu onde quer que se dessem Tudo que viu e viveu

durante a segunda Guerra Puacutenica na Hispacircnia na Siciacutelia ou na Greacutecia

serviu-lhe obviamente como factor enriquecedor das Origines Assim os

fragmentos que chegaram ateacute noacutes respiram o contacto proacuteximo com terras

gentes lendas em informaccedilotildees pormenorizadas e amiuacutede pitorescas que nos

revelam o militar o administrador o poliacutetico mas tambeacutem o homem curioso

e interessado que Catatildeo era Assim sabemos que os Liacutegures eram mentirosos

e ignorantes que a maior parte dos gauleses tinha como ideal de vida falar

bem e combater muito ou ouvimos Catatildeo evocar a riqueza da Peniacutensula

Ibeacuterica com os seus rios cheios de peixe e ouro as suas minas de ferro e

prata

115

―C tatildeo jaacute h vi re gido contr tendecircnci e fin lid de d historiogr fi em grego com su s Origens

nas quais por questatildeo do reconhecimento da presenccedila grega na fase proto-histoacuterica de Roma ele insistia

sobretudo nas conexotildees itaacutelicas de Roma e da sua histoacuteria Catatildeo se dirigia a um puacuteblico romano-itaacutelico e

por isso inseri no seu texto t mbeacutem lguns import ntes discursos poliacuteticos pronunci dos por ele

62

Como Conte (1999 p 87) relembra essa abordagem histoacuterica de Catatildeo ndash

considerando sua escrita natildeo soacute sobre Roma mas tambeacutem sobre os outros povos itaacutelicos

que contribuiacuteram para a grandeza de Roma ndash se justificaria pelo fato de o proacuteprio Catatildeo

ser um homo nouus que natildeo era originaacuterio da urbe Aleacutem dos povos da Itaacutelia ele

escreveu sobre os gauleses que habitavam ao norte da peniacutensula itaacutelica Catatildeo tambeacutem

acrescentou agrave narrativa digressotildees e relatos maravilhosos como Heroacutedoto jaacute fizera

antes e tambeacutem algumas versotildees dos seus discursos (LINTOTT In BOARDMAN et

al 1986 p 639)

Por ter viajado por vaacuterias proviacutencias e territoacuterios Catatildeo tambeacutem abordou os

povos estrangeiros em Origines sobretudo costumes dos hispanos e africanos jaacute que ele

teve maior contato com esses povos (CONTE 1999 p 87) Quanto aos gauleses desde

jovem Catatildeo jaacute tivera contato com eles pois lutara na batalha de Metauro contra o liacuteder

cartaginecircs Asdruacutebal que tinha o apoio dos celtas durante a Segunda Guerra Puacutenica Ateacute

entatildeo no periacuteodo do seacuteculo III a II aC os gregos demonstraram interesse maior sobre

os celtas do que autores latinos Catatildeo que viveu no mesmo periacuteodo que Poliacutebio parece

ter sido o uacutenico romano que se interessou por escrever sobre os gauleses pelo que

temos notiacutecia Sobre a curiosidade que Catatildeo tinha por outros povos Momigliano

(1991 p 63) esclarece

Catatildeo tinha um interesse instintivo e talvez respeito pelas populaccedilotildees

vencidas da Itaacutelia e das proviacutencias Observou os celtas com atenccedilatildeo e parece

ter sido o primeiro a consideraacute-los rgutos ―pler que G lli du s res

industriosissime persequitur rem milit rem et rgute loqui(fr 34 Peter) ( )

Os celtas assomavam enormes em Origines de Catatildeo Ele tentou ser claro

quanto a lugares e nomes Encontrou um ramo dos perigosos cenomanes

entre os volcas natildeo distante de Marselha Provavelmente foi o primeiro a

incluir os gauleses em uma histoacuteria da Itaacutelia embora Faacutebio Pictor que em 225

aC lutou contra eles estivesse fadado a dizer algo sobre as suas

caracteriacutesticas Enquanto Catatildeo ainda estava vivo a classe governante

romana fez um esforccedilo deliberado para comeccedilar a conhecer melhor os celtas

Infelizmente o uacutenico fragmento que nos chegou de Catatildeo que menciona os

celt s eacute o que foi cit do cim por Momigli no Temos ―pleraque Gallia duas res

industriosissime persequitur rem militarem et argute loqui 116

Esse fragmento eacute do

livro II das Origens e diz que ― m ior p rte d Gaacuteli busc du s cois s com muit

dedic ccedilatildeo praacutetic milit r e o f l r rgut mente Erich Gruen consider que embor

breve este fragmento possui relevacircncia para percebermos que Catatildeo natildeo se referia de

116

Fragmento nuacutemero 34 retirado de Cato (In PETER 1914 v1)

63

maneira pejorativa aos gauleses N s p l vr s de Gruen (2011 p 146) ―the comment

brief though it be evidently represents a general judgment and by no means a hostile

one 117

13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC

Depois de Poliacutebio o proacuteximo nome relevante da Greacutecia que tratou dos galos foi

o historiador Posidocircnio

131 ndash Posidocircnio

Nascido em Apameia na atual Siacuteria permaneceu por muito tempo em Rodes ndash

daiacute ser conhecido tanto por Posidocircnio de Apameia ou de Rodes Viveu provavelmente

entre os anos 135 a 51 aC Momigliano (1991 p 65) a respeito de Posidocircnio diz

Podemos ser mais categoacutericos a respeito de Artemidoro de Eacutefeso e Posidocircnio

de Rodes a quem Estrabatildeo tratou como suas fontes mais autorizadas para a

Espanha e a Gaacutelia Ambos eram embaixadores em Roma de suas proacuteprias

cidades ndash ou seja eram muito bem-vindos pela classe dirigente de Roma ()

Eacute evidente que Artemidoro e Posidocircnio viajaram pela Espanha e pela Gaacutelia

com o apoio das autoridades romanas

Posidocircnio foi disciacutepulo do filoacutesofo Paneacutecio responsaacutevel pela difusatildeo do

Estoicismo em Rom Sobre Posidocircnio Pereir (1993 p 97) diz ―( ) o seu gosto pel

observaccedilatildeo tanto o levava a descrever costumes de povos como a estudar o fluxo das

mareacutes ou os fenocircmenos de vulc nismo De cordo com Str sburger (1965 p 40)

Posidocircnio participou de uma grande viagem exploratoacuteria por Marselha e sudeste da

Gaacutelia pela Hispacircnia e sua costa atlacircntica e por algumas ilhas a oeste do Mediterracircneo

Entre o inverno de 87 e 86 aC ele foi a Roma como embaixador e fez uma visita a

Maacuterio entatildeo bastante doente A obra Histoacuterias de Posidocircnio era um trabalho

monumental muito usada e citada por autores posteriores e era composta de

aproximadamente 52 livros que narravam acontecimentos a partir do ano 146 aC ndash

dando continuidade agrave Histoacuteria de Poliacutebio ndash ateacute provavelmente os anos 80 do primeiro

seacuteculo antes de Cristo Kidd (1999 p 25) assim afirma sobre a obra histoacuterica de

117

―O comentaacuterio embor breve evidentemente represent um julg mento gener list e de modo lgum

hostil

64

Posidocircnio ―its r nge nd scope w s formid ble covering the whole of Mediterranean

centred world from Asia Minor to Spain Egypt and Africa to Gaul and the northern

peoples to Jutl nd nd of course t the centre the Rom n nd Greek worlds 118

Por sua formaccedilatildeo filosoacutefica ndash o Estoicismo focava sobretudo na questatildeo social

do homem e seu aprimoramento ndash Posidocircnio escrevia histoacuteria de um ponto de vista

moralista e se preocupava com a razatildeo de ser da natureza da vida e dos acontecimentos

humanos 119

Segundo Bringm nn (In CARTLEDGE et l 1997 p 145) ― s

philosopher he held p rticul r theory on the origins of m nlsquos ctions nd reg rded

history as a source of material to support his views on the psychological causes of

hum n error 120

Isso justifica o tamanho monumental de sua obra histoacuterica e atraveacutes

dela Posidocircnio alcanccedilou grande prestiacutegio entre os romanos a ponto de Ciacutecero pedir a

ele para compor uma histoacuteria sobre seu consulado com base em suas anotaccedilotildees ndash ou

comentarii (HAHM In HAASE 1989 p1326)

Posidocircnio ndash tambeacutem de acordo com a filosofia estoica ndash defendia o bom

tratamento dos povos subjugados como um dever moral e necessidade praacutetica dos

Estados imperialistas (BARONOWSKI 2011 p 59) Para Posidocircnio essa postura justa

e comedida em relaccedilatildeo agraves naccedilotildees conquistadas era o criteacuterio pelo qual se justificava o

domiacutenio imperialista por conseguinte sua doutrina entatildeo incorpora a abordagem

utilitaacuteria de Tuciacutedides que acreditava que a dominaccedilatildeo imperialista poderia ser um

instrumento de progresso e civilizaccedilatildeo mas que tambeacutem tatildeo grande poder oferecia

perigo caso se degenerasse em busca do proacuteprio interesse egoiacutesta (BARONOWSKI

2011 p 60) Essa questatildeo do dever moral do romano de bem tratar os vencidos depois

apareceraacute em autores latinos e gregos como Filodemo Ciacutecero Saluacutestio Diodoro

Nicolau de Damasco Dioniacutesio de Halicarnasso Pompeu Trogo e Tito Liacutevio essa

doutrina ainda de acordo com Baronowski (2011 p 59) atinge seu aacutepice nos

memoraacuteveis versos de Virgiacutelio nos quais ele defende que a vocaccedilatildeo do romano eacute

subjugar os vencidos e trataacute-los com paz justiccedila e clemecircncia121

118

―seu lc nce e escopo er m formidaacuteveis cobrindo todo o mundo centr do no Mediterracircneo desde

Aacutesia Menor ateacute a Espanha Egito e Aacutefrica ateacute a Gaacutelia e os povos do norte ateacute a terra dos jutas e claro no

centro os mundos rom no e grego 119

Para maior aprofundamento sobre Posidocircnio e sua teoria de causas histoacutericas recomendamos Hahm

(In HAASE 1989 p 1325 a 1361) 120

―Como filoacutesofo ele credit v em uma teoria particular sobre as origens das accedilotildees dos homens e

considerava a histoacuteria como fonte de material para embasar seus pontos de vista sobre as causas

psicoloacutegic s do erro hum no 121

tu regere imperio populos Romane memento (hae tibi erunt artes) pacique imponere morem

parcere subiectis et debellare superbos ―Tu rom no lembr -te de comandar os povos com tua

65

Posidocircnio era sistemaacutetico em suas descriccedilotildees etnograacuteficas e tinha talento para

narrar as singularidades dos povos retratados e tambeacutem se concentrava em etnografia

para de acordo com sua teoria de causa e efeito identificar os aspectos caracteriacutesticos

de indiviacuteduos e naccedilotildees e relacionar esses aspectos com o sucesso ou fracasso que

obtinham (HAHM In HAASE 1989 p1342)122

Hahm (In HAASE 1989 p1344 e

1345) ainda acrescenta

The character traits of nations and social groups which for Posidonius made

the actions and fortunes of these groups intelligible could be discovered in

their constitutions laws and customs This is presumably the reason that

Posidonius p ys so much ttention to ethnology in both his Historylsquo nd On

the Oce nlsquo The best ex mple in the surviving fr gments of the Historylsquo is

his discussion of the customs of the Celts This probably came as a prelude to

his account of the war between the Romans and the Celtic tribes who lived in

the foothills of the Alps in southeastern France namely the Allobroges and

the Averni The war culminated in decisive victories for the Romans in 121

and 120 BC In introducing the Celts Posidonius described in great detail

their customs their diet and eating habits their wines and drinking customs

their protocol and entertainment at banquets their status symbols and their

competitions for honor123

Posidocircnio apreciava a estrutura hieraacuterquica dos celtas porque aleacutem de sua

organizaccedilatildeo era tambeacutem uma sociedade extravagante (MOMIGLIANO 1991 p 66)

De cordo com Momigli no (1991 p 67) ―Posidocircnio confessou que princiacutepio se

perturbara com o espetaacuteculo de cabeccedilas humanas cravadas na entrada das casas

aristocraacuteticas celtas poreacutem mais tarde laquohabituando-se a isso ele podia toleraacute-lo com

serenid deraquo (Estr batildeo IV 4 5) Posidocircnio descreveu isso no fr gmento 274 (F55 J c)

do qual temos o seguinte registro em Estrabatildeo (IV 4 5)

πξόζεζηη δὲ ηῇ ἀλνίᾳ θαὶ ηὸ βάξβαξνλ θαὶ ηὸ ἔθθπινλ ὃ ηνῖο πξνζβόξξνηο

ἔζλεζη παξαθνινπζεῖ πιεῖζηνλ ηὸ ἀπὸ ηῆο κάρεο ἀπηόληαο ηὰο θεθαιὰο ηλ

πνιεκίσλ ἐμάπηεηλ ἐθ ηλ αὐρέλσλ ηλ ἵππσλ θνκίζαληαο δὲ

autoridade (essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz poupar os vencidos e dominar os

soberbos (Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853 traduccedilatildeo nossa) 122

Sobre a relaccedilatildeo da escrita da histoacuteria com o estoicismo praticado por Posidocircnio recomendamos o

capiacutetulo de Hahm (In HAASE 1989 p 1357 a 1361) 123

―Os tr ccedilos c r cteriacutesticos d s n ccedilotildees e grupos soci is que p r Posidocircnio tornaram inteligiacuteveis as

accedilotildees e destinos desses grupos poderiam ser descobertos em suas estruturas leis e costumes Essa eacute a

r zatildeo provaacutevel pel qu l Posidocircnio prest muit tenccedilatildeo n etnologi t nto n su Histoacuteri lsquo qu nto no

Sobre o oce nolsquo O melhor exemplo dos fr gmentos supeacuterstites d Histoacuteri lsquo eacute su discussatildeo sobre os

costumes dos celtas Isso provavelmente seria um preluacutedio para seu relato sobre a guerra entre romanos e

as tribos celtas que viviam ao peacute dos Alpes no sudeste da Franccedila chamados de aloacutebroges e de avernos A

guerra culminou em decisivas vitoacuterias dos romanos em 121 e em 120 aC Ao introduzir os celtas

Posidocircnio descreveu em grandes detalhes seus costumes dieta e haacutebitos alimentares seus vinhos e

costumes ao beber seu protocolo e divertimento nos banquetes seus siacutembolos de status e suas

competiccedilotildees pel honr

66

πξνζπαηηαιεύεηλ ηνῖο πξνππιαίνηο θεζὶ γνῦλ Πνζεηδώληνο αὐηὸο ἰδεῖλ

ηαύηελ ηὴλ ζέαλ πνιιαρνῦ θαὶ ηὸ κὲλ πξηνλ ἀεζίδεζζαη κεηὰ δὲ ηαῦηα

θέξεηλ πξᾴσο δηὰ ηὴλ ζπλήζεηαλ

Again in addition to their witlessness there is also that custom barbarous

and exotic which attends most of the northern tribes mdash mean the fact that

when they depart from the battle they hang the heads of their enemies from

the necks of their horses and when they have brought them home nail the

spectacle to the entrances of their homes At any rate Poseidonius says that

he himself saw this spectacle in many places and that although at first he

loathed it afterwards through his familiarity with it he could bear it

calmly124

O fato de os gauleses colecionarem as cabeccedilas dos inimigos era um toacutepos de

representaccedilatildeo da selvageria baacuterbara que tambeacutem se referia a outros povos como os

citas125

Posidocircnio ainda serviu de fonte para Ceacutesar que provavelmente o usou como

referecircncia para as suas digressotildees etnograacuteficas no De bello Gallico e teve trechos

citados por Estrabatildeo Plutarco e Ateneu (HAHM In HAASE 1989 p1326)

Momigliano (1991 p 67) tambeacutem afirma

Foi Posidocircnio quem definiu o lugar dos druidas dos vates e dos bardos na

sociedade celta Toda a tradiccedilatildeo posterior praticamente depende dele ()

Mas a sua simpatia pelos druidas vates e bardos significa um

reconhecimento autecircntico da funccedilatildeo que desempenhavam no mundo celta

Para Posidocircnio os druidas eram mais importantes do que os outros dois

grupos porque proporcionavam lideranccedila conceitos morais e religiosos e

justiccedila

Infelizmente tambeacutem a obra de Posidocircnio nos chegou excessivamente

fragmentada e muito do que se sabe a respeito de seu trabalho veio atraveacutes da obra de

Estrabatildeo sobre o qual falaremos mais agrave frente126

132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio

Nascido em 106 aC em Arpino em uma proacutespera famiacutelia equestre Ciacutecero

concluiu com sucesso seus estudos em Roma Em 89 aC participou da Guerra Social

124

―M is um vez leacutem d su f lt de discernimento existe t mbeacutem quele costume baacuterb ro e exoacutetico

que eacute comum entre muitas das tribos do Norte ndash que eacute o fato de eles ao deixarem a batalha pendurarem

as cabeccedilas dos inimigos nos pescoccedilos dos seus cavalos e quando as trazem para casa as exibem como

espetaacuteculo na entrada de suas moradias De qualquer forma Posidocircnio diz que ele mesmo viu esse

espetaacuteculo em muitos lugares e que apesar de primeiramente ter abominado isso mais tarde ao se

familiarizar com esse costume ele pode toleraacute-lo c lm mente Trecho retir do da traduccedilatildeo de James

(STRABO 1954 v 2 p249) 125

Cf Heroacutedoto (IV 64) 126

Muitos fragmentos de Posidocircnio tambeacutem podem ser encontrados em Ateneu que escreveu no final do

seacuteculo II dC e abordavam sobretudo haacutebitos alimentares

67

sob comando de Pompeu Estrabatildeo pai de Pompeu Magno Entre 79 e 77 aC Ciacutecero

fez uma longa viagem pela Greacutecia onde estudou filosofia e retoacuterica essa viagem

tambeacutem foi um pretexto para Ciacutecero escapar dos inimigos que fez entre os membros do

regime de Sila Foi questor na Siciacutelia e considerado um governador honesto e

cuidadoso Por esse motivo em 70 aC Ciacutecero aceitou o pedido dos sicilianos de

acusar Verres ndash ex governador da Siciacutelia ndash de maacute administraccedilatildeo e corrupccedilatildeo Seu triunfo

sobre Verres trouxe-lhe a reputaccedilatildeo de ser o maior orador de Roma O auge de sua

carreira poliacutetica foi em 63 aC quando foi cocircnsul e desbaratou a conjuraccedilatildeo de Catilina

Ciacutecero partiu para o exiacutelio em 58 aC ao ser acusado de excessos no julgamento dos

cuacutemplices de Catilina (que foram condenados agrave morte) mas jaacute em 57 aC retornou a

Roma Durante a Guerra Civil precipitada por Ceacutesar e Pompeu em 49 aC Ciacutecero ficou

do lado deste uacuteltimo Apoacutes a morte de Ceacutesar Ciacutecero fez os discursos intitulados

Filiacutepicas contra Marco Antocircnio Com o triunvirato firmado entre Marco Antocircnio

Otaacutevio e Leacutepido Ciacutecero tornou-se proscrito e foi assassinado por cuacutemplices de Antocircnio

em 43 aC127

Ciacutecero era grande admirador de Catatildeo o Censor mas ao contraacuterio deste uacuteltimo

abordou de maneira superficial os celtas em suas obras Em seu discurso Pro Fonteio (A

favor de Fonteio) do ano 69 aC Ciacutecero defendeu Fonteio que era propretor na Gaacutelia

das acusaccedilotildees dos celtas de que ele governava mal Momigliano (1991 p 68) ressalta

Pelo que sabemos posteriormente Ciacutecero jamais voltou a tratar seacuterio do tema

da sociedade celta ndash nem sequer no discurso a Ceacutesar De provinciis

consularibus Os livros e existem tantos sobre o pensamento poliacutetico de

Ciacutecero podiam ao menos mencionar a temeraacuteria imprecisatildeo das suas noccedilotildees

sobre os provincianos que no caso dos gauleses equivalia ao desprezo

Apesar da posiccedilatildeo de Momigliano a retoacuterica da representaccedilatildeo do outro em

Ciacutecero natildeo era tatildeo simples assim Eacute importante ter em mente que no contexto juriacutedico

Ciacutecero atraveacutes da descriccedilatildeo de povos e seu caraacuteter (ethos) tinha um objetivo em sua

fala ao tribunal que era acusar ou tentar defender algueacutem Como Vasaly (1993 p 131)

afirma a imagem que Ciacutecero apresentava agrave sua audiecircncia era em essecircncia uma

construccedilatildeo verbal que ele tinha liberdade para manipular do melhor jeito que lhe

aprouvesse Para ser bem sucedido ele deveria levar em conta dois aspectos um que as

127

Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Ciacutecero o livro de Conte (1999 p 175 e

176)

68

imagens de mundo criadas por ele deveriam ser de acordo com seus objetivos e dois

que essas imagens parecessem uma acurada reflexatildeo da realidade para a sua audiecircncia

natildeo importava se essas imagens eram reais ou falsas o que importava era se essas

imagens parecessem reais (VASALY 1993 p 132) Sobre povos estrangeiros que

reportavam abusos de governadores romanos em suas proviacutencias a estrateacutegia mais

comum era a defesa tentar impugnar o caraacuteter de toda a raccedila agrave qual esse povo pertencia

e geralmente essas reclamaccedilotildees vinham das proviacutencias que tinham sido submetidas agrave

forccedila (VASALY 1993 p 191)

Voltamos agora a nossa atenccedilatildeo ao Pro Fonteio Esse discurso trata da defesa

que Ciacutecero fez de Marco Fonteio acusado de maacute administraccedilatildeo durante sua pretura na

Gaacutelia Transalpina O Pro Fonteio nos chegou fragmentado e natildeo se sabe qual foi a

decisatildeo dos juiacutezes sobre o processo (VASALY 1993 p 193) A proviacutencia da Gaacutelia

Transalpina foi organizada apoacutes as vitoacuterias romanas de 121 aC se estendia pelo mar

Mediterracircneo e ligava a Itaacutelia agrave Hispacircnia onde hoje estaacute localizada Provenccedila na Franccedila

Essa regiatildeo tambeacutem era conhecida como Gaacutelia Narbonense por causa da capital Narbo

Martius (atual Narbonne fundada em 118 aC) ou Gallia Bracata devido ao costume

gaulecircs de se usar calccedilas (bracae) O governador da proviacutencia tendo a magistratura de

pretor propretor ou proconsul tinha o comando militar do territoacuterio fixava as

requisiccedilotildees e tarefas estabelecia as taxas e exercia sobre os povos indiacutegenas uma

jurisdiccedilatildeo sem apelaccedilatildeo128

Por volta do ano 70 aC os antigos administrados de Fonteio decidiram entrar

com uma accedilatildeo contra o mesmo encorajados pelo processo movido pelos sicilianos

contra a maacute gestatildeo do governador Verres ndash acusaccedilatildeo essa feita pelo proacuteprio Ciacutecero que

tinha relaccedilotildees de amizade com os sicilianos por ter sido governador da regiatildeo Os

gauleses enviaram a Roma uma delegaccedilatildeo dirigida por Indutiomaro chefe da naccedilatildeo dos

aloacutebroges para denunciar os abusos de Fonteio Com exceccedilatildeo dos romanos

estabelecidos na Gaacutelia Transalpina e das cidades de Narbo Martius (Narbonne) e

Massilia (Marselha) aliadas de Roma a proviacutencia inteira acusava o propretor Fonteio

cliente de Ciacutecero natildeo foi citado em outras fontes que natildeo nesse discurso129

Ele

pertencia a uma famiacutelia de Tuacutesculo antiga e honrada mas plebeia como o proacuteprio

Ciacutecero afirmou em seu discurso (Pro Fonteio 41)

128

Usamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles

Lettres p 7 e 8 129

Novamente utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les

Belles Lettres p 9

69

Ciacutecero defendeu seu cliente fundamentando sua argumentaccedilatildeo na ideia de que os

gauleses natildeo eram confiaacuteveis devido ao seu caraacuteter e de que natildeo havia contra Fonteio

quaisquer acusaccedilotildees vindas de outros romanos ou aliados Ele assim disse (Pro Fonteio

15)

Quoniam igitur uidetis qui oppugnatum M Fonteium cognostis qui defensum

uelint statuite nunc quid uestra aequitas quid populi Romani dignitas

postulet utrum colonis uestris negotiatoribus uestris amicissimis atque

antiquissimis sociis et credere et consulere malitis an iis quibus neque

propter iracundiam fidem neque propter infidelitatem honorem habere

debetis

Portanto porque vedes os que atacam M Fonteio e conheceis os que querem

sua defesa decidis agora o que reclamam a vossa justiccedila e a dignidade do

povo romano se acaso preferis acreditar e consultar os vossos colonos e os

vossos negociantes amiciacutessimos e antiquiacutessimos aliados ou acaso acreditar

naqueles os quais natildeo deveis ter em nenhuma consideraccedilatildeo por causa de seu

caraacuteter irasciacutevel e sua deslealdade130

Ciacutecero ainda reforccedilou essa ideia ao dizer (Pro Fonteio 21)

Potest igitur testibus iudex non credere Cupidis et iratis et coniuratis et ab

religione remotis non solum potest sed etiam debet

Pode entatildeo um juiz natildeo acreditar nas testemunhas Se as testemunhas forem

passionais iradas conjuradas e distantes da religiatildeo natildeo soacute pode mas

tambeacutem deve

De acordo com Ciacutecero as queixas dos gauleses natildeo deveriam ser levadas a seacuterio

pois eles eram incapazes de fornecer evidecircncias confiaacuteveis jaacute que natildeo tinham noccedilatildeo da

responsabilidade de dar um testemunho em juramento Esse fato para Ciacutecero natildeo

causaria espanto uma vez que os gauleses eram um povo distinto dos outros natildeo

sentindo temor nem respeito pelo juramento ou pelos deuses imortais Ciacutecero assim

fundamentou esse argumento (Pro Fonteio 30)

An uero istas nationes religione iuris iurandi ac metu deorum immortalium

in testimoniis dicendis commoueri arbitramini quae tantum a ceterarum

gentium more ac natura dissentiunt Quod ceterae pro religionibus suis bella

suscipiunt istae contra omnium religiones illae in bellis gerendis ab dis

immortalibus pacem ac ueniam petunt istae cum ipsis dis immortalibus bella

gesserunt Hae sunt nationes quae quondam tam longe ab suis sedibus

Delphos usque ad Apollinem Pythium atque ad oraculum orbis terrae

uexandum ac spoliandum profectae sunt Ab isdem gentibus sanctis et in

130

Todos os trechos citados do Pro Fonteio ao longo do trabalho bem como outras passagens de Ciacutecero

aqui mencionadas satildeo de nossa traduccedilatildeo

70

testimonio religiosis obsessum Capitolium est atque ille Iuppiter cuius

nomine maiores nostri uinctam testimoniorum fidem esse uoluerunt

Por ventura de fato credes essas naccedilotildees ao pronunciarem seus testemunhos

serem comovidas pela moralidade do juramento ou por medo dos deuses

imortais Essas naccedilotildeezinhas que estatildeo tatildeo afastadas dos costumes e da iacutendole

dos outros povos Pois os outros empreendem guerras a favor de suas

religiotildees esses fazem guerras contra as religiotildees de todos aqueles ao

fazerem guerras suplicam aos deuses imortais paz e graccedila esses contra os

proacuteprios deuses imortais travaram guerras Essas satildeo as naccedilotildees que outrora

partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute Delfos para atacar e pilhar Apolo

Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias

em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu

nome os maiores dos nossos quiseram ter a boa-feacute dos testemunhos (grifos

nossos)

No trecho acima colocamos o termo naccedilotildees em itaacutelico e tambeacutem utilizamos o

diminutivo ―n ccedilotildeezinh s p r reforccedil r n noss traduccedilatildeo a ironia com que Ciacutecero

trata os gauleses referindo-se vaacuterias vezes a esse povo como istae nationes O uso do

pronome istae denota o desprezo com que os gauleses satildeo tratados no Pro Fonteio bem

como tambeacutem o sarcasmo de Ciacutecero ao dizer que as comunidades gaulesas embora

―s nt s e pi s no testemunho n praacutetic er m primitivas e saqueadoras de cidades e

templos

Alguns anos depois da defesa de Fonteio Ciacutecero volta a empregar o pronome

iste para desqualificar um adversaacuterio no caso o acusado era Catilina que em 63 aC

tentara dar um golpe de Estado em Roma e fracassara Ciacutecero entatildeo cocircnsul e sabendo

da trama conspiratoacuteria se colocou como defensor da Repuacuteblica e assumiu o papel de

acusar Catilina no Senado A primeira Catilinaacuteria se destaca pelo tom forte ameaccedilador

e repleto de pathos Ciacutecero que pela lei natildeo podia desterrar ou condenar Catilina por

ele ser um cidadatildeo romano apela para o pateacutetico para conseguir a condenaccedilatildeo deste

Citamos aqui alguns exemplos como o famoso exoacuterdio (Cat I 1) no qual Ciacutecero jaacute

abre o seu discurso atacando Catilina e a sua insolecircncia

Quo usque tandem abutere Catilina patientia nostra Quam diu etiam furor

iste tuus nos eludet

Ateacute quando enfim Catilina abusaraacutes de nossa paciecircncia Por quanto tempo

esse teu furor zombaraacute de noacutes (grifos nossos)

Pode-se perceber no trecho acima que Ciacutecero denota ironia ao se referir a

C tilin e o seu ―furor ndash na argumentaccedilatildeo retoacuterica e aparece como o haacutebil cocircnsul que

percebeu os planos nefastos de Catilina e o humilhou perante o Senado Um pouco mais

agrave frente Ciacutecero diz (Cat I 3)

71

() Fuit fuit ista quondam in hac re publica uirtus ut uiri fortes acrioribus

suppliciis ciuem perniciosum quam acerbissimum hostem coercerent

Habemus senatus consultum in te Catilina uehemens et graue ()

Existiu existiu outrora esta virtude nesta repuacuteblica a de que os homens

valorosos reprimissem o cidadatildeo perigoso com castigos mais violentos do

que se fosse ao mais cruel inimigo Temos um decreto do senado contra ti

Catilina um decreto severo e grave (grifos nossos)

Ciacutecero usou o pronome ista uirtus para destacar que a virtude dos homens

valorosos presente na Repuacuteblica romana em um passado glorioso na eacutepoca do orador

jaacute tinha desaparecido com isso Ciacutecero destacou que no periacuteodo que lhe era

contemporacircneo os cidadatildeos romanos ndash outrora honrados ndash eram capazes de tudo para

colocar os proacuteprios interesses agrave frente da Paacutetria e da moralidade assim Ciacutecero mais

uma vez ressaltou a postura temeraacuteria e ilegal de Catilina desrespeitador de qualquer

virtude ou qualidade

Voltando ao discurso de defesa de Fonteio outro ponto que ressaltava a barbaacuterie

dos gauleses consistia no seu costume de fazer sacrifiacutecios humanos (Pro Fonteio 31)

Postremo his quicquam sanctum ac religiosum uideri potest qui etiam si

quando aliquo metu adducti deos placandos esse arbitrantur humanis hostiis

eorum aras ac templa funestant ut ne religionem quidem colere possint nisi

eam ipsam prius scelere uiolarint Quis enim ignorat eos usque ad hanc

diem retinere illam immanem ac barbaram consuetudinem hominum

immolandorum Quam ob rem quali fide quali pietate existimatis esse eos

qui etiam deos immortalis arbitrentur hominum scelere et sanguine facillime

posse placari Cum his uos testibus uestram religionem coniungetis Ab his

quicquam sancte aut moderate dictum putabitis

Finalmente pode algo parecer santo e venerado a esses que embora levados

por algum medo e decidam que os deuses devam ser agradados desonram os

seus altares e templos com viacutetimas humanas Como podem ao menos cultuar

a religiatildeo se antes essa mesma tenham violado criminalmente com

abominaccedilatildeo Quem de fato ignora que eles ateacute estes dias mantiveram aquele

costume desumano e baacuterbaro de imolar homens Em vista de quecirc voacutes

considerais que eles tenham alguma feacute alguma piedade eles que tambeacutem

pensam que podem agradar facilmente os deuses imortais com crime de

homens e sangue Com eles voacutes ajuntareis a vossa religiatildeo Considerareis

algum dito deles como honrado ou moderado

Ciacutecero tambeacutem salienta a rivalidade entre gauleses e romanos ao construir no

seu discurso im gem de ―noacutes contr eles ress lt ndo vaacuterios toacutepoi de caracterizaccedilatildeo

negativa do gaulecircs (Pro Fonteio 32)

Potestis igitur ignotos notis iniquos aequis alienigenas domesticis cupidos

moderatis mercennarios gratuitis impios religiosis inimicissimos huic

imperio ac nomini bonis ac fidelibus et sociis et ciuibus anteferre

72

Podeis entatildeo preferir os desconhecidos aos conhecidos os parciais aos

imparciais os estrangeiros aos compatriotas os cuacutepidos aos moderados os

mercenaacuterios aos voluntaacuterios os iacutempios aos piedosos os maiores inimigos

deste impeacuterio e desta reputaccedilatildeo aos bons e fieacuteis aliados e cidadatildeos

Ciacutecero ainda afirmou que Fonteio teria vaacuterias caracteriacutesticas positivas jaacute que era

o tipo de cidadatildeo romano de que Roma precisava como forma de desqualificar a accedilatildeo

judicial movida pelos gauleses (Pro Fonteio 41)

Videte igitur utrum sit aequius hominem honestissimum uirum fortissimum

ciuem optimum dedi inimicissimis atque immanissimis nationibus an reddi

amicis praesertim cum tot res sint quae uestris animis pro huius innocentis

salute supplicent ()

Vede entatildeo o que eacute mais justo um homem honestiacutessimo indiviacuteduo fortiacutessimo

e oacutetimo cidadatildeo ser dado aos inimiciacutessimos e crudeliacutessimos povos ou ele ser

restituiacutedo aos amigos sobretudo quando existem tantas razotildees que impelem

os vossos acircnimos a favor da salvaccedilatildeo deste inocente ()

Ciacutecero tambeacutem afirmou algo parecido na seguinte passagem (Pro Fonteio 43)

Quae si diligenter attendetis profecto iudices uirum ad labores belli

impigrum ad pericula fortem ad usum ac disciplinam peritum ad consilia

prudentem ad casum fortunamque felicem domi uobis ac liberis uestris

retinere quam inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis

tradere et condonare maletis

Se vedes com atenccedilatildeo juiacutezes certamente o homem infatigaacutevel para os

esforccedilos da guerra forte frente aos perigos perito na praacutetica e ciecircncia militar

prudente para as deliberaccedilotildees favoraacutevel ao acaso e fortuna voacutes preferireis

mantecirc-lo na paacutetria entre voacutes e vossos filhos a entregaacute-lo agraves naccedilotildees

inimiciacutessimas e crudeliacutessimas ao povo romano

Por fim Ciacutecero recorreu ateacute ao tipo de vestimenta dos gauleses (saiotes e calccedilas)

para desmoralizaacute-los (Pro Fonteio 33)

Sic existimatis eos hic sagatos bracatosque uersari animo demisso atque

humili ut solent ii qui adfecti iniuriis ad opem iudicum supplices

inferioresque confugiunt Nihil uero minus Hi contra uagantur laeti atque

erecti passim toto foro cum quibusdam minis et barbaro atque immani

terrore uerborum ()

Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas com postura

tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias recorrem

ao poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos Nada eacute menos verdadeiro Eles

pelo contraacuterio vagam desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes

com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e desumano da sua liacutengua ()

73

Pelos trechos citados acima Ciacutecero caracterizou os gauleses com vaacuterios termos

pejorativos temos a repeticcedilatildeo dos adjetivos cupidus (21 e 32) aleacutem de outros termos

dentre os quais ignotus iniquus mercennarius e impius ndash que aparecem no paraacutegrafo

32 Ciacutecero ainda acentuou o (mau) caraacuteter dos gauleses pela distacircncia que esse povo

mantinha da civilizaccedilatildeo tanto geograacutefica quanto moral ao dizer que eles estavam longe

da religiatildeo (21 ab religione remotis) e afastados dos costumes e da iacutendole dos outros

povos (30 a ceterarum gentium more ac natura dissentiunt)131

Ciacutecero tambeacutem

considerava os gauleses como sendo os piores inimigos de Roma e faz essa

caracterizaccedilatildeo atraveacutes do uso de superlativos inimicissimis atque immanissimis

nationibus (41) e inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis (43) Pelos

trechos do Pro Fonteio destacados acima podemos ver que Ciacutecero utiliza a oposiccedilatildeo

entre gauleses e romanos para reforccedilar seus argumentos a fim de defender Fonteio

Todo esse discurso baseia-se na representaccedilatildeo do gaulecircs como exemplo maacuteximo de

antiacutetese ao romano o gaulecircs eacute primitivo o romano eacute civilizado o gaulecircs eacute desleal e

mentiroso enquanto o romano eacute confiaacutevel e correto e assim por diante Todos esses

argumentos citados do Pro Fonteio reforccedilavam a imagem do gaulecircs como sendo a de

uma naccedilatildeo cruel e ameaccediladora que natildeo era intimidada nem por homens ou deuses que

natildeo respeitava a religiatildeo ou os juramentos e que era consumida por um desejo de

vinganccedila contra seus conquistadores Vasaly (1993 p 253 e 254) resume

() Cicero appended to his descriptions of the world a variety of

explanations for the characteristics imputed to the people racial mixing and

degeneration explain the character of the Sardinians in the Pro Scauro in the

Pro Flacco Cicero implies that exposure to the decadent and slavish cultures

of the East is the reason for the cultural and moral debasement of the Asian

Greeks as compared with the European Greeks () Only in the Pro Fonteio

does the orator rely on an appeal to negative prejudice unsupported by any

arguments as to the grounds for that prejudice132

Como Gruen (2011a p 147) destaca o medo dos gauleses (metus gallicus) era

um conveniente recurso empregado na literatura latina mas os proacuteprios romanos da

eacutepoca de Ciacutecero natildeo consideravam seriamente uma segunda invasatildeo dos gauleses

131

Jaacute abordamos anteriormente ndash ainda que de forma resumida ndash a questatildeo da teoria hipocraacutetica de que o

centro seria o lugar mais civilizado enquanto as naccedilotildees mais distantes seriam consideradas mais

selvagens nas paacuteginas 32 e 33 deste trabalho 132

―( ) Ciacutecero crescentou agraves su s descriccedilotildees de mundo um v ried de de explic ccedilotildees p r s

caracteriacutesticas imputadas aos povos a mistura racial e a degeneraccedilatildeo explicam o caraacuteter dos sardenhos no

Pro Scauro no Pro Flacco Ciacutecero afirma que a exposiccedilatildeo agraves culturas decadentes e escravocratas do

oriente eacute a razatildeo do decliacutenio cultural e moral dos gregos asiaacuteticos comparados com os gregos europeus

() Apenas no Pro Fonteio o orador se fundamenta no recurso do preconceito negativo embasado por

nenhum rgumento que natildeo s r zotildees do proacuteprio preconceito

74

Ciacutecero distorceu a figura dos gauleses utilizando-se de antigos estereoacutetipos com fins

puramente juriacutedicos No caso desse processo contra Fonteio tambeacutem era desfavoraacutevel

aos gauleses o interesse do Estado romano que buscava o estabelecimento do comeacutercio

e da circulaccedilatildeo de mercadorias da proviacutencia ateacute Roma Como Vasaly afirma (1993 p

194) dos romanos que moravam na Gaacutelia nenhum testemunhou contra Fonteio com

isso Ciacutecero pode retratar o caso como sendo uma batalha entre todos aqueles que eram

leais ao estado e agraves hordas baacuterbaras Como pontua Vasaly (1993 p 137) o

etnocentrismo cultural provia ao orador da Roma antiga ndash e de qualquer outra cultura ndash

o toacutepos comum do ―eles e noacutes ao explorar o lado negativo desse toacutepos o orador

poderia facilmente convencer sua audiecircncia romana de que os povos distantes eram

baacuterbaros monstruosos inimigos implacaacuteveis e moralmente inferiores Os ―nossos

interesses cruciais para a preservaccedilatildeo de todo o impeacuterio portanto vinham antes dos

interesses ―deles

Sobre Marco Fonteio natildeo sabemos qual foi o resultado do julgamento de toda

forma seu nome apoacutes 69 aC natildeo apareceu mais nas listas das magistraturas

romanas133

Nem sempre contudo o discurso juriacutedico de Ciacutecero era contraacuterio aos povos

estrangeiros Temos como exemplo o jaacute mencionado processo contra Verres no qual

Ciacutecero defendeu os sicilianos dos abusos cometidos pelo entatildeo pretor enviado por

Roma O retrato que Ciacutecero fez de Verres ndash e seus partidaacuterios ndash o mostrou como um

tirano ansioso por bens e ao mesmo tempo como uma figura dissoluta que descansava

languidamente em sua liteira sempre cheirando um buquecirc de rosas (CONTE 1999 p

180) Ciacutecero assim escreveu sobre Verres (Verrinas II 5 27)

Nam ut mos fuit Bithyniae regibus lectica octophoro ferebatur in qua

puluinus erat perlucidus Melitensis rosa fartus ipse autem coronam habebat

unam in capite alteram in collo reticulumque ad naris sibi admouebat

tenuissimo lino minutis maculis plenum rosae

De fato tal como fora o costume dos reis da Bitiacutenia ele era conduzido em

uma liteira levada por oito homens na qual havia uma almofada transluacutecida

de Malta repleta de rosas ele mesmo tinha uma coroa na cabeccedila outra no

pescoccedilo e aproximava ao seu nariz um saquinho de linho finiacutessimo de

malhas diminutas cheio de rosas

Ciacutecero no Pro Fonteio usou de todos os recursos retoacutericos para rebaixar a

queixa dos gauleses Como Gruen (2011a p 147) lembra sobre Ciacutecero o orador

133

Utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles

Lettres p 16

75

romano natildeo poupou acusaccedilotildees para desqualificar as testemunhas gaulesas sobretudo o

liacuteder Indutiomaro nesse processo Ciacutecero levou a difamaccedilatildeo a um niacutevel mais grave ao

dizer que o mais distinto dos gauleses natildeo poderia ser comparado ao pior dos romanos

Aind n s p l vr s de Gruen (2011 p 147) ― s is notorious the same Allobroges

whom Cicero defames as faithless witnesses here he employs only a few years later as

trustworthy witnesses against the Catilinarians and they were generously rewarded for

their testimony by the Senate (Cic Cat 3 4 5) 134

Durante a conspiraccedilatildeo de Catilina

por volta do ano 63 aC um grupo dos aloacutebroges estava em Roma para queixar-se ao

senado contra os desmandos de Luacutecio Murena entatildeo governador da proviacutencia da Gaacutelia

Narbonense Lecircntulo aliado de Catilina entrou em contato com os aloacutebroges para fazer

uma alianccedila em troca do apoio romano os aloacutebroges cederiam tropas para Catilina Os

aloacutebroges se aconselharam com o senador Quinto Faacutebio Sanga que imediatamente

contou tudo a Ciacutecero Ciacutecero aconselhou os aloacutebroges junto a um certo Tito Voltuacutercio

a fingirem o tratado com os conspiradores e conseguiu provas da conjuraccedilatildeo apoacutes a

prisatildeo dos envolvidos o senado decretou accedilotildees de graccedilas pelo ocorrido135

Assim

Ciacutecero descreveu esses acontecimentos (Cat III IV 5) ―() maximeque quod meo

nomine supplicationem decrevistis qui honos togato habitus ante me est nemini

postremo hesterno die praemia legatis Allobrogum Titoque Volturcio dedistis

amplissima (Princip lmente voacutes decret stes ccedilotildees de gr ccedil s em meu nome honr que

antes de mim nunca fora concedida a ningueacutem trajando toga por fim ontem voacutes

concedestes vastiacutessimas recompensas aos legados dos aloacutebroges e a Tito Voltuacutercio)

Quanto aos gauleses as suas representaccedilotildees durante o periacuteodo final da

Repuacuteblica romana eram complexas refletindo reaccedilotildees mistas de curiosidade

desconfianccedila e admiraccedilatildeo que gregos e romanos tinham em relaccedilatildeo a eles ndash como nos

relatos de Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Ceacutesar (GRUEN 2011a p 146) Eacute significativo que

embora Ciacutecero tenha se referido aos gauleses de forma tatildeo preconceituosa no Pro

Fonteio ndash e tenha sido ajudado pelos mesmos aloacutebroges para desbaratar a conjuraccedilatildeo de

Catilina ndash ele na verdade teve relaccedilotildees de amizade com Diviciacuteaco um eminente druida

134

―Como eacute notoacuterio os mesmos loacutebroges que qui Ciacutecero dif mou como testemunh s natildeo confiaacuteveis

apenas alguns anos depois ele as empregou como testemunhas confiaacuteveis contra os catilinaacuterios e eles

foram generosamente recompensados pelo senado por causa do seu testemunho (Cic Cat 4 5 4 10) 135

Todas as informaccedilotildees sobre o falso pacto entre aloacutebroges e os conspiradores aliados de Catilina foram

retiradas do prefaacutecio de Pinho agrave sua traduccedilatildeo das Catilinaacuterias (CIacuteCERO 1990 p 21 e 22)

76

que eacute mencionado na obra De diuinatione (Sobre a adivinhaccedilatildeo)136

Diviciacuteaco foi

retratado como um amante dos estudos e capaz de predizer o futuro com uma

combinaccedilatildeo de auguacuterios e conjecturas (GRUEN 2011a p 146) Ciacutecero assim escreveu

sobre o druida (De Diuinatione I 90)

Eaque diuinationum ratio ne in barbaris quidem gentibus neglecta est

siquidem et in Gallia Druidae sunt e quibus ipse Diuitiacum Haeduum

hospitem tuum laudatoremque cognoui qui et naturae rationem quam

physiologiam Graeci appellant notam esse sibi profitebatur et partim

auguriis partim coniectura quae essent futura dicebat ()

Esse interesse por adivinhaccedilotildees natildeo foi indiferente sequer aos povos

baacuterbaros visto que ateacute mesmo na Gaacutelia existem os druidas dentre os quais eu

mesmo conheci o eacuteduo Diviciacuteaco teu hoacutespede e admirador o qual afirmava

ter compreensatildeo da natureza ndash que os gregos chamam de fisiologia ndash

conhecida por ele em parte atraveacutes de auguacuterios em parte atraveacutes de

conjectur s que nunci v m o que seri o futuro (hellip)

1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina

Ciacutecero preocupou-se em trazer para Roma natildeo soacute a filosofia e a retoacuterica grega

mas tambeacutem a historiografia Natildeo pretendemos aprofundar muito nesse aspecto apenas

falar de forma introdutoacuteria sobre a concepccedilatildeo de histoacuteria ciceroniana jaacute que isso serviraacute

de influecircncia para os autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio Andreacute e Hus (1974 p

15) consideram que antes de Ciacutecero natildeo existia em Roma o gecircnero literaacuterio histoacuteria

Antes dele existia apenas a histoacuteria poeacutetica ndash nas epopeias de Neacutevio e Ecircnio a narrativa

analiacutetica e o comentaacuterio

Ciacutecero aleacutem de poliacutetico e orador de sucesso tambeacutem foi o primeiro romano de

que temos notiacutecia a teorizar sobre a ciecircncia de se escrever histoacuteria tema que abordou

sobretudo em suas obras De oratore (Do orador) (especialmente no livro II entre os

capiacutetulos 51 e 64) e Orator (O orador) Destacamos o seguinte trecho (De Or II 36)

Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra uitae

nuntia vetustatis qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur

De fato a Histoacuteria que eacute testemunha dos tempos luz da verdade vida da

memoacuteria mestra da vida mensageira da antiguidade ndash atraveacutes de qual outra

voz que natildeo a do orador eacute transformada em imortalidade

136

Segundo Ceacutesar (BGall I 31) o gaulecircs Diviciacuteaco irmatildeo de Dumnorige e chefe dos eacuteduos viera a

Roma para requerer auxiacutelio ao Senado contra os seacutequanos e contra Ariovisto rei dos germanos que

invadira o seu territoacuterio Provavelmente foi nessa ocasiatildeo que Ciacutecero pode conhececirc-lo em 61 aC

77

Ciacutecero considerava que o dever de se escrever histoacuteria deveria ser assumido

pelo orador pois apenas ele teria conhecimento capacidade teacutecnica e refinamento

retoacuterico para compor esse tipo de obra O proacuteprio termo orador tinha concepccedilotildees

muacuteltiplas para Ciacutecero Orador no sentido estrito era o homem que sabe falar bem em

puacuteblico graccedilas a seus dons naturais e ao estudo da retoacuterica Para Ciacutecero o orador

tambeacutem seria o perfil ideal do escritor jaacute que a retoacuterica tambeacutem servia bem agrave escrita

ele tambeacutem era o homem de estado jaacute que a palavra era por excelecircncia o meio de

governar (MARTIN GAILLARD 1981 p 114-115) Daiacute Ciacutecero centrar o orador no

papel de escritor da histoacuteria137

Andreacute e Hus (1974 p 16) lembram

Il faut notamment distinguer les textes ougrave il p rle de llsquoantiquitas des rerum

gestarum monumenta etc de ceux ougrave figure le mot historia Les premiers

slsquo ppliquent ux con iss nces historiques neacutecess ires agrave llsquoor teur et agrave

llsquohomme dlsquoEt t les seconds u genre litteacuter ire dont l composition est

revendiqueacutee pour llsquoorator-eacutecrivain138

A ideia de Ciacutecero era a de que o orador deveria ter um vasto conhecimento da

cultura geral aleacutem de conhecer a dialeacutetica a filosofia a retoacuterica o direito civil e a

histoacuteria (De Or I 201) A histoacuteria entatildeo seria a base de conhecimento do passado

fundamental para o orador ter conhecimento do presente bem como o meio privilegiado

pelo qual o homem pode aperfeiccediloar sua conduta e se situar no mundo A filosofia

tambeacutem teria esse papel Ciacutecero contudo acreditava que a histoacuteria seria mais efetiva do

que a filosofia jaacute que no contexto latino os romanos eram mais sensiacuteveis aos exempla

do que agraves palavras que resultavam do pensamento especulativo139

Aleacutem disso uma

obra de cunho histoacuterico requereria menos trabalho para ser escrita do que uma obra

filosoacutefica Como Brunt (1993 p 196 e 197) ress lt ―both l w nd philosophy were

recognized as hard disciplines only to be mastered by prolonged application By

contrast the collation or investigation of historical evidence though time-consuming

137

Para maior discussatildeo sobre esse tema bem como maior aprofundamento recomendamos o capiacutetulo

―Cicero nd Historiogr phy (in BRUNT 1993) Sobre os trechos em que Ciacutecero fez ess s firm ccedilotildees

cf De oratore I18 e I159 138

―Deve-se especialmente distinguir os textos onde ele usa os termos antiquitas rerum gestarum

monumenta etc dos que trazem o termo historia Os primeiros se aplicam aos conhecimentos histoacutericos

necessaacuterios ao orador e ao homem de Estado o segundo ao gecircnero literaacuterio cuja composiccedilatildeo eacute

reivindic d pelo or dor escritor 139

Cf Pro Archia sect14-16

78

required no technic l prep r tion 140

Por conseguinte assim temos no Orador (cap

120)

Cognoscat etiam rerum gestarum et memoriae ueteris ordinem maxime

scilicet nostrae ciuitatis sed etiam imperiosorum populorum et regum

inlustrium quem laborem nobis Attici nostri leuauit labor qui conseruatis

notatisque temporibus nihil cum inlustre praetermitteret annorum

septingentorum memoriam uno libro conligauit Nescire autem quid ante

quam natus sis acciderit id est semper esse puerum () Commemoratio

autem antiquitatis exemplorumque prolatio summa cum delectatione et

auctoritatem orationi adfert et fidem

Conheccedila tambeacutem a sucessatildeo dos fatos acontecidos e de memoacuteria antiga

evidentemente a histoacuteria da nossa cidade e ainda a dos povos poderosos e

dos reinos ilustres o trabalho do nosso Aacutetico nos poupou o esforccedilo pois ele

reuniu em um uacutenico livro a memoacuteria de setecentos anos com as eacutepocas

preservadas e demarcadas sem se esquecer de nada importante De fato

desconhecer o que tenha acontecido antes de nascer eacute como permanecer

sempre crianccedila () A recordaccedilatildeo da antiguidade e a citaccedilatildeo de exemplos

como causa grande deleite tambeacutem confere ao discurso autoridade e

confianccedila

Pelo trecho acima vemos a importacircncia que a histoacuteria tem tanto como aspecto

cientiacutefico ndash com a memoacuteria dos feitos do passado de forma a instruir os cidadatildeos como

tambeacutem o aspecto literaacuterio que provoca prazer na audiecircncia Percebe-se tambeacutem que o

trabalho praacutetico de juntar informaccedilotildees embora dificultoso natildeo requeria grande

habilidade teacutecnica ndash Ciacutecero demonstra que Aacutetico fizera o trabalho por ele Aleacutem disso o

fato de um orador fazer histoacuteria levanta a profunda questatildeo das implicaccedilotildees poliacuteticas jaacute

que o proacuteprio orador dedicava-se agrave vida puacuteblica Dessa maneira para o orador o criteacuterio

da composiccedilatildeo historiograacutefica natildeo eacute mais a uacutenica preocupaccedilatildeo em narrar os eventos que

aconteceram mas sim escolher esses eventos e manipulaacute-los (ateacute mesmo distorcendo-

os) com o uacutenico propoacutesito de convencer a audiecircncia de algum ponto de vista

(FORNARA 1983 p 170) Por conseguinte eacute a necessidade da situaccedilatildeo que

condiciona a escrita da obra e pelos exemplos supracitados do Pro Fonteio foi

exatamente isso que Ciacutecero fez ao retratar os gauleses como os tiacutepicos vilotildees com a

finalidade de absolver Fonteio

Para Ciacutecero a filosofia e a histoacuteria eram mateacuterias importantes contudo cada

uma tinha um enfoque diferente A filosofia ao tratar de temas e conceitos abstratos

visava a provocar uma reflexatildeo subjetiva no puacuteblico-alvo A histoacuteria na concepccedilatildeo

140

―T nto o direito qu nto filosofi er m reconhecidos como disciplin s dur s que pen s seri m

dominadas atraveacutes de longa dedicaccedilatildeo Por contraste a verificaccedilatildeo ou investigaccedilatildeo de evidecircncia histoacuterica

apesar de consumir tempo natildeo requereria preparaccedilatildeo teacutecnic

79

ciceroniana tinha um objetivo concreto de ser fonte de exemplos praacuteticos para guiar a

conduta dos cidadatildeos em situaccedilotildees parecidas com as narradas nas obras historiograacuteficas

(ANDREacute HUS 1974 p 18) Esse conceito da histoacuteria natildeo eacute inovaccedilatildeo de Ciacutecero de

fato Aristoacuteteles (Retoacuterica 1360a) tambeacutem destacou o caraacuteter uacutetil da histoacuteria que era

escrita sobre as accedilotildees dos homens de modo a fornecer exemplos de como agir frente a

problemas ou situaccedilotildees semelhantes aos narrados em tal gecircnero Apesar da grande

importacircncia que Ciacutecero deu ao papel da histoacuteria ele mesmo natildeo escreveu nenhuma obra

histoacuterica jaacute que preferiu compor tratados filosoacuteficos141

Dessa maneira Ciacutecero

concentrou-se mais em escrever sobre a teoria da historiografia suas consideraccedilotildees a

respeito das implicaccedilotildees teoacutericas desse ramo do conhecimento foram ineacuteditas

influenciando autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio (PEREIRA 1993 p 139)

Ciacutecero considerava que a histoacuteria deveria ser escrita de maneira veriacutedica e

imparcial levando-se em conta a ordem cronoloacutegica dos fatos bem como enunciar suas

causas e consequecircncias Aleacutem disso o historiador teria que fazer a descriccedilatildeo dos locais

a biografia das personalidades importantes seguindo essa tradiccedilatildeo da cronologia dos

eventos (De Or II 62 a 64) O orador tambeacutem deveria ter cuidado com o estilo e o

aspecto formal da composiccedilatildeo e a obra deveria ser agradaacutevel de ser lida (PEREIRA

1993 p 139) Destacamos aqui as palavras de Andreacute e Hus (1974 p 22) a esse

respeito

( ) llsquohistoire doit ecirctre composeacutee d ns le loisir et l seacutereacuteniteacute Aux ntipodes

de la veacuteheacutemence judiciaire mais proche du calme des sophistes laquoqui ne son

pas faits pour le comb traquo il est le style dlsquoun genre litteacuter ire de c binet

produit non de llsquoorator- voc t m is de llsquoorator-eacutecrivain qui se penche

sereinement sur les vicissitudes hum ines en slsquo id nt de son expeacuterience

dlsquohomme dlsquoEacutet t 142

Ciacutecero defendia a concepccedilatildeo da histoacuteria como historia ornata ou histoacuteria

ornada que eacute escrita de forma bela com o compromisso da verdade Daiacute tem-se a

exigecircncia da qualidade do estilo ndash em se tratando de Ciacutecero um estilo abundante sem

desacordos sem paixatildeo mas que evidenciava as belezas da histoacuteria (MARTIN

GAILLARD 1981 p 115) Ciacutecero tambeacutem ressaltava natildeo soacute o caraacuteter pragmaacutetico da

141

De fato Ciacutecero chegou a escrever comentaacuterios sobre o seu consulado em 63 aC O orador romano

chegou a pedir a Posidocircnio que usasse esse material para escrever uma obra historiograacutefica ao que o

historiador e filoacutesofo grego recusou (cf p 64) 142

―( ) histoacuteri deve ser escrit no l zer e n serenid de Aos romp ntes d veemecircnci judiciaacuteri m s

proacuteximo da calma dos sofistas laquoque natildeo satildeo feitos para o combateraquo esse eacute o estilo de gecircnero literaacuterio de

escritoacuterio produzido natildeo pelo orador advogado mas pelo orador escritor que aborda serenamente as

vicissitudes hum n s com o uxiacutelio de su experiecircnci de homem de Est do

80

histoacuteria mas tambeacutem a sua importacircncia quanto ao seu papel moral de modo a fornecer

exemplos de virtude para as geraccedilotildees vindouras Aleacutem disso Ciacutecero preferia que a

histoacuteria que lhe era contemporacircnea servisse de material aos autores pois as histoacuterias dos

tempos passados estavam envolvidas em brumas contraditoacuterias e na sua eacutepoca havia

muitos exemplos de acontecimentos e fatos que tiveram importacircncia capital para Roma

(MARTIN GAILLARD 1981 p 115) Sobre essa concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero

pode-se comparaacute-la com duas obras de capital importacircncia na literatura latina que

representam esse ideal as monografias de Saluacutestio por abordarem temas

contemporacircneos ou receacutem acontecidos mas de estilo breve que recusava a abundacircncia

oratoacuteria e Tito Liacutevio que praticava o estilo ornado e de frases amplas tal como

preconizava Ciacutecero mas que por outro lado adotava a metodologia de composiccedilatildeo em

anais e cuja amplitude com contornos traacutegicos era ateacute mesmo criticada pelo orador

(MARTIN GAILLARD 1981 p 115)143

133 ndash Diodoro Siacuteculo

Desde Poliacutebio no seacuteculo II aC os romanos jaacute dispunham de tratados e relatos

etnograacuteficos sobre os celtas Foi no seacuteculo I aC contudo que Roma conquistou os

povos da Europa ocidental (celtas hispanos e iberos) de forma definitiva consolidando

seu domiacutenio e ampliando cada vez mais seu territoacuterio Desse periacuteodo entre os seacuteculos I

aC e I dC temos mais dois autores gregos que se destacaram ao escreverem sobre os

celtas Diodoro Siacuteculo e Estrabatildeo

Diodoro Siacuteculo nasceu provavelmente em 90 aC em Agirium hoje Agira na

Siciacutelia daiacute o cognome Siacuteculo Foi contemporacircneo de Ceacutesar e sua morte teria sido em 30

aC144

Diodoro Siacuteculo com sua Biblioteca (ou Bibliotheca historica) eacute uma fonte

importante tanto por sua tentativa de superar Eacuteforo ao colocar todas as civilizaccedilotildees em

destaque na sua obra historiograacutefica e natildeo soacute a Greacutecia quanto por tentar cobrir o

periacuteodo desde as origens da criaccedilatildeo ateacute o ano de 59 aC (quando Ceacutesar obteve seu

primeiro consulado) Por essa abordagem abrangente sua obra eacute considerada universal

A catalogaccedilatildeo de autores e obras estava na moda na Roma do seacuteculo I aC Diodoro

influenciado pelo periacuteodo que passou em Alexandria compocircs sua Biblioteca com base

143

Abordaremos Tito Liacutevio e sua obra de forma mais aprofundada no capiacutetulo 3 deste trabalho 144

Para essa pequena biografia de Diodoro Siacuteculo tomamos como referecircncia a introduccedilatildeo escrita por

Alasagrave (DIODORO DE SICILIA 2001 p 8-9)

81

em uma grande coleccedilatildeo com vaacuterias citaccedilotildees de outros historiadores sem nomear

necessariamente toda fonte que empregou em sua obra (SACKS 1990 p 77) Diodoro

dessa forma fez uma sucessatildeo de resumos dos trabalhos e obras de outros autores

muito deles hoje perdidos o que justificava o tiacutetulo de seu livro Biblioteca (MURRAY

In BOARDMAN et al 1986 p 201) Diodoro de fato era mais um intelectual curioso

que compilou textos de caraacuteter etnograacutefico geograacutefico mitoloacutegico historiograacutefico

dentre outros ramos do saber para refletir a cultura no acircmbito da tradiccedilatildeo greco-

latina145

A longa obra de Diodoro seria composta de quarenta livros dos quais temos

apenas os livros I-V e XI-XX do restante temos apenas fragmentos146

Diodoro se interessou de forma significativa pela etnografia celta dedicando

sete capiacutetulos de sua obra a esse povo (Biblioteca V 26 a 32) Ele descreveu o clima da

regiatildeo geografia recursos naturais aleacutem de aspectos culturais dos gauleses como

vestuaacuterio haacutebitos crenccedilas etc Assim como outros autores jaacute citados Diodoro tambeacutem

relacionou o clima de uma regiatildeo com o tipo fiacutesico e sauacutede do povo que a habitava

(VASALY 1993 p 147) Diodoro dessa forma escreveu (Bib III 34 8) δηόπεξ ηῆο

δηαθνξο ηῆο ηλ ἀέξσλ ἐλ ὀιίγῳ δηαζηήκαηη κεγάιεο νὔζεο νὐδὲλ παξάδνμνλ θαὶ ηὴλ

δίαηηαλ θαὶ ηνὺο βίνπο ἔηη δὲ ηὰ ζώκαηα πνιὺ δηαιιάηηεηλ ηλ παξ᾽ ἡκῖλ (―por tanto

siendo grande la diferencia de climas en poco intervalo no es nada asombroso que no

soacutelo la dieta sino tambieacuten los modos de vida e incluso los cuerpos cambien mucho de

los nuestros )147

Como Gruen (2011 p 143) lembr sobre ess obr ―Comments re

generally bland and descriptive But they give a sense of the impressions of Gauls that

circulated among Greek writers contempor neous with C es r 148

Assim como Poliacutebio

Diodoro tambeacutem mencionou a grande estatura dos gauleses (V 28 1) νἱ δὲ Γαιάηαη

ηνῖο κὲλ ζώκαζίλ εἰζηλ εὐκήθεηο ηαῖο δὲ ζαξμὶ θάζπγξνη θαὶ ιεπθνί ηαῖο δὲ θόκαηο νὐ

κόλνλ ἐθ θύζεσο μαλζνί ἀιιὰ θαὶ δηὰ ηῆο θαηαζθεπῆο ἐπηηεδεύνπζηλ αὔμεηλ ηὴλ

θπζηθὴλ ηῆο ρξόαο ἰδηόηεηα (―Los g los tienen un consider ble est tur muacutesculos

145

Citaccedilatildeo tambeacutem retirada da introduccedilatildeo de Alasagrave citada acima (2001 p 10) 146

Informaccedilatildeo retirada do prefaacutecio de Oldfather da sua traduccedilatildeo de Diodorus of Sicily (1952 v1 p XV) 147

―Port nto sendo gr nde diferenccedil de clim s em pouco interv lo natildeo eacute n d ssombroso que natildeo soacute

diet m s t mbeacutem os modos de vid e inclusive os corpos sej m tatildeo diferentes dos nossos (DIODORO

DE SICIacuteLIA 2001 p 470) 148

―Os comentaacuterios satildeo ger lmente br ndos e descritivos Eles contudo datildeo uma percepccedilatildeo das

impressotildees dos g uleses que circul v m entre os escritores gregos contemporacircneos de Ceacutes r

82

flaacutecidos piel blanca cabellos rubios no soacutelo por naturaleza sino tambieacuten porque por

medios artificiales se dedican a acentuar su propio color n tur l )149

No geral Diodoro narrou sobre os costumes dos gauleses de forma mais

imparcial do que preconceituosa ou criacutetica com vaacuterias curiosidades e diferenccedilas de

costumes (GRUEN 2011a p 145) Destacamos aqui uma passagem em que Diodoro

compara um costume gaulecircs ndash o de oferecer os melhores cortes de carne aos homens

mais bravos ndash a alguns versos da Iliacuteada Lecirc-se em Biblioteca V 28 4

δεηπλνῦζη δὲ θαζήκελνη πάληεο νὐθ ἐπὶ ζξόλσλ ἀιι᾽ ἐπὶ ηῆο γῆο

ὑπνζηξώκαζη ρξώκελνη ιύθσλ ἢ θπλλ δέξκαζη δηαθνλνῦληαη δ᾽ ὑπὸ ηλ

λεσηάησλ παίδσλ ἐρόλησλ ἡιηθίαλ ἀξξέλσλ ηε θαὶ ζειεηλ πιεζίνλ δ᾽

αὐηλ ἐζράξαη θεῖληαη γέκνπζαη ππξὸο θαὶ ιέβεηαο ἔρνπζαη θαὶ ὀβεινὺο

πιήξεηο θξελ ὁινκεξλ ηνὺο δ᾽ ἀγαζνὺο ἄλδξαο ηαῖο θαιιίζηαηο ηλ

θξελ κνίξαηο γεξαίξνπζη θαζάπεξ θαὶ ὁ πνηεηὴο ηὸλ Αἴαληα παξεηζάγεη

ηηκώκελνλ ὑπὸ ηλ ἀξηζηέσλ ὅηε πξὸο Ἕθηνξα κνλνκαρήζαο

ἐλίθεζελώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξε

Todos comen sentados no en asientos sino en el suelo utilizando como

almohadas pieles de lobos o de perros De servir en las comidas se ocupan los

maacutes joacutevenes tanto los varones como las hembras que tienen la edad

adecuada Cerca de ellos hay chimeneas llenas de fuego con calderas y

asadores repletos de piezas enteras de carne Recompensan a los hombres

valerosos daacutendoles los mejores trozos de carne de la misma manera que

ocurre cuando el poeta presenta a Ayante honrado por los jefes una vez que

resultoacute vencedor en el combate singular con Heacutector recompensoacute a Ayante

con el ancho lomo (grifo do tradutor) 150

O verso da passagem acima colocado em itaacutelico pelo tradutor Esbarranch

refere-se ao canto VII da Iliacuteada Diodoro mencionou os seguintes versos de Homero em

sua comparaccedilatildeo com o haacutebito dos gauleses (Iliacuteada VII v 319 a 322)

αὐηὰξ ἐπεὶ παύζαλην πόλνπ ηεηύθνληό ηε δαῖηα

δαίλπλη᾽ νὐδέ ηη ζπκὸο ἐδεύεην δαηηὸο ἐΐζεο

λώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξελ

ἥξσο Ἀηξεΐδεο εὐξὺ θξείσλ Ἀγακέκλσλ

Quando puseram termo ao esforccedilo de preparar o jantar

comeram e nada lhes faltou naquele festim compartilhado

A Aacutejax honrou com o lombo contiacutenuo do boi

149

―Os g uleses tecircm um est tur consideraacutevel muacutesculos flaacutecidos pele branca cabelos ruivos natildeo soacute por

n turez m s t mbeacutem porque por meios rtifici is se dedic m centu r su proacutepri cor n tur l Esse

trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Esbarranch para a obra de Diodoro (2004 p 270 e 271) 150

―Todos comem sentados natildeo em assentos mas no chatildeo utilizando como almofadas peles de lobos ou

catildees Os mais jovens se ocupam de servir a comida tanto os rapazes quanto as moccedilas que tenham a idade

adequada Perto deles haacute lareiras cheias de fogo com caldeiras e grelhas repletas de peccedilas inteiras de

carne Recompensam os homens dando-lhes os melhores nacos de carne da mesma maneira que acontece

quando o poeta presenteia Aacutejax honrado por seus chefes uma vez que ele saiu vencedor do combate

individual com Heitor recompensou Aacutejax com o lombo do boi (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 270)

83

o heroacutei filho de Atreu Agameacutemnon de vasto poder151

Os banquetes eram uma importante caracteriacutestica em sociedades indoeuropeias

como os celtas e os proacuteprios gregos e serviam para estreitar os laccedilos entre os membros

desses grupos sobretudo dos liacutederes para com os guerreiros152

Diodoro em sua

descriccedilatildeo etnograacutefica dos celtas os descreveu natildeo soacute como sendo corajosos e fortes

mas tambeacutem possuidores de erudiccedilatildeo ndash representada na figura dos bardos e dos druidas

chamados por Diodoro de filoacutesofos e tambeacutem dos adivinhos (vates) que realizavam

sacrifiacutecios humanos Assim ele narrou (Biblioteca V 31 2 a 4)

εἰζὶ δὲ παξ᾽ αὐηνῖο θαὶ πνηεηαὶ κειλ νὓο βάξδνπο ὀλνκάδνπζηλ νὗηνη δὲ

κεη᾽ ὀξγάλσλ ηαῖο ιύξαηο ὁκνίσλ ᾄδνληεο νὓο κὲλ ὑκλνῦζηλ νὓο δὲ

βιαζθεκνῦζη θηιόζνθνί ηέ ηηλέο εἰζη θαὶ ζενιόγνη πεξηηηο ηηκώκελνη νὓο

δξνπίδαο ὀλνκάδνπζη ρξληαη δὲ θαὶ κάληεζηλ ἀπνδνρῆο κεγάιεο ἀμηνῦληεο

αὐηνύο νὗηνη δὲ δηά ηε ηῆο νἰσλνζθνπίαο θαὶ δηὰ ηῆο ηλ ἱεξείσλ ζπζίαο ηὰ

κέιινληα πξνιέγνπζη θαὶ πλ ηὸ πιῆζνο ἔρνπζηλ ὑπήθννλ κάιηζηα δ᾽ ὅηαλ

πεξί ηηλσλ κεγάισλ ἐπηζθέπησληαη παξάδνμνλ θαὶ ἄπηζηνλ ἔρνπζη λόκηκνλ

ἄλζξσπνλ γὰξ θαηαζπείζαληεο ηύπηνπζη καραίξᾳ θαηὰ ηὸλ ὑπὲξ ηὸ

δηάθξαγκα ηόπνλ θαὶ πεζόληνο ηνῦ πιεγέληνο ἐθ ηῆο πηώζεσο θαὶ ηνῦ

ζπαξαγκνῦ ηλ κειλ ἔηη δὲ ηῆο ηνῦ αἵκαηνο ῥύζεσο ηὸ κέιινλ λννῦζη

παιαηᾶ ηηλη θαὶ πνιπρξνλίῳ παξαηεξήζεη πεξὶ ηνύησλ πεπηζηεπθόηεο ἔζνο δ᾽

αὐηνῖο ἐζηη κεδέλα ζπζίαλ πνηεῖλ ἄλεπ θηινζόθνπ δηὰ γὰξ ηλ ἐκπείξσλ ηῆο

ζείαο θύζεσο ὡζπεξεί ηηλσλ ὁκνθώλσλ ηὰ ραξηζηήξηα ηνῖο ζενῖο θαζη δεῖλ

πξνζθέξεηλ θαὶ δηὰ ηνύησλ νἴνληαη δεῖλ ηἀγαζὰ αἰηεῖζζαη

Entre ellos se encuentran asimismo poetas liacutericos que ellos llaman bardos

Estos poetas cantan con el acompantildeamiento de instrumentos semejantes a la

lira celebran a unos personajes e infaman a otros Tambieacuten hay unos

filoacutesofos y teoacutelogos que son objeto de honores extraordinarios y reciben el

nombre de druidas Los galos asimismo recurren a adivinos a los que

consideran merecedores de gran reconocimiento estos adivinos predicen el

futuro mediante la observacioacuten del vuelo de los paacutejaros y el sacrificio de las

viacutectimas y todo el pueblo estaacute atento a sus dictados Observan una costumbre

extrantildea e increiacuteble sobre todo cuando deben indagar respecto a algunos

asuntos de importancia en estos casos en efecto ofrecen en sacrificio la vida

de un hombre al que apuntildealan con una daga en un lugar situado encima del

diafragma y cuando cae el hombre acuchillado a partir de la observacioacuten de

la caiacuteda de la convulsioacuten de los miembros y tambieacuten de la efusioacuten de la

sangre los adivinos comprenden el futuro fieles a una antigua praacutectica de

observacioacuten de estos hechos usada durante muchos antildeos Es costumbre entre

los galos no realizar ninguacuten sacrificio sin la presencia de un filoacutesofo dicen

en efecto que es preciso ofrecer sacrificios de agradecimiento a los dioses

por medio de personas expertas en la naturaleza divina que hablen por

151

Novamente usamos a traduccedilatildeo feita por Lourenccedilo 152

Destaca-se no Brasil o professor Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo por sua pesquisa sobre os banquetes em

Homero com vaacuterias publicaccedilotildees e palestras proferidas sobre esse tema Dentre as suas publicaccedilotildees mais

recentes a esse respeito destacamos ASSUNCcedilAtildeO T R O banquete e as narrativas na Odisseia

Romanitas v 2 p 100-115 2013 _____________ Boa comida em banquetes como razatildeo para arriscar a

vida o discurso de Sarpeacutedon a Glauco (Iliacuteada XII 310-328) Nuntius Antiquus v 1 p 1-17 2008

_________ Os banquetes transgressivos dos pretendentes na Odisseacuteia In Martinho Marcos (Org) 1deg

Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo Humanitas 2006 p 35-56

84

decirlo asiacute la misma lengua de los dioses por medio de estos hombres

piensan que ha de pedirse el favor divino153

Gruen (2011a p 144) lembra que a praacutetica do sacrifiacutecio humano por parte dos

gauleses natildeo eacute mencionada por Poliacutebio Esse tema acima narrado por Diodoro

impressionou o autor grego Embora considere os sacrifiacutecios como sendo costume

estranho e incriacutevel Diodoro de forma alguma ofendeu os gauleses ou seus haacutebitos em

sua descriccedilatildeo

134 ndash Estrabatildeo

Estrabatildeo nasceu em Amaacutesia no Ponto por volta de 63 aC e viajou por vaacuterias

regiotildees da Aacutesia Menor da Itaacutelia e do Egito Historiador ele escreveu uma obra

histoacuterica hoje perdida a partir do ponto em que Poliacutebio parou Como geoacutegrafo compocircs

um tratado universal em dezessete livros que foram preservados conhecidos como

Geografia A data de sua morte eacute desconhecida tendo ocorrido certamente depois do

ano 23 dC jaacute que Estrabatildeo citou em sua obra o rei Juba II que faleceu nesse ano154

Como afirma Hartog (2014 p 243) ―esse quadro geograacutefico do mundo

habitado escrito por um grego da Aacutesia acostumado com a corte em Roma pretende ser

declaradamente uma geografia poliacutetica sobretudo para uso dos governantes destinada a

dar conta do estado do mundo ( ) Esse c raacuteter univers list er comum os escritores

do periacuteodo heleniacutestico como jaacute vimos em Poliacutebio e depois com Diodoro Siacuteculo

Estrabatildeo usou Posidocircnio como fonte dentre outros autores Segundo Momigliano

153―Entre eles t mbeacutem se encontr m poet s liacutericos que eles ch m m de b rdos Esses poetas cantam com

acompanhamento de instrumentos semelhantes agrave lira celebram uns personagens e difamam outros

Tambeacutem haacute alguns filoacutesofos e teoacutelogos que satildeo objeto de honras extraordinaacuterias e que recebem o nome de

druidas Os galos tambeacutem recorrem a adivinhos aos quais consideram merecedores de grande

reconhecimento esses adivinhos predizem o futuro mediante a observaccedilatildeo do voo dos paacutessaros e o

sacrifiacutecio das viacutetimas e todo o povo estaacute atento aos seus ditos Observam um costume estranho e incriacutevel

sobretudo quando devem perguntar a respeito de alguns assuntos de importacircncia nesses casos de fato

oferecem como sacrifiacutecio a vida de um homem que apunhalam com uma adaga em um lugar situado

acima do diafragma e quando o homem esfaqueado cai a partir da observaccedilatildeo da queda da convulsatildeo

dos membros e tambeacutem da efusatildeo de sangue os adivinhos compreendem o futuro fieacuteis a uma antiga

praacutetica de observaccedilatildeo desses feitos durante muitos anos Eacute tambeacutem costume entre os gauleses natildeo realizar

nenhum sacrifiacutecio sem a presenccedila de um filoacutesofo dizem de fato que eacute preciso oferecer sacrifiacutecios de

agradecimento aos deuses por meio de pessoas peritas na natureza divina e que falem por assim dizer a

mesma liacutengua dos deuses por meio desses homens eles pensam que haacute de se pedir o favorecimento

divino (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 275e 276) 154

Usamos como referecircncia bibliograacutefica para esse resumo da vida de Estrabatildeo a introduccedilatildeo do livro de

ESTRABOacuteN (1991 p 7 a 13)

85

(1991 p 66) ele ―est v inteir do d s muitas fontes da eacutepoca de Ceacutesar e Augusto e ateacute

cita os commentarii de Ceacutes r

Se os gregos e posteriormente os romanos consideravam habitar o centro do

mundo o que estava localizado nas esferas mais distantes causava estranhamento e era

considerado diferente (VASALY 1993 p 136) Nas palavras do proacuteprio Estrabatildeo

(Geografia I 2 29) ἄιισο ηε ηλ παξ᾽ ἑθάζηνηο ἰδίσλ ηαῦη᾽ ἐζηὶ γλσξηκώηαηα ἃ θαὶ

παξαδνμίαλ ἔρεη ηηλά θαὶ ἐλ ηῶ θαλεξῶ πζίλ ἐζηη (―Por lo demaacutes de l s

peculiaridades de cada pueblo son con mucho las maacutes llamativas aquellas que producen

cierta sorpresa y son a todos evidentes) 155

Embora as grandes diferenccedilas entre povos

fossem as mais notadas pelos gregos e romanos para Estrabatildeo as particularidades de

cada gente eram mais resultado de circunstacircncias culturais econocircmicas e geograacuteficas do

que devido a traccedilos natos de um povo (VASALY 1993 p 148) Da mesma forma que

Poliacutebio e Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo (IV 4 2) tambeacutem citou o recorrente toacutepos de

representaccedilatildeo do gaulecircs como sendo alto e forte dizendo ηῆο δὲ βίαο ηὸ κὲλ ἐθ ηλ

ζσκάησλ ἐζηὶ κεγάισλ ὄλησλ ηὸ δ᾽ ἐθ ηνῦ πιήζνπο (―Su fuerz procede t nto de su

elev d est tur como de su gr n nuacutemero )156

Assim como Diodoro Estrabatildeo evitou fazer julgamentos de valor ou criacuteticas em

relaccedilatildeo aos haacutebitos dos gauleses contentando-se apenas em narrar seus costumes

culturais (GRUEN 2011a p 145) A uacutenica passagem que Estrabatildeo se referiu a um

costume gaulecircs como sendo baacuterbaro e exoacutetico foi ao descrever o modo como os

gauleses guardavam as cabeccedilas dos inimigos na entrada de suas casas ndash ao que ele citou

diretamente Posidocircnio157

Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) tambeacutem falou da praacutetica celta

de sacrificar humanos

ηὰο δὲ ηλ ἐλδόμσλ θεθαιὰο θεδξνῦληεο ἐπεδείθλπνλ ηνῖο μέλνηο θαὶ νὐδὲ

πξὸο ἰζνζηάζηνλ ρξπζὸλ ἀπνιπηξνῦλ ἠμίνπλ θαὶ ηνύησλ δ᾽ ἔπαπζαλ αὐηνὺο

Ῥσκαῖνη θαὶ ηλ θαηὰ ηὰο ζπζίαο θαὶ καληείαο ὑπελαληίσλ ηνῖο παξ᾽ ἡκῖλ

λνκίκνηο ἄλζξσπνλ γὰξ θαηεζπεηζκέλνλ παίζαληεο εἰο ληνλ καραίξᾳ

ἐκαληεύνλην ἐθ ηνῦ ζθαδαζκνῦ ἔζπνλ δὲ νὐθ ἄλεπ δξπτδλ θαὶ ἄιια δὲ

ἀλζξσπνζπζηλ εἴδε ιέγεηαη θαὶ γὰξ θαηεηόμεπόλ ηηλαο θαὶ ἀλεζηαύξνπλ ἐλ

ηνῖο ἱεξνῖο θαὶ θαηαζθεπάζαληεο θνινζζὸλ ρόξηνπ θαὶ μύισλ ἐκβαιόληεο

εἰο ηνῦηνλ βνζθήκαηα θαὶ ζεξία παληνῖα θαὶ ἀλζξώπνπο ὡινθαύηνπλ

Muestran a los extranjeros las cabezas de los enemigos famosos

embalsamadas con aceite de cedro y ni siquiera a cambio de su peso en oro

155

―Aleacutem disso d s peculi rid des de c d povo satildeo muito m is signific tiv s quel s que produzem

certa surpresa e satildeo evidentes todos Tr duccedilatildeo de R moacuten e Bl nco (in ESTRABOacuteN 1991 p 301) 156

―Su forccedil procede t nto de su elev d est tur como de seu gr nde nuacutemero Utiliz mos qui

traduccedilatildeo de Meana e Pintildeero (in ESTRABOacuteN 1992 p 178) 157

Jaacute mencionamos essa passagem no subcapiacutetulo referente a Posidocircnio conferir p 65 e 66

86

se avienen a devolverlas Los romanos les hicieron terminar con esas

praacutecticas y con las referentes a los sacrificios y a la adivinacioacuten que eran

contrarias a nuestros usos Golpeaban por ejemplo en la espalda con una

espada a un hombre elegido ritualmente como viacutectima y practicaban la

adivinacioacuten a partir de sus convulsiones No sacrificaban sin embargo jamaacutes

sin la presencia de un druida He oiacutedo hablar tambieacuten de otras formas de

sacrificios humanos como por ejemplo la praacutectica de matar a flechazos a

algunos o la de crucificarlos en los templos o la de fabricar un enorme

muntildeeco de paja y madera en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos

de todo tipo y hombres y hacer con eacutel un holocausto158

Quanto a essa praacutetica celta de guardar as cabeccedilas dos inimigos Estrabatildeo

mencionou Posidocircnio dizendo que esse haacutebito a princiacutepio chocante depois foi aceito

com tranquilidade pelo autor grego Vasaly (1993 p 148) a respeito desses haacutebitos

selvagens dos estrangeiros e da sua condiccedilatildeo de baacuterbaro tambeacutem ressalta

Although it is true that Strabo often has recourse to stereotypical descriptions

of ethnic groups ndash the Iberians for example are dour and malicious the

Celts passionate and fickle and the Western barbarians in general are cruel ndash

he implies that the passage from savagery to civilization may be made by all

This passage is initiated through contact with Greco-Roman city-states and

leads in places where geography has been suitable to the creation of stable

agriculture private property law and the ultimate sign of civilized life large

urban centers Where land was not suitable for settled agriculture however

the inhabitants were apparently doomed to a life of savagery159

Sobre descriccedilatildeo de Estr batildeo ―de f bric r un enorme muntildeeco de p j y m der

en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos de todo tipo y hombres y hacer

con eacutel un holoc usto como mencion do cim ele cert mente retirou esse f to de

Ceacutesar que assim disse (De bello Gallico VI 16)

() pro uita hominis nisi hominis uita reddatur non posse deorum

immortalium numen placari arbitrantur publiceque eiusdem generis habent

158

―Eles mostr m os estr ngeiros s c beccedil s dos inimigos f mosos emb ls m d s com oacuteleo de cedro e

nem sequer em troca do seu peso de ouro cogitam devolvecirc-las Os romanos os fizeram terminar com essas

praacuteticas e com as praacuteticas referentes aos sacrifiacutecios e a adivinhaccedilatildeo que eram contraacuterios aos nossos usos

Golpeavam por exemplo nas costas com uma espada a um homem escolhido ritualmente como viacutetima e

praticavam a adivinhaccedilatildeo a partir de suas convulsotildees Natildeo sacrificavam jamais poreacutem sem a presenccedila de

um druida Ouvi falar tambeacutem de outras formas de sacrifiacutecios humanos como por exemplo a praacutetica de

matar a flechas a alguns ou de crucificaacute-los nos templos ou de fabricar um enorme boneco de palha e

madeira no qual enfiavam algumas cabeccedilas de gado bichos de todo o tipo e homens e fazer com ele um

holoc usto (ESTRABOacuteN 1992 p 181 e 182) 159

―Apes r de ser verd de que Estr batildeo ger lmente recorreu descriccedilotildees estereotip d s de grupos eacutetnicos

- os ibeacuterios por exemplo satildeo severos e maliciosos os celtas passionais e inconstantes e os baacuterbaros

ocidentais em geral satildeo crueacuteis ndash ele daacute a entender que a passagem da selvageria para a civilizaccedilatildeo pode

ser feita por todos Essa passagem se inicia atraveacutes do contato com cidades-Estado greco-romanas e leva

em locais onde a geografia eacute propiacutecia agrave criaccedilatildeo de agricultura estaacutevel propriedade privada direito e ao

uacuteltimo sinal da vida civilizada grandes centros urbanos Onde a terra natildeo era propiacutecia para o

estabelecimento da agricultura poreacutem os habitantes eram aparentemente condenados a uma vida de

selv geri

87

instituta sacrificia Alii immani magnitudine simulacra habent quorum

contexta uiminibus membra uiuis hominibus complent quibus succensis

circumuenti flamma exanimantur homines

() na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com a vida de outro

homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo pode ser aplacado

e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente instituiacutedos Outros

possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros entrelaccedilados com

vimes preenchem de homens vivos incendiados esses membros morrem os

homens envoltos pelas chamas160

Gruen tambeacutem lembra que as imagens dos gauleses como altos e fortes aleacutem de

belicosos eram bastante recorrentes nos escritos etnograacuteficos mais antigos como jaacute

citamos em Poliacutebio etc o que eacute mais significativo de nota seria o interesse dos gauleses

pela educaccedilatildeo e literatura um ponto que aparece tanto em Diodoro quanto em Estrabatildeo

(GRUEN 2011a p 146) Poliacutebio por sua vez natildeo se interessou em abordar a cultura

poeacutetica ou filosoacutefica dos celtas de fato ele estava mais interessado no caraacuteter militar e

guerreiro desse povo e como ele se opunha aos romanos Sobre a educaccedilatildeo dos gauleses

e o papel de Marselha como centro de instruccedilatildeo Estrabatildeo disse (IV 1 5)

ἐμεκεξνπκέλσλ δ᾽ ἀεὶ ηλ ὑπεξθεηκέλσλ βαξβάξσλ θαὶ ἀληὶ ηνῦ πνιεκεῖλ

ηεηξακκέλσλ ἤδε πξὸο πνιηηείαο θαὶ γεσξγίαο δηὰ ηὴλ ηλ Ῥσκαίσλ

ἐπηθξάηεηαλ νὐδ᾽ αὐηνῖο ἔηη ηνύηνηο ζπκβαίλνη ἂλ πεξὶ ηὰ ιερζέληα ηνζαύηε

ζπνπδή δεινῖ δὲ ηὰ θαζεζηεθόηα λπλί πάληεο γὰξ νἱ ραξίεληεο πξὸο ηὸ

ιέγεηλ ηξέπνληαη θαὶ θηινζνθεῖλ ὥζζ᾽ ἡ πόιηο κηθξὸλ κὲλ πξόηεξνλ ηνῖο

βαξβάξνηο ἀλεῖην παηδεπηήξηνλ θαὶ θηιέιιελαο θαηεζθεύαδε ηνὺο Γαιάηαο

ὥζηε θαὶ ηὰ ζπκβόιαηα ἑιιεληζηὶ γξάθεηλ ἐλ δὲ ηῶ παξόληη θαὶ ηνὺο

γλσξηκσηάηνπο Ῥσκαίσλ πέπεηθελ ἀληὶ ηῆο εἰο Ἀζήλαο ἀπνδεκίαο ἐθεῖζε

θνηηλ θηινκαζεῖο ὄληαο

Y como por influencia de los romanos los baacuterbaros del interior se iban

civilizando y apartando de la guerra concentraacutendose en ocupaciones urbanas

y agriacutecolas tampoco ellos teniacutean ya por queacute poner demasiado empentildeo en las

actividades citadas como se ve por lo que ocurre hoy diacutea En efecto todos

los ciudadanos de posicioacuten desahogada se han dedicado a la oratoria y a la

filosofiacutea de forma que hasta no hace mucho su ciudad ha servido como

escuela para los baacuterbaros convirtiendo a los galos en filohelenos de tal modo

que los contratos se redactan en griego Actualmente Masalia ha persuadido

a los romanos maacutes ilustres que desean instruirse para que vengan a estudiar

aquiacute en lugar de hacer el viaje a Atenas161

160

Sherwin-White sobre esse tema escreveu um capiacutetulo inteiro ―The Northern Barbarians in Strabo

and Caesar (1967 p 1-32) 161

―E como por influecircnci dos rom nos os baacuterb ros do interior i m se civiliz ndo e se f st ndo d

guerra concentrando-se em ocupaccedilotildees urbanas e agriacutecolas tampouco eles tinham que por demasiado

empenho nas atividades citadas como se vecirc pelo que ocorre hoje em dia De fato todos os cidadatildeos de

posiccedilatildeo elevada se dedicaram agrave oratoacuteria e agrave filosofia de forma que ateacute haacute pouco sua cidade serviu como

escola para os baacuterbaros convertendo os galos em filo-helenos jaacute que os contratos satildeo redigidos em grego

Atualmente Marselha persuadiu os romanos mais ilustres que desejam se instruir para que venham

estud r qui o inveacutes de f zer vi gem teacute Aten s (ESTRABOacuteN 1992 p 151)

88

Com Estrabatildeo encerram-se os relatos de autores gregos sobre os gauleses ndash ao

menos eacute o que podemos entender a partir das fontes que nos chegaram Jaacute no seacuteculo I

aC toda a Europa ocidental tinha sido conquistada pelos romanos que passaram a ter

contato direto com outros povos Assim ao inveacutes de gregos escrevendo etnografia e

narrativas sobre outras naccedilotildees vimos surgir em autores latinos obras desse contexto

De fato com Ceacutesar temos o maior expoente romano que tratou da figura do

gaulecircs Quanto aos historiadores latinos do periacuteodo de governo de Otaacutevio Augusto o

mesmo Estrabatildeo (III 4 19) escreveu que os romanos apenas imitavam os autores

gregos quanto aos tratados etnograacuteficos

νἱ δὲ ηλ Ῥσκαίσλ ζπγγξαθεῖο κηκνῦληαη κὲλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιι᾽ νὐθ ἐπὶ

πνιύ θαὶ γὰξ ἃ ιέγνπζη παξὰ ηλ Ἑιιήλσλ κεηαθέξνπζηλ ἐμ ἑαπηλ δ᾽ νὐ

πνιὺ κὲλ πξνζθέξνληαη ηὸ θηιείδεκνλ ὥζζ᾽ ὁπόηαλ ἔιιεηςηο γέλεηαη παξ᾽

ἐθείλσλ νὐθ ἔζηη πνιὺ ηὸ ἀλαπιεξνύκελνλ ὑπὸ ηλ ἑηέξσλ ἄιισο ηε θαὶ

ηλ ὀλνκάησλ ὅζα ἐλδνμόηαηα ηλ πιείζησλ ὄλησλ Ἑιιεληθλ

Los historiadores romanos imitan a los griegos pero no llevan muy lejos su

imitacioacuten pues lo que dicen lo traducen de los griegos sin aportar de siacute una

gran avidez de conocimientos de forma que cada vez que hay un vaciacuteo de

informacioacuten por parte de aqueacutellos no es mucho lo que completan los otros y

ocurre esto especialmente en la cuestioacuten de los nombres maacutes conocidos que

son griegos en su mayoriacutea162

A partir do seacuteculo I dC tambeacutem natildeo haacute mais relatos de autores gregos e

romanos a respeito dos gauleses se de fato existiram esses textos se perderam ao longo

do tempo Sobre narrativas etnograacuteficas em geral apenas no final do seacuteculo I dC

teremos novos textos em contexto latino com Pliacutenio o Velho cuja Historia naturalis

possui trechos de cunho etnograacutefico e tambeacutem a sua obra hoje perdida sobre os

germanos Taacutecito contemporacircneo de Pliacutenio o Velho com base no texto perdido desse

uacuteltimo dedicou um livro inteiro a um povo estrangeiro ndash a Germania ndash que se tornou o

maior exemplo de obra etnograacutefica essencialmente latina

162

―Os histori dores rom nos imit m os gregos m s natildeo lev m muito longe su imit ccedilatildeo pois o que

dizem o traduzem dos gregos sem fornecer por si uma grande avidez de conhecimentos de forma que

cada vez que haacute um vazio de informaccedilatildeo por parte daqueles natildeo eacute muito que completam os outros e

ocorre isso especialmente na questatildeo dos nomes mais conhecidos que satildeo gregos em su m iori

(ESTRABOacuteN 1992 p 112)

89

Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia

No contexto do nosso tema de pesquisa enfocamos nosso trabalho nos escritos

de Juacutelio Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho Concentramos nos autores do seacuteculo I aC

a II dC sobretudo porque esse foi um periacuteodo de grandes conquistas e de grandes

transformaccedilotildees no seio da sociedade romana Antes poreacutem de aprofundar sobre esses

autores e suas respectivas obras faz-se necessaacuterio realizar algumas consideraccedilotildees sobre

o contexto histoacuterico em que se deu a expansatildeo imperialista de Roma Sobre o proacuteprio

termo imperialismo destacamos aqui a consideraccedilatildeo feita por Guarinello (2014 p 118)

Primeiro uma distinccedilatildeo Impeacuterio e imperialismo satildeo termos proacuteximos mas

se referem na verdade a realidades bem distintas Imperialismo eacute uma accedilatildeo

poliacutetica ou econocircmica de expansatildeo ou dominaccedilatildeo de um estado sobre outros

Impeacuterio eacute um estado por vezes o resultado da accedilatildeo imperialista mas que natildeo

se confunde com esta No mundo antigo ao contraacuterio do mundo

contemporacircneo podemos acompanhar na longa duraccedilatildeo a transformaccedilatildeo de

uma accedilatildeo imperialista em um grande Impeacuterio163

Dessa forma neste capiacutetulo nos concentraremos nas conquistas imperialistas

empreendidas por Roma especialmente entre o seacuteculo I aC e I dC que depois iratildeo

culminar com a origem do principado ndash o governo imperial que se inicia com Otaacutevio

na segunda metade do seacuteculo I aC164

21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC

Como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho desde o seacuteculo III aC Roma

jaacute tinha conquistado vaacuterios territoacuterios comeccedilando pela proacutepria peniacutensula Itaacutelica e depois

avanccedilando para a Europa Ocidental o norte da Aacutefrica e o Oriente proacuteximo Quando da

conquista da Peniacutensula Itaacutelica as cidades eram aliadas de Roma natildeo pagavam tributos e

apenas forneciam homens para ajudar a aumentar as legiotildees Por volta de 90 aC essas

cidades ndash que buscavam maior participaccedilatildeo nos despojos de guerra que aumentaram

consideravelmente com as recentes batalhas no Oriente ndash se rebelaram contra Roma

Natildeo deixa de ser curioso ainda notar que as cidades italianas tambeacutem exigiam a

163

Para discussatildeo mais aprofundada sobre imperialismo na Antiguidade e questotildees metodoloacutegicas

relacionadas a esse tema recomendamos Nicolet (2011 p 883 e ss) 164

Sobre o contexto de surgimento do principado abordaremos mais sobre esse assunto no proacuteximo

capiacutetulo

90

cidadania romana Essa revolta resultou na Guerra Social ou Guerra dos Soacutecios (91 a 87

aC) e de acordo com Guarinello (2014 p 291) ―os li dos represent r m m ior

ameaccedila domeacutestica agrave hegemonia romana em seacuteculos A Itaacutelia se tornou o palco de

grandes batalhas entre os que h vi m sido teacute entatildeo sold dos de um mesmo exeacutercito

Depois desse atrito ndash que natildeo teve um vencedor definido mas na verdade resultou em

um acordo ndash todas as cidades ao sul do rio Poacute (que entatildeo era o limite do territoacuterio

itaacutelico) receberam a cidadania o que levou agrave unificaccedilatildeo poliacutetica da peniacutensula jaacute em uma

fase avanccedilada da histoacuteria romana Essa junccedilatildeo das cidades itaacutelicas com Roma

consolidou ainda mais o aspecto imperialista da urbe os soacutecios isentos de tributos

contribuiacuteam com os proacuteprios homens para os exeacutercitos de Roma e tambeacutem partilhavam

do butim de guerra Dessa maneira a expansatildeo romana tendo por base essa grande

alianccedila entre cidades envolveu vaacuterios interesses comuns dos povos das planiacutecies contra

os montanheses dos habitantes da Itaacutelia contra os gauleses de gregos e etruscos contra

Cartago das aristocracias da Itaacutelia central contra as plebes urbanas e rurais

(GUARINELLO 2014 p 126)

Entrementes apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica Roma ocupou a Siciacutelia

definitivamente em 241 aC a ilha tornou-se a primeira proviacutencia romana como tal o

territoacuterio conquistado era explorado como butim de guerra e forccedilado a pagar taxas a

Roma Como Guarinello lembra (2014 p 284) ―A exp nsatildeo subsequente f voreceri s

elites que disputavam o comando das guerras e o prestiacutegio e riquezas que obtinham

com elas bem como os camponeses meacutedios que formavam o grosso do exeacutercito

itaacutelico

211 ndash O exeacutercito romano

Roma teve a formaccedilatildeo de um exeacutercito a partir do seacuteculo VI aC e ao longo do

tempo as suas fileiras ficaram cada vez maiores e com teacutecnicas militares mais eficazes ndash

sendo um dos fatores para o aumento do exeacutercito o proacuteprio recrutamento de tropas entre

as cidades aliadas de Roma como abordamos no subitem anterior Desde seu princiacutepio

o exeacutercito romano era composto sobretudo pelos cidadatildeos da urbe Com a

consolidaccedilatildeo de Roma na Peniacutensula Itaacutelica aumentou-se a participaccedilatildeo dos aliados

(soacutecios) Grande parte do sucesso de Roma se deveu a uma organizaccedilatildeo militar uacutenica a

legiatildeo que surgiu no seacuteculo V aC Cada legiatildeo era composta por cerca de 4 a 6 mil

homens divididos em centuacuterias (cem soldados) e maniacutepulos (duas centuacuterias) Como

91

Schmidt (2004 p 20) ressalta essa hierarquia permitiu ao exeacutercito romano uma grande

flexibilidade de movimentaccedilotildees taacuteticas aleacutem disso as legiotildees eram acompanhadas pela

cavalaria responsaacutevel pela proteccedilatildeo das tropas e tambeacutem por ajudar a semear o pacircnico

entre os inimigos De toda forma essas tropas natildeo eram permanentes em sua maior

parte os soldados eram na verdade camponeses que depois das batalhas eram

dispensados do dever militar O exeacutercito ateacute o seacuteculo I aC era formado pela cavalaria

ndash composta pelos cidadatildeos de elite que podiam arcar com os elevados custos de se

manter um cavalo e pela infantaria formada pelos camponeses a ocupaccedilatildeo militar era

obrigatoacuteria O sucesso das legiotildees romanas estava principalmente na sua sofisticaccedilatildeo

com o emprego de maacutequinas de guerra elaboradas e versaacuteteis taacuteticas beacutelicas

Durante os seacuteculos derradeiros do periacuteodo republicano Roma conquistou vastos

territoacuterios acumulando grandes riquezas O sistema poliacutetico republicano natildeo se

sustentava mais nos novos moldes do imenso territoacuterio multicultural Esses vaacuterios ecircxitos

militares acentuaram profundas dissensotildees no seio de Roma Os constantes

recrutamentos dos cidadatildeos romanos enfraqueceram a populaccedilatildeo e a desigualdade

social aumentou bastante Os veteranos tendo deixado o exeacutercito exigiam distribuiccedilatildeo

de terras e do lucro obtido com os saques mas a oligarquia senatorial nada fazia de

relevante para recompensar os soldados que ajudaram na expansatildeo do domiacutenio romano

(GUARINELLO 2014 p 290-291)

Dessa forma as tropas comeccedilaram a obedecer mais agrave autoridade dos generais ndash

jaacute que eles passaram a distribuir o butim de guerra entre suas legiotildees ndash do que ao

proacuteprio Senado A relaccedilatildeo dos soldados com seus superiores criou uma ligaccedilatildeo

poderosa de troca de vantagens os legionaacuterios conseguiam compensaccedilatildeo financeira por

seus serviccedilos militares e os chefes dispunham da fidelidade de suas tropas atraveacutes das

quais tinham respaldo para concretizar suas ambiccedilotildees poliacuteticas (GUARINELLO 2014

p 113-114) Esse processo comeccedilou a se formar a partir da segunda Guerra Puacutenica jaacute

que aumentou a necessidade de comandos prolongados com duradouro contato direto

entre os liacutederes e as proacuteprias tropas e tambeacutem desses com as populaccedilotildees e elites locais

que em alguns casos tornaram-se clientes desses generais Esses liacutederes carismaacuteticos

como Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e outros que surgiram depois como Maacuterio Sila Pompeu

e Ceacutesar levaram a um reforccedilo das lideranccedilas pessoais que abriu portas para

concentraccedilatildeo de poder poliacutetico nas figuras dos generais (OLIVEIRA in BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 258 e 259) Esse processo se acentuou sobretudo depois da

reforma militar de Maacuterio em 107 aC os soldados passaram a ser alistados como

92

voluntaacuterios e a exigecircncia de se possuir bens para participar do exeacutercito foi abolida165

Aleacutem disso foi nessa reforma que ficou estabelecida a legiatildeo composta por 6 mil

homens sendo cada legiatildeo designada por um nuacutemero e uma aacuteguia Com o recrutamento

contiacutenuo entre os cidadatildeos as fileiras do exeacutercito mantinham-se constantemente estaacuteveis

(BORNECQUE MORNET 2002 p 115)166

Os legionaacuterios viam uma boa chance de

melhorar de vida atraveacutes do dever militar graccedilas agraves pilhagens e presentes por parte dos

generais e tambeacutem por conseguirem uma porccedilatildeo de terra quando eram dispensados por

conseguinte a carreira militar tornou-se de fato uma profissatildeo (GUARINELLO 2014

p 128) As tropas que outrora respondiam ao comando do Senado transformaram-se

em verdadeiros exeacutercitos particulares dos grandes generais Isso dentre outros fatores ndash

como as transformaccedilotildees soacutecio-econocircmicas o empobrecimento da Itaacutelia (cada vez mais

dependente das proviacutencias) e as mudanccedilas culturais e de costumes ndash levou agraves crises

poliacuteticas que culminaram no fim da Repuacuteblica e no surgimento do poder centralizado na

figura de um uacutenico indiviacuteduo167

212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista

Durante a Repuacuteblica ateacute meados do seacuteculo II aC a diplomacia romana era

baseada em princiacutepios religiosos e morais que norteavam a convivecircncia de Roma com

os outros povos Esses princiacutepios implicavam uma relaccedilatildeo reciacuteproca na qual os

vencedores deveriam ser clementes protetores e moderados para com os vencidos

(MENDES 1988 p 46) Evidentemente essas relaccedilotildees embora reciacuteprocas natildeo eram

igualitaacuterias como Veyne (in GIARDINA 1992 p 296) afirma

() o povo romano eacute um povo-rei as suas relaccedilotildees com os suacuteditos ou com os

estrangeiros satildeo um patrocinium natildeo satildeo relaccedilotildees com parceiros iguais

165

Como destaca Gabba (1977 p 52) ateacute entatildeo tanto para gregos quanto para romanos era forte a

crenccedila de que aos cidadatildeos pobres natildeo deveria ser permitido o alistamento militar jaacute que a elite temia

armar uma populaccedilatildeo que poderia se revoltar contra ela Em Roma com a inovadora mudanccedila feita por

Maacuterio no exeacutercito os mais pobres passaram a ser aceitos (inclusive natildeo cidadatildeos) e eles passaram a se

identificar com a causa imperialista romana mais que uma questatildeo de patriotismo servir ao exeacutercito

tornou-se um meio de conseguir ganhos financeiros e ateacute a cidadania 166

Para estudo profundo sobre o exeacutercito romano bem como sua evoluccedilatildeo desde a Roma arcaica ateacute o

periacuteodo de Justiniano recomendamos o livro de Erdkamp (2007) 167

Natildeo iremos nos aprofundar sobre os detalhes de fatos histoacutericos que levaram ao fim da Repuacuteblica

romana jaacute que eles foram muitos e de natureza cultural poliacutetica e social Para maior estudo sobre o tema

do final da Repuacuteblica romana e as grandes mudanccedilas sociais e poliacuteticas que ocorreram recomendamos

para uma leitura inicial Boardman et al (1986) e Mendes (1988) Sobre uma bibliografia mais recente e

que aborda a historiografia de forma mais detalhada destacamos as obras de Guarinello (2014) e Brandatildeo

e Oliveira (2015 v 1)

93

segundo regras formais mas relaccedilotildees pessoais desiguais e informais natildeo se

atribui uma norma a um rei os suacuteditos devem entregar-se com confianccedila agrave

sua boa-feacute e agrave sua humanidade

Dessa forma esse tipo de relacionamento entre romanos e naccedilotildees vencidas

aproximava-se da clientela fundamental no relacionamento entre os membros da

sociedade romana168

Todavia ao inveacutes da correlaccedilatildeo de confianccedila da esfera privada ndash

isto eacute da boa feacute que o cidadatildeo romano tinha para com seu cliente ndash temos essa

correlaccedilatildeo na esfera puacuteblica que implicava na boa feacute do Estado para com o

conquistado O cliente seja ele um indiviacuteduo ou um povo deveria ser leal ao seu

patrono caso contraacuterio ele deveria ser duramente punido por sua insubordinaccedilatildeo De

acordo com Veyne (in GIARDINA 1992 p 295) nesse periacuteodo republicano a

justificativa ideoloacutegica para o domiacutenio romano natildeo se baseava em uma noccedilatildeo de que

eles eram de uma civilizaccedilatildeo superior agraves outras mas sim o direito de comandar se

justificava pelo proacuteprio sucesso militar de Roma e sobretudo a honestidade com a qual

a urbe exercia esse controle que deveria ser feito com moderaccedilatildeo169

Por conseguinte

os romanos natildeo travavam guerras para impor a sua religiatildeo cultura ou liacutengua desde que

os povos e naccedilotildees clientes aceitassem o domiacutenio eles poderiam manter suas proacuteprias

instituiccedilotildees poliacuteticas liacutengua e cultura (LE BOHEC 2009 p 30)170

Segundo Mendes

(1988 p 46) sobre a postura de Roma para com os seus os aliados com o tempo

passou a ser reforccedilada a noccedilatildeo de uma guerra justa fundamentada na justificativa

juriacutedica da accedilatildeo militar romana em defesa dos seus soacutecios e reinos aliados171

Como o

168

Desde tempos arcaicos existia em Roma a clientela Agraves famiacutelias patriacutecias ligavam-se os clientes que

eram homens livres que participavam do culto familiar mas natildeo possuiacuteam direitos poliacuteticos O cliente era

protegido pelo pater familias (patrono) que era a autoridade suprema no contexto domeacutestico o cliente

poderia adotar o nome gentiacutelico e ser sepultado no tuacutemulo da gens (espeacutecie de clatilde) Por sua vez ele devia

completa obediecircncia a seu patrono o qual poderia dispor de seus bens A clientela era hereditaacuteria e a

partir do regime imperial cada vez mais cidadatildeos ricos acumulavam uma larga clientela de pobres

miseraacuteveis que recebiam auxiacutelio financeiro Famiacutelias eminentes chegavam a possuir comunidades

inteiras como clientes Para esse pequeno resumo sobre a clientela tomamos por referecircncia Bornecque e

Mornet (2002 p 84) 169

Cf o famoso trecho de Virgiacutelio na nota 121 p 64 e 65 170

Falaremos sobre esse tema de forma mais detalhada no subcapiacutetulo 221 (algumas consideraccedilotildees

sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental) 171

H rris (1979) questionou esse ―dever dos rom nos de serem imperi list s por questotildees de

sobrevivecircncia ou de proteccedilatildeo de si mesmos ou aliados O autor defendeu a teoria de que os romanos

foram imperialistas intencionalmente que todas as accedilotildees da oligarquia senatorial visavam aos ganhos

com butins terras e escravos e que essa elite sempre buscava confrontos para esse fim Sherwin-White

(1980) questionou essa ideia defendida por Harris afirmando que nem sempre os romanos foram

envolvidos em guerras com outros povos uacutenica e exclusivamente visando aos lucros da atividade

imperialista ndash agraves vezes os romanos travavam batalhas com fins de proteccedilatildeo um exemplo dentre os vaacuterios

citados por Sherwin-White foi o fato de terem acontecido poucas guerras na segunda metade do seacuteculo II

aC Concordamos que essa questatildeo deva ser analisada em um ponto de meio-termo natildeo considerando

que os romanos fizeram tudo de caso pensado para fins imperialistas mas tambeacutem de que essas

94

proacuteprio Poliacutebio escreveu (Hist I 3 10) ἀιι᾽ ἐθ ηνύησλ ηλ βύβισλ θαὶ ηῆο ἐλ ηαύηαηο

πξνθαηαζθεπῆο δῆινλ ᾖ ηνῖο ἐληπγράλνπζηλ ὅηη θαὶ ιίαλ εὐιόγνηο ἀθνξκαῖο

ρξεζάκελνη πξόο ηε ηὴλ ἐπίλνηαλ ὥξκεζαλ θαὶ πξὸο ηὴλ ζπληέιεηαλ ἐμίθνλην ηῆο ηλ

ὅισλ ἀξρῆο θαὶ δπλαζηείαο ―(hellip) los que usen estos dos libros y l introduccioacuten que

contienen veraacuten muy claro que los romanos se arrojaron a tales empresas con medios

sumamente razonables y que por ello lograron el imperio y el gobierno de todo el

mundo 172

Sobre esse ―direito de guerr n su obr De officiis (Sobre os deveres) Ciacutecero

assim escreveu (I 38)

Cum uero de imperio decertatur belloque quaeritur gloria causas omnino

subesse tamen oportet easdem quas dixi paulo ante iustas causas esse

bellorum Sed ea bella quibus imperii proposita gloria est minus acerbe

gerenda sunt Ut enim cum ciui aliter contendimus si est inimicus aliter si

competitor (cum altero certamen honoris et dignitatis est cum altero capitis

et famae) sic cum Celtiberis cum Cimbris bellum ut cum inimicis gerebatur

uter esset non uter imperaret cum Latinis Sabinis Samnitibus Poenis

Pyrrho de imperio dimicabatur

De fato como se combate pela supremacia e se busque a gloacuteria atraveacutes da

guerra entatildeo conveacutem inteiramente que essas causas as mesmas as quais

mencionei pouco antes sejam as causas justas das guerras Mas essas

guerras para as quais se realiza a gloacuteria da supremacia devem ser feitas da

forma menos cruel Com efeito quando rivalizamos com um cidadatildeo agimos

de uma maneira se eacute inimigo ou de outra se eacute concorrente (com o primeiro a

disputa eacute por sobrevivecircncia e gloacuteria com o segundo eacute por honra e prestiacutegio)

assim contra os celtiberos e os cimbros a guerra foi empreendida como

contra inimigos natildeo para que um dos dois lados vencesse mas sim para que

sobrevivesse contra os latinos sabinos samnitas puacutenicos e Pirro a guerra

foi travada por supremacia173

Ciacutecero ainda no De officiis escrito por ele no periacuteodo final da Repuacuteblica

ressaltou que os romanos p ss r m exercer m l o ―direito de guerr just Ele

criticou Ceacutesar natildeo pelas guerras gaulesas mas sim pela guerra civil Assim temos (De

officiis II 8)

conquist s natildeo for m pen s improvis d s Como Mendes (2007 p 28) dest c ― ccedilatildeo imperi list

romana manifestou-se atraveacutes do estabelecimento de uma relaccedilatildeo de poder obtida inicialmente por meio

de alianccedilas razoavelmente igualitaacuterias protetorados formaccedilatildeo de zonas de influecircncia e ateacute a submissatildeo

tot l pel guerr do dversaacuterio e nex ccedilatildeo de seu territoacuterio 172

―( ) queles que us m estes dois livros e introduccedilatildeo que contecircm veratildeo muito claro que os romanos

se lanccedilaram a tais empresas com meios extremamente razoaacuteveis e que por isso lograram o impeacuterio e o

governo de todo o mundo Ness p ss gem dentre outr s que podem ser encontr d s o longo d s

Histoacuterias Poliacutebio reforccedilou o direito de Roma governar o mundo justificando as accedilotildees imperialistas da

urbe como ―guerr just e ―destino de Rom M is um vez utiliz mos tr duccedilatildeo de Poliacutebio feita por

Recort (1981) 173

Saluacutestio tambeacutem afirmou algo parecido no final de sua obra Bellum Iugurthinum (capiacutetulo CXIV) ao

dizer que contra os gauleses a luta natildeo era por gloacuteria mas sim pela sobrevivecircncia de Roma

95

Verum tamen quam diu imperium populi Romani beneficiis tenebatur non

iniuriis bella ut pro sociis aut de imperio gerebantur exitus erant bellorum

aut mites aut necessarii regum populorum nationum portus erat et

refugium senatus nostri autem magistratus imperatoresque ex hac una re

maximam laudem capere studebant si prouincias si socios aequitate et fide

defendissent itaque illud patrocinium orbis terrae uerius quam imperium

poterat nominari Sensim hanc consuetudinem et disciplinam iam antea

minuebamus post uero Sullae uictoriam penitus amisimus desitum est enim

uideri quicquam in socios iniquum cum exstitisset in ciues tanta crudelitas

() Secutus est qui in causa impia uictoria etiam foediore non singulorum

ciuium bona publicaret sed uniuersas prouincias regionesque uno

calamitatis iure comprehenderet

Na verdade por muito tempo a soberania do povo romano foi mantida por

meio de benefiacutecios e natildeo por injusticcedilas de modo que as guerras eram

travadas a favor dos aliados ou sobre essa soberania os termos das guerras

eram ou indulgentes ou ao menos indispensaacuteveis e o senado era um porto e

refuacutegio dos reinos povos e naccedilotildees ora nossos magistrados e comandantes a

partir disso se esforccedilavam para alcanccedilar a mais alta honra uma vez que

defendessem as proviacutencias ou aliados com justiccedila e fidelidade assim isso

poderia mais justamente ser chamado de proteccedilatildeo do mundo todo do que

desmando Antes jaacute perdiacuteamos esse costume e princiacutepio de forma gradual

mas na verdade foi apoacutes a vitoacuteria de Sila que o abandonamos

completamente de fato natildeo eacute mais possiacutevel considerar algo de injusto contra

os aliados uma vez que passou a existir contra os proacuteprios cidadatildeos tamanha

crueldade () O que veio de depois de Sila com uma causa iacutempia natildeo soacute

confiscou os bens dos proacuteprios cidadatildeos com uma vitoacuteria vergonhosa mas

tambeacutem envolveu todas as proviacutencias e regiotildees em um soacute estado de

calamidade

No trecho acima Ciacutecero constatou que o fim da mentalidade do povo romano

como protetor dos aliados comeccedilou a partir de Sila que travou contra Maacuterio a primeira

guerra civil da histoacuteria romana e tornou-se ditador e governante absoluto174

Para

Ciacutecero essa ideologia acabou de fato a partir de Ceacutesar ndash o qual o orador designou como

o que ―veio depois de Sil gr nde criacutetic de Ciacutecero port nto consisti n f lt de

honestidade de Ceacutesar capaz de lutar contra seus proacuteprios concidadatildeos e aliados de

longa data demonstrando que pouco se importava com a legitimidade ou justiccedila de suas

accedilotildees

Como Ciacutecero mesmo afirmou acima a mentalidade da boa feacute do domiacutenio

romano foi mudando lentamente agrave medida que o territoacuterio conquistado crescia e

aumentava o nuacutemero de proviacutencias e naccedilotildees aliadas A ideia da missatildeo de Roma que se

considerava predestinada a formar um impeacuterio universal transformava-se pois a urbe

174

A ditadura consistia em uma magistratura extraordinaacuteria que substituiacutea o consulado e era dotada de

poderes excepcionais O Senado decidia quando se devia recorrer a um ditador sendo esse recurso usado

apenas em momentos de grande perigo ou gravidade para Roma O ditador escolhia o magister equitum

(mestre ou comandante da cavalaria) que era o seu braccedilo direito A ditatura tinha a duraccedilatildeo de seis

meses mas o ideal era que ela terminasse antes desse prazo No caso de Sila ele tornou-se ditador ao

vencer a guerra civil contra Maacuterio obtendo o controle total da Cidade atraveacutes do seu exeacutercito Para mais

detalhes sobre a ditadura em Roma cf Canfora (2002 p 486)

96

dependia cada vez mais dos recursos vindos de lugares exteriores agrave Itaacutelia Jaacute durante o

periacutedo final da Repuacuteblica eacute possiacutevel ver uma mudanccedila nos argumentos que apoiavam as

conquistas a noccedilatildeo de uma guerra preventiva passa a prevalecer jaacute que Roma natildeo

poderia ter como vizinho um povo ou estado militarmente forte que pudesse ameaccedilar

sua hegemonia (MENDES 1988 p 46)

Dessa maneira eacute possiacutevel notar que os romanos tambeacutem eram motivados a

conquistar outros territoacuterios por razotildees psicoloacutegicas o medo (metus) do outro

impulsionava essas guerras preventivas aleacutem da proacutepria noccedilatildeo de seguranccedila que natildeo

pode ser desconsiderada de fato caso fossem derrotados os perdedores sofreriam nas

matildeos dos vencedores (LE BOHEC 2009 p 30) Nas palavras de Riggsby (2006 p

21) um aspecto fundamental dessa ideologia imperialista de Roma era um territoacuterio

pacificado em seu interior frente ao perigoso exterior Destacamos como exemplo

desse processo o posicionamento de Roma a partir do seacuteculo III aC que buscava se

defender do asseacutedio de macedocircnicos e siacuterios (que almejavam expandir seus domiacutenios)

Houve vaacuterios conflitos que se iniciaram em 214 aC ndash quando comeccedilou a Primeira

Guerra dos romanos contra Felipe da Macedocircnia ndash tendo ainda combates entre romanos

e siacuterios entre 192 a 188 aC ateacute o periacuteodo entre 172 a 168 aC quando os romanos

venceram a Terceira Guerra da Macedocircnia Roma nesse momento ateacute entatildeo se portava

como a protetora de cidades gregas e pequenos Estados heleniacutesticos (MENDES 1988

p 46) esse protetorado regido por relaccedilotildees de obediecircncia e sujeiccedilatildeo a Roma acabou

fomentando vaacuterias revoltas dessas cidades Por conseguinte a urbe novamente optou

por guerras que levaram agrave criaccedilatildeo da proviacutencia da Macedocircnia (em 149 aC) a

destruiccedilatildeo de Corinto e a submissatildeo de toda a Greacutecia (146 aC) De acordo com

Mendes (1988 p 47) ―Rom p ssou ser gui d pel doutrin segundo qu l os reis

ou os povos livres independentes e amigos de Roma deviam esta situaccedilatildeo agrave vontade do

povo rom no Ess mud nccedil de ment lid de form d no seacuteculo III C no seacuteculo I

aC justificou a sede de conquista de Roma levando agraves grandes anexaccedilotildees de terras e

estabelecimento de novas proviacutencias

Outro fator que contribuiu bastante para a ampliaccedilatildeo do domiacutenio romano foi a

proacutepria ambiccedilatildeo dos grandes generais (sobretudo no periacuteodo final da Repuacuteblica) Como

destaca le Bohec (2009 p 29 e 30) para fazer carreira poliacutetica um aristocrata romano

devia servir agrave urbe tanto no campo civil quanto no militar demonstrando ser um bom

administrador e um bom general apresentando sua capacidade tanto na guerra quanto

na paz De fato em Roma as esferas poliacutetica e militar sempre estiveram juntas uma vez

97

que vaacuterias magistraturas possuiacuteam o imperium175

Assim por todos esses motivos acima

elencados Roma portanto ultrapassou os limites geograacuteficos da cidade e tornou-se de

fato todo o territoacuterio conquistado

213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana

Durante a expansatildeo da urbe grandes naccedilotildees como os puacutenicos gregos hispanos

e gauleses dentre outros sucumbiram ao poderio do exeacutercito romano Com as guerras

teve-se o aumento consideraacutevel da matildeo-de-obra escrava em Roma matildeo-de-obra essa

que trabalhava sobretudo nos grandes latifuacutendios mas tambeacutem nas cidades como

servos professores etc Como eram tratados esses povos conquistados em Roma Os

povos vencidos recebiam tratamento muito diversificado de acordo com sua posiccedilatildeo em

relaccedilatildeo aos romanos ao seu poderio se resistiram bravamente agrave conquista ou se

submeteram a ela pacificamente A elite dos povos que tranquilamente se aliavam

recebia a cidadania romana plena ou parcial176

Os que resistiam quando subjugados

tornavam-se escravos e as naccedilotildees rebeldes eram submetidas a pesados tributos e

impostos Sobre o meacutetodo de conquista romana Guarinello (2014 p 112-113) afirma

A expansatildeo da estado-cidade de Roma sobre as peniacutensula criaraacute novos

problemas A expansatildeo romana foi na verdade a de uma alianccedila de estados-

cidades todas contribuindo para o esforccedilo militar e todas pleiteando e

obtendo em graus diferentes e em momentos distintos participaccedilatildeo na

cidadania romana direito a matrimocircnio direito ao comeacutercio e por fim direito

agrave participaccedilatildeo poliacutetica Comparando-se a cidadania romana com seus

congecircneres gregos estaacute sempre foi de certo modo mais aberta os proacuteprios

escravos ao adquirirem a liberdade por alforria tornavam-se cidadatildeos Por

outro lado no curso de sua expansatildeo pela peniacutensula Roma fundou cerca de

quarenta outras cidades cujos habitantes preservaram em graus diferentes

seu direito agrave cidadania romana Aleacutem disso no territoacuterio das cidades

conquistadas Roma assentou parte de sua populaccedilatildeo mais pobre ora como

colonos ora como proprietaacuterios individuais de modo que no curso do seacuteculo

III aC Roma tendia a desterritorializar a noccedilatildeo da cidadania ampliando-a

para os habitantes das colocircnias e ao menos para aselites das cidades

conquistadas Aos poucos Roma deixa de ser uma estado-cidade tiacutepica e se

torna um Estado imperial

Roma surgida de uma uniatildeo de povos sabia conviver com as diferenccedilas e

engenhosamente adotava essa estrateacutegia de concessatildeo da cidadania sendo essa taacutetica

175

Possuiacuteam o imperium os cocircnsules pretores prococircnsules propretores ditador e comandante da

cavalaria O imperium consistia no direito de comando superior militar e jurisdicional aleacutem de entre

outras prerrogativas o direito de recrutar e comandar o exeacutercito convocar o povo para comiacutecios etc 176

Mendes (2007) detalha mais as maneiras como as elites das naccedilotildees conquistadas cooperavam com

Roma bem como as diferenccedilas legais entre os estatutos das proviacutencias e cidades sob o domiacutenio romano

98

eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar possiacuteveis aliados Ao se conceder

cidadania agraves naccedilotildees derrotadas e manter as elites locais no poder Roma adotava uma

postura muito oposta da que os gregos tinham em relaccedilatildeo aos povos subjugados como

pode-se ler no trecho acima Nas cidades-Estado helecircnicas os povos vencidos eram

obrigados a fornecer somente dinheiro para o eraacuterio enquanto que Roma aleacutem de

impostos exigia fornecimento de tropas estreitando os viacutenculos entre conquistadores e

conquistados Outro estatuto que o estrangeiro poderia obter em Atenas seria o de

meteco177

Quanto aos estrangeiros em Esparta eles eram reduzidos agraves categorias de

hilotas ou escravos178

Ao se comparar o modo com que estrangeiros eram tratados em

Roma em Atenas e em Esparta percebe-se que Roma sempre foi de certo modo mais

aberta a esses forasteiros pois ateacute mesmo escravos tornavam-se cidadatildeos ao receberem

a alforria de seus proprietaacuterios (GUARINELLO 2014 p 112) Como Veyne ressalta

(In GIARDINA 1992 P 300) ―Os rom nos satildeo uns empiacutericos que natildeo se comport m

como ideoacutelogos convictos naturalizam o estrangeiro e o liberto mais facilmente do que

os gregos que se mantinham fieacuteis os seus princiacutepios restritos Tod vi em rel ccedilatildeo

aos devedores e insubordinados Roma mantinha uma postura extremamente rigorosa

Esse tipo de dominaccedilatildeo por parte de Roma ineacutedito ateacute entatildeo mostrava-se eficaz para

conter possiacuteveis revoltas ou alianccedilas entre os inimigos da Cidade Roma desde a sua

origem jaacute tinha a presenccedila muito forte do estrangeiro que depois foi assimilado e

incorporado agrave cultura latina179

Esse raacutepido crescimento de Roma se deveu a inuacutemeros

fatores como a capacidade de integraccedilatildeo e acolhimento de outras naccedilotildees (inclusive

pobres fugitivos escravos) raacutepido aumento demograacutefico (pela guerra ao conseguir

coaptar aliados e derrotar os inimigos) e por fim pela capacidade em se absorver

177

Os estrangeiros que se estabeleciam na Aacutetica conhecidos como metecos gozavam de um estatuto

melhor do que os hilotas espartanos Embora tambeacutem natildeo gozassem de direitos na cidade pagavam uma

taxa e deviam ter como responsaacutevel um cidadatildeo ateniense Entretanto os metecos participavam da vida

puacuteblica da cidade prestavam serviccedilo militar assistiam agraves festas religiosas Em virtude de trabalhos

prestados poderiam obter a igualdade de direitos (JARDEacute 1977 p 170) 178

Os hilotas eram servos subordinados em Esparta Junto suas famiacutelias moravam em terras que

pertenciam a um cidadatildeo espartano e eram obrigados a cultivaacute-las geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo Os hilotas natildeo

podiam ser expulsos dessa terra e pagavam ao proprietaacuterio uma taxa anual fixa O hilota poderia

participar do exeacutercito em caso de necessidade contudo ele natildeo gozava de cidadania e nem era protegido

pelas leis (JARDEacute 1977 p 163) Fisher (In KINZL 2006 p339) lembra que o estrangeiro era

comumente tratado de duas formas diferentes nas cidades-Estado gregas Em um extremo em Esparta e

algumas poucas cidades era adotada uma poliacutetica cautelosa e restritiva perante os estrangeiros que natildeo

eram normalmente bem vindos o que ocasionalmente acarretava em expulsotildees Por outro lado em

Atenas ndash e provavelmente em muitas cidades ndash desenvolveram-se gradualmente arranjos para o registro e

organizaccedilatildeo dos metecos (FISHER In KINZL 2006 p 339) Para discussatildeo mais profunda do status do

estrangeiro na Greacutecia no periacuteodo claacutessico recomend mos o c piacutetulo ―Citizens foreigners nd slaves in

Greek society de Fisher (in KINZL 2006 p 327 a 349) 179

Jaacute abordamos rapidamente esse assunto na p 16

99

elementos externos como imigrantes povos vencidos ritos religiosos etc (LEAtildeO

BRANDAtildeO In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 28 e 29)

Com a concessatildeo da cidadania romana aos povos dominados criou-se tambeacutem

uma complexidade maior na organizaccedilatildeo social de Roma e de seus territoacuterios Os

aliados que contribuiacuteam no esforccedilo de conquista pleiteavam e obtinham em momentos

e graus distintos a cidadania romana ndash com direito ao matrimocircnio ao comeacutercio e ateacute

mesmo agrave participaccedilatildeo poliacutetica (GUARINELLO 2014 p 112) Aleacutem disso Roma

assentou nas proviacutencias parte da sua populaccedilatildeo mais pobre a fim de colonizar as terras

A cidadania romana (que adquiriu mais nuances entre os direitos do cidadatildeo pleno ou

parcial) gradualmente comeccedilou a se desvincular do territoacuterio da proacutepria urbe Roma

passou a ser natildeo soacute a cidade mas tambeacutem as regiotildees ocupadas nas quais havia cidadatildeos

romanos ndash mesmo que nas proviacutencias essa cidadania fosse concedida apenas agraves elites

locais180

Ainda segundo Guarinello (2014 p 113) ―Rom deix de ser um est do-

cidade tiacutepica e se torna um Estado imperi l

Todavia grandes penas eram infligidas aos povos que resistiam aos romanos A

romanizaccedilatildeo se deu com mais forccedila na Europa ocidental disso ateacute hoje temos o

predomiacutenio das liacutenguas latinas dos haacutebitos e costumes herdados dos romanos181

Sobre

esse processo de romanizaccedilatildeo Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 363) ressalta

que os romanos acreditavam que natildeo tinham muito o que aprender com os ocidentais ndash

embora um tratado isolado de Cartago sobre agricultura tenha sido traduzido para o

latim182

Os romanos tampouco se interessaram em aprender as liacutenguas ocidentais e

para as elites locais embora o domiacutenio fosse a princiacutepio odiado com o tempo passou a

ser considerado como um avanccedilo civilizacional (RAWSON in BOARDMAN et al

1986 p 363) O comeacutercio e o fluxo de mercadorias tambeacutem ajudaram no processo de

romanizaccedilatildeo183

180

Na verdade a partir do seacuteculo I aC a noccedilatildeo de cidadania romana esvazia-se gradualmente jaacute que o

poder de fato encontrava-se cada vez mais concentrado nas matildeos dos generais ditadores (como Pompeu

e Ceacutesar) e posteriormente nas matildeos do imperador Em 212 dC Caracala atraveacutes de um eacutedito concedeu

a todos os habitantes livres do Impeacuterio a cidadania romana (GUARINELLO 2014 p 312) Sobre o

conceito da cidadania romana e sua evoluccedilatildeo dos tempos da Repuacuteblica ateacute o baixo Impeacuterio

recomendamos o c piacutetulo ―A cid d ni ntig (In GUARINELLO 2014) 181

Para aprofundamento sobre o tema da conquista romana na Europa Ocidental recomendados o livro de

le Bohec (2009) 182

Esse tratado escrito por Mago (que viveu provavelmente entre os seacuteculos III e II aC) foi traduzido

para o latim por ordem oficial sendo depois citado por Varratildeo e Columela hoje temos apenas fragmentos

dessa obra (CONTE 1999 p 499) 183

Falaremos mais desse assunto adiante na p 107-108

100

Outro fator que ajudou na consolidaccedilatildeo cultural de Roma no Ocidente foi o fato

de que embora houvesse preconceito cultural o preconceito motivado simplesmente

por questotildees raciais era pequeno Se os baacuterbaros estivessem dispostos a abandonar seus

haacutebitos selvagens eles poderiam deixar a condiccedilatildeo de barbaacuterie184

Rawson (In

BOARDMAN et al 1986 p 360) destaca como exemplo emblemaacutetico o fato de Luacutecio

Corneacutelio Balbo proeminente cidadatildeo romano nascido na Beacutetica (onde hoje eacute o sul da

Espanha) ter chegado ao cargo de cocircnsul em 40 aC ndash o primeiro cidadatildeo natildeo itaacutelico da

histoacuteria a ocupar o maior posto da Repuacuteblica romana185

Se no Ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi mais profundo jaacute no mundo

heleniacutestico a conquista foi bem diferente Roma hesitou mais preferindo o bloqueio

comercial e alianccedilas por meio de clientelas do que a invasatildeo direta e domiacutenio ostensivo

As civilizaccedilotildees orientais como os proacuteprios gregos e os egiacutepcios jaacute eram muito

avanccediladas com cultura e literatura desenvolvidas nunca houve por parte dos vencidos

uma tentativa de se adotar a cultura ou costumes romanos A fronteira linguiacutestica serve

como testemunho disso jaacute que esses povos mantiveram o uso de seus idiomas e

percebe-se que o latim de forma alguma foi a liacutengua predominante (GUARINELLO

2014 p 127)

22 ndash A conquista da Gaacutelia

A partir do seacuteculo V aC Roma iniciou o processo de expansatildeo na Peniacutensula

Itaacutelica ndash processo esse que teve seu auge no seacuteculo III aC e que se consolidou de forma

definitiva apoacutes a Guerra Social no seacuteculo I aC Ateacute entatildeo Roma nunca tivera sido

ameaccedilada por algum inimigo de forma draacutestica ou implacaacutevel dessa forma a invasatildeo

dos gauleses na urbe no comeccedilo do seacuteculo IV aC nas palavras de Faversani e Joly (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 118) ―foi como um tempest de c indo de um ceacuteu

cl ro Esse evento de gr nde m gnitude chegou ser notici do por fontes greg s do

seacuteculo IV aC186

Os celtas se estabeleceram na Europa Ocidental especialmente na

184

Cf nota 71 na p 41 deste trabalho 185

No discurso Pro Balbo (A favor de Balbo) Ciacutecero defende a concessatildeo da cidadania romana a Balbo

perante o Senado 186

Plutarco em sua obra Vidas paralelas na biografia de Camilo (XXII4) menciona que Aristoacuteteles sem

duacutevida tivera conhecimento sobre a ocupaccedilatildeo de Roma pelos celtas (In PLUTARCO 2008 tomo II p

372) Pliacutenio o Velho (HN III 957) menciona que Teopompo (historiador e retoacuterico da eacutepoca de

Alexandre) tambeacutem disse que os gauleses tinham conquistado a Cidade (In PLINIO EL VIEJO 1998

p37)

101

segunda metade do seacuteculo V aC quando deixaram as terras do norte da Alemanha e

aacutereas proacuteximas (onde hoje eacute a Dinamarca agraves margens do mar Baacuteltico e do rio Elba) e

migraram para o sul em busca de clima mais ameno e terras feacuterteis essas naccedilotildees

assim estabeleceram-se onde hoje eacute a Franccedila a Catalunha (dando origem aos

celtiberos) a Beacutelgica a Suiacuteccedila estendendo-se ateacute o rio Danuacutebio e tambeacutem na Inglaterra

e norte da Itaacutelia (SCHMIDT 2004 p 11 a 14) A naccedilatildeo celta dos secircnones que tinha seu

territoacuterio onde hoje estaacute situada a cidade de Sens na Franccedila era bastante populosa e

sofria com escassez de terras por conseguinte parte desse povo cruzou os Alpes em

400 aC e se estabeleceu na regiatildeo entre Ravena e Ancona depois de expulsarem os

uacutembrios e foram eles os responsaacuteveis pelo saque de Roma (SCHMIDT 2004 p 15)

Entrementes os romanos ainda em luta contra os etruscos a princiacutepio consideraram ter

com os celtas uma neutralidade muacutetua embora esse povo estivesse muito proacuteximo jaacute

que em 396 aC romanos e celtas fizeram uma alianccedila contra os etruscos na tomada de

Veios sob o comando do entatildeo ditador Camilo em 390 aC Camilo acusado de

distribuiccedilatildeo desonesta do butim de Veios foi obrigado a se exilar em Ardea

(SCHMIDT 2004 p 21) Assim Roma ficou sem uma lideranccedila forte que permitisse

que ela se defendesse da invasatildeo iminente dos gauleses187

Ainda restam algumas duacutevidas sobre as razotildees dos celtas terem invadido Roma

de acordo com Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 120) o

deslocamento dos gauleses era mais motivado por ganhos imediatos advindos de butins

do que pela conquista de novas terras Por conseguinte embora tenha sido uma grande

humilhaccedilatildeo para os romanos o saque da cidade natildeo deixou uma grande devastaccedilatildeo

ainda segundo Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 121) a proacutepria

recuperaccedilatildeo de Roma apoacutes a invasatildeo de forma raacutepida e efetiva eacute indiacutecio de que a

destruiccedilatildeo natildeo foi tatildeo grande assim Esse acontecimento contudo ficou definitivamente

gravado na memoacuteria dos romanos como sendo a maior cataacutestrofe que ocorreu agrave urbe

Apesar de abalada com esse assalto Roma voltou a colocar em praacutetica sua

poliacutetica expansionista na Peniacutensula Itaacutelica188

Entre 343 e 290 aC aconteceram as Trecircs

Guerras Samnitas primeiramente derrotada Roma depois conseguiu vencer os samnitas

e seus aliados (etruscos e gauleses) e se consolidou na Itaacutelia central Os celtas depois da

187

Tito Liacutevio no livro V da Ab urbe condita escreveu sobre as migraccedilotildees dos celtas para a Itaacutelia bem

como sobre os eventos que culminaram no saque da urbe e nos seus desdobramentos No capiacutetulo 3 deste

trabalho abordaremos mais a obra de Liacutevio e o que ele registrou entre os capiacutetulos 34 e 48 de Ab urbe

condita 188

Para a cronologia dos eventos aqui narrados ateacute o fim deste subcapiacutetulo utilizamos como referecircncia

Schmidt (2004 passim)

102

derrota nas Guerras Samnitas deixaram de exercer pressatildeo nas fronteiras do domiacutenio

romano na Itaacutelia e preferiram dirigir-se agraves terras dos Baacutelcatildes instalando-se na Macedocircnia

e na Traacutecia chegando inclusive a saquear Delfos em 278 aC189

Os gauleses voltam a aparecer na histoacuteria romana de forma mais expressiva

apenas durante as Guerras Puacutenicas uma vez que Cartago recrutou mercenaacuterios para

ajudar em suas fileiras Com a derrota de Cartago os gauleses passaram cada vez menos

a opor resistecircncia na Gaacutelia Cisalpina (onde hoje eacute o norte da Itaacutelia) a partir do seacuteculo III

aC e antes da regiatildeo ter se tornado proviacutencia romana jaacute existiam assentamentos

romanos diversos Segundo Yavetz (2004 p 77) Placentia (Placencia) e Cremona (218

aC) Bononia (Bolonha 189 aC) e Aquileia (181 aC) eram colocircnias latinas e como

tais gozavam do ius Latii mas natildeo possuiacuteam cidadania plena Parma e Mutina

(Moacutedena) desde 183 aC eram colocircnias romanas Aleacutem disso existiam tambeacutem

povoados que possuiacuteam mercados como Forum Popilii (Forlimpopoli) Forum Liuii

(Forli) Forum Cornelii (Iacutemola) e do seacuteculo II aC os postos avanccedilados de Dertona

(Tortona) e Eporedia (Ivrea)

Novos conflitos surgem ao longo do seacuteculo II aC especialmente na Hispacircnia e

nesse meio tempo os gauleses voltam a atravessar os Alpes em 179 aC Paulo Emiacutelio

entatildeo cocircnsul combate os liacutegures no norte da Itaacutelia e indiretamente enfrenta os gauleses

ateacute que uma alianccedila eacute feita entre romanos e liacutegures

Quanto agrave Hispacircnia em 150 aC Roma venceu o conflito e dominou os

celtiberos Alguns anos depois em 125 aC Marselha pediu ajuda aos romanos contra

os gauleses e em 122 aC eacute fundada Aquae Sextiae (atual Aix-en-Provence) a primeira

fortificaccedilatildeo romana em territoacuterio gaulecircs aleacutem dos Alpes Dessa maneira Roma possuiacutea

vastos domiacutenios de terra contiacutenuos na Hispacircnia passando pela Gaacutelia Narbonense (sul da

Franccedila) ateacute a Peniacutensula Itaacutelica190

Em 115 aC uma grande invasatildeo dos cimbros e dos teutotildees (naccedilotildees germacircnicas)

passou a deixar os limites do territoacuterio romano proacuteximos agrave Gaacutelia instaacuteveis os romanos

inclusive foram derrotados em algumas batalhas contra essas naccedilotildees Nesse contexto se

inseriu Maacuterio que conseguiu rechaccedilar os germanos para o norte da Gaacutelia e obteve um

189

Jaacute mencionamos esse acontecimento na paacutegina 46 190

Abordamos a Gaacutelia Narbonense bem como seu processo de transformaccedilatildeo em proviacutencia romana na p

68

103

breve periacuteodo de paz na Gaacutelia transalpina191

Em 80 aC Sertoacuterio nomeado pretor na

Hispacircnia e aproveitando-se da guerra civil entre Maacuterio e Sila aliou-se aos celtiberos e

por vaacuterias vezes lutou contra as legiotildees romanas inclusive derrotando Pompeu Magno

entre 77 e 75 aC Sertoacuterio por fim foi assassinado por seu lugar-tenente Perrena no ano

72 aC Enquanto isso mais uma vez os germanos (dessa vez liderados por Ariovisto

rei dos suevos) voltaram a fazer pressatildeo sobre os gauleses entre os anos de 71 e 70

aC192

Devido ao avanccedilo de Ariovisto em 58 aC uma grande migraccedilatildeo dos helveacutecios

se desenrola a partir de onde hoje eacute a Suiacuteccedila193

A partir desse momento histoacuterico a figura

de Ceacutesar se tornaraacute proeminente quando o general romano partir para a Gaacutelia com a

alegaccedilatildeo de defender os interesses da Repuacuteblica e ajudar os gauleses contra Ariovisto e

seus conterracircneos Sobre esses acontecimentos Ceacutesar escreveu (BGall I 31)

Eo concilio dimisso idem principes ciuitatum qui ante fuerant ad Caesarem

reuerterunt petieruntque uti sibi secreto in occulto de sua omniumque salute

cum eo agere liceret Ea re impetrata sese omnes flentes Caesari ad pedes

proiecerunt () Locutus est pro his Diuiciacus Haeduus Galliae totius

factiones esse duas harum alterius principatum tenere Haeduos alterius

Aruernos Hi cum tantopere de potentatu inter se multos annos contenderent

factum esse uti ab Aruernis Sequanisque Germani mercede arcesserentur

Horum primo circiter milia XV Rhenum transisse posteaquam agros et

cultum et copias Gallorum homines feri ac barbari adamassent traductos

plures nunc esse in Gallia ad centum et XX milium numerum Cum his

Haeduos eorumque clientes semel atque iterum armis contendisse magnam

calamitatem pulsos accepisse omnem nobilitatem omnem senatum omnem

equitatum amisisse Quibus proeliis calamitatibusque fractos qui et sua

uirtute et populi Romani hospitio atque amicitia plurimum ante in Gallia

potuissent coactos esse Sequanis obsides dare nobilissimos ciuitatis et iure

iurando ciuitatem obstringere sese neque obsides repetituros neque auxilium

a populo Romano inploraturos neque recusaturos quo minus perpetuo sub

illorum dicione atque imperio essent Unum se esse ex omni ciuitate

Haeduorum qui adduci non potuerit ut iuraret aut liberos suos obsides daret

Ob eam rem se ex ciuitate profugisse et Romam ad senatum uenisse auxilium

postulatum quod solus neque iure iurando neque obsidibus teneretur Sed

peius uictoribus Sequanis quam Haeduis uictis accidisse propterea quod

Ariouistus rex Germanorum in eorum finibus consedisset tertiamque partem

agri Sequani qui esset optimus totius Galliae occupauisset et nunc de altera

parte tertia Sequanos decedere iuberet propterea quod paucis mensibus ante

Harudum milia hominum XXIV ad eum uenissent quibus locus ac sedes

pararentur Futurum esse paucis annis uti omnes ex Galliae finibus

pellerentur atque omnes Germani Rhenum transirent neque enim

conferendum esse gallicum cum Germanorum agro neque hanc

consuetudinem uictus cum illa comparandam Ariouistum autem ut semel

Gallorum copias proelio uicerit quod proelium factum sit Admagetobrigae

superbe et crudeliter imperare obsides nobilissimi cuiusque liberos poscere

191

Fizemos uma listagem das batalhas travadas por Maacuterio na Gaacutelia na p 14 deste trabalho Para detalhes

dos confrontos entre romanos contra naccedilotildees gaulesas e germanas ao longo do seacuteculo I aC (e conflitos

posteriores a esse periacuteodo) cf Rankin (1993 p 107 e ss) 192

Ceacutesar faz seu relato da Guerra da Gaacutelia a partir do momento em que Ariovisto ampliou sua

movimentaccedilatildeo na Gaacutelia Falaremos novamente sobre isso um pouco mais agrave frente 193

Para maiores detalhes das tensotildees sociais na Gaacutelia recomendamos Canfora (2002 p 136 e ss)

104

et in eos omnia exempla cruciatusque edere si qua res non ad nutum aut ad

uoluntatem eius facta sit Hominem esse barbarum iracundum temerarium

non posse eius imperia diutius sustinere Nisi si quid in Caesare populoque

Romano sit auxilii omnibus Gallis idem esse faciendum quod Heluetii

fecerint ut domo emigrent aliud domicilium alias sedes remotas a

Germanis petant fortunamque quaecumque accidat experiantur Haec si

enuntiata Ariouisto sint non dubitare quin de omnibus obsidibus qui apud

eum sint grauissimum supplicium sumat Caesarem uel auctoritate sua atque

exercitus uel recenti uictoria uel nomine populi Romani deterrere posse ne

maior multitudo Germanorum Rhenum traducatur Galliamque omnem ab

Ariouisti iniuria posse defendere

Despedido esse conselho os mesmos chefes das comunidades que

anteriormente foram ateacute Ceacutesar retornaram e pediram-lhe que lhes fosse

permitido dirigir-se a ele em um lugar reservado e sem testemunhas a

respeito da sua salvaccedilatildeo e da salvaccedilatildeo de todos Obtida a permissatildeo todos se

lanccedilaram chorosos aos peacutes de Ceacutesar () O eacuteduo Diviciacuteaco falou por eles

―Em tod Gaacuteli existi m du s f cccedilotildees os eacuteduos tinh m lider nccedil de um

delas e os arvernos da outra Como eles duramente lutassem entre si por

causa do poder durante muitos anos aconteceu que pelos arvernos e pelos

seacutequanos mercenaacuterios germanos fossem chamados Primeiramente cerca de

quinze mil deles atravessaram o Reno como tais homens ferozes e baacuterbaros

comeccedilassem a gostar das terras do modo de vida e das riquezas dos gauleses

muitos mais atravessaram agora estavam na Gaacutelia aproximadamente cento e

vinte mil Contra esses os eacuteduos e os seus clientes simultaneamente

opuseram as armas uma ou duas vezes sendo eles batidos sofreram grande

calamidade perderam toda a nobreza todo o senado e toda a cavalaria

Alquebrados por tais combates e calamidades eles que anteriormente

tiveram enorme poder na Gaacutelia tanto por sua virtude quanto pela

hospitalidade e amizade dos romanos foram coagidos a entregar aos

seacutequanos como refeacutens os mais nobres de seu povo e a comprometecirc-lo por

meio de um juramento de que natildeo os pediriam de volta natildeo implorariam

socorro aos romanos nem recusariam estar para sempre sob o mando e o

poder dos seacutequanos Ele Diviciacuteaco era o uacutenico de toda a comunidade dos

eacuteduos que natildeo pudera ser levado a jurar ou a dar seus filhos como refeacutens Por

tal motivo fugira da comunidade e viera a Roma ao senado pedir auxiacutelio

pois apenas ele natildeo era impedido nem por um juramento nem por refeacutens

Contudo sucedera algo pior aos seacutequanos vencedores do que aos eacuteduos

vencidos porque Ariovisto rei dos germanos tinha-se estabelecido no

territoacuterio daqueles e ocupara um terccedilo das terras seacutequanas as melhores de

toda a Gaacutelia Agora Ariovisto ordenava que os seacutequanos se retirassem da

outra terccedila parte pois poucos meses antes juntaram-se a ele vinte e quatro

mil homens dos harudos para os quais territoacuterio e morada eram

providenciados Sucederia em poucos anos que todos fossem expulsos do

territoacuterio da Gaacutelia e todos os germanos atravessassem o Reno natildeo com

efeito eram as terras dos germanos comparaacuteveis agraves terras gaulesas nem

aquele modo de vida podia ser cotejado com este Por outro lado como

Ariovisto vencera uma vez em combate as tropas dos gauleses ndash combate este

que se travou em Admagetoacutebriga ndash comandava com soberba e crueldade

exigia como refeacutens os filhos de cada um dos mais nobres gauleses e a eles

infligia todas as torturas a tiacutetulo de exemplo se algo natildeo fosse feito ao

primeiro aceno ou vontade sua Ele era um homem baacuterbaro irasciacutevel e

temeraacuterio eles natildeo podiam suportar por mais tempo seu comando A natildeo ser

que houvesse algum auxiacutelio em Ceacutesar e no povo romano o mesmo que os

helveacutecios fizeram deveria ser feito por todos os gauleses sair da paacutetria e

procurar outro domiciacutelio outras moradas distantes dos germanos e por agrave

prova a fortuna qualquer que fosse Se essas coisas fossem divulgadas a

Ariovisto natildeo duvidava que ele infligiria o mais duro supliacutecio a todos os

refeacutens que estavam sob seu poder Que Ceacutesar quer por sua autoridade e pela

do exeacutercito quer pela recente vitoacuteria ou quer pelo nome do povo romano

105

podia impedir que maior multidatildeo de germanos atravessasse o Reno e

poderia defender a Gaacutelia inteira dos abusos de Ariovisto194

(grifos nossos)

No trecho acima Ceacutesar justifica sua intervenccedilatildeo da Gaacutelia argumentando que os

proacuteprios gauleses (na figura do eacuteduo Diviciacuteaco) lhe pediram ajuda aleacutem do fato de os

germanos terem cruzado o rio Reno e penetrado na Gaacutelia Ceacutesar destacou o caraacuteter

selvagem dos germanos chamando-os de homines feri ac barbari (homens ferozes e

baacuterbaros) sendo esses germanos liderados por Ariovisto retratado no trecho como

exemplo maior da maldade sendo denominado como hominem barbarum iracundum

temerarium (homem baacuterbaro irasciacutevel e temeraacuterio)195

Vemos que Ceacutesar finalizou o

capiacutetulo dizendo que ele mesmo (representando o Estado romano) poderia impedir o

v nccedilo germacircnico e ―defender Gaacuteli inteir dos busos de Ariovisto Como Schmidt

(2004 p 180) ressalta a conquista da Gaacutelia eacute tanto uma necessidade estrateacutegica para

Roma quanto um imperativo poliacutetico para Ceacutesar que desejava desfrutar de fama

tamanha a ponto de rivalizar com Pompeu o grande conquistador do Oriente proacuteximo e

que colocou fim agrave pirataria no mar Mediterracircneo Schmidt (2004 p 189) considera que

provavelmente o senado romano se absteria de intervir na Gaacutelia em uma questatildeo que

natildeo a afetava diretamente jaacute que essas migraccedilotildees ocorriam fora de sua zona de

influecircncia mas que Ceacutesar aacutevido de gloacuteria militar buscou os argumentos mais

falaciosos para intervir militarmente na Gaacutelia Todavia acreditamos que Roma

dificilmente deixaria a Gaacutelia desocupada ateacute pelas proviacutencias na Espanha e norte da

Itaacutelia os gauleses e germanos estariam muito proacuteximos como de fato ocorreu jaacute que

Ariovisto estava cada vez mais tomando terreno e se aproximando dos limites da

proviacutencia romana196

Mesmo com o exagero de Ceacutesar tambeacutem natildeo podemos ignorar

que os gauleses (especialmente os que habitavam agraves margens do Reno do Roacutedano e do

Saocircne) de fato se sentiam ameaccedilados com os germanos e buscaram em Roma o auxiacutelio

de que necessitavam fato comprovado pela visita de Diviciacuteaco a Roma para solicitar

ajuda Eacute tambeacutem possiacutevel perceber nessa justificativa de Ceacutesar a explicaccedilatildeo baseada no

194

Cf nota 136 na p76 na qual abordamos o pedido de ajuda aos romanos feito por Diviciacuteaco emissaacuterio

dos eacuteduos uma das naccedilotildees celtas amigas dos romanos 195

Rambaud (2011 p 112-113) chama essa caracterizaccedilatildeo de Ariovisto de captatio maleuolentiae ou

seja Ceacutesar exagerou essas caracteriacutesticas do liacuteder germano para conquistar o puacuteblico e convencecirc-lo de

que a intervenccedilatildeo romana na Gaacutelia era necessaacuteria para se evitar o mal maior dos germanos que natildeo

respeitavam fronteiras e eram um possiacutevel risco para Roma Ariovisto representava o arqueacutetipo maacuteximo

do baacuterbaro feroz e terriacutevel e de certa forma serviu como paradigma em uma escala de barbaacuterie dentro do

De bello Gallico representando o poacutelo mais primitivo 196

Essa proviacutencia que vai ser citada por Ceacutesar vaacuterias vezes no De bello Gallico era a Gaacutelia Transalpina

(ou Narbonense)

106

―direito justo dos rom nos intervirem em outr s n ccedilotildees e territoacuterios jaacute que os eacuteduos

(aliados dos romanos) sofriam por parte de Ariovisto e dos germanos uma injuacuteria para

evit r o perigo e desgr ccedil er necessaacuteri um m nobr de ― uto-defes (RIGGSBY

2006 p 18) Todavia como Schmidt (2004 p 270) destaca mesmo com a conquista

definitiv d Gaacuteli ―p z rom n nunc seraacute de f to um re lid de pois s revolt s

nunca cessaram ao longo do domiacutenio romano Embora as elites tenham obtido a

cidadania romana e embora a vida citadina tenha sido mais facilmente romanizada e

tenha sido uma assimilaccedilatildeo cultural no acircmbito urbano no acircmbito rural os descendentes

dos antigos povos celtas mantiveram-se irredutiacuteveis em sua revolta (SCHMIDT 2004

p 273)

221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental

Anteriormente neste trabalho abordamos a forma como Roma teria ampliado

seus domiacutenios e conquistado diversos povos e regiotildees atraveacutes de vaacuterias conquistas

militares ao longo de alguns seacuteculos Todavia a ideia de um impeacuterio tal qual

conhecemos hoje natildeo se aplica ao que pensamos do impeacuterio romano Nas palavras de

Guarinello (2014 p 119) ―T lvez princip l diferenccedil entre o Impeacuterio e um est do

nacional resida no fato de que o poder natildeo se repartia homogeneamente sobre o

territoacuterio do Impeacuterio dada a grande heterogeneidade de estatutos entre sua populaccedilatildeo e

usecircnci de um socied de civil cl r mente identific d Assim o impeacuterio romano

abrigava uma grande variedade de naccedilotildees e sociedades diversas que mantinham seus

costumes e suas formas de governo proacuteprias aleacutem de grande diversidade cultural e

social Como Guarinello lembra (2014 p 119) no domiacutenio romano inseriam-se antigos

impeacuterios orientais como o egiacutepcio-heleniacutestico que mantiveram suas instituiccedilotildees sociais

proacuteprias ateacute o periacuteodo imperial tardio Essa diversidade justificava-se pela postura de

Roma ter sido aberta ao estrangeiro desde seus primoacuterdios e tambeacutem pelo fato da urbe

ter feito largo uso de artiacutefices de outros povos chegando inclusive a melhoraacute-los197

Se no lado oriental Roma teve uma postura menos intervencionista no modo de

vida e costumes dos povos dessas regiotildees no ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi

197

De fato desde o iniacutecio miacutetico de Roma constava nas narrativas que Rocircmulo acolheu os fora-da-lei

estrangeiros para aumentar a populaccedilatildeo da Urbe que acabara de fundar bem como o rapto das sabinas

(uma naccedilatildeo que vivia nas vizinhanccedilas) para obter mulheres para a cidade (NICOLET 2011 p 887) Das

fontes latinas que falaram sobre esse episoacutedio destacamos Tito Liacutevio (Ab urbe cond I 8) Oviacutedio

(Fasti III 432-734) Lucano (Bellum ciuile I 96-99 e VII 437-439) e Pliacutenio o Velho (HN XVI 5)

107

mais profundo198

Hoje discute-se bastante sobre o quatildeo profundo ou extenso foi esse

processo Pesquisadores mais antigos como Bloch e Cousin e tambeacutem mais recentes

como Canfora definiram que a romanizaccedilatildeo na Europa ocidental foi um processo cruel

e que se deu com total violecircncia e arbitrariedade por parte dos romanos199

Hoje em dia

vaacuterios estudiosos acreditam que esse processo natildeo foi tatildeo intenso ou tatildeo opressivo

assim Nesse sentido temos as palavras do proacuteprio Guarinello (2014 p 119 a 125)

Organizaccedilotildees sociais preacute-urbanas permaneceram majoritaacuterias em vastas

regiotildees da Gaacutelia da Bretanha e das proviacutencias fronteiriccedilas centrais Durante

seacuteculos povos montanheses mantiveram-se arredios agrave influecircncia romana no

proacuteprio coraccedilatildeo do Impeacuterio Todas essas eram contudo formas de

organizaccedilatildeo social dominadas formadas por populaccedilotildees submetidas A forccedila

com efeito encontrava-se em outro lugar nas cidades O Impeacuterio Romano

representou uma vitoacuteria das cidades mediterracircneas sobre essas sociedades E

o imperialismo romano foi antes o resultado das deficiecircncias estruturais

dessas cidades do que o efeito de uma supremacia singular do povo

conquistador () Como vimos apenas algumas poucas cidades as de maior

porte conseguem minimizar os conflitos internos atraveacutes da expansatildeo

militar que fornece ocupaccedilatildeo para a populaccedilatildeo mais pobre e carreia terras e

riquezas para o centro As demais cidades soacute alcanccedilam uma situaccedilatildeo de

estabilidade pela imposiccedilatildeo de um poder superior externo capaz de dirimir

os conflitos e regular as relaccedilotildees entre os grupos de cada comunidade A

expansatildeo de Roma se daacute precisamente nesse quadro

Em um primeiro momento temos as conquistas militares e muitas vezes a

imposiccedilatildeo da ordem pela forccedila ao longo do tempo com o estabelecimento das

proviacutencias e a consolidaccedilatildeo de um amplo territoacuterio imperial a paz passou a predominar

(GUARINELLO 2014 p 127) Todavia o papel do exeacutercito na expansatildeo e

consolidaccedilatildeo do poderio romano natildeo se restringiu apenas ao uso da forccedila ele tambeacutem

foi agente importante da difusatildeo da cultura de Roma nas aacutereas submetidas atraveacutes da

integraccedilatildeo econocircmica (jaacute que a manutenccedilatildeo das legiotildees estimulava a engrenagem de

produccedilatildeo de mercadorias e comeacutercio) e tambeacutem da interaccedilatildeo social com o recrutamento

de tropas e pelos matrimocircnios com os locais (GUARINELLO 2014 p 128) Aleacutem

disso como destaca Le Bohec (2009 p 31) um bom comandante sabia que era

importante ganhar a simpatia dos civis do povo vencido uma vez que nenhum exeacutercito

conseguiria se impor indefinidamente usando apenas a forccedila Os domiacutenios romanos

eram notadamente multiculturais o latim e grego uacutenicas liacutenguas usadas em contexto

oficial aprendidas pelas elites locais e tambeacutem como veiacuteculo literaacuterio a princiacutepio natildeo

se impuseram como os uacutenicos idiomas Como lembra Guarinello (2014 p 127) por

198

Sobre a romanizaccedilatildeo mais pesada no ocidente e natildeo no oriente ver p100 199

Cf p 16-17 deste trabalho

108

muito tempo as populaccedilotildees locais continuavam se expressando em seus idiomas de

origem como o celta na Gaacutelia o puacutenico no norte da Aacutefrica o aramaico na Palestina etc

Do ponto de vista da cultura e dos haacutebitos os povos conquistados mantiveram suas

tradiccedilotildees e modo de vida Com o passar do tempo o mundo foi sendo paulatinamente

transformado a elite dessas naccedilotildees buscando conquistar a cidadania adotou os

costumes romanos e aprendeu o latim especialmente nas cidades a mescla entre

romanos e conquistados se deu mais rapidamente No contexto da Europa ocidental o

fenocircmeno de fusatildeo entre romanos e provincianos aconteceu em tal profundidade que

hoje temos na regiatildeo o predomiacutenio das liacutenguas romacircnicas derivadas do latim o que se

sabe dos costumes e liacutenguas preacute-romacircnicas nos eacute conhecido sobretudo por meio da

arqueologia e da linguiacutestica histoacuterica

Os resquiacutecios de liacutenguas ou de religiotildees que nos chegaram mesmo seacuteculos apoacutes

as conquistas romanas nas palavras de Wallace-Hadrill (2008 p 7) sugerem que a

produccedilatildeo de uma fusatildeo raacutepida e homogecircnea apoacutes a conquista natildeo pode ser tomada como

certa se eacute que de fato isso alguma vez ocorreu dessa forma Ainda de acordo com o

autor (2008 p 10) o mais interessante no estudo entre os romanos e os outros povos eacute

perceber como se opera a dialeacutetica de apropriaccedilatildeo pela qual bens e peculiaridades do

poder conquistador satildeo adotados pelos conquistados para fins especiacuteficos e pode-se

ainda adicionar a essa dialeacutetica a reciprocidade com a qual o poder conquistador adota

traccedilos do conquistado para consolidar a sua ocupaccedilatildeo Assim ao longo deste trabalho

veremos como se deu o contato dos romanos com gauleses e como essa dialeacutetica

justificou a construccedilatildeo cultural que os romanos fizeram dos gauleses

O termo romanizaccedilatildeo por si soacute jaacute eacute considerado problemaacutetico no campo atual

de pesquisa em estudos claacutessicos jaacute que ateacute meados do seacuteculo XX esse termo englobava

a noccedilatildeo de que os romanos impuseram sua cultura aos povos vencidos em um processo

unilateral e arbitraacuterio Ora como mencionamos acima vimos que na verdade a

romanizaccedilatildeo ocorreu em vaacuterias esferas sociais (e natildeo em um movimento de cima para

baixo em que a elite romana impunha seu status quo) e que os povos ditos conquistados

mantiveram muitos dos seus costumes instituiccedilotildees poliacuteticas e sociais e ateacute seus

idiom s Como Veyne (In GIARDINA 1992 p 299) pontu ―( ) os h bit ntes d s

proviacutencias romanizavam-se espontaneamente O poder central aplaudia e dava a sua

s nccedilatildeo juriacutedic agrave form ccedilatildeo de nov s cid des Dentre os vaacuterios pesquisadores que

contestam esse conceito defasado de romanizaccedilatildeo destacamos aqui Hingley (2005) que

109

abandona o termo romanizaccedilatildeo (exceto quando estritamente necessaacuterio) e adota em seu

lugar o termo globalizaccedilatildeo200

Devemos tambeacutem ter em mente que muitos estudos sobre o conceito de

romanizaccedilatildeo e imperialismo romano foram embasados em obras da elite letrada de

Roma de fato muitas vezes as fontes antigas eram tratadas ora como relatos literaacuterios

ora como fontes historiograacuteficas especialmente ateacute meados do seacuteculo XX Hingley

(apud FUNARI GARRAFONI 2016 p 34) lembra que embora os textos antigos sejam

importantes atualmente com a arqueologia eacute possiacutevel perceber outros aspectos da

sociedade e cultura antigas que nem sempre eram retratados nessas obras que muitas

vezes visavam agrave exaltaccedilatildeo da gloacuteria de Roma e aspectos especiacuteficos como vitoacuterias em

guerras e conquistas militares Isso tambeacutem contribuiu para flexibilizar a noccedilatildeo de

romanizaccedilatildeo O termo romanizaccedilatildeo ainda hoje eacute bastante usado por estudiosos da aacuterea

inclusive noacutes mesmos que utilizamos aqui o vocaacutebulo com essa nova acepccedilatildeo mais

flexiacutevel levando em consideraccedilatildeo que tanto os vencedores quanto os vencidos

contribuiacuteram para criar uma nova forma de cultura heterogecircnea nas proviacutencias com

interpretaccedilotildees mais livres que levam em conta a grande variaccedilatildeo desses processos que

ocorreram no impeacuterio201

Assim entendemos que o processo de romanizaccedilatildeo se deu em

um contexto de grande dinacircmica social por um lado pela assimilaccedilatildeo da cultura

romana pelas elites conquistadas por outro atraveacutes da resistecircncia aos valores romanos

por parte da populaccedilatildeo sobretudo a do campo o que levou a novas estruturas culturais

200

Hingley argumenta que esse conceito antigo de romanizaccedilatildeo passou a ser muito usado no contexto do

poacutes-colonialismo europeu ocidental entre o seacuteculo XIX e primeira metade do seacuteculo XX e focava no

eurocentrismo e na oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie O autor considera que essa antiga teoria de

romanizaccedilatildeo eacute extremamente simplista e focada apenas na elite do impeacuterio Assim a partir da segunda

metade do seacuteculo XX a proacutepria definiccedilatildeo de romanizaccedilatildeo evoluiu largamente Para discussatildeo mais

profunda sobre esse tema da romanizaccedilatildeo surgimento desse conceito e de como ele foi usado para ajudar

a formar a mentalidade da Europa ao longo dos seacuteculos e dos problemas que surgem a partir dos usos (e

abusos) dessa concepccedilatildeo recomend mos o c piacutetulo ―Ch nging concepts of Rom n identity nd soci l

ch nge (In HINGLEY 2005 p14 a 48) Mendes (2007 p 27) ao se referir ao processo complexo de

romanizaccedilatildeo prefere adotar o termo mundializaccedilatildeo no lugar de globalizaccedilatildeo jaacute que mundializaccedilatildeo

acentua a heterogeneidade cultural entre conquistadores e conquistados enquanto que globalizaccedilatildeo

transmite uma ideia de homogeneidade que natildeo daria conta de explicar o complexo contexto em que se

deu a romanizaccedilatildeo Outros estudiosos tambeacutem adotam o termo mundializaccedilatildeo como Laplantine e Nouss

(2001) 201

Hingley (2005 p 47 a 49) aborda mais a questatildeo complexa da romanizaccedilatildeo e sobre os papeacuteis

desempenhados por conquistadores e conquistados ao construir uma nova ordem social do que

simplesmente os gauleses terem sido absorvidos em uma ordem social preacute existente Ele tambeacutem aborda

de form profund ess questatildeo do imperi lismo e cultur no c piacutetulo ―Rom n inperi lism nd culture

(2005 p 49 a 71)

110

222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar

Nesse contexto histoacuterico de grandes expansotildees romanas temos Caio Juacutelio Ceacutesar

que teria nascido em Roma provavelmente em 100 aC de uma famiacutelia patriacutecia Pelo

fato de sua tia Juacutelia ter sido esposa de Maacuterio ele chegou a ser perseguido durante o

regime de Sila Durante esse periacuteodo serviu no exeacutercito na Aacutesia Em 78 aC com o fim

do regime silano Ceacutesar retornou a Roma e passou a se dedicar agrave carreira poliacutetica tendo

sido questor (68 aC) edil (65 aC) e pretor na Hispacircnia (61 aC) dentre outros

cargos Em 60 aC formou um pacto junto com Pompeu e Crasso que foi chamado

erroneamente de primeiro triunvirato jaacute que natildeo foi estabelecido por uma lei para

dividir o poder entre os trecircs Em 59 Ceacutesar foi cocircnsul pela primeira vez e para aumentar

sua popularidade fez votar duas leis agraacuterias semelhantes agraves que os irmatildeos Graco

tentaram promover em seu tempo uma dessas leis facilitava a concessatildeo de terra aos

soldados veteranos enquanto a outra ajudava a populaccedilatildeo mais pobre de Roma

(SCHMIDT 2004 p 178) No ano seguinte ele tornou-se prococircnsul da Iliacuteria e das

Gaacutelias romanizadas ndash a Cisalpina e a Narbonense que se tornaram proviacutencias

consulares em 60 aC em face ao avanccedilo do germano Ariovisto nessa regiatildeo Com o

pretexto de violaccedilotildees das fronteiras romanas por parte dos celtas Ceacutesar decidiu

conquistar e submeter toda a Gaacutelia ao poderio romano Como Brandatildeo afirma (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 395) ―Ceacutes r geriu o proconsul do d Gaacuteli muit s

vezes contra o parecer do senado tendo em conta a sua promoccedilatildeo pessoal e a

preservaccedilatildeo da sua dignitas Como pretexto p r mpli r territoacuterios rom nos ndash

expansatildeo essa que natildeo estava incluiacuteda nos planos do senado para seu proconsulado ndash

Ceacutesar aproveitou-se sobretudo de conflitos internos dos gauleses e do estabelecimento

do germano Ariovisto a oeste do Reno em 60 aC (BRANDAtildeO In BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 396) Apoacutes seis anos (58 a 52 aC) Ceacutesar finalmente converteu a

Gaacutelia em uma proviacutencia romana e com isso passou a ter maior popularidade

conquistou fortunas e alargou a base do seu poder pessoal ao contar com vastas

clientelas provincianas202

Nesse iacutenterim em 54 aC morreu a filha de Ceacutesar Juacutelia que

era casada com Pompeu e no ano seguinte faleceu Crasso que lutava no oriente contra

os partos esses acontecimentos levaram ao fim do triunvirato e acentuou a rivalidade

entre Ceacutesar e Pompeu Ceacutesar que visava a um segundo consulado apoacutes a conquista da

202

Canfora (2002 p 124 e ss) detalha mais os vaacuterios motivos de Ceacutesar ter optado pela conquista da

Gaacutelia

111

Gaacutelia foi impedido legalmente de disputar as eleiccedilotildees Dessa forma ele decidiu por

invadir a Itaacutelia com seu exeacutercito em 49 aC dando iniacutecio a uma nova guerra civil Em

48 aC Ceacutesar venceu Pompeu na batalha de Farsaacutelia e este ao fugir para o Egito foi

assassinado Sobre a guerra civil Grimal (1993 p 46) afirma

() o velho mundo estaacute a desfazer-se um pouco por toda a parte as instituiccedilotildees

tradicionais jaacute natildeo podem suportar o enorme peso do Impeacuterio e apesar das

oscilaccedilotildees que momentaneamente parecem conter a evoluccedilatildeo o lento trabalho

prossegue obscura e irreversivelmente ateacute que a maacutequina se revele adaptada a

todas as novas necessidades

Apoacutes novas batalhas na Aacutefrica (46 aC) e na Hispacircnia (45 aC) Ceacutesar saiu

vencedor do conflito e tornou-se o chefe supremo de Roma Em fevereiro de 44 aC

Ceacutesar foi declarado ditador perpeacutetuo ndash e aproveitou-se disso para ampliar a base poliacutetica

do poder favorecendo os populares cavaleiros e ―homens novos (receacutem dmitidos no

Senado) Yavetz (2004 p 204) diz que Ceacutesar fez atos ineacuteditos ateacute entatildeo na poliacutetica

romana foi o primeiro a conceder o direito de cidadania a uma proviacutencia inteira (a

Gaacutelia Cisalpina) a recrutar uma legiatildeo completa de provincianos e a nomear um

provinciano para o Senado ndash o hispaniense Balbo203

Evidentemente todas essas

medidas serviram para aumentar ainda mais o receio e oacutedio dos opositores de Ceacutesar que

viam o ditador aumentar o seu poder pessoal Ceacutesar acumulou tanto poder e honras que

alarmou os outros aristocratas que julgaram que ele queria tornar-se rei Nos idos de

marccedilo Ceacutesar foi assassinado por um grupo de senadores em uma sessatildeo do senado204

Acreditava-se que com a morte de Ceacutesar a Repuacuteblica voltaria a ser como antes

Seu assassinato contudo natildeo fez com que a necessidade de reformas fosse abandonada

Como Guarinello escreveu no prefaacutecio da obra de Canfora (2002 p 14 e 15) o periacuteodo

do seacuteculo II a I aC foi marcado por grandes transformaccedilotildees sociais e crises profundas

como a fracassada reforma proposta pelos irmatildeos Graco e os golpes de Estado de Maacuterio

e Sila a cidadania dividira-se em partes em facccedilotildees organizadas como vastas clientelas

que lutavam por seus interesses particulares sem conseguir um meio-termo que

atendesse a todos populares e poderosos As estruturas e instituiccedilotildees poliacuteticas romanas

jaacute estavam falidas e ficava clara a necessidade de um novo sistema de governo que

centralizasse o poder nas matildeos de um uacutenico indiviacuteduo como forma de minimizar as

disputas e trazer a paz e estabilidade agrave comunidade romana Essa mudanccedila se

203

Citamos Balbo na p 100 deste trabalho 204

Para esta breve biografia de Ceacutesar utilizamos como referecircncia o livro de Conte (1999 p 225)

112

consolidaraacute com a ascensatildeo de Otaacutevio (sobrinho-neto de Ceacutesar por ele adotado como

seu herdeiro em seu testamento) e o principado se tornaraacute enfim o sistema poliacutetico que

acompanharaacute a nova sociedade imperialista que surgia

23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar

Ceacutesar teve uma relevante produccedilatildeo literaacuteria dos seus escritos que chegaram aos

nossos dias temos apenas o De bello Gallico (Sobre a Guerra da Gaacutelia) e o De bello

ciuili (Sobre a Guerra Civil) Ceacutesar tambeacutem compocircs um epigrama (fragmento 9 em

Fragmenta Poetarum Latinorum de Morel) sobre Terecircncio O resto da obra de Ceacutesar

(discursos o tratado De analogia205

ndash sobre a pureza de linguagem e o fazer literaacuterio ndash e

o Anticato contra Catatildeo de Uacutetica) se perdeu Tambeacutem fazem parte do corpo cesariano

do periacuteodo final da guerra civil as obras Bellum Alexandrinum Bellum Africum e

Bellum Hispaniense que relatam respectivamente as campanhas militares de Ceacutesar em

Alexandria (Egito 48 aC) Tapso (norte da Aacutefrica 46 aC) e Munda (Espanha 45

aC)206

O De bello Gallico tambeacutem conhecido em portuguecircs como Relato da Guerra da

Gaacutelia foi composto por Ceacutesar em sete livros nos quais se desenrola a narrativa de

confrontos entre romanos e gauleses aleacutem da geografia costumes e cultura das tribos

que habitavam essas regiotildees207

Ceacutesar dedicou cada livro do De bello Gallico a um ano

de campanha militar Temos no livro I a descriccedilatildeo da Gaacutelia e a narrativa das batalhas

ocorridas em 58 aC contra os helveacutecios e contra Ariovisto rei dos suevos o livro II eacute

sobre a campanha contra os belgas no ano 57 aC o livro III conta a campanha de

Ceacutesar contra as cidades armoricanas (57 aC) e possui ainda um comentaacuterio da presenccedila

de Crasso na Aquitacircnia (56 aC) No livro IV temos a campanha de Ceacutesar contra os

germanos e a primeira ida de Ceacutesar agrave Britacircnia (55 aC) O livro V concentra-se na

segunda ida de Ceacutesar agrave Britacircnia e nova campanha contra os belgas em 54 aC O livro

205

Provavelmente escrito por Ceacutesar enquanto era prococircnsul durante uma travessia dos Alpes

(CONSTANS 1964 p XVII) 206

Aacuteulo Hiacutercio tenente de Ceacutesar foi o provaacutevel autor do livro VIII do De bello Gallico ndash o objetivo era

de dar continuidade agrave narrativa cesariana de modo que a obra abrangendo os acontecimentos do ano 51 e

50 aC tivesse ligaccedilatildeo com o comeccedilo do De bello ciuili o Bellum Alexandrinum tambeacutem seria de Hiacutercio

(CONTE 1999 p 230) Quanto ao Bellum Africum e o Bellum Hispaniense natildeo se sabe da autoria dessas

obras provavelmente foram escritas por algum militar ligado a Ceacutesar 207

Aleacutem do que o proacuteprio Ceacutesar ditou para seus secretaacuterios e que virou o texto final do De bello Gallico

tambeacutem foram utilizados como fontes os relatoacuterios dos membros do Estado-maior de Ceacutesar que

informavam ao general do que acontecia em outros campos de batalha e das accedilotildees as quais Ceacutesar natildeo

tomou parte diretamente

113

VI aleacutem de narrar confrontos de Ceacutesar contra gauleses e germanos possui uma

descriccedilatildeo dos costumes de ambos os povos (53 aC) Essa descriccedilatildeo eacute conhecida como

ceacutelebre ―n rr ccedilatildeo etnograacutefic de Ceacutes r O livro VII tr t do lev nte d Gaacuteli lider do

por Vercingetoacuterige a tomada de Luteacutecia cerco e capitulaccedilatildeo de Aleacutesia e a rendiccedilatildeo de

Vercingetoacuterige a Ceacutesar no ano 52 aC208

Ceacutesar em sua narrativa contou as suas campanhas militares na Gaacutelia e a

expansatildeo do poderio romano nesse territoacuterio Sobre essa obra Lintott lembra (In

BOARDMAN et al 1986 p 642)

Caesar tells us of the expansion of Roman power in a successful war

enlivening the story with digressions on geography and the characteristics of

foreign races and explains its significance by comments in the first person

and by speeches in which both he and his opponents justify their conduct

The whole work is a testimony to Roman virtue not only that Caesar himself

but of his troops whose abilities are rarely portrayed so effectively

elsewhere There is a political message too Although Caesar was radical and

violent in his own political career when discussing the Gallic communities

he exalts established power and conservatism209

No De bello Gallico Ceacutesar seguiu o modelo de historiografia heleniacutestica ndash que

tambeacutem apareceu em Diodoro Siacuteculo e depois em Estrabatildeo ndash que fornecia informaccedilotildees

etnograacuteficas sobre os costumes a geografia a economia e niacutevel de civilizaccedilatildeo dos

povos narrados Esse tipo de conteuacutedo era escasso em Roma e as digressotildees em Ceacutesar

serviam para explicar algumas situaccedilotildees justificar certas decisotildees e davam agrave obra uma

aparecircncia de objetividade cientiacutefica respondendo agrave curiosidade do leitor (ANDREacute

HUS 1974 p 33)

231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de Ceacutesar

Quanto ao gecircnero narrativo dos comentaacuterios haacute certa discordacircncia se as obras de

Ceacutesar podem ser encaixadas no gecircnero da historiografia Os pesquisadores Andreacute e Hus

(1974) defendem que Ceacutesar eacute memorialista e natildeo historiador ndash apesar de as obras de

208

Este resumo da obra de Ceacutesar foi baseado em Conte (1999 p 227 e 228) 209

―Ceacutes r nos cont sobre exp nsatildeo do poder rom no em uma guerra bem sucedida dando vida agrave

histoacuteria com digressotildees sobre a geografia e as caracteriacutesticas das raccedilas estrangeiras e explica seus

significados atraveacutes de comentaacuterios em primeira pessoa e por meio de discursos nos quais tanto ele

quanto seus oponentes justificam sua conduta Todo o trabalho eacute um testemunho da virtude romana natildeo

apenas a de Ceacutesar mas tambeacutem a de suas tropas cuja habilidade foi raramente retratada de forma tatildeo

efetiva em outros lugares Haacute tambeacutem uma mensagem poliacutetica Embora Ceacutesar fosse radical e violento em

sua proacutepria carreira poliacutetica quando discutindo sobre as comunidades gaulesas ele exalta o poder

est belecido e conserv dorismo

114

Ceacutesar seguirem a tradiccedilatildeo analiacutestica De acordo com ambos Ceacutesar era uma figura

poliacutetica de destaque que visava ao poder que ele conquistou de forma ilegal e ele soacute

escreveu os eventos que lhe foram contemporacircneos com a finalidade de justificar suas

accedilotildees passadas e de preparar sua accedilatildeo futura de se tornar liacuteder supremo de Roma

(ANDREacute HUS 1974 p 27) Ainda segundo Andreacute e Hus (1974 p 29) os comentaacuterios

de Ceacutesar eram mera exposiccedilatildeo de fatos precisos e sem ornamentos literaacuterios sendo o

contraacuterio do que os gregos ou Ciacutecero entendiam por histoacuteria Assim ateacute hoje muitos

estudiosos entendem que esse estilo natildeo pode ser considerado historia pela proacutepria

natureza do commentarius ndash que preconizava a clareza a precisatildeo o tom objetivo e

essencial com poucos discursos e sem introduccedilotildees pretensiosas e descriccedilotildees

interminaacuteveis e sem retratos de personalidades ou consideraccedilotildees morais ou

filosoacuteficas210

Consideramos as obras de Ceacutesar natildeo como comentaacuterios mas sim como

histoacuteria uma vez que elas se encaixam na definiccedilatildeo aristoteacutelica desse gecircnero ndash ou seja

elas satildeo narrativas sobre fatos acontecidos211

Lintott contudo prefere inserir essa atividade literaacuteria de Ceacutesar dentro da

tr diccedilatildeo historiograacutefic Embor os comentaacuterios de Ceacutes r fossem tendenciosos e

visassem a auto-glorificaccedilatildeo esses viacutecios natildeo eram exclusivos da autobiografia

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 532) Por conseguinte devemos

considerar os relatos de autores antigos natildeo soacute de Ceacutesar como discursos inseridos em

uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria que possuiacuteam puacuteblico-alvo especiacutefico aleacutem de tambeacutem

propagandearem conceitos sociais e visotildees de mundo (FUNARI GARRAFFONI 2016

p 35) Aleacutem disso apesar de carecer de ornamentos estiliacutesticos e ter tom austero os

assuntos tratados nos comentaacuterios de Ceacutesar ndash como a virtude romana natildeo soacute de Ceacutesar

mas tambeacutem de suas fieacuteis legiotildees aleacutem da exaltaccedilatildeo de uma guerra bem sucedida ndash satildeo

tiacutepicos da historiografia latina madura (LINTOTT in BOARDMAN et al 1986 p

532)212

Independentemente de Ceacutesar ter escrito historiografia autobiografia ou

memoacuteria de toda forma os comentaacuterios sobre a conquista da Gaacutelia ficaram como uacutenico

210

Fornara (1983 p 184) aprofunda essa discussatildeo de gecircnero de composiccedilatildeo do De bello Gallico

destacando que essa obra de Ceacutesar possui caracteriacutesticas tanto de histoacuteria quanto de comentaacuterio e

memoacuteria 211

Cf Poeacutetica 1451b 212

Lintott tambeacutem destacou o caraacuteter poliacutetico do De bello Gallico ―embor Ceacutes r fosse r dic l e

violento em sua proacutepria carreira poliacutetica em se tratando da Gaacutelia ele exaltou as comunidades e suas

caracteriacutesticas de organizaccedilatildeo Apesar da ironia disso Ceacutesar pode ter escrito isso com certa sinceridade

pois Roma tradicionalmente se sentia no dever de socorrer seus aliados para assegurar seu proacuteprio

impeacuterio (In BOARDMAN et al 1986 p 532) Abordamos a questatildeo do dever moral de Roma defender

seus aliados no subcapiacutetulo 212

115

documento escrito por um protagonista dos proacuteprios fatos e que nos chegou de forma

satisfatoacuteria Ele tambeacutem tinha pressa em divulgar suas obras e escolheu justamente o

estilo do comentaacuterio jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo era mais livre do que escrever

historia que seria um processo mais demorado De acordo com Usher (2001 p 138)

como os comentaacuterios foram escritos para publicaccedilatildeo imediata e com claros propoacutesitos

poliacuteticos pode-se deduzir que Ceacutesar considerou a sua forma literaacuteria satisfatoacuteria Como

destaca Guillaumin (in RATTI 2009 p 19) eacute certo que o propoacutesito de Ceacutesar ao

escrever os comentaacuterios natildeo foi unicamente ndash nem mesmo prioritaacuterio ndash a preocupaccedilatildeo

literaacuteria mas sim poder escrever e divulgar rapidamente suas obras com fins

propagandiacutesticos (De bello Gallico) e apologeacuteticos (De bello ciuili)

De todos os instrumentos usados por Ceacutesar para alcanccedilar poder e prestiacutegio os

comentaacuterios de certo er m os m is sofistic dos ―em um tempo em que s riv lid des

poliacutetic s er m express s em p nfletos vulg res e c luacuteni s de todo tipo (MARTIN

GAILLARD 1981 p 119) Sobre o De bello Gallico Conte tambeacutem lembra que Ciacutecero

(Brutus 262) e Hiacutercio (no prefaacutecio do livro VIII do De bello Gallico) afirmaram que

embora Ceacutesar tenha adotado o estilo comentaacuterio que serviria de possiacutevel fonte para

historiadores de tempos vindouros na verdade ningueacutem se atreveria a tentar reescrever

o que Ceacutesar jaacute tinha narrado com incomparaacutevel simplicidade De fato a atitude de Ceacutesar

possivelmente teri escondido um ―truque sob humilde c p o commentarius como

ele escreveu se aproximou da historia (CONTE 1999 p 226)

Sobre a forma em que a obra foi escrita existem algumas discordacircncias entre os

pesquisadores Como Conte ressalta (1999 p 227) alguns estudiosos acreditam que

Ceacutesar compocircs o De bello Gallico ano a ano durante os invernos quando o exeacutercito

ficava aquartelado e as operaccedilotildees militares eram suspensas Essa uacuteltima teoria eacute

favorecida pela existecircncia de certas contradiccedilotildees dentro do trabalho de Ceacutesar o que

seria difiacutecil de explicar se a obra tivesse sido composta de uma soacute vez (CONTE 1999

p 227) Por sua vez a teoria de que Ceacutesar compocircs sua obra de uma vez soacute entre o

inverno de 52 a 51 aC tambeacutem possui um fundamento favoraacutevel a obra tem uma

perceptiacutevel evoluccedilatildeo estiliacutestica que pode ser detectada Sobre essa evoluccedilatildeo estiliacutestica

Conte (1999 p 227) afirma

Such an evolution seems to advance from the bare unadorned style of the

true commentarius towards a style that increasingly allows the typical

ornaments of historia thus in the second half of the work one finds more

116

frequent use of direct discourse and recourse to a greater variety of

synonyms which denotes a certain expansion of the traditional vocabulary213

Seja de uma ou de outra maneira a narrativa de Ceacutesar sobre suas campanhas

militares na Gaacutelia foi publicada provavelmente em 51 aC Sem duacutevida Ceacutesar escreveu

o De bello Gallico com fins propagandiacutesticos pois ele mostrava-se como o comandante

justo e valoroso disposto a defender os romanos e seus ideais Por outro lado pode-se

pensar que o De bello Gallico tambeacutem tenha sido direcionado agrave elite gaulesa receacutem

conquistada Os romanos de acordo com Ceacutesar seriam os responsaacuteveis por trazer

ordem e paz nessa proviacutencia que sofrera tanto por ataques dos germanos como por

ataques internos de outras naccedilotildees gaulesas Nas palavras de Gouvecirca Juacutenior (2012 p

12) ―Ceacutes r com os exempla de suas vitoacuterias oferecia agrave aristocracia gaulesa aculturada

e predisposta a fornecer-lhe apoio poliacutetico a proteccedilatildeo contra os chefes da rebeliatildeo

caracterizados como f ciacutenor s em busc d inst ur ccedilatildeo de um regime tiracircnico

232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo

O De bello Gallico tem estilo claro simples e elegante sem grande variaccedilatildeo no

tom ou no vocabulaacuterio Eacute possiacutevel que Ceacutesar tenha usado um vocabulaacuterio bastante

simples como forma de alcanccedilar o maior nuacutemero de leitores possiacuteveis Evidentemente

Ceacutesar (que escreveu o De analogia)214

adotou as normas do aticismo ndash como escolha

cuidadosa do vocabulaacuterio sem recorrer a palavras raras ou desusadas e o uso de

analogia em oposiccedilatildeo agrave anomalia (asianismo) O texto eacute aacutegil conciso e essencial natildeo haacute

introduccedilatildeo nos comentaacuterios de Ceacutesar ateacute mesmo por questatildeo de estilo Ceacutesar tambeacutem

adotou o uso da 3ordf pessoa para se referir a si mesmo ndash sendo esse recurso empregado

para destacar o protagonista ndash jaacute que o proacuteprio Ceacutesar se coloca como personagem

autocircnomo215

Eacute comum ainda o emprego do discurso indireto o que elimina a

dramaticidade e daacute amplificaccedilatildeo retoacuterica ao texto embora alguns episoacutedios decisivos

213

―T l evoluccedilatildeo p rece vanccedilar do estilo nu e sem adornos do verdadeiro comentaacuterio em direccedilatildeo a um

estilo que cada vez mais permite os tiacutepicos ornamentos da histoacuteria consequentemente na segunda metade

do trabalho eacute possiacutevel encontrar usos mais frequentes do discurso direto e recurso de maior variedade de

sinocircnimos o que denota uma certa expansatildeo do vocabulaacuterio tr dicion l 214

Como jaacute citado na p 112 215

Ceacutesar tomou da Anaacutebase de Xenofonte esse aspecto de se referir a sim mesmo na 3ordf pessoa (ANDREacute

HUS 1974 p 30 a 32)

117

possuam carga dramaacutetica216

Depois de Tuciacutedides toda obra historiograacutefica passou a

conter discursos e Ceacutesar fez uso de discursos (sendo o direto bem raro) e sempre em

momentos estrateacutegicos mas sem banalizaccedilotildees ou dramatizaccedilotildees excessivas da narrativa

Esses discursos fictiacutecios eram um recurso literaacuterio empregado pelo autor para ajudar na

caracterizaccedilatildeo de um personagem ou para explicar uma situaccedilatildeo etc (ANDREacute HUS

1974 p 32) Riggsby (2006 p 142) lembra que geralmente as falas na historiografia

satildeo de personagens importantes (como generais) para dar contexto agrave narrativa ou

fornecer uma anaacutelise da situaccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo do personagem em si em Ceacutesar

como exemplo temos o apelo do eminente Diviciacuteaco em que ele pede ajuda ao general

contra os germanos217

Todavia em vaacuterias vezes os discursos satildeo pronunciados por

personagens menores desconhecidos ateacute que servem como uma quebra na narrativa e

que enriquecem o texto explicando alguns fatos que ocorreram (ou ocorreratildeo) na

narrativa Como exemplo destacamos o trecho IV 7 em que os germanos enviam

embaixadores a Ceacutesar eles sequer foram nomeados

A quibus cum paucorum dierum iter abesset legati ab iis uenerunt quorum

haec fuit oratio Germanos neque priores populo Romano bellum inferre

neque tamen recusare si lacessantur quin armis contendant quod

Germanorum consuetudo [haec] sit a maioribus tradita Quicumque bellum

inferant resistere neque deprecari Haec tamen dicere uenisse inuitos

eiectos domo si suam gratiam Romani uelint posse iis utiles esse amicos

uel sibi agros attribuant uel patiantur eos tenere quos armis possederint

sese unis Suebis concedere quibus ne di quidem immortales pares esse

possint reliquum quidem in terris esse neminem quem non superare possint

() Como distasse destes um caminho de poucos dias vieram embaixadores

d p rte d queles cujo discurso foi este ―que os germ nos natildeo er m os

primeiros que levavam a guerra ao povo romano nem todavia a recusavam

se eram provocados a que lutassem com as armas porque era este o costume

dos germanos transmitido pelo seus antepassados ndash resistir a todos aqueles

que lhes levassem guerra e natildeo fazer suacuteplicas Todavia dizem estas coisas

que eles tinham vindo constrangidos e tinham sido expulsos da paacutetria se os

romanos queriam a sua amizade podiam ser para eles amigos uacuteteis ou lhes

concedam campos ou consitam que eles ocupem aqueles que tinham

possuiacutedo pelas armas Que eles cediam soacute aos suebos aos quais nem sequer

os deuses imortais podiam ser iguais que ningueacutem certamente havia na terra

o qu l natildeo pudesse vencer 218

216

Como na descriccedilatildeo da resistecircncia dos gauleses frente aos romanos (cf BGall VII 22 p 20-21) e na

morte de Pisatildeo Aquitano a ser abordada na p 125 e ssdeste trabalho 217

BGall I 31 p 103-105 Dentre outros discursos diretos citamos a resposta de Ariovisto rei dos

germanos a Ceacutesar em I 36 a fala do proacuteprio Ceacutesar aos seus soldados em I 40 e o discurso de

Vercingetoacuterige exortando os gauleses em VII 29 218

Traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) Outro exemplo desse tipo de discurso tambeacutem pode ser

encontado em BGall VII 21

118

Ainda de acordo com os preceitos da analogia no De bello Gallico haacute uma

precisatildeo relativa ao tempo lugares pessoas e coisas com repeticcedilatildeo dos termos e

vocabulaacuterio teacutecnico (ANDREacute HUS 1974 p 30) Essa repeticcedilatildeo de termos ou

expressotildees ajudava a gravar uma ideia no consciente do leitor e de acordo com

Rambaud (2011 p 186) esse eacute um recurso usado em propagandas para convencer o

puacuteblico A breuitas (concisatildeo) no texto cesariano daacute a impressatildeo de que o comentaacuterio eacute

desprovido de artifiacutecios retoacutericos o que contribui enormemente para conferir ao relato

seu caraacuteter objetivo e dar um verniz de veracidade De acordo com Constans (1964 p

XVII) no prefaacutecio de sua traduccedilatildeo do De bello Gallico esse estilo cru e sem

ornamentos combinava bastante com a imagem seca de um comunicador

Provavelmente Ceacutesar escreveu dessa forma tambeacutem como um modo de que seu texto

denotasse a expressatildeo de uma inteligecircncia precisa e luacutecida unida a um temperamento de

homem de accedilatildeo (CONSTANS 1964 p XVII) Natildeo seraacute possiacutevel saber exatamente mas

o fato eacute que Ceacutesar como homem culto e com fins poliacuteticos claros escreveu seus

comentaacuterios de forma pensada e seus textos fizeram bastante sucesso219

Segundo

Conte (1999 p 229) esse estilo sem ornamentos de Ceacutesar e a rejeiccedilatildeo dos artifiacutecios

retoacutericos para embelezar a narrativa contribuem para dar ao texto uma aura de aparente

objetividade e tom impassiacutevel e distante ao narrador220

Pode-se notar que sob essa

―imp ssivid de e ―dist nci mento haacute muito tempo os estudiosos perceber m

interpretaccedilotildees tendenciosas e distorccedilotildees de eventos para fins de propaganda poliacutetica que

natildeo podem ser desconsideradas De toda forma Conte (1999 p 229) pontua que essa

distorccedilatildeo histoacuterica pode ser percebida em maior escala no De bello ciuili

provavelmente porque essa obra foi escrita para dar suporte agrave candidatura de Ceacutesar para

o seu segundo consulado Para Conte (1999 p 229) ―in ny event the presence of

distortions in both works is undeniable It is never a matter of large-scale falsifications

but of omissions of greater or lesser importance a certain way of presenting the

rel tions between events 221

Evidentemente Ceacutesar possuiacutea seus detratores como ele

219

De acordo com Conte (1999 p 231 e 232) Ceacutesar foi levado a seacuterio pelos seus contemporacircneos natildeo soacute

como homem de Estado mas tambeacutem como escritor ndash como jaacute mencionamos os elogios feitos por Ciacutecero

e Hiacutercio a Ceacutesar na paacutegina 115 deste trabalho Posteriormente autores de historiografia como Liacutevio

Nicolau de Damasco Plutarco Taacutecito e outros apreciaram suas qualidades e utilizaram eventualmente

seu material como fonte 220

Riggsby (2006 p 150 a 155) aprofunda a discussatildeo sobre o papel de Ceacutesar narrador e Ceacutesar

personagem no De bello Gallico 221

―em qu lquer evento presenccedil de distorccedilotildees em mbos os tr b lhos eacute inegaacutevel Nunc eacute um c so de

falsificaccedilatildeo em larga escala mas sim omissotildees de maior ou menor importacircncia uma certa maneira de

present r s rel ccedilotildees entre os eventos

119

mesmo mencionou no De bello Gallico222

Ora Ceacutesar natildeo precisava distorcer

grandemente seus feitos para melhorar sua reputaccedilatildeo caso assim o fizesse seria

facilmente desmentido (OGILVIE In KENNEY 1989 p 316)

Haacute ateacute hoje uma grande discussatildeo sobre a veracidade dos fatos em Ceacutesar ndash

discussatildeo essa que talvez nunca chegue a um consenso Jaacute na Antiguidade Suetocircnio

(Caesar 56 4) relatou que Asiacutenio Poliatildeo acusava Ceacutesar de inexatidatildeo (embora Poliatildeo

se referisse ao relato da guerra civil jaacute que ele natildeo estava com Ceacutesar durante o

proconsulado desse uacuteltimo na Gaacutelia)223

Alguns pesquisadores consideram Ceacutesar um

memorialista sincero que foi inexato por questotildees involuntaacuterias enquanto outros

estudiosos julgam que Ceacutesar foi um mero propagandista sem escruacutepulos como Barwick

e Rambaud (ANDREacute HUS 1974 p 33) Rambaud (2011) de fato dedicou um livro

inteiro a esse assunto224

Constans (1964 p XIII) lembra que para apreciar as informaccedilotildees em Ceacutesar eacute

necessaacuterio observar as fontes que ele utilizou que satildeo de trecircs naturezas relatoacuterios ao

Senado depois de cada campanha relatos dos seus lugares-tenentes e memoacuterias

pessoais ditadas pelo proacuteprio Ceacutesar a seus auxiliares Evidentemente os relatos de Ceacutesar

o favoreciam os dos tenentes tambeacutem possuiacuteam falhas e imprecisotildees como exageros

ou inexatidatildeo sobre informaccedilotildees dos inimigos Qual a consequecircncia dessas

imprecisotildees Para Constans o De bello Gallico seria comparaacutevel ao relato sobre a

guerra da Gaacutelia escrito por outros autores225

De toda forma o corpus cesariano sofreu

grandes modificaccedilotildees uma vez que Otaacutevio determinou com matildeo de ferro o que devia

ser mantido e o que devia ser escondido do puacuteblico De Ceacutes r temos o rel to ―ofici l

dos comentaacuterios e aleacutem dele algumas outras poucas fontes citadas sobretudo por

Suetocircnio Guillaumin (In RATTI 2009 p 19) destaca que no caso especiacutefico do De

bello Gallico essa obra natildeo possui outras fontes que possam demonstrar as distorccedilotildees

222

No BGall (I 44) Ceacutesar disse que o germano Ariovisto fora informado por vaacuterios nobres cidadatildeos

romanos que se matasse Ceacutesar ele obteria reconhecimento desses mesmos romanos 223

O desaparecimento da obra de Asiacutenio Poliatildeo que escreveu depois da batalha de Aacutecio (31 aC)

representa uma grande perda para a literatura latina Seu relato contrapunha Ceacutesar enquanto os

acontecimentos ainda estavam bem recentes (CANFORA 2002 p 405) Ainda de acordo com Canfora

(2002 p 406) ―As Histoacuterias de Asiacutenio er m um seacuterio tent do agrave vulg t lsquo ces ri n ou melhor agrave

verdade posta em circulaccedilatildeo pelos commentarii Otaacutevio censur v s obr s que contr dissessem Ceacutes r e

com Poliatildeo natildeo foi diferente Aleacutem de os escritos de Poliatildeo se oporem a Ceacutesar Otaacutevio tambeacutem lhe nutria

profunda antipatia jaacute que Poliatildeo era aliado de Antocircnio 224

Sobre deformaccedilotildees histoacutericas em Ceacutesar a obra de Rambaud eacute definitiva e analisa de forma profunda

todo o conteuacutedo dos comentaacuterios de Ceacutesar Por conseguinte natildeo aprofundaremos aqui sobre essa questatildeo

de distorccedilatildeo histoacuterica salvo quando necessaacuterio em discussatildeo de passagens especiacuteficas do De bello

Gallico a serem citadas mais adiante neste trabalho 225

Constans (1964 p XIII) lembra que muitos autores simplesmente repetiram o que foi escrito por

Ceacutesar com exceccedilatildeo de Suetocircnio Plutarco e Apiano que parecem mais independentes

120

histoacutericas de Ceacutesar ndash o mesmo natildeo pode ser dito do De bello ciuili mais facilmente

desmentido por outras fontes sobre a guerra civil como o proacuteprio Ciacutecero dentre outros

Ainda de acordo com Constans (1964 p XIII e XIV) a escrita do De bello

Gallico foi raacutepida226

e o uso das fontes por parte dele tambeacutem comprometeu a

qualidade do trabalho Constans afirma que as fontes histoacutericas de Ceacutesar eram boas mas

as geograacuteficas eram mediacuteocres As indicaccedilotildees de Ceacutesar sobre a localizaccedilatildeo de diferentes

partes da Gaacutelia e da Britacircnia foram equivocadas ele se utilizou de mapas errocircneos e ele

proacuteprio natildeo se preocupou em corrigir esse tipo de falha (CONSTANS 1964 p XIV)

Justamente por essas omissotildees deformaccedilotildees e exageros a obra carece de um completo

valor histoacuterico Em certa medida as obras de Ceacutesar foram improvisadas e escritas em

circunstacircncias bem especiacuteficas e natildeo se pode deixar de ter isso em mente ao se estudar

os comentaacuterios (CONSTANS 1964 p XV) 227

De acordo com Andreacute e Hus (1974 p

36) podemos admirar o Ceacutesar escritor e na falta de outras fontes importantes dos

acontecimentos que ele narra natildeo daacute para simplesmente ignorar sua obra apenas ter

cuidado com essas distorccedilotildees

Quanto agrave sua proacutepria imagem Ceacutesar se mostrou no De bello Gallico como um

ceacuterebro que pensa nas batalhas um general dotado de surpreendente conhecimento da

arte da guerra uma vez que a organizaccedilatildeo de uma campanha eacute um jogo intelectual e

inteligente Canfora (2002 p 126) lembra que as lendas de Ceacutesar como comandante

militar se consolidaram pouco a pouco e que essas lendas eram provavelmente

baseadas em fatos reais era famosa a resistecircncia fiacutesica de Ceacutesar sua camaradagem e

sua capacidade de suportar a dureza diaacuteria da vida militar apesar de ele ter sido um

homem ristocraacutetico e culto ―se submeti com gilid de e obstin ccedilatildeo agrave m is aacutesper e

perigos d s disciplin s (CANFORA 2002 p 127) Ele conheci os p iacuteses e homens

que combatia e apreciava nos chefes gauleses a sua grandeza de alma a energia a

coragem o espiacuterito de decisatildeo que suplanta a inferioridade teacutecnica e a desuniatildeo

(ANDREacute HUS 1974 p 35) Ceacutesar tambeacutem aparece no De bello Gallico como um

general que sempre agiu dentro da lei um poliacutetico moderado do qual natildeo se deveria

esperar arroubos revolucionaacuterios

Embora se mostrasse como general habilidoso Ceacutesar contudo natildeo criou em

torno de si uma aura de carisma o proacuteprio tom do comentaacuterio e o distanciamento

226

Como mencionamos na p 115 Ceacutesar precisava se justificar perante Roma daiacute a pressa para divulgar

seus comentaacuterios 227

Sobre interpolaccedilotildees de cunho geograacutefico em Ceacutesar ver Constans (1964 p XIV)

121

causado pelo uso da 3ordf pessoa justificam esse fato e aleacutem disso o general romano

buscava a sutileza ao se auto vangloriar em suas obras228

Sobre o De bello Gallico

Conte considera que essa obra natildeo pode ser lida apenas como uma glorificaccedilatildeo de uma

conquista militar segundo ele (1999 p 230) jaacute era um costume estabelecido do

imperialismo romano apresentar as guerras de conquista como sendo necessaacuterias para a

proteccedilatildeo do Estado romano e seus aliados contra os perigos que se levantavam no

estrangeiro Aleacutem disso Ceacutesar se dirige agrave aristocracia gaulesa assegurando-lhes de sua

proteccedilatildeo contra os homens sem lei que por traacutes de ideais de independecircncia ocultavam

sua aspiraccedilatildeo agrave tirania (CONTE 1999 p 230)

233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar

Na introduccedilatildeo deste trabalho abordamos a questatildeo da humanitas Alguns outros

conceitos fundamentais para os romanos tambeacutem aparecem em Ceacutesar e em Tito Liacutevio

sendo elementos-chave dentro dos textos em termos de estabelecer algumas questotildees

culturais por esse motivo discutiremos um pouco mais sobre eles nas proacuteximas linhas

O primeiro desses importantes elementos de que falaremos eacute a sorte (fortuna) poreacutem

ela natildeo eacute representada como uma divindade (CONTE 1999 p 230) Ainda segundo

Conte (1999 p 230) a fortuna eacute

() a concept that serves to explain sudden changes in a situation an

imponder ble f ctor th t sometimes ids C es rlsquos enemies too it is bove

ll wh t lies beyond m nlsquos bilities of foresight nd r tion l control C es r

attempts to explain events trough human and natural causes to grasp clearly

their inner logic and he practically never has recourse to divine

intervention229

O p pel d sorte e do c so n historiogr fi l tin se deve Poliacutebio ―Poliacutebio

tambeacutem seraacute uma das fontes de inspiraccedilatildeo da noccedilatildeo de papel decisivo do acaso (tykheacute

fortuna em latim) divindade que explica tanto as improbabilidades como a sorte

quilo que p receraacute em divers s n rr tiv s historiograacutefic s l tin s como felicitas (o

b fejo d sorte) (FUNARI GARRAFFONI 2016 p 34) Citamos alguns exemplo

228

Cf Riggsby (2006 p 150 a 155) sobre a 3ordf pessoa em Ceacutesar e a questatildeo do Ceacutesar narrador e do Ceacutesar

personagem 229

―( ) um conceito que serve p r explicar mudanccedilas repentinas em uma situaccedilatildeo um fator

imponderaacutevel que ora auxilia tambeacutem os inimigos de Ceacutesar eacute acima de tudo o que estaacute aleacutem das

habilidades de previsatildeo de controle racional do homem Ceacutesar tenta explicar os eventos atraveacutes de causas

humanas e naturais compreender claramente a sua loacutegica interna e ele praticamente nunca recorre agrave

intervenccedilatildeo divin

122

como em (BGall I 53) em que Ceacutesar mencionou que seu amigo Caio Valeacuterio Procilo

prisioneiro de Ariovisto foi resgatado incoacutelume graccedilas agrave fortuna

Quae quidem res Caesari non minorem quam ipsa uictoria uoluptatem

attulit quod hominem honestissimum prouinciae Galliae suum familiarem et

hospitem ereptum ex manibus hostium sibi restitutum uidebat neque eius

calamitate de tanta uoluptate et gratulatione quicquam fortuna deminuerat

Is se praesente de se ter sortibus consultum dicebat utrum igni statim

necaretur an in aliud tempus reseruaretur sortium beneficio se esse

incolumem Item M Metius repertus et ad eum reductus est

Este fato na verdade natildeo trouxe a Ceacutesar uma alegria menor do que a proacutepria

vitoacuteria porque via que o homem mais honesto da proviacutencia da Gaacutelia seu

amigo e hoacutespede lhe fora restituiacutedo salvo das matildeos dos inimigos nem com

a morte deste a fortuna diminuiacutera coisa alguma de tamanho prazer e

felicitaccedilatildeo Este estando ele presente dizia que consultara trecircs vezes as

sortes acerca daquele se porventura seria imediatamente morto no fogo ou

se estaria guardado para outro tempo que ele estava incoacutelume por benefiacutecio

das sortes230

No livro II 20 a 22 Ceacutesar surpreendido por um ataque dos neacutervios mal tem

tempo de dispor o exeacutercito para a batalha por causa dessa improvisaccedilatildeo ele disse

itaque in tanta rerum iniquitate fortunae quoque euentus uarii sequebantur ―por isso

em tamanha desigualdade de vantagens tambeacutem deviam seguir-se variados os sucessos

d fortun 231

No De bello Gallico (VII 89) Ceacutesar escreveu que Vercingetoacuterige se

rendeu visto que devia ceder agrave fortuna jaacute que ele natildeo conseguira derrotar os romanos

Postero die Vercingetorix concilio conuocato id bellum se suscepisse non

suarum necessitatium sed communis libertatis causa demonstrat et quoniam

sit fortunae cedendum ad utramque rem se illis offerre seu morte sua

Romanis satisfacere seu uiuum tradere uelint Mittuntur de his rebus ad

Caesarem legati

No dia seguinte Vercingetoacuterige convocada uma assembleia demonstra que

ele empreendera esta guerra natildeo por causa das suas necessidades mas por

causa da liberdade comum e visto que se deve ceder agrave fortuna oferece-se

agravequeles para uma e outra coisa quer desejem satisfazer aos romanos com a

sua morte quer entregaacute-lo vivo Acerca destas coisas satildeo enviados

embaixadores a Ceacutesar232

Outro conceito que teve destaque em Ceacutesar foi a clemecircncia (clementia) Ainda

no seacuteculo I aC Roma jaacute enfrentara uma sangrenta guerra civil entre Maacuterio e Sila e

menos de um seacuteculo depois uma outra guerra civil entre Ceacutesar e Pompeu Depois desse

conflito entre esses generais muitos esperavam novas proscriccedilotildees e banhos de sangue

230

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 231

BGall II 22 em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 232

Em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946)

123

Ceacutesar contudo sempre se mostrou publicamente como um general clemente e foi

justamente essa sua caracteriacutestica que contribuiu para a sua ruiacutena Ora essa

caracteriacutestica tambeacutem foi usada habilmente por Ceacutesar em seus escritos Em suas obras

Ceacutesar mostrou justamente sua clemecircncia com os derrotados em contraste com a

crueldade dos seus inimigos conquistando assim a opiniatildeo puacuteblica233

Pereira (1984 p

358) afirma que a clementia eacute um ―termo poliacutetico especi lmente dequ do fin lid des

de propaganda goza de uma aura extraordinaacuteria no tempo das guerras civis e fica

particularmente ligado agrave figura de Ceacutesar a quem o Senado honra com um templo

dedicado agrave Clementia Caesaris ( ) Ceacutesar embora buscasse o poder individual

colocou em praacutetica uma forma de governar original ele buscava mobilizar

mesmo entre seus inimigos as melhores forccedilas e aleacutem disso natildeo exercia

qualquer tipo de censura cultural ou sobre trabalhos intelectuais (CANFORA

2002 p 421) O sucessor de Ceacutesar Otaacutevio natildeo adotaraacute essa praacutetica pelo

contraacuterio ele exerceraacute censur com matildeo de ferro ―( ) que no plano poliacutetico

simul raacute um rest ur ccedilatildeolsquo republic n e no pl no cultur l pr tic raacute um

intervencionismolsquo destin do se torn r modelo p r experiecircnci s sinistr s

(CANFORA 2002 p 421) Como exemplo emblemaacutetico da clemecircncia de Ceacutesar

temos o episoacutedio em que ele confiou a Varratildeo (ex partidaacuterio de Pompeu) a tarefa

de abrir uma biblioteca puacuteblica greco-latina em Roma e de receber a maior

quantidade possiacutevel de obras e colocar esse material agrave disposiccedilatildeo do puacuteblico

Otaacutevio por outro lado ditava ordens precisas ao bibliotecaacuterio Pompeu Macro

especificando quais obras poderiam ser puacuteblicas e quais natildeo (CANFORA 2002

p 423) Ceacutesar buscava a aprovaccedilatildeo do povo para essa sua postura mas seu grande erro

contudo foi ter tido clemecircncia para com seus mais determinados inimigos que o

233

Eacute importante lembrar que a clemecircncia de Ceacutesar se dirigia apenas a seus concidadatildeos seus pares e

iguais mas ele foi extremamente cruel com os povos vencidos como os gauleses Todavia Rambaud

(2011 p 283) questiona a tatildeo famosa clemecircncia cesariana lembrando de vaacuterios exemplos de vinganccedila

praticados pelo general como o episoacutedio em que ele se vingou cruelmente dos piratas que o

sequestraram aleacutem de ter se envolvido em obscuras mortes de seus rivais como Luacutecio Ceacutesar Fausto etc

Por outro lado Veyne (In GIARDINA 1992 p 293 e 294) destaca que em relaccedilatildeo aos gauleses Ceacutesar

soacute foi impiedoso com os baacuterbaros rebeldes que teimavam em desafiar o poder de Roma a fim de dar um

exemplo aos outros possiacuteveis revoltosos como em BGall II 33 em que os romanos arrasaram com os

aduaacuteticos que tinham preparado uma cilada noturna para Ceacutesar Quanto aos neacutervios que tentaram resistir

mas natildeo conseguiram vencer as legiotildees romanas Ceacutesar poupou os vencidos e natildeo saqueou suas aldeias a

fim de mostr r todos os g uleses que ele er misericordioso com os ―infelizes e suplic ntes (BGall II

28) Quanto ao uso da clemecircncia de Ceacutesar para fins propagandiacutesticos e justificatoacuterios para a conquista da

Gaacutelia cf Rambaud (2011 p 272 a 275)

124

assassinaram234

Nesse aspecto e com a sua juventude Otaacutevio tomou uma decisatildeo mais

acertada politicamente se tornando um dos governantes com mais longevo comando

A uirtus tambeacutem eacute um conceito de destaque no De bello Gallico O termo uirtus

estaacute relacionado a uir (homem) e como destaca Pereira (1993 p 407) uir significaria

―ser homem no sentido de ―ser homem direito Virtus comumente traduzida por

virtude signific v ―v lenti ou ―cor gem em princiacutepio em sentido militar e

posteriormente designando tambeacutem a virtude de caraacuteter (PEREIRA 1993 p 407) Pelo

contexto do De bello Gallico o eacutetimo uirtus aparece vaacuterias vezes para designar

momentos de coragem dos romanos e o mais surpreendente designar tambeacutem a

valentia dos gauleses Ceacutesar se preocupou em deixar registrado o elogio agrave uirtus dos

seus proacuteprios soldados um dos fatores decisivos de sua vitoacuteria natildeo soacute na guerra da

Gaacutelia mas tambeacutem na guerra civil Para Conte (1999 p 229) natildeo se pode separar esse

enaltecimento dos soldados da poliacutetica cesariana de inserir homines noui (homens

novos) de origem militar no Senado aleacutem disso Ceacutesar tinha uma preocupaccedilatildeo com a

posteridade ao preservar nomes de centuriotildees e soldados que se distinguiram em atos

de heroiacutesmo235

Quanto ao termo uirtus em si Gruen (2011a p 150) detalha que esse

eacutetimo foi usado 31 vezes para descrever os gauleses 28 vezes para falar dos romanos e

5 vezes para os germanos Constatamos que Ceacutesar usou desse conceito para descrever

os gauleses como valentes e bravos de forma a aumentar ainda mais seu meacuterito (e de

seus soldados) que foram capazes de vencer tatildeo forte inimigo Jaacute no primeiro capiacutetulo

do De bello Gallico Ceacutesar (I 1) assim escreveu sobre os helveacutecios

() Qua de causa Heluetii quoque reliquos Gallos uirtute praecedunt quod

fere cotidianis proeliis cum Germanis contendunt cum aut suis finibus eos

prohibent aut ipsi in eorum finibus bellum gerunt ()

Pelo mesmo motivo os helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em

coragem jaacute que lutam em combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer

quando os afastam de suas fronteiras quer quando levam por si a guerra aos

territoacuterios daqueles

234

Como Konstan (2005 p 337) destaca os contemporacircneos de Ceacutesar da aristocracia percebiam a

clemecircncia cesariana natildeo como virtude mas sim como uma manifestaccedilatildeo de seu poder tiracircnico jaacute que era

um gesto de complacecircncia do superior para com o inferior a aristocracia senatorial se considerava em peacute

de igualdade com Ceacutesar e ficou ressentida de ser tratada por ele como se fosse alvo de uma caridade

condescendente Ciacutecero em carta a Aacutetico (XIV 221) falou que foi justamente a clemecircncia de Ceacutesar que

permitiu o seu assassinato e que embora a clemecircncia fosse um gesto louvaacutevel ela devia ser evitada em

tempos difiacuteceis como o da guerra civil Konstan (2005) aprofunda mais a discussatildeo sobre a clemecircncia

tanto a de Ceacutesar quanto a tratada por Secircneca no De clementia 235

O que justifica o registro de discursos dos personagens anocircnimos ou pouco importantes em Ceacutesar (cf

p 117)

125

Gruen (2011a p 150) afirma que Ceacutesar usou essa denominaccedilatildeo latina para os

gauleses para demonstrar que esses possuiacuteam caracteriacutesticas semelhantes aos romanos

(as mesmas aspiraccedilotildees e qualidades) e por conseguinte para unir as naccedilotildees em um

niacutevel profundo Ceacutesar tambeacutem recorreu a termos latinos para descrever os gauleses de

modo a facilitar a compreensatildeo do seu puacuteblico sobre uma sociedade tatildeo diferente dos

romanos Assim tem um grande destaque na narrativa o episoacutedio de Pisatildeo o aquitano

(BGall IV 12)

At hostes ubi primum nostros equites conspexerunt quorum erat V milium

numerus cum ipsi non amplius octingentos equites haberent quod ii qui

frumentandi causa ierant trans Mosam nondum redierant nihil timentibus

nostris quod legati eorum paulo ante a Caesare discesserant atque is dies

indutiis erat ab his petitus impetu facto celeriter nostros perturbauerunt

rursus his resistentibus consuetudine sua ad pedes desiluerunt subfossis

equis conpluribusque nostris deiectis reliquos in fugam coniecerunt atque ita

perterritos egerunt ut non prius fuga desisterent quam in conspectum

agminis nostri uenissent In eo proelio ex equitibus nostris interficiuntur

quattuor et septuaginta in his uir fortissimus Piso Aquitanus amplissimo

genere natus cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu

nostro appellatus Hic cum fratri intercluso ab hostibus auxilium ferret illum

ex periculo eripuit ipse equo uulnerato deiectus quoad potuit fortissime

restitit cum circumuentus multis uulneribus acceptis cecidisset atque id

frater qui iam proelio excesserat procul animaduertisset incitato equo se

hostibus obtulit atque interfectus est

Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil

(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que

atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em

nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-

se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles

rapidamente nos desordenaram com um ataque Novamente resistindo os

nossos saltaram eles de peacute conforme seu costume matando os cavalos

montados e derrubando em maior nuacutemero os nossos puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute

virem agrave presenccedila de nossa tropa Nesse combate satildeo mortos setenta e quatro

dos nossos cavaleiros entre eles um homem fortiacutessimo Pisatildeo Aquitano

nascido de importantiacutessima famiacutelia cujo avocirc obtivera o comando em sua

cidade e que for ch m do migolsquo por nosso sen do Lev ndo ele uxiacutelio o

irmatildeo cercado por inimigos livrou-o do perigo ele mesmo derrubado de

seu cavalo ferido resistiu muito bravamente enquanto pode rodeado tombou

ao receber vaacuterios ferimentos Notando-o de longe o irmatildeo que jaacute deixara a

batalha esporeou seu cavalo lanccedilou-se contra os inimigos e foi morto

Nesse episoacutedio temos o contexto do ataque empreendido pelos usipetes e

tencteros (n ccedilotildees germacircnic s no trecho cim design d s por ―inimigos) agrave c v l ria

gaulesa de Ceacutesar sendo que esses mesmos povos tinham solicitado uma treacutegua a Ceacutesar

que eles mesmos desrespeitaram Esse trecho dedicado a narrar a accedilatildeo heroica de um

gaulecircs a serviccedilo de Roma eacute significativo Devemos sempre ter em mente que Ceacutesar natildeo

apenas se preocupou em narrar os acontecimentos mas a forma como o fez tambeacutem eacute

126

muito importante tudo nos comentaacuterios foi escrito com propoacutesitos bem especiacuteficos

como autopropaganda e finalidade poliacutetica Assim o relato da morte de Pisatildeo Aquitano

estaacute revestido de significados A traiccedilatildeo por parte dos germanos justifica o posterior

massacre que eles sofrem de Ceacutesar aleacutem disso esse fato valorizava os gauleses que

estavam do lado dos romanos mostrando que eles eram reconhecidos Como Brown

(2014 p 392) destaca nos comentaacuterios eacute comum essas descriccedilotildees de mortes de

indiviacuteduos em atos heroicos em batalhas ndash sobretudo as que foram perdidas por Ceacutesar ndash

como se essas narrativas servissem para compensar a derrota e aliviar o fracasso A

caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo eacute feita com contornos eacutepicos antes de ter seu nome citado ele

foi descrito como uir fortissimus (homem fortiacutessimo) aleacutem disso ele era de famiacutelia

importante (amplissimo genere natus) e seu avocirc fora um proeminente liacuteder de sua

cidade considerado amigo dos romanos e muito provavelmente cidadatildeo romano ele

proacuteprio (cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu nostro

appellatus) Apesar de natildeo diretamente especificado pode-se considerar Pisatildeo piedoso

(pius) pelo fato de ele ter se sacrificado para salvar o irmatildeo ato que o proacuteprio irmatildeo

retribui ao se sacrificar tambeacutem por Pisatildeo (BROWN 2014 p 393)236

Em uma anaacutelise

ingecircnua pode-se acreditar que Ceacutesar narrou esse episoacutedio porque genuinamente

admirou a atitude de Pisatildeo mas como Brown pontua (2014 p 393) Ceacutesar

provavelmente quis dar contornos nobres e eacutepicos a um episoacutedio bastante controverso o

do massacre dos germanos A morte do nobre e valoroso Pisatildeo tambeacutem acentua a

proacutepria falta de caraacuteter e perfiacutedia dos usipetes e tencteros que desrespeitaram a treacutegua e

atacaram a cavalaria gaulesa (LEE 1969 apud BROWN 2014 p 395) Aleacutem disso

percebe-se que os gauleses muito corajosos todavia entravam em pacircnico quando

percebiam que a luta estava perdida nas palavras de Ceacutesar os germanos aterrorizaram

os gauleses reliquos in fugam coniecerunt atque ita perterritos egerunt ut non prius

fuga desisterent quam in conspectum agminis nostri uenissent (puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute virem agrave

presenccedila de nossa tropa)237

O ato de coragem de Pisatildeo tambeacutem redime a falta de

236

A pietas um dos valores romanos consistia em um sentimento de devoccedilatildeo e lealdade para com a

famiacutelia e em sentido mais amplo para com o Estado (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Quanto a outros

episoacutedios de narrativas eacutepicas envolvendo a morte de irmatildeos em batalhas cf Brown (2014 p 394) 237

A imagem do gaulecircs corajoso a princiacutepio e depois se acovardando eacute um clichecirc recorrente Ceacutesar

mencionou sobre a falta de coragem dos gauleses em De bello Gallico III 19 Nam ut ad bella

suscipienda Gallorum alacer ac promptus est animus sic mollis ac minime resistens ad calamitates

ferendas mens eorum est (De fato assim como o acircnimo dos gauleses eacute impetuoso e pronto para

empreender guerras tambeacutem o espiacuterito deles eacute fraco e muito pouco resistente para suportar os desastres)

em traduccedilatildeo nossa Esse tema aparece tambeacutem em Poliacutebio (Hist II 356)

127

coragem dos gauleses frente a uma luta perdida e ainda acentua o papel da cooperaccedilatildeo

gaulesa em lutar com os romanos contra a barbaacuterie germana com seu nome romano e

seus valores de uirtus e pietas Pisatildeo se aproximava dos romanos e era colocado em um

poacutelo diferente dos baacuterbaros

Ainda sobre essa descriccedilatildeo nas palavras de Brown (2014 p 396)

It is striking however and in my view deliberate that Caesar devotes the

first battle obituary in the Gallic War to a warrior of Gallic origin whose

Gallo-Roman identity resonates with a context that anticipates in several

ways the ethnographic comparison of Gauls and Germans in Book Six238

De fato percebe-se jaacute nesse trecho que os gauleses estavam mais abertos ao

contato com os romanos enquanto que os belgas germanos eram mais ferozes e natildeo

seriam abarcados pela romanizaccedilatildeo239

A tendecircncia comum dos germanos agrave perfiacutedia natildeo

era meramente um sinal de criminalidade mas tambeacutem era um sinal de sua total

separaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo humana (RIGGSBY 2006 p 61) Ao mostrar esse feito

heroico de um membro importante da sociedade aquitana Ceacutesar tambeacutem demonstrou

que agrave elite conquistada estava aberta a via para o estabelecimento de um muacutetuo

relacionamento com Roma possibilitando trocas comerciais e culturais240

Como

Canfora (2002 p 150) lembra

Haacute em Ceacutesar o acircnimo do grande colonizador impiedade paternalismo

astuacutecia mas tambeacutem grande disposiccedilatildeo para compreender e estudar os

sujeitos-viacutetimas de sua accedilatildeo Natildeo eacute puro acaso por exemplo que o grande

excursus sobre os costumes e a religiatildeo dos celtas e dos germanos ndash que

ocupa grande parte do livro sexto ndash figure exatamente aiacute como a explicar

atraveacutes da anaacutelise etnograacutefica e socioloacutegica as razotildees da derrota daqueles

povos no momento em que se punha a caminho sua grande e infausta

rebeliatildeo Como grande colonizador estudou seriamente os povos com os

quais iria ter de lidar e coabitar e sobre os quais tatildeo longamente iria governar

238

―Eacute marcante e contudo a meu ver eacute deliberado que Ceacutesar tenha dedicado o primeiro obituaacuterio de uma

batalha na Guerra da Gaacutelia a um soldado de origem gaulesa cuja identidade galo-romana ressoa em um

contexto que antecipa de vaacuterias formas a comparaccedilatildeo etnograacutefica entre gauleses e germanos no livro

sexto 239

Cf o trecho de De bello Gallico VI 24 nas paacuteginas 128 e tambeacutem BGall I 1 p 124 240

Rambaud (2011 p 275) destaca tambeacutem que como Ceacutesar ocupou o proconsulado da Gaacutelia

Narbonense depois de Fonteio ele tinha certa preocupaccedilatildeo em conseguir o apoio dos provincianos dessa

forma o general louvou a coragem dos gauleses (na figura de Pisatildeo) e tambeacutem no fato de Ceacutesar justificar

a guerra dizendo que os eacuteduos lhe pediram ajuda (BGall I 30) dentre outros exemplos

128

24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico

Quanto ao que Ceacutesar escreveu sobre gauleses e germanos a imagem que o

general romano criou sobre esses povos foi bastante complexa Um dos motivos para os

gregos (e depois os romanos) considerarem o baacuterbaro como sendo inferior se devia agrave

sua inferioridade cultural como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho241

Dessa

maneira o baacuterbaro ndash regido natildeo pelos valores relacionados agrave humanitas mas sim agrave

ferocitas ndash era considerado inferior aos romanos mas ao baacuterbaro o acesso agrave humanitas

era possiacutevel242

Aleacutem disso havia entre os poacutelos civilizaccedilatildeo-barbaacuterie degraus

intermediaacuterios e o civilizado tambeacutem natildeo estava imune de se tornar baacuterbaro assim

como o baacuterbaro poderia se civilizar Assim temos em Ceacutesar (BGall VI 24)

Ac fuit antea tempus cum Germanos Galli uirtute superarent ultro bella

inferrent propter hominum multitudinem agrique inopiam trans Rhenum

colonias mitterent Itaque ea quae fertilissima Germaniae sunt loca circum

Hercyniam siluam quam Eratostheni et quibusdam Graecis fama notam esse

uideo quam illi Orcyniam appellant Volcae Tectosages occupauerunt atque

ibi consederunt quae gens ad hoc tempus his sedibus sese continet

summamque habet iustitiae et bellicae laudis opinionem Nunc quod in

eadem inopia egestate patientiaque Germani permanent eodem uictu et

cultu corporis utuntur Gallis autem prouinciarum propinquitas et

transmarinarum rerum notitia multa ad copiam atque usus largitur paulatim

adsuefacti superari multisque uicti proeliis ne se quidem ipsi cum illis uirtute

comparant

Houve antes um tempo em que os gauleses superavam os germanos em

virtude levavam-lhes por si as guerras espontaneamente e por causa da

multidatildeo de homens e da falta de terra enviavam colocircnias ao outro lado do

Reno Assim os volcos tectoacutesagos ocuparam aqueles lugares que satildeo os mais

feacuterteis da Germacircnia ao redor da floresta Herciacutenia ndash a qual vejo que eacute

conhecida de Eratoacutestenes e de alguns gregos pela fama eles que a chamavam

de ―Orciacuteni e iacute eles se est belecer m Esses povos ateacute nosso tempo

mantecircm-se nessas paragens e detecircm a mais elevada reputaccedilatildeo de justiccedila e de

gloacuteria beacutelica Atualmente como os germanos se conservam na mesma

pobreza privaccedilatildeo e sofrimento eles fazem uso dos mesmos viacuteveres e dos

mesmos trajes por outro lado a proximidade das proviacutencias e o

conhecimento dos itens de aleacutem mar propiciam aos gauleses muitos meios

para a fartura e a comodidade e aos poucos acostumados a serem superados e

vencidos em muitos combates sequer se comparam eles proacuteprios aos

germanos em bravura

Se por um lado ao baacuterbaro fosse possiacutevel o acesso agrave civilizaccedilatildeo natildeo deixa de ser

curioso notar que para Ceacutesar esse mesmo contato com a civilizaccedilatildeo enfraquecia o

baacuterbaro como ele deixou claro no trecho acima ao dizer que os gauleses perderam sua

forccedila e bravura por causa da proximidade com Roma de fato foi-se a eacutepoca em que os

241

Cf p 30-32 242

Cf p 40 e ss

129

gauleses excediam os germanos em virtude Nesse contexto uirtus designa algo aleacutem da

mera coragem em batalha Ceacutesar usou o termo para se referir a uma ferocidade baacuterbara

primitiva O comeacutercio e fluxo de mercadorias foram ferramentas importantes no

processo de romanizaccedilatildeo e de submissatildeo do gaulecircs como o proacuteprio Ceacutesar mencionou

no De bello Gallico ao dizer que os gauleses se civilizaram pelo contato com os

romanos243

O traccedilo caracteriacutestico da ferocidade do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era

explicado por questotildees geograacuteficas244

Sobre a questatildeo da geografia como sendo

determinante na questatildeo da barbaacuterie retomamos o que Ceacutesar escreveu (BGall I 1)

Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam

Aquitani tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur Hi

omnes lingua intitutis legibus inter se differunt Gallos ab Aquitanis

Garumna flumen a Belgis Matrona et Sequana diuidit Horum omnium

fortissimi sunt Belgae propterea quod a cultu atque humanitate prouinciae

longissime absunt minimeque ad eos mercatores saepe commeant atque ea

quae ad effeminandos animos pertinent inportant proximique sunt Germanis

qui trans Rhenum incolunt quibuscum continenter bellum gerunt

Toda a Gaacutelia eacute dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os

aquitanos a outra e a terceira habitam aqueles que em sua proacutepria liacutengua satildeo

ch m dos ―celt s n noss ―g uleses Todos esses diferem entre si pel

liacutengua pelos costumes e pelas leis O rio Garona separa os gauleses dos

aquitanos dos belgas os rios Marne e Sena De todos esses os mais

corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da civilizaccedilatildeo e

urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e importam

aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque estatildeo

proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com esses

travam guerra constantemente

No trecho cim Ceacutes r escreveu ―tod Gaacuteli eacute dividid em trecircs p rtes

(Gallia est omnis diuisa in partes tres) ou seja embora Ceacutesar tenha feito uma divisatildeo

por aacutereas e naccedilotildees a Gaacutelia foi retratada como um todo ndash como se observa pelo vocaacutebulo

omnis Nota-se que o rio Reno tambeacutem servia para delimitar a Gaacutelia e separar gauleses

de germanos245

Tratar a Gaacutelia como unidade era importante para Ceacutesar ele queria

mostrar que ao contraacuterio dos seus antecessores ele iria conquistar todo esse territoacuterio

243

Jaacute eacute possiacutevel notar mudanccedila na sociedade gaulesa do periacuteodo de Poliacutebio ateacute Ceacutesar Como escreveu

Poliacutebio os gauleses habitavam em aldeias tinham um modo de vida bastante simples praticavam apenas

a agricultura eou a guerra e eram nocircmades (cf nota 87 p 48) nesse mesmo trecho de Poliacutebio tambeacutem eacute

possiacutevel perceber que os gauleses natildeo possuiacuteam artes ou ciecircncias e tambeacutem natildeo haacute menccedilatildeo aos druidas

Jaacute em Ceacutesar como pudemos ver os gauleses passaram a ter contato com os romanos acesso a bens e

mercadorias mais refinados e deixaram de ser nocircmades 244

Abordamos essa questatildeo bem como a teoria hipocraacutetica de que a geografia explicaria o temperamento

e constituiccedilatildeo fiacutesica dos indiviacuteduos na p 32 e 33 245

Cf a fala de Diviciacuteaco (I 31) nas paacuteginas 103-105 deste trabalho

130

de forma definitiva o que ressaltava sua importacircncia para seu puacuteblico em Roma de

fato a urbe concedia a gloacuteria do triunfo aos generais que natildeo apenas venceram batalhas

importantes mas que tambeacutem subjugaram os inimigos completamente (RIGGSBY

2006 p 68)246

Outro fato que ajuda a corroborar essa teoria foi que Ceacutesar ao inveacutes de

ter mantido a separaccedilatildeo entre as naccedilotildees gaulesas se assim o quisesse na verdade

celebrou a conquista da Gaacutelia em um uacutenico triunfo no ano de 46 aC (RIGGSBY

2006 p 144)

Aleacutem disso Ceacutesar deixou claro que os belgas soacute eram mais fortes porque

estavam distantes da proviacutencia romana (fator civilizatoacuterio e de certa forma causador de

enfraquecimento de um povo) e proacuteximos dos germanos com os quais lutavam

frequentemente A humanitas era fator de enfraquecimento e no trecho acima Ceacutesar

escreveu ―ad effeminandos animos ndash liter lmente tr duccedilatildeo seri ―p r femin r os

acircnimos Or o uso desse termo effeminandos natildeo eacute mero acaso e forma um paralelo

diametralmente oposto ao conceito de uirtus ligado em sua essecircncia ao termo uir

(homem) e que depois passou a significar dentre outras ideias a virtude247

Dessa

maneira tanto a proximidade da proviacutencia quanto a proacutepria humanitas facilitavam a

submissatildeo dos baacuterbaros ao poderio de Roma248

Por conseguinte a proximidade com os germanos aumentava a uirtus jaacute a

proximidade com a proviacutencia romana diminuiacutea a uirtus Por esse raciociacutenio podemos

pensar que haacute uma gradaccedilatildeo da uirtus sendo os germanos o poacutelo mais forte e feroz e os

romanos o mais fraco todavia no relato de Ceacutesar essa gradaccedilatildeo esconde um truque

embora aparentemente tivessem uma uirtus menos elevada os romanos conseguiram

vencer natildeo soacute os gauleses mas tambeacutem os germanos (RIGGSBY 2006 p 84) Ainda

sobre a forccedila dos belgas Ceacutesar foi informado de que eles eram de origem germacircnica

Assim temos no De bello Gallico II 4

Cum ab his quaereret quae ciuitates quantaeque in armis essent et quid in

bello possent sic reperiebat plerosque Belgas esse ortos ab Germanis

246

O triunfo consistia na entrada solene do general vitorioso e de suas tropas em Roma com as maiores

gloacuterias militares O triunfo era autorizado pelo Senado e as ruas e edifiacutecios deviam ser ornados com toda

a pompa O cortejo se organizava no Campo de Marte e o desfile seguia ateacute o templo de Juacutepiter

Capitolino e era acompanhado por todos os senadores magistrados e cidadatildeos importantes Para mais

detalhes sobre como era o triunfo cf Canfora (2002 p 494) 247

Jaacute falamos mais detalhadamente do termo uirtus na p 124 e ss 248

Seguindo esse paradigma entre distacircncia da proviacutencia e niacutevel de barbaacuteriecivilidade eacute possiacutevel

perceber como os eacuteduos e os aquitanos ateacute pela proximidade desses territoacuterios com a urbe eram mais

abertos a Roma e considerados aliados (cf o trecho do BGall I 31 citado entre as paacuteginas 103-105 deste

trabalho)

131

Rhenumque antiquitus traductos propter loci fertilitatem ibi consedisse

Gallosque qui ea loca incolerent expulisse solosque esse qui patrum

nostrorum memoria omni Gallia uexata Teutonos Cimbrosque intra fines

suos ingredi prohibuerint qua ex re fieri uti earum rerum memoria magnam

sibi auctoritatem magnosque spiritus in re militari sumerent

Como Ceacutesar lhes perguntasse quais comunidades e quantas pegaram em

armas bem como seu poder na guerra descobria isto a maior parte dos

belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo atravessaram o Reno

por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram tendo expulsado os

Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos que pela lembranccedila

dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram os teutotildees e os

cimbros de adentrar em seu territoacuterio disso resultava que pela lembranccedila de

tais feitos atribuiacutessem para si grande autoridade e grande confianccedila na arte

militar

Nota-se tambeacutem no trecho acima que Ceacutesar mencionou a invasatildeo dos cimbros e

teutotildees proxim ndo ssim seus proacuteprios feitos os de Maacuterio que foi seu ―p drinho

poliacutetico249

Mais agrave frente no De bello Gallico Ceacutesar tambeacutem escreveu sobre a proacutepria

discrepacircncia entre os belgas tidos como os mais corajosos dos gauleses e dentro do

grupo dos belgas a naccedilatildeo dos neacutervios era a mais brava ndash designada no trecho abaixo

por homines feros (homens ferozes) e magnaeque uirtutis (de grande virtude) (BGall

II15)

() quorum de natura moribusque Caesar cum quaereret sic reperiebat

Nullum aditum esse ad eos mercatoribus nihil pati uini reliquarumque

rerum ad luxuriam pertinentium inferri quod iis rebus relanguescere animos

eorum et remitti uirtutem existimarent esse homines feros magnaeque

uirtutis increpitare atque incusare reliquos Belgas qui se populo Romano

dedidissent patriamque uirtutem proiecissent confirmare sese neque legatos

missuros neque ullam condicionem pacis accepturos

() Como Ceacutesar indagasse a respeito da natureza e dos costumes deles (os

neacutervios) descobriu isto que os mercadores natildeo tinham acesso algum ateacute eles

natildeo permitiam que se importasse nada de vinho e dos demais itens de luxo

porque consideravam com tais coisas que se enfraqueciam seus espiacuteritos e

minguava seu valor eram homens ferozes e de grande virtude censuravam e

acusavam os belgas restantes que se tinham rendido ao povo romano e

abandonado os valores paacutetrios e afirmavam que natildeo haveriam de enviar

embaixadores nem de aceitar condiccedilatildeo de paz alguma (grifos nossos)

O vinho ndash fruto da cultura grega e disseminada pelos romanos ndash sempre serviu

como siacutembolo maacuteximo de civilizaccedilatildeo assim o fato de os belgas rejeitarem o vinho (e

outros itens luxuosos) significava negar a proacutepria civilizaccedilatildeo e manter intacto o seu

valor (uirtus)250

Outro toacutepico que destacamos e que apareceu nos dois trechos acima foi

249

Jaacute mencionamos a vitoacuteria obtida por Maacuterio contra cimbros e teutotildees na p 102-103 deste trabalho 250

Riggsby (2006 p 15 a 19) aprofunda essa discussatildeo da questatildeo do vinho entre os gauleses bem como

o fato de algumas naccedilotildees celtas tomarem vinho puro (tambeacutem considerado ato transgressor da civilidade)

132

o papel desempenhado pelos mercadores junto agraves naccedilotildees ditas baacuterbaras251

Como Andreacute

(2001 p 5) pontua os romanos recorreram aos mercadores em maior ou menor

medida para obter informaccedilotildees sobre as terras desconhecidas da Gaacutelia sendo essa uma

contribuiccedilatildeo valiosa com esses relatos era possiacutevel aos romanos compreender em que

grau de civilizaccedilatildeo (ou barbaacuterie) se encontravam as naccedilotildees estrangeiras de acordo com

a receptividade delas ao comeacutercio aleacutem disso se os gauleses se utilizavam dos

mercadores para conhecer as novidades da proviacutencia os romanos obtinham deles os

detalhes da natureza e costumes dos gauleses Todavia os gauleses muitas vezes

acreditavam em boatos dos mercadores e viajantes como Ceacutesar registrou (BGall IV

5)

His de rebus Caesar certior factus et infirmitatem Gallorum ueritus quod

sunt in consiliis capiendis mobiles et nouis plerumque rebus student nihil his

committendum existimauit Est enim hoc Gallicae consuetudinis uti et

uiatores etiam inuitos consistere cogant et quid quisque eorum de quaque re

audierit aut cognouerit quaerant et mercatores in oppidis uulgus circumsistat

quibusque ex regionibus ueniant quasque ibi res cognouerint pronuntiare

cogat his rebus atque auditionibus permoti de summis saepe rebus consilia

ieunt quorum eos in uestigio paenitere necesse est cum incertis rumoribus

seruiant et plerique ad uoluntatem eorum ficta respondeant

Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses

que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees

considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume

gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar

saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas

cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o

que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os

gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute

forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior

parte mente ao responder segundo a vontade deles

No trecho acima Ceacutesar recorreu ao famoso estereoacutetipo do gaulecircs leviano que

por vezes era feito de tolo Todavia agraves vezes os gauleses baseados em rumores

tomavam decisotildees temeraacuterias e entravam facilmente em conflitos e batalhas Sobre esse

traccedilo destacamos a seguinte passagem (BGall VII 42)

Dum haec ad Gergouiam geruntur Haedui primis nuntiis ab Litauicco

acceptis nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt Impellit alios

auaritia alios iracundia et temeritas quae maxime illi hominum generi est

251

O papel do comeacutercio foi grande para alteraccedilotildees culturais e poliacuteticas na Gaacutelia De acordo com Riggsby

(2006 p 17) cerca de um seacuteculo antes da conquista romana a Gaacutelia viu um movimento de reorganizaccedilatildeo

poliacutetica que abandonava os chefes e liacutederes das tribos adotando um sistema baseado em cidades essa

mudanccedila foi precipitada dentre outras coisas pelas trocas comerciais no Mediterracircneo (inclusive o

vinho)

133

innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta Bona ciuium

romanorum diripiunt caedes faciunt in seruitutem abstrahunt Adiuuat rem

proclinatam Conuictolitauis plebemque ad furorem inpellit ut facinore

admisso ad sanitatem reuerti pudeat M Aristium tribunum militum iter ad

legionem facientem fide data ex oppido Cauillono educunt idem facere

cogunt eos qui negotiandi causa ibi constiterant Hos continuo in itinere

adorti omnibus impedimentis exuunt repugnantes diem noctemque obsident

multis utrimque interfectis maiorem multitudinem ad arma concitant

Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido

os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para

verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que

eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram

qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos

romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a

fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-

se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio

tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias

obrigam a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar

Logo os atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam

dia e noite os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam

maior multidatildeo agraves armas (grifos nossos) 252

Os eacuteduos logo que receber m s notiacuteci s natildeo ―deixam passar o tempo para

verific r os f tos (nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt) e movidos por

cobiccedila ira e temeridade jaacute tomam um rumor por algo confirmado Nota-se que Ceacutesar

deixou claro que esse comportamento era parte da natureza dos gauleses ao escrever

que ― ir e a temeridade que eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo

que consider m qu lquer rumor como lgo confirm do (iracundia et temeritas quae

maxime illi hominum generi est innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta)

por ser algo inerente agrave sua essecircncia essa tendecircncia a acreditar em rumores era difiacutecil de

ser combatida pelos gauleses253

Outro clichecirc mencionado por Ceacutesar eacute o fato de os

gauleses natildeo serem confiaacuteveis jaacute que desrespeitaram o tribuno Marco Ariacutestio que foi

expulso de Cabilono aleacutem dos gauleses serem desleais jaacute que atacaram os romanos

mesmo tendo oferecido garantias (fide data)254

De acordo com Riggsby (2006 p 62) a

proacutepria audiecircncia de Ceacutesar esperava esses estereoacutetipos dos inimigos de Roma sendo

252

A imagem do gaulecircs natildeo confiaacutevel natildeo eacute novidade em Ceacutesar de fato jaacute apareceu em Poliacutebio (cf nota

89 p 49) 253

Nota-se essa dificuldade na proacutepria narrativa do De bello Gallico afinal Ceacutesar disse que os gauleses

tentaram coibir a crenccedila em rumores no livro VI 20 e aqui essa descriccedilatildeo estereotipada de que os

gauleses eram temeraacuterios estaacute no livro VII 254

Fides tambeacutem era um dos conceitos morais dos romanos no periacuteodo republicano significava garantia

(depois passou a ser identificada tambeacutem como confianccedila) A fides era a feacute e lealdade ao juramento e

devia ser respeitada e honrada por ambas as partes (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Percebemos que Ceacutesar

utilizou o termo fides (fide data ou seja dada a garantia) para ressaltar a deslealdade dos gauleses em natildeo

manter a fides concedida

134

que esses mesmos clichecircs de certa forma ajudavam os romanos a divisar os povos

estrangeiros

Por viverem nas fronteiras do mundo conhecido os baacuterbaros representavam o

caos que poderia derrubar o impeacuterio e colocar um fim agrave identidade cultural dos

romanos Ceacutesar reconheceu esse perigo os germ nos m is dist ntes do ―centro que os

gauleses e porque enfrentavam dificuldades vaacuterias (como guerras frequentes e clima

hostil) eram considerados ainda mais baacuterbaros Ceacutesar assim disse (BGall I 33)

His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit pollicitusque

est sibi eam rem curae futuram magnam se habere spem et beneficio suo et

auctoritate adductum Ariouistum finem iniuriis facturum Hac oratione

habita concilium dimisit Et secundum ea multae res eum hortabantur quare

sibi eam rem cogitandam et suscipiendam putaret in primis quod Haeduos

fratres consanguineosque saepe numero a senatu appellatos in seruitute

atque in dicione uidebat Germanorum teneri eorumque obsides esse apud

Ariouistum ac Sequanos intellegebat quod in tanto imperio populi Romani

turpissimum sibi et rei publicae esse arbitrabatur Paulatim autem Germanos

consuescere Rhenum transire et in Galliam magnam eorum multitudinem

uenire populo Romano periculosum uidebat neque sibi homines feros ac

barbaros temperaturos existimabat quin cum omnem Galliam occupauissent

ut ante Cimbri Teutonique fecissent in prouinciam exirent atque inde in

Italiam contenderent praesertim cum Sequanos a prouincia nostra Rhodanus

diuideret quibus rebus quam maturrime occurrendum putabat Ipse autem

Ariouistus tantos sibi spiritus tantam adrogantiam sumpserat ut ferendus

non uideretur

Tendo conhecido essas coisas Ceacutesar fortaleceu com palavras os acircnimos dos

g uleses e prometeu que esse ssunto h veri de ser cuid do por si ―tinh

grande esperanccedila de que movido tanto por seus benefiacutecios quanto por sua

autoridade Ariovisto cessaria os busos Tendo proferido t l discurso

despediu o conselho Em conformidade muitas outras coisas o exortavam a

considerar por qual razatildeo esse assunto devia ser examinado e cuidado por si

Sobretudo porque via os eacuteduos ndash miuacutede ch m dos pelo sen do irmatildeos e

cons guiacuteneoslsquo ndash serem mantidos sob a servidatildeo e o controle dos germanos e

ele sabia que os refeacutens deles estavam em poder de Ariovisto e dos seacutequanos

o que considerava bastante vergonhoso para si e para a Repuacuteblica dada a

grandeza do domiacutenio do povo romano Ele via por outro lado que era

perigoso para o povo romano que os germanos aos poucos se acostumassem a

atravessar o Reno e uma grande multidatildeo deles viesse agrave Gaacutelia Pensava

consigo que tais homens ferozes e baacuterbaros natildeo haveriam de evitar tendo

ocupado a Gaacutelia inteira como antes fizeram os cimbros e os teutotildees que

partissem para a proviacutencia e de laacute marchassem contra a Itaacutelia sobretudo

porque apenas o Roacutedano separava os seacutequanos de nossa proviacutencia Ceacutesar

considerava que devia resolver esse inconveniente com a maior presteza Por

outro lado o proacuteprio Ariovisto se inflara de tamanha soberba e tamanha

arrogacircncia que parecia natildeo dever ser suportado (grifo nosso)

Tambeacutem destacamos acima o trecho que Ceacutesar escreveu sobre os refeacutens em

poder de Ariovisto e que Ceacutesar devia resolver o impasse rapidamente pois era algo

―b st nte vergonhoso p r si e p r Repuacuteblic d d gr ndez do domiacutenio do povo

rom no Eacute possiacutevel perceber como Ceacutes r se colocou como o instrumento do Est do

135

romano para intervir na Gaacutelia e como tanto a sua honra pessoal quanto a honra de

Roma estavam em risco Aleacutem disso ele justificou sua accedilatildeo alegando que foram os

gauleses que lhe procuraram pedindo proteccedilatildeo255

Destacamos acima o fato de Ceacutesar ter

se referido aos germanos como homens ferozes e baacuterbaros (homines feros ac barbaros)

Riggsby (2006 p 151) ressalta que Ceacutesar usou o termo baacuterbaro de duas formas

diferentes ora negativa e ora neutra Nesse trecho acima destacado percebemos que

Ceacutesar se referiu aos germanos de modo negativo e ateacute mesmo pejorativo acentuando

seu caraacuteter perigoso256

Qu nto agrave form neutr do uso do termo ―baacuterb ro esse

vocaacutebulo poderia ser substituiacutedo por um mais geneacuterico ndash com o inimigo ndash sem prejuiacutezo

do sentido (RIGGSBY 2006 p 151)257

Em sua obra Ceacutesar tambeacutem reconheceu as qualidades e a capacidade dos

gauleses em combate como no trecho do De bello Gallico VII 22 que jaacute citamos nas

paacuteginas 22 e 23 no qual Ceacutesar elogiou a grande h bilid de dos g uleses em ―imit r e

pr tic r s invenccedilotildees lhei s leacutem de rech ccedil r o v nccedilo dos rom nos 258

Evidentemente que Ceacutesar ressaltou a habilidade guerreira dos gauleses e tambeacutem a

grande uirtus dos germanos como meio de reforccedilar seu proacuteprio sucesso militar e como

Riggsby (2006 p 83) destaca essa habilidade de certa forma aumentava o perigo que

os povos ditos baacuterbaros representavam para os romanos Aleacutem disso ao descrever a

grande forccedila combativa dos gauleses e germanos Ceacutesar tambeacutem de certa forma

justificava as derrotas sofridas por ele ou seus lugares-tenentes259

Apesar das grandes

dificuldades da conquista da Gaacutelia e da destreza dos povos que habitavam essa regiatildeo

Ceacutesar foi mais engenhoso e conseguiu submetecirc-la ao domiacutenio romano

Contudo Ceacutesar foi aleacutem de meras descriccedilotildees de batalhas em seu relato pois se

preocupou natildeo soacute em narrar suas vitoacuterias mas tambeacutem em fazer um registro dos

costumes e cultura de gauleses e germanos dedicando a eles uma consideraacutevel

255

Nota-se que os mesmos eacuteduos desse trecho ch m dos de ―irmatildeos e cons guiacuteneos pelo sen do

romano no livro VII atacam os romanos baseados em boatos (cf BGall I 33 na p 134 e as notas 252

e 253) essa seria mais uma construccedilatildeo retoacuterica de Ceacutesar que ressalta o fato dos eacuteduos (e dos gauleses em

geral) terem dificuldades de combater essa tendecircncia de tomar decisotildees importantes baseadas em

rumores pode-se pensar que civilizar um baacuterbaro era um processo lento e por vezes difiacutecil 256

Veja-se tambeacutem o modo como Ceacutesar descreveu os germanos e Ariovisto no discurso de Diviciacuteaco

entre as paacuteginas 104-105 257

Riggsby (2006 p 151) detalha mais essa questatildeo do uso do termo baacuterbaro em Ceacutesar inclusive com

uma tabela com todas as passagens que esse eacutetimo aparece no De bello Gallico seja de forma pejorativa

ou neutra Percebe-se tambeacutem que o termo latino barbarus (ao contraacuterio do grego) designava mais um

estado de comportamento do que uma categoria eacutetnica daiacute o fato de um gaulecircs (Diviciacuteaco) se referir a um

germano (Ariovisto) como baacuterbaro (RIGGSBY 2006 p 215) 258

Sobre o avanccedilo tecnoloacutegico dos gauleses especialmente depois do contato direto com os romanos cf

c piacutetulo 3 ―Technology virtue victory de Riggsby (2006 p 73 105) 259

Como o proacuteprio episoacutedio que resultou na morte de Pisatildeo Aquitano descrito nas paacuteginas 125 e ss

136

passagem etnograacutefica no livro VI A esse respeito afirma Gruen (2011a p 150)

―C es rlsquos interest in the G uls goes beyond depiction of the foe or sh ping the Otherlsquo

And the ethnography at best takes second place Caesar calls attention to contexts and

characteristics whereby the societies shed light e ch on the other 260

Assim Ceacutesar

escreveu (BGall VI 11)

Quoniam ad hunc locum peruentum est non alienum esse uidetur de Galliae

Germaniaeque moribus et quo differant hae nationes inter sese proponere In

Gallia non solum in omnibus ciuitatibus atque in omnibus pagis partibusque

sed paene etiam in singulis domibus factiones sunt earumque factionum

principes sunt qui summam auctoritatem eorum iudicio habere existimantur

quorum ad arbitrium iudiciumque summa omnium rerum consiliorumque

redeat Idque eius rei causa antiquitus institutum uidetur ne quis ex plebe

contra potentiorem auxilii egeret suos enim quisque opprimi et circumueniri

non patitur neque aliter si faciat ullam inter suos habet auctoritatem Haec

eadem ratio est in summa totius Galliae namque omnes ciuitates in partes

diuisae sunt duas

Jaacute que chegamos a este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os

costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e expor em que estas naccedilotildees diferem entre

si Na Gaacutelia natildeo soacute em todas as comunidades em todas as aldeias e em todas

as regiotildees mas tambeacutem em quase todas as casas existem dois partidos e os

liacutederes desses partidos satildeo aqueles que satildeo considerados pelo juiacutezo alheio

donos da maior autoridade a cujo arbiacutetrio e juiacutezo se atribui o controle de

todos os assuntos e deliberaccedilotildees Isso parece ter sido instituiacutedo haacute muito

tempo por esta razatildeo para que ningueacutem da plebe carecesse de auxiacutelio contra

um homem mais poderoso na verdade liacuteder algum admite que os seus sejam

oprimidos e atacados nem caso aja de outra maneira tem qualquer

autoridade entre os seus Essa mesma disposiccedilatildeo existe no governo da Gaacutelia

inteira e na verdade todas as comunidades satildeo divididas entre duas facccedilotildees

Como Andreacute (2001 p 5) lembra os relatos dos membros do Estado-maior de

Ceacutesar eram bem sucintos e descreviam apenas acontecimentos relacionados agraves

campanhas militares na Gaacutelia ateacute mesmo por serem extremamente resumidos de forma

a informar o senado romano do que acontecia Foi o proacuteprio Ceacutesar que se encarregou da

composiccedilatildeo das passagens de cunho etnograacutefico A esse respeito Momigliano (1991 p

68) afirma que Ceacutesar buscou essas informaccedilotildees etnograacuteficas sobretudo em suas fontes ndash

a saber Posidocircnio via Diodoro Momigliano (1991 p 69 e 70) afirma

Como Ceacutesar escreveu a sua etnografia perto do final da guerra estava em

condiccedilotildees de combinar as proacuteprias observaccedilotildees com o que encontrou nas suas

fontes Eacute inuacutetil qualquer tentativa de separar o antigo do novo Mas em linhas

gerais a sua imagem da sociedade celta coincide com a de Posidocircnio ()

260

―O interesse de Ceacutes r nos g uleses v i leacutem d represent ccedilatildeo do inimigo ou model gem do outrolsquo

E a etnografia no miacutenimo ocupa o segundo lugar Ceacutesar chama atenccedilatildeo para contextos e caracteriacutesticas

pelas quais as sociedades ajudam a explicar uma agrave outr

137

Ceacutesar encontrou nele natildeo soacute preciosas informaccedilotildees efetivas sobre lugares e

instituiccedilotildees mas uma animadora anaacutelise da fraqueza da sociedade celta

De toda forma como lembra Canfora (2002 p 131) Ceacutesar fez uso de

conhecimentos etnograacuteficos atualizados de sua eacutepoca e ele mesmo contribuiu em certa

medida para aumentar esses conhecimentos associando ciecircncia e imperialismo Ceacutesar

ateacute pelo longo contato que teve com os gauleses com seus liacutederes e legados aleacutem de

estar no proacuteprio campo de batalha durante toda a guerra da Gaacutelia teve um maior

entendimento da sociedade celta do que os etnoacutegrafos antecessores a ele que

rapidamente passaram por ali evidentemente natildeo eacute possiacutevel saber com certeza ateacute que

ponto o relato de Ceacutesar foi fiel ao que ele viu (e ao que aconteceu) na Gaacutelia mas como

destaca Gruen (2011a p 148) atraveacutes do De bello Gallico podemos compreender um

pouco a mentalidade do general e entender o sentido do retrato que ele buscou fazer da

campanha gaulesa de acordo com seu puacuteblico-alvo261

Evidentemente como Rambaud

destaca (2011 p 324 e 325) Ceacutesar escreveu esse longo trecho etnograacutefico

simplificando bastante ao falar dos gauleses e suas vaacuterias naccedilotildees como se fossem todas

dos mesmos costumes e haacutebitos Ainda segundo Rambaud (2011 p 328) essa

descriccedilatildeo da sociedade gaulesa no livro VI se referia agraves naccedilotildees dos eacuteduos e dos

seacutequanos Lembramos que Ceacutesar fez isso pois queria que a Gaacutelia fosse vista como uma

sociedade uacutenica essa repeticcedilatildeo sutil mais uma vez ajudava a gravar na cabeccedila do leitor

esse conceito de unidade262

Sobre os gauleses Ceacutesar descreveu sua sociedade e organizaccedilatildeo ressaltando que

eles se dividiam em dois poacutelos (BGall VI 13)

In omni Gallia eorum hominum qui aliquo sunt numero atque honore genera

sunt duo Nam plebes paene seruorum habetur loco quae nihil audet per se

nullo adhibetur consilio Plerique cum aut aere alieno aut magnitudine

tributorum aut iniuria potentiorum premuntur sese in seruitutem dicant

261

Segundo Riggsby (2006 p 48) provavelmente Ceacutesar e Posidocircnio foram os uacutenicos autores que

realmente tiveram uma experiecircncia direta com os gauleses assim eacute possiacutevel que muitas das informaccedilotildees

que apareceram em outros textos derivem de algumas poucas fontes mas infelizmente natildeo haacute muitos

dados disponiacuteveis para precisar melhor essa questatildeo de origem das fontes Mais uma vez de acordo com

Riggsby (2006 p 68) ainda eacute importante ressaltar que Ceacutesar escreveu o De bello Gallico com um claro

objetivo poliacutetico enquanto que Posidocircnio escreveu seu relato com fins etnograacuteficos Lembramos tambeacutem

que Ceacutesar esteve muito ocupado durante seu proconsulado na Gaacutelia recebendo relatos de seus lugares-

tenentes (como mencionamos na p 119) e tambeacutem de mercadores e outros informantes como ele mesmo

escreveu (cf p132) Tambeacutem a esse respeito como Nicolet (2011 p 889) destaca o De bello Gallico

exprime precisamente as ideias que deviam tocar o puacuteblico efetivo dos partidaacuterios italianos de Ceacutesar a

cuidadosa distinccedilatildeo dentre os gauleses daqueles tratados em peacute de igualdade e que satildeo da alianccedila

rom n e evidentemente do v lor milit r dos dversaacuterios e criacutetic de seus defeitos ―tr dicion is 262

Jaacute mencionamos essa questatildeo de Ceacutesar tratar todas as naccedilotildees gaulesas de forma uniformizante na p

129-130

138

nobilibus in hos eadem omnia sunt iura quae dominis in seruos Sed de his

duobus generibus alterum est druidum alterum equitum Illi rebus diuinis

intersunt sacrificia publica ac priuata procurant religiones interpretantur

ad hos magnus adulescentium numerus disciplinae causa concurrit

magnoque hi sunt apud eos honore Nam fere de omnibus controuersiis

publicis priuatisque constituunt et si quod est admissum facinus si caedes

facta si de hereditate de finibus controuersia est idem decernunt praemia

poenasque constituunt si qui aut priuatus aut populus eorum decreto non

stetit sacrificiis interdicunt Haec poena apud eos est grauissima Quibus ita

est interdictum hi numero impiorum ac sceleratorum habentur his omnes

decedunt aditum sermonemque defugiunt ne quid ex contagione incommodi

accipiant neque iis petentibus ius redditur neque honos ullus communicatur

His autem omnibus druidibus praeest unus qui summam inter eos habet

auctoritatem Hoc mortuo aut si qui ex reliquis excellit dignitate succedit

aut si sunt plures pares suffragio druidum non numquam etiam armis de

principatu contendunt Hi certo anni tempore in finibus Carnutum quae

regio totius Galliae media habetur considunt in loco consecrato Huc omnes

undique qui controuersias habent conueniunt eorumque decretis iudiciisque

parent Disciplina in Britannia reperta atque inde in Galliam translata esse

existimatur et nunc qui diligentius eam rem cognoscere uolunt plerumque

illo discendi causa proficiscuntur

Em toda a Gaacutelia existem duas espeacutecies desses homens que satildeo tidos em

alguma conta e honradez Na verdade a plebe eacute quase tida em lugar servil

pois nada ousa por si nem eacute admitida em conselho algum A maior parte dela

quando oprimida por diacutevidas pela exorbitacircncia dos tributos ou pela afronta

dos poderosos aos nobres se entregam em servidatildeo esses possuem todos os

mesmos direitos que os senhores sobre os seus escravos Todavia quanto

essas duas espeacutecies uma eacute a dos druidas a outra a dos cavaleiros Aqueles

assistem o culto divino presidem os sacrifiacutecios puacuteblicos e privados e

interpretam os ritos religiosos um grande nuacutemero de jovens acorre ateacute eles

para educar-se e os druidas desfrutam de grande honradez junto deles Na

verdade eles decidem sobre quase todas as disputas puacuteblicas ou privadas e

se algum crime foi cometido se sucedeu alguma morte se haacute conflito sobre

heranccedila ou sobre um territoacuterio eles mesmos julgam e instituem as

recompensas e os castigos se uma pessoa ou privada ou puacuteblica natildeo se

conforma agrave sua decisatildeo eles lhes vedavam os sacrifiacutecios Essa puniccedilatildeo entre

eles eacute a graviacutessima Aqueles aos quais assim se vedaram satildeo tidos no nuacutemero

dos iacutempios e criminosos todos se afastam deles e evitam sua proximidade e

palavras para que desse contato natildeo recebam dano algum nem para esses

sob sua solicitaccedilatildeo eacute cumprida a justiccedila nem lhes eacute concedido cargo honroso

algum Por outro lado um uacutenico preside a todos estes druidas o que tem a

maior autoridade entre eles No caso da sua morte se algueacutem se sobressai em

meacuterito aos restantes sucede-lhe ou havendo muito iguais decidem atraveacutes

do sufraacutegio dos druidas e natildeo raramente tambeacutem com armas disputam pela

lideranccedila Eles em certa eacutepoca do ano reuacutenem-se nos territoacuterios dos

carnutos na regiatildeo que eacute tida como o centro de toda a Gaacutelia em um lugar

consagrado Para laacute de todas as partes afluem todos aqueles que tecircm litiacutegios

e eles acatam as decisotildees e as sentenccedilas dos druidas Considera-se que seu

saber foi definido na Britacircnia e de laacute levado para a Gaacutelia e agora os que

desejam conhececirc-lo com mais cuidado em geral partem para laacute para

aprender (grifos nossos)

De fato como os gauleses se organizavam em duas facccedilotildees haacute um contraponto

com os romanos mais bem organizados (SCHMIDT 2004 p 184) Aleacutem disso ficava

claro que os gauleses embora fortes natildeo conseguiram se unir (nem com a lideranccedila de

Vercingetoacuterige) para derrotar um inimigo comum representado pelos romanos

139

Tambeacutem se pode notar pelo trecho acima que Ceacutesar usou alguns termos latinos mais

uma vez para descrever a sociedade gaulesa o povo era a plebe e percebemos que

Ceacutesar dedicou poucas palavras a seu respeito acreditamos que Ceacutesar se concentrou

mais na descriccedilatildeo da elite (e principalmente dos druidas) jaacute que falar de aspectos da

sociedade gaulesa que eram diferentes da dos romanos atraiacutea a atenccedilatildeo de seu puacuteblico

Na elite tem-se os dois grupos os druidas e o cavaleiros (equites) Ceacutesar reforccedilou o

paralelo uma vez que em Roma os equites eram da elite situados abaixo apenas dos

patriacutecios que descendiam da nobreza Percebemos que em Ceacutesar natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo aos bardos ou advinhos Ceacutesar queria manter a dualidade em vaacuterios aspectos da

sociedade gaulesa e por conseguinte os druidas incorporaram o papel de detentores da

cultura e da sabedoria (RIGGSBY 2006 p 63)263

Ao natildeo descrever bardos e advinhos

(que apareceram em fontes gregas como Posidocircnio e Diodoro) Ceacutesar queria priorizar o

caraacuteter poliacutetico e de autopropaganda de sua obra ao inveacutes de ter realmente uma

preocupaccedilatildeo de cunho etnograacutefico ou antropoloacutegico Todavia como visto em vaacuterios

trechos citados ao longo deste trabalho Ceacutesar natildeo se desviou muito da tradiccedilatildeo

etnograacutefica antecessora a ele ndash de fato os estereoacutetipos serviam como marcos que

auxiliavam o puacuteblico em Roma a se identificar com o texto de Ceacutesar e a reconhecer o

tipo de inimigo que ele combatia

Como Momigliano observa (1991 p 69) Ceacutesar jamais mencionou os druidas a

natildeo ser na digressatildeo etnograacutefica do livro VI provavelmente ele natildeo encontrou os

druidas em suas campanhas mas sim em suas fontes literaacuterias O proacuteprio Ceacutesar

escreveu que os druidas natildeo participavam das guerras aleacutem de outras informaccedilotildees sobre

eles Assim temos no De bello Gallico (VI 14)

Druides a bello abesse consuerunt neque tributa una cum reliquis pendunt

militiae uacationem omniumque rerum habent immunitatem Tantis excitati

praemiis et sua sponte multi in disciplinam conueniunt et a parentibus

propinquisque mittuntur Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur

Itaque annos non nulli XX in disciplina permanent Neque fas esse existimant

ea litteris mandare cum in reliquis fere rebus publicis priuatisque

rationibus graecis litteris utantur Id mihi duabus de causis instituisse

uidentur quod neque in uulgum disciplinam efferri uelint neque eos qui

discunt litteris confisos minus memoriae studere quod fere plerisque accidit

ut praesidio litterarum diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant In

primis hoc uolunt persuadere non interire animas sed ab aliis post mortem

transire ad alios atque hoc maxime ad uirtutem excitari putant metu mortis

263

Posidocircnio definiu o lugar dos vates e bardos na sociedade gaulesa (cf p 66) e em Diodoro temos uma

descriccedilatildeo mais profunda a respeito deles (cf Biblioteca V 31 2 a 4 p 83-84 deste trabalho) Ceacutesar

tambeacutem citou o caraacuteter dual da sociedade gaulesa nas palavras de Diviciacuteaco em I 31 (cf p 103-105) e

tambeacutem em VI 11 (cf p 136)

140

neglecto Multa praeterea de sideribus atque eorum motu de mundi ac

terrarum magnitudine de rerum natura de deorum immortalium ui ac

potestate disputant et iuuentuti tradunt

Os druidas costumam ficar afastados da guerra e natildeo pagam os tributos

juntamente com os demais eles tecircm dispensa do serviccedilo militar e imunidade

de todas as obrigaccedilotildees Animados com tamanhos precircmios natildeo soacute muitos por

sua espontacircnea vontade vecircm a esse saber mas tambeacutem muitos satildeo mandados

pelos pais e parentes Diz-se que nisso eles decoram um grande nuacutemero de

versos Assim alguns permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo

consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos

demais assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e privados utilizam as letras

gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado isso por dois motivos por natildeo

querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem

confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio

sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a

dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado Sobretudo querem

persuadir de que as almas natildeo perecem mas sim passam de uns para outros

apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor

desprezado o temor da morte Aleacutem disso debatem e transmitem agrave juventude

sobre muitas coisas sobre os astros e seu movimento sobre a grandeza do

mundo e das terras sobre a natureza das coisas e a forccedila e o poder dos deuses

imortais 264

Os druidas entatildeo se concentravam em se dedicar aos assuntos do mundo

sobrenatural aleacutem de serem mediadores entre os humanos e os deuses jaacute que nenhum

sacrifiacutecio podia ser realizado sem a presenccedila deles265

Aleacutem disso eles tinham grande

influecircncia poliacutetica tanto na paz quanto na guerra (RANKIN 1996 p69) Acima

podemos ver uma justificativa para a grande coragem e fuacuteria dos gauleses na guerra

qual seja o fato de que eles acreditvam que a alma era eterna266

Ainda sobre os druidas

e os rituais religiosos dos gauleses Ceacutesar (BGall VI 16) escreveu

Natio est omnis Gallorum admodum dedita religionibus atque ob eam

causam qui sunt affecti grauioribus morbis quique in proeliis periculisque

uersantur aut pro uictimis homines immolant aut se immolaturos uouent

administrisque ad ea sacrificia druidibus utuntur quod pro uita hominis nisi

hominis uita reddatur non posse deorum immortalium numen placari

arbitrantur publiceque eiusdem generis habent instituta sacrificia Alii

immani magnitudine simulacra habent quorum contexta uiminibus membra

uiuis hominibus complent quibus succensis circumuenti flamma exanimantur

homines Supplicia eorum qui in furto aut in latrocinio aut ex aliqua noxia

sint comprehensi gratiora dis immortalibus esse arbitrantur sed cum eius

generis copia defecit etiam ad innocentium supplicia descendunt

264

De fato Gruen (2011a p 155) lembra que Ceacutesar escreveu sobre a religiatildeo ndash e os druidas

provavelmente porque havia um interesse grande por parte do seu puacuteblico leitor sobre esse tema Os

druidas sempre chamaram atenccedilatildeo dos autores antigos e foram mencionados por Aristoacuteteles Posidocircnio

Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo dentre outros De acordo com Pliacutenio o Velho foi durante o principado de

Tibeacuterio que os druidas foram banidos como veremos mais adiante neste trabalho 265

Cf BGall VI 13 nas paacuteginas 137 e 138 266

Esse estereoacutetipo jaacute apareceu em Posidocircnio (Estrabatildeo IV 197) e tambeacutem em Diodoro Siacuteculo (V 28

6)

141

Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse

motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se

encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas

ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os

druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com

a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo

pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente

instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros

entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses

membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem

mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos

por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute

muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de

inocentes

Pelo relato acima Ceacutesar natildeo disse que os druidas praticavam magia e ele apenas

descreveu os ritos de sacrifiacutecios humanos sem condenaccedilatildeo ou julgamento de valor267

Percebe-se tambeacutem que os gauleses possuiacuteam uma justiccedila primitiva ao condenar os

criminosos aos sacrifiacutecios humanos (RIGGSBY 2006 p 63) O trecho acima tambeacutem

se aproxima bastante do que Ciacutecero escreveu sobre o fato dos gauleses praticarem

sacrifiacutecios humanos268

poreacutem se em Ciacutecero os gauleses simplesmente sacrificam as

viacutetimas indistintamente em Ceacutesar os gauleses sacrificavam sobretudo os criminosos

apenas recorrendo ao supliacutecio dos inocentes na falta desses (RAMBAUD 2011 p 330)

Quanto ao outro poacutelo da sociedade gaulesa Ceacutesar escreveu brevemente (BGall VI

15)

Alterum genus est equitum Hi cum est usus atque aliquod bellum incidit

(quod fere ante Caesaris aduentum quotannis accidere solebat uti aut ipsi

iniurias inferrent aut illatas propulsarent) omnes in bello uersantur atque

eorum ut quisque est genere copiisque amplissimus ita plurimos circum se

ambactos clientesque habet Hanc unam gratiam potentiamque nouerunt

A outra espeacutecie eacute a dos cavaleiros Esses quando haacute necessidade e se

sobreveacutem alguma guerra ndash o que costumava acontecer quase todos os anos

antes da chegada de Ceacutesar causando eles proacuteprios prejuiacutezos ou repelindo os

recebidos ndash exercitam-se todos na guerra e agrave medida que cada um deles eacute

mais ilustre pela estirpe e pelas riquezas tanto mais tem agrave sua volta

267

Como Schmidt (2004 p 185) pontua eacute curioso notar que tanto Ciacutecero quanto Ceacutesar insistiram em

ressaltar o fato dos gauleses fazerem sacrifiacutecios humanos uma vez que em Roma os combates de

gladiadores (heranccedila etrusca) podiam ser considerados como verdadeiras imolaccedilotildees de viacutetimas inocentes

sem mencionar os diversos supliacutecios infligidos aos escravos revoltados ou ladrotildees sendo o mais terriacutevel a

crucificaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Liacutevio (Ab urbe cond XXII 57 2-6) os proacuteprios romanos chegaram a

sacrificar humanos Durante a segunda guerra puacutenica contra Aniacutebal os romanos passando por

dificuldades excepcionais decidiram imolar um casal gaulecircs e um casal grego de acordo com o oraacuteculo

de Delfos e os livros sibilinos a fim de aplacar os deuses e conseguirem vencer os cartagineses 268

Cf Pro Fonteio 31 citado na p 71 deste trabalho Ciacutecero contudo explorou ao maacuteximo a falta de

caraacuteter dos gauleses e foi bastante veemente em condenar a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos feitos por

eles

142

numerosos servos e clientes eacute a uacutenica forma de prestiacutegio e poder que

conhecem (grifos nossos)

Destacamos acima como Ceacutesar habilmente ressaltou que trouxera paz agrave Gaacutelia ao

dizer que as guerras antes de sua conquista aconteciam quase todos os anos Ceacutesar

tambeacutem descreveu certos costumes gauleses que diferiam dos costumes romanos

(BGall VI 18)

Galli se omnes ab Dite patre prognatos praedicant idque ab druidibus

proditum dicunt Ob eam causam spatia omnis temporis non numero dierum

sed noctium finiunt dies natales et mensum et annorum initia sic obseruant

ut noctem dies subsequatur In reliquis uitae institutis hoc fere ab reliquis

differunt quod suos liberos nisi cum adoleuerunt ut munus militiae

sustinere possint palam ad se adire non patiuntur filiumque puerili aetate in

publico in conspectu patris adsistere turpe ducunt

Todos os gauleses se gabam de serem descendentes do pai Dite e dizem que

isso foi revelado pelos druidas Por tal motivo delimitam as divisotildees de todo

o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas sim pelo das noites de tal modo

observam os dias de aniversaacuterio e os iniacutecios dos meses e dos anos de modo

que o dia vem logo apoacutes a noite Nos demais costumes de vida os gauleses

diferem dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos

venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem

assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade

pueril aparece publicamente agrave vista do pai (grifos nossos)

Gruen (2011a p 158) afirma que Ceacutesar natildeo gostava de gastar muito tempo

investigando as particularidades dos rituais gauleses ou as nuances de suas

caracterizaccedilotildees dos deuses ndash como fica evidente pelo curto capiacutetulo acima mas o fato

de ele ter escolhido descrever a religiatildeo gaulesa com vocabulaacuterio latino eacute significativo

Ceacutesar mais minimizou do que acentuou as diferenccedilas de crenccedila entre romanos e

gauleses Ceacutesar tambeacutem escreveu que quanto aos costumes os gauleses apenas se

diferenciavam dos demais no fato de contarem a passagem do tempo pelas noites (e natildeo

dias) e tambeacutem por natildeo permitirem que seus filhos aparecessem diante do pai em idade

pueril

Aleacutem disso Ceacutesar tambeacutem relatou que os gauleses dispunham de mecanismos

legais como por exemplo ao mencionar que eles deixavam heranccedila que ficava tanto

para o marido ou para a esposa que sobrevivia ao cocircnjuge Temos (BGallVI 19)

Viri quantas pecunias ab uxoribus dotis nomine acceperunt tantas ex suis

bonis aestimatione facta cum dotibus communicant Huius omnis pecuniae

coniunctim ratio habetur fructusque seruantur uter eorum uita superarit ad

eum pars utriusque cum fructibus superiorum temporum peruenit Viri in

uxores sicuti in liberos uitae necisque habent potestatem et cum pater

143

familiae inlustriore loco natus decessit eius propinqui conueniunt et de

morte si res in suspicionem uenit de uxoribus in seruilem modum

quaestionem habent et si conpertum est igni atque omnibus tormentis

excruciatas interficiunt Funera sunt pro cultu Gallorum magnifica et

sumptuosa omniaque quae uiuis cordi fuisse arbitrantur in ignem inferunt

etiam animalia ac paulo supra hanc memoriam serui et clientes quos ab iis

dilectos esse constabat iustis funeribus confectis una cremabantur

Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto

reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em

conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos

qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os

rendimentos do tempo precedente Os maridos possuem direito de vida e

morte tanto sobre as esposas quanto sobre os filhos quando morre um chefe

da famiacutelia nascido em posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e

havendo alguma suspeita sobre a morte sujeitam as esposas a um

interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto algo eles as

executam torturadas pelo fogo e com todos os tormentos Os funerais de

acordo com o costume dos gauleses satildeo magniacuteficos e suntuosos e eles

lanccedilam ao fogo tudo o que consideram ter sido estimado em vida inclusive

os animais e ateacute pouco antes de nossa eacutepoca os escravos e clientes que era

certo terem sido estimados por um homem em finalizando-se corretamente

os funerais eram cremados junto (grifos nossos)

Pelos trechos acima percebemos que embora considerada baacuterbara a sociedade

gaulesa possuiacutea vaacuterias caracteriacutesticas consideradas civilizadas como a erudiccedilatildeo dos

druidas e o processo de se deixar heranccedila ndash sendo permitido inclusive agraves mulheres

disporem dos bens do marido Destacamos tambeacutem no trecho acima o fato de Ceacutesar ter

se referido ao chefe de famiacutelia gaulecircs como pater familiae o pater familiae em

contexto romano designava o chefe da famiacutelia ndash inclusive os escravos Ele era o

sacerdote do culto domeacutestico e o uacutenico proprietaacuterio dos bens aleacutem de ter autoridade de

vida e morte sobre todos os outros membros da famiacutelia269

Ao novamente usar termos

latinos para descrever a sociedade gaulesa ndash como dizer que o pater familiae possuiacutea

servos e clientes Ceacutesar destacou a semelhanccedila entre essas duas culturas270

Por outro

l do embor em certos spectos ―civiliz d eacute possiacutevel not r que no comentaacuterio de

Ceacutesar havia certa perversidade na sociedade gaulesa uma vez que as mulheres

poderiam ser torturadas caso houvesse duacutevida sobre a morte do marido Aleacutem disso os

gauleses queimavam os animais junto com os defuntos e ateacute pouco antes da guerra

contra os romanos colocavam na pira funeraacuteria os escravos e clientes eles tambeacutem

sacrificavam viacutetimas inocentes caso natildeo houvesse criminosos disponiacuteveis para os

269

O pater familiae romano conservava seus direitos ateacute agrave morte ou caso emancipasse seus filhos a partir

do seacuteculo I aC em diante com o progresso da sociedade romana os poderes do pater sofreram reduccedilotildees

Para essas informaccedilotildees sobre o pater familiae utilizamos como referecircncia Bornecque e Mornet (2002 p

84) 270

Cf BGall VI 13 (p 137-138) em que Ceacutesar usou os termos plebes e equites etc e tambeacutem VI15

(p 141-142)

144

sacrifiacutecios humanos271

Todavia eacute possiacutevel perceber em Ceacutesar uma evoluccedilatildeo

―civiliz toacuteri dos g uleses jaacute que ele registrou que eles b ndon r m o costume de

cremar junto com o falecido os seus escravos e clientes que lhes eram queridos A

clientela era uma forma estrutural tiacutepica da sociedade romana os clientes eram homens

livres ligados agraves famiacutelias patriacutecias que lhes davam proteccedilatildeo os laccedilos de clientela eram

passados de pai para filho e os clientes deviam completa obediecircncia aos seus

patronos272

Os gauleses por essa razatildeo natildeo possuiacuteam clientes jaacute que natildeo havia tal tipo

de estrutura social em sua comunidade Ceacutesar se utilizou do termo cliente para facilitar a

compreensatildeo da Gaacutelia por parte do seu puacuteblico-alvo

Quanto aos germanos de acordo com Ceacutesar eles eram ainda mais baacuterbaros que

os gauleses pelo fato de natildeo terem cultos religiosos estabelecidos e de se dedicarem

apenas a caccediladas e exerciacutecios beacutelicos Assim temos (BGall VI 21)

Germani multum ab hac consuetudine differunt Nam neque druides habent

qui rebus diuinis praesint neque sacrificiis student Deorum numero eos

solos ducunt quos cernunt et quorum aperte opibus iuuantur Solem et

Vulcanum et Lunam reliquos ne fama quidem acceperunt Vita omnis in

uenationibus atque in studiis rei militaris consistit a paruis labori ac

duritiae student Qui diutissime impuberes permanserunt maximam inter suos

ferunt laudem hoc ali staturam ali uires neruosque confirmari putant Intra

annum uero uicesimum feminae notitiam habuisse in turpissimis habent

rebus cuius rei nulla est occultatio quod et promiscue in fluminibus

perluuntur et pellibus aut paruis renonum tegimentis utuntur magna corporis

parte nuda

Os germanos diferem muito desses costumes Na verdade natildeo possuem

druidas que presidam os ritos religiosos nem praticam sacrifiacutecios Contam no

nuacutemero dos deuses apenas aqueles que divisam e por cujos recursos

abertamente satildeo auxiliados o Sol Vulcano e a Lua e nem ao menos

admitiram outros deuses transmitidos pela fama Toda sua vida consiste em

caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor

e na severidade Aqueles que permaneceram castos por muito tempo

desfrutam da maior honra entre os seus por esse motivo julgam que a sua

estatura seja alimentada e as forccedilas e os nervos sejam nutridos e fortalecidos

Na verdade eles consideram entre as coisas mais vergonhosas algueacutem ter

tido relaccedilotildees com uma mulher antes do vigeacutesimo aniversaacuterio natildeo haacute misteacuterio

algum sobre essas coisas pois eles misturados se banham nos rios e se

cobrem com peles de renas ou de pequenas coberturas mantendo nua uma

grande parte do corpo (grifo nosso)

Pelo trecho acima vemos tambeacutem um fator que caracterizava os germanos como

um povo mais primitivo que o gaulecircs (e o romano) eles cultuavam apenas as forccedilas da

271

Cf p 104-141 (BGall VI 16) 272

Para mais detalhes sobre a clientela cf nota 168 na p 93

145

natureza como o sol Vulcano e a lua e natildeo deuses antropomorfos Aleacutem disso os

germanos natildeo praticavam a agricultura nem possuiacuteam terras proacuteprias (BGall VI 22)

Agriculturae non student maiorque pars eorum uictus in lacte caseo carne

consistit Neque quisquam agri modum certum aut fines habet proprios sed

magistratus ac principes in annos singulos gentibus cognationibusque

hominum qui [cum] una coierunt quantum et quo loco uisum est agri

adtribuunt atque anno post alio transire cogunt Eius rei multas adferunt

causas ne adsidua consuetudine capti studium belli gerendi agricultura

commutent ne latos fines parare studeant potentioresque humiliores

possessionibus expellant ne accuratius ad frigora atque aestus uitandos

aedificent ne qua oriatur pecuniae cupiditas qua ex re factiones

dissensionesque nascuntur ut animi aequitate plebem contineant cum suas

quisque opes cum potentissimis aequari uideat

Os germanos natildeo se dedicam agrave agricultura e a maior parte de seu sustento

consiste em leite queijo e carne Ningueacutem possui medida certa de terra ou

limites proacuteprios contudo os magistrados e os chefes a cada ano atribuem agraves

famiacutelias e parentelas dos homens que juntos coabitam quanto de terra e onde

lhes pareceu bem e apoacutes um ano obrigam-nos a mudar-se Alegam vaacuterias

razotildees para esse comportamento para que levados pela forccedila do haacutebito natildeo

troquem o interesse de fazer a guerra pela agricultura para que natildeo se

esforcem em obter um grande limite nem os mais poderosos expulsem os

mais fracos das ocupaccedilotildees para que natildeo construam com mais cuidado a fim

de barrar o frio e o calor para que natildeo surja cobiccedila alguma de riqueza de

que nascem as facccedilotildees e discoacuterdias para que contenham a plebe pela

moderaccedilatildeo do espiacuterito vendo cada qual suas posses serem igualadas agraves dos

mais poderosos (grifo nosso)

Destacamos nos dois trechos acima que Ceacutesar disse que os germanos desde cedo

dedicavam toda sua vida agrave arte da guerra e agraves caccediladas (―toda sua vida consiste em

caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor e na

severidade) e que eles construiacuteam casas simples que mal barravam as intempeacuteries

naturais (―para que natildeo construam com mais cuidado a fim de barrar o frio e o calor)

O fato de natildeo praticarem a agricultura ou sequer barrar as intempeacuteries naturais em suas

casas servia para manter os germanos fortes e evitar a fraqueza advinda da

sedentarizaccedilatildeo da sociedade Riggsby (2006 p 85) lembra que eacute justamente a partir

desse coacutedigo de vida riacutegido e da firmeza contra os fenocircmenos naturais aleacutem de

frequentes confrontos com outras naccedilotildees que os germanos exercitavam e aumentavam

sua forte uirtus Os romanos tambeacutem obtinham sua uirtus da disciplina na guerra de

forma parecida agrave dos germanos a grande diferenccedila eacute que os romanos faziam isso de

forma coletiva enquanto uma legiatildeo organizada jaacute os germanos o faziam de forma

individual e sem um meacutetodo sistematizado (RIGGSBY 2006 p 87)

Os germanos embora considerados ainda mais baacuterbaros que os gauleses no

relato de Ceacutesar aparecem preocupados em manter uma certa equidade social entre todos

146

sejam poderosos ou fracos com isso os germanos evitariam os conflitos por ganacircncia e

a sociedade se mantinha forte como um todo Percebemos que mesmo entre um povo

considerado extremamente feroz a estrutura social organizava-se de forma bastante

inovadora273

Sobre a caracterizaccedilatildeo de gauleses e germanos Gouvecirca Juacutenior (2012 p

12) afirma

separando-os com clareza ele pode dispensar-lhes tratamentos diferentes

para incluir os gauleses e excluir os germacircnicos em seu projeto de ampliaccedilatildeo

das fronteiras poliacuteticas ndash pessoais e romanas Para analisaacute-los Ceacutesar assumiu

a mesma posiccedilatildeo de superioridade dos que julgam seus diferentes como

pertencentes agrave barbaacuterie Entatildeo conferiu uma condiccedilatildeo mais favoraacutevel aos

gauleses salientando uma certa humanitas barbara com a demonstraccedilatildeo de

respeito agrave lei e agrave justiccedila de reverecircncia aos costumes aos deuses e aos mortos

de conhecimento do alfabeto grego e sobretudo com a noccedilatildeo de

desenvolvimento a partir do aprimoramento individual como na formaccedilatildeo

dos druidas

Quanto aos germanos Ceacutesar foi mais criacutetico os germanos em suas palavras

natildeo praticavam a agricultura eram promiacutescuos nocircmades etc A diferenccedila entre gauleses

e germanos era o grau de ferocitas e no De bello Gallico Ceacutesar apenas usou o termo

ferox para designar os germanos e os belgas que eram os mais valentes dentre os

gauleses274

Percebemos que Ceacutesar ao usar o vocabulaacuterio latino para designar

caracteriacutesticas dos gauleses (como os deuses que cultuavam etc) salientou as

semelhanccedilas entre gauleses e romanos o que possibilitava a romanizaccedilatildeo e mescla de

culturas275

o mesmo natildeo pode ser dito dos germanos que mal praticavam a agricultura

ou possuiacuteam uma religiatildeo estabelecida276

Mais uma vez percebe-se a dualidade

representada pelos romanos (civilizados) e gauleses (em parte civilizados) frente aos

germanos (baacuterbaros) de fato como Hartog (1999 p 289) destaca o discurso da

retoacuterica da alteridade no mundo antigo eacute essencialmente um discurso de dualidade e

273

Andreacute (2001 p 2 e 3) aprofunda a forma como os germanos foram retratados em Ceacutesar bem como as

fontes usadas por ele para descrever os germanos Andreacute (2001 nota 17 p 8) tambeacutem destaca que a

virtude moral e a superioridade baacuterbara primitiva eacute um toacutepos que aparece no epicurismo (como no canto

V de Lucreacutecio) e ainda no seio do cinismo e estoicismo 274

Cf sobre os belgas o trecho II 15 (p 131) em que Ceacutesar escreveu que eles eram homines feros

magnaeque uirtutis (homens ferozes de grande virtude) Quanto aos germanos cf o trecho I 33 citado

na p 134 em que Ceacutesar se referiu a eles como homines feros ac barbaros a partiacutecula ac vai aleacutem da

mera conjunccedilatildeo aditiva e pois iguala os dois termos Aleacutem disso jaacute abordamos o caraacuteter pejorativo do

termo ―baacuterb ro p r se referir os germ nos (cf p 135) 275

Ou seja de acordo com Woolf (2003 p 63) o gaulecircs devia exibir certa humanitas jaacute que apenas

atraveacutes da humanitas as relaccedilotildees sociais eram asseguradas 276

Cf nota 159 na p 86 sobre estereoacutetipos dos baacuterbaros e de como a falta de agricultura condenava os

povos agrave barbaacuterie e por outro lado como a proximidade com as cidades facilitava a civilizaccedilatildeo

147

polaridade277

Dessa forma na praacutetica uma reparticcedilatildeo triacuteplice natildeo ocorre se haacute dois

tipos de barbarismo no discurso um deles vai ser assimilado aos romanos278

Aleacutem

disso Ceacutesar ao dividir os gauleses e germanos em grupos distintos nos quais os

gauleses jaacute se encontravam mais abertos agrave romanizaccedilatildeo (enquanto os germanos foram

retratados como selvagens que natildeo poderiam ser subjugados) definiu a sua aacuterea de

accedilatildeo todavia ambos os grupos representavam perigo a Roma Os gauleses tinham uma

tendecircncia agraves guerras pelos motivos mais fuacuteteis e eram voluacuteveis e natildeo confiaacuteveis quanto

aos germanos ateacute mesmo pela sua natureza nocircmade eles natildeo respeitavam as fronteiras

ou territoacuterios e nada os impediria de atacar as proviacutencias romanas (RIGGSBY 2006 p

69) Dessa maneira a justificativa para se agir contra gauleses e germanos consistia em

―prevenir um desgr ccedil e c b r com o ―perigo que essas naccedilotildees representavam

Riggsby (2006 p 180) define ess estr teacutegi como ― utodefes por p rte dos rom nos

Em Ceacutesar portanto gauleses e germanos embora representando certo perigo

para Roma natildeo deixaram de possuir suas virtudes como vimos anteriormente seja a

habilidade dos galos e a sua resistecircncia frente aos romanos seja os germanos e sua

bravura e coragem inerentes Aleacutem disso apesar de os romanos terem colonizado povos

diferentes como os proacuteprios gauleses esse processo de conquistas natildeo foi unilateral jaacute

que os romanos adquiriram muitos dos haacutebitos estrangeiros Assim Roma transformou-

se em um grande impeacuterio multicultural A Urbe surgida de uma uniatildeo de povos sabia

conviver com as diferenccedilas e engenhosamente adotava a estrateacutegia de concessatildeo da

cidadania sendo essa taacutetica eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar

possiacuteveis aliados279

De fato Roma natildeo se restringia apenas agrave cidade em si mas passou

a existir em todo o seu territoacuterio

277

O proacuteprio significado do termo alter em l tim eacute ―um de dois 278

Outro exemplo dessa dualidade referente a gregos e romanos encontra-se na paacutegina 37 deste trabalho 279

Para a abertura de Roma ao estrangeiro cf especialmente p 97 e 98

148

Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas

Neste capiacutetulo estudaremos as outras fontes latinas ndash Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho

ndash uma por vez Vimos anteriormente que Ceacutesar desempenhou um papel fundamental na

conquista definitiva da Europa Ocidental pelos romanos e tambeacutem no esfacelamento da

Repuacuteblica Esses dois fenocircmenos ocorreram com muita luta e conflitos Sobre a origem

do impeacuterio Florenzano (1994 p 84) ressalta

A estrutura oligaacuterquica de governo estabelecida durante a Repuacuteblica

mostrou-se ndash no seacutec I ndash incapaz de integrar efetivamente o enorme territoacuterio

conquistado em toda a bacia do Mediterracircneo A classe dirigente composta

pelos senadores outorgava-se direitos exclusivos sobre a cidadania a

distribuiccedilatildeo dos impostos e as decisotildees excluindo assim do poder todo e

qualquer segmento populacional das proviacutencias Estas sofriam os abusos de

poder as confiscaccedilotildees e extorsotildees dos arrecadadores de impostos e

embaixadores do Senado romano O comportamento extremamente

conservador da classe senatorial mostrava-se incompatiacutevel com a necessidade

de atender pelo menos agraves elites provinciais tendo em vista manter unificado

o territoacuterio conquistado Diante desta situaccedilatildeo os diferentes membros da

oligarquia dominante propunham alternativas tambeacutem diferentes como

soluccedilatildeo agrave crise provocando assim entre os partidos e as facccedilotildees poliacuteticas

lutas que se prolongaram por quase um seacuteculo O estabelecimento do

Impeacuterio na verdade foi a soluccedilatildeo poliacutetica encontrada para assegurar a

estabilidade do poder e anular os conflitos existentes entre as vaacuterias facccedilotildees

Evidentemente as causas que levaram ao fim da Repuacuteblica foram bem

complexas e natildeo nos aprofundaremos nessa discussatildeo aqui ateacute porque existem obras

especiacuteficas sobre o assunto Dessa maneira abordaremos o surgimento do impeacuterio de

forma mais geral de modo que facilite a compreensatildeo do contexto histoacuterico em que se

insere a obra de Tito Liacutevio

31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano

Com o assassinato de Ceacutesar os muitos opositores do ditador acreditavam que a

Repuacuteblica voltaria agrave su ntig ―norm lid de Tod vi M rco Antocircnio proveitou-se

do vaacutecuo criado no poder e rapidamente assumiu o controle da Itaacutelia e de vaacuterias legiotildees

Nesse meio tempo Ciacutecero tentou colocar Otaacutevio contra Marco Antocircnio e dividir os

cesaristas mas a estrateacutegia natildeo funcionou em 43 aC Otaacutevio Antocircnio e Leacutepido (que

149

com nd v s legiotildees n Gaacuteli ) form r m o ―segundo triunvir to 280

Com o poder

assim dividido Leacutepido se incumbiu da Itaacutelia Antocircnio e Otaacutevio foram combater a uacuteltima

frente que lhes era contraacuteria na Macedocircnia Na batalha de Filipos (42 aC) Bruto e

Caacutessio (dois dos principais senadores que articularam a morte de Ceacutesar) satildeo

derrotados281

Em 36 aC Sexto Pompeu (filho de Pompeu Magno) foi derrotado pelos

triuacutenviros na Siciacutelia e com isso as legiotildees de Leacutepido passaram a apoiar Otaacutevio Dessa

forma com apenas Antocircnio e Otaacutevio no poder uma segunda guerra civil delineou-se

Entre tantas batalhas o confronto decisivo aconteceu em Aacutecio (31 aC) no Mar Jocircnico

em que a frota de Otaacutevio aniquilou a esquadra de Antocircnio que derrotado suicidou-se

logo depois Finalmente depois das turbulecircncias e guerras civis que marcaram o seacuteculo

I aC a via do poder encontrava-se livre para um uacutenico governante

Otaacutevio inaugurou uma nova forma de governo na qual o comando centrava-se

em um uacutenico indiviacuteduo Esse sistema poliacutetico conhecido na Roma antiga por

principado hoje em dia eacute popularmente chamado de impeacuterio282

Todavia Otaacutevio

comportou-se de maneira bem diferente de seu tio-avocirc Ceacutesar pois sabia que para os

romanos seria inaceitaacutevel um novo rei ou ditador perpeacutetuo Como Mendes (1988 p 75

e 76) destaca apoacutes vencer Antocircnio Otaacutevio percebeu que em sua accedilatildeo poliacutetica natildeo

poderia menosprezar os sentimentos da tradiccedilatildeo republicana enraizados na sociedade

romana e deveria considerar que os que combateram ao seu lado desejavam juntamente

com a paz a manutenccedilatildeo de suas prerrogativas e privileacutegios soacutecio-econocircmicos Nas

palavras do proacuteprio Otaacutevio (RG V e VI)

Dictaturam et apsenti et praesenti mihi delatam et a populo et a senatu M

Marcello et L Arruntio consulibus non accepi () Consulatum quoque tum

annuum et perpetuum mihi delatum non recepiConsulibus M Vinicio et Q

Lucretio et postea P Lentulo et Cn Lentulo et tertium Paullo Fabio Maximo

280

Colocamos esses termos entre aspas jaacute que o primeiro triunvirato natildeo deveria ter recebido esse nome

jaacute que foi estabelecido fora da lei romana (cf p 110) A alianccedila firmada em 43 aC foi aprovada pelo

Senado concedendo extraordinariamente a ditadura aos trecircs cidadatildeos mencionados por cinco anos No

mesmo ano Ciacutecero viria a ser assassinado pelos homens de Antocircnio 281

Para esse resumo dos eventos entre a morte de Ceacutesar e a ascensatildeo de Otaacutevio utilizamos como

referecircnci o c piacutetulo ―The founding of the Empire de Stockton (in BOARDMAN et al 1986 p 443 a

461) 282

O princeps (priacutencipe) era o cidadatildeo que tinha o direito de ser o primeiro a usar a palavra no Senado e

era tambeacutem o primeiro a ser inscrito no aacutelbum dos senadores Na praacutetica natildeo conferia poderes mas sim

prestiacutegio Augusto foi priacutencipe do senado durante quarenta anos (Res Gestae I 7) Jaacute o termo imperador

(imperator) era um tiacutetulo dado por aclamaccedilatildeo popular (ou do Senado) ao general vitorioso que obtinha o

direito de celebrar o triunfo Aleacutem disso imperator designava o magistrado que era investido com o

imperium (cf nota 175) Com o tempo o significado de imperador passou a ser o do liacuteder uacutenico de Roma

(suplantando o termo priacutencipe) e impeacuterio passou a designar essa forma de governo Daiacute vem tambeacutem a

confusatildeo de se designar Ceacutesar como imperador jaacute que ele foi aclamado imperator pelos seus soldados

mas nunca chegou a ser princeps Cf Canfora (2002 p 487 e 488) para mais detalhes sobre o imperium

150

et Q Tuberone senatu populoque Romano consentientibus ut curator legum

et morum summa potestate solus crearer nullum magistratum contra morem

maiorum delatum recepi Quae tum per me geri senatus uoluit per

tribuniciam potestatem perfeci cuius potestatis conlegam et ipse ultro

quinquiens a senatu depoposci et accepi

Natildeo aceitei a ditadura a mim presente ou ausente oferecida pelo povo e pelo

senado quando eram cocircnsules M Marcelo e L Arruacutencio () Agravequela mesma

eacutepoca natildeo aceitei o consulado anual e vitaliacutecio a mim oferecido No

consulado de M Viniacutecio e Q Lucreacutecio depois no de P Lecircntulo e Cn

Lecircntulo e em terceiro lugar no de Paulo Faacutebio Maacuteximo e Q Tuberatildeo

havendo entre o senado e o povo romano consenso de que eu fosse escolhido

para curador uacutenico das leis e costumes com o poder maacuteximo nenhum cargo

concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei283

Otaacutevio assim deixou claro nessas e em vaacuterias outras passagens registradas no

monumento de Ancara que agiu sempre dentro da lei e do costume dos romanos nunca

aceitando as magistraturas extraordinaacuterias como a ditadura ou o consulado vitaliacutecio284

Embor n praacutetic ele fosse o senhor bsoluto de Rom seus poderes er m ―renov dos

periodicamente pelo senado Por conseguinte ele criou um regime hiacutebrido de governo

manteve as instituiccedilotildees republicanas e as antigas magistraturas (embora esvaziadas de

poder poliacutetico) mas o poder de fato encontrava-se nas matildeos do princeps Otaacutevio

mostrava-se como o restaurador da Repuacuteblica e da paz apoacutes as sangrentas guerras civis

e fez questatildeo de alardear isso na agenda da propaganda imperial285

Aleacutem disso o

princeps recebeu do povo e do senado a alcunha de Augusto286

em honra a tudo que ele

fez por Roma como ele mesmo registrou (RG XXXIV)

In consulatu sexto et septimo postquam bella ciuilia exstinxeram per

consensum uniuersorum potitus rerum omnium rem publicam ex mea

potestate in senatus populique Romani arbitrium transtuli Quo pro merito

meo senatus consulto Augustus appellatus sum et laureis postes aedium

mearum uestiti publice coronaque ciuica super ianuam meam fixa est et

clupeus aureus in curia Iulia positus quem mihi senatum populumque

Romanum dare uirtutis clementiaeque et iustitiae et pietatis caussa testatum

est per eius clupei inscriptionem Post id tempus auctoritate omnibus

praestiti potestatis autem nihilo amplius habui quam ceteri qui mihi quoque

in magistratu conlegae fuerunt

283

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo feita por Trevizam e Rezende (SUETOcircNIO AUGUSTO 2007 p 128 e

129) 284

Para aprofundamento sobre a Res Gestae e d postur poliacutetic de Augusto cf o c piacutetulo ―Comentaacuterio

sobre as Res Gestae Divi Augusti de Cor ssin (In JOLY 2007 p 97-118) 285

Como o proacuteprio Augusto alardeou o fato de ter fechado o templo de Jano (o que era um sinal de paz

obtida por vitoacuterias romanas tanto em terra quanto no mar) por trecircs vezes durante seu governo (Res

Gestae XIII) aleacutem dele e sua eacutepoca terem sido exaltados em obras de vaacuterios autores do periacuteodo

sobretudo Virgiacutelio 286

Augusto signific v o ―veneraacutevel e esse tiacutetulo (recebido em 27 C ) p ssou f zer p rte do nome de

Otaacutevio

151

Em meu sexto e seacutetimo consulados depois de extinguir as guerras civis e por

consenso de todos senhor de tudo passei a repuacuteblica de meu poder para o

arbiacutetrio do senado e do povo romano Por esse meacuterito pessoal fui chamado de

―Augusto por decreto do sen do os umbr is de minh c s for m

publicamente cobertos com louros uma coroa ciacutevica foi afixada acima de

minha porta e um escudo de ouro posto na cuacuteria Juacutelia Atestava a inscriccedilatildeo do

escudo que o senado e o povo romano o davam a mim pelo valor pela

clemecircncia pela justiccedila e pelo senso do dever Depois disso vi-me agrave frente de

todos pela autoridade mas nenhum poder tive a mais que meus outros

colegas tambeacutem investidos de cargos (grifos nossos) 287

Pelo trecho acima Otaacutevio Augusto deixa claro que o escudo exaltava o seu valor

(uirtus) clemecircncia (clementia) justiccedila (iustitia) e senso do dever (pietas) aleacutem disso

ele tambeacutem estava agrave frente dos outros pela autoridade (auctoritas) e natildeo pelo poder

(potestas) que era o mesmo p r todos ―os investidos de c rgos 288

Augusto

habilmente definiu que sua superioridade sobre os outros cidadatildeos era devido ao fato de

o senado e o povo romano lhe terem conferido a auctoritas e o honoriacutefico tiacutetulo de

Augusto por livre e espontacircnea vontade jaacute que ele mesmo devolveu o poder agrave repuacuteblica

depois de terminadas as guerras civis Evidentemente depois de tantas convulsotildees

internas em Roma Augusto foi bastante astuto em sua carreira puacuteblica e tomou cuidado

para natildeo se indispor com o senado e o povo Ele buscou manter a repuacuteblica os costumes

e as instituiccedilotildees tradicionais sempre deixando claro que exercia o poder porque a urbe

lhe pedia isso e que esse mesmo poder vinha de Roma natildeo por coincidecircncia Augusto

foi um dos governantes mais longevos exercendo o poder de 27 aC ateacute 14 dC

quando veio a falecer com aproximadamente 76 anos de idade

32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia

Apoacutes a conquista da Gaacutelia empreendida por Ceacutesar os civis passaram a adaptar-

se agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica os gauleses foram privados da sua liberdade aleacutem da grande

perda de pessoas e prejuiacutezos materiais289

Do periacuteodo entre 52 aC (que marcou o fim

287

Novamente usamos a traduccedilatildeo de Trevizam e Rezende (2007 p 137 e 138) 288

Anteriormente jaacute mencionamos a uirtus (cf p 124 e ss) a clementia (p 122 e ss) a iustitia (de forma

bem abrangente no subcapiacutetulo 212) e a pietas (cf p 126) A auctoritas como definiu Pereira (1993 p

351 e ss) era um valor intriacutenseco que conferia maior peso a um indiviacuteduo ou seja que lhe conferia

autoridade Esse valor diretamente relacionado agrave uirtus natildeo se exercia pela funccedilatildeo ou pela persuasatildeo

mas sim pelo meacuterito da pessoa ou da corporaccedilatildeo que toma uma decisatildeo ndash nesse sentido o Senado

representava a auctoritas de Roma A potestas consistia no poder poliacutetico de um magistrado

intrinsecamente ligado ao cargo que ele ocupava 289

Quanto ao nuacutemero de baixas militares haacute muita discordacircncia entre as fontes como lembra Le Bohec

(2009 p 116) Veleio Pateacuterculo (II 47) falou em 400000 mortos quanto aos civis Plutarco (Ceacutesar XV

3) citou 1000000 de falecidos e Pliacutenio o Velho (VII 92) estabeleceu o nuacutemero de 1192000 Aleacutem

152

da guerra da Gaacutelia) a 31 aC natildeo temos muitas informaccedilotildees sobre o que se passou

nessa regiatildeo jaacute que as fontes concentraram-se em narrar os desdobramentos das guerras

civis de Ceacutesar contra Pompeu e posteriormente de Augusto contra Antocircnio Desse

espaccedilo de tempo temos a brusca mudanccedila de sorte de Marselha Durante os conflitos de

na Gaacutelia a cidade (que era cliente de Ceacutesar) enriqueceu ao fornecer equipamento militar

aos legionaacuterios Poreacutem Marselha tambeacutem tinha outro patrono Pompeu Como lembra

Le Bohec (2009 p 117) assim que estourou a guerra entre esses dois generais

Marselha manteve-se neutra ateacute que em 49 aC no auge da crise civil a cidade passou

a apoiar Pompeu Ceacutesar natildeo perdoou essa traiccedilatildeo e depois que sitiou e tomou a cidade

ele retirou uma grande parte do territoacuterio marselhecircs e passou essas terras para as

municiacutepios vizinhos Aleacutem desse ocorrido haacute ainda relatos de que em 46 aC houve

uma revolta dos beloacutevacos (naccedilatildeo gaulesa) mas natildeo dispomos de detalhes sobre o

ocorrido

Quanto agrave urbanizaccedilatildeo Ceacutesar assentou um grande nuacutemero de veteranos nas

colocircnias gaulesas em data incerta ndash sendo que possivelmente algumas dessas eram

anteriores a Ceacutesar Dessa forma Narbonne recebeu os soldados da X legiatildeo Beacuteziers

d VII Freacutejus d VIII Arles d VI e Or nge d II 290

Lugudunum (Lyon) e Raurica

(Augst) foram fundadas em 43 aC por Luacutecio Munaacutetio Planco (LE BOHEC 2009 p

117)

Em 27 aC Augusto com seu poder consolidado dividiu todas as proviacutencias

romanas em dois grupos as imperiais sob a administraccedilatildeo direta do priacutencipe ndash que

eram aqueles territoacuterios receacutem conquistados ou mal pacificados que requeriam uma

forte presenccedila militar e as senatoriais confiadas ao Senado (GRIMAL 2002 p 212)

Evidentemente Augusto plenamente dotado do imperium poderia intervir em todas as

proviacutencias inclusive as senatoriais Todo o territoacuterio da Gaacutelia foi dividido em quatro

proviacutencias todas imperiais que eram a Narbonense a Aquitacircnia a Lugdunense (devido

agrave capital Lugdunum hoje conhecida por Lyon) e a Beacutelgica Em 22 aC a Narbonense

foi doada ao povo romano ou seja passou para administraccedilatildeo do Senado (LE BOHEC

2009 p 139) As cidades que surgiram a partir de entatildeo foram importantes na

integraccedilatildeo comercial e cultural entre Roma e as naccedilotildees conquistadas e muitas

receberam seus nomes a partir da onomaacutestica imperial Como destaca Le Bohec (2009

dessas perdas tambeacutem foi grande a parcela da populaccedilatildeo transformada em escrava (cf p 16 e 17) aleacutem

do pesado tributo que deveria ser pago a Roma anualmente 290

Pliacutenio o Velho menciona esses assentamentos em HN III 32 e 36

153

p 140) temos a cidade de Caesarodunum (atualmente Tours) Iuliobona (Lillebonne)

Iuliomagus (tanto Angers na Franccedila quanto Schleitheim na atual Suiacuteccedila) Augustobona

(Troyes) dentre outras Ainda segundo Le Bohec (2009 p 140) nenhuma dessas

cidades recebeu seu nome latino por pressatildeo ou imposiccedilatildeo de Roma mas sim essa

escolha foi feita pela aristocracia local que desejava demonstrar seu reconhecimento ao

imperador que de certa forma defendia os seus interesses

De acordo com Guarinello (214 p 293-295) foi durante o principado de

Augusto que muitas das medidas externas de Roma foram definidas e com a paz as

proviacutencias passaram a se integrar cada vez mais ao modo de vida romano Essa

integraccedilatildeo foi bastante impulsionada pela sedentarizaccedilatildeo e profissionalizaccedilatildeo do

exeacutercito evidentemente esse processo comeccedilara antes com Maacuterio mas foi a partir de

Augusto que as tropas foram claramente afirmadas e definitivamente integradas agrave vida

militar e tambeacutem agrave vida cotidiana nos assentamentos nas proviacutencias (LE BOHEC 2009

p 154) Dessa maneira a divisatildeo entre Roma e as proviacutencias deu lugar agrave divisatildeo entre o

impeacuterio e os ditos baacuterbaros que viviam aleacutem das fronteiras e natildeo participavam do

mundo considerado civilizado Durante o principado de Augusto ocorreu a grande

derrota romana perto da floresta de Teutoburgo (9 dC) quando o comandante Varro e

suas trecircs legiotildees foram emboscadas pelos germanos e inteiramente destruiacutedas Com esse

grande reveacutes as fronteiras do impeacuterio durante Augusto ficaram estabelecidas na Europa

ocidental ateacute os rios Reno e Danuacutebio na parte oriental ateacute o impeacuterio dos partas

reconhecidos pelos romanos como um povo autocircnomo (GRIMAL 1993 p 306 e 313)

33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita

Liacutevio nasceu em Patauium (Paacutedua) em 59 aC e pelo que se tem registrado nas

fontes (como Secircneca o Velho e Quintiliano) natildeo se dedicou agrave vida puacuteblica ou militar

mas sim agrave retoacuterica como professor e escritor Por volta do ano 30 aC ele passou a se

dedicar inteiramente agrave composiccedilatildeo de sua monumental obra historiograacutefica ndash conhecida

como Ab urbe condita libri291

Ogilvie (1965 p 3) destaca que Liacutevio de forma alguma

foi associado ao ciacuterculo de Mecenas ou a qualquer outro autor que fazia parte do meio

literaacuterio augustano Por isso provavelmente Liacutevio comeccedilou a escrever sua histoacuteria na

obscuridade e de alguma forma esse fato chegou ao conhecimento de Augusto que

291

O tiacutetulo tr duzido seri ―Livros sobre fund ccedilatildeo d Cid de m s ess obr t mbeacutem eacute conhecid

simplesmente como ―Histoacuteri rom n

154

certamente ficou interessado em apadrinhar um escritor de talento para promover a nova

Repuacuteblica Poreacutem Liacutevio como veremos adiante natildeo exaltou as qualidades do novo

regime em sua obra O historiador alternou sua residecircncia entre Roma e Paacutedua onde

veio a falecer em 17 dC provavelmente ele empenhou-se na escrita de seu trabalho ateacute

o fim de sua vida292

Ab urbe condita a grande obra de Liacutevio seria composta em 142 livros Aleacutem do

prefaacutecio nos chegaram apenas 35 desses livros que satildeo Prefaacutecio I-X e XXI a XLV

tendo este uacuteltimo uma lacuna ao final293

Dos outros livros apenas temos inuacutemeros

fragmentos Assim sobre o conteuacutedo dos livros de I a V temos a fundaccedilatildeo lendaacuteria de

Roma (753 aC) o periacuteodo da monarquia o princiacutepio da Repuacuteblica ateacute o saque de

Roma pelos gauleses em 390 aC Nos livros VI a XV haacute os conflitos entre romanos e

samnitas antes das Guerras Puacutenicas (por volta de 387 a 264 aC) Jaacute os livros XVI a

XXX narrariam as duas primeiras Guerras Puacutenicas (entre 264 a 201 aC) Os livros

XXXI a XLV seriam a respeito de guerras dos romanos contra os macedocircnios e outros

povos do oriente (entre 201 a 167 aC) Os livros XLVI a LXX trariam os

acontecimentos do periacuteodo entre 167 ateacute as Guerras Sociais em 90 aC Os livros LXXI

a XC seriam referentes aos anos de 90 aC ateacute a morte de Sila em 78 aC Nos livros

XCI a CVIII que seriam sobre os anos 78 a 50 aC temos os confrontos entre romanos

e gauleses e a submissatildeo da Gaacutelia por Ceacutesar os livros CIX a CXVI narrariam sobre a

guerra civil ateacute a morte de Ceacutesar em 44 aC CXVII a CXXXIII abordaria o periacuteodo

posterior agrave morte de Ceacutesar ateacute a morte de Marco Antocircnio em 30 aC por fim os livros

CXXXIV a CXLII seriam a respeito do principado de Augusto ateacute sua morte no ano 14

dC Os livros remanescentes tambeacutem foram preservados por epiacutetomes (resumos)

chamados Periochae provavelmente feitos para propoacutesitos didaacuteticos como afirma

Conte (1999 p 374)

34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita

Segundo Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 644) Liacutevio eacute o primeiro

escritor analiacutetico do qual temos uma obra que sobreviveu em boa quantidade e eacute atraveacutes

dele e dos elementos de escritos antigos percebidos em sua histoacuteria que eacute possiacutevel

292

Para essa biografia de Liacutevio utilizamos como referecircncia bibliograacutefica FORSYTHE (2005 p 67) 293

Desde Heroacutedoto e Tuciacutedides era comum o historiador escrever um proecircmio antes de sua obra com o

escopo e propoacutesito do seu trabalho A partir de Isoacutecrates esses prefaacutecios passaram a ter grande influecircncia

da retoacuterica e buscavam sobretudo captar a atenccedilatildeo e interesse do leitor para a narrativa como algo uacutetil e

proveitoso (OGILVIE 1965 p 23)

155

formar julgamentos dos antigos anais da Repuacuteblica294

A tendecircncia romana de se

escrever histoacuteria em uma estrutura anual se justificava pela proacutepria origem dos relatos

dos fatos desde meados do seacuteculo IV aC295

Esse tipo de estrutura eacute marcante na

literatura latina e vai ser seguida por vaacuterios autores ao longo dos seacuteculos posteriores

De acordo com Beck (in MARINCOLA 2007 v 1 p 265) a tendecircncia de se fazer

historiografia por meio da estrutura analiacutetica assinalava continuidade seguranccedila e

estabilidade institucional desde os primoacuterdios de Roma ateacute o periacuteodo contemporacircneo

Liacutevio retomou a estrutura analiacutetica que caracterizou a antiga historiografia

romana rejeitando o estilo monograacutefico de Saluacutestio296

Os livros de Ab urbe condita

que contavam desde os primoacuterdios de Roma se tornavam maiores agrave medida em que a

narrativa se aproximava dos dias proacuteximos ao autor297

Aleacutem disso como destaca

Marincola (2007 v2 p 172) o fato dos livros contemporacircneos serem mais detalhados

seguiam a tradiccedilatildeo iniciada por Eacuteforo (e adotada por muito autores que escreveram

longas narrativas historiograacuteficas) Esse fato justificava-se ateacute mesmo pelo maior

interesse do puacuteblico em eventos recentes como o proacuteprio Liacutevio deixou claro no prefaacutecio

de sua histoacuteria (sect4) () et legentium plerisque haud dubito quin primae origines

proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad haec noua ()

―( ) agrave m iori dos leitores natildeo tenho duacutevid de que s primeir s origens e s p rtes

proacuteximas agraves origens seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos

tempos ( ) 298

Outro aspecto que tambeacutem contribuiacutea para esse aumento dos livros mais

proacuteximos da eacutepoca do autor era a maior quantidade disponiacutevel de fontes do que as do

periacuteodo mais antigo envolto em lendas e narrativas miacuteticas Para a primeira deacutecada

(livros I a X) Liacutevio usou como fontes historiograacuteficas sobretudo Faacutebio Pictor Valeacuterio

Antias (cronista do seacuteculo I aC do periacuteodo posterior a Sila) e Liciacutenio Macer

294

De fato como destaca Forsythe (2005 p 59) apenas Liacutevio e Dioniacutesio de Halicarnasso deixaram uma

quantidade substancial de material sobre a primitiva Roma e ambos escreveram nas uacuteltimas deacutecadas do

seacuteculo I aC Todos os outros autores que escreveram sobre o periacuteodo remoto da histoacuteria romana nos

chegaram muito fragmentados 295

Cf p 11 sobre as taacutebulas com os eventos listados pelo pontiacutefice maacuteximo 296

Levene (in MARINCOLA 2007 v 1 p 280) destaca que jaacute na Antiguidade havia o reconhecimento

de que Saluacutestio e Liacutevio representavam o ponto alto na historiografia do periacuteodo republicano e sempre

foram considerados duas figuras contrastantes (como escreveu o proacuteprio Quintiliano Inst II 5 18)

Quintiliano (Inst X 1 101) igualmente comparou Saluacutestio com Tuciacutedides e Liacutevio com Heroacutedoto Em

contexto latino Saluacutestio era o pessimista desiludido com a corrupta poliacutetica romana Liacutevio por sua vez

era o otimista (ingecircnuo ateacute) que celebrava a antiga virtude romana em uma grande escala analiacutetica

(LEVENE In MARINCOLA 2007 v 1 p 280) 297

Liacutevio dessa forma coloca sua obra dentro da tradiccedilatildeo de ktisis ou seja de contar os fatos desde a

fundaccedilatildeo da Urbe (cf p 10 deste trabalho) 298

Traduccedilatildeo de Joatildeo Angelo Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)

156

(proeminente poliacutetico contemporacircneo de Ciacutecero)299

Para narrar a expansatildeo de Roma no

Mediterracircneo Liacutevio usou especialmente Poliacutebio de quem mais do que outras fontes

tomou a visatildeo unificada do mundo mediterracircneo e as relaccedilotildees entre Roma e os reinos

heleniacutesticos sobretudo nos livros finais de Ab urbe condita (CONTE 1999 p 369)300

Apesar desse uso de Poliacutebio como fonte Liacutevio rejeitava a sua visatildeo pragmaacutetica da

histoacuteria301

As descriccedilotildees do estilo de vida dos gauleses feitas por Poliacutebio (II 17 e ss)

foram bastante uacuteteis a Liacutevio (RANKIN 1996 p 72) Liacutevio preferia acentuar o aspecto

traacutegico da narrativa embelezando e variando os acontecimentos de acordo com a

retoacuterica historiograacutefica de Ciacutecero ao inveacutes de se comprometer com o apuro

historiograacutefico302

Sobre esse aspecto mais literaacuterio do que historiograacutefico de Liacutevio

Conte (1999 p 369) lembra

It has often been emphasized that Livy does not appear to carry out his

historic l work on the b sis of c reful critic l ev lu tion of his sources (hellip)

Furthermore he conspicuously fails to fill the gaps in the historiographic

tradition by having recourse to other kinds of documentation which may

have been readily accessible thus Livy makes very scant use of the

documentation to be found in manuscripts and ancient inscriptions or of the

results obtained by the scrupulous research of antiquarians from the previous

generation such as Atticus and Varro Consequently he has frequently been

seen as a mere exornator rerum whose chief concern is to amplify and

embellish what he found in his source by dramatizing it by giving it variety

and movement 303

Liacutevio como dissemos priorizava o aspecto dramaacutetico em sua obra mas sem

deixar que essa caracteriacutestica se sobrepusesse aos fatos (CONTE 1999 p 372) Assim

para ele a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo e devia respeitar

os acontecimentos e os embelezar com as cores do estilo de acordo com o que pregava

Ciacutecero304

Assim Conte (1999 p 372) pontua

299

Para detalhes sobre esses e outros autores (como L Caacutessio Hemina e Q Claacuteudio Quadrigaacuterio) cf

FORSYTHE 2005 p 62 e ss 300

Como destaca Oliver (In BUGH 2006 p 115) o trabalho de Poliacutebio foi base para partes relevantes

da histoacuteria de Liacutevio (especialmente os livros XXXI a CXLV) 301

Para aprofundamento sobre o meacutetodo de trabalho de Liacutevio bem como as fontes utilizadas por ele cf

Ogilvie (1965 p 5 e ss) e tambeacutem Luce (1977) 302

Cf a concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero na paacutegina 78 e ss 303

―Frequentemente foi enf tiz do que Liacutevio natildeo parece realizar seu trabalho histoacuterico com base em uma

cuidadosa avaliaccedilatildeo criacutetica de suas fontes () Aleacutem disso ele evidentemente falha em preencher as

lacunas na tradiccedilatildeo historiograacutefica ao recorrer a outros tipos de documentaccedilatildeo que possivelmente

estariam facilmente disponiacuteveis portanto Liacutevio faz um uso muito escasso da documentaccedilatildeo a ser

encontrada em manuscritos e antigas inscriccedilotildees ou de resultados obtidos em escrupulosa pesquisa de

antiquaacuterios de uma geraccedilatildeo anterior como Aacutetico e Varratildeo Consequentemente ele frequentemente foi

visto como um mero exornator rerum cuja principal preocupaccedilatildeo era amplificar e ornamentar o que ele

encontrou em sua fonte ao dramatizaacute-la dando-lhe v ried de e movimento 304

No proacuteximo subcapiacutetulo aprofundaremos a influecircncia de Ciacutecero na concepccedilatildeo historiograacutefica de Liacutevio

157

Livy conceives history not as a political study that explains attitudes and

events and takes into account strategies of parties and factions ideologies and

material interests but rather as a narrative that is conducted in terms of

human personalities and representative individuals The moral passion that

marks such a conception derives in part from the Hellenistic historiographic

tradition This was probably the manner of historical interpretation that

characterized the works now lost of historians such as Ephorus305

Por conseguinte Liacutevio julgava sua histoacuteria mais como uma rica atividade

retoacuterica do que uma investigaccedilatildeo da verdade como ele colocou no prefaacutecio (sect6) do Ab

urbe cond quae ante conditam condendamue urbem poeticis magis decora fabulis

quam incorruptis rerum gestarum monumentis traduntur ea nec adfirmare nec refellere

in animo est (― s tradiccedilotildees que antes de fundada a cidade ou de pensar-se em fundaacute-la

nos chegam adornadas mais pelas efabulaccedilotildees dos poetas do que por provas autecircnticas

das accedilotildees realizadas essas tradiccedilotildees natildeo tenho em mente nem confirmar nem

refut r )306

O maior propoacutesito do historiador era o de mostrar que as qualidades morais

e intelectuais dos personagens da narrativa tinham impacto decisivo nos eventos Liacutevio

considerava que os sucessos (e fracassos) dos romanos eram fundamentalmente

explicados pelos valores que os personagens desempenhavam na narrativa dramaacutetica

como veremos a seguir no proacuteximo subcapiacutetulo

341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana

Liacutevio como citado antes foi o primeiro historiador de que temos notiacutecia que natildeo

pertenceu agrave aristocracia senatorial romana nem sequer teve um cargo militar307

A

maior ocupaccedilatildeo de sua vida foi a redaccedilatildeo de Ab urbe condita escrita respeitando vaacuterios

dos pressupostos metodoloacutegicos preconizados por Ciacutecero Um desses fundamentos era

sobre a historia ornata ou seja a histoacuteria embelezada308

Ainda sobre o rico estilo de

Liacutevio Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 645) lembra

305

―Liacutevio concebe histoacuteri natildeo como um estudo poliacutetico que explica atitudes e eventos e que leva em

conta estrateacutegias de partidos e facccedilotildees ideologias e interesses materiais mas sim como uma narrativa que

eacute conduzida em termos de personalidades humanas e indiviacuteduos representativos A paixatildeo moral que

marca tal concepccedilatildeo deriva em parte da tradiccedilatildeo historiograacutefica heleniacutestica Essa era provavelmente a

maneira de interpretaccedilatildeo histoacuterica que caracterizava os trabalhos agora perdidos de historiadores como

Eacuteforo 306

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 307

Ciacutecero considerava que o orador encarregado de escrever histoacuteria tambeacutem deveria ser um homem

puacuteblico (cf p 77 deste trabalho) Ao contraacuterio de todos os historiadores ateacute entatildeo Liacutevio foi o primeiro

cidadatildeo particular a se dedicar agrave histoacuteria 308

Cf p 79-80

158

His resources in language and deployment of his material were everything

that Cicero himself could have wished Avoiding Sallustian abruptness he

yet contrived a swift and varied narrative built from a rich vocabulary and an

immense flexibility of construction309

Como destaca Sebastiani (in JOLY 2007 p 84) Ciacutecero tambeacutem preconizava

que o historiador deveria se ater exclusivamente agrave composiccedilatildeo da narrativa natildeo

necessariamente embasando seu texto em uma experiecircncia proacutepria ou vivecircncia dos fatos

ndash como preconizava Heroacutedoto e Tuciacutedides ndash ou se preocupando com uma abordagem

pragmaacutetica como fizera Poliacutebio Liacutevio buscou centrar-se nas accedilotildees humanas e nas suas

consequecircncias Aleacutem disso uma caracteriacutestica marcante na historiografia latina que

tambeacutem tem destaque em Liacutevio era a preocupaccedilatildeo em analisar os fatos sob o prisma das

questotildees morais bem como fornecer vaacuterios exempla de boas (e maacutes) condutas310

O

proacuteprio Liacutevio assim escreveu no prefaacutecio (sect10)

Hoc illud est praecipue in cognitione rerum salubre ac frugiferum omnis te

exempli documenta in inlustri posita monumento intueri inde tibi tuaeque rei

publicae quod imitere capias inde foedum inceptu foedum exitu quod uites

Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos

histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora

ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por

princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar311

Tambeacutem sobre o papel pedagoacutegico da histoacuteria assim afirma Sebastiani (in

JOLY 2007 p 95) ―Fruto d rte retoacuteric n concepccedilatildeo ciceroni n histoacuteri

identifica a instruccedilatildeo do leitor e a preservaccedilatildeo da memoacuteria como meio de

entretenimento deleitoso 312

Devemos lembrar que Liacutevio ao contraacuterio do que

preconizava Ciacutecero natildeo se preocupou em fornecer exemplos com finalidades poliacuteticas

ou relacionados agrave vida puacuteblica Sem duacutevida com o novo sistema de governo iniciado

com Otaacutevio Augusto esse tipo de exemplificaccedilatildeo perdeu o sentido de existir Por

conseguinte o grande foco de Ab urbe condita era o de ajudar o cidadatildeo comum a se

desenvolver moralmente ao acompanhar os antigos feitos e como as virtudes (e os

viacutecios) influenciavam no rumo dos acontecimentos O uso de exempla por parte de

Liacutevio confirmava a grande capacidade retoacuterica pela qual ele foi elogiado e como

309

―Seus recursos de lingu gem e o desenvolvimento do seu m teri l for m tudo o que o proacuteprio Ciacutecero

poderia ter desejado Evitando a brusquidatildeo salustiana ele poreacutem efetuou uma narrativa raacutepida e variada

construiacuteda a partir de um rico vocabulaacuterio e um imens flexibilid de de construccedilatildeo 310

Tambeacutem segundo Ciacutecero esses exemplos serviriam como meio de os homens melhorarem sua proacutepria

conduta (cf p 78 e 79) 311

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 312

Para o que o proacuteprio Ciacutecero escreveu sobre isso cf na p 78 o trecho de Orador cap 120

159

destaca Chaplin (2000 p 72) era um ponto central em sua visatildeo de histoacuteria a

capacidade de manipular a percepccedilatildeo de uma audiecircncia sobre o passado vem da

oratoacuteria Liacutevio poreacutem transformou essa caracteriacutestica em uma ferramenta de

interpretaccedilatildeo histoacuterica Os personagens de dentro do texto ensinavam os romanos de

fora a verdade simples e direta do que Liacutevio considerava como o verdadeiro valor da

histoacuteria as liccedilotildees deveriam ser lidas e entatildeo imitadas ou evitadas (CHAPLIN 2000 p

77)313

Liacutevio ao escrever sua histoacuteria levando em conta tanto o aspecto retoacuterico de

fornecer exemplos quanto o aspecto de deleitar seu puacuteblico com uma narrativa

extremamente trabalhada e dramatizada aparentemente alcanccedilou enorme sucesso ainda

em vida caso possamos confiar nas fontes a esse respeito (embora posteriores ao

autor)314

Ab urbe condita por todas as caracteriacutesticas mencionadas anteriormente de

cert form virou um espeacutecie de ―eacutepic n cion l que eclipsou todos os n is

anteriores que descreviam os fatos ocorridos ano a ano (SEBASTIANI In JOLY

2007 p 88)

342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio

O regime poliacutetico de Augusto aparentemente natildeo tentou controlar as obras

historiograacuteficas como fez com a poesia Virgiacutelio Horaacuterio entre outros em seus versos

celebravam a nova forma de governo como um renascimento moral romano (MARTIN

GAILLARD 1981 p 124) Liacutevio poreacutem jaacute no prefaacutecio de sua obra deixava entrever

um pouco do seu pessimismo315

Temos um exemplo no prefaacutecio (sect4)

Res est praeterea et immensi operis ut quae supra septingentesimum annum

repetatur et quae ab exiguis profecta initiis eo creuerit ut iam magnitudine

laboret sua et legentium plerisque haud dubito quin primae origines

proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad

haec noua quibus iam pridem praeualentis populi uires se ipsae conficiunt

A histoacuteria de Roma eacute aleacutem disso digna de grande esforccedilo jaacute que remonta

para mais de 700 anos e porque a Cidade partindo de exiacuteguos iniacutecios a tal

ponto cresceu que jaacute padece de sua proacutepria grandeza e agrave maioria dos leitores

natildeo tenho duacutevida de que as primeiras origens e as partes proacuteximas agraves origens

313

Para discussatildeo profunda sobre o papel dos exempla em Liacutevio recomendamos o livro de Chaplin

(2000) 314

Dentre autores da Antiguidade que elogiaram Liacutevio temos Secircneca (De ira I206) Pliacutenio o Jovem

(Ep II38) Taacutecito (Ann IV343) e Quintiliano (Inst X 1101) 315

Para maior aprofundamento sobre o pessimismo em Liacutevio e na historiografia latina cf MARTIN

GAILLARD 1981 p 123 a 125

160

seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos tempos

em que as forccedilas de um povo antes altivo jaacute se destroem a si mesmas316

Acima Liacutevio deixou claro que Roma jaacute estava em decliacutenio durante a sua eacutepoca

sofrendo com a proacutepria grandeza De fato o historiador natildeo chegou a ser opositor de

Augusto mas tambeacutem natildeo era um entusiasta do novo tipo de governo (CONTE 1999

p 369) Taacutecito (Ann IV 34) contou que Augusto chegou a fazer um comentaacuterio jocoso

sobre Liacutevio chamando-o de pompeiano pelo fato de o historiador ter certa nostalgia

pelos ideais republicanos que foram inclusive refletidos em sua obra317

Contudo

como a parte de Ab urbe condita que narrava sobre a guerra civil entre Pompeu e Ceacutesar

se perdeu natildeo eacute possiacutevel saber ateacute que ponto Liacutevio defendeu os ideais republicanos318

Como Conte (1999 p 370) ressalta atraveacutes do proacuteprio Taacutecito ainda foi possiacutevel saber

que Liacutevio elogiou Pompeu e foi respeitoso em relaccedilatildeo aos oponentes de Ceacutesar

incluindo aiacute os seus assassinos Bruto e Caacutessio Tal fato natildeo era assim tatildeo temeraacuterio pois

Augusto ndash especialmente apoacutes a reforma constitucional de 27 aC ndash gostaria de ser visto

pelo povo mais como o restaurador da antiga repuacuteblica do que como herdeiro de Ceacutesar

Tambeacutem era um ponto a favor de Liacutevio o fato de ele ter se preocupado em narrar fatos

entremeados de exemplos morais para os cidadatildeos o que ia ao encontro da poliacutetica de

Augusto de restabelecer os tradicionais valores morais e religiosos dos romanos

Todavia Liacutevio deixa claro que o novo regime instaurado com Augusto natildeo era uma

volta agrave era de ouro tatildeo alardeada por Virgiacutelio Um exemplo disso encontra-se no

prefaacutecio de Ab urbe condita (sect9)

ad illa mihi pro se quisque acriter intendat animum quae uita qui mores

fuerint per quos uiros quibusque artibus domi militiaeque et partum et

auctum imperium sit labente deinde paulatim disciplina uelut desidentes

primo mores sequatur animo deinde ut magis magisque lapsi sint tum ire

coeperint praecipites donec ad haec tempora quibus nec uitia nostra nec

remedia pati possumus peruentum est

Cada um deve ao meu ver com o maacuteximo de si dirigir vivamente a atenccedilatildeo

a outros assuntos que vida e que costumes tiveram os antigos romanos por

meio de que homens e com que meios na paz e na guerra o impeacuterio surgiu e

cresceu em seguida fraquejando aos poucos a disciplina dever-se-ia rastrear

316

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 317

Taacutecito narrou esse episoacutedio no contexto da defesa de Cremuacutecio Cordo entatildeo acusado de crime contra

o governo por ter publicado uma obra historiograacutefica na qual elogiava Bruto e Caacutessio Cremuacutecio entatildeo

discursou falando assim ―( ) Dizem que elogiei Bruto e Caacutessio cujos feitos jaacute muitos memor r m

ningueacutem sem louvores Tito Liacutevio entre os mais assinalados por sua eloquecircncia e lealdade com tanto

calor exaltou Cn Pompeu que Augusto lhe chamou pompeano e isto natildeo prejudicou a sua reciacuteproca

miz de ( ) P r esse trecho utiliz mos tr duccedilatildeo feit por Pereir (TAacuteCITO 1964 p 163) 318

Martin (2000 p 112-124) analisando os resumos das Periochae faz uma interessante discussatildeo sobre

Liacutevio como cesariano ou pompeiano

161

como os costumes de iniacutecio soltos por assim dizer depois cada vez mais

relaxaram e entatildeo comeccedilaram a ir por terra ateacute chegar-se a estes tempos em

que natildeo podemos suportar nem nossos viacutecios nem seus remeacutedios319

Nota-se pelo trecho acima que Liacutevio percebia que a antiga virtude dos romanos

foi com o tempo sendo perdida ateacute chegar agrave sua fase na qual natildeo podiam ser

suport dos nem ―os viacutecios nem seus remeacutedios P r ele crise d s recentes guerr s

civis natildeo tinha sido solucionada de forma completamente satisfatoacuteria e nem o

principado era a soluccedilatildeo milagrosa que salvaria Roma de seu decliacutenio (CONTE 1999

p 370 e 371) Aleacutem disso Liacutevio deixou claro que queria falar de assuntos relacionados

agrave vida e costumes dos romanos rejeitando o caraacuteter pragmaacutetico da histoacuteria

Outro trecho que sintetiza o que discutimos acima estaacute tambeacutem no prefaacutecio

(sect11)

Ceterum aut me amor negotii suscepti fallit aut nulla unquam res publica

nec maior nec sanctior nec bonis exemplis ditior fuit nec in quam

[ciuitatem] tam serae auaritia luxuriaque immigrauerint nec ubi tantus ac

tam diu paupertati ac parsimoniae honos fuerit

De resto ou o amor do empreendimento me engana ou nunca Estado algum

houve nem maior nem mais iacutentegro nem mais rico de bons exemplos nem

cidade agrave qual imigraram tatildeo tardios a ganacircncia e o excesso e onde se prestou

tatildeo grande honra e por tanto tempo agrave frugalidade e parcimocircnia320

Embora deixasse claro o seu desencanto com o principado Liacutevio contudo

apoiava a supremacia romana e o seu domiacutenio sobre os outros povos No prefaacutecio

temos (sect7)

Datur haec uenia antiquitati ut miscendo humana diuinis primordia urbium

augustiora faciat et si cui populo licere oportet consecrare origines suas et

ad deos referre auctores ea belli gloria est populo Romano ut cum suum

conditorisque sui parentem Martem potissimum ferat tam et hoc gentes

humanae patiantur aequo animo quam imperium patiuntur

Eacute dada esta vecircnia aos antigos para que reunindo accedilotildees humanas agraves divinas

tornem mais veneraacutevel o primoacuterdio das cidades e se a algum povo se deve

permitir consagrar suas origens e os deuses referir como fundadores a gloacuteria

do povo romano eacute tal que quando apontam o poderosiacutessimo Marte como pai

e pai de seu fundador os povos natildeo soacute aceitam isso de bom grado como

tambeacutem aceitam o impeacuterio321

319

Novamente recorremos agrave traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) Liacutevio tambeacutem deixa

entrever seu desgosto com a eacutepoca em que vivia no Prefaacutecio sect 4 11 e 12 320

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 321

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)

162

Liacutevio legitimou a soberania romana afirmando que a origem da urbe era a mais

veneraacutevel e por conseguinte o povo era o mais glorioso Nota-se uma grande mudanccedila

de mentalidade sobre a motivaccedilatildeo imperialista do periacuteodo republicano (e que perdurou

ateacute Ciacutecero) para a fase do principado Se antes o domiacutenio era legitimado pela

honestid de com que Rom exerci su utorid de e teacute por um ―guerr just contr

os inimigos em Liacutevio percebemos que essa legitimaccedilatildeo se devia agrave gloacuteria romana e

tambeacutem agraves suas origens eminentes e divin s O povo rom no est ri ―destin do

imperar porque era o melhor e as proacuteprias naccedilotildees subjugadas reconhecendo esse

―direito de bom gr do ceit ri m o impeacuterio 322

Nos trechos que restaram de sua obra eacute

possiacutevel identificar passagens que justificavam isso sobretudo da forte cooperaccedilatildeo entre

a Fortuna (em sua essecircncia a divina providecircncia) e a uirtus do povo romano nenhum

povo poderia fazer frente ao romano jaacute que nenhum povo poderia dispor de uma forccedila

moral comparaacutevel agrave autoridade em que Roma fora fundada (CONTE 1999 p 371)323

35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita

Tito Liacutevio retratou os celtas de forma bem diferente do que fizera Ceacutesar Ele foi

bastante enfaacutetico em ressaltar toda a barbaacuterie e selvageria desse povo (e tambeacutem de

qualquer outra naccedilatildeo rival de Roma) e isso se justificava pelo caraacuteter majoritariamente

moralista e nacionalista de sua obra Evidentemente os gauleses tambeacutem tinham sua

ferocidade exacerbada bem como estereoacutetipos de comportamentos beacutelicos como uma

forma de abrilhantar as vitoacuterias romanas Assim Liacutevio buscou sempre enfatizar o

caraacuteter inferior tanto da cultura quanto da moral dos inimigos e passou longe de uma

generosa descriccedilatildeo (ou isenta ateacute de julgamento) como o fizera Ceacutesar no De bello

Gallico

Para ilustrar o que descrevemos acima vamos comeccedilar analisando o livro V de

Ab urbe condita que fala dos acontecimentos que vatildeo da migraccedilatildeo dos gauleses para a

Itaacutelia ateacute o saque de Roma Assim temos (Ab urbe cond V 34)

322

No subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista)

levantamos essa discussatildeo sobre os motivos que os romanos usavam para legitimar a conquista sobre

outros povos Conferir especialmente p 95-96 323

De acordo com o sect4 do prefaacutecio Liacutevio deixou claro que o uacutenico que poderia derrotar o romano era o

proacuteprio romano (cf p 155)

163

De transitu in Italiam Gallorum haec accepimus Prisco Tarquinio Romae

regnante Celtarum quae pars Galliae tertia est penes Bituriges summa

imperii fuit ii regem Celtico dabant Ambigatus is fuit uirtute fortunaque

cum sua tum publica praepollens quod in imperio eius Gallia adeo frugum

hominumque fertilis fuit ut abundans multitudo uix regi uideretur posse Hic

magno natu ipse iam exonerare praegrauante turba regnum cupiens

Bellouesum ac Segouesum sororis filios impigros iuuenes missurum se esse

in quas di dedissent auguriis sedes ostendit quantum ipsi uellent numerum

hominum excirent ne qua gens arcere aduenientes posset Tum Segoueso

sortibus dati Hercynei saltus Belloueso haud paulo laetiorem in Italiam

uiam di dabant Is quod eius ex populis abundabat Bituriges Aruernos

Senones Haeduos Ambarros Carnutes Aulercos exciuit Profectus

ingentibus peditum equitumque copiis in Tricastinos uenit Alpes inde

oppositae erant quas inexsuperabiles uisas haud equidem miror nulladum

uia quod quidem continens memoria sit nisi de Hercule fabulis credere

libet superatas Ibi cum uelut saeptos montium altitudo teneret Gallos

circumspectarentque quanam per iuncta caelo iuga in alium orbem terrarum

transirent religio etiam tenuit quod allatum est aduenas quaerentes agrum

ab Saluum gente oppugnari Massilienses erant ii nauibus a Phocaea

profecti Id Galli fortunae suae omen rati adiuuere ut quem primum in

terram egressi occupauerant locum patientibus Saluis communirent Ipsi per

Taurinos saltus quiete Alpis transcenderunt fusisque acie Tuscis haud

procul Ticino flumine cum in quo consederant agrum Insubrium appellari

audissent cognominem Insubribus pago Haeduorum ibi omen sequentes loci

condidere urbem Mediolanium appellarunt

Sobre a vinda dos gauleses para a Itaacutelia conhecemos isto enquanto

Tarquiacutenio Prisco era rei em Roma estiveram os maiores domiacutenios dos celtas

em poder dos bituacuteriges (que compotildeem a terccedila parte da Gaacutelia) e foram esses

que deram um rei ao povo ceacuteltico Foi ele Ambigato entatildeo muito poderoso

pela virtude e fortuna sua e do seu povo no governo dele a Gaacutelia ateacute entatildeo

fora tatildeo feacutertil em cereais e homens que com custo tamanha multidatildeo

pareceria ser governada Ele estando idoso e jaacute desejando livrar o reino de

uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso

filhos da sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes

mostrariam por meio de auguacuterios Eles mesmos deveriam chamar o nuacutemero

de homens que quisessem de modo que nenhuma naccedilatildeo pudesse repelir a sua

chegada Assim a Segoveso foi dada pelos oraacuteculos a floresta Herciacutenia a

Beloveso os deuses concederam um caminho mais favoraacutevel para a Itaacutelia

Beloveso chamou o excedente dos seus povos bituacuteriges arvernos secircnones

eacuteduos ambarros carnutos e aulercos Partindo com grandes tropas de

soldados e cavaleiros chegou ateacute aos tricastinos324

Nesse lugar estavam

opostos os Alpes sem duacutevida natildeo me espanto que eles pareccedilam insuperaacuteveis

jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como certamente temos na

memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas sobre Heacutercules Nesse

local como a altura das montanhas mantivesse os gauleses retidos eles

examinavam os arredores por onde haveriam de passar atraveacutes de cimos

quase unidos ao ceacuteu para outro mundo de terras Tambeacutem a religiatildeo os

retinha pois lhes fora anunciado que estrangeiros desejosos de terra eram

atacados pelo povo saluacutevio325

Esses estrangeiros eram os marselheses que

vieram da Foceia em navios Os gauleses considerando isso o pressaacutegio de

sua sorte os ajudaram a fortificar o primeiro local que ocuparam ao chegar a

essa terra sendo os saluacutevios suportados Eles mesmos atravessaram

324

Povo da Gaacutelia Narbonense 325

Ogilvie (1965 p 711) diz que o termo correto em latim para os salvos era salluvii (saluacutevios) povo que

vivia entre o Roacutedano e os Alpes mariacutetimos A confusatildeo de saluacutevios por salvos se justifica pela influecircncia

grega jaacute que nessa liacutengua essa naccedilatildeo era conhecida como Σάιιπεο Mantivemos a traduccedilatildeo como saluacutevio

em todas as passagens em que Liacutevio menciona essa tribo

164

tranquilamente os Alpes atraveacutes do desfiladeiro taurino326

tendo expulsado

os etruscos em uma batalha natildeo muito longe do rio Ticino ouviram que eles

se encontravam naquele local que era chamado campo dos iacutensubres o nome

da povoaccedilatildeo dos iacutensubres e dos eacuteduos Nesse lugar seguindo eles o

pressaacutegio fundaram uma cidade que chamaram de Mediolano327

(grifos

nossos)

A migraccedilatildeo dos gauleses segundo Liacutevio fora motivada pela grande multidatildeo de

pessoas o que levaria a uma superpopulaccedilatildeo e tambeacutem ao caos O trecho acima

menciona que a Gaacutelia era muito feacutertil em terras e homens somente Liacutevio citou essa

motivaccedilatildeo uacutenica e inacreditaacutevel de campo fecundo para uma migraccedilatildeo as outras fontes

como o proacuteprio Ceacutesar apontaram que o motivo foi a escassez de territoacuterio328

Possivelmente Liacutevio se confundiu e acabou falando em fertilidade de terra e de homens

quando o mais provaacutevel seria apenas fertilidade de homens (OGILVIE 1965 p 708)

Liacutevio situou esse acontecimento no reinado de Tarquiacutenio Prisco ou seja por volta de

600 aC Os bituacuteriges eram considerados por Liacutevio como os liacutederes dos celtas que

compunham a terceira parte da Gaacutelia o que imediatamente remete ao famoso proecircmio

do De bello Gallico Como Ogilvie (1965 p 707) pontua apenas Ceacutesar e Liacutevio

consideravam os celtas como sendo aqueles que habitavam a aacuterea central da Gaacutelia entre

os rios Garona e Marne Em todos os outros que escreveram a esse respeito os termos

gaulecircs e celta eram usados indistintamente para todo o conjunto eacutetnico das naccedilotildees da

Gaacutelia Liacutevio tambeacutem destacou que uma parte desses celtas se estabeleceram nas

proximidades da floresta Herciacutenia Ceacutesar tambeacutem mencionou o fato de gauleses

motivados pela grande populaccedilatildeo e escassez de terra terem estabelecido colocircnias

proacuteximas agrave floresta Herciacutenia329

Liacutevio ainda ressaltou que o oraacuteculo indicando o

caminho da Itaacutelia foi mais favoraacutevel a Beloveso do que a Segoveso De fato a floresta

Herciacutenia proacutexima do Reno estava bastante perto dos germanos e por isso era uma

localidade menos agradaacutevel tanto pela proacutepria ferocidade dos germanos quanto pelo

clima adverso Ogilvie (1965 p 713) detalha sobre esses povos citados nesse trecho

(eacuteduos secircnones arvernos etc) o conflito entre etruscos e gauleses na uacuteltima metade do

seacuteculo V aC foi confirmado por meio de estelas funeraacuterias de Bolonha

Destacamos tambeacutem o seguinte trecho (V 35)

326

Esse desfiladeiro taurino estaria proacuteximo de onde hoje eacute a cidade de Turim (Ogilvie 1965 p 712) 327

Atual Milatildeo 328

Cf BGall VI 24 na p 128 329

Cf novamente o BGall VI 24

165

Alia subinde manus Cenomanorum Etitouio duce uestigia priorum secuta

eodem saltu fauente Belloueso cum transcendisset Alpes ubi nunc Brixia ac

Verona urbes sunt locos tenuere Libui considunt post hos Salluuiique prope

antiquam gentem Laeuos Ligures incolentes circa Ticinum amnem

Poeninum deinde Boii Lingonesque transgressi cum iam inter Padum atque

Alpes omnia tenerentur Pado ratibus traiecto non Etruscos modo sed etiam

Vmbros agro pellunt intra Appenninum tamen sese tenuere Tum Senones

recentissimi aduenarum ab Vtente flumine usque ad Aesim fines habuere

Hanc gentem Clusium Romamque inde uenisse comperio id parum certum

est solamne an ab omnibus Cisalpinorum Gallorum populis adiutam Clusini

nouo bello exterriti cum multitudinem cum formas hominum inuisitatas

cernerent et genus armorum audirentque saepe ab iis cis Padum ultraque

legiones Etruscorum fusas quamquam aduersus Romanos nullum eis ius

societatis amicitiaeue erat nisi quod Veientes consanguineos aduersus

populum Romanum non defendissent legatos Romam qui auxilium ab senatu

peterent misere De auxilio nihil impetratum legati tres M Fabi Ambusti filii

missi qui senatus populique Romani nomine agerent cum Gallis ne a

quibus nullam iniuriam accepissent socios populi Romani atque amicos

oppugnarent Romanis eos bello quoque si res cogat tuendos esse sed

melius uisum bellum ipsum amoueri si posset et Gallos nouam gentem pace

potius cognosci quam armislsquo

Logo depois outro grupo de cenomanos tendo por liacuteder Etitovio seguiu os

passos dos precedentes e com a ajuda de Beloveso atravessou os Alpes pelo

mesmo desfiladeiro esse grupo ocupou os lugares onde hoje estatildeo as cidades

de Briacutexia e Verona Os liacutebuos se estabeleceram depois desses e tambeacutem os

saluacutevios perto da antiga tribo dos levos liacutegures que habitavam proacuteximo ao rio

Ticino330

Em seguida tendo os boios e os liacutengones atravessado os Apeninos

como jaacute estivessem ocupadas todas as terras entre o rio Poacute e os Alpes com

barcos atravessaram o Poacute e expulsaram da terra natildeo soacute os etruscos mas

tambeacutem os umbros contudo eles se estabeleceram nos limites dos Apeninos

Entatildeo os secircnones que vieram por uacuteltimo tomaram o territoacuterio do rio Utente

ateacute o rio Eacutesis Eu soube que foi essa a tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para

Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram ou natildeo com o apoio de

todos os povos da Gaacutelia Cisalpina Os clusinos aterrorizados com essa guerra

singular ao ver a multidatildeo de figuras desconhecidas tanto de homens quanto

de tipo de armas e ouvindo que por vaacuterias vezes as tropas dos etruscos foram

dispersadas do lado de caacute e do lado de laacute do Poacute enviaram emissaacuterios a Roma

para que pedissem auxiacutelio ao senado embora natildeo tivessem com os romanos

nenhum direito de alianccedila ou amizade ndash com exceccedilatildeo do fato de eles natildeo

terem defendido os seus parentes de Veios contra o povo romano Sobre o

auxiacutelio nada foi obtido poreacutem foram enviados trecircs legados filhos de Marco

Faacutebio Ambusto para que em nome do senado e do povo romano tivessem

com os g uleses ―p r que natildeo lut ssem contr os li dos e migos do povo

romano pois natildeo tinham recebido deles nenhuma injuacuteria Pelos romanos eles

seriam defendidos atraveacutes da guerra se algo se sucedesse mas parecia

melhor a proacutepria guerra ser evitada se pudesse e que os gauleses uma gente

receacutem conhecid fossem conhecidos m is pel p z do que pel s rm s

Liacutevio mencionou essas sucessivas levas migratoacuterias dos gauleses (cenomanos

liacutebuos boios liacutengones e os secircnones) de forma condensada de acordo com Ogilvie

(1965 p 713) esses deslocamentos ocorreram num intervalo temporal de 200 anos

Liacutevio para esse trecho usou como fonte Poliacutebio (II 17) com algumas poucas

330

Os liacutebuos eram uma tribo gaulesa e os levos era uma naccedilatildeo liacutegure ambos viviam onde hoje estaacute a

riviera francesa e italiana (OGILVIE 1965 p 714)

166

modificaccedilotildees No capiacutetulo acima comeccedila a se desenrolar a accedilatildeo que vai culminar na

derrota dos romanos por parte dos gauleses Abaixo a sequecircncia dos eventos (V 36)

Mitis legatio ni praeferoces legatos Gallisque magis quam Romanis similes

habuisset Quibus postquam mandata ediderunt in concilio Gallorum datur

responsum etsi nouum nomen audiant Romanorum tamen credere uiros

fortes esse quorum auxilium a Clusinis in re trepida sit imploratum et

quoniam legatione aduersus se maluerint quam armis tueri socios ne se

quidem pacem quam illi adferant aspernari si Gallis egentibus agro quem

latius possideant quam colant Clusini partem finium concedant aliter

pacem impetrari non posse Et responsum coram Romanis accipere uelle et

si negetur ager coram iisdem Romanis dimicaturos ut nuntiare domum

possent quantum Galli uirtute ceteros mortales praestarentlsquo Quodnam id

ius esset agrum a possessoribus petere aut minari armalsquo Romanis

quaerentibus et quid in Etruria rei Gallis essetlsquo cum illi se in armis ius

ferre et omnia fortium uirorum esselsquo ferociter dicerent accensis utrimque

animis ad arma discurritur et proelium conseritur Ibi iam urgentibus

Romanam urbem fatis legati contra ius gentium arma capiunt Nec id clam

esse potuit cum ante signa Etruscorum tres nobilissimi fortissimique

Romanae iuuentutis pugnarent tantum eminebat peregrina uirtus Quin

etiam Q Fabius euectus extra aciem equo ducem Gallorum ferociter in

ipsa signa Etruscorum incursantem per latus transfixum hasta occidit

spoliaque eius legentem Galli agnouere perque totam aciem Romanum

legatum esse signum datum est Omissa inde in Clusinos ira receptui canunt

minantes Romanis Erant qui extemplo Romam eundum censerent uicere

seniores ut legati prius mitterentur questum iniurias postulatumque ut pro

iure gentium uiolato Fabii dederentur Legati Gallorum cum ea sicut erant

mandata exposuissent senatui nec factum placebat Fabiorum et ius postulare

barbari uidebantur sed ne id quod placebat decerneret in tantae nobilitatis

uiris ambitio obstabat Itaque ne penes ipsos culpa esset [cladis forte

Gallico bello acceptae] cognitionem de postulatis Gallorum ad populum

reiciunt ubi tanto plus gratia atque opes ualuere ut quorum de poena

agebatur tribuni militum consulari potestate in insequentem annum

crearentur Quo facto haud secus quam dignum erat infensi Galli bellum

propalam minantes ad suos redeunt Tribuni militum cum tribus Fabiis

creati Q Sulpicius Longus Q Seruilius quartum P Cornelius Maluginensis

A delegaccedilatildeo seria paciacutefica se natildeo fossem os emissaacuterios tatildeo violentos que

mais parecessem gauleses do que romanos A eles depois que anunciaram os

assuntos ordenados no conselho dos gauleses foi dada a seguinte resposta

― ind que escut ssem pel primeir vez o nome dos rom nos contudo

acreditavam que eles eram os homens fortes aos quais pelos clusinos tenha

sido implorado o auxiacutelio em uma ocasiatildeo alarmante como eles preferiram

defender os aliados mais com uma embaixada do que com armas na verdade

eles natildeo haveriam de recusar a paz se aos gauleses necessitados de terra os

clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais

terra de outra maneira a paz natildeo poderia ser obtida Desejavam receber a

resposta diante dos romanos e se a terra fosse negada diante dos mesmos

romanos eles haveriam de combater de modo que eles pudessem anunciar agrave

sua paacutetria o quanto os gauleses ultrapassavam os outros mortais em valor

Os rom nos pergunt r m ―que interesse tinh m os g uleses n Etruacuteri

Como eles respondessem ferozmente que ―tinham o direito atraveacutes das

armas e tudo pertencia aos homens mais fortes dess form os acircnimos de

um e outro lado se inflamaram Eles correram para as armas e travaram

combate Entatildeo jaacute estando a urbe romana proacutexima ao seu destino funesto os

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas Isso natildeo

pocircde ser feito agraves escondidas jaacute que os trecircs homens nobres e fortiacutessimos da

juventude romana lutavam diante dos estandartes dos etruscos e muito se

167

elevava o valor estrangeiro Ainda mais que Quinto Faacutebio levado com o

cavalo para aleacutem da batalha matou o liacuteder dos gauleses que ferozmente se

lanccedilava contra os estandartes dos etruscos transpassando-lhe o flanco com

uma lanccedila Os gauleses o reconheceram pegando os despojos e por toda a

batalha foi dada a notiacutecia de ele ser o emissaacuterio dos romanos Entatildeo a ira

contra os clusinos foi deixada de lado e eles se afastaram gritando ameaccedilas

contra os romanos Eles estavam decididos a partir imediatamente para

Roma poreacutem venceram os anciotildees para que antes fossem enviados

emissaacuterios para reclamar das injuacuterias e requerer que os Faacutebios lhes fossem

entregues devido ao direito violado das naccedilotildees Os emissaacuterios dos gauleses

comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a

accedilatildeo dos Faacutebios e eles reconheceram como sendo justo o pedido dos

baacuterbaros Contudo a condescendecircncia por homens de tamanha nobreza fazia

oposiccedilatildeo para que natildeo fosse decidido o que agradava ao senado Assim para

que a culpa natildeo caiacutesse sobre o mesmo (caso uma guerra gaulesa causasse

destruiccedilatildeo) o senado passou para o povo a decisatildeo sobre os pedidos dos

gauleses Como a influecircncia e o recurso valessem mais do que o que fora

discutido sobre a sua puniccedilatildeo eles foram eleitos tribunos militares com

poder consular para o ano seguinte Irritados com esse fato indigno os

gauleses ameaccedilando abertamente uma guerra voltaram para os seus Foram

eleitos tribunos militares junto com os trecircs Faacutebios Quinto Sulpiacutecio Longo

Quinto Serviacutelio (pela quarta vez) e Puacuteblio Corneacutelio Maluginense (grifos

nossos)

No comeccedilo desse capiacutetulo Liacutevio jaacute deixou claro o desprezo com que considerava

os celtas dizendo que os emissaacuterios eram tatildeo violentos que mais pareciam gauleses do

que romanos (Gallis magis quam Romanis similes) Podemos tambeacutem ver que Liacutevio ao

fazer esse comentaacuterio logo no iniacutecio de certa forma jaacute adianta o (peacutessimo) rumo que a

situaccedilatildeo vai tomar A resposta dada pelos celtas para justificar o asseacutedio a Cluacutesio vai de

acordo com a justificativa da questatildeo do desejo pela terra aos gauleses necessitados de

terra os clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais terra

Essa era a explicaccedilatildeo mais comum para as suas migraccedilotildees Os gauleses tambeacutem

afirmam que ultrapassavam os outros mortais em valor (uirtus) Jaacute sabendo de antematildeo

que logo em seguida eles saqueariam Roma podemos estabelecer uma relaccedilatildeo com

Ceacutesar que dissera que os gauleses haacute muito tempo superavam os germanos em bravura

mas que na sua eacutepoca eles tinham perdido sua uirtus331

Temos um novo reforccedilo da

ideia da barbaacuterie gaulesa pois eles apelam para a violecircncia ao responder ferozmente

(ferociter dicerent) que tinham o direito atraveacutes das armas e tudo pertencia aos

homens mais fortes (se in armis ius ferre et omnia fortium uirorum esse) Nesse ponto

Liacutevio jaacute deixa entrever o futuro nefasto de Roma dizendo que a urbe ficou perto do seu

destino funesto (iam urgentibus Romanam urbem fatis) a partir do momento em que os

331

Cf De bello Gallico (VI 24) p 128 Liacutevio narrando fatos muito recuados no tempo escreveu que os

gauleses excediam em virtude ateacute para justificar a derrota romana sofrida em 390 aC Em Ceacutesar que

escreveu os acontecimentos que lhe eram contemporacircneos o novo modelo de uirtus primitiva se

encontrava nos germanos e natildeo mais nos gauleses (cf p 129)

168

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas (legati contra ius

gentium arma capiunt) Aqui tambeacutem temos um exemplo da traacutegica inevitabilidade no

rumo dos acontecimentos pois fica claro que nesse caso os celtas tinham o direito e a

legalidade do lado deles Curioso notar que embora os gauleses sejam retratados como

baacuterbaros eles decidem primeiramente enviar uma embaixada a Roma (como era

costume das naccedilotildees ditas civilizadas) refreando o impulso de imediatamente rumar para

atacar os romanos mesmo com o grave desrespeito cometido pelos emissaacuterios O

proacuteprio senado de Roma natildeo gostou da accedilatildeo dos Faacutebios e considerou justa a queixa dos

gauleses Todavia eles se abstiveram de assumir a responsabilidade passando essa

decisatildeo para o povo Os Faacutebios aleacutem de natildeo serem penalizados ainda por cima

receberam a honra de serem eleitos tribunos militares e isso irritou ainda mais os

gauleses

Liacutevio entatildeo continua a narraccedilatildeo dos acontecimentos (V 37)

Cum tanta moles mali instaret ndash adeo occaecat animos Fortuna ubi uim

suam ingruentem refringi non uolt ndash ciuitas quae aduersus Fidenatem ac

Veientem hostem aliosque finitimos populos ultima experiens auxilia

dictatorem multis tempestatibus dixisset ea tunc inuisitato atque inaudito

hoste ab Oceano terrarumque ultimis oris bellum ciente nihil extraordinarii

imperii aut auxilii quaesiuit Tribuni quorum temeritate bellum contractum

erat summae rerum praeerant dilectumque nihilo accuratiorem quam ad

media bella haberi solitus erat extenuantes etiam famam belli habebant

Interim Galli postquam accepere ultro honorem habitum uiolatoribus iuris

humani elusamque legationem suam esse flagrantes ira cuius impotens est

gens confestim signis conuolsis citato agmine iter ingrediuntur Ad quorum

praetereuntium raptim tumultum cum exterritae urbes ad arma concurrerent

fugaque agrestium fieret Romam se irelsquo magno clamore significabant

quacumque ibant equis uirisque longe ac late fuso agmine immensum

obtinentes loci Sed antecedente fama nuntiisque Clusinorum deinceps inde

aliorum populorum plurimum terroris Romam celeritas hostium tulit quippe

quibus uelut tumultuario exercitu raptim ducto aegre ad undecimum lapidem

occursum est qua flumen Allia Crustuminis montibus praealto defluens

alueo haud multum infra uiam Tiberino amni miscetur Iam omnia contra

circaque hostium plena erant et nata in uanos tumultus gens truci cantu

clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono

Como tamanho mal estivesse iminente ndash de tal forma a Fortuna cega os

acircnimos quando ela natildeo quer que a sua vontade de agir seja reprimida ndash a

cidade que outrora contra os inimigos de Fidena e de Veios e contra outros

povos vizinhos experimentando muitas calamidades recorreu a um ditador

para supremos auxiacutelios dessa vez a cidade diante de um inimigo novo e

estranho que buscava a guerra vindo do oceano e dos uacuteltimos recantos das

terras natildeo recorreu a nenhum poder extraordinaacuterio ou auxiacutelio Os tribunos

cuja temeridade provocou a guerra estavam agrave frente do supremo comando e

considerando nada mais cuidadosamente do que jaacute fosse o usual para as

guerras comuns menosprezaram ainda o perigo da guerra Nesse meio

tempo os gauleses quando souberam que fora concedida tal honra aos

violadores do direito das naccedilotildees e aleacutem disso que tinha sido frustrada a sua

embaixada inflamados pela ira (que esse povo eacute incapaz de controlar)

169

imediatamente tomaram os estandartes e marcharam pelo caminho com

fileira apressada Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as

comunidades aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a

fuga com grande clamor eles nunci v m ―v mos Rom Por onde quer

que passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e

tropas se espalhando em comprimento e largura Mas mesmo antes do rumor

e dos mensageiros dos clusinos e tambeacutem dos mensageiros dos outros povos

foi a rapidez dos inimigos que trouxera o terror a Roma certamente porque o

seu exeacutercito fora recrutado agraves pressas e mesmo rapidamente conduzido com

dificuldade ele avanccedilou onze milhas ateacute onde o rio Aacutelia descendo dos

montes crustuacutemios por um canal muito profundo se unia agrave corrente tiberina

natildeo muito abaixo do curso Jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam

repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto cruel e

vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (grifos nossos)

Mais uma vez a sorte desempenha papel importante no desenrolar da accedilatildeo eacute ela

que justifica as mudanccedilas repentinas nas situaccedilotildees narradas (favorecendo um ou outro

lado) e eacute um fator imponderaacutevel ou seja que estaacute aleacutem das habilidades do homem de

prever e de racionalizar algum acontecimento332

Nesse trecho entatildeo eacute a fortuna cega

que explica o fato dos romanos mesmo diante de grande perigo natildeo recorrerem a um

ditador ou outras medidas emergenciais333

Liacutevio tambeacutem atribuiu a culpa de tal

calamidade aos proacuteprios Faacutebios cuja temeridade provocou a guerra jaacute que eles natildeo soacute

empunharam armas quando eram emissaacuterios (indo contra o que era de direito) mas

tambeacutem fizeram uma peacutessima avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo pois consideraram essa como

sendo uma guerra banal e menosprezaram ainda o perigo da guerra Podemos

relacionar tambeacutem esse trecho ao que apareceu no capiacutetulo 36 no qual os Faacutebios por

causa da sua violecircncia se pareciam mais com gauleses do que com romanos334

Aqui

podemos citar que a falta de discernimento dos Faacutebios frente a tamanho perigo lembra o

estereoacutetipo do gaulecircs que natildeo raciocina direito335

Liacutevio usou o proacuteprio termo temeritas

(relacionado aos gauleses) para descrever a postura dos tribunos Quanto agrave

caracterizaccedilatildeo do gaulecircs um toacutepos que Liacutevio citou no trecho foi o da ira que o gaulecircs eacute

incapaz de controlar e que apareceu tambeacutem em Ceacutesar336

A carga dramaacutetica se

acentua na descriccedilatildeo da marcha dos celtas em que Liacutevio enfatizou o alvoroccedilo

provocado por eles (ao tumulto deles que passavam) bem como o terror que causavam

pelo seu caminho Temos repeticcedilatildeo do adjetivo exterritus usado no trecho acima para

descrever as comunidades aterrorizadas (exterritae urbes) e que tambeacutem apareceu para

332

Falamos do papel da fortuna na historiografia latina tambeacutem na p 121 e 122 333

Esse trecho ecoa o destino funesto a que Roma se dirigia citado em V 36 (cf p 166 e 167) 334

Cf p 166 335

Era bastante comum o toacutepos do gaulecircs leviano e de voluacutevel decisatildeo cf BGall IV 5 p 132 336

Ceacutesar escreveu que a ira e temeridade eram especialmente inatas nessa espeacutecie de homens (BGall

VII 42) cf p 133 Poliacutebio (II 353) tambeacutem falou sobre a ira dos gauleses

170

descrever os clusinos aterrorizados (Clusini exterriti)337

O capiacutetulo termina em um

suspense dramaacutetico com vaacuterios toacutepoi relacionados aos gauleses com a repeticcedilatildeo dos

tumultos que causavam seu canto cruel (truci cantu) e seus vaacuterios gritos que

preenchiam tudo com horrendo clamor (clamoribusque uariis horrendo cuncta

compleuerant sono)338

Continuamos entatildeo a narrativa (V 38)

Ibi tribuni militum non loco castris ante capto non praemunito uallo quo

receptus esset non deorum saltem si non hominum memores nec auspicato

nec litato instruunt aciem diductam in cornua ne circumueniri multitudine

hostium possent nec tamen aequari frontes poterant cum extenuando

infirmam et uix cohaerentem mediam aciem haberent Paulum erat ab

dextera editi loci quem subsidiariis repleri placuit eaque res ut initium

pauoris ac fugae sic una salus fugientibus fuit Nam Brennus regulus

Gallorum in paucitate hostium artem maxime timens ratus ad id captum

superiorem locum ut ubi Galli cum acie legionum recta fronte

concucurrissent subsidia in auersos transuersosque impetum darent ad

subsidiarios signa conuertit si eos loco depulisset haud dubius facilem in

aequo campi tantum superanti multitudini uictoriam fore Adeo non fortuna

modo sed ratio etiam cum barbaris stabat In altera acie nihil simile

Romanis non apud duces non apud milites erat Pauor fugaque occupauerat

animos et tanta omnium obliuio ut multo maior pars Veios in hostium urbem

cum Tiberis arceret quam recto itinere Romam ad coniuges ac liberos

fugerent Parumper subsidiarios tutatus est locus in reliqua acie simul est

clamor proximis ab latere ultimis ab tergo auditus ignotum hostem prius

paene quam uiderent non modo non temptato certamine sed ne clamore

quidem reddito integri intactique fugerunt nec ulla caedes pugnantium fuit

terga caesa suomet ipsorum certamine in turba impedientium fugam Circa

ripam Tiberis quo armis abiectis totum sinistrum cornu defugit magna

strages facta est multosque imperitos nandi aut inualidos graues loricis

aliisque tegminibus hausere gurgites maxima tamen pars incolumis Veios

perfugit unde non modo praesidii quicquam sed ne nuntius quidem cladis

Romam est missus Ab dextro cornu quod procul a flumine et magis sub

monte steterat Romam omnes petiere et ne clausis quidem portis urbis in

arcem confugerunt

Entatildeo os tribunos militares sem escolher um lugar para o acampamento ou

fortificar uma trincheira que serviria de refuacutegio e nem ao menos se

lembrando dos deuses ou dos homens ao natildeo tomar os auspiacutecios ou oferecer

os sacrifiacutecios colocaram em linha de batalha o exeacutercito alinhado em alas de

modo que a multidatildeo dos inimigos natildeo o cercassem Contudo natildeo puderam

igualar as alas jaacute que com essa disposiccedilatildeo a linha do meio ficou fraca e com

custo se mantinha unida Havia uma pequena elevaccedilatildeo pelo lado direito que

os tribunos decidiram ocupar com as tropas de reserva essa manobra que

marcou o iniacutecio do pavor e da fuga tambeacutem serviu como o uacutenico meio de

salvaccedilatildeo aos desertores que debandavam De fato Breno comandante dos

gauleses especialmente receando um engodo devido ao pequeno nuacutemero de

inimigos ndash e avaliando que essa elevaccedilatildeo tinha sido ocupada de modo que no

momento em que os gauleses atacassem de frente a linha reta das legiotildees

essas tropas reservas fizessem um ataque pelos lados e por traacutes ndash virou as

suas tropas contra essas de reserva Se os expulsasse daquele lugar sem

duacutevida a vitoacuteria em um terreno plano seria faacutecil jaacute que os gauleses os

337

Cf V 35 na p 165 338

Esse canto cruel dos gauleses tambeacutem foi mencionado por Poliacutebio (II 295) e Ceacutesar (V 37)

171

superavam pela maior quantidade de homens Ateacute esse ponto natildeo apenas a

sorte mas tambeacutem a inteligecircncia estava com os baacuterbaros No exeacutercito

contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem junto aos

comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os acircnimos

de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior parte

deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os retivesse)

e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas e filhos

Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra linha de

batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos que

estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que sem

nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram um

combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e

ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram

impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo Em volta da margem

do Tibre fugiu toda a ala esquerda tendo atirado no rio as armas Fez-se uma

grande carnificina e muitos incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e

outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram engolidos pelos turbilhotildees das

aacuteguas Todavia a maior parte deles fugiu incoacutelume para Veios de onde

nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma

Da ala direita que estivera mais longe do rio e mais perto do peacute do monte

todos fugiram para Roma e nem ao menos fechando as portas da cidade se

refugiaram na cidadela (grifos nossos)

Mais uma vez Liacutevio ressaltou a desobediecircncia dos Faacutebios ao modo tradicional

dos romanos fazerem guerra dizendo que eles foram para a batalha sem escolher um

lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira e natildeo tomando os auspiacutecios ou

oferecendo os sacrifiacutecios (non loco castris ante capto non praemunito uallo nec

auspicato nec litato)339

Breno se mostrou um grande estrategista avaliando

corretamente os planos dos romanos e Liacutevio reconhecendo o meacuterito da vitoacuteria deles

escreveu que os baacuterbaros aleacutem de sorte tiveram com eles a inteligecircncia (adeo non

fortuna modo sed ratio etiam cum barbaris stabat) Como Rankin (1996 p 105)

pontua a derrota terriacutevel dos romanos foi tanto pela arrogacircncia e descuido dos Faacutebios

quanto pela habilidade dos gauleses que tinham melhor comandante Em seguida

temos a informaccedilatildeo de que no exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse

aos romanos (in altera acie nihil simile Romanis) De novo Liacutevio ressaltou que os

romanos natildeo se comportavam como romanos Esse conceito que antes fora usado para

descrever os Faacutebios (que pareciam mais gauleses que romanos) foi alargado para

descrever todos os que estavam em Aacutelia fossem eles liacutederes ou soldados (non apud

duces non apud milites) Liacutevio sempre preocupado em ressaltar a superioridade moral

e a nobreza de espiacuterito do povo romano em sua obra dessa forma frisou ainda mais o

339

Os Faacutebios jaacute tinham violado o direito das naccedilotildees em V 36 quando na condiccedilatildeo de emissaacuterios

pegaram em armas A nova violaccedilatildeo cometida nesse capiacutetulo apenas reforccedila a causa para a derrota

romana Como destaca Ogilvie (1965 p 716) aquela embaixada dos Faacutebios foi mais um pretexto

psicoloacutegico e moral para justificar o desastre de Aacutelia A ecircnfase de dizer que os Faacutebios se comportavam

mais como gauleses do que como romanos tambeacutem justifica esse acontecimento catastroacutefico

172

comportamento desonroso da deserccedilatildeo dos combatentes Temos entatildeo vaacuterias passagens

que enfatizam esse fato o pavor e a fuga tomaram os acircnimos (pauor fugaque

occupauerat animos) de tal forma que os romanos fugiram para a inimiga cidade de

Veios ao inveacutes de pegarem o reto caminho para Roma Novamente temos a referecircncia

ao pacircnico causado pelo grito dos gauleses foi ouvido um clamor (est clamor auditus)

Os romanos se acovardaram a tal ponto que sem nem ao menos ver o inimigo

desconhecido de forma alguma tentaram um combate ou sequer responderam o grito

O desespero de correr foi tamanho que ningueacutem morreu lutando mas sim na confusatildeo

da multidatildeo que ansiava em partir sendo feridos pelas costas ndash o que era extremamente

vergonhoso para o povo romano A outra parte do exeacutercito que ficara junto ao Tibre foi

massacrada (fez-se uma grande carnificina) e muitos tambeacutem morreram afogados

incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram

engolidos pelos turbilhotildees das aacuteguas Por conseguinte como muitas dessas baixas

foram causadas pela briga da multidatildeo que fugia e tambeacutem pela malsucedida passagem

do Tibre percebemos que a terriacutevel derrota romana foi causada mais por essa

debandada desordenada do que pelo proacuteprio confronto direto com os celtas Liacutevio

escreveu que nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma

o que foi mais uma funesta consequecircncia do pacircnico generalizado tambeacutem salientado

pelo fato de que uma parte dos fugitivos ao chegarem em Roma sequer fechou as

portas da cidade (ne clausis quidem portis urbis) Toda essa descriccedilatildeo foi permeada de

imagens fortes e grande carga pateacutetica um traccedilo marcante de Ab urbe condita Para

Liacutevio a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo

Os gauleses vencedores se dirigem a Roma como temos em V 39

Gallos quoque uelut obstupefactos miraculum uictoriae tam repentinae

tenuit et ipsi pauore defixi primum steterunt uelut ignari quid accidisset

deinde insidias uereri postremo caesorum spolia legere armorumque

cumulos ut mos eis est coaceruare tum demum postquam nihil usquam

hostile cernebatur uiam ingressi haud multo ante solis occasum ad urbem

Romam perueniunt Ubi cum praegressi equites non portas clausas non

stationem pro portis excubare non armatos esse in muris rettulissent aliud

priori simile miraculum eos sustinuit noctemque ueriti et ignotae situm

urbis inter Romam atque Anienem consedere exploratoribus missis circa

moenia aliasque portas quaenam hostibus in perdita re consilia essent

Romani cum pars maior ex acie Veios petisset quam Romam nemo

superesse quemquam praeter eos qui Romam refugerant crederet complorati

omnes pariter uiui mortuique totam prope urbem lamentis impleuerunt

Priuatos deinde luctus stupefecit publicus pauor postquam hostes adesse

nuntiatum est mox ululatus cantusque dissonos uagantibus circa moenia

turmatim barbaris audiebant Omne inde tempus suspensos ita tenuit animos

usque ad lucem alteram ut identidem iam in urbem futurus uideretur impetus

173

primo aduentu quia accesserant ad urbem mdashmansuros enim ad Alliam

fuisse nisi hoc consilii foretlsquomdash deinde sub occasum solis quia haud multum

diei supererat mdash ante noctem satius inuasuroslsquomdash tum in noctem dilatum

consilium esse quo plus pauoris inferrentlsquo postremo lux appropinquans

exanimare timorique perpetuo ipsum malum continens fuit cum signa

infesta portis sunt inlata Nequaquam tamen ea nocte neque insequenti die

similis illi quae ad Alliam tam pauide fugerat ciuitas fuit Nam cum defendi

urbem posse tam parua relicta manu spes nulla esset placuit cum coniugibus

ac liberis iuuentutem militarem senatusque robur in arcem Capitoliumque

concedere armisque et frumento conlato ex loco inde munito deos

hominesque et Romanum nomen defendere flaminem sacerdotesque Vestales

sacra publica a caede ab incendiis procul auferre nec ante deseri cultum

eorum quam non superessent qui colerent si arx Capitoliumque sedes

deorum si senatus caput publici consilii si militaris iuuentus superfuerit

imminenti ruinae urbis facilem iacturam esse seniorum relictae in urbe

utique periturae turbaelsquo Et quo id aequiore animo de plebe multitudo ferret

senes triumphales consularesque simul se cum illislsquo palam dicere obituros

nec his corporibus quibus non arma ferre non tueri patriam possent

oneraturos inopiam armatorumlsquo

O prodiacutegio de uma vitoacuteria tatildeo repentina deixou os gauleses de tal maneira

estupefatos que em um primeiro momento eles mesmos ficaram imoacuteveis de

espanto como se natildeo entendessem o que tinha acontecido depois temeram

uma armadilha Por fim recolheram os despojos dos mortos e os

amontoaram em pilhas de armas de acordo com o costume deles340

Depois

que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e

chegaram a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol Quando os cavaleiros

batedores retornaram e informaram que natildeo viram as portas fechadas nem

sentinela vigiando as entradas e nenhum soldado a postos nas muralhas

outro prodiacutegio (semelhante ao anterior) os conteve Receando a noite e o

abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e o Acircnio341

depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para

saber quais planos tinham os inimigos em uma situaccedilatildeo tatildeo desesperadora

Quanto aos romanos a maior parte da tropa tinha fugido para Veios ao inveacutes

de Roma ningueacutem acreditava que havia mais sobreviventes do que aqueles

que tinham se refugiado em Roma todos ao mesmo tempo lastimando os

vivos e os mortos encheram toda a cidade com seus lamentos Em seguida o

pavor generalizado se sobrepocircs aos gemidos pessoais assim que foi

anunciado que os inimigos estavam por perto logo eles ouviram os gritos e

uivos dissonantes dos baacuterbaros que em bandos perambulavam em volta das

muralhas A partir de entatildeo e por todo o tempo ateacute o dia seguinte os acircnimos

se mantiveram inquietos a tal ponto que continuamente parecia que ia

acontecer o ataque agrave cidade primeiro na chegada pois eles jaacute tinham se

aproximado da cidade ndash ―de f to teri m perm necido em Aacuteli se isso natildeo

fosse de seu consenso Depois acharam que o ataque ia ser realizado ao pocircr

do sol pois jaacute natildeo h vi muit cl rid de e ―inv diri m melhor ntes do c ir

d noite Em seguid consider r m que ―o t que tinh sido di do p r

noite p r c us r m is p vor Por fim proacuteximo o m nhecer ao temor

geral se juntou o proacuteprio perigo quando as tropas hostis adentraram pelas

portas Contudo de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia

seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor

tinham fugido para Aacutelia De fato como natildeo havia esperanccedila de que a cidade

pudesse ser defendida pelas poucas tropas que restavam decidiu-se entatildeo

que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores

vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Com armas e provisotildees

estocadas desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o

nome romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos

340

Ceacutesar (BGall VI 17) jaacute descrevera esse costume de se empilhar os despojos 341

Afluente do Tibre

174

sagrados do povo protegidos do massacre e dos incecircndios e natildeo

abandonariam o seu culto a natildeo ser que natildeo existisse mais ningueacutem que o

vener sse ―se a cidadela do Capitoacutelio sede dos deuses o senado fonte da

deliberaccedilatildeo puacuteblica e os jovens soldados resistissem agrave iminente ruiacutena da

cidade seria aceitaacutevel o sacrifiacutecio dos anciatildeos jaacute que essa multidatildeo que fora

deix d n cid de h veri de morrer de qu lquer form Assim p r que

multidatildeo da plebe suportasse isso de acircnimo mais calmo os anciatildeos que jaacute

tinham obtido triunfos e consulados declararam publicamente que

―juntamente com eles haveriam de morrer natildeo agravando a falta de

soldados com esses corpos que natildeo podem carregar armas e nem defender a

paacutetria (grifos nossos)

Os gauleses demoraram a perceber que venceram os romanos e a partir para a

urbe O seu lento e cuidadoso avanccedilo (em um primeiro momento eles mesmos ficaram

imoacuteveis depois temeram uma armadilha por fim recolheram os despojos dos mortos

depois que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e chegaram

a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol) contrasta com o o pacircnico desordenado dos

romanos que enchiam toda a cidade com seus lamentos Aleacutem disso na narrativa os

celtas levaram apenas um dia para alcanccedilar Roma de acordo com Ogilvie (1965 p

720) isso eacute uma ecircnfase dramaacutetica de Liacutevio jaacute que outras fontes como Poliacutebio (II 18) e

Diodoro (XIV 115) disseram que eles demoraram trecircs dias nessa jornada Mais uma

vez fica claro que os gauleses planejaram com cuidado o que haveriam de fazer jaacute que

receando a noite e o abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e

o Acircnio depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para

saber quais planos tinham os inimigos

Temos nova descriccedilatildeo de um pacircnico descontrolado assim que os romanos

souberam que os inimigos estavam por perto e temos mais uma referecircncia aos gritos e

uivos dissonantes dos gauleses (ululatus cantusque dissonos) A partir dessa chegada

dos gauleses Liacutevio desenvolveu cada episoacutedio como sendo uma etapa na restauraccedilatildeo da

moral romana com exemplos de coragem e respeito aos deuses (OGILVIE 1965 p

720) Assim ele escreveu que de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia

seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor tinham

fugido para Aacutelia O povo sabia que natildeo havia esperanccedila de que a cidade pudesse ser

defendida pelas poucas tropas que restavam e aceitou esse fato com determinaccedilatildeo jaacute

que se decidiu que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores

vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Ficou clara a importacircncia dessa

decisatildeo pois desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o nome

romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos () e natildeo

abandonariam o seu culto Vemos que haacute uma grande preocupaccedilatildeo em proteger os

175

deuses outrora desrespeitados pelos Faacutebios e tambeacutem a defesa do nome romano342

Assim os cidadatildeos passaram a se comportar de forma digna a tal ponto que poderiam

retomar a designaccedilatildeo de romanos que eles natildeo honraram no fracasso em Aacutelia Tudo que

era mais valioso para a urbe se encontrava no Capitoacutelio que era a sede dos deuses o

senado fonte da deliberaccedilatildeo puacuteblica os sacerdotes e a juventude militar Por fim os

anciotildees datildeo o exemplo supremo de honradez aceitando morrer com a plebe de modo a

natildeo atrapalhar a defesa da cidade

Seguindo a narrativa temos (V 41)

Romae interim satis iam omnibus ut in tali re ad tuendam arcem compositis

turba seniorum domos regressi aduentum hostium obstinato ad mortem

animo exspectabant Qui eorum curules gesserant magistratus ut in fortunae

pristinae honorumque aut uirtutis insignibus morerentur quae augustissima

uestis est tensas ducentibus triumphantibusue ea uestiti medio aedium

eburneis sellis sedere Sunt qui M Folio pontifice maximo praefante carmen

deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis tradant Galli et quia

interposita nocte a contentione pugnae remiserant animos et quod nec in acie

ancipiti usquam certauerant proelio nec tum impetu aut ui capiebant urbem

sine ira sine ardore animorum ingressi postero die urbem patente Collina

porta in forum perueniunt circumferentes oculos ad templa deum arcemque

solam belli speciem tenentem Inde modico relicto praesidio ne quis in

dissipatos ex arce aut Capitolio impetus fieret dilapsi ad praedam uacuis

occursu hominum uiis pars in proxima quaeque tectorum agmine ruunt pars

ultima uelut ea demum intacta et referta praeda petunt inde rursus ipsa

solitudine absterriti ne qua fraus hostilis uagos exciperet in forum ac

propinqua foro loca conglobati redibant ubi eos plebis aedificiis obseratis

patentibus atriis principum maior prope cunctatio tenebat aperta quam

clausa inuadendi adeo haud secus quam uenerabundi intuebantur in aedium

uestibulis sedentes uiros praeter ornatum habitumque humano augustiorem

maiestate etiam quam uoltus grauitasque oris prae se ferebat simillimos dis

Ad eos uelut simulacra uersi cum starent M Papirius unus ex iis dicitur

Gallo barbam suam ut tum omnibus promissa erat permulcenti scipione

eburneo in caput incusso iram mouisse atque ab eo initium caedis ortum

ceteros in sedibus suis trucidatos post principium caedem nulli deinde

mortalium parci diripi tecta exhaustis inici ignes

Enquanto isso em Roma jaacute estava tudo preparado para tamanha emergecircncia

e defesa da cidadela entatildeo a multidatildeo dos anciatildeos regressou agraves casas para

esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a morte Os que

exerceram magistraturas curuis343

a fim de morrer com as distinccedilotildees de sua

antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela virtude trajaram a augustiacutessima

veste que era concedida aos que foram comandantes ou que obtiveram um

triunfo e se sentaram em cadeiras de marfim no meio das casas Conta-se

que estando agrave frente Marco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recitaram um

canto e ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos

Os gauleses devido agrave passagem da noite abrandaram seus acircnimos da tensatildeo

da luta e como de modo algum tivessem combatido em uma luta incerta

342

Como discutido algumas vezes ao longo deste trabalho o nome romano representava em Liacutevio

elevaccedilatildeo moral e personificaccedilatildeo da uirtus Para discussatildeo profunda sobre o que era ser romano cf o

subcapiacutetulo de O kley ―like Rom n (In MINEO 2015 p 235-237) 343

Durante essa eacutepoca as magistraturas curuis eram exercidas pelo ditador mestre da cavalaria cocircnsules

e censores que eram dotados de imperium

176

ocupavam a cidade sem grande iacutempeto ou forccedila Sem ira e sem ardor dos

acircnimos no dia seguinte eles ingressaram na cidade pela porta Colina que

estava aberta e chegaram ao foacuterum movendo os olhos ao redor para os

templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que tinha um aspecto de

combate Daquele lugar entatildeo sendo deixada uma pequena guarda para que

nenhum ataque se fizesse contra os que estavam espalhados da cidadela ou do

Capitoacutelio eles se dispersaram pelas ruas vazias em busca da pilhagem sem

encontrar ningueacutem Uma parte deles correu em bando ateacute algumas casas

proacuteximas outra parte se dirigiu para as distantes como se somente essas

intocadas estivessem cheias de despojos Entatildeo de novo amedrontados por

esse mesmo abandono e para que aqueles que perambulavam natildeo fossem

surpreendidos por uma armadilha inimiga eles voltaram reunidos para o

foacuterum e os lugares proacuteximos Nesse lugar estando as casas da plebe fechadas

e as da nobreza abertas eles hesitavam mais em invadir as casas abertas do

que as trancadas Bastante respeitosos ele observaram atentamente os

homens sentados nos vestiacutebulos das casas com ornamento e aspecto mais

divino do que humano e tambeacutem muito semelhantes aos deuses pela

majestade do seu semblante e a dignidade que se mostrava de sua aparecircncia

Diante deles como se fossem estaacutetuas eles ficaram parados conta-se que um

deles Marco Papiacuterio com um bastatildeo de marfim bateu na cabeccedila de um

gaulecircs que lhe acariciava a sua longa barba (como outrora era costume de

todos) tendo provocado a sua ira Com ele o massacre comeccedilou e os outros

em seus assentos foram trucidados depois que se iniciou a carnificina

nenhum dos mortais foi poupado e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas

lhes atearam fogo (grifos nossos)

Ogilvie (1965 p 725) aprofunda a discussatildeo sobre a questatildeo ritualiacutestica dos

velhos magistrados que se ofereciam em sacrifiacutecio pela cidade a multidatildeo dos anciatildeos

regressou agraves casas para esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a

morte Segundo o pesquisador esse era provavelmente um antigo ato religioso de

devotio (devoccedilatildeo) No latim temos deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis

tradant (ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos) Liacutevio

minimizou esse elemento sacro e no lugar desenvolveu um quadro secular no qual os

anciatildeos estoicamente esperam pelo seu fim com isso evidenciou-se a uirtus romana

(OGILVIE 1965 p 725) No trecho acima foi escrito que os idosos magistrados

haveriam de morrer com as distinccedilotildees de sua antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela

virtude (uirtus) Eacute interessante notar que os gauleses devido agrave passagem da noite

abrandaram seus acircnimos da tensatildeo da luta e entraram na cidade sem ira e sem ardor

dos acircnimos Ora esse tipo de atitude era bastante incomum para o que se acontecia na

Antiguidade quando um povo hostil invadia uma cidade De forma tranquila (sine ira

sine ardore animorum) os gauleses ingressaram na cidade pela porta Colina que

estava aberta e chegaram ao foacuterum Liacutevio sublinhou a curiosidade dos gauleses que

moviam os olhos ao redor para os templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que

tinha um aspecto de combate Dando sequecircncia agrave postura interessada dos celtas temos o

fato de que eles bastante respeitosos observaram atentamente os homens sentados nos

177

vestiacutebulos que tinham aspecto mais divino do que humano A peripeacutecia acontece

quando um gaulecircs que acariciava a barba de Marco Papiacuterio recebeu um golpe de

bastatildeo na cabeccedila A partir desse ato os gauleses se comportaram como os selvagens que

eram (pelo menos na visatildeo de Liacutevio) irados iniciaram a carnificina sem poupar

nenhum dos mortais e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas lhes atearam fogo

Depois temos (V 42)

Ceterum seu non omnibus delendi urbem libido erat seu ita placuerat

principibus Gallorum et ostentari quaedam incendia terroris causa si

compelli ad deditionem caritate sedum suarum obsessi possent et non omnia

concremari tecta ut quodcumque superesset urbis id pignus ad flectendos

hostium animos haberent nequaquam perinde atque in capta urbe primo die

aut passim aut late uagatus est ignis Romani ex arce plenam hostium urbem

cernentes uagosque per uias omnes cursus cum alia atque alia parte noua

aliqua clades oreretur non mentibus solum concipere sed ne auribus quidem

atque oculis satis constare poterant Quocumque clamor hostium mulierum

puerorumque ploratus sonitus flammae et fragor ruentium tectorum

auertisset pauentes ad omnia animos oraque et oculos flectebant uelut ad

spectaculum a Fortuna positi occidentis patriae nec ullius rerum suarum

relicti praeterquam corporum uindices tanto ante alios miserandi magis qui

unquam obsessi sunt quod interclusi a patria obsidebantur omnia sua

cernentes in hostium potestate Nec tranquillior nox diem tam foede actum

excepit lux deinde noctem inquieta insecuta est nec ullum erat tempus quod

a nouae semper cladis alicuius spectaculo cessaret Nihil tamen tot onerati

atque obruti malis flexerunt animos quin etsi omnia flammis ac ruinis

aequata uidissent quamuis inopem paruumque quem tenebant collem liberati

relictum uirtute defenderent et iam cum eadem cottidie acciderent uelut

adsueti malis abalienauerant ab sensu rerum suarum animos arma tantum

ferrumque in dextris uelut solas reliquias spei suae intuentes

Aliaacutes ou nem todos tinham o desejo de destruir a cidade ou agradava aos

liacutederes dos gauleses o seguinte por um lado ao se exibir alguns incecircndios

como a causa do terror eles poderiam forccedilar os sitiados agrave rendiccedilatildeo devido

ao amor pelas suas habitaccedilotildees por outro lado ao natildeo queimarem todas as

casas eles teriam como garantia que o que quer que restasse da cidade

serviria para dobrar os acircnimos dos inimigos De forma alguma no primeiro

dia o fogo se espalhou em desordem e amplamente como aconteceria em

uma cidade tomada Os romanos da cidadela observavam a cidade repleta de

inimigos que corriam por todas as ruas como em uma e outra parte surgia

algum novo desastre natildeo soacute natildeo entenderam com as mentes mas tambeacutem

sequer puderam confiar em seus ouvidos e olhos Por onde quer que o clamor

dos inimigos o choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o

estrondo das casas que ruiacuteam desviavam-lhes a atenccedilatildeo eles assustados

para tudo viravam os acircnimos rostos e olhos como se a fortuna os tivesse

posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Natildeo lhes restava

nada de suas posses para defenderem exceto seus proacuteprios corpos eles eram

muito mais miseraacuteveis do que os outros que outrora foram atacados pois

sendo privados da paacutetria viam todas as suas posses em poder dos inimigos

Natildeo mais tranquila foi a noite que sucedeu um dia tatildeo horriacutevel depois dela

seguiu-se um dia turbulento e natildeo houve um momento em que parou de

surgir algum espetaacuteculo de um novo massacre Por outro lado oprimidos e

subjugados por tantos males por nada eles mudaram os acircnimos ainda que

vissem todas as coisas serem atingidas pelas chamas e ruiacutenas Sem duacutevida

eles haveriam de defender a colina fraca e pequena que ocupavam que pela

virtude lhes restava liberada Como esses mesmos acontecimentos se

178

repetiam todos os dias eles ficaram acostumados com o mal e afastando da

mente os pensamentos de suas posses consideravam as armas e o ferro nas

destras como os uacutenicos meios para sua esperanccedila (grifos nossos)

Os gauleses embora irados continuaram tendo um comportamento calculado jaacute

que natildeo queimaram tudo ou porque natildeo queriam destruir a cidade (uma possibilidade

que soa bastante improvaacutevel) ou porque queriam deixar alguma coisa de peacute de modo a

forccedilar uma rendiccedilatildeo romana (o que era mais factiacutevel) O barulho ferramenta comum

para causar terror tambeacutem foi amplificado certamente aleacutem do clamor dos inimigos o

choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o estrondo das casas que ruiacuteam

serviram para apavorar os que se encontravam na cidadela do Capitoacutelio Temos nova

menccedilatildeo ao papel da sorte jaacute que Liacutevio disse que os romanos viam tudo como se a

fortuna os tivesse posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Assim

fecha-se o ciclo de destruiccedilatildeo que comeccedilou com a violaccedilatildeo dos Faacutebios e culminou na

destruiccedilatildeo de Roma e que jaacute fora profetizado no capiacutetulo 36 que dizia que a urbe

romana ficou proacutexima ao seu destino funesto344

Pode-se perceber ainda uma mudanccedila

de postura dos romanos a partir do capiacutetulo 39345

no qual eles de forma alguma

haveriam de se comportar como os soldados em Aacutelia mas sim suportariam tudo o que

estava para acontecer com coragem e bravura Antes no capiacutetulo 38 os romanos

violaram natildeo soacute os costumes mas tambeacutem os ritos pois os tribunos militares foram

para a guerra sem escolher um lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira

e nem tomaram os auspiacutecios ou ofereceram os sacrifiacutecios346

No capiacutetulo 39 fica clara a

alteraccedilatildeo de conduta os romanos no Capitoacutelio defenderiam os deuses os homens e o

seu proacuteprio nome347

Igualmente os sacerdotes e vestais protegeriam os cultos e natildeo os

abandonariam jamais348

Para enfatizar essa atitude resoluta no capiacutetulo 41 haacute o

sacrifiacutecio dos anciatildeos que ofereceram suas proacuteprias vidas pelos cidadatildeos e pela

344

Cf p 166 345

Cf p 172 a 174 346

Cf p 170 347

M rques em seu rtigo ―O C pitoacutelio como represent ccedilatildeo de Rom em Tito Liacutevio e Taacutecito profund

a discussatildeo sobre o papel do Capitoacutelio como representaccedilatildeo primordial do poder de Roma e a relaccedilatildeo dele

com a construccedilatildeo da imagem de Roma como sendo caput mundi De acordo com Marques (2005 p 96)

essa colina representava a ideia do destino de Roma como cidade guerreira expansionista e

conquistadora Por esse motivo em Liacutevio essa foi a uacutenica parte da cidade que natildeo foi invadida pelos

gauleses 348

Liacutevio usou o termo fortuna no sentido da boa sorte concedida por uma divindade ou providecircncia

protetora a Estados ou indiviacuteduos geralmente em retribuiccedilatildeo agrave pietas (OGILVIE 1965 p 708)

179

paacutetria349

Todos esses fatos entatildeo gradativamente serviram para que os romanos

recuperassem a sua uirtus e tambeacutem a pietas350

Para encerrar esse episoacutedio do saque de Roma temos (V 48)

Sed ante omnia obsidionis bellique mala fames utrimque exercitum urgebat

Gallos pestilentia etiam cum loco iacente inter tumulos castra habentes tum

ab incendiis torrido et uaporis pleno cineremque non puluerem modo ferente

cum quid uenti motum esset Quorum intolerantissima gens umorique ac

frigori adsueta cum aestu et angore uexati uolgatis uelut in pecua morbis

morerentur iam pigritia singulos sepeliendi promisce aceruatos cumulos

hominum urebant bustorumque inde Gallicorum nomine insignem locum

fecere Indutiae deinde cum Romanis factae et conloquia permissu

imperatorum habita In quibus cum identidem Galli famem obicerent eaque

necessitate ad deditionem uocarent dicitur auertendae eius opinionis causa

multis locis panis de Capitolio iactatus esse in hostium stationes Sed iam

neque dissimulari neque ferri ultra fames poterat Itaque dum dictator

dilectum per se Ardeae habet magistrum equitum L Valerium a Veiis

adducere exercitum iubet parat instruitque quibus haud impar adoriatur

hostes interim Capitolinus exercitus stationibus uigiliis fessus superatis

tamen humanis omnibus malis cum famem unam natura uinci non sineret

diem de die prospectans ecquod auxilium ab dictatore appareret postremo

spe quoque iam non solum cibo deficiente et cum stationes procederent

prope obruentibus infirmum corpus armis uel dedi uel redimi se quacumque

pactione possint iussit iactantibus non obscure Gallis haud magna mercede

se adduci posse ut obsidionem relinquant Tum senatus habitus tribunisque

militum negotium datum ut paciscerentur Inde inter Q Sulpicium tribunum

militum et Brennum regulum Gallorum conloquio transacta res est et mille

pondo auri pretium populi gentibus mox imperaturi factum Rei foedissimae

per se adiecta indignitas est pondera ab Gallis allata iniqua et tribuno

recusante additus ab insolente Gallo ponderi gladius auditaque intoleranda

Romanis uox ―uae uictis [esse]

Por outro lado a fome mais do que todos os males do cerco e da guerra

afligia ambos os exeacutercitos tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois

eles fizeram seu acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as

colinas esse lugar era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de

vapor tambeacutem a cinza e o poacute com qualquer movimento do vento se

levantavam Esse povo era muito intolerante a isso pois estava acostumado agrave

umidade e ao frio abalados por esse calor e tormento eles morriam como

gado quando se espalhavam as doenccedilas Por causa da lentidatildeo de se sepultar

um por um eles cremavam indistintamente pilhas e montes de homens e por

isso esse lugar se tornou conhecido pelo nome de piras gaulesas Entatildeo foi

feita uma treacutegua com os romanos e conversas foram mantidas com a

permissatildeo dos chefes Nesses diaacutelogos como os gauleses continuamente

reclamassem da fome e por essa necessidade incitassem os romanos agrave

rendiccedilatildeo conta-se que para tirar deles essa ideia de muitos lugares do

Capitoacutelio eles lanccedilaram patildeo em direccedilatildeo agraves guarniccedilotildees dos inimigos Contudo

a fome jaacute natildeo podia mais ser dissimulada ou suportada Assim o ditador351

enquanto pessoalmente recrutava em Aacuterdea ordenou que o comandante da

cavalaria L Valeacuterio trouxesse o exeacutercito de Veios ele preparou e dispocircs

daqueles para atacar os inimigos de forma mais equilibrada Nesse iacutenterim a

guarniccedilatildeo que estava no Capitoacutelio cansada pelas vigiacutelias insones mesmo

superando todos os males humanos tinha um uacutenico mal a fome que pela

349

Cf p 175 350

Falamos mais detalhadamente da pietas na p 126 351

Trata-se de Camilo que banido para Veios ao saber do ocorrido em Roma partiu para a cidade e

liderou a vitoacuteria dos romanos contra os gauleses

180

natureza natildeo podia ser vencida dia apoacutes dia eles observavam se vinha algum

auxiacutelio do ditador Por fim como jaacute faltava natildeo soacute a esperanccedila mas tambeacutem

o alimento e como as tropas natildeo avanccedilariam mais pois por causa dos

sofrimentos o corpo ficara fraco para as armas decidiu-se que poderiam ou

se render ou se submeter a qualquer acordo que fosse parecia claramente

que eles poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa de

modo que abandonassem o cerco Entatildeo o senado se reuniu e ordenou que os

tribunos militares fizessem um tratado Logo na conferecircncia entre Q

Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos gauleses arranjou-se um acordo

foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao povo que em breve haveria de

governar as naccedilotildees Uma indignidade foi acrescida a essa determinaccedilatildeo

bastante vergonhosa pois a balanccedila que os gauleses trouxeram era injusta

Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs insolente adicionou a espada ao

peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os romanos dizer ― i dos vencidos

(grifos nossos)

Nesse capiacutetulo apoacutes sitiarem Roma por muito tempo os gauleses do mesmo

modo que os romanos padecem eles ainda sofrem por causa da peste jaacute que

acampavam em um lugar insalubre Com esse impasse ambos os lados fazem uma

treacutegua e passam a conversar buscando uma saiacuteda para o conflito Os romanos que ateacute

entatildeo resistiram bravamente (e continuamente esperavam a ajuda do ditador) finalmente

satildeo vencidos natildeo diretamente pelos gauleses mas sim porque lhes faltava a esperanccedila

e tambeacutem o alimento e que por esse motivo as tropas fracas natildeo avanccedilariam mais

Eles decidiram que poderiam ou se render ou se submeter a qualquer acordo mas

subestimaram o valor do pagamento aos gauleses (parecia claramente que eles

poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa) Depois da reuniatildeo do

senado temos a conferecircncia entre Sulpiacutecio e Breno que fazem um acordo o povo

romano que em breve haveria de governar as naccedilotildees deveria pagar mil libras em ouro

aos gauleses352

Liacutevio destaca a falta de dignidade dos celtas que para trapacear e

conseguir mais ouro trouxeram uma balanccedila injusta Aleacutem disso o gaulecircs

caracterizado como insolente acrescentou a espada ao peso e com voz intoleraacutevel disse

os rom nos ― i dos vencidos 353

Ogilvie (1965 p 737) destaca que essa voz

intoleraacutevel marca uma peripeacutecia a favor dos romanos Na sequecircncia Camilo aparece e

derrota os gauleses Os romanos como recuperaram sua pietas por essa razatildeo

mereceram essa vitoacuteria Curioso notar que nenhuma das fontes para esse periacuteodo como

Poliacutebio ou Diodoro menciona Camilo Evidentemente Liacutevio se aproveitou da lendaacuteria

histoacuteria desse personagem para transformar essa vergonhosa derrota em sucesso jaacute que

352

Liacutevio demonstra mais uma vez que apoiava o imperialismo romano como antes escrevera no prefaacutecio

de Ab urbe condita (sect7) e t mbeacutem desse ―direito qu se divino de Rom govern r outros povos (cf p

161) 353

Os gauleses jaacute tinham firm do ntes que ―tinh m o direito tr veacutes das armas e tudo pertencia aos

homens m is fortes no c piacutetulo 36 (cf p 166)

181

sua histoacuteria tinha um profundo caraacuteter nacionalista e laudatoacuterio da uirtus romana Com

esse capiacutetulo encerramos a anaacutelise dos trechos do livro V de Ab urbe condita

Passamos agora agraves passagens do livro VII Nesse livro a partir do capiacutetulo 9

temos a narraccedilatildeo dos fatos que aconteceram em 361 aC O contexto era o de uma nova

guerra entre romanos e gauleses Com o comando do ditador Tito Quiacutencio Peno os

romanos se posicionaram nas margens do rio Acircnio Como eles disputassem pelo

controle da ponte com os gauleses e com forccedilas parecidas nem um ou outro exeacutercito

conseguisse vencer temos entatildeo o episoacutedio do duelo entre um gaulecircs e um romano

Assim temos (VII 9)

Tum eximia corporis magnitudine in uacuum pontem Gallus processit et

quantum maxima uoce potuit ―Quem nunc inquit ―Roma uirum

fortissimum habet procedat agedum ad pugnam ut noster duorum euentus

ostendat utra gens bello sit melior

Entatildeo um gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal avanccedilou ateacute a ponte vazia e

com a voz mais forte que pode disse ― gora que o homem mais valoroso de

que Roma dispotildee avance para o combate de modo que esse resultado entre

mbos mostre qu l dos dois povos eacute melhor n guerr (grifos nossos)

Liacutevio recorreu ao estereoacutetipo do gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal (eximia

corporis magnitudine) e que chamou um inimigo para o confronto individual com a voz

mais forte que pode354

Nesse trecho vemos tambeacutem o antigo costume indo-europeu de

decidir uma batalha em um confronto entre dois guerreiros tido como os melhores de

suas tropas Essa tradiccedilatildeo que depois foi desaparecendo entre gregos e romanos a partir

do seacuteculo IV aC ainda era praticada pelos celtas desse periacuteodo Em sua comunidade

era aceitaacutevel que toda a questatildeo da vitoacuteria (ou derrota) de um exeacutercito poderia ser

decidida nesses torneios (RANKIN 1996 p 63 e 64) Eles inclusive adotavam esse

costume em conflitos contra povos natildeo ceacutelticos como vimos acima em que o gaulecircs

354

De acordo com Rankin (1996 p 68) um guerreiro gaulecircs com toda sua estatura e fuacuteria deveria ser

aterrorizante Em vaacuterios autores eles foram descritos fisicamente como altos e loiros com vozes

profundas e guturais aleacutem de terem um comportamento ameaccedilador e dramaacutetico Falamos desses toacutepoi em

Poliacutebio (II 15 7) na p 49 deste trabalho tambeacutem em Diodoro (V 28 1) na p 81-82 e em Estrabatildeo

(IV 4 2) na p 85 Sherwin-White (1967 p 58) pontua que apoacutes os contatos que os romanos tiveram

com germanos e bretotildees no seacuteculo I aC esse estereoacutetipo da enorme altura gaulesa foi transferido para

eles Um exemplo disso pode ser encontrado em Ceacutesar que disse que a antiga virtude dos celtas passou

aos germanos (cf BGall VI 24 p 128) No seu comentaacuterio ele em momento algum descreveu os

gauleses como altos mas sim os germanos (cf BGall VI 21 p 144) quando Ceacutesar disse que essa

grande estatura germacircnica se devia agrave sua abstinecircncia sexual) ou os belgas (que embora habitantes da

Gaacutelia na verdade seriam descendentes dos germanos como temos no livro II 4 cf p 131)

182

chamou um romano para o combate355

Em seguida temos a narrativa do duelo (VII

10)

Diu inter primores iuuenum Romanorum silentium fuit cum et abnuere

certamen uererentur et praecipuam sortem periculi petere nollent Tum T

Manlius L filius qui patrem a uexatione tribunicia uindicauerat ex statione

ad dictatorem pergit ―Iniussu tuo inquit imperator extra ordinem nunquam

pugnauerim non si certam uictoriam uideam si tu permittis uolo ego illi

beluae ostendere quando adeo ferox praesultat hostium signis me ex ea

familia ortum quae Gallorum agmen ex rupe Tarpeia deiecit Tum dictator

―Macte uirtute inquit ac pietate in patrem patriamque T Manli esto Perge

et nomen Romanum inuictum iuuantibus dis praesta Armant inde iuuenem

aequales pedestre scutum capit hispano cingitur gladio ad propiorem habili

pugnam Armatum adornatumque aduersus Gallum stolide laetum et ndash

quoniam id quoque memoria dignum antiquis uisum est ndash linguam etiam ab

inrisu exserentem producunt Recipiunt inde se ad stationem et duo in medio

armati spectaculi magis more quam lege belli destituuntur nequaquam uisu

ac specie aestimantibus pares Corpus alteri magnitudine eximium

uersicolori ueste pictisque et auro caelatis refulgens armis media in altero

militaris statura modicaque in armis habilibus magis quam decoris species

non cantus non exsultatio armorumque agitatio uana sed pectus animorum

iraeque tacitae plenum omnem ferociam in discrimen ipsum certaminis

distulerat Vbi constitere inter duas acies tot circa mortalium animis spe

metuque pendentibus Gallus uelut moles superne imminens proiecto laeua

scuto in aduenientis arma hostis uanum caesim cum ingenti sonitu ensem

deiecit Romanus mucrone subrecto cum scuto scutum imum perculisset

totoque corpore interior periculo uolneris factus insinuasset se inter corpus

armaque uno alteroque subinde ictu uentrem atque inguina hausit et in

spatium ingens ruentem porrexit hostem Iacentis inde corpus ab omni alia

uexatione intactum uno torque spoliauit quem respersum cruore collo

circumdedit suo Defixerat pauor cum admiratione Gallos Romani alacres

ab statione obuiam militi suo progressi gratulantes laudantesque ad

dictatorem perducunt Inter carminum prope modo incondita quaedam

militariter ioculantes Torquati cognomen auditum celebratum deinde

posteris etiam [familiae] honori fuit Dictator coronam auream addidit

donum mirisque pro contione eam pugnam laudibus tulit

Durante muito tempo houve um silecircncio entre os nobres jovens romanos jaacute

que por um lado eles receavam recusar o combate e por outro natildeo queriam

se dirigir primeiro para essa sorte de perigo Entatildeo Tito Macircnlio filho de

Luacutecio que tinha livrado o pai da perseguiccedilatildeo do tribuno avanccedilou do seu

lugar ateacute o ditador e disse ―sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora

da linha de batalha nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa se tu

permitires quero eu mesmo mostrar agravequele animal visto que ele saltita feroz

diante dos estandartes dos inimigos que sou oriundo daquela famiacutelia que

355

Esses torneios marcavam o valoroso ritual dos celtas cuja maior motivaccedilatildeo era a honra guerreira

Diodoro Siacuteculo (V 29 2-3) escreveu sobre esse costume de um celta chamar um rival para uma disputa

individual brandindo suas armas e fazendo bastante barulho para inspirar medo no adversaacuterio Tambeacutem

de acordo com Rankin (1996 p 67) os gregos e os romanos viam no celta a sobrevivecircncia do antigo

coacutedigo de vida heroacuteico Nas estaacutetuas do gaulecircs moribundo estava expressa a riacutegida determinaccedilatildeo de um

guerreiro que escolhia a morte por sua proacutepria matildeo a viver uma vida em desonra (RANKIN 1996 p 67)

Essa caracteriacutestica lembra tambeacutem o episoacutedio do aquitano Pisatildeo que salvara seu irmatildeo da batalha o

irmatildeo por sua vez vendo que Pisatildeo morrera em combate voltou para a luta e foi morto pelos inimigos

(cf p 125 e ss) Se para os gauleses era mais importante ter uma morte gloriosa do que uma sobreviecircncia

humilhada para os romanos a circunstacircncia era diferente Hope (apud BROWN 2014 p 393) lembra que

nas campanhas militares romanas o ideal era combater vencer e sobreviver a ecircnfase estava toda na

vitoacuteria e natildeo nas viacutetimas que tombaram para criar esse sucesso

183

derrubou um multidatildeo de g uleses d roch T rpei 356

O ditador assim

respondeu ―Tens a honrada virtude Tito Macircnlio e a piedade para com o

pai e a paacutetria Avanccedila tu e com o auxiacutelio dos deuses defende o invenciacutevel

nome romano 357

Em seguida os companheiros armaram o jovem ele tomou

o escudo de um soldado e cingiu-se com uma espada hispana conveniente

para a luta corpo a corpo358

Eles o conduziram armado e equipado ateacute o

gaulecircs insensatamente feliz e ndash porque aos antigos parecesse esse ser um fato

digno de nota ndash que mostrava a liacutengua em escaacuternio Os jovens entatildeo se

retiraram para sua posiccedilatildeo No centro os dois armados foram deixados mais

agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra De forma alguma eram parecidos

considerando-se seu aspecto e tipo O corpo de um deles era notaacutevel pelo

tamanho resplandecente em uma veste multicolorida de vaacuterios tons e com

armas ornadas de ouro O outro tinha a estatura mediana e modesta de um

soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais ele natildeo produziu nenhum

canto nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas mas o seu peito

estava cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade

para o momento da proacutepria luta Quando eles se postaram entre as duas

linhas de batalha todos os que estavam agrave sua volta ficaram com os acircnimos

suspensos pela esperanccedila e pelo medo O gaulecircs que por cima se aproximava

devido ao seu grande tamanho lanccedilou o escudo contra as armas adversas do

inimigo que se aproximava e projetou a espada com grande ruiacutedo mas esse

golpe foi inuacutetil O romano com a ponta da espada erguida com seu proacuteprio

escudo bateu no escudo inimigo pela parte inferior e comprimindo-se todo

entre o corpo e as armas do inimigo aproximou-se ainda mais do perigo do

ataque com um golpe e depois outro ele feriu-lhe o ventre e a virilha e

jogou o adversaacuterio derrubado em um espaccedilo enorme Entatildeo do corpo

abatido intocado por nenhuma outra indignidade ele tirou somente o colar

que manchado de sangue colocou em volta do seu proacuteprio pescoccedilo O

pavor junto com a admiraccedilatildeo paralisou os gauleses os romanos

entusiasmados avanccedilaram de sua posiccedilatildeo ateacute o seu soldado e louvando-o e

agradecendo-o conduziram-no ateacute o ditador Entre o canto militar e os

gracejos desordenados que eles diziam ouvia-se o nome Torquato que

depois foi celebrado pelos seus descendentes e tornou-se ainda a honoriacutefica

alcunha da famiacutelia O ditador acrescentou uma coroa de ouro ao precircmio e

com admiraacuteveis elogios narrou essa luta em um discurso359

356

Oakley (1998 p 132) sublinha que era algo comum a todas as sociedades antigas os filhos desejarem

emular as conquistas de seus ancestrais em Roma isso era bastante comum em famiacutelias aristocraacuteticas

que herdavam prestiacutegio ao longo de geraccedilotildees (fato citado ao final desse capiacutetulo em que os descendentes

de Macircnlio herdam o nome Torquato) Os romanos assim motivados buscavam alcanccedilar faccedilanhas

similares agraves dos seus ascendentes Assim Tito Macircnlio demonstra sua vontade de lutar com o gaulecircs como

forma de rivalizar o feito do seu pai que derrubando os gauleses da rocha Tarpeia ficou conhecido como

Tito Macircnlio Capitolino (Ab urbe cond VI 17) 357

Gilmartin (1975 apud PHILLIPS 1982 p 1045) sugere que essa segunda pessoa do singular usada

por Liacutevio geralmente aparecia em contextos que estimulavam seus leitores a terem uma reaccedilatildeo (seja de

admiraccedilatildeo ou vergonha) dando mais ecircnfase no impacto que os exemplos criariam em seu puacuteblico do que

em fazer uma simples descriccedilatildeo dos acontecimentos 358

Na eacutepoca em que esse confronto aconteceu (361 aC) os romanos ainda natildeo tinham conquistado a

Hispacircnia trata-se entatildeo de um anacronismo de Liacutevio A espada (gladius) de Macircnlio mais curta que a do

gaulecircs (ensis) era ideal para confrontos muito proacuteximos Era bastante comum em Liacutevio esse fato do

gaulecircs ser prejudicado em um duelo por causa de uma espada muito longa Para discussatildeo mais detalhada

sobre as formas de combate com espada curta e longa cf Oakley (1998 p 134-136) 359

A coroa de ouro era um precircmio recorrente durante a Repuacutelica De acordo com Oakley (1998 p 148)

no periacuteodo final da Repuacuteblica passou a ser comum conceder coroas especiacuteficas como a corona ciuica

muralis etc Augusto (RG XXXIV p 150) mencionou que ganhou uma coroa ciacutevica e um escudo de

ouro

184

No capiacutetulo 9 o gaulecircs por conta proacutepria decidira avanccedilar e propor uma luta

individual Tito Macircnlio antes de aceitar esse desafio primeiro pediu a autorizaccedilatildeo ao

ditador dizendo sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora da linha de batalha

nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa360

Podemos perceber a assimetria entre a

uirtus baacuterbara e a disciplina contida do romano de fato a visatildeo romana considerava que

a uirtus era alcanccedilada coletivamente e natildeo individualmente (RIGGSBY 2006 p 90 e

91)361

Os pronomes tu e ego na fala de Macircnlio chamam atenccedilatildeo para a forma com a

qual ele subordina seu proacuteprio desejo de gloacuteria agrave autoridade do seu general (OAKLEY

1998 p 131) Liacutevio igualmente sublinhou a primitividade do gaulecircs atraveacutes das

palavras de Macircnlio que a ele se referiu como sendo um animal visto que ele saltita

feroz diante dos estandartes dos inimigos (illi beluae ostendere quando adeo ferox

praesultat hostium signis) Em contraste a essa caracteriacutestica selvagem do celta temos a

oposiccedilatildeo representada pela civilidade romana de fato o ditador em resposta diz que

Macircnlio tem a honrada virtude e a piedade para com o pai e a paacutetria (macte uirtute ac

pietate in patrem patriamque esto) e que com o auxiacutelio dos deuses o heroacutei haveria de

defender o invenciacutevel nome romano (nomen Romanum inuictum iuuantibus dis

praesta)362

Em seguida Liacutevio segue com a descriccedilatildeo clichecirc do gaulecircs insensatamente

feliz e que mostrava a liacutengua em escaacuternio363

Os combatentes armados foram deixados

no centro mais agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra Como Riggsby (2006 p 90

e 91) lembra para os romanos o valor de um cidadatildeo dependia do julgamento da

comunidade mais do que de padrotildees absolutos pois para os romanos era marcante essa

noccedilatildeo de coletividade por conseguinte isso encorajava a visatildeo de que a atividade

romana se desenrolava como se fosse em um palco com a audiecircncia desempenhando o

papel de juiacuteza Isso eacute um padratildeo constante no Ab urbe condita em que batalhas e duelos

comumente satildeo descritos como espetaacuteculos de forma a deixar a narrativa mais viacutevida

Dando continuidade agrave descriccedilatildeo estereotipada do celta (e tambeacutem do romano) temos

que o gaulecircs era notaacutevel pelo tamanho resplandecente em uma veste multicolorida com

360

Oakley (1998 p131) destaca que nenhum soldado romano podia sair do seu posto por nenhum

motivo a natildeo ser por ordem do seu comandante 361

Jaacute falamos a esse respeito na p 145 em que Ceacutesar tambeacutem afirmara algo semelhante sobre a uirtus

dos germanos e a disciplina romana 362

Conforme discutimos em vaacuterias passagens do livro V aqui tambeacutem o romano imbuiacutedo da uirtus e da

pietas contava com o auxiacutelio da divina providecircncia (a boa fortuna) e por isso defenderia o nome

romano sinocircnimo de honra e dignidade 363

Sobre o comportamento ameaccedilador e dramaacutetico que os gauleses tinham em batalha cf nota 354 Aleacutem

disso Ciacutecero t mbeacutem fez um descriccedilatildeo b st nte hostil dos g uleses dizendo que ―eles v g m

desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e

desum no d su liacutengu (cf Pro Fonteio 33 p 72)

185

armas ornadas de ouro364

O romano pelo contraacuterio tinha a estatura mediana e

modesta de um soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais Em oposiccedilatildeo agrave postura

teatral do gaulecircs que saltitava e mostrava a liacutengua Macircnlio natildeo produziu nenhum canto

nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas (non cantus non exsultatio

armorumque agitatio uana)365

Na verdade o romano embora impassiacutevel tinha o peito

cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade para o momento da

proacutepria luta (sed pectus animorum iraeque tacitae plenum omnem ferociam in

discrimen ipsum certaminis distulerat) Mais do que ficar desempenhando o papel do

guerreiro tiacutepico Macircnlio se preocupou em guardar sua energia feroz para o combate em

si Podemos pensar que embora Liacutevio tenha usado os termos ira e ferocia ndash comumente

empregados na historiografia latina para a descriccedilatildeo das naccedilotildees consideradas baacuterbaras ndash

para referir-se a um romano contudo Macircnlio possuiacutea a disciplina a uirtus e a pietas

assim a ira e a ferocidade devidamente controladas serviram como importantes

ferramentas para sua vitoacuteria366

Macircnlio aproveitando-se do fato de ser menor que o

gaulecircs comprimiu-se todo entre o corpo e as armas do inimigo e com apenas dois

golpes feriu-lhe o ventre e a virilha e venceu De todos os ricos ornamentos Macircnlio

tomou como butim somente o colar que manchado de sangue colocou em volta do seu

proacuteprio pescoccedilo (uno torque spoliauit quem respersum cruore collo circumdedit suo)

Mais uma vez temos a imagem dos gauleses paralisados por causa do pavor e da

admiraccedilatildeo (defixerat pauor cum admiratione Gallos)367

Por ter se apoderado do colar

(torquis) Macircnlio passou a ser reconhecido pelo nome Torquato

Tambeacutem no livro VII destacamos a seguinte passagem que se passa em 348

aC na qual o impasse da guerra eacute decidido em um novo duelo entre um gaulecircs e um

romano (VII 26)

Vbi cum stationibus quieti tempus tererent Gallus processit magnitudine

atque armis insignis quatiensque scutum hasta cum silentium fecisset

prouocat per interpretem unum ex Romanis qui secum ferro decernat M

364

Diodoro Siacuteculo (V 29 3) fala do costume dos gauleses tanto homens quanto mulheres usarem vaacuterios

adereccedilos em ouro Diodoro tambeacutem fala do costume dos guerreiros gauleses usarem vestes multicoloridas

em V 30 1 365

Cf p 169 em que essa conduta jaacute fora descrita com vocabulaacuterio similar em V 37 Jaacute todos os locais

em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e

vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (iam omnia contra circaque hostium plena erant et

nata in uanos tumultus gens truci cantu clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono) 366

Por conseguinte nota-se mais uma vez essa oposiccedilatildeo entre o romano astuto e o gaulecircs que possuiacutea

essa ira inata e incontrolaacutevel (cf BGall VII 42 p 133 e Ab urbe condV 37 p 169) Evidentemente na

historiografia latina o romano sendo superior em inteligecircncia e virtude sempre vencia seus inimigos 367

Cf V 39 (p 172 e 173) em que os gauleses ao vencerem em Aacutelia ficaram imoacuteveis de espanto

186

erat Valerius tribunus militum adulescens qui haud indigniorem eo decore

se quam T Manlium ratus prius sciscitatus consulis uoluntatem in medium

armatus processit Minus insigne certamen humanum numine interposito

deorum factum Namque conserenti iam manum Romano coruus repente in

galea consedit in hostem uersus Quod primo ut augurium caelo missum

laetus accepit tribunus precatus deinde si diuus si diua esset qui sibi

praepetem misisset uolens propitius adessetlsquo Dictu mirabile tenuit non

solum ales captam semel sedem sed quotienscumque certamen initum est

leuans se alis os oculosque hostis rostro et unguibus appetit donec territum

prodigii talis uisu oculisque simul ac mente turbatum Valerius obtruncat

coruus ex conspectu elatus orientem petit Hactenus quietae utrimque

stationes fuere postquam spoliare corpus caesi hostis tribunus coepit nec

Galli se statione tenuerunt et Romanorum cursus ad uictorem etiam ocior

fuit Ibi circa iacentis Galli corpus contracto certamine pugna atrox

concitatur Iam non manipulis proximarum stationum sed legionibus

utrimque effusis res geritur Camillus laetum militem uictoria tribuni laetum

tam praesentibus ac secundis dis ire in proelium iubet ostentansque

insignem spoliis tribunum ―Hunc imitare miles aiebat et circa iacentem

ducem sterne Gallorum cateruas Di hominesque illi adfuere pugnae

depugnatumque haudquaquam certamine ambiguo cum Gallis est adeo

duorum militum euentum inter quos pugnatum erat utraque acies animis

praeceperat Inter primos quorum concursus alios exciuerat atrox proelium

fuit alia multitudo priusquam ad coniectum teli ueniret terga uertit Primo

per Volscos Falernumque agrum dissipati sunt inde Apuliam ac mare

inferum petierunt () 368

Como os romanos estivessem quietos e passassem o tempo em guarda um

gaulecircs avanccedilou com tamanho e armas notaacuteveis ele fez silecircncio batendo no

escudo com a lanccedila e por meio de um inteacuterprete chamou um dos romanos

para que lutasse consigo atraveacutes do ferro Havia um jovem tribuno militar

Marco Valeacuterio que natildeo se considerava menos digno daquela honra do que

Tito Macircnlio Ele tendo antes se informado da vontade do cocircnsul avanccedilou

armado ateacute o centro Menos ilustre se mostrou o combate humano jaacute que

interferiram os poderes dos deuses De fato enquanto o romano se dirigia

para a luta um corvo de repente pousou no seu capacete virado para o

inimigo Feliz primeiramente o tribuno aceitou isso como um pressaacutegio

vindo do ceacuteu e depois suplicou ―c so fosse um deus ou deus que ele

enviou o paacutess ro que o voo propiacutecio lhe f vorecesse Ocorreu lgo

maravilhoso de se contar a ave natildeo se contentou apenas em ficar no lugar

mas todas as vezes que a luta comeccedilava com as asas ela levantou-se e

atacou o rosto e os olhos do inimigo com o bico e as garras Por fim o

gaulecircs aterrorizado pela visatildeo de tamanho prodiacutegio e ao mesmo tempo ferido

nos olhos e na mente foi morto por Valeacuterio o nobre corvo saindo de vista

dirigiu-se para o oriente Ateacute entatildeo as tropas dos dois lados estiveram

paradas Assim que o tribuno comeccedilou a despojar o corpo do inimigo morto

os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo e a corrida dos romanos ateacute

o vencedor foi ainda mais raacutepida Ali travando um acirrado combate ao redor

do corpo do gaulecircs derrubado houve uma luta atroz A batalha jaacute natildeo era

mais travada pelos maniacutepulos nas posiccedilotildees proacuteximas mas sim pelas legiotildees

dispersas pelos dois lados Camilo ordenou ir para o combate os soldados

que estavam felizes tanto com a vitoacuteria do tribuno quanto pela presenccedila dos

deuses favoraacuteveis mostrando-lhes o tribuno reluzente com os despojos

disse-lhes ―imitai-o soldados e ao redor do liacuteder derrubado derrotai as

multidotildees dos g uleses Deuses e homens tom r m p rte ness lut e de

forma alguma foi duvidoso o combate contra os gauleses uma e outra parte

jaacute compreendera nos acircnimos o resultado do combate que fora travado pelos

dois soldados Entre os que avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os

368

Encerramos a traduccedilatildeo desse capiacutetulo aqui apoacutes esse trecho Liacutevio muda de assunto e passa a narrrar

o conflito entre romanos e gregos na Siciacutelia

187

outros o embate foi atroz o resto da multidatildeo antes que pudesse lanccedilar os

dardos virou as costas Primeiro eles se dispersaram pela aacuterea dos volscos e

pelo territoacuterio de falerno de laacute se dirigiram para a Apuacutelia e o mar inferior

() (grifos nossos)

Esse capiacutetulo guarda muitas semelhanccedilas com a narrativa da vitoacuteria de Tito

Macircnlio mais uma vez um enorme gaulecircs toma a frente e chama um romano para um

duelo Valeacuterio se oferece para lutar tendo antes se informado da vontade do cocircnsul

Mesmo com alguns anos de intervalo entre Macircnlio e Valeacuterio (de 361 aC a 348 aC) a

disciplina romana continua exatamente a mesma369

Uma diferenccedila que temos eacute o fato

de ao contraacuterio do que ocorrera com Macircnlio nesse confronto interferiram os poderes

dos deuses Fica evidente o papel da divina providecircncia atuando em favor dos romanos

Um corvo que pousara no capacete de Valeacuterio atacou o rosto e os olhos do inimigo

com o bico e as garras Rankin (1996 p 109) destaca que para os romanos o corvo era

uma ave sagrada para os gauleses ele era uma representaccedilatildeo comum da deusa celta da

guerra Ao dizer que o corvo ajudou um guerreiro romano Liacutevio destacou ainda mais a

vitoacuteria desse contra o gaulecircs jaacute que esse que seria um pressaacutegio favoraacutevel ao gaulecircs no

fim das contas mostrou-se auspicioso para Valeacuterio Outro acontecimento que difere do

duelo de Macircnlio foi o fato de que assim que Valeacuterio comeccedilou a despojar o corpo do

inimigo morto os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo Antes ao verem a

vitoacuteria de Macircnlio os gauleses ficaram paralisados por medo e admiraccedilatildeo mas se

resignaram com o resultado Jaacute nesse capiacutetulo os gauleses natildeo soacute natildeo ficaram estaacuteticos

mas tambeacutem partiram para cima dos romanos e houve uma luta atroz Temos nas

palavras de Camilo entatildeo um exemplo de comportamento valoroso na guerra uma vez

que ele pede aos soldados que imitem a atitude de Valeacuterio frente ao inimigo370

Mesmo

com essa acirrada batalha Liacutevio ao dizer que de forma alguma foi duvidoso o combate

contra os gauleses salientou que os romanos venceriam de qualquer jeito pois eles

contavam com o auxiacutelio dos deuses

Passamos agora ao livro XXIII em que temos o contexto histoacuterico da Segunda

Guerra Puacutenica Preocupados em derrotar Aniacutebal os romanos sofrem uma terriacutevel

derrota na Gaacutelia Assim temos (Ab urbe cond XXIII 24)

369

Nenhum soldado romano se prontificava a lutar sem antes ter a autorizaccedilatildeo expressa de seu general

(cf VII 10 p 182) 370

Valeacuterio imitou o exemplo de Macircnlio ao confrontar um gaulecircs por sua vez Liacutevio exorta seu puacuteblico-

alvo a imitar Valeacuterio Falamos do importante papel dos exempla no Ab urbe condita nas paacuteginas 158 e

159

188

() Cum eae res maxime agerentur noua clades nuntiata aliam super aliam

cumulante in eum annum fortuna L Postumium consulem designatum in

Gallia ipsum atque exercitum deletos Silua erat uasta ndash Litanam Galli

uocabant ndash qua exercitum traducturus erat Eius siluae dextra laeuaque circa

uiam Galli arbores ita inciderunt ut immotae starent momento leui impulsae

occiderent Legiones duas Romanas habebat Postumius sociumque ab

supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia armatorum in

agros hostium induxerit Galli oram extremae siluae cum circumsedissent

ubi intrauit agmen saltum tum extremas arborum succisarum impellunt

quae alia in aliam instabilem per se ac male haerentem incidentes ancipiti

strage arma uiros equos obruerunt ut uix decem homines effugerent Nam

cum exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum

ceteram multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati

circumsedentes interfecerunt paucis e tanto numero captis qui pontem

fluminis petentes obsesso ante ab hostibus ponte interclusi sunt Ibi

Postumius omni ui ne caperetur dimicans occubuit Spolia corporis caputque

praecisum ducis Boii ouantes templo quod sanctissimum est apud eos

intulere Purgato inde capite ut mos iis est caluam auro caelauere idque

sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem sacerdoti

esset ac templi antistitibus Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria

fuit nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat tamen

ceterae res quia nihil dissipatum fuga est stratae per omnem iacentis

agminis ordinem inuentae sunt

() Enquanto essas coisas aconteciam soube-se de uma nova cataacutestrofe pois

que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a outra L Postuacutemio

designado cocircnsul foi massacrado na Gaacutelia junto com seu exeacutercito A floresta

pela qual ele deveria conduzir a tropa era vasta ndash os gauleses a chamavam

de Litana371

Ao longo do caminho pela direita e pela esquerda os gauleses

cortaram as aacutervores assim elas pareceriam de peacute mas com um leve

movimento elas cairiam Postuacutemio tinha duas legiotildees romanas e como tinha

recrutado muitos aliados do mar superior372

ele conduzia vinte e cinco mil

soldados para os territoacuterios dos inimigos Os gauleses ficaram ao longo da

borda da floresta no momento em que a fileira entrou no mato eles logo

empurraram aacutervores cortadas que estavam mais externas Elas caiacuteram umas

sobre as outras instaacuteveis e mal estabilizadas com esse desabamento elas

destruiacuteram as armas os homens e os cavalos de tal forma que apenas dez

indiviacuteduos escaparam com muita dificuldade De fato muitos foram

sufocados pelos troncos das aacutervores e pedaccedilos de galhos Os gauleses

armados rodeando toda a floresta mataram a outra parte deles que estava

atemorizada por esse repentino mal De um nuacutemero tatildeo grande poucos foram

capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora

bloqueada pelos inimigos Foi ali que Postuacutemio lutando com toda a forccedila

para natildeo ser apanhado morreu Os boios exultantes levaram ateacute o templo

que era muito sagrado entre eles os despojos do corpo e a cabeccedila decepada

do general Entatildeo apoacutes limparem a cabeccedila como era o costume deles

ornaram o cracircnio com ouro que para eles passou a ser um recipiente

sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas solenidades e o mesmo serviria de

copo para os sacerdotes do templo373

Para os gauleses o butim foi tatildeo grande

371

Essa floresta no territoacuterio da naccedilatildeo celta dos boios era ao sudeste da atual cidade de Moacutedena 372

Hoje conhecido por mar Adriaacutetico 373

Posidocircnio (via Estrabatildeo IV 4 5 cf p 85 e 86) afirmara que os gauleses (assim como vaacuterias outras

tribos do norte) tinham o exoacutetico e baacuterbaro haacutebito de exibirem as cabeccedilas dos inimigos como precircmios na

entrada de suas casas Diodoro Siacuteculo (V 29 4) escreveu que os galos levavam os cracircnios como butim

mantendo-os em casa como trofeacuteus As cabeccedilas dos inimigos mais ilustres eram embalsamadas com oacuteleo

de cedro e guardadas em urnas e eles natildeo as vendiam por quantia nenhuma de ouro Liacutevio aqui

descreveu esse costume de forma um pouco diferente dizendo que os cracircnios eram levados ao sagrado

templo e usados como recipiente para as libaccedilotildees e como copo para os sacerdotes Assim o uso das

cabeccedilas outrora mantidas em contexto privado passam a ser um precircmio puacuteblico ao serem usadas nos

189

quanto a vitoacuteria de fato embora grande parte dos animais pereceu com a

queda das aacutervores todavia os demais objetos ndash jaacute que nada se perdeu na fuga

ndash foram encontrados caiacutedos por toda a fileira do exeacutercito derrubado (grifos

nossos)

Liacutevio escreveu que enquanto os romanos se ocupavam da guerra contra Aniacutebal

houve uma nova cataacutestrofe pois que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a

outra O autor mais uma vez deixou expliacutecito o papel da fortuna nesse episoacutedio como

forma de justificar os vaacuterios desastres sofridos por Roma nesse periacuteodo O incidente

dessa emboscada na floresta Litana imediatamente nos faz lembrar do massacre sofrido

por Varro em Teutoburgo374

Lembrando do papel dos exempla no Ab urbe condita esse

seria justamente um aviso estrateacutegico aos romanos pelo proacuteprio modus operandi de

uma legiatildeo eles deviam evitar confrontos em florestas densas375

Vemos que os

gauleses foram muito espertos jaacute que eles cortaram as aacutervores de modo que elas

parecessem de peacute mas que com um leve movimento elas caiacutessem sobre os inimigos

Liacutevio disse que Postuacutemio conduzia vinte e cinco mil soldados para os territoacuterios dos

inimigos um nuacutemero bem elevado que ressalta ainda mais o contraste com o nuacutemero de

sobreviventes entre armas homens e animais perdidos apenas dez indiviacuteduos

escaparam Aleacutem disso a menccedilatildeo de que um nuacutemero tatildeo grande poucos foram

capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora bloqueada

pelos inimigos aumentou ainda mais a expressividade dramaacutetica de tamanha derrota

Postuacutemio sendo corajoso e lutando ateacute o fim acabou perecendo e seu corpo foi

despojado pelos boios

Por fim chegamos ao uacuteltimo trecho de Liacutevio (XXXVIII 17) a ser analisado

neste trabalho Nesse episoacutedio temos o contexto da batalha dos romanos contra os

gaacutelatas (ou galo-gregos) no Monte Olimpo em 189 aC Antes da luta Macircnlio faz um

significativo discurso para as tropas Assim temos (XXXVIII 17)

Cum hoc hoste tam terribili omnibus regionis eius quia bellum gerendum

erat pro contione milites in hunc maxime modum adlocutus est consul ―non

me praeterit milites omnium quae Asiam colunt gentium Gallos fama belli

praestare Inter mitissimum genus hominum ferox natio peruagata bello

prope orbem terrarum sedem cepit Procera corpora promissae et rutilatae

rituais religiosos e solenes Liacutevio com isso provavelmente queria ressaltar o caraacuteter baacuterbaro desse haacutebito

Por outro lado Ceacutesar em momento algum do De bello Gallico citou esse costume Isso se justificava pelo

fato do general ter retratado os gauleses mais proacuteximos culturalmente aos romanos jaacute que a finalidade de

sua obra era poliacutetica e natildeo meramente etnograacutefica (cf p 139) 374

Cf p 153 375

As legiotildees eram muito eficazes em terrenos abertos mas pelo fracasso na floresta Litana e tambeacutem

em Teutoburgo fica claro que elas ficavam em desvantagem em aacutereas de mata fechada

190

comae uasta scuta praelongi gladii ad hoc cantus inchoantium proelium et

ululatus et tripudia et quatientium scuta in patrium quemdam modum

horrendus armorum crepitus omnia de industria composita ad terrorem Sed

haec quibus insolita atque insueta sunt Graeci et Phryges et Cares timeant

Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt Semel primo

congressu ad Alliam olim fuderunt maiores nostros Ex eo tempore per

ducentos iam annos pecorum in modum consternatos caedunt fugantque et

plures prope de Gallis triumphi quam de toto orbe terrarum acti sunt Iam

usu hoc cognitum est si primum impetum quem feruido ingenio et caeca ira

effundunt sustinueris fluunt sudore et lassitudine membra labant arma

mollia corpora molles ubi ira consedit animos sol puluis sitis ut ferrum

non admoueas prosternunt Non legionibus legiones eorum solum experti

sumus sed uir unus cum uiro congrediendo T Manlius M Valerius quantum

Gallicam rabiem uinceret Romana uirtus docuerunt iam M Manlius unus

agmine scandentes in Capitolium Gallos detrusit Et illis maioribus nostris

cum haud dubiis Gallis in sua terra genitis res erat hi iam degeneres sunt

mixti et Gallograeci uere quod appellantur sicut in frugibus pecudibusque

non tantum semina ad seruandam indolem ualent quantum terrae proprietas

caelique sub quo aluntur mutat Macedones qui Alexandriam in Aegypto qui

Seleuciam ac Babyloniam quique alias sparsas per orbem terrarum colonias

habent in Syros Parthos Aegyptios degenerarunt Massilia inter Gallos sita

traxit aliquantum ab accolis animorum Tarentinis quid ex Spartana dura illa

et horrida disciplina mansit Generosius in sua quidquid sede gignitur

insitum alienae terrae in id quo alitur natura uertente se degenerat

Phrygas igitur Gallicis oneratos armis sicut in acie Antiochi cecidistis

uictos uictores caedetis Magis uereor ne parum inde gloriae quam ne

nimium belli sit Attalus eos rex saepe fudit fugauitque Nolite existimare

beluas tantum recens captas feritatem illam siluestrem primo seruare dein

cum diu manibus humanis alantur mitescere in hominum feritate mulcenda

non eamdem naturam esse eosdemne hos creditis esse qui patres eorum

auique fuerunt Extorres inopia agrorum profecti domo per asperrimam

Illyrici oram Paeoniam inde et Thraeciam pugnando cum ferocissimis

gentibus emensi has terras ceperunt Duratos eos tot malis exasperatosque

accepit terra quae copia rerum omnium saginaret Vberrimo agro mitissimo

caelo clementibus accolarum ingeniis omnis illa cum qua uenerant

mansuefacta est feritas Vobis mehercule Martiis uiris cauenda ac fugienda

quam primum amoenitas est Asiae tantum hae peregrinae uoluptates ad

extinguendum uigorem animorum possunt quantum contagio disciplinae

morisque accolarum ualet Hoc tamen feliciter euenit quod sicut uim

aduersus uos nequaquam ita famam apud Graecos parem illi antiquae

obtinent cum qua uenerunt bellique gloriam uictores eandem inter socios

habebitis quam si seruantes antiquum specimen animorum Gallos uicissetis

Como eles devessem empreender a guerra contra esse inimigo que era o mais

terriacutevel de todos dessa regiatildeo o cocircnsul reuniu os combatentes e proferiu o

seguinte discurso ―natildeo me esc p sold dos que de todos os povos que

habitam a Aacutesia os gauleses satildeo superiores pela sua fama na guerra Essa

feroz naccedilatildeo depois que percorreu quase todos os lugares fazendo guerra por

fim tomou lugar entre esse povo muito paciacutefico Eles possuem corpos

enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito longas

Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um

combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas nos escudos de

acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar terror

Os gregos os friacutegios e o caacuterios como natildeo estatildeo acostumados a essas coisas

estranhas e incomuns sentem medo Por outro lado noacutes romanos estamos

familiarizados com esses tumultos gaacutelicos e tambeacutem jaacute conhecemos as

inconstacircncias deles Apenas uma vez no primeiro encontro os nossos

antepassados fugiram para Aacutelia376

Desde entatildeo e jaacute ao longo de duzentos

376

Cf V 38 p 170 e 171

191

anos eles satildeo mortos ou fogem atemorizados como se fossem gado377

Celebramos vaacuterios triunfos muito mais sobre os gauleses do que sobre o resto

do mundo Jaacute aprendemos esse costume se resistirmos ao primeiro ataque

que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se

enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga No momento em

que a ira deles se acalma por causa do sol da poeira e da sede eles

derrubam seus corpos moles e acircnimos por isso natildeo precisamos mover o

ferro Natildeo somos experientes apenas nos combates entre nossos exeacutercitos

contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um soacute homem contra outro

De fato Tito Macircnlio e Marco Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana

se sobressaiacutea agrave fuacuteria gaulesa e outrora Marco Macircnlio sozinho derrubou os

gauleses que em coluna escalavam o Capitoacutelio378

Nessa eacutepoca os nossos

ancestrais tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra

esses de agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de

galo-gregos No caso dos gratildeos ou dos animais as sementes natildeo podem

conservar sua iacutendole quando muda a propriedade da terra e do ceacuteu sob o qual

se desenvolvem Do mesmo modo os macedocircnios que antes possuiacuteram

Alexandria no Egito Selecircucia Babilocircnia e outras colocircnias espalhadas por

todo o mundo se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios Marselha

situada entre os gauleses tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos Quanto aos

tarentinos o que restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Tudo o

que eacute produzido em seu lugar de origem eacute mais digno quando introduzido

em outra terra da qual se nutre ele transforma sua natureza e se degenera

Portanto assim como voacutes matastes na fileira de Antiacuteoco agora matareis os

friacutegios que portam armas gaulesas voacutes vencedores e eles os vencidos

Receio mais que disso resulte uma gloacuteria escassa do que bastante luta O rei

Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Natildeo acreditais que apenas as

feras quando capturadas primeiro mantecircm aquela sua ferocidade selvagem

e em seguida domesticam-se quando por muito tempo satildeo alimentadas por

matildeos humanas O mesmo ocorre com a natureza dos homens quando sua

ferocidade se acalma ou acreditais esses serem iguais aos que foram seus

pais e antepassados Eles deixaram a paacutetria por causa da falta de terras

avanccedilaram pela duriacutessima regiatildeo da Iliacuteria depois percorreram a Peocircnia e a

Traacutecia e tendo lutado contra povos ferociacutessimos tomaram essas paragens

Essa terra que produz uma fartura de todas as coisas acolheu esses homens

endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo feacutertil com

ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham

quando chegaram se abrandou Por Heacutercules Voacutes homens de Marte379

deveis o quanto antes evitar e fugir da amenidade da Aacutesia Esses prazeres

estrangeiros tanto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o mesmo

pode ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes dos vizinhos

Felizmente acontece que embora os gauleses de forma alguma sejam fortes

perante voacutes todavia entre os gregos eles ainda possuem aquela mesma fama

com a qual chegaram outrora Voacutes vencedores tereis entre os aliados a

mesma gloacuteria da guerra como se tiveacutesseis vencido os gauleses dotados de

sua antiga disposiccedilatildeo de acircnimos (grifos nossos)

Sobre a migraccedilatildeo gaulesa para a Aacutesia Menor sem duacutevida Liacutevio usou Poliacutebio

como fonte (BRISCOE 2008 p 71) Todavia esse discurso de Macircnlio sem duacutevida foi

377

M is um vez Liacutevio se referiu os g uleses como ―g do cf V 48 p 179 em que eles morriam como

gado 378

Sobre a vitoacuteria de Macircnlio cf VII 10 p 182 e 183 Para a luta de Valeacuterio cf VII 26 p 185 a 187

Esse episoacutedio em que Marco Macircnlio derrubou os gauleses do Capitoacutelio se encontra em Ab Urb Cond V

47 379

Os romanos ligavam sua origem miacutetica a Marte pois consideravam que o deus da guerra era o pai dos

gecircmeos Rocircmulo e Remo Liacutevio usou essa designaccedilatildeo para acentuar ainda mais o caraacuteter belicoso das

legiotildees

192

uma criaccedilatildeo proacutepria de Liacutevio jaacute que Poliacutebio natildeo fez menccedilatildeo a essa fala (LUCE 1977

p 90) Na historiografia antiga as passagens com discursos eram uma importante

ferramenta que servia como meio de expressatildeo para descrever o estado da mente dos

personagens ou povos retratados Em Liacutevio esses discursos fundamentalmente

trabalhados na arte retoacuterica iam aleacutem no seu propoacutesito Na verdade muito aleacutem de

delinear os pensamentos dos indiviacuteduos para a audiecircncia que se encontrava dentro da

narrativa o foco principal de Liacutevio era endereccedilar esses discursos aos romanos de fora

da narrativa jaacute que o historiador acima de tudo buscava transmitir ao seu puacuteblico-alvo

exempla de virtudes e comportamentos a serem imitados (ou evitados) Liacutevio

geralmente preferia usar o discurso direto ao indireto de modo a natildeo interromper a

expressatildeo dos pensamentos e sentimentos da pessoa envolvida Seguindo seu preceito

de que a histoacuteria servia mais para comover do que para ser um relato pragmaacutetico dos

acontecimentos Liacutevio entatildeo buscou dar mais ecircnfase ao caraacuteter dramaacutetico dos discursos

do que utilizaacute-los como um meio de explicar uma situaccedilatildeo ou contexto histoacuterico

Lambert (1946 apud AILI 1982 p 1133) diz que em Ceacutesar acontecia o contraacuterio a

preferecircncia pelo discurso indireto estava diretamente ligada agrave questatildeo formal do

comentaacuterio Por isso o discurso era introduzido de forma abrupta justamente para

interromper a narrativa de modo a explicar uma situaccedilatildeo ou ajudar a caracterizar um

povo ou personagem380

Macircnlio no capiacutetulo acima comeccedilou seu discurso dizendo que os gauleses de

todos os povos que habitam a Aacutesia eram superiores pela sua fama na guerra e os

chamou de feroz naccedilatildeo (ferox natio)381

Not mos cert depreci ccedilatildeo nesse ―elogio agrave

fama beacutelica dos gauleses entre os povos da Aacutesia jaacute que eles tomaram lugar entre esse

povo muito paciacutefico (inter mitissimum genus hominum) Ora entre populaccedilotildees bastante

pacatas qualquer fama guerreira por menor que fosse se sobressairia Em seguida

temos uma lista de vaacuterios toacutepoi da representaccedilatildeo dos galos eles possuem corpos

enormes (procera corpora) cabelos longos e ruivos (promissae et rutilatae comae)

grandes escudos (uasta scuta) e espadas muito longas (praelongi gladii) Depois Liacutevio

descreveu o modo de agir deles antes de um confronto junto a isso tambeacutem o canto os

gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao

bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente

380

Sobre o papel dos discursos natildeo soacute na historiografia antiga mas tambeacutem especificamente em Ceacutesar cf

p 116 e 117 Quanto agrave preocupaccedilatildeo de Liacutevio em transmitir exempla agrave sua audiecircncia cf p 158 e 159 381

A ferocitas era o traccedilo essencial do baacuterbaro a esse respeito cf p 40 e 41 deste trabalho

193

preparado para causar terror382

Segundo Riggsby (2006 p 48) os relatos antigos

costumavam focar bastante no que parecia pitoresco ou exoacutetico pois isso tinha um

grande apelo em uma audiecircncia greco-romana e aqui isso natildeo seria diferente

Continuando a narrativa Liacutevio atraveacutes de Macircnlio disse que os gregos friacutegios e

caacuterios sentiam medo com esse espetaacuteculo exoacutetico Os romanos como jaacute travaram

contato com os gauleses muito antes dessa migraccedilatildeo para a Aacutesia Menor jaacute estavam

familiarizados natildeo soacute com esse costume mas tambeacutem com a inconstacircncia deles

(Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt) Liacutevio escreveu que os

romanos se apavoraram apenas uma vez no desastre junto ao Aacutelia apenas porque era a

primeira vez que eles se encontraram frente a frente com os gauleses Depois disso e jaacute

ao longo de duzentos anos eles satildeo mortos ou fogem e os romanos triunfaram mais

sobre os galos do que qualquer outro povo Evidentemente em um discurso para

encorajar as tropas a terriacutevel derrota de Postuacutemio e as legiotildees emboscadas na floresta

Litana foram esquecidas De novo temos o reforccedilo da inconstacircncia dos galos se os

romanos resistirem ao primeiro ataque que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira

logo os braccedilos deles se enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga 383

Assim por esse motivo e como igualmente os gauleses se enfraqueciam rapidamente

pelo sol poeira e sede os romanos nem precisavam empunhar as armas Entatildeo Camilo

reafirmou a superioridade romana dizendo natildeo somos experientes apenas nos

combates entre nossos exeacutercitos contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um

soacute homem contra outro A seguir ele mencionou os sucessos de Tito Macircnlio Marco

Valeacuterio e Marco Macircnlio Esses exemplos da virtude beacutelica serviam de inspiraccedilatildeo natildeo soacute

para as tropas que escutavam Macircnlio mas tambeacutem para os romanos que tinham contato

com a Ab urbe condita Os feitos desses heroacuteis foram ainda significativos pois nessa

eacutepoca eles tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de

agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos Liacutevio

relacionou essa perda da primitiva uirtus gaulesa com a migraccedilatildeo deles e o contato que

tiveram com os gregos com isso os gauleses a que se refere Macircnlio nesse discurso satildeo

mera sombra dos celtas de outrora384

Liacutevio entatildeo citou outros exemplos de como a

miscigenaccedilatildeo enfraqueceu as naccedilotildees dizendo que os macedocircnios que antes possuiacuteram

382

Liacutevio fez uma descriccedilatildeo dos gauleses bem parecida agrave de Diodoro Siacuteculo (V capiacutetulos 29 e 30) 383

Jaacute apareceram ao longo deste tabalho vaacuterios exemplos sobre a inconstacircncia dos voluacuteveis gauleses Cf

especialmente p 121 em que Ceacutesar narrou esse arrefecimento do iacutempeto guerreiro do gaulecircs que se

apavorou frente aos germanos 384

Natildeo deixa de ser irocircnico o fato de que Ceacutesar escreveu que os gauleses perderam sua uirtus justamente

pelo contato com os romanos (cf p 130)

194

um vasto impeacuterio se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios O mesmo aconteceu com

Marselha que proacutexima aos celtas tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos E quanto aos

tarentinos nada restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Macircnlio com todos

esses argumentos deixou claro para as tropas que ao lutarem com um inimigo tatildeo

enfraquecido eles teriam uma gloacuteria escassa e para reforccedilar essa ideia ele disse que o

rei Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Se um rei heleniacutestico conseguia

vencer por vaacuterias vezes esses gauleses degenerados para os romanos entatildeo essa tarefa

seria bem tranquila pois haacute tempos estavam acostumados com galos de verdade

Na sequecircncia temos mais detalhes sobre a emigraccedilatildeo dos gauleses e a falta de

terra como sendo a motivaccedilatildeo principal desse ocorrido Ao chegarem a uma nova regiatildeo

com um campo tatildeo feacutertil (uberrimo agro) com ceacuteu muito ameno (mitissimo caelo) e

com vizinhos paciacuteficos eles perderam toda aquela rudeza que tinham quando

chegaram Nota-se o uso dos superlativos uberrimo agro e mitissimo caelo para

salientar ainda mais as benesses dessa aacuterea Por conseguinte foram essas favoraacuteveis

caracteriacutesticas geograacuteficas e climaacuteticas que acalmaram os gauleses Aleacutem disso esse

enfraquecimento tambeacutem podia ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes

dos vizinhos Temos um novo alerta para os soldados da mesma forma que as

amenidades da Aacutesia e o conviacutevio com vizinhos paciacuteficos degeneraram os galos o

mesmo poderia acontecer com os romanos Por fim o discurso se encerra com mais um

exemplo dessa vez endereccedilado aos aliados os romanos superando os gauleses teriam

entre os aliados a mesma gloacuteria da guerra Essa luta mais do que mero sucesso militar

serviria tambeacutem como ferramenta importante para granjear o respeito das outras naccedilotildees

195

36 ndash Pliacutenio o Velho

361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis

O nome completo de Pliacutenio era Caio Pliacutenio Segundo ndash o tiacutetulo de ―Velho (ou

―Anciatildeo) foi dot do depois p r distingui-lo do seu sobrinho Pliacutenio o Jovem Pliacutenio

nasceu em Como por volta do ano 23 dC membro de uma abastada famiacutelia da ordem

equestre Em sua juventude comeccedilou sua carreira militar na Germacircnia entre os anos de

46 e 58 dC Segundo Conte (1999 p 497) a atividade nessa regiatildeo deu a Pliacutenio a ideia

de compor uma obra histoacuterica em vinte livros a Bella Germaniae que gozou de certo

sucesso e teria sido usada por Taacutecito como fonte para sua Germania Apoacutes a morte do

imperador Claacuteudio Pliacutenio retirou-se da vida puacuteblica devido ao conturbado periacuteodo de

Nero com a estabilidade poliacutetica do governo de Vespasiano Pliacutenio voltou a ter intensa

carreira como procurador imperial entre os anos de 70 e 76 dC e posteriormente

tornou-se conselheiro de Vespasiano e Tito (MURPHY 2004 p 4) Apesar de se

manter bastante ocupado com a administraccedilatildeo do impeacuterio Pliacutenio dedicou-se a escrever

vaacuterios trabalhos literaacuterios como a biografia de seu patrono Pompocircnio Segundo um

livro de teacutecnica de combate de cavalaria (De iaculatione equestri) um tratado sobre a

liacutengua latina (De dubio sermone) sobre a educaccedilatildeo do orador (Studiosi) e uma histoacuteria

romana do governo Juacutelio-Claacuteudio (A fine Aufidi Bassi) Infelizmente nenhuma dessas

obras citadas nos chegou apenas sobreviveu a Historia naturalis escrita entre 77 e 78

dC e dedicada ao novo imperador Tito Pliacutenio faleceu em 79 dC na erupccedilatildeo do

Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano385

De todos os trabalhos de Pliacutenio apenas a Historia naturalis nos chegou de forma

satisfatoacuteria Composta em trinta e sete livros Pliacutenio escreveu uma obra que por abordar

vaacuterios temas diferentes geralmente foi classificada como enciclopeacutedia Temos no livro

I a exposiccedilatildeo de Pliacutenio sobre os objetivos de sua obra No livro II ele falou dos astros e

dos elementos da natureza Nos quatro livros seguintes (III-VI) de caraacuteter geograacutefico

Pliacutenio descreveu a paisagem de vaacuterias regiotildees como a Europa o mundo helecircnico o

oriente proacuteximo e o extremo oriente O livro VII de caraacuteter etnograacutefico foi consagrado

385

Retiramos as informaccedilotildees biograacuteficas de Pliacutenio do livro de Conte (1999 p 497 e 498) Para as

informaccedilotildees sobre as obras perdidas de Pliacutenio usamos como referecircncia Murphy (2004 p 17) Para mais

informaccedilotildees sobre a vida de Pliacutenio e suas obras sob o prisma de Pliacutenio o Jovem cf o artigo de

Henderson (2002) Quanto agrave morte do erudito Pliacutenio o Jovem narrou esse acontecimento em duas cartas

endereccediladas a Taacutecito (Ep VI 16 e VI 20)

196

ao estudo das caracteriacutesticas do ser humano contendo vaacuterias narrativas fantaacutesticas de

humanos que possuiacuteam corpos totalmente fora do natural Os quatro livros seguintes

(VIII-XI) foram dedicados agrave descriccedilatildeo dos animais dezesseis livros (XII-XXVII) agrave

descriccedilatildeo dos vegetais principalmente das plantas medicinais cinco livros (XXVIII-

XXXII) dedicados ao estudo dos medicamentos natildeo vegetais e os dois uacuteltimos livros

satildeo sobre as rochas e pedras preciosas (XXXVI-XXXVII)

O tiacutetulo da Historia naturalis deveria ser traduzido mais como Conhecimento da

Natureza devido ao proacuteprio sentido do termo historia em grego O relato da morte de

Pliacutenio ndash narrado por Taacutecito em duas cartas (VI 16 e 20) ndash contribuiu para a fama de

cientista exemplar jaacute que ele perdeu a vida tentando observar o fenocircmeno natural da

erupccedilatildeo do Vesuacutevio Contudo Conte (1999 p 499) salienta

It should be said however th t Plinylsquos conception of science h s little of

experimental or empiric and that according to the account of the Younger

Pliny exposed himself to danger in order to bring aid to some citizens

threatened by the eruption The virtue that emerges from this noble death is

thus philanthropy and the spirit of service rather than thirst for knowledge

just the virtue that drove Pliny to the immense undertaking of the Naturalis

Historia a work intended in its entirely to be of service to mankind386

Conte (1999 p 500 e 501) considera que a Historia naturalis com sua vasta

apresentaccedilatildeo de vaacuterios temas representa a completa realizaccedilatildeo da tendecircncia cultural

romana de tratados ndash longos ou curtos ndash que sintetizavam vaacuterias abordagens como as

obras de Varratildeo Vitruacutevio Columela e posteriormente a Pliacutenio Quintiliano

362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder

A enciclopeacutedia como o conjunto de conhecimento compilado em uma soacute obra e

com a finalidade de ser consultada de forma independente foi uma inovaccedilatildeo romana

Embora os gregos tivessem escrito obras de encyclios paideia (daiacute o termo portuguecircs

enciclopeacutedia) na verdade esse tipo de composiccedilatildeo era mais dedicado a abarcar assuntos

de um mesmo tema como a retoacuterica a medicina etc387

Os gregos jamais buscaram

confinar todo o conhecimento em apenas um livro ou obra esse tipo de composiccedilatildeo

386

―Deve-se dizer contudo que a concepccedilatildeo de ciecircncia de Pliacutenio era pouco experimental ou empiacuterica e

que de acordo com o relato do Jovem Pliacutenio expocircs a si mesmo ao perigo de modo a ajudar alguns

cidadatildeos ameaccedilados pela erupccedilatildeo A virtude que emerge dessa nobre morte eacute portanto a filantropia e o

espiacuterito de serviccedilo muito mais do que a sede de conhecimento foi essa virtude que levou Pliacutenio a imensa

tarefa da Histoacuteria natural um trabalho feito inteir mente serviccedilo d hum nid de 387

O termo em grego encyclios paideia signific v ―educ ccedilatildeo ger l

197

floresceu em Roma e se justificou pela consolidaccedilatildeo do proacuteprio impeacuterio que cobria um

vasto territoacuterio e abarcava vaacuterias naccedilotildees e culturas foi a ambiccedilatildeo de alcanccedilar esses

horizontes que tornou possiacutevel esse tipo de narrativa (MURPHY 2004 p 195) As

enciclopeacutedias anteriores a Pliacutenio de que temos notiacutecia foram as Disciplinae

(Disciplinas) escritas por Marco Terecircncio Varratildeo no final da repuacuteblica romana e

tambeacutem as Artes de A Corneacutelio Celso datadas do principado de Tibeacuterio de ambas

temos apenas poucos fragmentos388

Contudo temos diferenccedilas entre o que se pode entender por enciclopeacutedia na

Antiguidade e atualmente No caso da Historia naturalis desde a sua concepccedilatildeo o

propoacutesito dessa obra foi o de servir como um material de consulta isso justifica o

grande tamanho do texto e a sua divisatildeo em temas (geografia botacircnica etc) Conte

(1999 p 502) lembra que ateacute a criaccedilatildeo das enciclopeacutedias modernas (com seu conteuacutedo

dividido por ordem alfabeacutetica e instruccedilotildees para facilitar o acesso agrave informaccedilatildeo) a

Historia naturalis foi um dos trabalhos mais bem organizados no sentido de facilitar

essa consulta Entretanto haacute uma discussatildeo acerca de se a Historia naturalis deve ou

natildeo ser classificada como enciclopeacutedia jaacute que esse termo soa anacrocircnico por causa do

uso atual que fazemos desse tipo de produccedilatildeo De fato a enciclopeacutedia eacute uma obra

autocircnoma que encapsula (ou busca encapsular) o total do conhecimento universal

organizando-o de forma a preservar esse conhecimento e o fazer acessiacutevel a uma grande

audiecircncia Uma observaccedilatildeo geral nos faz perceber que a Historia naturalis eacute bastante

diferente em termos de organizaccedilatildeo taxonomias e referenciais teoacutericos do que hoje

entendemos por enciclopeacutedia389

Assim neste trabalho preferimos considerar a obra de

Pliacutenio como erudiccedilatildeo Embora a Historia naturalis assim como uma enciclopeacutedia atual

busque preservar e abarcar o corpo do saber utilizando uma sistematizaccedilatildeo do

conhecimento todavia ela natildeo foi feita para ser simplesmente lida de forma universal

Como Murphy (2004 p 12) destaca essa composiccedilatildeo foi elaborada para a leitura de um

puacuteblico especiacutefico e sua forma foi feita de modo a ajudar o leitor a ter uma visatildeo de um

assunto e de isolaacute-lo de outros objetos Aleacutem disso o aspecto cientiacutefico da Historia

naturalis eacute muito mais produto de uma tradiccedilatildeo literaacuteria do que observaccedilatildeo direta de

388

Murphy (2004 p 196) fornece mais detalhes sobre essas enciclopeacutedias de Varratildeo e Celso 389

Murphy (2004 p 12 e ss) discute melhor o conceito de enciclopeacutedia (encyclios paideia) em contexto

latino e grego sendo que esse uacuteltimo era bastante diferente da concepccedilatildeo de enciclopeacutedia que temos hoje

em dia

198

Pliacutenio Ao inveacutes de experimentar ou analisar o que estava ao seu alcance Pliacutenio preferiu

recolher e citar descriccedilotildees de inuacutemeros autores anteriores (MURPHY 2004 p 5)390

As enciclopeacutedias tanto as atuais quanto as antigas mais do que depositaacuterios do

saber serviam tambeacutem como importantes ferramentas para se perceber como a cultura

de um povo transparecia Como Murphy (2004 p 1) define a estrutura de uma

enciclopeacutedia e suas estrateacutegias praacuteticas para classificar o conhecimento deixam entrever

as concepccedilotildees da cultura a que pertence o autor desse trabalho Pelo simples fato de

incluir ou excluir uma informaccedilatildeo podemos perceber o que era considerado importante

ou natildeo ou o que era de conhecimento oacutebvio para a audiecircncia dessas composiccedilotildees

Tambeacutem eacute possiacutevel notar que a enciclopeacutedia (e a erudiccedilatildeo) tinha uma funccedilatildeo poliacutetica e

cultural ao se repetir e apresentar informaccedilotildees fundamentais de uma sociedade temos

necessariamente a existecircncia de uma comunidade de leitores que partilhavam de uma

mesma identidade unida pela aceitaccedilatildeo de certos conceitos elementares de valor

cultural (MURPHY 2004 p 16) Assim a funccedilatildeo da enciclopeacutedia era estabelecer a

identidade de seus leitores como participantes de uma mesma cultura No caso da

Historia naturalis mais do que o conhecimento fornecido podemos entrever como os

romanos do seacuteculo I dC percebiam o mundo391

Por conseguinte aleacutem de estabelecer uma identidade cultural com seu puacuteblico

notamos que o caraacuteter poliacutetico nas obras de Pliacutenio era muito forte devido agraves proacuteprias

funccedilotildees administrativas exercidas por ele tanto em Roma junto aos imperadores quanto

nos confins das proviacutencias Como lembra Murphy (2004 p 5) Pliacutenio observou de perto

como o governo central se organizava e se transmitia em vastas distacircncias ele tambeacutem

viu como o conhecimento da periferia era usado localmente e tambeacutem como esse se

relacionava com Roma A Historia naturalis portanto refletiu como o domiacutenio romano

uniu o mundo e tornou possiacutevel a sua observaccedilatildeo A respeito do tratamento dos povos

estrangeiros na Historia naturalis temos vaacuterias passagens etnograacuteficas mas elas natildeo

possuem uma sequecircncia particular ou conexotildees loacutegicas entre si satildeo trechos pontuais

390

Murphy (2004 p 6 e 11) detalha quais foram as inuacutemeras fontes de Pliacutenio e faz uma discussatildeo sobre

como esses autores afetaram o trabalho do autor latino 391

A discussatildeo aqui se aprofunda no sentido de que falamos de uma obra escrita e dirigida a uma

pequena elite letrada Devemos lembrar tambeacutem que o proacuteprio Pliacutenio foi um autor do centro do poder

romano e que exerceu vaacuterios cargos puacuteblicos tanto na Urbe quanto nas proviacutencias e isso teve impacto em

sua composiccedilatildeo erudita Por fim pontuamos que Pliacutenio utilizou vaacuterias fontes gregas e latinas para a sua

Histoacuteria natural e por isso mais do que a percepccedilatildeo de mundo dos romanos do seacuteculo I dC podemos

notar ainda como as fontes ndash ou de forma geral a literatura claacutessica ndash percebiam esse mesmo mundo Por

essas raacutepidas questotildees levantadas nos concentraremos aqui em perceber como essas percepccedilotildees foram

consolidadas a respeito dos gauleses que eacute o cerne deste trabalho

199

que aparecem ao longo de toda a obra (MURPHY 2004 P 87) O proacuteprio estilo da

enciclopeacutedia natildeo idealiza muito o estrangeiro e a Historia naturalis tambeacutem natildeo faz

isso De fato segundo Murphy (2004 p 194) a Historia naturalis era um instrumento

de comunicaccedilatildeo de poder o objetivo de elencar o conhecimento de todos os campos da

dominaccedilatildeo romana e apresentar o conteuacutedo para ser apreciado por uma elite letrada

tudo isso servia como o respaldo textual de um vasto impeacuterio conhecido e governado Eacute

interessante perceber como Pliacutenio ao se empenhar em deixar registrados em sua obra

inuacutemeros saberes fez exatamente o oposto dos gauleses que de forma alguma

confiavam seus importantes preceitos agrave escrita por medo de que eles ficassem

acessiacuteveis a qualquer um Ceacutesar sobre esse comportamento do gaulecircs registrou (BGall

VI 14)

Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX

in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum

in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur

Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum

disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus

memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum

diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant

Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como geralmente

nos demais assuntos ndash e quanto aos registros puacuteblicos e privados utilizam-se

das letras gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado por dois motivos por

natildeo querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem

confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio

sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a

dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado

A Historia naturalis portanto natildeo tinha apenas o objetivo de instruir ou

informar mas tambeacutem o de colocar o mundo natural ao alcance do leitor demonstrando

e demarcando as fronteiras do conhecimento desse mundo conhecido (MURPHY 2004

p 211) Ela tambeacutem natildeo tinha propoacutesito didaacutetico nem visava a ser um guia para uma

accedilatildeo concreta ndash fosse ela militar diplomaacutetica ou administrativa (MURPHY 2004 p

213)

363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis

Todas as etnografias que aparecem na Historia naturalis podem ser resumidas

nas seguintes categorias descriccedilatildeo dos limites do conhecimento geograacutefico descriccedilatildeo

dos extremos do corpo humano ilustraccedilatildeo da interaccedilatildeo do homem com os produtos da

200

natureza e comportamentos econocircmicos natildeo romanos que por contraste definem o

comportamento romano (MURPHY 2004 p 213) Pliacutenio natildeo se propotildee a narrar os

costumes haacutebitos e cultura de outros povos como veremos mais adiante392

As naccedilotildees

escolhidas por Pliacutenio para essas passagens etnograacuteficas geralmente eram as que

habitavam nos limites do mundo conhecido e que despertavam a curiosidade da

audiecircncia como os etiacuteopes e os indianos mas mesmo essas passagens se limitavam a

descriccedilotildees exageradas dos corpos humanos dessas naccedilotildees ou a outros aspectos

maravilhosos e exoacuteticos Segundo Yasmin Syed (In HARRISON 2005 p 363) essa

passagem da etnografia indiana servia mais para Pliacutenio marcar os limites entre os

humanos normais (que habitavam o mundo conhecido e governado por Roma) e as

raccedilas consideradas monstruosas deformadas ou com caracteriacutesticas sobrehumanas que

estavam aleacutem desse mundo No caso dos gauleses Pliacutenio fez poucas consideraccedilotildees

sobre eles jaacute que na segunda metade do seacuteculo I dC as proviacutencias dessa regiatildeo se

encontravam estabelecidas e inseridas na cultura romana e portanto eles natildeo eram mais

alvo do interesse do puacuteblico

Os livros III e IV da Historia naturalis satildeo dedicados a narrar a geografia do

mundo conhecido desde as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) passando pela

Europa mediterracircnea fornecendo detalhes do relevo e das cidades da Gaacutelia Hispacircnia e

outras dessas aacutereas O primeiro trecho que destacamos aqui eacute o III 5 (4)

V (4) ndash 31 Narbonensis prouincia appellatur pars Galliarum quae interno

mari adluitur Bracata antea dicta amne Varo ab Italia discreta Alpiumque

uel saluberrimis Romano imperio iugis a reliqua uero Gallia latere

septentrionali montibus Cebenna et Iuribus agrorum cultu uirorum

morumque dignatione amplitudine opum nulli prouinciarum postferenda

breuiterque Italia uerius quam prouincia 32 In ora regio Sordonum intusque

Consuaranorum flumina Tecum Vernodubrum oppida Illiberis magnae

quondam urbis tenue uestigium Ruscino Latinorum flumen Atax e Pyrenaeo

Rubrensem permeans lacum Narbo Martius Decumanorum colonia XII p a

mari distans flumina Araris Liria Oppida de cetero rara praeiacentibus

stagnis 33 Agatha quondam Massiliensium et regio Volcarum Tectosagum

atque ubi Rhoda Rhodiorum fuit unde dictus multo Galliarum fertilissimus

Rhodanus amnis ex Alpibus se rapiens per Lemannum lacum segnemque

deferens Ararim nec minus se ipso torrentes Isaram et Druentiam Libica

appellantur duo eius ora modica ex his alterum Hispaniense alterum

Metapinum tertium idemque amplissimum Massalioticum Sunt auctores et

Heracleam oppidum in ostio Rhodani fuisse 34 Vltra fossae ex Rhodano C

Mari opere et nomine insignes stagnum Mastromela oppidum Maritima

Auaticorum superque Campi Lapidei Herculis proeliorum memoria regio

Anatiliorum et intus Dexiuatium Cauarumque rursus a mari Tricorium et

intus Tritollorum Vocontiorumque et Segouellaunorum mox Allobrogum At

in ora Massilia Graecorum Phocaeensium foederata promunturium Zao

Citharista portus regio Camactulicorum dein Suelteri supraque Verucini

392

Abordaremos sobre esse aspecto na anaacutelise do trecho da HN III 6 (5) na p 204-205

201

35 In ora autem Athenopolis Massiliensium Forum Iuli Octauanorum

colonia quae Pacensis appellatur et Classica amnis nomine Argenteus

regio Oxubiorum Ligaunorumque super quos Suebri Quariates Adunicates

At in ora oppidum Latinum Antipolis regio Deciatium amnis Varus ex

Alpium monte Caenia profusus 36 In mediterraneo coloniae Arelate

Sextanorum Baeterrae Septimanorum Arausio Secundanorum in agro

Cauarum Valentia Vienna Allobrogum Oppida Latina Aquae Sextiae

Salluuiorum Auennio Cauarum Apta Iulia Vulgientium Alebaece Reiorum

Apollinarium Alba Heluorum Augusta Tricastinorum Anatilia Aerea

Bormani Comani Cabellio Carcasum Volcarum Tectosagum Cessero

Carbantorate Meminorum Caenicenses Cambolectri qui Atlantici

cognominantur 37 Forum Voconi Glanum Libii Luteuani qui et

Foroneronienses Nemausum Arecomicorum Piscinae Ruteni Samnagenses

Tolosani Tectosagum Aquitaniae contermini Tasgoduni Tarusconienses

Vmbranici Vocontiorum ciuitatis foederatae duo capita Vasio et Lucus

Augusti oppida uero ignobilia XVIIII sicut XXIIII Nemausiensibus

adtributa Adiecit formulae Galba Imperator ex Inalpinis Auanticos atque

Bodionticos quorum oppidum Dinia Longitudinem prouinciae Narbonensis

CCCLXX p Agrippa tradit latitudinem CCXLVIII

V (4) ndash 31 Eacute chamada de proviacutencia Narbonense a regiatildeo das Gaacutelias que eacute

banhada pelo mar interno393

ntes conhecid por ―Gaacuteli de c lccedil s 394

Ela

estaacute separada da Itaacutelia pelo rio Var e pelos cumes dos Alpes ndash que tecircm sido

muitiacutessimo vantajosos para o impeacuterio romano Pelo lado setentrional ela se

divide do resto da Gaacutelia pelos montes das Cevenas e do Jura395

Devido agrave

cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e pela

amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutencia na verdade ela eacute mais Itaacutelia que proviacutencia 32 Pelos litorais haacute a

regiatildeo dos sordones396

e mais adentro o domiacutenio dos consuaranos397

os rios

Tech e Verdouble as povoaccedilotildees dos iliberris398

ndash um pequeno vestiacutegio do

que um dia fora uma grande cidade ndash e Ruscino399

dos latinos o rio Aude

que desce dos Pirineus e atravessa o lago Rubrense400

Narbo Maacutercio401

ndash

colocircnia da deacutecima legiatildeo402

distante doze milhas do mar os rios Aacuterar403

e

Liria404

De resto as cidades satildeo raras devido aos pacircntanos que se situam

proacuteximos 33 Haacute a cidade de Aacutegata405

que um dia foi dos marselheses o

territoacuterio dos volcos tectoacutesagos406

e ainda o local onde existiu a colocircnia Roda

dos roacutedios ndash de onde vem o nome do rio Roacutedano de longe o mais copioso

393

Outra denominaccedilatildeo do mar Mediterracircneo 394

Ciacutecero se referiu pejorativamente aos gauleses dizendo que eles usavam saiotes e calccedilas (cf p 72) 395

Pliacutenio citou muitas localidades rios e montanhas na Histoacuteria Natural e isso acarreta uma dificuldade

para a traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees Por isso sempre que possiacutevel manteremos o nome portuguecircs (ou no caso

francecircs) dessas paragens e colocaremos em nota de rodapeacute o nome atual de modo que fique mais faacutecil ao

leitor deste trabalho localizar essas localidades em um mapa O mesmo tambeacutem seraacute feito sobre as naccedilotildees

mencionadas No caso de lugares (ou naccedilotildees) em que natildeo haacute um consenso ou que natildeo eacute possiacutevel saber a

atual correspondecircncia faremos somente a transliteraccedilatildeo do nome latino para o portuguecircs Para essas notas

utilizamos como referecircncia a traduccedilatildeo da Histoacuteria natural public d pel Gredos e o site ―Digit l Atl s of

the Rom n empire el bor do pelo dep rt mento de rqueologi e histoacuteri ntig d Universid de Lund

(Sueacutecia) disponiacutevel em lt httpdarehtluse gt 396

Eles habitavam o Roussillon perto dos Pirineus na atual Franccedila 397

Conserans no oeste do Deacutepartement de l Arrieacutege tambeacutem na Franccedila 398

atual Elne 399

Chacircteau-Roussillon 400

Etangs de Bages et de Sigean 401

Narbonne 402

Pliacutenio aqui seguiu a divisatildeo das colocircnias militares estabelecidas por Ceacutesar cf p 152 403

Rio Heacuterault 404

Lez 405

Agde 406

Citados por Ceacutesar no BGall VI 24 (p 128)

202

das Gaacutelias Eacute esse rio que desde os Alpes passa com forccedila pelo lago Lemano

e se mistura ao vagaroso Aacuterar e agraves torrentes dos rios Isara407

e Druecircncia408

natildeo menos impetuosas que ele mesmo As suas duas embocaduras menores

satildeo ch m d s de ―liacutebic s sendo um del s hisp niense e outr met pin

a terceira embocadura que eacute a maior eacute chamada de massaliota Haacute autores

que dizem ter existido uma cidade chamada Heracleia na foz do Roacutedano409

34 Mais aleacutem estatildeo os canais que saem do Roacutedano obra de Caio Maacuterio e

conhecidos pelo seu nome o lago Mastromela a cidade Mariacutetima dos

avaacuteticos e acima as Planiacutecies Pedregosas uma lembranccedila dos combates de

Heacutercules Tem-se a regiatildeo dos anatiacutelios e no interior a regiatildeo dos dexivates e

dos cavaros de novo junto ao mar a aacuterea dos tricoacuterios e no interior estatildeo os

tritolos os vococircncios e os segovelaunos depois desses os aloacutebroges410

No

litoral haacute Marselha dos gregos foacutecios e nossa aliada411

o cabo Zao o porto

de Citarista a regiatildeo dos camactuacutelicos depois estatildeo os suelteros e acima os

verucinos 35 Ainda no litoral haacute Atenoacutepolis dos marselheses o Foacuterum de

Juacutelio colocircni d oit v legiatildeo que t mbeacutem eacute ch m d de ―P cense e

―Claacutessic 412

haacute um rio de nome Argecircnteo413

a regiatildeo dos oxuacutebios e dos

ligaunos e acima desses os suebros os quariates e os adunicates No litoral

haacute a cidade latina414

de Antiacutepolis415

a regiatildeo dos deciatos e o rio Var que

desce do monte Cenia dos Alpes416

36 No interior haacute as colocircnias de

Arelate417

da sexta legiatildeo Beterras418

da seacutetima e Araacuteusio419

da segunda420

No territoacuterio cavaro estaacute Valencia421

e no territoacuterio dos aloacutebroges Viena422

Depois as cidades latinas de Aacutegua Sexta423

(no territoacuterio) dos saluacutevios424

Avecircnio425

dos cavaros Apta Juacutelia426

dos vulgientes Alebece427

dos reios

apolinaacuterios Alba dos heacutelvios Augusta dos tricastinos Anatiacutelia Aerea428

e

ainda os bormanos os comanos a povoaccedilatildeo de Cabeacutelio429

Carcaso430

dos

407

Isegravere 408

Durance 409

Segundo o dicionaacuterio de Ernesto Faria Heracleia era o nome dado agraves cidades fundadas por Heacuteracles

contudo essa cidade mencionada na Franccedila natildeo apareceu em nenhum outro autor da antiguidade e o

proacuteprio Pliacutenio duvida de sua existecircncia 410

Os aloacutebroges jaacute apareceram algumas vezes ao longo desta pesquisa Foi essa naccedilatildeo que acusou Fonteio

de maacute gestatildeo no governo da Gaacutelia e representada de forma tatildeo desrespeitosa no Pro Fonteio de Ciacutecero

(cf p 68 e ss) Os mesmos aloacutebroges vatildeo ser elogiados por Ciacutecero jaacute que denunciaram a conjuraccedilatildeo de

Catilina (cf p 75) 411

Nota-se que na eacutepoca de Pliacutenio Marselha voltou a ser aliada dos romanos Ceacutesar tinha rebaixado o

status da cidade durante a guerra civil com Pompeu (cf p 152) 412

Forum Iulii eacute a atual Freacutejus o nome Pacensis deve ter sido dado por causa de algum tratado de paz

feita com os habitantes locais Jaacute o termo Classica se justifica pelo fato de uma frota naval que ficou

estacionada por laacute a mando de Augusto 413

Argens 414

Ou seja possuidora de direito latino 415

Antibes 416

Monte Cemelione 417

Arles 418

Beziers 419

Orange 420

Cf p 152 sobre essas colocircnias militares 421

Valence 422

Vienne 423

Aix 424

Foi essa naccedilatildeo que Liacutevio erroneamente chamou de saacutelvios (cf nota 325 p 163) 425

Avignon 426

Apt 427

Riez 428

Eacuterea 429

Cavaillon 430

Carcassone

203

volcos tectoacutesagos Cessero Carbantorate431

dos meminos os cenicenses os

c mbolectros que satildeo ch m dos de ― tlacircnticos 37 Foacuterum Vocono Glano

os liacutebios os lutevanos432

tambeacutem conhecidos como foroneronienses

Nemauso433

dos arecocircmicos Piscinas434

os rutenos os samnagenses os

tolosanos tectoacutesagos vizinhos agrave Aquitacircnia os tasgodunos os tarusconienses

os umbracircnicos as duas capitais do domiacutenio aliado dos vococircncios Vaacutesio435

e

Luco de Augusto Na verdade haacute tambeacutem dezenove cidades de pouca

importacircncia assim como outras vinte e quatro pertencentes aos nemaacuteusios O

imperador Galba acrescentou a essa categoria dentre os habitantes dos Alpes

os avacircnticos e os bodiocircnticos cuja cidade eacute Diacutenia436

Segundo Agripa a

proviacutencia Narbonense tem trezentas e setenta milhas de comprimento e

duzentas e quarenta e oito milhas de largura (grifos nossos)

Nesse capiacutetulo temos a descriccedilatildeo da proviacutencia da Gaacutelia Narbonense Pliacutenio

escreveu que ―devido agrave cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e

pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci (Italia uerius quam prouincia)

Um pouco mais agrave frente em III 5 32 temos que Narbo Maacutercio foi colocircnia da deacutecima

legiatildeo Se na eacutepoca de Ceacutesar essa cidade ficou conhecida por ser o local escolhido para

abrigar esse destacamento militar na eacutepoca de Pliacutenio vemos que Narbonne jaacute gozava de

um status iacutempar sendo considerada por um autor latino como sendo parte da proacutepria

Itaacutelia De fato Narbonne influenciada pela Greacutecia desde os seus primoacuterdios possuidora

de um clima parecido com o da Itaacutelia e devido a sua alianccedila antiga com Roma tornou

possiacutevel esse elogio

Como Carey (2003 p 34) lembra dentro dessas listas de cidades e naccedilotildees tudo

eacute definido de acordo com o relacionamento desses pontos com Roma Assim no sect35 a

cidade de Antiacutepolis eacute mencionada como possuidora do direito latino Especialmente no

sect36 temos as menccedilotildees agraves cidades de Arelate (colocircnia da sexta legiatildeo) Beterras (da

seacutetima) e Araacuteusio (da segunda) Ainda segundo Carey (2003 p 34) taxonomia e

impeacuterio portanto se tornam uma coisa soacute no relato de Pliacutenio e o proacuteprio processo de

listar eacute igual agrave conquista Isso tambeacutem justifica o fato de Pliacutenio ter escrito no sect37 que haacute

―t mbeacutem dezenove cid des de pouc importacircnci ssim como outr s vinte e qu tro

pertencentes os nemaacuteusios ou sej cid des de pouc importacircnci p r Rom e que

natildeo se enquadram na catalogaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial437

431

Carpentras 432

Da atual Lodegraveve 433

Nicircmes 434

Peacutezenas 435

Vaison 436

Digne 437

Carey (2003 p 34-36) aprofunda essa discussatildeo sobre a questatildeo do que era incluiacutedo (ou excluiacutedo)

desses cataacutelogos e como isso se relacionava agrave poliacutetica de conquista romana durante a eacutepoca de Pliacutenio

204

Em obras de caraacuteter enciclopeacutedico como a proacutepria Historia naturalis ou a

Geografia de Estrabatildeo eacute possiacutevel ver como o avanccedilo do impeacuterio romano levou a uma

espeacutecie de ―inventaacuterio do mundo dos seus povos e costumes ssim ―conhecer o mundo

habitado era uma condiccedilatildeo para dominaacute-lo e vice vers (GUARINELLO 2014 p 307)

Nos livros III a VI da Historia naturalis o objetivo de Pliacutenio foi o de fazer uma pesquisa

sobre o orbis terrarum (o mundo conhecido) e temos a completa enumeraccedilatildeo das suas

partes (MURPHY 2004 P 129)438

Essas catalogaccedilotildees de uma regiatildeo visavam a dar ao

leitor um panorama geral da aacuterea em questatildeo isso ocorria muito em obras de retoacuterica e

historiografia antiga e tais descriccedilotildees geograacuteficas tinham implicaccedilotildees poliacuteticas

sobretudo em termos de estabelecimento de impeacuterio e identidade cultural

Nos capiacutetulos iniciais do livro III Pliacutenio descreveu a Europa desde o oceano

Atlacircntico (III 2) passando pela Beacutetica (III 3) Hispacircnia Citerior (III 4) e a Narbonense

(III 5) citada no trecho acima Notamos que Pliacutenio foi aproximando sua descriccedilatildeo

geograacutefica ateacute o que ele considerava como o centro do continente europeu ndash de fato

apoacutes a descriccedilatildeo da Gaacutelia Narbonense temos a exposiccedilatildeo da proacutepria Itaacutelia Assim temos

na Historia naturalis a passagem de III 6 (5)

VI (5) ndash 38 Italia dehinc primique eius Ligures mox Etruria Vmbria

Latium ibi Tiberina ostia et Roma terrarum caput XVI p interuallo a mari

Volscum postea litus et Campaniae Picentinum inde ac Lucanum

Bruttiumque quo longissime in meridiem ab Alpium paene lunatis iugis in

maria excurrit Italia Ab eo Graeciae ora mox Salentini Poeduculi Apuli

Peligni Frentani Marrucini Vestini Sabini Picentes Galli Vmbri Tusci

Veneti Carni Iapudes Histri Liburni 39 Nec ignoro ingrati ac segnis animi

existimari posse merito si obiter atque in transcursu ad hunc modum dicatur

terra omnium terrarum alumna eadem et parens numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret sparsa congregaret imperia ritusque molliret et

tot populorum discordes ferasque linguas sermonis commercio contraheret

ad conloquia et humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum

gentium in toto orbe patria fieret 40 Sed quid agam Tanta nobilitas

omnium locorum quos quis attigerit tanta rerum singularum populorumque

claritas tenet Vrbs Roma uel sola in ea et digna iam tam festa ceruice facies

quo tandem narrari debet opere Qualiter Campaniae ora per se felixque illa

ac beata amoenitas ut palam sit uno in loco gaudentis opus esse naturae 41

Iam uero tota ea uitalis ac perennis salubritas talis caeli temperies tam

fertiles campi tam aprici colles tam innoxii saltus tam opaca nemora tam

munifica siluarum genera tot montium adflatus tanta frugum uitiumque et

olearum fertilitas tam nobilia pecudi uellera tam opima tauris colla tot

lacus tot amnium fontiumque ubertas totam eam perfundens tot maria

portus gremiumque terrarum commercio patens undique et tamquam

iuuandos ad mortales ipsa auide in maria procurrens 42 Neque ingenia

438

Murphy (2004 p 131) explica que geralmente essa geografia conceitual se dava em cinco modelos

imaginativos descrever a regiatildeo como um itineraacuterio de uma jornada de mar a mar imaginar a vista de um

ponto alto enumerar zonas definidas por seu clima e solo tiacutepico elencar dos lugares mais proacuteximos aos

mais distantes dos romanos e por fim a realizaccedilatildeo de um esquema geomeacutetrico descrevendo simetrias e

formatos de terras ou rios

205

ritusque ac uiros et lingua manuque superatas commemoro gentes Ipsi de ea

iudicauere Grai genus in gloriam sui effusissimum quotam partem ex ea

appellando Graeciam Magnam Nimirum id quod in caeli mentione fecimus

hac quoque in parte faciendum est ut notas quasdam et pauca sidera

attingamus Legentes tantum quaeso meminerint ad singula toto orbe

edissertanda festinari () 439

VI ndash 38 Em seguida haacute a Itaacutelia e os primeiros dela satildeo os liacutegures depois haacute a

Etruacuteria a Uacutembria o Laacutecio e nesse lugar a foz do Tibre e Roma capital do

mundo distante dezesseis milhas do mar Depois haacute os litorais dos volscos e

da Campacircnia o litoral de Piceno e mais adiante as costas da Lucacircnia440

e de

Bruacutetio441

a partir da cadeia de montanhas dos Alpes em forma de meia lua

esse eacute o lugar mais ao sul no qual a Itaacutelia se estende ateacute os mares Desse

ponto haacute os litorais da Magna Greacutecia depois os salentinos os pediacuteculos os

aacutepulos os peliacutegnos os frentanos os marrucinos os vestinos os sabinos os

picenos os gauleses os uacutembrios os etruscos os vecircnetos os carnos os

iaacutepides os istros e os liburnos442

39 Natildeo ignoro que eu possa ser acusado de

conduta negligente e de espiacuterito fraco devido a essa maneira de descrever

raacutepida e resumidamente essa mesma terra que eacute filha e matildee de todas as terras

escolhida pela vontade dos deuses para tornar o proacuteprio ceacuteu mais glorioso

reunir os impeacuterios dispersos abrandar os costumes juntar as liacutenguas

diferentes e selvagens de tantos povos em um idioma comum para os

diaacutelogos conceder humanidade ao homem e em suma ser no mundo todo a

uacutenica paacutetria de todos os povos 40 Mas como a descreverei Quem poderia

enumerar a enorme nobreza de todos os lugares e a grande fama de cada

uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma

cabeccedila digna de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser narrada

Tambeacutem o litoral da Campacircnia por si mesmo feacutertil e de rica amenidade que

claramente em um soacute lugar estaacute tudo o que eacute necessaacuterio para uma natureza

exuberante 41 De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene

grande equiliacutebrio do clima campos muito feacuterteis colinas bastante

ensolaradas bosques bastante intactos muitas florestas sombreadas

inuacutemeros tipos generosos de matas vaacuterios ventos dos montes enorme

fertilidade de frutos das videiras e das oliveiras tatildeo nobres velos dos

animais muitas nucas gordas de touros tantos lagos tamanha abundacircncia

de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia tantos mares portos e o seio

das terras que se abre ao comeacutercio por todos os lados e que avanccedila de tal

forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios mares 42 Natildeo falarei

sobre os engenhos costumes homens e povos vencidos pela liacutengua e pela

luta Os proacuteprios gregos ndash um povo muito dissipado em sua gloacuteria ndash assim o

fizeram ao chamar uma pequena parte da Itaacutelia de Magna Greacutecia

Certamente isso tambeacutem deve ser feito nessa parte ndash como jaacute fizemos na

descriccedilatildeo do ceacuteu ndash de modo que atinjamos certos indiacutecios e poucos astros

Peccedilo aos leitores que se recordem que acelerei as descriccedilotildees de cada coisa

sobre todo o mundo (grifos nossos)

Pliacutenio comeccedilou esse capiacutetulo enumerando as regiotildees da Itaacutelia considerada o

centro da Europa e Roma o centro do mundo (terrarum caput) A partir do sect39 ele

passa a elogiar a Itaacutelia Pliacutenio da mesma forma que Liacutevio tambeacutem usa a justificativa

439

A partir desse ponto Pliacutenio faz apenas descriccedilotildees de caraacuteter geograacutefico da Itaacutelia dos seus rios e suas

cidades mais importantes 440

Atual Basilicata 441

Calaacutebria 442

Temos a enumeraccedilatildeo das regiotildees seguindo a partir da costa do mar Tirreno no sentido Norte-Sul e a

partir de entatildeo no sentido Sul-Norte seguindo a costa do mar Adriaacutetico Vemos que a descriccedilatildeo da Itaacutelia eacute

ampla abarcando regiotildees que vatildeo ateacute a bacia do rio Poacute os Alpes e a peniacutensula da Iacutestria Esse tipo de

descriccedilatildeo como se fosse ―sobrevo ndo regiatildeo er ch m d de periplum (peacuteriplo)

206

divin p r explic r o domiacutenio rom no dizendo que ess terr foi ―escolhid pel

vont de dos deuses p r torn r o proacuteprio ceacuteu m is glorioso (numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret)443

Temos na sequecircncia o papel moral do povo romano de

―reunir os impeacuterios dispersos br nd r os costumes junt r s liacutengu s diferentes e

selvagens de t ntos povos em um idiom comum p r os diaacutelogos Podemos consider r

como o trecho mais significativo a passagem em que Pliacutenio disse que o romano deveria

―conceder hum nid de o homem e em sum ser no mundo todo uacutenic paacutetri de

todos os povos (humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum gentium in toto

orbe patria fieret) Como mencionamos antes a respeito de Liacutevio percebemos a

significativa mudanccedila da mentalidade imperialista romana Se ateacute o seacuteculo I aC o

imperialismo e a conquista se justificavam pela legitimidade e honestidade do povo

romano a partir do final da Repuacuteblica esse pensamento passa a ser fundamentado no

direito divino444

Notamos ainda que em Pliacutenio o romano passa a ter tambeacutem a

obrig ccedilatildeo de ―civiliz r os povos conquist dos ao dizer que Roma deveria abrandar os

costumes de todos os povos juntar as liacutenguas selvagens conceder humanidade

(humanitas) o homem e ser ― uacutenic paacutetri de todos os povos 445

Em seguida Pliacutenio

question ―quem poderi enumer r enorme nobrez de todos os lugares e a grande

fama de cada uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma

c beccedil dign de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser n rr d Esse eacute

mais um ponto que justifica o imperialismo romano aleacutem da vontade divina os

italianos possuiacuteam enorme nobreza de todos os lugares e a fama dos povos

No sect41 Pliacutenio enumera todas as riquezas naturais devidas ao clima ameno da

Itaacutelia a fertilidade dos campos os rebanhos saudaacuteveis e a abundacircncia de aacutegua tudo de

acordo com a teoria hipocraacutetica446

No sect42 Pliacutenio deixa claro que natildeo se ocuparaacute de

etnogr fi dizendo ―natildeo falarei sobre os engenhos costumes homens e povos

vencidos pel liacutengu e pel lut como ele deix cl ro no fin l dess p ss gem su

preocupaccedilatildeo eacute sobretudo as descriccedilotildees de cada coisa sobre todo o mundo (ad singula

443

Cf p 161 e nota 322 deste trabalho 444

A esse respeito cf o subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da

expansatildeo imperialista) especialmente p 96 445

Carey (2003 p 35 e 36) aprofunda essa anaacutelise do elogio da Itaacutelia e suas implicaccedilotildees em termos

poliacuteticos e imperialistas 446

Cf p 32 e 33 Segundo Hipoacutecr tes s regiotildees m is dist ntes do ―centro do mundo (que p r ele er

a Greacutecia) possuiacuteam climas ou severos demais (que tornavam os habitantes dessas aacutereas mais brutos e

fortes) ou suaves em demasia (o que deixava os indiviacuteduos moles e fracos) No centro do mundo que em

contexto latino passou a ser Roma o clima era temperado entre estaccedilotildees severas e amenas por

conseguinte as pessoas tambeacutem possuiacuteam compleiccedilotildees fiacutesicas e morais moderadas eram fortes sem

serem estuacutepidas e suaves sem serem fraacutegeis

207

toto orbe edissertanda festinari) Veremos mais adiante que Pliacutenio cumpre esse

propoacutesito Ao falar das Gaacutelias ele apenas mencionou a geografia rios cidades e naccedilotildees

dessas regiotildees de fato haacute pouquiacutessimas passagens de cunho etnograacutefico Assim temos

o seguinte trecho no livro IV 17 (31)

XVII (31) ndash 105 Gallia omnis Comata uno nomine appellata in tria

populorum genera diuiditur amnibus maxime distincta A Scalde ad

Sequanam Belgica ab eo ad Garunnam Celtica eademque Lugdunensis inde

ad Pyrenaei montis excursum Aquitanica Aremorica antea dicta Vniversam

oram XVIIL Agrippa Galliarum inter Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum

ac montes Cebennam et Iures quibus Narbonensem Galliam excludit

longitudinem CCCCXX latitudinem CCCXVIII computauit 106 A Scaldi

incolunt extera Texuandri pluribus nominibus dein Menapi Morini ora

Marsacis iuncti pago qui Gesoriacus uocatur Britanni Ambiani Bellouaci

Bassi Introrsus Catoslugi Atrebates Nerui liberi Veromandui Suaeuconi

Suessiones liberi Vlmanectes liberi Tungri Sunuci Frisiauones Baetasi

Leuci liberi Treueri liberi antea et Lingones foederati Remi foederati

Mediomatrici Sequani Raurici Helueti coloniae Equestris et Raurica

Rhenum autem accolentes Germaniae gentium in eadem prouincia Nemetes

Triboci Vangiones in Vbis colonia Agrippinensis Guberni Bataui et quos in

insulis diximus Rheni

XVII (31) ndash 105 Toda a Gaacutelia que eacute chamada pelo uacutenico nome de Cabeluda

se divide em trecircs raccedilas de povos separadas sobretudo por meio de rios447

Do rio Escalda ateacute o Sena haacute a Gaacutelia Beacutelgica do Sena ateacute o Garona a Gaacutelia

Ceacuteltica ou Lugdunense de laacute ateacute o promontoacuterio dos montes Pireneus haacute a

Gaacutelia Aquitacircnia antes chamada de Armoacuterica448

Agripa calculou toda a costa

das Gaacutelias em mil setecentas e cinquenta milhas entre o Reno e os Pireneus e

entre o oceano e os montes das Cevenas e do Jura dos quais se exclui a Gaacutelia

Narbonense haacute uma extensatildeo de quatrocentas e vinte milhas e uma largura

de trezentas e dezoito milhas 106 Ao exterior do Escalda habitam os

toxandros de muitos nomes depois haacute os menaacutepios na praia haacute os moacuterinos

que satildeo proacuteximos aos marsaacutecios por um povoado que eacute chamado de

Gesoriaco449

os britanos os ambianos os beloacutevacos e os bassos No interior

estatildeo os catoslugos os atreacutebates os livres neacutervios os veromacircnduos os

suaeuconos os suessiotildees livres os ulmanectes livres os tungros os sunucos

os frisiabotildees os betasos os livres leucos os treacuteveros outrora livres os

aliados liacutengones os remos aliados os mediomaacutetricos os seacutequanos os

raacuteuricos os helveacutecios e as colocircnias Equestre e Raacuteurica Haacute ainda os

habitantes dos povos da Germacircnia que estatildeo proacuteximos ao Reno nessa mesma

proviacutencia estatildeo os necircmetes os tribocos e os vangiacuteones dentre os uacutebios haacute a

colocircnia de Agripina450

os gubernos os batavos e os que jaacute mencionamos

sobre as ilhas do Reno (grifos nossos)

Nesse trecho notamos que os rios desempenham duas funccedilotildees a primeira e

principal delas era servir de linhas que dividem e marcam fronteiras separando um

447

Pliacutenio fez uma descriccedilatildeo que obviamente ressoa o famosiacutessimo proecircmio do BGall de Ceacutesar (cf

p129) 448

Armoacuterica do ceacuteltico Ar mor significava junto ao mar Sobre o estabelecimento dessas quatro

proviacutencias gaulesas por Augusto cf p 152 449

Atual Boulogne-sur-Mer 450

Colocircnia na atual Alemanha

208

espaccedilo do outro a segunda era ajudar na feitura de mapas (MURPHY 2004 p 142)451

Pliacutenio no comeccedilo desse trecho falou em Gaacutelia cabeluda (Gallia comata) mas esse

epiacuteteto assim como a designaccedilatildeo Gaacutelia de calccedilas (Gallia bracata) natildeo era mais usado

em sua eacutepoca (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) No tempo de Pliacutenio as proviacutencias

gaulesas jaacute estavam bastante inseridas na cultura romana e a elite dessas regiotildees haacute

muito jaacute natildeo usavam mais calccedilas ou cabelos longos452

A Gaacutelia Transalpina outrora era

conhecida por Gaacutelia cabeluda devido ao costume das pessoas terem cabelos compridos

(coma em latim) A Narbonense era a Gaacutelia de calccedilas no trecho acima Pliacutenio registrou

que Agripa exluiu a Narbonense da Gaacutelia De fato como jaacute apareceu em III 31 a

Narbonense na opiniatildeo de Pliacutenio era mais Itaacutelia do que proviacutencia453

Por fim temos o

cataacutelogo das naccedilotildees da Gaacutelia e as divisotildees geograacuteficas marcadas por rios e montes

como as Cevenas e o Jura

Seguindo a descriccedilatildeo da Gaacutelia Lugdunense temos em IV 18 (32)

XVIII (32) ndash 107 Lugdunensis Gallia habet Lexouios Veliocasses Caletos

Venetos Abrincatuos Ossismos flumen clarum Ligerem sed paeninsulam

spectatiorem excurrentem in oceanum a fine Ossismorum circuitu DCXXV

ceruice in latitudinem CXXV Vltra eum Namnetes intus autem Aedui

foederati Carnuteni foederati Boi Senones Aulerci qui cognominantur

Eburouices et qui Cenomani Meldi liberi Parisi Tricasses Andecaui

Viducasses Bodiocasses Venelli Coriosuelites Diablinti Riedones

Turones Atesui Segusiaui liberi in quorum agro colonia Lugudunum

XVIII (32) ndash 107 A Gaacutelia Lugdunense engloba os lexoacutevios454

os

veliocassos455

os caletos456

os vecircnetos457

os abrincacirctuos458

os ossismos459

o

famoso rio Liacuteger460

e uma peniacutensula muito notaacutevel que avanccedila para o oceano

a partir da fronteira dos ossismos em um contorno de seiscentas e vinte e

cinco milhas e no estreito com uma largura de cento e vinte e cinco

milhas461

Do outro lado estatildeo os namnetes e462

no interior os eacuteduos

aliados463

os carnutos tambeacutem aliados464

os boios465

os secircnones466

os

451

Murphy (2004 p 142-148) detalha mais o papel dos rios como marcos fronteiriccedilos na literatura latina

O proacuteprio Ceacutesar (BGall I 1) utilizou os rios Garona Marne e Sena para separar as trecircs principais naccedilotildees

ceacutelticas (cf p 129) 452

Estrabatildeo cita as calccedilas e cabelos longos dos belgas em IV43 Taacutecito usou o termo comata apenas

uma vez quando disse que os gauleses introduzidos no senado por Claacuteudio passaram a adotar a toga

romana como vestimenta (Anais XI 231) 453

Cf p 200 e 201 454

Habitavam nas proximidades da atual Lisieux 455

Estavam nas proximidades da atual Rouen 456

Vizinhos da atual Lillebonne 457

Daiacute o nome da atual Vannes 458

Perto da atual Avranches no departamento de La Manche 459

Habitavam o noroeste da Bretanha perto da atual Carhaix-Plougher 460

O rio Loire 461

Atual Bretanha 462

Habitantes do atual Loire inferior a cidade principal da regiatildeo eacute Nantes 463

Essa grande naccedilatildeo habitava os atuais departamentos do Saocircne e do Loire as principais cidades atuais

satildeo Autun e Chalonssur-Marne

209

aulercos que satildeo chamados tanto de eburovices467

quanto os que satildeo

chamados de cenomanos468

os livres meldos469

os pariacutesios470

os tricasses471

os andecavos472

os viducassos473

os bodiocassos474

os venelos475

os

coriosvelites476

os diablintos os rieacutedones477

os turotildees478

os ateacutesuos e os

livres segusiavos em cujo territoacuterio estaacute a colocircnia de Lugduno479

Sobre esse recurso das descriccedilotildees em narrativas geograacuteficas Hartog (1999 p

263) afirma que isso estaacute relacionado agrave taxionomia de fato a descriccedilatildeo eacute ver e fazer

ver eacute esp ci liz ccedilatildeo de um s ber Por conseguinte el ―t mbeacutem vem ser t mbeacutem

saber e fazer saber (esse fazer constituindo precisamente a mise en scegravene do

taxionocircmico) (HARTOG 1999 p 263) Ao pormenorizar aspectos geograacuteficos da

Gaacutelia Pliacutenio portanto vecirc e faz seu puacuteblico ver e conhece e faz conhecer essa regiatildeo

pertencente ao domiacutenio romano

Em seguida segue a descriccedilatildeo da Gaacutelia Aquitacircnia em IV 19 (33)

XIX (33) ndash 108 Aquitanicae sunt Ambilatri Anagnutes Pictones Santoni

liberi Bituriges liberi cognomine Viuisci Aquitani unde nomen prouinciae

Sedibouiates Mox in oppidum contributi Conuenae Begerri Tarbelli

Quattuorsignani Cocosates Sexsignani Venami Onobrisates Belendi saltus

Pyrenaeus infraque Monesi Oscidates Montani Sybillates Camponi

Bercorcates Pinpedunni Lassunni Vellates Toruates Consoranni Ausci

Elusates Sottiates Oscidates Campestres Succasses Latusates

Basaboiates Vassei Sennates Cambolectri Agessinates 109 Pictonibus

iuncti autem Bituriges liberi qui Cubi appellantur dein Lemouices Aruerni

liberi Vellaui liberi Gabales Rursus Narbonensi prouinciae contermini

Ruteni Cadurci Nitiobroges Tarneque amne discreti a Tolosanis Petrocori

Maria circa oram ad Rhenum septentrionalis oceanus inter Rhenum et

Sequanam Britannicus inter id et Pyrenaeum Gallicus Insulae conplures

Venestorum et quae Veneticae appellantur et in Aquitanico sinu Vliaros

XIX (33) ndash 108 Na Aquitacircnia estatildeo os ambilatros os anagnutos os

piacutectones480

os santotildees livres481

os bituacuteriges livres de cognome viviscos482

os

464

Viviam entre o Sena e o Loire perto das atuais Orleacuteans e Chartres 465

Perto da atual Moulins 466

No atual departamento do Yonne 467

Perto da atual Passy-sur-Eure 468

Habitavam as vizinhanccedilas da atual Le Mans 469

Perto da atual Meaux 470

Onde hoje estaacute Paris 471

Habitantes proacuteximos agrave atual Troyes 472

Na regiatildeo atual de Anjou 473

Proacuteximos agrave atual Vieux 474

Perto da atual Bayeux 475

Nas vizinhanccedilas da atual Carentan 476

Proacuteximo agrave Corseul 477

Perto da atual Rennes 478

Nas cercanias da atual Tours 479

Hoje a cidade de Lyon 480

Na atual regiatildeo de Poitou na Franccedila 481

Perto da atual Saintes

210

aquitanos483

ndash daiacute o nome da proviacutencia ndash e os sediboviatos Depois unidos

em uma cidade estatildeo os convenos484

os begerros485

os tarbelos de quatro

ensiacutegnias486

os cocosates de seis ensiacutegnias487

os venamos os onobrisates os

belendos488

os montes Pireneus e abaixo os monesos489

os oscidates

montanheses490

os sibilates491

os camponos os bercorcates os pimpedunos

os lassunos os velates os torvates os consoranos os auscos492

os

elusates493

os sotiatos os oscidates das planiacutecies os sucasses os latusates os

basaboiates os vasseus os senates os cambolectros agessinates494

109 Por

outro lado junto aos piacutectones estatildeo os livres bituacuteriges que satildeo chamados de

cubos495

depois os lemovices496

os livres arvernos497

os livres velavos e os

gaacutebalos Novamente vizinhos agrave proviacutencia Narbonense estatildeo os rutenos os

cadurcos os nitioacutebriges e separados dos tolosanos pelo rio Tarne498

os

petrocoros Os mares que rodeiam a costa satildeo o oceano setentrional499

que

vai ateacute o Reno entre o Reno e o Sena o oceano Britacircnico500

entre esse e os

Pireneus o oceano Gaacutelico501

Haacute vaacuterias ilhas dos vecircnetos que satildeo chamadas

de Vecircnetas502

e no golfo aquitacircnio haacute a ilha de Uliaros503

Ponderamos que Pliacutenio escreveu essas detalhadas descriccedilotildees geograacuteficas visando

a um ponto mais aleacutem do que inventariar o mundo conhecido ou fornecer um panorama

geral com finalidades poliacuteticas504

Na verdade se considerarmos a definiccedilatildeo de Martins

(2013 p 35) sobre a eacutecfrase (ἔθθξαζηο) como sendo um procedimento descritivo viacutevido

e claro podemos entender que Pliacutenio de certa forma desenvolveu uma eacutecfrase

geograacutefica na Historia naturalis Tomemos como exemplo as trecircs Gaacutelias descritas

482

Os bituacuteriges possuiacuteam grande importacircncia e habitavam nas proximidades da atual Bourges os viviscos

viviam perto da foz do rio Garona nas proximidades da atual Bordeaux Liacutevio citou os bituacuteriges em Ab

urbe cond V 34 (cf p 163 e 164) dizendo que foi essa naccedilatildeo que liderou a migraccedilatildeo gaulesa para a

Itaacutelia por volta de 600 aC 483

Viviam entre os Pirineus o rio Garona e o Atlacircntico 484

Pompeu fundou a povoaccedilatildeo de Lugdunum Conuenarum (atual Bagnegraveres-de-Bigorre) de onde foram

trazidos os locais que apoiaram Sertoacuterio O nome deriva do verbo latino conuenire (reunir) 485

Ceacutesar (BGall III 27) chamou-os de bigerriotildees 486

ao dizer quatro signos Pliacutenio parece fazer referecircncia a quatro maniacutepulos de soldados que guarneciam

o lugar cada um com um signum (insiacutegnia ou estandarte) Essa naccedilatildeo habitava proacuteximo da atual cidade

de Dax 487

Proacuteximos da atual Sescouze e Maresin As seis ensiacutegnas datildeo a entender que eles eram guarnecidos por

seis maniacutepulos de soldados 488

Nos arredores da atual Belin-sur-la-Leyre 489

Nas vizinhanccedilas da atual Luchon 490

Nos atuais vales do Aspe e Ossau 491

No vale do atual Soule 492

Perto da atual Auch 493

Perto da atual Eauze 494

Na regiatildeo de Aizenay 495

Os cubos tinham sua capital em Auaricum atual Bourges 496

Perto da atual Limoges 497

Habitavam proacuteximo agrave atual Clermont-Ferrand Vercingetoacuterige era dessa naccedilatildeo 498

Atual Tarn 499

Ou mar do Norte 500

Atual canal da Mancha 501

Onde o Atlacircntico banha a regiatildeo oeste da Franccedila 502

Hoje as ilhas de Belle-Isle Houat e outras que existem na foz do Loire 503

Atual ilha de Oleron 504

Como falamos na p 203 e 204

211

anteriormente cuja primeir aacutere pormenoriz d foi Gaacuteli ―C belud 505

Percebe-se

que Pliacutenio adotou uma descriccedilatildeo como se fosse um panorama como podemos ver no

mapa na proacutexima paacutegina (considerando as principais naccedilotildees mencionadas na Historia

naturalis)

Pliacutenio comeccedilou seu ―inventaacuterio d Gaacuteli ―C belud o nordeste do m p

partindo da Germacircnia e seguindo pelo norte em direccedilatildeo ao oceano Atlacircntico citando os

atreacutebates os neacutervios os suessiotildees aleacutem de outras naccedilotildees ateacute chegar novamente ao

interior do territoacuterio e agrave fronteira com a Germacircnia o erudito entatildeo retomou os povos

que habitavam a Gaacutelia Beacutelgica temos entatildeo os remos os seacutequanos os raacuteuricos e os

helveacutecios Por fim Pliacutenio mencionou as naccedilotildees germacircnicas dos uacutebios e dos batavos

Murphy preconizou que essa visatildeo panoracircmica da geografia se dava em cinco modelos

imaginativos506

Pelo modelo proposto por Pliacutenio percebemos que ele adotou um

esquema misto pois ao seguirmos a ordem das naccedilotildees citadas percebemos que haacute um

vaiveacutem imaginaacuterio no mapa seguindo o referencial do rio Escalda507

Pliacutenio considerou

os povos que viviam nas margens exteriores do rio (ou seja que estavam proacuteximos agrave

costa mariacutetima) e os que se encontravam ao interior e tambeacutem aqueles que eram

vizinhos ao Reno

Apoacutes essa passagem temos a Gaacutelia Lugdunense508

dessa vez o rio que serve

como eixo p r gui r ess ―vi gem foi o Liacuteger 509

Pliacutenio tambeacutem falou dos povos que

viviam proacuteximo ao Atlacircntico (no mapa acima o mar Gaacutelico) enumerando os lexoacutevios

os veliocassos os vecircnetos os ossismos e do outro lado da peniacutensula que hoje

chamamos de Bretanha localizou os namnetes e ao interior da regiatildeo os eacuteduos os

carnutos os secircnones os aulercos e dentre outros os turotildees Por fim haacute a Gaacutelia

Aquitacircnia510

Aiacute foram citados os piacutectones os santotildees os bituacuteriges viviscos e os

proacuteprios aquitanos nessa parte Pliacutenio fez uma linha descritiva vertical no sentido norte-

sul (dos piacutectones aos aquitanos) Em seguida haacute a menccedilatildeo aos Pirineus e voltamos ao

centro novamente seguindo o Liacuteger e em seguida a proviacutencia Narbonense Por uacuteltimo

Pliacutenio dotou o esquem de descriccedilatildeo ―m r m r mencion ndo o oce no setentrion l

que vai do norte da Germacircnia ateacute o Reno o oceano Britacircnico que engloba do Reno ao

Sena e finalmente o oceano Gaacutelico entre o Sena e os Pireneus

505

Em HN IV 17 (31) cf p 207 506

Cf nota 442 na p 205 507

Cujo nome francecircs eacute Escaut 508

HN IV 18 (32) p 208 e 209 509

Rio Loire 510

CF HN IV 19 (33) p 209 e 210

212

Mapa retirado de (PLINIO EL VIEJO 1998 p 161)

Em se tratando de uma obra de erudiccedilatildeo como a Historia naturalis natildeo

podemos concord r com M rtins (2013 p 76) que consider que eacutecfr se ―eacute um

n rr tiv ficcion l agrave serviccedilo d rgument ccedilatildeo pois que Pliacutenio faz descriccedilotildees de aacutereas

que jaacute eram proviacutencias romanas e amplamente conhecidas pelos seus contemporacircneos

Por outro lado a eacutecfrase geograacutefica mesmo natildeo sendo ficcional funciona como uma

ferramenta natildeo soacute de narraccedilatildeo mas ainda de embelezamento e enriquecimento textual

nesse sentido ela pode ser inserida na descriccedilatildeo de eacutecfrase preconizada por Martins

(2013 p 76 e 77) entendid como ―um descriccedilatildeo viacutevid que tr z o objeto di nte dos

nossos olhos ( ) 511

Dessa maneira Pliacutenio fez um pormenorizado mapeamento por

meio de p l vr s que nos possibilit ―vi j r pel s trecircs proviacutenci s g ules s e loc liz r s

511

Martins (2013 p 77) faz uma importante distinccedilatildeo entre a digressatildeo (que seria uma narraccedilatildeo) e a

eacutecfrase (que se localiza entre a narraccedilatildeo e a descriccedilatildeo) para maior aprofundamento sobre o papel da

eacutecfrase na retoacuterica e da sua funccedilatildeo de deleitar e ornar o discurso cf especialmente p 72-78

213

suas inuacutemeras naccedilotildees Com isso encerra-se essa passagem de descriccedilatildeo administrativa

das Gaacutelias

Seguindo o corpus separado para anaacutelise neste trabalho passemos agora ao livro

VIII dedicado aos animais terrestes Pliacutenio fala das ovelhas (VIII 72) e em seguida da

latilde e seu processo de feitura Temos entatildeo o trecho em VIII 73 (48)

LXXIII (48) ndash 190 Lana autem laudatissima Apula et quae in Italia Graeci

pecoris appellatur alibi Italica tertium locum Milesiae oues obtinent

Apulae breues uillo nec nisi paenulis celebres circa Tarentum Canusiumque

summam nobilitatem habent in Asia uero eodem genere Laudiceae Alba

Circumpadanis nulla praefertur nec libra centenos nummos ad hoc aeui

excessit ulla () Histriae Liburniaeque pilo propior quam lanae pexis

aliena uestibus et quam Salacia scutulato textu commendat in Lusitania

Similis circa Piscinas prouinciae Narbonensis similis et in Aegypto ex qua

uestis detrita usu pingitur rursusque aeuo durat Est et hirtae pilo crasso in

tapetis antiquissima gratia iam certe his usos Homerus auctor est Aliter

haec Galli pingunt aliter Parthorum gentes 192 Lanae et per se coactae

uestem faciunt et si addatur acetum etiam ferro resistunt immo uero etiam

ignibus nouissimo sui purgamento Quippe aenis polientium extracta in

tomenti usum ueniunt Galliarum ut arbitror inuento certe Gallicis hodie

nominibus discernitur 193 Nec facile dixerim qua id aetate coeperit

antiquis enim torus e stramento erat qualiter et iam nunc in castris

LXXIII (48) ndash 190 De fato a latilde mais famosa eacute a da Apuacutelia em seguida a latilde

que na Itaacutelia eacute chamada de grega e que em outros lugares eacute chamada de

itaacutelica ocupam o terceiro lugar as latildes mileacutesias A latilde da Apuacutelia eacute curta no pelo

e famosa apenas para fazer capas a latilde que vem das redondezas de Tarento e

Canuacutesio tem maior renome na verdade na Aacutesia haacute a latilde do mesmo tipo de

Laodiceia Nenhuma latilde branca eacute superior agrave latilde das vizinhanccedilas do Poacute e

nunca nenhuma latilde excedeu o valor de cem sesteacutercios por libra () A latilde da

Iacutestria e da Libuacuternia eacute mais parecida com cabelo do que com latilde e eacute improacutepria

para vestes de pelos eacute essa a que Salaacutecia na Lusitacircnia utiliza para tecidos

xadrez Eacute semelhante agrave latilde das redondezas de Piscinas512

na proviacutencia

Narbonense e semelhante tambeacutem a que tem no Egito com a qual se

remenda um traje gasto pelo uso e que de novo dura muito tempo Tambeacutem eacute

antiquiacutessima a popularidade da latilde dura de pelo grosso para tapetes

certamente Homero jaacute atestou esses usos Os gauleses trabalham a latilde de uma

forma de outra forma o fazem os povos partos 192 As latildes condensadas

formam uma veste que caso se lhes adicione vinagre elas resistem ao ferro

e ainda mais resistem ao fogo depois de uma nova purificaccedilatildeo513

Na

verdade os restos que ficam nos caldeirotildees depois de trabalhados satildeo

utilizados como enchimento de colchotildees514

que eu considero como um

invento das Gaacutelias certamente hoje os distinguimos atraveacutes dos nomes

gauleses 193 Eu natildeo poderia dizer facilmente em que eacutepoca esse uso

comeccedilou de fato nossos ancestrais usavam cordas de palha como colchatildeo

como ainda agora se faz nos acampamentos (grifos nossos)

Pliacutenio evidentemente citou a latilde da Apuacutelia (uma regiatildeo da Itaacutelia) como sendo a

m is f mos M is agrave frente ele diz que ―nenhum latilde br nc eacute superior agrave latilde d s

512

Atual Peacutezenas jaacute mencionada por Pliacutenio na descriccedilatildeo geograacutefica da Narbonense (cf p 203) 513

Esse tecido eacute o feltro (informaccedilatildeo retirada de PLINIO EL VIEJO 2003 p 202) 514

Traduzimos o termo tomentum por colchatildeo embora soe anacrocircnico por falta de um eacutetimo melhor em

portuguecircs que se proxime do sentido l tino que signific ―enchimento ou ―estof mento

214

vizinh nccedil s do Poacute ndash esse rio era o antigo marco divisoacuterio entre a Itaacutelia e a Gaacutelia

Cisalpina De fato essa regiatildeo foi a primeira proviacutencia a receber de forma coletiva o

direito de cidadania romana515

Pliacutenio entatildeo fala sobre a latilde de Piscinas na Narbonense

parecida com a latilde de Salaacutecia na Lusitacircnia O ponto que mais nos chama a atenccedilatildeo se

encontra no sect192 Pliacutenio explica o processo de feitura do feltro e como o resto desse

produto er us do como enchimento de colchatildeo Pliacutenio diz que consider esse ―um

invento d s Gaacuteli s e corrobor ess inform ccedilatildeo dizendo que os colchotildees recebiam o

nome de gauleses e haacute muito tempo eram utilizados como tais pelos romanos Ele ainda

cita o fato dos seus ancestrais usarem ―cord s de p lh como colchatildeo m s ess form

de leito na sua eacutepoca era utilizada apenas em acampamentos militares Esse tipo de

informaccedilatildeo curiosa eacute importante como registro de objetos de uso cotidiano (como

vestimentas colchotildees etc) e eacute raro na literatura claacutessica jaacute que a maioria das obras

foram escritas visando a abordagem de temas mais literaacuterios retoacutericos ou

historiograacuteficos e que pouco mencionavam aspectos do dia a dia desse tempo

Passemos agora ao livro XXX no qual Pliacutenio disserta sobre magia e remeacutedios

Temos o seguinte trecho 4 (13)

IV ndash 13 Gallias utique possedit et quidem ad nostram memoriam Namque

Tiberii Caesaris principatus sustulit Druidas eorum et hoc genus uatum

medicorumque Sed quid ego haec commemorem in arte Oceanum quoque

transgressa et ad naturae inane peruecta Britannia hodieque eam attonita

celebrat tantis caerimoniis ut dedisse Persis uideri possit Adeo ista toto

mundo consensere quamquam discordi et sibi ignoto nec satis aestimari

potest quantum Romanis debeatur qui sustulere monstra in quibus hominem

occidere religiosissimum erat mandi uero etiam saluberrimum

IV ndash 13 Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a

nossa eacutepoca O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e

esse tipo de adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria

isso sobre uma arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da

natureza Ainda hoje a aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos

de modo que possa parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os

povos em todo o mundo ainda que entre si fossem diferentes e

desconhecidos por fim entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar

suficientemente o quanto se deve aos romanos que suprimiram essas

monstruosidades para as quais era muito religioso sacrificar um homem e o

fato de devoraacute-lo era considerado salutar

Nessa passagem temos a menccedilatildeo de Pliacutenio sobre os aspectos maacutegicos das Gaacutelias

O aspecto histoacuterico mais importante desse trecho foi o banimento dos druidas no

principado de Tibeacuterio Gruen (2011a p 156) destaca que Augusto jaacute probira os

515

Isso se deu na eacutepoca de Ceacutesar cf p 111 para mais detalhes

215

cidadatildeos romanos de adotarem essa religiatildeo Tibeacuterio baniu os druidas mas como Pliacutenio

deixou cl ro eles ind se dedic v m agrave m gi ―cert mente teacute noss eacutepoc Depois

de Tibeacuterio foi Claacuteudio o governante que voltou a agir no sentido de coibir a magia na

Gaacutelia condenando o rito do sacrifiacutecio como horriacutevel e desumano De fato os romanos

baniram a praacutetica de sacrifiacutecios humanos na Gaacutelia e na Aacutefrica516

Como destaca Le

Bohec (2009 p 31) um dos fatores que levou agrave aboliccedilatildeo dessa praacutetica foi a evoluccedilatildeo da

mentalidade da eacutepoca que finalmente passou a considerar os sacrifiacutecios como atos

inuacuteteis e crueacuteis dignos de povos selvagens Quanto aos druidas a questatildeo fica mais

complexa devido agrave imprecisatildeo das fontes mas haacute pelo menos o consenso de que eles

representavam para os romanos um problema mais poliacutetico do que religioso (LE

BOHEC 2009 p 31) A poliacutetica romana era a de destruir complexos religiosos antigos

ou aristocraacuteticos cuja influecircncia poderia servir como centros de resistecircncia contra a

Urbe e ao mesmo tempo criar laccedilos para unir Roma agraves vaacuterias classes sociais das naccedilotildees

conquistadas (RANKIN 1996 p 262) A elite das naccedilotildees conquistadas ou aliadas a

Roma recebendo a cidadania e desejando fazer parte do modus uiuendi romano passou

a adotar a educaccedilatildeo claacutessica para seus filhos e isso contribuiu para diminuir o papel dos

druidas como educadores517

Assim percebemos a mudanccedila ocorrida do seacuteculo I aC

ateacute a segunda metade do seacuteculo I dC no modo de se referir aos druidas Diodoro assim

como Ceacutesar se referiu aos druidas chamando-os de filoacutesofos e teoacutelogos de honras

extraordinaacuterias518

Ciacutecero mencionou sua amizade com o druida Diviciacuteaco falando a

seu respeito no De diuinatione519

Pliacutenio como notamos referiu-se aos druidas e agraves

praacuteticas maacutegicas dos gauleses de forma pejorativa dizendo que no seu tempo a

― turdid Britacircni celebr ess rte com muitos ritos e natildeo temos nenhum menccedilatildeo agrave

honradez deles520

Como Rankin (1996 p 291) destaca Pliacutenio foi procurador na Gaacutelia

Narbonense e na Gaacutelia Beacutelgica e possivelmente teve conhecimento pessoal do

druidismo Pliacutenio foi negativo em suas descriccedilotildees porque provavelmente teve contato

516

A conquista romana aparentemente acabou com a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos embora em aacutereas

remotas da Gaacutelia (e de outros confins do impeacuterio) eles continuassem acontecendo (RANKIN 1996 p

288) De modo geral os romanos tinham profundo desgosto por exclusividade religiosa e associavam

esse tipo de coisa a subversatildeo poliacutetica por isso as perseguiccedilotildees aos druidas cristatildeos judeus etc

(RANKIN 1996 p 288) 517

Estrabatildeo jaacute mencionou esse fato em IV 1 5 (cf p 87) Ceacutesar (BGall VI 13) tambeacutem disse que os

druidas desfrutavam de grande honradez entre os gauleses e que um grande nuacutemero de jovens acorria ateacute

eles para educar-se (cf p 137 e 138) 518

Biblioteca V 31 2-4 cf p 83-84 519

Cf p 76 520

P r m ior profundid de sobre esse tem recomend mos o c piacutetulo ―Religion nd the druids de

Rankin (1996 p 259-294)

216

com essa forma marginalizada de druidismo comum em sua eacutepoca Outro fator que

contribuiu para o gradual decliacutenio dos druidas era o fato de que os ensinamentos deles

embora prestigiosos tinham pouco apelo popular pois eram muito complexos521

Finalmente chegamos ao uacuteltimo trecho de Pliacutenio a ser analisado retirado do

livro XXXIII em que ele trata dos metais e seus usos Assim destacamos na HN

XXXIII 5 (14)

V ndash 14 Romae ne fuit quidem aurum nisi admodum exiguum longo tempore

Certe cum a Gallis capta urbe pax emeretur non plus quam mille pondo

effici potuere Nec ignoro MM pondo auri perisse Pompeii III consulatu e

Capitolini Iovis solio a Camillo ibi condita et ideo a plerisque existimari

MM pondo collata Sed quod accessit ex Gallorum praeda fuit detractumque

ab iis in parte captae urbis delubris 15 Gallos cum auro pugnare solitos

Torquatus indicio est ndash Apparet ergo Gallorum templorumque tantundem

nec amplius fuisse quod quidem in augurio intellectum est cum Capitolinus

duplum reddidisset Illud quoque obiter indicari conuenit ndash etiam de anulis

sermonem repetiuimus ndash aedituum custodiae eius conprehensum fracta in

ore anuli gemma statim expirasse et indicium ita extinctum 16 Ergo ut

maxime MM tantum pondo cum capta est Roma anno CCCLXIIII fuere cum

iam capitum liberorum censa essent CLII DLXXIII In eadem post annos

CCCVII quod ex Capitolinae aedis incendio ceterisque omnibus delubris C

Marius filius Praeneste detulerat XIII pondo quae sub eo titulo in triumpho

transtulit Sulla et argenti VI Idem ex reliqua omni uictoria pridie

transtulerat auri pondo XV argenti p CXV

V ndash 14 Na verdade em Roma por muito tempo natildeo houve ouro exceto em

diminuta quantidade De fato quando a cidade foi tomada pelos gauleses e a

paz seria estabelecida eles natildeo puderam juntar mais do que mil libras Natildeo

ignoro que duas mil libras de ouro se perderam do trono de Juacutepiter Capitolino

ndash aiacute colocadas por Camilo ndash durante o terceiro consulado de Pompeu por

isso muitos consideram que na verdade foram juntadas duas mil libras de

ouro Mas o que acresceu a isso foram o butim e a pilhagem daqueles

templos que os gauleses fizeram na parte da cidade que foi tomada 15 Como

indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar usando

ouro Assim parece evidente tal quantidade de ouro natildeo ser maior que aquela

que tinham os gauleses ou os templos na verdade o que se percebeu foi que

Juacutepiter Capitolino em uma profecia retornaria o dobro Jaacute que recordamos o

assunto sobre os aneacuteis tambeacutem conveacutem mencionar o episoacutedio em que o

guarda do templo de Juacutepiter Capitolino ao ser surpreendido quebrou a gema

do seu anel na boca e imediatamente morreu dessa forma o indiacutecio do ladratildeo

desapareceu 16 Portanto na ocasiatildeo do ano 364 da cidade quando Roma foi

tomada havia no maacuteximo duas mil libras de ouro e como constava no censo

152573 homens livres Apoacutes 307 anos o ouro da cidade ndash que Caio Maacuterio

Filho levara a Preneste apoacutes o incecircndio do templo Capitolino e de todos os

outros santuaacuterios ndash totalizava treze mil libras Sila transcreveu esse nuacutemero

em uma inscriccedilatildeo durante um triunfo assim como seis mil libras de prata Ele

tambeacutem trouxera no triunfo da veacutespera quinze mil libras de ouro e cento e

quinze mil libras de prata obtidas em todas as outras vitoacuterias

Pliacutenio fala da quantidade de ouro disponiacutevel em Roma durante o saque da cidade

pelos gauleses Para ele a cidade dispunha de pouquiacutessima reserva do metal e diz que

521

Ceacutesar (BGallVI 14) citou o fato dessa educaccedilatildeo chegar a durar vinte anos (cf p 140)

217

houve alguma confusatildeo entre o montante de ouro que havia no templo de Juacutepiter

Capitolino No sect15 Pliacutenio fala de Torquato e o fato dos gauleses combaterem usando

joacuteias de ouro522

Outro ponto de interesse pode ser percebido no fato de que mais de

trezentos anos depois Caio Maacuterio Filho levou de Roma para Preneste treze mil libras de

ouro Sila celebrando seus triunfos exibiu em um dia treze mil libras de ouro e seis mil

libras de prata e no outro quinze mil libras de ouro e cento e quinze mil libras de prata

―obtid s em tod s s outr s vitoacuteri s Percebemos m is um vez como Pliacutenio menciona

as coisas sempre as relacionando a Roma Fica evidente como a cidade que na eacutepoca do

saque tinha apenas mil libras de ouro prosperou com sua poliacutetica imperialista e jaacute

durante a eacutepoca de Sila acumulou enorme fortuna natildeo soacute de ouro mas tambeacutem de

prata

Tanto Liacutevio quanto Pliacutenio abordaram certos fatos dos primoacuterdios de Roma

como o episoacutedio do saque da cidade e a menccedilatildeo a Torquato e o colar de ouro Outro

aspecto em comum eacute o fato de ambos os autores ressaltarem o dever do romano de

conquistar novos povos e regiotildees usando como justificativa a vontade divina523

Esse eacute

um ponto que natildeo apareceu em Ceacutesar o general alegou que a guerra foi motivada por

questatildeo de seguranccedila uma vez que as migraccedilotildees dos germanos ateacute a Gaacutelia

representavam uma iminente ameaccedila a Roma524

Em Liacutevio como vimos os galos foram

representados como os inimigos de Roma e geralmente caracterizados como baacuterbaros e

exemplos de comportamento a serem evitados ndash na histoacuteria liviana esse era o maior

papel a ser desempenhado pelos adversaacuterios do impeacuterio Pliacutenio pela proacutepria natureza

erudita de sua obra foi aleacutem nos seus retratos dos galos ele se preocupou em descrever

geograficamente as proviacutencias com riquezas de detalhes bem como trouxe informaccedilotildees

natildeo usuais na literatura latina como o processo de feitura da latilde Por conseguinte Liacutevio

ao fazer relatos de antigos acontecimentos de Roma e tratando dos gauleses dessa

eacutepoca e Pliacutenio ao trazer informaccedilotildees tatildeo diversas como a geografia e os costumes dos

galos enriquecem a nossa pesquisa do corpus iniciada com Ceacutesar e o seu relato in loco

da conquista da Gaacutelia

522

Liacutevio (VII 10) narrou o episoacutedio que justificou o apelido de Torquato adotado por Tito Macircnlio jaacute que

ele tomou o colar de ouro do gaulecircs que ele venceu (cf p 182-183) 523

Cf Plinio III 6 (5) p 204 e 205 p 206 e nota 444 deste trabalho Quanto a Liacutevio e o direito divino do

romano governar outros povos cf sect11 e sect7 (p 161) 524

Cf BGall I 33 p 134

218

Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celt

Neste capiacutetulo faremos a anaacutelise entre o De bello Gallico Ab urbe condita e a

Historia naturalis visando ao estudo de como se opera a retoacuterica de representaccedilatildeo do

gaulecircs entre os gecircneros de composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e

erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Aleacutem disso pretendemos analisar o tipo de vocabulaacuterio e figuras de

linguagem empregados pelos autores latinos supracitados para essas representaccedilotildees e

observar como cada um deles faz um retrato muito peculiar dos gauleses Ceacutesar com

seu relato distante e agraves vezes respeitoso agraves vezes hostil Liacutevio e a figura do gaulecircs como

o exemplo maacuteximo de inimigo durante o periacuteodo arcaico de Roma e Pliacutenio com um

enfoque de informar sobre a geografia e costumes dos gauleses de forma puramente

instrutiva Primeiramente falaremos sobre como surgiram as imagens recorrentes sobre

os galos a seguir abordaremos a questatildeo da retoacuterica de modo abrangente e em seguida

passaremos agraves anaacutelises dos elementos textuais

41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses

Vimos ao longo dessa pesquisa os termos e estereoacutetipos que apareceram nos

textos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho para a caracterizaccedilatildeo dos gauleses bem como

os mesmos toacutepoi recorrentes nas fontes citadas (como Poliacutebio Catatildeo o Censor etc)

Nesse momento entatildeo analisaremos como possivelmente surgiu esses clichecircs de

representaccedilatildeo dos galos na percepccedilatildeo greco-romana

Como destaca Vasaly (1993 p 245) no comeccedilo do seacuteculo III aC autores

romanos jaacute buscavam na literatura grega teacutecnicas retoacutericas para embelezar os rascunhos

de informaccedilatildeo sobre Roma que eles recebiam das geraccedilotildees que lhes eram anteriores525

por conseguinte ao recorrerem a padrotildees de narrativas que lhes eram familiares e

reconheciacuteveis eles transformaram simples nomes e escassos registros relacionados aos

primoacuterdios da Cidade em uma rica tapeccedilaria ilustrando o triunfo da virtude romana

sobre os desafios enfrentados dentro e fora de Roma De maneira semelhante tambeacutem

podemos entender que a respeito dos gauleses os romanos buscaram nos gregos as

primeiras representaccedilotildees dessa naccedilatildeo e depois as adaptaram e remodelaram de acordo

com sua proacutepria experiecircncia de vida e a realidade da eacutepoca em que viviam

525

Falamos desses registros rudimentares registrados em anais pelo pontiacutefice maacuteximo na p 11 deste

trabalho

219

A respeito dos gauleses retratados como sendo fortes altos e aterrorizantes essa

imagem se justificava atraveacutes dos primeiros contatos que os romanos (e outras naccedilotildees

itaacutelicas) tiveram com os povos de aleacutem dos Alpes no comeccedilo do seacuteculo III aC contatos

esses que eram especialmente violentos e que resultavam em guerras e saques Foram

muito marcantes tambeacutem a proacutepria invasatildeo a Roma bem como as migraccedilotildees dos celtas

para a Aacutesia Menor e o saque de Delfos em 278 aC526

Com esses acontecimentos

emblemaacuteticos fixou-se na cabeccedila de gregos romanos e outros povos itaacutelicos a ideia do

gaulecircs feroz e beligerante Nos principais autores do seacuteculo II aC cujos textos nos

chegaram com certa substacircncia material como Poliacutebio e Catatildeo vemos novos relatos

sobre as populaccedilotildees da Gaacutelia Em ambos apareceu com destaque o caraacuteter belicoso dos

galos527

Poliacutebio e Catatildeo em suas obras jaacute estavam selecionando elementos de uma

literatura em grego preexistente e que mencionava os celtas essa literatura antecessora

natildeo era inteiramente devotada agraves caracteriacutesticas materiais dos galos mas tambeacutem

continham informaccedilotildees de natureza geograacutefica e etnograacutefica528

Relatos escritos depois

de Poliacutebio e Catatildeo como o de Posidocircnio (do comeccedilo do seacuteculo I aC) e Ceacutesar com

suas longas digressotildees etnograacuteficas haveriam de introduzir (ou reintroduzir) na

literatura antiga informaccedilotildees sobre os celtas e seus exoacuteticos costumes dieta

comportamentos sociais crenccedilas etc (WOOLF 2011 p 22)

No periacuteodo do seacuteculo I aC entatildeo circulavam vaacuterias imagens de representaccedilatildeo

dos galos na literatura greco-latina como vimos alguns dos maiores exemplos em

Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Estrabatildeo citados no capiacutetulo 1529

Essas vaacuterias representaccedilotildees

dos gauleses de todo tipo (como ferozes religiosos voluacuteveis etc) eram utilizadas pelo

escritor de acordo com o gecircnero de composiccedilatildeo que adotava e o tipo de mensagem que

ele queria passar fosse ela de cunho poliacutetico moralizante nacionalista etc Eacute o que

526

Cf p 102 para esses acontecimentos Na p 102 e ss falamos dos vaacuterios conflitos entre romanos e

aliados contra os celtas ao longo dos seacuteculos II e I aC ateacute a ascensatildeo de Ceacutesar 527

Cf Poliacutebio (Histoacuterias II 17 9 a 12) na p 48 e II 15 7 na p 49 Sobre Catatildeo cf fragmento 34 na p

62 528

De fato os registros mais remotos sobre os celtas que temos satildeo do seacuteculo IV aC e infelizmente nos

chegaram bastante fragmentados Jaacute mencionamos alguns dos autores dessa eacutepoca como Eacuteforo e Timeu

(cf p 44 e ss) Tambeacutem haacute outros que natildeo citamos ou falamos de forma muito raacutepida como Teopompo e

Piacuteti s de M rselh sobre esses e outros nomes do seacuteculo IV C recomend mos o c piacutetulo ―Notices in

some fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48) Tambeacutem Platatildeo (Leis 637 d-e) retratou

os gauleses (junto com citas persas ibeacuterios traacutecios e cartagineses) como beberrotildees e belicosos

Aristoacuteteles (em uma obra perdida sobre costumes dos baacuterbaros) na Poliacutetica e no De gener anim

similarmente falou sobre os galos (cf p 45) 529

Sem contar os relatos dos celtas que natildeo registramos aqui e que satildeo de outros gecircneros de composiccedilatildeo

como a eacutepica a poesia e o teatro (cf p 21) ou os autores que abordamos de forma bem raacutepida como

Dioniacutesio de Halicarnasso e os mencionados na nota acima

220

Woolf ch m de ―moldur s interpret tiv s que er m os toacutepoi disponiacuteveis para os

autores da etnografia antiga (e outros gecircneros) para serem escolhidos e selecionados de

acordo com os seus propoacutesitos de composiccedilatildeo literaacuteria (WOOLF 2011 p 54) Woolf

(2011 p 62) chega agrave conclusatildeo de que a maioria das narrativas sobre os baacuterbaros (e ele

fala de vaacuterios povos que eram considerados alheios aos romanos) se originou no meio

do seacuteculo I aC ocorrendo ao mesmo tempo com a raacutepida expansatildeo territorial romana

cujas conquistas de Ceacutesar Pompeu e Augusto aceleraram ainda mais o processo de

contato com outras naccedilotildees Esse fato tambeacutem coincidiu com o final das guerras

Mitridaacuteticas e a chegada a Roma de vaacuterios autores gregos que escreviam sob o patronato

dos membros da elite da Urbe No caso dos gauleses acreditamos que essas imagens

cujos registros passaram a ser substanciais a partir do seacuteculo IV aC530

foram sendo

apropriadas e reelaboradas ao longo do tempo pelos autores que vieram depois Com

isso fica difiacutecil separar ou distinguir quando exatamente essas imagens surgiram ou

desapareceram especialmente apoacutes a unificaccedilatildeo do mundo mediterracircneo sob o comando

de Roma (WOOLF 2011 p 62) Um exemplo que encontramos e que mostra como

uma dessas imagens sobre os galos surgiu (e depois caiu em desuso) pode ser

encontrado em Pliacutenio o Velho O erudito em Historia naturalis V IV 31 chamou a

Gaacuteli N rbonense de ―Gaacuteli de c lccedil s531

e Tr ns lpin como ―Gaacuteli C belud 532

Esse estereoacutetipo do galo em trajar calccedilas e possuir cabelo comprido era comum no

seacuteculo I aC e em contexto romano Ciacutecero jaacute usara essa mesma imagem para depreciar

os galos (Pro Fonteio 33) ―Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas

com postura tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias

recorrem o poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos N d eacute menos verd deiro N

eacutepoca de Pliacutenio esses clichecircs jaacute estavam em desuso pois as proviacutencias gaulesas jaacute

estavam avanccediladas em termos de romanizaccedilatildeo (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) Aleacutem

disso a elite dessas regiotildees jaacute abandonara completamente o haacutebito de usar calccedilas

saiotes ou cabelos longos na verdade adotava-se o modo de vestir (e o penteado) dos

romanos

Podemos notar atraveacutes das fontes que nos restaram que os relatos etnograacuteficos

da Europa ocidental evidentemente por causa da consolidaccedilatildeo das proviacutencias nessa

aacuterea simplesmente foram sumindo ao longo do seacuteculo I dC O puacuteblico-alvo de Ceacutesar

530

Como falamos na nota 528 531

Cf trecho completo na p 200 a 203 532

HN XVII (31) 105 p 207

221

era diferente do puacuteblico de Liacutevio ou Pliacutenio mais de um seacuteculo depois Os nomes que

escreveram sobre os gauleses com material substancial de etnografia pararam em

Estrabatildeo Aos romanos a partir de Augusto natildeo mais interessavam os ―baacuterb ros g los

jaacute que eles for m ―civiliz dos e com o tempo b st nte integr dos o modus uiuendi da

Urbe O interesse dos romanos por conseguinte passou a se voltar para os povos que

habitavam nas fronteiras do mundo Quanto mais distantes esses povos maior a

curiosidade por essa razatildeo mais eles eram retratados como exoacuteticos bizarros ou

maravilhosos especialmente nas regiotildees que o impeacuterio natildeo alcanccedilou como a Iacutendia a

Etioacutepia a Ciacutetia e a Germacircnia Esse tipo de interesse eacute proacuteprio da natureza humana em

querer conhecer o que lhe eacute alheio e excecircntrico e ateacute hoje podemos perceber como

culturas que nos satildeo exoacuteticas ainda possuem um grande apelo e aticcedilam a curiosidade da

populaccedilatildeo

42 ndash Mecanismos retoacutericos

Ao pensarmos na claacutessica divisatildeo aristoteacutelica da retoacuterica (Retoacuterica 1358b) em

trecircs gecircneros discursivos (deliberativo juriacutedico e o proacuteprio epidiacutectico) julgamos que as

obras de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio inserem-se no gecircnero epidiacutectico pois a caracterizaccedilatildeo de

gauleses e romanos nessas narrativas possui ora a funccedilatildeo de elogio ora de censura

como composiccedilotildees literaacuterias esse discurso de representaccedilatildeo do outro e de si sofre vaacuterias

mud nccedil s Como pontu Seb sti ni (In Joly 2007 p 81) ― experiecircnci pesso l diret

fica em segundo plano qu ndo histoacuteri p ss ser tr t d como gecircnero literaacuterio ndash ao

contraacuterio do que pregavam Heroacutedoto e Tuciacutedides que diziam que se devia escrever

sobre o que se viu e se presenciou A historiografia antiga portanto natildeo tinha a

preocupaccedilatildeo em estabelecer uma verdade que correspondia exatamente aos fatos mas

sim visava a uma construccedilatildeo retoacuterica em que esses fatos eram recriados artisticamente

com um propoacutesito pragmaacutetico ndash fosse ele moralista ou que visava ao estabelecimento

de uma identidade coletiva por exemplo533

Temos alguns exemplos de elementos

retoacutericos que ilustram essa imprecisatildeo na historiografia especialmente no que concerne

a acontecimentos muito recuados no tempo e praticamente impossiacuteveis de se

comprovar Dessa maneira Ceacutesar (BGall VI 24) escreveu que ―houve ntes um tempo

533

Jaacute aprofundamos essa questatildeo nas paacuteginas 9 e 11 deste trabalho

222

em que os g uleses super v m os germ nos em virtude 534

No BGall VI 19 tambeacutem

tem-se ― teacute pouco ntes de noss eacutepoc os escr vos e clientes que er certo terem sido

estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados

junto 535

Em Liacutevio tambeacutem eacute possiacutevel encontrar esse tipo de argumentaccedilatildeo

especialmente em Ab urbe cond V 34 no trecho que trata da passagem dos gauleses

pelos Alpes ―nesse lug r est v m opostos os Alpes sem duacutevid natildeo me espanto que

eles pareccedilam insuperaacuteveis jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como

certamente temos na memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas (fabulis) sobre

Heacutercules 536

Do mesmo modo lecirc-se em Ab urbe cond V 35 ―Eu soube que foi essa a

tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram

ou natildeo com o poio de todos os povos d Gaacuteli Cis lpin 537

Como pontua Phillips

(1982 p 1001 e 1002) Liacutevio ao tratar dos acontecimentos da primeira deacutecada da sua

histoacuteria considerava desnecessaacuterio passar julgamento de verdade nas fabulae pois

verdadeiras ou natildeo elas serviam essencialmente como exempla para fins didaacuteticos e

simboacutelicos Em Pliacutenio encontramos vocabulaacuterio similar na HN V (4) 33 ele disse que

―haacute utores que dizem ter existido um cid de ch m d Her clei n foz do Roacuted no 538

Igualmente em HN XXXIII 5 (14) sobre o resgate que os romanos pagaram aos

gauleses tem-se ―muitos consider m que n verd de for m junt d s du s mil libr s de

ouro 539

Sobre ess s form s de enunci ccedilatildeo ―eu ouvi ou ―dizem que H rtog (1999 p

281) pontua

Depois da oacutepsis vem a akoeacute natildeo mais eu vi mas eu ouvi Eis um segundo

modo de intervenccedilatildeo do narrador na narrativa uma outra espeacutecie de marca de

enunciaccedilatildeo O eu ouvi reveza com o eu vi quando este uacuteltimo natildeo eacute mais

possiacutevel () Sua marca de enunciaccedilatildeo eacute se posso dizer assim menos forte

O narrador engaja-se menos mantendo-se a alguma distacircncia de sua

narrativa deixando em consequumlecircncia mais espaccedilo para o ouvinte modular

sua crenccedila Em resumo afrouxam-se suas reacutedeas (grifos do autor)

Igu lmente o ―cont -se ou ―muitos credit m que e outros enunciados do

tipo tambeacutem corroboram essa imprecisatildeo do discurso ao sinalizar para o puacuteblico-alvo

que tal passagem eacute vaga jaacute que natildeo se pode definir com exatidatildeo quando como ou por

534

P 128 535

Cf p 143 536

P 163 537

Trecho mencionado na p 165 Cf tambeacutem Ab urbe cond V 41 (p 175) ―Cont -se que estando agrave

frente M rco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recit r m um c nto ( ) 538

P 202 539

Cf p 216

223

quem tal narrativa foi produzida ou sequer para quem foi produzida (HARTOG 1999

p 282)

Ao considerarmos a definiccedilatildeo aristoteacutelica da retoacuterica como sendo a faculdade de

teorizar sobre o que eacute adequado em cada caso para convencer (Retoacuterica 1355b)

pretendemos nos proacuteximos subcapiacutetulos analisar os discursos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio

em seus objetivos de se construir e propagar uma imagem representativa do povo

gaulecircs A elocutio (enunciaccedilatildeo) do gecircnero epidiacutectico se operava sobretudo atraveacutes da

criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo de paradigmas (especialmente poliacuteticos militares ou eacuteticos)

dirigidos especificamente a um puacuteblico-alvo Como lembra Sebastiani (In Joly 2007

p 81) essa construccedilatildeo retoacuterica situava a verdade no plano da plausibilidade que o leitor

encontra no relato e natildeo necessariamente na exata correspondecircncia entre realidade e

discurso A retoacuterica portanto tambeacutem servia para instruir a audiecircncia para os limites do

proacuteprio texto de fato ao estabelecer as regras para a produccedilatildeo textual

independentemente do gecircnero escolhido mais do que o conteuacutedo em si o que era

bastante esperado pelo puacuteblico-alvo era a capacidade compositiva do autor e a sua

habilidade em compor sua obra respeitando essas normas reguladoras do gecircnero textual

(TRINGALI 1988 p 31)

Dessa maneira percebemos que um texto da Antiguidade qualquer que fosse

ele estava profundamente imbuiacutedo de uma finalidade especiacutefica e tudo no discurso era

voltado para um propoacutesito ou objetivo do autor nesse sentido o texto possui camadas

de significados elaboradas especialmente para um puacuteblico-alvo capaz de identificar e

reconhecer esses elementos No proacuteximo item aprofundaremos sobre as representaccedilotildees

dos gauleses detalhando os mecanismos retoacutericos que identificamos nos textos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho

421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo

Em se tratando das obras que compotildeem o nosso corpus os autores utilizavam

sobretudo duas formas de abordar o gaulecircs Eram elas a alienaccedilatildeo que focava no que o

outro tinha de diferente e a assimilaccedilatildeo (ou analogia) que enfatizava as semelhanccedilas

entre o povo retratado e a proacutepria cultura do emissor do discurso540

Como falamos

antes sobre esse mecanismo (especialmente no subcapiacutetulo 24) apenas retomaremos

540

Cf p 37-40 e p 57-58 sobre processos de alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo dos romanos feitos pelos gregos

224

aqui alguns aspectos de forma pontual de modo a obter uma visualizaccedilatildeo abrangente do

corpus

O primeiro autor que vimos neste trabalho foi Ceacutesar De todas as passagens jaacute

citadas relembraremos algumas delas nas quais percebemos esse mecanismo de

alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de gauleses por parte dos romanos541

O primeiro (e

significativo) trecho que temos eacute a narraccedilatildeo da morte de Pisatildeo Aquitano o gaulecircs que

lutou nas fileiras de Ceacutesar e se sacrificou pelo irmatildeo Nesse episoacutedio Pisatildeo e os

gauleses de modo geral foram retratados no BGall (IV 12) mais proacuteximos aos

romanos Ceacutesar simultaneamente ressaltou a alienaccedilatildeo dos germanos acentuando o

caraacuteter desonesto deles ao desrespeitarem a treacutegua como temos

Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil

(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que

atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em

nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-

se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles

rapidamente nos desordenaram com um ataque542

Por outro lado eacute no livro VI na famosa passagem etnograacutefica sobre gauleses e

germanos que Ceacutesar acentuou essa assimilaccedilatildeo dos gauleses (e a alienaccedilatildeo dos

germ nos) frente os rom nos Como o proacuteprio gener l escreveu ―jaacute que chegamos a

este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e

expor em que est s n ccedilotildees diferem entre si 543

Embora existissem vaacuterias naccedilotildees na

Gaacutelia Ceacutesar escreveu de forma uniforme sobre os seus costumes e haacutebitos de fato as

naccedilotildees que serviram de base para essas descriccedilotildees foram a dos eacuteduos e a dos seacutequanos

aliadas dos romanos e com as quais Ceacutesar teve mais contato O motivo de o general

romano ter feito essa uniformizaccedilatildeo da Gaacutelia servia ao seu propoacutesito de retratar todo

esse territoacuterio como sendo uacutenico facilitando o entendimento do seu puacuteblico-alvo para

essa campanha de conquista O autor jaacute deixou claro esse objetivo de tratar a Gaacutelia

como uma unidade territorial no proacuteprio proecircmio do BGall I 1 ―Tod Gaacuteli eacute

dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a

541

Para evitar a repeticcedilatildeo desnecessaacuteria do que jaacute foi discutido antes citaremos essas passagens mais

sucintamente no corpo do texto para rememorar os termos e figuras citados contudo sempre

colocaremos em notas a localizaccedilatildeo dos trechos completos 542

Cf excerto completo na p 125 543

BGall VI 11 cf p 136

225

terceir h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss

g uleseslsquo 544

Outro exemplo do mecanismo de alienaccedilatildeo entre romanos e gauleses eacute

encontrado no trecho em que Ceacutesar descreveu os druidas em BGall VI 14 Os galos

o contraacuterio dos rom nos natildeo confi v m ssuntos import ntes agrave escrit ―eles natildeo

consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos demais

assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e priv dos utiliz m s letr s greg s m is di nte

na mesma passagem tem-se a menccedilatildeo de que eles acreditavam em vida apoacutes a morte

―sobretudo querem persu dir de que s lm s natildeo perecem m s sim p ss m de uns p r

outros apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor

desprez do o temor d morte 545

Ora os romanos natildeo consideravam essencial morrer

gloriosamente em batalha mas sim guerrear vencer e sobreviver a inuacutemeros

combates546

Tambeacutem os celtas diferiam dos romanos no costume de considerar a

divisatildeo do tempo natildeo pelos dias mas sim pelas noites e ainda no fato de eles natildeo

admitirem que os filhos aparecessem em puacuteblico diante de si ateacute que se tornassem

adultos como vemos em BGall VI 14

Eles delimitam as divisotildees de todo o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas

sim pelo das noites () Nos demais costumes de vida os gauleses diferem

dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos

venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem

assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade

pueril aparece publicamente agrave vista do pai

De maneira geral Ceacutesar mais acentuou as semelhanccedilas do que as diferenccedilas

entre gauleses e romanos No trecho VI 13 percebemos que os gauleses embora

considerados muitas vezes como primitivos no De bello Gallico jaacute possuiacuteam vaacuterias

caracteriacutesticas consideradas civilizadas para os romanos como o fato de eles possuiacuterem

um erudiccedilatildeo ―um gr nde nuacutemero de jovens acorre ateacute eles para educar-se e os druidas

desfrut m de gr nde honr dez junto deles 547

Tambeacutem haacute certo fundamento

civilizatoacuterio na menccedilatildeo agrave heranccedila para maridos e esposas como se lecirc em BGallVI 19

Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto

reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em

544

Cf p 129 545

Cf p 140 546

Detalhamos esse tema na nota 355 p 182 547

P 137 e 138

226

conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos

qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os

rendimentos do tempo precedente

E por fim utorid de do p i per nte os outros membros d f miacuteli ―os

maridos possuem direito de vida e morte tanto sobre as esposas quanto sobre os

filhos 548

Mesmo assim nessa mesma passagem o caraacuteter baacuterbaro do gaulecircs pode ser

encontrado no fato de que Ceacutesar escreveu que as mulheres poderiam ser torturadas caso

morte dos seus m ridos fosse suspeit ―qu ndo morre um chefe da famiacutelia nascido em

posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e havendo alguma suspeita sobre a

morte sujeitam as esposas a um interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto

lgo eles s execut m tortur d s pelo fogo e com todos os tormentos 549

Igualmente

teacute pouco ntes d cheg d de Ceacutes r ―os escr vos e clientes que er certo terem sido

estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados

junto 550

Podemos tambeacutem acrescentar que ao utilizar termos e conceitos da sociedade

romana (como chefe de famiacutelia cliente etc) para descrever os galos Ceacutesar optou por

f zer um comp r ccedilatildeo que foi leacutem do mero ―a eacute como b Como Hartog (1999 p 241)

esclarece aleacutem desse tipo de comparaccedilatildeo elementar a eacute como b (sendo a e b

diretamente comparaacuteveis) existem outras formas de comparaccedilotildees mais sutis em que haacute

uma mudanccedila de registro assim quando essa comparaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel porque a e b

natildeo podem ser considerados equivalentes deve-se entatildeo fazer uma transposiccedilatildeo Na

Retoacuterica a Herecircnio (IV 45 59) o autor deixou claro que a comparaccedilatildeo serve para

embelezar provar explicar ou tornar algo manifesto A seguir ele fez uma explicaccedilatildeo

detalhada das quatro maneiras em que eacute possiacutevel efetuar essa comparaccedilatildeo (similitudo

em latim) satildeo elas contraste negaccedilatildeo paralelismo ou comparaccedilatildeo abreviada551

Dessas

quatro maneiras a que nos interessa aqui eacute a comparaccedilatildeo por paralelismo ndash que foi

descrito pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio (IV 47 60) como sendo uma maneira de

colocar algo diante dos olhos No caso de Ceacutesar ao natildeo conseguir efetuar a comparaccedilatildeo

da sociedade gaulesa como sendo parecida com a romana ele optou pelo paralelismo

os galos possuem instituiccedilotildees que podem ser comparaacuteveis agraves romanas e o uso do

vocabulaacuterio latino por parte de Ceacutesar facilitou esse paralelismo como no exemplo do

548

BGall VI 19 (p 143) 549

Mesmo trecho da nota acima 550

P 143 551

Para o detalhamento de cada tipo de comparaccedilatildeo cf Retoacuteria a Herecircnio IV 46-48

227

pater familias (chefe de famiacutelia) citado acima Evidentemente os gauleses natildeo

possuiacuteam tal conceito do chefe de famiacutelia o paralelismo funcionou aqui de forma a

facilitar o entendimento do puacuteblico-alvo de Ceacutesar em compreender como se organizava

a estrutura familiar dos galos Ainda de cordo com H rtog (1999 p 245) ess ―ficccedilatildeo

n rr tiv visa a convencer o destinataacuterio do seu argumento de fato trata-se de ―uma

diferenccedila assinalaacutevel e mensuraacutevel o que significa que eacute dominaacutevel Por conseguinte

Ceacutesar ao fazer com que romanos e gauleses fossem assimilados (e alienando os

germanos) deixou claro que o primeiro grupo poderia ser abarcado por Roma enquanto

que o segundo seria simplesmente deixado de lado

Voltando agora agrave questatildeo sobre o que era considerado um comportamento

baacuterbaro (na opiniatildeo de gregos e romanos) temos o fato dos gauleses praticarem

sacrifiacutecios humanos (VI 16)

Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse

motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se

encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas

ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os

druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com

a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo

pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente

instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros

entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses

membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem

mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos

por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute

muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de

inocentes

Ceacutesar mesmo evitando emitir julgamento de valor no fato dos gauleses terem

esse costume de imolar seres humanos citou esse estereoacutetipo que considero o mais

comum na Antiguidade (e ateacute os dias de hoje) para caracterizar alguma naccedilatildeo como

baacuterbara552

Qu nto ess form ―neutr de se referir o comport mento d imol ccedilatildeo de

homens Hartog (1999 p 268) lembra que ao se optar por descrever praacuteticas

abominaacuteveis (abominaacuteveis do ponto de vista de quem narra) de um modo

completamente isento de opiniatildeo esse tipo de narrativa produz um maior efeito de

alteridade para tanto geralmente o autor emprega um vocabulaacuterio teacutecnico ―como se se

tratasse das praacuteticas mais simples e corriqueiras do mundo Ainda segundo Hartog

(1999 p 269)

552

Contemporacircneo a Ceacutesar Diodoro escreveu sobre sacrifiacutecios humanos praticados por gauleses em

Biblioteca V 31 2 a 4

228

A ausecircncia de marcas de enunciaccedilatildeo ou seu apagamento eacute pois uma das

teacutecnicas empregadas pelo narrador para aumentar o peso da alteridade de sua

narrativa Ele daacute a impressatildeo de transmitir ao destinataacuterio a alteridade em

―est do bruto ou ―selv gem Tod via os vestiacutegios enunciativos que

pontuam a descriccedilatildeo dirigem-se ao saber impliacutecito do destinataacuterio e orientam

a maneira como este a recebe

Pliacutenio por sua vez fez uma descriccedilatildeo criacutetica desse costume ressaltando que os

gauleses praticavam monstruosidades como vimos em Historia naturalis XXX IV

(13)

Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a nossa eacutepoca

O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e esse tipo de

adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria isso sobre uma

arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da natureza Ainda hoje a

aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos de modo que possa

parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os povos em todo o

mundo ainda que entre si fossem diferentes e desconhecidos por fim

entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar suficientemente o

quanto se deve aos romanos que suprimiram essas monstruosidades para as

quais era muito religioso sacrificar um homem e o fato de devoraacute-lo era

considerado salutar

Pelo trecho acima Pliacutenio deixou claro que essa monstruosidade consistia no

consumo de carne humana A esse respeito Aristoacuteteles deixou claro que o canibalismo

era o ponto mais baixo do comportamento baacuterbaro Assim temos na Eacutetica Nicomaqueia

(1148b)

ιέγσ δὲ ηὰο ζεξηώδεηο νἷνλ ηὴλ ἄλζξσπνλ ἣλ ιέγνπζη ηὰο θπνύζαο

ἀλαζρίδνπζαλ ηὰ παηδία θαηεζζίεηλ ἢ νἵνηο ραίξεηλ θαζὶλ ἐλίνπο ηλ

ἀπεγξησκέλσλ πεξὶ ηὸλ Πόληνλ ηνὺο κὲλ ὠκνῖο ηνὺο δὲ ἀλζξώπσλ

θξέαζηλ ηνὺο δὲ ηὰ παηδία δαλείδεηλ ἀιιήινηο εἰο εὐσρίαλ ἢ ηὸ πεξὶ

Φάιαξηλ ιεγόκελνλ

Considero por ejemblo brutales disposiciones como la de la mujer de

quien se dice que hiende a las prentildeadas para comerse a los nintildeos o aqueacutellas

como las de algunos pueblos salvajes del Ponto que se complacen en comer

carne cruda o carne humana o se entregan unos a outros los nintildeos para los

banquetes o lo que se cuenta de Faacutelaris553

Todavia Ceacutesar buscou mais assimilar os galos aos romanos jaacute que ele se

preocupava em estabelecer uma relaccedilatildeo profunda entre Roma e essas naccedilotildees atraveacutes de

uma ocupaccedilatildeo militar Dessa maneira o autor deixou claro o propoacutesito poliacutetico de sua

553

―Considero por exemplo brut is s disposiccedilotildees como d mulher d qu l se diz que el cort s

graacutevidas para comer as crianccedilas ou aquelas como as de alguns povos selvagens do Ponto que se

comprazem em comer carne crua ou carne humana ou se entregam uns aos outros as crianccedilas para os

b nqueletes ou o que se cont de Faacutel ris Essa citaccedilatildeo de Aristoacuteteles foi retirada da traduccedilatildeo feita por

Bonet (ARISTOacuteTELES 1998 p 303)

229

obra os gauleses (em parte civilizados e assimilados) seriam abarcados no processo de

conquista jaacute os germanos exemplos maacuteximos de baacuterbaros natildeo entrariam nesse plano

de subjugaccedilatildeo554

Por isso ainda no livro VI Ceacutesar aprofundou as diferenccedilas entre

romanos (e gauleses) frente aos germanos Os germanos seriam mais baacuterbaros pelo fato

de que ao contraacuterio dos gauleses eles natildeo possuiacuterem ―druid s que presid m os ritos

religiosos nem pr tic m s crifiacutecios e ―tod su vid consiste em c ccedil d s e exerciacutecios

de praacutetic milit r555

Aleacutem disso eles ―natildeo pr tic v m gricultur nem possuiacute m

terr s proacutepri s 556

Passando agora a Liacutevio no Ab urbe condita o autor usou apenas a ferramenta da

alienaccedilatildeo ndash mesmo descrevendo diferentes naccedilotildees Isso se justifica pelo fato de que ele

buscou enfatizar que todos os outros povos seriam inimigos de Roma Evidentemente

em uma obra com forte propoacutesito nacionalista era isso que o puacuteblico esperava encontrar

nesse tipo de narrativa Na verdade Liacutevio natildeo teve um interesse em se aprofundar na

etnografia ou em explicar as caracteriacutesticas poliacutetico-culturais desses povos pela forte

caracteriacutestica moralista do historiador os inimigos de Roma sobretudo representavam

arqueacutetipos de viacutecios a serem evitados pelos cidadatildeos da Urbe557

Liacutevio por conseguinte

deixou claro que o que era mais importante em sua obra era analisar os feitos histoacutericos

e aconselhou

Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos

histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora

ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por

princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar558

Sobre Pliacutenio em suas anaacutelises sobre os gauleses ele natildeo se preocupou muito em

assimilar ou alienar esse povo e mais adiante veremos alguns exemplos disso De fato

ele mesmo disse em Historia naturalis que natildeo f l ri sobre ―os engenhos costumes

homens e povos vencidos pel liacutengu e pel lut 559

Pliacutenio se concentrou mais em

legitimar o imperialismo romano e criar uma identidade cultural que abarcasse a todos

os povos que faziam parte desse impeacuterio Outro fator que corrobora esse aspecto era

554

Para discussatildeo aprofundada sobre esse assunto cf p 147 555

BGall VI 21 p 144 556

BGall VI 22 p 145 Sobre a falta de agricultura como sinal de barbaacuterie ver tambeacutem a nota 159 na p

86 557

Cf p 158 e 159 sobre o papel moralizante da Ab urbe cond Quanto ao (mau) retrato que Liacutevio fez dos

gauleses jaacute mencionamos esses estereoacutetipos ao longo de todas as passagens jaacute citadas no subcapiacutetulo 35

Por tal motivo natildeo repetiremos aqui esses trechos 558

Cf sect10 p 158 em traduccedilatildeo de Oliva Neto 559

Ver HN III VI 42 na p 204 e 205

230

porque em sua eacutepoca as obras de etnografia eram de faacutecil acesso por isso ele natildeo visou

a reescrever sobre esse tema560

422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia

Nos trechos do corpus analisado encontramos alguns exemplos sobre como a

genealogia servia de ferramenta para a assimilaccedilatildeo (ou alienaccedilatildeo) dos celtas por parte

dos romanos Aleacutem disso como destaca Woolf (2011 p 41) mitos genealoacutegicos

serviam como um instrumento versaacutetil para relacionar grupos eacutetnicos bem como para

estabelecer uma certa hierarquia temporal entre eles Aleacutem disso a genealogia era usada

para relacionar esses grupos a histoacuterias de migraccedilatildeo em consideraacuteveis distacircncias Com

essas consideraccedilotildees em mente destacamos as seguintes passagens

Ceacutesar (BGall II 4) deixou claro que os belgas eram fortes porque descendiam

dos germanos

a maior parte dos belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo

atravessaram o Reno por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram

tendo expulsado os Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos

que pela lembranccedila dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram

os teutotildees e os cimbros de adentrar em seu territoacuterio

Vecirc-se acima que os belgas foram os uacutenicos que conseguiram impedir a invasatildeo

dos cimbros e teutotildees agraves suas terras Outra passagem emblemaacutetica sobre a importacircncia

da genealogia ndash e que mais uma vez destacamos ndash eacute o trecho sobre Pisatildeo Aquitano

(BGall IV 12) Ceacutesar justificou o fato de o gaulecircs ser aliado dos romanos ao escrever

que ―Pisatildeo Aquit no er n scido de import ntiacutessim f miacuteli cujo vocirc obtiver o

com ndo em su cid de e que for ch m do migolsquo por nosso sen do 561

O avocirc de

Pisatildeo muito provavelmente fora cidadatildeo romano ele proacuteprio pois recebeu essa alcunha

de ― migo pelo sen do d Urbe Aind eacute digno de not o proacuteprio nome Pisatildeo de

origem latina usado para designar esse indiviacuteduo muitas vezes os clientes e aliados dos

romanos adotavam o nome das famiacutelias que lhes favoreciam (BORNECQUE

MORNET 2002 p 84)

Em Liacutevio salientamos a genealogia de Beloveso e Segoveso sobrinhos do rei

Ambigato que foram enviados pelo tio para conquistar novos territoacuterios para os celtas

no episoacutedio em que Liacutevio escreveu sobre as migraccedilotildees dos galos para a Itaacutelia Em Ab

560

Sobre o papel poliacutetico e cultural da erudiccedilatildeo cf p 198 e 199 561

Cf p 125

231

urbe cond V 34 temos que Ambig to ―est ndo idoso e jaacute desej ndo livr r o reino de

uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso filhos da

sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes mostrariam por meio

de uguacuterios 562

Como pontua Woolf (2011 p 10) essa narrativa buscou conectar as

populaccedilotildees da Gaacutelia do norte da Itaacutelia e o Danuacutebio em uma eacutepoca em que os antigos

estudiosos concluiacuteram que celtas galos e gaacutelatas eram essencialmente povos com uma

mesma origem territorial ancestral563

Ciacutecero no Pro Fonteio (30) jaacute fizera essa ligaccedilatildeo

dos gaacutelatas (e os que saquearam Roma) como tendo sua origem na Gaacutelia

Essas satildeo as naccedilotildees que outrora partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute

Delfos para atacar e pilhar Apolo Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas

mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e

aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu nome os maiores dos nossos quiseram ter a

boa-feacute dos testemunhos

Dessa maneira o recurso da genealogia podia ser usado de forma versaacutetil para

explicar e relacionar grupos eacutetnicos da Gaacutelia dentre alguns exemplos os proacuteprios

gregos consideravam que os galos eram descendentes de um gigante chamado Keltos

outra variaacutevel atestava que esse povo teve sua origem com Heacuteracles na eacutepoca em que

ele passou por essa regiatildeo e se relacionou com a princesa de nome Celta564

423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia

Na Antiguidade a geografia desempenhava um importante papel para a

construccedilatildeo das imagens fiacutesicas e morais dos povos descritos por gregos e romanos565

Foi a partir do texto Ares aacuteguas e lugares atribuiacutedo a Hipoacutecrates (seacuteculo V aC) que

se fundamentou em detalhes a teoria de que as condiccedilotildees climaacuteticas e naturais de uma

regiatildeo determinavam o caraacuteter e compleiccedilatildeo fiacutesica dos seus habitantes De acordo com

esse pensamento quanto mais ameno o clima (como na Aacutesia) mais fraco e tranquilo o

povo se as circunstacircncias do ambiente fossem severas (como em certas aacutereas da

Europa) consequentemente os indiviacuteduos seriam mais fortes e corajosos Como lembra

Gruen (In BUGH 2006 p 295 e 296) para os antigos gregos o clima sozinho era

capaz de produzir diferenccedilas essenciais entre os proacuteprios gregos os europeus os citas

562

Cf p 163 563

Cf nota 84 sobre a explicaccedilatildeo dos gregos para o surgimento dos galos 564

Cf nota 84 565

Cf tambeacutem p 32 e 33 deste trabalho

232

os asiaacuteticos e outros povos566

O proacuteprio Hipoacutecrates (Aer XII 2 e 6) a respeito dos

asiaacuteticos registrou

Afirmo que a Aacutesia difere mais da Europa no que concerne agraves naturezas de

todas as coisas que brotam da terra e dos homens Pois na Aacutesia tudo eacute muito

mais belo e maior essa regiatildeo eacute mais doacutecil e os caracteres dos homens mais

amenos e mais afaacuteveis A causa disso eacute a mistura das estaccedilotildees porque a Aacutesia

fica em meio aos levantes do Sol voltada para a aurora e mais aleacutem do frio

() Eacute normal que essa regiatildeo esteja muito proacutexima da primavera conforme a

natureza e moderaccedilatildeo das estaccedilotildees Natildeo seria possiacutevel que a virilidade a

vivacidade o gosto pelo esforccedilo e o caraacuteter resoluto estivessem contidos em

tal natureza567

Quanto aos europeus temos (Aer XXIII 1-3)

A outra estirpe a que se situa na Europa eacute muito diversificada entre si tanto

no que concerne agrave estatura quanto no que diz respeito agrave compleiccedilatildeo Isso por

causa das mudanccedilas das estaccedilotildees que satildeo grandes e frequentes do forte calor

do sol aleacutem dos invernos rigorosos das chuvas abundantes e de forma

inversa das estiagens prolongadas e dos ventos ndash nos quais as mudanccedilas satildeo

numerosas e diversificadas () O mesmo raciociacutenio se aplica aos caracteres

O caraacuteter selvagem indoacutecil e indomaacutevel existe numa natureza como essa

Pois os golpes frequentes no espiacuterito implantam a selvageria e destroem a

docilidade e a amenidade Por isso considero que os habitantes da Europa

satildeo mais animosos do que os da Aacutesia pois em climas quase iguais haacute

indolecircncia em climas que se modificam haacute a vivacidade no corpo e na alma

e a partir da tranquilidade e da indolecircncia aumenta a covardia a partir da

vivacidade e dos esforccedilos aumenta a virilidade568

Considerando os dois excertos acima de Hipoacutecrates remetemos a Tito Liacutevio

que usou esses mesmos argumentos para caracterizar (e depreciar) os galos Em Ab urbe

cond V 48 o autor disse

() tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois eles fizeram seu

acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as colinas esse lugar

era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de vapor tambeacutem a cinza e

o poacute com qualquer movimento do vento se levantavam Esse povo era muito

intolerante a isso pois estava acostumado agrave umidade e ao frio abalados por

esse calor e tormento eles morriam como gado quando se espalhavam as

doenccedilas

Do mesmo modo encontramos na geografia a justificativa que Liacutevio usou para

explicar por que os gaacutelatas eram mais fracos que os galos jaacute que eles emigraram para a

566

Aleacutem de Gruen Borca (p 42 e ss) fala bastante sobre como os gregos compreendiam o mundo e

explica detalhadamente a teoria hipocraacutetica em relaccedilatildeo aos modos e caraacuteter dos indiviacuteduos que habitavam

aacutereas especiacuteficas do mundo entatildeo conhecido 567

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 103-104) 568

Traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 110-111)

233

Aacutesi Menor Assim ele escreveu ―ness eacutepoc os nossos ncestr is tiver m cont to com

gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de agora estatildeo degenerados

miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos 569

No mesmo trecho Liacutevio

afirmou que os gauleses amoleceram ao se estabelecerem em um territoacuterio tatildeo propiacutecio

e ssim descreveu ess regiatildeo ―ess terr que produz um f rtur de tod s s cois s

acolheu esses homens endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo

feacutertil com ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham

qu ndo cheg r m se br ndou Por fim ind nesse c piacutetulo Liacutevio deixou registr do o

lert ―esses pr zeres estr ngeiros t nto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o

mesmo pode ocorrer tr veacutes do cont to com os haacutebitos e costumes dos vizinhos

Sobre essa teoria da geografia influir na constituiccedilatildeo fiacutesica e moral de um grupo

de indiviacuteduos o ponto de vista de Liacutevio a esse respeito era muito estrito ele como

historiador que visava exaltar Roma apenas considerava a influecircncia do meio

geograacutefico em termos de consequecircncias morais que essencialmente determinavam o

valor guerreiro (no caso o dos romanos objeto de sua glorificaccedilatildeo) ou a falta de

coragem de um grupo que em Ab urbe Condita pode ser resumido a todos os que natildeo

eram romanos (GIROD 1982 p 1223)

Embora a teoria geograacutefica tenha entrado em voga no seacuteculo V aC ela passou a

ter contornos poliacuteticos mais niacutetidos com Aristoacuteteles Na Poliacutetica (1327b) o Estagirita

especifica que os gregos beneficiaacuterios de um clima equilibrado entre estaccedilotildees amenas e

duras eram superiores aos outros povos da Europa que mesmo sendo fortes para

suportar climas desfavoraacuteveis eram estuacutepidos e incapazes de governarem a si mesmos

Dessa maneira Aristoacuteteles justificava o domiacutenio dos gregos sobre as outras naccedilotildees

alegando que eles eram os mais capacitados para governar Posteriormente os romanos

pelo menos nos textos literaacuterios utilizaram-se desse argumento para justificar sua

postura imperialista Nesse contexto selecionamos certos trechos de Ceacutesar que

consideram o gaulecircs por esse prisma O autor justificou o fato de que belgas eram os

mais corajosos da Gaacutelia pois aleacutem de estarem mais distantes de Roma eles se

encontravam mais proacuteximos aos germanos com os quais lutavam constantemente em I

1

569

Ab urbe cond XXXVIII 17 cf Trecho completo na p 189 a 191 Vecirc-se tambeacutem certo aspecto

genealoacutegico pois os galos se enfraqueceram tambeacutem pela miscigenaccedilatildeo com os gregos

234

de todos esses os mais corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da

civilizaccedilatildeo e urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e

importam aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque

estatildeo proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com

esses travam guerra constantemente

Pela mesma razatildeo os helveacutecios se destacavam em termos de bravura ―os

helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em coragem jaacute que lutam em

combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer quando os afastam de suas fronteiras

quer qu ndo lev m por si guerr os territoacuterios d queles (BGall I 1) Outro fator

geograacutefico que serviu para enfraquecer os gauleses foi a proximidade com a proviacutencia

da Gaacutelia Cisalpina e a influecircncia da humanitas como visto no trecho acima e que

tambeacutem aparece novamente em BGall VI 24

a proximidade das proviacutencias e o conhecimento dos itens de aleacutem mar

propiciam aos gauleses muitos meios para a fartura e a comodidade e aos

poucos acostumados a serem superados e vencidos em muitos combates

sequer se comparam eles proacuteprios aos germanos em bravura

Pelos excertos acima percebemos que em Ceacutesar a superioridade de uma naccedilatildeo

sobre a outra (ou o seu enfraquecimento) se dava por questotildees geograacuteficas

semelhantes aos argumentos defendidos por Aristoacuteteles e mencionados no paraacutegrafo

anterior Nos exemplos acima os belgas foram descritos como superiores aos outros

galos porque viviam mais perto das fronteiras da Germacircnia e do seu clima (e povo)

hostil Curioso notar que Liacutevio considerava a proximidade com os povos da Aacutesia

Menor como fator de enfraquecimento dos galos pois a Aacutesia era muito agradaacutevel em

termos climaacuteticos Ceacutesar ao contraacuterio fazia uma afirmaccedilatildeo bem diferente e que pode

nos soar contraditoacuteria para o general os gauleses se amoleciam devido agrave sua

proximidade com Roma como mencionamos acima

Quanto a Pliacutenio ainda sobre o quesito da boa reputaccedilatildeo de um lugar e seus

habitantes como sendo diretamente proporcional agraves benesses geograacuteficas e climaacuteticas

ele escreveu que a Narbonense na verdade deveria ser considerada como parte da

proacutepri Itaacuteli ―devido agrave cultur dos seus c mpos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e

pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci 570

O elogio agrave Itaacutelia em Historia

570

HN III 5 31 p 201 Outro fator que explica o por quecirc de Pliacutenio ter escrito isso foi o fato de ele

mesmo ter nascido em Como que antes estava localizada na Gaacutelia Cisalpina e soacute recebeu a cidadania

romana no seacuteculo I aC

235

naturalis pelo mesmo motivo tambeacutem eacute muito significativo os romanos se

sobressaiacuteam aos outros povos pois segundo Pliacutenio eles habitavam no melhor lugar do

mundo conhecido ateacute entatildeo (HN III VI 41)

De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene grande equiliacutebrio do

clima campos muito feacuterteis colinas bastante ensolaradas bosques bastante

intactos muitas florestas sombreadas inuacutemeros tipos generosos de matas

vaacuterios ventos dos montes enorme fertilidade de frutos das videiras e das

oliveiras tatildeo nobres velos dos animais muitas nucas gordas de touros tantos

lagos tamanha abundacircncia de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia

tantos mares portos e o seio das terras que se abre ao comeacutercio por todos os

lados e que avanccedila de tal forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios

mares

Pliacutenio natildeo se preocupou tanto com a etnografia de fato em obras do gecircnero

enciclopeacutedico (assim como a Biblioteca de Diodoro) a geografia se sobrepunha agrave

investigaccedilatildeo etnograacutefica Por esse motivo era comum o esquema organizacional de

descriccedilotildees geograacuteficas como periplum571

uma vez que isso minimizava as mudanccedilas de

ordem cultural ou poliacuteticas tudo estava subordinado agrave geografia inclusive a proacutepria

etnografia (WOOLF 2011 p 11) Por essa razatildeo encontramos mais exemplos da

geografia relacionados agrave etnografia em Ceacutesar e Liacutevio do que em Pliacutenio

43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade

Dando sequecircncia agraves nossas anaacutelises retoacutericas passaremos ao uacuteltimo toacutepico

instrumental da construccedilatildeo da imagem do gaulecircs no corpus escolhido que se deu

atraveacutes de vocabulaacuterio e figuras de linguagem recorrentes

431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio

Ao longo deste trabalho estudamos alguns termos muito usados pelos romanos

para se referirem aos gauleses Veremos entatildeo como eles aparecem nos textos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e como estatildeo de acordo com as normas dos gecircneros de

composiccedilatildeo de cada uma dessas narrativas

Os eacutetimos mais significativos que surgiram foram baacuterbaro e feroz Em Ceacutesar

esses vocaacutebulos apareceram para dois tipos de designaccedilotildees Sobre os germanos o

571

Sobre o periplum cf nota 442

236

gener l se referiu eles como sendo ―baacuterb ros e ferozes p r centu r que ess n ccedilatildeo

era mais selvagem do que os galos572

No outros excertos estudados de Ceacutesar a respeito

dos povos da Gaacutelia o baacuterbaro natildeo foi utilizado mas feroz sim Esse termo apareceu

exclusivamente para denominar os belgas natildeo sendo usado para nenhuma outra naccedilatildeo

da Gaacutelia Vimos que em BGall II 15 o autor se referiu aos neacutervios (uma naccedilatildeo belga)

como sendo ―homens ferozes e de gr nde virtude que censuravam e acusavam os

belgas restantes que tinham se rendido ao povo romano e abandonado os valores

paacutetrios 573

Essa denominaccedilatildeo se justificava em Ceacutesar porque de acordo com ele os

belgas seriam descendentes dos germanos aleacutem disso eles estavam mais distantes da

proviacutencia e da influecircncia civilizatoacuteria de Roma574

No caso dos neacutervios eles

consideravam que as outras naccedilotildees da Beacutelgica tinham se rendido aos romanos e perdido

seus valores paacutetrios como citado acima Os belgas contudo natildeo foram chamados de

baacuterbaros por Ceacutesar pois ele queria deixar clara a diferenciaccedilatildeo dos graus de barbaacuterie

entre galos e germanos mesmo sendo os mais corajosos da Gaacutelia os belgas tambeacutem

seriam submetidos a Roma Jaacute os germanos exemplo de ferocitas primitiva em Ceacutesar

natildeo estavam nos planos de conquista do general575

Mais uma vez fica evidente o caraacuteter

poliacutetico do De bello Gallico

Nas passagens estudadas de Liacutevio o termo baacuterbaro apareceu apenas para

designar os galos no sentido de povo estrangeiro substituindo o proacuteprio eacutetimo gaulecircs

Um exemplo disso estaacute em Ab urbe cond V 36 no episoacutedio em que os galos se

queixam do comportamento desrespeitoso dos Faacutebios que mesmo no papel de

emissaacuterios mataram o liacuteder dos gauleses Assim lemos ―os emissaacuterios dos g uleses

comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a accedilatildeo dos

Faacutebios e eles reconhecer m como sendo justo o pedido dos baacuterb ros 576

O proacuteprio

senado considerou que a postura dos Faacutebios foi indigna

De modo semelhante em V 38 (no qual haacute a narraccedilatildeo da vitoacuteria dos galos sobre

os rom nos proacuteximo o Aacuteli ) Liacutevio escreveu que ― teacute esse ponto natildeo pen s sorte

m s t mbeacutem inteligecircnci est v com os baacuterb ros 577

Em V 39 que trata do cerco a

572

Cf BGall I31 (p 103-105) e BGall I33 (p 134) 573

Cf p 131 574

Cf BGall I 1 em que Ceacutesar afirmou que os belgas eram os mais corajosos dentre os gauleses (p 129

e tambeacutem p 234) Sobre a ferocidade de germanos e gauleses ver p 143-145 575

Cf p 228 e 229 576

Ver p 167 577

Cf p 171

237

Rom os h bit ntes d Urbe ―logo ouvir m os gritos e uivos dissonantes dos baacuterbaros

que em b ndos per mbul v m em volt d s mur lh s 578

Jaacute o termo feroz em Ab urbe condita possui um emprego diferente mais do que

mera denominaccedilatildeo para os gauleses esse vocaacutebulo foi usado especialmente com o

sentido adverbial para ressaltar o mau comportamento dos galos579

Assim no episoacutedio

(V 36) em que os Faacutebios perguntaram aos galos qual interesse que eles tinham na

Etruacuteri eles responder m ―ferozmente que tinh m o direito tr veacutes d s rm s e tudo

pertenci os homens m is fortes n sequecircnci do mesmo trecho Liacutevio escreveu que

Quinto Faacutebio m tou o liacuteder dos g uleses que ―ferozmente se l nccedil v contr os

est nd rtes dos etruscos 580

Jaacute em V 37 Liacutevio descreveu a marcha dos gauleses ateacute

Rom dizendo ―jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e

esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com

horrendo cl mor 581

No trecho de Ab urbe cond VII 10 que descreveu o episoacutedio da

vitoacuteria de Macircnlio em um combate individual Liacutevio escreveu que o gaulecircs saltitava feroz

―di nte dos est nd rtes dos inimigos 582

Apenas em XXXVIII 17 atraveacutes do discurso

de Macircnlio p r os rom nos Liacutevio se referiu os g los como ―ess feroz n ccedilatildeo p r

acentuar que os gauleses outrora selvagens perderam muito do seu valor em guerra ao

emigrarem para a Aacutesia Menor miscigenando-se com os gregos e amolecendo os acircnimos

devido ao clima ameno e vizinhos paciacuteficos583

Por conseguinte com esse uso do

vocabulaacuterio Liacutevio buscou ressaltar o povo gaulecircs como inimigo de Roma

Sobre esses termos recorrentes para descreverem uma naccedilatildeo (como baacuterbaro

feroz dentre outros)584

percebemos que eles funcionavam como marcos colocados na

narrativa de modo que o puacuteblico imediatamente reconhecesse e identificasse o povo

descrito pelo autor do texto Como Rankin (1996 p 127) pontua esses termos-chave

usados repetidamente funcionavam na prosa quase como os epiacutetetos empregados na

eacutepica585

Em Ceacutesar um exemplo do uso de vocabulaacuterio que se aproximou da eacutepica pode

ser encontrado na caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo Aquitano586

Em Liacutevio natildeo soacute o uso de

578

P 173 579

De fato o termo feroz em latim relacionava-se a fera ou seja era um eacutetimo que designava um

comportamento primitivo natildeo-civilizado selvagem Cf tambeacutem p 40 para mais detalhes 580

Ver p 167 581

p 169 582

Cf p 182 583

p189-191 584

Aprofundaremos o estudo sobre os gauleses descritos como voluacuteveis altos (dentre outros

estereoacutetipos) no proacuteximo subcapiacutetulo que fala das figuras de linguagem 585

Sobre epiacutetetos e sua funccedilatildeo na eacutepica cf Almeida (2012 p 48 e ss) 586

Ver p 125

238

vocabulaacuterio mas toda a Ab urbe condita de modo geral pode ser entendida como uma

espeacutecie de eacutepica nacional587

A respeito de Pliacutenio ele natildeo empregou os termos baacuterbaro ou feroz para os

gauleses isso se justificava pelo fato de que em sua eacutepoca a Gaacutelia jaacute era uma proviacutencia

romana estabelecida e pacificada Natildeo fazia sentido Pliacutenio reescrever sobre a barbaacuterie

dos antigos galos jaacute que as fontes sobre esse tema eram acessiacuteveis ao puacuteblico de seu

tempo O seu interesse etnograacutefico por isso concentrou-se nos povos mais distantes e

que habitavam as fronteiras do mundo conhecido como por exemplo os indianos e os

etiacuteopes grandes exemplos de exotismo588

432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem

Apoacutes a anaacutelise do vocabulaacuterio passaremos agora ao estudo das imagens

cristalizadas dos gauleses que foram mais recorrentes nos trechos do corpus deste

trabalho para tanto utilizamos como referecircncia algumas das imagens citadas na

Retoacuterica a Herecircnio589

Mais do que anaacutelise dessas figuras tambeacutem levaremos em conta

outros fatores textuais utilizados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para a caracterizaccedilatildeo dos

galos como os argumentos e imagens empregados que podem ser inseridos na inuentio

(invenccedilatildeo) retoacuterica A primeira imagem que destacamos eacute a do gaulecircs retratado como

covarde e que facilmente fugia quando percebia que estava em desvantagem Ceacutesar no

episoacutedio da morte de Pisatildeo Aquitano disse que os germanos aterrorizaram os gauleses a

t l ponto que ―eles natildeo cess r m de fugir teacute virem agrave presenccedil de noss trop 590

Liacutevio

escreveu algo parecido no capiacutetulo da descriccedilatildeo da luta entre Valeacuterio e um gaulecircs Apoacutes

o confronto individual romanos e galos se enfrentaram mesmo com um iacutempeto inicial

de ataque os galos r pid mente desistir m do comb te Assim temos ―entre os que

avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os outros o embate foi atroz o resto da

multidatildeo ntes que pudesse l nccedil r os d rdos virou s cost s 591

Fica evidente na perspectiva analisada que os celtas embora movidos por uma

ira inicial facilmente abandonavam essa bravura Outro exemplo disso estaacute tambeacutem no

discurso de Macircnlio os rom nos em que ele diz que ―se resistirmos o primeiro t que

587

Cf p 158 e159 588

Cf p 199 e 200 589

Para todas as figuras de linguagem descritas nesse tratado cf IV 19 e ss 590

BGall IV 12 p 125 591

VII 26 p 186 e 187

239

que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se enfraquecem e

s rm s c em devido o suor e agrave f dig 592

Ainda achamos outro exemplo dessa

inconstacircncia dos gauleses tambeacutem citada por Macircnlio nesse mesmo discurso ele disse

que os rom nos jaacute est v m ―f mili riz dos com esses tumultos gaacutelicos e que t mbeacutem

conheci m ― s inconstacircnci s (uanitates) deles 593

Liacutevio adotou bastante essa imagem

do gaulecircs desordeiro e barulhento ao longo do Ab urbe condita De fato esse povo

demonstrava na narrativa um comportamento cecircnico na forma de agir para causar ainda

mais terror nos inimigos594

Encontramos exemplo disso em Ab urbe condV 37

Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as comunidades

aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a fuga com

grande clamor eles anunci v m ―v mos Rom Por onde quer que

passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e tropas se

espalhando em comprimento e largura () Jaacute todos os locais em frente e ao

redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com

canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor

No trecho acima percebemos a figura de linguaguem da acumulaccedilatildeo ndash no caso

das accedilotildees que vatildeo se sucedendo os celtas ocuparam enorme lugar com a sua fileira e

depois que preencheram todos os locais pela frente e pelos lados passaram a gritar para

aumentar o terror Igualmente em Ab urbe cond V 38 Liacutevio narrou o terror por parte

dos romanos

No exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem

junto aos comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os

acircnimos de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior

parte deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os

retivesse) e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas

e filhos Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra

linha de batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos

que estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que

sem nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram

um combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e

ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram

impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo

Na passagem anterior haacute a figura da gradaccedilatildeo de ideias que transmitem ao

puacuteblico-alvo como o pavor dos romanos na batalha foi paulatinamente aumentando

primeiro Liacutevio escreveu que os romanos natildeo pareciam com os proacuteprios romanos em

592

XXXVIII 17 p 191 593

Mesma passagem da nota acima 594

Diodoro Siacuteculo tambeacutem falou sobre esse tumulto causado pelos gauleses (Bibl V 30 3)

240

seguida uma parte dos soldados apavorada fugiu e tomou o caminho errado que levava

a Veios (e natildeo a Roma) Depois a tropa reserva por pouco tempo conseguiu resistir

mas ao ouvir o grito dos gauleses e sem sequer ver os inimigos de fato tambeacutem

debandou O aacutepice dessa gradaccedilatildeo estaacute ao final no qual temos que os romanos

morreram natildeo pelo combate em si mas sim pela bagunccedila desordenada e pela briga da

proacutepria multidatildeo dos soldados no desespero da fuga Por fim citamos Ab urbe cond

XXXVIII 17 um exemplo de como os galos provocavam terror

Eles possuem corpos enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e

espadas muito longas Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos

que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas

nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para

causar terror 595

Acima um outro exemplo de acumulaccedilatildeo aleacutem de sua imponente forma fiacutesica

os gauleses tambeacutem causavam pacircnico pelo seu modo de agir cantando gritando e

fazendo barulho com as armas

Outro elemento que comumente caracterizava o gaulecircs no corpus analisado era

sua leviandade Ceacutesar escreveu que eles eram voluacuteveis e tomavam decisotildees baseados

em rumores em IV 5

Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses

que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees

considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume

gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar

saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas

cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o

que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os

gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute

forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior

parte mente ao responder segundo a vontade deles

Em outra passagem Ceacutesar afirmou que os gauleses natildeo eram confiaacuteveis mas

sim gananciosos e levianos por causa dessa ganacircncia eles inclusive desrespeitaram a

garantia dada ao tribuno Marco Ariacutestio e atacaram os cidadatildeos romanos como se lecirc em

BGall VII 42

Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido

os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para

verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que

eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram

595

Essa imagem do gaulecircs aterrorizante apareceu em Diodoro (Bibl V 31 1)

241

qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos

romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a

fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-

se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio

tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias obrigam

a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar Logo os

atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam dia e noite

os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam maior

multidatildeo agraves armas

Um outro exemplo dessa ganacircncia dos galos pode ser tambeacutem encontrado em

Liacutevio no episoacutedio em que os gauleses ao receberem o butim dos romanos apoacutes o saque

da Urbe trouxeram uma balanccedila injusta Em Ab urbe condita V 48 temos

Logo na conferecircncia entre Q Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos

gauleses arranjou-se um acordo foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao

povo que em breve haveria de governar as naccedilotildees Uma indignidade foi

acrescida a essa determinaccedilatildeo bastante vergonhosa pois a balanccedila que os

gauleses trouxeram era injusta Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs

insolente adicionou a espada ao peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os

rom nos dizer ― i dos vencidos

O comportamento do gaulecircs contra Tito Macircnlio no confronto narrado em Ab

urbe cond VII 10 tambeacutem foi insensato jaacute que o oponente de Macircnlio antes de lutar

saltitava feroz diante dos estandartes estava insensatamente feliz e mostrava a liacutengua

em escaacuternio demonstrando um comportamento temeraacuterio de quem jaacute tinha vencido a

luta596

apesar de tudo isso ele foi rapidamente derrotado pelo romano597

Em Liacutevio

essa ferocidade cega e inuacutetil do gaulecircs se contrapunha agrave astuacutecia e sangue-frio do

rom no como disse Macircnlio no discurso os rom nos ―de f to Tito Macircnlio e M rco

Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana (Romana uirtus) se sobressaiacutea agrave fuacuteria

gaulesa (Gallicam rabiem)598

Nos escritos de Ceacutesar e Liacutevio notamos que algumas vezes os galos eram

movidos por certas maacutes tendecircncias natas e por isso difiacuteceis de serem dominadas No

BGall VII 42 lemos ― cobiccedil (auaritia) impele alguns a outros a ira (iracundia) e a

temeridade (temeritas) que eacute especi lmente in t ness espeacutecie de homens 599

Jaacute Liacutevio

disse que os g los ―qu ndo souber m que for concedid t l honr os viol dores do

direito das naccedilotildees e aleacutem disso ter sido frustrada a sua embaixada inflamados pela ira

596

Em Diodoro (Biblioteca V 29 2 e 3) o apareceu o caraacuteter fanfarratildeo dos gauleses bem como o haacutebito

de um deles se adiantar para propor um confronto individual com o inimigo 597

Cf p 182 e 183 598

XXXVIII 17 p 189 e 191 599

Cf trecho completo a partir da paacutegina anterior

242

(que esse povo eacute incapaz de controlar) imediatamente tomaram os estandartes e

m rch r m pelo c minho com fileir press d 600

Outro exemplo de comportamento considerado baacuterbaro dos galos estaacute em Liacutevio

que disse em XXXIII 24

Os boios exultantes levaram ateacute o templo que era muito sagrado entre eles

os despojos do corpo e a cabeccedila decepada do general Entatildeo apoacutes limparem a

cabeccedila como era o costume deles ornaram o cracircnio com ouro que para eles

passou a ser um recipiente sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas

solenidades e o mesmo serviria de copo para os sacerdotes do templo 601

Os gauleses igualmente eram preocupados com sua religiatildeo Ceacutesar (BGall VI

16) disse ―tod n ccedilatildeo dos g uleses eacute muito d d os escruacutepulos religiosos 602

Liacutevio

no episoacutedio em que conta a travessia dos Alpes feita pelos galos (Ab urbe cond V 34)

escreveu que natildeo soacute a altura das montanhas os retinha mas tambeacutem a religiatildeo na

verdade eles ajudaram os marselheses contra os saacutelvios e igualmente fundaram Milatildeo

seguindo pressaacutegios603

A respeito da aparecircncia fiacutesica dos gauleses era comum eles serem descritos

como enormes e fortes Essas descriccedilotildees dos galos se encaixam na figura da hipeacuterbole

de fato as caracteriacutesticas fiacutesicas (e ateacute comportamentais) dos galos satildeo bastante

exageradas a fim de enfatizar esse caraacuteter baacuterbaro e que inspirava terror nos outros Por

isso eles eram comumente descritos como possuidores de corpos imensos de grande

estatura etc604

Liacutevio (VII 10) ao contar o confronto entre Macircnlio e um galo descreveu

esse uacuteltimo como possuidor de um corpo ―notaacutevel pelo t m nho respl ndecente em

um veste multicolorid de vaacuterios tons e com rm s orn d s de ouro 605

Era recorrente

a representaccedilatildeo de os gauleses lutarem usando ornamentos de ouro e vestes coloridas e

chamativas606

Outra passagem que destacamos a esse respeito estaacute tambeacutem no Ab urbe

cond XXXVIII 17 em que os g uleses for m descritos por Liacutevio como tendo ―corpos

600

Ab urbe cond V 37 p 169 601

Capiacutetulo completo na p 188 e 189 Sobre o costume de se guardar cabeccedilas como trofeacuteus cf Diodoro

(Bibl V 29 5) e Estrabatildeo (parafraseando Posidocircnio) em Geog IV 4 5 (p 85 e 86 desse trabalho) 602

P 141 603

p 163 e 164 604

Esse estereoacutetipo do gaulecircs de grande estatura tambeacutem apareceu em Poliacutebio (Histoacuterias II 15 7 na p

49) Diodoro (Biblioteca V 28 1 na p 82) e Estrabatildeo (Geog IV 4 2 na p 85) 605

Cf p 183 606

Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) falou natildeo soacute do fato de os gauleses gostarem de andar cobertos de ouro

mas ainda sobre seu caraacuteter fanfarratildeo

243

enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito long s 607

Pliacutenio

utilizando-se do relato de Liacutevio sobre a luta de Torquato (que recebeu esse nome ao

pegar o colar de ouro do gaulecircs derrotado) afirmou (HN XXXIII V 14) ―como

indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar us ndo ouro

44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz

Falaremos agora da arqueologia enquanto elemento paratextual desta pesquisa

O recorte temporal seraacute o mesmo adotado ateacute aqui isto eacute de meados do seacuteculo II aC

(quando temos relatos mais consistentes sobre as naccedilotildees da Gaacutelia) ao seacuteculo I dC

Como pontua Dyson (In ERSKINE 2009 p 61) a arqueologia eacute a ferramenta central

nos estudos da Antiguidade que possibilita ampliar confirmar ou refutar informaccedilotildees

fornecidas por fontes textuais limitadas ou cuja veracidade era muito discutida Dessa

maneira nos seraacute possiacutevel entatildeo vislumbrar como se organizava a Gaacutelia e entender o

que a arqueologia traz que complementa as discussotildees textuais e literaacuterias que

realizamos ao longo desta tese608

O conceito de celta era bastante abrangente servia para designar os habitantes da

Gaacutelia os da Britacircnia (atual Inglaterra) da atual Irlanda bem como englobava os que

viviam na Ibeacuteria (os celtiberos) e ainda os gaacutelatas na Aacutesia Menor (tambeacutem chamados

de galo-gregos) Pelas vaacuterias regiotildees acima percebemos que os limites geograacuteficos dos

celtas eram fluidos heterogecircneos e em constantes mudanccedilas aleacutem das aacutereas

supracitadas os celtas chegaram a habitar desde a antiga Hispacircnia ateacute o atual norte da

Itaacutelia As fronteiras ao norte satildeo ainda mais incertas chegando agraves atuais Alemanha e

Holanda e possivelmente aleacutem (WITT IN ERSKINE 2009 p 287) Neste trabalho

607

P 184 e 185 Sobre gauleses com cabelos longos ver Diodoro (Bibl V 28 1) na p 82 deste trabalho

e Estrabatildeo (Geog IV 4 3) 608

Aqui consideramos como Gaacutelia o territoacuterio que compreende a atual Franccedila Beacutelgica e Suiacuteccedila ateacute as

fronteiras do rio Reno que desde Ceacutesar era o marco do limite do territoacuterio romano Para estudo mais

profundo e abrangente sobre os povos da Europa ocidental recomendamos o livro de Wells The

Barbarians speak (1999) Nessa obra o pesquisador tem por objetivo abordar os povos nativos da Europa

de clima temperado e as suas experiecircncias indo do final da Idade do Bronze (cerca de 1200 aC) e se

concentrando especialmente durante as conquistas romanas e os seacuteculos de dominaccedilatildeo imperial Ao

analisar restos arqueoloacutegicos eacute possiacutevel entender como essas comunidades lidaram com as incursotildees

romanas e como elas mesmas se acomodaram em novas estruturas sociais poliacuteticas e culturais a partir do

novo domiacutenio

244

quanto agrave geografia concentramos nossos estudos nos celtas da Gaacutelia devido ao material

que vimos nas fontes claacutessicas e no corpus aqui analisado609

Em termos temporais os primoacuterdios da histoacuteria dos celtas remontam agrave Idade do

Ferro O periacuteodo mais antigo chamado pelos estudiosos de Hallstatt compreende o

intervalo entre os seacuteculos VII a meados do seacuteculo V aC O termo Hallstatt serve

igualmente para designar o estilo artiacutestico e a cultura eacutetnica arqueoloacutegica e social dessa

eacutepoca O periacuteodo seguinte apoacutes cerca de 450 aC ateacute a conquista romana eacute chamado de

La Tegravene e tambeacutem serve para nomear o estilo de arte e a cultura dessa fase610

O

periacuteodo final do La Tegravene coincide com os relatos do seacuteculo II aC (como Poliacutebio e

Catatildeo o Censor) Dessa maneira jaacute em meados do seacuteculo II aC a arqueologia revela

habitaccedilotildees em fazendas vilas centros de comeacutercio complexos de mineraccedilatildeo e os

oppida611

Esses oppida (assim nomeados por Ceacutesar) consistiam em cidades fortificadas

com muralhas e satildeo considerados os primeiros assentamentos urbanos do La Tegravene

situavam-se no topo de colinas e aleacutem disso eram centros de comeacutercio Os oppida

podem ser encontrados no territoacuterio da atual Franccedila central ateacute o Danuacutebio no oeste da

Eslovaacutequia alguns exemplos de oppida da antiga Gaacutelia citados em Ceacutesar satildeo Avaacuterico

Aleacutesia Luteacutecia e Bibracte (WELLS 1999 p 50)612

As sociedades do tardio periacuteodo La Tegravene na Gaacutelia praticavam agricultura e

pastoreio aleacutem de jaacute adquirirem bens oriundos das regiotildees Mediterracircneas seja por via

do comeacutercio seja por via de invasotildees Haacute registros de vasos de bronze coral tirreno

acircmbar baacuteltico marfim da Aacutefrica corantes do Oriente proacuteximo aleacutem de achados da Ciacutetia

e da Traacutecia em troca os celtas forneciam sal carne seca peles tecircxteis madeira mel e

escravos (WITT IN ERSKINE 2009 p 293) Sobre a produccedilatildeo tecircxtil muitos

assentamentos tecircm evidecircncias de tecelagem sofisticada trajes de latilde e linho foram

encontrados em vaacuterios siacutetios (no norte da Alemanha Dinamarca assentamentos perto

609

Sobre todo o conjunto das naccedilotildees ceacutelticas acima citadas faz-se necessaacuterio citar a monumental obra

The Celtic world (2007) editada em 4 volumes por Karl e Stifter que trata dos celtas desde os seus

primoacuterdios na Idade do Ferro ateacute o periacuteodo medieval Assim cada volume eacute dedicado a um ramo

especiacutefico de estudo como a teoria dos estudos ceacutelticos a arqueologia a histoacuteria e a linguiacutestica 610

O nome Hallstatt se deve a uma cidade homocircnima na Aacuteustria onde se encontram dois siacutetios

arqueoloacutegicos importantes uma mina de sal e um cemiteacuterio da eacutepoca da virada da Idade do Bronze para a

do Ferro O Hallstatt enquanto estilo englobava entatildeo o territoacuterio onde hoje estatildeo a Aacuteustria a Alemanha

a Franccedila o norte da Itaacutelia Suiacuteccedila ateacute o Danuacutebio na Hungria Jaacute o periacuteodo conhecido por La Tegravene tem esse

nome por causa de um siacutetio homocircnimo agraves margens do lago Neuchacirctel na Suiacuteccedila O estilo La Tegravene

desenvolveu-se a partir do Hallstatt (abrangendo as mesmas aacutereas) com influecircncia da cultura

mediterracircnea devido aos primeiros contatos que os povos dessas regiotildees tiveram com os gregos no seacuteculo

V aC Para mais detalhes dessas divisotildees cf Witt (IN ERSKINE 2009 p 287-292) 611

Do latim oppidum (oppida no neutro plural) significava cidade fortificada ou fortaleza como esse

termo eacute usado ateacute hoje para designar essas cidades preferimos natildeo traduzir esse vocaacutebulo 612

Para maior aprofundamento sobre os oppida cf Wells (1999 p 49-53) e Woolf (2003 p 107-112)

245

de lagos na Suiacuteccedila em paiacuteses que circundam os Alpes nas minas de sal de Hallstatt e

Hallein na Aacuteustria) onde condiccedilotildees quiacutemicas natildeo usuais resultaram na preservaccedilatildeo das

fibras orgacircnicas que se mantiveram em oacutetimas condiccedilotildees de preservaccedilatildeo (WELLS

1999 p 58 e 59) Ao ler essa informaccedilatildeo nos vem na lembranccedila o comentaacuterio sobre a

latilde feito por Pliacutenio que disse que na Gaacutelia havia um processo proacuteprio de trabalhar a latilde

aleacutem de mencionar como era feito o resistente feltro e o fato de os restos da latilde serem

usados como enchimento de colchotildees (HN VIII 192)613

Quanto ao comeacutercio com o

Mediterracircneo o vinho jaacute era comercializado na Gaacutelia antes do domiacutenio romano ndash desde

o comeccedilo do seacuteculo II aC especialmente com as cidades helecircnicas e posteriormente a

partir das proviacutencias romanas ao norte da Itaacutelia (WOOLF 203 p 175-179) Outros

achados foram a ceracircmica da Campacircnia e artigos de mesa feitos em bronze Apoacutes a

conquista romana passaram a ser encontradas acircnforas de azeite e molho da Hispacircnia e

percebe-se que a produccedilatildeo de vinho na proacutepria Gaacutelia (e da Hispacircnia tambeacutem) tem mais

circulaccedilatildeo do que os vinhos que antes vinham da Itaacutelia614

Em termos de organizaccedilatildeo social as primeiras comunidades celtas eram

entendid s como ―domiacutenios dos chefes ou sej naacutelog s os basileis de Homero ou ao

feudalismo medieval Natildeo haacute duacutevida de que essas sociedades eram extremamente

hierarquizadas mas a simples oposiccedilatildeo entre elite e povo natildeo era assim tatildeo simplista e

variavam muito de acordo com o tempo e as regiotildees dentro da Gaacutelia Quando os

romanos invadiram a Gaacutelia em 58 aC sob a lideranccedila de Ceacutesar as comunidades que

eles encontraram eram dinacircmicas abertas e jaacute estavam passando por grandes mudanccedilas

culturais e poliacuteticas Naccedilotildees de vaacuterias partes da Europa ocidental jaacute tinham contato com

o mundo romano mais de um seacuteculo antes da conquista em interaccedilotildees comerciais havia

assentamentos urbanos (oppida) e a escrita comeccedilava a ser usada por algumas

comunidades (WELLS 1999 p 32 e 33) Sobre a escrita Woolf (2003 p 92) destaca

que grupos que estavam a leste do Roacutedano adaptaram caracteres gregos dos marselheses

em uma linguagem ceacuteltica usada em inscriccedilotildees chamada de galo-grega todavia vaacuterias

naccedilotildees dessa regiatildeo natildeo adotavam a escrita615

A arqueologia desde o periacuteodo final da

Idade do ferro e comeccedilo do La Tegravene mostra que os povos natildeo eram muito bem divididos

em tribos como parecia evidente em autores gregos e romanos que mencionaram

613

Cf p 213 614

Par m is det lhes sobre troc s comerci is entre Gaacuteli e Rom cf o c piacutetulo ―Consuming Rome de

Woolf (2003 p 169-205) 615

Para aprofundamento sobre questotildees de liacutengua e escrita na Gaacutelia antes e durante a conquista romana

cf o c piacutetulo ―M pping cultur l ch nge de Woolf (2003 p 77-105)

246

organizaccedilotildees tribais bem distintas como os eacuteduos os helveacutecios os boios etc Segundo

Wells (1999 p 57) as evidecircncias arqueoloacutegicas discordam dessa afirmaccedilatildeo de uma

sociedade altamente dividida mas sim demonstram que havia um grande espectro de

variaccedilotildees sem distinccedilotildees expressivas em termos de riqueza ou status As tribos que

Ceacutesar e outros autores descreveram poderiam ter sido recentemente formadas em

resposta ao proacuteprio avanccedilo romano (e tambeacutem em resposta agraves migraccedilotildees dos cimbros e

teutotildees algumas deacutecadas antes da Guerra da Gaacutelia) As comunidades celtas vendo-se

ameaccediladas por incursotildees de inimigos passaram a se juntar em grupos maiores e a

escolher um liacuteder (chefe ou rei) para se organizarem contra os adversaacuterios616

De fato

antes dessas invasotildees os povos da Europa temperada se organizavam em grupos

diminutos e familiares e viviam em aldeias e territoacuterios pequenos Isso tambeacutem

corrobora a evidecircncia arqueoloacutegica de que natildeo existia uma estrutura hieraacuterquica aleacutem da

comunidade local (WELLS 1999 p 57) O proacuteprio conhecimento que se tem dessas

hierarquias foi bastante afetado pela conquista romana O mesmo Ceacutesar no De bello

Gallico simplesmente resumiu ess questatildeo dizendo que existi m ―du s espeacutecies desses

homens que satildeo tidos em lgum cont e honr dez 617

Nas palavras dele nesse mesmo

trecho o povo (plebe) quase natildeo tinha direitos a elite era composta pelos druidas e

pelos cavaleiros (equites) O uso de termos latinos para descrever aspectos da sociedade

celta tambeacutem afetou esse conhecimento nas fontes Devemos lembrar que Ceacutesar

simplificou a hierarquia social dos gauleses em dois poacutelos por questotildees especiacuteficas de

poliacutetica e autopropaganda618

Por outro lado vimos em outras fontes outros papeis

sociais importantes aleacutem dos druidas e os cavaleiros como os bardos e os vates619

Com

a conquista definitiva da Gaacutelia e especialmente apoacutes o estabelecimento das proviacutencias

gaulesas por Augusto as cidades comeccedilaram a florescer620

As estradas abertas tambeacutem

facilitaram a urbanizaccedilatildeo e a circulaccedilatildeo de mercadorias na Gaacutelia continental

Sobre a organizaccedilatildeo militar dos celtas e seu caraacuteter guerreiro tecircm-se vaacuterios

indiacutecios interessantes Na Romecircnia foi encontrada uma tumba do seacuteculo III aC

contendo vaacuterios aparatos beacutelicos O que destacamos desse achado eacute um capacete em

ferro coroado com uma figura em bronze de uma ave de rapina o curioso eacute que as asas

616

Ceacutesar (BGall VII 4) escreveu que vaacuterias naccedilotildees gaulesas (como os secircnones os pariacutesios os aulercos

etc) uniram-se sob a lideranccedila de Vercingetoacuterige (aclamado rei pelos seus da naccedilatildeo arverna) em uma

derradeira tentativa de derrotar os romanos 617

BGall VI 13 p 137 e 138 618

Cf p 139 619

Sobre o que Posidocircnio disse a respeito cf p 66 quanto a Diodoro cf p 83 620

Cf p 153 Para mais detalhes sobre urbanizaccedilatildeo e cidades na Gaacutelia cf Woolf (2003 p 112-125)

247

se moviam de modo que quando o guerreiro corria ou se lanccedilava ateacute o inimigo seu

capacete produzia um barulho estrondoso e aterrorizante (WITT IN ERSKINE 2009

p 294) Abaixo uma foto do artefato621

Esse capacete nos traz agrave memoacuteria o comentaacuterio de Liacutevio que disse a respeito dos

gauleses se comportarem deliberadamente para infligir terror aos seus inimigos622

Jaacute no final da Preacute-histoacuteria (ateacute o periacuteodo final da Idade do Ferro) foram

encontradas vaacuterias tumbas de guerreiros ricamente equipados contendo vaacuterios objetos

como longas espadas de ferro com bainhas decoradas com ornamentos elaborados

escudos com um centro ovalado de metal e esporas enfeitadas623

Esses objetos

extremamente adornados denotavam o status dos guerreiros e cavaleiros que gozavam

de grande fama na arte da equitaccedilatildeo (WELLS 1999 p 62)624

Quanto agraves crenccedilas religiosas eacute muito difiacutecil reconstruir os fatos a partir dos

achados arqueoloacutegicos Haacute indiacutecios de rituais e sacrifiacutecios de animais mas natildeo se sabe

muito sobre os atributos dos deuses ceacutelticos e germacircnicos Wells (1999 p 59) destaca

que ironicamente o que se sabe dos nomes e atributos das divindades veio das fontes

greco-romanas e natildeo se sabe o quanto essas concepccedilotildees jaacute tinham mudado na eacutepoca

dos romanos aleacutem disso natildeo haacute evidecircncia arqueoloacutegica clara sobre os druidas

621

Im gem retir d de Koch (2006 p 448) o c p cete eacute conhecido como Ciumești por ter sido

encontrado na homocircnima cid de de Ciumești n Romecircni 622

Cf Ab urbe cond XXXVIII 17 na p 240 em que Liacutevio disse ―o horrendo b rulho que f zem o

bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar

terror 623

Percebemos que as fontes antigas corroboram o fato dos guerreiros possuiacuterem vestimentas ricamente

elaboradas e enfeitadas (cf p 242 para essas imagens recorrentes) 624

Ceacutesar falou do alto status social de que gozavam os cavaleiros gauleses como mencionamos na p 246

Ainda sobre os cavaleiros os romanos passaram a adotar grandes contingentes de cavalaria gaulesa em

suas fileiras desde Ceacutesar indo ao longo de toda a sua histoacuteria posterior Cf o episoacutedio do ataque a Pisatildeo

Aquitano e agrave cavalaria gaulesa em BGall IV 12 p 125 Jaacute no seacuteculo III aC os gaacutelatas eram

contratados como mercenaacuterios por reinos heleniacutesticos Aniacutebal tambeacutem utilizou mercenaacuterios gauleses

durante a Segunda Guerra Puacutenica

248

Tambeacutem haacute poucos indiacutecios arqueoloacutegicos de sacrifiacutecios humanos A respeito dos

relatos greco-romanos que mencionavam essa praacutetica deve-se ter em mente que os

autores dessa eacutepoca muitas vezes natildeo hesitavam em retratar os baacuterbaros com cores

selvagens acentuando comportamentos negativos ou bizarros Outro fato que

possivelmente corrobora isso eacute o de que no tempo do contato com o mundo claacutessico

greco-romano as sociedades autoacutectones da Europa passavam por situaccedilotildees extremas e

possivelmente devem ter recorrido a essa praacutetica dos sacrifiacutecios humanos isso poderia

ter coincidido com os relatos escutados por autores como Posidocircnio Diodoro e Ceacutesar

(WELLS 1999 p 59 e 60)625

Vimos ao longo deste trabalho como as representaccedilotildees do gaulecircs foram se

transformando desde os primeiros contatos entre esse povo e os gregos e romanos e

essa transformaccedilatildeo se daacute ateacute os dias de hoje A retomada do estudo sobre os gauleses se

deu principalmente na Franccedila a partir do seacuteculo XVIII com obras historiograacuteficas que

passaram a tratar a histoacuteria desse paiacutes levando em consideraccedilatildeo o seu passado ceacuteltico

(antes as obras se concentravam apenas nos romanos e fatos posteriores) Dentre tantos

exemplos a partir desse seacuteculo citamos aqui alguns como a obra Antiquiteacute des Celtes

de Dom Paul Pezron (de 1703) e Histoire des Gaules de Dom Jacques Martin

(1752)626

A partir de Napoleatildeo III a Franccedila passou a buscar nos gauleses a figura de um

heroacutei nacional especialmente na pessoa de Vercingetoacuterige que apareceu em pinturas e

esculturas de artistas como Aimeacute Millet (Vercingeacutetorix dlsquoAleacutesia) Emmanuel Freacutemiet

(Le chef gaulois) e Auguste Barholdi (Monument agrave vercingeacutetorix em Clermont-

Ferrand) Jaacute do seacuteculo XX de nossa era natildeo podemos deixar de citar a ceacutelebre Histoire

de la Gaule de Camille Jullian (publicada de 1903 a 1926) Com tanto material sobre os

galos facilmente percebemos que eles ateacute hoje despertam a curiosidade das pessoas e

aparecerem em vaacuterios tipos de obras artiacutesticas e culturais nas histoacuterias em quadrinhos

escritas por Goscinny e Uderzo sobre Asteacuterix e Obeacutelix (que inclusive possuem um

parque temaacutetico exclusivo na Franccedila) em documentaacuterios vaacuterios veiculados em canais

de televisatildeo como History Channel e Discovery Civilization e em exposiccedilotildees de arte

como de tem ―G ulom ni que ocorreu em P ris em 1996 no Museacutee N tion l des

Arts et Traditions Populaires Igualmente os galos satildeo retratados em reconstituiccedilotildees de

muacutesica e liacutengua celta em festivais populares como o Montelago Celtic Festival que

625

Os proacuteprios romanos em periacuteodos criacuteticos de sua histoacuteria chegaram a praticar o sacrifiacutecio de dois

gauleses e dois gregos como forma de aplacar os deuses (WOOLF 2003 p 61) 626

Cf Thill (1998) para mais exemplos de obras que trazem os gauleses como personagens de destaque

desde o seacuteculo XVIII ateacute os dias atuais

249

ocorre anualmente na Itaacutelia Mesmo que atualmente os celtas existam em imagens que

muitas vezes guardam pouca semelhanccedila com os indiviacuteduos reais que viveram entre a

Preacute-histoacuteria e Antiguidade de certa forma esses seres descritos com figuras de imagens

e vocabulaacuterio proacuteprios na literatura greco-latina se eternizaram no imaginaacuterio popular

250

Consideraccedilotildees finais

Desde a Antiguidade as imagens dos galos sofreram vaacuterias transformaccedilotildees que

se perpetuam ateacute os dias atuais627

Percebemos que nas fontes greco-romanas citadas e

no corpus analisado (Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho) como a retoacuterica aleacutem de definir o

lugar do outro tambeacutem serviu para definir o lugar de si Ao se tratar do outro (no caso

o galo) vimos que gregos e romanos nem sempre se mostraram apenas como

superiores Como Veyne (1992 p 284) destaca os gregos e romanos quando natildeo

satisfeitos consigo mesmos pensavam se os baacuterbaros natildeo eram os uacutenicos a conservarem

a pureza e o vigor primitivos e inerentes agrave raccedila humana Mais do que isso percebemos

que havia muitas e variadas imagens dos galos e que cada autor utilizou uma (ou

vaacuteri s) dess s ―moldur s de cordo com mens gem que queri p ss r em su obr

Ao estudar o gaulecircs pudemos igualmente entender o que era ser romano e como

Roma evoluiu de uma pequena cidade para um impeacuterio vasto e multicultural aberto a

todos que estivessem dispostos a participar dele Por esse motivo natildeo deixa de ser

curioso sublinhar que muitos dos autores citados ao longo deste trabalho natildeo eram

romanos de nascimento628

Liacutevio nasceu em Paacutedua (em 59 aC) na Gaacutelia Cisalpina e

essa proviacutencia recebeu a cidadania romana apenas em 49 aC Para Ratti (2009 p 128)

esse fato ajudava a explicar o grande fervor patrioacutetico do historiador629

Gruen (2011a

p 344 e 345) lembra que os romanos natildeo tinham tradiccedilotildees que preconizavam uma

pureza de linhagem e sequer possuiacuteam um termo para designar o natildeo romano ndash na

verdade os romanos buscaram no grego a noccedilatildeo de estrangeiro inserida no termo

baacuterbaro A identidade grega se definia em fundamentos eacutetnicos culturais e

genealoacutegicos a identidade romana por sua vez se estabelecia especialmente em

pressupostos culturais e poliacuteticos O que de fato era relevante para o mundo romano era

a cidadania ndash cidadania essa que poderia ser obtida via de regra por qualquer um esse

fato desde a Antiguidade era tido como um dos sucessos do imperialismo romano

(HERRING In ERSKINE 2009 p 131) Desde que natildeo fossem contra o status quo os

627

Thill (1998) fala rapidamente de como a imagem dessa naccedilatildeo se transformou ao longo da histoacuteria da

Franccedila (especialmente a partir do seacuteculo XIX e da III Repuacuteblica) e de como os franceses se apropriaram

desses estereoacutetipos para justificarem fatos de sua proacutepria histoacuteria e os seus siacutembolos nacionais (o galo

Vercingetoacuterige retratado como heroacutei etc) 628

Como Catatildeo o Censor (de Tuacutesculo) Ciacutecero (de Arpino) e os proacuteprios Liacutevio e Pliacutenio o Velho (da

Gaacutelia Cisalpina) Emblemaacutetico tambeacutem o caso de Terecircncio cartaginecircs levado a Roma como cativo de

guerra e que posteriormente se dedicou a escrever comeacutedias 629

De fato Usher (2001 p 165) considera que nenhum outro texto da literatura latina possui um

patriotismo mais exaltado do que o Ab urbe condita

251

territoacuterios conquistados eram livres para manterem suas instituiccedilotildees poliacuteticas cultura

costumes e liacutengua atraveacutes desse sistema de conquista Roma poderia facilmente dominar

as regiotildees a ela submetidas

O termo baacuterbaro cujo primeiro significado era para designar aquele que natildeo

falava grego passou a ter a acepccedilatildeo de nomear os que viviam fora do territoacuterio romano

Por conseguinte quem se encontrava dentro do impeacuterio era civilizado os que habitavam

aleacutem dos limites eram baacuterbaros selvagens que viviam em lugares inoacutespitos Nas

p l vr s de Herring (In ERSKINE 2009 p 131) ― t the edges of the world where the

environment and climate were untamed and harsh lived savage men shaped by that

world Such peoples needed to be either conquered and brought into the civilized world

or shut out from it by strongly defended borders 630

Na Antiguidade os contatos entre os povos ditos civilizados e os baacuterbaros

ocorriam principalmente nas zonas contiacuteguas ou fronteiriccedilas e esses contatos eram

motivados por comeacutercio conquistas guerras ou falta de terras (migraccedilotildees e

colonizaccedilotildees) Como lembra Murphy (2004 P 78) os gregos e os romanos desde o

periacuteodo arcaico de suas histoacuterias ateacute o fim dos seus impeacuterios sempre se mostraram

curiosos e interessados nos povos que habitavam as periferias de suas civilizaccedilotildees Por

isso podemos encontrar narrativas de cunho etnograacutefico em praticamente todos os

gecircneros como a eacutepica a poesia didaacutetica a liacuterica a elegia a trageacutedia a filosofia etc Foi

no gecircnero da historiografia contudo que a etnografia foi mais utilizada e apareceu com

maior relevacircncia documental jaacute que eram parte essencial desse gecircnero as descriccedilotildees e

explicaccedilotildees do mundo registrado do ponto de vista do autor Todavia a etnografia em si

diferia muito pouco em seu conteuacutedo pois como gecircnero literaacuterio estava condicionada a

certas regras convenccedilotildees e expectativas de uma audiecircncia especiacutefica A importacircncia da

tradiccedilatildeo literaacuteria na Antiguidade era tatildeo grande que de certa forma explicava o porquecirc

de vaacuterios autores que escreveram etnografia sequer terem viajado ou conhecido in loco

os locais que descreveram eles buscaram nas fontes as informaccedilotildees necessaacuterias631

Aleacutem disso a informaccedilatildeo jaacute consagrada de um povo raramente era suplantada ou

atualizada por mais enganosa que fosse nesse tempo o mais comum era que as

observaccedilotildees que se ajustassem para as teorias e natildeo o contraacuterio (MURPHY 2004 P

630

―Nos limites do mundo onde o mbiente e o clim er m indomaacuteveis e severos vivi m homens

selvagens moldados por tal mundo Tais povos precisavam ou ser conquistados e trazidos para o mundo

civilizado ou mantidos separados dele por fronteiras fortemente defendid s 631

De fato dos gregos que mencionamos no cap 1 apenas Poliacutebio e Posidocircnio de fato estiveram na

Gaacutelia Jaacute Diodoro e Estrabatildeo natildeo conheceram pessoalmente a Gaacutelia (WOOLF 2011 p 21)

252

82) Por essa razatildeo era comum que autores posteriores recorressem a autores anteriores

para passagens etnograacuteficas tanto para descriccedilotildees dos mesmos povos e lugares como

tambeacutem a adoccedilatildeo de toacutepoi e clichecircs iguais de outras descriccedilotildees aplicados a novas naccedilotildees

e regiotildees632

A precisatildeo desse tipo de narrativa consista entatildeo na repeticcedilatildeo de elementos

dessa tradiccedilatildeo literaacuteria e de certas variantes como o destaque de caracteriacutesticas

maravilhosas ou bizarras de povos diferentes (SYED In HARRISON 2005 p 362)

Como pontua Hartog (199 p 246) os aspectos maravilhosos e curiosos (thocircma em

grego) deveriam figurar no elenco dos procedimentos da retoacuterica da alteridade

certamente esses fatos maravilhosos produziam um efeito de credibilidade e aleacutem

disso o autor natildeo poderia os suprimir da sua narrativa uma vez que o puacuteblico esperava

esse tipo de conteuacutedo nas obras de cunho etnograacutefico

Considerado o que foi dito acima notamos entatildeo que o antagonismo entre os

estr ngeiros e os n tivos soacute se oper v em um contexto de matildeo dupl ―noacutes x eles em

que um grupo se reconhecia como civilizado frente a outro baacuterbaro Reconhecer o outro

que lhe era alheio implicava em reconhecer a si mesmo Na concepccedilatildeo de Murphy

(2004 p 94) os estrangeiros natildeo eram estrangeiros absolutos mas sim estrangeiros de

Roma e as culturas diferentes soacute poderiam ser expressas nas palavras da Urbe em

categorias e valores relacionados a si proacutepria Ser baacuterbaro implicava em ausecircncia

ausecircncia de estabilidade de instituiccedilotildees em suma ausecircncia de humanitas eacute justamente

disso que resulta a forccedila e poder do baacuterbaro eles estatildeo entre a ordem e o caos entre o

humano e o animal (MURPHY 2004 P 165)

No caso das representaccedilotildees latinas de outros povos e naccedilotildees essas narrativas

servem mais para compreender o que os romanos pensavam desses uacuteltimos do que de

fato em obter um conhecimento sobre os natildeo-romanos Todavia como pontua Sayed

(In HARRISON 2005 p 360) a tentaccedilatildeo de se buscar informaccedilotildees sobre os natildeo-

romanos na literatura greco-romana sempre foi grande e isso ateacute recentemente

acontecia bastante Se antes a tendecircncia de pesquisa dos Estudos Claacutessicos era mais no

sentido de identificar o que era real ou verdadeiro nas etnografias antigas hoje os

estudos se concentram mais em perceber como gregos e romanos entendiam o mundo a

partir dos antigos estereoacutetipos

632

Como discutimos no cap 1 deste trabalho os romanos primeiramente buscaram nos gregos (sendo

Poliacutebio o maior nome nesse contexto) as narrativas etnograacuteficas ateacute que eles mesmos a partir do seacuteculo

III aC passaram a ser autores desse gecircnero

253

Ao estudar os relatos da Antiguidade percebemos que essas narrativas seguiam

uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria e retoacuterica por conseguinte eacute uma tarefa impossiacutevel tentar

filtrar o que elas possuiacuteam de verdade ou de criaccedilatildeo ndash embora muitos estudiosos tenham

buscado identificar o que havia de conteuacutedo factual nesses relatos633

Natildeo cremos ser

possiacutevel encerrar essa questatildeo de forma definitiva O que identificamos neste trabalho

de forma niacutetida foi a evoluccedilatildeo no conceito de gaulecircs e tambeacutem o proacuteprio

desenvolvimento de Roma como um impeacuterio No corpus escolhido aqui percebemos

que Ceacutesar ressaltou a virtude guerreira dos galos mas como tinha fins de conquista os

assimilou e os inseriu no contexto da civilizaccedilatildeo romana As passagens que analisamos

de Ab urbe condita localizadas distantes no tempo (no recorte que fizemos analisamos

trechos contemporacircneos ao saque de Roma e a guerra entre romanos e gaacutelatas em 189

aC) se perdem na bruma do mito por isso Liacutevio simplesmente preocupou-se em

retratar os gauleses como meros inimigos descrevendo-os nos mesmos moldes usados

para todos os opositores de Roma que apareceram ao longo de sua obra Ora o

propoacutesito de Liacutevio era o de moralizar e entreter sempre ressaltando a virtude romana e

natildeo descrever profundamente os costumes dos outros povos sua cultura etc Com

Pliacutenio o Velho o impeacuterio (enquanto territoacuterios submetidos a Roma) jaacute estava

estabelecido haacute bastante tempo e por isso ele natildeo se concentrou muito na etnografia da

Europa ocidental ou os gauleses em si mas sim buscou enfocar em seus estudos

assuntos especiacuteficos como o fiar da latilde Ao descrever a geografia das regiotildees ateacute entatildeo

submetidas a Roma Pliacutenio se preocupava mais em delimitar os limites do impeacuterio e

estabelecer as fronteiras do mundo conhecido e civilizado (oikumene)

Ao chegarmos ao final desta pesquisa fica clara para noacutes a imensa forccedila de

certos estereoacutetipos dos gauleses que parecem indeleacuteveis Surgidos na Antiguidade e

reelaborados por autores como Poliacutebio Posidocircnio Estrabatildeo Diodoro Ciacutecero Ceacutesar

Liacutevio Pliacutenio o Velho dentre tantos outros esses clichecircs foram e estatildeo sendo retomados

desde aqueles tempos e ao longo de todos esses seacuteculos

Em pleno seacuteculo XXI o se f l r em ―g ulecircs ou ―celt nos vem logo agrave

memoacuteria indiviacuteduos muito altos fortes com vistosos bigodes imprevisiacuteveis e

corajosos seja na figura dos simpaacuteticos Asteacuterix e Obeacutelix seja na imponente imagem de

Vergingetoacuterige politicamente recuperada no seacuteculo XIX e transformada em heroacutei

nacional da Franccedila A forccedila do liacuteder arverno simbolizava a resistecircncia de todos os galos

633

Marincola (In ERSKINE 2009 p 15 e ss) levanta uma interessante discussatildeo a esse respeito

254

frente a um inimigo comum hoje Vercingetoacuterige tornou-se o arqueacutetipo da firmeza

poliacutetica natildeo soacute dos gauleses mas tambeacutem de todos os franceses contemporacircneos diante

de adversaacuterios comuns Natildeo por acaso podemos encontrar estaacutetuas de Vercingetoacuterige

em vaacuterios locais franceses bem como o fato de antigas cidades celtas serem nomes de

ruas como a proacutepria rue Vercingeacutetorix rue Gergovie e rue dlsquoAleacutesi tod s em P ris

255

Referecircncias bibliograacuteficas

Ediccedilotildees e traduccedilotildees de textos antigos

ARISTOTLE Aristotlelsquos Ethica Nicomachea Edited by J Bywater Oxford Clarendon

Press 1894 Disponiacutevel em Perseus digital library

lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

ARISTOacuteTELES Etica Nicomaacutequea Eacutetica Eudemia Introduccioacuten por Emilio Lledoacute

Iacutentildeigo traduccioacuten y notas por Julio Palliacute Bonet Madrid Gredos 1998

_____________ Poliacutetica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Manuela Garciacutea Valdeacutes

Madrid Gredos 1988

_____________ Poeacutetica Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra Madrid Gredos

1999

_____________ Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Quintiacuten Racionero

Madrid Gredos 1994

CATO M Porcius Origines In PETER H (ed) Historicorum Romanorum Reliquiae

Leipzig [se] 1914 v1

CATAtildeO Da agricultura Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Matheus Trevizam

Campinas Unicamp 2016

CEacuteSAR La Guerre des Gaules Texte eacutetabli et traduit par L A Constans Paris Les

Belles Lettres 1947-1972 tomes I et II

_______ Comentaacuterios de Ceacutesar sobre a guerra gaulesa Traduccedilatildeo de Nicolau Firmino

Porto Livraria Simotildees Lopes 1946

CIacuteCERO As Catilinaacuterias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do latim e notas de Sebastiatildeo Tavares

de Pinho Lisboa Ediccedilotildees 70 1990

CICEacuteRON M T De la divination Introduction de Amin Maalouf traduit par Geacuterard

Freyburger e John Scheid Paris Les Belles Lettres 1992

______________ Discours Catilinaires Texte eacutetabli par H Bornecque et traduit par E

Bailly Paris Les Belles Lettres 1926 tome X

_____________ Discours pour M Fonteio pour A Ceacutecina sur les pouvoirs de

Pompeacutee Texte eacutetabli et traduit par Andreacute Boulanger Paris Les Belles Lettres 1961

tome VII

256

______________ Discours Seconde action contre Verregraves livre II La Preacuteture de Sicile

Texte eacutetabli et traduit par H de La Ville de Mirmont Paris Les Belles Lettres 1936

tome III

______________ Discursos En defensa de Sexto Roscio Amerino En defesa de la ley

Manilia En defensa de Aulo Cluencio Catilinarias En defensa de Lucio Murena

Traducciones introducciones y notas de Jesuacutes Aspa Cereza Madrid Gredos 1995

______________ Discursos Verrinas Traduccioacuten y notas de Joseacute Mariacutea Requejo

Prieto Madrid Gredos 1990 2 v

______________ Les devoirs Texte eacutetabli par Maurice Testard Introduction nouvelle

traduction et notes par Steacutephane Mercier Paris Les Belles Lettres 2014

______________ Llsquoorateur et du meilleur genre dlsquoorateurs Texte eacutetabli et traduit par

Albert Yon Paris Les Belles Lettres 1964

______________ Sobre la advinacioacuten Sobre el destino Timeo Introduccioacuten

traduccioacuten y notas de Aacutengel Escobar Madrid Gredos 1999

DIODORO DE SICILIA Biblioteca histoacuterica libros I a III Introduccioacuten traduccioacuten y

notas de Francisco Parreu Alasagrave Madrid Gredos 2001

___________________ Biblioteca histoacuterica libros IV a VIII Traduccioacuten y notas de

Juan Joseacute Torres Esbarranch Madrid Gredos 2004

DIODORUS OF SICILY Library of History With an English translation by C H

Oldfather Cambridge Harvard University Press 1952 v3

DIONYSIUS OF HALICARNASSUS The Roman antiquities With an English

translation by Earnest Cary Cambridge Harvard University Press 1937-1950 v1

DIODORUS SICULUS Diodori Bibliotheca Historica Edited by Immanel Bekker

Ludwig Dindorf Friedrich Vogel Leipzig Teubner 1888-1890 2v Disponiacutevel em

Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

ESTRABOacuteN Geografiacutea libros I-II Introduccioacuten general de J Garciacutea Blaco

Traduccioacuten y notas de J L Garciacutea Ramoacuten y J Garciacutea Blanco Madrid Gredos 1991

__________ Geografiacutea libros III-IV Traducciones introducciones y notas de Maria

Joseacute Meana y Feacutelix Pintildeero Madrid Gredos 1992

HERODOTE Histoires Texte eacutetabli et traduit par Phillippe Ernest Legrand Paris Les

Belles Lettres 1939-1954

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo

Paulo Iluminuras 2003

257

HIPOacuteCRATES Ares Aacuteguas e Lugares In CAIRUS Henrique F RIBEIRO JR

Wilson A Textos hipocraacuteticos o doente o meacutedico e a doenccedila Rio de Janeiro Fiocruz

2005 p 91-129

HOMER Homeri Opera in five volumes Oxford Oxford University Press 1920

Disponiacutevel em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso

em 23 mai 2018

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Cotovia 2005

ISOacuteCRATES Discursos Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Juan Manuel Guzmaacuten

Hermida Madrid Gredos 1979 v 1

ISOCRATES Isocrates with an English translation in three volumes Translated by

George Norlin Cambridge Harvard University Press 1980 Disponiacutevel em Perseus

digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

KIDD IG Posidonius Cambridge Cambridge University Press 1999 v III

NOVAK Maria da Gloria NERI Maria Luiza PETERLINI Ariovaldo Augusto (org)

Historiadores latinos antologia biliacutengue Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

PLATOacuteN Diaacutelogos Leyes (libros I-VI) Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Francisco

Lisi Madrid Gredos 1999

PLINE LlsquoANCIEN Histoire naturelle livre III Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Hubert Zehnacker Paris Les Belles Lettres 2004

_______________ Histoire naturelle livre IV Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Hubert Zehnacker et Alain Silberman Paris Les Belles Lettres 2015

_______________ Histoire naturelle livre VIII Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Alfred Ernout Paris Les Belles Lettres 1952

_______________ Histoire naturelle livre XXX Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Alfred Ernout Paris Les Belles Lettres 1963

_______________ Histoire naturelle livre XXXIII Texte eacutetabli traduit et commenteacute

par Hubert Zehnacker Paris Les Belles Lettres 1983

PLINIO EL VIEJO Historia natural libros III-VI Traduccioacuten y notas de Antonio

Fontaacuten Ignacio Garciacutea Arribas Encarnacioacuten del Barrio Maria Luisa Arribas Madrid

Gredos 1998

_________________ Historia natural libros VII-XI Traduccioacuten y notas de

Encarnacioacuten del Barrio Sanz Ignacio Garciacutea Arribas A M Moure Casas L A

Hernaacutendez Miguel y Maria Luisa Arribas Hernaacuteez Madrid Gredos 2003

258

PLUTARCO Vidas paralelas Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Aurelio Peacuterez

Jimeacutenez Madrid Gredos 2008 tomo II

POLIBIO Historias Traduccioacuten y notas de Manuel Balasch Recort Madrid Gredos

1981

POLYBE Histoires livre II Texte eacutetabli et traduit par Paul Peacutedech Paris Les Belles

Lettres 1970

POLYBIUS The Histories Translated by W R Paton Cambridge Harvard University

Press 2010

__________ Historiae Theodorus Buumlttner-Wobst after L Dindorf Leipzig Teubner

1893 Disponiacutevel em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt

Acesso em 23 mai 2018

RETOacuteRICA a Herenio Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Salvador Nuacutentildees Madrid

Gredos 1997

STRABO The Geography Translated by Horace Leonard Jones Cambridge Harvard

University Press 1954 v2 e v3

________ Geographica Edited by A Meineke Leipzig Teubner 1877 Disponiacutevel

em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai

2018

SUETOcircNIO AUGUSTO A vida e os feitos do divino Augusto Traduccedilatildeo de Matheus

Trevizam Paulo Seacutergio Vasconcellos e Antocircnio Martinez de Rezende Belo Horizonte

Editora UFMG 2007

TAacuteCITO C Anais Traduccedilatildeo de Leopoldo Pereira Rio de Janeiro [se] 1964

TITE LIVE Histoire romaine livre V Texte eacutetabli par Jean Bayet et traduit par Gaston

Baillet Paris Les Belles Lettres 1954 tome V

_________ Histoire romaine livre VII Texte eacutetabli par Jean Bayet et traduit par

Raymond Bloch Paris Les Belles Lettres 1968 tome VII

_________ Histoire romaine livre XXIII Texte eacutetabli et traduit par Paul Jal Paris Les

Belles Lettres 2001 tome XIII

_________ Histoire romaine livre XXXVIII Texte eacutetabli et traduit par Richard Adam

Paris Les Belles Lettres 1982 tome XXVIII

TITO LIacuteVIO Histoacuteria de Roma livro I ndash a monarquia Traduccedilatildeo de Mocircnica Costa

Vitorino introduccedilatildeo e notas de Juacutelio Ceacutesar Vitorino Belo Horizonte Crisaacutelida 2008

VARROacuteN La lengua latina libros V-VI Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Alfonso Hernaacutendez Miguel Madrid Gredos 1998

259

VARRON La langue latine livre V Texte eacutetabli et traduit par Jean Collart Paris Les

Belles Lettres 1954 tome I

VEGEacuteCIO Compecircndio da arte militar Traduccedilatildeo de Joatildeo Gouveia Monteiro e Joseacute

Eduardo Braga Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2009

TUCIacuteDIDES Historia de la guerra del Peloponeso libros I-II Traduccioacuten y notas de

Juan Joseacute Torres Esbarranch Madrid Gredos 1990

Dicionaacuterios

ALMOYNA Julio Martinez Dicionaacuterio de espanhol-portuguecircs 2 ed Porto Porto ed

1999

BEEKES Robert Etymological Dictionary of Greek Leiden Brill 2010 v 1

BENEDETTI Ivone Castilho Dicionaacuterio Martins Fontes italiano-portuguecircs Satildeo

Paulo Martins Fontes 2004

CARVALHO Oliacutevio Dicionaacuterio de francecircs-portuguecircs 2 ed Porto Porto ed 1997

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris

Eacuteditions Klincksieck 1968

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino ndash portuguecircs Belo Horizonte Garnier 2003

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua

portuguesa Curitiba Ed Positivo 2004

GAFFIOT Felix Dictionnaire illustre latin franccedilais Paris Hachette 1957

GLARE PGW(ed) Oxford Latin dictionary Oxford Claredon Press 1982

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Traduccedilatildeo de

Maacuterio da Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998

HOUAISS Antonio Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro

Objetiva 2001

LIDDEL Henry George SCOTT Robert JONES Henry Stuart A Greek-English

Lexicon Oxford Clarendon Press 1996

REZENDE Antocircnio Martinez BIANCHET Sandra Braga Dicionaacuterio do latim

essencial Belo Horizonte Tessitura 2005

SARAIVA FR dos Santos QUICHERAT L Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs

Rio de Janeiro Garnier 2003

260

SUMMERS Della Longman dictionary of contemporary English 3 ed Bungay

Longman Dictonaries 1995

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino portuguecircs Porto Ediccedilotildees e execuccedilatildeo de

graacuteficos reunidos Ltda 2001

VAAN Michiel Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages

Leiden Brill 2008

Bibliografia geral

ADLER Erich Valorizing the Barbarians enemy speeches in Roman historiography

Austin Texas University Press 2011

ALMEIDA Priscilla A F Iliacuteada Latina traduccedilatildeo e estudo literaacuterio da adaptaccedilatildeo da

Iliacuteada de Homero na Antiguidade latina 2012 166 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Estudos Claacutessicos) ndash Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais Belo

Horizonte 2012

ANDERSON Perry Passagens da Antiguidade ao Feudalismo 2 ed Porto

Afrontamento 1982

ANDREacute Jean-Marie HUS Alain LlsquoHistoire agrave Rome historiens et biographes dans la

litteacuterature latine [sl] Presses Universitaires de France 1974

ANDREacute Jean-M rie Ethongr phie et sociologie ―b rb re chez Ceacutes r Vita Latina

Montpellier n162 p 2-10 2001

AILI H ns Livylsquos l ngu ge critic l survey of rese rch In HAASE Wolfg ng (ed )

Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de Gruyter

1982 band II 302 p 1122-1147

ASTIN Alan E Cato the Censor Oxford Claredon Press 1978

AUSTIN Michel The Hellenistic world from Alexander to the Roman conquest

Cambridge Cambridge University Press 2006

BADIAN E Roman imperialism in the late Republic Oxford Basil Blackwell 1968

BARONOWSKI Donald Walter Polybius and Roman imperialism London Bristol

Classical Press 2011

BASSETTO Bruno Fregni Elementos de filologia romacircnica 2 ed Satildeo Paulo Editora

da Universidade de Satildeo Paulo 2005

261

BECK Franccediloise CHEW Heacutelegravene Quand les Gaulois eacutetaient romains Paris

Deacutecouvertes GallimardReacuteunion des museacutees nationaux 2008

BECK Hans The early Roman tradition In MARINCOLA John (ed) A companion

to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell Companions to the Ancient

World 2007 v 1 p 259-265

BLOCH Raymond COUSIN Jean Roma e o seu destino Lisboa Ediccedilotildees Cosmos

1964

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of the Classical World Oxford Oxford University Press 1986

BORCA Federico Luoghi corpi costumi determinismo ambientale ed etnografia

antica Roma Edizione di Storia e Letteratura 2003

BORNECQUE H MORNET D Roma e os romanos Satildeo Paulo EPU Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 2002 Reimpressatildeo

BRANDAtildeO Jacyntho Lins A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UnB 2005

BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes Do ―1ordm triunvir to os idos de m rccedilo In BRANDAtildeO Joseacute

Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra Imprensa da

Universidade de Coimbra 2015 v1 p 389-427

BRINGMANN Klaus Poseidonius and Athenion a study in Hellenistic historiography

In CARTLEDGE Paul GARNSEY Peter GRUEN Erich (ed) Hellenistic

constructs essays in culture history and historiography Los Angeles University of

California Press 1997 p 145-158

BRISCOE John A commentary on Livy books 38-40Oxford Oxford University Press

2008

BROSMAN Catharine Savage The functions of war literature South Cetral Review

Baltimore v9 n 1 p 85-98 1992

BROWN A Civilized G ul C es rlsquos portr it of Piso Aquit nus (De bello G llico

4124-6) Mnemosyne a journal of Classical Studies Amsterdam v 67 f 3 p 391-

404 2014

BRUNAUX Jean-Louis Nos ancecirctres les Gaulois Paris Eacuteditions du Seuil 2008

____________________ Aleacutesia Paris Gallimard 2012

____________________ Les Gaulois Paris Les Belles Lettres 2005

____________________ Voyage en Gaule Paris Eacuteditions du Seuil 2011

BRUNT PA Studies in Greek History and Thought Oxford Claredon Press 1993

262

BUGH Glenn R (ed) The Cambridge Companion to the Hellenistic world

Cambridge Cambridge University Press 2006

CANFORA Luciano Juacutelio Ceacutesar o ditador democraacutetico Trad Antonio da Silveira

Mendonccedila Satildeo Paulo Estaccedilatildeo Liberdade 2002

CAREY Sorcha Plinylsquos catalogue of culture art and empire in the Natural History

Oxford Oxford University Press 2003

CHAMPION Craige Romans as Bapbapoi three Polybian speeches and the politics of

cultural indeterminacy Classical Philology Chicago v 95 n 4 p 425-444 2000

_________________ Cultural politcs in Polybiuslsquo Histories Los Angeles University

of California Press 2004

CHAPLIN Jane D Livylsquos exemplary history Oxford Oxford University Press 2000

CODONtildeER Carmen (org) Historia de la Literatura Latina Madrid Caacutetedra 2007

COLLARES MA Representaccedilotildees do senado romano na Ab Urbe Condita Libri de

Tito Liacutevio Satildeo Paulo Editora UNESPCultura Acadecircmica 2010

CONTE Gian Biagio Latin Literature a history Trad Joseph B Solodow Baltimore

Johns Hopkins University Press 1999

CORASSIN Maria Luiza Comentaacuterio sobre as Res Gestae Divi Augusti In JOLY

Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo

Alameda 2007 p 97-118

DAUGE YA Le Barbare recherches sur la conception romaine de la barbarie et de

la civilisation Bruxelles Eacuteditions Latomus 1981

DEJARDIN Isabel Visages antiques de la barbarie enquecircte sur llsquoemergence dlsquoune

notion Paris Editions Bouchene 2010

DELAPLACE Christine FRANCE Jeacuterocircme Histoire des Gaules Paris Armand Colin

2011

DUBUISSON Michel Le latin de Polybe les implic tions historiques dlsquoun c s de

bilinguisme Paris Klincksieck 1985

DUFF John Wight A Literary History of Rome From Tiberius to Hadrian 3 ed

London Benn 1964

DYSON Stephen L Archaeology and Ancient History In ERSKINE Andrew (ed) A

companion to Ancient History Oxford Blackwell companions to the ancient world

2009 p 59-66

EASTERLING PE KNOX BMW (eds) Historia de la literatura claacutesica

(Cambridge University) Madrid Gredos 1990 v 1 (Literatura griega)

263

ECKSTEIN Arthur M Moral vision in The Histories of Polybius Berkeley University

of California Press 1995

__________________ Physis and Nomos Polybius the Romans and Cato the Elder

In CARTLEDGE Paul GARNSEY Peter GRUEN Erich (ed) Hellenistic

constructs essays in culture history and historiography Los Angeles University of

California Press 1997 p 175-198

ERDKAMP Paul (ed) A companion to the Roman army Oxford Blackwell

Publishing 2007

___________________ The Cambridge companion to Ancient Rome Cambridge

Cambridge University Press 2013

ERSKINE Andrew (ed) A companion to Ancient History Oxford Blackwell

companions to the ancient world 2009

FAVERSANI Faacutebio JOLY Faacutebio D Da Liga Latina ao saque de Roma In

BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra

Imprensa da Universidade de Coimbra 2015 v1 p 103-125

FISHER Nick Citizens foreigners and slaves in Greek society In KINZL Konrad H

(ed) A companion to the Classical Greek world Oxford Blackwell Publishing 2006

p 327-349

FLORENZANO Maria Beatriz B O mundo antigo economia e sociedade 13 ed Satildeo

Paulo Brasiliense 1994

FORNARA Charles The nature of history in ancient Greece and Rome University of

California Press 1983

FORSYTHE Gary A critical history of early Rome from prehistory to the first Punic

War Berkeley University of California Press 2005

FUNARI Pedro Paulo A Antiguidade Claacutessica a Histoacuteria e a cultura a partir dos

documentos Campinas Editora da Unicamp 2003

_____________________ GARRAFFONI Renata Senna Historiografia Saluacutestio

Tito Liacutevio e Taacutecito Campinas Editora Unicamp 2016

GABBA Emilio Aspetti culturali dell`imperialismo romano Athenaeum Pavia n55

p 49-74 1977

___________ Roma arcaica storia e storiografia Roma Edizioni di Storia e

Letteratura 2000

GAUTHIER Philippe Notes sur l`eacutetranger et l`hospitaliteacute en Gregravece et agrave Rome Ancient

Society n 4 p 1-22 1973

264

GIARDINA Andrea (ed) O homem romano Lisboa Editorial Presenccedila 1992

GIROD M R La geacuteographie de Tite-Live In HAASE Wolfgang (ed) Aufstieg und

Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de Gruyter 1982 band II

302 p 1190-1229

GOUDINEAU Christian Regard sur la Gaule Paris Babel 2007

GOUVEcircA JUacuteNIOR Maacutercio Meirelles Roma et barbaries a evoluccedilatildeo do conceito de

barbaacuterie na antiga Roma Phaos revista de estudos claacutessicos Campinas n12 p 5-27

2012

_________________ Variae Medeae a recepccedilatildeo da fabula de Medeia pela literatura

latina 2013 292 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Faculdade de Letras

Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte 2013

GRIMAL Pierre A civilizaccedilatildeo romana Lisboa Ediccedilotildees 70 1993

______________ La formacioacuten del imperio romano el mundo mediterraacuteneo em la

Edad Antigua Madrid Siglo XXI 2002

GRUEN Erich S Culture and national identity in Republican Rome Ithaca Cornell

University Press 1992

_______________ Greeks and non-Greeks In BUGH Glenn R (ed) The Cambridge

Companion to the Hellenistic world Cambridge Cambridge University Press 2006 p

295-314

______________ Rethinking the other in Antiquity Oxford Princeton University

Press 2011a

______________ (ed) Cultural identity in the ancient Mediterranean Los Angeles

Getty Research Institute 2011b

GUARINELLO Norberto Luiz Ensaios sobre Histoacuteria Antiga 2014 330 f Tese

(livre-docecircncia) Departamento de Histoacuteria da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2014

GUILLAUMIN J Y Ceacutesar In RATTI Steacutephane Eacutecrire l`Histoire agrave Rome Paris

Les Belles Lettres 2009 p 11-29

HABINEK Thomas The politcs of Latin literature writing identity and empire in

ancient Rome Princeton Princeton University Press 1998

HAHM D vid E Posidoniuslsquo theory of historic l c us tion In HAASE Wolfg ng

(ed) Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de

Gruyter 1989 band II 363 p 1325-1361

265

HALL Jonathan M Ethnic identity in Greek antiquity Cambridge Cambridge

University Press 2001

HARRIS William V War and imperialism in Republican Rome 327-70 BC Oxford

Oxford University Press 1979

HARRISON Thomas The Greeks In ERSKINE Andrew (ed) A companion to

Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 213-

221

HARTOG Franccedilois O espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do outro

Traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 1999

________________ Memoacuteria de Ulisses narrativas sobre a fronteira na Greacutecia antiga

Traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2014

HENDERSON John Knowing someone through their books Pliny on uncle Pliny

(Epistles 35) Classical Philology Chicago n 97 p 256-254 2002

HERRING Edward Ethnicity and culture In ERSKINE Andrew (ed) A companion

to Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 123-

133

HINGLEY Richard Globalizing Roman culture unity diversity and empire London

Routledge 2005

JAEGER Werner Paideia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira Satildeo

Paulo Martins Fontes 2001

JARDEacute A A Greacutecia antiga e a vida grega Satildeo Paulo EPU 1977

JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo

Paulo Alameda 2007

JULLIAN Camille La Gaule avant Ceacutesar Paris Editions du Trident 1993

_______________ Vercingeacutetorix Paris Tallandier 2012

KARL Raimund STIFTER David The Celtic world New York Routledge 2007

v1-4

KENNEY E J CLAUSEN WV (eds) Historia de la literatura claacutesica (Cambridge

University) Madrid Gredos 1989 v 2 (Literatura latina)

KOCH John T (ed) Celtic culture a historical encyclopedia Santa Barbara ABC

Clio 2006 v 1

KONSTAN David Clemency as a virtue Classical Philology Chicago v 100 n 4 p

337-349 october 2005

266

LAPLANTINE Franccedilois NOUSS Alexis Meacutetissages de Arcimboldo agrave Zombi Paris

Pauvert 2001

LEAtildeO Delfim BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes As origens da urbe e o periacuteodo da monarquia

In BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma

Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2015 v1 p 27-51

LE BOHEC Yann Rome et les provinces de l`Europe occidentale jusqu`agrave la fin du

principat Paris Editions du Temps 2009

LESKY Albin Histoacuteria da literatura grega Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1995

LEVENE DS Roman historiography in the late Republic In MARINCOLA John

(ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v 1 p 275-289

LINTOTT Andrew W Roman historians In BOARDMAN John GRIFFIN Jasper

MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford Oxford

University Press 1986 p 529-539

__________________ The Romans in the age of Augustus Oxford Wiley-Blackwell

2010

LUCE T J Livy the composition of his history Princeton Princeton University Press

1977

MAFRA Johnny Joseacute Cultura claacutessica grega e latina Belo Horizonte Ed PUC

Minas 2010

MARINCOLA John Universal History from Ephorus to Diodorus In

_____________ A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v1 p 171-179

_________________ Historiography In ERSKINE Andrew (ed) A companion to

Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 13-22

MARQUES Juliana Bastos Tradiccedilatildeo e renovaccedilotildees da identidade romana em Tito

Liacutevio e Taacutecito 2007 250 f Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) - Departamento de

Histoacuteria da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2007

_____________________ Poliacutebio In JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica

ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo Alameda 2007 p 45-64

_____________________ O Capitoacutelio como representaccedilatildeo de Roma em Tito Liacutevio e

Taacutecito Caliacuteope presenccedila claacutessica Rio de Janeiro n 13 p 94-409 2005

267

MARTIN Reneacute GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

Scodel 1981

MARTIN Paul M La Guerre des Gaules la Guerre Civile Paris Ellipses 2000

MARTINS Paulo Literatura latina Curitiba IESDE Brasil 2009

_______________ Pictura Loquens Poesis Tacens limites da representaccedilatildeo 2013

348 f Tese (livre-docecircncia) Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo 2013

MATHISEN Ralph W Peregrini Barbari and Cives Romani concepts of citizenship

and the legal identity of Barbarians in the Later Roman Empire The American

Historical Review v 111 n 4 p 1011-1040 2006

MENDES Norma Musco Roma republicana Satildeo Paulo Aacutetica 1988

_____________________ Impeacuterio e rom niz ccedilatildeo ―estr teacutegi s domin ccedilatildeo e col pso

Brathair Rio de Janeiro v1 p 25-48 2007

MOMIGLIANO Arnaldo Os limites da helenizaccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar

1991

MOREL (W) BUCHNER (K) BLANSDORF (Juumlrgen) (eds) Fragmenta poetarum

latinorum epicorum et lyricorum praeter Enni Annales et Ciceronis Germanicique

aratea 4 ed Berlin De Gruyter 2011

MURPHY Trevor Pliny the Elderlsquos Natural History Oxford Oxford University Press

2004

NICOLAI Roberto The place of History in the Ancient world In MARINCOLA John

(ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v1 p 13-26

NICOLET Claude Rome et la conquecircte du monde meacutediterraneacuteen 6 ed Paris Presses

Universitaires de France 2011 v 2 (Genegravese d`um empire)

OGILVIE R M A commentary on Livy books 1-5 Oxford Claredon Press 1965

OlsquoGORMAN Ellen No place like Rome identity and difference in the Germania of

Tacitus In ASH Rhiannon (ed) Oxford Readings in Classical Studies Tacitus

Oxford Oxford University Press 2012 p 95-118

OAKLEY Stephen P A commentary on Livy books VI-X Oxford Claredon Press

1998 vII

__________________ Re ding Livylsquos Book 5 In MINEO Bern rd (ed ) A

companion to Livy Oxford Wiley-Blackwell 2015 p 230-241

268

OLIVER Graham J History and rhetoric In BUGH Glenn R (ed) The Cambridge

Companion to the Hellenistic world Cambridge Cambridge University Press 2006 p

113-135

OLIVEIRA Diego Verissimo O perfil de Vercingetoacuterige no De bello Gallico de Ceacutesar

2008 65 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) - Faculdade de Letras

Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2008

OLIVEIRA Francisco Consequecircncias da expansatildeo romana In BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes

OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra Imprensa da Universidade

de Coimbra 2015 v1 p 233-311

OLIVIERI Filippo Lourenccedilo Os druidas Satildeo Paulo Perspectiva 2014

PARATORE Ettore Histoacuteria da literatura latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1983

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura classica 7 ed

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993 v2

PERNOT Laurent Rhetoric in antiquity Traduccedilatildeo de WE Higgins Washington The

Catholic University of America Press 2005

PHILLIPS Jane E Current research in Livy`s first decade 1959-1979 In HAASE

Wolfgang (ed) Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter

de Gruyter 1982 band II 302 p 998-1051

PIMENTEL Cristina de Sousa Catatildeo censor Lisboa Editoral Inqueacuterito 1997

POTTER David A companion to the Roman Empire Oxford Blackwell Companions

to the Ancient World 2006

RAMBAUD Michel L`art de la deacuteformation historique dans les Commentaires de

Ceacutesar 2 ed Paris Les Belles Lettres 2011

RANKIN David Celts and the classical world London Routledge 1996

RATTI Steacutephane Tite-Live In _________________ Eacutecrire l`Histoire agrave Rome Paris

Les Belles Lettres 2009 p 127-173

RAWSON Elizabeth The expansion of Rome In BOARDMAN John GRIFFIN

Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford

Oxford University Press 1986 p 343-364

REVELL Louise Roman imperialism and local identities Cambridge Cambridge

University Press 2009

269

REZENDE Antonio Martinez Rompendo o Silecircncio a construccedilatildeo do discurso oratoacuterio

em Quintiliano 2009 280 f Tese (Doutorado em Estudos Linguiacutesticos) - Faculdade de

Letras Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte 2009

RIGGSBY Andrew M Caesar in Gaul and Rome war in words Austin University of

Texas Press 2006

_________________ Memoir and autobiography in Republican Rome In

MARINCOLA John (ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford

Blackwell Companions to the Ancient World 2007 v 1 p 226-274

ROCHETTE Bruno Grecs Rom ins et B rb res l recherche de llsquoidentiteacute ethnique

et linguistique des Grecs et des Romains Revue belge de philologie et dhistoire

Bruxelles tome 75 fasc 1 p 37-57 1997

ROacuteNAI Paulo A traduccedilatildeo vivida 2 ediccedilatildeo mpli d Rio de Janeiro Nova Fronteira

1981

RUSSEL DA WILSON NG (eds) Menander rhetor Oxford Claredon Press

1981

SACKS Kenneth Diodorus Siculus and the first century Princeton Princeton

University Press 1990

SANTINI Andreacute La Gaule raconteacutee aux gaulois Paris Editions 1 Socieacuteteacute 1999

SCHMIDT Joeumll Les Gaulois contre les Romains Paris Perrin 2010

SEBASTIANI Breno A poliacutetica como objeto de estudo Tito Liacutevio e o pensamento

historiograacutefico romano do seacuteculo I aC In JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e

retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo Alameda 2007 p 77-96

SHERWIN-WHITE Adrian N Racial prejudice in imperial Rome Cambridge

Cambridge University Press 1967

_____________________ Rome the agressor Review of War and imperialism in

Republican Rome by William V Harris The Journal of Roman Studies Cambridge v

70 p 177-181 1980

STOCKTON David The founding of the Empire In BOARDMAN John GRIFFIN

Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford

Oxford University Press 1986 p 443-461

STRASBURGER Hermann Poseidonios on problems of the Roman Empire The

Journal of Roman Studies Cambridge v 55 n 12 p 40-53 1965

270

SYED Yasmin Romans and others In HARRISON Stephen (ed) A companion to

Latin literature Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2005 p 360-

371

TAPLIN Oliver (ed) Literature in the Greek and Roman worlds Oxford Oxford

University Press 2000

THILL Andreacute ―G ulom ni une exposition de l bibliothegraveque du MNATP

Ethnologie franccedilaise nouvelle serie Paris tome 28 n 3 p 312-316 1998

TRINGALI Dante Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Duas Cidades 1988

USHER Stephen The historians of Greece and Rome London Bristol Classical 2001

Reimpressatildeo

VASALY Ann Representations images of the world in Ciceronian oratory Los

Angeles University of California Press 1993

VEYNE Paul Y a-t-il eu un impeacuterialisme romain Antiquiteacute Paris v 87 n 2 p 793-

855 1975

____________ Humanitas romanos e natildeo romanos In GIARDINA Andrea (ed) O

homem romano Lisboa Editorial Presenccedila 1992 p 283-302

____________ Como se escreve a histoacuteria Traduccedilatildeo de Alda Baltazar e Maria

Auxiliadora Kneipp 4 ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora UnB 1998

VIEIRA Ana Thereza Basilio O conceito de natureza em Pliacutenio o Velho Anais de

Filosofia Claacutessica Rio de Janeiro v IV n 8 p 60-69 2010

WALBANK Frank W Polybius Rome and the Hellenistic world essays and

reflections Cambridge Cambridge University Press 2002

WALLACE-HADRILL Andrew Romelsquos cultural revolution Cambridge Cambridge

University Press 2008

WELLS Peter S The Barbarians speak how the conquered peoples shaped Roman

Europe Princeton Princeton University Press 1999

WOOLF Greg Becoming Roman the origins of provincial civilization in Gaul

Cambridge Cambridge University Press 2003

_____________ Tales of the Barbarians ethnography and empire in the Roman West

Oxford Blackwell Publishing 2011

YAVETZ Zvi Ceacutesar et son image Paris Les Belles Lettres 2004

271

Anexo ndash antologia de autores

1 ndash Ceacutesar

Sobre a guerra da Gaacutelia - Livro I

1 ndash Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam

Aquitani tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur Hi omnes lingua

intitutis legibus inter se differunt Gallos ab Aquitanis Garumna flumen a Belgis

Matrona et Sequana diuidit Horum omnium fortissimi sunt Belgae propterea quod a

cultu atque humanitate prouinciae longissime absunt minimeque ad eos mercatores

saepe commeant atque ea quae ad effeminandos animos pertinent inportant proximique

sunt Germanis qui trans Rhenum incolunt quibuscum continenter bellum gerunt Qua

de causa Heluetii quoque reliquos Gallos uirtute praecedunt quod fere cotidianis

proeliis cum Germanis contendunt cum aut suis finibus eos prohibent aut ipsi in eorum

finibus bellum gerunt Eorum uma pars quam Gallos optinere dictum est initium capit

a flumine Rhodano continetur Garumna flumine Oceano finibus Belgarum attingit

etiam ab Sequanis et Heluetiis flumen Rhenum uergit ad septentriones Belgae ab

extremis Galliae finibus oriuntur pertinent ad inferiorem partem fluminis Rheni

spectant in septentrionem et orientem solem Aquitania a Garumna flumine ad

Pyrenaeos montes et eam partem Oceani quae est ad Hispaniam pertinet spectat inter

occasum solis et septentriones

1 ndash Toda a Gaacutelia eacute dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os

aquitanos a outra e a terceira habitam aqueles que em sua proacutepria liacutengua satildeo chamados

―celt s n noss ―g uleses Todos esses diferem entre si pel liacutengu pelos costumes e

pelas leis O rio Garona separa os gauleses dos aquitanos dos belgas os rios Marne e

Sena De todos esses os mais corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da

civilizaccedilatildeo e urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e importam

aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque estatildeo proacuteximos dos

germanos que habitam o outro lado do Reno e com esses travam guerra

constantemente Pelo mesmo motivo os helveacutecios tambeacutem superam os gauleses

restantes em coragem jaacute que lutam em combates quase diaacuterios contra os germanos ndash

quer quando os afastam de suas fronteiras quer quando levam por si a guerra aos

272

territoacuterios daqueles Uma parte dessas terras ndash que foi dito antes os gauleses ocuparem ndash

tem iniacutecio ao lado do rio Roacutedano eacute limitada pelo rio Garona pelo Oceano e pelo

territoacuterio dos belgas ela se estende tambeacutem ateacute o rio Reno pelo lado dos seacutequanos e dos

helveacutecios inclinando-se para o norte Os belgas satildeo oriundos do territoacuterio longiacutenquo da

Gaacutelia estendem-se ateacute a parte inferior do rio Reno e veem o sol ao norte e a leste A

Aquitacircnia estende-se do rio Garona aos montes Pirineus e agravequela parte do Oceano que

estaacute junto agrave Hispacircnia fitando entre o por do sol e o norte

31 ndash Eo concilio dimisso idem principes ciuitatum qui ante fuerant ad Caesarem

reuerterunt petieruntque uti sibi secreto in occulto de sua omniumque salute cum eo

agere liceret Ea re impetrata sese omnes flentes Caesari ad pedes proiecerunt non

minus se id contendere et laborare ne ea quae dixissent enuntiarentur quam uti ea

quae uellent impetrarent propterea quod si enuntiatum esset summum in cruciatum se

uenturos uiderent Locutus est pro his Diuiciacus Haeduus Galliae totius factiones

esse duas harum alterius principatum tenere Haeduos alterius Aruernos Hi cum

tantopere de potentatu inter se multos annos contenderent factum esse uti ab Aruernis

Sequanisque Germani mercede arcesserentur Horum primo circiter milia XV Rhenum

transisse posteaquam agros et cultum et copias Gallorum homines feri ac barbari

adamassent traductos plures nunc esse in Gallia ad centum et XX milium numerum

Cum his Haeduos eorumque clientes semel atque iterum armis contendisse magnam

calamitatem pulsos accepisse omnem nobilitatem omnem senatum omnem equitatum

amisisse Quibus proeliis calamitatibusque fractos qui et sua uirtute et populi Romani

hospitio atque amicitia plurimum ante in Gallia potuissent coactos esse Sequanis

obsides dare nobilissimos ciuitatis et iure iurando ciuitatem obstringere sese neque

obsides repetituros neque auxilium a populo Romano inploraturos neque recusaturos

quo minus perpetuo sub illorum dicione atque imperio essent Unum se esse ex omni

ciuitate Haeduorum qui adduci non potuerit ut iuraret aut liberos suos obsides daret

Ob eam rem se ex ciuitate profugisse et Romam ad senatum uenisse auxilium

postulatum quod solus neque iure iurando neque obsidibus teneretur Sed peius

uictoribus Sequanis quam Haeduis uictis accidisse propterea quod Ariouistus rex

Germanorum in eorum finibus consedisset tertiamque partem agri Sequani qui esset

optimus totius Galliae occupauisset et nunc de altera parte tertia Sequanos decedere

iuberet propterea quod paucis mensibus ante Harudum milia hominum XXIV ad eum

273

uenissent quibus locus ac sedes pararentur Futurum esse paucis annis uti omnes ex

Galliae finibus pellerentur atque omnes Germani Rhenum transirent neque enim

conferendum esse gallicum cum Germanorum agro neque hanc consuetudinem uictus

cum illa comparandam Ariouistum autem ut semel Gallorum copias proelio uicerit

quod proelium factum sit Admagetobrigae superbe et crudeliter imperare obsides

nobilissimi cuiusque liberos poscere et in eos omnia exempla cruciatusque edere si qua

res non ad nutum aut ad uoluntatem eius facta sit Hominem esse barbarum

iracundum temerarium non posse eius imperia diutius sustinere Nisi si quid in

Caesare populoque Romano sit auxilii omnibus Gallis idem esse faciendum quod

Heluetii fecerint ut domo emigrent aliud domicilium alias sedes remotas a Germanis

petant fortunamque quaecumque accidat experiantur Haec si enuntiata Ariouisto sint

non dubitare quin de omnibus obsidibus qui apud eum sint grauissimum supplicium

sumat Caesarem uel auctoritate sua atque exercitus uel recenti uictoria uel nomine

populi Romani deterrere posse ne maior multitudo Germanorum Rhenum traducatur

Galliamque omnem ab Ariouisti iniuria posse defendere

31 ndash Despedido esse conselho os mesmos chefes das comunidades que anteriormente

foram ateacute Ceacutesar retornaram e pediram-lhe que lhes fosse permitido dirigir-se a ele em

um lugar reservado e sem testemunhas a respeito da sua salvaccedilatildeo e da salvaccedilatildeo de

todos Obtida a permissatildeo todos se lanccedilaram chorosos aos peacutes de Ceacutesar igualmente

pretendiam e diligenciavam natildeo se divulgar aquilo que disseram e concretizar o seu

desejo pois caso algo se divulgasse haveriam de incorrer nos piores supliacutecios O eacuteduo

Diviciacute co f lou por eles ―Em tod Gaacuteli existi m du s f cccedilotildees os eacuteduos tinh m

lideranccedila de uma delas e os arvernos da outra Como eles duramente lutassem entre si

por causa do poder durante muitos anos aconteceu que pelos arvernos e pelos seacutequanos

mercenaacuterios germanos fossem chamados Primeiramente cerca de quinze mil deles

atravessaram o Reno como tais homens ferozes e baacuterbaros comeccedilassem a gostar das

terras do modo de vida e das riquezas dos gauleses muitos mais atravessaram agora

estavam na Gaacutelia aproximadamente cento e vinte mil Contra esses os eacuteduos e os seus

clientes simultaneamente opuseram as armas uma ou duas vezes sendo eles batidos

sofreram grande calamidade perderam toda a nobreza todo o senado e toda a cavalaria

Alquebrados por tais combates e calamidades eles que anteriormente tiveram enorme

poder na Gaacutelia tanto por sua virtude quanto pela hospitalidade e amizade dos romanos

foram coagidos a entregar aos seacutequanos como refeacutens os mais nobres de seu povo e a

274

comprometecirc-lo por meio de um juramento de que natildeo os pediriam de volta natildeo

implorariam socorro aos romanos nem recusariam estar para sempre sob o mando e o

poder dos seacutequanos Ele Diviciacuteaco era o uacutenico de toda a comunidade dos eacuteduos que

natildeo pudera ser levado a jurar ou a dar seus filhos como refeacutens Por tal motivo fugira da

comunidade e viera a Roma ao senado pedir auxiacutelio pois apenas ele natildeo era impedido

nem por um juramento nem por refeacutens Contudo sucedera algo pior aos seacutequanos

vencedores do que aos eacuteduos vencidos porque Ariovisto rei dos germanos tinha-se

estabelecido no territoacuterio daqueles e ocupara um terccedilo das terras seacutequanas as melhores

de toda a Gaacutelia Agora Ariovisto ordenava que os seacutequanos se retirassem da outra terccedila

parte pois poucos meses antes juntaram-se a ele vinte e quatro mil homens dos

harudos para os quais territoacuterio e morada eram providenciados Sucederia em poucos

anos que todos fossem expulsos do territoacuterio da Gaacutelia e todos os germanos

atravessassem o Reno natildeo com efeito eram as terras dos germanos comparaacuteveis agraves

terras gaulesas nem aquele modo de vida podia ser cotejado com este Por outro lado

como Ariovisto vencera uma vez em combate as tropas dos gauleses ndash combate este que

se travou em Admagetoacutebriga ndash comandava com soberba e crueldade exigia como refeacutens

os filhos de cada um dos mais nobres gauleses e a eles infligia todas as torturas a tiacutetulo

de exemplo se algo natildeo fosse feito ao primeiro aceno ou vontade sua Ele era um

homem baacuterbaro irasciacutevel e temeraacuterio eles natildeo podiam suportar por mais tempo seu

comando A natildeo ser que houvesse algum auxiacutelio em Ceacutesar e no povo romano o mesmo

que os helveacutecios fizeram deveria ser feito por todos os gauleses sair da paacutetria e procurar

outro domiciacutelio outras moradas distantes dos germanos e por agrave prova a fortuna

qualquer que fosse Se essas coisas fossem divulgadas a Ariovisto natildeo duvidava que ele

infligiria o mais duro supliacutecio a todos os refeacutens que estavam sob seu poder Que Ceacutesar

quer por sua autoridade e pela do exeacutercito quer pela recente vitoacuteria ou quer pelo nome

do povo romano podia impedir que maior multidatildeo de germanos atravessasse o Reno e

poderia defender a Gaacutelia inteira dos abusos de Ariovisto

33 ndash His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit pollicitusque est

sibi eam rem curae futuram magnam se habere spem et beneficio suo et auctoritate

adductum Ariouistum finem iniuriis facturum Hac oratione habita concilium dimisit Et

secundum ea multae res eum hortabantur quare sibi eam rem cogitandam et

suscipiendam putaret in primis quod Haeduos fratres consanguineosque saepe numero

a senatu appellatos in seruitute atque in dicione uidebat Germanorum teneri eorumque

275

obsides esse apud Ariouistum ac Sequanos intellegebat quod in tanto imperio populi

Romani turpissimum sibi et rei publicae esse arbitrabatur Paulatim autem Germanos

consuescere Rhenum transire et in Galliam magnam eorum multitudinem uenire populo

Romano periculosum uidebat neque sibi homines feros ac barbaros temperaturos

existimabat quin cum omnem Galliam occupauissent ut ante Cimbri Teutonique

fecissent in prouinciam exirent atque inde in Italiam contenderent praesertim cum

Sequanos a prouincia nostra Rhodanus diuideret quibus rebus quam maturrime

occurrendum putabat Ipse autem Ariouistus tantos sibi spiritus tantam adrogantiam

sumpserat ut ferendus non uideretur

33 ndash Tendo conhecido essas coisas Ceacutesar fortaleceu com palavras os acircnimos dos

g uleses e prometeu que esse ssunto h veri de ser cuid do por si ―tinh gr nde

esperanccedila de que movido tanto por seus benefiacutecios quanto por sua autoridade Ariovisto

cess ri os busos Tendo proferido tal discurso despediu o conselho Em

conformidade muitas outras coisas o exortavam a considerar por qual razatildeo esse

assunto devia ser examinado e cuidado por si Sobretudo porque via os eacuteduos ndash amiuacutede

ch m dos pelo sen do irmatildeos e cons guiacuteneoslsquo ndash serem mantidos sob a servidatildeo e o

controle dos germanos e ele sabia que os refeacutens deles estavam em poder de Ariovisto e

dos seacutequanos o que considerava bastante vergonhoso para si e para a Repuacuteblica dada a

grandeza do domiacutenio do povo romano Ele via por outro lado que era perigoso para o

povo romano que os germanos aos poucos se acostumassem a atravessar o Reno e uma

grande multidatildeo deles viesse agrave Gaacutelia Pensava consigo que tais homens ferozes e

baacuterbaros natildeo haveriam de evitar tendo ocupado a Gaacutelia inteira como antes fizeram os

cimbros e os teutotildees que partissem para a proviacutencia e de laacute marchassem contra a Itaacutelia

sobretudo porque apenas o Roacutedano separava os seacutequanos de nossa proviacutencia Ceacutesar

considerava que devia resolver esse inconveniente com a maior presteza Por outro lado

o proacuteprio Ariovisto se inflara de tamanha soberba e tamanha arrogacircncia que parecia natildeo

dever ser suportado

Livro II

4 ndash Cum ab his quaereret quae ciuitates quantaeque in armis essent et quid in bello

possent sic reperiebat plerosque Belgas esse ortos ab Germanis Rhenumque

antiquitus traductos propter loci fertilitatem ibi consedisse Gallosque qui ea loca

276

incolerent expulisse solosque esse qui patrum nostrorum memoria omni Gallia uexata

Teutonos Cimbrosque intra fines suos ingredi prohibuerint qua ex re fieri uti earum

rerum memoria magnam sibi auctoritatem magnosque spiritus in re militari sumerent

De numero eorum omnia se habere explorata Remi dicebant propterea quod

propinquitatibus adfinitatibusque coniuncti quantam quisque multitudinem in communi

Belgarum concilio ad id bellum pollicitus sit cognouerint Plurimum inter eos

Bellouacos et uirtute et auctoritate et hominum numero ualere hos posse conficere

armata milia centum pollicitos ex eo numero electa sexaginta totiusque belli imperium

sibi postulare Suessiones suos esse finitimos fines latissimos feracissimosque agros

possidere Apud eos fuisse regem nostra etiam memoria Diuiciacum totius Galliae

potentissimum qui cum magnae partis harum regionum tum etiam Britanniae

imperium optinuerit nunc esse regem Galbam ad hunc propter iustitiam

prudentiamque summam totius belli omnium uoluntate deferri oppida habere numero

XII polliceri milia armata quinquaginta totidem Neruios qui maxime feri inter ipsos

habeantur longissimeque absint quindecim milia Atrebates Ambianos decem milia

Morinos XXV milia Menapios VII milia Caletos X milia Veliocasses et Viromanduos

totidem Atuatucos XVIIII milia Condrusos Eburones Caeroesos Paemanos qui uno

nomine Germani appellantur arbitrari ad XL milia

4 ndash Como Ceacutesar lhes perguntasse quais comunidades e de qual tamanho pegaram em

armas bem como seu poder na guerra descobria isto a maior parte dos belgas

descendia dos germanos eles haacute muito tempo atravessaram o Reno por causa da

fertilidade do lugar e ali se estabeleceram tendo expulsado os Gauleses que habitavam

tais paragens Eram os uacutenicos que pela lembranccedila dos nossos pais dilapidando-se toda

a Gaacutelia impediram os teutotildees e os cimbros de adentrar em seu territoacuterio disso resultava

que pela lembranccedila de tais feitos atribuiacutessem para si grande autoridade e grande

confianccedila na arte militar Os Remos diziam tudo ter conhecido acerca dos efetivos

deles visto que ligados pelo parentesco e alianccedilas souberam quatildeo grandes tropas cada

qual prometera para esta guerra no conselho comum dos belgas Os beloacutevacos muito

sobressaiacuteam entre eles tanto por seu valor e autoridade quanto pelo nuacutemero de homens

eles podiam reunir cem mil homens armados e nesse nuacutemero prometeram sessenta mil

excelentes exigindo para si o comando de toda a guerra Os suessiotildees eram seus

vizinhos possuindo vastiacutessimo territoacuterio e terras muito feacuterteis Foi seu rei ateacute haacute pouco

Diviciacuteaco o mais poderoso de toda a Gaacutelia que obtivera o comando natildeo soacute de grande

277

parte destas regiotildees mas tambeacutem da Britacircnia agora Galba era rei por sua justiccedila e

prudecircncia era-lhe confiado o comando de toda a guerra com o consenso de todos tinha

doze cidades fortificadas e prometia cinquenta mil homens armados outros tantos

prometeram os neacutervios que eram tidos como os mais ferozes entre eles proacuteprios e

habitavam muito longe os atreacutebates prometiam quinze mil os ambianos dez mil os

morinos vinte e cinco mil os menaacutepios sete mil os caletos dez mil os veliocassos e

os veromacircnduos outros tantos os aduaacuteticos dezenove mil os condrusos eburotildees

ceresos e pem nos que por um soacute nome satildeo ch m dos germ noslsquo pens v m em cerc

de quarenta mil homens

15 ndash Caesar honoris Diuiciaci atque Haeduorum causa sese eos in fidem recepturum et

conseruaturum dixit quod erat ciuitas magna inter Belgas auctoritate atque hominum

multitudine praestabat sexcentos obsides poposcit His traditis omnibusque armis ex

oppido conlatis ab eo loco in fines Ambianorum peruenit qui se suaque omnia sine

mora dediderunt Eorum fines Neruii attingebant quorum de natura moribusque

Caesar cum quaereret sic reperiebat Nullum aditum esse ad eos mercatoribus nihil

pati uini reliquarumque rerum ad luxuriam pertinentium inferri quod iis rebus

relanguescere animos eorum et remitti uirtutem existimarent esse homines feros

magnaque uirtutis increpitare atque incusare reliquos Belgas qui se populo Romano

dedidissent patriamque uirtutem proiecissent confirmare sese neque legatos missuros

neque ullam condicionem pacis accepturos

15 ndash Ceacutesar por acato a Diviciacuteaco e aos eacuteduos disse que ele os haveria de receber e

conservar em seguranccedila como a comunidade tinha grande autoridade entre os belgas e

destacava-se devido agrave multidatildeo de homens Ceacutesar exigiu seiscentos refeacutens Sendo esses

entregues e todas as armas da fortaleza fornecidas ele partiu daquele lugar para o

territoacuterio dos ambianos os quais entregaram a si mesmos e a todas as suas coisas sem

demora Os neacutervios confinavam com seu territoacuterio Como Ceacutesar indagasse a respeito da

natureza e dos costumes deles descobriu isto que os mercadores natildeo tinham acesso

algum ateacute eles natildeo permitiam que se importasse nada de vinho e dos demais itens de

luxo porque consideravam com tais coisas que se enfraqueciam seus espiacuteritos e

minguava seu valor eram homens ferozes e de grande virtude censuravam e acusavam

os belgas restantes que se tinham rendido ao povo romano e abandonado os valores

278

paacutetrios e afirmavam que natildeo haveriam de enviar embaixadores nem de aceitar condiccedilatildeo

de paz alguma

Livro IV

5 ndash His de rebus Caesar certior factus et infirmitatem Gallorum ueritus quod sunt in

consiliis capiendis mobiles et nouis plerumque rebus student nihil his committendum

existimauit Est enim hoc Gallicae consuetudinis uti et uiatores etiam inuitos consistere

cogant et quid quisque eorum de quaque re audierit aut cognouerit quaerant et

mercatores in oppidis uulgus circumsistat quibusque ex regionibus ueniant quasque ibi

res cognouerint pronuntiare cogat his rebus atque auditionibus permoti de summis

saepe rebus consilia ieunt quorum eos in uestigio paenitere necesse est cum incertis

rumoribus seruiant et plerique ad uoluntatem eorum ficta respondeant

5 ndash Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses que satildeo

voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees considerou que nada

devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume gaulecircs natildeo soacute obrigar

constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar saber aquilo que cada um deles

ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los

a falar de quais regiotildees provecircm e o que ali conheceram movidos por tais feitos e

boatos muitas vezes os gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos

das quais eacute forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a

maior parte mente ao responder segundo a vontade deles

12 ndash At hostes ubi primum nostros equites conspexerunt quorum erat V milium

numerus cum ipsi non amplius octingentos equites haberent quod ii qui frumentandi

causa ierant trans Mosam nondum redierant nihil timentibus nostris quod legati

eorum paulo ante a Caesare discesserant atque is dies indutiis erat ab his petitus

impetu facto celeriter nostros perturbauerunt rursus his resistentibus consuetudine sua

ad pedes desiluerunt subfossis equis conpluribusque nostris deiectis reliquos in fugam

coniecerunt atque ita perterritos egerunt ut non prius fuga desisterent quam in

conspectum agminis nostri uenissent In eo proelio ex equitibus nostris interficiuntur

quattuor et septuaginta in his uir fortissimus Piso Aquitanus amplissimo genere natus

279

cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu nostro appellatus Hic

cum fratri intercluso ab hostibus auxilium ferret illum ex periculo eripuit ipse equo

uulnerato deiectus quoad potuit fortissime restitit cum circumuentus multis uulneribus

acceptis cecidisset atque id frater qui iam proelio excesserat procul animaduertisset

incitato equo se hostibus obtulit atque interfectus est

12 ndash Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil (natildeo

dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que atravessaram o

Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em nada temendo os nossos

porque os embaixadores deles pouco antes tinham-se despedido de Ceacutesar e aquele era

o dia de treacutegua solicitado por eles rapidamente nos desordenaram com um ataque

Novamente resistindo os nossos saltaram eles de peacute conforme seu costume matando os

cavalos montados e derrubando em maior nuacutemero os nossos puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute virem agrave

presenccedila de nossa tropa Nesse combate satildeo mortos setenta e quatro dos nossos

cavaleiros entre eles um homem fortiacutessimo Pisatildeo Aquitano nascido de

importantiacutessima famiacutelia cujo avocirc obtivera o comando em sua cidade e que fora

ch m do migolsquo por nosso sen do Lev ndo ele uxiacutelio o irmatildeo cerc do por

inimigos livrou-o do perigo ele mesmo derrubado de seu cavalo ferido resistiu muito

bravamente enquanto pode rodeado tombou ao receber vaacuterios ferimentos Notando-o

de longe o irmatildeo que jaacute deixara a batalha esporeou seu cavalo lanccedilou-se contra os

inimigos e foi morto

280

2 ndash Tito Liacutevio

Da fundaccedilatildeo da Cidade - Livro V

34 ndash De transitu in Italiam Gallorum haec accepimus Prisco Tarquinio Romae

regnante Celtarum quae pars Galliae tertia est penes Bituriges summa imperii fuit ii

regem Celtico dabant Ambigatus is fuit uirtute fortunaque cum sua tum publica

praepollens quod in imperio eius Gallia adeo frugum hominumque fertilis fuit ut

abundans multitudo uix regi uideretur posse Hic magno natu ipse iam exonerare

praegrauante turba regnum cupiens Bellouesum ac Segouesum sororis filios impigros

iuuenes missurum se esse in quas di dedissent auguriis sedes ostendit quantum ipsi

uellent numerum hominum excirent ne qua gens arcere aduenientes posset Tum

Segoueso sortibus dati Hercynei saltus Belloueso haud paulo laetiorem in Italiam uiam

di dabant Is quod eius ex populis abundabat Bituriges Aruernos Senones Haeduos

Ambarros Carnutes Aulercos exciuit Profectus ingentibus peditum equitumque copiis

in Tricastinos uenit Alpes inde oppositae erant quas inexsuperabiles uisas haud

equidem miror nulladum uia quod quidem continens memoria sit nisi de Hercule

fabulis credere libet superatas Ibi cum uelut saeptos montium altitudo teneret Gallos

circumspectarentque quanam per iuncta caelo iuga in alium orbem terrarum transirent

religio etiam tenuit quod allatum est aduenas quaerentes agrum ab Saluum gente

oppugnari Massilienses erant ii nauibus a Phocaea profecti Id Galli fortunae suae

omen rati adiuuere ut quem primum in terram egressi occupauerant locum patientibus

Saluis communirent Ipsi per Taurinos saltus quiete Alpis transcenderunt fusisque acie

Tuscis haud procul Ticino flumine cum in quo consederant agrum Insubrium appellari

audissent cognominem Insubribus pago Haeduorum ibi omen sequentes loci condidere

urbem Mediolanium appellarunt

34 ndash Sobre a vinda dos gauleses para a Itaacutelia conhecemos isto enquanto Tarquiacutenio

Prisco era rei em Roma estiveram os maiores domiacutenios dos celtas em poder dos

bituacuteriges (que compotildeem a terccedila parte da Gaacutelia) e foram esses que deram um rei ao povo

ceacuteltico Foi ele Ambigato entatildeo muito poderoso pela virtude e fortuna sua e do seu

povo no governo dele a Gaacutelia ateacute entatildeo fora tatildeo feacutertil em cereais e homens que com

custo tamanha multidatildeo pareceria ser governada Ele estando idoso e jaacute desejando livrar

o reino de uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso

filhos da sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes mostrariam

281

por meio de auguacuterios Eles mesmos deveriam chamar o nuacutemero de homens que

quisessem de modo que nenhuma naccedilatildeo pudesse repelir a sua chegada Assim a

Segoveso foi dada pelos oraacuteculos a floresta Herciacutenia a Beloveso os deuses concederam

um caminho mais favoraacutevel para a Itaacutelia Beloveso chamou o excedente dos seus povos

bituacuteriges arvernos secircnones eacuteduos ambarros carnutos e aulercos Partindo com

grandes tropas de soldados e cavaleiros chegou ateacute aos tricastinos Nesse lugar estavam

opostos os Alpes sem duacutevida natildeo me espanto que eles pareccedilam insuperaacuteveis jaacute que por

nenhuma estrada foram cortados ndash como certamente temos na memoacuteria ndash a natildeo ser que

se acredite nas narrativas sobre Heacutercules Nesse local como a altura das montanhas

mantivesse os gauleses retidos eles examinavam os arredores por onde haveriam de

passar atraveacutes de cimos quase unidos ao ceacuteu para outro mundo de terras Tambeacutem a

religiatildeo os retinha pois lhes fora anunciado que estrangeiros desejosos de terra eram

atacados pelo povo saluacutevio Esses estrangeiros eram os marselheses que vieram da

Foceia em navios Os gauleses considerando isso o pressaacutegio de sua sorte os ajudaram

a fortificar o primeiro local que ocuparam ao chegar a essa terra sendo os saluacutevios

suportados Eles mesmos atravessaram tranquilamente os Alpes atraveacutes do desfiladeiro

taurino tendo expulsado os etruscos em uma batalha natildeo muito longe do rio Ticino

ouviram que eles se encontravam naquele local que era chamado campo dos iacutensubres o

nome da povoaccedilatildeo dos iacutensubres e dos eacuteduos Nesse lugar seguindo eles o pressaacutegio

fundaram uma cidade que chamaram de Mediolano634

35 ndash Alia subinde manus Cenomanorum Etitouio duce uestigia priorum secuta eodem

saltu fauente Belloueso cum transcendisset Alpes ubi nunc Brixia ac Verona urbes sunt

locos tenuere Libui considunt post hos Salluuiique prope antiquam gentem Laeuos

Ligures incolentes circa Ticinum amnem Poeninum deinde Boii Lingonesque

transgressi cum iam inter Padum atque Alpes omnia tenerentur Pado ratibus traiecto

non Etruscos modo sed etiam Vmbros agro pellunt intra Appenninum tamen sese

tenuere Tum Senones recentissimi aduenarum ab Vtente flumine usque ad Aesim fines

habuere Hanc gentem Clusium Romamque inde uenisse comperio id parum certum

est solamne an ab omnibus Cisalpinorum Gallorum populis adiutam Clusini nouo

bello exterriti cum multitudinem cum formas hominum inuisitatas cernerent et genus

armorum audirentque saepe ab iis cis Padum ultraque legiones Etruscorum fusas

quamquam aduersus Romanos nullum eis ius societatis amicitiaeue erat nisi quod

634

Atual Milatildeo

282

Veientes consanguineos aduersus populum Romanum non defendissent legatos Romam

qui auxilium ab senatu peterent misere De auxilio nihil impetratum legati tres M Fabi

Ambusti filii missi qui senatus populique Romani nomine agerent cum Gallis ne a

quibus nullam iniuriam accepissent socios populi Romani atque amicos oppugnarent

Romanis eos bello quoque si res cogat tuendos esse sed melius uisum bellum ipsum

amoueri si posset et Gallos nouam gentem pace potius cognosci quam armislsquo

35 ndash Logo depois outro grupo de cenomanos tendo por liacuteder Etitovio seguiu os passos

dos precedentes e com a ajuda de Beloveso atravessou os Alpes pelo mesmo

desfiladeiro esse grupo ocupou os lugares onde hoje estatildeo as cidades de Briacutexia635

e

Verona Os liacutebuos se estabeleceram depois desses e tambeacutem os saluacutevios perto da antiga

tribo dos levos liacutegures que habitavam proacuteximo ao rio Ticino Em seguida tendo os

boios e os liacutengones atravessado os Apeninos como jaacute estivessem ocupadas todas as

terras entre o rio Poacute e os Alpes com barcos atravessaram o Poacute e expulsaram da terra natildeo

soacute os etruscos mas tambeacutem os umbros contudo eles se estabeleceram nos limites dos

Apeninos Entatildeo os secircnones que vieram por uacuteltimo tomaram o territoacuterio do rio Utente

ateacute o rio Eacutesis Eu soube que foi essa a tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para Roma o que

parece pouco certo eacute se eles contaram ou natildeo com o apoio de todos os povos da Gaacutelia

Cisalpina Os clusinos aterrorizados com essa guerra singular ao ver a multidatildeo de

figuras desconhecidas tanto de homens quanto de tipo de armas e ouvindo que por

vaacuterias vezes as tropas dos etruscos foram dispersadas do lado de caacute e do lado de laacute do

Poacute enviaram emissaacuterios a Roma para que pedissem auxiacutelio ao senado embora natildeo

tivessem com os romanos nenhum direito de alianccedila ou amizade ndash com exceccedilatildeo do fato

de eles natildeo terem defendido os seus parentes de Veios contra o povo romano Sobre o

auxiacutelio nada foi obtido poreacutem foram enviados trecircs legados filhos de Marco Faacutebio

Ambusto para que em nome do senado e do povo romano tivessem com os gauleses

―p r que natildeo lut ssem contr os li dos e migos do povo rom no pois natildeo tinh m

recebido deles nenhuma injuacuteria Pelos romanos eles seriam defendidos atraveacutes da

guerra se algo se sucedesse mas parecia melhor a proacutepria guerra ser evitada se

pudesse e que os gauleses uma gente receacutem conhecida fossem conhecidos mais pela

p z do que pel s rm s

635

Atual Breacutescia

283

36 ndash Mitis legatio ni praeferoces legatos Gallisque magis quam Romanis similes

habuisset Quibus postquam mandata ediderunt in concilio Gallorum datur responsum

etsi nouum nomen audiant Romanorum tamen credere uiros fortes esse quorum

auxilium a Clusinis in re trepida sit imploratum et quoniam legatione aduersus se

maluerint quam armis tueri socios ne se quidem pacem quam illi adferant aspernari si

Gallis egentibus agro quem latius possideant quam colant Clusini partem finium

concedant aliter pacem impetrari non posse Et responsum coram Romanis accipere

uelle et si negetur ager coram iisdem Romanis dimicaturos ut nuntiare domum

possent quantum Galli uirtute ceteros mortales praestarentlsquo Quodnam id ius esset

agrum a possessoribus petere aut minari armalsquo Romanis quaerentibus et quid in

Etruria rei Gallis essetlsquo cum illi se in armis ius ferre et omnia fortium uirorum esselsquo

ferociter dicerent accensis utrimque animis ad arma discurritur et proelium

conseritur Ibi iam urgentibus Romanam urbem fatis legati contra ius gentium arma

capiunt Nec id clam esse potuit cum ante signa Etruscorum tres nobilissimi

fortissimique Romanae iuuentutis pugnarent tantum eminebat peregrina uirtus Quin

etiam Q Fabius euectus extra aciem equo ducem Gallorum ferociter in ipsa signa

Etruscorum incursantem per latus transfixum hasta occidit spoliaque eius legentem

Galli agnouere perque totam aciem Romanum legatum esse signum datum est Omissa

inde in Clusinos ira receptui canunt minantes Romanis Erant qui extemplo Romam

eundum censerent uicere seniores ut legati prius mitterentur questum iniurias

postulatumque ut pro iure gentium uiolato Fabii dederentur Legati Gallorum cum ea

sicut erant mandata exposuissent senatui nec factum placebat Fabiorum et ius

postulare barbari uidebantur sed ne id quod placebat decerneret in tantae nobilitatis

uiris ambitio obstabat Itaque ne penes ipsos culpa esset [cladis forte Gallico bello

acceptae] cognitionem de postulatis Gallorum ad populum reiciunt ubi tanto plus

gratia atque opes ualuere ut quorum de poena agebatur tribuni militum consulari

potestate in insequentem annum crearentur Quo facto haud secus quam dignum erat

infensi Galli bellum propalam minantes ad suos redeunt Tribuni militum cum tribus

Fabiis creati Q Sulpicius Longus Q Seruilius quartum P Cornelius Maluginensis

36 ndash A delegaccedilatildeo seria paciacutefica se natildeo fossem os emissaacuterios tatildeo violentos que mais

parecessem gauleses do que romanos A eles depois que anunciaram os assuntos

orden dos no conselho dos g uleses foi d d seguinte respost ― ind que

escutassem pela primeira vez o nome dos romanos contudo acreditavam que eles eram

284

os homens fortes aos quais pelos clusinos tenha sido implorado o auxiacutelio em uma

ocasiatildeo alarmante como eles preferiram defender os aliados mais com uma embaixada

do que com armas na verdade eles natildeo haveriam de recusar a paz se aos gauleses

necessitados de terra os clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles

possuiacuteam mais terra de outra maneira a paz natildeo poderia ser obtida Desejavam receber

a resposta diante dos romanos e se a terra fosse negada diante dos mesmos romanos

eles haveriam de combater de modo que eles pudessem anunciar agrave sua paacutetria o quanto

os g uleses ultr p ss v m os outros mort is em v lor Os rom nos pergunt r m ―que

interesse tinh m os g uleses n Etruacuteri Como eles respondessem ferozmente que

―tinh m o direito tr veacutes d s rm s e tudo pertenci os homens m is fortes dess

forma os acircnimos de um e outro lado se inflamaram Eles correram para as armas e

travaram combate Entatildeo jaacute estando a urbe romana proacutexima ao seu destino funesto os

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas Isso natildeo pocircde ser feito agraves

escondidas jaacute que os trecircs homens nobres e fortiacutessimos da juventude romana lutavam

diante dos estandartes dos etruscos e muito se elevava o valor estrangeiro Ainda mais

que Quinto Faacutebio levado com o cavalo para aleacutem da batalha matou o liacuteder dos gauleses

que ferozmente se lanccedilava contra os estandartes dos etruscos transpassando-lhe o

flanco com uma lanccedila Os gauleses o reconheceram pegando os despojos e por toda a

batalha foi dada a notiacutecia de ele ser o emissaacuterio dos romanos Entatildeo a ira contra os

clusinos foi deixada de lado e eles se afastaram gritando ameaccedilas contra os romanos

Eles estavam decididos a partir imediatamente para Roma poreacutem venceram os anciotildees

para que antes fossem enviados emissaacuterios para reclamar das injuacuterias e requerer que os

Faacutebios lhes fossem entregues devido ao direito violado das naccedilotildees Os emissaacuterios dos

gauleses comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a

accedilatildeo dos Faacutebios e eles reconheceram como sendo justo o pedido dos baacuterbaros

Contudo a condescendecircncia por homens de tamanha nobreza fazia oposiccedilatildeo para que

natildeo fosse decidido o que agradava ao senado Assim para que a culpa natildeo caiacutesse sobre

o mesmo (caso uma guerra gaulesa causasse destruiccedilatildeo) o senado passou para o povo a

decisatildeo sobre os pedidos dos gauleses Como a influecircncia e o recurso valessem mais do

que o que fora discutido sobre a sua puniccedilatildeo eles foram eleitos tribunos militares com

poder consular para o ano seguinte Irritados com esse fato indigno os gauleses

ameaccedilando abertamente uma guerra voltaram para os seus Foram eleitos tribunos

militares junto com os trecircs Faacutebios Quinto Sulpiacutecio Longo Quinto Serviacutelio (pela quarta

vez) e Puacuteblio Corneacutelio Maluginense

285

37 ndash Cum tanta moles mali instaret ndash adeo occaecat animos Fortuna ubi uim suam

ingruentem refringi non uolt ndash ciuitas quae aduersus Fidenatem ac Veientem hostem

aliosque finitimos populos ultima experiens auxilia dictatorem multis tempestatibus

dixisset ea tunc inuisitato atque inaudito hoste ab Oceano terrarumque ultimis oris

bellum ciente nihil extraordinarii imperii aut auxilii quaesiuit Tribuni quorum

temeritate bellum contractum erat summae rerum praeerant dilectumque nihilo

accuratiorem quam ad media bella haberi solitus erat extenuantes etiam famam belli

habebant Interim Galli postquam accepere ultro honorem habitum uiolatoribus iuris

humani elusamque legationem suam esse flagrantes ira cuius impotens est gens

confestim signis conuolsis citato agmine iter ingrediuntur Ad quorum praetereuntium

raptim tumultum cum exterritae urbes ad arma concurrerent fugaque agrestium fieret

Romam se irelsquo magno clamore significabant quacumque ibant equis uirisque longe ac

late fuso agmine immensum obtinentes loci Sed antecedente fama nuntiisque

Clusinorum deinceps inde aliorum populorum plurimum terroris Romam celeritas

hostium tulit quippe quibus uelut tumultuario exercitu raptim ducto aegre ad

undecimum lapidem occursum est qua flumen Allia Crustuminis montibus praealto

defluens alueo haud multum infra uiam Tiberino amni miscetur Iam omnia contra

circaque hostium plena erant et nata in uanos tumultus gens truci cantu clamoribusque

uariis horrendo cuncta compleuerant sono

37 ndash Como tamanho mal estivesse iminente ndash de tal forma a Fortuna cega os acircnimos

quando ela natildeo quer que a sua vontade de agir seja reprimida ndash a cidade que contra os

inimigos de Fidena e de Veios e contra outros povos vizinhos experimentando muitas

calamidades recorreu a um ditador para supremos auxiacutelios Essa cidade entatildeo diante de

um inimigo novo e estranho que buscava a guerra vindo do oceano e dos uacuteltimos

recantos das terras natildeo recorreu a nenhum poder extraordinaacuterio ou auxiacutelio Os tribunos

cuja temeridade provocou a guerra estavam agrave frente do supremo comando e

considerando nada mais cuidadosamente do que jaacute fosse o usual para as guerras

comuns menosprezaram ainda o perigo da guerra Nesse meio tempo os gauleses

quando souberam que fora concedida tal honra aos violadores do direito das naccedilotildees e

aleacutem disso que tinha sido frustrada a sua embaixada inflamados pela ira (que esse povo

eacute incapaz de controlar) imediatamente tomaram os estandartes e marcharam pelo

caminho com fileira apressada Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente

as comunidades aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a fuga com

286

gr nde cl mor eles nunci v m ―v mos Rom Por onde quer que p ss ssem com

fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e tropas se espalhando em comprimento

e largura Mas mesmo antes do rumor e dos mensageiros dos clusinos e tambeacutem dos

mensageiros dos outros povos foi a rapidez dos inimigos que trouxe o terror a Roma

certamente porque o seu exeacutercito fora recrutado agraves pressas e mesmo rapidamente

conduzido com dificuldade ele avanccedilou onze milhas ateacute onde o rio Aacutelia descendo dos

montes crustuacutemios por um canal muito profundo se unia agrave corrente tiberina natildeo muito

abaixo do curso Jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e

esse povo dado a tumultos vatildeos com canto cruel e vaacuterios gritos preenchiam tudo com

horrendo clamor

38 ndash Ibi tribuni militum non loco castris ante capto non praemunito uallo quo receptus

esset non deorum saltem si non hominum memores nec auspicato nec litato instruunt

aciem diductam in cornua ne circumueniri multitudine hostium possent nec tamen

aequari frontes poterant cum extenuando infirmam et uix cohaerentem mediam aciem

haberent Paulum erat ab dextera editi loci quem subsidiariis repleri placuit eaque res

ut initium pauoris ac fugae sic una salus fugientibus fuit Nam Brennus regulus

Gallorum in paucitate hostium artem maxime timens ratus ad id captum superiorem

locum ut ubi Galli cum acie legionum recta fronte concucurrissent subsidia in auersos

transuersosque impetum darent ad subsidiarios signa conuertit si eos loco depulisset

haud dubius facilem in aequo campi tantum superanti multitudini uictoriam fore Adeo

non fortuna modo sed ratio etiam cum barbaris stabat In altera acie nihil simile

Romanis non apud duces non apud milites erat Pauor fugaque occupauerat animos et

tanta omnium obliuio ut multo maior pars Veios in hostium urbem cum Tiberis arceret

quam recto itinere Romam ad coniuges ac liberos fugerent Parumper subsidiarios

tutatus est locus in reliqua acie simul est clamor proximis ab latere ultimis ab tergo

auditus ignotum hostem prius paene quam uiderent non modo non temptato certamine

sed ne clamore quidem reddito integri intactique fugerunt nec ulla caedes pugnantium

fuit terga caesa suomet ipsorum certamine in turba impedientium fugam Circa ripam

Tiberis quo armis abiectis totum sinistrum cornu defugit magna strages facta est

multosque imperitos nandi aut inualidos graues loricis aliisque tegminibus hausere

gurgites maxima tamen pars incolumis Veios perfugit unde non modo praesidii

quicquam sed ne nuntius quidem cladis Romam est missus Ab dextro cornu quod

287

procul a flumine et magis sub monte steterat Romam omnes petiere et ne clausis

quidem portis urbis in arcem confugerunt

38 ndash Entatildeo os tribunos militares sem escolher um lugar para o acampamento ou

fortificar uma trincheira que serviria de refuacutegio e nem ao menos se lembrando dos

deuses ou dos homens ao natildeo tomar os auspiacutecios ou oferecer os sacrifiacutecios postaram

em linha de batalha o exeacutercito alinhado em alas de modo que a multidatildeo dos inimigos

natildeo o cercassem Contudo natildeo puderam igualar as alas jaacute que com essa disposiccedilatildeo a

linha do meio ficou fraca e com custo se mantinha unida Havia uma pequena elevaccedilatildeo

pelo lado direito que os tribunos decidiram ocupar com as tropas de reserva essa

manobra que marcou o iniacutecio do pavor e da fuga tambeacutem serviu como o uacutenico meio de

salvaccedilatildeo aos desertores que debandavam De fato Breno comandante dos gauleses

especialmente receando um engodo devido ao pequeno nuacutemero de inimigos ndash e

avaliando que essa elevaccedilatildeo tinha sido ocupada de modo que no momento em que os

gauleses atacassem de frente a linha reta das legiotildees essas tropas reservas fizessem um

ataque pelos lados e por traacutes ndash virou as suas tropas contra essas de reserva Se os

expulsasse daquele lugar sem duacutevida a vitoacuteria em um terreno plano seria faacutecil jaacute que os

gauleses os superavam pela maior quantidade de homens Ateacute esse ponto natildeo apenas a

sorte mas tambeacutem a inteligecircncia estava com os baacuterbaros No exeacutercito contraacuterio natildeo

havia nada que se assemelhasse aos romanos nem junto aos comandantes nem junto

aos soldados O pavor e a fuga tomaram os acircnimos de tal forma que tamanho

esquecimento de tudo fez com que a maior parte deles fugisse para a inimiga cidade de

Veios (ainda que o Tibre os retivesse) e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma

para as suas esposas e filhos Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na

outra linha de batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos que

estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que sem nem ao

menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram um combate ou sequer

responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e ningueacutem morreu lutando na

verdade eles feridos pelas costas eram impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da

multidatildeo Em volta da margem do Tibre fugiu toda a ala esquerda tendo atirado no rio

as armas Fez-se uma grande carnificina e muitos incapazes de nadar pelo peso das

couraccedilas e outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram engolidos pelos turbilhotildees das

aacuteguas Todavia a maior parte deles fugiu incoacutelume para Veios de onde nenhum socorro

ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma Da ala direita que estivera

288

mais longe do rio e mais perto do peacute do monte todos fugiram para Roma e nem ao

menos fechando as portas da cidade se refugiaram na cidadela

39 ndash Gallos quoque uelut obstupefactos miraculum uictoriae tam repentinae tenuit et

ipsi pauore defixi primum steterunt uelut ignari quid accidisset deinde insidias uereri

postremo caesorum spolia legere armorumque cumulos ut mos eis est coaceruare tum

demum postquam nihil usquam hostile cernebatur uiam ingressi haud multo ante solis

occasum ad urbem Romam perueniunt Ubi cum praegressi equites non portas clausas

non stationem pro portis excubare non armatos esse in muris rettulissent aliud priori

simile miraculum eos sustinuit noctemque ueriti et ignotae situm urbis inter Romam

atque Anienem consedere exploratoribus missis circa moenia aliasque portas quaenam

hostibus in perdita re consilia essent Romani cum pars maior ex acie Veios petisset

quam Romam nemo superesse quemquam praeter eos qui Romam refugerant crederet

complorati omnes pariter uiui mortuique totam prope urbem lamentis impleuerunt

Priuatos deinde luctus stupefecit publicus pauor postquam hostes adesse nuntiatum est

mox ululatus cantusque dissonos uagantibus circa moenia turmatim barbaris

audiebant Omne inde tempus suspensos ita tenuit animos usque ad lucem alteram ut

identidem iam in urbem futurus uideretur impetus primo aduentu quia accesserant ad

urbem mdashmansuros enim ad Alliam fuisse nisi hoc consilii foretlsquomdash deinde sub

occasum solis quia haud multum diei supererat mdash ante noctem satius inuasuroslsquomdash

tum in noctem dilatum consilium esse quo plus pauoris inferrentlsquo postremo lux

appropinquans exanimare timorique perpetuo ipsum malum continens fuit cum signa

infesta portis sunt inlata Nequaquam tamen ea nocte neque insequenti die similis illi

quae ad Alliam tam pauide fugerat ciuitas fuit Nam cum defendi urbem posse tam

parua relicta manu spes nulla esset placuit cum coniugibus ac liberis iuuentutem

militarem senatusque robur in arcem Capitoliumque concedere armisque et frumento

conlato ex loco inde munito deos hominesque et Romanum nomen defendere flaminem

sacerdotesque Vestales sacra publica a caede ab incendiis procul auferre nec ante

deseri cultum eorum quam non superessent qui colerent si arx Capitoliumque sedes

deorum si senatus caput publici consilii si militaris iuuentus superfuerit imminenti

ruinae urbis facilem iacturam esse seniorum relictae in urbe utique periturae turbaelsquo

Et quo id aequiore animo de plebe multitudo ferret senes triumphales consularesque

simul se cum illislsquo palam dicere obituros nec his corporibus quibus non arma ferre

non tueri patriam possent oneraturos inopiam armatorumlsquo

289

39 ndash O prodiacutegio de uma vitoacuteria tatildeo repentina deixou os gauleses de tal maneira

estupefatos que em um primeiro momento eles mesmos ficaram imoacuteveis de espanto

como se natildeo entendessem o que tinha acontecido depois temeram uma armadilha Por

fim recolheram os despojos dos mortos e os amontoaram em pilhas de armas de acordo

com o costume deles Depois que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela

estrada e chegaram a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol Quando os cavaleiros

batedores retornaram e informaram que natildeo viram as portas fechadas nem sentinela

vigiando as entradas e nenhum soldado a postos nas muralhas outro prodiacutegio

(semelhante ao anterior) os conteve Receando a noite e o abandono da desconhecida

cidade eles acamparam entre Roma e o Acircnio depois de enviar batedores ao redor das

muralhas e das outras portas para saber quais planos tinham os inimigos em uma

situaccedilatildeo tatildeo desesperadora Quanto aos romanos a maior parte da tropa tinha fugido

para Veios ao inveacutes de Roma ningueacutem acreditava que havia mais sobreviventes do que

aqueles que tinham se refugiado em Roma todos ao mesmo tempo lastimando os vivos

e os mortos encheram toda a cidade com seus lamentos Em seguida o pavor

generalizado se sobrepocircs aos gemidos pessoais assim que foi anunciado que os

inimigos estavam por perto logo eles ouviram os gritos e uivos dissonantes dos

baacuterbaros que em bandos perambulavam em volta das muralhas A partir de entatildeo e por

todo o tempo ateacute o dia seguinte os acircnimos se mantiveram inquietos a tal ponto que

continuamente parecia que ia acontecer o ataque agrave cidade primeiro na chegada pois

eles jaacute tinham se aproximado da cidade ndash ―de f to teri m perm necido em Aacuteli se isso

natildeo fosse de seu consenso Depois ch r m que o t que ia ser realizado ao pocircr do sol

pois jaacute natildeo h vi muit cl rid de e ―inv diri m melhor ntes do c ir d noite Em

seguid consider r m que ―o t que tinh sido di do p r noite p r c us r m is

p vor Por fim proacuteximo o m nhecer o temor ger l se juntou o proacuteprio perigo

quando as tropas hostis adentraram pelas portas Contudo de forma alguma durante

aquela noite nem durante o dia seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que

com tamanho pavor tinham fugido para Aacutelia De fato como natildeo havia esperanccedila de que

a cidade pudesse ser defendida pelas poucas tropas que restavam decidiu-se entatildeo que

junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores vigorosos se

refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Com armas e provisotildees estocadas desse lugar

fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o nome romano O flacircmine e as

sacerdotisas vestais manteriam os ritos sagrados do povo protegidos do massacre e dos

290

incecircndios e natildeo abandonariam o seu culto a natildeo ser que natildeo existisse mais ningueacutem

que o vener sse ―se cid del do C pitoacutelio sede dos deuses o sen do fonte d

deliberaccedilatildeo puacuteblica e os jovens soldados resistissem agrave iminente ruiacutena da cidade seria

aceitaacutevel o sacrifiacutecio dos anciatildeos jaacute que essa multidatildeo que fora deixada na cidade

h veri de morrer de qu lquer form Assim p r que multidatildeo d plebe suport sse

isso de acircnimo mais calmo os anciatildeos que jaacute tinham obtido triunfos e consulados

decl r r m public mente que ―junt mente com eles h veri m de morrer natildeo gr v ndo

a falta de soldados com esses corpos que natildeo podem carregar armas e nem defender a

paacutetri

41 ndash Romae interim satis iam omnibus ut in tali re ad tuendam arcem compositis

turba seniorum domos regressi aduentum hostium obstinato ad mortem animo

exspectabant Qui eorum curules gesserant magistratus ut in fortunae pristinae

honorumque aut uirtutis insignibus morerentur quae augustissima uestis est tensas

ducentibus triumphantibusue ea uestiti medio aedium eburneis sellis sedere Sunt qui

M Folio pontifice maximo praefante carmen deuouisse eos se pro patria Quiritibusque

Romanis tradant Galli et quia interposita nocte a contentione pugnae remiserant

animos et quod nec in acie ancipiti usquam certauerant proelio nec tum impetu aut ui

capiebant urbem sine ira sine ardore animorum ingressi postero die urbem patente

Collina porta in forum perueniunt circumferentes oculos ad templa deum arcemque

solam belli speciem tenentem Inde modico relicto praesidio ne quis in dissipatos ex

arce aut Capitolio impetus fieret dilapsi ad praedam uacuis occursu hominum uiis

pars in proxima quaeque tectorum agmine ruunt pars ultima uelut ea demum intacta et

referta praeda petunt inde rursus ipsa solitudine absterriti ne qua fraus hostilis uagos

exciperet in forum ac propinqua foro loca conglobati redibant ubi eos plebis

aedificiis obseratis patentibus atriis principum maior prope cunctatio tenebat aperta

quam clausa inuadendi adeo haud secus quam uenerabundi intuebantur in aedium

uestibulis sedentes uiros praeter ornatum habitumque humano augustiorem maiestate

etiam quam uoltus grauitasque oris prae se ferebat simillimos dis Ad eos uelut

simulacra uersi cum starent M Papirius unus ex iis dicitur Gallo barbam suam ut

tum omnibus promissa erat permulcenti scipione eburneo in caput incusso iram

mouisse atque ab eo initium caedis ortum ceteros in sedibus suis trucidatos post

principium caedem nulli deinde mortalium parci diripi tecta exhaustis inici ignes

291

41 ndash Enquanto isso em Roma jaacute estava tudo preparado para tamanha emergecircncia e

defesa da cidadela entatildeo a multidatildeo dos anciatildeos regressou agraves casas para esperar a

chegada dos inimigos com acircnimo firme para a morte Os que exerceram magistraturas

curuis a fim de morrer com as distinccedilotildees de sua antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela

virtude trajaram a augustiacutessima veste que era concedida aos que foram comandantes ou

que obtiveram um triunfo e se sentaram em cadeiras de marfim no meio das casas

Conta-se que estando agrave frente Marco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recitaram um canto

e ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos Os gauleses devido

agrave passagem da noite abrandaram seus acircnimos da tensatildeo da luta e como de modo algum

tivessem combatido em uma luta incerta ocupavam a cidade sem grande iacutempeto ou

forccedila Sem ira e sem ardor dos acircnimos no dia seguinte eles ingressaram na cidade pela

porta Colina que estava aberta e chegaram ao foacuterum movendo os olhos ao redor para

os templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que tinha um aspecto de combate

Daquele lugar entatildeo sendo deixada uma pequena guarda para que nenhum ataque se

fizesse contra os que estavam espalhados da cidadela ou do Capitoacutelio eles se

dispersaram pelas ruas vazias em busca da pilhagem sem encontrar ningueacutem Uma

parte deles correu em bando ateacute algumas casas proacuteximas outra parte se dirigiu para as

distantes como se somente essas intocadas estivessem cheias de despojos Entatildeo de

novo amedrontados por esse mesmo abandono e para que aqueles que perambulavam

natildeo fossem surpreendidos por uma armadilha inimiga eles voltaram reunidos para o

foacuterum e os lugares proacuteximos Nesse lugar estando as casas da plebe fechadas e as da

nobreza abertas eles hesitavam mais em invadir as casas abertas do que as trancadas

Bastante respeitosos ele observaram atentamente os homens sentados nos vestiacutebulos

das casas com ornamento e aspecto mais divino do que humano e tambeacutem muito

semelhantes aos deuses pela majestade do seu semblante e a dignidade que se mostrava

de sua aparecircncia Diante deles como se fossem estaacutetuas eles ficaram parados conta-se

que um deles Marco Papiacuterio com um bastatildeo de marfim bateu na cabeccedila de um gaulecircs

que lhe acariciava a sua longa barba (como outrora era costume de todos) tendo

provocado a sua ira Com ele o massacre comeccedilou e os outros em seus assentos foram

trucidados depois que se iniciou a carnificina nenhum dos mortais foi poupado e apoacutes

esvaziarem as casas saqueadas lhes atearam fogo

42 ndash Ceterum seu non omnibus delendi urbem libido erat seu ita placuerat principibus

Gallorum et ostentari quaedam incendia terroris causa si compelli ad deditionem

292

caritate sedum suarum obsessi possent et non omnia concremari tecta ut quodcumque

superesset urbis id pignus ad flectendos hostium animos haberent nequaquam perinde

atque in capta urbe primo die aut passim aut late uagatus est ignis Romani ex arce

plenam hostium urbem cernentes uagosque per uias omnes cursus cum alia atque alia

parte noua aliqua clades oreretur non mentibus solum concipere sed ne auribus

quidem atque oculis satis constare poterant Quocumque clamor hostium mulierum

puerorumque ploratus sonitus flammae et fragor ruentium tectorum auertisset

pauentes ad omnia animos oraque et oculos flectebant uelut ad spectaculum a Fortuna

positi occidentis patriae nec ullius rerum suarum relicti praeterquam corporum

uindices tanto ante alios miserandi magis qui unquam obsessi sunt quod interclusi a

patria obsidebantur omnia sua cernentes in hostium potestate Nec tranquillior nox

diem tam foede actum excepit lux deinde noctem inquieta insecuta est nec ullum erat

tempus quod a nouae semper cladis alicuius spectaculo cessaret Nihil tamen tot onerati

atque obruti malis flexerunt animos quin etsi omnia flammis ac ruinis aequata

uidissent quamuis inopem paruumque quem tenebant collem liberati relictum uirtute

defenderent et iam cum eadem cottidie acciderent uelut adsueti malis abalienauerant

ab sensu rerum suarum animos arma tantum ferrumque in dextris uelut solas reliquias

spei suae intuentes

42 ndash Aliaacutes ou nem todos tinham o desejo de destruir a cidade ou agradava aos liacutederes

dos gauleses o seguinte por um lado ao se exibir alguns incecircndios como a causa do

terror eles poderiam forccedilar os sitiados agrave rendiccedilatildeo devido ao amor pelas suas habitaccedilotildees

por outro lado ao natildeo queimarem todas as casas eles teriam como garantia que o que

quer que restasse da cidade serviria para dobrar os acircnimos dos inimigos De forma

alguma no primeiro dia o fogo se espalhou em desordem e amplamente como

aconteceria em uma cidade tomada Os romanos da cidadela observavam a cidade

repleta de inimigos que corriam por todas as ruas como em uma e outra parte surgia

algum novo desastre natildeo soacute natildeo entenderam com as mentes mas tambeacutem sequer

puderam confiar em seus ouvidos e olhos Por onde quer que o clamor dos inimigos o

choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o estrondo das casas que ruiacuteam

desviavam-lhes a atenccedilatildeo eles assustados para tudo viravam os acircnimos rostos e olhos

como se a fortuna os tivesse posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria

Natildeo lhes restava nada de suas posses para defenderem exceto seus proacuteprios corpos eles

eram muito mais miseraacuteveis do que os outros que outrora foram atacados pois sendo

293

privados da paacutetria viam todas as suas posses em poder dos inimigos Natildeo mais

tranquila foi a noite que sucedeu um dia tatildeo horriacutevel depois dela seguiu-se um dia

turbulento e natildeo houve um momento em que parou de surgir algum espetaacuteculo de um

novo massacre Por outro lado oprimidos e subjugados por tantos males por nada eles

mudaram os acircnimos ainda que vissem todas as coisas serem atingidas pelas chamas e

ruiacutenas Sem duacutevida eles haveriam de defender a colina fraca e pequena que ocupavam

que pela virtude lhes restava liberada Como esses mesmos acontecimentos se repetiam

todos os dias eles ficaram acostumados com o mal e afastando da mente os

pensamentos de suas posses consideravam as armas e o ferro nas destras como os

uacutenicos meios para sua esperanccedila

48 ndash Sed ante omnia obsidionis bellique mala fames utrimque exercitum urgebat Gallos

pestilentia etiam cum loco iacente inter tumulos castra habentes tum ab incendiis

torrido et uaporis pleno cineremque non puluerem modo ferente cum quid uenti motum

esset Quorum intolerantissima gens umorique ac frigori adsueta cum aestu et angore

uexati uolgatis uelut in pecua morbis morerentur iam pigritia singulos sepeliendi

promisce aceruatos cumulos hominum urebant bustorumque inde Gallicorum nomine

insignem locum fecere Indutiae deinde cum Romanis factae et conloquia permissu

imperatorum habita In quibus cum identidem Galli famem obicerent eaque necessitate

ad deditionem uocarent dicitur auertendae eius opinionis causa multis locis panis de

Capitolio iactatus esse in hostium stationes Sed iam neque dissimulari neque ferri ultra

fames poterat Itaque dum dictator dilectum per se Ardeae habet magistrum equitum

L Valerium a Veiis adducere exercitum iubet parat instruitque quibus haud impar

adoriatur hostes interim Capitolinus exercitus stationibus uigiliis fessus superatis

tamen humanis omnibus malis cum famem unam natura uinci non sineret diem de die

prospectans ecquod auxilium ab dictatore appareret postremo spe quoque iam non

solum cibo deficiente et cum stationes procederent prope obruentibus infirmum corpus

armis uel dedi uel redimi se quacumque pactione possint iussit iactantibus non

obscure Gallis haud magna mercede se adduci posse ut obsidionem relinquant Tum

senatus habitus tribunisque militum negotium datum ut paciscerentur Inde inter Q

Sulpicium tribunum militum et Brennum regulum Gallorum conloquio transacta res est

et mille pondo auri pretium populi gentibus mox imperaturi factum Rei foedissimae per

se adiecta indignitas est pondera ab Gallis allata iniqua et tribuno recusante additus

294

ab insolente Gallo ponderi gladius auditaque intoleranda Romanis uox ―uae uictis

[esse]

48 ndash Por outro lado a fome mais do que todos os males do cerco e da guerra afligia

ambos os exeacutercitos tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois eles fizeram seu

acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as colinas esse lugar era muito

quente por causa dos incecircndios e cheio de vapor tambeacutem a cinza e o poacute com qualquer

movimento do vento se levantavam Esse povo era muito intolerante a isso pois estava

acostumado agrave umidade e ao frio abalados por esse calor e tormento eles morriam como

gado quando se espalhavam as doenccedilas Por causa da lentidatildeo de se sepultar um por

um eles cremavam indistintamente pilhas e montes de homens e por isso esse lugar se

tornou conhecido pelo nome de piras gaulesas Entatildeo foi feita uma treacutegua com os

romanos e conversas foram mantidas com a permissatildeo dos chefes Nesses diaacutelogos

como os gauleses continuamente reclamassem da fome e por essa necessidade

incitassem os romanos agrave rendiccedilatildeo conta-se que para tirar deles essa ideia de muitos

lugares do Capitoacutelio eles lanccedilaram patildeo em direccedilatildeo agraves guarniccedilotildees dos inimigos Contudo

a fome jaacute natildeo podia mais ser dissimulada ou suportada Assim o ditador enquanto

pessoalmente recrutava em Aacuterdea ordenou que o comandante da cavalaria L Valeacuterio

trouxesse o exeacutercito de Veios ele preparou e dispocircs daqueles para atacar os inimigos de

forma mais equilibrada Nesse iacutenterim a guarniccedilatildeo que estava no Capitoacutelio cansada

pelas vigiacutelias insones mesmo superando todos os males humanos tinha um uacutenico mal

a fome que pela natureza natildeo podia ser vencida dia apoacutes dia eles observavam se vinha

algum auxiacutelio do ditador Por fim como jaacute faltava natildeo soacute a esperanccedila mas tambeacutem o

alimento e como as tropas natildeo avanccedilariam mais pois por causa dos sofrimentos o

corpo ficara fraco para as armas decidiu-se que poderiam ou se render ou se submeter a

qualquer acordo que fosse parecia claramente que eles poderiam dar aos altivos

gauleses uma pequena recompensa de modo que abandonassem o cerco Entatildeo o

senado se reuniu e ordenou que os tribunos militares fizessem um tratado Logo na

conferecircncia entre Q Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos gauleses arranjou-se

um acordo foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao povo que em breve haveria de

governar as naccedilotildees Uma indignidade foi acrescida a essa determinaccedilatildeo bastante

vergonhosa pois a balanccedila que os gauleses trouxeram era injusta Como o tribuno

recusasse isso o gaulecircs insolente adicionou a espada ao peso e ouviu-se a intoleraacutevel

voz p r os rom nos dizer ― i dos vencidos

295

Livro VII

10 ndash Diu inter primores iuuenum Romanorum silentium fuit cum et abnuere certamen

uererentur et praecipuam sortem periculi petere nollent Tum T Manlius L filius qui

patrem a uexatione tribunicia uindicauerat ex statione ad dictatorem pergit ―Iniussu

tuo inquit imperator extra ordinem nunquam pugnauerim non si certam uictoriam

uideam si tu permittis uolo ego illi beluae ostendere quando adeo ferox praesultat

hostium signis me ex ea familia ortum quae Gallorum agmen ex rupe Tarpeia deiecit

Tum dictator ―Macte uirtute inquit ac pietate in patrem patriamque T Manli esto

Perge et nomen Romanum inuictum iuuantibus dis praesta Armant inde iuuenem

aequales pedestre scutum capit hispano cingitur gladio ad propiorem habili pugnam

Armatum adornatumque aduersus Gallum stolide laetum et ndash quoniam id quoque

memoria dignum antiquis uisum est ndash linguam etiam ab inrisu exserentem producunt

Recipiunt inde se ad stationem et duo in medio armati spectaculi magis more quam

lege belli destituuntur nequaquam uisu ac specie aestimantibus pares Corpus alteri

magnitudine eximium uersicolori ueste pictisque et auro caelatis refulgens armis

media in altero militaris statura modicaque in armis habilibus magis quam decoris

species non cantus non exsultatio armorumque agitatio uana sed pectus animorum

iraeque tacitae plenum omnem ferociam in discrimen ipsum certaminis distulerat Vbi

constitere inter duas acies tot circa mortalium animis spe metuque pendentibus Gallus

uelut moles superne imminens proiecto laeua scuto in aduenientis arma hostis uanum

caesim cum ingenti sonitu ensem deiecit Romanus mucrone subrecto cum scuto scutum

imum perculisset totoque corpore interior periculo uolneris factus insinuasset se inter

corpus armaque uno alteroque subinde ictu uentrem atque inguina hausit et in spatium

ingens ruentem porrexit hostem Iacentis inde corpus ab omni alia uexatione intactum

uno torque spoliauit quem respersum cruore collo circumdedit suo Defixerat pauor

cum admiratione Gallos Romani alacres ab statione obuiam militi suo progressi

gratulantes laudantesque ad dictatorem perducunt Inter carminum prope modo

incondita quaedam militariter ioculantes Torquati cognomen auditum celebratum

deinde posteris etiam [familiae] honori fuit Dictator coronam auream addidit donum

mirisque pro contione eam pugnam laudibus tulit

10 ndash Durante muito tempo houve um silecircncio entre os nobres jovens romanos jaacute que

por um lado eles receavam recusar o combate e por outro natildeo queriam se dirigir

296

primeiro para essa sorte de perigo Entatildeo Tito Macircnlio filho de Luacutecio que tinha livrado

o pai da perseguiccedilatildeo do tribuno v nccedilou do seu lug r teacute o dit dor e disse ―sem tu

ordem general eu nunca lutaria fora da linha de batalha nem mesmo se visse que a

vitoacuteria era certa se tu permitires quero eu mesmo mostrar agravequele animal visto que ele

saltita feroz diante dos estandartes dos inimigos que sou oriundo daquela famiacutelia que

derrubou um multidatildeo de g uleses d roch T rpei O dit dor ssim respondeu

―Tens honr d virtude Tito Macircnlio e pied de p r com o p i e paacutetri Av nccedil tu

e com o uxiacutelio dos deuses defende o invenciacutevel nome rom no Em seguid os

companheiros armaram o jovem ele tomou o escudo de um soldado e cingiu-se com

uma espada hispana conveniente para a luta corpo a corpo Eles o conduziram armado

e equipado ateacute o gaulecircs insensatamente feliz e ndash porque aos antigos parecesse esse ser

um fato digno de nota ndash que mostrava a liacutengua em escaacuternio Os jovens entatildeo se

retiraram para sua posiccedilatildeo No centro os dois armados foram deixados mais agrave maneira

de espetaacuteculo do que de guerra De forma alguma eram parecidos considerando-se seu

aspecto e tipo O corpo de um deles era notaacutevel pelo tamanho resplandecente em uma

veste multicolorida de vaacuterios tons e com armas ornadas de ouro O outro tinha a

estatura mediana e modesta de um soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais ele

natildeo produziu nenhum canto nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas mas o seu

peito estava cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade para o

momento da proacutepria luta Quando eles se postaram entre as duas linhas de batalha todos

os que estavam agrave sua volta ficaram com os acircnimos suspensos pela esperanccedila e pelo

medo O gaulecircs que por cima se aproximava devido ao seu grande tamanho lanccedilou o

escudo contra as armas adversas do inimigo que se aproximava e projetou a espada

com grande ruiacutedo mas esse golpe foi inuacutetil O romano com a ponta da espada erguida

com seu proacuteprio escudo bateu no escudo inimigo pela parte inferior e comprimindo-se

todo entre o corpo e as armas do inimigo aproximou-se ainda mais do perigo do ataque

com um golpe e depois outro ele feriu-lhe o ventre e a virilha e jogou o adversaacuterio

derrubado em um espaccedilo enorme Entatildeo do corpo abatido intocado por nenhuma outra

indignidade ele tirou somente o colar que manchado de sangue colocou em volta do

seu proacuteprio pescoccedilo O pavor junto com a admiraccedilatildeo paralisou os gauleses os

romanos entusiasmados avanccedilaram de sua posiccedilatildeo ateacute o seu soldado e louvando-o e

agradecendo-o conduziram-no ateacute o ditador Entre o canto militar e os gracejos

desordenados que eles diziam ouvia-se o nome Torquato que depois foi celebrado

pelos seus descendentes e tornou-se ainda a honoriacutefica alcunha da famiacutelia O ditador

297

acrescentou uma coroa de ouro ao precircmio e com admiraacuteveis elogios narrou essa luta

em um discurso

26 ndash Vbi cum stationibus quieti tempus tererent Gallus processit magnitudine atque

armis insignis quatiensque scutum hasta cum silentium fecisset prouocat per

interpretem unum ex Romanis qui secum ferro decernat M erat Valerius tribunus

militum adulescens qui haud indigniorem eo decore se quam T Manlium ratus prius

sciscitatus consulis uoluntatem in medium armatus processit Minus insigne certamen

humanum numine interposito deorum factum Namque conserenti iam manum Romano

coruus repente in galea consedit in hostem uersus Quod primo ut augurium caelo

missum laetus accepit tribunus precatus deinde si diuus si diua esset qui sibi

praepetem misisset uolens propitius adessetlsquo Dictu mirabile tenuit non solum ales

captam semel sedem sed quotienscumque certamen initum est leuans se alis os

oculosque hostis rostro et unguibus appetit donec territum prodigii talis uisu oculisque

simul ac mente turbatum Valerius obtruncat coruus ex conspectu elatus orientem petit

Hactenus quietae utrimque stationes fuere postquam spoliare corpus caesi hostis

tribunus coepit nec Galli se statione tenuerunt et Romanorum cursus ad uictorem etiam

ocior fuit Ibi circa iacentis Galli corpus contracto certamine pugna atrox concitatur

Iam non manipulis proximarum stationum sed legionibus utrimque effusis res geritur

Camillus laetum militem uictoria tribuni laetum tam praesentibus ac secundis dis ire

in proelium iubet ostentansque insignem spoliis tribunum ―Hunc imitare miles

aiebat et circa iacentem ducem sterne Gallorum cateruas Di hominesque illi adfuere

pugnae depugnatumque haudquaquam certamine ambiguo cum Gallis est adeo duorum

militum euentum inter quos pugnatum erat utraque acies animis praeceperat Inter

primos quorum concursus alios exciuerat atrox proelium fuit alia multitudo

priusquam ad coniectum teli ueniret terga uertit Primo per Volscos Falernumque

agrum dissipati sunt inde Apuliam ac mare inferum petierunt ()

26 ndash Como os romanos estivessem quietos e passassem o tempo em guarda um gaulecircs

avanccedilou com tamanho e armas notaacuteveis ele fez silecircncio batendo no escudo com a

lanccedila e por meio de um inteacuterprete chamou um dos romanos para que lutasse consigo

atraveacutes do ferro Havia um jovem tribuno militar Marco Valeacuterio que natildeo se

considerava menos digno daquela honra do que Tito Macircnlio Ele tendo antes se

informado da vontade do cocircnsul avanccedilou armado ateacute o centro Menos ilustre se

298

mostrou o combate humano jaacute que interferiram os poderes dos deuses De fato

enquanto o romano se dirigia para a luta um corvo de repente pousou no seu capacete

virado para o inimigo Feliz primeiramente o tribuno aceitou isso como um pressaacutegio

vindo do ceacuteu e depois suplicou ―c so fosse um deus ou deusa que a ele enviou o

paacutess ro que o voo propiacutecio lhe f vorecesse Ocorreu lgo m r vilhoso de se cont r

ave natildeo se contentou apenas em ficar no lugar mas todas as vezes que a luta comeccedilava

com as asas ela levantou-se e atacou o rosto e os olhos do inimigo com o bico e as

garras Por fim o gaulecircs aterrorizado pela visatildeo de tamanho prodiacutegio e ao mesmo tempo

ferido nos olhos e na mente foi morto por Valeacuterio o nobre corvo saindo de vista

dirigiu-se para o oriente Ateacute entatildeo as tropas dos dois lados estiveram paradas Assim

que o tribuno comeccedilou a despojar o corpo do inimigo morto os gauleses natildeo se

mantiveram mais em posiccedilatildeo e a corrida dos romanos ateacute o vencedor foi ainda mais

raacutepida Ali travando um acirrado combate ao redor do corpo do gaulecircs derrubado

houve uma luta atroz A batalha jaacute natildeo era mais travada pelos maniacutepulos nas posiccedilotildees

proacuteximas mas sim pelas legiotildees dispersas pelos dois lados Camilo ordenou ir para o

combate os soldados que estavam felizes tanto com a vitoacuteria do tribuno quanto pela

presenccedila dos deuses favoraacuteveis mostrando-lhes o tribuno reluzente com os despojos

disse-lhes ―imit i-o soldados e ao redor do liacuteder derrubado derrotai as multidotildees dos

g uleses Deuses e homens tom r m p rte ness luta e de forma alguma foi duvidoso o

combate contra os gauleses uma e outra parte jaacute compreendera nos acircnimos o resultado

do combate que fora travado pelos dois soldados Entre os que avanccedilaram primeiro e

cuja luta inflamara os outros o embate foi atroz o resto da multidatildeo antes que pudesse

lanccedilar os dardos virou as costas Primeiro eles se dispersaram pela aacuterea dos volscos e

pelo territoacuterio de falerno de laacute se dirigiram para a Apuacutelia e o mar inferior

Livro XXIII

24 ndash () Cum eae res maxime agerentur noua clades nuntiata aliam super aliam

cumulante in eum annum fortuna L Postumium consulem designatum in Gallia ipsum

atque exercitum deletos Silua erat uasta ndash Litanam Galli uocabant ndash qua exercitum

traducturus erat Eius siluae dextra laeuaque circa uiam Galli arbores ita inciderunt ut

immotae starent momento leui impulsae occiderent Legiones duas Romanas habebat

Postumius sociumque ab supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia

armatorum in agros hostium induxerit Galli oram extremae siluae cum

299

circumsedissent ubi intrauit agmen saltum tum extremas arborum succisarum

impellunt quae alia in aliam instabilem per se ac male haerentem incidentes ancipiti

strage arma uiros equos obruerunt ut uix decem homines effugerent Nam cum

exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum ceteram

multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati circumsedentes

interfecerunt paucis e tanto numero captis qui pontem fluminis petentes obsesso ante

ab hostibus ponte interclusi sunt Ibi Postumius omni ui ne caperetur dimicans

occubuit Spolia corporis caputque praecisum ducis Boii ouantes templo quod

sanctissimum est apud eos intulere Purgato inde capite ut mos iis est caluam auro

caelauere idque sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem

sacerdoti esset ac templi antistitibus Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria

fuit nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat tamen ceterae res

quia nihil dissipatum fuga est stratae per omnem iacentis agminis ordinem inuentae

sunt

24 ndash () Enquanto essas coisas aconteciam soube-se de uma nova cataacutestrofe pois que

naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a outra L Postuacutemio designado cocircnsul

foi massacrado na Gaacutelia junto com seu exeacutercito A floresta pela qual ele deveria

conduzir a tropa era vasta ndash os gauleses a chamavam de Litana Ao longo do caminho

pela direita e pela esquerda os gauleses cortaram as aacutervores assim elas pareceriam de

peacute mas com um leve movimento elas cairiam Postuacutemio tinha duas legiotildees romanas e

como tinha recrutado muitos aliados do mar superior ele conduzia vinte e cinco mil

soldados para os territoacuterios dos inimigos Os gauleses ficaram ao longo da borda da

floresta no momento em que a fileira entrou no mato eles logo empurraram aacutervores

cortadas que estavam mais externas Elas caiacuteram umas sobre as outras instaacuteveis e mal

estabilizadas com esse desabamento elas destruiacuteram as armas os homens e os cavalos

de tal forma que apenas dez indiviacuteduos escaparam com muita dificuldade De fato

muitos foram sufocados pelos troncos das aacutervores e pedaccedilos de galhos Os gauleses

armados rodeando toda a floresta mataram a outra parte deles que estava atemorizada

por esse repentino mal De um nuacutemero tatildeo grande poucos foram capturados jaacute que eles

foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora bloqueada pelos inimigos Foi ali

que Postuacutemio lutando com toda a forccedila para natildeo ser apanhado morreu Os boios

exultantes levaram ateacute o templo que era muito sagrado entre eles os despojos do corpo

e a cabeccedila decepada do general Entatildeo apoacutes limparem a cabeccedila como era o costume

300

deles ornaram o cracircnio com ouro que para eles passou a ser um recipiente sagrado

Com ele fariam as libaccedilotildees nas solenidades e o mesmo serviria de copo para os

sacerdotes do templo Para os gauleses o butim foi tatildeo grande quanto a vitoacuteria de fato

embora grande parte dos animais pereceu com a queda das aacutervores todavia os demais

objetos ndash jaacute que nada se perdeu na fuga ndash foram encontrados caiacutedos por toda a fileira do

exeacutercito derrubado

Livro XXXVIII

17 ndash Cum hoc hoste tam terribili omnibus regionis eius quia bellum gerendum erat pro

contione milites in hunc maxime modum adlocutus est consul ―non me praeterit

milites omnium quae Asiam colunt gentium Gallos fama belli praestare Inter

mitissimum genus hominum ferox natio peruagata bello prope orbem terrarum sedem

cepit Procera corpora promissae et rutilatae comae uasta scuta praelongi gladii ad

hoc cantus inchoantium proelium et ululatus et tripudia et quatientium scuta in patrium

quemdam modum horrendus armorum crepitus omnia de industria composita ad

terrorem Sed haec quibus insolita atque insueta sunt Graeci et Phryges et Cares

timeant Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt Semel primo

congressu ad Alliam olim fuderunt maiores nostros Ex eo tempore per ducentos iam

annos pecorum in modum consternatos caedunt fugantque et plures prope de Gallis

triumphi quam de toto orbe terrarum acti sunt Iam usu hoc cognitum est si primum

impetum quem feruido ingenio et caeca ira effundunt sustinueris fluunt sudore et

lassitudine membra labant arma mollia corpora molles ubi ira consedit animos sol

puluis sitis ut ferrum non admoueas prosternunt Non legionibus legiones eorum solum

experti sumus sed uir unus cum uiro congrediendo T Manlius M Valerius quantum

Gallicam rabiem uinceret Romana uirtus docuerunt iam M Manlius unus agmine

scandentes in Capitolium Gallos detrusit Et illis maioribus nostris cum haud dubiis

Gallis in sua terra genitis res erat hi iam degeneres sunt mixti et Gallograeci uere

quod appellantur sicut in frugibus pecudibusque non tantum semina ad seruandam

indolem ualent quantum terrae proprietas caelique sub quo aluntur mutat Macedones

qui Alexandriam in Aegypto qui Seleuciam ac Babyloniam quique alias sparsas per

orbem terrarum colonias habent in Syros Parthos Aegyptios degenerarunt Massilia

inter Gallos sita traxit aliquantum ab accolis animorum Tarentinis quid ex Spartana

dura illa et horrida disciplina mansit Generosius in sua quidquid sede gignitur

301

insitum alienae terrae in id quo alitur natura uertente se degenerat Phrygas igitur

Gallicis oneratos armis sicut in acie Antiochi cecidistis uictos uictores caedetis Magis

uereor ne parum inde gloriae quam ne nimium belli sit Attalus eos rex saepe fudit

fugauitque Nolite existimare beluas tantum recens captas feritatem illam siluestrem

primo seruare dein cum diu manibus humanis alantur mitescere in hominum feritate

mulcenda non eamdem naturam esse eosdemne hos creditis esse qui patres eorum

auique fuerunt Extorres inopia agrorum profecti domo per asperrimam Illyrici oram

Paeoniam inde et Thraeciam pugnando cum ferocissimis gentibus emensi has terras

ceperunt Duratos eos tot malis exasperatosque accepit terra quae copia rerum omnium

saginaret Vberrimo agro mitissimo caelo clementibus accolarum ingeniis omnis illa

cum qua uenerant mansuefacta est feritas Vobis mehercule Martiis uiris cauenda ac

fugienda quam primum amoenitas est Asiae tantum hae peregrinae uoluptates ad

extinguendum uigorem animorum possunt quantum contagio disciplinae morisque

accolarum ualet Hoc tamen feliciter euenit quod sicut uim aduersus uos nequaquam

ita famam apud Graecos parem illi antiquae obtinent cum qua uenerunt bellique

gloriam uictores eandem inter socios habebitis quam si seruantes antiquum specimen

animorum Gallos uicissetis

17 ndash Como eles devessem empreender a guerra contra esse inimigo que era o mais

terriacutevel de todos dessa regiatildeo o cocircnsul reuniu os combatentes e proferiu o seguinte

discurso ―natildeo me esc p sold dos que de todos os povos que h bit m Aacutesi os

gauleses satildeo superiores pela sua fama na guerra Essa feroz naccedilatildeo depois que percorreu

quase todos os lugares fazendo guerra por fim tomou lugar entre esse povo muito

paciacutefico Eles possuem corpos enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e

espadas muito longas Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos que

comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas nos escudos

de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar terror Os

gregos os friacutegios e o caacuterios como natildeo estatildeo acostumados a essas coisas estranhas e

incomuns sentem medo Por outro lado noacutes romanos estamos familiarizados com

esses tumultos gaacutelicos e tambeacutem jaacute conhecemos as inconstacircncias deles Apenas uma

vez no primeiro encontro os nossos antepassados fugiram para Aacutelia Desde entatildeo e jaacute

ao longo de duzentos anos eles satildeo mortos ou fogem atemorizados como se fossem

gado Celebramos vaacuterios triunfos muito mais sobre os gauleses do que sobre o resto do

mundo Jaacute aprendemos esse costume se resistirmos ao primeiro ataque que eles lanccedilam

302

com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se enfraquecem e as armas caem

devido ao suor e agrave fadiga No momento em que a ira deles se acalma por causa do sol

da poeira e da sede eles derrubam seus corpos moles e acircnimos por isso natildeo

precisamos mover o ferro Natildeo somos experientes apenas nos combates entre nossos

exeacutercitos contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um soacute homem contra outro

De fato Tito Macircnlio e Marco Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana se

sobressaiacutea agrave fuacuteria gaulesa e outrora Marco Macircnlio sozinho derrubou os gauleses que

em coluna escalavam o Capitoacutelio Nessa eacutepoca os nossos ancestrais tiveram contato

com gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de agora estatildeo degenerados

miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos No caso dos gratildeos ou dos

animais as sementes natildeo podem conservar sua iacutendole quando muda a propriedade da

terra e do ceacuteu sob o qual se desenvolvem Do mesmo modo os macedocircnios que antes

possuiacuteram Alexandria no Egito Selecircucia Babilocircnia e outras colocircnias espalhadas por

todo o mundo se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios Marselha situada entre os

gauleses tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos Quanto aos tarentinos o que restou

daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Tudo o que eacute produzido em seu lugar de

origem eacute mais digno quando introduzido em outra terra da qual se nutre ele transforma

sua natureza e se degenera Portanto assim como voacutes matastes na fileira de Antiacuteoco

agora matareis os friacutegios que portam armas gaulesas voacutes vencedores e eles os

vencidos Receio mais que disso resulte uma gloacuteria escassa do que bastante luta O rei

Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Natildeo acreditais que apenas as feras

quando capturadas primeiro mantecircm aquela sua ferocidade selvagem e em seguida

domesticam-se quando por muito tempo satildeo alimentadas por matildeos humanas O mesmo

ocorre com a natureza dos homens quando sua ferocidade se acalma ou acreditais esses

serem iguais aos que foram seus pais e antepassados Eles deixaram a paacutetria por causa

da falta de terras avanccedilaram pela duriacutessima regiatildeo da Iliacuteria depois percorreram a

Peocircnia e a Traacutecia e tendo lutado contra povos ferociacutessimos tomaram essas paragens

Essa terra que produz uma fartura de todas as coisas acolheu esses homens

endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo feacutertil com ceacuteu muito

ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham quando chegaram se

abrandou Por Heacutercules Voacutes homens de Marte deveis o quanto antes evitar e fugir da

amenidade da Aacutesia Esses prazeres estrangeiros tanto podem extinguir o vigor dos

acircnimos quanto o mesmo pode ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes dos

vizinhos Felizmente acontece que embora os gauleses de forma alguma sejam fortes

303

perante voacutes todavia entre os gregos eles ainda possuem aquela mesma fama com a qual

chegaram outrora Voacutes vencedores tereis entre os aliados a mesma gloacuteria da guerra

como se tiveacutesseis vencido os g uleses dot dos de su ntig disposiccedilatildeo de acircnimos

304

3 ndash Pliacutenio o Velho

Histoacuteria natural - Livro III

V (4) ndash 31 Narbonensis prouincia appellatur pars Galliarum quae interno mari

adluitur Bracata antea dicta amne Varo ab Italia discreta Alpiumque uel saluberrimis

Romano imperio iugis a reliqua uero Gallia latere septentrionali montibus Cebenna et

Iuribus agrorum cultu uirorum morumque dignatione amplitudine opum nulli

prouinciarum postferenda breuiterque Italia uerius quam prouincia 32 In ora regio

Sordonum intusque Consuaranorum flumina Tecum Vernodubrum oppida Illiberis

magnae quondam urbis tenue uestigium Ruscino Latinorum flumen Atax e Pyrenaeo

Rubrensem permeans lacum Narbo Martius Decumanorum colonia XII p a mari

distans flumina Araris Liria Oppida de cetero rara praeiacentibus stagnis 33 Agatha

quondam Massiliensium et regio Volcarum Tectosagum atque ubi Rhoda Rhodiorum

fuit unde dictus multo Galliarum fertilissimus Rhodanus amnis ex Alpibus se rapiens

per Lemannum lacum segnemque deferens Ararim nec minus se ipso torrentes Isaram et

Druentiam Libica appellantur duo eius ora modica ex his alterum Hispaniense

alterum Metapinum tertium idemque amplissimum Massalioticum Sunt auctores et

Heracleam oppidum in ostio Rhodani fuisse 34 Vltra fossae ex Rhodano C Mari opere

et nomine insignes stagnum Mastromela oppidum Maritima Auaticorum superque

Campi Lapidei Herculis proeliorum memoria regio Anatiliorum et intus Dexiuatium

Cauarumque rursus a mari Tricorium et intus Tritollorum Vocontiorumque et

Segouellaunorum mox Allobrogum At in ora Massilia Graecorum Phocaeensium

foederata promunturium Zao Citharista portus regio Camactulicorum dein Suelteri

supraque Verucini 35 In ora autem Athenopolis Massiliensium Forum Iuli

Octauanorum colonia quae Pacensis appellatur et Classica amnis nomine Argenteus

regio Oxubiorum Ligaunorumque super quos Suebri Quariates Adunicates At in ora

oppidum Latinum Antipolis regio Deciatium amnis Varus ex Alpium monte Caenia

profusus 36 In mediterraneo coloniae Arelate Sextanorum Baeterrae Septimanorum

Arausio Secundanorum in agro Cauarum Valentia Vienna Allobrogum Oppida Latina

Aquae Sextiae Salluuiorum Auennio Cauarum Apta Iulia Vulgientium Alebaece

Reiorum Apollinarium Alba Heluorum Augusta Tricastinorum Anatilia Aerea

Bormani Comani Cabellio Carcasum Volcarum Tectosagum Cessero Carbantorate

Meminorum Caenicenses Cambolectri qui Atlantici cognominantur 37 Forum Voconi

305

Glanum Libii Luteuani qui et Foroneronienses Nemausum Arecomicorum Piscinae

Ruteni Samnagenses Tolosani Tectosagum Aquitaniae contermini Tasgoduni

Tarusconienses Vmbranici Vocontiorum ciuitatis foederatae duo capita Vasio et Lucus

Augusti oppida uero ignobilia XVIIII sicut XXIIII Nemausiensibus adtributa Adiecit

formulae Galba Imperator ex Inalpinis Auanticos atque Bodionticos quorum oppidum

Dinia Longitudinem prouinciae Narbonensis CCCLXX p Agrippa tradit latitudinem

CCXLVIII

V (4) ndash 31 Eacute chamada de proviacutencia Narbonense a regiatildeo das Gaacutelias que eacute banhada pelo

mar interno ntes conhecid por ―Gaacuteli de c lccedil s El estaacute sep r d d Itaacuteli pelo rio

Var e pelos cumes dos Alpes ndash que tecircm sido muitiacutessimo vantajosos para o impeacuterio

romano Pelo lado setentrional ela se divide do resto da Gaacutelia pelos montes das Cevenas

e do Jura Devido agrave cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e pela

amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada proviacutencia

na verdade ela eacute mais Itaacutelia que proviacutencia 32 Pelos litorais haacute a regiatildeo dos sordones e

mais adentro o domiacutenio dos consuaranos os rios Tech e Verdouble as povoaccedilotildees dos

iliberris ndash um pequeno vestiacutegio do que um dia fora uma grande cidade ndash e Ruscino dos

latinos o rio Aude que desce dos Pirineus e atravessa o lago Rubrense Narbo Maacutercio ndash

colocircnia da deacutecima legiatildeo distante doze milhas do mar os rios Aacuterar e Liria De resto as

cidades satildeo raras devido aos pacircntanos que se situam proacuteximos 33 Haacute a cidade de Aacutegata

que um dia foi dos marselheses o territoacuterio dos volcos tectoacutesagos e ainda o local onde

existiu a colocircnia Roda dos roacutedios ndash de onde vem o nome do rio Roacutedano de longe o mais

copioso das Gaacutelias Eacute esse rio que desde os Alpes passa com forccedila pelo lago Lemano e

se mistura ao vagaroso Aacuterar e agraves torrentes dos rios Isara e Druecircncia natildeo menos

impetuosas que ele mesmo As suas duas embocaduras menores satildeo chamadas de

―liacutebic s sendo um del s hisp niense e outr met pin terceir emboc dur que eacute

a maior eacute chamada de massaliota Haacute autores que dizem ter existido uma cidade

chamada Heracleia na foz do Roacutedano 34 Mais aleacutem estatildeo os canais que saem do

Roacutedano obra de Caio Maacuterio e conhecidos pelo seu nome o lago Mastromela a cidade

Mariacutetima dos avaacuteticos e acima as Planiacutecies Pedregosas uma lembranccedila dos combates

de Heacutercules Tem-se a regiatildeo dos anatiacutelios e no interior a regiatildeo dos dexivates e dos

cavaros de novo junto ao mar a aacuterea dos tricoacuterios e no interior estatildeo os tritolos os

vococircncios e os segovelaunos depois desses os aloacutebroges No litoral haacute Marselha dos

gregos foacutecios e nossa aliada o cabo Zao o porto de Citarista a regiatildeo dos

306

camactuacutelicos depois estatildeo os suelteros e acima os verucinos 35 Ainda no litoral haacute

Atenoacutepolis dos marselheses o Foacuterum de Juacutelio colocircnia da oitava legiatildeo que tambeacutem eacute

ch m d de ―P cense e ―claacutessic haacute um rio de nome Argecircnteo regiatildeo dos oxuacutebios

e dos ligaunos e acima desses os suebros os quariates e os adunicates No litoral haacute a

cidade latina de Antiacutepolis a regiatildeo dos deciatos e o rio Var que desce do monte Cenia

dos Alpes 36 No interior haacute as colocircnias de Arelate da sexta legiatildeo Beterras da seacutetima

e Araacuteusio da segunda No territoacuterio cavaro estaacute Valencia e no territoacuterio dos aloacutebroges

Viena Depois as cidades latinas de Aacutegua Sexta (no territoacuterio) dos saluacutevios Avecircnio

dos cavaros Apta Juacutelia dos vulgientes Alebece dos reios apolinaacuterios Alba dos

heacutelvios Augusta dos tricastinos Anatiacutelia Aerea e ainda os bormanos os comanos a

povoaccedilatildeo de Cabeacutelio Carcaso dos volcos tectoacutesagos Cessero Carbantorate dos

meminos os cenicenses os c mbolectros que satildeo ch m dos de ― tlacircnticos 37 Foacuterum

Vocono Glano os liacutebios os lutevanos tambeacutem conhecidos como foroneronienses

Nemauso dos arecocircmicos Piscinas os rutenos os samnagenses os tolosanos

tectoacutesagos vizinhos agrave Aquitacircnia os tasgodunos os tarusconienses os umbracircnicos as

duas capitais do domiacutenio aliado dos vococircncios Vaacutesio e Luco de Augusto Na verdade

haacute tambeacutem dezenove cidades de pouca importacircncia assim como outras vinte e quatro

pertencentes aos nemaacuteusios O imperador Galba acrescentou a essa categoria dentre os

habitantes dos Alpes os avacircnticos e os bodiocircnticos cuja cidade eacute Diacutenia Segundo

Agripa a proviacutencia Narbonense tem trezentas e setenta milhas de comprimento e

duzentas e quarenta e oito milhas de largura

VI (5) ndash 38 Italia dehinc primique eius Ligures mox Etruria Vmbria Latium ibi

Tiberina ostia et Roma terrarum caput XVI p interuallo a mari Volscum postea litus

et Campaniae Picentinum inde ac Lucanum Bruttiumque quo longissime in meridiem

ab Alpium paene lunatis iugis in maria excurrit Italia Ab eo Graeciae ora mox

Salentini Poeduculi Apuli Peligni Frentani Marrucini Vestini Sabini Picentes

Galli Vmbri Tusci Veneti Carni Iapudes Histri Liburni 39 Nec ignoro ingrati ac

segnis animi existimari posse merito si obiter atque in transcursu ad hunc modum

dicatur terra omnium terrarum alumna eadem et parens numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret sparsa congregaret imperia ritusque molliret et tot

populorum discordes ferasque linguas sermonis commercio contraheret ad conloquia et

humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum gentium in toto orbe patria

fieret 40 Sed quid agam Tanta nobilitas omnium locorum quos quis attigerit tanta

307

rerum singularum populorumque claritas tenet Vrbs Roma uel sola in ea et digna iam

tam festa ceruice facies quo tandem narrari debet opere Qualiter Campaniae ora per

se felixque illa ac beata amoenitas ut palam sit uno in loco gaudentis opus esse

naturae 41 Iam uero tota ea uitalis ac perennis salubritas talis caeli temperies tam

fertiles campi tam aprici colles tam innoxii saltus tam opaca nemora tam munifica

siluarum genera tot montium adflatus tanta frugum uitiumque et olearum fertilitas

tam nobilia pecudi uellera tam opima tauris colla tot lacus tot amnium fontiumque

ubertas totam eam perfundens tot maria portus gremiumque terrarum commercio

patens undique et tamquam iuuandos ad mortales ipsa auide in maria procurrens 42

Neque ingenia ritusque ac uiros et lingua manuque superatas commemoro gentes Ipsi

de ea iudicauere Grai genus in gloriam sui effusissimum quotam partem ex ea

appellando Graeciam Magnam Nimirum id quod in caeli mentione fecimus hac

quoque in parte faciendum est ut notas quasdam et pauca sidera attingamus Legentes

tantum quaeso meminerint ad singula toto orbe edissertanda festinari

VI ndash 38 Em seguida haacute a Itaacutelia e os primeiros dela satildeo os liacutegures depois haacute a Etruacuteria a

Uacutembria o Laacutecio e nesse lugar a foz do Tibre e Roma capital do mundo distante

dezesseis milhas do mar Depois haacute os litorais dos volscos e da Campacircnia o litoral de

Piceno e mais adiante as costas da Lucacircnia e de Bruacutetio a partir da cadeia de

montanhas dos Alpes em forma de meia lua esse eacute o lugar mais ao sul no qual a Itaacutelia

se estende ateacute os mares Desse ponto haacute os litorais da Magna Greacutecia depois os

salentinos os pediacuteculos os aacutepulos os peliacutegnos os frentanos os marrucinos os vestinos

os sabinos os picenos os gauleses os uacutembrios os etruscos os vecircnetos os carnos os

iaacutepides os istros e os liburnos 39 Natildeo ignoro que eu possa ser acusado de conduta

negligente e de espiacuterito fraco devido essa maneira de descrever raacutepida e resumidamente

essa mesma terra que eacute filha e matildee de todas as terras escolhida pela vontade dos deuses

para tornar o proacuteprio ceacuteu mais glorioso reunir os impeacuterios dispersos abrandar os

costumes juntar as liacutenguas diferentes e selvagens de tantos povos em um idioma

comum para os diaacutelogos conceder humanidade ao homem e em suma ser no mundo

todo a uacutenica paacutetria de todos os povos 40 Mas como a descreverei Quem poderia

enumerar a enorme nobreza de todos os lugares e a grande fama de cada uma dessas

partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma cabeccedila digna de tatildeo ilustre

pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser narrada Tambeacutem o litoral da Campacircnia por

si mesmo feacutertil e de rica amenidade que claramente em um soacute lugar estaacute tudo o que eacute

308

necessaacuterio para uma natureza exuberante 41 De fato toda essa terra possui salubridade

vital e perene grande equiliacutebrio do clima campos muito feacuterteis colinas bastante

ensolaradas bosques bastante intactos muitas florestas sombreadas inuacutemeros tipos

generosos de matas vaacuterios ventos dos montes enorme fertilidade de frutos das videiras

e das oliveiras tatildeo nobres velos dos animais muitas nucas gordas de touros tantos

lagos tamanha abundacircncia de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia tantos mares

portos e o seio das terras que se abre ao comeacutercio por todos os lados e que avanccedila de tal

forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios mares 42 Natildeo falarei sobre os

engenhos costumes homens e povos vencidos pela liacutengua e pela luta Os proacuteprios

gregos ndash um povo muito dissipado em sua gloacuteria ndash assim o fizeram ao chamar uma

pequena parte da Itaacutelia de Magna Greacutecia Certamente isso tambeacutem deve ser feito nessa

parte ndash como jaacute fizemos na descriccedilatildeo do ceacuteu ndash de modo que atinjamos certos indiacutecios e

poucos astros Peccedilo aos leitores que se recordem que acelerei as descriccedilotildees de cada

coisa sobre todo o mundo

Livro IV

XVII (31) ndash 105 Gallia omnis Comata uno nomine appellata in tria populorum genera

diuiditur amnibus maxime distincta A Scalde ad Sequanam Belgica ab eo ad

Garunnam Celtica eademque Lugdunensis inde ad Pyrenaei montis excursum

Aquitanica Aremorica antea dicta Vniversam oram XVIIL Agrippa Galliarum inter

Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum ac montes Cebennam et Iures quibus

Narbonensem Galliam excludit longitudinem CCCCXX latitudinem CCCXVIII

computauit 106 A Scaldi incolunt extera Texuandri pluribus nominibus dein Menapi

Morini ora Marsacis iuncti pago qui Gesoriacus uocatur Britanni Ambiani Bellouaci

Bassi Introrsus Catoslugi Atrebates Nerui liberi Veromandui Suaeuconi Suessiones

liberi Vlmanectes liberi Tungri Sunuci Frisiauones Baetasi Leuci liberi Treueri

liberi antea et Lingones foederati Remi foederati Mediomatrici Sequani Raurici

Helueti coloniae Equestris et Raurica Rhenum autem accolentes Germaniae gentium

in eadem prouincia Nemetes Triboci Vangiones in Vbis colonia Agrippinensis

Guberni Bataui et quos in insulis diximus Rheni

309

XVII (31) ndash 105 Toda a Gaacutelia que eacute chamada pelo uacutenico nome de Cabeluda se divide

em trecircs raccedilas de povos separadas sobretudo por meio de rios Do rio Escalda ateacute o Sena

haacute a Gaacutelia Beacutelgica do Sena ateacute o Garona a Gaacutelia Ceacuteltica ou Lugdunense de laacute ateacute o

promontoacuterio dos montes Pireneus haacute a Gaacutelia Aquitacircnia antes chamada de Armoacuterica

Agripa calculou toda a costa das Gaacutelias em mil setecentas e cinquenta milhas entre o

Reno e os Pireneus e entre o oceano e os montes das Cevenas e do Jura dos quais se

exclui a Gaacutelia Narbonense haacute uma extensatildeo de quatrocentas e vinte milhas e uma

largura de trezentas e dezoito milhas 106 Ao exterior do Escalda habitam os toxandros

de muitos nomes depois haacute os menaacutepios na praia haacute os moacuterinos que satildeo proacuteximos aos

marsaacutecios por um povoado que eacute chamado de Gesoriaco os britanos os ambianos os

beloacutevacos e os bassos No interior estatildeo os catoslugos os atreacutebates os livres neacutervios os

veromacircnduos os suaeuconos os suessiotildees livres os ulmanectes livres os tungros os

sunucos os frisiabotildees os betasos os livres leucos os treacuteveros outrora livres os aliados

liacutengones os remos aliados os mediomaacutetricos os seacutequanos os raacuteuricos os helveacutecios e

as colocircnias Equestre e Raacuteurica Haacute ainda os habitantes dos povos da Germacircnia que estatildeo

proacuteximos ao Reno nessa mesma proviacutencia estatildeo os necircmetes os tribocos e os vangiacuteones

dentre os uacutebios haacute a colocircnia de Agripina os gubernos os batavos e os que jaacute

mencionamos sobre as ilhas do Reno

XVIII (32) ndash 107 Lugdunensis Gallia habet Lexouios Veliocasses Caletos Venetos

Abrincatuos Ossismos flumen clarum Ligerem sed paeninsulam spectatiorem

excurrentem in oceanum a fine Ossismorum circuitu DCXXV ceruice in latitudinem

CXXV Vltra eum Namnetes intus autem Aedui foederati Carnuteni foederati Boi

Senones Aulerci qui cognominantur Eburouices et qui Cenomani Meldi liberi Parisi

Tricasses Andecaui Viducasses Bodiocasses Venelli Coriosuelites Diablinti

Riedones Turones Atesui Segusiaui liberi in quorum agro colonia Lugudunum

XVIII (32) ndash 107 A Gaacutelia Lugdunense engloba os lexoacutevios os veliocassos os caletos

os vecircnetos os abrincacirctuos os ossismos o famoso rio Liacuteger e uma peniacutensula muito

notaacutevel que avanccedila para o oceano a partir da fronteira dos ossismos em um contorno de

seiscentas e vinte e cinco milhas e no estreito com uma largura de cento e vinte e cinco

milhas Do outro lado estatildeo os namnetes e no interior os eacuteduos aliados os carnutos

tambeacutem aliados os boios os secircnones os aulercos que satildeo chamados tanto de eburovices

quanto os que satildeo chamados de cenomanos os livres meldos os pariacutesios os tricasses

310

os andecavos os viducassos os bodiocassos os venelos os coriosvelites os diablintos

os rieacutedones os turotildees os ateacutesuos e os livres segusiavos em cujo territoacuterio estaacute a colocircnia

de Lugduno

XIX (33) ndash 108 Aquitanicae sunt Ambilatri Anagnutes Pictones Santoni liberi

Bituriges liberi cognomine Viuisci Aquitani unde nomen prouinciae Sedibouiates

Mox in oppidum contributi Conuenae Begerri Tarbelli Quattuorsignani Cocosates

Sexsignani Venami Onobrisates Belendi saltus Pyrenaeus infraque Monesi Oscidates

Montani Sybillates Camponi Bercorcates Pinpedunni Lassunni Vellates Toruates

Consoranni Ausci Elusates Sottiates Oscidates Campestres Succasses Latusates

Basaboiates Vassei Sennates Cambolectri Agessinates 109 Pictonibus iuncti autem

Bituriges liberi qui Cubi appellantur dein Lemouices Aruerni liberi Vellaui liberi

Gabales Rursus Narbonensi prouinciae contermini Ruteni Cadurci Nitiobroges

Tarneque amne discreti a Tolosanis Petrocori Maria circa oram ad Rhenum

septentrionalis oceanus inter Rhenum et Sequanam Britannicus inter id et Pyrenaeum

Gallicus Insulae conplures Venestorum et quae Veneticae appellantur et in Aquitanico

sinu Vliaros

XIX (33) ndash 108 Na Aquitacircnia estatildeo os ambilatros os anagnutos os piacutectones os santotildees

livres os bituacuteriges livres de cognome viviscos os aquitanos ndash daiacute o nome da proviacutencia ndash

e os sediboviatos Depois unidos em uma cidade estatildeo os convenos os begerros os

tarbelos de quatro ensiacutegnias os cocosates de seis ensiacutegnias os venamos os onobrisates

os belendos os montes Pireneus e abaixo os monesos os oscidates montanheses os

sibilates os camponos os bercorcates os pimpedunos os lassunos os velates os

torvates os consoranos os auscos os elusates os sotiatos os oscidates das planiacutecies os

sucasses os latusates os basaboiates os vasseus os senates os cambolectros

agessinates 109 Por outro lado junto aos piacutectones estatildeo os livres bituacuteriges que satildeo

chamados de cubos depois os lemovices os livres arvernos os livres velavos e os

gaacutebalos Novamente vizinhos agrave proviacutencia Narbonense estatildeo os rutenos os cadurcos os

nitioacutebriges e separados dos tolosanos pelo rio Tarne os petrocoros Os mares que

rodeiam a costa satildeo o oceano setentrional que vai ateacute o Reno entre o Reno e o Sena o

oceano Britacircnico entre esse e os Pireneus o oceano Gaacutelico Haacute vaacuterias ilhas dos vecircnetos

que satildeo chamadas de Vecircnetas e no golfo aquitacircnio haacute a ilha de Uliaros

311

Livro VIII

LXXIII (48) ndash 190 Lana autem laudatissima Apula et quae in Italia Graeci pecoris

appellatur alibi Italica tertium locum Milesiae oues obtinent Apulae breues uillo nec

nisi paenulis celebres circa Tarentum Canusiumque summam nobilitatem habent in

Asia uero eodem genere Laudiceae Alba Circumpadanis nulla praefertur nec libra

centenos nummos ad hoc aeui excessit ulla 191 Oues non ubique tondentur durat

quibusdam in locis uellendi mos Colorum plura genera quippe cum desint etiam

nomina iis quas natiuas appellant aliquot modis Hispania nigri uelleris praecipuas

habet Pollentia iuxta Alpes cani Asia rutili quas Erythraeas uocant item Baetica

Canusium fului Tarentum et suae pulliginis Sucidis omnibus medicata uis Histriae

Liburniaeque pilo propior quam lanae pexis aliena uestibus et quam Salacia scutulato

textu commendat in Lusitania Similis circa Piscinas prouinciae Narbonensis similis et

in Aegypto ex qua uestis detrita usu pingitur rursusque aeuo durat Est et hirtae pilo

crasso in tapetis antiquissima gratia iam certe his usos Homerus auctor est Aliter

haec Galli pingunt aliter Parthorum gentes 192 Lanae et per se coactae uestem

faciunt et si addatur acetum etiam ferro resistunt immo uero etiam ignibus nouissimo

sui purgamento Quippe aenis polientium extracta in tomenti usum ueniunt Galliarum

ut arbitror inuento certe Gallicis hodie nominibus discernitur 193 Nec facile dixerim

qua id aetate coeperit antiquis enim torus e stramento erat qualiter et iam nunc in

castris Gausapae patris mei memoria coepere amphimalla nostra sicut uillosa etiam

uentralia Nam tunica lati claui in modum gausapae texi nunc primum incipit Lanarum

nigrae nullum colorem bibunt De reliquarum infectu suis locis dicemus in conchyliis

maris aut herbarum natura

LXXIII (48) ndash 190 De fato a latilde mais famosa eacute a da Apuacutelia em seguida a latilde que na

Itaacutelia eacute chamada de grega e que em outros lugares eacute chamada de itaacutelica ocupam o

terceiro lugar as latildes mileacutesias A latilde da Apuacutelia eacute curta no pelo e famosa apenas para fazer

capas a latilde que vem das redondezas de Tarento e Canuacutesio tem maior renome na verdade

na Aacutesia haacute a latilde do mesmo tipo de Laodiceia Nenhuma latilde branca eacute superior agrave latilde das

vizinhanccedilas do Poacute e nunca nenhuma latilde excedeu o valor de cem sesteacutercios por libra 191

Natildeo satildeo em todas as partes que as ovelhas satildeo tosquiadas em certos locais ainda existe

o costume de arrancar a latilde Haacute muitos tons de cores de latilde a ponto de faltarem nomes

312

para essas que de qualquer forma se chamam de naturais a Hispacircnia tem excelentes

velos negros Polecircncia perto dos Alpes tem a latilde branca a Aacutesia a latilde vermelha que

chamam de eritreia igual a latilde da Beacutetica Canuacutesio a latilde amarelo-acastanhada Tarento

tem uma latilde proacutepria de cor escura Todas as latildes que ainda estatildeo engorduradas possuem

propriedade medicinal A latilde da Iacutestria e da Libuacuternia eacute mais parecida com cabelo do que

com latilde e eacute improacutepria para vestes de pelos eacute essa a que Salaacutecia na Lusitacircnia utiliza para

tecidos xadrez Eacute semelhante agrave latilde das redondezas de Piscinas na proviacutencia Narbonense

e semelhante tambeacutem a que tem no Egito com a qual se remenda um traje gasto pelo

uso e que de novo dura muito tempo Tambeacutem eacute antiquiacutessima a popularidade da latilde dura

de pelo grosso para tapetes certamente Homero jaacute atestou esses usos Os gauleses

trabalham a latilde de uma forma de outra forma o fazem os povos partos 192 As latildes

condensadas formam uma veste que caso se lhes adicione vinagre elas resistem ao

ferro e ainda mais resistem ao fogo depois de uma nova purificaccedilatildeo Na verdade os

restos que ficam nos caldeirotildees depois de trabalhados satildeo utilizados como enchimento

de colchotildees que eu considero como um invento das Gaacutelias certamente hoje os

distinguimos atraveacutes dos nomes gauleses 193 Eu natildeo poderia dizer facilmente em que

eacutepoca esse uso comeccedilou de fato nossos ancestrais usavam cordas de palha como

colchatildeo como ainda agora se faz nos acampamentos As gausapas comeccedilaram a ser

usadas na eacutepoca do meu pai636

a baeta em nossa eacutepoca assim como tambeacutem os

aventais felpudos De fato agora pela primeira vez a tuacutenica laticlava comeccedilou a ser

tecida agrave maneira de gausapa As latildes negras natildeo absorvem nenhuma cor Sobre o

tingimento das outras latildes falaremos a esse respeito nas passagens sobre as conchas do

mar e sobre a natureza das plantas

Livro XXX

IV ndash 13 Gallias utique possedit et quidem ad nostram memoriam Namque Tiberii

Caesaris principatus sustulit Druidas eorum et hoc genus uatum medicorumque Sed

quid ego haec commemorem in arte Oceanum quoque transgressa et ad naturae inane

peruecta Britannia hodieque eam attonita celebrat tantis caerimoniis ut dedisse

Persis uideri possit Adeo ista toto mundo consensere quamquam discordi et sibi

636

Aportuguesamos o termo latino gausapa que designava um tecido grosso de latilde

313

ignoto nec satis aestimari potest quantum Romanis debeatur qui sustulere monstra in

quibus hominem occidere religiosissimum erat mandi uero etiam saluberrimum

IV ndash 13 Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a nossa eacutepoca O

fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e esse tipo de adivinhos e

meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria isso sobre uma arte que jaacute transpocircs o

Oceano e penetrou no vazio da natureza Ainda hoje a aturdida Britacircnia celebra essa

arte com muitos ritos de modo que possa parecer que isso foi passado aos persas Daiacute

parece que os povos em todo o mundo ainda que entre si fossem diferentes e

desconhecidos por fim entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar

suficientemente o quanto se deve aos romanos que suprimiram essas monstruosidades

para as quais era muito religioso sacrificar um homem e o fato de devoraacute-lo era

considerado salutar

Livro XXXIII

V ndash 14 Romae ne fuit quidem aurum nisi admodum exiguum longo tempore Certe cum

a Gallis capta urbe pax emeretur non plus quam mille pondo effici potuere Nec ignoro

MM pondo auri perisse Pompeii III consulatu e Capitolini Iovis solio a Camillo ibi

condita et ideo a plerisque existimari MM pondo collata Sed quod accessit ex

Gallorum praeda fuit detractumque ab iis in parte captae urbis delubris 15 Gallos cum

auro pugnare solitos Torquatus indicio est ndash Apparet ergo Gallorum templorumque

tantundem nec amplius fuisse quod quidem in augurio intellectum est cum Capitolinus

duplum reddidisset Illud quoque obiter indicari conuenit ndash etiam de anulis sermonem

repetiuimus ndash aedituum custodiae eius conprehensum fracta in ore anuli gemma statim

expirasse et indicium ita extinctum 16 Ergo ut maxime MM tantum pondo cum capta

est Roma anno CCCLXIIII fuere cum iam capitum liberorum censa essent CLII

DLXXIII In eadem post annos CCCVII quod ex Capitolinae aedis incendio ceterisque

omnibus delubris C Marius filius Praeneste detulerat XIII pondo quae sub eo titulo in

triumpho transtulit Sulla et argenti VI Idem ex reliqua omni uictoria pridie transtulerat

auri pondo XV argenti p CXV

314

V ndash 14 Na verdade em Roma por muito tempo natildeo houve ouro exceto em diminuta

quantidade De fato quando a cidade foi tomada pelos gauleses e a paz seria

estabelecida eles natildeo puderam juntar mais do que mil libras Natildeo ignoro que duas mil

libras de ouro se perderam do trono de Juacutepiter Capitolino ndash aiacute colocadas por Camilo ndash

durante o terceiro consulado de Pompeu por isso muitos consideram que na verdade

foram juntadas duas mil libras de ouro Mas o que acresceu a isso foram o butim e a

pilhagem daqueles templos que os gauleses fizeram na parte da cidade que foi tomada

15 Como indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar usando

ouro Assim parece evidente tal quantidade de ouro natildeo ser maior que aquela que

tinham os gauleses ou os templos na verdade o que se percebeu foi que Juacutepiter

Capitolino em uma profecia retornaria o dobro Jaacute que recordamos o assunto sobre os

aneacuteis tambeacutem conveacutem mencionar o episoacutedio em que o guarda do templo de Juacutepiter

Capitolino ao ser surpreendido quebrou a gema do seu anel na boca e imediatamente

morreu dessa forma o indiacutecio do ladratildeo desapareceu 16 Portanto na ocasiatildeo do ano

364 da cidade quando Roma foi tomada havia no maacuteximo duas mil libras de ouro e

como constava no censo 152573 homens livres Apoacutes 307 anos o ouro da cidade ndash que

Caio Maacuterio Filho levara a Preneste apoacutes o incecircndio do templo Capitolino e de todos os

outros santuaacuterios ndash totalizava treze mil libras Sila transcreveu esse nuacutemero em uma

inscriccedilatildeo durante um triunfo assim como seis mil libras de prata Ele tambeacutem trouxera

no triunfo da veacutespera quinze mil libras de ouro e cento e quinze mil libras de prata

obtidas em todas as outras vitoacuterias

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia

PRISCILLA ADRIANE FERREIRA ALMEIDA

OS GAULESES EM CEacuteSAR TITO LIacuteVIO E PLIacuteNIO O VELHO

SOBRE A RETOacuteRICA DA REPRESENTACcedilAtildeO DO OUTRO E A

CONSTRUCcedilAtildeO DO SI

Trabalho apresentado ao Programa de Poacutes

Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da

Faculdade de Letras da Universidade

Federal de Minas Gerais como requisito

parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor O

presente trabalho foi realizado com apoio

da CAPES Coordenaccedilatildeo de

Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel

Superior ndash Brasil

Aacuterea de concentraccedilatildeo Literaturas Claacutessicas

e Medievais

Orient dor Prof Dr S ndr M ri

Gualberto Braga Bianchet

Belo Horizonte

2018

AGRADECIMENTOS

Ao meu pai Elveacutecio e agrave minha saudosa matildee Sandra Aos meus irmatildeos Karla e Juninho

pelo companheirismo

Ao Flaacutevio amor e luz dos meus dias

Agraves irmatildes Juliana Nanda Priscilla e Marina pela amizade e carinho

Agrave Sandra que muito mais que uma boa orientadora representa verdadeiro oaacutesis no

meio acadecircmico Obrigada pela confianccedila e por ter topado fazer essa jornada comigo

Aos professores doutores Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo Rafael Scopacasa Faacutebio da Silva

Fortes e Artur Costrino que compuseram a banca e fizeram comentaacuterios muito

relevantes para o enriquecimento deste trabalho

Aos meus professores da Letras e da Histoacuteria da UFMG

Agradeccedilo a proacutepria FALE ao POSLIT CAPES Bibliothegraveque Nationale de France e a

Fondation Hardt (paraiacuteso dos classicistas) pela oportunidade de concretizar este

trabalho

Tu regere imperio populos Romane memento

(hae tibi erunt artes) pacique imponere morem

parcere subiectis et debellare superbos

Tu romano lembra-te de comandar os povos com tua autoridade

(essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz

poupar os vencidos e dominar os soberbos

(Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853)

RESUMO

Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nenhum material escrito e sua cultura e

histoacuteria nos satildeo conhecidas apenas por relatos de terceiros ou por estudos

arqueoloacutegicos Por isso o tema das representaccedilotildees dos gauleses em Ceacutesar Tito Liacutevio e

Pliacutenio que compreende o periacuteodo entre o seacuteculo I aC a I dC eacute o foco principal desta

pesquisa jaacute que corresponde ao momento em que a Gaacutelia eacute definivamente conquistada

pelos romanos e transformada em proviacutencia

Propomos no comeccedilo deste trabalho uma reflexatildeo sobre o proacuteprio eacutetimo

―baacuterb ro leacutem de bord mos o conceito de b rbaacuterie ndash e de civilidade ndash entre gregos e

romanos Em seguida falaremos sobre a expansatildeo do domiacutenio de Roma e como foi o

contato entre romanos e gauleses Apoacutes essa investigaccedilatildeo nos propomos a estudar a

fundo algumas passagens latinas sobre os gauleses cujas fontes satildeo o De bello Gallico

(Sobre a guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito

Liacutevio e a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho Nessa anaacutelise dos

trechos latinos veremos como se estrutura a retoacuterica de representaccedilatildeo dos gauleses e de

como se operava essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada e

faremos consideraccedilotildees sobre o que era considerado ser baacuterbaro (ou civilizado) pelos

romanos do seacuteculo I aC a I dC Igualmente realizaremos um estudo dos elementos

retoacutericos empregados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para caracterizar os gauleses bem como

analisaremos o tipo de vocabulaacuterio utilizado e as recorrentes figuras representativas

empregadas para essas descriccedilotildees Por fim encerraremos este trabalho com algumas

consideraccedilotildees sobre o que se sabe hoje dos gauleses atraveacutes de pesquisas

historiograacuteficas e arqueoloacutegicas

Palavras-chave Gauleses Ceacutesar Tito Liacutevio Pliacutenio o Velho Retoacuterica Alteridade

ABSTRACT

We know th t the G uls didnlsquot le ve ny written m teri l nd their culture nd

history are known today by third-part reports and by archeological studies Therefore

the theme of G ulslsquo represent tions in C es r Livy nd Pliny the Elder s it

comprehends the temporal period from the I Century BC to I AC is the main

objective of this academic paper as it coincides with the moment in wich Gaul was

conquered and transformed into a Roman province

In the beginning of this paper we offer a reflection about the word ―b rb ri n

itself besides we focus on the concept of barbarity ndash and civilization ndash among Greeks

nd Rom ns There fter we t lk bout the exp nsion of Romelsquos dom in nd how w s

the contact between Romans and Gauls In addition we put forward to research some

Latin passages about the Gauls and the sources are De bello Gallico (The Gallic War)

of Caesar Ab urbe condita (The History of Rome) of Livy and in the Historia

naturalis (Natural History) of Pliny the Elder In this analysis of the Latin passages we

will be ble to re lize how the rhetoric of G ulslsquo represent tions is structured nd how

the construction of the image of the barbarian worked We will also make some

considerations about what was by the Romans from the I Century BC to I AC

considered as barbarian (or civilized) Furthermore we make a research of the rhetoric

elements used by Caesar Livy and Pliny to distinguish the Gauls as well to analyze the

type of vocabulary and representative figures applied in these descriptions Finally we

close this academic paper by bringing some facts of what is know today by the Gauls

through historiographical and archeological researches

Keywords Gauls Caesar Livy Pliny the Elder Rhetoric Alterity

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo 9

Do tema de pesquisa 16

Da traduccedilatildeo e estudo 21

Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas 29

11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas

romanitas 29

12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC 42

121 ndash Poliacutebio 46

122 ndash Catatildeo o Censor 58

13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC 63

131 ndash Posidocircnio 63

132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio 66

1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina 76

133 ndash Diodoro Siacuteculo 80

134 ndash Estrabatildeo 84

Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia 89

21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC 89

211 ndash O exeacutercito romano 90

212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo

imperialista 92

213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana 97

22 ndash A conquista da Gaacutelia 100

221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa

Ocidental 106

222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar 110

23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar 112

231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de

Ceacutesar 113

232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo 116

233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar 121

24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico 128

Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas 148

31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano 148

32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia 151

33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita 153

34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita 154

341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana 157

342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio 159

35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita 162

36 ndash Pliacutenio o Velho 195

361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis 195

362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder 196

363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis 199

Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celta 218

41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses 218

42 ndash Mecanismos retoacutericos 221

421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo 223

422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia 230

423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia 231

43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade 235

431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio 235

432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem 238

44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz 243

Consideraccedilotildees finais 250

Referecircncias bibliograacuteficas 255

Ediccedilotildees e traduccedilotildees de textos antigos 255

Dicionaacuterios 259

Bibliografia geral 260

Anexo ndash antologia de autores 271

1 ndash Ceacutesar 271

2 ndash Tito Liacutevio 280

3 ndash Pliacutenio o Velho 304

9

Introduccedilatildeo

Consideramos importante iniciar este trabalho ressaltando o caraacuteter da

historiografia antiga jaacute que as obras que seratildeo objeto de estudo e de referecircncia para essa

pesquisa pertencem em sua maioria a esse gecircnero A histoacuteria soacute passa a ser

consider d ―ciecircnci com metodologi e sistem tiz ccedilatildeo proacutepri s poacutes o seacuteculo XIX 1

O historiador antigo natildeo era um pesquisador mas sim um escritor Isso natildeo quer dizer

que ele jamais se preocupava com a realidade dos fatos Entretanto as suas ferramentas

de pesquisa historiograacutefica eram amiuacutede mas natildeo soacute os relatos de autores anteriores a

persistecircncia de uma soacutelida tradiccedilatildeo oral (mitos lendas etc) e a verossimilhanccedila dos atos

e personagens (MARTIN GAILLARD 1981 p 108)

Quanto ao uso de fontes documentais como Marincola ressalta (In ERSKINE

2009 p19) os historiadores antigos natildeo faziam uso dos mesmos da forma que os

pesquisadores passaram a fazer a partir do seacuteculo XIX ndash ou seja tendo por meacutetodo o

uso de documentos como uma base confiaacutevel para um relato histoacuterico Isso acontecia na

Antiguidade por vaacuterias razotildees a primeira eacute a de que as evidecircncias documentais natildeo

eram guardadas sistematicamente e natildeo eram facilmente acessiacuteveis segundo os

historiadores tinham o costume de inquirir testemunhas oculares e participantes dos

fatos terceiro o foco em grandes indiviacuteduos e em grandes batalhas ndash em suma em uma

grande histoacuteria ndash tornava os documentos irrelevantes para tais tipos de narrativa por

fim os antigos natildeo viam os documentos como testemunhas imparciais mas apenas

como um outro meio de testemunho que poderia ou natildeo ser confiaacutevel (MARINCOLA

In ERSKINE 2009 p 19)2 O historiador antigo portanto preocupava-se

primeiramente em recontar os fatos natildeo cientificamente mas artisticamente o

historiador atual preocupa-se com a anaacutelise dos acontecimentos (MARTIN

GAILLARD 1981 p 108) Como Nicolai (In MARINCOLA 2007 p 14) descreve o

objetivo da historiografia antiga estava relacionado agrave criaccedilatildeo de paradigmas sobretudo

os de cunho poliacutetico-militar ou eacuteticos todos esses paradigmas da historiografia tinham

em certo sentido uma finalidade poliacutetica a de formar uma classe governante

oferecendo modelos de anaacutelise e exemplos de comportamento (como em Tuciacutedides) dar

1 Gu rinello no c piacutetulo ―Um morfologi d Histoacuteri de su tese de livre docecircnci (2014 p 53 a 74)

faz uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria enquanto ciecircncia bem como sobre as questotildees metodoloacutegicas e campo

de estudo da mesma 2 Marincola no capiacutetulo 2 intitul do ―Historiogr phy (In ERSKINE 2009 p 13 22) det lh de

forma profunda a questatildeo da escrita historiograacutefica na Antiguidade bem como realiza um debate sobre os

pressupostos dos historiadores antigos quanto agrave sua maneira de escrever o gecircnero histoacuteria

10

destaque a grandes personalidades ndash de modo positivo ou negativo ndash a tiacutetulo de

exemplos de evoluccedilatildeo moral (como em Saluacutestio) ou ainda cumprir o objetivo de

construir memoacuteria e identidade coletiva como nas historiografias locais e ktiseis

relacionadas agraves origens e fundaccedilotildees Evidentemente o corpus de autores de

historiografia antiga eacute bastante heterogecircneo com caracteriacutesticas muito diferentes entre

si ndash sendo que o denominador comum a todos eles eacute o fato de terem escrito uma

narraccedilatildeo de evento ou eventos (NICOLAI In MARINCOLA 2007 p 14) Aleacutem

disso embora o gecircnero historiograacutefico pressupusesse a imparcialidade e a auto-anulaccedilatildeo

do autor evidentemente uma escrita completamente imparcial era algo inviaacutevel a

histoacuteria escrita por um indiviacuteduo natildeo deixa de ser um texto como qualquer outro e

como tal ele passa em maior ou menor grau a visatildeo de mundo de seu autor Como

Fornara (1983 p 169) lembra comumente um poeta desejava expressar a si mesmo em

sua obra (mesmo que fosse seu eu liacuterico) um historiador por sua vez optava por se

esconder por traacutes dos sentimentos dos personagens da narrativa (sobretudo por meio dos

seus discursos) ou poderia ser vagamente percebido na forma como ele descrevia os

eventos3

Sobre definiccedilatildeo d histoacuteri Veyne (1998 p 18) pontu ― histoacuteri eacute um

narrativa de eventos todo o resto resulta disso Jaacute que eacute de fato uma narrativa ela natildeo

faz reviver esses eventos assim como tampouco o faz o romance o vivido tal como

ress i d s matildeos do histori dor natildeo eacute o dos tores eacute um n rr ccedilatildeo ( ) Veyne f z

nessa citaccedilatildeo uma referecircncia importante que relaciona a histoacuteria ao romance jaacute que

ambos satildeo narrativas em prosa Brandatildeo em seu livro A invenccedilatildeo do romance

esclarece de forma didaacutetica e acessiacutevel como os antigos (sobretudo Platatildeo e

Aristoacuteteles) defini m os gecircneros n rr tivos nos c piacutetulos ―O est tuto d n rr tiv

dieacutegesis e miacutemesis e seguintes 4

Focaremos aqui de forma resumida na relaccedilatildeo entre a histoacuteria e o romance

Como Br ndatildeo (2005 p 50) lembr ―( ) histoacuteri enqu dr -se na modalidade da

3 Para maior aprofundamento sobre a composiccedilatildeo historiograacutefica e em que medida o ponto de vista do

autor antigo pode ser contestado cf JOLY (2007 p 7-9) 4 Como Brandatildeo (2005 p 40 e ss) destaca para Platatildeo a narrativa poderia ser classificada em narrativa

simples (haplegrave dieacutegesis) cujo exemplo eacute o ditirambo narrativa mimeacutetica (miacutemesis) cujo maior exemplo

eacute o drama e a narrativa mista (dieacutegesis e miacutemesis) que tem como exemplo a epopeia Aristoacuteteles segue o

modelo de Platatildeo mas efetua em sua classificaccedilatildeo uma enorme modificaccedilatildeo ele faz da mimese (e natildeo da

narrativa) o nuacutecleo central Para Platatildeo tudo quanto dizem prosadores e poetas eacute dieacutegesis Para

Aristoacuteteles todas as narrativas (de prosadores e poetas) bem como a escultura a muacutesica e a pintura eacute

miacutemesis Para Aristoacuteteles a mimese se daacute agraves vezes narrando tornando-se em algo outro (como faz

Homero) como si mesmo e natildeo mudando ou com todos mimetizados agindo e atuando

11

narrativa mista jaacute que comporta a fala do narrador e discursos diretos de personagens

(pelo menos em rel ccedilatildeo agrave m iori dos histori dores ntigos) ( ) Ess definiccedilatildeo de

narrativa mista tambeacutem se aplica ao romance ainda que esse gecircnero de composiccedilatildeo

tenha surgido em periacuteodo posterior agraves definiccedilotildees de narrativa descritas por Platatildeo e

Aristoacuteteles

Brandatildeo (2005 p 51 e 52) resume essa questatildeo

Assim trecircs caracteriacutesticas separam a narrativa literaacuteria da narrativa histoacuterica

a primeira refere-se ao universal ocupando-se do que poderia acontecer

enquanto a segunda se volta para o particular e visa ao acontecido a primeira

organiza-se segundo os criteacuterios da verossimilhanccedila e da necessidade

enquanto a segunda conforme as accedilotildees tenham acontecido num determinado

tempo guardando umas com as outras um nexo puramente casual

finalmente a primeira por suas caracteriacutesticas formais tem como objetivo

produzir prazer (poieicirc hedoneacuten) Embora Aristoacuteteles natildeo esclareccedila os

objetivos da histoacuteria eacute lugar comum admitir que ela visa ao uacutetil

Dessa forma o foco da narraccedilatildeo seraacute percebido por duas vias a da utilidade ou

da natildeo utilidade (ou seja o divertimento) e por consequecircncia pela via da verdade

(aleacutetheia) ou da ficccedilatildeo (pseucircdos) (BRANDAtildeO 2005 p 56) O historiador antigo

tod vi natildeo possuiacute ess concepccedilatildeo de ―verd de histoacuteric t l como se tem hoje de

acordo com Martin e Gaillard (1981 p 109) o historiador antigo presumia que seus

predecessores tinham dito a verdade e se acontecesse de ele suprimir um ou outro

detalhe que lhe parecesse inverossiacutemil em essecircncia ele considerava a tradiccedilatildeo como

conferidora da autoridade a partir do momento em que o relato fornecido era racional e

coerente era aceitaacutevel

No contexto romano jaacute existiam relatos rudimentares dos fatos ndash desde meados

de 300 aC o pontiacutefice maacuteximo escrevia em uma taacutebula branca os eventos cotidianos

conflitos beacutelicos bem como o calendaacuterio religioso e prodiacutegios diversos e essa placa era

afixada no foacuterum (ANDREacute HUS 1974 p 10) Aleacutem disso tinham-se registros de leis

tratados diplomaacuteticos anais religiosos e os registros das grandes famiacutelias patriacutecias

Quanto agrave literatura latina em si ndash e evidentemente a historiografia ndash tem-se uma

grande influecircncia dos gregos a partir do contato entre essas duas culturas sobretudo a

partir de meados do seacuteculo II aC quando Roma conquistou vaacuterias cidades helecircnicas O

proacuteprio termo grego ἱζηνξία do qual vem o vocaacutebulo latino historia a princiacutepio

signific v ―pesquis Com o tempo ἱζηνξία passou a designar conhecimento obtido

ou informaccedilatildeo e por fim tornou-se sinocircnimo de narrativa sobre fatos eou feitos de

algueacutem (LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 842) Em latim esse tipo de narrativa de

12

realizaccedilotildees pessoais eacute conhecido como res gestae (fatos realizados) ndash sendo as Res

Gestae do imperador Otaacutevio Augusto o exemplo mais conhecido5

Quanto agrave origem de narrativas historiograacuteficas em Roma jaacute em 220 aC Neacutevio

escreveu uma epopeia de cunho historiograacutefico intitulada Bellum Punicum (Da guerra

puacutenica) da qual existem poucos fragmentos Essa obra tratava dos primoacuterdios de Roma

e das suas origens troianas Ecircnio contemporacircneo de Catatildeo o Velho escreveu os

Annales (Anais) entre 180 e 169 aC em hexacircmetros datiacutelicos A obra possuiacutea 18

livros que tratavam desde os primoacuterdios de Roma ateacute a Guerra da Iacutestria entre 178 e 177

aC Depois de Ecircnio as obras historiograacuteficas latinas passam a ser escritas

exclusivamente em prosa O grande florescimento do gecircnero em Roma ocorreu

especialmente no periacuteodo entre o seacuteculo I aC ao seacuteculo II dC com autores como

Ceacutesar Saluacutestio Tito Liacutevio e Taacutecito

Como Martin e Gaillard (1981 p 109 e 110) afirmam episoacutedios dramaacuteticos

momentos eacutepicos discursos e perigos constituiacuteam parte da mateacuteria historiograacutefica

antiga ndash o esforccedilo de racionalismo e anaacutelise poliacutetica nunca estavam ausentes de fato o

saber histoacuterico era indispensaacutevel agrave clarividecircncia poliacutetica pois a historiografia latina era

endereccedilada ao homem de estado ao homem de accedilatildeo e deveria ter uma finalidade uacutetil6

Escrever histoacuteria na Antiguidade portanto consistia na preocupaccedilatildeo de conservar para

a posteridade a lembranccedila dos atos e feitos dos ancestrais () e a iniciativa de fazer um

relato literaacuterio do passado (MARTIN GAILLARD 1981 p 110) A historiografia

antiga era um gecircnero que abarcava vaacuterios subgecircneros como o commentarius (utilizado

por Ceacutesar) e os annales (utilizado por Tito Liacutevio)7

5 Tambeacutem conhecido pelo nome de Monumentum Ancyranum ndash Monumento de Ancira) jaacute que a

inscriccedilatildeo dos feitos de Otaacutevio se encontra em uma estela na atual cidade de Ancara 6 Abordaremos mais adiante no subcapiacutetulo 132 referente a Ciacutecero a concepccedilatildeo da historiografia latina

e a sua utilidade sobretudo como ferramenta poliacutetica ao orador 7O commentarius (comentaacuterio) do antecedente grego hypomnema (memoacuteria) consistia em narrativas

provenientes de materiais sem acabamento como anotaccedilotildees relatoacuterios etc e era bastante utilizado por

magistrados e chefes militares para informar o governo sobre suas atividades ou ainda como rascunho

para depois ser melhor desenvolvido Os maiores exemplos desse tipo de composiccedilatildeo satildeo os dois textos

de Ceacutesar Ciacutecero tambeacutem escreveu um comentaacuterio sobre seu consulado mas natildeo foi publicado (CONTE

1999 p226) Os annales (anais) formam um gecircnero de escrita no qual os acontecimentos satildeo narrados

ano a ano e foram o primeiro modelo historiograacutefico utilizado pelos romanos Segundo Conte (1999 p

368) a obra de Liacutevio Ab urbe condita teria uma subdivisatildeo de livros por deacutecadas Aleacutem de Tito Liacutevio

outro exemplo desse gecircnero satildeo os Annales de Taacutecito Todavia Liacutevio pelo fato de contar a histoacuteria de

Roma desde a sua fundaccedilatildeo ateacute os dias que lhe eram contemporacircneos tambeacutem se encaixa no subgecircnero

da histoacuteria universal Para explicaccedilatildeo mais detalhada sobre os subgecircneros da historiografia latina cf

ANDREacute HUS 1974 p 9-14

13

Sobre a evoluccedilatildeo da historiografia romana sob influecircncia heleniacutestica e o seu

desenvolvimento ao longo do tempo Lintott (In BOARDMAN et al 1986 p 641)

afirma

In the late second century a distinction was drawn between annales in the

strict sense of a chronicle of events year by year and historiae which

involved casual analysis In due course the term histori elsquo w s to be used by

S llust nd T citus for works bout their own lifetime while nn leslsquo tended

to mean ancient history Cato had been the pioneer in turning history into a

political weapon by 100 BC politicians were writing memoirs to set the

record right bout themselves This trend led in time to C es rlsquos

comment ries nd Augustuslsquo Res Gestae (hellip) However side by side with

contemporary history antiquarian history flourished as never before The

material in the earlier annals was expanded by material culled from a variety

of documents whether genuine or forged and supplemented by frequently

stereotyped inventions such as led Livy to wonder how the Volscians and

Aequians had enough men to be slaughtered so often by the Romans(grifos

do autor) 8

A respeito da proacutepria histoacuteria de Roma desde o seu iniacutecio a cidade sempre se

envolveu em guerras e conquistas em grande contato com povos estrangeiros De

acordo com relatos literaacuterios que bebiam na fonte das narrativas lendaacuterias o heroacutei

primordial Eneias fugiu de Troia e partiu em busca da Itaacutelia para ali estabelecer o novo

povo romano e a nova paacutetria Virgiacutelio narra esse episoacutedio nos primeiros versos do livro I

da Aeneis (Eneida) e tambeacutem nesse livro estaacute a passagem em que Eneias chega a

Cartago Nesse lugar o heroacutei troiano conta para Dido nos livros II e III sobre a queda

de Troia e tambeacutem sobre suas andanccedilas e aventuras em busca da costa da Itaacutelia Eneias

deixa Cartago e Dido suicida-se (livro IV) temos em seguida a narraccedilatildeo da viagem dos

troianos ateacute a Itaacutelia (livro V) e a ida de Eneias ao inferno onde ele tem uma visatildeo do

futuro grandioso de Roma (livro VI) Eneias finalmente chega agrave peniacutensula Itaacutelica e

encontra-se com o rei Latino a guerra entre itaacutelicos e troianos se inicia quando o rei

Latino oferece a matildeo da sua filha Laviacutenia a Eneias sendo que a mesma jaacute tinha sido

prometida ao priacutencipe Turno (livro VII) Virgiacutelio conta sobre os confrontos entre os

exeacutercitos de Turno e Eneias entre os cantos VIII e XI A guerra entre troianos e ruacutetulos

apenas se encerra quando em um duelo Eneias vence Turno no livro XII da Aeneis

8 ―No fin l do segundo seacuteculo uma distinccedilatildeo foi feita entre annales (anais) no sentido estrito de uma

crocircnica de eventos ano a ano e historiae (histoacuterias) que envolviam anaacutelise dos fatos Mais tarde o termo

histori elsquo er us do por S luacutestio e Taacutecito p r tr b lhos sobre o seu proacuteprio tempo enqu nto nn leslsquo

tendia a designar histoacuteria antiga Catatildeo foi o pioneiro em transformar a histoacuteria em uma arma poliacutetica jaacute

em 100 aC poliacuteticos escreviam memoacuterias para um registro correto sobre eles mesmos Essa tendecircncia

levou no futuro aos comentaacuterios de Ceacutesar e Res Gestae (feitos) de Augusto () Todavia lado a lado com

a histoacuteria contemporacircnea a histoacuteria antiga floresceu como nunca antes O teor dos antigos anais foi

expandido por materiais selecionados a partir de uma variedade de documentos tanto genuiacutenos quanto

forjados e acrescidos de frequentes invenccedilotildees estereotipadas como as que levaram Liacutevio a duvidar como

volscos e eacutequos pudessem possuir homens suficientes para serem mortos frequentemente pelos rom nos

14

Muitos outros exemplos de conflitos com outros povos podem ser encontrados na

histoacuteria miacutetica de Roma como as lendas que envolvem Horaacutecio Cocles Muacutecio Ceacutevola

Reacutegulo9

No campo historiograacutefico jaacute no seacuteculo V aC Roma iniciou a conquista de

outros povos itaacutelicos como os eacutequos os volscos e os sabinos Em 390 aC Roma

(exceto o Capitoacutelio) foi tomada pelos gauleses e obrigada a pagar um pesado tributo

para recuperar a cidade10

Posteriormente Roma e Cartago se envolveram em violentas

disputas pela hegemonia do mar mediterracircneo que resultaram nas Guerras Puacutenicas A

primeira dessas guerras ocorreu entre 264 e 241 aC a segunda entre 218 e 201 aC e a

terceira entre 149 e 146 aC Entrementes Roma entrou em conflito contra a Hispacircnia

de 218 a 206 aC e no periacuteodo entre 201 e 175 aC Roma conseguiu a submissatildeo

definitiva da Gaacutelia Cisalpina11

Novamente temos confrontos entre romanos e gauleses

Entre 105 e 101 aC o general Maacuterio aniquilou os cimbros e os teutotildees em Aix na

Gaacutelia (102 aC) e em Vercelas na Itaacutelia (101 aC) Posteriormente Juacutelio Ceacutesar

conquistou a Gaacutelia definitivamente entre os anos 58 e 51 aC12

Cabe aqui fazer um esclarecimento sobre os termos celta e gaulecircs nas palavras

do proacuteprio Ceacutesar no comeccedilo de sua obra De bello Gallico (I1) em traduccedilatildeo nossa

Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam Aquitani

tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur ―Tod Gaacuteli eacute dividid

em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a terceira

h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss

g uleseslsquo Or p r os rom nos h vi distinccedilatildeo entre os celt s e outros povos que

habitavam a Gaacutelia Neste trabalho ao conjunto dos povos da Gaacutelia (belgas aquitanos e

celtas) vamos nos referir a todos eles indistintamente como gauleses galos e celtas13

9 Pereira faz uma raacutepida antologia sobre os heroacuteis miacuteticos de Roma (1993 p 11 a 32)

10 Tito Liacutevio narra o episoacutedio no livro V (48 a 51) de Ab urbe condita Schmidt (2010) narra todos os

enfrentamentos entre gauleses e romanos desde o seacuteculo IV aC ateacute o fim do impeacuterio romano no seacuteculo V

dC 11

Para mais detalhes sobre a conquista da Gaacutelia Cisalpina ver SCHMIDT (2010 p 105 e 106) 12

Para todas as datas citadas nesse trecho e tambeacutem as datas mencionadas anteriormente sobre

acontecimentos entre 264 e 175 aC usamos a cronologia de Bornecque e Mornet (2002 p 6 a 12) 13

O termo celta era um atributo eacutetnico usado primeiramente pelos gregos para se referir aos povos que

viviam ao norte da colocircnia de Marselha Possivelmente tem ligaccedilatildeo com a raiz kel tendo o obscuro

significado de exaltado ou combativo O termo gaulecircs por sua vez jaacute era usado pelos romanos para se

referir ao povo que veio do norte e saqueou a cidade no comeccedilo do seacuteculo IV aC e posteriormente para

se referir a todos os povos que possuiacuteam linguagem e cultura ceacutelticas (RANKIN 1996 p 1 e 2)

15

Tais incursotildees romanas eram motivadas por vaacuterios aspectos poliacuteticos

econocircmicos e sociais No plano poliacutetico Goudineau (2007 p 324) resume a nova

posiccedilatildeo de Roma ao conquistar a Gaacutelia ao afirmar

L conquecircte ceacutes rienne modifieacute de fond en comble llsquoeacutequilibre du monde

rom in jusqulsquo lors centreacute sur l Meacutediterr neacutee (agrave llsquoexception tout juste du

Pont-Euxin) En superficie les ―nouve ux territoires repreacutesentent environ

30 de ce monde Italie exclue ndash ce qui est eacutenorme () La guerre des

Gaules a radicalement et deacutefinitivement transformeacute les donneacutees geacuteo-

politiques du monde ntique Inversement llsquohistoire des G ules tient en

grande partie agrave leur environnement aux nouvelles donneacutees strateacutegiques (les

frontiegraveres germaniques la proximiteacute de la Bretagne) qui eurent de

conseacutequences agrave la fois sociales et eacuteconomiques14

Quanto ao aspecto econocircmico Roma passou a ter maior matildeo de obra escrava

para os grandes latifuacutendios receita maior com tributos pagos pelos povos vencidos e

tambeacutem maior nuacutemero de soldados jaacute que as proviacutencias deveriam fornecer tropas

auxiliares (DELAPLACE FRANCE 2011 p 53) Aleacutem disso Roma aumentou a zona

de comeacutercio e circulaccedilatildeo de mercadorias e explorou minas de ouro e prata na Gaacutelia

Transalpina (GOUDINEAU 2007 p 340)

No campo social Roma em seus domiacutenios tornou-se mais versaacutetil em termos

culturais Ao contraacuterio dos gregos que jamais concederam a cidadania aos povos

estrangeiros em Roma esse processo foi diferente Apoacutes a conquista definitiva da Gaacutelia

empreendida por Ceacutesar o territoacuterio passou a ser romanizado e as elites locais foram

mantidas Delaplace e France (2011 p 53) afirmam o seguinte sobre esse fenocircmeno

En effet les aristocraties locales profitent quant agrave elles de la romanisation

qui mecircme si elle s`accompagne de mesures contraignantes leur apporte le

soutien de Rome pour renforcer leur domination sociale et leur permet de

beacuteneacuteficier de privilegraveges lieacutes agrave llsquoobtention de l citoyenneteacute rom ine Degraves ce

moment plusieurs de ces not bles g ulois beacuteneacuteficient en effet de llsquooctroi de

la ciuitas(grifo do autor)15

14

―A conquist ces ri n modificou complet mente o equiliacutebrio do mundo rom no gor centr do no

Mediterracircneo (com exceccedilatildeo t lvez do Ponto Euxino) Em superfiacutecie os ―novos territoacuterios represent m

cerca de 30 desse mundo excluiacuteda a Itaacutelia - o que eacute enorme () A guerra das Gaacutelias transformou de

forma radical e definitiva os domiacutenios geopoliacuteticos do mundo antigo Inversamente a histoacuteria das Gaacutelias

se deve em grande parte ao seu ambiente e aos novos domiacutenios estrateacutegicos (as fronteiras germacircnicas a

proximid de d Bret nh ) que c rret r m consequecircnci s t nto soci is qu nto econocircmic s 15

―De f to s ristocr ci s loc is desfrut v m el s mesm s d rom niz ccedilatildeo que mesmo se

acompanhada de medidas restritivas lhes concedia o suporte de Roma para reforccedilar a sua dominaccedilatildeo

social e lhes permitia se favorecer dos privileacutegios relacionados agrave obtenccedilatildeo da cidadania romana A partir

desse momento muitos desses notaacuteveis gauleses passaram a se beneficiar da concessatildeo da ciuitas

16

Dessa maneira ao longo do seacuteculo I aC e do seacuteculo I dC temos a conquista de

territoacuterios da Europa ocidental e esses lugares permaneceratildeo de certa forma sob

influecircncia definitiva da romanizaccedilatildeo mesmo apoacutes a queda do impeacuterio romano com o

predomiacutenio das liacutenguas latinas (BASSETTO 2005 p 99 e 100)

Os romanos tiveram um contato muito grande com os ditos baacuterbaros jaacute que

lutaram contra eles durante quase a totalidade de sua histoacuteria ampliando e defendendo

suas fronteiras Todavia esse processo de conquistas natildeo foi unilateral apesar de os

romanos terem dominado povos diferentes eles tambeacutem adquiriram muitos dos haacutebitos

estrangeiros ndash como o culto persa a Mitra o culto a deuses egiacutepcios e a grande

influecircncia cultural dos gregos sobre Roma dentre outros exemplos Quanto aos povos

conquistados Roma possuiacutea uma dupla forma de tratar com os vencidos Os

estrangeiros que eram inimigos da cidade e que resistiam agrave conquista quando

derrotados eram subjugados e obrigados a pagar altos tributos Todavia alguns povos

se aliavam a Roma de maneira diplomaacutetica O grande aspecto que diferenciava Roma

dos outros povos antigos contudo era a manutenccedilatildeo das elites locais dos territoacuterios

conquistados pacificamente e ateacute mesmo a concessatildeo de cidadania plena ou parcial a

essas elites Esse fenocircmeno visava tanto a diminuir revoltas contra Roma quanto coibir

alianccedilas entre os inimigos do impeacuterio (GUARINELLO 2014 p 296)16

Roma que

desde as suas origens jaacute se relacionava com outros povos tornou-se entatildeo um domiacutenio

multicultural17

Do tema de pesquisa

Vimos que Roma ampliou seus territoacuterios atraveacutes das conquistas obtendo terras

e matildeo de obra para os latifuacutendios aleacutem de receitas com tributos e aumento do seu

territoacuterio18

Sobre esses escravos obtidos em conquistas militares jaacute Bloch e Cousin

(1964 p 123) afirmaram que ―( ) Luacuteculo Muren Serviacutelio Pompeio vatildeo enviar do

Oriente verdadeiros carregamentos de homens entre os anos 80 e 63 Ceacutesar passa por ter

16

Mencionamos anteriormente vaacuterias conquistas que foram realizadas durante o periacuteodo da Repuacuteblica

romana Ao falar de impeacuterio estamos considerando aqui o sentido de conquista e dominaccedilatildeo dos romanos

perante outros povos e natildeo a forma de governo iniciada por Otaacutevio Augusto 17

No capiacutetulo 2 deste trabalho voltaremos ao tema da conquista romana bem como ao processo de

romanizaccedilatildeo de forma mais profunda 18

A discussatildeo sobre os motivos que impulsionaram as conquistas de Roma natildeo se esgota apenas nessa

justificativa econocircmica aprofundaremos m is esse ssunto di nte no subc piacutetulo 2 1 2 intitul do ―o

romano como o povo-rei e justific tiv ideoloacutegic d exp nsatildeo imperi list

17

trazido das suas campanhas consoante os autores 150000 400000 e mesmo um

milhatildeo de prisioneiros este recrut mento contiacutenuo de g dolsquo hum no desafia todo o

numer mento T mbeacutem sobre o genociacutedio dos g uleses C nfor (2002 p 157) firm

que ― Gaacuteli o mundo ceacuteltico foi dess form com violecircnci e o genociacutedio

mergulh d no circuito d civiliz ccedilatildeolsquo rom n Muito se f l sobre exp nsatildeo do

impeacuterio romano mas ao ler as citaccedilotildees anteriores temos uma ideia de quatildeo violento esse

processo foi

No tocante aos gauleses diferem os discursos e escritos tanto os antigos quanto

os contemporacircneos Aleacutem da miscelacircnea de fontes antigas temos ainda o preconceito de

estudiosos da aacuterea que agraves vezes valorizam a supremacia greco-romana em detrimento

de outras culturas Sobre esse aspecto temos um exemplo neste trecho escrito por

Anderson (1982 p 67)

A Espanha e a Gaacutelia e mais tarde a Noacuterica a Reacutetia e a Bretanha eram terras

remotas e primitivas povoadas por comunidades tribais celtas muitas delas

sem qualquer contacto histoacuterico com o mundo claacutessico A sua integraccedilatildeo

neste levantou problemas de ordem completamente diversa dos da

helenizaccedilatildeo do Proacuteximo Oriente Tratava-se natildeo somente de povos social e

culturalmente atrasados mas de regiotildees interiores de um tipo que a

Antiguidade claacutessica fora ateacute entatildeo incapaz de organizar economicamente

O utor firm cim que os povos baacuterb ros er m ―social e culturalmente

tr s dos De cordo com outros pesquis dores n verd de os g uleses natildeo seri m tatildeo

atrasados como Anderson escreveu No livro Roma e o seu destino por exemplo Bloch

e Cousin (1964 p 234) afirmam o seguinte sobre os gauleses na eacutepoca da conquista

romana

Os gauleses conhecem com efeito os processos de heranccedila e de estremas a

venda em leilatildeo o dote da mulher uma espeacutecie de vassalidade comparaacutevel agrave

clientela romana ateacute mesmo a escravidatildeo o arrendamento da cobranccedila de

impostos taxas pesagens e postagens os seus sistemas econoacutemicos e sociais

que eram os que tinham servido de base aos Celtas de Hallstatt e de La Tegravene

serviratildeo aos Romanos conquistadores para estabelecer sobre uma aristocracia

fundiaacuteria jaacute em contacto com as civilizaccedilotildees danubiana renana oceacircnica e

mediterracircnea em resultado das migraccedilotildees e das osmoses o seu poder e a sua

propaganda

Desde a Antiguidade era comum que esses povos fossem por vezes retratados

como oriundos de um c tegori civiliz cion l ―inferior agrave dos rom nos A p l vr

baacuterbaro que para os gregos e romanos designava os povos estrangeiros depois se

18

tornou sinocircnimo de falta de civilizaccedilatildeo selvageria crueldade Os pesquisadores

Delaplace e France (2011 p 43) a esse respeito escrevem

De mecircme llsquoim ge ethnique du G ulois se nourriss it plus volontiers de

clicheacutes que de connaissances positives Le Gaulois eacutetait un Barbare

quelqulsquoun qulsquoon ne comprend p s et qui est eacutetr nger ux bienf its comme

aux exigences de la civilisation Les Romains comme les Grecs nlsquo v ient

sans doute pas de preacutejugeacutes raciaux mais leurs a priori culturels eacutetaient

exclusifs Cette infeacuterioriteacute culturelle conditionn it llsquoinfeacuterioriteacute mor le du

Barbare sa cruauteacute sa sauvagerie et le caractegravere primitif de ses structures

eacuteconomiques sociales et politiques Ce peu de consideacuteration pour le monde

b rb re en geacuteneacuter l explique llsquo bsence de scrupules et llsquo rrog nce dont les

Rom ins f is ient preuve agrave llsquoeacuteg rd des provinci ux ( ) Cette ttitude eacutet it

heacuteriteacutee des topoi de llsquoethnogr phie grecque depuis Heacuterodote m is elle doit

ecirctre nuanceacutee et eacutevolua certainement au contact des realiteacutes et agrave cause du

nombre de plus en plus important de non-Rom ins d ns llsquoEmpire On ne

trouve pas chez Ceacutesar ou chez Tacite la mecircme veacuteheacutemence et le mecircme meacutepris

vis-agrave-vis des Gaulois voire des Germains Ils leur reconnaissent des qualiteacutes

et l c p citeacute de slsquo d pter ux modegraveles culturels de Rome Ceacutes r estime

dlsquo illeurs qulsquoil pouv it y voir des degreacutes d ns l b rb rie comme ceux qulsquoil

eacutetablit entre Gaulois Belges et Germains19

O que nos propomos a fazer nesta pesquisa eacute justamente estudar a fundo alguns

registros antigos sobre os gauleses como eles eram representados e de como se operava

essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada nos autores romanos do

corpus escolhido imagem essa que poderia ser bastante complexa jaacute que nem sempre

os baacuterb ros er m retr t dos como os ―vilotildees Empreg remos s seguintes fontes p r

anaacutelise da representaccedilatildeo do gaulecircs em nossa pesquisa o De bello Gallico (Sobre a

guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito Liacutevio e

a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho20

19

―Do mesmo modo im gem eacutetnic do g ulecircs se sustent v m is com clichecircs do que com

conhecimentos positivos O gaulecircs era um baacuterbaro algueacutem que natildeo era compreendido e que era alheio

aos benefiacutecios como requisitos da civilizaccedilatildeo Os romanos assim como os gregos sem duacutevida natildeo

possuiacuteam preconceitos raciais mas a priori esses preconceitos eram exclusivamente culturais Essa

inferioridade cultural constituiacutea a inferioridade moral do baacuterbaro sua crueldade sua selvageria e o caraacuteter

primitivo de suas estruturas econocircmicas sociais e poliacuteticas Essa consideraccedilatildeo sobre o mundo baacuterbaro em

geral explica a ausecircncia de escruacutepulos e a arrogacircncia dos romanos perante os provincianos () Essa

atitude eacute herdeira dos toacutepoi da etnografia grega desde Heroacutedoto mas ela foi atenuada e certamente

evoluiu em contato com as realidades e tambeacutem devido ao nuacutemero cada vez mais importante de natildeo

romanos dentro do impeacuterio Natildeo se encontrou em Ceacutesar ou em Taacutecito a mesma veemecircncia e desprezo

perante os gauleses ateacute mesmo os germanos Eles reconheceram as qualidades deles e a sua capacidade

de se adaptar aos modelos culturais de Roma Ceacutesar aleacutem disso considerou que poderia haver gradaccedilotildees

dentro da barbaacuterie como aquelas que ele estabeleceu entre g uleses belg s e germ nos 20

Do trabalho de Ceacutesar temos no Brasil pesquisas recentes mais concentradas no De bello ciuili do que

no De bello Gallico Desse uacuteltimo temos uma traduccedilatildeo do seacuteculo XIX feita pelo maranhense Francisco

Sotero dos Reis Sobre o tema relacionado agrave Gaacutelia temos tambeacutem a dissertaccedilatildeo de mestrado de Diego

Verissimo Oliveira sobre o perfil de Vercingetoacuterige em Ceacutesar do ano de 2008 Quanto a Tito Liacutevio os

estudos atuais concentram-se mais em aspectos poliacuteticos ou historiograacuteficos romanos Temos por

exemplo a tese de doutorado de Juliana Bastos Marques sobre renovaccedilatildeo da identidade romana em Liacutevio

e Taacutecito (2007) de Marco Antonio Collares haacute um livro sobre representaccedilotildees do senado romano em

19

Escolhemos Ceacutesar porque em se tratando de gauleses sua obra eacute fundamental

para esse estudo21

Durante seus nove anos de campanha na Gaacutelia ele penetrou em um

territoacuterio alheio em um universo ateacute entatildeo desconhecido e temido pelos romanos Ceacutesar

aprendeu a conhecer os diferentes graus de ferocitas a diversidade de povos ceacutelticos e

de tribos germacircnicas e observou a instabilidade poliacutetica e social dos gauleses e tambeacutem

sua cultura e sua bravura (DAUGE 1981 p 93) Apesar de autores gregos como

Poliacutebio22

jaacute terem escrito sobre os celtas na verdade eacute de Ceacutesar que temos um relato

mais detalhado (o primeiro em liacutengua latina) e mais aprofundado23

Alguns autores

gregos jaacute escreveram sobre os gauleses antes de Ceacutesar mas nunca tiveram contato

duradouro com esse povo Nas palavras de Gruen (2011a p 141) temos

That corpus offers an invaluable entrance to a critical subject the mode of

representing to a Roman readership a foe with a long history of hostility and

one that had recently claimed many Roman lives while straining the

manpower and resources of the nation for several bloody years24

Sobre Tito Liacutevio um traccedilo essencial de sua obra Ab urbe condita tambeacutem

conhecida por Histoacuteria romana eacute a preocupaccedilatildeo em retratar o romano como um povo

que vence os baacuterbaros ao longo de vaacuterios seacuteculos de luta A esse respeito Dauge (1981

p 170) firm que ―les 142 livres de cette veacuterit ble eacutepopeacutee en prose dont l richesse

slsquoordonne en structures rigoureuses eacutetaient destineacutes agrave illustrer le geacutenie romain et agrave

retr cer les luttes du premier peuple du mondelsquo contre l b rb rie au cours des

Liacutevio (2010) A respeito de Pliacutenio as pesquisas realizadas no Brasil atualmente concentram-se em

aspectos bioloacutegicos da Historia naturalis Destacamos aqui dentre outros trabalhos o artigo de Roberto

de Andrade Martins sobre descriccedilatildeo das aves em Aristoacuteteles e Pliacutenio (2006) e ainda o artigo de Ana

Thereza Basilio Vieira que trata do conceito de natureza em Pliacutenio (2010) 21

Todavia em maior ou menor grau os comentaacuterios de Ceacutesar possuem distorccedilotildees histoacutericas com a

finalidade de propaganda para a sua ascensatildeo ao poder Falaremos mais sobre essa questatildeo no capiacutetulo 2

deste trabalho 22

Desde o seacuteculo IV aC temos relatos gregos sobre os povos da Gaacutelia sobretudo de Massalia (hoje

Marselha) Momigliano (1991 p 57 a 60) faz um levantamento de todos os autores gregos (antes do

domiacutenio de Roma) que mencionaram os gauleses 23

De fato Catatildeo o Censor jaacute tivera contato com os celtiberos em 195 aC quando se dirigiu para a

Hispacircnia a fim de estabelecer a administraccedilatildeo romana durante seu consulado Momigliano (1991 p 63)

resume de forma exemplar a experiecircncia de Catatildeo com os celtiberos e afirma que ele foi o primeiro

romano a demonstrar maior interesse sobre os gauleses Infelizmente de toda a obra de Catatildeo atualmente

possuiacutemos apenas fragmentos e pouco pode ser depreendido desse material 24

―Esse corpus oferece um inestimaacutevel entrada para um assunto criacutetico o modo de representar ao leitor

romano um inimigo com uma longa histoacuteria de hostilidade e que ateacute recentemente reivindicou muitas

vidas romanas enquanto constringia a matildeo-de-obra e recursos da naccedilatildeo por muitos anos sangrentos

20

siegravecles 25

No livro V por exemplo Liacutevio narrou os primeiros contatos entre romanos e

gauleses e tambeacutem o saque de Roma por estes uacuteltimos

Quanto a Pliacutenio em sua vasta obra enciclopeacutedica o autor mencionou uma

enorme quantidade de povos das mais variadas regiotildees O autor tambeacutem se preocupou

em retratar a ferocitas (ferocidade) baacuterbara mas foi aleacutem descreveu os haacutebitos

culturais a diversidade dos costumes alguns aspectos de alimentaccedilatildeo a constituiccedilatildeo

fiacutesica dos indiviacuteduos e a vida social desses povos (dentre eles os gauleses)

Consideramos portanto que esse relato bastante heterogecircneo seja de grande interesse

para o tema de nossa pesquisa jaacute que mostra um ponto de vista diferente do gaulecircs

retratado em histoacuterias de campanhas militares e guerras Um exemplo que temos desse

ponto de vista diverso eacute que Pliacutenio chegou a elogiar a forma como os gauleses fiavam a

latilde em Historia naturalis VIII 73 Ceacutesar (BGall VII 22) tambeacutem fez uma descriccedilatildeo

menos estereotipada dos gauleses e elogiou a forma como eles se defendiam do asseacutedio

dos romanos ao dizer

Singulari militum nostrorum uirtuti consilia cuiusque modi Gallorum

occurrebant ut est summae genus sollertiae atque ad omnia imitanda et

efficienda quae ab quoque traduntur aptissimum Nam et laqueis falces

auertebant quas cum destinauerant tormentis introrsus reducebant et

aggerem cuniculis subtrahebant eo scientius quod apud eos magnae sunt

ferrariae atque omne genus cuniculorum notum atque usitatum est Totum

autem murum ex omni parte turribus contabulauerant atque has coriis

intexerant Tum crebris diurnis nocturnisque eruptionibus aut aggeri ignem

inferebant aut milites occupatos in opere adoriebantur et nostrarum turrium

altitudinem quantum has cotidianus agger expresserat commissis suarum

turrium malis adaequabant et apertos cuniculos praeusta et praeacuta

materia et pice feruefacta et maximi ponderis saxis morabantur moenibusque

adpropinquare prohibebant

Ao singular valor dos nossos soldados opunham-se os projetos de todo tipo

dos gauleses pois satildeo um povo de enorme habilidade e muito apto a imitar e

praticar as invenccedilotildees alheias Na verdade natildeo soacute desviavam as foices com

laccedilos mas como as prendessem de novo impeliam-nas para dentro com

maacutequinas eles tambeacutem muito habilmente destruiacuteam o talude26

atraveacutes de

cavas porque eles dispunham de grandes jazidas de ferro e todo tipo de

escavaccedilotildees eacute conhecido e utilizado por eles Aleacutem disso de todos os lados os

gauleses guarneceram o muro com torres de taacutebuas e as cobriram com peles

Depois com frequentes saiacutedas de dia ou de noite ora incendiavam o talude

25

―Os 142 livros dess verd deir epopei em pros d qu l riquez se orden em estrutur s rigoros s

er m destin dos ilustr r o gecircnio rom no e retr t r s lut s do ―primeiro povo do mundo contr

b rbaacuterie o longo dos seacuteculos 26

O talude (agger) consistia em um caminho elevado criado a partir da terra retirada do fosso Em cercos

como na situaccedilatildeo descrita nesse trecho o talude era um aterro feito para tentar invadir uma fortificaccedilatildeo

em sua extremidade os romanos construiacuteam torres moacuteveis de madeira para facilitar a passagem das

muralhas As cavas (cunniculi) eram passagens subterracircneas feitas sob o talude que permitiam minar a

base do muro inimigo Para mais detalhes sobre engenharia militar cf Bornecque e Mornet (2002 p 119

a 123) Tambeacutem sobre esse assunto o Compecircndio da arte militar de Vegeacutecio fornece detalhes preciosos

21

ora atacavam os soldados ocupados nas manobras tambeacutem eles igualavam a

altura das nossas torres juntando os postes das suas quanto o talude a cada

dia as elevara Eles fechavam as cavas abertas com madeira queimada e

pontuda pez fervente e pedras de enorme peso e impediam-nos a

aproximaccedilatildeo das muralhas

Evidentemente ao longo de toda a literatura latina os galos apareceram em

vaacuterios textos historiograacuteficos e de outros gecircneros de composiccedilatildeo Em nossa pesquisa

achamos menccedilatildeo aos celtas e gauleses em autores como Catulo (poemas 37 e 39)

Saluacutestio (Bellum Iugurthinum 114) Valeacuterio Maacuteximo (Facta et dicta memorabilia II 6

e III 2) Virgiacutelio (Aeneis VIII 656) Oviacutedio (Amores I 15 e Fasti IV 361) Lucano

(Bellum ciuile IV 10) Amiano Marcelino (Rerum gestarum XV 12 1) dentre outros

Restringimos nosso corpus a Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho devido ao recorte

temporal do seacuteculo I aC a I dC que coincide com a conquista da Gaacutelia e o

estabelecimento de proviacutencias romanas nesse territoacuterio Aleacutem disso nos concentramos

nesses trecircs autores pois os consideramos inseridos no gecircnero historiograacutefico ndash embora

Pliacutenio seja considerado por muitos como enciclopedista julgamos que a Historia

naturalis possa ser incluiacuteda na historiografia pois Pliacutenio a escreveu com finalidades de

pesquisa e compilaccedilatildeo de conhecimento

Da traduccedilatildeo e estudo

Foram os gregos em nossa zona de cultura os primeiros a desenvolverem o

conceito de baacuterbaro Para eles baacuterbaro simbolizava tudo aquilo que natildeo fosse grego

existindo assim uma oposiccedilatildeo eacutetnica cultural e linguiacutestica27

Com o tempo esse

conceito passou a ser revestido de julgamentos de valor nos quais os baacuterbaros eram

considerados inferiores aos helecircnicos Gruen (2011a p 2) resume bem esse conceito

The line of reasoning has had a potent impact on scholarship regarding

antiquity Negative images misrepresentations and stereotypes permitted

ncients to invent the ―Other thereby justifying marginalization

subordination and exclusion Creation of the opposite served as a mean to

establish identity distinctiveness and superiority28

27

Dauge na introduccedilatildeo de seu livro Le Barbare (1991 p 10 e 11) aborda de forma abrangente a

experiecircncia grega com o estrangeiro ao longo de sua histoacuteria 28

―A linh de r ciociacutenio teve um potente imp cto no estudo sobre ntiguid de Im gens neg tiv s

deturpaccedilotildees e estereoacutetipos permitir m os ntigos invent r o Outrolsquo dessa forma justificando a

marginalizaccedilatildeo a subordinaccedilatildeo e a exclusatildeo A criaccedilatildeo do antagocircnico serviu como meio para estabelecer

identid de distinccedilatildeo e superiorid de

22

Gruen (2011a p 344 e 345) destaca que os romanos natildeo possuiacuteam tradiccedilotildees que

preconizavam uma pureza de linhagem nem sequer tinham um eacutetimo especiacutefico para

designar o natildeo romano ndash de fato eles buscaram no grego a noccedilatildeo de estrangeiro inserida

no termo baacuterbaro A identidade helecircnica se definia em fundamentos eacutetnicos culturais e

genealoacutegicos a identidade romana por sua vez se estabelecia especialmente em

pressupostos culturais e poliacuteticos como veremos a seguir Contudo a experiecircncia

romana com os estrangeiros foi diferente da vivecircncia que os gregos tiveram com outros

povos

Roma desde os primoacuterdios e durante toda a sua histoacuteria teve contato com outros

povos e os conquistou seja no Ocidente europeu seja no Oriente Roma lutou contra

esses estrangeiros e durante muito tempo conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto

impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave

civilizaccedilatildeo romana ocidental Dessa forma o contato dos romanos com povos

considerados baacuterbaros foi mais duradouro e profundo do que o contato que os gregos

tiveram com os povos externos Dauge (1981 p 18 e 19) assim falou sobre a

experiecircncia do romano perante o estrangeiro

( ) le concept de b rb rie ne concerne p s uniquement llsquoexteacuterieur les gentes

ou nationes exterae mais se trouve eacutetroitement mecircleacute agrave son activiteacute ndash

politique social eacutethique religieux artistique etc Ayant ducirc combat pour

maicirctriser la violence et la deacutemesure inheacuterentes agrave son tempeacuterament ayant

longuement reacutefleacutechi sur llsquoessence de l civilis tion et const mment lutteacute pour

eacuteviter le reproche de barbarie et se rendre digne dlsquoecirctre reconnu comme le

civilis teur il beacuteneacuteficieacute dlsquoune expeacuterience personnelle uthentique de l

nature de la barbarie et de ses dangers Aussi deacutepasse-t-il aiseacutement le point de

vue strictement ethnique ou national qui fut celui des Grecs pour eacutelargir la

notion de b rb rie ux dimensions de llsquouniversel (grifos do autor) 29

Nesta tese pretendemos aprofundar o estudo do conceito de baacuterbaro e de como

se operava a dicotomia romanobaacuterbaro na Antiguidade latina nos relatos

historiograacuteficos Esse tema seraacute tratado no capiacutetulo 1 bem como falaremos das fontes

greco-latinas que abordaram os galos entre os seacuteculos III e I dC Temos tambeacutem por

objetivo estudar a representaccedilatildeo do povo gaulecircs agrave luz dos escritos de Ceacutesar Tito Liacutevio e

29

―( ) o conceito de b rbaacuterie natildeo se plic unic mente o exterior agraves gentes ou agraves nationes exterae mas

se encontra ligado estreitamente agrave sua atividade ndash poliacutetica social eacutetica religiosa artiacutestica etc Tendo o

combate para controlar a violecircncia e o excesso inerentes ao seu temperamento tendo longamente pensado

sobre a essecircncia da civilizaccedilatildeo constantemente lutado para evitar a degradaccedilatildeo da barbaacuterie e se tornar

digno de ser reconhecido como o civilizador que se beneficiou de uma experiecircncia pessoal autecircntica

sobre a natureza da barbaacuterie e os seus perigos Tambeacutem isso facilmente ultrapassa o ponto de vista

estritamente eacutetnico ou nacional que foi o dos gregos para alargar a noccedilatildeo de barbaacuterie agraves dimensotildees do

universal

23

Pliacutenio o Velho Concentraremos nosso estudo nos gauleses jaacute que a seu respeito

possuiacutemos fontes antigas mais bem documentadas do que por exemplo sobre os povos

da Ibeacuteria Aleacutem disso os gauleses foram um dos povos que mais resistiram agrave conquista

romana e soacute foram subjugados apoacutes vaacuterias tentativas e confrontos sangrentos podendo

desse modo exemplificar com excelecircncia o contato com a alteridade Quanto aos

trechos especiacuteficos dos autores latinos que compotildeem o corpus deste trabalho tecircm-se

estas passagens

De bello Gallico de Ceacutesar

Livro I ndash 1 (descriccedilatildeo da Gaacutelia) 31 (Diviciacuteaco se queixa do asseacutedio do

germano Ariovisto) 33 (Ceacutesar ao perceber o perigo dos germanos promete

socorrer os gauleses)

Livro II ndash 4 (descriccedilatildeo da origem dos belgas) 15 (Ceacutesar se prepara para lutar

com os neacutervios)

Livro IV ndash 5 (Ceacutesar desconfia dos gauleses que satildeo inconstantes) 12 (os

germanos atacam a cavalaria de Ceacutesar morte do aquitano Pisatildeo)

Livro VI ndash 11 13 14 15 16 18 19 (passagem de maior interesse

conhecid como ―etnogr fi descriccedilatildeo dos costumes dos g uleses) 21 22

(costumes dos germanos) 24 (o valor dos gauleses passou para os

germanos)

Livro VII ndash 22 (defesa dos gauleses sitiados pelos romanos) 42 (os eacuteduos

massacram os romanos)

Ab urbe condita de Tito Liacutevio

Livro V ndash 34 35 36 37 38 39 41 42 48 (passagem de grande interesse

pois narra os primeiros contatos entre romanos e gauleses e o saque de

Roma em 390 aC)

Livro VII ndash 10 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Tito Macircnlio

e um gaulecircs) 26 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Marco

Valeacuterio e um gaulecircs)

24

Livro XXIII ndash 24 (os gauleses preparam armadilhas contra Roma que sofre

derrota para os gauleses ao optar por se dedicar mais agrave guerra contra

Cartago)

Livro XXXVIII ndash 17 (migraccedilatildeo dos gauleses para a Aacutesia Menor e o

surgimento da Galaacutecia vitoacuteria dos romanos sobre os gaacutelatas)

Historia naturalis de Pliacutenio o Velho

Livro III ndash 5 (descriccedilatildeo geograacutefica da Gaacutelia Narbonense) 6 (elogio da Itaacutelia

e o papel de Roma governante do mundo)

Livro IV ndash 31 32 33 (descriccedilotildees geograacuteficas da Gaacutelia Beacutelgica da Gaacutelia

Lugdunense e da Gaacutelia Aquitacircnia)

Livro VIII ndash 73 (Pliacutenio admira o jeito como os gauleses fazem a latilde)

Livro XXX ndash 4 (descriccedilatildeo dos druidas das proviacutencias gaulesas)

Livro XXXIII ndash 5 (a respeito de como os gauleses utilizavam o ouro como

ornamento)

Para todos esses trechos empregaremos os textos latinos estabelecidos pela

Socieacuteteacute dlsquoEacutedition Les Belles Lettres e f remos tr duccedilatildeo de todo o corpus para nos

debruccedilarmos sobre os originais Aleacutem disso todas as demais citaccedilotildees de textos latinos

complementares deste trabalho tambeacutem teratildeo traduccedilotildees nossas salvo quando vierem

com referecircncia de outro tradutor Visamos em nossa transposiccedilatildeo ao leitor que natildeo

conhece a liacutengua ou a literatura latina Manteremos a traduccedilatildeo em prosa e procuraremos

sempre nos manter o mais proacuteximo possiacutevel do sentido dos trechos originais Todavia

satildeo necessaacuterias certas adaptaccedilotildees para que a traduccedilatildeo em portuguecircs possa manter o

sentido e transmitir mais claramente a mensagem do texto latino Para Roacutenai (1981 p

78) todo texto eacute alguma coisa mais do que simples soma das palavras que o compotildeem

O que devemos traduzir eacute sempre algo mais isto eacute a mensagem Faremos tambeacutem o uso

das notas de rodapeacute para pontuar aspectos que natildeo poderiam ser facilmente inseridos na

proacutepria traduccedilatildeo ou ainda para esclarecer quanto a elementos histoacutericos estiliacutesticos etc

Sobre a abreviatura dos nomes de obras gregas e latinas seguiremos os paracircmetros dos

dicionaacuterios A Greek-English Lexicon (LIDDEL SCOTT JONES 1996) e Oxford Latin

Dictionary (GLARE 1982) respectivamente

25

Nessa anaacutelise das passagens latinas veremos como se estrutura a retoacuterica de

representaccedilatildeo do gaulecircs em cada um desses autores latinos Hartog em seu livro O

espelho de Heroacutedoto define bem certos mecanismos retoacutericos de identificaccedilatildeo do outro

e tambeacutem de si mesmo30

Embora analise as Histoacuterias sua pesquisa sobre a retoacuterica de

alteridade tambeacutem poderia estender-se a outros autores que natildeo Heroacutedoto Destacamos

aqui o seguinte trecho no qual Hartog (1999 p229) afirma

Dizer o outro eacute enunciaacute-lo como diferente - eacute enunciar que haacute dois termos a

e b e que a natildeo eacute b Por exemplo existem gregos e natildeo-gregos Mas a

diferenccedila natildeo se torna interessante senatildeo a partir do momento em que a e b

entram num mesmo sistema Natildeo se tinha antes senatildeo uma pura e simples

natildeo-coincidecircncia Daiacute para a frente encontramos desvios portanto uma

diferenccedila possiacutevel de ser assinalada e significativa entre os dois termos Por

exemplo existem gregos e baacuterbaros Desde quando a diferenccedila eacute dita ou

transcrita torna-se significativa jaacute que eacute captada nos sistemas da liacutengua e da

escrita Comeccedila entatildeo esse trabalho incessante e indefinido como os das

ondas quebrando na praia que consiste em levar do outro ao proacuteprio (grifos

do autor)

Como cit do n not cim H rtog firm que ―dizer o outro eacute enunciaacute-lo como

diferente Eacute just mente ess m neira de se referir ao outro no caso o gaulecircs que seraacute

objeto de estudo desse trabalho Ceacutesar seraacute o objeto principal de nossa pesquisa pela

extensatildeo e importacircncia da obra sobre a guerra da Gaacutelia e por ter sido o primeiro a ter

contato direto com os gauleses31

Por conseguinte o capiacutetulo 2 seraacute dedicado a Ceacutesar e

ao De bello Gallico igualmente nesse capiacutetulo trataremos do contexto histoacuterico em que

se deu a conquista da Gaacutelia aleacutem de uma discussatildeo sobre questotildees de romanizaccedilatildeo e

subjugaccedilatildeo de um novo territoacuterio De fato o De bello Gallico aleacutem de interessar pelo

tipo de composiccedilatildeo feita por Ceacutesar32

encerra ainda vaacuterias informaccedilotildees importantes

como a passagem etnograacutefica do livro VI que detalha os costumes dos gauleses

Veremos quais as fontes empregadas por Ceacutesar para compor essa obra e tambeacutem como

30

Tambeacutem sobre esse tema recomendamos o livro de Hall Ethnic identity in Greek antiquity (1997) 31

Jaacute mencionamos o contato de Catatildeo o Censor com os celtiberos na nota n22 (p 19) mas dele temos

apenas fragmentos Por isso consideramos Ceacutesar o primeiro a ter contato direto com os gauleses jaacute que

seu relato foi mais bem preservado 32

Ceacutesar levou o commentarius (usado apenas como anotaccedilotildees raacutepidas que depois seriam refinadas) a

outro patamar A esse respeito Conte (1999 p226) afirma ―Both Cicero (Brutus 262) and Hirtius in the

preface to the eighth book of the De bello Gallico spe k of C es rlsquos Commentarii as a work written to

offer to other histori ns the m teri l out of which to construct their own n rr tive (hellip) Cicero nd Hirtius

himself emphasize that no one would have dared to attempt to rewrite what Caesar had already said with

incomparable simplicity In f ct C es rlsquos ttitude m y h ve conce led cert in trickery bene th the

humble clothing the commentarius as he conceived and practiced it probably came close to historia

26

a retoacuterica e a ideologia influenciam em razoaacutevel medida o De bello Gallico33

Ao final

do capiacutetulo 2 traremos o estudo dos trechos especiacuteficos de Ceacutesar levando em

consideraccedilatildeo os argumentos e o vocabulaacuterio empregado por ele para as suas

representaccedilotildees dos galos destacando alguns dos frequentes adjetivos usados para

descrevecirc-los como ferox hostilis barbarus etc Examinaremos ainda as recorrentes

figuras representativas como por exemplo o clicheacute de retratar os gauleses como

homens altos fortes e corajosos poreacutem natildeo muito inteligentes ou confiaacuteveis (DAUGE

1981 p 20) o interesse dos celtas por cultura e erudiccedilatildeo atraveacutes do papel dos druidas

a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos dentre outros aspectos culturais A seguir no capiacutetulo

3 falaremos sobre o momento histoacuterico da ascensatildeo de Augusto e enfocaremos Tito

Liacutevio e Pliacutenio o Velho bem como trataremos dos aspectos literaacuterios de Ab urbe condita

e Historia naturalis Ao final do subcapiacutetulo dedicado a Liacutevio traremos os trechos de

sua obra e do mesmo modo assim o faremos com Pliacutenio sendo cada passagem

analisada em termos literaacuterios e retoacutericos O foco por conseguinte seraacute a anaacutelise desses

discursos visando a uma discussatildeo dos argumentos vocabulaacuterio e figuras de linguagem

empregados pelos autores Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para descrever os gauleses No capiacutetulo

4 retomaremos alguns dos trechos jaacute citados ao longo dos capiacutetulos 2 e 3 para realizar o

estudo comparativo entre Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e os seus gecircneros de composiccedilatildeo

destacando os mecanismos retoacutericos da representaccedilatildeo dos gauleses entre os gecircneros de

composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Cabe aqui fazer

algumas consideraccedilotildees sobre a retoacuterica jaacute que ela eacute tratada ao longo de todo este

trabalho

Entendemos aqui a retoacuterica claacutessica em um sentido amplo de uma disciplina que

buscava um estudo unificado dos discursos (fossem eles pronunciados ou escritos) que

regulava a sua produccedilatildeo e delimitava limites sobre os gecircneros de composiccedilatildeo Aleacutem

disso como dest c Rezende (2009 p 16) retoacuteric possui ―especi l ecircnf se n su

funccedilatildeo de gerar um efeito praacutetico imediato mas previamente estabelecido e esperado

sobre aquele a quem se destin um discurso produzido P r se obter esse efeito

especiacutefico em um puacuteblico-alvo o discurso era regido por regras e normas de conduta

com finalidades especiacuteficas Aristoacuteteles em sua Retoacuterica estabeleceu esses gecircneros

discursivos que posteriormente foram seguidos por Ciacutecero e Quintiliano os grandes

33

De fato Ceacutesar escreve seu commentarius sobre a guerra gaulesa natildeo apenas para descrever seus feitos

mas especialmente como forma de propaganda de sua figura para rivalizar com o seu grande oponente

Pompeu Magno (CONTE 1999 p 229)

27

nomes desse tema em Roma Segundo o Estagirita havia trecircs gecircneros do discurso o

deliberativo (projetava uma accedilatildeo futura tem funccedilatildeo de aconselhar ou dissuadir o

puacuteblico para uma deliberaccedilatildeo) o juriacutedico (sua motivaccedilatildeo era um fato passado lidava

com acusaccedilatildeo ou defesa) e o epidiacutectico (tambeacutem conhecido por demonstrativo seu

tema era localizado especialmente no presente e consistia em fazer elogio ou

censura)34

Cada gecircnero portanto era dirigido a um puacuteblico especiacutefico dessa maneira

cada um possuiacutea traccedilos proacuteprios para se alcanccedilar os objetivos propostos Segundo

Tringali (1988 p 19) o ponto crucial da retoacuterica que a diferenciava das outras

disciplinas era a implicaccedilatildeo na existecircncia de um emissor (orador ou autor) um receptor

(audiecircncia ou leitor) e um discurso que apresentava uma questatildeo provaacutevel elaborada de

modo a persuadir o receptor sobre certa ideia ou conceito35

Por essa importacircncia em

contexto poliacutetico e judiciaacuterio o estudo da retoacuterica era parte essencial da formaccedilatildeo

(paideia) do cidadatildeo grego e posteriormente do cidadatildeo romano tambeacutem36

A retoacuterica claacutessica em contexto romano era dividida em cinco partes inuentio

(invenccedilatildeo) dispositio (disposiccedilatildeo) elocutio (enunciaccedilatildeo)37

memoria (memoacuteria) e actio

(accedilatildeo) Essas cinco partes formavam a ferramenta com a qual o emissor do discurso

estruturava sua composiccedilatildeo38

Como dest c Rezende (2009 p 25) ―eacute n praacutetic da

elocutio que por exemplo o or dor conform raacute o seu estilo su identid de or toacuteri

34

Cf Retoacuterica 1358b Na mesma passagem Aristoacuteteles destaca que a proacutepria retoacuterica era fundamentada

em trecircs elementos essenciais aquele que profere o discurso aquele que recebe esse discurso e o proacuteprio

discurso 35

Tringali (1988 p 20 e ss) aprofunda a questatildeo da persuasatildeo na retoacuterica antiga sobretudo em

Aristoacuteteles e tambeacutem sobre os mecanismos formais (persuasatildeo pela loacutegica pela afeiccedilatildeo ou pela esteacutetica)

e os mecanismos materiais (sofiacutestica analiacutetica e dialeacutetica) utilizados para esse fim 36

Os autores greco-romanos de fato como parte de uma elite letrada natildeo eram apenas testemunhas dos

fatos histoacutericos mas muitas vezes eram os proacuteprios agentes dos acontecimentos Para maior

aprofundamento sobre esse tema cf Marincola (In ERSKINE 2009 p 13) A paideia era importante

ferramenta na formaccedilatildeo moral oratoacuteria e literaacuteria desses indiviacuteduos como afirmou o proacuteprio Ciacutecero (cf

subcapiacutetulo 1321) De todas as personalidades que citamos neste trabalho Tuciacutedides Xenofonte

Poliacutebio Catatildeo Ciacutecero Ceacutesar e Pliacutenio desempenharam carreiras puacuteblicas importantes A exceccedilatildeo eacute Liacutevio

que natildeo ocupou nenhum cargo puacuteblico Para mais detalhes sobre o papel da retoacuterica tanto na vida literaacuteria

quanto na vida poliacutetica na tradiccedilatildeo helecircnic e l tin cf o c piacutetulo ―History nd rhetoric de Gr h m (In

BUGH 2006 p 113-135) 37

Como discute Rezende (2009 p 22) o vocaacutebulo elocuccedilatildeo embora muito utilizado natildeo traduziria

completamente o eacutetimo elocutio por isso assim como o professor tambeacutem adotamos a traduccedilatildeo desse

termo por enunciaccedilatildeo (ou seja a expressatildeo da palavra) que se aproxima mais do sentido original latino 38

Sobre cada uma dessas partes tem-se a invenccedilatildeo (coleta ou seleccedilatildeo do material que constituiraacute o

conteuacutedo do texto) a disposiccedilatildeo (colocaccedilatildeo de cada elemento do discurso em seu devido lugar ou seja a

organizaccedilatildeo do discurso) a enunciaccedilatildeo (ou elocuccedilatildeo que em uma definiccedilatildeo simplista consistia no ato de

compor o discurso escolha de vocabulaacuterio enfim o estilo) a memoacuteria (o equiliacutebrio entre decorar e

memorizar um discurso sobretudo em contexto de linguagem oral) e por fim a accedilatildeo (tambeacutem em

contexto de transmissatildeo oral de um enunciado consistia na forma como o orador proferia o seu discurso

para a audiecircncia) Natildeo nos aprofundamos muito nesta nota sobre o termo elocuccedilatildeo jaacute que ele seraacute tratado

mais detalhadamente no corpo do texto deste trabalho Para esse resumo utilizamos Tringali (1988 p 62

e ss) que discutiu essas cinco partes de forma bastante abrangente

28

Por conseguinte a elocutio no campo da literatura torna o discurso retoacuterico mais

eficiente ao assimilar as qualidades do texto literaacuterio constituindo-se ―num poderoso

mec nismo de cesso e consolid ccedilatildeo de um cultur ger l (REZENDE 2009 p 25)

Dessa maneira eacute atraveacutes da elocutio que as ideias satildeo expressas por meio de palavras

levando a figuras de linguagem conceitos e toacutepoi literaacuterios e culturais Por essa razatildeo

nosso objetivo aqui seraacute tratar sobretudo da elocutio jaacute que eacute a parte que consideramos

como essencial para desenvolver as anaacutelises sobre a figura do gaulecircs nos escritos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho Como destaca Rezende (2009 p 30) a civilizaccedilatildeo

rom n fez d retoacuteric ―um poderoso instrumento de ccedilatildeo soci l Embora a elocutio

seja o objetivo principal tambeacutem levaremos em conta nas anaacutelises a inuentio jaacute que a

seleccedilatildeo do material empregado por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio foi obtida a partir de fontes

literaacuterias que tambeacutem satildeo parte importante desta tese e tambeacutem porque de acordo com

a Retoacuteria a Herecircnio a proacutepria narraccedilatildeo eacute parte da inuentio39

Tambeacutem levaremos em

conta a dispositio uma vez que a ordem em que os argumentos foram empregados

dentro dessas obras eacute igualmente relevante

Atraveacutes desse estudo tambeacutem no capiacutetulo 4 perceberemos como foi se

modificando a imagem do gaulecircs ao longo dos seacuteculos I aC a I dC ndash e tambeacutem a

proacutepria mentalidade latina jaacute que esses discursos eram especialmente dirigidos a um

puacuteblico-alvo romano Veremos nesse mesmo capiacutetulo como as imagens figurativas do

gaulecircs surgiram e foram reelaboradas pelas fontes greco-romanas e por Ceacutesar Liacutevio e

Piacutenio o Velho Aleacutem dos autores antigos pesquisaremos tambeacutem a bibliografia

histoacuterica e arqueoloacutegica atual para resgatar o que se sabe hoje a respeito dos gauleses

da organizaccedilatildeo de suas sociedades e quais eram seus haacutebitos e costumes Ao fim do

trabalho traremos uma antologia biliacutengue dos trechos traduzidos do De bello Gallico

Ab urbe condita e Historia naturalis para maior facilitaccedilatildeo da leitura e do estudo

comparativo do corpus

39

Cf I34

29

Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas

11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas

romanitas

Como o termo baacuterbaro eacute parte importante deste trabalho faz-se necessaacuteria uma

apresentaccedilatildeo do que significava esse termo para os antigos gregos e romanos

O termo baacuterbaro eacute de origem grega Esse eacutetimo com a repeticcedilatildeo de barbar

seria uma onomatopeia que designaria quem tem dificuldade de elocuccedilatildeo de

pronunciaccedilatildeo que gagueja ou tem uma fala entrecortada (BEEKES 2010 p 201)

As primeiras descriccedilotildees que os gregos fizeram sobre outros povos e regiotildees

eram apenas relatos dos navegadores (periploi) e relatos creacutedulos de maravilhas de

terras distantes ateacute que no seacuteculo VI aC temos narrativas de pesquisas etnograacuteficas em

Heroacutedoto com suas Histoacuterias (VASALY 1993 p 146) Segundo Gauthier ateacute entatildeo o

termo μέλνο era mais utilizado no periacuteodo arcaico para designar na Greacutecia o

estrangeiro e tambeacutem o hoacutespede como podemos ver nas relaccedilotildees de hospitalidade

representadas nos poemas homeacutericos Gauthier (1973 p 5) poreacutem ressalta

Comme on s it llsquoopposition entre Grecs et non-Grecs nlsquoest nette ni chez

Homegravere ni agrave la peacuteriode archaiumlque elle apparaicirct peut-ecirctre au VIegraveme siegravecle

d ns llsquooeuvre dlsquoHeacutec teacutee et devient cour nte seulement u deacutebut du Vegraveme

siegravecle Aux peacuteriodes reculeacutees llsquo ire dlsquoextension de l μελία et de llsquoeacutetr nger-

μέλνο est donc elle aussi assez indeacutecise on en aperccediloit neacuteanmoins quelques

contours Chez Homegravere il faudrait distinguer autant que faire se peut le

monde mythique du monde reacuteel Dans le monde mythique la μελία est

pratiqueacutee par tous les peuples laquociviliseacutesraquo elle est absente chez les autres

appeleacutes ἄγξηνη ainsi les Cyclopes les Lestrygons40

Jaacute em Heroacutedoto μέλνο passou a designar no contexto helecircnico o proacuteprio grego

que habitava em outra cidade mas que compartilhava os mesmos deuses costumes e

idioma (GAUTHIER 1973 p 7) Jaacute o termo βάξβαξνο era usado para designar o natildeo

grego que natildeo partilhava da mesma cultura e liacutengua sem conotaccedilatildeo pejorativa41

A esse

40

―Como eacute s bido oposiccedilatildeo entre gregos e natildeo gregos natildeo eacute cl r nem em Homero nem no periacuteodo

arcaico ela aparece talvez no seacuteculo VI aC na obra de Hecateu e torna-se corrente somente no comeccedilo

do seacuteculo V Quanto aos periacuteodos remotos a aacuterea de extensatildeo da μελία e do estrangeiro eacute entatildeo ela

mesma bastante imprecisa contudo pode-se perceber alguns contornos Em Homero eacute necessaacuterio

distinguir tanto quanto possiacutevel o mundo miacutetico do mundo real No mundo miacutetico a μελία eacute praticada

por todos os povos ―civiliz dos el eacute inexistente p r os outros ch m dos ἄγξηνη como os ciclopes e os

lestrigotildees 41

Gruen no capiacutetulo ―Greeks and non-Greeks (In BUGH 2006 p 296) lembra que em Heroacutedoto a

divisatildeo entre gregos e natildeo gregos eacute sutil e complexa Gruen ressalta que Heroacutedoto demonstrou

30

respeito H rtog (2014 p 108) firm que ―em todo c so eacute entre o sexto e o quinto

seacuteculo C que baacuterb rolsquo no sentido de natildeo grego form ssoci do gregolsquo um

conceito antocircnimoassimeacutetrico acoplando um nome proacuteprio Heacutellenes e uma

designaccedilatildeo geneacuterica baacuterbaroi Ateacute entatildeo n liter tur rc ic baacuterbaro simplesmente

assinalava o estrangeiro sem qualquer conotaccedilatildeo negativa ou inferior e sem o valor de

distinguir entre categorias ou subgrupos42

Como Rochette ressalta (1997 p 37) as

populaccedilotildees que natildeo falam a liacutengua do paiacutes seratildeo reagrupadas sob a geneacuterica

denominaccedilatildeo de baacuterbaro para os egiacutepcios os que natildeo falavam a liacutengua egiacutepcia para os

romanos os que ignoravam o latim etc43

Para se pensar em uma identidade cultural proacutepria geralmente eacute necessaacuterio

definir esse conceito levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo ndash e o contraste ndash com o outro

Com as Guerras Meacutedicas no seacuteculo V aC o baacuterbaro para o grego assumiu o rosto do

persa Como Herring lembra (In ERSKINE 2009 p 129) a identidade grega

gradualmente tornou-se definida em termos de diferenccedila (e superioridade) perante o

baacuterbaro ndash especialmente o oriental essa nova identidade contrastante condenou o outro

como sendo decadente sacriacutelego e subserviente tudo o que os gregos (a seus proacuteprios

olhos) natildeo eram Dessa maneira se ser grego tornou-se sinocircnimo de ser civilizado o

contraacuterio tambeacutem valia pois o baacuterbaro tinha a caracteriacutestica oposta ndash era o primitivo

Com os conflitos dos gregos contra os persas tambeacutem surgiu uma visatildeo poliacutetica da

diferenciaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros jaacute que os gregos conheciam a poacutelis enquanto os

baacuterbaros ignorando-a natildeo podiam viver senatildeo submetidos a reis44

Segundo Hartog

(2014 p 111) o grego er ―poliacutetico isto eacute livre e o baacuterb ro er ―re l submisso um

senhor (deacutespotes) Os baacuterbaros natildeo escapavam ndash ou natildeo escapavam de forma duradoura

ndash da realeza O termo baacuterbaro tambeacutem passou a ter uma concepccedilatildeo marginalizada

segundo Champion (2004 p 34) eacute com a vitoacuteria grega sobre os persas que os

atenienses fomentaram a autoconfianccedila de terem vencido tatildeo forte inimigo e por

imparcialidade e ndash ateacute mesmo em certas passagens ndash admiraccedilatildeo pelas peculiaridades caracteriacutesticas e

realizaccedilotildees de povos natildeo gregos especialmente os egiacutepcios persas e feniacutecios 42

Gruen no mesmo capiacutetulo citado na nota cima (p 297 e ss) aprofunda mais a questatildeo das nuances da

utilizaccedilatildeo do termo baacuterbaro (ora pejorativo ora respeitoso) por parte de vaacuterios autores gregos do periacuteodo

claacutessico ateacute o contexto de dominaccedilatildeo romana 43

Rochette (1997 p 38 e ss) detalha o uso do termo baacuterbaro desde Homero e autores arcaicos passando

tambeacutem pela filosofia e trageacutedia ateacute o periacuteodo heleniacutestico 44

Nesse contexto de diferenciar o aspecto poliacutetico e cultural entre gregos e baacuterbaros estamos

considerando aqui como referencial os gregos de Atenas

31

conseguinte adotaram a noccedilatildeo cultural de que os gregos eram superiores aos outros

povos45

De fato durante o periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) as cidades gregas possuiacuteam

poucos laccedilos que as ligavam umas agraves outras sobretudo porque eram cidades-Estado

independentes As relaccedilotildees eram mais estreitas entre as famiacutelias e os indiviacuteduos

Embora as semelhanccedilas linguiacutesticas os ritos religiosos os deuses e a produccedilatildeo literaacuteria

fossem compartilhados as cidades-Estado como Champion (2004 p 33) ressalta

possuiacuteam organizaccedilatildeo variada padrotildees proacuteprios de pesos e medidas e calendaacuterio O

sentimento de pan-Helenismo era reforccedilado sobretudo em periacuteodos de guerra contra

inimigos externos em comum ndash como os proacuteprios persas ndash ou crise poliacutetica ndash como a

guerra do Peloponeso que motivou a mobilizaccedilatildeo das cidades-estado em alianccedilas

capitaneadas por Atenas e Esparta respectivamente (GAUTHIER 1973 p 14)46

Com os seacuteculos quarto e terceiro antes de Cristo se o par antocircnimo

gregosbaacuterbaros permaneceu em operaccedilatildeo para classificar e distinguir os gregos dos

outros povos sua definiccedilatildeo foi-se modificando com aspecto menos poliacutetico acentuou-

se claramente o lado cultural Com os reinos heleniacutesticos o contato entre gregos e

baacuterbaros aumentou consideravelmente e estereoacutetipos puderam ser contestados mas

tambeacutem muitos laccedilos culturais do que era ser grego puderam ser reforccedilados o processo

de assimilaccedilatildeo dos baacuterbaros comeccedilou mas de forma alguma acabou com essa distinccedilatildeo

cultural pelo contraacuterio ser grego talvez passou a ser mais importante nessa eacutepoca do

que nunca de acordo com Herring (In ERSKINE 2009 p 130)

Desde Heroacutedoto a identidade grega estava circunscrita por um conjunto de traccedilos

culturais (ao lado da comunidade de sangue)47

mas como sublinha Hartog (2014

p127) essa grecidade apresentava-se como algo que pode ser adquirido atraveacutes da

educaccedilatildeo ―haacute mestres ness m teacuteri (hellip) O que t is propoacutesitos nunci m eacute o universo

cultur l d eacutepoc heleniacutestic A paideia que primeiramente significava a criaccedilatildeo ou a

45

Resumimos aqui a questatildeo do tratamento do baacuterbaro em contexto grego jaacute que esse natildeo eacute o foco deste

trabalho Para estudo mais abrangente sobre o baacuterbaro na literatura grega recomendamos o livro de

Dejardin (2010) 46

Para discussatildeo mais profunda sobre a questatildeo do que era ser grego para os proacuteprios helenos

recomendamos o subcapiacutetulo ―Identity in the Greek World escrito por Herring (In ERSKINE 2009 p

126 a 130) Tambeacutem nesse mesmo livro Harrison aprofunda o tema da evoluccedilatildeo do conceito de grego

frente ao baacuterbaro ao longo do periacuteodo histoacuterico que vai desde as Guerras Meacutedicas ateacute o periacuteodo

heleniacutestico no seu capiacutetulo ―The Greeks (In ERSKINE 2009 p 213 a 221) 47

Em Heroacutedoto (Histoacuterias VIII 144) os atenienses em resposta aos espartanos deixaram claro que natildeo

se aliariam aos persas uma vez que eles partilhavam dos mesmos laccedilos culturais de Esparta ambas as

cidades-Estado cultuavam os mesmo deuses e possuiacuteam os mesmos ritos tinham a mesma identidade

linguiacutestica e racial e possuiacuteam haacutebitos e costumes similares

32

educaccedilatildeo de uma crianccedila jaacute no seacuteculo V aC tornou-se sinocircnimo de cultura sobretudo

a partir de Isoacutecrates a diferenccedila entre o grego e o baacuterbaro era antes de tudo um

problema natildeo de natureza mas de cultura Assim Isoacutecrates disse no discurso Panegiacuterico

(50)

ηνζνῦηνλ δ᾽ ἀπνιέινηπελ ἡ πόιηο ἡκλ πεξὶ ηὸ θξνλεῖλ θαὶ ιέγεηλ ηνὺο

ἄιινπο ἀλζξώπνπο ὥζζ᾽ νἱ ηαύηεο καζεηαὶ ηλ ἄιισλ δηδάζθαινη γεγόλαζη

θαὶ ηὸ ηλ Ἑιιήλσλ ὄλνκα πεπνίεθε κεθέηη ηνῦ γέλνπο ἀιιὰ ηῆο δηαλνίαο

δνθεῖλ εἶλαη θαὶ κιινλ Ἕιιελαο θαιεῖζζαη ηνὺο ηῆο παηδεύζεσο ηῆο

ἡκεηέξαο ἢ ηνὺο ηῆο θνηλῆο θύζεσο κεηέρνληαο

Nuestra ciudad aventajoacute tanto a los demaacutes hombres en el pensamiento y

oratoria que sus disciacutepulos han llegado a ser maestros de otros y ha

conseguido que el nombre de griegos se aplique no a la raza sino a la

inteligencia y que se llame griegos maacutes a los partiacutecipes de nuestra educacioacuten

que a los de nuestra misma sangre48

O termo grego portanto se aplicava mais para designar uma mentalidade do que

a uma questatildeo de raccedila ou naccedilatildeo Como Gruen frisa (In BUGH 2006 p 296) essa

afirmaccedilatildeo de Isoacutecrates indicava que a obtenccedilatildeo da grecidade era viaacutevel aos natildeo gregos

mas que poucos poderiam alcanccedilaacute-la Isoacutecrates escrevendo em apoio agrave cruzada pan-

helecircnica contra os persas manteve forte essa distinccedilatildeo

O traccedilo caracteriacutestico do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era explicado por

questotildees geograacuteficas Com Hipoacutecrates e seus preceitos de medicina abordados na obra

Sobre o ar aacuteguas e lugares do seacuteculo V aC entrou em voga a teoria geograacutefica na

qual o ambiente de algum modo determinava a constituiccedilatildeo fiacutesica e o caraacuteter das

pessoas que habitavam em aacutereas especiacuteficas do mundo conhecido ateacute entatildeo De acordo

com essa teoria fatores como a temperatura local a qualidade da aacutegua e a topografia da

regiatildeo determinariam as forccedilas e fraquezas de grupos que habitavam lugares diferentes

dessa forma pessoas de aacutereas quentes tenderiam a ser moles e lentas por outro lado

pessoas de aacutereas frias seriam fortes e corajosas poreacutem estuacutepidas49

Como Vasaly (1993

p 133) ressalta para cada cultura o mundo fora do territoacuterio natal era visto como uma

seacuterie de ciacuterculos concecircntricos nos quais o centro era o lugar mais civilizado e por

conseguinte as fronteiras distantes menos civilizadas Acreditava-se que no ―centro do

48

―Noss cid de superou t nto os dem is homens no pens mento e n or toacuteri que seus disciacutepulos se

tornaram mestres dos outros e conseguiu que o nome dos gregos se aplicasse natildeo agrave raccedila mas sim agrave

inteligecircncia e que se chame de gregos mais aos que participam da nossa educaccedilatildeo do que aos do nosso

proacuteprio s ngue Esse trecho foi retirado de Isoacutecrates (1979 v 1 p 212 e 213) 49

O livro de Borca (2003) detalha de forma profunda esses conceitos em Hipoacutecrates e outros autores da

Antiguidade greco-romana Abordaremos mais sobre como a teoria geograacutefica caracteriza o baacuterbaro no

c piacutetulo 4 ―Noacutes e os outros retoacuteric de representaccedilatildeo do celta

33

mundo o clima natildeo era tatildeo quente nem tatildeo frio e isso era uma condiccedilatildeo favoraacutevel para

um povo ser mais civilizado ndash no caso helecircnico do periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) os

gregos estariam no centro do mundo

Atraveacutes de toda essa tradiccedilatildeo helecircnica para a etnografia ndash que chegou a Roma

sobretudo via Poliacutebio e Posidocircnio ndash tal ideia tambeacutem passou a ser parte do contexto

romano Certamente os contemporacircneos de Ciacutecero consideravam habitar o centro do

mundo (VASALY 1993 p 133)50

Ainda de acordo com Vasaly (1993 p 144) a

importacircncia da obra Sobre o ar aacuteguas e lugares consistia no fato de a conexatildeo crucial

entre ethos e locus ou seja o jeito como a pessoa eacute e seu caraacuteter ser definido de acordo

com seu ambiente fiacutesico Esse tipo de relaccedilatildeo entre ethos e locus posteriormente tornou-

se parte dos toacutepoi de representaccedilatildeo do baacuterbaro

Ateacute entatildeo no periacuteodo claacutessico grego (seacuteculo V aC) a cultura helecircnica ficara

geograficamente concentrada na Greacutecia Com o Helenismo atraveacutes das conquistas de

Alexandre o Grande no seacuteculo IV aC a cultura grega se espalhou e fez contato com

outras civilizaccedilotildees (PERNOT 2005 p 57) Os ideais gregos e o tograve Hellenikoacuten

tornaram-se patrimocircnio literaacuterio que se compartilhava e que se ensinava (HARTOG

2014 p 141) Durante o Helenismo o pensamento grego a filosofia a retoacuterica e a

literatura se espalharam pelo mundo helenizado

Posteriormente ao Helenismo sob o contexto da ascensatildeo romana esse

pensamento helecircnico se difundiu por todo o mundo romanizado Sabemos que desde os

primoacuterdios Roma jaacute tivera contato com os gregos Pereira (1993 p 38) lembra que jaacute se

conhecem duzentos e trecircs vasos gregos dos anos 530 a 500 aC que confirmam

relaccedilotildees comerciais entre os dois povos Esse contato tornou-se regular quando no

seacuteculo III aC os romanos ampliaram seu domiacutenio geograacutefico para o sul da Itaacutelia

regiatildeo conhecida ateacute entatildeo como Magna Greacutecia Em 272 aC com a tomada de

Tarento Liacutevio Andronico foi levado a Roma e ateacute onde foi possiacutevel saber pelo que nos

restou da literatura dessa eacutepoca foi considerado como o fundador da literatura latina

com sua traduccedilatildeo da Odisseia Posteriormente com o ciacuterculo dos Cipiotildees no seacuteculo II

aC as altas esferas da sociedade romana passaram a ter ainda mais contato com a

cultura helecircnica o que acarretou em uma profunda contaminatio entre as literaturas e

50

Falaremos mais sobre Ciacutecero e a representaccedilatildeo de um povo baacuterbaro no caso o gaulecircs mais adiante no

subcapiacutetulo 132

34

costumes desses dois povos51

Depois disso os romanos ampliaram cada vez mais seu

domiacutenio em direccedilatildeo agrave Greacutecia e em 146 aC ela foi completamente subjugada Essa

aproximaccedilatildeo e o contato mais profundo entre romanos e gregos consolidou a proacutepria

civilizaccedilatildeo romana que se distanciava da barbaacuterie52

Oliveira fala em helenizaccedilotildees para

definir esse fenocircmeno de contato cultural entre romanos e gregos ndash de fato natildeo houve

um movimento contiacutenuo e geral de adoccedilatildeo dos costumes gregos (In BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 265) Os primeiros contatos foram muito antigos desde os

primoacuterdios de Roma como a arqueologia evidenciou Oliveira tambeacutem lembra que

―desde s m is remot s origens Rom bri -se agrave influecircncia grega de forma direta e

indireta e isso eacute visiacutevel de form p rticul r n religiatildeo como proacutepri doccedilatildeo de

deuses gregos no panteatildeo romano (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269)53

Pernot chega a usar o termo globalizaccedilatildeo no seu livro Rhetoric in Antiquity para falar

desse fenocircmeno Segundo o utor (2005 p 58) o termo ―glob liz ccedilatildeo p l vr muito

em voga hoje resume os avanccedilos e contato cultural daquela eacutepoca em que a retoacuterica se

tornou um sistema global pelo menos dentro do mundo greco-romano Apesar do livro

Rhetoric in Antiquity se referir agrave retoacuterica esse conceito de globalizaccedilatildeo defendido por

Pernot pode ser aplicado agrave literatura e tambeacutem ao proacuteprio conceito de baacuterbaro e o que

era considerado civilizado ou natildeo pelos romanos

Em Roma o contexto de contato entre povos baacuterbaros diferiu bastante da

realidade grega Embora Roma partilhasse certos aspectos com outras cidades do Laacutecio

(liacutengua religiatildeo costumes) existiu no periacuteodo arcaico o domiacutenio dos etruscos a

invasatildeo dos gauleses em Roma no ano de 390 aC aleacutem de outros inimigos que

habitavam do outro lado dos Alpes como os germanos Sobre o contato dos romanos

com os povos do ocidente G uthier (1973 p 14) firm ―Rome est en cont ct tregraves tocirct

51

Consideramos aqui a contaminatio no amplo sentido de que a cultura grega exerceu forte influecircncia na

literatura latina levando esta uacuteltima a composiccedilotildees de temas e gecircneros narrativos comuns aos helecircnicos 52

Para anaacutelise mais profunda do conceito de um romano ser considerado baacuterbaro cf Gouvecirca Juacutenior

(2012 p 5 a 27) 53

Oliveira fala que na verdade Roma controlava a influecircncia que vinha dos helenos tanto eacute que alguns

elementos da cultura grega soacute vieram a ter alcance em Roma jaacute no seacuteculo I aC a I dC com Catulo

Horaacutecio e Oviacutedio O utor defende que ―A origin lid de de Rom eacute pois c p cid de de sintetiz r

outras culturas sem perda de identidade e foi isso o que a urbe aprendeu a fazer desde as origens () A

postura psicoloacutegica dos romanos perante as culturas estrangeiras eacute pois seletiv e pr gmaacutetic ( ) (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269) Oliveira entatildeo define que os romanos possuiacuteam trecircs

mecanismos para lidar com uma cultura estrangeira a interpretatio como por exemplo nas comeacutedias de

Plauto que possuiacuteam certos elementos proacuteprios a imitatio postura de veneraccedilatildeo ao modelo e a emulatio

que era o desejo de rivalizar e fazer melhor do que o modelo (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 270

e ss)

35

vec laquollsquoeacutetr nger culturelraquo eacutetr nger qulsquoelle subit qulsquoelle comb t et uquel elle

emprunte be ucoup 54

No periacuteodo arcaico o termo latino usado para designar o estrangeiro era hostis

Isso jaacute foi atestado na Lei das Doze Taacutebuas (taacutebuas II e III) de meados do seacuteculo V aC

Como lembra Gauthier (1973 p 15) entre os pesquisadores haacute consenso de que os

hostes citados na Lei das Doze Taacutebuas eram os estrangeiros que possuiacuteam em Roma

certos direitos ndash essa relaccedilatildeo de proximidadeigualdade se pareceria com o grego μέλνο

Assim todos os que natildeo eram romanos nessa eacutepoca eram chamados de hostes natildeo

importava a sua origem Varratildeo jaacute no seacuteculo I aC notara a mudanccedila de significado de

hostis que passou a designar inimigo ndash d iacute temos em portuguecircs o termo ―hostil 55

Assim Varratildeo escreveu (De lingua latina V 1 3)

Quae ideo sunt obscuriora quod neque omnis impositio verborum exstat

quod vetustas quasdam delevit nec quae exstat sine mendo omnis imposita

nec quae recte est imposita cuncta manet (multa enim verba litteris

commutatis sunt interpolata) neque omnis origo est nostrae linguae e

vernaculis verbis et multa verba aliud nunc ostendunt aliud ante

significabant ut hostis nam tum eo verbo dicebant peregrinum qui suis

legibus uteretur nunc dicunt eum quem tum dicebant perduellem Assim essas coisas satildeo obscuras pois nem toda imposiccedilatildeo de palavras se

manteacutem jaacute que o tempo apaga algumas nem toda palavra imposta perdura

sem erro nem a que foi posta corretamente permanece iacutentegra (na verdade

muitas palavras foram mudadas com a troca de letras) nem toda origem estaacute

na nossa liacutengua ou nas palavras vernaacuteculas muitas palavras agora designam

uma coisa mas antes significavam outra como inimigo de fato com esse

termo chamavam o peregrino que utilizasse as suas leis agora assim o

chamam aquele que antes nomeavam inimigo (traduccedilatildeo e grifos nossos)

No trecho acima Varratildeo fez distinccedilatildeo entre hostis (que antes servia para se

referir ao peregrino mas que na sua eacutepoca jaacute designava o inimigo) e perduellem (nom

perduellis) eacutetimo usado com o significado de inimigo e depois suplantado pelos termos

hostis e inimicus no latim claacutessico (FARIA 2003 p 723) Ainda sobre esses vocaacutebulos

como atestado no dicionaacuterio de Faria (2003 p 456) durante a Repuacuteblica romana o

termo hostis nomeava o inimigo puacuteblico enquanto inimicus era o inimigo particular jaacute

durante o periacuteodo imperial hostis passou a significar inimigo em geral assim como

inimicus se tornou sinocircnimo de hostilis O fato de vaacuterios termos latinos que antes

designavam o adversaacuterio depois se resumirem a hostis ou inimicus sobretudo a partir do

54

―Rom desde muito cedo esteve com cont to com o estr ngeiro cultur llsquo estr ngeiro que el sujeit

comb te e do qu l muito incorpor 55

Gauthier descreve de forma aprofundada a evoluccedilatildeo do termo hostis e a relaccedilatildeo desse termo com o

eacutetimo hospes (1973 p 14 a 19)

36

seacuteculo I aC denota a proacutepria mudanccedila cultural pela qual Roma passava

Simultaneamente agraves suas inuacutemeras conquistas militares nesse periacuteodo a Urbe passou a

reconhecer indiviacuteduos e naccedilotildees em amigos ou rivais Gauthier (1973 p 19 a 21) resume

bem essa questatildeo

En grec un seul terme μέλνο deacutesigne agrave l fois llsquoeacutetr nger grec vec lequel

entente et meacutefiance sont eacutegalement ou tour agrave tour possibles et llsquohocircte lieacute p r

des obligations reacuteciproques () Au contraire en latin hostis deacutesigne

llsquoeacutetr nger proche reconnu comme p rten ire de droit ccueilli et proteacutegeacute u

sein de l commun uteacute t ndis qlsquoun terme composeacute hospes deacutesigne llsquohocircte

personnel ou f mili l ( ) Encore utiliseacute vec le sens dlsquolaquoeacutetr ngerraquo u milieu

du Vegraveme siegravecle hostis ser it devenu un siegravecle plus t rd llsquolaquoennemiraquo ( ) En

derniegravere n lyse llsquoetude de l notion dlsquoeacutetr nger renvoie elle ussi agrave l

opposition cl ssique entre les citeacutes grecques dlsquo ut nt moins ouvertes ux

eacutetr ngers que l notion dlsquoEacutet t y est moins deacuteveloppeacutee et l citeacute rom ine plus

disciplineacutee et plus ouverte Les guerres entre citeacutes grecques entretiennent les

particularismes elles ne saur ient boutir agrave llsquo ssimil tion ou agrave l conquecircte

Le μέλνο nlsquoest p s ougrave nlsquoest guegravere proteacutegeacute m is les commun uteacutes de μέλνη ne

sont pas de proies A Rome on protegravege ses voisins puis on les absorbe

Llsquoeacutetr nger devient un ennemi ou il devient Rom in 56

Quanto aos estrangeiros Roma lutou contra eles e durante muito tempo

conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as

invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave civilizaccedilatildeo romana ocidental Como

vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Roma teve relaccedilotildees mais profundas de contato

cultural com os baacuterbaros

Os gregos possivelmente foram os primeiros a estudar os costumes e cultura dos

estrangeiros atraveacutes de relatos de mercadores ou colonizadores De fato desde tempos

muito antigos os gregos empreenderam viagens pelo Mediterracircneo estabelecendo

colocircnias e tendo contato com outros povos (JARDEacute 1977 p 5) Por volta do seacuteculo VI

aC temos jaacute algumas obras de pesquisa etnograacutefica ou historia (no sentido de

pesquisa) Desse seacuteculo temos as Histoacuterias de Heroacutedoto que conta sobre povos que

habitavam em terras distantes os citas os persas os egiacutepcios dentre outros Apesar

56

―Em grego um soacute termo μέλνο designa tanto o estrangeiro grego com o qual tanto a compreensatildeo

quanto a desconfianccedila satildeo igualmente possiacuteveis quanto o hoacutespede ligado por obrigaccedilotildees reciacuteprocas ()

Ao contraacuterio no latim hostis designa o estrangeiro proacuteximo reconhecido como parceiro por direito

acolhido e protegido no seio da comunidade enquanto um termo composto hospes designa o hoacutespede

pesso l ou f mili r ( ) Aind utiliz do com o sentido de ―estr ngeiro dur nte o seacuteculo V C hostis se

tornaria um seacuteculo depois o ―inimigo ( ) Em uacuteltim naacutelise o estudo d noccedilatildeo de estr ngeiro remete

ela mesma agrave oposiccedilatildeo claacutessica entre as cidades gregas ndash embora menos abertas ao estrangeiro pois a

noccedilatildeo de Estado eacute menos desenvolvida ndash e agrave cidade romana mais disciplinada e mais aberta As guerras

entre as cidades gregas mantecircm suas particularidades elas natildeo podem conduzir agrave assimilaccedilatildeo ou agrave

conquista O μέλνο natildeo costuma ser protegido mas as comunidades de μέλνη natildeo satildeo viacutetimas Em Roma

jaacute se protege os vizinhos e tambeacutem os absorve O estrangeiro ou deve se tornar inimigo ou deve se tornar

rom no

37

desse interesse etnograacutefico os gregos natildeo se aprofundaram no contato com os

estrangeiros ou se preocuparam em civilizaacute-los de maneira sistemaacutetica (DAUGE 1981

p 12)

Ateacute o seacuteculo III aC Roma era principalmente considerada como um territoacuterio

baacuterbaro para os proacuteprios gregos O contato direto entre essas duas civilizaccedilotildees contudo

trouxe grandes mudanccedilas Em 280 aC na costa de Tarento pela primeira vez os

exeacutercitos grego e romano se encontraram Os gregos entatildeo possuiacuteam duas formas de

abordar o estrangeiro a assimilaccedilatildeo (ou analogia) em que um povo teria sua origem

relacionada aos gregos e a alienaccedilatildeo em que o povo considerado baacuterbaro seria mantido

lheio agrave ―civiliz ccedilatildeo (HARTOG 2014 p 211) A p rtir dos seacuteculos III I C

portanto essas duas abordagens em relaccedilatildeo aos romanos foram contraditoacuterias eles

foram considerados anaacutelogos ou alienados perante os gregos de acordo com as grandes

transformaccedilotildees poliacuteticas e as relaccedilotildees ora amistosas ora adversas entre esses dois

povos A esse respeito Champion (2004 p 46) afirma ― ncient Hellenism like ny

ethnic-cultural identity formation was an adaptable and negotiable cultural tool that was

deployed for politic l purposes 57

Desde a literatura grega arcaica jaacute temos alguns registros que posteriormente

for m us dos como ―g nchos p r definir origem grega dos romanos Um exemplo

disso pode ser encontrado em Hesiacuteodo que disse que Latino era filho de Odisseu e

Circe58

Como Herring pontua (In ERSKINE 2009 p 130) o orgulho grego tornava

mais faacutecil ver os romanos como gregos e natildeo outros Dentre outros modelos desse fato

um dos mais significativos eacute o de Dioniacutesio de Halicarnasso autor grego do seacuteculo I

aC que justificou a origem helecircnica dos romanos pela genealogia dizendo que os

primeiros habitantes do Laacutecio eram gregos que tinham migrado da Arcaacutedia para a Itaacutelia

antes da Guerra de Troia e tambeacutem pelo fato dos proacuteprios troianos terem origens

gregas Segundo Dioniacutesio Daacuterdano antecedente dos troianos seria neto de Atlas o

primeiro rei da Arcaacutedia Teucro entatildeo rei da regiatildeo onde depois seria fundada Troia

deu a Daacuterdano a terra para ele fundar a cidade Teucro tambeacutem seria grego pois sua

origem era da Aacutetica Teucro entatildeo se aliou ao grego Daacuterdano contra os baacuterbaros que ali

habitavam para que a futura cidade de Troia natildeo sucumbisse Daacuterdano se casou com a

57

―o helenismo ntigo como qu lquer form ccedilatildeo de identid de eacutetnico-cultural era uma ferramenta

cultur l d ptaacutevel e negociaacutevel que foi us d p r propoacutesitos poliacuteticos 58

Na Teogonia (2003 v 1011 1016) Hesiacuteodo ssim escreveu ―Circe filh de Sol Hiperionid m d

por Odisseu de sofrida prudecircncia gerou Aacutegrio Latino irrepreensiacutevel e poderoso e pariu Teleacutegono graccedilas

agrave aacuteurea Afrodite Bem longe no interior de ilhas sagradas e eles reinam sobre os iacutenclitos tirrenos Esse

trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Torrano (HESIacuteODO 2003)

38

filha de Teucro e da sua linhagem nasceria Eneias dessa forma descendente de

arcaacutedios59

Essa assimilaccedilatildeo dos romanos por parte de alguns gregos natildeo foi contudo uma

via de matildeo uacutenica jaacute que os proacuteprios romanos tambeacutem escreveram sobre suas origens

estrangeiras o que resultou em divers s lend s com vaacuteri s conexotildees que ―borr r m s

fronteiras entre gregos e romanos Citamos o exemplo de Faacutebio Pictor (seacuteculo III aC)

um dos primeiros a escrever histoacuteria latina que abordou a origem helecircnica dos romanos

pois escreveu sobre a passagem de Heacuteracles pela Itaacutelia e o arcaacutedio Evandro que teria

estabelecido uma colocircnia na colina do Palatino60

Gruen (2011a p 244) a esse respeito

firm ―The Rom n histori n stepped in Hellenic lore unequivoc lly embr ced

legends that postulated Greek ancestry for Rome indeed acknowledged that cultural

underpinnings went back to the Phoenicians Far from shunning alien associations he

proudly procl imed them 61

Paralelamente agrave tradiccedilatildeo da origem helecircnica dos romanos tecircm-se ainda relatos

mitoloacutegicos ndash como na Iliacuteada de Homero ndash que servir m de ―g ncho p r utores

posteriores relacionarem o surgimento de Roma com os gregos Na Iliacuteada o heroacutei

troiano Eneias simplesmente eacute mencionado como o precursor de uma nova raccedila Assim

temos a fala de Posecircidon a Hera (XX 293 a 308)

ὢ πόπνη ἦ κνη ἄρνο κεγαιήηνξνο Αἰλείαν

ὃο ηάρα Πειεΐσλη δακεὶο Ἄτδνο δὲ θάηεηζη

πεηζόκελνο κύζνηζηλ Ἀπόιισλνο ἑθάηνην

λήπηνο νὐδέ ηί νἱ ρξαηζκήζεη ιπγξὸλ ὄιεζξνλ

ἀιιὰ ηί ἢ λῦλ νὗηνο ἀλαίηηνο ἄιγεα πάζρεη

κὰς ἕλεθ᾽ ἀιινηξίσλ ἀρέσλ θεραξηζκέλα δ᾽ αἰεὶ

δξα ζενῖζη δίδσζη ηνὶ νὐξαλὸλ εὐξὺλ ἔρνπζηλ

ἀιι᾽ ἄγεζ᾽ ἡκεῖο πέξ κηλ ὑπὲθ ζαλάηνπ ἀγάγσκελ

κή πσο θαὶ Κξνλίδεο θερνιώζεηαη αἴ θελ Ἀρηιιεὺο

ηόλδε θαηαθηείλῃ κόξηκνλ δέ νἵ ἐζη᾽ ἀιέαζζαη

ὄθξα κὴ ἄζπεξκνο γελεὴ θαὶ ἄθαληνο ὄιεηαη

Γαξδάλνπ ὃλ Κξνλίδεο πεξὶ πάλησλ θίιαην παίδσλ

νἳ ἕζελ ἐμεγέλνλην γπλαηθλ ηε ζλεηάσλ

ἤδε γὰξ Πξηάκνπ γελεὴλ ἔρζεξε Κξνλίσλ

59

Resumimos aqui a histoacuteria narrada por Dioniacutesio de Halicarnasso em sua obra Antiguidades romanas

livro II 1 e 2 Existiam ainda vaacuterias outras lendas sobre as origens helecircnicas dos romanos as quais

citamos rapidamente agrave guisa de exemplo como Gruen (In BOUGH 2006 p 300 a 302) pontua as

variantes nas quais Odisseu e seus descendentes desempenharam papel importante na fundaccedilatildeo de Roma

as narrativas sobre os arcaacutedios (como Enotro e Evandro) e tambeacutem Heacuteracles que teria percorrido a Itaacutelia

se relacionado com a filha de Evandro e ali deixado seus filhos Palante e Latino ndash esse uacuteltimo ao ser

adotado pelo rei dos aboriacutegenes Fauno depois se tornaria sogro de Eneias 60

Pictor fragmentos 1ndash2 (In BECK WALTER 2005 v1) 61

―O histori dor rom no mergulh do n tr diccedilatildeo greg sem duacutevid br ccedilou s lend s que postul v m

ancestralidade grega de Roma de fato reconhecendo que os fundamentos culturais remontavam aos

feniacutecios Longe de evit r ssoci ccedilotildees estr ngeir s ele orgulhos mente s procl m v

39

λῦλ δὲ δὴ Αἰλείαν βίε Τξώεζζηλ ἀλάμεη

θαὶ παίδσλ παῖδεο ηνί θελ κεηόπηζζε γέλσληαη

―Ah que sofrimento o meu pelo m gnacircnimo Enei s

Ele que rapidamente subjugado pelo Pelida desceraacute ao Hades

por se ter deixado convencer por Apolo que atinge de longe

estulto pois o deus natildeo afastaraacute dele a funesta desgraccedila

Mas por que razatildeo deve ele homem sem culpa sofrer dores

em vatildeo por causa de sofrimentos que satildeo de outros ele que sempre

ofereceu dons aos deuses que o vasto ceacuteu detecircm

Conduzamo-lo entatildeo noacutes para longe da morte

para que se natildeo enfureccedila o Croacutenida se Aquiles

o matar Pois estaacute fadado que ele sobreviva agrave guerra

para que desprovida de esperma natildeo pereccedila a raccedila de Daacuterdano

a quem o Croacutenida amou mais do que todos os filhos

que lhe foram gerados por mulheres mortais

Entretanto o Croacutenida pocircs-se a odiar a raccedila de Priacuteamo

e agora seraacute a Forccedila de Eneias a reger os Troianos

ssim como os filhos de seus filhos que de futuro n sceratildeo 62

Na Eneida temos o maior exemplo latino da origem troiana dos romanos

Virgiacutelio seguindo a narrativa mitoloacutegica que jaacute fora abordada por Homero utilizou essa

profecia que apareceu na Iliacuteada ndash de que Eneias estava destinado a fundar uma nova

raccedila ndash para justificar a origem miacutetica dos romanos em seu poema63

Na Eneida (IV)

quando Eneias se encontra em Cartago ele eacute lembrado por Hermes do destino que

deveria cumprir o troiano entatildeo deixa Dido e parte em direccedilatildeo agrave Itaacutelia64

No canto VII

Eneias finalmente chega ao Laacutecio e se encontra com o rei Latino que por recomendaccedilatildeo

dos deuses oferece-lhe a matildeo de sua filha Laviacutenia65

Eneias em algumas narrativas

lendaacuterias eacute considerado o antecessor de Rocircmulo e Remo e por conseguinte se deve a

ele a origem miacutetica dos romanos

Natildeo deixa de ser curioso o fato de que natildeo temos registros de uma possiacutevel

resistecircncia por parte dos romanos em remontar suas origens em povos indiacutegenas ou em

r iacutezes no Laacutecio como Gruen lembr (2011 p 244) ―But we h ve no sign of Rom n

resistance to foreign roots or insistence on native beginnings The reverse holds

62

Traduccedilatildeo citada de Lourenccedilo (HOMERO 2005) 63

Virgiacutelio escreveu a Eneida a pedido de Augusto Primeiro imperador romano Otaacutevio Augusto queria

um poema eacutepico agrave altura de Homero para exaltar as gloacuterias e faccedilanhas do incipiente impeacuterio atraveacutes de

suas origens lendaacuterias Virgiacutelio encontrou no troiano Eneias tanto o heroacutei de sua epopeia como tambeacutem o

elo miacutetico que ligou a Iliacuteada agrave Eneida Aleacutem disso Eneias era considerado por Ceacutesar e por Augusto o

miacutetico fundador da gens Julia ndash da qual faziam parte ndash remontando a origem da famiacutelia ateacute a deusa Vecircnus

(MARTIN GAILLARD 1981 p 33-36) 64

Na narrativa de Virgiacutelio Dido era a rainha da cidade de Cartago e acolheu Eneias quando ele chegou a

sua terra Abandonada pelo heroacutei ela suicidou-se desesperada de paixatildeo esse seria o motivo mitoloacutegico

que provocou as Guerras Puacutenicas 65

Todavia o vieacutes de Dioniacutesio era o de considerar os proacuteprios troianos em sua origem como sendo

gregos Dessa maneira o encontro de Latino e Eneias ndash segundo Dioniacutesio ndash seria novamente a

confluecircncia de descendentes de gregos em uma nova terra da mesma maneira que ele narrou a respeito

dos troianos (cf nota 59)

40

Historians and poets welcomed that association with the Easter Mediterranean reshaped

nd perpetu ted it 66

Gruen (2011a p 247 e 248) ainda reforccedila

Greek authors converted the sagas of Troy to bring Romans within the matrix

of Hellenic traditions And Romans in turn spun those stories to their own

taste embracing a Trojan lineage that gave them a character distinct from that

of Greeks but solidly within the Greek construct This was no linear

development but an intricate overlapping in which Romans defined

themselves as a constituent element in a broader cultural network67

Falamos aqui sobre a assimilaccedilatildeo dos romanos quanto a suas possiacuteveis origens

gregas Mais adiante no subcapiacutetulo 121 referente a Poliacutebio abordaremos a questatildeo

da alienaccedilatildeo dos romanos por parte dos gregos em um fenocircmeno no qual os romanos

eram considerados baacuterbaros

Os gregos consideravam que uma forma de deixar a condiccedilatildeo baacuterbara era atraveacutes

da paideia como vimos anteriormente Em Roma temos um termo que se aproximaria

desse conceito helecircnico eacute a humanitas palavra que deriva de homo (homem) e humus

(terr ) Desse eacutetimo temos em portuguecircs p l vr ―hum nid de deriv d de

―hum no Em contexto rom no no periacuteodo rc ico humanitas designava a natureza e

o sentimento dos homens posteriormente a partir do seacuteculo II aC humanitas adquiriu

o significado de civilidade que se opunha agrave crueldade primitiva (ferocitas)68

Humanitas grosso modo significava a pertenccedila ao gecircnero humano e tudo que lhe

estava relacionado a cultura os aspectos literaacuterio filosoacutefico e religioso Terecircncio

resumiu esse conceito ao escrever o seguinte verso na peccedila Heautontimorumenos (ato I

v 25) ―homo sum humani nihil a me alienum puto 69

Segundo Veyne (1992 p 283)

humanitas se referia agrave cultura literaacuteria virtude de humanidade e estado de civilizaccedilatildeo

Para Pereira (1993 p 421) os termos paideia e humanitas se aproximaram durante o

tempo dos Cipiotildees Inicialmente o termo humanitas serviu para traduzir a palavra grega

paideia e a humanitas assim como aconteceu com a paideia em contexto grego

tornou-se mais um meacuterito do que uma caracteriacutestica universal um instrumento atraveacutes

66

―Natildeo temos sin l de resistecircnci rom n frente agraves r iacutezes estr ngeir s ou insistecircnci em primoacuterdios

nativos pelo contraacuterio Historiadores e poetas receberam bem a associaccedilatildeo com o oriente mediterracircneo

remoldando-a e perpetuando- 67

―Autores gregos converter m as sagas de Troia para inserir os romanos na matriz das tradiccedilotildees

helecircnicas Os romanos por sua vez adaptaram essas histoacuterias ao seu proacuteprio gosto abraccedilando a linhagem

troiana que deu a eles um caraacuteter distinto do dos gregos mas solidamente inserido na construccedilatildeo grega

Esse natildeo foi um desenvolvimento linear mas sim uma intrincada sobreposiccedilatildeo na qual os romanos

definir m si mesmos como elemento constituinte de um rede cultur l m is mpl 68

Pereira (1993 p 415 a 421) detalha mais o surgimento do termo humanitas bem como a evoluccedilatildeo do

seu sentido A autora tambeacutem aborda sobretudo os escritos de Ciacutecero a respeito de humanitas 69

―sou homem penso que nada que eacute humano me eacute estr nho em tr duccedilatildeo noss

41

do qual um indiviacuteduo ou povo poderia se afastar da barbaacuterie A humanitas poderia ser

conquistada ou alcanccedilada e ensinada aos povos considerados primitivos

Em Ceacutesar por exemplo temos em algumas passagens a denominaccedilatildeo dos

germ nos como sendo ―baacuterb ros e ferozes (por exemplo em BGall I 31 e 33) e dos

gauleses (no caso os belgas) descritos como ―homens ferozes e de gr nde virtude

(BGall II 15) Nesse sentido o baacuterbaro diferia do romano porque ele natildeo tinha os

valores relacionados agrave humanitas (a civilidade que se opotildee agrave crueldade primitiva ndash a

ferocitas)70

A esse respeito Dauge (1981 p 19 e 20) explica

Il est bien entendu que pour le Romain le barbare ne constitue pas une

espegravece diffeacuterente mais un eacutetat infeacuterieur ndash soit collectif soit individuel ndash de

l`homme une maniegravere d`ecirctre deacutefectueuse inacheveacutee incomplegravete - non pas

deacutefinitive mais variable Le barbare comme d`ailleurs le civiliseacute est sujet agrave

mutation et peut toujours eacutevoluer l`accegraves agrave l`humanitas est toujours possible

de mecircme que la chute ou rechute dans la barbarie Du reste le Romain sait

bien qu`aux deux extreacutemiteacutes du cycle eacutevolutif se trouvent deux formes

compleacutementaires de la barbarie et qu`il est tregraves difficile dans la mobiliteacute du

reacuteel d`ecirctre et de rester civiliseacute Le tout est de controcircler l`eacutevolution pour

atteindre le point d`eacutequilibre et s`y maintenir ndash en associant agrave cet effort le

plus possible d`individus ce qui a eacuteteacute l`ideacuteal romain proprement dit71

Especificamente em relaccedilatildeo aos celtas embora Roma desde muito cedo fora

ameaccedilada por eles e inclusive saqueada no iniacutecio do seacuteculo IV aC o conhecimento

que se tinha desse povo pelo menos em termos literaacuterios era muito escasso e vinha

sobretudo de fontes gregas como veremos a seguir Roma tinha mais conhecimento dos

povos orientais considerados decadentes e paradigma de luxo excessivo Apoacutes a

conquista da Gaacutelia de forma definitiva sob Juacutelio Ceacutesar o conhecimento dos povos

ocidentais se aprofundou O romano ateacute entatildeo considerado baacuterbaro pelo homem grego

passou a tratar como baacuterbaro o homem gaulecircs considerado rude e ignorante (VEYNE

In GIARDINA 1992 p 295) Com o alargamento das fronteiras do impeacuterio e com a

romanizaccedilatildeo o termo humanitas deu lugar ao termo romanitas o modo de vida dos

romanos passa a ser gradualmente o modelo de vida dos povos conquistados ndash

70

Pereira (1993 p 317 a 428) aleacutem da humanitas analisa outros conceitos morais e poliacuteticos dos

romanos como a fides a clementia o mos maiorum etc 71

―Estaacute bem entendido que para o romano o baacuterbaro natildeo constitui uma espeacutecie diferente mas um estado

inferior - seja coletivo seja individual - do homem uma maneira de ser defeituosa inacabada

incompleta - natildeo definitiva mas variaacutevel De qualquer maneira o baacuterbaro como o civilizado estaacute sujeito

agrave mudanccedila e pode sempre evoluir o acesso agrave humanitas eacute sempre possiacutevel bem como a queda ou a

recaiacuteda na barbaacuterie De resto o romano sabe bem que nas duas extremidades do ciclo evolutivo se

encontram duas formas complementares de barbaacuterie e que eacute muito difiacutecil dentro da mobilidade do real

ser e se manter civilizado Tudo se resume a controlar a evoluccedilatildeo para atingir o ponto de equiliacutebrio e aiacute se

manter - acrescentando a esse esforccedilo o maacuteximo possiacutevel de indiviacuteduos o que foi o ideal romano

propri mente dito

42

sobretudo na Europa ocidental Todavia esse foi um processo lento e de amaacutelgama

cultural entre conquistadores e conquistados como Guarinello (2014 p 297) define

Os historiadores mais antigos da primeira metade do seacuteculo XX descreviam

a aparente homogeneidade cultural do Impeacuterio atraveacutes dos conceitos de

romanizaccedilatildeo e helenizaccedilatildeo como se as populaccedilotildees conquistadas tivessem

acolhido de braccedilos abertos as benesses de civilizaccedilotildees superiores romana no

ocidente grega no oriente Satildeo ideias ultrapassadas A proacutepria criaccedilatildeo de

uma identidade romana foi um processo complexo acelerado no seacuteculo final

da repuacuteblica e agrave eacutepoca de Augusto72

Nesse periacuteodo de raacutepida expansatildeo entre os seacuteculos III aC a I aC a proacutepria

Roma natildeo tinha uma identidade definida Como Guarinello (2014 p 297) ressalta a

urbe era formada por um complexo conjunto de romanos italianos estrangeiros

escravos e libertos vindos de vaacuterias partes do mundo ateacute entatildeo conhecido Com a

ascensatildeo de Otaacutevio Augusto a identidade romana teve que ser recriada para servir de

paracircmetro para o Impeacuterio contudo ela nunca foi baseada em uma identificaccedilatildeo eacutetnica

nem monoliacutetica nem mesmo imune agrave accedilatildeo do tempo (GUARINELLO 2014 p 297)73

Dessa forma a partir do seacuteculo I aC o termo baacuterbaro natildeo designava mais o

estrangeiro qualquer que fosse ele Esse termo passou a definir o primitivo o rude e

violento que constantemente ameaccedilava as fronteiras do Impeacuterio como Veyne (In

GIARDINA 1992 p 300 e 301) afirma

As palavras laquoromanoraquo laquolatinoraquo ou laquoperegrinoraquo indicavam um estatuto natildeo

uma origem eacutetnica e natildeo se estabelecia nenhuma diferenccedila entre os cidadatildeos

romanos de origem itaacutelica e de origem provinciana As diferenccedilas eacutetnicas

contavam tatildeo pouco para os Romanos que no final da Antiguidade natildeo

tiveram nenhuma repugnacircncia em recrutar os seus soldados e generais entre

os Germanos

12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC

Os gregos desde muito cedo jaacute escreviam obras de cunho etnograacutefico devido ao

fato de eles terem estabelecido colocircnias fora da Greacutecia (jaacute na eacutepoca arcaica) e entrado

em contato com outras naccedilotildees ndash sendo tambeacutem o contato com os celtas muito antigo

Vasaly (1993 p 144) lembra que os primeiros textos etnograacuteficos de outros povos e

72

Aprofundaremos nossa discussatildeo sobre o conceito de romanizaccedilatildeo no subcapiacutetulo 221 ― lgum s

consider ccedilotildees sobre questatildeo d rom niz ccedilatildeo n Europ Ocident l 73

Discutiremos de forma aprofundada o estabelecimento da identidade romana a partir do principado de

Augusto no capiacutetulo 3 deste trabalho

43

regiotildees eram apenas relatos superficiais dos primeiros navegadores e narraccedilotildees de

maravilhas e fatos fantaacutesticos relacionados a terras distantes e desconhecidas O proacuteprio

Heroacutedoto nas suas Histoacuterias herda esse traccedilo da narrativa etnograacutefica ao escrever

sobre aspectos assombrosos de outros povos74

Posteriormente a etnografia voltou a

entrar em voga no periacuteodo heleniacutestico com a expansatildeo dos territoacuterios helenizados e

contato entre populaccedilotildees diferentes e com a expansatildeo romana as digressotildees

etnograacuteficas tambeacutem se tornaram comuns em autores latinos Como Dihle (apud

VASALY 1993 p 146) ress lt ―( ) the Hellenistic material was strongly influenced

by the inclination to ascertain the rational causes of observed phenomen 75

Abordaremos mais a fundo no subcapiacutetulo sobre Poliacutebio essa questatildeo sobre a anaacutelise

racional das causas de fenocircmenos e eventos

A respeito de Marselha uma das mais importantes colocircnias gregas Tuciacutedides

contou que a cidade foi fundada por emigrantes da Foceia que ao fugirem dos persas se

estabeleceram no sul da Franccedila76

Marselha de acordo com fontes antigas e com

pesquisas arqueoloacutegicas atuais teria sido fundada no seacuteculo VI aC77

A cidade

mantinha-se em constante vigilacircncia contra os seus vizinhos celtas Momigliano (1991

p 53) ressalta

Em seu comeacutercio Massilia era sem duacutevida auxiliada pelas outras colocircnias

gregas ao longo das costas da Franccedila e da Espanha que se natildeo pela origem

ao menos de fato eram as suas proacuteprias subsidiaacuterias Nicaea Antiacutepolis

Rodes Emporiae Mainace etc Mas eacute difiacutecil avaliar o esforccedilo de

coordenaccedilatildeo militar e social que tais postos avanccedilados isolados devem ter

exigido tanto eram um risco quanto um auxiacutelio78

O alfabeto grego usado pelos celtas se deveu agrave influecircncia dos massaliotas entre

os seacuteculos III e II aC de acordo com inscriccedilotildees celtas e tambeacutem com o relato do

74

Segundo Fornara (1983 p 12 e ss) a etnografia natildeo constituiacutea um gecircnero literaacuterio em si e os antigos

textos escritos pelos gregos nesse formato geralmente eram designados pelo nome do povo a que se

referiam Lydiaka Babyloniaka etc Ess espeacutecie de ―subgecircnero de composiccedilatildeo foi b st nte popul r o

longo dos seacuteculos desde primoacuterdios do seacuteculo V aC ateacute o periacuteodo tardio do impeacuterio romano jaacute que

sempre se recorria agrave etnografia para a descriccedilatildeo de outros povos sua cultura e costumes Jaacute em Homero e

Hesiacuteodo temos trechos de cunho etnograacutefico mas foi sobretudo a partir de Heroacutedoto que a etnografia

passa a ser comumente escrita em digressotildees dentro de obras de cunho historiograacutefico 75

―O m teri l heleniacutestico foi fortemente influenciado pela inclinaccedilatildeo para averiguar as causas racionais

de fenocircmenos observ dos 76

Cf Tuciacutedides I 13 6 (1990 p 149) 77

De acordo com Esbarranch em nota agrave sua traduccedilatildeo do texto de Tuciacutedides a dataccedilatildeo da fundaccedilatildeo da

cidade situa-se no seacuteculo VI aC O tradutor cita outras fontes aleacutem de Tuciacutedides como Heroacutedoto e

Aristoacuteteles bem como pesquisadores do assunto (TUCIacuteDIDES 1990 p 149) 78

Para maiores informaccedilotildees acerca dos contatos entre os celtas e Massilia e de como os gregos

influenciaram essa naccedilatildeo vide Momigliano (1991 p 53 e ss)

44

proacuteprio Ceacutesar Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nada escrito a respeito de si

mesmos e sua histoacuteria e cultura desse periacuteodo apenas satildeo conhecidas no campo literaacuterio

atraveacutes de relatos de terceiros A respeito da falta de escrita por parte dos gauleses e do

uso do alfabeto grego Ceacutesar escreveu no De bello Gallico (VI 14)

Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX

in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum

in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur

Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum

disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus

memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum

diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant

Diz-se que aiacute eles decoram um grande nuacutemero de versos Assim alguns

permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais

preceitos agrave escrita ndash como geralmente nos demais assuntos ndash e quanto aos

registros puacuteblicos e privados utilizam-se das letras gregas Parecem-me tecirc-lo

assim determinado por dois motivos por natildeo querer que seu saber passe ao

vulgo nem que aqueles que aprendem confiando nas letras se dediquem

menos a memorizar isso de ordinaacuterio sucede agrave maioria de modo que com o

respaldo da escrita afrouxem-se a dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de

aprendizado

Momigliano ainda ressalta que Massilia (Marselha) buscando manter-se

helecircnica e aristocraacutetica nunca se preocupou em explorar o interior da Gaacutelia ou

transmitiu aos outros gregos qualquer conhecimento sobre os costumes dos galos O

autor (1991 p 57) afirma

Ateacute o seacuteculo II aC os gregos sabiam deploravelmente pouco sobre o mundo

celta ndash e a Franccedila em particular () As primeiras autoridades sobre os celtas

que encontramos Eacuteforo e Timeu eram tiacutepicos historiadores de gabinete

Foram pioneiros simplesmente porque os massaliotas nunca fizeram

qualquer esforccedilo para conhecer os seus vizinhos Eacuteforo que escreveu os

primeiros livros em torno de 350 aC incluiu os celtas em sua descriccedilatildeo de

mundo79

Sobre esses dois historiadores gregos temos pouco material aleacutem de fragmentos

Eacuteforo e Timeu viveram no seacuteculo IV aC Eacuteforo de Cumas (405 ndash 330 aC) era

conhecido por ter sido aluno de Isoacutecrates de acordo com Oswyn Murray (In

BOARDMAN et al 1986 p 198) por esse motivo Eacuteforo teria comeccedilado a perigosa

relaccedilatildeo entre histoacuteria e retoacuterica com a tendecircncia de se sacrificar a verdade em prol do

efeito O autor escreveu uma obra chamada Histoacuteria que teria 30 livros que tratavam

79

Tem-se notiacutecia de que Hecateu de Mileto geoacutegrafo que viveu no final do seacuteculo VI aC jaacute escrevera

sobre os celtas Contudo como haacute pouquiacutessimos fragmentos de sua obra consideramos Eacuteforo e Timeu

como os mais antigos que deixaram um registro que nos chegou mais consistente

45

da histoacuteria grega dos primoacuterdios ateacute o seu tempo dedicando um livro a cada regiatildeo da

Heacutelade (OLIVER in BUGH 2006 p 117) Poliacutebio (Hist V 33 2) considerava que

foi Eacuteforo o primeiro a escrever histoacuteria de caraacuteter universal Ele tambeacutem redigiu uma

obra sobre a histoacuteria de Cumas e tratados sobre invenccedilatildeo e sobre estilo Muito do que

se sabe sobre a perdida obra de Eacuteforo depende de Diodoro Siacuteculo que o teria usado

como fonte De cordo com H rtog (2014 p 130) Eacuteforo ―pertence jaacute ess c tegori

de intelectuais poliacutegrafos historiadores sim mas que trabalham a partir dos textos dos

outros compiladores Diodoro da Siciacutelia atribui-lhe expressamente a opiniatildeo de que os

baacuterb ros er m m is ntigos que os gregos 80

Quanto a Timeu era de Taormina na Siciacutelia e viveu no comeccedilo do seacuteculo IV

aC Sua Histoacuteria teria sido composta em 38 livros e abordava sobretudo a Siciacutelia e

eventos de lugares proacuteximos como a Liacutebia e a Itaacutelia Sua importacircncia se deveu ao fato

dele ter servido de fonte para Poliacutebio como veremos mais detalhadamente adiante81

Aleacutem de Eacuteforo e Timeu que falaram sobre os celtas no seacuteculo IV e III aC

Momigliano (1991 p 58) afirma

Aristoacuteteles por certo deve tecirc-los incluiacutedo em sua obra perdida sobre os

costumes dos baacuterbaros Em Poliacutetica ele soube interpretar as instituiccedilotildees

celtas no contexto da sua classificaccedilatildeo Embora fossem um povo guerreiro os

celtas ao contraacuterio dos espartanos natildeo eram dominados pelas mulheres

porque tendiam ao homossexualismo mas assim como os espartanos

educavam os filhos austeramente Para aleacutem da poliacutetica Aristoacuteteles conteacutem

mistura costumeira de informaccedilotildees curiosas ndash por exemplo que determinadas

regiotildees da terra celta satildeo frias para que os burros procriem (De gener anim

28748a) Ele natildeo parece ter pesquisado muito a respeito dos celtas Mais

tarde poreacutem se descobriu que mesmo Eacuteforo e Timeu eram informantes

superficiais sobre eles

Antes que os romanos passassem a expandir seu territoacuterio para a Europa

ocidental os proacuteprios gregos sabiam muito pouco sobre os celtas82

Massilia

(Marselha) que poderia ter servido como ponto de exploraccedilatildeo do territoacuterio celta acabou

se concentrando em explorar o litoral Todavia os celtas natildeo passaram despercebidos

80

Para maior detalhamento sobre Eacuteforo e sua produccedilatildeo historiograacutefica recomendamos o subcapiacutetulo

―Ephorus de Marincola (2007 v1 p 172 a 174) 81

Para estudo mais profundo de Eacuteforo e Timeu bem como de outros historiadores gregos do seacuteculo IV e

III C recomend mos o c piacutetulo ―Polybius nd his predecessors (USHER 2001) 82

Sobre o que os gregos do seacuteculo IV C escrever m sobre os celt s cf o c piacutetulo ―Notices in some

fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48)

46

sobretudo apoacutes o saque de Roma em 390 aC83

Jaacute durante o governo de Alexandre o

Grande os celtas assediavam as fronteiras macedocircnias Chegaram a capturar Delfos em

278 aC por um curto espaccedilo de tempo e posteriormente se instalaram na Aacutesia Menor

na regiatildeo conhecida como Galaacutecia84

Os proacuteprios celtas segundo Momigliano teriam

servido como estopim para que certas cidades se organizassem de forma efetiva e por

consequecircncia se tornassem fortes impeacuterios Momigliano (1991 p 59 e 60) ainda

acrescenta

Cada uma dessas intervenccedilotildees dos celtas provava a sua importacircncia ao

produzir importantes desenvolvimentos nos sistemas poliacuteticos que atacavam

Por volta de 350 aC Roma surgiu como a maior potecircncia na Itaacutelia quando os

latinos por temor aos celtas renunciaram agrave sua independecircncia O novo reino

da Macedocircnia sob a autoridade firme de Antiacutegono Gocircnatas foi o resultado

direto da invasatildeo celta da Macedocircnia e da Greacutecia A vitoacuteria sobre os gaacutelatas

consolidou o estado de Peacutergamo e provavelmente forneceu a Aacutetalo I a

oportunidade certa para se declarar rei Por fim foi a vitoacuteria de Gnaeus

Manlius Vulso sobre os gaacutelatas em 189 aC que justificou a intervenccedilatildeo dos

romanos na Aacutesia Menor e lhes forneceu os clientes de que necessitavam para

controlar as ambiccedilotildees de Peacutergamo Inuacuteteis nos ataques contra estados

defendidos por falange ou legiatildeo os celtas tinham a superioridade numeacuterica

a coragem e a rapidez do saqueador completo

121 ndash Poliacutebio

Os gregos durante a expansatildeo do impeacuterio romano passaram a escrever sobre os

celtas a serviccedilo da elite romana O primeiro grande nome de que temos notiacutecia que

tratou mais profundamente sobre os celtas ndash e tambeacutem sobre os romanos ndash foi Poliacutebio

Poliacutebio era filho de Lycortas um importante cidadatildeo de Megaloacutepolis na Arcaacutedia ndash com

isso teve uma educaccedilatildeo refinada Quando Poliacutebio nasceu Roma jaacute tinha vencido a

Segunda Guerra Puacutenica obtendo a hegemonia no Mediterracircneo e comeccedilava a avanccedilar

em direccedilatildeo agrave Greacutecia Os romanos em conflitos com os monarcas heleniacutesticos Filipe V

Perseu da Macedocircnia e Antiacuteoco da Siacuteria passaram tambeacutem a se envolver em disputas

com a Liga Aqueia e Etoacutelia Depois que venceram Perseu em 168 aC em Pidna os

romanos acusaram os aqueus de fomentar revoltas e exigiram mil refeacutens de famiacutelias

83

Ogilvie (1965 p 629) detalha o motivo da confusatildeo de datas entre a cronologia romana e a grega

afirmando que o saque se deu provavelmente em 387 ou 386 aC Para todos os efeitos consideramos a

tradicional data de 390 aC 84

A questatildeo da assimilaccedilatildeo cultural tambeacutem foi empregada pelos gregos para se referir aos celtas Como

destaca Rankin (1996 p 81) a Galaacutecia na concepccedilatildeo helecircnica teria recebido esse nome devido a Gaacutelato

(filho do Ciclope e de Galateia) outra variaacutevel registrada por Timeu (FHG 1200 ediccedilatildeo Muumlller) dizia

que eles eram descendentes de um gigante chamado Keltos e tambeacutem haacute a variaacutevel de que Heacuteracles

quando esteve no oeste teve um breve relacionamento com a princesa Celta e se tornou o ascendente

dessa naccedilatildeo (Diodoro Siacuteculo V 24)

47

proeminentes Dessa forma Poliacutebio chegou a Roma onde permaneceu entre 167 e 150

aC depois retornando agrave sua terra natal85

Poliacutebio mostrou aos seus captores que natildeo tinha envolvimento nas revoltas e

conseguiu a liberdade concedida aos estrangeiros livres Sobretudo por sua amizade

com o jovem Cipiatildeo Emiliano da proeminente famiacutelia dos Cipiotildees e filho de Emiacutelio

Paulo vencedor de Pidna Poliacutebio decidiu permanecer em Roma Na cidade ele se

dedicou a escrever sobre as fontes literaacuterias e documentais que Roma estava obtendo

com suas conquistas Cipiatildeo Emiliano agrave frente dos exeacutercitos da Repuacuteblica liderou

campanhas militares na Hispacircnia e Poliacutebio estava com ele em Cartago em 146 aC

quando na Terceira Guerra Puacutenica a cidade caiu de forma definitiva Quando Corinto foi

conquistada tambeacutem em 146 Poliacutebio voltou para a Greacutecia para interceder a favor dos

seus conterracircneos conseguindo acordos favoraacuteveis e aiacute viveu ateacute sua morte Aleacutem

dessas viagens militares Poliacutebio acompanhando Cipiatildeo ainda fez viagens

exploratoacuterias visitando as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) navegando pela

costa da Ibeacuteria e da Aacutefrica e refazendo a rota dos cartagineses pelos Alpes

As viagens empreendidas por Poliacutebio forneceram material para as suas

Histoacuterias obra que infelizmente nos chegou bem fragmentada Originalmente composta

em 40 livros as Histoacuterias cobririam os fatos desde a Segunda Guerra Puacutenica ateacute a queda

de Corinto Os cinco primeiros livros chegaram mais ou menos intactos enquanto os

outros estatildeo incompletos Poliacutebio foi o primeiro grego de que temos notiacutecia a percorrer

a Hispacircnia onde provavelmente foi por duas vezes entre 151 e 134 aC e visitou

tambeacutem a Gaacutelia e o norte da Aacutefrica como ele mesmo afirma em sua obra (Histoacuterias III

59 5 a 8)

δένλ ἂλ εἴε θαὶ βέιηηνλ γηλώζθεηλ θαὶ ἀιεζηλώηεξνλ ὑπὲξ ηλ πξόηεξνλ

ἀγλννπκέλσλ ὅπεξ ἡκεῖο αὐηνί ηε πεηξαζόκεζα πνηεῖλ ιαβόληεο ἁξκόδνληα

ηόπνλ ἐλ ηῇ πξαγκαηείᾳ ηῶ κέξεη ηνύηῳ ηνύο ηε θηινπεπζηνῦληαο

ὁινζρεξέζηεξνλ βνπιεζόκεζα ζπλεπηζηῆζαη πεξὶ ηλ πξνεηξεκέλσλ ἐπεηδὴ

θαὶ ηὸ πιεῖνλ ηνύηνπ ράξηλ ὑπεδεμάκεζα ηνὺο θηλδύλνπο [θαὶ ηὰο

θαθνπαζείαο] ηνὺο ζπκβάληαο ἡκῖλ ἐλ πιάλῃ ηῇ θαηὰ Ληβύελ θαὶ θαη᾽

Ἰβεξίαλ ἔηη δὲ Γαιαηίαλ θαὶ ηὴλ ἔμσζελ ηαύηαηο ηαῖο ρώξαηο ζπγθπξνῦζαλ

ζάιαηηαλ ἵλα δηνξζσζάκελνη ηὴλ ηλ πξνγεγνλόησλ ἄγλνηαλ ἐλ ηνύηνηο

γλώξηκα πνηήζσκελ ηνῖο Ἕιιεζη θαὶ ηαῦηα ηὰ κέξε ηῆο νἰθνπκέλεο

Seriacutea conveniente y necesario un conocimiento maacutes real de lo que antes se

ignoraba Esto es lo que intentaremos hacer cuando encontremos en nuestra

Historia un lugar adecuado Querriacuteamos que los que quieren saber por

curiosidad participaran de un conocimiento maacutes completo de lo enunciado

85

Para a biografia de Poliacutebio bem como os outros eventos histoacutericos narrados nos proacuteximos dois

paraacutegrafos utilizamos como referecircncia o livro de Usher (2001 p 105 a 107)

48

Fue principalmente por esto por lo que afrontamos los peligros y las

penalidades que nos ocurrieron en un viaje por Africa por Espantildea por la

Galia y por el Mar Exterior que cierra estos paiacuteses para proporcionar a los

griegos el conocimiento de estas partes del universo y corregir la ignorancia

de nuestros antepasados sobre estos temas86

A primeira vez que os gauleses foram mencionados na obra de Poliacutebio foi em

Histoacuterias I 6 2 a 4 em que ele narra rapidamente o saque de Roma no seacuteculo IV aC

Sobre a Gaacutelia Cisalpina temos uma descriccedilatildeo geograacutefica da regiatildeo no livro II das

Histoacuterias entre os capiacutetulos 14 e 17 Poliacutebio (II 17 9 a 12) assim descreveu alguns

costumes dos gauleses

ᾤθνπλ δὲ θαηὰ θώκαο ἀηεηρίζηνπο ηῆο ινηπῆο θαηαζθεπῆο ἄκνηξνη

θαζεζηηεο δηὰ γὰξ ηὸ ζηηβαδνθνηηεῖλ θαὶ θξεαθαγεῖλ ἔηη δὲ κεδὲλ ἄιιν

πιὴλ ηὰ πνιεκηθὰ θαὶ ηὰ θαηὰ γεσξγίαλ ἀζθεῖλ ἁπινῦο εἶρνλ ηνὺο βίνπο

νὔη᾽ ἐπηζηήκεο ἄιιεο νὔηε ηέρλεο παξ᾽ αὐηνῖο ηὸ παξάπαλ γηλσζθνκέλεο

ὕπαξμίο γε κὴλ ἑθάζηνηο ἦλ ζξέκκαηα θαὶ ρξπζὸο δηὰ ηὸ κόλα ηαῦηα θαηὰ ηὰο

πεξηζηάζεηο ῥᾳδίσο δύλαζζαη παληαρῇ πεξηαγαγεῖλ θαὶ κεζηζηάλαη θαηὰ ηὰο

αὑηλ πξναηξέζεηο πεξὶ δὲ ηὰο ἑηαηξείαο κεγίζηελ ζπνπδὴλ ἐπνηνῦλην δηὰ ηὸ

θαὶ θνβεξώηαηνλ θαὶ δπλαηώηαηνλ εἶλαη παξ᾽ αὐηνῖο ηνῦηνλ ὃο ἂλ πιείζηνπο

ἔρεηλ δνθῇ ηνὺο ζεξαπεύνληαο θαὶ ζπκπεξηθεξνκέλνπο αὐηῶ

Habitaban aldeas no amuralladas y no usaban de maacutes ajuar que el

estrictamente necesario Dormiacutean en lechos de hojarasca comiacutean carne y soacutelo

practicaban la agricultura o la guerra por lo cual su vida era muy simple

Entre elles artes y ciencias eran algo desconocido Sus uacutenicos bienes eran el

ganado y el oro ya que dado su geacutenero de vida era lo uacutenico que podiacutean

llevarse faacutecilmente a todas partes y trasladarlo seguacuten sus preferencias Poniacutean

su maacuteximo empentildeo en formar clanes porque entre ellos se consideraba el

maacutes poderoso y el maacutes temible el que diera la impresioacuten de tener el maacuteximo

nuacutemero de clientes y de asociados87

No trecho acima Poliacutebio ressaltou o caraacuteter bruto dos gauleses que natildeo

possuiacuteam qualquer tipo de instruccedilatildeo formal ou organizaccedilatildeo social e se dedicavam

apenas a satisfazer suas necessidades baacutesicas Poliacutebio que conviveu com os romanos e

86

―Seri conveniente e necessaacuterio um conhecimento mais real do que antes se ignorava Eacute isso que

tentaremos fazer quando encontrarmos em nossa histoacuteria um lugar adequado Queriacuteamos que os que

querem saber por curiosidade participem de um conhecimento mais completo do enunciado Foi

principalmente por isso que afrontamos os perigos e as penalidades que nos ocorreram em uma viagem

pela Aacutefrica pela Espanha pela Gaacutelia e pelo Mar Exterior que cerra esses paiacuteses para proporcionar aos

gregos o conhecimento dessas partes do universo e corrigir a ignoracircncia de nossos antepassados sobre

esses tem s Ess cit ccedilatildeo de Poliacutebio bem como s cit ccedilotildees n s proacutexim s not s (87 89 e 90) foi retirada

da traduccedilatildeo feita por Recort (POLIBIO 1981) 87

―H bit v m ldei s sem muros e natildeo us v m de m is objetos do que o estritamente necessaacuterio

Dormiam em leitos de folhas comiam carne e soacute praticavam a agricultura ou a guerra pelo que sua vida

era muito simples Entre eles as artes e as ciecircncias eram algo desconhecido Seus uacutenicos bens eram o

gado e o ouro jaacute que dado seu tipo de vida era o que se podia transportar facilmente a todas as partes e

mudaacute-los segundo suas preferecircncias Colocavam seu maacuteximo empenho em formar clatildes porque entre eles

se considerava o mais poderoso e o mais temiacutevel o que dava a impressatildeo de ter o maior nuacutemero de

clientes e ssoci dos

49

viu seus conflitos com os gauleses escreveu sobre esse povo de forma ora cortecircs ora

temerosa A esse respeito Gruen (2011 p 142) lembr ―Celts h d gener l reput tion

for greed and untrustworthiness so the historian maintains perfectly capable of

appropriating the property of neighbors or llies 88

Um dos aspectos negativos

mencionado por Poliacutebio eacute a falta de compromisso dos gauleses com juramentos e

promessas Um exemplo dessa falta de credibilidade estaacute na seguinte passagem na qual

Poliacutebio escreveu que os romanos receavam fazer acordo com os gauleses Assim temos

(Histoacuterias II 32 8) ηὰ δὲ ζπιινγηζάκελνη ηήλ ηε Γαιαηηθὴλ ἀζεζίαλ θαὶ δηόηη πξὸο

ὁκνθύινπο ηλ πξνζιακβαλνκέλσλ κέιινπζη πνηεῖζζαη ηὸλ θίλδπλνλ εὐιαβνῦλην

ηνηνύηνηο ἀλδξάζηλ ηνηνύηνπ θαηξνῦ θαὶ πξάγκαηνο θνηλσλεῖλ (―Sin emb rgo les

preocupaba la posible deslealtad de aquellas gentes que iban a entrar en combate con

hombres de lin je fiacuten)89

Eckstein (1995 p 123) lembra que em Poliacutebio o grande

nuacutemero dos baacuterbaros a sua violecircncia deslealdade ganacircncia e comportamento insano

compunham um retrato de terriacutevel desordem de fato o conceito de baacuterbaro conduzia o

indiviacuteduo para uma vida indisciplinada Contudo Poliacutebio fez tambeacutem descriccedilotildees que

louvavam algumas caracteriacutesticas dos celtas como em II157 ηό γε κὴλ πιῆζνο ηλ

ἀλδξλ θαὶ ηὸ κέγεζνο θαὶ θάιινο ηλ ζσκάησλ ἔηη δὲ ηὴλ ἐλ ηνῖο πνιέκνηο ηόικαλ ἐμ

αὐηλ ηλ πξάμεσλ ζαθο ἔζηαη θαηακαζεῖλ (―L s cciones beacutelic s explic raacuten por siacute

mismas el gran nuacutemero de hombres su estatura y prestancia corporales e incluso su

ud ci en l guerr )90

Como lembr Gruen (2011 p 142) ―Polybius sketches those

qu lities th t m de G uls worthy dvers ries for Rome 91

Sobre a influecircncia de Timeu na obra de Poliacutebio Usher (2001 p 104) afirma que

Poliacutebio comeccedilou sua obra historiograacutefica a partir do ponto em que Timeu parou e ainda

dedicou boa parte do livro XII a criticar os meacutetodos de Timeu De fato Poliacutebio buscou

escrever histoacuteria de forma metoacutedica sempre justificando aos leitores seus propoacutesitos e

intenccedilotildees Momigliano (1991 p 64) afirma

Poliacutebio foi o primeiro a fazer um relato de primeira matildeo do interior da

Espanha Descreveu a Gaacutelia ndash ou ao menos a Gaacutelia meridional ndash de uma

forma que representou uma novidade para o puacuteblico grego (3597) Podemos

ver como utilizou o seu conhecimento para os capiacutetulos sobre Aniacutebal na

88

―Os celt s tinh m reput ccedilatildeo comum de serem g n nciosos e natildeo confiaacuteveis ssim sustent v o

historiador perfeitamente capazes de se apoderar d propried de dos vizinhos ou li dos 89

―No ent nto os preocup v possiacutevel desle ld de d quel s gentes que i m entr r em comb te com

homens de linh gem fim 90

―As ccedilotildees beacutelic s explic r m por si mesm s o gr nde nuacutemero de homens su est tur e estrutura

corpor l inclusive su udaacuteci n guerr 91

―Poliacutebio esboccedil ess s qu lid des que torn r m os g uleses dversaacuterios difiacuteceis p r Rom

50

Gaacutelia do livro 3 de suas histoacuterias mas o livro 24 em que resumia as suas

descobertas se perdeu Quando afirmou no livro 12 que ao contraacuterio de

Timeu se dera ao trabalho de visitar as terras dos liacutegures e dos gauleses

estava sendo fiel aos fatos Mas pelo menos no livro 3 e no livro 12 se

esqueceu de dizer que as suas exploraccedilotildees foram possibilitadas pelos

romanos e beneficiaram os romanos

Poliacutebio por conseguinte especialmente criticava em Timeu a metodologia desse

uacuteltimo ndash pois Poliacutebio natildeo soacute escreveu sobre os fatos mas tambeacutem testemunhou vaacuterios

acontecimentos bem como teve uma carreira poliacutetica de prestiacutegio Jaacute Timeu por ter

escrito histoacuteria sem ter tido uma participaccedilatildeo direta na vida puacuteblica deveria ser ndash na

criacutetica de Poliacutebio ndash menos digno de autoridade92

De toda a obra de Poliacutebio o livro mais estudado eacute o VI (embora fragmentado)

pois nele Poliacutebio escreveu uma anaacutelise dos romanos do seu sistema poliacutetico e militar e

de como eles obtiveram a hegemonia no Mediterracircneo Eckstein (In CARTLEDGE et

al 1997 p 190) afirma

The point of the spectacular funeral-processions of the wax imagines of the

ancestors of the telling of traditional stories about the great Roman heroes

was ndash Polybius insisted ndash to create a fierce desire in the new generation to

emul te the virtues of their predecessors (6 53 10 54 3 55 d) (hellip) Thus it

was not physis but nomos that made the Romans great and it is precisely

because the Romans are but men to Polybius that he spends so much time in

Book 6 analyzing the social systems that created Roman success93

Poliacutebio entretanto tambeacutem teve um tom pessimista ao longo de sua obra jaacute que

para ele apoacutes a derrota de Aniacutebal e do grande fluxo de riqueza o nomos (cultura)

romano mais faacutecil de ser corrompido do que a physis (natureza) se perdeu com o

grande fluxo de luxo e riqueza a partir dos espoacutelios de Siracusa em 211 aC94

Usher

92

Oliver no seu c piacutetulo ―History nd rhetoric (In BUGH 2006 p 120 122) det lh m is criacutetic de

Poliacutebio a Timeu ndash bem como a outros historiadores Oliver tambeacutem ressalta que embora o trabalho de

Timeu natildeo tenha sobrevivido ele gozava de grande popularidade entre gregos e romanos e que o fato de

Poliacutebio o ter criticado denota a importacircncia que esse historiador teve (In BUGH 2006 p 122) 93

―O ponto dos espet cul res funer is-procissotildees das imagens de cera dos ancestrais de se contar

histoacuterias tradicionais sobre os grandes heroacuteis romanos era ndash Poliacutebio insistia ndash para criar na nova geraccedilatildeo

um forte desejo de emular as virtudes dos predecessores (VI5310 VI543 VI552) () Assim natildeo

foi a physis mas sim nomos que tornou os romanos grandes e eacute precisamente porque os romanos eram

apenas homens para Poliacutebio que ele gastou bastante tempo no livro VI analisando os sistemas sociais que

cri r m o sucesso rom no 94

Para maior detalhamento sobre esse pessimismo em Poliacutebio e tambeacutem das constataccedilotildees parecidas que

Catatildeo o Censor faz a esse respeito recomendamos o artigo de Eckstein ―Physis and Nomos Polybius

the Romans and Cato the Elder (In CARTLEDGE et al 1997 p 191 e ss) Eckstein nesse mesmo

artigo (p 192 e ss) questiona o suposto pragmatismo de Poliacutebio e afirma que Poliacutebio e Catatildeo

considerado moralista na verdade partilhariam muito a visatildeo de mundo romano que tinham

especialmente a respeito do que eles consideravam como a causa da decadecircncia romana ndash isto eacute as

riquezas obtidas com as conquistas

51

(2001 p 108) ressalta que a grande inovaccedilatildeo de Poliacutebio consistiu no fato de um autor

grego ter usado Roma como seu principal foco e buscado a escrita de uma genuiacutena

histoacuteria universal natildeo centrada na Greacutecia como os antecessores Eacuteforo e Timeu

buscaram fazer Usher tambeacutem afirma (2001 p 109)

Polybius describes his conception of history s pr gm ticlsquo by which he

means that the factual material should consist primarily of events which

directly affect the political situation and their interpretation should likewise

be concerned primarily with political implications This rule out everything

that is merely marvellous terrifying or amusing history is to be a serious

subject if it is to provide instruction for men of state as he intends it

should95

Poliacutebio visou a escrever histoacuteria de forma pragmaacutetica realccedilando aspectos

poliacuteticos e militares que teriam um valor praacutetico para o seu leitor tanto por causa das

explicaccedilotildees e motivaccedilotildees por traacutes dos eventos quanto porque tambeacutem julgava

criticamente o espiacuterito dos homens como exemplos para uma conduta futura

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639) Lintott tambeacutem afirma (In

BOARDMAN et al 1986 p 639)

Because the whole history of the Mediterranean had become united through

Roman power he believed it was possible to write a universal history which

w s t the s me time coherent nd h d n expl n tory v lue Polybiuslsquo work

was thus the culmination of Hellenistic historiography in that politico-

military history traditionally focused on the city-state was given the breadth

of a universal chronicle His narrative chronologically based on Olympiads

and their constituent years dealt successively with the different regions of the

world known to the Greeks cross-cutting in order to keep parallel stories in

step with one another and stressing their interrelation and convergence At

the same time he transformed the Greek historiography because his central

theme was the rise of an alien empire96

Como Strasburger (1965 p 46) destaca o grande objetivo de Poliacutebio era

descrever e explicar o fenocircmeno da ascensatildeo de Roma em um periacuteodo relativamente

95

―Poliacutebio descreveu su concepccedilatildeo de histoacuteri como ―pr gmaacutetic pelo que ele entendia que o material

factual deveria consistir primeiramente nos eventos que diretamente afetavam uma situaccedilatildeo poliacutetica e a

sua interpretaccedilatildeo deveria do mesmo modo se ater primeiramente agraves implicaccedilotildees poliacuteticas Essa regra

excluiu tudo que eacute meramente maravilhoso aterrorizante ou divertido a histoacuteria deveria ser um assunto

seacuterio se for p r prover instruccedilatildeo os homens de Est do como ele credit que dev ser 96

―Como tod histoacuteri do Mediterracircneo se uniu tr veacutes do poder rom no ele creditou que era possiacutevel

escrever uma histoacuteria universal que seria ao mesmo tempo coerente e de valor explanatoacuterio O trabalho

de Poliacutebio entatildeo foi o apogeu da historiografia heleniacutestica nessa histoacuteria poliacutetico-militar

tradicionalmente focada em cidade-estado a qual foi dada a abrangecircncia de uma crocircnica universal Sua

narrativa cronologicamente baseada nas Olimpiacuteadas e seus anos constituintes lidou sucessivamente com

as diferentes regiotildees do mundo conhecido pelos gregos fazendo um corte para manter histoacuterias paralelas

no mesmo ponto uma com a outra e acentuando sua inter-relaccedilatildeo e convergecircncia Ao mesmo tempo ele

tr nsformou historiogr fi greg porque seu tem centr l er scensatildeo de um impeacuterio estr ngeiro

52

curto de tempo bem como esclarecer as origens da superioridade romana e os fatores

poliacuteticos militares e morais que proporcionaram essa supremacia97

Dessa forma

Poliacutebio escreveu no comeccedilo de suas Histoacuterias (I15)

ηίο γὰξ νὕησο ὑπάξρεη θαῦινο ἢ ῥᾴζπκνο ἀλζξώπσλ ὃο νὐθ ἂλ βνύινηην

γλλαη πο θαὶ ηίλη γέλεη πνιηηείαο ἐπηθξαηεζέληα ζρεδὸλ ἅπαληα ηὰ θαηὰ

ηὴλ νἰθνπκέλελ νὐρ ὅινηο πεληήθνληα θαὶ ηξηζὶλ ἔηεζηλ ὑπὸ κίαλ ἀξρὴλ

ἔπεζε ηὴλ Ῥσκαίσλ ὃ πξόηεξνλ νὐρ εὑξίζθεηαη γεγνλόο

En efecto iquestpuede haber alguacuten hombre tan necio y negligente que no se

interese en conocer coacutemo y por queacute geacutenero de constituicioacuten poliacutetica fue

derrotado casi todo el universo en ciquenta y tres antildeos no cumplidos y cayoacute

bajo el imperio indisputado de los romanos Se puede comprobar que antes

esto no habiacutea ocurrido nunca98

Todavia Poliacutebio natildeo buscou justificar o fenocircmeno do poderio romano mas

apenas admirava a dominaccedilatildeo de um grande poder ndash da mesma forma que o faraacute Catatildeo

o Censor (BARONOWSKI 2011 p61) Tambeacutem de acordo com Dubuisson (1985 p

227) Poliacutebio buscava compreender e natildeo julgar o sucesso dos romanos ele buscava

apreciar esse sucesso em termos de eficaacutecia e natildeo de valor moral natildeo se encontram em

Poliacutebio ndash como mais tarde se encontraraacute em Posidocircnio ndash as tentativas de cunho estoico

de se justificar a dominaccedilatildeo dos romanos devido a suas eminentes qualidades

Em suas Histoacuterias Poliacutebio tambeacutem apresentou retratos de grandes

personalidades como Aniacutebal e o proacuteprio Cipiatildeo Emiliano Ele buscou uma escrita

neutra narrando os acontecimentos de forma clara e precisa pois condenava os usos da

retoacuterica da eacutepica e da trageacutedia na historiografia escrita por autores que foram seus

contemporacircneos (como a longa criacutetica a Timeu) e Poliacutebio teve Tuciacutedides como modelo

de escrita (USHER 2001 p 109 e ss) assim como Tuciacutedides ele foi um historiador

com consciecircncia de seus princiacutepios e metodologia de seu trabalho e sua prioridade

maacutexima era procurar a verdade atraveacutes das mais autecircnticas evidecircncias possiacuteveis

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639)

Ao ser o primeiro grego de que temos notiacutecia que foi a Roma viu e conheceu a

cidade ndash e sobretudo escreveu sobre a sua histoacuteria ndash eacute importante notar que Poliacutebio

algumas vezes se referiu aos proacuteprios romanos como baacuterbaros Esse eacute um ponto

97

Para maior detalhamento sobre o estilo de escrita de Poliacutebio recomendamos o capiacutetulo ―Poliacutebio de

Marques (in JOLY 2007 p 45 a 63) 98

―Com efeito pode h ver lgum homem tatildeo neacutescio e negligente que natildeo se interesse em conhecer como

e por que gecircnero de constituiccedilatildeo poliacutetica foi derrotado quase todo o universo em cinquenta e trecircs anos

incompletos e caiu sob o impeacuterio incontestaacutevel dos romanos Pode-se comprovar que antes isso nunca

tinh ocorrido Ess cit ccedilatildeo t mbeacutem foi retir d de Polibio (1981 p 56)

53

polecircmico pois alguns pesquisadores como Hartog (2014 p214) consideram que

Poliacutebio o grego passou a se identificar com os romanos e ao fazer parte desse grupo

ele natildeo se referi os rom nos como baacuterb ros Ch mpion em seu rtigo ―Rom ns s

βάξβαξνη three Polybian speeches and the politics of cultural indetermin cy discord

dessa opiniatildeo e afirma que Poliacutebio chamou os romanos indiretamente de baacuterbaros em

trecircs discursos mencionados em sua obra

De acordo com Champion em apenas uma passagem das suas Histoacuterias Poliacutebio

falou da sua proacutepria boca que os romanos eram baacuterbaros No trecho que Champion

destaca Poliacutebio estaacute criticando Timeu No livro XII Poliacutebio acusou o erro de Timeu na

descriccedilatildeo de um ritu l religioso ch m do ―c v lo de outubro Ness cerimocircni de

acordo com Timeu os romanos sacrificavam um cavalo no campo de Marte em um dia

especiacutefico para relembrar o desastre da guerra de Troia por causa do famoso cavalo de

madeira que levou agrave queda da cidade ndash Timeu considerava os romanos descendentes dos

troianos (CHAMPION 2000 p431) Ao criticar essa explicaccedilatildeo de Timeu Poliacutebio

afirmou que essa praacutetica romana era um costume rotineiro entre quase todos os povos

baacuterbaros Ele disse que se fosse seguir o argumento de Timeu entatildeo todos os baacuterbaros

seriam descendentes dos troianos Poliacutebio acusou Timeu de falta de experiecircncia e

conhecimento superficial ao relacionar o sacrifiacutecio do cavalo em Roma com o mito das

origens troianas dos romanos Champion (2000 p 432) assim explica

In this inst nce Polybius t kes exception to both Tim euslsquo linking of Rome

to the Homeric tradition and his implication that the original Romans were

refugees from the civilized city of Troy Greater learning and diligence

Polybius maintains would have led Timaeus to realize that the answer was

much simpler horse sacrifice is nearly univers l mong βάξβαξνη Rom ns

as barbarians act according to a widespread barbarian custom If Timaeus

had realized this he would not have relayed the silly story of the Trojan

horse in this context99

Quanto aos discursos nos quais Poliacutebio chamou os romanos de baacuterbaros de

forma indireta temos trecircs passagens A primeira delas eacute a fala do embaixador etoacutelio

Agelau no final do livro V das Histoacuterias no contexto da conferecircncia de paz realizada

99

―Dess form Poliacutebio f z objeccedilatildeo t nto o f to de Timeu lig r Rom agrave tr diccedilatildeo homeacuteric qu nto su

implicaccedilatildeo de que os romanos originais eram refugiados da civilizada cidade de Troia Maior estudo e

diligecircncia Poliacutebio sustenta teriam levado Timeu a perceber que a resposta era muito mais simples o

sacrifiacutecio do cavalo eacute quase universal entre os baacuterbaros Os romanos como baacuterbaros agem de acordo

com um costume baacuterbaro muito difundido Se Timeu tivesse percebido isso ele natildeo teria confiado na

boba histoacuteri do c v lo troi no nesse contexto

54

em Naupactus (atual Lepanto) em 217 aC100

Agelau afirmou que seria melhor que os

gregos ao inveacutes de lutarem entre si se unissem contra os invasores baacuterbaros que

assediavam as suas cidades para ele qualquer lado que fosse o vencedor da guerra

entre Roma e Cartago invadiria a Greacutecia e teria um comportamento exacerbado para

com os vencidos Assim Poliacutebio escreveu o discurso de Agelau (Hist V 104 1-7)

ὃο ἔθε δεῖλ κάιηζηα κὲλ κεδέπνηε πνιεκεῖλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιιήινηο ἀιιὰ

κεγάιελ ράξηλ ἔρεηλ ηνῖο ζενῖο εἰ ιέγνληεο ἓλ θαὶ ηαὐηὸ πάληεο θαὶ

ζπκπιέθνληεο ηὰο ρεῖξαο θαζάπεξ νἱ ηνὺο πνηακνὺο δηαβαίλνληεο δύλαηλην

ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο ἀπνηξηβόκελνη ζπζζῴδεηλ ζθο αὐηνὺο θαὶ ηὰο

πόιεηο νὐ κὴλ ἀιι᾽ εἰ ηὸ παξάπαλ ηνῦην κὴ δπλαηόλ θαηά γε ηὸ παξὸλ ἠμίνπ

ζπκθξνλεῖλ θαὶ θπιάηηεζζαη πξντδνκέλνπο ηὸ βάξνο ηλ ζηξαηνπέδσλ θαὶ

ηὸ κέγεζνο ηνῦ ζπλεζηηνο πξὸο ηαῖο δύζεζη πνιέκνπ δῆινλ γὰξ εἶλαη παληὶ

ηῶ θαὶ κεηξίσο πεξὶ ηὰ θνηλὰ ζπνπδάδνληη θαὶ λῦλ ὡο ἐάλ ηε Καξρεδόληνη

Ῥσκαίσλ ἐάλ ηε Ῥσκαῖνη Καξρεδνλίσλ πεξηγέλσληαη ηῶ πνιέκῳ δηόηη θαη᾽

νὐδέλα ηξόπνλ εἰθόο ἐζηη ηνὺο θξαηήζαληαο ἐπὶ ηαῖο Ἰηαιησηλ θαὶ

Σηθειησηλ κεῖλαη δπλαζηείαηο ἥμεηλ δὲ θαὶ δηαηείλεηλ ηὰο ἐπηβνιὰο θαὶ

δπλάκεηο αὑηλ πέξα ηνῦ δένληνο δηόπεξ ἠμίνπ πάληαο κὲλ θπιάμαζζαη ηὸλ

θαηξόλ κάιηζηα δὲ Φίιηππνλ εἶλαη δὲ θπιαθήλ ἐὰλ ἀθέκελνο ηνῦ

θαηαθζείξεηλ ηνὺο Ἕιιελαο θαὶ πνηεῖλ εὐρεηξώηνπο ηνῖο ἐπηβαιινκέλνηο

θαηὰ ηνὐλαληίνλ ὡο ὑπὲξ ἰδίνπ ζώκαηνο βνπιεύεηαη θαὶ θαζόινπ πάλησλ

ηλ ηῆο Ἑιιάδνο κεξλ ὡο νἰθείσλ θαὶ πξνζεθόλησλ αὑηῶ πνηῆηαη

πξόλνηαλ ηνῦηνλ γὰξ ηὸλ ηξόπνλ ρξσκέλνπ ηνῖο πξάγκαζη ηνὺο κὲλ

Ἕιιελαο εὔλνπο ὑπάξρεηλ αὐηῶ θαὶ βεβαίνπο ζπλαγσληζηὰο πξὸο ηὰο

ἐπηβνιάο ηνὺο δ᾽ ἔμσζελ ἧηηνλ ἐπηβνπιεύζεηλ αὐηνῦ ηῇ δπλαζηείᾳ

θαηαπεπιεγκέλνπο ηὴλ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο αὐηὸλ πίζηηλ εἰ δὲ πξαγκάησλ

ὀξέγεηαη πξὸο ηὰο δύζεηο βιέπεηλ αὐηὸλ ἠμίνπ θαὶ ηνῖο ἐλ Ἰηαιίᾳ ζπλεζηζη

πνιέκνηο πξνζέρεηλ ηὸλ λνῦλ ἵλα γελόκελνο ἔθεδξνο ἔκθξσλ πεηξαζῇ ζὺλ

θαηξῶ ηῆο ηλ ὅισλ ἀληηπνηήζαζζαη δπλαζηείαο

Declaroacute que lo maacutes necesario era que los griegos no se hicieran nunca la

guerra mutuamente debiacutean dar muchas gracias a los dioses si lograban decir

todos la misma cosa y estar de acuerdo daacutendose las manos como los que

cruzan un riacuteo con ello rechazariacutean las incursiones de los baacuterbaros se

salvariacutean ellos mismos y sus ciudades En el caso con todo de que ello no

fuera totalmente posible pidioacute que al menos en aquel momento se pusieran

de acuerdo y se precavieran era preciso tener en cuenta los formidables

ejeacutercitos y la magnitud de la guerra que se desarrollaba en occidente Porque

es evidente incluso al que ahora no estaacute muy metido en poliacutetica que en esta

guerra da lo mismo que los romanos venzan a los cartagineses o que eacutestos

triunfen de los romanos ya que miacuterese como se mire lo loacutegico es que los

vencedores no se den por satisfechos con la posesioacuten de Italia y de Sicilia

acudiraacuten aquiacute y ampliaraacuten sus operaciones y desplegaraacuten sus fuerzas maacutes

allaacute de lo que es justo (grifos nossos) 101

100

Trata-se da negociaccedilatildeo de paz entre os etoacutelios e Filipe da Macedocircnia Poliacutebio narrou esse

acontecimento em V 103 e 104 101

―Decl rou que o m is import nte er que os gregos nunc tr v r m guerr mutu mente devi m dar

muitas graccedilas aos deuses se conseguissem dizer todos a mesma coisa e estar de acordo dando-se as matildeos

como os que cruzam um rio com isso rechaccedilariam as incursotildees dos baacuterbaros salvariam a eles mesmos e

as suas cidades No caso contudo de que isso natildeo fosse totalmente possiacutevel pediu que ao menos naquele

momento entrassem em acordo e se preparassem era preciso ter em conta os formidaacuteveis exeacutercitos e a

magnitude da guerra que se desenrolava no ocidente Porque eacute evidente inclusive ao que agora natildeo estaacute

muito metido em poliacutetica que nessa guerra daacute no mesmo os romanos vencerem os cartagineses ou que

estes vencedores triunfem sobre os romanos jaacute que de uma forma ou de outra o loacutegico eacute que os

55

No original grego Agelau disse ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο (as incursotildees dos

baacuterbaros) para se referir aos romanos ou aos cartagineses ndash que haveriam de invadir a

Greacutecia natildeo se contentando apenas com a Itaacutelia ou a Siciacutelia O comportamento baacuterbaro

tambeacutem consistia em usar a forccedila mais do que necessaacuterio

O segundo discurso eacute o de Licisco no livro IX 32 a 40 Licisco embaixador

arcaacutedio foi a Esparta em nome dos macedocircnios para formar uma alianccedila contra Roma e

os seus aliados etoacutelios Sua fala enfatizou os grandes serviccedilos que os macedocircnios

prestaram aos gregos ao ajudar a combater os baacuterbaros no norte e que uma nova alianccedila

deveria ser feita para rechaccedilar os romanos que satildeo comparados com os persas Poliacutebio

dessa forma escreveu o discurso de Licisco (Hist IX 37 5-8) em que ele se dirigiu aos

etoacutelios

ηίζη δὲ λῦλ θνηλσλεῖηε ηλ ἐιπίδσλ ἢ πξὸο πνίαλ παξαθαιεῖηε ηνύηνπο

ζπκκαρίαλ ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ ὅκνηά γε δνθεῖ ηὰ πξάγκαζ᾽

ὑκῖλ ὑπάξρεηλ λῦλ θαὶ πξόηεξνλ ἀιι᾽ νὐ ηἀλαληία ηόηε κὲλ γὰξ ὑπὲξ

ἡγεκνλίαο θαὶ δόμεο ἐθηινηηκεῖζζε πξὸο Ἀραηνὺο θαὶ Μαθεδόλαο ὁκνθύινπο

θαὶ ηὸλ ηνύησλ ἡγεκόλα Φίιηππνλ λῦλ δὲ πεξὶ δνπιείαο ἐλίζηαηαη πόιεκνο

ηνῖο Ἕιιεζη πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπονὓο ὑκεῖο δνθεῖηε κὲλ ἐπηζπζζαη

θαηὰ Φηιίππνπ ιειήζαηε δὲ θαηὰ ζθλ αὐηλ ἐπεζπαζκέλνη θαὶ θαηὰ πάζεο

Ἑιιάδνο

Y ahora iquestcon quieacuten compartiacutes los ideales iquestCon quieacuten exigiacutes de eacutestos que

hagan una alianza iquestNo es con los baacuterbaros iquestY os parece que las cosas

estaacuten como antes iquestNo es exactamente lo contrario Antes disputabais la

hegemoniacutea y el prestigio a aqueos y a macedonios que son linaje vuestro

concretamente a su caudillo Filipo pero en la guerra de ahora unos hombres

baacuterbaros extranjeros pretenden esclavizar a Grecia entera(grifos nossos) 102

Licisco acusou abertamente os etoacutelios de estarem fazendo uma alianccedila com um

povo baacuterbaro ndash no original grego temos ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ Vemos

novamente a ameaccedila de os romanos escravizarem toda a Greacutecia ndash em grego os homens

estrangeiros (πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπο)

vencedores natildeo se deem por satisfeitos com a possessatildeo da Itaacutelia e da Siciacutelia chegaratildeo ateacute aqui

mpli ratildeo su s oper ccedilotildees e us ratildeo d s su s forccedil s muito leacutem do que eacute justo (POLIBIO 1981 p 138 e

139) 102

―E gor com quem comp rtilh is os ide is O que exigis desses com quem f zem um li nccedil Natildeo

eacute com os baacuterbaros Parece-vos que as coisas estatildeo como antes Natildeo eacute exatamente o contraacuterio Antes

disputaacuteveis a hegemonia e o prestiacutegio com aqueus e macedocircnios que satildeo uma linhagem sua

concretamente ao seu liacuteder Filipe mas na guerra de agora os homens baacuterbaros estrangeiros pretendem

escr viz r Greacuteci inteir (POLIBIO 1981 p 338 e 339)

56

O uacuteltimo discurso eacute atribuiacutedo de maneira incerta a Trasiacutecrates103

que estaria na

embaixada grega aliada aos macedocircnicos Em 207 aC essa delegaccedilatildeo se dirigiu agrave

Confederaccedilatildeo Etoacutelia (aliada dos romanos) para negociar um tratado Esse discurso

apareceu no livro XI 4-7 das Histoacuterias e o legado destacou aos etoacutelios que todos os

gregos corriam o risco de serem arruinados pelos romanos na descriccedilatildeo de Poliacutebio (XI

5 1-6)

θαηὲ κὲλ γὰξ πνιεκεῖλ ὑπὲξ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο Φίιηππνλ ἵλα ζῳδόκελνη κὴ

πνηζη ηνύηῳ ηὸ πξνζηαηηόκελνλ πνιεκεῖηε δ᾽ ἐπ᾽ ἐμαλδξαπνδηζκῶ θαὶ

θαηαθζνξᾶ ηῆο Ἑιιάδνο ηαῦηα γὰξ αἱ ζπλζῆθαη ιέγνπζηλ ὑκλ αἱ πξὸο

Ῥσκαίνπο αἳ πξόηεξνλ κὲλ ἐλ ηνῖο γξάκκαζηλ ὑπῆξρνλ λῦλ δ᾽ ἐλ ηνῖο

πξάγκαζη ζεσξνῦληαη γηλόκελαη θαὶ ηόηε κὲλ αὐηὰ ηὰ γξάκκαηα ηὴλ

αἰζρύλελ ὑκῖλ ἐπέθεξε λῦλ δὲ δηὰ ηλ ἔξγσλ ὑπὸ ηὴλ ὄςηλ ηνῦην γίλεηαη

πζη θαηαθαλέο ινηπὸλ ὁ κὲλ Φίιηππνο ὄλνκα γίλεηαη θαὶ πξόζρεκα ηνῦ

πνιέκνπ πάζρεη γὰξ νὐδὲλ δεηλόλ ηνύηῳ δὲ ζπκκάρσλ ὑπαξρόλησλ

Πεινπνλλεζίσλ ηλ πιείζησλ Βνησηλ Δὐβνέσλ Φσθέσλ Λνθξλ

Θεηηαιλ Ἠπεηξσηλ θαηὰ ηνύησλ πεπνίεζζε ηὰο ζπλζήθαο ἐθ᾽ ᾧ ηὰ κὲλ

ζώκαηα θαὶ ηἄπηπια Ῥσκαίσλ ὑπάξρεηλ ηὰο δὲ πόιεηο θαὶ ηὴλ ρώξαλ

Αἰησιλ θαὶ θπξηεύζαληεο κὲλ αὐηνὶ πόιεσο νὔη᾽ ἂλ ὑβξίδεηλ ὑπνκείλαηηε

ηνὺο ἐιεπζέξνπο νὔη᾽ ἐκπηπξάλαη ηὰο πόιεηο λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ

ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ

Afirmaacuteis que luchaacuteis contra Filipo en pro de Grecia entera la cual una vez

liberada no deberaacute obedecer las oacuterdenes de aqueacutel La verdad es sin embargo

que combatiacutes para arruinar y esclavizar a todos los griegos Esto es lo que

dice vuestro pacto con los romanos establecido primero en la letra pero que

ahora vemos trasladado a la realidad Y a entonces lo escrito os llenoacute de

oprobio pero ahora los hechos lo han hecho perceptible a todos Filipo es

soacutelo un pretexto nominal para la guerra Eacutel no corre riesgo Se ha aliado con

la mayoriacutea de peloponesios con los beocios los eubeos los focenses los

locros los tesalios y los epirotas y es contra todos estos uacuteltimos que vosotros

habeacuteis pactado en los teacuterminos que siguen l s person s y los ju res

corresponderaacuten los rom nos l s tierr s y l s ciud des los etolioslsquo Si

fuerais vosotros los que tomarais las ciudades no tolerariacuteais que sus

habitantes fueran maltratados ni que se pegara fuego a las poblaciones En

efecto estaacuteis convencidos de que esto es cruel y salvaje(grifos nossos) 104

No discurso acima o comportamento dos romanos eacute tido como cruel e selvagem

ndash em grego Poliacutebio escreveu λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ Nos trecircs

103

Poliacutebio natildeo especificou quem pronunciou esse discurso mas mencionou apenas que essa foi a fala de

um embaixador Em nota de rodapeacute da sua traduccedilatildeo das Histoacuterias Recort (POLIBIO 1981 p 422 nota

14) afirma que de acordo com Tito Liacutevio quem fez esse discurso foi Trasiacutecrates de Rodes 104

―Afirm stes que lut is contr Filipe em prol de tod Greacuteci qu l um vez libert d natildeo deveraacute

obedecer agraves ordens daquele A verdade eacute poreacutem que combateis para arruinar e escravizar a todos os

gregos Eacute isso que diz o vosso pacto com os romanos estabelecido primeiro na letra mas que agora o

vemos transformado em realidade Jaacute entatildeo o escrito os encheu de vergonha mas agora os feitos o tornou

perceptiacutevel a todos Felipe eacute soacute um pretexto nominal para a guerra Ele natildeo corre risco Se aliou com a

maioria dos peloponesos com os beoacutecios os eubeus os focenses os locros os tessaacutelios e os epirotas e eacute

contra todos esses uacuteltimos que voacutes fizestes o p cto nos termos que se seguem s pesso s e os bens

corresponderi m os rom nos s terr s e s cid des os etoacutelioslsquo Se focircsseis voacutes os que tomaacutesseis s

cidades natildeo tolerariacuteeis que seus habitantes fossem maltratados nem que se ateasse fogo agraves populaccedilotildees

De f to est is convencidos de que isso eacute cruel e selv gem (POLIacuteBIO 1981 p 424)

57

trechos mencionados anteriormente os romanos foram retratados como baacuterbaros que

ameaccedilavam a liberdade grega Champion (2000 p 437) afirma que Poliacutebio teve certo

cuid do o escrever esses discursos ―Polybius then h s f ithfully reported historic l

speeches with the degree of accuracy that his historiographical conventions allowed but

the conditions in which he worked entailed a good deal of what we should call authorial

license 105

Para Poliacutebio o uso desses discursos ndash e desse recurso retoacuterico ndash tinha a

finalidade de causar certo efeito de ressaltar as accedilotildees dos indiviacuteduos seu caraacuteter ou

personalidade ndash ou no caso dos discursos das embaixadas ressaltar a posiccedilatildeo de certos

grupos como por exemplo os etoacutelios (OLIVER In BUGH 2006 p 124) Champion

(2000 p 438) a respeito da criacutetica aos romanos nos discursos acima mencionados

ameniza o tom dessas passagens ao afirmar que esses discursos ndash e o retrato dos

romanos como baacuterbaros ndash devem ser lidos dentro do contexto das interaccedilotildees da poliacutetica

aqueia com os romanos e como o patriota Poliacutebio que era originaacuterio da Aqueia via o

domiacutenio romano Finalizando essa discussatildeo Champion (2000 p 441 e 442) resume

Polybius clearly admired many qualities in the Romans but the Achaean

patriot was also able to assert his independence in giving voice to the

negative aspects of Roman behavior His representations of Romans as both

―honor ry Greeks nd s b rb ri ns le ve the Rom ns in n indetermin te

cultural position106

Na primeira metade do seacuteculo III aC as opiniotildees dos gregos em relaccedilatildeo aos

romanos eram bastante contraditoacuterias ora os romanos eram os descendentes dos

troianos (povo considerado ora civilizado ora baacuterbaro) ora baacuterbaros Champion (2000

p 427) a esse respeito afirma

As early as the mid-fourth century Pl tolsquos pupil Her clides of Pontic

referred to Rome as a Greek city Timaeus writing c 280 incorporated

Rome into the Hellenic-Homeric tradition when he maintained that the

Rom ns were descend nts of the Troj ns (hellip) Cle rly then the Greeks were

willing to think of Romans as part of the civilized world insofar as they lived

in an impressively organized city But Greek attitudes towards Rome in the

late third and second centuries were for the most part instrumental when

Romans acted in Greek interests as in the case of the Acarnanians Greeks

engaged what I have called a politics of cultural assimilation treating

105

―Poliacutebio entatildeo fielmente reportou os discursos histoacutericos com o gr u de cuid de que su s

convenccedilotildees historiograacuteficas lhe permitiram mas as condiccedilotildees nas quais trabalhou implicaram em um

bom acordo do que noacutes chamariacuteamos de licenccedil utor l 106

―Poliacutebio cl r mente dmir v muit s qu lid des dos rom nos m s o queu p triot t mbeacutem er c p z

de afirmar sua independecircncia ao dar voz aos aspectos negativos do comportamento romano As suas

represent ccedilotildees dos rom nos t nto como gregos honoraacuterioslsquo quanto baacuterbaros deixam os romanos em uma

posiccedilatildeo cultur l indetermin d

58

Rom ns s ―honor ry Greeks when they cted in brut l f shion in Greek

l nds the Rom ns bec me βάξβαξνη through Greek politics of cultural

alienation 107

Poliacutebio ao falar dos conflitos entre gauleses e romanos retratou os romanos

como civilizados (Histoacuterias I a V) Para o autor grego o termo baacuterbaro era

essencialmente negativo e soacute faria sentido se oposto ao Helenismo esse termo servia

para designar a falta de temperanccedila moderaccedilatildeo e razatildeo consideradas como as balizas

da sociedade helecircnica civilizada Assim como Isoacutecrates Poliacutebio tambeacutem achava que a

paideia era uma ferramenta para combater a barbaacuterie (CHAMPION 2000 p431)

Poliacutebio profundamente pragmaacutetico defendia o ensino e a escrita da Histoacuteria

como sendo algo positivo aos homens Ele ressaltou que o historiador deveria conhecer

os locais dos quais fala utilizar as fontes disponiacuteveis buscar a exatidatildeo em sua obra e

ser imparcial O historiador tambeacutem deveria buscar as causas dos eventos e narrar as

tradiccedilotildees costumes e instituiccedilotildees das naccedilotildees ou povos mencionados (JARDEacute 1977 p

85 e 86)

122 ndash Catatildeo o Censor

O contato dos romanos com os gauleses foi bem diferente da experiecircncia que os

gregos tiveram Desde os primoacuterdios de sua histoacuteria os romanos sofriam com as

ameaccedilas dos povos que estavam proacuteximos o que resultou no saque de Roma e

posteriormente durante a consolidaccedilatildeo do impeacuterio romano com inuacutemeras batalhas

contra povos estrangeiros como vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Os romanos

embora mais proacuteximos dos celtas todavia recorriam aos escritores gregos para tratados

de etnografia jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo natildeo era o foco dos romanos ndash pelo menos

natildeo haacute fontes latinas que tratam de etnografia que nos chegaram Do material que haacute

disponiacutevel Catatildeo se destacou como o primeiro nome romano que escreveu a respeito

dos gauleses jaacute no seacuteculo II aC

107

―Jaacute em me dos do seacuteculo qu rto o pupilo de Platatildeo Heraacuteclides de Pocircntica referiu-se a Roma como

uma cidade grega Timeu escrevendo por volta do ano 280 incorporou Roma na tradiccedilatildeo helecircnica-

homeacuterica quando afirmou que os romanos eram descendentes dos troianos () Claramente entatildeo os

gregos ansiavam por considerar os romanos como parte do mundo civilizado jaacute que eles viviam em uma

cidade impressionantemente organizada Mas as atitudes dos gregos perante Roma no fim do seacuteculo III e

no seacuteculo II aC foram na maior parte instrumentais quando os romanos agiam de acordo com os

interesses gregos como no caso dos acarnacircnios os gregos aderiram ao que chamei de poliacutetica de

ssimil ccedilatildeo cultur l tr t ndo os rom nos como ―gregos honoraacuterios qu ndo eles gi m de m neir

brutal nas terras gregas os romanos se tornaram baacuterbaros atraveacutes d poliacutetic greg de lien ccedilatildeo cultur l

59

Catatildeo o Censor tambeacutem conhecido como Catatildeo o Velho viveu durante o

periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica Nasceu em Tuacutesculo em 234 aC oriundo de uma

proacutespera famiacutelia plebeia de fazendeiros e obteve vaacuterias magistraturas Em 204 aC

Catatildeo entatildeo questor acompanhou Cipiatildeo ateacute a Siciacutelia e agrave Aacutefrica Em 198 aC foi pretor

no governo da Sardenha e em 195 aC obteve o consulado exercido por ele e por

Valeacuterio Flaco108

Dois anos antes em 197 aC a proviacutencia da Hispacircnia fora dividida em

Citerior e Ulterior para facilitar o domiacutenio romano sobre esse territoacuterio que se rebelara

tanto com o jugo de Cartago quanto com o jugo de Roma Catatildeo apoacutes ter sido eleito

cocircnsul recebeu o governo da Hispacircnia em 195 aC para colocar fim a essa revolta

(CONTE 1999 p 85) Em 184 aC Catatildeo tornou-se censor e combateu com rigor o

luxo excessivo dos romanos causado sobretudo pelas riquezas que afluiacuteram para Roma

atraveacutes das vitoacuterias obtidas em Siracusa (211 aC) e posteriormente em Pidna (168

aC) Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 361) destaca que Catatildeo tentou criar

taxas para coibir esse luxo excessivo mas que falhou nesse propoacutesito Em 155 aC

tentando combater a corrupccedilatildeo dos valores romanos perante a cultura grega que fazia

sucesso entre a elite da Cidade Catatildeo se manifestou contra uma embaixada de filoacutesofos

enviados por Atenas expulsando-os de Roma109

Apesar das tentativas de coibir a

crescente influecircncia grega os romanos passaram cada vez mais a considerar que a

educaccedilatildeo helecircnica era sinocircnimo de refinamento os filhos da elite eram criados com

pedagogos e educadores helecircnicos muitas vezes trazidos a Roma na condiccedilatildeo de

escravos e depois esses jovens iam completar seus estudos em cidades gregas Em 153

aC Catatildeo ao visitar Cartago ndash que ressurgia apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica ndash

manifestou a ideia de que essa cidade devia ser destruiacuteda apoacutes uma proliacutefica vida

puacuteblica ele faleceu em 149 aC110

Pela sua produccedilatildeo literaacuteria Catatildeo eacute considerado em

alguns compecircndios de literatura ndash como no proacuteprio livro de Conte (1999 p 86) ndash como

o fundador da prosa latina pela sua obra que nos chegou quase completa o De

108

Durante a Repuacuteblica romana o consulado ndash mais alto degrau das magistraturas ndash era exercido por dois

indiviacuteduos que tinham as seguintes atribuiccedilotildees convocar e presidir o Senado e os comiacutecios fazer

executar as decisotildees do Senado e do povo recrutar e comandar exeacutercitos (BORNECQUE MORNET

2002 p 91) 109

Gruen no capiacutetulo ―C to nd Hellenism (1992 p 52 83) question tatildeo bem est belecid ntip ti

de Catatildeo com os gregos discutindo certos aspectos filohelecircnicos por parte de Catatildeo bem como sobre sua

educaccedilatildeo e conhecimento da cultura grega 110

Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Catatildeo o livro de Conte (1999 p 85 e

86)

60

agricultura (Sobre a agricultura) com conselhos sobre a vida no campo111

Dos

discursos que proferiu no senado temos apenas fragmentos

Outra obra bastante conhecida de Catatildeo eacute Origines (Origens) em sete livros

escrita por ele quando jaacute estava em idade avanccedilada (CONTE 1999 p 86) O primeiro

livro era dedicado agrave fundaccedilatildeo de Roma o segundo e terceiro livros falavam sobre as

origens das cidades italianas O quarto livro era sobre a Primeira Guerra Puacutenica o

quinto sobre a Segunda Guerra Puacutenica e os dois uacuteltimos livros narravam os eventos

romanos ateacute a pretura de Seacutervio Sulpiacutecio Galba em 152 aC (CONTE 1999 p 87)

Origines eacute considerada a primeira obra latina em prosa dedicada agrave histoacuteria de que temos

notiacutecia112

Os romanos Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento (que nasceram alguns anos antes de

Catatildeo) escreveram sobre a histoacuteria latina em prosa mas em liacutengua grega ndash dos quais

temos apenas poucos fragmentos (ASTIN 1978 p 221) Pelo que nos eacute possiacutevel

conhecer Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento foram os primeiros historiadores a escrever

exclusivamente sobre a histoacuteria romana113

Como Lintott (In BOARDMAN et al

1986 p 637) ressalta ambos viveram no periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica e

ocuparam cargos puacuteblicos aleacutem disso eles tambeacutem escreveram suas obras histoacutericas

desde os primoacuterdios de Roma Deve-se levar em conta que Faacutebio Pictor e Ciacutencio

Alimento evidentemente ao escrever sua obra histoacuterica em grego tinham em mente o

puacuteblico helecircnico tanto o da Magna Greacutecia e da Siciacutelia como tambeacutem o da proacutepria

Greacutecia De cordo com Emilio G bb (2000 p 66) ―questo interess mento per un

pubblico greco () voleva presentare Roma nel quadro della storia greca per garantirne

in certo senso l legittimitagrave non solo dell presenz m nche delllsquoegemoni che

nd v conquist ndo 114

Conhecido por seu caraacuteter anti-helecircnico Catatildeo escreveu suas

obras em latim como citamos acima sobre as Origines para impor a liacutengua latina como

veiacuteculo de tratados em prosa

111

Em portuguecircs temos a traduccedilatildeo do De agricultura feita por Trevizam (2016) 112

Para maior aprofundamento sobre as Origens e do que pode ser entendido a seu respeito a partir de

seus fragmentos e de fontes sobre essa obra recomendamos Astin (1978) 113

Beck escreve de forma mais aprofundada sobre Faacutebio Pictor e sua obra no capiacutetulo ―The early Roman

tradition (In MARINCOLA 2007 v 1 p 259 e 260) Nesse mesmo capiacutetulo (p 263 e ss) Beck

tambeacutem fala sobre outros autores de histoacuteria latina como Luacutecio Calpuacuternio Pisatildeo Frugi Luacutecio Caacutessio

Hemina entre outros cujo trabalho nos chegou de forma bastante fragmentada 114

―Esse interesse por um puacuteblico grego ( ) vis v present r Rom no qu dro d histoacuteri greg p r

garantir em certo sentido a legitimidade natildeo soacute da presenccedila mas tambeacutem da hegemonia que ela andava

conquist ndo

61

Ecircnio imigrante de origem messaacutepia que foi trazido a Roma por Catatildeo compocircs

um poema eacutepico em latim sobre a histoacuteria de Roma desde a queda de Troia ateacute a eacutepoca

que lhe era contemporacircnea Pelo fato de a narrativa desenrolar-se ano a ano a obra

recebeu o nome de Annales (Anais) Aleacutem da inovaccedilatildeo de uma obra historiograacutefica em

latim ter sido escrita em versos outro fator ateacute entatildeo ineacutedito foi o fato de a histoacuteria de

Roma ter sido escrita por algueacutem que natildeo era da elite da urbe (BECK In

MARINCOLA 2007 v 1 p 262) Em 184 aC Ecircnio conseguiu a cidadania romana

Essa premissa de autores latinos de escrever em grego para um puacuteblico helecircnico

ndash que durou ateacute metade do seacuteculo II aC ndash cessou com a hegemonia de Roma no

Mediterracircneo ao vencer Cartago e conquistar a Greacutecia a necessidade de se justificar ou

de convencer os outros povos do poderio romano se encerrou (GABBA 2000 p 66 e

67) Gabba (2000 p 67) afirma

Catone aveva giagrave reagito alla tendenza e alle finalitagrave della storiografia in

greco con le sue Origines nelle quali pur accanto al riconoscimento di

presenze greche nella fase protostorica di Roma si insisteva piuttosto sulle

connessioni italiche di Roma e della sua storia Catone si rivolgeva ad un

pubblico romano-italico e per questo inseriva nel suo texto anche alcune

importanti orazioni politiche da lui pronunciate115

A escolha de Catatildeo por escrever em latim tambeacutem se justificava pelo seu notaacutevel

repuacutedio agrave influecircncia da cultura grega em Roma Ao contraacuterio dos autores analistas isto

eacute que escreviam a histoacuteria ano a ano Catatildeo escolheu escrever sua histoacuteria por temas e

acontecimentos Pimentel (1997 p 53) ressalta outro aspecto interessante dessa obra

Catatildeo inovou tambeacutem porque entendeu a histoacuteria natildeo soacute em funccedilatildeo de Roma

mas sim de toda a Itaacutelia e dos povos que a habitavam e porque sobretudo nos

quatro uacuteltimos livros encarou a gesta de Roma sob o prisma de todos os

conflitos em que se envolveu onde quer que se dessem Tudo que viu e viveu

durante a segunda Guerra Puacutenica na Hispacircnia na Siciacutelia ou na Greacutecia

serviu-lhe obviamente como factor enriquecedor das Origines Assim os

fragmentos que chegaram ateacute noacutes respiram o contacto proacuteximo com terras

gentes lendas em informaccedilotildees pormenorizadas e amiuacutede pitorescas que nos

revelam o militar o administrador o poliacutetico mas tambeacutem o homem curioso

e interessado que Catatildeo era Assim sabemos que os Liacutegures eram mentirosos

e ignorantes que a maior parte dos gauleses tinha como ideal de vida falar

bem e combater muito ou ouvimos Catatildeo evocar a riqueza da Peniacutensula

Ibeacuterica com os seus rios cheios de peixe e ouro as suas minas de ferro e

prata

115

―C tatildeo jaacute h vi re gido contr tendecircnci e fin lid de d historiogr fi em grego com su s Origens

nas quais por questatildeo do reconhecimento da presenccedila grega na fase proto-histoacuterica de Roma ele insistia

sobretudo nas conexotildees itaacutelicas de Roma e da sua histoacuteria Catatildeo se dirigia a um puacuteblico romano-itaacutelico e

por isso inseri no seu texto t mbeacutem lguns import ntes discursos poliacuteticos pronunci dos por ele

62

Como Conte (1999 p 87) relembra essa abordagem histoacuterica de Catatildeo ndash

considerando sua escrita natildeo soacute sobre Roma mas tambeacutem sobre os outros povos itaacutelicos

que contribuiacuteram para a grandeza de Roma ndash se justificaria pelo fato de o proacuteprio Catatildeo

ser um homo nouus que natildeo era originaacuterio da urbe Aleacutem dos povos da Itaacutelia ele

escreveu sobre os gauleses que habitavam ao norte da peniacutensula itaacutelica Catatildeo tambeacutem

acrescentou agrave narrativa digressotildees e relatos maravilhosos como Heroacutedoto jaacute fizera

antes e tambeacutem algumas versotildees dos seus discursos (LINTOTT In BOARDMAN et

al 1986 p 639)

Por ter viajado por vaacuterias proviacutencias e territoacuterios Catatildeo tambeacutem abordou os

povos estrangeiros em Origines sobretudo costumes dos hispanos e africanos jaacute que ele

teve maior contato com esses povos (CONTE 1999 p 87) Quanto aos gauleses desde

jovem Catatildeo jaacute tivera contato com eles pois lutara na batalha de Metauro contra o liacuteder

cartaginecircs Asdruacutebal que tinha o apoio dos celtas durante a Segunda Guerra Puacutenica Ateacute

entatildeo no periacuteodo do seacuteculo III a II aC os gregos demonstraram interesse maior sobre

os celtas do que autores latinos Catatildeo que viveu no mesmo periacuteodo que Poliacutebio parece

ter sido o uacutenico romano que se interessou por escrever sobre os gauleses pelo que

temos notiacutecia Sobre a curiosidade que Catatildeo tinha por outros povos Momigliano

(1991 p 63) esclarece

Catatildeo tinha um interesse instintivo e talvez respeito pelas populaccedilotildees

vencidas da Itaacutelia e das proviacutencias Observou os celtas com atenccedilatildeo e parece

ter sido o primeiro a consideraacute-los rgutos ―pler que G lli du s res

industriosissime persequitur rem milit rem et rgute loqui(fr 34 Peter) ( )

Os celtas assomavam enormes em Origines de Catatildeo Ele tentou ser claro

quanto a lugares e nomes Encontrou um ramo dos perigosos cenomanes

entre os volcas natildeo distante de Marselha Provavelmente foi o primeiro a

incluir os gauleses em uma histoacuteria da Itaacutelia embora Faacutebio Pictor que em 225

aC lutou contra eles estivesse fadado a dizer algo sobre as suas

caracteriacutesticas Enquanto Catatildeo ainda estava vivo a classe governante

romana fez um esforccedilo deliberado para comeccedilar a conhecer melhor os celtas

Infelizmente o uacutenico fragmento que nos chegou de Catatildeo que menciona os

celt s eacute o que foi cit do cim por Momigli no Temos ―pleraque Gallia duas res

industriosissime persequitur rem militarem et argute loqui 116

Esse fragmento eacute do

livro II das Origens e diz que ― m ior p rte d Gaacuteli busc du s cois s com muit

dedic ccedilatildeo praacutetic milit r e o f l r rgut mente Erich Gruen consider que embor

breve este fragmento possui relevacircncia para percebermos que Catatildeo natildeo se referia de

116

Fragmento nuacutemero 34 retirado de Cato (In PETER 1914 v1)

63

maneira pejorativa aos gauleses N s p l vr s de Gruen (2011 p 146) ―the comment

brief though it be evidently represents a general judgment and by no means a hostile

one 117

13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC

Depois de Poliacutebio o proacuteximo nome relevante da Greacutecia que tratou dos galos foi

o historiador Posidocircnio

131 ndash Posidocircnio

Nascido em Apameia na atual Siacuteria permaneceu por muito tempo em Rodes ndash

daiacute ser conhecido tanto por Posidocircnio de Apameia ou de Rodes Viveu provavelmente

entre os anos 135 a 51 aC Momigliano (1991 p 65) a respeito de Posidocircnio diz

Podemos ser mais categoacutericos a respeito de Artemidoro de Eacutefeso e Posidocircnio

de Rodes a quem Estrabatildeo tratou como suas fontes mais autorizadas para a

Espanha e a Gaacutelia Ambos eram embaixadores em Roma de suas proacuteprias

cidades ndash ou seja eram muito bem-vindos pela classe dirigente de Roma ()

Eacute evidente que Artemidoro e Posidocircnio viajaram pela Espanha e pela Gaacutelia

com o apoio das autoridades romanas

Posidocircnio foi disciacutepulo do filoacutesofo Paneacutecio responsaacutevel pela difusatildeo do

Estoicismo em Rom Sobre Posidocircnio Pereir (1993 p 97) diz ―( ) o seu gosto pel

observaccedilatildeo tanto o levava a descrever costumes de povos como a estudar o fluxo das

mareacutes ou os fenocircmenos de vulc nismo De cordo com Str sburger (1965 p 40)

Posidocircnio participou de uma grande viagem exploratoacuteria por Marselha e sudeste da

Gaacutelia pela Hispacircnia e sua costa atlacircntica e por algumas ilhas a oeste do Mediterracircneo

Entre o inverno de 87 e 86 aC ele foi a Roma como embaixador e fez uma visita a

Maacuterio entatildeo bastante doente A obra Histoacuterias de Posidocircnio era um trabalho

monumental muito usada e citada por autores posteriores e era composta de

aproximadamente 52 livros que narravam acontecimentos a partir do ano 146 aC ndash

dando continuidade agrave Histoacuteria de Poliacutebio ndash ateacute provavelmente os anos 80 do primeiro

seacuteculo antes de Cristo Kidd (1999 p 25) assim afirma sobre a obra histoacuterica de

117

―O comentaacuterio embor breve evidentemente represent um julg mento gener list e de modo lgum

hostil

64

Posidocircnio ―its r nge nd scope w s formid ble covering the whole of Mediterranean

centred world from Asia Minor to Spain Egypt and Africa to Gaul and the northern

peoples to Jutl nd nd of course t the centre the Rom n nd Greek worlds 118

Por sua formaccedilatildeo filosoacutefica ndash o Estoicismo focava sobretudo na questatildeo social

do homem e seu aprimoramento ndash Posidocircnio escrevia histoacuteria de um ponto de vista

moralista e se preocupava com a razatildeo de ser da natureza da vida e dos acontecimentos

humanos 119

Segundo Bringm nn (In CARTLEDGE et l 1997 p 145) ― s

philosopher he held p rticul r theory on the origins of m nlsquos ctions nd reg rded

history as a source of material to support his views on the psychological causes of

hum n error 120

Isso justifica o tamanho monumental de sua obra histoacuterica e atraveacutes

dela Posidocircnio alcanccedilou grande prestiacutegio entre os romanos a ponto de Ciacutecero pedir a

ele para compor uma histoacuteria sobre seu consulado com base em suas anotaccedilotildees ndash ou

comentarii (HAHM In HAASE 1989 p1326)

Posidocircnio ndash tambeacutem de acordo com a filosofia estoica ndash defendia o bom

tratamento dos povos subjugados como um dever moral e necessidade praacutetica dos

Estados imperialistas (BARONOWSKI 2011 p 59) Para Posidocircnio essa postura justa

e comedida em relaccedilatildeo agraves naccedilotildees conquistadas era o criteacuterio pelo qual se justificava o

domiacutenio imperialista por conseguinte sua doutrina entatildeo incorpora a abordagem

utilitaacuteria de Tuciacutedides que acreditava que a dominaccedilatildeo imperialista poderia ser um

instrumento de progresso e civilizaccedilatildeo mas que tambeacutem tatildeo grande poder oferecia

perigo caso se degenerasse em busca do proacuteprio interesse egoiacutesta (BARONOWSKI

2011 p 60) Essa questatildeo do dever moral do romano de bem tratar os vencidos depois

apareceraacute em autores latinos e gregos como Filodemo Ciacutecero Saluacutestio Diodoro

Nicolau de Damasco Dioniacutesio de Halicarnasso Pompeu Trogo e Tito Liacutevio essa

doutrina ainda de acordo com Baronowski (2011 p 59) atinge seu aacutepice nos

memoraacuteveis versos de Virgiacutelio nos quais ele defende que a vocaccedilatildeo do romano eacute

subjugar os vencidos e trataacute-los com paz justiccedila e clemecircncia121

118

―seu lc nce e escopo er m formidaacuteveis cobrindo todo o mundo centr do no Mediterracircneo desde

Aacutesia Menor ateacute a Espanha Egito e Aacutefrica ateacute a Gaacutelia e os povos do norte ateacute a terra dos jutas e claro no

centro os mundos rom no e grego 119

Para maior aprofundamento sobre Posidocircnio e sua teoria de causas histoacutericas recomendamos Hahm

(In HAASE 1989 p 1325 a 1361) 120

―Como filoacutesofo ele credit v em uma teoria particular sobre as origens das accedilotildees dos homens e

considerava a histoacuteria como fonte de material para embasar seus pontos de vista sobre as causas

psicoloacutegic s do erro hum no 121

tu regere imperio populos Romane memento (hae tibi erunt artes) pacique imponere morem

parcere subiectis et debellare superbos ―Tu rom no lembr -te de comandar os povos com tua

65

Posidocircnio era sistemaacutetico em suas descriccedilotildees etnograacuteficas e tinha talento para

narrar as singularidades dos povos retratados e tambeacutem se concentrava em etnografia

para de acordo com sua teoria de causa e efeito identificar os aspectos caracteriacutesticos

de indiviacuteduos e naccedilotildees e relacionar esses aspectos com o sucesso ou fracasso que

obtinham (HAHM In HAASE 1989 p1342)122

Hahm (In HAASE 1989 p1344 e

1345) ainda acrescenta

The character traits of nations and social groups which for Posidonius made

the actions and fortunes of these groups intelligible could be discovered in

their constitutions laws and customs This is presumably the reason that

Posidonius p ys so much ttention to ethnology in both his Historylsquo nd On

the Oce nlsquo The best ex mple in the surviving fr gments of the Historylsquo is

his discussion of the customs of the Celts This probably came as a prelude to

his account of the war between the Romans and the Celtic tribes who lived in

the foothills of the Alps in southeastern France namely the Allobroges and

the Averni The war culminated in decisive victories for the Romans in 121

and 120 BC In introducing the Celts Posidonius described in great detail

their customs their diet and eating habits their wines and drinking customs

their protocol and entertainment at banquets their status symbols and their

competitions for honor123

Posidocircnio apreciava a estrutura hieraacuterquica dos celtas porque aleacutem de sua

organizaccedilatildeo era tambeacutem uma sociedade extravagante (MOMIGLIANO 1991 p 66)

De cordo com Momigli no (1991 p 67) ―Posidocircnio confessou que princiacutepio se

perturbara com o espetaacuteculo de cabeccedilas humanas cravadas na entrada das casas

aristocraacuteticas celtas poreacutem mais tarde laquohabituando-se a isso ele podia toleraacute-lo com

serenid deraquo (Estr batildeo IV 4 5) Posidocircnio descreveu isso no fr gmento 274 (F55 J c)

do qual temos o seguinte registro em Estrabatildeo (IV 4 5)

πξόζεζηη δὲ ηῇ ἀλνίᾳ θαὶ ηὸ βάξβαξνλ θαὶ ηὸ ἔθθπινλ ὃ ηνῖο πξνζβόξξνηο

ἔζλεζη παξαθνινπζεῖ πιεῖζηνλ ηὸ ἀπὸ ηῆο κάρεο ἀπηόληαο ηὰο θεθαιὰο ηλ

πνιεκίσλ ἐμάπηεηλ ἐθ ηλ αὐρέλσλ ηλ ἵππσλ θνκίζαληαο δὲ

autoridade (essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz poupar os vencidos e dominar os

soberbos (Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853 traduccedilatildeo nossa) 122

Sobre a relaccedilatildeo da escrita da histoacuteria com o estoicismo praticado por Posidocircnio recomendamos o

capiacutetulo de Hahm (In HAASE 1989 p 1357 a 1361) 123

―Os tr ccedilos c r cteriacutesticos d s n ccedilotildees e grupos soci is que p r Posidocircnio tornaram inteligiacuteveis as

accedilotildees e destinos desses grupos poderiam ser descobertos em suas estruturas leis e costumes Essa eacute a

r zatildeo provaacutevel pel qu l Posidocircnio prest muit tenccedilatildeo n etnologi t nto n su Histoacuteri lsquo qu nto no

Sobre o oce nolsquo O melhor exemplo dos fr gmentos supeacuterstites d Histoacuteri lsquo eacute su discussatildeo sobre os

costumes dos celtas Isso provavelmente seria um preluacutedio para seu relato sobre a guerra entre romanos e

as tribos celtas que viviam ao peacute dos Alpes no sudeste da Franccedila chamados de aloacutebroges e de avernos A

guerra culminou em decisivas vitoacuterias dos romanos em 121 e em 120 aC Ao introduzir os celtas

Posidocircnio descreveu em grandes detalhes seus costumes dieta e haacutebitos alimentares seus vinhos e

costumes ao beber seu protocolo e divertimento nos banquetes seus siacutembolos de status e suas

competiccedilotildees pel honr

66

πξνζπαηηαιεύεηλ ηνῖο πξνππιαίνηο θεζὶ γνῦλ Πνζεηδώληνο αὐηὸο ἰδεῖλ

ηαύηελ ηὴλ ζέαλ πνιιαρνῦ θαὶ ηὸ κὲλ πξηνλ ἀεζίδεζζαη κεηὰ δὲ ηαῦηα

θέξεηλ πξᾴσο δηὰ ηὴλ ζπλήζεηαλ

Again in addition to their witlessness there is also that custom barbarous

and exotic which attends most of the northern tribes mdash mean the fact that

when they depart from the battle they hang the heads of their enemies from

the necks of their horses and when they have brought them home nail the

spectacle to the entrances of their homes At any rate Poseidonius says that

he himself saw this spectacle in many places and that although at first he

loathed it afterwards through his familiarity with it he could bear it

calmly124

O fato de os gauleses colecionarem as cabeccedilas dos inimigos era um toacutepos de

representaccedilatildeo da selvageria baacuterbara que tambeacutem se referia a outros povos como os

citas125

Posidocircnio ainda serviu de fonte para Ceacutesar que provavelmente o usou como

referecircncia para as suas digressotildees etnograacuteficas no De bello Gallico e teve trechos

citados por Estrabatildeo Plutarco e Ateneu (HAHM In HAASE 1989 p1326)

Momigliano (1991 p 67) tambeacutem afirma

Foi Posidocircnio quem definiu o lugar dos druidas dos vates e dos bardos na

sociedade celta Toda a tradiccedilatildeo posterior praticamente depende dele ()

Mas a sua simpatia pelos druidas vates e bardos significa um

reconhecimento autecircntico da funccedilatildeo que desempenhavam no mundo celta

Para Posidocircnio os druidas eram mais importantes do que os outros dois

grupos porque proporcionavam lideranccedila conceitos morais e religiosos e

justiccedila

Infelizmente tambeacutem a obra de Posidocircnio nos chegou excessivamente

fragmentada e muito do que se sabe a respeito de seu trabalho veio atraveacutes da obra de

Estrabatildeo sobre o qual falaremos mais agrave frente126

132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio

Nascido em 106 aC em Arpino em uma proacutespera famiacutelia equestre Ciacutecero

concluiu com sucesso seus estudos em Roma Em 89 aC participou da Guerra Social

124

―M is um vez leacutem d su f lt de discernimento existe t mbeacutem quele costume baacuterb ro e exoacutetico

que eacute comum entre muitas das tribos do Norte ndash que eacute o fato de eles ao deixarem a batalha pendurarem

as cabeccedilas dos inimigos nos pescoccedilos dos seus cavalos e quando as trazem para casa as exibem como

espetaacuteculo na entrada de suas moradias De qualquer forma Posidocircnio diz que ele mesmo viu esse

espetaacuteculo em muitos lugares e que apesar de primeiramente ter abominado isso mais tarde ao se

familiarizar com esse costume ele pode toleraacute-lo c lm mente Trecho retir do da traduccedilatildeo de James

(STRABO 1954 v 2 p249) 125

Cf Heroacutedoto (IV 64) 126

Muitos fragmentos de Posidocircnio tambeacutem podem ser encontrados em Ateneu que escreveu no final do

seacuteculo II dC e abordavam sobretudo haacutebitos alimentares

67

sob comando de Pompeu Estrabatildeo pai de Pompeu Magno Entre 79 e 77 aC Ciacutecero

fez uma longa viagem pela Greacutecia onde estudou filosofia e retoacuterica essa viagem

tambeacutem foi um pretexto para Ciacutecero escapar dos inimigos que fez entre os membros do

regime de Sila Foi questor na Siciacutelia e considerado um governador honesto e

cuidadoso Por esse motivo em 70 aC Ciacutecero aceitou o pedido dos sicilianos de

acusar Verres ndash ex governador da Siciacutelia ndash de maacute administraccedilatildeo e corrupccedilatildeo Seu triunfo

sobre Verres trouxe-lhe a reputaccedilatildeo de ser o maior orador de Roma O auge de sua

carreira poliacutetica foi em 63 aC quando foi cocircnsul e desbaratou a conjuraccedilatildeo de Catilina

Ciacutecero partiu para o exiacutelio em 58 aC ao ser acusado de excessos no julgamento dos

cuacutemplices de Catilina (que foram condenados agrave morte) mas jaacute em 57 aC retornou a

Roma Durante a Guerra Civil precipitada por Ceacutesar e Pompeu em 49 aC Ciacutecero ficou

do lado deste uacuteltimo Apoacutes a morte de Ceacutesar Ciacutecero fez os discursos intitulados

Filiacutepicas contra Marco Antocircnio Com o triunvirato firmado entre Marco Antocircnio

Otaacutevio e Leacutepido Ciacutecero tornou-se proscrito e foi assassinado por cuacutemplices de Antocircnio

em 43 aC127

Ciacutecero era grande admirador de Catatildeo o Censor mas ao contraacuterio deste uacuteltimo

abordou de maneira superficial os celtas em suas obras Em seu discurso Pro Fonteio (A

favor de Fonteio) do ano 69 aC Ciacutecero defendeu Fonteio que era propretor na Gaacutelia

das acusaccedilotildees dos celtas de que ele governava mal Momigliano (1991 p 68) ressalta

Pelo que sabemos posteriormente Ciacutecero jamais voltou a tratar seacuterio do tema

da sociedade celta ndash nem sequer no discurso a Ceacutesar De provinciis

consularibus Os livros e existem tantos sobre o pensamento poliacutetico de

Ciacutecero podiam ao menos mencionar a temeraacuteria imprecisatildeo das suas noccedilotildees

sobre os provincianos que no caso dos gauleses equivalia ao desprezo

Apesar da posiccedilatildeo de Momigliano a retoacuterica da representaccedilatildeo do outro em

Ciacutecero natildeo era tatildeo simples assim Eacute importante ter em mente que no contexto juriacutedico

Ciacutecero atraveacutes da descriccedilatildeo de povos e seu caraacuteter (ethos) tinha um objetivo em sua

fala ao tribunal que era acusar ou tentar defender algueacutem Como Vasaly (1993 p 131)

afirma a imagem que Ciacutecero apresentava agrave sua audiecircncia era em essecircncia uma

construccedilatildeo verbal que ele tinha liberdade para manipular do melhor jeito que lhe

aprouvesse Para ser bem sucedido ele deveria levar em conta dois aspectos um que as

127

Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Ciacutecero o livro de Conte (1999 p 175 e

176)

68

imagens de mundo criadas por ele deveriam ser de acordo com seus objetivos e dois

que essas imagens parecessem uma acurada reflexatildeo da realidade para a sua audiecircncia

natildeo importava se essas imagens eram reais ou falsas o que importava era se essas

imagens parecessem reais (VASALY 1993 p 132) Sobre povos estrangeiros que

reportavam abusos de governadores romanos em suas proviacutencias a estrateacutegia mais

comum era a defesa tentar impugnar o caraacuteter de toda a raccedila agrave qual esse povo pertencia

e geralmente essas reclamaccedilotildees vinham das proviacutencias que tinham sido submetidas agrave

forccedila (VASALY 1993 p 191)

Voltamos agora a nossa atenccedilatildeo ao Pro Fonteio Esse discurso trata da defesa

que Ciacutecero fez de Marco Fonteio acusado de maacute administraccedilatildeo durante sua pretura na

Gaacutelia Transalpina O Pro Fonteio nos chegou fragmentado e natildeo se sabe qual foi a

decisatildeo dos juiacutezes sobre o processo (VASALY 1993 p 193) A proviacutencia da Gaacutelia

Transalpina foi organizada apoacutes as vitoacuterias romanas de 121 aC se estendia pelo mar

Mediterracircneo e ligava a Itaacutelia agrave Hispacircnia onde hoje estaacute localizada Provenccedila na Franccedila

Essa regiatildeo tambeacutem era conhecida como Gaacutelia Narbonense por causa da capital Narbo

Martius (atual Narbonne fundada em 118 aC) ou Gallia Bracata devido ao costume

gaulecircs de se usar calccedilas (bracae) O governador da proviacutencia tendo a magistratura de

pretor propretor ou proconsul tinha o comando militar do territoacuterio fixava as

requisiccedilotildees e tarefas estabelecia as taxas e exercia sobre os povos indiacutegenas uma

jurisdiccedilatildeo sem apelaccedilatildeo128

Por volta do ano 70 aC os antigos administrados de Fonteio decidiram entrar

com uma accedilatildeo contra o mesmo encorajados pelo processo movido pelos sicilianos

contra a maacute gestatildeo do governador Verres ndash acusaccedilatildeo essa feita pelo proacuteprio Ciacutecero que

tinha relaccedilotildees de amizade com os sicilianos por ter sido governador da regiatildeo Os

gauleses enviaram a Roma uma delegaccedilatildeo dirigida por Indutiomaro chefe da naccedilatildeo dos

aloacutebroges para denunciar os abusos de Fonteio Com exceccedilatildeo dos romanos

estabelecidos na Gaacutelia Transalpina e das cidades de Narbo Martius (Narbonne) e

Massilia (Marselha) aliadas de Roma a proviacutencia inteira acusava o propretor Fonteio

cliente de Ciacutecero natildeo foi citado em outras fontes que natildeo nesse discurso129

Ele

pertencia a uma famiacutelia de Tuacutesculo antiga e honrada mas plebeia como o proacuteprio

Ciacutecero afirmou em seu discurso (Pro Fonteio 41)

128

Usamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles

Lettres p 7 e 8 129

Novamente utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les

Belles Lettres p 9

69

Ciacutecero defendeu seu cliente fundamentando sua argumentaccedilatildeo na ideia de que os

gauleses natildeo eram confiaacuteveis devido ao seu caraacuteter e de que natildeo havia contra Fonteio

quaisquer acusaccedilotildees vindas de outros romanos ou aliados Ele assim disse (Pro Fonteio

15)

Quoniam igitur uidetis qui oppugnatum M Fonteium cognostis qui defensum

uelint statuite nunc quid uestra aequitas quid populi Romani dignitas

postulet utrum colonis uestris negotiatoribus uestris amicissimis atque

antiquissimis sociis et credere et consulere malitis an iis quibus neque

propter iracundiam fidem neque propter infidelitatem honorem habere

debetis

Portanto porque vedes os que atacam M Fonteio e conheceis os que querem

sua defesa decidis agora o que reclamam a vossa justiccedila e a dignidade do

povo romano se acaso preferis acreditar e consultar os vossos colonos e os

vossos negociantes amiciacutessimos e antiquiacutessimos aliados ou acaso acreditar

naqueles os quais natildeo deveis ter em nenhuma consideraccedilatildeo por causa de seu

caraacuteter irasciacutevel e sua deslealdade130

Ciacutecero ainda reforccedilou essa ideia ao dizer (Pro Fonteio 21)

Potest igitur testibus iudex non credere Cupidis et iratis et coniuratis et ab

religione remotis non solum potest sed etiam debet

Pode entatildeo um juiz natildeo acreditar nas testemunhas Se as testemunhas forem

passionais iradas conjuradas e distantes da religiatildeo natildeo soacute pode mas

tambeacutem deve

De acordo com Ciacutecero as queixas dos gauleses natildeo deveriam ser levadas a seacuterio

pois eles eram incapazes de fornecer evidecircncias confiaacuteveis jaacute que natildeo tinham noccedilatildeo da

responsabilidade de dar um testemunho em juramento Esse fato para Ciacutecero natildeo

causaria espanto uma vez que os gauleses eram um povo distinto dos outros natildeo

sentindo temor nem respeito pelo juramento ou pelos deuses imortais Ciacutecero assim

fundamentou esse argumento (Pro Fonteio 30)

An uero istas nationes religione iuris iurandi ac metu deorum immortalium

in testimoniis dicendis commoueri arbitramini quae tantum a ceterarum

gentium more ac natura dissentiunt Quod ceterae pro religionibus suis bella

suscipiunt istae contra omnium religiones illae in bellis gerendis ab dis

immortalibus pacem ac ueniam petunt istae cum ipsis dis immortalibus bella

gesserunt Hae sunt nationes quae quondam tam longe ab suis sedibus

Delphos usque ad Apollinem Pythium atque ad oraculum orbis terrae

uexandum ac spoliandum profectae sunt Ab isdem gentibus sanctis et in

130

Todos os trechos citados do Pro Fonteio ao longo do trabalho bem como outras passagens de Ciacutecero

aqui mencionadas satildeo de nossa traduccedilatildeo

70

testimonio religiosis obsessum Capitolium est atque ille Iuppiter cuius

nomine maiores nostri uinctam testimoniorum fidem esse uoluerunt

Por ventura de fato credes essas naccedilotildees ao pronunciarem seus testemunhos

serem comovidas pela moralidade do juramento ou por medo dos deuses

imortais Essas naccedilotildeezinhas que estatildeo tatildeo afastadas dos costumes e da iacutendole

dos outros povos Pois os outros empreendem guerras a favor de suas

religiotildees esses fazem guerras contra as religiotildees de todos aqueles ao

fazerem guerras suplicam aos deuses imortais paz e graccedila esses contra os

proacuteprios deuses imortais travaram guerras Essas satildeo as naccedilotildees que outrora

partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute Delfos para atacar e pilhar Apolo

Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias

em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu

nome os maiores dos nossos quiseram ter a boa-feacute dos testemunhos (grifos

nossos)

No trecho acima colocamos o termo naccedilotildees em itaacutelico e tambeacutem utilizamos o

diminutivo ―n ccedilotildeezinh s p r reforccedil r n noss traduccedilatildeo a ironia com que Ciacutecero

trata os gauleses referindo-se vaacuterias vezes a esse povo como istae nationes O uso do

pronome istae denota o desprezo com que os gauleses satildeo tratados no Pro Fonteio bem

como tambeacutem o sarcasmo de Ciacutecero ao dizer que as comunidades gaulesas embora

―s nt s e pi s no testemunho n praacutetic er m primitivas e saqueadoras de cidades e

templos

Alguns anos depois da defesa de Fonteio Ciacutecero volta a empregar o pronome

iste para desqualificar um adversaacuterio no caso o acusado era Catilina que em 63 aC

tentara dar um golpe de Estado em Roma e fracassara Ciacutecero entatildeo cocircnsul e sabendo

da trama conspiratoacuteria se colocou como defensor da Repuacuteblica e assumiu o papel de

acusar Catilina no Senado A primeira Catilinaacuteria se destaca pelo tom forte ameaccedilador

e repleto de pathos Ciacutecero que pela lei natildeo podia desterrar ou condenar Catilina por

ele ser um cidadatildeo romano apela para o pateacutetico para conseguir a condenaccedilatildeo deste

Citamos aqui alguns exemplos como o famoso exoacuterdio (Cat I 1) no qual Ciacutecero jaacute

abre o seu discurso atacando Catilina e a sua insolecircncia

Quo usque tandem abutere Catilina patientia nostra Quam diu etiam furor

iste tuus nos eludet

Ateacute quando enfim Catilina abusaraacutes de nossa paciecircncia Por quanto tempo

esse teu furor zombaraacute de noacutes (grifos nossos)

Pode-se perceber no trecho acima que Ciacutecero denota ironia ao se referir a

C tilin e o seu ―furor ndash na argumentaccedilatildeo retoacuterica e aparece como o haacutebil cocircnsul que

percebeu os planos nefastos de Catilina e o humilhou perante o Senado Um pouco mais

agrave frente Ciacutecero diz (Cat I 3)

71

() Fuit fuit ista quondam in hac re publica uirtus ut uiri fortes acrioribus

suppliciis ciuem perniciosum quam acerbissimum hostem coercerent

Habemus senatus consultum in te Catilina uehemens et graue ()

Existiu existiu outrora esta virtude nesta repuacuteblica a de que os homens

valorosos reprimissem o cidadatildeo perigoso com castigos mais violentos do

que se fosse ao mais cruel inimigo Temos um decreto do senado contra ti

Catilina um decreto severo e grave (grifos nossos)

Ciacutecero usou o pronome ista uirtus para destacar que a virtude dos homens

valorosos presente na Repuacuteblica romana em um passado glorioso na eacutepoca do orador

jaacute tinha desaparecido com isso Ciacutecero destacou que no periacuteodo que lhe era

contemporacircneo os cidadatildeos romanos ndash outrora honrados ndash eram capazes de tudo para

colocar os proacuteprios interesses agrave frente da Paacutetria e da moralidade assim Ciacutecero mais

uma vez ressaltou a postura temeraacuteria e ilegal de Catilina desrespeitador de qualquer

virtude ou qualidade

Voltando ao discurso de defesa de Fonteio outro ponto que ressaltava a barbaacuterie

dos gauleses consistia no seu costume de fazer sacrifiacutecios humanos (Pro Fonteio 31)

Postremo his quicquam sanctum ac religiosum uideri potest qui etiam si

quando aliquo metu adducti deos placandos esse arbitrantur humanis hostiis

eorum aras ac templa funestant ut ne religionem quidem colere possint nisi

eam ipsam prius scelere uiolarint Quis enim ignorat eos usque ad hanc

diem retinere illam immanem ac barbaram consuetudinem hominum

immolandorum Quam ob rem quali fide quali pietate existimatis esse eos

qui etiam deos immortalis arbitrentur hominum scelere et sanguine facillime

posse placari Cum his uos testibus uestram religionem coniungetis Ab his

quicquam sancte aut moderate dictum putabitis

Finalmente pode algo parecer santo e venerado a esses que embora levados

por algum medo e decidam que os deuses devam ser agradados desonram os

seus altares e templos com viacutetimas humanas Como podem ao menos cultuar

a religiatildeo se antes essa mesma tenham violado criminalmente com

abominaccedilatildeo Quem de fato ignora que eles ateacute estes dias mantiveram aquele

costume desumano e baacuterbaro de imolar homens Em vista de quecirc voacutes

considerais que eles tenham alguma feacute alguma piedade eles que tambeacutem

pensam que podem agradar facilmente os deuses imortais com crime de

homens e sangue Com eles voacutes ajuntareis a vossa religiatildeo Considerareis

algum dito deles como honrado ou moderado

Ciacutecero tambeacutem salienta a rivalidade entre gauleses e romanos ao construir no

seu discurso im gem de ―noacutes contr eles ress lt ndo vaacuterios toacutepoi de caracterizaccedilatildeo

negativa do gaulecircs (Pro Fonteio 32)

Potestis igitur ignotos notis iniquos aequis alienigenas domesticis cupidos

moderatis mercennarios gratuitis impios religiosis inimicissimos huic

imperio ac nomini bonis ac fidelibus et sociis et ciuibus anteferre

72

Podeis entatildeo preferir os desconhecidos aos conhecidos os parciais aos

imparciais os estrangeiros aos compatriotas os cuacutepidos aos moderados os

mercenaacuterios aos voluntaacuterios os iacutempios aos piedosos os maiores inimigos

deste impeacuterio e desta reputaccedilatildeo aos bons e fieacuteis aliados e cidadatildeos

Ciacutecero ainda afirmou que Fonteio teria vaacuterias caracteriacutesticas positivas jaacute que era

o tipo de cidadatildeo romano de que Roma precisava como forma de desqualificar a accedilatildeo

judicial movida pelos gauleses (Pro Fonteio 41)

Videte igitur utrum sit aequius hominem honestissimum uirum fortissimum

ciuem optimum dedi inimicissimis atque immanissimis nationibus an reddi

amicis praesertim cum tot res sint quae uestris animis pro huius innocentis

salute supplicent ()

Vede entatildeo o que eacute mais justo um homem honestiacutessimo indiviacuteduo fortiacutessimo

e oacutetimo cidadatildeo ser dado aos inimiciacutessimos e crudeliacutessimos povos ou ele ser

restituiacutedo aos amigos sobretudo quando existem tantas razotildees que impelem

os vossos acircnimos a favor da salvaccedilatildeo deste inocente ()

Ciacutecero tambeacutem afirmou algo parecido na seguinte passagem (Pro Fonteio 43)

Quae si diligenter attendetis profecto iudices uirum ad labores belli

impigrum ad pericula fortem ad usum ac disciplinam peritum ad consilia

prudentem ad casum fortunamque felicem domi uobis ac liberis uestris

retinere quam inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis

tradere et condonare maletis

Se vedes com atenccedilatildeo juiacutezes certamente o homem infatigaacutevel para os

esforccedilos da guerra forte frente aos perigos perito na praacutetica e ciecircncia militar

prudente para as deliberaccedilotildees favoraacutevel ao acaso e fortuna voacutes preferireis

mantecirc-lo na paacutetria entre voacutes e vossos filhos a entregaacute-lo agraves naccedilotildees

inimiciacutessimas e crudeliacutessimas ao povo romano

Por fim Ciacutecero recorreu ateacute ao tipo de vestimenta dos gauleses (saiotes e calccedilas)

para desmoralizaacute-los (Pro Fonteio 33)

Sic existimatis eos hic sagatos bracatosque uersari animo demisso atque

humili ut solent ii qui adfecti iniuriis ad opem iudicum supplices

inferioresque confugiunt Nihil uero minus Hi contra uagantur laeti atque

erecti passim toto foro cum quibusdam minis et barbaro atque immani

terrore uerborum ()

Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas com postura

tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias recorrem

ao poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos Nada eacute menos verdadeiro Eles

pelo contraacuterio vagam desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes

com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e desumano da sua liacutengua ()

73

Pelos trechos citados acima Ciacutecero caracterizou os gauleses com vaacuterios termos

pejorativos temos a repeticcedilatildeo dos adjetivos cupidus (21 e 32) aleacutem de outros termos

dentre os quais ignotus iniquus mercennarius e impius ndash que aparecem no paraacutegrafo

32 Ciacutecero ainda acentuou o (mau) caraacuteter dos gauleses pela distacircncia que esse povo

mantinha da civilizaccedilatildeo tanto geograacutefica quanto moral ao dizer que eles estavam longe

da religiatildeo (21 ab religione remotis) e afastados dos costumes e da iacutendole dos outros

povos (30 a ceterarum gentium more ac natura dissentiunt)131

Ciacutecero tambeacutem

considerava os gauleses como sendo os piores inimigos de Roma e faz essa

caracterizaccedilatildeo atraveacutes do uso de superlativos inimicissimis atque immanissimis

nationibus (41) e inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis (43) Pelos

trechos do Pro Fonteio destacados acima podemos ver que Ciacutecero utiliza a oposiccedilatildeo

entre gauleses e romanos para reforccedilar seus argumentos a fim de defender Fonteio

Todo esse discurso baseia-se na representaccedilatildeo do gaulecircs como exemplo maacuteximo de

antiacutetese ao romano o gaulecircs eacute primitivo o romano eacute civilizado o gaulecircs eacute desleal e

mentiroso enquanto o romano eacute confiaacutevel e correto e assim por diante Todos esses

argumentos citados do Pro Fonteio reforccedilavam a imagem do gaulecircs como sendo a de

uma naccedilatildeo cruel e ameaccediladora que natildeo era intimidada nem por homens ou deuses que

natildeo respeitava a religiatildeo ou os juramentos e que era consumida por um desejo de

vinganccedila contra seus conquistadores Vasaly (1993 p 253 e 254) resume

() Cicero appended to his descriptions of the world a variety of

explanations for the characteristics imputed to the people racial mixing and

degeneration explain the character of the Sardinians in the Pro Scauro in the

Pro Flacco Cicero implies that exposure to the decadent and slavish cultures

of the East is the reason for the cultural and moral debasement of the Asian

Greeks as compared with the European Greeks () Only in the Pro Fonteio

does the orator rely on an appeal to negative prejudice unsupported by any

arguments as to the grounds for that prejudice132

Como Gruen (2011a p 147) destaca o medo dos gauleses (metus gallicus) era

um conveniente recurso empregado na literatura latina mas os proacuteprios romanos da

eacutepoca de Ciacutecero natildeo consideravam seriamente uma segunda invasatildeo dos gauleses

131

Jaacute abordamos anteriormente ndash ainda que de forma resumida ndash a questatildeo da teoria hipocraacutetica de que o

centro seria o lugar mais civilizado enquanto as naccedilotildees mais distantes seriam consideradas mais

selvagens nas paacuteginas 32 e 33 deste trabalho 132

―( ) Ciacutecero crescentou agraves su s descriccedilotildees de mundo um v ried de de explic ccedilotildees p r s

caracteriacutesticas imputadas aos povos a mistura racial e a degeneraccedilatildeo explicam o caraacuteter dos sardenhos no

Pro Scauro no Pro Flacco Ciacutecero afirma que a exposiccedilatildeo agraves culturas decadentes e escravocratas do

oriente eacute a razatildeo do decliacutenio cultural e moral dos gregos asiaacuteticos comparados com os gregos europeus

() Apenas no Pro Fonteio o orador se fundamenta no recurso do preconceito negativo embasado por

nenhum rgumento que natildeo s r zotildees do proacuteprio preconceito

74

Ciacutecero distorceu a figura dos gauleses utilizando-se de antigos estereoacutetipos com fins

puramente juriacutedicos No caso desse processo contra Fonteio tambeacutem era desfavoraacutevel

aos gauleses o interesse do Estado romano que buscava o estabelecimento do comeacutercio

e da circulaccedilatildeo de mercadorias da proviacutencia ateacute Roma Como Vasaly afirma (1993 p

194) dos romanos que moravam na Gaacutelia nenhum testemunhou contra Fonteio com

isso Ciacutecero pode retratar o caso como sendo uma batalha entre todos aqueles que eram

leais ao estado e agraves hordas baacuterbaras Como pontua Vasaly (1993 p 137) o

etnocentrismo cultural provia ao orador da Roma antiga ndash e de qualquer outra cultura ndash

o toacutepos comum do ―eles e noacutes ao explorar o lado negativo desse toacutepos o orador

poderia facilmente convencer sua audiecircncia romana de que os povos distantes eram

baacuterbaros monstruosos inimigos implacaacuteveis e moralmente inferiores Os ―nossos

interesses cruciais para a preservaccedilatildeo de todo o impeacuterio portanto vinham antes dos

interesses ―deles

Sobre Marco Fonteio natildeo sabemos qual foi o resultado do julgamento de toda

forma seu nome apoacutes 69 aC natildeo apareceu mais nas listas das magistraturas

romanas133

Nem sempre contudo o discurso juriacutedico de Ciacutecero era contraacuterio aos povos

estrangeiros Temos como exemplo o jaacute mencionado processo contra Verres no qual

Ciacutecero defendeu os sicilianos dos abusos cometidos pelo entatildeo pretor enviado por

Roma O retrato que Ciacutecero fez de Verres ndash e seus partidaacuterios ndash o mostrou como um

tirano ansioso por bens e ao mesmo tempo como uma figura dissoluta que descansava

languidamente em sua liteira sempre cheirando um buquecirc de rosas (CONTE 1999 p

180) Ciacutecero assim escreveu sobre Verres (Verrinas II 5 27)

Nam ut mos fuit Bithyniae regibus lectica octophoro ferebatur in qua

puluinus erat perlucidus Melitensis rosa fartus ipse autem coronam habebat

unam in capite alteram in collo reticulumque ad naris sibi admouebat

tenuissimo lino minutis maculis plenum rosae

De fato tal como fora o costume dos reis da Bitiacutenia ele era conduzido em

uma liteira levada por oito homens na qual havia uma almofada transluacutecida

de Malta repleta de rosas ele mesmo tinha uma coroa na cabeccedila outra no

pescoccedilo e aproximava ao seu nariz um saquinho de linho finiacutessimo de

malhas diminutas cheio de rosas

Ciacutecero no Pro Fonteio usou de todos os recursos retoacutericos para rebaixar a

queixa dos gauleses Como Gruen (2011a p 147) lembra sobre Ciacutecero o orador

133

Utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles

Lettres p 16

75

romano natildeo poupou acusaccedilotildees para desqualificar as testemunhas gaulesas sobretudo o

liacuteder Indutiomaro nesse processo Ciacutecero levou a difamaccedilatildeo a um niacutevel mais grave ao

dizer que o mais distinto dos gauleses natildeo poderia ser comparado ao pior dos romanos

Aind n s p l vr s de Gruen (2011 p 147) ― s is notorious the same Allobroges

whom Cicero defames as faithless witnesses here he employs only a few years later as

trustworthy witnesses against the Catilinarians and they were generously rewarded for

their testimony by the Senate (Cic Cat 3 4 5) 134

Durante a conspiraccedilatildeo de Catilina

por volta do ano 63 aC um grupo dos aloacutebroges estava em Roma para queixar-se ao

senado contra os desmandos de Luacutecio Murena entatildeo governador da proviacutencia da Gaacutelia

Narbonense Lecircntulo aliado de Catilina entrou em contato com os aloacutebroges para fazer

uma alianccedila em troca do apoio romano os aloacutebroges cederiam tropas para Catilina Os

aloacutebroges se aconselharam com o senador Quinto Faacutebio Sanga que imediatamente

contou tudo a Ciacutecero Ciacutecero aconselhou os aloacutebroges junto a um certo Tito Voltuacutercio

a fingirem o tratado com os conspiradores e conseguiu provas da conjuraccedilatildeo apoacutes a

prisatildeo dos envolvidos o senado decretou accedilotildees de graccedilas pelo ocorrido135

Assim

Ciacutecero descreveu esses acontecimentos (Cat III IV 5) ―() maximeque quod meo

nomine supplicationem decrevistis qui honos togato habitus ante me est nemini

postremo hesterno die praemia legatis Allobrogum Titoque Volturcio dedistis

amplissima (Princip lmente voacutes decret stes ccedilotildees de gr ccedil s em meu nome honr que

antes de mim nunca fora concedida a ningueacutem trajando toga por fim ontem voacutes

concedestes vastiacutessimas recompensas aos legados dos aloacutebroges e a Tito Voltuacutercio)

Quanto aos gauleses as suas representaccedilotildees durante o periacuteodo final da

Repuacuteblica romana eram complexas refletindo reaccedilotildees mistas de curiosidade

desconfianccedila e admiraccedilatildeo que gregos e romanos tinham em relaccedilatildeo a eles ndash como nos

relatos de Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Ceacutesar (GRUEN 2011a p 146) Eacute significativo que

embora Ciacutecero tenha se referido aos gauleses de forma tatildeo preconceituosa no Pro

Fonteio ndash e tenha sido ajudado pelos mesmos aloacutebroges para desbaratar a conjuraccedilatildeo de

Catilina ndash ele na verdade teve relaccedilotildees de amizade com Diviciacuteaco um eminente druida

134

―Como eacute notoacuterio os mesmos loacutebroges que qui Ciacutecero dif mou como testemunh s natildeo confiaacuteveis

apenas alguns anos depois ele as empregou como testemunhas confiaacuteveis contra os catilinaacuterios e eles

foram generosamente recompensados pelo senado por causa do seu testemunho (Cic Cat 4 5 4 10) 135

Todas as informaccedilotildees sobre o falso pacto entre aloacutebroges e os conspiradores aliados de Catilina foram

retiradas do prefaacutecio de Pinho agrave sua traduccedilatildeo das Catilinaacuterias (CIacuteCERO 1990 p 21 e 22)

76

que eacute mencionado na obra De diuinatione (Sobre a adivinhaccedilatildeo)136

Diviciacuteaco foi

retratado como um amante dos estudos e capaz de predizer o futuro com uma

combinaccedilatildeo de auguacuterios e conjecturas (GRUEN 2011a p 146) Ciacutecero assim escreveu

sobre o druida (De Diuinatione I 90)

Eaque diuinationum ratio ne in barbaris quidem gentibus neglecta est

siquidem et in Gallia Druidae sunt e quibus ipse Diuitiacum Haeduum

hospitem tuum laudatoremque cognoui qui et naturae rationem quam

physiologiam Graeci appellant notam esse sibi profitebatur et partim

auguriis partim coniectura quae essent futura dicebat ()

Esse interesse por adivinhaccedilotildees natildeo foi indiferente sequer aos povos

baacuterbaros visto que ateacute mesmo na Gaacutelia existem os druidas dentre os quais eu

mesmo conheci o eacuteduo Diviciacuteaco teu hoacutespede e admirador o qual afirmava

ter compreensatildeo da natureza ndash que os gregos chamam de fisiologia ndash

conhecida por ele em parte atraveacutes de auguacuterios em parte atraveacutes de

conjectur s que nunci v m o que seri o futuro (hellip)

1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina

Ciacutecero preocupou-se em trazer para Roma natildeo soacute a filosofia e a retoacuterica grega

mas tambeacutem a historiografia Natildeo pretendemos aprofundar muito nesse aspecto apenas

falar de forma introdutoacuteria sobre a concepccedilatildeo de histoacuteria ciceroniana jaacute que isso serviraacute

de influecircncia para os autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio Andreacute e Hus (1974 p

15) consideram que antes de Ciacutecero natildeo existia em Roma o gecircnero literaacuterio histoacuteria

Antes dele existia apenas a histoacuteria poeacutetica ndash nas epopeias de Neacutevio e Ecircnio a narrativa

analiacutetica e o comentaacuterio

Ciacutecero aleacutem de poliacutetico e orador de sucesso tambeacutem foi o primeiro romano de

que temos notiacutecia a teorizar sobre a ciecircncia de se escrever histoacuteria tema que abordou

sobretudo em suas obras De oratore (Do orador) (especialmente no livro II entre os

capiacutetulos 51 e 64) e Orator (O orador) Destacamos o seguinte trecho (De Or II 36)

Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra uitae

nuntia vetustatis qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur

De fato a Histoacuteria que eacute testemunha dos tempos luz da verdade vida da

memoacuteria mestra da vida mensageira da antiguidade ndash atraveacutes de qual outra

voz que natildeo a do orador eacute transformada em imortalidade

136

Segundo Ceacutesar (BGall I 31) o gaulecircs Diviciacuteaco irmatildeo de Dumnorige e chefe dos eacuteduos viera a

Roma para requerer auxiacutelio ao Senado contra os seacutequanos e contra Ariovisto rei dos germanos que

invadira o seu territoacuterio Provavelmente foi nessa ocasiatildeo que Ciacutecero pode conhececirc-lo em 61 aC

77

Ciacutecero considerava que o dever de se escrever histoacuteria deveria ser assumido

pelo orador pois apenas ele teria conhecimento capacidade teacutecnica e refinamento

retoacuterico para compor esse tipo de obra O proacuteprio termo orador tinha concepccedilotildees

muacuteltiplas para Ciacutecero Orador no sentido estrito era o homem que sabe falar bem em

puacuteblico graccedilas a seus dons naturais e ao estudo da retoacuterica Para Ciacutecero o orador

tambeacutem seria o perfil ideal do escritor jaacute que a retoacuterica tambeacutem servia bem agrave escrita

ele tambeacutem era o homem de estado jaacute que a palavra era por excelecircncia o meio de

governar (MARTIN GAILLARD 1981 p 114-115) Daiacute Ciacutecero centrar o orador no

papel de escritor da histoacuteria137

Andreacute e Hus (1974 p 16) lembram

Il faut notamment distinguer les textes ougrave il p rle de llsquoantiquitas des rerum

gestarum monumenta etc de ceux ougrave figure le mot historia Les premiers

slsquo ppliquent ux con iss nces historiques neacutecess ires agrave llsquoor teur et agrave

llsquohomme dlsquoEt t les seconds u genre litteacuter ire dont l composition est

revendiqueacutee pour llsquoorator-eacutecrivain138

A ideia de Ciacutecero era a de que o orador deveria ter um vasto conhecimento da

cultura geral aleacutem de conhecer a dialeacutetica a filosofia a retoacuterica o direito civil e a

histoacuteria (De Or I 201) A histoacuteria entatildeo seria a base de conhecimento do passado

fundamental para o orador ter conhecimento do presente bem como o meio privilegiado

pelo qual o homem pode aperfeiccediloar sua conduta e se situar no mundo A filosofia

tambeacutem teria esse papel Ciacutecero contudo acreditava que a histoacuteria seria mais efetiva do

que a filosofia jaacute que no contexto latino os romanos eram mais sensiacuteveis aos exempla

do que agraves palavras que resultavam do pensamento especulativo139

Aleacutem disso uma

obra de cunho histoacuterico requereria menos trabalho para ser escrita do que uma obra

filosoacutefica Como Brunt (1993 p 196 e 197) ress lt ―both l w nd philosophy were

recognized as hard disciplines only to be mastered by prolonged application By

contrast the collation or investigation of historical evidence though time-consuming

137

Para maior discussatildeo sobre esse tema bem como maior aprofundamento recomendamos o capiacutetulo

―Cicero nd Historiogr phy (in BRUNT 1993) Sobre os trechos em que Ciacutecero fez ess s firm ccedilotildees

cf De oratore I18 e I159 138

―Deve-se especialmente distinguir os textos onde ele usa os termos antiquitas rerum gestarum

monumenta etc dos que trazem o termo historia Os primeiros se aplicam aos conhecimentos histoacutericos

necessaacuterios ao orador e ao homem de Estado o segundo ao gecircnero literaacuterio cuja composiccedilatildeo eacute

reivindic d pelo or dor escritor 139

Cf Pro Archia sect14-16

78

required no technic l prep r tion 140

Por conseguinte assim temos no Orador (cap

120)

Cognoscat etiam rerum gestarum et memoriae ueteris ordinem maxime

scilicet nostrae ciuitatis sed etiam imperiosorum populorum et regum

inlustrium quem laborem nobis Attici nostri leuauit labor qui conseruatis

notatisque temporibus nihil cum inlustre praetermitteret annorum

septingentorum memoriam uno libro conligauit Nescire autem quid ante

quam natus sis acciderit id est semper esse puerum () Commemoratio

autem antiquitatis exemplorumque prolatio summa cum delectatione et

auctoritatem orationi adfert et fidem

Conheccedila tambeacutem a sucessatildeo dos fatos acontecidos e de memoacuteria antiga

evidentemente a histoacuteria da nossa cidade e ainda a dos povos poderosos e

dos reinos ilustres o trabalho do nosso Aacutetico nos poupou o esforccedilo pois ele

reuniu em um uacutenico livro a memoacuteria de setecentos anos com as eacutepocas

preservadas e demarcadas sem se esquecer de nada importante De fato

desconhecer o que tenha acontecido antes de nascer eacute como permanecer

sempre crianccedila () A recordaccedilatildeo da antiguidade e a citaccedilatildeo de exemplos

como causa grande deleite tambeacutem confere ao discurso autoridade e

confianccedila

Pelo trecho acima vemos a importacircncia que a histoacuteria tem tanto como aspecto

cientiacutefico ndash com a memoacuteria dos feitos do passado de forma a instruir os cidadatildeos como

tambeacutem o aspecto literaacuterio que provoca prazer na audiecircncia Percebe-se tambeacutem que o

trabalho praacutetico de juntar informaccedilotildees embora dificultoso natildeo requeria grande

habilidade teacutecnica ndash Ciacutecero demonstra que Aacutetico fizera o trabalho por ele Aleacutem disso o

fato de um orador fazer histoacuteria levanta a profunda questatildeo das implicaccedilotildees poliacuteticas jaacute

que o proacuteprio orador dedicava-se agrave vida puacuteblica Dessa maneira para o orador o criteacuterio

da composiccedilatildeo historiograacutefica natildeo eacute mais a uacutenica preocupaccedilatildeo em narrar os eventos que

aconteceram mas sim escolher esses eventos e manipulaacute-los (ateacute mesmo distorcendo-

os) com o uacutenico propoacutesito de convencer a audiecircncia de algum ponto de vista

(FORNARA 1983 p 170) Por conseguinte eacute a necessidade da situaccedilatildeo que

condiciona a escrita da obra e pelos exemplos supracitados do Pro Fonteio foi

exatamente isso que Ciacutecero fez ao retratar os gauleses como os tiacutepicos vilotildees com a

finalidade de absolver Fonteio

Para Ciacutecero a filosofia e a histoacuteria eram mateacuterias importantes contudo cada

uma tinha um enfoque diferente A filosofia ao tratar de temas e conceitos abstratos

visava a provocar uma reflexatildeo subjetiva no puacuteblico-alvo A histoacuteria na concepccedilatildeo

140

―T nto o direito qu nto filosofi er m reconhecidos como disciplin s dur s que pen s seri m

dominadas atraveacutes de longa dedicaccedilatildeo Por contraste a verificaccedilatildeo ou investigaccedilatildeo de evidecircncia histoacuterica

apesar de consumir tempo natildeo requereria preparaccedilatildeo teacutecnic

79

ciceroniana tinha um objetivo concreto de ser fonte de exemplos praacuteticos para guiar a

conduta dos cidadatildeos em situaccedilotildees parecidas com as narradas nas obras historiograacuteficas

(ANDREacute HUS 1974 p 18) Esse conceito da histoacuteria natildeo eacute inovaccedilatildeo de Ciacutecero de

fato Aristoacuteteles (Retoacuterica 1360a) tambeacutem destacou o caraacuteter uacutetil da histoacuteria que era

escrita sobre as accedilotildees dos homens de modo a fornecer exemplos de como agir frente a

problemas ou situaccedilotildees semelhantes aos narrados em tal gecircnero Apesar da grande

importacircncia que Ciacutecero deu ao papel da histoacuteria ele mesmo natildeo escreveu nenhuma obra

histoacuterica jaacute que preferiu compor tratados filosoacuteficos141

Dessa maneira Ciacutecero

concentrou-se mais em escrever sobre a teoria da historiografia suas consideraccedilotildees a

respeito das implicaccedilotildees teoacutericas desse ramo do conhecimento foram ineacuteditas

influenciando autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio (PEREIRA 1993 p 139)

Ciacutecero considerava que a histoacuteria deveria ser escrita de maneira veriacutedica e

imparcial levando-se em conta a ordem cronoloacutegica dos fatos bem como enunciar suas

causas e consequecircncias Aleacutem disso o historiador teria que fazer a descriccedilatildeo dos locais

a biografia das personalidades importantes seguindo essa tradiccedilatildeo da cronologia dos

eventos (De Or II 62 a 64) O orador tambeacutem deveria ter cuidado com o estilo e o

aspecto formal da composiccedilatildeo e a obra deveria ser agradaacutevel de ser lida (PEREIRA

1993 p 139) Destacamos aqui as palavras de Andreacute e Hus (1974 p 22) a esse

respeito

( ) llsquohistoire doit ecirctre composeacutee d ns le loisir et l seacutereacuteniteacute Aux ntipodes

de la veacuteheacutemence judiciaire mais proche du calme des sophistes laquoqui ne son

pas faits pour le comb traquo il est le style dlsquoun genre litteacuter ire de c binet

produit non de llsquoorator- voc t m is de llsquoorator-eacutecrivain qui se penche

sereinement sur les vicissitudes hum ines en slsquo id nt de son expeacuterience

dlsquohomme dlsquoEacutet t 142

Ciacutecero defendia a concepccedilatildeo da histoacuteria como historia ornata ou histoacuteria

ornada que eacute escrita de forma bela com o compromisso da verdade Daiacute tem-se a

exigecircncia da qualidade do estilo ndash em se tratando de Ciacutecero um estilo abundante sem

desacordos sem paixatildeo mas que evidenciava as belezas da histoacuteria (MARTIN

GAILLARD 1981 p 115) Ciacutecero tambeacutem ressaltava natildeo soacute o caraacuteter pragmaacutetico da

141

De fato Ciacutecero chegou a escrever comentaacuterios sobre o seu consulado em 63 aC O orador romano

chegou a pedir a Posidocircnio que usasse esse material para escrever uma obra historiograacutefica ao que o

historiador e filoacutesofo grego recusou (cf p 64) 142

―( ) histoacuteri deve ser escrit no l zer e n serenid de Aos romp ntes d veemecircnci judiciaacuteri m s

proacuteximo da calma dos sofistas laquoque natildeo satildeo feitos para o combateraquo esse eacute o estilo de gecircnero literaacuterio de

escritoacuterio produzido natildeo pelo orador advogado mas pelo orador escritor que aborda serenamente as

vicissitudes hum n s com o uxiacutelio de su experiecircnci de homem de Est do

80

histoacuteria mas tambeacutem a sua importacircncia quanto ao seu papel moral de modo a fornecer

exemplos de virtude para as geraccedilotildees vindouras Aleacutem disso Ciacutecero preferia que a

histoacuteria que lhe era contemporacircnea servisse de material aos autores pois as histoacuterias dos

tempos passados estavam envolvidas em brumas contraditoacuterias e na sua eacutepoca havia

muitos exemplos de acontecimentos e fatos que tiveram importacircncia capital para Roma

(MARTIN GAILLARD 1981 p 115) Sobre essa concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero

pode-se comparaacute-la com duas obras de capital importacircncia na literatura latina que

representam esse ideal as monografias de Saluacutestio por abordarem temas

contemporacircneos ou receacutem acontecidos mas de estilo breve que recusava a abundacircncia

oratoacuteria e Tito Liacutevio que praticava o estilo ornado e de frases amplas tal como

preconizava Ciacutecero mas que por outro lado adotava a metodologia de composiccedilatildeo em

anais e cuja amplitude com contornos traacutegicos era ateacute mesmo criticada pelo orador

(MARTIN GAILLARD 1981 p 115)143

133 ndash Diodoro Siacuteculo

Desde Poliacutebio no seacuteculo II aC os romanos jaacute dispunham de tratados e relatos

etnograacuteficos sobre os celtas Foi no seacuteculo I aC contudo que Roma conquistou os

povos da Europa ocidental (celtas hispanos e iberos) de forma definitiva consolidando

seu domiacutenio e ampliando cada vez mais seu territoacuterio Desse periacuteodo entre os seacuteculos I

aC e I dC temos mais dois autores gregos que se destacaram ao escreverem sobre os

celtas Diodoro Siacuteculo e Estrabatildeo

Diodoro Siacuteculo nasceu provavelmente em 90 aC em Agirium hoje Agira na

Siciacutelia daiacute o cognome Siacuteculo Foi contemporacircneo de Ceacutesar e sua morte teria sido em 30

aC144

Diodoro Siacuteculo com sua Biblioteca (ou Bibliotheca historica) eacute uma fonte

importante tanto por sua tentativa de superar Eacuteforo ao colocar todas as civilizaccedilotildees em

destaque na sua obra historiograacutefica e natildeo soacute a Greacutecia quanto por tentar cobrir o

periacuteodo desde as origens da criaccedilatildeo ateacute o ano de 59 aC (quando Ceacutesar obteve seu

primeiro consulado) Por essa abordagem abrangente sua obra eacute considerada universal

A catalogaccedilatildeo de autores e obras estava na moda na Roma do seacuteculo I aC Diodoro

influenciado pelo periacuteodo que passou em Alexandria compocircs sua Biblioteca com base

143

Abordaremos Tito Liacutevio e sua obra de forma mais aprofundada no capiacutetulo 3 deste trabalho 144

Para essa pequena biografia de Diodoro Siacuteculo tomamos como referecircncia a introduccedilatildeo escrita por

Alasagrave (DIODORO DE SICILIA 2001 p 8-9)

81

em uma grande coleccedilatildeo com vaacuterias citaccedilotildees de outros historiadores sem nomear

necessariamente toda fonte que empregou em sua obra (SACKS 1990 p 77) Diodoro

dessa forma fez uma sucessatildeo de resumos dos trabalhos e obras de outros autores

muito deles hoje perdidos o que justificava o tiacutetulo de seu livro Biblioteca (MURRAY

In BOARDMAN et al 1986 p 201) Diodoro de fato era mais um intelectual curioso

que compilou textos de caraacuteter etnograacutefico geograacutefico mitoloacutegico historiograacutefico

dentre outros ramos do saber para refletir a cultura no acircmbito da tradiccedilatildeo greco-

latina145

A longa obra de Diodoro seria composta de quarenta livros dos quais temos

apenas os livros I-V e XI-XX do restante temos apenas fragmentos146

Diodoro se interessou de forma significativa pela etnografia celta dedicando

sete capiacutetulos de sua obra a esse povo (Biblioteca V 26 a 32) Ele descreveu o clima da

regiatildeo geografia recursos naturais aleacutem de aspectos culturais dos gauleses como

vestuaacuterio haacutebitos crenccedilas etc Assim como outros autores jaacute citados Diodoro tambeacutem

relacionou o clima de uma regiatildeo com o tipo fiacutesico e sauacutede do povo que a habitava

(VASALY 1993 p 147) Diodoro dessa forma escreveu (Bib III 34 8) δηόπεξ ηῆο

δηαθνξο ηῆο ηλ ἀέξσλ ἐλ ὀιίγῳ δηαζηήκαηη κεγάιεο νὔζεο νὐδὲλ παξάδνμνλ θαὶ ηὴλ

δίαηηαλ θαὶ ηνὺο βίνπο ἔηη δὲ ηὰ ζώκαηα πνιὺ δηαιιάηηεηλ ηλ παξ᾽ ἡκῖλ (―por tanto

siendo grande la diferencia de climas en poco intervalo no es nada asombroso que no

soacutelo la dieta sino tambieacuten los modos de vida e incluso los cuerpos cambien mucho de

los nuestros )147

Como Gruen (2011 p 143) lembr sobre ess obr ―Comments re

generally bland and descriptive But they give a sense of the impressions of Gauls that

circulated among Greek writers contempor neous with C es r 148

Assim como Poliacutebio

Diodoro tambeacutem mencionou a grande estatura dos gauleses (V 28 1) νἱ δὲ Γαιάηαη

ηνῖο κὲλ ζώκαζίλ εἰζηλ εὐκήθεηο ηαῖο δὲ ζαξμὶ θάζπγξνη θαὶ ιεπθνί ηαῖο δὲ θόκαηο νὐ

κόλνλ ἐθ θύζεσο μαλζνί ἀιιὰ θαὶ δηὰ ηῆο θαηαζθεπῆο ἐπηηεδεύνπζηλ αὔμεηλ ηὴλ

θπζηθὴλ ηῆο ρξόαο ἰδηόηεηα (―Los g los tienen un consider ble est tur muacutesculos

145

Citaccedilatildeo tambeacutem retirada da introduccedilatildeo de Alasagrave citada acima (2001 p 10) 146

Informaccedilatildeo retirada do prefaacutecio de Oldfather da sua traduccedilatildeo de Diodorus of Sicily (1952 v1 p XV) 147

―Port nto sendo gr nde diferenccedil de clim s em pouco interv lo natildeo eacute n d ssombroso que natildeo soacute

diet m s t mbeacutem os modos de vid e inclusive os corpos sej m tatildeo diferentes dos nossos (DIODORO

DE SICIacuteLIA 2001 p 470) 148

―Os comentaacuterios satildeo ger lmente br ndos e descritivos Eles contudo datildeo uma percepccedilatildeo das

impressotildees dos g uleses que circul v m entre os escritores gregos contemporacircneos de Ceacutes r

82

flaacutecidos piel blanca cabellos rubios no soacutelo por naturaleza sino tambieacuten porque por

medios artificiales se dedican a acentuar su propio color n tur l )149

No geral Diodoro narrou sobre os costumes dos gauleses de forma mais

imparcial do que preconceituosa ou criacutetica com vaacuterias curiosidades e diferenccedilas de

costumes (GRUEN 2011a p 145) Destacamos aqui uma passagem em que Diodoro

compara um costume gaulecircs ndash o de oferecer os melhores cortes de carne aos homens

mais bravos ndash a alguns versos da Iliacuteada Lecirc-se em Biblioteca V 28 4

δεηπλνῦζη δὲ θαζήκελνη πάληεο νὐθ ἐπὶ ζξόλσλ ἀιι᾽ ἐπὶ ηῆο γῆο

ὑπνζηξώκαζη ρξώκελνη ιύθσλ ἢ θπλλ δέξκαζη δηαθνλνῦληαη δ᾽ ὑπὸ ηλ

λεσηάησλ παίδσλ ἐρόλησλ ἡιηθίαλ ἀξξέλσλ ηε θαὶ ζειεηλ πιεζίνλ δ᾽

αὐηλ ἐζράξαη θεῖληαη γέκνπζαη ππξὸο θαὶ ιέβεηαο ἔρνπζαη θαὶ ὀβεινὺο

πιήξεηο θξελ ὁινκεξλ ηνὺο δ᾽ ἀγαζνὺο ἄλδξαο ηαῖο θαιιίζηαηο ηλ

θξελ κνίξαηο γεξαίξνπζη θαζάπεξ θαὶ ὁ πνηεηὴο ηὸλ Αἴαληα παξεηζάγεη

ηηκώκελνλ ὑπὸ ηλ ἀξηζηέσλ ὅηε πξὸο Ἕθηνξα κνλνκαρήζαο

ἐλίθεζελώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξε

Todos comen sentados no en asientos sino en el suelo utilizando como

almohadas pieles de lobos o de perros De servir en las comidas se ocupan los

maacutes joacutevenes tanto los varones como las hembras que tienen la edad

adecuada Cerca de ellos hay chimeneas llenas de fuego con calderas y

asadores repletos de piezas enteras de carne Recompensan a los hombres

valerosos daacutendoles los mejores trozos de carne de la misma manera que

ocurre cuando el poeta presenta a Ayante honrado por los jefes una vez que

resultoacute vencedor en el combate singular con Heacutector recompensoacute a Ayante

con el ancho lomo (grifo do tradutor) 150

O verso da passagem acima colocado em itaacutelico pelo tradutor Esbarranch

refere-se ao canto VII da Iliacuteada Diodoro mencionou os seguintes versos de Homero em

sua comparaccedilatildeo com o haacutebito dos gauleses (Iliacuteada VII v 319 a 322)

αὐηὰξ ἐπεὶ παύζαλην πόλνπ ηεηύθνληό ηε δαῖηα

δαίλπλη᾽ νὐδέ ηη ζπκὸο ἐδεύεην δαηηὸο ἐΐζεο

λώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξελ

ἥξσο Ἀηξεΐδεο εὐξὺ θξείσλ Ἀγακέκλσλ

Quando puseram termo ao esforccedilo de preparar o jantar

comeram e nada lhes faltou naquele festim compartilhado

A Aacutejax honrou com o lombo contiacutenuo do boi

149

―Os g uleses tecircm um est tur consideraacutevel muacutesculos flaacutecidos pele branca cabelos ruivos natildeo soacute por

n turez m s t mbeacutem porque por meios rtifici is se dedic m centu r su proacutepri cor n tur l Esse

trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Esbarranch para a obra de Diodoro (2004 p 270 e 271) 150

―Todos comem sentados natildeo em assentos mas no chatildeo utilizando como almofadas peles de lobos ou

catildees Os mais jovens se ocupam de servir a comida tanto os rapazes quanto as moccedilas que tenham a idade

adequada Perto deles haacute lareiras cheias de fogo com caldeiras e grelhas repletas de peccedilas inteiras de

carne Recompensam os homens dando-lhes os melhores nacos de carne da mesma maneira que acontece

quando o poeta presenteia Aacutejax honrado por seus chefes uma vez que ele saiu vencedor do combate

individual com Heitor recompensou Aacutejax com o lombo do boi (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 270)

83

o heroacutei filho de Atreu Agameacutemnon de vasto poder151

Os banquetes eram uma importante caracteriacutestica em sociedades indoeuropeias

como os celtas e os proacuteprios gregos e serviam para estreitar os laccedilos entre os membros

desses grupos sobretudo dos liacutederes para com os guerreiros152

Diodoro em sua

descriccedilatildeo etnograacutefica dos celtas os descreveu natildeo soacute como sendo corajosos e fortes

mas tambeacutem possuidores de erudiccedilatildeo ndash representada na figura dos bardos e dos druidas

chamados por Diodoro de filoacutesofos e tambeacutem dos adivinhos (vates) que realizavam

sacrifiacutecios humanos Assim ele narrou (Biblioteca V 31 2 a 4)

εἰζὶ δὲ παξ᾽ αὐηνῖο θαὶ πνηεηαὶ κειλ νὓο βάξδνπο ὀλνκάδνπζηλ νὗηνη δὲ

κεη᾽ ὀξγάλσλ ηαῖο ιύξαηο ὁκνίσλ ᾄδνληεο νὓο κὲλ ὑκλνῦζηλ νὓο δὲ

βιαζθεκνῦζη θηιόζνθνί ηέ ηηλέο εἰζη θαὶ ζενιόγνη πεξηηηο ηηκώκελνη νὓο

δξνπίδαο ὀλνκάδνπζη ρξληαη δὲ θαὶ κάληεζηλ ἀπνδνρῆο κεγάιεο ἀμηνῦληεο

αὐηνύο νὗηνη δὲ δηά ηε ηῆο νἰσλνζθνπίαο θαὶ δηὰ ηῆο ηλ ἱεξείσλ ζπζίαο ηὰ

κέιινληα πξνιέγνπζη θαὶ πλ ηὸ πιῆζνο ἔρνπζηλ ὑπήθννλ κάιηζηα δ᾽ ὅηαλ

πεξί ηηλσλ κεγάισλ ἐπηζθέπησληαη παξάδνμνλ θαὶ ἄπηζηνλ ἔρνπζη λόκηκνλ

ἄλζξσπνλ γὰξ θαηαζπείζαληεο ηύπηνπζη καραίξᾳ θαηὰ ηὸλ ὑπὲξ ηὸ

δηάθξαγκα ηόπνλ θαὶ πεζόληνο ηνῦ πιεγέληνο ἐθ ηῆο πηώζεσο θαὶ ηνῦ

ζπαξαγκνῦ ηλ κειλ ἔηη δὲ ηῆο ηνῦ αἵκαηνο ῥύζεσο ηὸ κέιινλ λννῦζη

παιαηᾶ ηηλη θαὶ πνιπρξνλίῳ παξαηεξήζεη πεξὶ ηνύησλ πεπηζηεπθόηεο ἔζνο δ᾽

αὐηνῖο ἐζηη κεδέλα ζπζίαλ πνηεῖλ ἄλεπ θηινζόθνπ δηὰ γὰξ ηλ ἐκπείξσλ ηῆο

ζείαο θύζεσο ὡζπεξεί ηηλσλ ὁκνθώλσλ ηὰ ραξηζηήξηα ηνῖο ζενῖο θαζη δεῖλ

πξνζθέξεηλ θαὶ δηὰ ηνύησλ νἴνληαη δεῖλ ηἀγαζὰ αἰηεῖζζαη

Entre ellos se encuentran asimismo poetas liacutericos que ellos llaman bardos

Estos poetas cantan con el acompantildeamiento de instrumentos semejantes a la

lira celebran a unos personajes e infaman a otros Tambieacuten hay unos

filoacutesofos y teoacutelogos que son objeto de honores extraordinarios y reciben el

nombre de druidas Los galos asimismo recurren a adivinos a los que

consideran merecedores de gran reconocimiento estos adivinos predicen el

futuro mediante la observacioacuten del vuelo de los paacutejaros y el sacrificio de las

viacutectimas y todo el pueblo estaacute atento a sus dictados Observan una costumbre

extrantildea e increiacuteble sobre todo cuando deben indagar respecto a algunos

asuntos de importancia en estos casos en efecto ofrecen en sacrificio la vida

de un hombre al que apuntildealan con una daga en un lugar situado encima del

diafragma y cuando cae el hombre acuchillado a partir de la observacioacuten de

la caiacuteda de la convulsioacuten de los miembros y tambieacuten de la efusioacuten de la

sangre los adivinos comprenden el futuro fieles a una antigua praacutectica de

observacioacuten de estos hechos usada durante muchos antildeos Es costumbre entre

los galos no realizar ninguacuten sacrificio sin la presencia de un filoacutesofo dicen

en efecto que es preciso ofrecer sacrificios de agradecimiento a los dioses

por medio de personas expertas en la naturaleza divina que hablen por

151

Novamente usamos a traduccedilatildeo feita por Lourenccedilo 152

Destaca-se no Brasil o professor Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo por sua pesquisa sobre os banquetes em

Homero com vaacuterias publicaccedilotildees e palestras proferidas sobre esse tema Dentre as suas publicaccedilotildees mais

recentes a esse respeito destacamos ASSUNCcedilAtildeO T R O banquete e as narrativas na Odisseia

Romanitas v 2 p 100-115 2013 _____________ Boa comida em banquetes como razatildeo para arriscar a

vida o discurso de Sarpeacutedon a Glauco (Iliacuteada XII 310-328) Nuntius Antiquus v 1 p 1-17 2008

_________ Os banquetes transgressivos dos pretendentes na Odisseacuteia In Martinho Marcos (Org) 1deg

Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo Humanitas 2006 p 35-56

84

decirlo asiacute la misma lengua de los dioses por medio de estos hombres

piensan que ha de pedirse el favor divino153

Gruen (2011a p 144) lembra que a praacutetica do sacrifiacutecio humano por parte dos

gauleses natildeo eacute mencionada por Poliacutebio Esse tema acima narrado por Diodoro

impressionou o autor grego Embora considere os sacrifiacutecios como sendo costume

estranho e incriacutevel Diodoro de forma alguma ofendeu os gauleses ou seus haacutebitos em

sua descriccedilatildeo

134 ndash Estrabatildeo

Estrabatildeo nasceu em Amaacutesia no Ponto por volta de 63 aC e viajou por vaacuterias

regiotildees da Aacutesia Menor da Itaacutelia e do Egito Historiador ele escreveu uma obra

histoacuterica hoje perdida a partir do ponto em que Poliacutebio parou Como geoacutegrafo compocircs

um tratado universal em dezessete livros que foram preservados conhecidos como

Geografia A data de sua morte eacute desconhecida tendo ocorrido certamente depois do

ano 23 dC jaacute que Estrabatildeo citou em sua obra o rei Juba II que faleceu nesse ano154

Como afirma Hartog (2014 p 243) ―esse quadro geograacutefico do mundo

habitado escrito por um grego da Aacutesia acostumado com a corte em Roma pretende ser

declaradamente uma geografia poliacutetica sobretudo para uso dos governantes destinada a

dar conta do estado do mundo ( ) Esse c raacuteter univers list er comum os escritores

do periacuteodo heleniacutestico como jaacute vimos em Poliacutebio e depois com Diodoro Siacuteculo

Estrabatildeo usou Posidocircnio como fonte dentre outros autores Segundo Momigliano

153―Entre eles t mbeacutem se encontr m poet s liacutericos que eles ch m m de b rdos Esses poetas cantam com

acompanhamento de instrumentos semelhantes agrave lira celebram uns personagens e difamam outros

Tambeacutem haacute alguns filoacutesofos e teoacutelogos que satildeo objeto de honras extraordinaacuterias e que recebem o nome de

druidas Os galos tambeacutem recorrem a adivinhos aos quais consideram merecedores de grande

reconhecimento esses adivinhos predizem o futuro mediante a observaccedilatildeo do voo dos paacutessaros e o

sacrifiacutecio das viacutetimas e todo o povo estaacute atento aos seus ditos Observam um costume estranho e incriacutevel

sobretudo quando devem perguntar a respeito de alguns assuntos de importacircncia nesses casos de fato

oferecem como sacrifiacutecio a vida de um homem que apunhalam com uma adaga em um lugar situado

acima do diafragma e quando o homem esfaqueado cai a partir da observaccedilatildeo da queda da convulsatildeo

dos membros e tambeacutem da efusatildeo de sangue os adivinhos compreendem o futuro fieacuteis a uma antiga

praacutetica de observaccedilatildeo desses feitos durante muitos anos Eacute tambeacutem costume entre os gauleses natildeo realizar

nenhum sacrifiacutecio sem a presenccedila de um filoacutesofo dizem de fato que eacute preciso oferecer sacrifiacutecios de

agradecimento aos deuses por meio de pessoas peritas na natureza divina e que falem por assim dizer a

mesma liacutengua dos deuses por meio desses homens eles pensam que haacute de se pedir o favorecimento

divino (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 275e 276) 154

Usamos como referecircncia bibliograacutefica para esse resumo da vida de Estrabatildeo a introduccedilatildeo do livro de

ESTRABOacuteN (1991 p 7 a 13)

85

(1991 p 66) ele ―est v inteir do d s muitas fontes da eacutepoca de Ceacutesar e Augusto e ateacute

cita os commentarii de Ceacutes r

Se os gregos e posteriormente os romanos consideravam habitar o centro do

mundo o que estava localizado nas esferas mais distantes causava estranhamento e era

considerado diferente (VASALY 1993 p 136) Nas palavras do proacuteprio Estrabatildeo

(Geografia I 2 29) ἄιισο ηε ηλ παξ᾽ ἑθάζηνηο ἰδίσλ ηαῦη᾽ ἐζηὶ γλσξηκώηαηα ἃ θαὶ

παξαδνμίαλ ἔρεη ηηλά θαὶ ἐλ ηῶ θαλεξῶ πζίλ ἐζηη (―Por lo demaacutes de l s

peculiaridades de cada pueblo son con mucho las maacutes llamativas aquellas que producen

cierta sorpresa y son a todos evidentes) 155

Embora as grandes diferenccedilas entre povos

fossem as mais notadas pelos gregos e romanos para Estrabatildeo as particularidades de

cada gente eram mais resultado de circunstacircncias culturais econocircmicas e geograacuteficas do

que devido a traccedilos natos de um povo (VASALY 1993 p 148) Da mesma forma que

Poliacutebio e Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo (IV 4 2) tambeacutem citou o recorrente toacutepos de

representaccedilatildeo do gaulecircs como sendo alto e forte dizendo ηῆο δὲ βίαο ηὸ κὲλ ἐθ ηλ

ζσκάησλ ἐζηὶ κεγάισλ ὄλησλ ηὸ δ᾽ ἐθ ηνῦ πιήζνπο (―Su fuerz procede t nto de su

elev d est tur como de su gr n nuacutemero )156

Assim como Diodoro Estrabatildeo evitou fazer julgamentos de valor ou criacuteticas em

relaccedilatildeo aos haacutebitos dos gauleses contentando-se apenas em narrar seus costumes

culturais (GRUEN 2011a p 145) A uacutenica passagem que Estrabatildeo se referiu a um

costume gaulecircs como sendo baacuterbaro e exoacutetico foi ao descrever o modo como os

gauleses guardavam as cabeccedilas dos inimigos na entrada de suas casas ndash ao que ele citou

diretamente Posidocircnio157

Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) tambeacutem falou da praacutetica celta

de sacrificar humanos

ηὰο δὲ ηλ ἐλδόμσλ θεθαιὰο θεδξνῦληεο ἐπεδείθλπνλ ηνῖο μέλνηο θαὶ νὐδὲ

πξὸο ἰζνζηάζηνλ ρξπζὸλ ἀπνιπηξνῦλ ἠμίνπλ θαὶ ηνύησλ δ᾽ ἔπαπζαλ αὐηνὺο

Ῥσκαῖνη θαὶ ηλ θαηὰ ηὰο ζπζίαο θαὶ καληείαο ὑπελαληίσλ ηνῖο παξ᾽ ἡκῖλ

λνκίκνηο ἄλζξσπνλ γὰξ θαηεζπεηζκέλνλ παίζαληεο εἰο ληνλ καραίξᾳ

ἐκαληεύνλην ἐθ ηνῦ ζθαδαζκνῦ ἔζπνλ δὲ νὐθ ἄλεπ δξπτδλ θαὶ ἄιια δὲ

ἀλζξσπνζπζηλ εἴδε ιέγεηαη θαὶ γὰξ θαηεηόμεπόλ ηηλαο θαὶ ἀλεζηαύξνπλ ἐλ

ηνῖο ἱεξνῖο θαὶ θαηαζθεπάζαληεο θνινζζὸλ ρόξηνπ θαὶ μύισλ ἐκβαιόληεο

εἰο ηνῦηνλ βνζθήκαηα θαὶ ζεξία παληνῖα θαὶ ἀλζξώπνπο ὡινθαύηνπλ

Muestran a los extranjeros las cabezas de los enemigos famosos

embalsamadas con aceite de cedro y ni siquiera a cambio de su peso en oro

155

―Aleacutem disso d s peculi rid des de c d povo satildeo muito m is signific tiv s quel s que produzem

certa surpresa e satildeo evidentes todos Tr duccedilatildeo de R moacuten e Bl nco (in ESTRABOacuteN 1991 p 301) 156

―Su forccedil procede t nto de su elev d est tur como de seu gr nde nuacutemero Utiliz mos qui

traduccedilatildeo de Meana e Pintildeero (in ESTRABOacuteN 1992 p 178) 157

Jaacute mencionamos essa passagem no subcapiacutetulo referente a Posidocircnio conferir p 65 e 66

86

se avienen a devolverlas Los romanos les hicieron terminar con esas

praacutecticas y con las referentes a los sacrificios y a la adivinacioacuten que eran

contrarias a nuestros usos Golpeaban por ejemplo en la espalda con una

espada a un hombre elegido ritualmente como viacutectima y practicaban la

adivinacioacuten a partir de sus convulsiones No sacrificaban sin embargo jamaacutes

sin la presencia de un druida He oiacutedo hablar tambieacuten de otras formas de

sacrificios humanos como por ejemplo la praacutectica de matar a flechazos a

algunos o la de crucificarlos en los templos o la de fabricar un enorme

muntildeeco de paja y madera en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos

de todo tipo y hombres y hacer con eacutel un holocausto158

Quanto a essa praacutetica celta de guardar as cabeccedilas dos inimigos Estrabatildeo

mencionou Posidocircnio dizendo que esse haacutebito a princiacutepio chocante depois foi aceito

com tranquilidade pelo autor grego Vasaly (1993 p 148) a respeito desses haacutebitos

selvagens dos estrangeiros e da sua condiccedilatildeo de baacuterbaro tambeacutem ressalta

Although it is true that Strabo often has recourse to stereotypical descriptions

of ethnic groups ndash the Iberians for example are dour and malicious the

Celts passionate and fickle and the Western barbarians in general are cruel ndash

he implies that the passage from savagery to civilization may be made by all

This passage is initiated through contact with Greco-Roman city-states and

leads in places where geography has been suitable to the creation of stable

agriculture private property law and the ultimate sign of civilized life large

urban centers Where land was not suitable for settled agriculture however

the inhabitants were apparently doomed to a life of savagery159

Sobre descriccedilatildeo de Estr batildeo ―de f bric r un enorme muntildeeco de p j y m der

en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos de todo tipo y hombres y hacer

con eacutel un holoc usto como mencion do cim ele cert mente retirou esse f to de

Ceacutesar que assim disse (De bello Gallico VI 16)

() pro uita hominis nisi hominis uita reddatur non posse deorum

immortalium numen placari arbitrantur publiceque eiusdem generis habent

158

―Eles mostr m os estr ngeiros s c beccedil s dos inimigos f mosos emb ls m d s com oacuteleo de cedro e

nem sequer em troca do seu peso de ouro cogitam devolvecirc-las Os romanos os fizeram terminar com essas

praacuteticas e com as praacuteticas referentes aos sacrifiacutecios e a adivinhaccedilatildeo que eram contraacuterios aos nossos usos

Golpeavam por exemplo nas costas com uma espada a um homem escolhido ritualmente como viacutetima e

praticavam a adivinhaccedilatildeo a partir de suas convulsotildees Natildeo sacrificavam jamais poreacutem sem a presenccedila de

um druida Ouvi falar tambeacutem de outras formas de sacrifiacutecios humanos como por exemplo a praacutetica de

matar a flechas a alguns ou de crucificaacute-los nos templos ou de fabricar um enorme boneco de palha e

madeira no qual enfiavam algumas cabeccedilas de gado bichos de todo o tipo e homens e fazer com ele um

holoc usto (ESTRABOacuteN 1992 p 181 e 182) 159

―Apes r de ser verd de que Estr batildeo ger lmente recorreu descriccedilotildees estereotip d s de grupos eacutetnicos

- os ibeacuterios por exemplo satildeo severos e maliciosos os celtas passionais e inconstantes e os baacuterbaros

ocidentais em geral satildeo crueacuteis ndash ele daacute a entender que a passagem da selvageria para a civilizaccedilatildeo pode

ser feita por todos Essa passagem se inicia atraveacutes do contato com cidades-Estado greco-romanas e leva

em locais onde a geografia eacute propiacutecia agrave criaccedilatildeo de agricultura estaacutevel propriedade privada direito e ao

uacuteltimo sinal da vida civilizada grandes centros urbanos Onde a terra natildeo era propiacutecia para o

estabelecimento da agricultura poreacutem os habitantes eram aparentemente condenados a uma vida de

selv geri

87

instituta sacrificia Alii immani magnitudine simulacra habent quorum

contexta uiminibus membra uiuis hominibus complent quibus succensis

circumuenti flamma exanimantur homines

() na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com a vida de outro

homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo pode ser aplacado

e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente instituiacutedos Outros

possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros entrelaccedilados com

vimes preenchem de homens vivos incendiados esses membros morrem os

homens envoltos pelas chamas160

Gruen tambeacutem lembra que as imagens dos gauleses como altos e fortes aleacutem de

belicosos eram bastante recorrentes nos escritos etnograacuteficos mais antigos como jaacute

citamos em Poliacutebio etc o que eacute mais significativo de nota seria o interesse dos gauleses

pela educaccedilatildeo e literatura um ponto que aparece tanto em Diodoro quanto em Estrabatildeo

(GRUEN 2011a p 146) Poliacutebio por sua vez natildeo se interessou em abordar a cultura

poeacutetica ou filosoacutefica dos celtas de fato ele estava mais interessado no caraacuteter militar e

guerreiro desse povo e como ele se opunha aos romanos Sobre a educaccedilatildeo dos gauleses

e o papel de Marselha como centro de instruccedilatildeo Estrabatildeo disse (IV 1 5)

ἐμεκεξνπκέλσλ δ᾽ ἀεὶ ηλ ὑπεξθεηκέλσλ βαξβάξσλ θαὶ ἀληὶ ηνῦ πνιεκεῖλ

ηεηξακκέλσλ ἤδε πξὸο πνιηηείαο θαὶ γεσξγίαο δηὰ ηὴλ ηλ Ῥσκαίσλ

ἐπηθξάηεηαλ νὐδ᾽ αὐηνῖο ἔηη ηνύηνηο ζπκβαίλνη ἂλ πεξὶ ηὰ ιερζέληα ηνζαύηε

ζπνπδή δεινῖ δὲ ηὰ θαζεζηεθόηα λπλί πάληεο γὰξ νἱ ραξίεληεο πξὸο ηὸ

ιέγεηλ ηξέπνληαη θαὶ θηινζνθεῖλ ὥζζ᾽ ἡ πόιηο κηθξὸλ κὲλ πξόηεξνλ ηνῖο

βαξβάξνηο ἀλεῖην παηδεπηήξηνλ θαὶ θηιέιιελαο θαηεζθεύαδε ηνὺο Γαιάηαο

ὥζηε θαὶ ηὰ ζπκβόιαηα ἑιιεληζηὶ γξάθεηλ ἐλ δὲ ηῶ παξόληη θαὶ ηνὺο

γλσξηκσηάηνπο Ῥσκαίσλ πέπεηθελ ἀληὶ ηῆο εἰο Ἀζήλαο ἀπνδεκίαο ἐθεῖζε

θνηηλ θηινκαζεῖο ὄληαο

Y como por influencia de los romanos los baacuterbaros del interior se iban

civilizando y apartando de la guerra concentraacutendose en ocupaciones urbanas

y agriacutecolas tampoco ellos teniacutean ya por queacute poner demasiado empentildeo en las

actividades citadas como se ve por lo que ocurre hoy diacutea En efecto todos

los ciudadanos de posicioacuten desahogada se han dedicado a la oratoria y a la

filosofiacutea de forma que hasta no hace mucho su ciudad ha servido como

escuela para los baacuterbaros convirtiendo a los galos en filohelenos de tal modo

que los contratos se redactan en griego Actualmente Masalia ha persuadido

a los romanos maacutes ilustres que desean instruirse para que vengan a estudiar

aquiacute en lugar de hacer el viaje a Atenas161

160

Sherwin-White sobre esse tema escreveu um capiacutetulo inteiro ―The Northern Barbarians in Strabo

and Caesar (1967 p 1-32) 161

―E como por influecircnci dos rom nos os baacuterb ros do interior i m se civiliz ndo e se f st ndo d

guerra concentrando-se em ocupaccedilotildees urbanas e agriacutecolas tampouco eles tinham que por demasiado

empenho nas atividades citadas como se vecirc pelo que ocorre hoje em dia De fato todos os cidadatildeos de

posiccedilatildeo elevada se dedicaram agrave oratoacuteria e agrave filosofia de forma que ateacute haacute pouco sua cidade serviu como

escola para os baacuterbaros convertendo os galos em filo-helenos jaacute que os contratos satildeo redigidos em grego

Atualmente Marselha persuadiu os romanos mais ilustres que desejam se instruir para que venham

estud r qui o inveacutes de f zer vi gem teacute Aten s (ESTRABOacuteN 1992 p 151)

88

Com Estrabatildeo encerram-se os relatos de autores gregos sobre os gauleses ndash ao

menos eacute o que podemos entender a partir das fontes que nos chegaram Jaacute no seacuteculo I

aC toda a Europa ocidental tinha sido conquistada pelos romanos que passaram a ter

contato direto com outros povos Assim ao inveacutes de gregos escrevendo etnografia e

narrativas sobre outras naccedilotildees vimos surgir em autores latinos obras desse contexto

De fato com Ceacutesar temos o maior expoente romano que tratou da figura do

gaulecircs Quanto aos historiadores latinos do periacuteodo de governo de Otaacutevio Augusto o

mesmo Estrabatildeo (III 4 19) escreveu que os romanos apenas imitavam os autores

gregos quanto aos tratados etnograacuteficos

νἱ δὲ ηλ Ῥσκαίσλ ζπγγξαθεῖο κηκνῦληαη κὲλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιι᾽ νὐθ ἐπὶ

πνιύ θαὶ γὰξ ἃ ιέγνπζη παξὰ ηλ Ἑιιήλσλ κεηαθέξνπζηλ ἐμ ἑαπηλ δ᾽ νὐ

πνιὺ κὲλ πξνζθέξνληαη ηὸ θηιείδεκνλ ὥζζ᾽ ὁπόηαλ ἔιιεηςηο γέλεηαη παξ᾽

ἐθείλσλ νὐθ ἔζηη πνιὺ ηὸ ἀλαπιεξνύκελνλ ὑπὸ ηλ ἑηέξσλ ἄιισο ηε θαὶ

ηλ ὀλνκάησλ ὅζα ἐλδνμόηαηα ηλ πιείζησλ ὄλησλ Ἑιιεληθλ

Los historiadores romanos imitan a los griegos pero no llevan muy lejos su

imitacioacuten pues lo que dicen lo traducen de los griegos sin aportar de siacute una

gran avidez de conocimientos de forma que cada vez que hay un vaciacuteo de

informacioacuten por parte de aqueacutellos no es mucho lo que completan los otros y

ocurre esto especialmente en la cuestioacuten de los nombres maacutes conocidos que

son griegos en su mayoriacutea162

A partir do seacuteculo I dC tambeacutem natildeo haacute mais relatos de autores gregos e

romanos a respeito dos gauleses se de fato existiram esses textos se perderam ao longo

do tempo Sobre narrativas etnograacuteficas em geral apenas no final do seacuteculo I dC

teremos novos textos em contexto latino com Pliacutenio o Velho cuja Historia naturalis

possui trechos de cunho etnograacutefico e tambeacutem a sua obra hoje perdida sobre os

germanos Taacutecito contemporacircneo de Pliacutenio o Velho com base no texto perdido desse

uacuteltimo dedicou um livro inteiro a um povo estrangeiro ndash a Germania ndash que se tornou o

maior exemplo de obra etnograacutefica essencialmente latina

162

―Os histori dores rom nos imit m os gregos m s natildeo lev m muito longe su imit ccedilatildeo pois o que

dizem o traduzem dos gregos sem fornecer por si uma grande avidez de conhecimentos de forma que

cada vez que haacute um vazio de informaccedilatildeo por parte daqueles natildeo eacute muito que completam os outros e

ocorre isso especialmente na questatildeo dos nomes mais conhecidos que satildeo gregos em su m iori

(ESTRABOacuteN 1992 p 112)

89

Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia

No contexto do nosso tema de pesquisa enfocamos nosso trabalho nos escritos

de Juacutelio Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho Concentramos nos autores do seacuteculo I aC

a II dC sobretudo porque esse foi um periacuteodo de grandes conquistas e de grandes

transformaccedilotildees no seio da sociedade romana Antes poreacutem de aprofundar sobre esses

autores e suas respectivas obras faz-se necessaacuterio realizar algumas consideraccedilotildees sobre

o contexto histoacuterico em que se deu a expansatildeo imperialista de Roma Sobre o proacuteprio

termo imperialismo destacamos aqui a consideraccedilatildeo feita por Guarinello (2014 p 118)

Primeiro uma distinccedilatildeo Impeacuterio e imperialismo satildeo termos proacuteximos mas

se referem na verdade a realidades bem distintas Imperialismo eacute uma accedilatildeo

poliacutetica ou econocircmica de expansatildeo ou dominaccedilatildeo de um estado sobre outros

Impeacuterio eacute um estado por vezes o resultado da accedilatildeo imperialista mas que natildeo

se confunde com esta No mundo antigo ao contraacuterio do mundo

contemporacircneo podemos acompanhar na longa duraccedilatildeo a transformaccedilatildeo de

uma accedilatildeo imperialista em um grande Impeacuterio163

Dessa forma neste capiacutetulo nos concentraremos nas conquistas imperialistas

empreendidas por Roma especialmente entre o seacuteculo I aC e I dC que depois iratildeo

culminar com a origem do principado ndash o governo imperial que se inicia com Otaacutevio

na segunda metade do seacuteculo I aC164

21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC

Como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho desde o seacuteculo III aC Roma

jaacute tinha conquistado vaacuterios territoacuterios comeccedilando pela proacutepria peniacutensula Itaacutelica e depois

avanccedilando para a Europa Ocidental o norte da Aacutefrica e o Oriente proacuteximo Quando da

conquista da Peniacutensula Itaacutelica as cidades eram aliadas de Roma natildeo pagavam tributos e

apenas forneciam homens para ajudar a aumentar as legiotildees Por volta de 90 aC essas

cidades ndash que buscavam maior participaccedilatildeo nos despojos de guerra que aumentaram

consideravelmente com as recentes batalhas no Oriente ndash se rebelaram contra Roma

Natildeo deixa de ser curioso ainda notar que as cidades italianas tambeacutem exigiam a

163

Para discussatildeo mais aprofundada sobre imperialismo na Antiguidade e questotildees metodoloacutegicas

relacionadas a esse tema recomendamos Nicolet (2011 p 883 e ss) 164

Sobre o contexto de surgimento do principado abordaremos mais sobre esse assunto no proacuteximo

capiacutetulo

90

cidadania romana Essa revolta resultou na Guerra Social ou Guerra dos Soacutecios (91 a 87

aC) e de acordo com Guarinello (2014 p 291) ―os li dos represent r m m ior

ameaccedila domeacutestica agrave hegemonia romana em seacuteculos A Itaacutelia se tornou o palco de

grandes batalhas entre os que h vi m sido teacute entatildeo sold dos de um mesmo exeacutercito

Depois desse atrito ndash que natildeo teve um vencedor definido mas na verdade resultou em

um acordo ndash todas as cidades ao sul do rio Poacute (que entatildeo era o limite do territoacuterio

itaacutelico) receberam a cidadania o que levou agrave unificaccedilatildeo poliacutetica da peniacutensula jaacute em uma

fase avanccedilada da histoacuteria romana Essa junccedilatildeo das cidades itaacutelicas com Roma

consolidou ainda mais o aspecto imperialista da urbe os soacutecios isentos de tributos

contribuiacuteam com os proacuteprios homens para os exeacutercitos de Roma e tambeacutem partilhavam

do butim de guerra Dessa maneira a expansatildeo romana tendo por base essa grande

alianccedila entre cidades envolveu vaacuterios interesses comuns dos povos das planiacutecies contra

os montanheses dos habitantes da Itaacutelia contra os gauleses de gregos e etruscos contra

Cartago das aristocracias da Itaacutelia central contra as plebes urbanas e rurais

(GUARINELLO 2014 p 126)

Entrementes apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica Roma ocupou a Siciacutelia

definitivamente em 241 aC a ilha tornou-se a primeira proviacutencia romana como tal o

territoacuterio conquistado era explorado como butim de guerra e forccedilado a pagar taxas a

Roma Como Guarinello lembra (2014 p 284) ―A exp nsatildeo subsequente f voreceri s

elites que disputavam o comando das guerras e o prestiacutegio e riquezas que obtinham

com elas bem como os camponeses meacutedios que formavam o grosso do exeacutercito

itaacutelico

211 ndash O exeacutercito romano

Roma teve a formaccedilatildeo de um exeacutercito a partir do seacuteculo VI aC e ao longo do

tempo as suas fileiras ficaram cada vez maiores e com teacutecnicas militares mais eficazes ndash

sendo um dos fatores para o aumento do exeacutercito o proacuteprio recrutamento de tropas entre

as cidades aliadas de Roma como abordamos no subitem anterior Desde seu princiacutepio

o exeacutercito romano era composto sobretudo pelos cidadatildeos da urbe Com a

consolidaccedilatildeo de Roma na Peniacutensula Itaacutelica aumentou-se a participaccedilatildeo dos aliados

(soacutecios) Grande parte do sucesso de Roma se deveu a uma organizaccedilatildeo militar uacutenica a

legiatildeo que surgiu no seacuteculo V aC Cada legiatildeo era composta por cerca de 4 a 6 mil

homens divididos em centuacuterias (cem soldados) e maniacutepulos (duas centuacuterias) Como

91

Schmidt (2004 p 20) ressalta essa hierarquia permitiu ao exeacutercito romano uma grande

flexibilidade de movimentaccedilotildees taacuteticas aleacutem disso as legiotildees eram acompanhadas pela

cavalaria responsaacutevel pela proteccedilatildeo das tropas e tambeacutem por ajudar a semear o pacircnico

entre os inimigos De toda forma essas tropas natildeo eram permanentes em sua maior

parte os soldados eram na verdade camponeses que depois das batalhas eram

dispensados do dever militar O exeacutercito ateacute o seacuteculo I aC era formado pela cavalaria

ndash composta pelos cidadatildeos de elite que podiam arcar com os elevados custos de se

manter um cavalo e pela infantaria formada pelos camponeses a ocupaccedilatildeo militar era

obrigatoacuteria O sucesso das legiotildees romanas estava principalmente na sua sofisticaccedilatildeo

com o emprego de maacutequinas de guerra elaboradas e versaacuteteis taacuteticas beacutelicas

Durante os seacuteculos derradeiros do periacuteodo republicano Roma conquistou vastos

territoacuterios acumulando grandes riquezas O sistema poliacutetico republicano natildeo se

sustentava mais nos novos moldes do imenso territoacuterio multicultural Esses vaacuterios ecircxitos

militares acentuaram profundas dissensotildees no seio de Roma Os constantes

recrutamentos dos cidadatildeos romanos enfraqueceram a populaccedilatildeo e a desigualdade

social aumentou bastante Os veteranos tendo deixado o exeacutercito exigiam distribuiccedilatildeo

de terras e do lucro obtido com os saques mas a oligarquia senatorial nada fazia de

relevante para recompensar os soldados que ajudaram na expansatildeo do domiacutenio romano

(GUARINELLO 2014 p 290-291)

Dessa forma as tropas comeccedilaram a obedecer mais agrave autoridade dos generais ndash

jaacute que eles passaram a distribuir o butim de guerra entre suas legiotildees ndash do que ao

proacuteprio Senado A relaccedilatildeo dos soldados com seus superiores criou uma ligaccedilatildeo

poderosa de troca de vantagens os legionaacuterios conseguiam compensaccedilatildeo financeira por

seus serviccedilos militares e os chefes dispunham da fidelidade de suas tropas atraveacutes das

quais tinham respaldo para concretizar suas ambiccedilotildees poliacuteticas (GUARINELLO 2014

p 113-114) Esse processo comeccedilou a se formar a partir da segunda Guerra Puacutenica jaacute

que aumentou a necessidade de comandos prolongados com duradouro contato direto

entre os liacutederes e as proacuteprias tropas e tambeacutem desses com as populaccedilotildees e elites locais

que em alguns casos tornaram-se clientes desses generais Esses liacutederes carismaacuteticos

como Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e outros que surgiram depois como Maacuterio Sila Pompeu

e Ceacutesar levaram a um reforccedilo das lideranccedilas pessoais que abriu portas para

concentraccedilatildeo de poder poliacutetico nas figuras dos generais (OLIVEIRA in BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 258 e 259) Esse processo se acentuou sobretudo depois da

reforma militar de Maacuterio em 107 aC os soldados passaram a ser alistados como

92

voluntaacuterios e a exigecircncia de se possuir bens para participar do exeacutercito foi abolida165

Aleacutem disso foi nessa reforma que ficou estabelecida a legiatildeo composta por 6 mil

homens sendo cada legiatildeo designada por um nuacutemero e uma aacuteguia Com o recrutamento

contiacutenuo entre os cidadatildeos as fileiras do exeacutercito mantinham-se constantemente estaacuteveis

(BORNECQUE MORNET 2002 p 115)166

Os legionaacuterios viam uma boa chance de

melhorar de vida atraveacutes do dever militar graccedilas agraves pilhagens e presentes por parte dos

generais e tambeacutem por conseguirem uma porccedilatildeo de terra quando eram dispensados por

conseguinte a carreira militar tornou-se de fato uma profissatildeo (GUARINELLO 2014

p 128) As tropas que outrora respondiam ao comando do Senado transformaram-se

em verdadeiros exeacutercitos particulares dos grandes generais Isso dentre outros fatores ndash

como as transformaccedilotildees soacutecio-econocircmicas o empobrecimento da Itaacutelia (cada vez mais

dependente das proviacutencias) e as mudanccedilas culturais e de costumes ndash levou agraves crises

poliacuteticas que culminaram no fim da Repuacuteblica e no surgimento do poder centralizado na

figura de um uacutenico indiviacuteduo167

212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista

Durante a Repuacuteblica ateacute meados do seacuteculo II aC a diplomacia romana era

baseada em princiacutepios religiosos e morais que norteavam a convivecircncia de Roma com

os outros povos Esses princiacutepios implicavam uma relaccedilatildeo reciacuteproca na qual os

vencedores deveriam ser clementes protetores e moderados para com os vencidos

(MENDES 1988 p 46) Evidentemente essas relaccedilotildees embora reciacuteprocas natildeo eram

igualitaacuterias como Veyne (in GIARDINA 1992 p 296) afirma

() o povo romano eacute um povo-rei as suas relaccedilotildees com os suacuteditos ou com os

estrangeiros satildeo um patrocinium natildeo satildeo relaccedilotildees com parceiros iguais

165

Como destaca Gabba (1977 p 52) ateacute entatildeo tanto para gregos quanto para romanos era forte a

crenccedila de que aos cidadatildeos pobres natildeo deveria ser permitido o alistamento militar jaacute que a elite temia

armar uma populaccedilatildeo que poderia se revoltar contra ela Em Roma com a inovadora mudanccedila feita por

Maacuterio no exeacutercito os mais pobres passaram a ser aceitos (inclusive natildeo cidadatildeos) e eles passaram a se

identificar com a causa imperialista romana mais que uma questatildeo de patriotismo servir ao exeacutercito

tornou-se um meio de conseguir ganhos financeiros e ateacute a cidadania 166

Para estudo profundo sobre o exeacutercito romano bem como sua evoluccedilatildeo desde a Roma arcaica ateacute o

periacuteodo de Justiniano recomendamos o livro de Erdkamp (2007) 167

Natildeo iremos nos aprofundar sobre os detalhes de fatos histoacutericos que levaram ao fim da Repuacuteblica

romana jaacute que eles foram muitos e de natureza cultural poliacutetica e social Para maior estudo sobre o tema

do final da Repuacuteblica romana e as grandes mudanccedilas sociais e poliacuteticas que ocorreram recomendamos

para uma leitura inicial Boardman et al (1986) e Mendes (1988) Sobre uma bibliografia mais recente e

que aborda a historiografia de forma mais detalhada destacamos as obras de Guarinello (2014) e Brandatildeo

e Oliveira (2015 v 1)

93

segundo regras formais mas relaccedilotildees pessoais desiguais e informais natildeo se

atribui uma norma a um rei os suacuteditos devem entregar-se com confianccedila agrave

sua boa-feacute e agrave sua humanidade

Dessa forma esse tipo de relacionamento entre romanos e naccedilotildees vencidas

aproximava-se da clientela fundamental no relacionamento entre os membros da

sociedade romana168

Todavia ao inveacutes da correlaccedilatildeo de confianccedila da esfera privada ndash

isto eacute da boa feacute que o cidadatildeo romano tinha para com seu cliente ndash temos essa

correlaccedilatildeo na esfera puacuteblica que implicava na boa feacute do Estado para com o

conquistado O cliente seja ele um indiviacuteduo ou um povo deveria ser leal ao seu

patrono caso contraacuterio ele deveria ser duramente punido por sua insubordinaccedilatildeo De

acordo com Veyne (in GIARDINA 1992 p 295) nesse periacuteodo republicano a

justificativa ideoloacutegica para o domiacutenio romano natildeo se baseava em uma noccedilatildeo de que

eles eram de uma civilizaccedilatildeo superior agraves outras mas sim o direito de comandar se

justificava pelo proacuteprio sucesso militar de Roma e sobretudo a honestidade com a qual

a urbe exercia esse controle que deveria ser feito com moderaccedilatildeo169

Por conseguinte

os romanos natildeo travavam guerras para impor a sua religiatildeo cultura ou liacutengua desde que

os povos e naccedilotildees clientes aceitassem o domiacutenio eles poderiam manter suas proacuteprias

instituiccedilotildees poliacuteticas liacutengua e cultura (LE BOHEC 2009 p 30)170

Segundo Mendes

(1988 p 46) sobre a postura de Roma para com os seus os aliados com o tempo

passou a ser reforccedilada a noccedilatildeo de uma guerra justa fundamentada na justificativa

juriacutedica da accedilatildeo militar romana em defesa dos seus soacutecios e reinos aliados171

Como o

168

Desde tempos arcaicos existia em Roma a clientela Agraves famiacutelias patriacutecias ligavam-se os clientes que

eram homens livres que participavam do culto familiar mas natildeo possuiacuteam direitos poliacuteticos O cliente era

protegido pelo pater familias (patrono) que era a autoridade suprema no contexto domeacutestico o cliente

poderia adotar o nome gentiacutelico e ser sepultado no tuacutemulo da gens (espeacutecie de clatilde) Por sua vez ele devia

completa obediecircncia a seu patrono o qual poderia dispor de seus bens A clientela era hereditaacuteria e a

partir do regime imperial cada vez mais cidadatildeos ricos acumulavam uma larga clientela de pobres

miseraacuteveis que recebiam auxiacutelio financeiro Famiacutelias eminentes chegavam a possuir comunidades

inteiras como clientes Para esse pequeno resumo sobre a clientela tomamos por referecircncia Bornecque e

Mornet (2002 p 84) 169

Cf o famoso trecho de Virgiacutelio na nota 121 p 64 e 65 170

Falaremos sobre esse tema de forma mais detalhada no subcapiacutetulo 221 (algumas consideraccedilotildees

sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental) 171

H rris (1979) questionou esse ―dever dos rom nos de serem imperi list s por questotildees de

sobrevivecircncia ou de proteccedilatildeo de si mesmos ou aliados O autor defendeu a teoria de que os romanos

foram imperialistas intencionalmente que todas as accedilotildees da oligarquia senatorial visavam aos ganhos

com butins terras e escravos e que essa elite sempre buscava confrontos para esse fim Sherwin-White

(1980) questionou essa ideia defendida por Harris afirmando que nem sempre os romanos foram

envolvidos em guerras com outros povos uacutenica e exclusivamente visando aos lucros da atividade

imperialista ndash agraves vezes os romanos travavam batalhas com fins de proteccedilatildeo um exemplo dentre os vaacuterios

citados por Sherwin-White foi o fato de terem acontecido poucas guerras na segunda metade do seacuteculo II

aC Concordamos que essa questatildeo deva ser analisada em um ponto de meio-termo natildeo considerando

que os romanos fizeram tudo de caso pensado para fins imperialistas mas tambeacutem de que essas

94

proacuteprio Poliacutebio escreveu (Hist I 3 10) ἀιι᾽ ἐθ ηνύησλ ηλ βύβισλ θαὶ ηῆο ἐλ ηαύηαηο

πξνθαηαζθεπῆο δῆινλ ᾖ ηνῖο ἐληπγράλνπζηλ ὅηη θαὶ ιίαλ εὐιόγνηο ἀθνξκαῖο

ρξεζάκελνη πξόο ηε ηὴλ ἐπίλνηαλ ὥξκεζαλ θαὶ πξὸο ηὴλ ζπληέιεηαλ ἐμίθνλην ηῆο ηλ

ὅισλ ἀξρῆο θαὶ δπλαζηείαο ―(hellip) los que usen estos dos libros y l introduccioacuten que

contienen veraacuten muy claro que los romanos se arrojaron a tales empresas con medios

sumamente razonables y que por ello lograron el imperio y el gobierno de todo el

mundo 172

Sobre esse ―direito de guerr n su obr De officiis (Sobre os deveres) Ciacutecero

assim escreveu (I 38)

Cum uero de imperio decertatur belloque quaeritur gloria causas omnino

subesse tamen oportet easdem quas dixi paulo ante iustas causas esse

bellorum Sed ea bella quibus imperii proposita gloria est minus acerbe

gerenda sunt Ut enim cum ciui aliter contendimus si est inimicus aliter si

competitor (cum altero certamen honoris et dignitatis est cum altero capitis

et famae) sic cum Celtiberis cum Cimbris bellum ut cum inimicis gerebatur

uter esset non uter imperaret cum Latinis Sabinis Samnitibus Poenis

Pyrrho de imperio dimicabatur

De fato como se combate pela supremacia e se busque a gloacuteria atraveacutes da

guerra entatildeo conveacutem inteiramente que essas causas as mesmas as quais

mencionei pouco antes sejam as causas justas das guerras Mas essas

guerras para as quais se realiza a gloacuteria da supremacia devem ser feitas da

forma menos cruel Com efeito quando rivalizamos com um cidadatildeo agimos

de uma maneira se eacute inimigo ou de outra se eacute concorrente (com o primeiro a

disputa eacute por sobrevivecircncia e gloacuteria com o segundo eacute por honra e prestiacutegio)

assim contra os celtiberos e os cimbros a guerra foi empreendida como

contra inimigos natildeo para que um dos dois lados vencesse mas sim para que

sobrevivesse contra os latinos sabinos samnitas puacutenicos e Pirro a guerra

foi travada por supremacia173

Ciacutecero ainda no De officiis escrito por ele no periacuteodo final da Repuacuteblica

ressaltou que os romanos p ss r m exercer m l o ―direito de guerr just Ele

criticou Ceacutesar natildeo pelas guerras gaulesas mas sim pela guerra civil Assim temos (De

officiis II 8)

conquist s natildeo for m pen s improvis d s Como Mendes (2007 p 28) dest c ― ccedilatildeo imperi list

romana manifestou-se atraveacutes do estabelecimento de uma relaccedilatildeo de poder obtida inicialmente por meio

de alianccedilas razoavelmente igualitaacuterias protetorados formaccedilatildeo de zonas de influecircncia e ateacute a submissatildeo

tot l pel guerr do dversaacuterio e nex ccedilatildeo de seu territoacuterio 172

―( ) queles que us m estes dois livros e introduccedilatildeo que contecircm veratildeo muito claro que os romanos

se lanccedilaram a tais empresas com meios extremamente razoaacuteveis e que por isso lograram o impeacuterio e o

governo de todo o mundo Ness p ss gem dentre outr s que podem ser encontr d s o longo d s

Histoacuterias Poliacutebio reforccedilou o direito de Roma governar o mundo justificando as accedilotildees imperialistas da

urbe como ―guerr just e ―destino de Rom M is um vez utiliz mos tr duccedilatildeo de Poliacutebio feita por

Recort (1981) 173

Saluacutestio tambeacutem afirmou algo parecido no final de sua obra Bellum Iugurthinum (capiacutetulo CXIV) ao

dizer que contra os gauleses a luta natildeo era por gloacuteria mas sim pela sobrevivecircncia de Roma

95

Verum tamen quam diu imperium populi Romani beneficiis tenebatur non

iniuriis bella ut pro sociis aut de imperio gerebantur exitus erant bellorum

aut mites aut necessarii regum populorum nationum portus erat et

refugium senatus nostri autem magistratus imperatoresque ex hac una re

maximam laudem capere studebant si prouincias si socios aequitate et fide

defendissent itaque illud patrocinium orbis terrae uerius quam imperium

poterat nominari Sensim hanc consuetudinem et disciplinam iam antea

minuebamus post uero Sullae uictoriam penitus amisimus desitum est enim

uideri quicquam in socios iniquum cum exstitisset in ciues tanta crudelitas

() Secutus est qui in causa impia uictoria etiam foediore non singulorum

ciuium bona publicaret sed uniuersas prouincias regionesque uno

calamitatis iure comprehenderet

Na verdade por muito tempo a soberania do povo romano foi mantida por

meio de benefiacutecios e natildeo por injusticcedilas de modo que as guerras eram

travadas a favor dos aliados ou sobre essa soberania os termos das guerras

eram ou indulgentes ou ao menos indispensaacuteveis e o senado era um porto e

refuacutegio dos reinos povos e naccedilotildees ora nossos magistrados e comandantes a

partir disso se esforccedilavam para alcanccedilar a mais alta honra uma vez que

defendessem as proviacutencias ou aliados com justiccedila e fidelidade assim isso

poderia mais justamente ser chamado de proteccedilatildeo do mundo todo do que

desmando Antes jaacute perdiacuteamos esse costume e princiacutepio de forma gradual

mas na verdade foi apoacutes a vitoacuteria de Sila que o abandonamos

completamente de fato natildeo eacute mais possiacutevel considerar algo de injusto contra

os aliados uma vez que passou a existir contra os proacuteprios cidadatildeos tamanha

crueldade () O que veio de depois de Sila com uma causa iacutempia natildeo soacute

confiscou os bens dos proacuteprios cidadatildeos com uma vitoacuteria vergonhosa mas

tambeacutem envolveu todas as proviacutencias e regiotildees em um soacute estado de

calamidade

No trecho acima Ciacutecero constatou que o fim da mentalidade do povo romano

como protetor dos aliados comeccedilou a partir de Sila que travou contra Maacuterio a primeira

guerra civil da histoacuteria romana e tornou-se ditador e governante absoluto174

Para

Ciacutecero essa ideologia acabou de fato a partir de Ceacutesar ndash o qual o orador designou como

o que ―veio depois de Sil gr nde criacutetic de Ciacutecero port nto consisti n f lt de

honestidade de Ceacutesar capaz de lutar contra seus proacuteprios concidadatildeos e aliados de

longa data demonstrando que pouco se importava com a legitimidade ou justiccedila de suas

accedilotildees

Como Ciacutecero mesmo afirmou acima a mentalidade da boa feacute do domiacutenio

romano foi mudando lentamente agrave medida que o territoacuterio conquistado crescia e

aumentava o nuacutemero de proviacutencias e naccedilotildees aliadas A ideia da missatildeo de Roma que se

considerava predestinada a formar um impeacuterio universal transformava-se pois a urbe

174

A ditadura consistia em uma magistratura extraordinaacuteria que substituiacutea o consulado e era dotada de

poderes excepcionais O Senado decidia quando se devia recorrer a um ditador sendo esse recurso usado

apenas em momentos de grande perigo ou gravidade para Roma O ditador escolhia o magister equitum

(mestre ou comandante da cavalaria) que era o seu braccedilo direito A ditatura tinha a duraccedilatildeo de seis

meses mas o ideal era que ela terminasse antes desse prazo No caso de Sila ele tornou-se ditador ao

vencer a guerra civil contra Maacuterio obtendo o controle total da Cidade atraveacutes do seu exeacutercito Para mais

detalhes sobre a ditadura em Roma cf Canfora (2002 p 486)

96

dependia cada vez mais dos recursos vindos de lugares exteriores agrave Itaacutelia Jaacute durante o

periacutedo final da Repuacuteblica eacute possiacutevel ver uma mudanccedila nos argumentos que apoiavam as

conquistas a noccedilatildeo de uma guerra preventiva passa a prevalecer jaacute que Roma natildeo

poderia ter como vizinho um povo ou estado militarmente forte que pudesse ameaccedilar

sua hegemonia (MENDES 1988 p 46)

Dessa maneira eacute possiacutevel notar que os romanos tambeacutem eram motivados a

conquistar outros territoacuterios por razotildees psicoloacutegicas o medo (metus) do outro

impulsionava essas guerras preventivas aleacutem da proacutepria noccedilatildeo de seguranccedila que natildeo

pode ser desconsiderada de fato caso fossem derrotados os perdedores sofreriam nas

matildeos dos vencedores (LE BOHEC 2009 p 30) Nas palavras de Riggsby (2006 p

21) um aspecto fundamental dessa ideologia imperialista de Roma era um territoacuterio

pacificado em seu interior frente ao perigoso exterior Destacamos como exemplo

desse processo o posicionamento de Roma a partir do seacuteculo III aC que buscava se

defender do asseacutedio de macedocircnicos e siacuterios (que almejavam expandir seus domiacutenios)

Houve vaacuterios conflitos que se iniciaram em 214 aC ndash quando comeccedilou a Primeira

Guerra dos romanos contra Felipe da Macedocircnia ndash tendo ainda combates entre romanos

e siacuterios entre 192 a 188 aC ateacute o periacuteodo entre 172 a 168 aC quando os romanos

venceram a Terceira Guerra da Macedocircnia Roma nesse momento ateacute entatildeo se portava

como a protetora de cidades gregas e pequenos Estados heleniacutesticos (MENDES 1988

p 46) esse protetorado regido por relaccedilotildees de obediecircncia e sujeiccedilatildeo a Roma acabou

fomentando vaacuterias revoltas dessas cidades Por conseguinte a urbe novamente optou

por guerras que levaram agrave criaccedilatildeo da proviacutencia da Macedocircnia (em 149 aC) a

destruiccedilatildeo de Corinto e a submissatildeo de toda a Greacutecia (146 aC) De acordo com

Mendes (1988 p 47) ―Rom p ssou ser gui d pel doutrin segundo qu l os reis

ou os povos livres independentes e amigos de Roma deviam esta situaccedilatildeo agrave vontade do

povo rom no Ess mud nccedil de ment lid de form d no seacuteculo III C no seacuteculo I

aC justificou a sede de conquista de Roma levando agraves grandes anexaccedilotildees de terras e

estabelecimento de novas proviacutencias

Outro fator que contribuiu bastante para a ampliaccedilatildeo do domiacutenio romano foi a

proacutepria ambiccedilatildeo dos grandes generais (sobretudo no periacuteodo final da Repuacuteblica) Como

destaca le Bohec (2009 p 29 e 30) para fazer carreira poliacutetica um aristocrata romano

devia servir agrave urbe tanto no campo civil quanto no militar demonstrando ser um bom

administrador e um bom general apresentando sua capacidade tanto na guerra quanto

na paz De fato em Roma as esferas poliacutetica e militar sempre estiveram juntas uma vez

97

que vaacuterias magistraturas possuiacuteam o imperium175

Assim por todos esses motivos acima

elencados Roma portanto ultrapassou os limites geograacuteficos da cidade e tornou-se de

fato todo o territoacuterio conquistado

213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana

Durante a expansatildeo da urbe grandes naccedilotildees como os puacutenicos gregos hispanos

e gauleses dentre outros sucumbiram ao poderio do exeacutercito romano Com as guerras

teve-se o aumento consideraacutevel da matildeo-de-obra escrava em Roma matildeo-de-obra essa

que trabalhava sobretudo nos grandes latifuacutendios mas tambeacutem nas cidades como

servos professores etc Como eram tratados esses povos conquistados em Roma Os

povos vencidos recebiam tratamento muito diversificado de acordo com sua posiccedilatildeo em

relaccedilatildeo aos romanos ao seu poderio se resistiram bravamente agrave conquista ou se

submeteram a ela pacificamente A elite dos povos que tranquilamente se aliavam

recebia a cidadania romana plena ou parcial176

Os que resistiam quando subjugados

tornavam-se escravos e as naccedilotildees rebeldes eram submetidas a pesados tributos e

impostos Sobre o meacutetodo de conquista romana Guarinello (2014 p 112-113) afirma

A expansatildeo da estado-cidade de Roma sobre as peniacutensula criaraacute novos

problemas A expansatildeo romana foi na verdade a de uma alianccedila de estados-

cidades todas contribuindo para o esforccedilo militar e todas pleiteando e

obtendo em graus diferentes e em momentos distintos participaccedilatildeo na

cidadania romana direito a matrimocircnio direito ao comeacutercio e por fim direito

agrave participaccedilatildeo poliacutetica Comparando-se a cidadania romana com seus

congecircneres gregos estaacute sempre foi de certo modo mais aberta os proacuteprios

escravos ao adquirirem a liberdade por alforria tornavam-se cidadatildeos Por

outro lado no curso de sua expansatildeo pela peniacutensula Roma fundou cerca de

quarenta outras cidades cujos habitantes preservaram em graus diferentes

seu direito agrave cidadania romana Aleacutem disso no territoacuterio das cidades

conquistadas Roma assentou parte de sua populaccedilatildeo mais pobre ora como

colonos ora como proprietaacuterios individuais de modo que no curso do seacuteculo

III aC Roma tendia a desterritorializar a noccedilatildeo da cidadania ampliando-a

para os habitantes das colocircnias e ao menos para aselites das cidades

conquistadas Aos poucos Roma deixa de ser uma estado-cidade tiacutepica e se

torna um Estado imperial

Roma surgida de uma uniatildeo de povos sabia conviver com as diferenccedilas e

engenhosamente adotava essa estrateacutegia de concessatildeo da cidadania sendo essa taacutetica

175

Possuiacuteam o imperium os cocircnsules pretores prococircnsules propretores ditador e comandante da

cavalaria O imperium consistia no direito de comando superior militar e jurisdicional aleacutem de entre

outras prerrogativas o direito de recrutar e comandar o exeacutercito convocar o povo para comiacutecios etc 176

Mendes (2007) detalha mais as maneiras como as elites das naccedilotildees conquistadas cooperavam com

Roma bem como as diferenccedilas legais entre os estatutos das proviacutencias e cidades sob o domiacutenio romano

98

eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar possiacuteveis aliados Ao se conceder

cidadania agraves naccedilotildees derrotadas e manter as elites locais no poder Roma adotava uma

postura muito oposta da que os gregos tinham em relaccedilatildeo aos povos subjugados como

pode-se ler no trecho acima Nas cidades-Estado helecircnicas os povos vencidos eram

obrigados a fornecer somente dinheiro para o eraacuterio enquanto que Roma aleacutem de

impostos exigia fornecimento de tropas estreitando os viacutenculos entre conquistadores e

conquistados Outro estatuto que o estrangeiro poderia obter em Atenas seria o de

meteco177

Quanto aos estrangeiros em Esparta eles eram reduzidos agraves categorias de

hilotas ou escravos178

Ao se comparar o modo com que estrangeiros eram tratados em

Roma em Atenas e em Esparta percebe-se que Roma sempre foi de certo modo mais

aberta a esses forasteiros pois ateacute mesmo escravos tornavam-se cidadatildeos ao receberem

a alforria de seus proprietaacuterios (GUARINELLO 2014 p 112) Como Veyne ressalta

(In GIARDINA 1992 P 300) ―Os rom nos satildeo uns empiacutericos que natildeo se comport m

como ideoacutelogos convictos naturalizam o estrangeiro e o liberto mais facilmente do que

os gregos que se mantinham fieacuteis os seus princiacutepios restritos Tod vi em rel ccedilatildeo

aos devedores e insubordinados Roma mantinha uma postura extremamente rigorosa

Esse tipo de dominaccedilatildeo por parte de Roma ineacutedito ateacute entatildeo mostrava-se eficaz para

conter possiacuteveis revoltas ou alianccedilas entre os inimigos da Cidade Roma desde a sua

origem jaacute tinha a presenccedila muito forte do estrangeiro que depois foi assimilado e

incorporado agrave cultura latina179

Esse raacutepido crescimento de Roma se deveu a inuacutemeros

fatores como a capacidade de integraccedilatildeo e acolhimento de outras naccedilotildees (inclusive

pobres fugitivos escravos) raacutepido aumento demograacutefico (pela guerra ao conseguir

coaptar aliados e derrotar os inimigos) e por fim pela capacidade em se absorver

177

Os estrangeiros que se estabeleciam na Aacutetica conhecidos como metecos gozavam de um estatuto

melhor do que os hilotas espartanos Embora tambeacutem natildeo gozassem de direitos na cidade pagavam uma

taxa e deviam ter como responsaacutevel um cidadatildeo ateniense Entretanto os metecos participavam da vida

puacuteblica da cidade prestavam serviccedilo militar assistiam agraves festas religiosas Em virtude de trabalhos

prestados poderiam obter a igualdade de direitos (JARDEacute 1977 p 170) 178

Os hilotas eram servos subordinados em Esparta Junto suas famiacutelias moravam em terras que

pertenciam a um cidadatildeo espartano e eram obrigados a cultivaacute-las geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo Os hilotas natildeo

podiam ser expulsos dessa terra e pagavam ao proprietaacuterio uma taxa anual fixa O hilota poderia

participar do exeacutercito em caso de necessidade contudo ele natildeo gozava de cidadania e nem era protegido

pelas leis (JARDEacute 1977 p 163) Fisher (In KINZL 2006 p339) lembra que o estrangeiro era

comumente tratado de duas formas diferentes nas cidades-Estado gregas Em um extremo em Esparta e

algumas poucas cidades era adotada uma poliacutetica cautelosa e restritiva perante os estrangeiros que natildeo

eram normalmente bem vindos o que ocasionalmente acarretava em expulsotildees Por outro lado em

Atenas ndash e provavelmente em muitas cidades ndash desenvolveram-se gradualmente arranjos para o registro e

organizaccedilatildeo dos metecos (FISHER In KINZL 2006 p 339) Para discussatildeo mais profunda do status do

estrangeiro na Greacutecia no periacuteodo claacutessico recomend mos o c piacutetulo ―Citizens foreigners nd slaves in

Greek society de Fisher (in KINZL 2006 p 327 a 349) 179

Jaacute abordamos rapidamente esse assunto na p 16

99

elementos externos como imigrantes povos vencidos ritos religiosos etc (LEAtildeO

BRANDAtildeO In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 28 e 29)

Com a concessatildeo da cidadania romana aos povos dominados criou-se tambeacutem

uma complexidade maior na organizaccedilatildeo social de Roma e de seus territoacuterios Os

aliados que contribuiacuteam no esforccedilo de conquista pleiteavam e obtinham em momentos

e graus distintos a cidadania romana ndash com direito ao matrimocircnio ao comeacutercio e ateacute

mesmo agrave participaccedilatildeo poliacutetica (GUARINELLO 2014 p 112) Aleacutem disso Roma

assentou nas proviacutencias parte da sua populaccedilatildeo mais pobre a fim de colonizar as terras

A cidadania romana (que adquiriu mais nuances entre os direitos do cidadatildeo pleno ou

parcial) gradualmente comeccedilou a se desvincular do territoacuterio da proacutepria urbe Roma

passou a ser natildeo soacute a cidade mas tambeacutem as regiotildees ocupadas nas quais havia cidadatildeos

romanos ndash mesmo que nas proviacutencias essa cidadania fosse concedida apenas agraves elites

locais180

Ainda segundo Guarinello (2014 p 113) ―Rom deix de ser um est do-

cidade tiacutepica e se torna um Estado imperi l

Todavia grandes penas eram infligidas aos povos que resistiam aos romanos A

romanizaccedilatildeo se deu com mais forccedila na Europa ocidental disso ateacute hoje temos o

predomiacutenio das liacutenguas latinas dos haacutebitos e costumes herdados dos romanos181

Sobre

esse processo de romanizaccedilatildeo Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 363) ressalta

que os romanos acreditavam que natildeo tinham muito o que aprender com os ocidentais ndash

embora um tratado isolado de Cartago sobre agricultura tenha sido traduzido para o

latim182

Os romanos tampouco se interessaram em aprender as liacutenguas ocidentais e

para as elites locais embora o domiacutenio fosse a princiacutepio odiado com o tempo passou a

ser considerado como um avanccedilo civilizacional (RAWSON in BOARDMAN et al

1986 p 363) O comeacutercio e o fluxo de mercadorias tambeacutem ajudaram no processo de

romanizaccedilatildeo183

180

Na verdade a partir do seacuteculo I aC a noccedilatildeo de cidadania romana esvazia-se gradualmente jaacute que o

poder de fato encontrava-se cada vez mais concentrado nas matildeos dos generais ditadores (como Pompeu

e Ceacutesar) e posteriormente nas matildeos do imperador Em 212 dC Caracala atraveacutes de um eacutedito concedeu

a todos os habitantes livres do Impeacuterio a cidadania romana (GUARINELLO 2014 p 312) Sobre o

conceito da cidadania romana e sua evoluccedilatildeo dos tempos da Repuacuteblica ateacute o baixo Impeacuterio

recomendamos o c piacutetulo ―A cid d ni ntig (In GUARINELLO 2014) 181

Para aprofundamento sobre o tema da conquista romana na Europa Ocidental recomendados o livro de

le Bohec (2009) 182

Esse tratado escrito por Mago (que viveu provavelmente entre os seacuteculos III e II aC) foi traduzido

para o latim por ordem oficial sendo depois citado por Varratildeo e Columela hoje temos apenas fragmentos

dessa obra (CONTE 1999 p 499) 183

Falaremos mais desse assunto adiante na p 107-108

100

Outro fator que ajudou na consolidaccedilatildeo cultural de Roma no Ocidente foi o fato

de que embora houvesse preconceito cultural o preconceito motivado simplesmente

por questotildees raciais era pequeno Se os baacuterbaros estivessem dispostos a abandonar seus

haacutebitos selvagens eles poderiam deixar a condiccedilatildeo de barbaacuterie184

Rawson (In

BOARDMAN et al 1986 p 360) destaca como exemplo emblemaacutetico o fato de Luacutecio

Corneacutelio Balbo proeminente cidadatildeo romano nascido na Beacutetica (onde hoje eacute o sul da

Espanha) ter chegado ao cargo de cocircnsul em 40 aC ndash o primeiro cidadatildeo natildeo itaacutelico da

histoacuteria a ocupar o maior posto da Repuacuteblica romana185

Se no Ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi mais profundo jaacute no mundo

heleniacutestico a conquista foi bem diferente Roma hesitou mais preferindo o bloqueio

comercial e alianccedilas por meio de clientelas do que a invasatildeo direta e domiacutenio ostensivo

As civilizaccedilotildees orientais como os proacuteprios gregos e os egiacutepcios jaacute eram muito

avanccediladas com cultura e literatura desenvolvidas nunca houve por parte dos vencidos

uma tentativa de se adotar a cultura ou costumes romanos A fronteira linguiacutestica serve

como testemunho disso jaacute que esses povos mantiveram o uso de seus idiomas e

percebe-se que o latim de forma alguma foi a liacutengua predominante (GUARINELLO

2014 p 127)

22 ndash A conquista da Gaacutelia

A partir do seacuteculo V aC Roma iniciou o processo de expansatildeo na Peniacutensula

Itaacutelica ndash processo esse que teve seu auge no seacuteculo III aC e que se consolidou de forma

definitiva apoacutes a Guerra Social no seacuteculo I aC Ateacute entatildeo Roma nunca tivera sido

ameaccedilada por algum inimigo de forma draacutestica ou implacaacutevel dessa forma a invasatildeo

dos gauleses na urbe no comeccedilo do seacuteculo IV aC nas palavras de Faversani e Joly (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 118) ―foi como um tempest de c indo de um ceacuteu

cl ro Esse evento de gr nde m gnitude chegou ser notici do por fontes greg s do

seacuteculo IV aC186

Os celtas se estabeleceram na Europa Ocidental especialmente na

184

Cf nota 71 na p 41 deste trabalho 185

No discurso Pro Balbo (A favor de Balbo) Ciacutecero defende a concessatildeo da cidadania romana a Balbo

perante o Senado 186

Plutarco em sua obra Vidas paralelas na biografia de Camilo (XXII4) menciona que Aristoacuteteles sem

duacutevida tivera conhecimento sobre a ocupaccedilatildeo de Roma pelos celtas (In PLUTARCO 2008 tomo II p

372) Pliacutenio o Velho (HN III 957) menciona que Teopompo (historiador e retoacuterico da eacutepoca de

Alexandre) tambeacutem disse que os gauleses tinham conquistado a Cidade (In PLINIO EL VIEJO 1998

p37)

101

segunda metade do seacuteculo V aC quando deixaram as terras do norte da Alemanha e

aacutereas proacuteximas (onde hoje eacute a Dinamarca agraves margens do mar Baacuteltico e do rio Elba) e

migraram para o sul em busca de clima mais ameno e terras feacuterteis essas naccedilotildees

assim estabeleceram-se onde hoje eacute a Franccedila a Catalunha (dando origem aos

celtiberos) a Beacutelgica a Suiacuteccedila estendendo-se ateacute o rio Danuacutebio e tambeacutem na Inglaterra

e norte da Itaacutelia (SCHMIDT 2004 p 11 a 14) A naccedilatildeo celta dos secircnones que tinha seu

territoacuterio onde hoje estaacute situada a cidade de Sens na Franccedila era bastante populosa e

sofria com escassez de terras por conseguinte parte desse povo cruzou os Alpes em

400 aC e se estabeleceu na regiatildeo entre Ravena e Ancona depois de expulsarem os

uacutembrios e foram eles os responsaacuteveis pelo saque de Roma (SCHMIDT 2004 p 15)

Entrementes os romanos ainda em luta contra os etruscos a princiacutepio consideraram ter

com os celtas uma neutralidade muacutetua embora esse povo estivesse muito proacuteximo jaacute

que em 396 aC romanos e celtas fizeram uma alianccedila contra os etruscos na tomada de

Veios sob o comando do entatildeo ditador Camilo em 390 aC Camilo acusado de

distribuiccedilatildeo desonesta do butim de Veios foi obrigado a se exilar em Ardea

(SCHMIDT 2004 p 21) Assim Roma ficou sem uma lideranccedila forte que permitisse

que ela se defendesse da invasatildeo iminente dos gauleses187

Ainda restam algumas duacutevidas sobre as razotildees dos celtas terem invadido Roma

de acordo com Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 120) o

deslocamento dos gauleses era mais motivado por ganhos imediatos advindos de butins

do que pela conquista de novas terras Por conseguinte embora tenha sido uma grande

humilhaccedilatildeo para os romanos o saque da cidade natildeo deixou uma grande devastaccedilatildeo

ainda segundo Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 121) a proacutepria

recuperaccedilatildeo de Roma apoacutes a invasatildeo de forma raacutepida e efetiva eacute indiacutecio de que a

destruiccedilatildeo natildeo foi tatildeo grande assim Esse acontecimento contudo ficou definitivamente

gravado na memoacuteria dos romanos como sendo a maior cataacutestrofe que ocorreu agrave urbe

Apesar de abalada com esse assalto Roma voltou a colocar em praacutetica sua

poliacutetica expansionista na Peniacutensula Itaacutelica188

Entre 343 e 290 aC aconteceram as Trecircs

Guerras Samnitas primeiramente derrotada Roma depois conseguiu vencer os samnitas

e seus aliados (etruscos e gauleses) e se consolidou na Itaacutelia central Os celtas depois da

187

Tito Liacutevio no livro V da Ab urbe condita escreveu sobre as migraccedilotildees dos celtas para a Itaacutelia bem

como sobre os eventos que culminaram no saque da urbe e nos seus desdobramentos No capiacutetulo 3 deste

trabalho abordaremos mais a obra de Liacutevio e o que ele registrou entre os capiacutetulos 34 e 48 de Ab urbe

condita 188

Para a cronologia dos eventos aqui narrados ateacute o fim deste subcapiacutetulo utilizamos como referecircncia

Schmidt (2004 passim)

102

derrota nas Guerras Samnitas deixaram de exercer pressatildeo nas fronteiras do domiacutenio

romano na Itaacutelia e preferiram dirigir-se agraves terras dos Baacutelcatildes instalando-se na Macedocircnia

e na Traacutecia chegando inclusive a saquear Delfos em 278 aC189

Os gauleses voltam a aparecer na histoacuteria romana de forma mais expressiva

apenas durante as Guerras Puacutenicas uma vez que Cartago recrutou mercenaacuterios para

ajudar em suas fileiras Com a derrota de Cartago os gauleses passaram cada vez menos

a opor resistecircncia na Gaacutelia Cisalpina (onde hoje eacute o norte da Itaacutelia) a partir do seacuteculo III

aC e antes da regiatildeo ter se tornado proviacutencia romana jaacute existiam assentamentos

romanos diversos Segundo Yavetz (2004 p 77) Placentia (Placencia) e Cremona (218

aC) Bononia (Bolonha 189 aC) e Aquileia (181 aC) eram colocircnias latinas e como

tais gozavam do ius Latii mas natildeo possuiacuteam cidadania plena Parma e Mutina

(Moacutedena) desde 183 aC eram colocircnias romanas Aleacutem disso existiam tambeacutem

povoados que possuiacuteam mercados como Forum Popilii (Forlimpopoli) Forum Liuii

(Forli) Forum Cornelii (Iacutemola) e do seacuteculo II aC os postos avanccedilados de Dertona

(Tortona) e Eporedia (Ivrea)

Novos conflitos surgem ao longo do seacuteculo II aC especialmente na Hispacircnia e

nesse meio tempo os gauleses voltam a atravessar os Alpes em 179 aC Paulo Emiacutelio

entatildeo cocircnsul combate os liacutegures no norte da Itaacutelia e indiretamente enfrenta os gauleses

ateacute que uma alianccedila eacute feita entre romanos e liacutegures

Quanto agrave Hispacircnia em 150 aC Roma venceu o conflito e dominou os

celtiberos Alguns anos depois em 125 aC Marselha pediu ajuda aos romanos contra

os gauleses e em 122 aC eacute fundada Aquae Sextiae (atual Aix-en-Provence) a primeira

fortificaccedilatildeo romana em territoacuterio gaulecircs aleacutem dos Alpes Dessa maneira Roma possuiacutea

vastos domiacutenios de terra contiacutenuos na Hispacircnia passando pela Gaacutelia Narbonense (sul da

Franccedila) ateacute a Peniacutensula Itaacutelica190

Em 115 aC uma grande invasatildeo dos cimbros e dos teutotildees (naccedilotildees germacircnicas)

passou a deixar os limites do territoacuterio romano proacuteximos agrave Gaacutelia instaacuteveis os romanos

inclusive foram derrotados em algumas batalhas contra essas naccedilotildees Nesse contexto se

inseriu Maacuterio que conseguiu rechaccedilar os germanos para o norte da Gaacutelia e obteve um

189

Jaacute mencionamos esse acontecimento na paacutegina 46 190

Abordamos a Gaacutelia Narbonense bem como seu processo de transformaccedilatildeo em proviacutencia romana na p

68

103

breve periacuteodo de paz na Gaacutelia transalpina191

Em 80 aC Sertoacuterio nomeado pretor na

Hispacircnia e aproveitando-se da guerra civil entre Maacuterio e Sila aliou-se aos celtiberos e

por vaacuterias vezes lutou contra as legiotildees romanas inclusive derrotando Pompeu Magno

entre 77 e 75 aC Sertoacuterio por fim foi assassinado por seu lugar-tenente Perrena no ano

72 aC Enquanto isso mais uma vez os germanos (dessa vez liderados por Ariovisto

rei dos suevos) voltaram a fazer pressatildeo sobre os gauleses entre os anos de 71 e 70

aC192

Devido ao avanccedilo de Ariovisto em 58 aC uma grande migraccedilatildeo dos helveacutecios

se desenrola a partir de onde hoje eacute a Suiacuteccedila193

A partir desse momento histoacuterico a figura

de Ceacutesar se tornaraacute proeminente quando o general romano partir para a Gaacutelia com a

alegaccedilatildeo de defender os interesses da Repuacuteblica e ajudar os gauleses contra Ariovisto e

seus conterracircneos Sobre esses acontecimentos Ceacutesar escreveu (BGall I 31)

Eo concilio dimisso idem principes ciuitatum qui ante fuerant ad Caesarem

reuerterunt petieruntque uti sibi secreto in occulto de sua omniumque salute

cum eo agere liceret Ea re impetrata sese omnes flentes Caesari ad pedes

proiecerunt () Locutus est pro his Diuiciacus Haeduus Galliae totius

factiones esse duas harum alterius principatum tenere Haeduos alterius

Aruernos Hi cum tantopere de potentatu inter se multos annos contenderent

factum esse uti ab Aruernis Sequanisque Germani mercede arcesserentur

Horum primo circiter milia XV Rhenum transisse posteaquam agros et

cultum et copias Gallorum homines feri ac barbari adamassent traductos

plures nunc esse in Gallia ad centum et XX milium numerum Cum his

Haeduos eorumque clientes semel atque iterum armis contendisse magnam

calamitatem pulsos accepisse omnem nobilitatem omnem senatum omnem

equitatum amisisse Quibus proeliis calamitatibusque fractos qui et sua

uirtute et populi Romani hospitio atque amicitia plurimum ante in Gallia

potuissent coactos esse Sequanis obsides dare nobilissimos ciuitatis et iure

iurando ciuitatem obstringere sese neque obsides repetituros neque auxilium

a populo Romano inploraturos neque recusaturos quo minus perpetuo sub

illorum dicione atque imperio essent Unum se esse ex omni ciuitate

Haeduorum qui adduci non potuerit ut iuraret aut liberos suos obsides daret

Ob eam rem se ex ciuitate profugisse et Romam ad senatum uenisse auxilium

postulatum quod solus neque iure iurando neque obsidibus teneretur Sed

peius uictoribus Sequanis quam Haeduis uictis accidisse propterea quod

Ariouistus rex Germanorum in eorum finibus consedisset tertiamque partem

agri Sequani qui esset optimus totius Galliae occupauisset et nunc de altera

parte tertia Sequanos decedere iuberet propterea quod paucis mensibus ante

Harudum milia hominum XXIV ad eum uenissent quibus locus ac sedes

pararentur Futurum esse paucis annis uti omnes ex Galliae finibus

pellerentur atque omnes Germani Rhenum transirent neque enim

conferendum esse gallicum cum Germanorum agro neque hanc

consuetudinem uictus cum illa comparandam Ariouistum autem ut semel

Gallorum copias proelio uicerit quod proelium factum sit Admagetobrigae

superbe et crudeliter imperare obsides nobilissimi cuiusque liberos poscere

191

Fizemos uma listagem das batalhas travadas por Maacuterio na Gaacutelia na p 14 deste trabalho Para detalhes

dos confrontos entre romanos contra naccedilotildees gaulesas e germanas ao longo do seacuteculo I aC (e conflitos

posteriores a esse periacuteodo) cf Rankin (1993 p 107 e ss) 192

Ceacutesar faz seu relato da Guerra da Gaacutelia a partir do momento em que Ariovisto ampliou sua

movimentaccedilatildeo na Gaacutelia Falaremos novamente sobre isso um pouco mais agrave frente 193

Para maiores detalhes das tensotildees sociais na Gaacutelia recomendamos Canfora (2002 p 136 e ss)

104

et in eos omnia exempla cruciatusque edere si qua res non ad nutum aut ad

uoluntatem eius facta sit Hominem esse barbarum iracundum temerarium

non posse eius imperia diutius sustinere Nisi si quid in Caesare populoque

Romano sit auxilii omnibus Gallis idem esse faciendum quod Heluetii

fecerint ut domo emigrent aliud domicilium alias sedes remotas a

Germanis petant fortunamque quaecumque accidat experiantur Haec si

enuntiata Ariouisto sint non dubitare quin de omnibus obsidibus qui apud

eum sint grauissimum supplicium sumat Caesarem uel auctoritate sua atque

exercitus uel recenti uictoria uel nomine populi Romani deterrere posse ne

maior multitudo Germanorum Rhenum traducatur Galliamque omnem ab

Ariouisti iniuria posse defendere

Despedido esse conselho os mesmos chefes das comunidades que

anteriormente foram ateacute Ceacutesar retornaram e pediram-lhe que lhes fosse

permitido dirigir-se a ele em um lugar reservado e sem testemunhas a

respeito da sua salvaccedilatildeo e da salvaccedilatildeo de todos Obtida a permissatildeo todos se

lanccedilaram chorosos aos peacutes de Ceacutesar () O eacuteduo Diviciacuteaco falou por eles

―Em tod Gaacuteli existi m du s f cccedilotildees os eacuteduos tinh m lider nccedil de um

delas e os arvernos da outra Como eles duramente lutassem entre si por

causa do poder durante muitos anos aconteceu que pelos arvernos e pelos

seacutequanos mercenaacuterios germanos fossem chamados Primeiramente cerca de

quinze mil deles atravessaram o Reno como tais homens ferozes e baacuterbaros

comeccedilassem a gostar das terras do modo de vida e das riquezas dos gauleses

muitos mais atravessaram agora estavam na Gaacutelia aproximadamente cento e

vinte mil Contra esses os eacuteduos e os seus clientes simultaneamente

opuseram as armas uma ou duas vezes sendo eles batidos sofreram grande

calamidade perderam toda a nobreza todo o senado e toda a cavalaria

Alquebrados por tais combates e calamidades eles que anteriormente

tiveram enorme poder na Gaacutelia tanto por sua virtude quanto pela

hospitalidade e amizade dos romanos foram coagidos a entregar aos

seacutequanos como refeacutens os mais nobres de seu povo e a comprometecirc-lo por

meio de um juramento de que natildeo os pediriam de volta natildeo implorariam

socorro aos romanos nem recusariam estar para sempre sob o mando e o

poder dos seacutequanos Ele Diviciacuteaco era o uacutenico de toda a comunidade dos

eacuteduos que natildeo pudera ser levado a jurar ou a dar seus filhos como refeacutens Por

tal motivo fugira da comunidade e viera a Roma ao senado pedir auxiacutelio

pois apenas ele natildeo era impedido nem por um juramento nem por refeacutens

Contudo sucedera algo pior aos seacutequanos vencedores do que aos eacuteduos

vencidos porque Ariovisto rei dos germanos tinha-se estabelecido no

territoacuterio daqueles e ocupara um terccedilo das terras seacutequanas as melhores de

toda a Gaacutelia Agora Ariovisto ordenava que os seacutequanos se retirassem da

outra terccedila parte pois poucos meses antes juntaram-se a ele vinte e quatro

mil homens dos harudos para os quais territoacuterio e morada eram

providenciados Sucederia em poucos anos que todos fossem expulsos do

territoacuterio da Gaacutelia e todos os germanos atravessassem o Reno natildeo com

efeito eram as terras dos germanos comparaacuteveis agraves terras gaulesas nem

aquele modo de vida podia ser cotejado com este Por outro lado como

Ariovisto vencera uma vez em combate as tropas dos gauleses ndash combate este

que se travou em Admagetoacutebriga ndash comandava com soberba e crueldade

exigia como refeacutens os filhos de cada um dos mais nobres gauleses e a eles

infligia todas as torturas a tiacutetulo de exemplo se algo natildeo fosse feito ao

primeiro aceno ou vontade sua Ele era um homem baacuterbaro irasciacutevel e

temeraacuterio eles natildeo podiam suportar por mais tempo seu comando A natildeo ser

que houvesse algum auxiacutelio em Ceacutesar e no povo romano o mesmo que os

helveacutecios fizeram deveria ser feito por todos os gauleses sair da paacutetria e

procurar outro domiciacutelio outras moradas distantes dos germanos e por agrave

prova a fortuna qualquer que fosse Se essas coisas fossem divulgadas a

Ariovisto natildeo duvidava que ele infligiria o mais duro supliacutecio a todos os

refeacutens que estavam sob seu poder Que Ceacutesar quer por sua autoridade e pela

do exeacutercito quer pela recente vitoacuteria ou quer pelo nome do povo romano

105

podia impedir que maior multidatildeo de germanos atravessasse o Reno e

poderia defender a Gaacutelia inteira dos abusos de Ariovisto194

(grifos nossos)

No trecho acima Ceacutesar justifica sua intervenccedilatildeo da Gaacutelia argumentando que os

proacuteprios gauleses (na figura do eacuteduo Diviciacuteaco) lhe pediram ajuda aleacutem do fato de os

germanos terem cruzado o rio Reno e penetrado na Gaacutelia Ceacutesar destacou o caraacuteter

selvagem dos germanos chamando-os de homines feri ac barbari (homens ferozes e

baacuterbaros) sendo esses germanos liderados por Ariovisto retratado no trecho como

exemplo maior da maldade sendo denominado como hominem barbarum iracundum

temerarium (homem baacuterbaro irasciacutevel e temeraacuterio)195

Vemos que Ceacutesar finalizou o

capiacutetulo dizendo que ele mesmo (representando o Estado romano) poderia impedir o

v nccedilo germacircnico e ―defender Gaacuteli inteir dos busos de Ariovisto Como Schmidt

(2004 p 180) ressalta a conquista da Gaacutelia eacute tanto uma necessidade estrateacutegica para

Roma quanto um imperativo poliacutetico para Ceacutesar que desejava desfrutar de fama

tamanha a ponto de rivalizar com Pompeu o grande conquistador do Oriente proacuteximo e

que colocou fim agrave pirataria no mar Mediterracircneo Schmidt (2004 p 189) considera que

provavelmente o senado romano se absteria de intervir na Gaacutelia em uma questatildeo que

natildeo a afetava diretamente jaacute que essas migraccedilotildees ocorriam fora de sua zona de

influecircncia mas que Ceacutesar aacutevido de gloacuteria militar buscou os argumentos mais

falaciosos para intervir militarmente na Gaacutelia Todavia acreditamos que Roma

dificilmente deixaria a Gaacutelia desocupada ateacute pelas proviacutencias na Espanha e norte da

Itaacutelia os gauleses e germanos estariam muito proacuteximos como de fato ocorreu jaacute que

Ariovisto estava cada vez mais tomando terreno e se aproximando dos limites da

proviacutencia romana196

Mesmo com o exagero de Ceacutesar tambeacutem natildeo podemos ignorar

que os gauleses (especialmente os que habitavam agraves margens do Reno do Roacutedano e do

Saocircne) de fato se sentiam ameaccedilados com os germanos e buscaram em Roma o auxiacutelio

de que necessitavam fato comprovado pela visita de Diviciacuteaco a Roma para solicitar

ajuda Eacute tambeacutem possiacutevel perceber nessa justificativa de Ceacutesar a explicaccedilatildeo baseada no

194

Cf nota 136 na p76 na qual abordamos o pedido de ajuda aos romanos feito por Diviciacuteaco emissaacuterio

dos eacuteduos uma das naccedilotildees celtas amigas dos romanos 195

Rambaud (2011 p 112-113) chama essa caracterizaccedilatildeo de Ariovisto de captatio maleuolentiae ou

seja Ceacutesar exagerou essas caracteriacutesticas do liacuteder germano para conquistar o puacuteblico e convencecirc-lo de

que a intervenccedilatildeo romana na Gaacutelia era necessaacuteria para se evitar o mal maior dos germanos que natildeo

respeitavam fronteiras e eram um possiacutevel risco para Roma Ariovisto representava o arqueacutetipo maacuteximo

do baacuterbaro feroz e terriacutevel e de certa forma serviu como paradigma em uma escala de barbaacuterie dentro do

De bello Gallico representando o poacutelo mais primitivo 196

Essa proviacutencia que vai ser citada por Ceacutesar vaacuterias vezes no De bello Gallico era a Gaacutelia Transalpina

(ou Narbonense)

106

―direito justo dos rom nos intervirem em outr s n ccedilotildees e territoacuterios jaacute que os eacuteduos

(aliados dos romanos) sofriam por parte de Ariovisto e dos germanos uma injuacuteria para

evit r o perigo e desgr ccedil er necessaacuteri um m nobr de ― uto-defes (RIGGSBY

2006 p 18) Todavia como Schmidt (2004 p 270) destaca mesmo com a conquista

definitiv d Gaacuteli ―p z rom n nunc seraacute de f to um re lid de pois s revolt s

nunca cessaram ao longo do domiacutenio romano Embora as elites tenham obtido a

cidadania romana e embora a vida citadina tenha sido mais facilmente romanizada e

tenha sido uma assimilaccedilatildeo cultural no acircmbito urbano no acircmbito rural os descendentes

dos antigos povos celtas mantiveram-se irredutiacuteveis em sua revolta (SCHMIDT 2004

p 273)

221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental

Anteriormente neste trabalho abordamos a forma como Roma teria ampliado

seus domiacutenios e conquistado diversos povos e regiotildees atraveacutes de vaacuterias conquistas

militares ao longo de alguns seacuteculos Todavia a ideia de um impeacuterio tal qual

conhecemos hoje natildeo se aplica ao que pensamos do impeacuterio romano Nas palavras de

Guarinello (2014 p 119) ―T lvez princip l diferenccedil entre o Impeacuterio e um est do

nacional resida no fato de que o poder natildeo se repartia homogeneamente sobre o

territoacuterio do Impeacuterio dada a grande heterogeneidade de estatutos entre sua populaccedilatildeo e

usecircnci de um socied de civil cl r mente identific d Assim o impeacuterio romano

abrigava uma grande variedade de naccedilotildees e sociedades diversas que mantinham seus

costumes e suas formas de governo proacuteprias aleacutem de grande diversidade cultural e

social Como Guarinello lembra (2014 p 119) no domiacutenio romano inseriam-se antigos

impeacuterios orientais como o egiacutepcio-heleniacutestico que mantiveram suas instituiccedilotildees sociais

proacuteprias ateacute o periacuteodo imperial tardio Essa diversidade justificava-se pela postura de

Roma ter sido aberta ao estrangeiro desde seus primoacuterdios e tambeacutem pelo fato da urbe

ter feito largo uso de artiacutefices de outros povos chegando inclusive a melhoraacute-los197

Se no lado oriental Roma teve uma postura menos intervencionista no modo de

vida e costumes dos povos dessas regiotildees no ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi

197

De fato desde o iniacutecio miacutetico de Roma constava nas narrativas que Rocircmulo acolheu os fora-da-lei

estrangeiros para aumentar a populaccedilatildeo da Urbe que acabara de fundar bem como o rapto das sabinas

(uma naccedilatildeo que vivia nas vizinhanccedilas) para obter mulheres para a cidade (NICOLET 2011 p 887) Das

fontes latinas que falaram sobre esse episoacutedio destacamos Tito Liacutevio (Ab urbe cond I 8) Oviacutedio

(Fasti III 432-734) Lucano (Bellum ciuile I 96-99 e VII 437-439) e Pliacutenio o Velho (HN XVI 5)

107

mais profundo198

Hoje discute-se bastante sobre o quatildeo profundo ou extenso foi esse

processo Pesquisadores mais antigos como Bloch e Cousin e tambeacutem mais recentes

como Canfora definiram que a romanizaccedilatildeo na Europa ocidental foi um processo cruel

e que se deu com total violecircncia e arbitrariedade por parte dos romanos199

Hoje em dia

vaacuterios estudiosos acreditam que esse processo natildeo foi tatildeo intenso ou tatildeo opressivo

assim Nesse sentido temos as palavras do proacuteprio Guarinello (2014 p 119 a 125)

Organizaccedilotildees sociais preacute-urbanas permaneceram majoritaacuterias em vastas

regiotildees da Gaacutelia da Bretanha e das proviacutencias fronteiriccedilas centrais Durante

seacuteculos povos montanheses mantiveram-se arredios agrave influecircncia romana no

proacuteprio coraccedilatildeo do Impeacuterio Todas essas eram contudo formas de

organizaccedilatildeo social dominadas formadas por populaccedilotildees submetidas A forccedila

com efeito encontrava-se em outro lugar nas cidades O Impeacuterio Romano

representou uma vitoacuteria das cidades mediterracircneas sobre essas sociedades E

o imperialismo romano foi antes o resultado das deficiecircncias estruturais

dessas cidades do que o efeito de uma supremacia singular do povo

conquistador () Como vimos apenas algumas poucas cidades as de maior

porte conseguem minimizar os conflitos internos atraveacutes da expansatildeo

militar que fornece ocupaccedilatildeo para a populaccedilatildeo mais pobre e carreia terras e

riquezas para o centro As demais cidades soacute alcanccedilam uma situaccedilatildeo de

estabilidade pela imposiccedilatildeo de um poder superior externo capaz de dirimir

os conflitos e regular as relaccedilotildees entre os grupos de cada comunidade A

expansatildeo de Roma se daacute precisamente nesse quadro

Em um primeiro momento temos as conquistas militares e muitas vezes a

imposiccedilatildeo da ordem pela forccedila ao longo do tempo com o estabelecimento das

proviacutencias e a consolidaccedilatildeo de um amplo territoacuterio imperial a paz passou a predominar

(GUARINELLO 2014 p 127) Todavia o papel do exeacutercito na expansatildeo e

consolidaccedilatildeo do poderio romano natildeo se restringiu apenas ao uso da forccedila ele tambeacutem

foi agente importante da difusatildeo da cultura de Roma nas aacutereas submetidas atraveacutes da

integraccedilatildeo econocircmica (jaacute que a manutenccedilatildeo das legiotildees estimulava a engrenagem de

produccedilatildeo de mercadorias e comeacutercio) e tambeacutem da interaccedilatildeo social com o recrutamento

de tropas e pelos matrimocircnios com os locais (GUARINELLO 2014 p 128) Aleacutem

disso como destaca Le Bohec (2009 p 31) um bom comandante sabia que era

importante ganhar a simpatia dos civis do povo vencido uma vez que nenhum exeacutercito

conseguiria se impor indefinidamente usando apenas a forccedila Os domiacutenios romanos

eram notadamente multiculturais o latim e grego uacutenicas liacutenguas usadas em contexto

oficial aprendidas pelas elites locais e tambeacutem como veiacuteculo literaacuterio a princiacutepio natildeo

se impuseram como os uacutenicos idiomas Como lembra Guarinello (2014 p 127) por

198

Sobre a romanizaccedilatildeo mais pesada no ocidente e natildeo no oriente ver p100 199

Cf p 16-17 deste trabalho

108

muito tempo as populaccedilotildees locais continuavam se expressando em seus idiomas de

origem como o celta na Gaacutelia o puacutenico no norte da Aacutefrica o aramaico na Palestina etc

Do ponto de vista da cultura e dos haacutebitos os povos conquistados mantiveram suas

tradiccedilotildees e modo de vida Com o passar do tempo o mundo foi sendo paulatinamente

transformado a elite dessas naccedilotildees buscando conquistar a cidadania adotou os

costumes romanos e aprendeu o latim especialmente nas cidades a mescla entre

romanos e conquistados se deu mais rapidamente No contexto da Europa ocidental o

fenocircmeno de fusatildeo entre romanos e provincianos aconteceu em tal profundidade que

hoje temos na regiatildeo o predomiacutenio das liacutenguas romacircnicas derivadas do latim o que se

sabe dos costumes e liacutenguas preacute-romacircnicas nos eacute conhecido sobretudo por meio da

arqueologia e da linguiacutestica histoacuterica

Os resquiacutecios de liacutenguas ou de religiotildees que nos chegaram mesmo seacuteculos apoacutes

as conquistas romanas nas palavras de Wallace-Hadrill (2008 p 7) sugerem que a

produccedilatildeo de uma fusatildeo raacutepida e homogecircnea apoacutes a conquista natildeo pode ser tomada como

certa se eacute que de fato isso alguma vez ocorreu dessa forma Ainda de acordo com o

autor (2008 p 10) o mais interessante no estudo entre os romanos e os outros povos eacute

perceber como se opera a dialeacutetica de apropriaccedilatildeo pela qual bens e peculiaridades do

poder conquistador satildeo adotados pelos conquistados para fins especiacuteficos e pode-se

ainda adicionar a essa dialeacutetica a reciprocidade com a qual o poder conquistador adota

traccedilos do conquistado para consolidar a sua ocupaccedilatildeo Assim ao longo deste trabalho

veremos como se deu o contato dos romanos com gauleses e como essa dialeacutetica

justificou a construccedilatildeo cultural que os romanos fizeram dos gauleses

O termo romanizaccedilatildeo por si soacute jaacute eacute considerado problemaacutetico no campo atual

de pesquisa em estudos claacutessicos jaacute que ateacute meados do seacuteculo XX esse termo englobava

a noccedilatildeo de que os romanos impuseram sua cultura aos povos vencidos em um processo

unilateral e arbitraacuterio Ora como mencionamos acima vimos que na verdade a

romanizaccedilatildeo ocorreu em vaacuterias esferas sociais (e natildeo em um movimento de cima para

baixo em que a elite romana impunha seu status quo) e que os povos ditos conquistados

mantiveram muitos dos seus costumes instituiccedilotildees poliacuteticas e sociais e ateacute seus

idiom s Como Veyne (In GIARDINA 1992 p 299) pontu ―( ) os h bit ntes d s

proviacutencias romanizavam-se espontaneamente O poder central aplaudia e dava a sua

s nccedilatildeo juriacutedic agrave form ccedilatildeo de nov s cid des Dentre os vaacuterios pesquisadores que

contestam esse conceito defasado de romanizaccedilatildeo destacamos aqui Hingley (2005) que

109

abandona o termo romanizaccedilatildeo (exceto quando estritamente necessaacuterio) e adota em seu

lugar o termo globalizaccedilatildeo200

Devemos tambeacutem ter em mente que muitos estudos sobre o conceito de

romanizaccedilatildeo e imperialismo romano foram embasados em obras da elite letrada de

Roma de fato muitas vezes as fontes antigas eram tratadas ora como relatos literaacuterios

ora como fontes historiograacuteficas especialmente ateacute meados do seacuteculo XX Hingley

(apud FUNARI GARRAFONI 2016 p 34) lembra que embora os textos antigos sejam

importantes atualmente com a arqueologia eacute possiacutevel perceber outros aspectos da

sociedade e cultura antigas que nem sempre eram retratados nessas obras que muitas

vezes visavam agrave exaltaccedilatildeo da gloacuteria de Roma e aspectos especiacuteficos como vitoacuterias em

guerras e conquistas militares Isso tambeacutem contribuiu para flexibilizar a noccedilatildeo de

romanizaccedilatildeo O termo romanizaccedilatildeo ainda hoje eacute bastante usado por estudiosos da aacuterea

inclusive noacutes mesmos que utilizamos aqui o vocaacutebulo com essa nova acepccedilatildeo mais

flexiacutevel levando em consideraccedilatildeo que tanto os vencedores quanto os vencidos

contribuiacuteram para criar uma nova forma de cultura heterogecircnea nas proviacutencias com

interpretaccedilotildees mais livres que levam em conta a grande variaccedilatildeo desses processos que

ocorreram no impeacuterio201

Assim entendemos que o processo de romanizaccedilatildeo se deu em

um contexto de grande dinacircmica social por um lado pela assimilaccedilatildeo da cultura

romana pelas elites conquistadas por outro atraveacutes da resistecircncia aos valores romanos

por parte da populaccedilatildeo sobretudo a do campo o que levou a novas estruturas culturais

200

Hingley argumenta que esse conceito antigo de romanizaccedilatildeo passou a ser muito usado no contexto do

poacutes-colonialismo europeu ocidental entre o seacuteculo XIX e primeira metade do seacuteculo XX e focava no

eurocentrismo e na oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie O autor considera que essa antiga teoria de

romanizaccedilatildeo eacute extremamente simplista e focada apenas na elite do impeacuterio Assim a partir da segunda

metade do seacuteculo XX a proacutepria definiccedilatildeo de romanizaccedilatildeo evoluiu largamente Para discussatildeo mais

profunda sobre esse tema da romanizaccedilatildeo surgimento desse conceito e de como ele foi usado para ajudar

a formar a mentalidade da Europa ao longo dos seacuteculos e dos problemas que surgem a partir dos usos (e

abusos) dessa concepccedilatildeo recomend mos o c piacutetulo ―Ch nging concepts of Rom n identity nd soci l

ch nge (In HINGLEY 2005 p14 a 48) Mendes (2007 p 27) ao se referir ao processo complexo de

romanizaccedilatildeo prefere adotar o termo mundializaccedilatildeo no lugar de globalizaccedilatildeo jaacute que mundializaccedilatildeo

acentua a heterogeneidade cultural entre conquistadores e conquistados enquanto que globalizaccedilatildeo

transmite uma ideia de homogeneidade que natildeo daria conta de explicar o complexo contexto em que se

deu a romanizaccedilatildeo Outros estudiosos tambeacutem adotam o termo mundializaccedilatildeo como Laplantine e Nouss

(2001) 201

Hingley (2005 p 47 a 49) aborda mais a questatildeo complexa da romanizaccedilatildeo e sobre os papeacuteis

desempenhados por conquistadores e conquistados ao construir uma nova ordem social do que

simplesmente os gauleses terem sido absorvidos em uma ordem social preacute existente Ele tambeacutem aborda

de form profund ess questatildeo do imperi lismo e cultur no c piacutetulo ―Rom n inperi lism nd culture

(2005 p 49 a 71)

110

222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar

Nesse contexto histoacuterico de grandes expansotildees romanas temos Caio Juacutelio Ceacutesar

que teria nascido em Roma provavelmente em 100 aC de uma famiacutelia patriacutecia Pelo

fato de sua tia Juacutelia ter sido esposa de Maacuterio ele chegou a ser perseguido durante o

regime de Sila Durante esse periacuteodo serviu no exeacutercito na Aacutesia Em 78 aC com o fim

do regime silano Ceacutesar retornou a Roma e passou a se dedicar agrave carreira poliacutetica tendo

sido questor (68 aC) edil (65 aC) e pretor na Hispacircnia (61 aC) dentre outros

cargos Em 60 aC formou um pacto junto com Pompeu e Crasso que foi chamado

erroneamente de primeiro triunvirato jaacute que natildeo foi estabelecido por uma lei para

dividir o poder entre os trecircs Em 59 Ceacutesar foi cocircnsul pela primeira vez e para aumentar

sua popularidade fez votar duas leis agraacuterias semelhantes agraves que os irmatildeos Graco

tentaram promover em seu tempo uma dessas leis facilitava a concessatildeo de terra aos

soldados veteranos enquanto a outra ajudava a populaccedilatildeo mais pobre de Roma

(SCHMIDT 2004 p 178) No ano seguinte ele tornou-se prococircnsul da Iliacuteria e das

Gaacutelias romanizadas ndash a Cisalpina e a Narbonense que se tornaram proviacutencias

consulares em 60 aC em face ao avanccedilo do germano Ariovisto nessa regiatildeo Com o

pretexto de violaccedilotildees das fronteiras romanas por parte dos celtas Ceacutesar decidiu

conquistar e submeter toda a Gaacutelia ao poderio romano Como Brandatildeo afirma (In

BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 395) ―Ceacutes r geriu o proconsul do d Gaacuteli muit s

vezes contra o parecer do senado tendo em conta a sua promoccedilatildeo pessoal e a

preservaccedilatildeo da sua dignitas Como pretexto p r mpli r territoacuterios rom nos ndash

expansatildeo essa que natildeo estava incluiacuteda nos planos do senado para seu proconsulado ndash

Ceacutesar aproveitou-se sobretudo de conflitos internos dos gauleses e do estabelecimento

do germano Ariovisto a oeste do Reno em 60 aC (BRANDAtildeO In BRANDAtildeO

OLIVEIRA 2015 p 396) Apoacutes seis anos (58 a 52 aC) Ceacutesar finalmente converteu a

Gaacutelia em uma proviacutencia romana e com isso passou a ter maior popularidade

conquistou fortunas e alargou a base do seu poder pessoal ao contar com vastas

clientelas provincianas202

Nesse iacutenterim em 54 aC morreu a filha de Ceacutesar Juacutelia que

era casada com Pompeu e no ano seguinte faleceu Crasso que lutava no oriente contra

os partos esses acontecimentos levaram ao fim do triunvirato e acentuou a rivalidade

entre Ceacutesar e Pompeu Ceacutesar que visava a um segundo consulado apoacutes a conquista da

202

Canfora (2002 p 124 e ss) detalha mais os vaacuterios motivos de Ceacutesar ter optado pela conquista da

Gaacutelia

111

Gaacutelia foi impedido legalmente de disputar as eleiccedilotildees Dessa forma ele decidiu por

invadir a Itaacutelia com seu exeacutercito em 49 aC dando iniacutecio a uma nova guerra civil Em

48 aC Ceacutesar venceu Pompeu na batalha de Farsaacutelia e este ao fugir para o Egito foi

assassinado Sobre a guerra civil Grimal (1993 p 46) afirma

() o velho mundo estaacute a desfazer-se um pouco por toda a parte as instituiccedilotildees

tradicionais jaacute natildeo podem suportar o enorme peso do Impeacuterio e apesar das

oscilaccedilotildees que momentaneamente parecem conter a evoluccedilatildeo o lento trabalho

prossegue obscura e irreversivelmente ateacute que a maacutequina se revele adaptada a

todas as novas necessidades

Apoacutes novas batalhas na Aacutefrica (46 aC) e na Hispacircnia (45 aC) Ceacutesar saiu

vencedor do conflito e tornou-se o chefe supremo de Roma Em fevereiro de 44 aC

Ceacutesar foi declarado ditador perpeacutetuo ndash e aproveitou-se disso para ampliar a base poliacutetica

do poder favorecendo os populares cavaleiros e ―homens novos (receacutem dmitidos no

Senado) Yavetz (2004 p 204) diz que Ceacutesar fez atos ineacuteditos ateacute entatildeo na poliacutetica

romana foi o primeiro a conceder o direito de cidadania a uma proviacutencia inteira (a

Gaacutelia Cisalpina) a recrutar uma legiatildeo completa de provincianos e a nomear um

provinciano para o Senado ndash o hispaniense Balbo203

Evidentemente todas essas

medidas serviram para aumentar ainda mais o receio e oacutedio dos opositores de Ceacutesar que

viam o ditador aumentar o seu poder pessoal Ceacutesar acumulou tanto poder e honras que

alarmou os outros aristocratas que julgaram que ele queria tornar-se rei Nos idos de

marccedilo Ceacutesar foi assassinado por um grupo de senadores em uma sessatildeo do senado204

Acreditava-se que com a morte de Ceacutesar a Repuacuteblica voltaria a ser como antes

Seu assassinato contudo natildeo fez com que a necessidade de reformas fosse abandonada

Como Guarinello escreveu no prefaacutecio da obra de Canfora (2002 p 14 e 15) o periacuteodo

do seacuteculo II a I aC foi marcado por grandes transformaccedilotildees sociais e crises profundas

como a fracassada reforma proposta pelos irmatildeos Graco e os golpes de Estado de Maacuterio

e Sila a cidadania dividira-se em partes em facccedilotildees organizadas como vastas clientelas

que lutavam por seus interesses particulares sem conseguir um meio-termo que

atendesse a todos populares e poderosos As estruturas e instituiccedilotildees poliacuteticas romanas

jaacute estavam falidas e ficava clara a necessidade de um novo sistema de governo que

centralizasse o poder nas matildeos de um uacutenico indiviacuteduo como forma de minimizar as

disputas e trazer a paz e estabilidade agrave comunidade romana Essa mudanccedila se

203

Citamos Balbo na p 100 deste trabalho 204

Para esta breve biografia de Ceacutesar utilizamos como referecircncia o livro de Conte (1999 p 225)

112

consolidaraacute com a ascensatildeo de Otaacutevio (sobrinho-neto de Ceacutesar por ele adotado como

seu herdeiro em seu testamento) e o principado se tornaraacute enfim o sistema poliacutetico que

acompanharaacute a nova sociedade imperialista que surgia

23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar

Ceacutesar teve uma relevante produccedilatildeo literaacuteria dos seus escritos que chegaram aos

nossos dias temos apenas o De bello Gallico (Sobre a Guerra da Gaacutelia) e o De bello

ciuili (Sobre a Guerra Civil) Ceacutesar tambeacutem compocircs um epigrama (fragmento 9 em

Fragmenta Poetarum Latinorum de Morel) sobre Terecircncio O resto da obra de Ceacutesar

(discursos o tratado De analogia205

ndash sobre a pureza de linguagem e o fazer literaacuterio ndash e

o Anticato contra Catatildeo de Uacutetica) se perdeu Tambeacutem fazem parte do corpo cesariano

do periacuteodo final da guerra civil as obras Bellum Alexandrinum Bellum Africum e

Bellum Hispaniense que relatam respectivamente as campanhas militares de Ceacutesar em

Alexandria (Egito 48 aC) Tapso (norte da Aacutefrica 46 aC) e Munda (Espanha 45

aC)206

O De bello Gallico tambeacutem conhecido em portuguecircs como Relato da Guerra da

Gaacutelia foi composto por Ceacutesar em sete livros nos quais se desenrola a narrativa de

confrontos entre romanos e gauleses aleacutem da geografia costumes e cultura das tribos

que habitavam essas regiotildees207

Ceacutesar dedicou cada livro do De bello Gallico a um ano

de campanha militar Temos no livro I a descriccedilatildeo da Gaacutelia e a narrativa das batalhas

ocorridas em 58 aC contra os helveacutecios e contra Ariovisto rei dos suevos o livro II eacute

sobre a campanha contra os belgas no ano 57 aC o livro III conta a campanha de

Ceacutesar contra as cidades armoricanas (57 aC) e possui ainda um comentaacuterio da presenccedila

de Crasso na Aquitacircnia (56 aC) No livro IV temos a campanha de Ceacutesar contra os

germanos e a primeira ida de Ceacutesar agrave Britacircnia (55 aC) O livro V concentra-se na

segunda ida de Ceacutesar agrave Britacircnia e nova campanha contra os belgas em 54 aC O livro

205

Provavelmente escrito por Ceacutesar enquanto era prococircnsul durante uma travessia dos Alpes

(CONSTANS 1964 p XVII) 206

Aacuteulo Hiacutercio tenente de Ceacutesar foi o provaacutevel autor do livro VIII do De bello Gallico ndash o objetivo era

de dar continuidade agrave narrativa cesariana de modo que a obra abrangendo os acontecimentos do ano 51 e

50 aC tivesse ligaccedilatildeo com o comeccedilo do De bello ciuili o Bellum Alexandrinum tambeacutem seria de Hiacutercio

(CONTE 1999 p 230) Quanto ao Bellum Africum e o Bellum Hispaniense natildeo se sabe da autoria dessas

obras provavelmente foram escritas por algum militar ligado a Ceacutesar 207

Aleacutem do que o proacuteprio Ceacutesar ditou para seus secretaacuterios e que virou o texto final do De bello Gallico

tambeacutem foram utilizados como fontes os relatoacuterios dos membros do Estado-maior de Ceacutesar que

informavam ao general do que acontecia em outros campos de batalha e das accedilotildees as quais Ceacutesar natildeo

tomou parte diretamente

113

VI aleacutem de narrar confrontos de Ceacutesar contra gauleses e germanos possui uma

descriccedilatildeo dos costumes de ambos os povos (53 aC) Essa descriccedilatildeo eacute conhecida como

ceacutelebre ―n rr ccedilatildeo etnograacutefic de Ceacutes r O livro VII tr t do lev nte d Gaacuteli lider do

por Vercingetoacuterige a tomada de Luteacutecia cerco e capitulaccedilatildeo de Aleacutesia e a rendiccedilatildeo de

Vercingetoacuterige a Ceacutesar no ano 52 aC208

Ceacutesar em sua narrativa contou as suas campanhas militares na Gaacutelia e a

expansatildeo do poderio romano nesse territoacuterio Sobre essa obra Lintott lembra (In

BOARDMAN et al 1986 p 642)

Caesar tells us of the expansion of Roman power in a successful war

enlivening the story with digressions on geography and the characteristics of

foreign races and explains its significance by comments in the first person

and by speeches in which both he and his opponents justify their conduct

The whole work is a testimony to Roman virtue not only that Caesar himself

but of his troops whose abilities are rarely portrayed so effectively

elsewhere There is a political message too Although Caesar was radical and

violent in his own political career when discussing the Gallic communities

he exalts established power and conservatism209

No De bello Gallico Ceacutesar seguiu o modelo de historiografia heleniacutestica ndash que

tambeacutem apareceu em Diodoro Siacuteculo e depois em Estrabatildeo ndash que fornecia informaccedilotildees

etnograacuteficas sobre os costumes a geografia a economia e niacutevel de civilizaccedilatildeo dos

povos narrados Esse tipo de conteuacutedo era escasso em Roma e as digressotildees em Ceacutesar

serviam para explicar algumas situaccedilotildees justificar certas decisotildees e davam agrave obra uma

aparecircncia de objetividade cientiacutefica respondendo agrave curiosidade do leitor (ANDREacute

HUS 1974 p 33)

231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de Ceacutesar

Quanto ao gecircnero narrativo dos comentaacuterios haacute certa discordacircncia se as obras de

Ceacutesar podem ser encaixadas no gecircnero da historiografia Os pesquisadores Andreacute e Hus

(1974) defendem que Ceacutesar eacute memorialista e natildeo historiador ndash apesar de as obras de

208

Este resumo da obra de Ceacutesar foi baseado em Conte (1999 p 227 e 228) 209

―Ceacutes r nos cont sobre exp nsatildeo do poder rom no em uma guerra bem sucedida dando vida agrave

histoacuteria com digressotildees sobre a geografia e as caracteriacutesticas das raccedilas estrangeiras e explica seus

significados atraveacutes de comentaacuterios em primeira pessoa e por meio de discursos nos quais tanto ele

quanto seus oponentes justificam sua conduta Todo o trabalho eacute um testemunho da virtude romana natildeo

apenas a de Ceacutesar mas tambeacutem a de suas tropas cuja habilidade foi raramente retratada de forma tatildeo

efetiva em outros lugares Haacute tambeacutem uma mensagem poliacutetica Embora Ceacutesar fosse radical e violento em

sua proacutepria carreira poliacutetica quando discutindo sobre as comunidades gaulesas ele exalta o poder

est belecido e conserv dorismo

114

Ceacutesar seguirem a tradiccedilatildeo analiacutestica De acordo com ambos Ceacutesar era uma figura

poliacutetica de destaque que visava ao poder que ele conquistou de forma ilegal e ele soacute

escreveu os eventos que lhe foram contemporacircneos com a finalidade de justificar suas

accedilotildees passadas e de preparar sua accedilatildeo futura de se tornar liacuteder supremo de Roma

(ANDREacute HUS 1974 p 27) Ainda segundo Andreacute e Hus (1974 p 29) os comentaacuterios

de Ceacutesar eram mera exposiccedilatildeo de fatos precisos e sem ornamentos literaacuterios sendo o

contraacuterio do que os gregos ou Ciacutecero entendiam por histoacuteria Assim ateacute hoje muitos

estudiosos entendem que esse estilo natildeo pode ser considerado historia pela proacutepria

natureza do commentarius ndash que preconizava a clareza a precisatildeo o tom objetivo e

essencial com poucos discursos e sem introduccedilotildees pretensiosas e descriccedilotildees

interminaacuteveis e sem retratos de personalidades ou consideraccedilotildees morais ou

filosoacuteficas210

Consideramos as obras de Ceacutesar natildeo como comentaacuterios mas sim como

histoacuteria uma vez que elas se encaixam na definiccedilatildeo aristoteacutelica desse gecircnero ndash ou seja

elas satildeo narrativas sobre fatos acontecidos211

Lintott contudo prefere inserir essa atividade literaacuteria de Ceacutesar dentro da

tr diccedilatildeo historiograacutefic Embor os comentaacuterios de Ceacutes r fossem tendenciosos e

visassem a auto-glorificaccedilatildeo esses viacutecios natildeo eram exclusivos da autobiografia

(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 532) Por conseguinte devemos

considerar os relatos de autores antigos natildeo soacute de Ceacutesar como discursos inseridos em

uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria que possuiacuteam puacuteblico-alvo especiacutefico aleacutem de tambeacutem

propagandearem conceitos sociais e visotildees de mundo (FUNARI GARRAFFONI 2016

p 35) Aleacutem disso apesar de carecer de ornamentos estiliacutesticos e ter tom austero os

assuntos tratados nos comentaacuterios de Ceacutesar ndash como a virtude romana natildeo soacute de Ceacutesar

mas tambeacutem de suas fieacuteis legiotildees aleacutem da exaltaccedilatildeo de uma guerra bem sucedida ndash satildeo

tiacutepicos da historiografia latina madura (LINTOTT in BOARDMAN et al 1986 p

532)212

Independentemente de Ceacutesar ter escrito historiografia autobiografia ou

memoacuteria de toda forma os comentaacuterios sobre a conquista da Gaacutelia ficaram como uacutenico

210

Fornara (1983 p 184) aprofunda essa discussatildeo de gecircnero de composiccedilatildeo do De bello Gallico

destacando que essa obra de Ceacutesar possui caracteriacutesticas tanto de histoacuteria quanto de comentaacuterio e

memoacuteria 211

Cf Poeacutetica 1451b 212

Lintott tambeacutem destacou o caraacuteter poliacutetico do De bello Gallico ―embor Ceacutes r fosse r dic l e

violento em sua proacutepria carreira poliacutetica em se tratando da Gaacutelia ele exaltou as comunidades e suas

caracteriacutesticas de organizaccedilatildeo Apesar da ironia disso Ceacutesar pode ter escrito isso com certa sinceridade

pois Roma tradicionalmente se sentia no dever de socorrer seus aliados para assegurar seu proacuteprio

impeacuterio (In BOARDMAN et al 1986 p 532) Abordamos a questatildeo do dever moral de Roma defender

seus aliados no subcapiacutetulo 212

115

documento escrito por um protagonista dos proacuteprios fatos e que nos chegou de forma

satisfatoacuteria Ele tambeacutem tinha pressa em divulgar suas obras e escolheu justamente o

estilo do comentaacuterio jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo era mais livre do que escrever

historia que seria um processo mais demorado De acordo com Usher (2001 p 138)

como os comentaacuterios foram escritos para publicaccedilatildeo imediata e com claros propoacutesitos

poliacuteticos pode-se deduzir que Ceacutesar considerou a sua forma literaacuteria satisfatoacuteria Como

destaca Guillaumin (in RATTI 2009 p 19) eacute certo que o propoacutesito de Ceacutesar ao

escrever os comentaacuterios natildeo foi unicamente ndash nem mesmo prioritaacuterio ndash a preocupaccedilatildeo

literaacuteria mas sim poder escrever e divulgar rapidamente suas obras com fins

propagandiacutesticos (De bello Gallico) e apologeacuteticos (De bello ciuili)

De todos os instrumentos usados por Ceacutesar para alcanccedilar poder e prestiacutegio os

comentaacuterios de certo er m os m is sofistic dos ―em um tempo em que s riv lid des

poliacutetic s er m express s em p nfletos vulg res e c luacuteni s de todo tipo (MARTIN

GAILLARD 1981 p 119) Sobre o De bello Gallico Conte tambeacutem lembra que Ciacutecero

(Brutus 262) e Hiacutercio (no prefaacutecio do livro VIII do De bello Gallico) afirmaram que

embora Ceacutesar tenha adotado o estilo comentaacuterio que serviria de possiacutevel fonte para

historiadores de tempos vindouros na verdade ningueacutem se atreveria a tentar reescrever

o que Ceacutesar jaacute tinha narrado com incomparaacutevel simplicidade De fato a atitude de Ceacutesar

possivelmente teri escondido um ―truque sob humilde c p o commentarius como

ele escreveu se aproximou da historia (CONTE 1999 p 226)

Sobre a forma em que a obra foi escrita existem algumas discordacircncias entre os

pesquisadores Como Conte ressalta (1999 p 227) alguns estudiosos acreditam que

Ceacutesar compocircs o De bello Gallico ano a ano durante os invernos quando o exeacutercito

ficava aquartelado e as operaccedilotildees militares eram suspensas Essa uacuteltima teoria eacute

favorecida pela existecircncia de certas contradiccedilotildees dentro do trabalho de Ceacutesar o que

seria difiacutecil de explicar se a obra tivesse sido composta de uma soacute vez (CONTE 1999

p 227) Por sua vez a teoria de que Ceacutesar compocircs sua obra de uma vez soacute entre o

inverno de 52 a 51 aC tambeacutem possui um fundamento favoraacutevel a obra tem uma

perceptiacutevel evoluccedilatildeo estiliacutestica que pode ser detectada Sobre essa evoluccedilatildeo estiliacutestica

Conte (1999 p 227) afirma

Such an evolution seems to advance from the bare unadorned style of the

true commentarius towards a style that increasingly allows the typical

ornaments of historia thus in the second half of the work one finds more

116

frequent use of direct discourse and recourse to a greater variety of

synonyms which denotes a certain expansion of the traditional vocabulary213

Seja de uma ou de outra maneira a narrativa de Ceacutesar sobre suas campanhas

militares na Gaacutelia foi publicada provavelmente em 51 aC Sem duacutevida Ceacutesar escreveu

o De bello Gallico com fins propagandiacutesticos pois ele mostrava-se como o comandante

justo e valoroso disposto a defender os romanos e seus ideais Por outro lado pode-se

pensar que o De bello Gallico tambeacutem tenha sido direcionado agrave elite gaulesa receacutem

conquistada Os romanos de acordo com Ceacutesar seriam os responsaacuteveis por trazer

ordem e paz nessa proviacutencia que sofrera tanto por ataques dos germanos como por

ataques internos de outras naccedilotildees gaulesas Nas palavras de Gouvecirca Juacutenior (2012 p

12) ―Ceacutes r com os exempla de suas vitoacuterias oferecia agrave aristocracia gaulesa aculturada

e predisposta a fornecer-lhe apoio poliacutetico a proteccedilatildeo contra os chefes da rebeliatildeo

caracterizados como f ciacutenor s em busc d inst ur ccedilatildeo de um regime tiracircnico

232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo

O De bello Gallico tem estilo claro simples e elegante sem grande variaccedilatildeo no

tom ou no vocabulaacuterio Eacute possiacutevel que Ceacutesar tenha usado um vocabulaacuterio bastante

simples como forma de alcanccedilar o maior nuacutemero de leitores possiacuteveis Evidentemente

Ceacutesar (que escreveu o De analogia)214

adotou as normas do aticismo ndash como escolha

cuidadosa do vocabulaacuterio sem recorrer a palavras raras ou desusadas e o uso de

analogia em oposiccedilatildeo agrave anomalia (asianismo) O texto eacute aacutegil conciso e essencial natildeo haacute

introduccedilatildeo nos comentaacuterios de Ceacutesar ateacute mesmo por questatildeo de estilo Ceacutesar tambeacutem

adotou o uso da 3ordf pessoa para se referir a si mesmo ndash sendo esse recurso empregado

para destacar o protagonista ndash jaacute que o proacuteprio Ceacutesar se coloca como personagem

autocircnomo215

Eacute comum ainda o emprego do discurso indireto o que elimina a

dramaticidade e daacute amplificaccedilatildeo retoacuterica ao texto embora alguns episoacutedios decisivos

213

―T l evoluccedilatildeo p rece vanccedilar do estilo nu e sem adornos do verdadeiro comentaacuterio em direccedilatildeo a um

estilo que cada vez mais permite os tiacutepicos ornamentos da histoacuteria consequentemente na segunda metade

do trabalho eacute possiacutevel encontrar usos mais frequentes do discurso direto e recurso de maior variedade de

sinocircnimos o que denota uma certa expansatildeo do vocabulaacuterio tr dicion l 214

Como jaacute citado na p 112 215

Ceacutesar tomou da Anaacutebase de Xenofonte esse aspecto de se referir a sim mesmo na 3ordf pessoa (ANDREacute

HUS 1974 p 30 a 32)

117

possuam carga dramaacutetica216

Depois de Tuciacutedides toda obra historiograacutefica passou a

conter discursos e Ceacutesar fez uso de discursos (sendo o direto bem raro) e sempre em

momentos estrateacutegicos mas sem banalizaccedilotildees ou dramatizaccedilotildees excessivas da narrativa

Esses discursos fictiacutecios eram um recurso literaacuterio empregado pelo autor para ajudar na

caracterizaccedilatildeo de um personagem ou para explicar uma situaccedilatildeo etc (ANDREacute HUS

1974 p 32) Riggsby (2006 p 142) lembra que geralmente as falas na historiografia

satildeo de personagens importantes (como generais) para dar contexto agrave narrativa ou

fornecer uma anaacutelise da situaccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo do personagem em si em Ceacutesar

como exemplo temos o apelo do eminente Diviciacuteaco em que ele pede ajuda ao general

contra os germanos217

Todavia em vaacuterias vezes os discursos satildeo pronunciados por

personagens menores desconhecidos ateacute que servem como uma quebra na narrativa e

que enriquecem o texto explicando alguns fatos que ocorreram (ou ocorreratildeo) na

narrativa Como exemplo destacamos o trecho IV 7 em que os germanos enviam

embaixadores a Ceacutesar eles sequer foram nomeados

A quibus cum paucorum dierum iter abesset legati ab iis uenerunt quorum

haec fuit oratio Germanos neque priores populo Romano bellum inferre

neque tamen recusare si lacessantur quin armis contendant quod

Germanorum consuetudo [haec] sit a maioribus tradita Quicumque bellum

inferant resistere neque deprecari Haec tamen dicere uenisse inuitos

eiectos domo si suam gratiam Romani uelint posse iis utiles esse amicos

uel sibi agros attribuant uel patiantur eos tenere quos armis possederint

sese unis Suebis concedere quibus ne di quidem immortales pares esse

possint reliquum quidem in terris esse neminem quem non superare possint

() Como distasse destes um caminho de poucos dias vieram embaixadores

d p rte d queles cujo discurso foi este ―que os germ nos natildeo er m os

primeiros que levavam a guerra ao povo romano nem todavia a recusavam

se eram provocados a que lutassem com as armas porque era este o costume

dos germanos transmitido pelo seus antepassados ndash resistir a todos aqueles

que lhes levassem guerra e natildeo fazer suacuteplicas Todavia dizem estas coisas

que eles tinham vindo constrangidos e tinham sido expulsos da paacutetria se os

romanos queriam a sua amizade podiam ser para eles amigos uacuteteis ou lhes

concedam campos ou consitam que eles ocupem aqueles que tinham

possuiacutedo pelas armas Que eles cediam soacute aos suebos aos quais nem sequer

os deuses imortais podiam ser iguais que ningueacutem certamente havia na terra

o qu l natildeo pudesse vencer 218

216

Como na descriccedilatildeo da resistecircncia dos gauleses frente aos romanos (cf BGall VII 22 p 20-21) e na

morte de Pisatildeo Aquitano a ser abordada na p 125 e ssdeste trabalho 217

BGall I 31 p 103-105 Dentre outros discursos diretos citamos a resposta de Ariovisto rei dos

germanos a Ceacutesar em I 36 a fala do proacuteprio Ceacutesar aos seus soldados em I 40 e o discurso de

Vercingetoacuterige exortando os gauleses em VII 29 218

Traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) Outro exemplo desse tipo de discurso tambeacutem pode ser

encontado em BGall VII 21

118

Ainda de acordo com os preceitos da analogia no De bello Gallico haacute uma

precisatildeo relativa ao tempo lugares pessoas e coisas com repeticcedilatildeo dos termos e

vocabulaacuterio teacutecnico (ANDREacute HUS 1974 p 30) Essa repeticcedilatildeo de termos ou

expressotildees ajudava a gravar uma ideia no consciente do leitor e de acordo com

Rambaud (2011 p 186) esse eacute um recurso usado em propagandas para convencer o

puacuteblico A breuitas (concisatildeo) no texto cesariano daacute a impressatildeo de que o comentaacuterio eacute

desprovido de artifiacutecios retoacutericos o que contribui enormemente para conferir ao relato

seu caraacuteter objetivo e dar um verniz de veracidade De acordo com Constans (1964 p

XVII) no prefaacutecio de sua traduccedilatildeo do De bello Gallico esse estilo cru e sem

ornamentos combinava bastante com a imagem seca de um comunicador

Provavelmente Ceacutesar escreveu dessa forma tambeacutem como um modo de que seu texto

denotasse a expressatildeo de uma inteligecircncia precisa e luacutecida unida a um temperamento de

homem de accedilatildeo (CONSTANS 1964 p XVII) Natildeo seraacute possiacutevel saber exatamente mas

o fato eacute que Ceacutesar como homem culto e com fins poliacuteticos claros escreveu seus

comentaacuterios de forma pensada e seus textos fizeram bastante sucesso219

Segundo

Conte (1999 p 229) esse estilo sem ornamentos de Ceacutesar e a rejeiccedilatildeo dos artifiacutecios

retoacutericos para embelezar a narrativa contribuem para dar ao texto uma aura de aparente

objetividade e tom impassiacutevel e distante ao narrador220

Pode-se notar que sob essa

―imp ssivid de e ―dist nci mento haacute muito tempo os estudiosos perceber m

interpretaccedilotildees tendenciosas e distorccedilotildees de eventos para fins de propaganda poliacutetica que

natildeo podem ser desconsideradas De toda forma Conte (1999 p 229) pontua que essa

distorccedilatildeo histoacuterica pode ser percebida em maior escala no De bello ciuili

provavelmente porque essa obra foi escrita para dar suporte agrave candidatura de Ceacutesar para

o seu segundo consulado Para Conte (1999 p 229) ―in ny event the presence of

distortions in both works is undeniable It is never a matter of large-scale falsifications

but of omissions of greater or lesser importance a certain way of presenting the

rel tions between events 221

Evidentemente Ceacutesar possuiacutea seus detratores como ele

219

De acordo com Conte (1999 p 231 e 232) Ceacutesar foi levado a seacuterio pelos seus contemporacircneos natildeo soacute

como homem de Estado mas tambeacutem como escritor ndash como jaacute mencionamos os elogios feitos por Ciacutecero

e Hiacutercio a Ceacutesar na paacutegina 115 deste trabalho Posteriormente autores de historiografia como Liacutevio

Nicolau de Damasco Plutarco Taacutecito e outros apreciaram suas qualidades e utilizaram eventualmente

seu material como fonte 220

Riggsby (2006 p 150 a 155) aprofunda a discussatildeo sobre o papel de Ceacutesar narrador e Ceacutesar

personagem no De bello Gallico 221

―em qu lquer evento presenccedil de distorccedilotildees em mbos os tr b lhos eacute inegaacutevel Nunc eacute um c so de

falsificaccedilatildeo em larga escala mas sim omissotildees de maior ou menor importacircncia uma certa maneira de

present r s rel ccedilotildees entre os eventos

119

mesmo mencionou no De bello Gallico222

Ora Ceacutesar natildeo precisava distorcer

grandemente seus feitos para melhorar sua reputaccedilatildeo caso assim o fizesse seria

facilmente desmentido (OGILVIE In KENNEY 1989 p 316)

Haacute ateacute hoje uma grande discussatildeo sobre a veracidade dos fatos em Ceacutesar ndash

discussatildeo essa que talvez nunca chegue a um consenso Jaacute na Antiguidade Suetocircnio

(Caesar 56 4) relatou que Asiacutenio Poliatildeo acusava Ceacutesar de inexatidatildeo (embora Poliatildeo

se referisse ao relato da guerra civil jaacute que ele natildeo estava com Ceacutesar durante o

proconsulado desse uacuteltimo na Gaacutelia)223

Alguns pesquisadores consideram Ceacutesar um

memorialista sincero que foi inexato por questotildees involuntaacuterias enquanto outros

estudiosos julgam que Ceacutesar foi um mero propagandista sem escruacutepulos como Barwick

e Rambaud (ANDREacute HUS 1974 p 33) Rambaud (2011) de fato dedicou um livro

inteiro a esse assunto224

Constans (1964 p XIII) lembra que para apreciar as informaccedilotildees em Ceacutesar eacute

necessaacuterio observar as fontes que ele utilizou que satildeo de trecircs naturezas relatoacuterios ao

Senado depois de cada campanha relatos dos seus lugares-tenentes e memoacuterias

pessoais ditadas pelo proacuteprio Ceacutesar a seus auxiliares Evidentemente os relatos de Ceacutesar

o favoreciam os dos tenentes tambeacutem possuiacuteam falhas e imprecisotildees como exageros

ou inexatidatildeo sobre informaccedilotildees dos inimigos Qual a consequecircncia dessas

imprecisotildees Para Constans o De bello Gallico seria comparaacutevel ao relato sobre a

guerra da Gaacutelia escrito por outros autores225

De toda forma o corpus cesariano sofreu

grandes modificaccedilotildees uma vez que Otaacutevio determinou com matildeo de ferro o que devia

ser mantido e o que devia ser escondido do puacuteblico De Ceacutes r temos o rel to ―ofici l

dos comentaacuterios e aleacutem dele algumas outras poucas fontes citadas sobretudo por

Suetocircnio Guillaumin (In RATTI 2009 p 19) destaca que no caso especiacutefico do De

bello Gallico essa obra natildeo possui outras fontes que possam demonstrar as distorccedilotildees

222

No BGall (I 44) Ceacutesar disse que o germano Ariovisto fora informado por vaacuterios nobres cidadatildeos

romanos que se matasse Ceacutesar ele obteria reconhecimento desses mesmos romanos 223

O desaparecimento da obra de Asiacutenio Poliatildeo que escreveu depois da batalha de Aacutecio (31 aC)

representa uma grande perda para a literatura latina Seu relato contrapunha Ceacutesar enquanto os

acontecimentos ainda estavam bem recentes (CANFORA 2002 p 405) Ainda de acordo com Canfora

(2002 p 406) ―As Histoacuterias de Asiacutenio er m um seacuterio tent do agrave vulg t lsquo ces ri n ou melhor agrave

verdade posta em circulaccedilatildeo pelos commentarii Otaacutevio censur v s obr s que contr dissessem Ceacutes r e

com Poliatildeo natildeo foi diferente Aleacutem de os escritos de Poliatildeo se oporem a Ceacutesar Otaacutevio tambeacutem lhe nutria

profunda antipatia jaacute que Poliatildeo era aliado de Antocircnio 224

Sobre deformaccedilotildees histoacutericas em Ceacutesar a obra de Rambaud eacute definitiva e analisa de forma profunda

todo o conteuacutedo dos comentaacuterios de Ceacutesar Por conseguinte natildeo aprofundaremos aqui sobre essa questatildeo

de distorccedilatildeo histoacuterica salvo quando necessaacuterio em discussatildeo de passagens especiacuteficas do De bello

Gallico a serem citadas mais adiante neste trabalho 225

Constans (1964 p XIII) lembra que muitos autores simplesmente repetiram o que foi escrito por

Ceacutesar com exceccedilatildeo de Suetocircnio Plutarco e Apiano que parecem mais independentes

120

histoacutericas de Ceacutesar ndash o mesmo natildeo pode ser dito do De bello ciuili mais facilmente

desmentido por outras fontes sobre a guerra civil como o proacuteprio Ciacutecero dentre outros

Ainda de acordo com Constans (1964 p XIII e XIV) a escrita do De bello

Gallico foi raacutepida226

e o uso das fontes por parte dele tambeacutem comprometeu a

qualidade do trabalho Constans afirma que as fontes histoacutericas de Ceacutesar eram boas mas

as geograacuteficas eram mediacuteocres As indicaccedilotildees de Ceacutesar sobre a localizaccedilatildeo de diferentes

partes da Gaacutelia e da Britacircnia foram equivocadas ele se utilizou de mapas errocircneos e ele

proacuteprio natildeo se preocupou em corrigir esse tipo de falha (CONSTANS 1964 p XIV)

Justamente por essas omissotildees deformaccedilotildees e exageros a obra carece de um completo

valor histoacuterico Em certa medida as obras de Ceacutesar foram improvisadas e escritas em

circunstacircncias bem especiacuteficas e natildeo se pode deixar de ter isso em mente ao se estudar

os comentaacuterios (CONSTANS 1964 p XV) 227

De acordo com Andreacute e Hus (1974 p

36) podemos admirar o Ceacutesar escritor e na falta de outras fontes importantes dos

acontecimentos que ele narra natildeo daacute para simplesmente ignorar sua obra apenas ter

cuidado com essas distorccedilotildees

Quanto agrave sua proacutepria imagem Ceacutesar se mostrou no De bello Gallico como um

ceacuterebro que pensa nas batalhas um general dotado de surpreendente conhecimento da

arte da guerra uma vez que a organizaccedilatildeo de uma campanha eacute um jogo intelectual e

inteligente Canfora (2002 p 126) lembra que as lendas de Ceacutesar como comandante

militar se consolidaram pouco a pouco e que essas lendas eram provavelmente

baseadas em fatos reais era famosa a resistecircncia fiacutesica de Ceacutesar sua camaradagem e

sua capacidade de suportar a dureza diaacuteria da vida militar apesar de ele ter sido um

homem ristocraacutetico e culto ―se submeti com gilid de e obstin ccedilatildeo agrave m is aacutesper e

perigos d s disciplin s (CANFORA 2002 p 127) Ele conheci os p iacuteses e homens

que combatia e apreciava nos chefes gauleses a sua grandeza de alma a energia a

coragem o espiacuterito de decisatildeo que suplanta a inferioridade teacutecnica e a desuniatildeo

(ANDREacute HUS 1974 p 35) Ceacutesar tambeacutem aparece no De bello Gallico como um

general que sempre agiu dentro da lei um poliacutetico moderado do qual natildeo se deveria

esperar arroubos revolucionaacuterios

Embora se mostrasse como general habilidoso Ceacutesar contudo natildeo criou em

torno de si uma aura de carisma o proacuteprio tom do comentaacuterio e o distanciamento

226

Como mencionamos na p 115 Ceacutesar precisava se justificar perante Roma daiacute a pressa para divulgar

seus comentaacuterios 227

Sobre interpolaccedilotildees de cunho geograacutefico em Ceacutesar ver Constans (1964 p XIV)

121

causado pelo uso da 3ordf pessoa justificam esse fato e aleacutem disso o general romano

buscava a sutileza ao se auto vangloriar em suas obras228

Sobre o De bello Gallico

Conte considera que essa obra natildeo pode ser lida apenas como uma glorificaccedilatildeo de uma

conquista militar segundo ele (1999 p 230) jaacute era um costume estabelecido do

imperialismo romano apresentar as guerras de conquista como sendo necessaacuterias para a

proteccedilatildeo do Estado romano e seus aliados contra os perigos que se levantavam no

estrangeiro Aleacutem disso Ceacutesar se dirige agrave aristocracia gaulesa assegurando-lhes de sua

proteccedilatildeo contra os homens sem lei que por traacutes de ideais de independecircncia ocultavam

sua aspiraccedilatildeo agrave tirania (CONTE 1999 p 230)

233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar

Na introduccedilatildeo deste trabalho abordamos a questatildeo da humanitas Alguns outros

conceitos fundamentais para os romanos tambeacutem aparecem em Ceacutesar e em Tito Liacutevio

sendo elementos-chave dentro dos textos em termos de estabelecer algumas questotildees

culturais por esse motivo discutiremos um pouco mais sobre eles nas proacuteximas linhas

O primeiro desses importantes elementos de que falaremos eacute a sorte (fortuna) poreacutem

ela natildeo eacute representada como uma divindade (CONTE 1999 p 230) Ainda segundo

Conte (1999 p 230) a fortuna eacute

() a concept that serves to explain sudden changes in a situation an

imponder ble f ctor th t sometimes ids C es rlsquos enemies too it is bove

ll wh t lies beyond m nlsquos bilities of foresight nd r tion l control C es r

attempts to explain events trough human and natural causes to grasp clearly

their inner logic and he practically never has recourse to divine

intervention229

O p pel d sorte e do c so n historiogr fi l tin se deve Poliacutebio ―Poliacutebio

tambeacutem seraacute uma das fontes de inspiraccedilatildeo da noccedilatildeo de papel decisivo do acaso (tykheacute

fortuna em latim) divindade que explica tanto as improbabilidades como a sorte

quilo que p receraacute em divers s n rr tiv s historiograacutefic s l tin s como felicitas (o

b fejo d sorte) (FUNARI GARRAFFONI 2016 p 34) Citamos alguns exemplo

228

Cf Riggsby (2006 p 150 a 155) sobre a 3ordf pessoa em Ceacutesar e a questatildeo do Ceacutesar narrador e do Ceacutesar

personagem 229

―( ) um conceito que serve p r explicar mudanccedilas repentinas em uma situaccedilatildeo um fator

imponderaacutevel que ora auxilia tambeacutem os inimigos de Ceacutesar eacute acima de tudo o que estaacute aleacutem das

habilidades de previsatildeo de controle racional do homem Ceacutesar tenta explicar os eventos atraveacutes de causas

humanas e naturais compreender claramente a sua loacutegica interna e ele praticamente nunca recorre agrave

intervenccedilatildeo divin

122

como em (BGall I 53) em que Ceacutesar mencionou que seu amigo Caio Valeacuterio Procilo

prisioneiro de Ariovisto foi resgatado incoacutelume graccedilas agrave fortuna

Quae quidem res Caesari non minorem quam ipsa uictoria uoluptatem

attulit quod hominem honestissimum prouinciae Galliae suum familiarem et

hospitem ereptum ex manibus hostium sibi restitutum uidebat neque eius

calamitate de tanta uoluptate et gratulatione quicquam fortuna deminuerat

Is se praesente de se ter sortibus consultum dicebat utrum igni statim

necaretur an in aliud tempus reseruaretur sortium beneficio se esse

incolumem Item M Metius repertus et ad eum reductus est

Este fato na verdade natildeo trouxe a Ceacutesar uma alegria menor do que a proacutepria

vitoacuteria porque via que o homem mais honesto da proviacutencia da Gaacutelia seu

amigo e hoacutespede lhe fora restituiacutedo salvo das matildeos dos inimigos nem com

a morte deste a fortuna diminuiacutera coisa alguma de tamanho prazer e

felicitaccedilatildeo Este estando ele presente dizia que consultara trecircs vezes as

sortes acerca daquele se porventura seria imediatamente morto no fogo ou

se estaria guardado para outro tempo que ele estava incoacutelume por benefiacutecio

das sortes230

No livro II 20 a 22 Ceacutesar surpreendido por um ataque dos neacutervios mal tem

tempo de dispor o exeacutercito para a batalha por causa dessa improvisaccedilatildeo ele disse

itaque in tanta rerum iniquitate fortunae quoque euentus uarii sequebantur ―por isso

em tamanha desigualdade de vantagens tambeacutem deviam seguir-se variados os sucessos

d fortun 231

No De bello Gallico (VII 89) Ceacutesar escreveu que Vercingetoacuterige se

rendeu visto que devia ceder agrave fortuna jaacute que ele natildeo conseguira derrotar os romanos

Postero die Vercingetorix concilio conuocato id bellum se suscepisse non

suarum necessitatium sed communis libertatis causa demonstrat et quoniam

sit fortunae cedendum ad utramque rem se illis offerre seu morte sua

Romanis satisfacere seu uiuum tradere uelint Mittuntur de his rebus ad

Caesarem legati

No dia seguinte Vercingetoacuterige convocada uma assembleia demonstra que

ele empreendera esta guerra natildeo por causa das suas necessidades mas por

causa da liberdade comum e visto que se deve ceder agrave fortuna oferece-se

agravequeles para uma e outra coisa quer desejem satisfazer aos romanos com a

sua morte quer entregaacute-lo vivo Acerca destas coisas satildeo enviados

embaixadores a Ceacutesar232

Outro conceito que teve destaque em Ceacutesar foi a clemecircncia (clementia) Ainda

no seacuteculo I aC Roma jaacute enfrentara uma sangrenta guerra civil entre Maacuterio e Sila e

menos de um seacuteculo depois uma outra guerra civil entre Ceacutesar e Pompeu Depois desse

conflito entre esses generais muitos esperavam novas proscriccedilotildees e banhos de sangue

230

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 231

BGall II 22 em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 232

Em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946)

123

Ceacutesar contudo sempre se mostrou publicamente como um general clemente e foi

justamente essa sua caracteriacutestica que contribuiu para a sua ruiacutena Ora essa

caracteriacutestica tambeacutem foi usada habilmente por Ceacutesar em seus escritos Em suas obras

Ceacutesar mostrou justamente sua clemecircncia com os derrotados em contraste com a

crueldade dos seus inimigos conquistando assim a opiniatildeo puacuteblica233

Pereira (1984 p

358) afirma que a clementia eacute um ―termo poliacutetico especi lmente dequ do fin lid des

de propaganda goza de uma aura extraordinaacuteria no tempo das guerras civis e fica

particularmente ligado agrave figura de Ceacutesar a quem o Senado honra com um templo

dedicado agrave Clementia Caesaris ( ) Ceacutesar embora buscasse o poder individual

colocou em praacutetica uma forma de governar original ele buscava mobilizar

mesmo entre seus inimigos as melhores forccedilas e aleacutem disso natildeo exercia

qualquer tipo de censura cultural ou sobre trabalhos intelectuais (CANFORA

2002 p 421) O sucessor de Ceacutesar Otaacutevio natildeo adotaraacute essa praacutetica pelo

contraacuterio ele exerceraacute censur com matildeo de ferro ―( ) que no plano poliacutetico

simul raacute um rest ur ccedilatildeolsquo republic n e no pl no cultur l pr tic raacute um

intervencionismolsquo destin do se torn r modelo p r experiecircnci s sinistr s

(CANFORA 2002 p 421) Como exemplo emblemaacutetico da clemecircncia de Ceacutesar

temos o episoacutedio em que ele confiou a Varratildeo (ex partidaacuterio de Pompeu) a tarefa

de abrir uma biblioteca puacuteblica greco-latina em Roma e de receber a maior

quantidade possiacutevel de obras e colocar esse material agrave disposiccedilatildeo do puacuteblico

Otaacutevio por outro lado ditava ordens precisas ao bibliotecaacuterio Pompeu Macro

especificando quais obras poderiam ser puacuteblicas e quais natildeo (CANFORA 2002

p 423) Ceacutesar buscava a aprovaccedilatildeo do povo para essa sua postura mas seu grande erro

contudo foi ter tido clemecircncia para com seus mais determinados inimigos que o

233

Eacute importante lembrar que a clemecircncia de Ceacutesar se dirigia apenas a seus concidadatildeos seus pares e

iguais mas ele foi extremamente cruel com os povos vencidos como os gauleses Todavia Rambaud

(2011 p 283) questiona a tatildeo famosa clemecircncia cesariana lembrando de vaacuterios exemplos de vinganccedila

praticados pelo general como o episoacutedio em que ele se vingou cruelmente dos piratas que o

sequestraram aleacutem de ter se envolvido em obscuras mortes de seus rivais como Luacutecio Ceacutesar Fausto etc

Por outro lado Veyne (In GIARDINA 1992 p 293 e 294) destaca que em relaccedilatildeo aos gauleses Ceacutesar

soacute foi impiedoso com os baacuterbaros rebeldes que teimavam em desafiar o poder de Roma a fim de dar um

exemplo aos outros possiacuteveis revoltosos como em BGall II 33 em que os romanos arrasaram com os

aduaacuteticos que tinham preparado uma cilada noturna para Ceacutesar Quanto aos neacutervios que tentaram resistir

mas natildeo conseguiram vencer as legiotildees romanas Ceacutesar poupou os vencidos e natildeo saqueou suas aldeias a

fim de mostr r todos os g uleses que ele er misericordioso com os ―infelizes e suplic ntes (BGall II

28) Quanto ao uso da clemecircncia de Ceacutesar para fins propagandiacutesticos e justificatoacuterios para a conquista da

Gaacutelia cf Rambaud (2011 p 272 a 275)

124

assassinaram234

Nesse aspecto e com a sua juventude Otaacutevio tomou uma decisatildeo mais

acertada politicamente se tornando um dos governantes com mais longevo comando

A uirtus tambeacutem eacute um conceito de destaque no De bello Gallico O termo uirtus

estaacute relacionado a uir (homem) e como destaca Pereira (1993 p 407) uir significaria

―ser homem no sentido de ―ser homem direito Virtus comumente traduzida por

virtude signific v ―v lenti ou ―cor gem em princiacutepio em sentido militar e

posteriormente designando tambeacutem a virtude de caraacuteter (PEREIRA 1993 p 407) Pelo

contexto do De bello Gallico o eacutetimo uirtus aparece vaacuterias vezes para designar

momentos de coragem dos romanos e o mais surpreendente designar tambeacutem a

valentia dos gauleses Ceacutesar se preocupou em deixar registrado o elogio agrave uirtus dos

seus proacuteprios soldados um dos fatores decisivos de sua vitoacuteria natildeo soacute na guerra da

Gaacutelia mas tambeacutem na guerra civil Para Conte (1999 p 229) natildeo se pode separar esse

enaltecimento dos soldados da poliacutetica cesariana de inserir homines noui (homens

novos) de origem militar no Senado aleacutem disso Ceacutesar tinha uma preocupaccedilatildeo com a

posteridade ao preservar nomes de centuriotildees e soldados que se distinguiram em atos

de heroiacutesmo235

Quanto ao termo uirtus em si Gruen (2011a p 150) detalha que esse

eacutetimo foi usado 31 vezes para descrever os gauleses 28 vezes para falar dos romanos e

5 vezes para os germanos Constatamos que Ceacutesar usou desse conceito para descrever

os gauleses como valentes e bravos de forma a aumentar ainda mais seu meacuterito (e de

seus soldados) que foram capazes de vencer tatildeo forte inimigo Jaacute no primeiro capiacutetulo

do De bello Gallico Ceacutesar (I 1) assim escreveu sobre os helveacutecios

() Qua de causa Heluetii quoque reliquos Gallos uirtute praecedunt quod

fere cotidianis proeliis cum Germanis contendunt cum aut suis finibus eos

prohibent aut ipsi in eorum finibus bellum gerunt ()

Pelo mesmo motivo os helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em

coragem jaacute que lutam em combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer

quando os afastam de suas fronteiras quer quando levam por si a guerra aos

territoacuterios daqueles

234

Como Konstan (2005 p 337) destaca os contemporacircneos de Ceacutesar da aristocracia percebiam a

clemecircncia cesariana natildeo como virtude mas sim como uma manifestaccedilatildeo de seu poder tiracircnico jaacute que era

um gesto de complacecircncia do superior para com o inferior a aristocracia senatorial se considerava em peacute

de igualdade com Ceacutesar e ficou ressentida de ser tratada por ele como se fosse alvo de uma caridade

condescendente Ciacutecero em carta a Aacutetico (XIV 221) falou que foi justamente a clemecircncia de Ceacutesar que

permitiu o seu assassinato e que embora a clemecircncia fosse um gesto louvaacutevel ela devia ser evitada em

tempos difiacuteceis como o da guerra civil Konstan (2005) aprofunda mais a discussatildeo sobre a clemecircncia

tanto a de Ceacutesar quanto a tratada por Secircneca no De clementia 235

O que justifica o registro de discursos dos personagens anocircnimos ou pouco importantes em Ceacutesar (cf

p 117)

125

Gruen (2011a p 150) afirma que Ceacutesar usou essa denominaccedilatildeo latina para os

gauleses para demonstrar que esses possuiacuteam caracteriacutesticas semelhantes aos romanos

(as mesmas aspiraccedilotildees e qualidades) e por conseguinte para unir as naccedilotildees em um

niacutevel profundo Ceacutesar tambeacutem recorreu a termos latinos para descrever os gauleses de

modo a facilitar a compreensatildeo do seu puacuteblico sobre uma sociedade tatildeo diferente dos

romanos Assim tem um grande destaque na narrativa o episoacutedio de Pisatildeo o aquitano

(BGall IV 12)

At hostes ubi primum nostros equites conspexerunt quorum erat V milium

numerus cum ipsi non amplius octingentos equites haberent quod ii qui

frumentandi causa ierant trans Mosam nondum redierant nihil timentibus

nostris quod legati eorum paulo ante a Caesare discesserant atque is dies

indutiis erat ab his petitus impetu facto celeriter nostros perturbauerunt

rursus his resistentibus consuetudine sua ad pedes desiluerunt subfossis

equis conpluribusque nostris deiectis reliquos in fugam coniecerunt atque ita

perterritos egerunt ut non prius fuga desisterent quam in conspectum

agminis nostri uenissent In eo proelio ex equitibus nostris interficiuntur

quattuor et septuaginta in his uir fortissimus Piso Aquitanus amplissimo

genere natus cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu

nostro appellatus Hic cum fratri intercluso ab hostibus auxilium ferret illum

ex periculo eripuit ipse equo uulnerato deiectus quoad potuit fortissime

restitit cum circumuentus multis uulneribus acceptis cecidisset atque id

frater qui iam proelio excesserat procul animaduertisset incitato equo se

hostibus obtulit atque interfectus est

Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil

(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que

atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em

nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-

se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles

rapidamente nos desordenaram com um ataque Novamente resistindo os

nossos saltaram eles de peacute conforme seu costume matando os cavalos

montados e derrubando em maior nuacutemero os nossos puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute

virem agrave presenccedila de nossa tropa Nesse combate satildeo mortos setenta e quatro

dos nossos cavaleiros entre eles um homem fortiacutessimo Pisatildeo Aquitano

nascido de importantiacutessima famiacutelia cujo avocirc obtivera o comando em sua

cidade e que for ch m do migolsquo por nosso sen do Lev ndo ele uxiacutelio o

irmatildeo cercado por inimigos livrou-o do perigo ele mesmo derrubado de

seu cavalo ferido resistiu muito bravamente enquanto pode rodeado tombou

ao receber vaacuterios ferimentos Notando-o de longe o irmatildeo que jaacute deixara a

batalha esporeou seu cavalo lanccedilou-se contra os inimigos e foi morto

Nesse episoacutedio temos o contexto do ataque empreendido pelos usipetes e

tencteros (n ccedilotildees germacircnic s no trecho cim design d s por ―inimigos) agrave c v l ria

gaulesa de Ceacutesar sendo que esses mesmos povos tinham solicitado uma treacutegua a Ceacutesar

que eles mesmos desrespeitaram Esse trecho dedicado a narrar a accedilatildeo heroica de um

gaulecircs a serviccedilo de Roma eacute significativo Devemos sempre ter em mente que Ceacutesar natildeo

apenas se preocupou em narrar os acontecimentos mas a forma como o fez tambeacutem eacute

126

muito importante tudo nos comentaacuterios foi escrito com propoacutesitos bem especiacuteficos

como autopropaganda e finalidade poliacutetica Assim o relato da morte de Pisatildeo Aquitano

estaacute revestido de significados A traiccedilatildeo por parte dos germanos justifica o posterior

massacre que eles sofrem de Ceacutesar aleacutem disso esse fato valorizava os gauleses que

estavam do lado dos romanos mostrando que eles eram reconhecidos Como Brown

(2014 p 392) destaca nos comentaacuterios eacute comum essas descriccedilotildees de mortes de

indiviacuteduos em atos heroicos em batalhas ndash sobretudo as que foram perdidas por Ceacutesar ndash

como se essas narrativas servissem para compensar a derrota e aliviar o fracasso A

caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo eacute feita com contornos eacutepicos antes de ter seu nome citado ele

foi descrito como uir fortissimus (homem fortiacutessimo) aleacutem disso ele era de famiacutelia

importante (amplissimo genere natus) e seu avocirc fora um proeminente liacuteder de sua

cidade considerado amigo dos romanos e muito provavelmente cidadatildeo romano ele

proacuteprio (cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu nostro

appellatus) Apesar de natildeo diretamente especificado pode-se considerar Pisatildeo piedoso

(pius) pelo fato de ele ter se sacrificado para salvar o irmatildeo ato que o proacuteprio irmatildeo

retribui ao se sacrificar tambeacutem por Pisatildeo (BROWN 2014 p 393)236

Em uma anaacutelise

ingecircnua pode-se acreditar que Ceacutesar narrou esse episoacutedio porque genuinamente

admirou a atitude de Pisatildeo mas como Brown pontua (2014 p 393) Ceacutesar

provavelmente quis dar contornos nobres e eacutepicos a um episoacutedio bastante controverso o

do massacre dos germanos A morte do nobre e valoroso Pisatildeo tambeacutem acentua a

proacutepria falta de caraacuteter e perfiacutedia dos usipetes e tencteros que desrespeitaram a treacutegua e

atacaram a cavalaria gaulesa (LEE 1969 apud BROWN 2014 p 395) Aleacutem disso

percebe-se que os gauleses muito corajosos todavia entravam em pacircnico quando

percebiam que a luta estava perdida nas palavras de Ceacutesar os germanos aterrorizaram

os gauleses reliquos in fugam coniecerunt atque ita perterritos egerunt ut non prius

fuga desisterent quam in conspectum agminis nostri uenissent (puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute virem agrave

presenccedila de nossa tropa)237

O ato de coragem de Pisatildeo tambeacutem redime a falta de

236

A pietas um dos valores romanos consistia em um sentimento de devoccedilatildeo e lealdade para com a

famiacutelia e em sentido mais amplo para com o Estado (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Quanto a outros

episoacutedios de narrativas eacutepicas envolvendo a morte de irmatildeos em batalhas cf Brown (2014 p 394) 237

A imagem do gaulecircs corajoso a princiacutepio e depois se acovardando eacute um clichecirc recorrente Ceacutesar

mencionou sobre a falta de coragem dos gauleses em De bello Gallico III 19 Nam ut ad bella

suscipienda Gallorum alacer ac promptus est animus sic mollis ac minime resistens ad calamitates

ferendas mens eorum est (De fato assim como o acircnimo dos gauleses eacute impetuoso e pronto para

empreender guerras tambeacutem o espiacuterito deles eacute fraco e muito pouco resistente para suportar os desastres)

em traduccedilatildeo nossa Esse tema aparece tambeacutem em Poliacutebio (Hist II 356)

127

coragem dos gauleses frente a uma luta perdida e ainda acentua o papel da cooperaccedilatildeo

gaulesa em lutar com os romanos contra a barbaacuterie germana com seu nome romano e

seus valores de uirtus e pietas Pisatildeo se aproximava dos romanos e era colocado em um

poacutelo diferente dos baacuterbaros

Ainda sobre essa descriccedilatildeo nas palavras de Brown (2014 p 396)

It is striking however and in my view deliberate that Caesar devotes the

first battle obituary in the Gallic War to a warrior of Gallic origin whose

Gallo-Roman identity resonates with a context that anticipates in several

ways the ethnographic comparison of Gauls and Germans in Book Six238

De fato percebe-se jaacute nesse trecho que os gauleses estavam mais abertos ao

contato com os romanos enquanto que os belgas germanos eram mais ferozes e natildeo

seriam abarcados pela romanizaccedilatildeo239

A tendecircncia comum dos germanos agrave perfiacutedia natildeo

era meramente um sinal de criminalidade mas tambeacutem era um sinal de sua total

separaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo humana (RIGGSBY 2006 p 61) Ao mostrar esse feito

heroico de um membro importante da sociedade aquitana Ceacutesar tambeacutem demonstrou

que agrave elite conquistada estava aberta a via para o estabelecimento de um muacutetuo

relacionamento com Roma possibilitando trocas comerciais e culturais240

Como

Canfora (2002 p 150) lembra

Haacute em Ceacutesar o acircnimo do grande colonizador impiedade paternalismo

astuacutecia mas tambeacutem grande disposiccedilatildeo para compreender e estudar os

sujeitos-viacutetimas de sua accedilatildeo Natildeo eacute puro acaso por exemplo que o grande

excursus sobre os costumes e a religiatildeo dos celtas e dos germanos ndash que

ocupa grande parte do livro sexto ndash figure exatamente aiacute como a explicar

atraveacutes da anaacutelise etnograacutefica e socioloacutegica as razotildees da derrota daqueles

povos no momento em que se punha a caminho sua grande e infausta

rebeliatildeo Como grande colonizador estudou seriamente os povos com os

quais iria ter de lidar e coabitar e sobre os quais tatildeo longamente iria governar

238

―Eacute marcante e contudo a meu ver eacute deliberado que Ceacutesar tenha dedicado o primeiro obituaacuterio de uma

batalha na Guerra da Gaacutelia a um soldado de origem gaulesa cuja identidade galo-romana ressoa em um

contexto que antecipa de vaacuterias formas a comparaccedilatildeo etnograacutefica entre gauleses e germanos no livro

sexto 239

Cf o trecho de De bello Gallico VI 24 nas paacuteginas 128 e tambeacutem BGall I 1 p 124 240

Rambaud (2011 p 275) destaca tambeacutem que como Ceacutesar ocupou o proconsulado da Gaacutelia

Narbonense depois de Fonteio ele tinha certa preocupaccedilatildeo em conseguir o apoio dos provincianos dessa

forma o general louvou a coragem dos gauleses (na figura de Pisatildeo) e tambeacutem no fato de Ceacutesar justificar

a guerra dizendo que os eacuteduos lhe pediram ajuda (BGall I 30) dentre outros exemplos

128

24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico

Quanto ao que Ceacutesar escreveu sobre gauleses e germanos a imagem que o

general romano criou sobre esses povos foi bastante complexa Um dos motivos para os

gregos (e depois os romanos) considerarem o baacuterbaro como sendo inferior se devia agrave

sua inferioridade cultural como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho241

Dessa

maneira o baacuterbaro ndash regido natildeo pelos valores relacionados agrave humanitas mas sim agrave

ferocitas ndash era considerado inferior aos romanos mas ao baacuterbaro o acesso agrave humanitas

era possiacutevel242

Aleacutem disso havia entre os poacutelos civilizaccedilatildeo-barbaacuterie degraus

intermediaacuterios e o civilizado tambeacutem natildeo estava imune de se tornar baacuterbaro assim

como o baacuterbaro poderia se civilizar Assim temos em Ceacutesar (BGall VI 24)

Ac fuit antea tempus cum Germanos Galli uirtute superarent ultro bella

inferrent propter hominum multitudinem agrique inopiam trans Rhenum

colonias mitterent Itaque ea quae fertilissima Germaniae sunt loca circum

Hercyniam siluam quam Eratostheni et quibusdam Graecis fama notam esse

uideo quam illi Orcyniam appellant Volcae Tectosages occupauerunt atque

ibi consederunt quae gens ad hoc tempus his sedibus sese continet

summamque habet iustitiae et bellicae laudis opinionem Nunc quod in

eadem inopia egestate patientiaque Germani permanent eodem uictu et

cultu corporis utuntur Gallis autem prouinciarum propinquitas et

transmarinarum rerum notitia multa ad copiam atque usus largitur paulatim

adsuefacti superari multisque uicti proeliis ne se quidem ipsi cum illis uirtute

comparant

Houve antes um tempo em que os gauleses superavam os germanos em

virtude levavam-lhes por si as guerras espontaneamente e por causa da

multidatildeo de homens e da falta de terra enviavam colocircnias ao outro lado do

Reno Assim os volcos tectoacutesagos ocuparam aqueles lugares que satildeo os mais

feacuterteis da Germacircnia ao redor da floresta Herciacutenia ndash a qual vejo que eacute

conhecida de Eratoacutestenes e de alguns gregos pela fama eles que a chamavam

de ―Orciacuteni e iacute eles se est belecer m Esses povos ateacute nosso tempo

mantecircm-se nessas paragens e detecircm a mais elevada reputaccedilatildeo de justiccedila e de

gloacuteria beacutelica Atualmente como os germanos se conservam na mesma

pobreza privaccedilatildeo e sofrimento eles fazem uso dos mesmos viacuteveres e dos

mesmos trajes por outro lado a proximidade das proviacutencias e o

conhecimento dos itens de aleacutem mar propiciam aos gauleses muitos meios

para a fartura e a comodidade e aos poucos acostumados a serem superados e

vencidos em muitos combates sequer se comparam eles proacuteprios aos

germanos em bravura

Se por um lado ao baacuterbaro fosse possiacutevel o acesso agrave civilizaccedilatildeo natildeo deixa de ser

curioso notar que para Ceacutesar esse mesmo contato com a civilizaccedilatildeo enfraquecia o

baacuterbaro como ele deixou claro no trecho acima ao dizer que os gauleses perderam sua

forccedila e bravura por causa da proximidade com Roma de fato foi-se a eacutepoca em que os

241

Cf p 30-32 242

Cf p 40 e ss

129

gauleses excediam os germanos em virtude Nesse contexto uirtus designa algo aleacutem da

mera coragem em batalha Ceacutesar usou o termo para se referir a uma ferocidade baacuterbara

primitiva O comeacutercio e fluxo de mercadorias foram ferramentas importantes no

processo de romanizaccedilatildeo e de submissatildeo do gaulecircs como o proacuteprio Ceacutesar mencionou

no De bello Gallico ao dizer que os gauleses se civilizaram pelo contato com os

romanos243

O traccedilo caracteriacutestico da ferocidade do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era

explicado por questotildees geograacuteficas244

Sobre a questatildeo da geografia como sendo

determinante na questatildeo da barbaacuterie retomamos o que Ceacutesar escreveu (BGall I 1)

Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam

Aquitani tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur Hi

omnes lingua intitutis legibus inter se differunt Gallos ab Aquitanis

Garumna flumen a Belgis Matrona et Sequana diuidit Horum omnium

fortissimi sunt Belgae propterea quod a cultu atque humanitate prouinciae

longissime absunt minimeque ad eos mercatores saepe commeant atque ea

quae ad effeminandos animos pertinent inportant proximique sunt Germanis

qui trans Rhenum incolunt quibuscum continenter bellum gerunt

Toda a Gaacutelia eacute dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os

aquitanos a outra e a terceira habitam aqueles que em sua proacutepria liacutengua satildeo

ch m dos ―celt s n noss ―g uleses Todos esses diferem entre si pel

liacutengua pelos costumes e pelas leis O rio Garona separa os gauleses dos

aquitanos dos belgas os rios Marne e Sena De todos esses os mais

corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da civilizaccedilatildeo e

urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e importam

aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque estatildeo

proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com esses

travam guerra constantemente

No trecho cim Ceacutes r escreveu ―tod Gaacuteli eacute dividid em trecircs p rtes

(Gallia est omnis diuisa in partes tres) ou seja embora Ceacutesar tenha feito uma divisatildeo

por aacutereas e naccedilotildees a Gaacutelia foi retratada como um todo ndash como se observa pelo vocaacutebulo

omnis Nota-se que o rio Reno tambeacutem servia para delimitar a Gaacutelia e separar gauleses

de germanos245

Tratar a Gaacutelia como unidade era importante para Ceacutesar ele queria

mostrar que ao contraacuterio dos seus antecessores ele iria conquistar todo esse territoacuterio

243

Jaacute eacute possiacutevel notar mudanccedila na sociedade gaulesa do periacuteodo de Poliacutebio ateacute Ceacutesar Como escreveu

Poliacutebio os gauleses habitavam em aldeias tinham um modo de vida bastante simples praticavam apenas

a agricultura eou a guerra e eram nocircmades (cf nota 87 p 48) nesse mesmo trecho de Poliacutebio tambeacutem eacute

possiacutevel perceber que os gauleses natildeo possuiacuteam artes ou ciecircncias e tambeacutem natildeo haacute menccedilatildeo aos druidas

Jaacute em Ceacutesar como pudemos ver os gauleses passaram a ter contato com os romanos acesso a bens e

mercadorias mais refinados e deixaram de ser nocircmades 244

Abordamos essa questatildeo bem como a teoria hipocraacutetica de que a geografia explicaria o temperamento

e constituiccedilatildeo fiacutesica dos indiviacuteduos na p 32 e 33 245

Cf a fala de Diviciacuteaco (I 31) nas paacuteginas 103-105 deste trabalho

130

de forma definitiva o que ressaltava sua importacircncia para seu puacuteblico em Roma de

fato a urbe concedia a gloacuteria do triunfo aos generais que natildeo apenas venceram batalhas

importantes mas que tambeacutem subjugaram os inimigos completamente (RIGGSBY

2006 p 68)246

Outro fato que ajuda a corroborar essa teoria foi que Ceacutesar ao inveacutes de

ter mantido a separaccedilatildeo entre as naccedilotildees gaulesas se assim o quisesse na verdade

celebrou a conquista da Gaacutelia em um uacutenico triunfo no ano de 46 aC (RIGGSBY

2006 p 144)

Aleacutem disso Ceacutesar deixou claro que os belgas soacute eram mais fortes porque

estavam distantes da proviacutencia romana (fator civilizatoacuterio e de certa forma causador de

enfraquecimento de um povo) e proacuteximos dos germanos com os quais lutavam

frequentemente A humanitas era fator de enfraquecimento e no trecho acima Ceacutesar

escreveu ―ad effeminandos animos ndash liter lmente tr duccedilatildeo seri ―p r femin r os

acircnimos Or o uso desse termo effeminandos natildeo eacute mero acaso e forma um paralelo

diametralmente oposto ao conceito de uirtus ligado em sua essecircncia ao termo uir

(homem) e que depois passou a significar dentre outras ideias a virtude247

Dessa

maneira tanto a proximidade da proviacutencia quanto a proacutepria humanitas facilitavam a

submissatildeo dos baacuterbaros ao poderio de Roma248

Por conseguinte a proximidade com os germanos aumentava a uirtus jaacute a

proximidade com a proviacutencia romana diminuiacutea a uirtus Por esse raciociacutenio podemos

pensar que haacute uma gradaccedilatildeo da uirtus sendo os germanos o poacutelo mais forte e feroz e os

romanos o mais fraco todavia no relato de Ceacutesar essa gradaccedilatildeo esconde um truque

embora aparentemente tivessem uma uirtus menos elevada os romanos conseguiram

vencer natildeo soacute os gauleses mas tambeacutem os germanos (RIGGSBY 2006 p 84) Ainda

sobre a forccedila dos belgas Ceacutesar foi informado de que eles eram de origem germacircnica

Assim temos no De bello Gallico II 4

Cum ab his quaereret quae ciuitates quantaeque in armis essent et quid in

bello possent sic reperiebat plerosque Belgas esse ortos ab Germanis

246

O triunfo consistia na entrada solene do general vitorioso e de suas tropas em Roma com as maiores

gloacuterias militares O triunfo era autorizado pelo Senado e as ruas e edifiacutecios deviam ser ornados com toda

a pompa O cortejo se organizava no Campo de Marte e o desfile seguia ateacute o templo de Juacutepiter

Capitolino e era acompanhado por todos os senadores magistrados e cidadatildeos importantes Para mais

detalhes sobre como era o triunfo cf Canfora (2002 p 494) 247

Jaacute falamos mais detalhadamente do termo uirtus na p 124 e ss 248

Seguindo esse paradigma entre distacircncia da proviacutencia e niacutevel de barbaacuteriecivilidade eacute possiacutevel

perceber como os eacuteduos e os aquitanos ateacute pela proximidade desses territoacuterios com a urbe eram mais

abertos a Roma e considerados aliados (cf o trecho do BGall I 31 citado entre as paacuteginas 103-105 deste

trabalho)

131

Rhenumque antiquitus traductos propter loci fertilitatem ibi consedisse

Gallosque qui ea loca incolerent expulisse solosque esse qui patrum

nostrorum memoria omni Gallia uexata Teutonos Cimbrosque intra fines

suos ingredi prohibuerint qua ex re fieri uti earum rerum memoria magnam

sibi auctoritatem magnosque spiritus in re militari sumerent

Como Ceacutesar lhes perguntasse quais comunidades e quantas pegaram em

armas bem como seu poder na guerra descobria isto a maior parte dos

belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo atravessaram o Reno

por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram tendo expulsado os

Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos que pela lembranccedila

dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram os teutotildees e os

cimbros de adentrar em seu territoacuterio disso resultava que pela lembranccedila de

tais feitos atribuiacutessem para si grande autoridade e grande confianccedila na arte

militar

Nota-se tambeacutem no trecho acima que Ceacutesar mencionou a invasatildeo dos cimbros e

teutotildees proxim ndo ssim seus proacuteprios feitos os de Maacuterio que foi seu ―p drinho

poliacutetico249

Mais agrave frente no De bello Gallico Ceacutesar tambeacutem escreveu sobre a proacutepria

discrepacircncia entre os belgas tidos como os mais corajosos dos gauleses e dentro do

grupo dos belgas a naccedilatildeo dos neacutervios era a mais brava ndash designada no trecho abaixo

por homines feros (homens ferozes) e magnaeque uirtutis (de grande virtude) (BGall

II15)

() quorum de natura moribusque Caesar cum quaereret sic reperiebat

Nullum aditum esse ad eos mercatoribus nihil pati uini reliquarumque

rerum ad luxuriam pertinentium inferri quod iis rebus relanguescere animos

eorum et remitti uirtutem existimarent esse homines feros magnaeque

uirtutis increpitare atque incusare reliquos Belgas qui se populo Romano

dedidissent patriamque uirtutem proiecissent confirmare sese neque legatos

missuros neque ullam condicionem pacis accepturos

() Como Ceacutesar indagasse a respeito da natureza e dos costumes deles (os

neacutervios) descobriu isto que os mercadores natildeo tinham acesso algum ateacute eles

natildeo permitiam que se importasse nada de vinho e dos demais itens de luxo

porque consideravam com tais coisas que se enfraqueciam seus espiacuteritos e

minguava seu valor eram homens ferozes e de grande virtude censuravam e

acusavam os belgas restantes que se tinham rendido ao povo romano e

abandonado os valores paacutetrios e afirmavam que natildeo haveriam de enviar

embaixadores nem de aceitar condiccedilatildeo de paz alguma (grifos nossos)

O vinho ndash fruto da cultura grega e disseminada pelos romanos ndash sempre serviu

como siacutembolo maacuteximo de civilizaccedilatildeo assim o fato de os belgas rejeitarem o vinho (e

outros itens luxuosos) significava negar a proacutepria civilizaccedilatildeo e manter intacto o seu

valor (uirtus)250

Outro toacutepico que destacamos e que apareceu nos dois trechos acima foi

249

Jaacute mencionamos a vitoacuteria obtida por Maacuterio contra cimbros e teutotildees na p 102-103 deste trabalho 250

Riggsby (2006 p 15 a 19) aprofunda essa discussatildeo da questatildeo do vinho entre os gauleses bem como

o fato de algumas naccedilotildees celtas tomarem vinho puro (tambeacutem considerado ato transgressor da civilidade)

132

o papel desempenhado pelos mercadores junto agraves naccedilotildees ditas baacuterbaras251

Como Andreacute

(2001 p 5) pontua os romanos recorreram aos mercadores em maior ou menor

medida para obter informaccedilotildees sobre as terras desconhecidas da Gaacutelia sendo essa uma

contribuiccedilatildeo valiosa com esses relatos era possiacutevel aos romanos compreender em que

grau de civilizaccedilatildeo (ou barbaacuterie) se encontravam as naccedilotildees estrangeiras de acordo com

a receptividade delas ao comeacutercio aleacutem disso se os gauleses se utilizavam dos

mercadores para conhecer as novidades da proviacutencia os romanos obtinham deles os

detalhes da natureza e costumes dos gauleses Todavia os gauleses muitas vezes

acreditavam em boatos dos mercadores e viajantes como Ceacutesar registrou (BGall IV

5)

His de rebus Caesar certior factus et infirmitatem Gallorum ueritus quod

sunt in consiliis capiendis mobiles et nouis plerumque rebus student nihil his

committendum existimauit Est enim hoc Gallicae consuetudinis uti et

uiatores etiam inuitos consistere cogant et quid quisque eorum de quaque re

audierit aut cognouerit quaerant et mercatores in oppidis uulgus circumsistat

quibusque ex regionibus ueniant quasque ibi res cognouerint pronuntiare

cogat his rebus atque auditionibus permoti de summis saepe rebus consilia

ieunt quorum eos in uestigio paenitere necesse est cum incertis rumoribus

seruiant et plerique ad uoluntatem eorum ficta respondeant

Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses

que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees

considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume

gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar

saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas

cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o

que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os

gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute

forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior

parte mente ao responder segundo a vontade deles

No trecho acima Ceacutesar recorreu ao famoso estereoacutetipo do gaulecircs leviano que

por vezes era feito de tolo Todavia agraves vezes os gauleses baseados em rumores

tomavam decisotildees temeraacuterias e entravam facilmente em conflitos e batalhas Sobre esse

traccedilo destacamos a seguinte passagem (BGall VII 42)

Dum haec ad Gergouiam geruntur Haedui primis nuntiis ab Litauicco

acceptis nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt Impellit alios

auaritia alios iracundia et temeritas quae maxime illi hominum generi est

251

O papel do comeacutercio foi grande para alteraccedilotildees culturais e poliacuteticas na Gaacutelia De acordo com Riggsby

(2006 p 17) cerca de um seacuteculo antes da conquista romana a Gaacutelia viu um movimento de reorganizaccedilatildeo

poliacutetica que abandonava os chefes e liacutederes das tribos adotando um sistema baseado em cidades essa

mudanccedila foi precipitada dentre outras coisas pelas trocas comerciais no Mediterracircneo (inclusive o

vinho)

133

innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta Bona ciuium

romanorum diripiunt caedes faciunt in seruitutem abstrahunt Adiuuat rem

proclinatam Conuictolitauis plebemque ad furorem inpellit ut facinore

admisso ad sanitatem reuerti pudeat M Aristium tribunum militum iter ad

legionem facientem fide data ex oppido Cauillono educunt idem facere

cogunt eos qui negotiandi causa ibi constiterant Hos continuo in itinere

adorti omnibus impedimentis exuunt repugnantes diem noctemque obsident

multis utrimque interfectis maiorem multitudinem ad arma concitant

Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido

os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para

verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que

eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram

qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos

romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a

fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-

se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio

tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias

obrigam a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar

Logo os atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam

dia e noite os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam

maior multidatildeo agraves armas (grifos nossos) 252

Os eacuteduos logo que receber m s notiacuteci s natildeo ―deixam passar o tempo para

verific r os f tos (nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt) e movidos por

cobiccedila ira e temeridade jaacute tomam um rumor por algo confirmado Nota-se que Ceacutesar

deixou claro que esse comportamento era parte da natureza dos gauleses ao escrever

que ― ir e a temeridade que eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo

que consider m qu lquer rumor como lgo confirm do (iracundia et temeritas quae

maxime illi hominum generi est innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta)

por ser algo inerente agrave sua essecircncia essa tendecircncia a acreditar em rumores era difiacutecil de

ser combatida pelos gauleses253

Outro clichecirc mencionado por Ceacutesar eacute o fato de os

gauleses natildeo serem confiaacuteveis jaacute que desrespeitaram o tribuno Marco Ariacutestio que foi

expulso de Cabilono aleacutem dos gauleses serem desleais jaacute que atacaram os romanos

mesmo tendo oferecido garantias (fide data)254

De acordo com Riggsby (2006 p 62) a

proacutepria audiecircncia de Ceacutesar esperava esses estereoacutetipos dos inimigos de Roma sendo

252

A imagem do gaulecircs natildeo confiaacutevel natildeo eacute novidade em Ceacutesar de fato jaacute apareceu em Poliacutebio (cf nota

89 p 49) 253

Nota-se essa dificuldade na proacutepria narrativa do De bello Gallico afinal Ceacutesar disse que os gauleses

tentaram coibir a crenccedila em rumores no livro VI 20 e aqui essa descriccedilatildeo estereotipada de que os

gauleses eram temeraacuterios estaacute no livro VII 254

Fides tambeacutem era um dos conceitos morais dos romanos no periacuteodo republicano significava garantia

(depois passou a ser identificada tambeacutem como confianccedila) A fides era a feacute e lealdade ao juramento e

devia ser respeitada e honrada por ambas as partes (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Percebemos que Ceacutesar

utilizou o termo fides (fide data ou seja dada a garantia) para ressaltar a deslealdade dos gauleses em natildeo

manter a fides concedida

134

que esses mesmos clichecircs de certa forma ajudavam os romanos a divisar os povos

estrangeiros

Por viverem nas fronteiras do mundo conhecido os baacuterbaros representavam o

caos que poderia derrubar o impeacuterio e colocar um fim agrave identidade cultural dos

romanos Ceacutesar reconheceu esse perigo os germ nos m is dist ntes do ―centro que os

gauleses e porque enfrentavam dificuldades vaacuterias (como guerras frequentes e clima

hostil) eram considerados ainda mais baacuterbaros Ceacutesar assim disse (BGall I 33)

His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit pollicitusque

est sibi eam rem curae futuram magnam se habere spem et beneficio suo et

auctoritate adductum Ariouistum finem iniuriis facturum Hac oratione

habita concilium dimisit Et secundum ea multae res eum hortabantur quare

sibi eam rem cogitandam et suscipiendam putaret in primis quod Haeduos

fratres consanguineosque saepe numero a senatu appellatos in seruitute

atque in dicione uidebat Germanorum teneri eorumque obsides esse apud

Ariouistum ac Sequanos intellegebat quod in tanto imperio populi Romani

turpissimum sibi et rei publicae esse arbitrabatur Paulatim autem Germanos

consuescere Rhenum transire et in Galliam magnam eorum multitudinem

uenire populo Romano periculosum uidebat neque sibi homines feros ac

barbaros temperaturos existimabat quin cum omnem Galliam occupauissent

ut ante Cimbri Teutonique fecissent in prouinciam exirent atque inde in

Italiam contenderent praesertim cum Sequanos a prouincia nostra Rhodanus

diuideret quibus rebus quam maturrime occurrendum putabat Ipse autem

Ariouistus tantos sibi spiritus tantam adrogantiam sumpserat ut ferendus

non uideretur

Tendo conhecido essas coisas Ceacutesar fortaleceu com palavras os acircnimos dos

g uleses e prometeu que esse ssunto h veri de ser cuid do por si ―tinh

grande esperanccedila de que movido tanto por seus benefiacutecios quanto por sua

autoridade Ariovisto cessaria os busos Tendo proferido t l discurso

despediu o conselho Em conformidade muitas outras coisas o exortavam a

considerar por qual razatildeo esse assunto devia ser examinado e cuidado por si

Sobretudo porque via os eacuteduos ndash miuacutede ch m dos pelo sen do irmatildeos e

cons guiacuteneoslsquo ndash serem mantidos sob a servidatildeo e o controle dos germanos e

ele sabia que os refeacutens deles estavam em poder de Ariovisto e dos seacutequanos

o que considerava bastante vergonhoso para si e para a Repuacuteblica dada a

grandeza do domiacutenio do povo romano Ele via por outro lado que era

perigoso para o povo romano que os germanos aos poucos se acostumassem a

atravessar o Reno e uma grande multidatildeo deles viesse agrave Gaacutelia Pensava

consigo que tais homens ferozes e baacuterbaros natildeo haveriam de evitar tendo

ocupado a Gaacutelia inteira como antes fizeram os cimbros e os teutotildees que

partissem para a proviacutencia e de laacute marchassem contra a Itaacutelia sobretudo

porque apenas o Roacutedano separava os seacutequanos de nossa proviacutencia Ceacutesar

considerava que devia resolver esse inconveniente com a maior presteza Por

outro lado o proacuteprio Ariovisto se inflara de tamanha soberba e tamanha

arrogacircncia que parecia natildeo dever ser suportado (grifo nosso)

Tambeacutem destacamos acima o trecho que Ceacutesar escreveu sobre os refeacutens em

poder de Ariovisto e que Ceacutesar devia resolver o impasse rapidamente pois era algo

―b st nte vergonhoso p r si e p r Repuacuteblic d d gr ndez do domiacutenio do povo

rom no Eacute possiacutevel perceber como Ceacutes r se colocou como o instrumento do Est do

135

romano para intervir na Gaacutelia e como tanto a sua honra pessoal quanto a honra de

Roma estavam em risco Aleacutem disso ele justificou sua accedilatildeo alegando que foram os

gauleses que lhe procuraram pedindo proteccedilatildeo255

Destacamos acima o fato de Ceacutesar ter

se referido aos germanos como homens ferozes e baacuterbaros (homines feros ac barbaros)

Riggsby (2006 p 151) ressalta que Ceacutesar usou o termo baacuterbaro de duas formas

diferentes ora negativa e ora neutra Nesse trecho acima destacado percebemos que

Ceacutesar se referiu aos germanos de modo negativo e ateacute mesmo pejorativo acentuando

seu caraacuteter perigoso256

Qu nto agrave form neutr do uso do termo ―baacuterb ro esse

vocaacutebulo poderia ser substituiacutedo por um mais geneacuterico ndash com o inimigo ndash sem prejuiacutezo

do sentido (RIGGSBY 2006 p 151)257

Em sua obra Ceacutesar tambeacutem reconheceu as qualidades e a capacidade dos

gauleses em combate como no trecho do De bello Gallico VII 22 que jaacute citamos nas

paacuteginas 22 e 23 no qual Ceacutesar elogiou a grande h bilid de dos g uleses em ―imit r e

pr tic r s invenccedilotildees lhei s leacutem de rech ccedil r o v nccedilo dos rom nos 258

Evidentemente que Ceacutesar ressaltou a habilidade guerreira dos gauleses e tambeacutem a

grande uirtus dos germanos como meio de reforccedilar seu proacuteprio sucesso militar e como

Riggsby (2006 p 83) destaca essa habilidade de certa forma aumentava o perigo que

os povos ditos baacuterbaros representavam para os romanos Aleacutem disso ao descrever a

grande forccedila combativa dos gauleses e germanos Ceacutesar tambeacutem de certa forma

justificava as derrotas sofridas por ele ou seus lugares-tenentes259

Apesar das grandes

dificuldades da conquista da Gaacutelia e da destreza dos povos que habitavam essa regiatildeo

Ceacutesar foi mais engenhoso e conseguiu submetecirc-la ao domiacutenio romano

Contudo Ceacutesar foi aleacutem de meras descriccedilotildees de batalhas em seu relato pois se

preocupou natildeo soacute em narrar suas vitoacuterias mas tambeacutem em fazer um registro dos

costumes e cultura de gauleses e germanos dedicando a eles uma consideraacutevel

255

Nota-se que os mesmos eacuteduos desse trecho ch m dos de ―irmatildeos e cons guiacuteneos pelo sen do

romano no livro VII atacam os romanos baseados em boatos (cf BGall I 33 na p 134 e as notas 252

e 253) essa seria mais uma construccedilatildeo retoacuterica de Ceacutesar que ressalta o fato dos eacuteduos (e dos gauleses em

geral) terem dificuldades de combater essa tendecircncia de tomar decisotildees importantes baseadas em

rumores pode-se pensar que civilizar um baacuterbaro era um processo lento e por vezes difiacutecil 256

Veja-se tambeacutem o modo como Ceacutesar descreveu os germanos e Ariovisto no discurso de Diviciacuteaco

entre as paacuteginas 104-105 257

Riggsby (2006 p 151) detalha mais essa questatildeo do uso do termo baacuterbaro em Ceacutesar inclusive com

uma tabela com todas as passagens que esse eacutetimo aparece no De bello Gallico seja de forma pejorativa

ou neutra Percebe-se tambeacutem que o termo latino barbarus (ao contraacuterio do grego) designava mais um

estado de comportamento do que uma categoria eacutetnica daiacute o fato de um gaulecircs (Diviciacuteaco) se referir a um

germano (Ariovisto) como baacuterbaro (RIGGSBY 2006 p 215) 258

Sobre o avanccedilo tecnoloacutegico dos gauleses especialmente depois do contato direto com os romanos cf

c piacutetulo 3 ―Technology virtue victory de Riggsby (2006 p 73 105) 259

Como o proacuteprio episoacutedio que resultou na morte de Pisatildeo Aquitano descrito nas paacuteginas 125 e ss

136

passagem etnograacutefica no livro VI A esse respeito afirma Gruen (2011a p 150)

―C es rlsquos interest in the G uls goes beyond depiction of the foe or sh ping the Otherlsquo

And the ethnography at best takes second place Caesar calls attention to contexts and

characteristics whereby the societies shed light e ch on the other 260

Assim Ceacutesar

escreveu (BGall VI 11)

Quoniam ad hunc locum peruentum est non alienum esse uidetur de Galliae

Germaniaeque moribus et quo differant hae nationes inter sese proponere In

Gallia non solum in omnibus ciuitatibus atque in omnibus pagis partibusque

sed paene etiam in singulis domibus factiones sunt earumque factionum

principes sunt qui summam auctoritatem eorum iudicio habere existimantur

quorum ad arbitrium iudiciumque summa omnium rerum consiliorumque

redeat Idque eius rei causa antiquitus institutum uidetur ne quis ex plebe

contra potentiorem auxilii egeret suos enim quisque opprimi et circumueniri

non patitur neque aliter si faciat ullam inter suos habet auctoritatem Haec

eadem ratio est in summa totius Galliae namque omnes ciuitates in partes

diuisae sunt duas

Jaacute que chegamos a este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os

costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e expor em que estas naccedilotildees diferem entre

si Na Gaacutelia natildeo soacute em todas as comunidades em todas as aldeias e em todas

as regiotildees mas tambeacutem em quase todas as casas existem dois partidos e os

liacutederes desses partidos satildeo aqueles que satildeo considerados pelo juiacutezo alheio

donos da maior autoridade a cujo arbiacutetrio e juiacutezo se atribui o controle de

todos os assuntos e deliberaccedilotildees Isso parece ter sido instituiacutedo haacute muito

tempo por esta razatildeo para que ningueacutem da plebe carecesse de auxiacutelio contra

um homem mais poderoso na verdade liacuteder algum admite que os seus sejam

oprimidos e atacados nem caso aja de outra maneira tem qualquer

autoridade entre os seus Essa mesma disposiccedilatildeo existe no governo da Gaacutelia

inteira e na verdade todas as comunidades satildeo divididas entre duas facccedilotildees

Como Andreacute (2001 p 5) lembra os relatos dos membros do Estado-maior de

Ceacutesar eram bem sucintos e descreviam apenas acontecimentos relacionados agraves

campanhas militares na Gaacutelia ateacute mesmo por serem extremamente resumidos de forma

a informar o senado romano do que acontecia Foi o proacuteprio Ceacutesar que se encarregou da

composiccedilatildeo das passagens de cunho etnograacutefico A esse respeito Momigliano (1991 p

68) afirma que Ceacutesar buscou essas informaccedilotildees etnograacuteficas sobretudo em suas fontes ndash

a saber Posidocircnio via Diodoro Momigliano (1991 p 69 e 70) afirma

Como Ceacutesar escreveu a sua etnografia perto do final da guerra estava em

condiccedilotildees de combinar as proacuteprias observaccedilotildees com o que encontrou nas suas

fontes Eacute inuacutetil qualquer tentativa de separar o antigo do novo Mas em linhas

gerais a sua imagem da sociedade celta coincide com a de Posidocircnio ()

260

―O interesse de Ceacutes r nos g uleses v i leacutem d represent ccedilatildeo do inimigo ou model gem do outrolsquo

E a etnografia no miacutenimo ocupa o segundo lugar Ceacutesar chama atenccedilatildeo para contextos e caracteriacutesticas

pelas quais as sociedades ajudam a explicar uma agrave outr

137

Ceacutesar encontrou nele natildeo soacute preciosas informaccedilotildees efetivas sobre lugares e

instituiccedilotildees mas uma animadora anaacutelise da fraqueza da sociedade celta

De toda forma como lembra Canfora (2002 p 131) Ceacutesar fez uso de

conhecimentos etnograacuteficos atualizados de sua eacutepoca e ele mesmo contribuiu em certa

medida para aumentar esses conhecimentos associando ciecircncia e imperialismo Ceacutesar

ateacute pelo longo contato que teve com os gauleses com seus liacutederes e legados aleacutem de

estar no proacuteprio campo de batalha durante toda a guerra da Gaacutelia teve um maior

entendimento da sociedade celta do que os etnoacutegrafos antecessores a ele que

rapidamente passaram por ali evidentemente natildeo eacute possiacutevel saber com certeza ateacute que

ponto o relato de Ceacutesar foi fiel ao que ele viu (e ao que aconteceu) na Gaacutelia mas como

destaca Gruen (2011a p 148) atraveacutes do De bello Gallico podemos compreender um

pouco a mentalidade do general e entender o sentido do retrato que ele buscou fazer da

campanha gaulesa de acordo com seu puacuteblico-alvo261

Evidentemente como Rambaud

destaca (2011 p 324 e 325) Ceacutesar escreveu esse longo trecho etnograacutefico

simplificando bastante ao falar dos gauleses e suas vaacuterias naccedilotildees como se fossem todas

dos mesmos costumes e haacutebitos Ainda segundo Rambaud (2011 p 328) essa

descriccedilatildeo da sociedade gaulesa no livro VI se referia agraves naccedilotildees dos eacuteduos e dos

seacutequanos Lembramos que Ceacutesar fez isso pois queria que a Gaacutelia fosse vista como uma

sociedade uacutenica essa repeticcedilatildeo sutil mais uma vez ajudava a gravar na cabeccedila do leitor

esse conceito de unidade262

Sobre os gauleses Ceacutesar descreveu sua sociedade e organizaccedilatildeo ressaltando que

eles se dividiam em dois poacutelos (BGall VI 13)

In omni Gallia eorum hominum qui aliquo sunt numero atque honore genera

sunt duo Nam plebes paene seruorum habetur loco quae nihil audet per se

nullo adhibetur consilio Plerique cum aut aere alieno aut magnitudine

tributorum aut iniuria potentiorum premuntur sese in seruitutem dicant

261

Segundo Riggsby (2006 p 48) provavelmente Ceacutesar e Posidocircnio foram os uacutenicos autores que

realmente tiveram uma experiecircncia direta com os gauleses assim eacute possiacutevel que muitas das informaccedilotildees

que apareceram em outros textos derivem de algumas poucas fontes mas infelizmente natildeo haacute muitos

dados disponiacuteveis para precisar melhor essa questatildeo de origem das fontes Mais uma vez de acordo com

Riggsby (2006 p 68) ainda eacute importante ressaltar que Ceacutesar escreveu o De bello Gallico com um claro

objetivo poliacutetico enquanto que Posidocircnio escreveu seu relato com fins etnograacuteficos Lembramos tambeacutem

que Ceacutesar esteve muito ocupado durante seu proconsulado na Gaacutelia recebendo relatos de seus lugares-

tenentes (como mencionamos na p 119) e tambeacutem de mercadores e outros informantes como ele mesmo

escreveu (cf p132) Tambeacutem a esse respeito como Nicolet (2011 p 889) destaca o De bello Gallico

exprime precisamente as ideias que deviam tocar o puacuteblico efetivo dos partidaacuterios italianos de Ceacutesar a

cuidadosa distinccedilatildeo dentre os gauleses daqueles tratados em peacute de igualdade e que satildeo da alianccedila

rom n e evidentemente do v lor milit r dos dversaacuterios e criacutetic de seus defeitos ―tr dicion is 262

Jaacute mencionamos essa questatildeo de Ceacutesar tratar todas as naccedilotildees gaulesas de forma uniformizante na p

129-130

138

nobilibus in hos eadem omnia sunt iura quae dominis in seruos Sed de his

duobus generibus alterum est druidum alterum equitum Illi rebus diuinis

intersunt sacrificia publica ac priuata procurant religiones interpretantur

ad hos magnus adulescentium numerus disciplinae causa concurrit

magnoque hi sunt apud eos honore Nam fere de omnibus controuersiis

publicis priuatisque constituunt et si quod est admissum facinus si caedes

facta si de hereditate de finibus controuersia est idem decernunt praemia

poenasque constituunt si qui aut priuatus aut populus eorum decreto non

stetit sacrificiis interdicunt Haec poena apud eos est grauissima Quibus ita

est interdictum hi numero impiorum ac sceleratorum habentur his omnes

decedunt aditum sermonemque defugiunt ne quid ex contagione incommodi

accipiant neque iis petentibus ius redditur neque honos ullus communicatur

His autem omnibus druidibus praeest unus qui summam inter eos habet

auctoritatem Hoc mortuo aut si qui ex reliquis excellit dignitate succedit

aut si sunt plures pares suffragio druidum non numquam etiam armis de

principatu contendunt Hi certo anni tempore in finibus Carnutum quae

regio totius Galliae media habetur considunt in loco consecrato Huc omnes

undique qui controuersias habent conueniunt eorumque decretis iudiciisque

parent Disciplina in Britannia reperta atque inde in Galliam translata esse

existimatur et nunc qui diligentius eam rem cognoscere uolunt plerumque

illo discendi causa proficiscuntur

Em toda a Gaacutelia existem duas espeacutecies desses homens que satildeo tidos em

alguma conta e honradez Na verdade a plebe eacute quase tida em lugar servil

pois nada ousa por si nem eacute admitida em conselho algum A maior parte dela

quando oprimida por diacutevidas pela exorbitacircncia dos tributos ou pela afronta

dos poderosos aos nobres se entregam em servidatildeo esses possuem todos os

mesmos direitos que os senhores sobre os seus escravos Todavia quanto

essas duas espeacutecies uma eacute a dos druidas a outra a dos cavaleiros Aqueles

assistem o culto divino presidem os sacrifiacutecios puacuteblicos e privados e

interpretam os ritos religiosos um grande nuacutemero de jovens acorre ateacute eles

para educar-se e os druidas desfrutam de grande honradez junto deles Na

verdade eles decidem sobre quase todas as disputas puacuteblicas ou privadas e

se algum crime foi cometido se sucedeu alguma morte se haacute conflito sobre

heranccedila ou sobre um territoacuterio eles mesmos julgam e instituem as

recompensas e os castigos se uma pessoa ou privada ou puacuteblica natildeo se

conforma agrave sua decisatildeo eles lhes vedavam os sacrifiacutecios Essa puniccedilatildeo entre

eles eacute a graviacutessima Aqueles aos quais assim se vedaram satildeo tidos no nuacutemero

dos iacutempios e criminosos todos se afastam deles e evitam sua proximidade e

palavras para que desse contato natildeo recebam dano algum nem para esses

sob sua solicitaccedilatildeo eacute cumprida a justiccedila nem lhes eacute concedido cargo honroso

algum Por outro lado um uacutenico preside a todos estes druidas o que tem a

maior autoridade entre eles No caso da sua morte se algueacutem se sobressai em

meacuterito aos restantes sucede-lhe ou havendo muito iguais decidem atraveacutes

do sufraacutegio dos druidas e natildeo raramente tambeacutem com armas disputam pela

lideranccedila Eles em certa eacutepoca do ano reuacutenem-se nos territoacuterios dos

carnutos na regiatildeo que eacute tida como o centro de toda a Gaacutelia em um lugar

consagrado Para laacute de todas as partes afluem todos aqueles que tecircm litiacutegios

e eles acatam as decisotildees e as sentenccedilas dos druidas Considera-se que seu

saber foi definido na Britacircnia e de laacute levado para a Gaacutelia e agora os que

desejam conhececirc-lo com mais cuidado em geral partem para laacute para

aprender (grifos nossos)

De fato como os gauleses se organizavam em duas facccedilotildees haacute um contraponto

com os romanos mais bem organizados (SCHMIDT 2004 p 184) Aleacutem disso ficava

claro que os gauleses embora fortes natildeo conseguiram se unir (nem com a lideranccedila de

Vercingetoacuterige) para derrotar um inimigo comum representado pelos romanos

139

Tambeacutem se pode notar pelo trecho acima que Ceacutesar usou alguns termos latinos mais

uma vez para descrever a sociedade gaulesa o povo era a plebe e percebemos que

Ceacutesar dedicou poucas palavras a seu respeito acreditamos que Ceacutesar se concentrou

mais na descriccedilatildeo da elite (e principalmente dos druidas) jaacute que falar de aspectos da

sociedade gaulesa que eram diferentes da dos romanos atraiacutea a atenccedilatildeo de seu puacuteblico

Na elite tem-se os dois grupos os druidas e o cavaleiros (equites) Ceacutesar reforccedilou o

paralelo uma vez que em Roma os equites eram da elite situados abaixo apenas dos

patriacutecios que descendiam da nobreza Percebemos que em Ceacutesar natildeo haacute qualquer

menccedilatildeo aos bardos ou advinhos Ceacutesar queria manter a dualidade em vaacuterios aspectos da

sociedade gaulesa e por conseguinte os druidas incorporaram o papel de detentores da

cultura e da sabedoria (RIGGSBY 2006 p 63)263

Ao natildeo descrever bardos e advinhos

(que apareceram em fontes gregas como Posidocircnio e Diodoro) Ceacutesar queria priorizar o

caraacuteter poliacutetico e de autopropaganda de sua obra ao inveacutes de ter realmente uma

preocupaccedilatildeo de cunho etnograacutefico ou antropoloacutegico Todavia como visto em vaacuterios

trechos citados ao longo deste trabalho Ceacutesar natildeo se desviou muito da tradiccedilatildeo

etnograacutefica antecessora a ele ndash de fato os estereoacutetipos serviam como marcos que

auxiliavam o puacuteblico em Roma a se identificar com o texto de Ceacutesar e a reconhecer o

tipo de inimigo que ele combatia

Como Momigliano observa (1991 p 69) Ceacutesar jamais mencionou os druidas a

natildeo ser na digressatildeo etnograacutefica do livro VI provavelmente ele natildeo encontrou os

druidas em suas campanhas mas sim em suas fontes literaacuterias O proacuteprio Ceacutesar

escreveu que os druidas natildeo participavam das guerras aleacutem de outras informaccedilotildees sobre

eles Assim temos no De bello Gallico (VI 14)

Druides a bello abesse consuerunt neque tributa una cum reliquis pendunt

militiae uacationem omniumque rerum habent immunitatem Tantis excitati

praemiis et sua sponte multi in disciplinam conueniunt et a parentibus

propinquisque mittuntur Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur

Itaque annos non nulli XX in disciplina permanent Neque fas esse existimant

ea litteris mandare cum in reliquis fere rebus publicis priuatisque

rationibus graecis litteris utantur Id mihi duabus de causis instituisse

uidentur quod neque in uulgum disciplinam efferri uelint neque eos qui

discunt litteris confisos minus memoriae studere quod fere plerisque accidit

ut praesidio litterarum diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant In

primis hoc uolunt persuadere non interire animas sed ab aliis post mortem

transire ad alios atque hoc maxime ad uirtutem excitari putant metu mortis

263

Posidocircnio definiu o lugar dos vates e bardos na sociedade gaulesa (cf p 66) e em Diodoro temos uma

descriccedilatildeo mais profunda a respeito deles (cf Biblioteca V 31 2 a 4 p 83-84 deste trabalho) Ceacutesar

tambeacutem citou o caraacuteter dual da sociedade gaulesa nas palavras de Diviciacuteaco em I 31 (cf p 103-105) e

tambeacutem em VI 11 (cf p 136)

140

neglecto Multa praeterea de sideribus atque eorum motu de mundi ac

terrarum magnitudine de rerum natura de deorum immortalium ui ac

potestate disputant et iuuentuti tradunt

Os druidas costumam ficar afastados da guerra e natildeo pagam os tributos

juntamente com os demais eles tecircm dispensa do serviccedilo militar e imunidade

de todas as obrigaccedilotildees Animados com tamanhos precircmios natildeo soacute muitos por

sua espontacircnea vontade vecircm a esse saber mas tambeacutem muitos satildeo mandados

pelos pais e parentes Diz-se que nisso eles decoram um grande nuacutemero de

versos Assim alguns permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo

consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos

demais assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e privados utilizam as letras

gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado isso por dois motivos por natildeo

querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem

confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio

sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a

dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado Sobretudo querem

persuadir de que as almas natildeo perecem mas sim passam de uns para outros

apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor

desprezado o temor da morte Aleacutem disso debatem e transmitem agrave juventude

sobre muitas coisas sobre os astros e seu movimento sobre a grandeza do

mundo e das terras sobre a natureza das coisas e a forccedila e o poder dos deuses

imortais 264

Os druidas entatildeo se concentravam em se dedicar aos assuntos do mundo

sobrenatural aleacutem de serem mediadores entre os humanos e os deuses jaacute que nenhum

sacrifiacutecio podia ser realizado sem a presenccedila deles265

Aleacutem disso eles tinham grande

influecircncia poliacutetica tanto na paz quanto na guerra (RANKIN 1996 p69) Acima

podemos ver uma justificativa para a grande coragem e fuacuteria dos gauleses na guerra

qual seja o fato de que eles acreditvam que a alma era eterna266

Ainda sobre os druidas

e os rituais religiosos dos gauleses Ceacutesar (BGall VI 16) escreveu

Natio est omnis Gallorum admodum dedita religionibus atque ob eam

causam qui sunt affecti grauioribus morbis quique in proeliis periculisque

uersantur aut pro uictimis homines immolant aut se immolaturos uouent

administrisque ad ea sacrificia druidibus utuntur quod pro uita hominis nisi

hominis uita reddatur non posse deorum immortalium numen placari

arbitrantur publiceque eiusdem generis habent instituta sacrificia Alii

immani magnitudine simulacra habent quorum contexta uiminibus membra

uiuis hominibus complent quibus succensis circumuenti flamma exanimantur

homines Supplicia eorum qui in furto aut in latrocinio aut ex aliqua noxia

sint comprehensi gratiora dis immortalibus esse arbitrantur sed cum eius

generis copia defecit etiam ad innocentium supplicia descendunt

264

De fato Gruen (2011a p 155) lembra que Ceacutesar escreveu sobre a religiatildeo ndash e os druidas

provavelmente porque havia um interesse grande por parte do seu puacuteblico leitor sobre esse tema Os

druidas sempre chamaram atenccedilatildeo dos autores antigos e foram mencionados por Aristoacuteteles Posidocircnio

Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo dentre outros De acordo com Pliacutenio o Velho foi durante o principado de

Tibeacuterio que os druidas foram banidos como veremos mais adiante neste trabalho 265

Cf BGall VI 13 nas paacuteginas 137 e 138 266

Esse estereoacutetipo jaacute apareceu em Posidocircnio (Estrabatildeo IV 197) e tambeacutem em Diodoro Siacuteculo (V 28

6)

141

Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse

motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se

encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas

ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os

druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com

a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo

pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente

instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros

entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses

membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem

mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos

por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute

muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de

inocentes

Pelo relato acima Ceacutesar natildeo disse que os druidas praticavam magia e ele apenas

descreveu os ritos de sacrifiacutecios humanos sem condenaccedilatildeo ou julgamento de valor267

Percebe-se tambeacutem que os gauleses possuiacuteam uma justiccedila primitiva ao condenar os

criminosos aos sacrifiacutecios humanos (RIGGSBY 2006 p 63) O trecho acima tambeacutem

se aproxima bastante do que Ciacutecero escreveu sobre o fato dos gauleses praticarem

sacrifiacutecios humanos268

poreacutem se em Ciacutecero os gauleses simplesmente sacrificam as

viacutetimas indistintamente em Ceacutesar os gauleses sacrificavam sobretudo os criminosos

apenas recorrendo ao supliacutecio dos inocentes na falta desses (RAMBAUD 2011 p 330)

Quanto ao outro poacutelo da sociedade gaulesa Ceacutesar escreveu brevemente (BGall VI

15)

Alterum genus est equitum Hi cum est usus atque aliquod bellum incidit

(quod fere ante Caesaris aduentum quotannis accidere solebat uti aut ipsi

iniurias inferrent aut illatas propulsarent) omnes in bello uersantur atque

eorum ut quisque est genere copiisque amplissimus ita plurimos circum se

ambactos clientesque habet Hanc unam gratiam potentiamque nouerunt

A outra espeacutecie eacute a dos cavaleiros Esses quando haacute necessidade e se

sobreveacutem alguma guerra ndash o que costumava acontecer quase todos os anos

antes da chegada de Ceacutesar causando eles proacuteprios prejuiacutezos ou repelindo os

recebidos ndash exercitam-se todos na guerra e agrave medida que cada um deles eacute

mais ilustre pela estirpe e pelas riquezas tanto mais tem agrave sua volta

267

Como Schmidt (2004 p 185) pontua eacute curioso notar que tanto Ciacutecero quanto Ceacutesar insistiram em

ressaltar o fato dos gauleses fazerem sacrifiacutecios humanos uma vez que em Roma os combates de

gladiadores (heranccedila etrusca) podiam ser considerados como verdadeiras imolaccedilotildees de viacutetimas inocentes

sem mencionar os diversos supliacutecios infligidos aos escravos revoltados ou ladrotildees sendo o mais terriacutevel a

crucificaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Liacutevio (Ab urbe cond XXII 57 2-6) os proacuteprios romanos chegaram a

sacrificar humanos Durante a segunda guerra puacutenica contra Aniacutebal os romanos passando por

dificuldades excepcionais decidiram imolar um casal gaulecircs e um casal grego de acordo com o oraacuteculo

de Delfos e os livros sibilinos a fim de aplacar os deuses e conseguirem vencer os cartagineses 268

Cf Pro Fonteio 31 citado na p 71 deste trabalho Ciacutecero contudo explorou ao maacuteximo a falta de

caraacuteter dos gauleses e foi bastante veemente em condenar a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos feitos por

eles

142

numerosos servos e clientes eacute a uacutenica forma de prestiacutegio e poder que

conhecem (grifos nossos)

Destacamos acima como Ceacutesar habilmente ressaltou que trouxera paz agrave Gaacutelia ao

dizer que as guerras antes de sua conquista aconteciam quase todos os anos Ceacutesar

tambeacutem descreveu certos costumes gauleses que diferiam dos costumes romanos

(BGall VI 18)

Galli se omnes ab Dite patre prognatos praedicant idque ab druidibus

proditum dicunt Ob eam causam spatia omnis temporis non numero dierum

sed noctium finiunt dies natales et mensum et annorum initia sic obseruant

ut noctem dies subsequatur In reliquis uitae institutis hoc fere ab reliquis

differunt quod suos liberos nisi cum adoleuerunt ut munus militiae

sustinere possint palam ad se adire non patiuntur filiumque puerili aetate in

publico in conspectu patris adsistere turpe ducunt

Todos os gauleses se gabam de serem descendentes do pai Dite e dizem que

isso foi revelado pelos druidas Por tal motivo delimitam as divisotildees de todo

o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas sim pelo das noites de tal modo

observam os dias de aniversaacuterio e os iniacutecios dos meses e dos anos de modo

que o dia vem logo apoacutes a noite Nos demais costumes de vida os gauleses

diferem dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos

venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem

assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade

pueril aparece publicamente agrave vista do pai (grifos nossos)

Gruen (2011a p 158) afirma que Ceacutesar natildeo gostava de gastar muito tempo

investigando as particularidades dos rituais gauleses ou as nuances de suas

caracterizaccedilotildees dos deuses ndash como fica evidente pelo curto capiacutetulo acima mas o fato

de ele ter escolhido descrever a religiatildeo gaulesa com vocabulaacuterio latino eacute significativo

Ceacutesar mais minimizou do que acentuou as diferenccedilas de crenccedila entre romanos e

gauleses Ceacutesar tambeacutem escreveu que quanto aos costumes os gauleses apenas se

diferenciavam dos demais no fato de contarem a passagem do tempo pelas noites (e natildeo

dias) e tambeacutem por natildeo permitirem que seus filhos aparecessem diante do pai em idade

pueril

Aleacutem disso Ceacutesar tambeacutem relatou que os gauleses dispunham de mecanismos

legais como por exemplo ao mencionar que eles deixavam heranccedila que ficava tanto

para o marido ou para a esposa que sobrevivia ao cocircnjuge Temos (BGallVI 19)

Viri quantas pecunias ab uxoribus dotis nomine acceperunt tantas ex suis

bonis aestimatione facta cum dotibus communicant Huius omnis pecuniae

coniunctim ratio habetur fructusque seruantur uter eorum uita superarit ad

eum pars utriusque cum fructibus superiorum temporum peruenit Viri in

uxores sicuti in liberos uitae necisque habent potestatem et cum pater

143

familiae inlustriore loco natus decessit eius propinqui conueniunt et de

morte si res in suspicionem uenit de uxoribus in seruilem modum

quaestionem habent et si conpertum est igni atque omnibus tormentis

excruciatas interficiunt Funera sunt pro cultu Gallorum magnifica et

sumptuosa omniaque quae uiuis cordi fuisse arbitrantur in ignem inferunt

etiam animalia ac paulo supra hanc memoriam serui et clientes quos ab iis

dilectos esse constabat iustis funeribus confectis una cremabantur

Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto

reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em

conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos

qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os

rendimentos do tempo precedente Os maridos possuem direito de vida e

morte tanto sobre as esposas quanto sobre os filhos quando morre um chefe

da famiacutelia nascido em posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e

havendo alguma suspeita sobre a morte sujeitam as esposas a um

interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto algo eles as

executam torturadas pelo fogo e com todos os tormentos Os funerais de

acordo com o costume dos gauleses satildeo magniacuteficos e suntuosos e eles

lanccedilam ao fogo tudo o que consideram ter sido estimado em vida inclusive

os animais e ateacute pouco antes de nossa eacutepoca os escravos e clientes que era

certo terem sido estimados por um homem em finalizando-se corretamente

os funerais eram cremados junto (grifos nossos)

Pelos trechos acima percebemos que embora considerada baacuterbara a sociedade

gaulesa possuiacutea vaacuterias caracteriacutesticas consideradas civilizadas como a erudiccedilatildeo dos

druidas e o processo de se deixar heranccedila ndash sendo permitido inclusive agraves mulheres

disporem dos bens do marido Destacamos tambeacutem no trecho acima o fato de Ceacutesar ter

se referido ao chefe de famiacutelia gaulecircs como pater familiae o pater familiae em

contexto romano designava o chefe da famiacutelia ndash inclusive os escravos Ele era o

sacerdote do culto domeacutestico e o uacutenico proprietaacuterio dos bens aleacutem de ter autoridade de

vida e morte sobre todos os outros membros da famiacutelia269

Ao novamente usar termos

latinos para descrever a sociedade gaulesa ndash como dizer que o pater familiae possuiacutea

servos e clientes Ceacutesar destacou a semelhanccedila entre essas duas culturas270

Por outro

l do embor em certos spectos ―civiliz d eacute possiacutevel not r que no comentaacuterio de

Ceacutesar havia certa perversidade na sociedade gaulesa uma vez que as mulheres

poderiam ser torturadas caso houvesse duacutevida sobre a morte do marido Aleacutem disso os

gauleses queimavam os animais junto com os defuntos e ateacute pouco antes da guerra

contra os romanos colocavam na pira funeraacuteria os escravos e clientes eles tambeacutem

sacrificavam viacutetimas inocentes caso natildeo houvesse criminosos disponiacuteveis para os

269

O pater familiae romano conservava seus direitos ateacute agrave morte ou caso emancipasse seus filhos a partir

do seacuteculo I aC em diante com o progresso da sociedade romana os poderes do pater sofreram reduccedilotildees

Para essas informaccedilotildees sobre o pater familiae utilizamos como referecircncia Bornecque e Mornet (2002 p

84) 270

Cf BGall VI 13 (p 137-138) em que Ceacutesar usou os termos plebes e equites etc e tambeacutem VI15

(p 141-142)

144

sacrifiacutecios humanos271

Todavia eacute possiacutevel perceber em Ceacutesar uma evoluccedilatildeo

―civiliz toacuteri dos g uleses jaacute que ele registrou que eles b ndon r m o costume de

cremar junto com o falecido os seus escravos e clientes que lhes eram queridos A

clientela era uma forma estrutural tiacutepica da sociedade romana os clientes eram homens

livres ligados agraves famiacutelias patriacutecias que lhes davam proteccedilatildeo os laccedilos de clientela eram

passados de pai para filho e os clientes deviam completa obediecircncia aos seus

patronos272

Os gauleses por essa razatildeo natildeo possuiacuteam clientes jaacute que natildeo havia tal tipo

de estrutura social em sua comunidade Ceacutesar se utilizou do termo cliente para facilitar a

compreensatildeo da Gaacutelia por parte do seu puacuteblico-alvo

Quanto aos germanos de acordo com Ceacutesar eles eram ainda mais baacuterbaros que

os gauleses pelo fato de natildeo terem cultos religiosos estabelecidos e de se dedicarem

apenas a caccediladas e exerciacutecios beacutelicos Assim temos (BGall VI 21)

Germani multum ab hac consuetudine differunt Nam neque druides habent

qui rebus diuinis praesint neque sacrificiis student Deorum numero eos

solos ducunt quos cernunt et quorum aperte opibus iuuantur Solem et

Vulcanum et Lunam reliquos ne fama quidem acceperunt Vita omnis in

uenationibus atque in studiis rei militaris consistit a paruis labori ac

duritiae student Qui diutissime impuberes permanserunt maximam inter suos

ferunt laudem hoc ali staturam ali uires neruosque confirmari putant Intra

annum uero uicesimum feminae notitiam habuisse in turpissimis habent

rebus cuius rei nulla est occultatio quod et promiscue in fluminibus

perluuntur et pellibus aut paruis renonum tegimentis utuntur magna corporis

parte nuda

Os germanos diferem muito desses costumes Na verdade natildeo possuem

druidas que presidam os ritos religiosos nem praticam sacrifiacutecios Contam no

nuacutemero dos deuses apenas aqueles que divisam e por cujos recursos

abertamente satildeo auxiliados o Sol Vulcano e a Lua e nem ao menos

admitiram outros deuses transmitidos pela fama Toda sua vida consiste em

caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor

e na severidade Aqueles que permaneceram castos por muito tempo

desfrutam da maior honra entre os seus por esse motivo julgam que a sua

estatura seja alimentada e as forccedilas e os nervos sejam nutridos e fortalecidos

Na verdade eles consideram entre as coisas mais vergonhosas algueacutem ter

tido relaccedilotildees com uma mulher antes do vigeacutesimo aniversaacuterio natildeo haacute misteacuterio

algum sobre essas coisas pois eles misturados se banham nos rios e se

cobrem com peles de renas ou de pequenas coberturas mantendo nua uma

grande parte do corpo (grifo nosso)

Pelo trecho acima vemos tambeacutem um fator que caracterizava os germanos como

um povo mais primitivo que o gaulecircs (e o romano) eles cultuavam apenas as forccedilas da

271

Cf p 104-141 (BGall VI 16) 272

Para mais detalhes sobre a clientela cf nota 168 na p 93

145

natureza como o sol Vulcano e a lua e natildeo deuses antropomorfos Aleacutem disso os

germanos natildeo praticavam a agricultura nem possuiacuteam terras proacuteprias (BGall VI 22)

Agriculturae non student maiorque pars eorum uictus in lacte caseo carne

consistit Neque quisquam agri modum certum aut fines habet proprios sed

magistratus ac principes in annos singulos gentibus cognationibusque

hominum qui [cum] una coierunt quantum et quo loco uisum est agri

adtribuunt atque anno post alio transire cogunt Eius rei multas adferunt

causas ne adsidua consuetudine capti studium belli gerendi agricultura

commutent ne latos fines parare studeant potentioresque humiliores

possessionibus expellant ne accuratius ad frigora atque aestus uitandos

aedificent ne qua oriatur pecuniae cupiditas qua ex re factiones

dissensionesque nascuntur ut animi aequitate plebem contineant cum suas

quisque opes cum potentissimis aequari uideat

Os germanos natildeo se dedicam agrave agricultura e a maior parte de seu sustento

consiste em leite queijo e carne Ningueacutem possui medida certa de terra ou

limites proacuteprios contudo os magistrados e os chefes a cada ano atribuem agraves

famiacutelias e parentelas dos homens que juntos coabitam quanto de terra e onde

lhes pareceu bem e apoacutes um ano obrigam-nos a mudar-se Alegam vaacuterias

razotildees para esse comportamento para que levados pela forccedila do haacutebito natildeo

troquem o interesse de fazer a guerra pela agricultura para que natildeo se

esforcem em obter um grande limite nem os mais poderosos expulsem os

mais fracos das ocupaccedilotildees para que natildeo construam com mais cuidado a fim

de barrar o frio e o calor para que natildeo surja cobiccedila alguma de riqueza de

que nascem as facccedilotildees e discoacuterdias para que contenham a plebe pela

moderaccedilatildeo do espiacuterito vendo cada qual suas posses serem igualadas agraves dos

mais poderosos (grifo nosso)

Destacamos nos dois trechos acima que Ceacutesar disse que os germanos desde cedo

dedicavam toda sua vida agrave arte da guerra e agraves caccediladas (―toda sua vida consiste em

caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor e na

severidade) e que eles construiacuteam casas simples que mal barravam as intempeacuteries

naturais (―para que natildeo construam com mais cuidado a fim de barrar o frio e o calor)

O fato de natildeo praticarem a agricultura ou sequer barrar as intempeacuteries naturais em suas

casas servia para manter os germanos fortes e evitar a fraqueza advinda da

sedentarizaccedilatildeo da sociedade Riggsby (2006 p 85) lembra que eacute justamente a partir

desse coacutedigo de vida riacutegido e da firmeza contra os fenocircmenos naturais aleacutem de

frequentes confrontos com outras naccedilotildees que os germanos exercitavam e aumentavam

sua forte uirtus Os romanos tambeacutem obtinham sua uirtus da disciplina na guerra de

forma parecida agrave dos germanos a grande diferenccedila eacute que os romanos faziam isso de

forma coletiva enquanto uma legiatildeo organizada jaacute os germanos o faziam de forma

individual e sem um meacutetodo sistematizado (RIGGSBY 2006 p 87)

Os germanos embora considerados ainda mais baacuterbaros que os gauleses no

relato de Ceacutesar aparecem preocupados em manter uma certa equidade social entre todos

146

sejam poderosos ou fracos com isso os germanos evitariam os conflitos por ganacircncia e

a sociedade se mantinha forte como um todo Percebemos que mesmo entre um povo

considerado extremamente feroz a estrutura social organizava-se de forma bastante

inovadora273

Sobre a caracterizaccedilatildeo de gauleses e germanos Gouvecirca Juacutenior (2012 p

12) afirma

separando-os com clareza ele pode dispensar-lhes tratamentos diferentes

para incluir os gauleses e excluir os germacircnicos em seu projeto de ampliaccedilatildeo

das fronteiras poliacuteticas ndash pessoais e romanas Para analisaacute-los Ceacutesar assumiu

a mesma posiccedilatildeo de superioridade dos que julgam seus diferentes como

pertencentes agrave barbaacuterie Entatildeo conferiu uma condiccedilatildeo mais favoraacutevel aos

gauleses salientando uma certa humanitas barbara com a demonstraccedilatildeo de

respeito agrave lei e agrave justiccedila de reverecircncia aos costumes aos deuses e aos mortos

de conhecimento do alfabeto grego e sobretudo com a noccedilatildeo de

desenvolvimento a partir do aprimoramento individual como na formaccedilatildeo

dos druidas

Quanto aos germanos Ceacutesar foi mais criacutetico os germanos em suas palavras

natildeo praticavam a agricultura eram promiacutescuos nocircmades etc A diferenccedila entre gauleses

e germanos era o grau de ferocitas e no De bello Gallico Ceacutesar apenas usou o termo

ferox para designar os germanos e os belgas que eram os mais valentes dentre os

gauleses274

Percebemos que Ceacutesar ao usar o vocabulaacuterio latino para designar

caracteriacutesticas dos gauleses (como os deuses que cultuavam etc) salientou as

semelhanccedilas entre gauleses e romanos o que possibilitava a romanizaccedilatildeo e mescla de

culturas275

o mesmo natildeo pode ser dito dos germanos que mal praticavam a agricultura

ou possuiacuteam uma religiatildeo estabelecida276

Mais uma vez percebe-se a dualidade

representada pelos romanos (civilizados) e gauleses (em parte civilizados) frente aos

germanos (baacuterbaros) de fato como Hartog (1999 p 289) destaca o discurso da

retoacuterica da alteridade no mundo antigo eacute essencialmente um discurso de dualidade e

273

Andreacute (2001 p 2 e 3) aprofunda a forma como os germanos foram retratados em Ceacutesar bem como as

fontes usadas por ele para descrever os germanos Andreacute (2001 nota 17 p 8) tambeacutem destaca que a

virtude moral e a superioridade baacuterbara primitiva eacute um toacutepos que aparece no epicurismo (como no canto

V de Lucreacutecio) e ainda no seio do cinismo e estoicismo 274

Cf sobre os belgas o trecho II 15 (p 131) em que Ceacutesar escreveu que eles eram homines feros

magnaeque uirtutis (homens ferozes de grande virtude) Quanto aos germanos cf o trecho I 33 citado

na p 134 em que Ceacutesar se referiu a eles como homines feros ac barbaros a partiacutecula ac vai aleacutem da

mera conjunccedilatildeo aditiva e pois iguala os dois termos Aleacutem disso jaacute abordamos o caraacuteter pejorativo do

termo ―baacuterb ro p r se referir os germ nos (cf p 135) 275

Ou seja de acordo com Woolf (2003 p 63) o gaulecircs devia exibir certa humanitas jaacute que apenas

atraveacutes da humanitas as relaccedilotildees sociais eram asseguradas 276

Cf nota 159 na p 86 sobre estereoacutetipos dos baacuterbaros e de como a falta de agricultura condenava os

povos agrave barbaacuterie e por outro lado como a proximidade com as cidades facilitava a civilizaccedilatildeo

147

polaridade277

Dessa forma na praacutetica uma reparticcedilatildeo triacuteplice natildeo ocorre se haacute dois

tipos de barbarismo no discurso um deles vai ser assimilado aos romanos278

Aleacutem

disso Ceacutesar ao dividir os gauleses e germanos em grupos distintos nos quais os

gauleses jaacute se encontravam mais abertos agrave romanizaccedilatildeo (enquanto os germanos foram

retratados como selvagens que natildeo poderiam ser subjugados) definiu a sua aacuterea de

accedilatildeo todavia ambos os grupos representavam perigo a Roma Os gauleses tinham uma

tendecircncia agraves guerras pelos motivos mais fuacuteteis e eram voluacuteveis e natildeo confiaacuteveis quanto

aos germanos ateacute mesmo pela sua natureza nocircmade eles natildeo respeitavam as fronteiras

ou territoacuterios e nada os impediria de atacar as proviacutencias romanas (RIGGSBY 2006 p

69) Dessa maneira a justificativa para se agir contra gauleses e germanos consistia em

―prevenir um desgr ccedil e c b r com o ―perigo que essas naccedilotildees representavam

Riggsby (2006 p 180) define ess estr teacutegi como ― utodefes por p rte dos rom nos

Em Ceacutesar portanto gauleses e germanos embora representando certo perigo

para Roma natildeo deixaram de possuir suas virtudes como vimos anteriormente seja a

habilidade dos galos e a sua resistecircncia frente aos romanos seja os germanos e sua

bravura e coragem inerentes Aleacutem disso apesar de os romanos terem colonizado povos

diferentes como os proacuteprios gauleses esse processo de conquistas natildeo foi unilateral jaacute

que os romanos adquiriram muitos dos haacutebitos estrangeiros Assim Roma transformou-

se em um grande impeacuterio multicultural A Urbe surgida de uma uniatildeo de povos sabia

conviver com as diferenccedilas e engenhosamente adotava a estrateacutegia de concessatildeo da

cidadania sendo essa taacutetica eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar

possiacuteveis aliados279

De fato Roma natildeo se restringia apenas agrave cidade em si mas passou

a existir em todo o seu territoacuterio

277

O proacuteprio significado do termo alter em l tim eacute ―um de dois 278

Outro exemplo dessa dualidade referente a gregos e romanos encontra-se na paacutegina 37 deste trabalho 279

Para a abertura de Roma ao estrangeiro cf especialmente p 97 e 98

148

Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas

Neste capiacutetulo estudaremos as outras fontes latinas ndash Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho

ndash uma por vez Vimos anteriormente que Ceacutesar desempenhou um papel fundamental na

conquista definitiva da Europa Ocidental pelos romanos e tambeacutem no esfacelamento da

Repuacuteblica Esses dois fenocircmenos ocorreram com muita luta e conflitos Sobre a origem

do impeacuterio Florenzano (1994 p 84) ressalta

A estrutura oligaacuterquica de governo estabelecida durante a Repuacuteblica

mostrou-se ndash no seacutec I ndash incapaz de integrar efetivamente o enorme territoacuterio

conquistado em toda a bacia do Mediterracircneo A classe dirigente composta

pelos senadores outorgava-se direitos exclusivos sobre a cidadania a

distribuiccedilatildeo dos impostos e as decisotildees excluindo assim do poder todo e

qualquer segmento populacional das proviacutencias Estas sofriam os abusos de

poder as confiscaccedilotildees e extorsotildees dos arrecadadores de impostos e

embaixadores do Senado romano O comportamento extremamente

conservador da classe senatorial mostrava-se incompatiacutevel com a necessidade

de atender pelo menos agraves elites provinciais tendo em vista manter unificado

o territoacuterio conquistado Diante desta situaccedilatildeo os diferentes membros da

oligarquia dominante propunham alternativas tambeacutem diferentes como

soluccedilatildeo agrave crise provocando assim entre os partidos e as facccedilotildees poliacuteticas

lutas que se prolongaram por quase um seacuteculo O estabelecimento do

Impeacuterio na verdade foi a soluccedilatildeo poliacutetica encontrada para assegurar a

estabilidade do poder e anular os conflitos existentes entre as vaacuterias facccedilotildees

Evidentemente as causas que levaram ao fim da Repuacuteblica foram bem

complexas e natildeo nos aprofundaremos nessa discussatildeo aqui ateacute porque existem obras

especiacuteficas sobre o assunto Dessa maneira abordaremos o surgimento do impeacuterio de

forma mais geral de modo que facilite a compreensatildeo do contexto histoacuterico em que se

insere a obra de Tito Liacutevio

31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano

Com o assassinato de Ceacutesar os muitos opositores do ditador acreditavam que a

Repuacuteblica voltaria agrave su ntig ―norm lid de Tod vi M rco Antocircnio proveitou-se

do vaacutecuo criado no poder e rapidamente assumiu o controle da Itaacutelia e de vaacuterias legiotildees

Nesse meio tempo Ciacutecero tentou colocar Otaacutevio contra Marco Antocircnio e dividir os

cesaristas mas a estrateacutegia natildeo funcionou em 43 aC Otaacutevio Antocircnio e Leacutepido (que

149

com nd v s legiotildees n Gaacuteli ) form r m o ―segundo triunvir to 280

Com o poder

assim dividido Leacutepido se incumbiu da Itaacutelia Antocircnio e Otaacutevio foram combater a uacuteltima

frente que lhes era contraacuteria na Macedocircnia Na batalha de Filipos (42 aC) Bruto e

Caacutessio (dois dos principais senadores que articularam a morte de Ceacutesar) satildeo

derrotados281

Em 36 aC Sexto Pompeu (filho de Pompeu Magno) foi derrotado pelos

triuacutenviros na Siciacutelia e com isso as legiotildees de Leacutepido passaram a apoiar Otaacutevio Dessa

forma com apenas Antocircnio e Otaacutevio no poder uma segunda guerra civil delineou-se

Entre tantas batalhas o confronto decisivo aconteceu em Aacutecio (31 aC) no Mar Jocircnico

em que a frota de Otaacutevio aniquilou a esquadra de Antocircnio que derrotado suicidou-se

logo depois Finalmente depois das turbulecircncias e guerras civis que marcaram o seacuteculo

I aC a via do poder encontrava-se livre para um uacutenico governante

Otaacutevio inaugurou uma nova forma de governo na qual o comando centrava-se

em um uacutenico indiviacuteduo Esse sistema poliacutetico conhecido na Roma antiga por

principado hoje em dia eacute popularmente chamado de impeacuterio282

Todavia Otaacutevio

comportou-se de maneira bem diferente de seu tio-avocirc Ceacutesar pois sabia que para os

romanos seria inaceitaacutevel um novo rei ou ditador perpeacutetuo Como Mendes (1988 p 75

e 76) destaca apoacutes vencer Antocircnio Otaacutevio percebeu que em sua accedilatildeo poliacutetica natildeo

poderia menosprezar os sentimentos da tradiccedilatildeo republicana enraizados na sociedade

romana e deveria considerar que os que combateram ao seu lado desejavam juntamente

com a paz a manutenccedilatildeo de suas prerrogativas e privileacutegios soacutecio-econocircmicos Nas

palavras do proacuteprio Otaacutevio (RG V e VI)

Dictaturam et apsenti et praesenti mihi delatam et a populo et a senatu M

Marcello et L Arruntio consulibus non accepi () Consulatum quoque tum

annuum et perpetuum mihi delatum non recepiConsulibus M Vinicio et Q

Lucretio et postea P Lentulo et Cn Lentulo et tertium Paullo Fabio Maximo

280

Colocamos esses termos entre aspas jaacute que o primeiro triunvirato natildeo deveria ter recebido esse nome

jaacute que foi estabelecido fora da lei romana (cf p 110) A alianccedila firmada em 43 aC foi aprovada pelo

Senado concedendo extraordinariamente a ditadura aos trecircs cidadatildeos mencionados por cinco anos No

mesmo ano Ciacutecero viria a ser assassinado pelos homens de Antocircnio 281

Para esse resumo dos eventos entre a morte de Ceacutesar e a ascensatildeo de Otaacutevio utilizamos como

referecircnci o c piacutetulo ―The founding of the Empire de Stockton (in BOARDMAN et al 1986 p 443 a

461) 282

O princeps (priacutencipe) era o cidadatildeo que tinha o direito de ser o primeiro a usar a palavra no Senado e

era tambeacutem o primeiro a ser inscrito no aacutelbum dos senadores Na praacutetica natildeo conferia poderes mas sim

prestiacutegio Augusto foi priacutencipe do senado durante quarenta anos (Res Gestae I 7) Jaacute o termo imperador

(imperator) era um tiacutetulo dado por aclamaccedilatildeo popular (ou do Senado) ao general vitorioso que obtinha o

direito de celebrar o triunfo Aleacutem disso imperator designava o magistrado que era investido com o

imperium (cf nota 175) Com o tempo o significado de imperador passou a ser o do liacuteder uacutenico de Roma

(suplantando o termo priacutencipe) e impeacuterio passou a designar essa forma de governo Daiacute vem tambeacutem a

confusatildeo de se designar Ceacutesar como imperador jaacute que ele foi aclamado imperator pelos seus soldados

mas nunca chegou a ser princeps Cf Canfora (2002 p 487 e 488) para mais detalhes sobre o imperium

150

et Q Tuberone senatu populoque Romano consentientibus ut curator legum

et morum summa potestate solus crearer nullum magistratum contra morem

maiorum delatum recepi Quae tum per me geri senatus uoluit per

tribuniciam potestatem perfeci cuius potestatis conlegam et ipse ultro

quinquiens a senatu depoposci et accepi

Natildeo aceitei a ditadura a mim presente ou ausente oferecida pelo povo e pelo

senado quando eram cocircnsules M Marcelo e L Arruacutencio () Agravequela mesma

eacutepoca natildeo aceitei o consulado anual e vitaliacutecio a mim oferecido No

consulado de M Viniacutecio e Q Lucreacutecio depois no de P Lecircntulo e Cn

Lecircntulo e em terceiro lugar no de Paulo Faacutebio Maacuteximo e Q Tuberatildeo

havendo entre o senado e o povo romano consenso de que eu fosse escolhido

para curador uacutenico das leis e costumes com o poder maacuteximo nenhum cargo

concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei283

Otaacutevio assim deixou claro nessas e em vaacuterias outras passagens registradas no

monumento de Ancara que agiu sempre dentro da lei e do costume dos romanos nunca

aceitando as magistraturas extraordinaacuterias como a ditadura ou o consulado vitaliacutecio284

Embor n praacutetic ele fosse o senhor bsoluto de Rom seus poderes er m ―renov dos

periodicamente pelo senado Por conseguinte ele criou um regime hiacutebrido de governo

manteve as instituiccedilotildees republicanas e as antigas magistraturas (embora esvaziadas de

poder poliacutetico) mas o poder de fato encontrava-se nas matildeos do princeps Otaacutevio

mostrava-se como o restaurador da Repuacuteblica e da paz apoacutes as sangrentas guerras civis

e fez questatildeo de alardear isso na agenda da propaganda imperial285

Aleacutem disso o

princeps recebeu do povo e do senado a alcunha de Augusto286

em honra a tudo que ele

fez por Roma como ele mesmo registrou (RG XXXIV)

In consulatu sexto et septimo postquam bella ciuilia exstinxeram per

consensum uniuersorum potitus rerum omnium rem publicam ex mea

potestate in senatus populique Romani arbitrium transtuli Quo pro merito

meo senatus consulto Augustus appellatus sum et laureis postes aedium

mearum uestiti publice coronaque ciuica super ianuam meam fixa est et

clupeus aureus in curia Iulia positus quem mihi senatum populumque

Romanum dare uirtutis clementiaeque et iustitiae et pietatis caussa testatum

est per eius clupei inscriptionem Post id tempus auctoritate omnibus

praestiti potestatis autem nihilo amplius habui quam ceteri qui mihi quoque

in magistratu conlegae fuerunt

283

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo feita por Trevizam e Rezende (SUETOcircNIO AUGUSTO 2007 p 128 e

129) 284

Para aprofundamento sobre a Res Gestae e d postur poliacutetic de Augusto cf o c piacutetulo ―Comentaacuterio

sobre as Res Gestae Divi Augusti de Cor ssin (In JOLY 2007 p 97-118) 285

Como o proacuteprio Augusto alardeou o fato de ter fechado o templo de Jano (o que era um sinal de paz

obtida por vitoacuterias romanas tanto em terra quanto no mar) por trecircs vezes durante seu governo (Res

Gestae XIII) aleacutem dele e sua eacutepoca terem sido exaltados em obras de vaacuterios autores do periacuteodo

sobretudo Virgiacutelio 286

Augusto signific v o ―veneraacutevel e esse tiacutetulo (recebido em 27 C ) p ssou f zer p rte do nome de

Otaacutevio

151

Em meu sexto e seacutetimo consulados depois de extinguir as guerras civis e por

consenso de todos senhor de tudo passei a repuacuteblica de meu poder para o

arbiacutetrio do senado e do povo romano Por esse meacuterito pessoal fui chamado de

―Augusto por decreto do sen do os umbr is de minh c s for m

publicamente cobertos com louros uma coroa ciacutevica foi afixada acima de

minha porta e um escudo de ouro posto na cuacuteria Juacutelia Atestava a inscriccedilatildeo do

escudo que o senado e o povo romano o davam a mim pelo valor pela

clemecircncia pela justiccedila e pelo senso do dever Depois disso vi-me agrave frente de

todos pela autoridade mas nenhum poder tive a mais que meus outros

colegas tambeacutem investidos de cargos (grifos nossos) 287

Pelo trecho acima Otaacutevio Augusto deixa claro que o escudo exaltava o seu valor

(uirtus) clemecircncia (clementia) justiccedila (iustitia) e senso do dever (pietas) aleacutem disso

ele tambeacutem estava agrave frente dos outros pela autoridade (auctoritas) e natildeo pelo poder

(potestas) que era o mesmo p r todos ―os investidos de c rgos 288

Augusto

habilmente definiu que sua superioridade sobre os outros cidadatildeos era devido ao fato de

o senado e o povo romano lhe terem conferido a auctoritas e o honoriacutefico tiacutetulo de

Augusto por livre e espontacircnea vontade jaacute que ele mesmo devolveu o poder agrave repuacuteblica

depois de terminadas as guerras civis Evidentemente depois de tantas convulsotildees

internas em Roma Augusto foi bastante astuto em sua carreira puacuteblica e tomou cuidado

para natildeo se indispor com o senado e o povo Ele buscou manter a repuacuteblica os costumes

e as instituiccedilotildees tradicionais sempre deixando claro que exercia o poder porque a urbe

lhe pedia isso e que esse mesmo poder vinha de Roma natildeo por coincidecircncia Augusto

foi um dos governantes mais longevos exercendo o poder de 27 aC ateacute 14 dC

quando veio a falecer com aproximadamente 76 anos de idade

32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia

Apoacutes a conquista da Gaacutelia empreendida por Ceacutesar os civis passaram a adaptar-

se agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica os gauleses foram privados da sua liberdade aleacutem da grande

perda de pessoas e prejuiacutezos materiais289

Do periacuteodo entre 52 aC (que marcou o fim

287

Novamente usamos a traduccedilatildeo de Trevizam e Rezende (2007 p 137 e 138) 288

Anteriormente jaacute mencionamos a uirtus (cf p 124 e ss) a clementia (p 122 e ss) a iustitia (de forma

bem abrangente no subcapiacutetulo 212) e a pietas (cf p 126) A auctoritas como definiu Pereira (1993 p

351 e ss) era um valor intriacutenseco que conferia maior peso a um indiviacuteduo ou seja que lhe conferia

autoridade Esse valor diretamente relacionado agrave uirtus natildeo se exercia pela funccedilatildeo ou pela persuasatildeo

mas sim pelo meacuterito da pessoa ou da corporaccedilatildeo que toma uma decisatildeo ndash nesse sentido o Senado

representava a auctoritas de Roma A potestas consistia no poder poliacutetico de um magistrado

intrinsecamente ligado ao cargo que ele ocupava 289

Quanto ao nuacutemero de baixas militares haacute muita discordacircncia entre as fontes como lembra Le Bohec

(2009 p 116) Veleio Pateacuterculo (II 47) falou em 400000 mortos quanto aos civis Plutarco (Ceacutesar XV

3) citou 1000000 de falecidos e Pliacutenio o Velho (VII 92) estabeleceu o nuacutemero de 1192000 Aleacutem

152

da guerra da Gaacutelia) a 31 aC natildeo temos muitas informaccedilotildees sobre o que se passou

nessa regiatildeo jaacute que as fontes concentraram-se em narrar os desdobramentos das guerras

civis de Ceacutesar contra Pompeu e posteriormente de Augusto contra Antocircnio Desse

espaccedilo de tempo temos a brusca mudanccedila de sorte de Marselha Durante os conflitos de

na Gaacutelia a cidade (que era cliente de Ceacutesar) enriqueceu ao fornecer equipamento militar

aos legionaacuterios Poreacutem Marselha tambeacutem tinha outro patrono Pompeu Como lembra

Le Bohec (2009 p 117) assim que estourou a guerra entre esses dois generais

Marselha manteve-se neutra ateacute que em 49 aC no auge da crise civil a cidade passou

a apoiar Pompeu Ceacutesar natildeo perdoou essa traiccedilatildeo e depois que sitiou e tomou a cidade

ele retirou uma grande parte do territoacuterio marselhecircs e passou essas terras para as

municiacutepios vizinhos Aleacutem desse ocorrido haacute ainda relatos de que em 46 aC houve

uma revolta dos beloacutevacos (naccedilatildeo gaulesa) mas natildeo dispomos de detalhes sobre o

ocorrido

Quanto agrave urbanizaccedilatildeo Ceacutesar assentou um grande nuacutemero de veteranos nas

colocircnias gaulesas em data incerta ndash sendo que possivelmente algumas dessas eram

anteriores a Ceacutesar Dessa forma Narbonne recebeu os soldados da X legiatildeo Beacuteziers

d VII Freacutejus d VIII Arles d VI e Or nge d II 290

Lugudunum (Lyon) e Raurica

(Augst) foram fundadas em 43 aC por Luacutecio Munaacutetio Planco (LE BOHEC 2009 p

117)

Em 27 aC Augusto com seu poder consolidado dividiu todas as proviacutencias

romanas em dois grupos as imperiais sob a administraccedilatildeo direta do priacutencipe ndash que

eram aqueles territoacuterios receacutem conquistados ou mal pacificados que requeriam uma

forte presenccedila militar e as senatoriais confiadas ao Senado (GRIMAL 2002 p 212)

Evidentemente Augusto plenamente dotado do imperium poderia intervir em todas as

proviacutencias inclusive as senatoriais Todo o territoacuterio da Gaacutelia foi dividido em quatro

proviacutencias todas imperiais que eram a Narbonense a Aquitacircnia a Lugdunense (devido

agrave capital Lugdunum hoje conhecida por Lyon) e a Beacutelgica Em 22 aC a Narbonense

foi doada ao povo romano ou seja passou para administraccedilatildeo do Senado (LE BOHEC

2009 p 139) As cidades que surgiram a partir de entatildeo foram importantes na

integraccedilatildeo comercial e cultural entre Roma e as naccedilotildees conquistadas e muitas

receberam seus nomes a partir da onomaacutestica imperial Como destaca Le Bohec (2009

dessas perdas tambeacutem foi grande a parcela da populaccedilatildeo transformada em escrava (cf p 16 e 17) aleacutem

do pesado tributo que deveria ser pago a Roma anualmente 290

Pliacutenio o Velho menciona esses assentamentos em HN III 32 e 36

153

p 140) temos a cidade de Caesarodunum (atualmente Tours) Iuliobona (Lillebonne)

Iuliomagus (tanto Angers na Franccedila quanto Schleitheim na atual Suiacuteccedila) Augustobona

(Troyes) dentre outras Ainda segundo Le Bohec (2009 p 140) nenhuma dessas

cidades recebeu seu nome latino por pressatildeo ou imposiccedilatildeo de Roma mas sim essa

escolha foi feita pela aristocracia local que desejava demonstrar seu reconhecimento ao

imperador que de certa forma defendia os seus interesses

De acordo com Guarinello (214 p 293-295) foi durante o principado de

Augusto que muitas das medidas externas de Roma foram definidas e com a paz as

proviacutencias passaram a se integrar cada vez mais ao modo de vida romano Essa

integraccedilatildeo foi bastante impulsionada pela sedentarizaccedilatildeo e profissionalizaccedilatildeo do

exeacutercito evidentemente esse processo comeccedilara antes com Maacuterio mas foi a partir de

Augusto que as tropas foram claramente afirmadas e definitivamente integradas agrave vida

militar e tambeacutem agrave vida cotidiana nos assentamentos nas proviacutencias (LE BOHEC 2009

p 154) Dessa maneira a divisatildeo entre Roma e as proviacutencias deu lugar agrave divisatildeo entre o

impeacuterio e os ditos baacuterbaros que viviam aleacutem das fronteiras e natildeo participavam do

mundo considerado civilizado Durante o principado de Augusto ocorreu a grande

derrota romana perto da floresta de Teutoburgo (9 dC) quando o comandante Varro e

suas trecircs legiotildees foram emboscadas pelos germanos e inteiramente destruiacutedas Com esse

grande reveacutes as fronteiras do impeacuterio durante Augusto ficaram estabelecidas na Europa

ocidental ateacute os rios Reno e Danuacutebio na parte oriental ateacute o impeacuterio dos partas

reconhecidos pelos romanos como um povo autocircnomo (GRIMAL 1993 p 306 e 313)

33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita

Liacutevio nasceu em Patauium (Paacutedua) em 59 aC e pelo que se tem registrado nas

fontes (como Secircneca o Velho e Quintiliano) natildeo se dedicou agrave vida puacuteblica ou militar

mas sim agrave retoacuterica como professor e escritor Por volta do ano 30 aC ele passou a se

dedicar inteiramente agrave composiccedilatildeo de sua monumental obra historiograacutefica ndash conhecida

como Ab urbe condita libri291

Ogilvie (1965 p 3) destaca que Liacutevio de forma alguma

foi associado ao ciacuterculo de Mecenas ou a qualquer outro autor que fazia parte do meio

literaacuterio augustano Por isso provavelmente Liacutevio comeccedilou a escrever sua histoacuteria na

obscuridade e de alguma forma esse fato chegou ao conhecimento de Augusto que

291

O tiacutetulo tr duzido seri ―Livros sobre fund ccedilatildeo d Cid de m s ess obr t mbeacutem eacute conhecid

simplesmente como ―Histoacuteri rom n

154

certamente ficou interessado em apadrinhar um escritor de talento para promover a nova

Repuacuteblica Poreacutem Liacutevio como veremos adiante natildeo exaltou as qualidades do novo

regime em sua obra O historiador alternou sua residecircncia entre Roma e Paacutedua onde

veio a falecer em 17 dC provavelmente ele empenhou-se na escrita de seu trabalho ateacute

o fim de sua vida292

Ab urbe condita a grande obra de Liacutevio seria composta em 142 livros Aleacutem do

prefaacutecio nos chegaram apenas 35 desses livros que satildeo Prefaacutecio I-X e XXI a XLV

tendo este uacuteltimo uma lacuna ao final293

Dos outros livros apenas temos inuacutemeros

fragmentos Assim sobre o conteuacutedo dos livros de I a V temos a fundaccedilatildeo lendaacuteria de

Roma (753 aC) o periacuteodo da monarquia o princiacutepio da Repuacuteblica ateacute o saque de

Roma pelos gauleses em 390 aC Nos livros VI a XV haacute os conflitos entre romanos e

samnitas antes das Guerras Puacutenicas (por volta de 387 a 264 aC) Jaacute os livros XVI a

XXX narrariam as duas primeiras Guerras Puacutenicas (entre 264 a 201 aC) Os livros

XXXI a XLV seriam a respeito de guerras dos romanos contra os macedocircnios e outros

povos do oriente (entre 201 a 167 aC) Os livros XLVI a LXX trariam os

acontecimentos do periacuteodo entre 167 ateacute as Guerras Sociais em 90 aC Os livros LXXI

a XC seriam referentes aos anos de 90 aC ateacute a morte de Sila em 78 aC Nos livros

XCI a CVIII que seriam sobre os anos 78 a 50 aC temos os confrontos entre romanos

e gauleses e a submissatildeo da Gaacutelia por Ceacutesar os livros CIX a CXVI narrariam sobre a

guerra civil ateacute a morte de Ceacutesar em 44 aC CXVII a CXXXIII abordaria o periacuteodo

posterior agrave morte de Ceacutesar ateacute a morte de Marco Antocircnio em 30 aC por fim os livros

CXXXIV a CXLII seriam a respeito do principado de Augusto ateacute sua morte no ano 14

dC Os livros remanescentes tambeacutem foram preservados por epiacutetomes (resumos)

chamados Periochae provavelmente feitos para propoacutesitos didaacuteticos como afirma

Conte (1999 p 374)

34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita

Segundo Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 644) Liacutevio eacute o primeiro

escritor analiacutetico do qual temos uma obra que sobreviveu em boa quantidade e eacute atraveacutes

dele e dos elementos de escritos antigos percebidos em sua histoacuteria que eacute possiacutevel

292

Para essa biografia de Liacutevio utilizamos como referecircncia bibliograacutefica FORSYTHE (2005 p 67) 293

Desde Heroacutedoto e Tuciacutedides era comum o historiador escrever um proecircmio antes de sua obra com o

escopo e propoacutesito do seu trabalho A partir de Isoacutecrates esses prefaacutecios passaram a ter grande influecircncia

da retoacuterica e buscavam sobretudo captar a atenccedilatildeo e interesse do leitor para a narrativa como algo uacutetil e

proveitoso (OGILVIE 1965 p 23)

155

formar julgamentos dos antigos anais da Repuacuteblica294

A tendecircncia romana de se

escrever histoacuteria em uma estrutura anual se justificava pela proacutepria origem dos relatos

dos fatos desde meados do seacuteculo IV aC295

Esse tipo de estrutura eacute marcante na

literatura latina e vai ser seguida por vaacuterios autores ao longo dos seacuteculos posteriores

De acordo com Beck (in MARINCOLA 2007 v 1 p 265) a tendecircncia de se fazer

historiografia por meio da estrutura analiacutetica assinalava continuidade seguranccedila e

estabilidade institucional desde os primoacuterdios de Roma ateacute o periacuteodo contemporacircneo

Liacutevio retomou a estrutura analiacutetica que caracterizou a antiga historiografia

romana rejeitando o estilo monograacutefico de Saluacutestio296

Os livros de Ab urbe condita

que contavam desde os primoacuterdios de Roma se tornavam maiores agrave medida em que a

narrativa se aproximava dos dias proacuteximos ao autor297

Aleacutem disso como destaca

Marincola (2007 v2 p 172) o fato dos livros contemporacircneos serem mais detalhados

seguiam a tradiccedilatildeo iniciada por Eacuteforo (e adotada por muito autores que escreveram

longas narrativas historiograacuteficas) Esse fato justificava-se ateacute mesmo pelo maior

interesse do puacuteblico em eventos recentes como o proacuteprio Liacutevio deixou claro no prefaacutecio

de sua histoacuteria (sect4) () et legentium plerisque haud dubito quin primae origines

proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad haec noua ()

―( ) agrave m iori dos leitores natildeo tenho duacutevid de que s primeir s origens e s p rtes

proacuteximas agraves origens seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos

tempos ( ) 298

Outro aspecto que tambeacutem contribuiacutea para esse aumento dos livros mais

proacuteximos da eacutepoca do autor era a maior quantidade disponiacutevel de fontes do que as do

periacuteodo mais antigo envolto em lendas e narrativas miacuteticas Para a primeira deacutecada

(livros I a X) Liacutevio usou como fontes historiograacuteficas sobretudo Faacutebio Pictor Valeacuterio

Antias (cronista do seacuteculo I aC do periacuteodo posterior a Sila) e Liciacutenio Macer

294

De fato como destaca Forsythe (2005 p 59) apenas Liacutevio e Dioniacutesio de Halicarnasso deixaram uma

quantidade substancial de material sobre a primitiva Roma e ambos escreveram nas uacuteltimas deacutecadas do

seacuteculo I aC Todos os outros autores que escreveram sobre o periacuteodo remoto da histoacuteria romana nos

chegaram muito fragmentados 295

Cf p 11 sobre as taacutebulas com os eventos listados pelo pontiacutefice maacuteximo 296

Levene (in MARINCOLA 2007 v 1 p 280) destaca que jaacute na Antiguidade havia o reconhecimento

de que Saluacutestio e Liacutevio representavam o ponto alto na historiografia do periacuteodo republicano e sempre

foram considerados duas figuras contrastantes (como escreveu o proacuteprio Quintiliano Inst II 5 18)

Quintiliano (Inst X 1 101) igualmente comparou Saluacutestio com Tuciacutedides e Liacutevio com Heroacutedoto Em

contexto latino Saluacutestio era o pessimista desiludido com a corrupta poliacutetica romana Liacutevio por sua vez

era o otimista (ingecircnuo ateacute) que celebrava a antiga virtude romana em uma grande escala analiacutetica

(LEVENE In MARINCOLA 2007 v 1 p 280) 297

Liacutevio dessa forma coloca sua obra dentro da tradiccedilatildeo de ktisis ou seja de contar os fatos desde a

fundaccedilatildeo da Urbe (cf p 10 deste trabalho) 298

Traduccedilatildeo de Joatildeo Angelo Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)

156

(proeminente poliacutetico contemporacircneo de Ciacutecero)299

Para narrar a expansatildeo de Roma no

Mediterracircneo Liacutevio usou especialmente Poliacutebio de quem mais do que outras fontes

tomou a visatildeo unificada do mundo mediterracircneo e as relaccedilotildees entre Roma e os reinos

heleniacutesticos sobretudo nos livros finais de Ab urbe condita (CONTE 1999 p 369)300

Apesar desse uso de Poliacutebio como fonte Liacutevio rejeitava a sua visatildeo pragmaacutetica da

histoacuteria301

As descriccedilotildees do estilo de vida dos gauleses feitas por Poliacutebio (II 17 e ss)

foram bastante uacuteteis a Liacutevio (RANKIN 1996 p 72) Liacutevio preferia acentuar o aspecto

traacutegico da narrativa embelezando e variando os acontecimentos de acordo com a

retoacuterica historiograacutefica de Ciacutecero ao inveacutes de se comprometer com o apuro

historiograacutefico302

Sobre esse aspecto mais literaacuterio do que historiograacutefico de Liacutevio

Conte (1999 p 369) lembra

It has often been emphasized that Livy does not appear to carry out his

historic l work on the b sis of c reful critic l ev lu tion of his sources (hellip)

Furthermore he conspicuously fails to fill the gaps in the historiographic

tradition by having recourse to other kinds of documentation which may

have been readily accessible thus Livy makes very scant use of the

documentation to be found in manuscripts and ancient inscriptions or of the

results obtained by the scrupulous research of antiquarians from the previous

generation such as Atticus and Varro Consequently he has frequently been

seen as a mere exornator rerum whose chief concern is to amplify and

embellish what he found in his source by dramatizing it by giving it variety

and movement 303

Liacutevio como dissemos priorizava o aspecto dramaacutetico em sua obra mas sem

deixar que essa caracteriacutestica se sobrepusesse aos fatos (CONTE 1999 p 372) Assim

para ele a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo e devia respeitar

os acontecimentos e os embelezar com as cores do estilo de acordo com o que pregava

Ciacutecero304

Assim Conte (1999 p 372) pontua

299

Para detalhes sobre esses e outros autores (como L Caacutessio Hemina e Q Claacuteudio Quadrigaacuterio) cf

FORSYTHE 2005 p 62 e ss 300

Como destaca Oliver (In BUGH 2006 p 115) o trabalho de Poliacutebio foi base para partes relevantes

da histoacuteria de Liacutevio (especialmente os livros XXXI a CXLV) 301

Para aprofundamento sobre o meacutetodo de trabalho de Liacutevio bem como as fontes utilizadas por ele cf

Ogilvie (1965 p 5 e ss) e tambeacutem Luce (1977) 302

Cf a concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero na paacutegina 78 e ss 303

―Frequentemente foi enf tiz do que Liacutevio natildeo parece realizar seu trabalho histoacuterico com base em uma

cuidadosa avaliaccedilatildeo criacutetica de suas fontes () Aleacutem disso ele evidentemente falha em preencher as

lacunas na tradiccedilatildeo historiograacutefica ao recorrer a outros tipos de documentaccedilatildeo que possivelmente

estariam facilmente disponiacuteveis portanto Liacutevio faz um uso muito escasso da documentaccedilatildeo a ser

encontrada em manuscritos e antigas inscriccedilotildees ou de resultados obtidos em escrupulosa pesquisa de

antiquaacuterios de uma geraccedilatildeo anterior como Aacutetico e Varratildeo Consequentemente ele frequentemente foi

visto como um mero exornator rerum cuja principal preocupaccedilatildeo era amplificar e ornamentar o que ele

encontrou em sua fonte ao dramatizaacute-la dando-lhe v ried de e movimento 304

No proacuteximo subcapiacutetulo aprofundaremos a influecircncia de Ciacutecero na concepccedilatildeo historiograacutefica de Liacutevio

157

Livy conceives history not as a political study that explains attitudes and

events and takes into account strategies of parties and factions ideologies and

material interests but rather as a narrative that is conducted in terms of

human personalities and representative individuals The moral passion that

marks such a conception derives in part from the Hellenistic historiographic

tradition This was probably the manner of historical interpretation that

characterized the works now lost of historians such as Ephorus305

Por conseguinte Liacutevio julgava sua histoacuteria mais como uma rica atividade

retoacuterica do que uma investigaccedilatildeo da verdade como ele colocou no prefaacutecio (sect6) do Ab

urbe cond quae ante conditam condendamue urbem poeticis magis decora fabulis

quam incorruptis rerum gestarum monumentis traduntur ea nec adfirmare nec refellere

in animo est (― s tradiccedilotildees que antes de fundada a cidade ou de pensar-se em fundaacute-la

nos chegam adornadas mais pelas efabulaccedilotildees dos poetas do que por provas autecircnticas

das accedilotildees realizadas essas tradiccedilotildees natildeo tenho em mente nem confirmar nem

refut r )306

O maior propoacutesito do historiador era o de mostrar que as qualidades morais

e intelectuais dos personagens da narrativa tinham impacto decisivo nos eventos Liacutevio

considerava que os sucessos (e fracassos) dos romanos eram fundamentalmente

explicados pelos valores que os personagens desempenhavam na narrativa dramaacutetica

como veremos a seguir no proacuteximo subcapiacutetulo

341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana

Liacutevio como citado antes foi o primeiro historiador de que temos notiacutecia que natildeo

pertenceu agrave aristocracia senatorial romana nem sequer teve um cargo militar307

A

maior ocupaccedilatildeo de sua vida foi a redaccedilatildeo de Ab urbe condita escrita respeitando vaacuterios

dos pressupostos metodoloacutegicos preconizados por Ciacutecero Um desses fundamentos era

sobre a historia ornata ou seja a histoacuteria embelezada308

Ainda sobre o rico estilo de

Liacutevio Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 645) lembra

305

―Liacutevio concebe histoacuteri natildeo como um estudo poliacutetico que explica atitudes e eventos e que leva em

conta estrateacutegias de partidos e facccedilotildees ideologias e interesses materiais mas sim como uma narrativa que

eacute conduzida em termos de personalidades humanas e indiviacuteduos representativos A paixatildeo moral que

marca tal concepccedilatildeo deriva em parte da tradiccedilatildeo historiograacutefica heleniacutestica Essa era provavelmente a

maneira de interpretaccedilatildeo histoacuterica que caracterizava os trabalhos agora perdidos de historiadores como

Eacuteforo 306

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 307

Ciacutecero considerava que o orador encarregado de escrever histoacuteria tambeacutem deveria ser um homem

puacuteblico (cf p 77 deste trabalho) Ao contraacuterio de todos os historiadores ateacute entatildeo Liacutevio foi o primeiro

cidadatildeo particular a se dedicar agrave histoacuteria 308

Cf p 79-80

158

His resources in language and deployment of his material were everything

that Cicero himself could have wished Avoiding Sallustian abruptness he

yet contrived a swift and varied narrative built from a rich vocabulary and an

immense flexibility of construction309

Como destaca Sebastiani (in JOLY 2007 p 84) Ciacutecero tambeacutem preconizava

que o historiador deveria se ater exclusivamente agrave composiccedilatildeo da narrativa natildeo

necessariamente embasando seu texto em uma experiecircncia proacutepria ou vivecircncia dos fatos

ndash como preconizava Heroacutedoto e Tuciacutedides ndash ou se preocupando com uma abordagem

pragmaacutetica como fizera Poliacutebio Liacutevio buscou centrar-se nas accedilotildees humanas e nas suas

consequecircncias Aleacutem disso uma caracteriacutestica marcante na historiografia latina que

tambeacutem tem destaque em Liacutevio era a preocupaccedilatildeo em analisar os fatos sob o prisma das

questotildees morais bem como fornecer vaacuterios exempla de boas (e maacutes) condutas310

O

proacuteprio Liacutevio assim escreveu no prefaacutecio (sect10)

Hoc illud est praecipue in cognitione rerum salubre ac frugiferum omnis te

exempli documenta in inlustri posita monumento intueri inde tibi tuaeque rei

publicae quod imitere capias inde foedum inceptu foedum exitu quod uites

Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos

histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora

ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por

princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar311

Tambeacutem sobre o papel pedagoacutegico da histoacuteria assim afirma Sebastiani (in

JOLY 2007 p 95) ―Fruto d rte retoacuteric n concepccedilatildeo ciceroni n histoacuteri

identifica a instruccedilatildeo do leitor e a preservaccedilatildeo da memoacuteria como meio de

entretenimento deleitoso 312

Devemos lembrar que Liacutevio ao contraacuterio do que

preconizava Ciacutecero natildeo se preocupou em fornecer exemplos com finalidades poliacuteticas

ou relacionados agrave vida puacuteblica Sem duacutevida com o novo sistema de governo iniciado

com Otaacutevio Augusto esse tipo de exemplificaccedilatildeo perdeu o sentido de existir Por

conseguinte o grande foco de Ab urbe condita era o de ajudar o cidadatildeo comum a se

desenvolver moralmente ao acompanhar os antigos feitos e como as virtudes (e os

viacutecios) influenciavam no rumo dos acontecimentos O uso de exempla por parte de

Liacutevio confirmava a grande capacidade retoacuterica pela qual ele foi elogiado e como

309

―Seus recursos de lingu gem e o desenvolvimento do seu m teri l for m tudo o que o proacuteprio Ciacutecero

poderia ter desejado Evitando a brusquidatildeo salustiana ele poreacutem efetuou uma narrativa raacutepida e variada

construiacuteda a partir de um rico vocabulaacuterio e um imens flexibilid de de construccedilatildeo 310

Tambeacutem segundo Ciacutecero esses exemplos serviriam como meio de os homens melhorarem sua proacutepria

conduta (cf p 78 e 79) 311

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 312

Para o que o proacuteprio Ciacutecero escreveu sobre isso cf na p 78 o trecho de Orador cap 120

159

destaca Chaplin (2000 p 72) era um ponto central em sua visatildeo de histoacuteria a

capacidade de manipular a percepccedilatildeo de uma audiecircncia sobre o passado vem da

oratoacuteria Liacutevio poreacutem transformou essa caracteriacutestica em uma ferramenta de

interpretaccedilatildeo histoacuterica Os personagens de dentro do texto ensinavam os romanos de

fora a verdade simples e direta do que Liacutevio considerava como o verdadeiro valor da

histoacuteria as liccedilotildees deveriam ser lidas e entatildeo imitadas ou evitadas (CHAPLIN 2000 p

77)313

Liacutevio ao escrever sua histoacuteria levando em conta tanto o aspecto retoacuterico de

fornecer exemplos quanto o aspecto de deleitar seu puacuteblico com uma narrativa

extremamente trabalhada e dramatizada aparentemente alcanccedilou enorme sucesso ainda

em vida caso possamos confiar nas fontes a esse respeito (embora posteriores ao

autor)314

Ab urbe condita por todas as caracteriacutesticas mencionadas anteriormente de

cert form virou um espeacutecie de ―eacutepic n cion l que eclipsou todos os n is

anteriores que descreviam os fatos ocorridos ano a ano (SEBASTIANI In JOLY

2007 p 88)

342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio

O regime poliacutetico de Augusto aparentemente natildeo tentou controlar as obras

historiograacuteficas como fez com a poesia Virgiacutelio Horaacuterio entre outros em seus versos

celebravam a nova forma de governo como um renascimento moral romano (MARTIN

GAILLARD 1981 p 124) Liacutevio poreacutem jaacute no prefaacutecio de sua obra deixava entrever

um pouco do seu pessimismo315

Temos um exemplo no prefaacutecio (sect4)

Res est praeterea et immensi operis ut quae supra septingentesimum annum

repetatur et quae ab exiguis profecta initiis eo creuerit ut iam magnitudine

laboret sua et legentium plerisque haud dubito quin primae origines

proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad

haec noua quibus iam pridem praeualentis populi uires se ipsae conficiunt

A histoacuteria de Roma eacute aleacutem disso digna de grande esforccedilo jaacute que remonta

para mais de 700 anos e porque a Cidade partindo de exiacuteguos iniacutecios a tal

ponto cresceu que jaacute padece de sua proacutepria grandeza e agrave maioria dos leitores

natildeo tenho duacutevida de que as primeiras origens e as partes proacuteximas agraves origens

313

Para discussatildeo profunda sobre o papel dos exempla em Liacutevio recomendamos o livro de Chaplin

(2000) 314

Dentre autores da Antiguidade que elogiaram Liacutevio temos Secircneca (De ira I206) Pliacutenio o Jovem

(Ep II38) Taacutecito (Ann IV343) e Quintiliano (Inst X 1101) 315

Para maior aprofundamento sobre o pessimismo em Liacutevio e na historiografia latina cf MARTIN

GAILLARD 1981 p 123 a 125

160

seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos tempos

em que as forccedilas de um povo antes altivo jaacute se destroem a si mesmas316

Acima Liacutevio deixou claro que Roma jaacute estava em decliacutenio durante a sua eacutepoca

sofrendo com a proacutepria grandeza De fato o historiador natildeo chegou a ser opositor de

Augusto mas tambeacutem natildeo era um entusiasta do novo tipo de governo (CONTE 1999

p 369) Taacutecito (Ann IV 34) contou que Augusto chegou a fazer um comentaacuterio jocoso

sobre Liacutevio chamando-o de pompeiano pelo fato de o historiador ter certa nostalgia

pelos ideais republicanos que foram inclusive refletidos em sua obra317

Contudo

como a parte de Ab urbe condita que narrava sobre a guerra civil entre Pompeu e Ceacutesar

se perdeu natildeo eacute possiacutevel saber ateacute que ponto Liacutevio defendeu os ideais republicanos318

Como Conte (1999 p 370) ressalta atraveacutes do proacuteprio Taacutecito ainda foi possiacutevel saber

que Liacutevio elogiou Pompeu e foi respeitoso em relaccedilatildeo aos oponentes de Ceacutesar

incluindo aiacute os seus assassinos Bruto e Caacutessio Tal fato natildeo era assim tatildeo temeraacuterio pois

Augusto ndash especialmente apoacutes a reforma constitucional de 27 aC ndash gostaria de ser visto

pelo povo mais como o restaurador da antiga repuacuteblica do que como herdeiro de Ceacutesar

Tambeacutem era um ponto a favor de Liacutevio o fato de ele ter se preocupado em narrar fatos

entremeados de exemplos morais para os cidadatildeos o que ia ao encontro da poliacutetica de

Augusto de restabelecer os tradicionais valores morais e religiosos dos romanos

Todavia Liacutevio deixa claro que o novo regime instaurado com Augusto natildeo era uma

volta agrave era de ouro tatildeo alardeada por Virgiacutelio Um exemplo disso encontra-se no

prefaacutecio de Ab urbe condita (sect9)

ad illa mihi pro se quisque acriter intendat animum quae uita qui mores

fuerint per quos uiros quibusque artibus domi militiaeque et partum et

auctum imperium sit labente deinde paulatim disciplina uelut desidentes

primo mores sequatur animo deinde ut magis magisque lapsi sint tum ire

coeperint praecipites donec ad haec tempora quibus nec uitia nostra nec

remedia pati possumus peruentum est

Cada um deve ao meu ver com o maacuteximo de si dirigir vivamente a atenccedilatildeo

a outros assuntos que vida e que costumes tiveram os antigos romanos por

meio de que homens e com que meios na paz e na guerra o impeacuterio surgiu e

cresceu em seguida fraquejando aos poucos a disciplina dever-se-ia rastrear

316

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 317

Taacutecito narrou esse episoacutedio no contexto da defesa de Cremuacutecio Cordo entatildeo acusado de crime contra

o governo por ter publicado uma obra historiograacutefica na qual elogiava Bruto e Caacutessio Cremuacutecio entatildeo

discursou falando assim ―( ) Dizem que elogiei Bruto e Caacutessio cujos feitos jaacute muitos memor r m

ningueacutem sem louvores Tito Liacutevio entre os mais assinalados por sua eloquecircncia e lealdade com tanto

calor exaltou Cn Pompeu que Augusto lhe chamou pompeano e isto natildeo prejudicou a sua reciacuteproca

miz de ( ) P r esse trecho utiliz mos tr duccedilatildeo feit por Pereir (TAacuteCITO 1964 p 163) 318

Martin (2000 p 112-124) analisando os resumos das Periochae faz uma interessante discussatildeo sobre

Liacutevio como cesariano ou pompeiano

161

como os costumes de iniacutecio soltos por assim dizer depois cada vez mais

relaxaram e entatildeo comeccedilaram a ir por terra ateacute chegar-se a estes tempos em

que natildeo podemos suportar nem nossos viacutecios nem seus remeacutedios319

Nota-se pelo trecho acima que Liacutevio percebia que a antiga virtude dos romanos

foi com o tempo sendo perdida ateacute chegar agrave sua fase na qual natildeo podiam ser

suport dos nem ―os viacutecios nem seus remeacutedios P r ele crise d s recentes guerr s

civis natildeo tinha sido solucionada de forma completamente satisfatoacuteria e nem o

principado era a soluccedilatildeo milagrosa que salvaria Roma de seu decliacutenio (CONTE 1999

p 370 e 371) Aleacutem disso Liacutevio deixou claro que queria falar de assuntos relacionados

agrave vida e costumes dos romanos rejeitando o caraacuteter pragmaacutetico da histoacuteria

Outro trecho que sintetiza o que discutimos acima estaacute tambeacutem no prefaacutecio

(sect11)

Ceterum aut me amor negotii suscepti fallit aut nulla unquam res publica

nec maior nec sanctior nec bonis exemplis ditior fuit nec in quam

[ciuitatem] tam serae auaritia luxuriaque immigrauerint nec ubi tantus ac

tam diu paupertati ac parsimoniae honos fuerit

De resto ou o amor do empreendimento me engana ou nunca Estado algum

houve nem maior nem mais iacutentegro nem mais rico de bons exemplos nem

cidade agrave qual imigraram tatildeo tardios a ganacircncia e o excesso e onde se prestou

tatildeo grande honra e por tanto tempo agrave frugalidade e parcimocircnia320

Embora deixasse claro o seu desencanto com o principado Liacutevio contudo

apoiava a supremacia romana e o seu domiacutenio sobre os outros povos No prefaacutecio

temos (sect7)

Datur haec uenia antiquitati ut miscendo humana diuinis primordia urbium

augustiora faciat et si cui populo licere oportet consecrare origines suas et

ad deos referre auctores ea belli gloria est populo Romano ut cum suum

conditorisque sui parentem Martem potissimum ferat tam et hoc gentes

humanae patiantur aequo animo quam imperium patiuntur

Eacute dada esta vecircnia aos antigos para que reunindo accedilotildees humanas agraves divinas

tornem mais veneraacutevel o primoacuterdio das cidades e se a algum povo se deve

permitir consagrar suas origens e os deuses referir como fundadores a gloacuteria

do povo romano eacute tal que quando apontam o poderosiacutessimo Marte como pai

e pai de seu fundador os povos natildeo soacute aceitam isso de bom grado como

tambeacutem aceitam o impeacuterio321

319

Novamente recorremos agrave traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) Liacutevio tambeacutem deixa

entrever seu desgosto com a eacutepoca em que vivia no Prefaacutecio sect 4 11 e 12 320

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 321

Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)

162

Liacutevio legitimou a soberania romana afirmando que a origem da urbe era a mais

veneraacutevel e por conseguinte o povo era o mais glorioso Nota-se uma grande mudanccedila

de mentalidade sobre a motivaccedilatildeo imperialista do periacuteodo republicano (e que perdurou

ateacute Ciacutecero) para a fase do principado Se antes o domiacutenio era legitimado pela

honestid de com que Rom exerci su utorid de e teacute por um ―guerr just contr

os inimigos em Liacutevio percebemos que essa legitimaccedilatildeo se devia agrave gloacuteria romana e

tambeacutem agraves suas origens eminentes e divin s O povo rom no est ri ―destin do

imperar porque era o melhor e as proacuteprias naccedilotildees subjugadas reconhecendo esse

―direito de bom gr do ceit ri m o impeacuterio 322

Nos trechos que restaram de sua obra eacute

possiacutevel identificar passagens que justificavam isso sobretudo da forte cooperaccedilatildeo entre

a Fortuna (em sua essecircncia a divina providecircncia) e a uirtus do povo romano nenhum

povo poderia fazer frente ao romano jaacute que nenhum povo poderia dispor de uma forccedila

moral comparaacutevel agrave autoridade em que Roma fora fundada (CONTE 1999 p 371)323

35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita

Tito Liacutevio retratou os celtas de forma bem diferente do que fizera Ceacutesar Ele foi

bastante enfaacutetico em ressaltar toda a barbaacuterie e selvageria desse povo (e tambeacutem de

qualquer outra naccedilatildeo rival de Roma) e isso se justificava pelo caraacuteter majoritariamente

moralista e nacionalista de sua obra Evidentemente os gauleses tambeacutem tinham sua

ferocidade exacerbada bem como estereoacutetipos de comportamentos beacutelicos como uma

forma de abrilhantar as vitoacuterias romanas Assim Liacutevio buscou sempre enfatizar o

caraacuteter inferior tanto da cultura quanto da moral dos inimigos e passou longe de uma

generosa descriccedilatildeo (ou isenta ateacute de julgamento) como o fizera Ceacutesar no De bello

Gallico

Para ilustrar o que descrevemos acima vamos comeccedilar analisando o livro V de

Ab urbe condita que fala dos acontecimentos que vatildeo da migraccedilatildeo dos gauleses para a

Itaacutelia ateacute o saque de Roma Assim temos (Ab urbe cond V 34)

322

No subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista)

levantamos essa discussatildeo sobre os motivos que os romanos usavam para legitimar a conquista sobre

outros povos Conferir especialmente p 95-96 323

De acordo com o sect4 do prefaacutecio Liacutevio deixou claro que o uacutenico que poderia derrotar o romano era o

proacuteprio romano (cf p 155)

163

De transitu in Italiam Gallorum haec accepimus Prisco Tarquinio Romae

regnante Celtarum quae pars Galliae tertia est penes Bituriges summa

imperii fuit ii regem Celtico dabant Ambigatus is fuit uirtute fortunaque

cum sua tum publica praepollens quod in imperio eius Gallia adeo frugum

hominumque fertilis fuit ut abundans multitudo uix regi uideretur posse Hic

magno natu ipse iam exonerare praegrauante turba regnum cupiens

Bellouesum ac Segouesum sororis filios impigros iuuenes missurum se esse

in quas di dedissent auguriis sedes ostendit quantum ipsi uellent numerum

hominum excirent ne qua gens arcere aduenientes posset Tum Segoueso

sortibus dati Hercynei saltus Belloueso haud paulo laetiorem in Italiam

uiam di dabant Is quod eius ex populis abundabat Bituriges Aruernos

Senones Haeduos Ambarros Carnutes Aulercos exciuit Profectus

ingentibus peditum equitumque copiis in Tricastinos uenit Alpes inde

oppositae erant quas inexsuperabiles uisas haud equidem miror nulladum

uia quod quidem continens memoria sit nisi de Hercule fabulis credere

libet superatas Ibi cum uelut saeptos montium altitudo teneret Gallos

circumspectarentque quanam per iuncta caelo iuga in alium orbem terrarum

transirent religio etiam tenuit quod allatum est aduenas quaerentes agrum

ab Saluum gente oppugnari Massilienses erant ii nauibus a Phocaea

profecti Id Galli fortunae suae omen rati adiuuere ut quem primum in

terram egressi occupauerant locum patientibus Saluis communirent Ipsi per

Taurinos saltus quiete Alpis transcenderunt fusisque acie Tuscis haud

procul Ticino flumine cum in quo consederant agrum Insubrium appellari

audissent cognominem Insubribus pago Haeduorum ibi omen sequentes loci

condidere urbem Mediolanium appellarunt

Sobre a vinda dos gauleses para a Itaacutelia conhecemos isto enquanto

Tarquiacutenio Prisco era rei em Roma estiveram os maiores domiacutenios dos celtas

em poder dos bituacuteriges (que compotildeem a terccedila parte da Gaacutelia) e foram esses

que deram um rei ao povo ceacuteltico Foi ele Ambigato entatildeo muito poderoso

pela virtude e fortuna sua e do seu povo no governo dele a Gaacutelia ateacute entatildeo

fora tatildeo feacutertil em cereais e homens que com custo tamanha multidatildeo

pareceria ser governada Ele estando idoso e jaacute desejando livrar o reino de

uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso

filhos da sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes

mostrariam por meio de auguacuterios Eles mesmos deveriam chamar o nuacutemero

de homens que quisessem de modo que nenhuma naccedilatildeo pudesse repelir a sua

chegada Assim a Segoveso foi dada pelos oraacuteculos a floresta Herciacutenia a

Beloveso os deuses concederam um caminho mais favoraacutevel para a Itaacutelia

Beloveso chamou o excedente dos seus povos bituacuteriges arvernos secircnones

eacuteduos ambarros carnutos e aulercos Partindo com grandes tropas de

soldados e cavaleiros chegou ateacute aos tricastinos324

Nesse lugar estavam

opostos os Alpes sem duacutevida natildeo me espanto que eles pareccedilam insuperaacuteveis

jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como certamente temos na

memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas sobre Heacutercules Nesse

local como a altura das montanhas mantivesse os gauleses retidos eles

examinavam os arredores por onde haveriam de passar atraveacutes de cimos

quase unidos ao ceacuteu para outro mundo de terras Tambeacutem a religiatildeo os

retinha pois lhes fora anunciado que estrangeiros desejosos de terra eram

atacados pelo povo saluacutevio325

Esses estrangeiros eram os marselheses que

vieram da Foceia em navios Os gauleses considerando isso o pressaacutegio de

sua sorte os ajudaram a fortificar o primeiro local que ocuparam ao chegar a

essa terra sendo os saluacutevios suportados Eles mesmos atravessaram

324

Povo da Gaacutelia Narbonense 325

Ogilvie (1965 p 711) diz que o termo correto em latim para os salvos era salluvii (saluacutevios) povo que

vivia entre o Roacutedano e os Alpes mariacutetimos A confusatildeo de saluacutevios por salvos se justifica pela influecircncia

grega jaacute que nessa liacutengua essa naccedilatildeo era conhecida como Σάιιπεο Mantivemos a traduccedilatildeo como saluacutevio

em todas as passagens em que Liacutevio menciona essa tribo

164

tranquilamente os Alpes atraveacutes do desfiladeiro taurino326

tendo expulsado

os etruscos em uma batalha natildeo muito longe do rio Ticino ouviram que eles

se encontravam naquele local que era chamado campo dos iacutensubres o nome

da povoaccedilatildeo dos iacutensubres e dos eacuteduos Nesse lugar seguindo eles o

pressaacutegio fundaram uma cidade que chamaram de Mediolano327

(grifos

nossos)

A migraccedilatildeo dos gauleses segundo Liacutevio fora motivada pela grande multidatildeo de

pessoas o que levaria a uma superpopulaccedilatildeo e tambeacutem ao caos O trecho acima

menciona que a Gaacutelia era muito feacutertil em terras e homens somente Liacutevio citou essa

motivaccedilatildeo uacutenica e inacreditaacutevel de campo fecundo para uma migraccedilatildeo as outras fontes

como o proacuteprio Ceacutesar apontaram que o motivo foi a escassez de territoacuterio328

Possivelmente Liacutevio se confundiu e acabou falando em fertilidade de terra e de homens

quando o mais provaacutevel seria apenas fertilidade de homens (OGILVIE 1965 p 708)

Liacutevio situou esse acontecimento no reinado de Tarquiacutenio Prisco ou seja por volta de

600 aC Os bituacuteriges eram considerados por Liacutevio como os liacutederes dos celtas que

compunham a terceira parte da Gaacutelia o que imediatamente remete ao famoso proecircmio

do De bello Gallico Como Ogilvie (1965 p 707) pontua apenas Ceacutesar e Liacutevio

consideravam os celtas como sendo aqueles que habitavam a aacuterea central da Gaacutelia entre

os rios Garona e Marne Em todos os outros que escreveram a esse respeito os termos

gaulecircs e celta eram usados indistintamente para todo o conjunto eacutetnico das naccedilotildees da

Gaacutelia Liacutevio tambeacutem destacou que uma parte desses celtas se estabeleceram nas

proximidades da floresta Herciacutenia Ceacutesar tambeacutem mencionou o fato de gauleses

motivados pela grande populaccedilatildeo e escassez de terra terem estabelecido colocircnias

proacuteximas agrave floresta Herciacutenia329

Liacutevio ainda ressaltou que o oraacuteculo indicando o

caminho da Itaacutelia foi mais favoraacutevel a Beloveso do que a Segoveso De fato a floresta

Herciacutenia proacutexima do Reno estava bastante perto dos germanos e por isso era uma

localidade menos agradaacutevel tanto pela proacutepria ferocidade dos germanos quanto pelo

clima adverso Ogilvie (1965 p 713) detalha sobre esses povos citados nesse trecho

(eacuteduos secircnones arvernos etc) o conflito entre etruscos e gauleses na uacuteltima metade do

seacuteculo V aC foi confirmado por meio de estelas funeraacuterias de Bolonha

Destacamos tambeacutem o seguinte trecho (V 35)

326

Esse desfiladeiro taurino estaria proacuteximo de onde hoje eacute a cidade de Turim (Ogilvie 1965 p 712) 327

Atual Milatildeo 328

Cf BGall VI 24 na p 128 329

Cf novamente o BGall VI 24

165

Alia subinde manus Cenomanorum Etitouio duce uestigia priorum secuta

eodem saltu fauente Belloueso cum transcendisset Alpes ubi nunc Brixia ac

Verona urbes sunt locos tenuere Libui considunt post hos Salluuiique prope

antiquam gentem Laeuos Ligures incolentes circa Ticinum amnem

Poeninum deinde Boii Lingonesque transgressi cum iam inter Padum atque

Alpes omnia tenerentur Pado ratibus traiecto non Etruscos modo sed etiam

Vmbros agro pellunt intra Appenninum tamen sese tenuere Tum Senones

recentissimi aduenarum ab Vtente flumine usque ad Aesim fines habuere

Hanc gentem Clusium Romamque inde uenisse comperio id parum certum

est solamne an ab omnibus Cisalpinorum Gallorum populis adiutam Clusini

nouo bello exterriti cum multitudinem cum formas hominum inuisitatas

cernerent et genus armorum audirentque saepe ab iis cis Padum ultraque

legiones Etruscorum fusas quamquam aduersus Romanos nullum eis ius

societatis amicitiaeue erat nisi quod Veientes consanguineos aduersus

populum Romanum non defendissent legatos Romam qui auxilium ab senatu

peterent misere De auxilio nihil impetratum legati tres M Fabi Ambusti filii

missi qui senatus populique Romani nomine agerent cum Gallis ne a

quibus nullam iniuriam accepissent socios populi Romani atque amicos

oppugnarent Romanis eos bello quoque si res cogat tuendos esse sed

melius uisum bellum ipsum amoueri si posset et Gallos nouam gentem pace

potius cognosci quam armislsquo

Logo depois outro grupo de cenomanos tendo por liacuteder Etitovio seguiu os

passos dos precedentes e com a ajuda de Beloveso atravessou os Alpes pelo

mesmo desfiladeiro esse grupo ocupou os lugares onde hoje estatildeo as cidades

de Briacutexia e Verona Os liacutebuos se estabeleceram depois desses e tambeacutem os

saluacutevios perto da antiga tribo dos levos liacutegures que habitavam proacuteximo ao rio

Ticino330

Em seguida tendo os boios e os liacutengones atravessado os Apeninos

como jaacute estivessem ocupadas todas as terras entre o rio Poacute e os Alpes com

barcos atravessaram o Poacute e expulsaram da terra natildeo soacute os etruscos mas

tambeacutem os umbros contudo eles se estabeleceram nos limites dos Apeninos

Entatildeo os secircnones que vieram por uacuteltimo tomaram o territoacuterio do rio Utente

ateacute o rio Eacutesis Eu soube que foi essa a tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para

Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram ou natildeo com o apoio de

todos os povos da Gaacutelia Cisalpina Os clusinos aterrorizados com essa guerra

singular ao ver a multidatildeo de figuras desconhecidas tanto de homens quanto

de tipo de armas e ouvindo que por vaacuterias vezes as tropas dos etruscos foram

dispersadas do lado de caacute e do lado de laacute do Poacute enviaram emissaacuterios a Roma

para que pedissem auxiacutelio ao senado embora natildeo tivessem com os romanos

nenhum direito de alianccedila ou amizade ndash com exceccedilatildeo do fato de eles natildeo

terem defendido os seus parentes de Veios contra o povo romano Sobre o

auxiacutelio nada foi obtido poreacutem foram enviados trecircs legados filhos de Marco

Faacutebio Ambusto para que em nome do senado e do povo romano tivessem

com os g uleses ―p r que natildeo lut ssem contr os li dos e migos do povo

romano pois natildeo tinham recebido deles nenhuma injuacuteria Pelos romanos eles

seriam defendidos atraveacutes da guerra se algo se sucedesse mas parecia

melhor a proacutepria guerra ser evitada se pudesse e que os gauleses uma gente

receacutem conhecid fossem conhecidos m is pel p z do que pel s rm s

Liacutevio mencionou essas sucessivas levas migratoacuterias dos gauleses (cenomanos

liacutebuos boios liacutengones e os secircnones) de forma condensada de acordo com Ogilvie

(1965 p 713) esses deslocamentos ocorreram num intervalo temporal de 200 anos

Liacutevio para esse trecho usou como fonte Poliacutebio (II 17) com algumas poucas

330

Os liacutebuos eram uma tribo gaulesa e os levos era uma naccedilatildeo liacutegure ambos viviam onde hoje estaacute a

riviera francesa e italiana (OGILVIE 1965 p 714)

166

modificaccedilotildees No capiacutetulo acima comeccedila a se desenrolar a accedilatildeo que vai culminar na

derrota dos romanos por parte dos gauleses Abaixo a sequecircncia dos eventos (V 36)

Mitis legatio ni praeferoces legatos Gallisque magis quam Romanis similes

habuisset Quibus postquam mandata ediderunt in concilio Gallorum datur

responsum etsi nouum nomen audiant Romanorum tamen credere uiros

fortes esse quorum auxilium a Clusinis in re trepida sit imploratum et

quoniam legatione aduersus se maluerint quam armis tueri socios ne se

quidem pacem quam illi adferant aspernari si Gallis egentibus agro quem

latius possideant quam colant Clusini partem finium concedant aliter

pacem impetrari non posse Et responsum coram Romanis accipere uelle et

si negetur ager coram iisdem Romanis dimicaturos ut nuntiare domum

possent quantum Galli uirtute ceteros mortales praestarentlsquo Quodnam id

ius esset agrum a possessoribus petere aut minari armalsquo Romanis

quaerentibus et quid in Etruria rei Gallis essetlsquo cum illi se in armis ius

ferre et omnia fortium uirorum esselsquo ferociter dicerent accensis utrimque

animis ad arma discurritur et proelium conseritur Ibi iam urgentibus

Romanam urbem fatis legati contra ius gentium arma capiunt Nec id clam

esse potuit cum ante signa Etruscorum tres nobilissimi fortissimique

Romanae iuuentutis pugnarent tantum eminebat peregrina uirtus Quin

etiam Q Fabius euectus extra aciem equo ducem Gallorum ferociter in

ipsa signa Etruscorum incursantem per latus transfixum hasta occidit

spoliaque eius legentem Galli agnouere perque totam aciem Romanum

legatum esse signum datum est Omissa inde in Clusinos ira receptui canunt

minantes Romanis Erant qui extemplo Romam eundum censerent uicere

seniores ut legati prius mitterentur questum iniurias postulatumque ut pro

iure gentium uiolato Fabii dederentur Legati Gallorum cum ea sicut erant

mandata exposuissent senatui nec factum placebat Fabiorum et ius postulare

barbari uidebantur sed ne id quod placebat decerneret in tantae nobilitatis

uiris ambitio obstabat Itaque ne penes ipsos culpa esset [cladis forte

Gallico bello acceptae] cognitionem de postulatis Gallorum ad populum

reiciunt ubi tanto plus gratia atque opes ualuere ut quorum de poena

agebatur tribuni militum consulari potestate in insequentem annum

crearentur Quo facto haud secus quam dignum erat infensi Galli bellum

propalam minantes ad suos redeunt Tribuni militum cum tribus Fabiis

creati Q Sulpicius Longus Q Seruilius quartum P Cornelius Maluginensis

A delegaccedilatildeo seria paciacutefica se natildeo fossem os emissaacuterios tatildeo violentos que

mais parecessem gauleses do que romanos A eles depois que anunciaram os

assuntos ordenados no conselho dos gauleses foi dada a seguinte resposta

― ind que escut ssem pel primeir vez o nome dos rom nos contudo

acreditavam que eles eram os homens fortes aos quais pelos clusinos tenha

sido implorado o auxiacutelio em uma ocasiatildeo alarmante como eles preferiram

defender os aliados mais com uma embaixada do que com armas na verdade

eles natildeo haveriam de recusar a paz se aos gauleses necessitados de terra os

clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais

terra de outra maneira a paz natildeo poderia ser obtida Desejavam receber a

resposta diante dos romanos e se a terra fosse negada diante dos mesmos

romanos eles haveriam de combater de modo que eles pudessem anunciar agrave

sua paacutetria o quanto os gauleses ultrapassavam os outros mortais em valor

Os rom nos pergunt r m ―que interesse tinh m os g uleses n Etruacuteri

Como eles respondessem ferozmente que ―tinham o direito atraveacutes das

armas e tudo pertencia aos homens mais fortes dess form os acircnimos de

um e outro lado se inflamaram Eles correram para as armas e travaram

combate Entatildeo jaacute estando a urbe romana proacutexima ao seu destino funesto os

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas Isso natildeo

pocircde ser feito agraves escondidas jaacute que os trecircs homens nobres e fortiacutessimos da

juventude romana lutavam diante dos estandartes dos etruscos e muito se

167

elevava o valor estrangeiro Ainda mais que Quinto Faacutebio levado com o

cavalo para aleacutem da batalha matou o liacuteder dos gauleses que ferozmente se

lanccedilava contra os estandartes dos etruscos transpassando-lhe o flanco com

uma lanccedila Os gauleses o reconheceram pegando os despojos e por toda a

batalha foi dada a notiacutecia de ele ser o emissaacuterio dos romanos Entatildeo a ira

contra os clusinos foi deixada de lado e eles se afastaram gritando ameaccedilas

contra os romanos Eles estavam decididos a partir imediatamente para

Roma poreacutem venceram os anciotildees para que antes fossem enviados

emissaacuterios para reclamar das injuacuterias e requerer que os Faacutebios lhes fossem

entregues devido ao direito violado das naccedilotildees Os emissaacuterios dos gauleses

comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a

accedilatildeo dos Faacutebios e eles reconheceram como sendo justo o pedido dos

baacuterbaros Contudo a condescendecircncia por homens de tamanha nobreza fazia

oposiccedilatildeo para que natildeo fosse decidido o que agradava ao senado Assim para

que a culpa natildeo caiacutesse sobre o mesmo (caso uma guerra gaulesa causasse

destruiccedilatildeo) o senado passou para o povo a decisatildeo sobre os pedidos dos

gauleses Como a influecircncia e o recurso valessem mais do que o que fora

discutido sobre a sua puniccedilatildeo eles foram eleitos tribunos militares com

poder consular para o ano seguinte Irritados com esse fato indigno os

gauleses ameaccedilando abertamente uma guerra voltaram para os seus Foram

eleitos tribunos militares junto com os trecircs Faacutebios Quinto Sulpiacutecio Longo

Quinto Serviacutelio (pela quarta vez) e Puacuteblio Corneacutelio Maluginense (grifos

nossos)

No comeccedilo desse capiacutetulo Liacutevio jaacute deixou claro o desprezo com que considerava

os celtas dizendo que os emissaacuterios eram tatildeo violentos que mais pareciam gauleses do

que romanos (Gallis magis quam Romanis similes) Podemos tambeacutem ver que Liacutevio ao

fazer esse comentaacuterio logo no iniacutecio de certa forma jaacute adianta o (peacutessimo) rumo que a

situaccedilatildeo vai tomar A resposta dada pelos celtas para justificar o asseacutedio a Cluacutesio vai de

acordo com a justificativa da questatildeo do desejo pela terra aos gauleses necessitados de

terra os clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais terra

Essa era a explicaccedilatildeo mais comum para as suas migraccedilotildees Os gauleses tambeacutem

afirmam que ultrapassavam os outros mortais em valor (uirtus) Jaacute sabendo de antematildeo

que logo em seguida eles saqueariam Roma podemos estabelecer uma relaccedilatildeo com

Ceacutesar que dissera que os gauleses haacute muito tempo superavam os germanos em bravura

mas que na sua eacutepoca eles tinham perdido sua uirtus331

Temos um novo reforccedilo da

ideia da barbaacuterie gaulesa pois eles apelam para a violecircncia ao responder ferozmente

(ferociter dicerent) que tinham o direito atraveacutes das armas e tudo pertencia aos

homens mais fortes (se in armis ius ferre et omnia fortium uirorum esse) Nesse ponto

Liacutevio jaacute deixa entrever o futuro nefasto de Roma dizendo que a urbe ficou perto do seu

destino funesto (iam urgentibus Romanam urbem fatis) a partir do momento em que os

331

Cf De bello Gallico (VI 24) p 128 Liacutevio narrando fatos muito recuados no tempo escreveu que os

gauleses excediam em virtude ateacute para justificar a derrota romana sofrida em 390 aC Em Ceacutesar que

escreveu os acontecimentos que lhe eram contemporacircneos o novo modelo de uirtus primitiva se

encontrava nos germanos e natildeo mais nos gauleses (cf p 129)

168

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas (legati contra ius

gentium arma capiunt) Aqui tambeacutem temos um exemplo da traacutegica inevitabilidade no

rumo dos acontecimentos pois fica claro que nesse caso os celtas tinham o direito e a

legalidade do lado deles Curioso notar que embora os gauleses sejam retratados como

baacuterbaros eles decidem primeiramente enviar uma embaixada a Roma (como era

costume das naccedilotildees ditas civilizadas) refreando o impulso de imediatamente rumar para

atacar os romanos mesmo com o grave desrespeito cometido pelos emissaacuterios O

proacuteprio senado de Roma natildeo gostou da accedilatildeo dos Faacutebios e considerou justa a queixa dos

gauleses Todavia eles se abstiveram de assumir a responsabilidade passando essa

decisatildeo para o povo Os Faacutebios aleacutem de natildeo serem penalizados ainda por cima

receberam a honra de serem eleitos tribunos militares e isso irritou ainda mais os

gauleses

Liacutevio entatildeo continua a narraccedilatildeo dos acontecimentos (V 37)

Cum tanta moles mali instaret ndash adeo occaecat animos Fortuna ubi uim

suam ingruentem refringi non uolt ndash ciuitas quae aduersus Fidenatem ac

Veientem hostem aliosque finitimos populos ultima experiens auxilia

dictatorem multis tempestatibus dixisset ea tunc inuisitato atque inaudito

hoste ab Oceano terrarumque ultimis oris bellum ciente nihil extraordinarii

imperii aut auxilii quaesiuit Tribuni quorum temeritate bellum contractum

erat summae rerum praeerant dilectumque nihilo accuratiorem quam ad

media bella haberi solitus erat extenuantes etiam famam belli habebant

Interim Galli postquam accepere ultro honorem habitum uiolatoribus iuris

humani elusamque legationem suam esse flagrantes ira cuius impotens est

gens confestim signis conuolsis citato agmine iter ingrediuntur Ad quorum

praetereuntium raptim tumultum cum exterritae urbes ad arma concurrerent

fugaque agrestium fieret Romam se irelsquo magno clamore significabant

quacumque ibant equis uirisque longe ac late fuso agmine immensum

obtinentes loci Sed antecedente fama nuntiisque Clusinorum deinceps inde

aliorum populorum plurimum terroris Romam celeritas hostium tulit quippe

quibus uelut tumultuario exercitu raptim ducto aegre ad undecimum lapidem

occursum est qua flumen Allia Crustuminis montibus praealto defluens

alueo haud multum infra uiam Tiberino amni miscetur Iam omnia contra

circaque hostium plena erant et nata in uanos tumultus gens truci cantu

clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono

Como tamanho mal estivesse iminente ndash de tal forma a Fortuna cega os

acircnimos quando ela natildeo quer que a sua vontade de agir seja reprimida ndash a

cidade que outrora contra os inimigos de Fidena e de Veios e contra outros

povos vizinhos experimentando muitas calamidades recorreu a um ditador

para supremos auxiacutelios dessa vez a cidade diante de um inimigo novo e

estranho que buscava a guerra vindo do oceano e dos uacuteltimos recantos das

terras natildeo recorreu a nenhum poder extraordinaacuterio ou auxiacutelio Os tribunos

cuja temeridade provocou a guerra estavam agrave frente do supremo comando e

considerando nada mais cuidadosamente do que jaacute fosse o usual para as

guerras comuns menosprezaram ainda o perigo da guerra Nesse meio

tempo os gauleses quando souberam que fora concedida tal honra aos

violadores do direito das naccedilotildees e aleacutem disso que tinha sido frustrada a sua

embaixada inflamados pela ira (que esse povo eacute incapaz de controlar)

169

imediatamente tomaram os estandartes e marcharam pelo caminho com

fileira apressada Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as

comunidades aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a

fuga com grande clamor eles nunci v m ―v mos Rom Por onde quer

que passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e

tropas se espalhando em comprimento e largura Mas mesmo antes do rumor

e dos mensageiros dos clusinos e tambeacutem dos mensageiros dos outros povos

foi a rapidez dos inimigos que trouxera o terror a Roma certamente porque o

seu exeacutercito fora recrutado agraves pressas e mesmo rapidamente conduzido com

dificuldade ele avanccedilou onze milhas ateacute onde o rio Aacutelia descendo dos

montes crustuacutemios por um canal muito profundo se unia agrave corrente tiberina

natildeo muito abaixo do curso Jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam

repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto cruel e

vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (grifos nossos)

Mais uma vez a sorte desempenha papel importante no desenrolar da accedilatildeo eacute ela

que justifica as mudanccedilas repentinas nas situaccedilotildees narradas (favorecendo um ou outro

lado) e eacute um fator imponderaacutevel ou seja que estaacute aleacutem das habilidades do homem de

prever e de racionalizar algum acontecimento332

Nesse trecho entatildeo eacute a fortuna cega

que explica o fato dos romanos mesmo diante de grande perigo natildeo recorrerem a um

ditador ou outras medidas emergenciais333

Liacutevio tambeacutem atribuiu a culpa de tal

calamidade aos proacuteprios Faacutebios cuja temeridade provocou a guerra jaacute que eles natildeo soacute

empunharam armas quando eram emissaacuterios (indo contra o que era de direito) mas

tambeacutem fizeram uma peacutessima avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo pois consideraram essa como

sendo uma guerra banal e menosprezaram ainda o perigo da guerra Podemos

relacionar tambeacutem esse trecho ao que apareceu no capiacutetulo 36 no qual os Faacutebios por

causa da sua violecircncia se pareciam mais com gauleses do que com romanos334

Aqui

podemos citar que a falta de discernimento dos Faacutebios frente a tamanho perigo lembra o

estereoacutetipo do gaulecircs que natildeo raciocina direito335

Liacutevio usou o proacuteprio termo temeritas

(relacionado aos gauleses) para descrever a postura dos tribunos Quanto agrave

caracterizaccedilatildeo do gaulecircs um toacutepos que Liacutevio citou no trecho foi o da ira que o gaulecircs eacute

incapaz de controlar e que apareceu tambeacutem em Ceacutesar336

A carga dramaacutetica se

acentua na descriccedilatildeo da marcha dos celtas em que Liacutevio enfatizou o alvoroccedilo

provocado por eles (ao tumulto deles que passavam) bem como o terror que causavam

pelo seu caminho Temos repeticcedilatildeo do adjetivo exterritus usado no trecho acima para

descrever as comunidades aterrorizadas (exterritae urbes) e que tambeacutem apareceu para

332

Falamos do papel da fortuna na historiografia latina tambeacutem na p 121 e 122 333

Esse trecho ecoa o destino funesto a que Roma se dirigia citado em V 36 (cf p 166 e 167) 334

Cf p 166 335

Era bastante comum o toacutepos do gaulecircs leviano e de voluacutevel decisatildeo cf BGall IV 5 p 132 336

Ceacutesar escreveu que a ira e temeridade eram especialmente inatas nessa espeacutecie de homens (BGall

VII 42) cf p 133 Poliacutebio (II 353) tambeacutem falou sobre a ira dos gauleses

170

descrever os clusinos aterrorizados (Clusini exterriti)337

O capiacutetulo termina em um

suspense dramaacutetico com vaacuterios toacutepoi relacionados aos gauleses com a repeticcedilatildeo dos

tumultos que causavam seu canto cruel (truci cantu) e seus vaacuterios gritos que

preenchiam tudo com horrendo clamor (clamoribusque uariis horrendo cuncta

compleuerant sono)338

Continuamos entatildeo a narrativa (V 38)

Ibi tribuni militum non loco castris ante capto non praemunito uallo quo

receptus esset non deorum saltem si non hominum memores nec auspicato

nec litato instruunt aciem diductam in cornua ne circumueniri multitudine

hostium possent nec tamen aequari frontes poterant cum extenuando

infirmam et uix cohaerentem mediam aciem haberent Paulum erat ab

dextera editi loci quem subsidiariis repleri placuit eaque res ut initium

pauoris ac fugae sic una salus fugientibus fuit Nam Brennus regulus

Gallorum in paucitate hostium artem maxime timens ratus ad id captum

superiorem locum ut ubi Galli cum acie legionum recta fronte

concucurrissent subsidia in auersos transuersosque impetum darent ad

subsidiarios signa conuertit si eos loco depulisset haud dubius facilem in

aequo campi tantum superanti multitudini uictoriam fore Adeo non fortuna

modo sed ratio etiam cum barbaris stabat In altera acie nihil simile

Romanis non apud duces non apud milites erat Pauor fugaque occupauerat

animos et tanta omnium obliuio ut multo maior pars Veios in hostium urbem

cum Tiberis arceret quam recto itinere Romam ad coniuges ac liberos

fugerent Parumper subsidiarios tutatus est locus in reliqua acie simul est

clamor proximis ab latere ultimis ab tergo auditus ignotum hostem prius

paene quam uiderent non modo non temptato certamine sed ne clamore

quidem reddito integri intactique fugerunt nec ulla caedes pugnantium fuit

terga caesa suomet ipsorum certamine in turba impedientium fugam Circa

ripam Tiberis quo armis abiectis totum sinistrum cornu defugit magna

strages facta est multosque imperitos nandi aut inualidos graues loricis

aliisque tegminibus hausere gurgites maxima tamen pars incolumis Veios

perfugit unde non modo praesidii quicquam sed ne nuntius quidem cladis

Romam est missus Ab dextro cornu quod procul a flumine et magis sub

monte steterat Romam omnes petiere et ne clausis quidem portis urbis in

arcem confugerunt

Entatildeo os tribunos militares sem escolher um lugar para o acampamento ou

fortificar uma trincheira que serviria de refuacutegio e nem ao menos se

lembrando dos deuses ou dos homens ao natildeo tomar os auspiacutecios ou oferecer

os sacrifiacutecios colocaram em linha de batalha o exeacutercito alinhado em alas de

modo que a multidatildeo dos inimigos natildeo o cercassem Contudo natildeo puderam

igualar as alas jaacute que com essa disposiccedilatildeo a linha do meio ficou fraca e com

custo se mantinha unida Havia uma pequena elevaccedilatildeo pelo lado direito que

os tribunos decidiram ocupar com as tropas de reserva essa manobra que

marcou o iniacutecio do pavor e da fuga tambeacutem serviu como o uacutenico meio de

salvaccedilatildeo aos desertores que debandavam De fato Breno comandante dos

gauleses especialmente receando um engodo devido ao pequeno nuacutemero de

inimigos ndash e avaliando que essa elevaccedilatildeo tinha sido ocupada de modo que no

momento em que os gauleses atacassem de frente a linha reta das legiotildees

essas tropas reservas fizessem um ataque pelos lados e por traacutes ndash virou as

suas tropas contra essas de reserva Se os expulsasse daquele lugar sem

duacutevida a vitoacuteria em um terreno plano seria faacutecil jaacute que os gauleses os

337

Cf V 35 na p 165 338

Esse canto cruel dos gauleses tambeacutem foi mencionado por Poliacutebio (II 295) e Ceacutesar (V 37)

171

superavam pela maior quantidade de homens Ateacute esse ponto natildeo apenas a

sorte mas tambeacutem a inteligecircncia estava com os baacuterbaros No exeacutercito

contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem junto aos

comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os acircnimos

de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior parte

deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os retivesse)

e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas e filhos

Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra linha de

batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos que

estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que sem

nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram um

combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e

ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram

impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo Em volta da margem

do Tibre fugiu toda a ala esquerda tendo atirado no rio as armas Fez-se uma

grande carnificina e muitos incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e

outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram engolidos pelos turbilhotildees das

aacuteguas Todavia a maior parte deles fugiu incoacutelume para Veios de onde

nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma

Da ala direita que estivera mais longe do rio e mais perto do peacute do monte

todos fugiram para Roma e nem ao menos fechando as portas da cidade se

refugiaram na cidadela (grifos nossos)

Mais uma vez Liacutevio ressaltou a desobediecircncia dos Faacutebios ao modo tradicional

dos romanos fazerem guerra dizendo que eles foram para a batalha sem escolher um

lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira e natildeo tomando os auspiacutecios ou

oferecendo os sacrifiacutecios (non loco castris ante capto non praemunito uallo nec

auspicato nec litato)339

Breno se mostrou um grande estrategista avaliando

corretamente os planos dos romanos e Liacutevio reconhecendo o meacuterito da vitoacuteria deles

escreveu que os baacuterbaros aleacutem de sorte tiveram com eles a inteligecircncia (adeo non

fortuna modo sed ratio etiam cum barbaris stabat) Como Rankin (1996 p 105)

pontua a derrota terriacutevel dos romanos foi tanto pela arrogacircncia e descuido dos Faacutebios

quanto pela habilidade dos gauleses que tinham melhor comandante Em seguida

temos a informaccedilatildeo de que no exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse

aos romanos (in altera acie nihil simile Romanis) De novo Liacutevio ressaltou que os

romanos natildeo se comportavam como romanos Esse conceito que antes fora usado para

descrever os Faacutebios (que pareciam mais gauleses que romanos) foi alargado para

descrever todos os que estavam em Aacutelia fossem eles liacutederes ou soldados (non apud

duces non apud milites) Liacutevio sempre preocupado em ressaltar a superioridade moral

e a nobreza de espiacuterito do povo romano em sua obra dessa forma frisou ainda mais o

339

Os Faacutebios jaacute tinham violado o direito das naccedilotildees em V 36 quando na condiccedilatildeo de emissaacuterios

pegaram em armas A nova violaccedilatildeo cometida nesse capiacutetulo apenas reforccedila a causa para a derrota

romana Como destaca Ogilvie (1965 p 716) aquela embaixada dos Faacutebios foi mais um pretexto

psicoloacutegico e moral para justificar o desastre de Aacutelia A ecircnfase de dizer que os Faacutebios se comportavam

mais como gauleses do que como romanos tambeacutem justifica esse acontecimento catastroacutefico

172

comportamento desonroso da deserccedilatildeo dos combatentes Temos entatildeo vaacuterias passagens

que enfatizam esse fato o pavor e a fuga tomaram os acircnimos (pauor fugaque

occupauerat animos) de tal forma que os romanos fugiram para a inimiga cidade de

Veios ao inveacutes de pegarem o reto caminho para Roma Novamente temos a referecircncia

ao pacircnico causado pelo grito dos gauleses foi ouvido um clamor (est clamor auditus)

Os romanos se acovardaram a tal ponto que sem nem ao menos ver o inimigo

desconhecido de forma alguma tentaram um combate ou sequer responderam o grito

O desespero de correr foi tamanho que ningueacutem morreu lutando mas sim na confusatildeo

da multidatildeo que ansiava em partir sendo feridos pelas costas ndash o que era extremamente

vergonhoso para o povo romano A outra parte do exeacutercito que ficara junto ao Tibre foi

massacrada (fez-se uma grande carnificina) e muitos tambeacutem morreram afogados

incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram

engolidos pelos turbilhotildees das aacuteguas Por conseguinte como muitas dessas baixas

foram causadas pela briga da multidatildeo que fugia e tambeacutem pela malsucedida passagem

do Tibre percebemos que a terriacutevel derrota romana foi causada mais por essa

debandada desordenada do que pelo proacuteprio confronto direto com os celtas Liacutevio

escreveu que nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma

o que foi mais uma funesta consequecircncia do pacircnico generalizado tambeacutem salientado

pelo fato de que uma parte dos fugitivos ao chegarem em Roma sequer fechou as

portas da cidade (ne clausis quidem portis urbis) Toda essa descriccedilatildeo foi permeada de

imagens fortes e grande carga pateacutetica um traccedilo marcante de Ab urbe condita Para

Liacutevio a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo

Os gauleses vencedores se dirigem a Roma como temos em V 39

Gallos quoque uelut obstupefactos miraculum uictoriae tam repentinae

tenuit et ipsi pauore defixi primum steterunt uelut ignari quid accidisset

deinde insidias uereri postremo caesorum spolia legere armorumque

cumulos ut mos eis est coaceruare tum demum postquam nihil usquam

hostile cernebatur uiam ingressi haud multo ante solis occasum ad urbem

Romam perueniunt Ubi cum praegressi equites non portas clausas non

stationem pro portis excubare non armatos esse in muris rettulissent aliud

priori simile miraculum eos sustinuit noctemque ueriti et ignotae situm

urbis inter Romam atque Anienem consedere exploratoribus missis circa

moenia aliasque portas quaenam hostibus in perdita re consilia essent

Romani cum pars maior ex acie Veios petisset quam Romam nemo

superesse quemquam praeter eos qui Romam refugerant crederet complorati

omnes pariter uiui mortuique totam prope urbem lamentis impleuerunt

Priuatos deinde luctus stupefecit publicus pauor postquam hostes adesse

nuntiatum est mox ululatus cantusque dissonos uagantibus circa moenia

turmatim barbaris audiebant Omne inde tempus suspensos ita tenuit animos

usque ad lucem alteram ut identidem iam in urbem futurus uideretur impetus

173

primo aduentu quia accesserant ad urbem mdashmansuros enim ad Alliam

fuisse nisi hoc consilii foretlsquomdash deinde sub occasum solis quia haud multum

diei supererat mdash ante noctem satius inuasuroslsquomdash tum in noctem dilatum

consilium esse quo plus pauoris inferrentlsquo postremo lux appropinquans

exanimare timorique perpetuo ipsum malum continens fuit cum signa

infesta portis sunt inlata Nequaquam tamen ea nocte neque insequenti die

similis illi quae ad Alliam tam pauide fugerat ciuitas fuit Nam cum defendi

urbem posse tam parua relicta manu spes nulla esset placuit cum coniugibus

ac liberis iuuentutem militarem senatusque robur in arcem Capitoliumque

concedere armisque et frumento conlato ex loco inde munito deos

hominesque et Romanum nomen defendere flaminem sacerdotesque Vestales

sacra publica a caede ab incendiis procul auferre nec ante deseri cultum

eorum quam non superessent qui colerent si arx Capitoliumque sedes

deorum si senatus caput publici consilii si militaris iuuentus superfuerit

imminenti ruinae urbis facilem iacturam esse seniorum relictae in urbe

utique periturae turbaelsquo Et quo id aequiore animo de plebe multitudo ferret

senes triumphales consularesque simul se cum illislsquo palam dicere obituros

nec his corporibus quibus non arma ferre non tueri patriam possent

oneraturos inopiam armatorumlsquo

O prodiacutegio de uma vitoacuteria tatildeo repentina deixou os gauleses de tal maneira

estupefatos que em um primeiro momento eles mesmos ficaram imoacuteveis de

espanto como se natildeo entendessem o que tinha acontecido depois temeram

uma armadilha Por fim recolheram os despojos dos mortos e os

amontoaram em pilhas de armas de acordo com o costume deles340

Depois

que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e

chegaram a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol Quando os cavaleiros

batedores retornaram e informaram que natildeo viram as portas fechadas nem

sentinela vigiando as entradas e nenhum soldado a postos nas muralhas

outro prodiacutegio (semelhante ao anterior) os conteve Receando a noite e o

abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e o Acircnio341

depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para

saber quais planos tinham os inimigos em uma situaccedilatildeo tatildeo desesperadora

Quanto aos romanos a maior parte da tropa tinha fugido para Veios ao inveacutes

de Roma ningueacutem acreditava que havia mais sobreviventes do que aqueles

que tinham se refugiado em Roma todos ao mesmo tempo lastimando os

vivos e os mortos encheram toda a cidade com seus lamentos Em seguida o

pavor generalizado se sobrepocircs aos gemidos pessoais assim que foi

anunciado que os inimigos estavam por perto logo eles ouviram os gritos e

uivos dissonantes dos baacuterbaros que em bandos perambulavam em volta das

muralhas A partir de entatildeo e por todo o tempo ateacute o dia seguinte os acircnimos

se mantiveram inquietos a tal ponto que continuamente parecia que ia

acontecer o ataque agrave cidade primeiro na chegada pois eles jaacute tinham se

aproximado da cidade ndash ―de f to teri m perm necido em Aacuteli se isso natildeo

fosse de seu consenso Depois acharam que o ataque ia ser realizado ao pocircr

do sol pois jaacute natildeo h vi muit cl rid de e ―inv diri m melhor ntes do c ir

d noite Em seguid consider r m que ―o t que tinh sido di do p r

noite p r c us r m is p vor Por fim proacuteximo o m nhecer ao temor

geral se juntou o proacuteprio perigo quando as tropas hostis adentraram pelas

portas Contudo de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia

seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor

tinham fugido para Aacutelia De fato como natildeo havia esperanccedila de que a cidade

pudesse ser defendida pelas poucas tropas que restavam decidiu-se entatildeo

que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores

vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Com armas e provisotildees

estocadas desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o

nome romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos

340

Ceacutesar (BGall VI 17) jaacute descrevera esse costume de se empilhar os despojos 341

Afluente do Tibre

174

sagrados do povo protegidos do massacre e dos incecircndios e natildeo

abandonariam o seu culto a natildeo ser que natildeo existisse mais ningueacutem que o

vener sse ―se a cidadela do Capitoacutelio sede dos deuses o senado fonte da

deliberaccedilatildeo puacuteblica e os jovens soldados resistissem agrave iminente ruiacutena da

cidade seria aceitaacutevel o sacrifiacutecio dos anciatildeos jaacute que essa multidatildeo que fora

deix d n cid de h veri de morrer de qu lquer form Assim p r que

multidatildeo da plebe suportasse isso de acircnimo mais calmo os anciatildeos que jaacute

tinham obtido triunfos e consulados declararam publicamente que

―juntamente com eles haveriam de morrer natildeo agravando a falta de

soldados com esses corpos que natildeo podem carregar armas e nem defender a

paacutetria (grifos nossos)

Os gauleses demoraram a perceber que venceram os romanos e a partir para a

urbe O seu lento e cuidadoso avanccedilo (em um primeiro momento eles mesmos ficaram

imoacuteveis depois temeram uma armadilha por fim recolheram os despojos dos mortos

depois que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e chegaram

a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol) contrasta com o o pacircnico desordenado dos

romanos que enchiam toda a cidade com seus lamentos Aleacutem disso na narrativa os

celtas levaram apenas um dia para alcanccedilar Roma de acordo com Ogilvie (1965 p

720) isso eacute uma ecircnfase dramaacutetica de Liacutevio jaacute que outras fontes como Poliacutebio (II 18) e

Diodoro (XIV 115) disseram que eles demoraram trecircs dias nessa jornada Mais uma

vez fica claro que os gauleses planejaram com cuidado o que haveriam de fazer jaacute que

receando a noite e o abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e

o Acircnio depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para

saber quais planos tinham os inimigos

Temos nova descriccedilatildeo de um pacircnico descontrolado assim que os romanos

souberam que os inimigos estavam por perto e temos mais uma referecircncia aos gritos e

uivos dissonantes dos gauleses (ululatus cantusque dissonos) A partir dessa chegada

dos gauleses Liacutevio desenvolveu cada episoacutedio como sendo uma etapa na restauraccedilatildeo da

moral romana com exemplos de coragem e respeito aos deuses (OGILVIE 1965 p

720) Assim ele escreveu que de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia

seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor tinham

fugido para Aacutelia O povo sabia que natildeo havia esperanccedila de que a cidade pudesse ser

defendida pelas poucas tropas que restavam e aceitou esse fato com determinaccedilatildeo jaacute

que se decidiu que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores

vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Ficou clara a importacircncia dessa

decisatildeo pois desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o nome

romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos () e natildeo

abandonariam o seu culto Vemos que haacute uma grande preocupaccedilatildeo em proteger os

175

deuses outrora desrespeitados pelos Faacutebios e tambeacutem a defesa do nome romano342

Assim os cidadatildeos passaram a se comportar de forma digna a tal ponto que poderiam

retomar a designaccedilatildeo de romanos que eles natildeo honraram no fracasso em Aacutelia Tudo que

era mais valioso para a urbe se encontrava no Capitoacutelio que era a sede dos deuses o

senado fonte da deliberaccedilatildeo puacuteblica os sacerdotes e a juventude militar Por fim os

anciotildees datildeo o exemplo supremo de honradez aceitando morrer com a plebe de modo a

natildeo atrapalhar a defesa da cidade

Seguindo a narrativa temos (V 41)

Romae interim satis iam omnibus ut in tali re ad tuendam arcem compositis

turba seniorum domos regressi aduentum hostium obstinato ad mortem

animo exspectabant Qui eorum curules gesserant magistratus ut in fortunae

pristinae honorumque aut uirtutis insignibus morerentur quae augustissima

uestis est tensas ducentibus triumphantibusue ea uestiti medio aedium

eburneis sellis sedere Sunt qui M Folio pontifice maximo praefante carmen

deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis tradant Galli et quia

interposita nocte a contentione pugnae remiserant animos et quod nec in acie

ancipiti usquam certauerant proelio nec tum impetu aut ui capiebant urbem

sine ira sine ardore animorum ingressi postero die urbem patente Collina

porta in forum perueniunt circumferentes oculos ad templa deum arcemque

solam belli speciem tenentem Inde modico relicto praesidio ne quis in

dissipatos ex arce aut Capitolio impetus fieret dilapsi ad praedam uacuis

occursu hominum uiis pars in proxima quaeque tectorum agmine ruunt pars

ultima uelut ea demum intacta et referta praeda petunt inde rursus ipsa

solitudine absterriti ne qua fraus hostilis uagos exciperet in forum ac

propinqua foro loca conglobati redibant ubi eos plebis aedificiis obseratis

patentibus atriis principum maior prope cunctatio tenebat aperta quam

clausa inuadendi adeo haud secus quam uenerabundi intuebantur in aedium

uestibulis sedentes uiros praeter ornatum habitumque humano augustiorem

maiestate etiam quam uoltus grauitasque oris prae se ferebat simillimos dis

Ad eos uelut simulacra uersi cum starent M Papirius unus ex iis dicitur

Gallo barbam suam ut tum omnibus promissa erat permulcenti scipione

eburneo in caput incusso iram mouisse atque ab eo initium caedis ortum

ceteros in sedibus suis trucidatos post principium caedem nulli deinde

mortalium parci diripi tecta exhaustis inici ignes

Enquanto isso em Roma jaacute estava tudo preparado para tamanha emergecircncia

e defesa da cidadela entatildeo a multidatildeo dos anciatildeos regressou agraves casas para

esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a morte Os que

exerceram magistraturas curuis343

a fim de morrer com as distinccedilotildees de sua

antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela virtude trajaram a augustiacutessima

veste que era concedida aos que foram comandantes ou que obtiveram um

triunfo e se sentaram em cadeiras de marfim no meio das casas Conta-se

que estando agrave frente Marco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recitaram um

canto e ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos

Os gauleses devido agrave passagem da noite abrandaram seus acircnimos da tensatildeo

da luta e como de modo algum tivessem combatido em uma luta incerta

342

Como discutido algumas vezes ao longo deste trabalho o nome romano representava em Liacutevio

elevaccedilatildeo moral e personificaccedilatildeo da uirtus Para discussatildeo profunda sobre o que era ser romano cf o

subcapiacutetulo de O kley ―like Rom n (In MINEO 2015 p 235-237) 343

Durante essa eacutepoca as magistraturas curuis eram exercidas pelo ditador mestre da cavalaria cocircnsules

e censores que eram dotados de imperium

176

ocupavam a cidade sem grande iacutempeto ou forccedila Sem ira e sem ardor dos

acircnimos no dia seguinte eles ingressaram na cidade pela porta Colina que

estava aberta e chegaram ao foacuterum movendo os olhos ao redor para os

templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que tinha um aspecto de

combate Daquele lugar entatildeo sendo deixada uma pequena guarda para que

nenhum ataque se fizesse contra os que estavam espalhados da cidadela ou do

Capitoacutelio eles se dispersaram pelas ruas vazias em busca da pilhagem sem

encontrar ningueacutem Uma parte deles correu em bando ateacute algumas casas

proacuteximas outra parte se dirigiu para as distantes como se somente essas

intocadas estivessem cheias de despojos Entatildeo de novo amedrontados por

esse mesmo abandono e para que aqueles que perambulavam natildeo fossem

surpreendidos por uma armadilha inimiga eles voltaram reunidos para o

foacuterum e os lugares proacuteximos Nesse lugar estando as casas da plebe fechadas

e as da nobreza abertas eles hesitavam mais em invadir as casas abertas do

que as trancadas Bastante respeitosos ele observaram atentamente os

homens sentados nos vestiacutebulos das casas com ornamento e aspecto mais

divino do que humano e tambeacutem muito semelhantes aos deuses pela

majestade do seu semblante e a dignidade que se mostrava de sua aparecircncia

Diante deles como se fossem estaacutetuas eles ficaram parados conta-se que um

deles Marco Papiacuterio com um bastatildeo de marfim bateu na cabeccedila de um

gaulecircs que lhe acariciava a sua longa barba (como outrora era costume de

todos) tendo provocado a sua ira Com ele o massacre comeccedilou e os outros

em seus assentos foram trucidados depois que se iniciou a carnificina

nenhum dos mortais foi poupado e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas

lhes atearam fogo (grifos nossos)

Ogilvie (1965 p 725) aprofunda a discussatildeo sobre a questatildeo ritualiacutestica dos

velhos magistrados que se ofereciam em sacrifiacutecio pela cidade a multidatildeo dos anciatildeos

regressou agraves casas para esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a

morte Segundo o pesquisador esse era provavelmente um antigo ato religioso de

devotio (devoccedilatildeo) No latim temos deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis

tradant (ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos) Liacutevio

minimizou esse elemento sacro e no lugar desenvolveu um quadro secular no qual os

anciatildeos estoicamente esperam pelo seu fim com isso evidenciou-se a uirtus romana

(OGILVIE 1965 p 725) No trecho acima foi escrito que os idosos magistrados

haveriam de morrer com as distinccedilotildees de sua antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela

virtude (uirtus) Eacute interessante notar que os gauleses devido agrave passagem da noite

abrandaram seus acircnimos da tensatildeo da luta e entraram na cidade sem ira e sem ardor

dos acircnimos Ora esse tipo de atitude era bastante incomum para o que se acontecia na

Antiguidade quando um povo hostil invadia uma cidade De forma tranquila (sine ira

sine ardore animorum) os gauleses ingressaram na cidade pela porta Colina que

estava aberta e chegaram ao foacuterum Liacutevio sublinhou a curiosidade dos gauleses que

moviam os olhos ao redor para os templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que

tinha um aspecto de combate Dando sequecircncia agrave postura interessada dos celtas temos o

fato de que eles bastante respeitosos observaram atentamente os homens sentados nos

177

vestiacutebulos que tinham aspecto mais divino do que humano A peripeacutecia acontece

quando um gaulecircs que acariciava a barba de Marco Papiacuterio recebeu um golpe de

bastatildeo na cabeccedila A partir desse ato os gauleses se comportaram como os selvagens que

eram (pelo menos na visatildeo de Liacutevio) irados iniciaram a carnificina sem poupar

nenhum dos mortais e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas lhes atearam fogo

Depois temos (V 42)

Ceterum seu non omnibus delendi urbem libido erat seu ita placuerat

principibus Gallorum et ostentari quaedam incendia terroris causa si

compelli ad deditionem caritate sedum suarum obsessi possent et non omnia

concremari tecta ut quodcumque superesset urbis id pignus ad flectendos

hostium animos haberent nequaquam perinde atque in capta urbe primo die

aut passim aut late uagatus est ignis Romani ex arce plenam hostium urbem

cernentes uagosque per uias omnes cursus cum alia atque alia parte noua

aliqua clades oreretur non mentibus solum concipere sed ne auribus quidem

atque oculis satis constare poterant Quocumque clamor hostium mulierum

puerorumque ploratus sonitus flammae et fragor ruentium tectorum

auertisset pauentes ad omnia animos oraque et oculos flectebant uelut ad

spectaculum a Fortuna positi occidentis patriae nec ullius rerum suarum

relicti praeterquam corporum uindices tanto ante alios miserandi magis qui

unquam obsessi sunt quod interclusi a patria obsidebantur omnia sua

cernentes in hostium potestate Nec tranquillior nox diem tam foede actum

excepit lux deinde noctem inquieta insecuta est nec ullum erat tempus quod

a nouae semper cladis alicuius spectaculo cessaret Nihil tamen tot onerati

atque obruti malis flexerunt animos quin etsi omnia flammis ac ruinis

aequata uidissent quamuis inopem paruumque quem tenebant collem liberati

relictum uirtute defenderent et iam cum eadem cottidie acciderent uelut

adsueti malis abalienauerant ab sensu rerum suarum animos arma tantum

ferrumque in dextris uelut solas reliquias spei suae intuentes

Aliaacutes ou nem todos tinham o desejo de destruir a cidade ou agradava aos

liacutederes dos gauleses o seguinte por um lado ao se exibir alguns incecircndios

como a causa do terror eles poderiam forccedilar os sitiados agrave rendiccedilatildeo devido

ao amor pelas suas habitaccedilotildees por outro lado ao natildeo queimarem todas as

casas eles teriam como garantia que o que quer que restasse da cidade

serviria para dobrar os acircnimos dos inimigos De forma alguma no primeiro

dia o fogo se espalhou em desordem e amplamente como aconteceria em

uma cidade tomada Os romanos da cidadela observavam a cidade repleta de

inimigos que corriam por todas as ruas como em uma e outra parte surgia

algum novo desastre natildeo soacute natildeo entenderam com as mentes mas tambeacutem

sequer puderam confiar em seus ouvidos e olhos Por onde quer que o clamor

dos inimigos o choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o

estrondo das casas que ruiacuteam desviavam-lhes a atenccedilatildeo eles assustados

para tudo viravam os acircnimos rostos e olhos como se a fortuna os tivesse

posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Natildeo lhes restava

nada de suas posses para defenderem exceto seus proacuteprios corpos eles eram

muito mais miseraacuteveis do que os outros que outrora foram atacados pois

sendo privados da paacutetria viam todas as suas posses em poder dos inimigos

Natildeo mais tranquila foi a noite que sucedeu um dia tatildeo horriacutevel depois dela

seguiu-se um dia turbulento e natildeo houve um momento em que parou de

surgir algum espetaacuteculo de um novo massacre Por outro lado oprimidos e

subjugados por tantos males por nada eles mudaram os acircnimos ainda que

vissem todas as coisas serem atingidas pelas chamas e ruiacutenas Sem duacutevida

eles haveriam de defender a colina fraca e pequena que ocupavam que pela

virtude lhes restava liberada Como esses mesmos acontecimentos se

178

repetiam todos os dias eles ficaram acostumados com o mal e afastando da

mente os pensamentos de suas posses consideravam as armas e o ferro nas

destras como os uacutenicos meios para sua esperanccedila (grifos nossos)

Os gauleses embora irados continuaram tendo um comportamento calculado jaacute

que natildeo queimaram tudo ou porque natildeo queriam destruir a cidade (uma possibilidade

que soa bastante improvaacutevel) ou porque queriam deixar alguma coisa de peacute de modo a

forccedilar uma rendiccedilatildeo romana (o que era mais factiacutevel) O barulho ferramenta comum

para causar terror tambeacutem foi amplificado certamente aleacutem do clamor dos inimigos o

choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o estrondo das casas que ruiacuteam

serviram para apavorar os que se encontravam na cidadela do Capitoacutelio Temos nova

menccedilatildeo ao papel da sorte jaacute que Liacutevio disse que os romanos viam tudo como se a

fortuna os tivesse posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Assim

fecha-se o ciclo de destruiccedilatildeo que comeccedilou com a violaccedilatildeo dos Faacutebios e culminou na

destruiccedilatildeo de Roma e que jaacute fora profetizado no capiacutetulo 36 que dizia que a urbe

romana ficou proacutexima ao seu destino funesto344

Pode-se perceber ainda uma mudanccedila

de postura dos romanos a partir do capiacutetulo 39345

no qual eles de forma alguma

haveriam de se comportar como os soldados em Aacutelia mas sim suportariam tudo o que

estava para acontecer com coragem e bravura Antes no capiacutetulo 38 os romanos

violaram natildeo soacute os costumes mas tambeacutem os ritos pois os tribunos militares foram

para a guerra sem escolher um lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira

e nem tomaram os auspiacutecios ou ofereceram os sacrifiacutecios346

No capiacutetulo 39 fica clara a

alteraccedilatildeo de conduta os romanos no Capitoacutelio defenderiam os deuses os homens e o

seu proacuteprio nome347

Igualmente os sacerdotes e vestais protegeriam os cultos e natildeo os

abandonariam jamais348

Para enfatizar essa atitude resoluta no capiacutetulo 41 haacute o

sacrifiacutecio dos anciatildeos que ofereceram suas proacuteprias vidas pelos cidadatildeos e pela

344

Cf p 166 345

Cf p 172 a 174 346

Cf p 170 347

M rques em seu rtigo ―O C pitoacutelio como represent ccedilatildeo de Rom em Tito Liacutevio e Taacutecito profund

a discussatildeo sobre o papel do Capitoacutelio como representaccedilatildeo primordial do poder de Roma e a relaccedilatildeo dele

com a construccedilatildeo da imagem de Roma como sendo caput mundi De acordo com Marques (2005 p 96)

essa colina representava a ideia do destino de Roma como cidade guerreira expansionista e

conquistadora Por esse motivo em Liacutevio essa foi a uacutenica parte da cidade que natildeo foi invadida pelos

gauleses 348

Liacutevio usou o termo fortuna no sentido da boa sorte concedida por uma divindade ou providecircncia

protetora a Estados ou indiviacuteduos geralmente em retribuiccedilatildeo agrave pietas (OGILVIE 1965 p 708)

179

paacutetria349

Todos esses fatos entatildeo gradativamente serviram para que os romanos

recuperassem a sua uirtus e tambeacutem a pietas350

Para encerrar esse episoacutedio do saque de Roma temos (V 48)

Sed ante omnia obsidionis bellique mala fames utrimque exercitum urgebat

Gallos pestilentia etiam cum loco iacente inter tumulos castra habentes tum

ab incendiis torrido et uaporis pleno cineremque non puluerem modo ferente

cum quid uenti motum esset Quorum intolerantissima gens umorique ac

frigori adsueta cum aestu et angore uexati uolgatis uelut in pecua morbis

morerentur iam pigritia singulos sepeliendi promisce aceruatos cumulos

hominum urebant bustorumque inde Gallicorum nomine insignem locum

fecere Indutiae deinde cum Romanis factae et conloquia permissu

imperatorum habita In quibus cum identidem Galli famem obicerent eaque

necessitate ad deditionem uocarent dicitur auertendae eius opinionis causa

multis locis panis de Capitolio iactatus esse in hostium stationes Sed iam

neque dissimulari neque ferri ultra fames poterat Itaque dum dictator

dilectum per se Ardeae habet magistrum equitum L Valerium a Veiis

adducere exercitum iubet parat instruitque quibus haud impar adoriatur

hostes interim Capitolinus exercitus stationibus uigiliis fessus superatis

tamen humanis omnibus malis cum famem unam natura uinci non sineret

diem de die prospectans ecquod auxilium ab dictatore appareret postremo

spe quoque iam non solum cibo deficiente et cum stationes procederent

prope obruentibus infirmum corpus armis uel dedi uel redimi se quacumque

pactione possint iussit iactantibus non obscure Gallis haud magna mercede

se adduci posse ut obsidionem relinquant Tum senatus habitus tribunisque

militum negotium datum ut paciscerentur Inde inter Q Sulpicium tribunum

militum et Brennum regulum Gallorum conloquio transacta res est et mille

pondo auri pretium populi gentibus mox imperaturi factum Rei foedissimae

per se adiecta indignitas est pondera ab Gallis allata iniqua et tribuno

recusante additus ab insolente Gallo ponderi gladius auditaque intoleranda

Romanis uox ―uae uictis [esse]

Por outro lado a fome mais do que todos os males do cerco e da guerra

afligia ambos os exeacutercitos tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois

eles fizeram seu acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as

colinas esse lugar era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de

vapor tambeacutem a cinza e o poacute com qualquer movimento do vento se

levantavam Esse povo era muito intolerante a isso pois estava acostumado agrave

umidade e ao frio abalados por esse calor e tormento eles morriam como

gado quando se espalhavam as doenccedilas Por causa da lentidatildeo de se sepultar

um por um eles cremavam indistintamente pilhas e montes de homens e por

isso esse lugar se tornou conhecido pelo nome de piras gaulesas Entatildeo foi

feita uma treacutegua com os romanos e conversas foram mantidas com a

permissatildeo dos chefes Nesses diaacutelogos como os gauleses continuamente

reclamassem da fome e por essa necessidade incitassem os romanos agrave

rendiccedilatildeo conta-se que para tirar deles essa ideia de muitos lugares do

Capitoacutelio eles lanccedilaram patildeo em direccedilatildeo agraves guarniccedilotildees dos inimigos Contudo

a fome jaacute natildeo podia mais ser dissimulada ou suportada Assim o ditador351

enquanto pessoalmente recrutava em Aacuterdea ordenou que o comandante da

cavalaria L Valeacuterio trouxesse o exeacutercito de Veios ele preparou e dispocircs

daqueles para atacar os inimigos de forma mais equilibrada Nesse iacutenterim a

guarniccedilatildeo que estava no Capitoacutelio cansada pelas vigiacutelias insones mesmo

superando todos os males humanos tinha um uacutenico mal a fome que pela

349

Cf p 175 350

Falamos mais detalhadamente da pietas na p 126 351

Trata-se de Camilo que banido para Veios ao saber do ocorrido em Roma partiu para a cidade e

liderou a vitoacuteria dos romanos contra os gauleses

180

natureza natildeo podia ser vencida dia apoacutes dia eles observavam se vinha algum

auxiacutelio do ditador Por fim como jaacute faltava natildeo soacute a esperanccedila mas tambeacutem

o alimento e como as tropas natildeo avanccedilariam mais pois por causa dos

sofrimentos o corpo ficara fraco para as armas decidiu-se que poderiam ou

se render ou se submeter a qualquer acordo que fosse parecia claramente

que eles poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa de

modo que abandonassem o cerco Entatildeo o senado se reuniu e ordenou que os

tribunos militares fizessem um tratado Logo na conferecircncia entre Q

Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos gauleses arranjou-se um acordo

foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao povo que em breve haveria de

governar as naccedilotildees Uma indignidade foi acrescida a essa determinaccedilatildeo

bastante vergonhosa pois a balanccedila que os gauleses trouxeram era injusta

Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs insolente adicionou a espada ao

peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os romanos dizer ― i dos vencidos

(grifos nossos)

Nesse capiacutetulo apoacutes sitiarem Roma por muito tempo os gauleses do mesmo

modo que os romanos padecem eles ainda sofrem por causa da peste jaacute que

acampavam em um lugar insalubre Com esse impasse ambos os lados fazem uma

treacutegua e passam a conversar buscando uma saiacuteda para o conflito Os romanos que ateacute

entatildeo resistiram bravamente (e continuamente esperavam a ajuda do ditador) finalmente

satildeo vencidos natildeo diretamente pelos gauleses mas sim porque lhes faltava a esperanccedila

e tambeacutem o alimento e que por esse motivo as tropas fracas natildeo avanccedilariam mais

Eles decidiram que poderiam ou se render ou se submeter a qualquer acordo mas

subestimaram o valor do pagamento aos gauleses (parecia claramente que eles

poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa) Depois da reuniatildeo do

senado temos a conferecircncia entre Sulpiacutecio e Breno que fazem um acordo o povo

romano que em breve haveria de governar as naccedilotildees deveria pagar mil libras em ouro

aos gauleses352

Liacutevio destaca a falta de dignidade dos celtas que para trapacear e

conseguir mais ouro trouxeram uma balanccedila injusta Aleacutem disso o gaulecircs

caracterizado como insolente acrescentou a espada ao peso e com voz intoleraacutevel disse

os rom nos ― i dos vencidos 353

Ogilvie (1965 p 737) destaca que essa voz

intoleraacutevel marca uma peripeacutecia a favor dos romanos Na sequecircncia Camilo aparece e

derrota os gauleses Os romanos como recuperaram sua pietas por essa razatildeo

mereceram essa vitoacuteria Curioso notar que nenhuma das fontes para esse periacuteodo como

Poliacutebio ou Diodoro menciona Camilo Evidentemente Liacutevio se aproveitou da lendaacuteria

histoacuteria desse personagem para transformar essa vergonhosa derrota em sucesso jaacute que

352

Liacutevio demonstra mais uma vez que apoiava o imperialismo romano como antes escrevera no prefaacutecio

de Ab urbe condita (sect7) e t mbeacutem desse ―direito qu se divino de Rom govern r outros povos (cf p

161) 353

Os gauleses jaacute tinham firm do ntes que ―tinh m o direito tr veacutes das armas e tudo pertencia aos

homens m is fortes no c piacutetulo 36 (cf p 166)

181

sua histoacuteria tinha um profundo caraacuteter nacionalista e laudatoacuterio da uirtus romana Com

esse capiacutetulo encerramos a anaacutelise dos trechos do livro V de Ab urbe condita

Passamos agora agraves passagens do livro VII Nesse livro a partir do capiacutetulo 9

temos a narraccedilatildeo dos fatos que aconteceram em 361 aC O contexto era o de uma nova

guerra entre romanos e gauleses Com o comando do ditador Tito Quiacutencio Peno os

romanos se posicionaram nas margens do rio Acircnio Como eles disputassem pelo

controle da ponte com os gauleses e com forccedilas parecidas nem um ou outro exeacutercito

conseguisse vencer temos entatildeo o episoacutedio do duelo entre um gaulecircs e um romano

Assim temos (VII 9)

Tum eximia corporis magnitudine in uacuum pontem Gallus processit et

quantum maxima uoce potuit ―Quem nunc inquit ―Roma uirum

fortissimum habet procedat agedum ad pugnam ut noster duorum euentus

ostendat utra gens bello sit melior

Entatildeo um gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal avanccedilou ateacute a ponte vazia e

com a voz mais forte que pode disse ― gora que o homem mais valoroso de

que Roma dispotildee avance para o combate de modo que esse resultado entre

mbos mostre qu l dos dois povos eacute melhor n guerr (grifos nossos)

Liacutevio recorreu ao estereoacutetipo do gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal (eximia

corporis magnitudine) e que chamou um inimigo para o confronto individual com a voz

mais forte que pode354

Nesse trecho vemos tambeacutem o antigo costume indo-europeu de

decidir uma batalha em um confronto entre dois guerreiros tido como os melhores de

suas tropas Essa tradiccedilatildeo que depois foi desaparecendo entre gregos e romanos a partir

do seacuteculo IV aC ainda era praticada pelos celtas desse periacuteodo Em sua comunidade

era aceitaacutevel que toda a questatildeo da vitoacuteria (ou derrota) de um exeacutercito poderia ser

decidida nesses torneios (RANKIN 1996 p 63 e 64) Eles inclusive adotavam esse

costume em conflitos contra povos natildeo ceacutelticos como vimos acima em que o gaulecircs

354

De acordo com Rankin (1996 p 68) um guerreiro gaulecircs com toda sua estatura e fuacuteria deveria ser

aterrorizante Em vaacuterios autores eles foram descritos fisicamente como altos e loiros com vozes

profundas e guturais aleacutem de terem um comportamento ameaccedilador e dramaacutetico Falamos desses toacutepoi em

Poliacutebio (II 15 7) na p 49 deste trabalho tambeacutem em Diodoro (V 28 1) na p 81-82 e em Estrabatildeo

(IV 4 2) na p 85 Sherwin-White (1967 p 58) pontua que apoacutes os contatos que os romanos tiveram

com germanos e bretotildees no seacuteculo I aC esse estereoacutetipo da enorme altura gaulesa foi transferido para

eles Um exemplo disso pode ser encontrado em Ceacutesar que disse que a antiga virtude dos celtas passou

aos germanos (cf BGall VI 24 p 128) No seu comentaacuterio ele em momento algum descreveu os

gauleses como altos mas sim os germanos (cf BGall VI 21 p 144) quando Ceacutesar disse que essa

grande estatura germacircnica se devia agrave sua abstinecircncia sexual) ou os belgas (que embora habitantes da

Gaacutelia na verdade seriam descendentes dos germanos como temos no livro II 4 cf p 131)

182

chamou um romano para o combate355

Em seguida temos a narrativa do duelo (VII

10)

Diu inter primores iuuenum Romanorum silentium fuit cum et abnuere

certamen uererentur et praecipuam sortem periculi petere nollent Tum T

Manlius L filius qui patrem a uexatione tribunicia uindicauerat ex statione

ad dictatorem pergit ―Iniussu tuo inquit imperator extra ordinem nunquam

pugnauerim non si certam uictoriam uideam si tu permittis uolo ego illi

beluae ostendere quando adeo ferox praesultat hostium signis me ex ea

familia ortum quae Gallorum agmen ex rupe Tarpeia deiecit Tum dictator

―Macte uirtute inquit ac pietate in patrem patriamque T Manli esto Perge

et nomen Romanum inuictum iuuantibus dis praesta Armant inde iuuenem

aequales pedestre scutum capit hispano cingitur gladio ad propiorem habili

pugnam Armatum adornatumque aduersus Gallum stolide laetum et ndash

quoniam id quoque memoria dignum antiquis uisum est ndash linguam etiam ab

inrisu exserentem producunt Recipiunt inde se ad stationem et duo in medio

armati spectaculi magis more quam lege belli destituuntur nequaquam uisu

ac specie aestimantibus pares Corpus alteri magnitudine eximium

uersicolori ueste pictisque et auro caelatis refulgens armis media in altero

militaris statura modicaque in armis habilibus magis quam decoris species

non cantus non exsultatio armorumque agitatio uana sed pectus animorum

iraeque tacitae plenum omnem ferociam in discrimen ipsum certaminis

distulerat Vbi constitere inter duas acies tot circa mortalium animis spe

metuque pendentibus Gallus uelut moles superne imminens proiecto laeua

scuto in aduenientis arma hostis uanum caesim cum ingenti sonitu ensem

deiecit Romanus mucrone subrecto cum scuto scutum imum perculisset

totoque corpore interior periculo uolneris factus insinuasset se inter corpus

armaque uno alteroque subinde ictu uentrem atque inguina hausit et in

spatium ingens ruentem porrexit hostem Iacentis inde corpus ab omni alia

uexatione intactum uno torque spoliauit quem respersum cruore collo

circumdedit suo Defixerat pauor cum admiratione Gallos Romani alacres

ab statione obuiam militi suo progressi gratulantes laudantesque ad

dictatorem perducunt Inter carminum prope modo incondita quaedam

militariter ioculantes Torquati cognomen auditum celebratum deinde

posteris etiam [familiae] honori fuit Dictator coronam auream addidit

donum mirisque pro contione eam pugnam laudibus tulit

Durante muito tempo houve um silecircncio entre os nobres jovens romanos jaacute

que por um lado eles receavam recusar o combate e por outro natildeo queriam

se dirigir primeiro para essa sorte de perigo Entatildeo Tito Macircnlio filho de

Luacutecio que tinha livrado o pai da perseguiccedilatildeo do tribuno avanccedilou do seu

lugar ateacute o ditador e disse ―sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora

da linha de batalha nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa se tu

permitires quero eu mesmo mostrar agravequele animal visto que ele saltita feroz

diante dos estandartes dos inimigos que sou oriundo daquela famiacutelia que

355

Esses torneios marcavam o valoroso ritual dos celtas cuja maior motivaccedilatildeo era a honra guerreira

Diodoro Siacuteculo (V 29 2-3) escreveu sobre esse costume de um celta chamar um rival para uma disputa

individual brandindo suas armas e fazendo bastante barulho para inspirar medo no adversaacuterio Tambeacutem

de acordo com Rankin (1996 p 67) os gregos e os romanos viam no celta a sobrevivecircncia do antigo

coacutedigo de vida heroacuteico Nas estaacutetuas do gaulecircs moribundo estava expressa a riacutegida determinaccedilatildeo de um

guerreiro que escolhia a morte por sua proacutepria matildeo a viver uma vida em desonra (RANKIN 1996 p 67)

Essa caracteriacutestica lembra tambeacutem o episoacutedio do aquitano Pisatildeo que salvara seu irmatildeo da batalha o

irmatildeo por sua vez vendo que Pisatildeo morrera em combate voltou para a luta e foi morto pelos inimigos

(cf p 125 e ss) Se para os gauleses era mais importante ter uma morte gloriosa do que uma sobreviecircncia

humilhada para os romanos a circunstacircncia era diferente Hope (apud BROWN 2014 p 393) lembra que

nas campanhas militares romanas o ideal era combater vencer e sobreviver a ecircnfase estava toda na

vitoacuteria e natildeo nas viacutetimas que tombaram para criar esse sucesso

183

derrubou um multidatildeo de g uleses d roch T rpei 356

O ditador assim

respondeu ―Tens a honrada virtude Tito Macircnlio e a piedade para com o

pai e a paacutetria Avanccedila tu e com o auxiacutelio dos deuses defende o invenciacutevel

nome romano 357

Em seguida os companheiros armaram o jovem ele tomou

o escudo de um soldado e cingiu-se com uma espada hispana conveniente

para a luta corpo a corpo358

Eles o conduziram armado e equipado ateacute o

gaulecircs insensatamente feliz e ndash porque aos antigos parecesse esse ser um fato

digno de nota ndash que mostrava a liacutengua em escaacuternio Os jovens entatildeo se

retiraram para sua posiccedilatildeo No centro os dois armados foram deixados mais

agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra De forma alguma eram parecidos

considerando-se seu aspecto e tipo O corpo de um deles era notaacutevel pelo

tamanho resplandecente em uma veste multicolorida de vaacuterios tons e com

armas ornadas de ouro O outro tinha a estatura mediana e modesta de um

soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais ele natildeo produziu nenhum

canto nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas mas o seu peito

estava cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade

para o momento da proacutepria luta Quando eles se postaram entre as duas

linhas de batalha todos os que estavam agrave sua volta ficaram com os acircnimos

suspensos pela esperanccedila e pelo medo O gaulecircs que por cima se aproximava

devido ao seu grande tamanho lanccedilou o escudo contra as armas adversas do

inimigo que se aproximava e projetou a espada com grande ruiacutedo mas esse

golpe foi inuacutetil O romano com a ponta da espada erguida com seu proacuteprio

escudo bateu no escudo inimigo pela parte inferior e comprimindo-se todo

entre o corpo e as armas do inimigo aproximou-se ainda mais do perigo do

ataque com um golpe e depois outro ele feriu-lhe o ventre e a virilha e

jogou o adversaacuterio derrubado em um espaccedilo enorme Entatildeo do corpo

abatido intocado por nenhuma outra indignidade ele tirou somente o colar

que manchado de sangue colocou em volta do seu proacuteprio pescoccedilo O

pavor junto com a admiraccedilatildeo paralisou os gauleses os romanos

entusiasmados avanccedilaram de sua posiccedilatildeo ateacute o seu soldado e louvando-o e

agradecendo-o conduziram-no ateacute o ditador Entre o canto militar e os

gracejos desordenados que eles diziam ouvia-se o nome Torquato que

depois foi celebrado pelos seus descendentes e tornou-se ainda a honoriacutefica

alcunha da famiacutelia O ditador acrescentou uma coroa de ouro ao precircmio e

com admiraacuteveis elogios narrou essa luta em um discurso359

356

Oakley (1998 p 132) sublinha que era algo comum a todas as sociedades antigas os filhos desejarem

emular as conquistas de seus ancestrais em Roma isso era bastante comum em famiacutelias aristocraacuteticas

que herdavam prestiacutegio ao longo de geraccedilotildees (fato citado ao final desse capiacutetulo em que os descendentes

de Macircnlio herdam o nome Torquato) Os romanos assim motivados buscavam alcanccedilar faccedilanhas

similares agraves dos seus ascendentes Assim Tito Macircnlio demonstra sua vontade de lutar com o gaulecircs como

forma de rivalizar o feito do seu pai que derrubando os gauleses da rocha Tarpeia ficou conhecido como

Tito Macircnlio Capitolino (Ab urbe cond VI 17) 357

Gilmartin (1975 apud PHILLIPS 1982 p 1045) sugere que essa segunda pessoa do singular usada

por Liacutevio geralmente aparecia em contextos que estimulavam seus leitores a terem uma reaccedilatildeo (seja de

admiraccedilatildeo ou vergonha) dando mais ecircnfase no impacto que os exemplos criariam em seu puacuteblico do que

em fazer uma simples descriccedilatildeo dos acontecimentos 358

Na eacutepoca em que esse confronto aconteceu (361 aC) os romanos ainda natildeo tinham conquistado a

Hispacircnia trata-se entatildeo de um anacronismo de Liacutevio A espada (gladius) de Macircnlio mais curta que a do

gaulecircs (ensis) era ideal para confrontos muito proacuteximos Era bastante comum em Liacutevio esse fato do

gaulecircs ser prejudicado em um duelo por causa de uma espada muito longa Para discussatildeo mais detalhada

sobre as formas de combate com espada curta e longa cf Oakley (1998 p 134-136) 359

A coroa de ouro era um precircmio recorrente durante a Repuacutelica De acordo com Oakley (1998 p 148)

no periacuteodo final da Repuacuteblica passou a ser comum conceder coroas especiacuteficas como a corona ciuica

muralis etc Augusto (RG XXXIV p 150) mencionou que ganhou uma coroa ciacutevica e um escudo de

ouro

184

No capiacutetulo 9 o gaulecircs por conta proacutepria decidira avanccedilar e propor uma luta

individual Tito Macircnlio antes de aceitar esse desafio primeiro pediu a autorizaccedilatildeo ao

ditador dizendo sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora da linha de batalha

nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa360

Podemos perceber a assimetria entre a

uirtus baacuterbara e a disciplina contida do romano de fato a visatildeo romana considerava que

a uirtus era alcanccedilada coletivamente e natildeo individualmente (RIGGSBY 2006 p 90 e

91)361

Os pronomes tu e ego na fala de Macircnlio chamam atenccedilatildeo para a forma com a

qual ele subordina seu proacuteprio desejo de gloacuteria agrave autoridade do seu general (OAKLEY

1998 p 131) Liacutevio igualmente sublinhou a primitividade do gaulecircs atraveacutes das

palavras de Macircnlio que a ele se referiu como sendo um animal visto que ele saltita

feroz diante dos estandartes dos inimigos (illi beluae ostendere quando adeo ferox

praesultat hostium signis) Em contraste a essa caracteriacutestica selvagem do celta temos a

oposiccedilatildeo representada pela civilidade romana de fato o ditador em resposta diz que

Macircnlio tem a honrada virtude e a piedade para com o pai e a paacutetria (macte uirtute ac

pietate in patrem patriamque esto) e que com o auxiacutelio dos deuses o heroacutei haveria de

defender o invenciacutevel nome romano (nomen Romanum inuictum iuuantibus dis

praesta)362

Em seguida Liacutevio segue com a descriccedilatildeo clichecirc do gaulecircs insensatamente

feliz e que mostrava a liacutengua em escaacuternio363

Os combatentes armados foram deixados

no centro mais agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra Como Riggsby (2006 p 90

e 91) lembra para os romanos o valor de um cidadatildeo dependia do julgamento da

comunidade mais do que de padrotildees absolutos pois para os romanos era marcante essa

noccedilatildeo de coletividade por conseguinte isso encorajava a visatildeo de que a atividade

romana se desenrolava como se fosse em um palco com a audiecircncia desempenhando o

papel de juiacuteza Isso eacute um padratildeo constante no Ab urbe condita em que batalhas e duelos

comumente satildeo descritos como espetaacuteculos de forma a deixar a narrativa mais viacutevida

Dando continuidade agrave descriccedilatildeo estereotipada do celta (e tambeacutem do romano) temos

que o gaulecircs era notaacutevel pelo tamanho resplandecente em uma veste multicolorida com

360

Oakley (1998 p131) destaca que nenhum soldado romano podia sair do seu posto por nenhum

motivo a natildeo ser por ordem do seu comandante 361

Jaacute falamos a esse respeito na p 145 em que Ceacutesar tambeacutem afirmara algo semelhante sobre a uirtus

dos germanos e a disciplina romana 362

Conforme discutimos em vaacuterias passagens do livro V aqui tambeacutem o romano imbuiacutedo da uirtus e da

pietas contava com o auxiacutelio da divina providecircncia (a boa fortuna) e por isso defenderia o nome

romano sinocircnimo de honra e dignidade 363

Sobre o comportamento ameaccedilador e dramaacutetico que os gauleses tinham em batalha cf nota 354 Aleacutem

disso Ciacutecero t mbeacutem fez um descriccedilatildeo b st nte hostil dos g uleses dizendo que ―eles v g m

desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e

desum no d su liacutengu (cf Pro Fonteio 33 p 72)

185

armas ornadas de ouro364

O romano pelo contraacuterio tinha a estatura mediana e

modesta de um soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais Em oposiccedilatildeo agrave postura

teatral do gaulecircs que saltitava e mostrava a liacutengua Macircnlio natildeo produziu nenhum canto

nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas (non cantus non exsultatio

armorumque agitatio uana)365

Na verdade o romano embora impassiacutevel tinha o peito

cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade para o momento da

proacutepria luta (sed pectus animorum iraeque tacitae plenum omnem ferociam in

discrimen ipsum certaminis distulerat) Mais do que ficar desempenhando o papel do

guerreiro tiacutepico Macircnlio se preocupou em guardar sua energia feroz para o combate em

si Podemos pensar que embora Liacutevio tenha usado os termos ira e ferocia ndash comumente

empregados na historiografia latina para a descriccedilatildeo das naccedilotildees consideradas baacuterbaras ndash

para referir-se a um romano contudo Macircnlio possuiacutea a disciplina a uirtus e a pietas

assim a ira e a ferocidade devidamente controladas serviram como importantes

ferramentas para sua vitoacuteria366

Macircnlio aproveitando-se do fato de ser menor que o

gaulecircs comprimiu-se todo entre o corpo e as armas do inimigo e com apenas dois

golpes feriu-lhe o ventre e a virilha e venceu De todos os ricos ornamentos Macircnlio

tomou como butim somente o colar que manchado de sangue colocou em volta do seu

proacuteprio pescoccedilo (uno torque spoliauit quem respersum cruore collo circumdedit suo)

Mais uma vez temos a imagem dos gauleses paralisados por causa do pavor e da

admiraccedilatildeo (defixerat pauor cum admiratione Gallos)367

Por ter se apoderado do colar

(torquis) Macircnlio passou a ser reconhecido pelo nome Torquato

Tambeacutem no livro VII destacamos a seguinte passagem que se passa em 348

aC na qual o impasse da guerra eacute decidido em um novo duelo entre um gaulecircs e um

romano (VII 26)

Vbi cum stationibus quieti tempus tererent Gallus processit magnitudine

atque armis insignis quatiensque scutum hasta cum silentium fecisset

prouocat per interpretem unum ex Romanis qui secum ferro decernat M

364

Diodoro Siacuteculo (V 29 3) fala do costume dos gauleses tanto homens quanto mulheres usarem vaacuterios

adereccedilos em ouro Diodoro tambeacutem fala do costume dos guerreiros gauleses usarem vestes multicoloridas

em V 30 1 365

Cf p 169 em que essa conduta jaacute fora descrita com vocabulaacuterio similar em V 37 Jaacute todos os locais

em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e

vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (iam omnia contra circaque hostium plena erant et

nata in uanos tumultus gens truci cantu clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono) 366

Por conseguinte nota-se mais uma vez essa oposiccedilatildeo entre o romano astuto e o gaulecircs que possuiacutea

essa ira inata e incontrolaacutevel (cf BGall VII 42 p 133 e Ab urbe condV 37 p 169) Evidentemente na

historiografia latina o romano sendo superior em inteligecircncia e virtude sempre vencia seus inimigos 367

Cf V 39 (p 172 e 173) em que os gauleses ao vencerem em Aacutelia ficaram imoacuteveis de espanto

186

erat Valerius tribunus militum adulescens qui haud indigniorem eo decore

se quam T Manlium ratus prius sciscitatus consulis uoluntatem in medium

armatus processit Minus insigne certamen humanum numine interposito

deorum factum Namque conserenti iam manum Romano coruus repente in

galea consedit in hostem uersus Quod primo ut augurium caelo missum

laetus accepit tribunus precatus deinde si diuus si diua esset qui sibi

praepetem misisset uolens propitius adessetlsquo Dictu mirabile tenuit non

solum ales captam semel sedem sed quotienscumque certamen initum est

leuans se alis os oculosque hostis rostro et unguibus appetit donec territum

prodigii talis uisu oculisque simul ac mente turbatum Valerius obtruncat

coruus ex conspectu elatus orientem petit Hactenus quietae utrimque

stationes fuere postquam spoliare corpus caesi hostis tribunus coepit nec

Galli se statione tenuerunt et Romanorum cursus ad uictorem etiam ocior

fuit Ibi circa iacentis Galli corpus contracto certamine pugna atrox

concitatur Iam non manipulis proximarum stationum sed legionibus

utrimque effusis res geritur Camillus laetum militem uictoria tribuni laetum

tam praesentibus ac secundis dis ire in proelium iubet ostentansque

insignem spoliis tribunum ―Hunc imitare miles aiebat et circa iacentem

ducem sterne Gallorum cateruas Di hominesque illi adfuere pugnae

depugnatumque haudquaquam certamine ambiguo cum Gallis est adeo

duorum militum euentum inter quos pugnatum erat utraque acies animis

praeceperat Inter primos quorum concursus alios exciuerat atrox proelium

fuit alia multitudo priusquam ad coniectum teli ueniret terga uertit Primo

per Volscos Falernumque agrum dissipati sunt inde Apuliam ac mare

inferum petierunt () 368

Como os romanos estivessem quietos e passassem o tempo em guarda um

gaulecircs avanccedilou com tamanho e armas notaacuteveis ele fez silecircncio batendo no

escudo com a lanccedila e por meio de um inteacuterprete chamou um dos romanos

para que lutasse consigo atraveacutes do ferro Havia um jovem tribuno militar

Marco Valeacuterio que natildeo se considerava menos digno daquela honra do que

Tito Macircnlio Ele tendo antes se informado da vontade do cocircnsul avanccedilou

armado ateacute o centro Menos ilustre se mostrou o combate humano jaacute que

interferiram os poderes dos deuses De fato enquanto o romano se dirigia

para a luta um corvo de repente pousou no seu capacete virado para o

inimigo Feliz primeiramente o tribuno aceitou isso como um pressaacutegio

vindo do ceacuteu e depois suplicou ―c so fosse um deus ou deus que ele

enviou o paacutess ro que o voo propiacutecio lhe f vorecesse Ocorreu lgo

maravilhoso de se contar a ave natildeo se contentou apenas em ficar no lugar

mas todas as vezes que a luta comeccedilava com as asas ela levantou-se e

atacou o rosto e os olhos do inimigo com o bico e as garras Por fim o

gaulecircs aterrorizado pela visatildeo de tamanho prodiacutegio e ao mesmo tempo ferido

nos olhos e na mente foi morto por Valeacuterio o nobre corvo saindo de vista

dirigiu-se para o oriente Ateacute entatildeo as tropas dos dois lados estiveram

paradas Assim que o tribuno comeccedilou a despojar o corpo do inimigo morto

os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo e a corrida dos romanos ateacute

o vencedor foi ainda mais raacutepida Ali travando um acirrado combate ao redor

do corpo do gaulecircs derrubado houve uma luta atroz A batalha jaacute natildeo era

mais travada pelos maniacutepulos nas posiccedilotildees proacuteximas mas sim pelas legiotildees

dispersas pelos dois lados Camilo ordenou ir para o combate os soldados

que estavam felizes tanto com a vitoacuteria do tribuno quanto pela presenccedila dos

deuses favoraacuteveis mostrando-lhes o tribuno reluzente com os despojos

disse-lhes ―imitai-o soldados e ao redor do liacuteder derrubado derrotai as

multidotildees dos g uleses Deuses e homens tom r m p rte ness lut e de

forma alguma foi duvidoso o combate contra os gauleses uma e outra parte

jaacute compreendera nos acircnimos o resultado do combate que fora travado pelos

dois soldados Entre os que avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os

368

Encerramos a traduccedilatildeo desse capiacutetulo aqui apoacutes esse trecho Liacutevio muda de assunto e passa a narrrar

o conflito entre romanos e gregos na Siciacutelia

187

outros o embate foi atroz o resto da multidatildeo antes que pudesse lanccedilar os

dardos virou as costas Primeiro eles se dispersaram pela aacuterea dos volscos e

pelo territoacuterio de falerno de laacute se dirigiram para a Apuacutelia e o mar inferior

() (grifos nossos)

Esse capiacutetulo guarda muitas semelhanccedilas com a narrativa da vitoacuteria de Tito

Macircnlio mais uma vez um enorme gaulecircs toma a frente e chama um romano para um

duelo Valeacuterio se oferece para lutar tendo antes se informado da vontade do cocircnsul

Mesmo com alguns anos de intervalo entre Macircnlio e Valeacuterio (de 361 aC a 348 aC) a

disciplina romana continua exatamente a mesma369

Uma diferenccedila que temos eacute o fato

de ao contraacuterio do que ocorrera com Macircnlio nesse confronto interferiram os poderes

dos deuses Fica evidente o papel da divina providecircncia atuando em favor dos romanos

Um corvo que pousara no capacete de Valeacuterio atacou o rosto e os olhos do inimigo

com o bico e as garras Rankin (1996 p 109) destaca que para os romanos o corvo era

uma ave sagrada para os gauleses ele era uma representaccedilatildeo comum da deusa celta da

guerra Ao dizer que o corvo ajudou um guerreiro romano Liacutevio destacou ainda mais a

vitoacuteria desse contra o gaulecircs jaacute que esse que seria um pressaacutegio favoraacutevel ao gaulecircs no

fim das contas mostrou-se auspicioso para Valeacuterio Outro acontecimento que difere do

duelo de Macircnlio foi o fato de que assim que Valeacuterio comeccedilou a despojar o corpo do

inimigo morto os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo Antes ao verem a

vitoacuteria de Macircnlio os gauleses ficaram paralisados por medo e admiraccedilatildeo mas se

resignaram com o resultado Jaacute nesse capiacutetulo os gauleses natildeo soacute natildeo ficaram estaacuteticos

mas tambeacutem partiram para cima dos romanos e houve uma luta atroz Temos nas

palavras de Camilo entatildeo um exemplo de comportamento valoroso na guerra uma vez

que ele pede aos soldados que imitem a atitude de Valeacuterio frente ao inimigo370

Mesmo

com essa acirrada batalha Liacutevio ao dizer que de forma alguma foi duvidoso o combate

contra os gauleses salientou que os romanos venceriam de qualquer jeito pois eles

contavam com o auxiacutelio dos deuses

Passamos agora ao livro XXIII em que temos o contexto histoacuterico da Segunda

Guerra Puacutenica Preocupados em derrotar Aniacutebal os romanos sofrem uma terriacutevel

derrota na Gaacutelia Assim temos (Ab urbe cond XXIII 24)

369

Nenhum soldado romano se prontificava a lutar sem antes ter a autorizaccedilatildeo expressa de seu general

(cf VII 10 p 182) 370

Valeacuterio imitou o exemplo de Macircnlio ao confrontar um gaulecircs por sua vez Liacutevio exorta seu puacuteblico-

alvo a imitar Valeacuterio Falamos do importante papel dos exempla no Ab urbe condita nas paacuteginas 158 e

159

188

() Cum eae res maxime agerentur noua clades nuntiata aliam super aliam

cumulante in eum annum fortuna L Postumium consulem designatum in

Gallia ipsum atque exercitum deletos Silua erat uasta ndash Litanam Galli

uocabant ndash qua exercitum traducturus erat Eius siluae dextra laeuaque circa

uiam Galli arbores ita inciderunt ut immotae starent momento leui impulsae

occiderent Legiones duas Romanas habebat Postumius sociumque ab

supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia armatorum in

agros hostium induxerit Galli oram extremae siluae cum circumsedissent

ubi intrauit agmen saltum tum extremas arborum succisarum impellunt

quae alia in aliam instabilem per se ac male haerentem incidentes ancipiti

strage arma uiros equos obruerunt ut uix decem homines effugerent Nam

cum exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum

ceteram multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati

circumsedentes interfecerunt paucis e tanto numero captis qui pontem

fluminis petentes obsesso ante ab hostibus ponte interclusi sunt Ibi

Postumius omni ui ne caperetur dimicans occubuit Spolia corporis caputque

praecisum ducis Boii ouantes templo quod sanctissimum est apud eos

intulere Purgato inde capite ut mos iis est caluam auro caelauere idque

sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem sacerdoti

esset ac templi antistitibus Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria

fuit nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat tamen

ceterae res quia nihil dissipatum fuga est stratae per omnem iacentis

agminis ordinem inuentae sunt

() Enquanto essas coisas aconteciam soube-se de uma nova cataacutestrofe pois

que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a outra L Postuacutemio

designado cocircnsul foi massacrado na Gaacutelia junto com seu exeacutercito A floresta

pela qual ele deveria conduzir a tropa era vasta ndash os gauleses a chamavam

de Litana371

Ao longo do caminho pela direita e pela esquerda os gauleses

cortaram as aacutervores assim elas pareceriam de peacute mas com um leve

movimento elas cairiam Postuacutemio tinha duas legiotildees romanas e como tinha

recrutado muitos aliados do mar superior372

ele conduzia vinte e cinco mil

soldados para os territoacuterios dos inimigos Os gauleses ficaram ao longo da

borda da floresta no momento em que a fileira entrou no mato eles logo

empurraram aacutervores cortadas que estavam mais externas Elas caiacuteram umas

sobre as outras instaacuteveis e mal estabilizadas com esse desabamento elas

destruiacuteram as armas os homens e os cavalos de tal forma que apenas dez

indiviacuteduos escaparam com muita dificuldade De fato muitos foram

sufocados pelos troncos das aacutervores e pedaccedilos de galhos Os gauleses

armados rodeando toda a floresta mataram a outra parte deles que estava

atemorizada por esse repentino mal De um nuacutemero tatildeo grande poucos foram

capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora

bloqueada pelos inimigos Foi ali que Postuacutemio lutando com toda a forccedila

para natildeo ser apanhado morreu Os boios exultantes levaram ateacute o templo

que era muito sagrado entre eles os despojos do corpo e a cabeccedila decepada

do general Entatildeo apoacutes limparem a cabeccedila como era o costume deles

ornaram o cracircnio com ouro que para eles passou a ser um recipiente

sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas solenidades e o mesmo serviria de

copo para os sacerdotes do templo373

Para os gauleses o butim foi tatildeo grande

371

Essa floresta no territoacuterio da naccedilatildeo celta dos boios era ao sudeste da atual cidade de Moacutedena 372

Hoje conhecido por mar Adriaacutetico 373

Posidocircnio (via Estrabatildeo IV 4 5 cf p 85 e 86) afirmara que os gauleses (assim como vaacuterias outras

tribos do norte) tinham o exoacutetico e baacuterbaro haacutebito de exibirem as cabeccedilas dos inimigos como precircmios na

entrada de suas casas Diodoro Siacuteculo (V 29 4) escreveu que os galos levavam os cracircnios como butim

mantendo-os em casa como trofeacuteus As cabeccedilas dos inimigos mais ilustres eram embalsamadas com oacuteleo

de cedro e guardadas em urnas e eles natildeo as vendiam por quantia nenhuma de ouro Liacutevio aqui

descreveu esse costume de forma um pouco diferente dizendo que os cracircnios eram levados ao sagrado

templo e usados como recipiente para as libaccedilotildees e como copo para os sacerdotes Assim o uso das

cabeccedilas outrora mantidas em contexto privado passam a ser um precircmio puacuteblico ao serem usadas nos

189

quanto a vitoacuteria de fato embora grande parte dos animais pereceu com a

queda das aacutervores todavia os demais objetos ndash jaacute que nada se perdeu na fuga

ndash foram encontrados caiacutedos por toda a fileira do exeacutercito derrubado (grifos

nossos)

Liacutevio escreveu que enquanto os romanos se ocupavam da guerra contra Aniacutebal

houve uma nova cataacutestrofe pois que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a

outra O autor mais uma vez deixou expliacutecito o papel da fortuna nesse episoacutedio como

forma de justificar os vaacuterios desastres sofridos por Roma nesse periacuteodo O incidente

dessa emboscada na floresta Litana imediatamente nos faz lembrar do massacre sofrido

por Varro em Teutoburgo374

Lembrando do papel dos exempla no Ab urbe condita esse

seria justamente um aviso estrateacutegico aos romanos pelo proacuteprio modus operandi de

uma legiatildeo eles deviam evitar confrontos em florestas densas375

Vemos que os

gauleses foram muito espertos jaacute que eles cortaram as aacutervores de modo que elas

parecessem de peacute mas que com um leve movimento elas caiacutessem sobre os inimigos

Liacutevio disse que Postuacutemio conduzia vinte e cinco mil soldados para os territoacuterios dos

inimigos um nuacutemero bem elevado que ressalta ainda mais o contraste com o nuacutemero de

sobreviventes entre armas homens e animais perdidos apenas dez indiviacuteduos

escaparam Aleacutem disso a menccedilatildeo de que um nuacutemero tatildeo grande poucos foram

capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora bloqueada

pelos inimigos aumentou ainda mais a expressividade dramaacutetica de tamanha derrota

Postuacutemio sendo corajoso e lutando ateacute o fim acabou perecendo e seu corpo foi

despojado pelos boios

Por fim chegamos ao uacuteltimo trecho de Liacutevio (XXXVIII 17) a ser analisado

neste trabalho Nesse episoacutedio temos o contexto da batalha dos romanos contra os

gaacutelatas (ou galo-gregos) no Monte Olimpo em 189 aC Antes da luta Macircnlio faz um

significativo discurso para as tropas Assim temos (XXXVIII 17)

Cum hoc hoste tam terribili omnibus regionis eius quia bellum gerendum

erat pro contione milites in hunc maxime modum adlocutus est consul ―non

me praeterit milites omnium quae Asiam colunt gentium Gallos fama belli

praestare Inter mitissimum genus hominum ferox natio peruagata bello

prope orbem terrarum sedem cepit Procera corpora promissae et rutilatae

rituais religiosos e solenes Liacutevio com isso provavelmente queria ressaltar o caraacuteter baacuterbaro desse haacutebito

Por outro lado Ceacutesar em momento algum do De bello Gallico citou esse costume Isso se justificava pelo

fato do general ter retratado os gauleses mais proacuteximos culturalmente aos romanos jaacute que a finalidade de

sua obra era poliacutetica e natildeo meramente etnograacutefica (cf p 139) 374

Cf p 153 375

As legiotildees eram muito eficazes em terrenos abertos mas pelo fracasso na floresta Litana e tambeacutem

em Teutoburgo fica claro que elas ficavam em desvantagem em aacutereas de mata fechada

190

comae uasta scuta praelongi gladii ad hoc cantus inchoantium proelium et

ululatus et tripudia et quatientium scuta in patrium quemdam modum

horrendus armorum crepitus omnia de industria composita ad terrorem Sed

haec quibus insolita atque insueta sunt Graeci et Phryges et Cares timeant

Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt Semel primo

congressu ad Alliam olim fuderunt maiores nostros Ex eo tempore per

ducentos iam annos pecorum in modum consternatos caedunt fugantque et

plures prope de Gallis triumphi quam de toto orbe terrarum acti sunt Iam

usu hoc cognitum est si primum impetum quem feruido ingenio et caeca ira

effundunt sustinueris fluunt sudore et lassitudine membra labant arma

mollia corpora molles ubi ira consedit animos sol puluis sitis ut ferrum

non admoueas prosternunt Non legionibus legiones eorum solum experti

sumus sed uir unus cum uiro congrediendo T Manlius M Valerius quantum

Gallicam rabiem uinceret Romana uirtus docuerunt iam M Manlius unus

agmine scandentes in Capitolium Gallos detrusit Et illis maioribus nostris

cum haud dubiis Gallis in sua terra genitis res erat hi iam degeneres sunt

mixti et Gallograeci uere quod appellantur sicut in frugibus pecudibusque

non tantum semina ad seruandam indolem ualent quantum terrae proprietas

caelique sub quo aluntur mutat Macedones qui Alexandriam in Aegypto qui

Seleuciam ac Babyloniam quique alias sparsas per orbem terrarum colonias

habent in Syros Parthos Aegyptios degenerarunt Massilia inter Gallos sita

traxit aliquantum ab accolis animorum Tarentinis quid ex Spartana dura illa

et horrida disciplina mansit Generosius in sua quidquid sede gignitur

insitum alienae terrae in id quo alitur natura uertente se degenerat

Phrygas igitur Gallicis oneratos armis sicut in acie Antiochi cecidistis

uictos uictores caedetis Magis uereor ne parum inde gloriae quam ne

nimium belli sit Attalus eos rex saepe fudit fugauitque Nolite existimare

beluas tantum recens captas feritatem illam siluestrem primo seruare dein

cum diu manibus humanis alantur mitescere in hominum feritate mulcenda

non eamdem naturam esse eosdemne hos creditis esse qui patres eorum

auique fuerunt Extorres inopia agrorum profecti domo per asperrimam

Illyrici oram Paeoniam inde et Thraeciam pugnando cum ferocissimis

gentibus emensi has terras ceperunt Duratos eos tot malis exasperatosque

accepit terra quae copia rerum omnium saginaret Vberrimo agro mitissimo

caelo clementibus accolarum ingeniis omnis illa cum qua uenerant

mansuefacta est feritas Vobis mehercule Martiis uiris cauenda ac fugienda

quam primum amoenitas est Asiae tantum hae peregrinae uoluptates ad

extinguendum uigorem animorum possunt quantum contagio disciplinae

morisque accolarum ualet Hoc tamen feliciter euenit quod sicut uim

aduersus uos nequaquam ita famam apud Graecos parem illi antiquae

obtinent cum qua uenerunt bellique gloriam uictores eandem inter socios

habebitis quam si seruantes antiquum specimen animorum Gallos uicissetis

Como eles devessem empreender a guerra contra esse inimigo que era o mais

terriacutevel de todos dessa regiatildeo o cocircnsul reuniu os combatentes e proferiu o

seguinte discurso ―natildeo me esc p sold dos que de todos os povos que

habitam a Aacutesia os gauleses satildeo superiores pela sua fama na guerra Essa

feroz naccedilatildeo depois que percorreu quase todos os lugares fazendo guerra por

fim tomou lugar entre esse povo muito paciacutefico Eles possuem corpos

enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito longas

Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um

combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas nos escudos de

acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar terror

Os gregos os friacutegios e o caacuterios como natildeo estatildeo acostumados a essas coisas

estranhas e incomuns sentem medo Por outro lado noacutes romanos estamos

familiarizados com esses tumultos gaacutelicos e tambeacutem jaacute conhecemos as

inconstacircncias deles Apenas uma vez no primeiro encontro os nossos

antepassados fugiram para Aacutelia376

Desde entatildeo e jaacute ao longo de duzentos

376

Cf V 38 p 170 e 171

191

anos eles satildeo mortos ou fogem atemorizados como se fossem gado377

Celebramos vaacuterios triunfos muito mais sobre os gauleses do que sobre o resto

do mundo Jaacute aprendemos esse costume se resistirmos ao primeiro ataque

que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se

enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga No momento em

que a ira deles se acalma por causa do sol da poeira e da sede eles

derrubam seus corpos moles e acircnimos por isso natildeo precisamos mover o

ferro Natildeo somos experientes apenas nos combates entre nossos exeacutercitos

contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um soacute homem contra outro

De fato Tito Macircnlio e Marco Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana

se sobressaiacutea agrave fuacuteria gaulesa e outrora Marco Macircnlio sozinho derrubou os

gauleses que em coluna escalavam o Capitoacutelio378

Nessa eacutepoca os nossos

ancestrais tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra

esses de agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de

galo-gregos No caso dos gratildeos ou dos animais as sementes natildeo podem

conservar sua iacutendole quando muda a propriedade da terra e do ceacuteu sob o qual

se desenvolvem Do mesmo modo os macedocircnios que antes possuiacuteram

Alexandria no Egito Selecircucia Babilocircnia e outras colocircnias espalhadas por

todo o mundo se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios Marselha

situada entre os gauleses tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos Quanto aos

tarentinos o que restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Tudo o

que eacute produzido em seu lugar de origem eacute mais digno quando introduzido

em outra terra da qual se nutre ele transforma sua natureza e se degenera

Portanto assim como voacutes matastes na fileira de Antiacuteoco agora matareis os

friacutegios que portam armas gaulesas voacutes vencedores e eles os vencidos

Receio mais que disso resulte uma gloacuteria escassa do que bastante luta O rei

Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Natildeo acreditais que apenas as

feras quando capturadas primeiro mantecircm aquela sua ferocidade selvagem

e em seguida domesticam-se quando por muito tempo satildeo alimentadas por

matildeos humanas O mesmo ocorre com a natureza dos homens quando sua

ferocidade se acalma ou acreditais esses serem iguais aos que foram seus

pais e antepassados Eles deixaram a paacutetria por causa da falta de terras

avanccedilaram pela duriacutessima regiatildeo da Iliacuteria depois percorreram a Peocircnia e a

Traacutecia e tendo lutado contra povos ferociacutessimos tomaram essas paragens

Essa terra que produz uma fartura de todas as coisas acolheu esses homens

endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo feacutertil com

ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham

quando chegaram se abrandou Por Heacutercules Voacutes homens de Marte379

deveis o quanto antes evitar e fugir da amenidade da Aacutesia Esses prazeres

estrangeiros tanto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o mesmo

pode ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes dos vizinhos

Felizmente acontece que embora os gauleses de forma alguma sejam fortes

perante voacutes todavia entre os gregos eles ainda possuem aquela mesma fama

com a qual chegaram outrora Voacutes vencedores tereis entre os aliados a

mesma gloacuteria da guerra como se tiveacutesseis vencido os gauleses dotados de

sua antiga disposiccedilatildeo de acircnimos (grifos nossos)

Sobre a migraccedilatildeo gaulesa para a Aacutesia Menor sem duacutevida Liacutevio usou Poliacutebio

como fonte (BRISCOE 2008 p 71) Todavia esse discurso de Macircnlio sem duacutevida foi

377

M is um vez Liacutevio se referiu os g uleses como ―g do cf V 48 p 179 em que eles morriam como

gado 378

Sobre a vitoacuteria de Macircnlio cf VII 10 p 182 e 183 Para a luta de Valeacuterio cf VII 26 p 185 a 187

Esse episoacutedio em que Marco Macircnlio derrubou os gauleses do Capitoacutelio se encontra em Ab Urb Cond V

47 379

Os romanos ligavam sua origem miacutetica a Marte pois consideravam que o deus da guerra era o pai dos

gecircmeos Rocircmulo e Remo Liacutevio usou essa designaccedilatildeo para acentuar ainda mais o caraacuteter belicoso das

legiotildees

192

uma criaccedilatildeo proacutepria de Liacutevio jaacute que Poliacutebio natildeo fez menccedilatildeo a essa fala (LUCE 1977

p 90) Na historiografia antiga as passagens com discursos eram uma importante

ferramenta que servia como meio de expressatildeo para descrever o estado da mente dos

personagens ou povos retratados Em Liacutevio esses discursos fundamentalmente

trabalhados na arte retoacuterica iam aleacutem no seu propoacutesito Na verdade muito aleacutem de

delinear os pensamentos dos indiviacuteduos para a audiecircncia que se encontrava dentro da

narrativa o foco principal de Liacutevio era endereccedilar esses discursos aos romanos de fora

da narrativa jaacute que o historiador acima de tudo buscava transmitir ao seu puacuteblico-alvo

exempla de virtudes e comportamentos a serem imitados (ou evitados) Liacutevio

geralmente preferia usar o discurso direto ao indireto de modo a natildeo interromper a

expressatildeo dos pensamentos e sentimentos da pessoa envolvida Seguindo seu preceito

de que a histoacuteria servia mais para comover do que para ser um relato pragmaacutetico dos

acontecimentos Liacutevio entatildeo buscou dar mais ecircnfase ao caraacuteter dramaacutetico dos discursos

do que utilizaacute-los como um meio de explicar uma situaccedilatildeo ou contexto histoacuterico

Lambert (1946 apud AILI 1982 p 1133) diz que em Ceacutesar acontecia o contraacuterio a

preferecircncia pelo discurso indireto estava diretamente ligada agrave questatildeo formal do

comentaacuterio Por isso o discurso era introduzido de forma abrupta justamente para

interromper a narrativa de modo a explicar uma situaccedilatildeo ou ajudar a caracterizar um

povo ou personagem380

Macircnlio no capiacutetulo acima comeccedilou seu discurso dizendo que os gauleses de

todos os povos que habitam a Aacutesia eram superiores pela sua fama na guerra e os

chamou de feroz naccedilatildeo (ferox natio)381

Not mos cert depreci ccedilatildeo nesse ―elogio agrave

fama beacutelica dos gauleses entre os povos da Aacutesia jaacute que eles tomaram lugar entre esse

povo muito paciacutefico (inter mitissimum genus hominum) Ora entre populaccedilotildees bastante

pacatas qualquer fama guerreira por menor que fosse se sobressairia Em seguida

temos uma lista de vaacuterios toacutepoi da representaccedilatildeo dos galos eles possuem corpos

enormes (procera corpora) cabelos longos e ruivos (promissae et rutilatae comae)

grandes escudos (uasta scuta) e espadas muito longas (praelongi gladii) Depois Liacutevio

descreveu o modo de agir deles antes de um confronto junto a isso tambeacutem o canto os

gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao

bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente

380

Sobre o papel dos discursos natildeo soacute na historiografia antiga mas tambeacutem especificamente em Ceacutesar cf

p 116 e 117 Quanto agrave preocupaccedilatildeo de Liacutevio em transmitir exempla agrave sua audiecircncia cf p 158 e 159 381

A ferocitas era o traccedilo essencial do baacuterbaro a esse respeito cf p 40 e 41 deste trabalho

193

preparado para causar terror382

Segundo Riggsby (2006 p 48) os relatos antigos

costumavam focar bastante no que parecia pitoresco ou exoacutetico pois isso tinha um

grande apelo em uma audiecircncia greco-romana e aqui isso natildeo seria diferente

Continuando a narrativa Liacutevio atraveacutes de Macircnlio disse que os gregos friacutegios e

caacuterios sentiam medo com esse espetaacuteculo exoacutetico Os romanos como jaacute travaram

contato com os gauleses muito antes dessa migraccedilatildeo para a Aacutesia Menor jaacute estavam

familiarizados natildeo soacute com esse costume mas tambeacutem com a inconstacircncia deles

(Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt) Liacutevio escreveu que os

romanos se apavoraram apenas uma vez no desastre junto ao Aacutelia apenas porque era a

primeira vez que eles se encontraram frente a frente com os gauleses Depois disso e jaacute

ao longo de duzentos anos eles satildeo mortos ou fogem e os romanos triunfaram mais

sobre os galos do que qualquer outro povo Evidentemente em um discurso para

encorajar as tropas a terriacutevel derrota de Postuacutemio e as legiotildees emboscadas na floresta

Litana foram esquecidas De novo temos o reforccedilo da inconstacircncia dos galos se os

romanos resistirem ao primeiro ataque que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira

logo os braccedilos deles se enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga 383

Assim por esse motivo e como igualmente os gauleses se enfraqueciam rapidamente

pelo sol poeira e sede os romanos nem precisavam empunhar as armas Entatildeo Camilo

reafirmou a superioridade romana dizendo natildeo somos experientes apenas nos

combates entre nossos exeacutercitos contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um

soacute homem contra outro A seguir ele mencionou os sucessos de Tito Macircnlio Marco

Valeacuterio e Marco Macircnlio Esses exemplos da virtude beacutelica serviam de inspiraccedilatildeo natildeo soacute

para as tropas que escutavam Macircnlio mas tambeacutem para os romanos que tinham contato

com a Ab urbe condita Os feitos desses heroacuteis foram ainda significativos pois nessa

eacutepoca eles tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de

agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos Liacutevio

relacionou essa perda da primitiva uirtus gaulesa com a migraccedilatildeo deles e o contato que

tiveram com os gregos com isso os gauleses a que se refere Macircnlio nesse discurso satildeo

mera sombra dos celtas de outrora384

Liacutevio entatildeo citou outros exemplos de como a

miscigenaccedilatildeo enfraqueceu as naccedilotildees dizendo que os macedocircnios que antes possuiacuteram

382

Liacutevio fez uma descriccedilatildeo dos gauleses bem parecida agrave de Diodoro Siacuteculo (V capiacutetulos 29 e 30) 383

Jaacute apareceram ao longo deste tabalho vaacuterios exemplos sobre a inconstacircncia dos voluacuteveis gauleses Cf

especialmente p 121 em que Ceacutesar narrou esse arrefecimento do iacutempeto guerreiro do gaulecircs que se

apavorou frente aos germanos 384

Natildeo deixa de ser irocircnico o fato de que Ceacutesar escreveu que os gauleses perderam sua uirtus justamente

pelo contato com os romanos (cf p 130)

194

um vasto impeacuterio se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios O mesmo aconteceu com

Marselha que proacutexima aos celtas tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos E quanto aos

tarentinos nada restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Macircnlio com todos

esses argumentos deixou claro para as tropas que ao lutarem com um inimigo tatildeo

enfraquecido eles teriam uma gloacuteria escassa e para reforccedilar essa ideia ele disse que o

rei Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Se um rei heleniacutestico conseguia

vencer por vaacuterias vezes esses gauleses degenerados para os romanos entatildeo essa tarefa

seria bem tranquila pois haacute tempos estavam acostumados com galos de verdade

Na sequecircncia temos mais detalhes sobre a emigraccedilatildeo dos gauleses e a falta de

terra como sendo a motivaccedilatildeo principal desse ocorrido Ao chegarem a uma nova regiatildeo

com um campo tatildeo feacutertil (uberrimo agro) com ceacuteu muito ameno (mitissimo caelo) e

com vizinhos paciacuteficos eles perderam toda aquela rudeza que tinham quando

chegaram Nota-se o uso dos superlativos uberrimo agro e mitissimo caelo para

salientar ainda mais as benesses dessa aacuterea Por conseguinte foram essas favoraacuteveis

caracteriacutesticas geograacuteficas e climaacuteticas que acalmaram os gauleses Aleacutem disso esse

enfraquecimento tambeacutem podia ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes

dos vizinhos Temos um novo alerta para os soldados da mesma forma que as

amenidades da Aacutesia e o conviacutevio com vizinhos paciacuteficos degeneraram os galos o

mesmo poderia acontecer com os romanos Por fim o discurso se encerra com mais um

exemplo dessa vez endereccedilado aos aliados os romanos superando os gauleses teriam

entre os aliados a mesma gloacuteria da guerra Essa luta mais do que mero sucesso militar

serviria tambeacutem como ferramenta importante para granjear o respeito das outras naccedilotildees

195

36 ndash Pliacutenio o Velho

361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis

O nome completo de Pliacutenio era Caio Pliacutenio Segundo ndash o tiacutetulo de ―Velho (ou

―Anciatildeo) foi dot do depois p r distingui-lo do seu sobrinho Pliacutenio o Jovem Pliacutenio

nasceu em Como por volta do ano 23 dC membro de uma abastada famiacutelia da ordem

equestre Em sua juventude comeccedilou sua carreira militar na Germacircnia entre os anos de

46 e 58 dC Segundo Conte (1999 p 497) a atividade nessa regiatildeo deu a Pliacutenio a ideia

de compor uma obra histoacuterica em vinte livros a Bella Germaniae que gozou de certo

sucesso e teria sido usada por Taacutecito como fonte para sua Germania Apoacutes a morte do

imperador Claacuteudio Pliacutenio retirou-se da vida puacuteblica devido ao conturbado periacuteodo de

Nero com a estabilidade poliacutetica do governo de Vespasiano Pliacutenio voltou a ter intensa

carreira como procurador imperial entre os anos de 70 e 76 dC e posteriormente

tornou-se conselheiro de Vespasiano e Tito (MURPHY 2004 p 4) Apesar de se

manter bastante ocupado com a administraccedilatildeo do impeacuterio Pliacutenio dedicou-se a escrever

vaacuterios trabalhos literaacuterios como a biografia de seu patrono Pompocircnio Segundo um

livro de teacutecnica de combate de cavalaria (De iaculatione equestri) um tratado sobre a

liacutengua latina (De dubio sermone) sobre a educaccedilatildeo do orador (Studiosi) e uma histoacuteria

romana do governo Juacutelio-Claacuteudio (A fine Aufidi Bassi) Infelizmente nenhuma dessas

obras citadas nos chegou apenas sobreviveu a Historia naturalis escrita entre 77 e 78

dC e dedicada ao novo imperador Tito Pliacutenio faleceu em 79 dC na erupccedilatildeo do

Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano385

De todos os trabalhos de Pliacutenio apenas a Historia naturalis nos chegou de forma

satisfatoacuteria Composta em trinta e sete livros Pliacutenio escreveu uma obra que por abordar

vaacuterios temas diferentes geralmente foi classificada como enciclopeacutedia Temos no livro

I a exposiccedilatildeo de Pliacutenio sobre os objetivos de sua obra No livro II ele falou dos astros e

dos elementos da natureza Nos quatro livros seguintes (III-VI) de caraacuteter geograacutefico

Pliacutenio descreveu a paisagem de vaacuterias regiotildees como a Europa o mundo helecircnico o

oriente proacuteximo e o extremo oriente O livro VII de caraacuteter etnograacutefico foi consagrado

385

Retiramos as informaccedilotildees biograacuteficas de Pliacutenio do livro de Conte (1999 p 497 e 498) Para as

informaccedilotildees sobre as obras perdidas de Pliacutenio usamos como referecircncia Murphy (2004 p 17) Para mais

informaccedilotildees sobre a vida de Pliacutenio e suas obras sob o prisma de Pliacutenio o Jovem cf o artigo de

Henderson (2002) Quanto agrave morte do erudito Pliacutenio o Jovem narrou esse acontecimento em duas cartas

endereccediladas a Taacutecito (Ep VI 16 e VI 20)

196

ao estudo das caracteriacutesticas do ser humano contendo vaacuterias narrativas fantaacutesticas de

humanos que possuiacuteam corpos totalmente fora do natural Os quatro livros seguintes

(VIII-XI) foram dedicados agrave descriccedilatildeo dos animais dezesseis livros (XII-XXVII) agrave

descriccedilatildeo dos vegetais principalmente das plantas medicinais cinco livros (XXVIII-

XXXII) dedicados ao estudo dos medicamentos natildeo vegetais e os dois uacuteltimos livros

satildeo sobre as rochas e pedras preciosas (XXXVI-XXXVII)

O tiacutetulo da Historia naturalis deveria ser traduzido mais como Conhecimento da

Natureza devido ao proacuteprio sentido do termo historia em grego O relato da morte de

Pliacutenio ndash narrado por Taacutecito em duas cartas (VI 16 e 20) ndash contribuiu para a fama de

cientista exemplar jaacute que ele perdeu a vida tentando observar o fenocircmeno natural da

erupccedilatildeo do Vesuacutevio Contudo Conte (1999 p 499) salienta

It should be said however th t Plinylsquos conception of science h s little of

experimental or empiric and that according to the account of the Younger

Pliny exposed himself to danger in order to bring aid to some citizens

threatened by the eruption The virtue that emerges from this noble death is

thus philanthropy and the spirit of service rather than thirst for knowledge

just the virtue that drove Pliny to the immense undertaking of the Naturalis

Historia a work intended in its entirely to be of service to mankind386

Conte (1999 p 500 e 501) considera que a Historia naturalis com sua vasta

apresentaccedilatildeo de vaacuterios temas representa a completa realizaccedilatildeo da tendecircncia cultural

romana de tratados ndash longos ou curtos ndash que sintetizavam vaacuterias abordagens como as

obras de Varratildeo Vitruacutevio Columela e posteriormente a Pliacutenio Quintiliano

362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder

A enciclopeacutedia como o conjunto de conhecimento compilado em uma soacute obra e

com a finalidade de ser consultada de forma independente foi uma inovaccedilatildeo romana

Embora os gregos tivessem escrito obras de encyclios paideia (daiacute o termo portuguecircs

enciclopeacutedia) na verdade esse tipo de composiccedilatildeo era mais dedicado a abarcar assuntos

de um mesmo tema como a retoacuterica a medicina etc387

Os gregos jamais buscaram

confinar todo o conhecimento em apenas um livro ou obra esse tipo de composiccedilatildeo

386

―Deve-se dizer contudo que a concepccedilatildeo de ciecircncia de Pliacutenio era pouco experimental ou empiacuterica e

que de acordo com o relato do Jovem Pliacutenio expocircs a si mesmo ao perigo de modo a ajudar alguns

cidadatildeos ameaccedilados pela erupccedilatildeo A virtude que emerge dessa nobre morte eacute portanto a filantropia e o

espiacuterito de serviccedilo muito mais do que a sede de conhecimento foi essa virtude que levou Pliacutenio a imensa

tarefa da Histoacuteria natural um trabalho feito inteir mente serviccedilo d hum nid de 387

O termo em grego encyclios paideia signific v ―educ ccedilatildeo ger l

197

floresceu em Roma e se justificou pela consolidaccedilatildeo do proacuteprio impeacuterio que cobria um

vasto territoacuterio e abarcava vaacuterias naccedilotildees e culturas foi a ambiccedilatildeo de alcanccedilar esses

horizontes que tornou possiacutevel esse tipo de narrativa (MURPHY 2004 p 195) As

enciclopeacutedias anteriores a Pliacutenio de que temos notiacutecia foram as Disciplinae

(Disciplinas) escritas por Marco Terecircncio Varratildeo no final da repuacuteblica romana e

tambeacutem as Artes de A Corneacutelio Celso datadas do principado de Tibeacuterio de ambas

temos apenas poucos fragmentos388

Contudo temos diferenccedilas entre o que se pode entender por enciclopeacutedia na

Antiguidade e atualmente No caso da Historia naturalis desde a sua concepccedilatildeo o

propoacutesito dessa obra foi o de servir como um material de consulta isso justifica o

grande tamanho do texto e a sua divisatildeo em temas (geografia botacircnica etc) Conte

(1999 p 502) lembra que ateacute a criaccedilatildeo das enciclopeacutedias modernas (com seu conteuacutedo

dividido por ordem alfabeacutetica e instruccedilotildees para facilitar o acesso agrave informaccedilatildeo) a

Historia naturalis foi um dos trabalhos mais bem organizados no sentido de facilitar

essa consulta Entretanto haacute uma discussatildeo acerca de se a Historia naturalis deve ou

natildeo ser classificada como enciclopeacutedia jaacute que esse termo soa anacrocircnico por causa do

uso atual que fazemos desse tipo de produccedilatildeo De fato a enciclopeacutedia eacute uma obra

autocircnoma que encapsula (ou busca encapsular) o total do conhecimento universal

organizando-o de forma a preservar esse conhecimento e o fazer acessiacutevel a uma grande

audiecircncia Uma observaccedilatildeo geral nos faz perceber que a Historia naturalis eacute bastante

diferente em termos de organizaccedilatildeo taxonomias e referenciais teoacutericos do que hoje

entendemos por enciclopeacutedia389

Assim neste trabalho preferimos considerar a obra de

Pliacutenio como erudiccedilatildeo Embora a Historia naturalis assim como uma enciclopeacutedia atual

busque preservar e abarcar o corpo do saber utilizando uma sistematizaccedilatildeo do

conhecimento todavia ela natildeo foi feita para ser simplesmente lida de forma universal

Como Murphy (2004 p 12) destaca essa composiccedilatildeo foi elaborada para a leitura de um

puacuteblico especiacutefico e sua forma foi feita de modo a ajudar o leitor a ter uma visatildeo de um

assunto e de isolaacute-lo de outros objetos Aleacutem disso o aspecto cientiacutefico da Historia

naturalis eacute muito mais produto de uma tradiccedilatildeo literaacuteria do que observaccedilatildeo direta de

388

Murphy (2004 p 196) fornece mais detalhes sobre essas enciclopeacutedias de Varratildeo e Celso 389

Murphy (2004 p 12 e ss) discute melhor o conceito de enciclopeacutedia (encyclios paideia) em contexto

latino e grego sendo que esse uacuteltimo era bastante diferente da concepccedilatildeo de enciclopeacutedia que temos hoje

em dia

198

Pliacutenio Ao inveacutes de experimentar ou analisar o que estava ao seu alcance Pliacutenio preferiu

recolher e citar descriccedilotildees de inuacutemeros autores anteriores (MURPHY 2004 p 5)390

As enciclopeacutedias tanto as atuais quanto as antigas mais do que depositaacuterios do

saber serviam tambeacutem como importantes ferramentas para se perceber como a cultura

de um povo transparecia Como Murphy (2004 p 1) define a estrutura de uma

enciclopeacutedia e suas estrateacutegias praacuteticas para classificar o conhecimento deixam entrever

as concepccedilotildees da cultura a que pertence o autor desse trabalho Pelo simples fato de

incluir ou excluir uma informaccedilatildeo podemos perceber o que era considerado importante

ou natildeo ou o que era de conhecimento oacutebvio para a audiecircncia dessas composiccedilotildees

Tambeacutem eacute possiacutevel notar que a enciclopeacutedia (e a erudiccedilatildeo) tinha uma funccedilatildeo poliacutetica e

cultural ao se repetir e apresentar informaccedilotildees fundamentais de uma sociedade temos

necessariamente a existecircncia de uma comunidade de leitores que partilhavam de uma

mesma identidade unida pela aceitaccedilatildeo de certos conceitos elementares de valor

cultural (MURPHY 2004 p 16) Assim a funccedilatildeo da enciclopeacutedia era estabelecer a

identidade de seus leitores como participantes de uma mesma cultura No caso da

Historia naturalis mais do que o conhecimento fornecido podemos entrever como os

romanos do seacuteculo I dC percebiam o mundo391

Por conseguinte aleacutem de estabelecer uma identidade cultural com seu puacuteblico

notamos que o caraacuteter poliacutetico nas obras de Pliacutenio era muito forte devido agraves proacuteprias

funccedilotildees administrativas exercidas por ele tanto em Roma junto aos imperadores quanto

nos confins das proviacutencias Como lembra Murphy (2004 p 5) Pliacutenio observou de perto

como o governo central se organizava e se transmitia em vastas distacircncias ele tambeacutem

viu como o conhecimento da periferia era usado localmente e tambeacutem como esse se

relacionava com Roma A Historia naturalis portanto refletiu como o domiacutenio romano

uniu o mundo e tornou possiacutevel a sua observaccedilatildeo A respeito do tratamento dos povos

estrangeiros na Historia naturalis temos vaacuterias passagens etnograacuteficas mas elas natildeo

possuem uma sequecircncia particular ou conexotildees loacutegicas entre si satildeo trechos pontuais

390

Murphy (2004 p 6 e 11) detalha quais foram as inuacutemeras fontes de Pliacutenio e faz uma discussatildeo sobre

como esses autores afetaram o trabalho do autor latino 391

A discussatildeo aqui se aprofunda no sentido de que falamos de uma obra escrita e dirigida a uma

pequena elite letrada Devemos lembrar tambeacutem que o proacuteprio Pliacutenio foi um autor do centro do poder

romano e que exerceu vaacuterios cargos puacuteblicos tanto na Urbe quanto nas proviacutencias e isso teve impacto em

sua composiccedilatildeo erudita Por fim pontuamos que Pliacutenio utilizou vaacuterias fontes gregas e latinas para a sua

Histoacuteria natural e por isso mais do que a percepccedilatildeo de mundo dos romanos do seacuteculo I dC podemos

notar ainda como as fontes ndash ou de forma geral a literatura claacutessica ndash percebiam esse mesmo mundo Por

essas raacutepidas questotildees levantadas nos concentraremos aqui em perceber como essas percepccedilotildees foram

consolidadas a respeito dos gauleses que eacute o cerne deste trabalho

199

que aparecem ao longo de toda a obra (MURPHY 2004 P 87) O proacuteprio estilo da

enciclopeacutedia natildeo idealiza muito o estrangeiro e a Historia naturalis tambeacutem natildeo faz

isso De fato segundo Murphy (2004 p 194) a Historia naturalis era um instrumento

de comunicaccedilatildeo de poder o objetivo de elencar o conhecimento de todos os campos da

dominaccedilatildeo romana e apresentar o conteuacutedo para ser apreciado por uma elite letrada

tudo isso servia como o respaldo textual de um vasto impeacuterio conhecido e governado Eacute

interessante perceber como Pliacutenio ao se empenhar em deixar registrados em sua obra

inuacutemeros saberes fez exatamente o oposto dos gauleses que de forma alguma

confiavam seus importantes preceitos agrave escrita por medo de que eles ficassem

acessiacuteveis a qualquer um Ceacutesar sobre esse comportamento do gaulecircs registrou (BGall

VI 14)

Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX

in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum

in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur

Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum

disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus

memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum

diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant

Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como geralmente

nos demais assuntos ndash e quanto aos registros puacuteblicos e privados utilizam-se

das letras gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado por dois motivos por

natildeo querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem

confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio

sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a

dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado

A Historia naturalis portanto natildeo tinha apenas o objetivo de instruir ou

informar mas tambeacutem o de colocar o mundo natural ao alcance do leitor demonstrando

e demarcando as fronteiras do conhecimento desse mundo conhecido (MURPHY 2004

p 211) Ela tambeacutem natildeo tinha propoacutesito didaacutetico nem visava a ser um guia para uma

accedilatildeo concreta ndash fosse ela militar diplomaacutetica ou administrativa (MURPHY 2004 p

213)

363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis

Todas as etnografias que aparecem na Historia naturalis podem ser resumidas

nas seguintes categorias descriccedilatildeo dos limites do conhecimento geograacutefico descriccedilatildeo

dos extremos do corpo humano ilustraccedilatildeo da interaccedilatildeo do homem com os produtos da

200

natureza e comportamentos econocircmicos natildeo romanos que por contraste definem o

comportamento romano (MURPHY 2004 p 213) Pliacutenio natildeo se propotildee a narrar os

costumes haacutebitos e cultura de outros povos como veremos mais adiante392

As naccedilotildees

escolhidas por Pliacutenio para essas passagens etnograacuteficas geralmente eram as que

habitavam nos limites do mundo conhecido e que despertavam a curiosidade da

audiecircncia como os etiacuteopes e os indianos mas mesmo essas passagens se limitavam a

descriccedilotildees exageradas dos corpos humanos dessas naccedilotildees ou a outros aspectos

maravilhosos e exoacuteticos Segundo Yasmin Syed (In HARRISON 2005 p 363) essa

passagem da etnografia indiana servia mais para Pliacutenio marcar os limites entre os

humanos normais (que habitavam o mundo conhecido e governado por Roma) e as

raccedilas consideradas monstruosas deformadas ou com caracteriacutesticas sobrehumanas que

estavam aleacutem desse mundo No caso dos gauleses Pliacutenio fez poucas consideraccedilotildees

sobre eles jaacute que na segunda metade do seacuteculo I dC as proviacutencias dessa regiatildeo se

encontravam estabelecidas e inseridas na cultura romana e portanto eles natildeo eram mais

alvo do interesse do puacuteblico

Os livros III e IV da Historia naturalis satildeo dedicados a narrar a geografia do

mundo conhecido desde as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) passando pela

Europa mediterracircnea fornecendo detalhes do relevo e das cidades da Gaacutelia Hispacircnia e

outras dessas aacutereas O primeiro trecho que destacamos aqui eacute o III 5 (4)

V (4) ndash 31 Narbonensis prouincia appellatur pars Galliarum quae interno

mari adluitur Bracata antea dicta amne Varo ab Italia discreta Alpiumque

uel saluberrimis Romano imperio iugis a reliqua uero Gallia latere

septentrionali montibus Cebenna et Iuribus agrorum cultu uirorum

morumque dignatione amplitudine opum nulli prouinciarum postferenda

breuiterque Italia uerius quam prouincia 32 In ora regio Sordonum intusque

Consuaranorum flumina Tecum Vernodubrum oppida Illiberis magnae

quondam urbis tenue uestigium Ruscino Latinorum flumen Atax e Pyrenaeo

Rubrensem permeans lacum Narbo Martius Decumanorum colonia XII p a

mari distans flumina Araris Liria Oppida de cetero rara praeiacentibus

stagnis 33 Agatha quondam Massiliensium et regio Volcarum Tectosagum

atque ubi Rhoda Rhodiorum fuit unde dictus multo Galliarum fertilissimus

Rhodanus amnis ex Alpibus se rapiens per Lemannum lacum segnemque

deferens Ararim nec minus se ipso torrentes Isaram et Druentiam Libica

appellantur duo eius ora modica ex his alterum Hispaniense alterum

Metapinum tertium idemque amplissimum Massalioticum Sunt auctores et

Heracleam oppidum in ostio Rhodani fuisse 34 Vltra fossae ex Rhodano C

Mari opere et nomine insignes stagnum Mastromela oppidum Maritima

Auaticorum superque Campi Lapidei Herculis proeliorum memoria regio

Anatiliorum et intus Dexiuatium Cauarumque rursus a mari Tricorium et

intus Tritollorum Vocontiorumque et Segouellaunorum mox Allobrogum At

in ora Massilia Graecorum Phocaeensium foederata promunturium Zao

Citharista portus regio Camactulicorum dein Suelteri supraque Verucini

392

Abordaremos sobre esse aspecto na anaacutelise do trecho da HN III 6 (5) na p 204-205

201

35 In ora autem Athenopolis Massiliensium Forum Iuli Octauanorum

colonia quae Pacensis appellatur et Classica amnis nomine Argenteus

regio Oxubiorum Ligaunorumque super quos Suebri Quariates Adunicates

At in ora oppidum Latinum Antipolis regio Deciatium amnis Varus ex

Alpium monte Caenia profusus 36 In mediterraneo coloniae Arelate

Sextanorum Baeterrae Septimanorum Arausio Secundanorum in agro

Cauarum Valentia Vienna Allobrogum Oppida Latina Aquae Sextiae

Salluuiorum Auennio Cauarum Apta Iulia Vulgientium Alebaece Reiorum

Apollinarium Alba Heluorum Augusta Tricastinorum Anatilia Aerea

Bormani Comani Cabellio Carcasum Volcarum Tectosagum Cessero

Carbantorate Meminorum Caenicenses Cambolectri qui Atlantici

cognominantur 37 Forum Voconi Glanum Libii Luteuani qui et

Foroneronienses Nemausum Arecomicorum Piscinae Ruteni Samnagenses

Tolosani Tectosagum Aquitaniae contermini Tasgoduni Tarusconienses

Vmbranici Vocontiorum ciuitatis foederatae duo capita Vasio et Lucus

Augusti oppida uero ignobilia XVIIII sicut XXIIII Nemausiensibus

adtributa Adiecit formulae Galba Imperator ex Inalpinis Auanticos atque

Bodionticos quorum oppidum Dinia Longitudinem prouinciae Narbonensis

CCCLXX p Agrippa tradit latitudinem CCXLVIII

V (4) ndash 31 Eacute chamada de proviacutencia Narbonense a regiatildeo das Gaacutelias que eacute

banhada pelo mar interno393

ntes conhecid por ―Gaacuteli de c lccedil s 394

Ela

estaacute separada da Itaacutelia pelo rio Var e pelos cumes dos Alpes ndash que tecircm sido

muitiacutessimo vantajosos para o impeacuterio romano Pelo lado setentrional ela se

divide do resto da Gaacutelia pelos montes das Cevenas e do Jura395

Devido agrave

cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e pela

amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutencia na verdade ela eacute mais Itaacutelia que proviacutencia 32 Pelos litorais haacute a

regiatildeo dos sordones396

e mais adentro o domiacutenio dos consuaranos397

os rios

Tech e Verdouble as povoaccedilotildees dos iliberris398

ndash um pequeno vestiacutegio do

que um dia fora uma grande cidade ndash e Ruscino399

dos latinos o rio Aude

que desce dos Pirineus e atravessa o lago Rubrense400

Narbo Maacutercio401

ndash

colocircnia da deacutecima legiatildeo402

distante doze milhas do mar os rios Aacuterar403

e

Liria404

De resto as cidades satildeo raras devido aos pacircntanos que se situam

proacuteximos 33 Haacute a cidade de Aacutegata405

que um dia foi dos marselheses o

territoacuterio dos volcos tectoacutesagos406

e ainda o local onde existiu a colocircnia Roda

dos roacutedios ndash de onde vem o nome do rio Roacutedano de longe o mais copioso

393

Outra denominaccedilatildeo do mar Mediterracircneo 394

Ciacutecero se referiu pejorativamente aos gauleses dizendo que eles usavam saiotes e calccedilas (cf p 72) 395

Pliacutenio citou muitas localidades rios e montanhas na Histoacuteria Natural e isso acarreta uma dificuldade

para a traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees Por isso sempre que possiacutevel manteremos o nome portuguecircs (ou no caso

francecircs) dessas paragens e colocaremos em nota de rodapeacute o nome atual de modo que fique mais faacutecil ao

leitor deste trabalho localizar essas localidades em um mapa O mesmo tambeacutem seraacute feito sobre as naccedilotildees

mencionadas No caso de lugares (ou naccedilotildees) em que natildeo haacute um consenso ou que natildeo eacute possiacutevel saber a

atual correspondecircncia faremos somente a transliteraccedilatildeo do nome latino para o portuguecircs Para essas notas

utilizamos como referecircncia a traduccedilatildeo da Histoacuteria natural public d pel Gredos e o site ―Digit l Atl s of

the Rom n empire el bor do pelo dep rt mento de rqueologi e histoacuteri ntig d Universid de Lund

(Sueacutecia) disponiacutevel em lt httpdarehtluse gt 396

Eles habitavam o Roussillon perto dos Pirineus na atual Franccedila 397

Conserans no oeste do Deacutepartement de l Arrieacutege tambeacutem na Franccedila 398

atual Elne 399

Chacircteau-Roussillon 400

Etangs de Bages et de Sigean 401

Narbonne 402

Pliacutenio aqui seguiu a divisatildeo das colocircnias militares estabelecidas por Ceacutesar cf p 152 403

Rio Heacuterault 404

Lez 405

Agde 406

Citados por Ceacutesar no BGall VI 24 (p 128)

202

das Gaacutelias Eacute esse rio que desde os Alpes passa com forccedila pelo lago Lemano

e se mistura ao vagaroso Aacuterar e agraves torrentes dos rios Isara407

e Druecircncia408

natildeo menos impetuosas que ele mesmo As suas duas embocaduras menores

satildeo ch m d s de ―liacutebic s sendo um del s hisp niense e outr met pin

a terceira embocadura que eacute a maior eacute chamada de massaliota Haacute autores

que dizem ter existido uma cidade chamada Heracleia na foz do Roacutedano409

34 Mais aleacutem estatildeo os canais que saem do Roacutedano obra de Caio Maacuterio e

conhecidos pelo seu nome o lago Mastromela a cidade Mariacutetima dos

avaacuteticos e acima as Planiacutecies Pedregosas uma lembranccedila dos combates de

Heacutercules Tem-se a regiatildeo dos anatiacutelios e no interior a regiatildeo dos dexivates e

dos cavaros de novo junto ao mar a aacuterea dos tricoacuterios e no interior estatildeo os

tritolos os vococircncios e os segovelaunos depois desses os aloacutebroges410

No

litoral haacute Marselha dos gregos foacutecios e nossa aliada411

o cabo Zao o porto

de Citarista a regiatildeo dos camactuacutelicos depois estatildeo os suelteros e acima os

verucinos 35 Ainda no litoral haacute Atenoacutepolis dos marselheses o Foacuterum de

Juacutelio colocircni d oit v legiatildeo que t mbeacutem eacute ch m d de ―P cense e

―Claacutessic 412

haacute um rio de nome Argecircnteo413

a regiatildeo dos oxuacutebios e dos

ligaunos e acima desses os suebros os quariates e os adunicates No litoral

haacute a cidade latina414

de Antiacutepolis415

a regiatildeo dos deciatos e o rio Var que

desce do monte Cenia dos Alpes416

36 No interior haacute as colocircnias de

Arelate417

da sexta legiatildeo Beterras418

da seacutetima e Araacuteusio419

da segunda420

No territoacuterio cavaro estaacute Valencia421

e no territoacuterio dos aloacutebroges Viena422

Depois as cidades latinas de Aacutegua Sexta423

(no territoacuterio) dos saluacutevios424

Avecircnio425

dos cavaros Apta Juacutelia426

dos vulgientes Alebece427

dos reios

apolinaacuterios Alba dos heacutelvios Augusta dos tricastinos Anatiacutelia Aerea428

e

ainda os bormanos os comanos a povoaccedilatildeo de Cabeacutelio429

Carcaso430

dos

407

Isegravere 408

Durance 409

Segundo o dicionaacuterio de Ernesto Faria Heracleia era o nome dado agraves cidades fundadas por Heacuteracles

contudo essa cidade mencionada na Franccedila natildeo apareceu em nenhum outro autor da antiguidade e o

proacuteprio Pliacutenio duvida de sua existecircncia 410

Os aloacutebroges jaacute apareceram algumas vezes ao longo desta pesquisa Foi essa naccedilatildeo que acusou Fonteio

de maacute gestatildeo no governo da Gaacutelia e representada de forma tatildeo desrespeitosa no Pro Fonteio de Ciacutecero

(cf p 68 e ss) Os mesmos aloacutebroges vatildeo ser elogiados por Ciacutecero jaacute que denunciaram a conjuraccedilatildeo de

Catilina (cf p 75) 411

Nota-se que na eacutepoca de Pliacutenio Marselha voltou a ser aliada dos romanos Ceacutesar tinha rebaixado o

status da cidade durante a guerra civil com Pompeu (cf p 152) 412

Forum Iulii eacute a atual Freacutejus o nome Pacensis deve ter sido dado por causa de algum tratado de paz

feita com os habitantes locais Jaacute o termo Classica se justifica pelo fato de uma frota naval que ficou

estacionada por laacute a mando de Augusto 413

Argens 414

Ou seja possuidora de direito latino 415

Antibes 416

Monte Cemelione 417

Arles 418

Beziers 419

Orange 420

Cf p 152 sobre essas colocircnias militares 421

Valence 422

Vienne 423

Aix 424

Foi essa naccedilatildeo que Liacutevio erroneamente chamou de saacutelvios (cf nota 325 p 163) 425

Avignon 426

Apt 427

Riez 428

Eacuterea 429

Cavaillon 430

Carcassone

203

volcos tectoacutesagos Cessero Carbantorate431

dos meminos os cenicenses os

c mbolectros que satildeo ch m dos de ― tlacircnticos 37 Foacuterum Vocono Glano

os liacutebios os lutevanos432

tambeacutem conhecidos como foroneronienses

Nemauso433

dos arecocircmicos Piscinas434

os rutenos os samnagenses os

tolosanos tectoacutesagos vizinhos agrave Aquitacircnia os tasgodunos os tarusconienses

os umbracircnicos as duas capitais do domiacutenio aliado dos vococircncios Vaacutesio435

e

Luco de Augusto Na verdade haacute tambeacutem dezenove cidades de pouca

importacircncia assim como outras vinte e quatro pertencentes aos nemaacuteusios O

imperador Galba acrescentou a essa categoria dentre os habitantes dos Alpes

os avacircnticos e os bodiocircnticos cuja cidade eacute Diacutenia436

Segundo Agripa a

proviacutencia Narbonense tem trezentas e setenta milhas de comprimento e

duzentas e quarenta e oito milhas de largura (grifos nossos)

Nesse capiacutetulo temos a descriccedilatildeo da proviacutencia da Gaacutelia Narbonense Pliacutenio

escreveu que ―devido agrave cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e

pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci (Italia uerius quam prouincia)

Um pouco mais agrave frente em III 5 32 temos que Narbo Maacutercio foi colocircnia da deacutecima

legiatildeo Se na eacutepoca de Ceacutesar essa cidade ficou conhecida por ser o local escolhido para

abrigar esse destacamento militar na eacutepoca de Pliacutenio vemos que Narbonne jaacute gozava de

um status iacutempar sendo considerada por um autor latino como sendo parte da proacutepria

Itaacutelia De fato Narbonne influenciada pela Greacutecia desde os seus primoacuterdios possuidora

de um clima parecido com o da Itaacutelia e devido a sua alianccedila antiga com Roma tornou

possiacutevel esse elogio

Como Carey (2003 p 34) lembra dentro dessas listas de cidades e naccedilotildees tudo

eacute definido de acordo com o relacionamento desses pontos com Roma Assim no sect35 a

cidade de Antiacutepolis eacute mencionada como possuidora do direito latino Especialmente no

sect36 temos as menccedilotildees agraves cidades de Arelate (colocircnia da sexta legiatildeo) Beterras (da

seacutetima) e Araacuteusio (da segunda) Ainda segundo Carey (2003 p 34) taxonomia e

impeacuterio portanto se tornam uma coisa soacute no relato de Pliacutenio e o proacuteprio processo de

listar eacute igual agrave conquista Isso tambeacutem justifica o fato de Pliacutenio ter escrito no sect37 que haacute

―t mbeacutem dezenove cid des de pouc importacircnci ssim como outr s vinte e qu tro

pertencentes os nemaacuteusios ou sej cid des de pouc importacircnci p r Rom e que

natildeo se enquadram na catalogaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial437

431

Carpentras 432

Da atual Lodegraveve 433

Nicircmes 434

Peacutezenas 435

Vaison 436

Digne 437

Carey (2003 p 34-36) aprofunda essa discussatildeo sobre a questatildeo do que era incluiacutedo (ou excluiacutedo)

desses cataacutelogos e como isso se relacionava agrave poliacutetica de conquista romana durante a eacutepoca de Pliacutenio

204

Em obras de caraacuteter enciclopeacutedico como a proacutepria Historia naturalis ou a

Geografia de Estrabatildeo eacute possiacutevel ver como o avanccedilo do impeacuterio romano levou a uma

espeacutecie de ―inventaacuterio do mundo dos seus povos e costumes ssim ―conhecer o mundo

habitado era uma condiccedilatildeo para dominaacute-lo e vice vers (GUARINELLO 2014 p 307)

Nos livros III a VI da Historia naturalis o objetivo de Pliacutenio foi o de fazer uma pesquisa

sobre o orbis terrarum (o mundo conhecido) e temos a completa enumeraccedilatildeo das suas

partes (MURPHY 2004 P 129)438

Essas catalogaccedilotildees de uma regiatildeo visavam a dar ao

leitor um panorama geral da aacuterea em questatildeo isso ocorria muito em obras de retoacuterica e

historiografia antiga e tais descriccedilotildees geograacuteficas tinham implicaccedilotildees poliacuteticas

sobretudo em termos de estabelecimento de impeacuterio e identidade cultural

Nos capiacutetulos iniciais do livro III Pliacutenio descreveu a Europa desde o oceano

Atlacircntico (III 2) passando pela Beacutetica (III 3) Hispacircnia Citerior (III 4) e a Narbonense

(III 5) citada no trecho acima Notamos que Pliacutenio foi aproximando sua descriccedilatildeo

geograacutefica ateacute o que ele considerava como o centro do continente europeu ndash de fato

apoacutes a descriccedilatildeo da Gaacutelia Narbonense temos a exposiccedilatildeo da proacutepria Itaacutelia Assim temos

na Historia naturalis a passagem de III 6 (5)

VI (5) ndash 38 Italia dehinc primique eius Ligures mox Etruria Vmbria

Latium ibi Tiberina ostia et Roma terrarum caput XVI p interuallo a mari

Volscum postea litus et Campaniae Picentinum inde ac Lucanum

Bruttiumque quo longissime in meridiem ab Alpium paene lunatis iugis in

maria excurrit Italia Ab eo Graeciae ora mox Salentini Poeduculi Apuli

Peligni Frentani Marrucini Vestini Sabini Picentes Galli Vmbri Tusci

Veneti Carni Iapudes Histri Liburni 39 Nec ignoro ingrati ac segnis animi

existimari posse merito si obiter atque in transcursu ad hunc modum dicatur

terra omnium terrarum alumna eadem et parens numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret sparsa congregaret imperia ritusque molliret et

tot populorum discordes ferasque linguas sermonis commercio contraheret

ad conloquia et humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum

gentium in toto orbe patria fieret 40 Sed quid agam Tanta nobilitas

omnium locorum quos quis attigerit tanta rerum singularum populorumque

claritas tenet Vrbs Roma uel sola in ea et digna iam tam festa ceruice facies

quo tandem narrari debet opere Qualiter Campaniae ora per se felixque illa

ac beata amoenitas ut palam sit uno in loco gaudentis opus esse naturae 41

Iam uero tota ea uitalis ac perennis salubritas talis caeli temperies tam

fertiles campi tam aprici colles tam innoxii saltus tam opaca nemora tam

munifica siluarum genera tot montium adflatus tanta frugum uitiumque et

olearum fertilitas tam nobilia pecudi uellera tam opima tauris colla tot

lacus tot amnium fontiumque ubertas totam eam perfundens tot maria

portus gremiumque terrarum commercio patens undique et tamquam

iuuandos ad mortales ipsa auide in maria procurrens 42 Neque ingenia

438

Murphy (2004 p 131) explica que geralmente essa geografia conceitual se dava em cinco modelos

imaginativos descrever a regiatildeo como um itineraacuterio de uma jornada de mar a mar imaginar a vista de um

ponto alto enumerar zonas definidas por seu clima e solo tiacutepico elencar dos lugares mais proacuteximos aos

mais distantes dos romanos e por fim a realizaccedilatildeo de um esquema geomeacutetrico descrevendo simetrias e

formatos de terras ou rios

205

ritusque ac uiros et lingua manuque superatas commemoro gentes Ipsi de ea

iudicauere Grai genus in gloriam sui effusissimum quotam partem ex ea

appellando Graeciam Magnam Nimirum id quod in caeli mentione fecimus

hac quoque in parte faciendum est ut notas quasdam et pauca sidera

attingamus Legentes tantum quaeso meminerint ad singula toto orbe

edissertanda festinari () 439

VI ndash 38 Em seguida haacute a Itaacutelia e os primeiros dela satildeo os liacutegures depois haacute a

Etruacuteria a Uacutembria o Laacutecio e nesse lugar a foz do Tibre e Roma capital do

mundo distante dezesseis milhas do mar Depois haacute os litorais dos volscos e

da Campacircnia o litoral de Piceno e mais adiante as costas da Lucacircnia440

e de

Bruacutetio441

a partir da cadeia de montanhas dos Alpes em forma de meia lua

esse eacute o lugar mais ao sul no qual a Itaacutelia se estende ateacute os mares Desse

ponto haacute os litorais da Magna Greacutecia depois os salentinos os pediacuteculos os

aacutepulos os peliacutegnos os frentanos os marrucinos os vestinos os sabinos os

picenos os gauleses os uacutembrios os etruscos os vecircnetos os carnos os

iaacutepides os istros e os liburnos442

39 Natildeo ignoro que eu possa ser acusado de

conduta negligente e de espiacuterito fraco devido a essa maneira de descrever

raacutepida e resumidamente essa mesma terra que eacute filha e matildee de todas as terras

escolhida pela vontade dos deuses para tornar o proacuteprio ceacuteu mais glorioso

reunir os impeacuterios dispersos abrandar os costumes juntar as liacutenguas

diferentes e selvagens de tantos povos em um idioma comum para os

diaacutelogos conceder humanidade ao homem e em suma ser no mundo todo a

uacutenica paacutetria de todos os povos 40 Mas como a descreverei Quem poderia

enumerar a enorme nobreza de todos os lugares e a grande fama de cada

uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma

cabeccedila digna de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser narrada

Tambeacutem o litoral da Campacircnia por si mesmo feacutertil e de rica amenidade que

claramente em um soacute lugar estaacute tudo o que eacute necessaacuterio para uma natureza

exuberante 41 De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene

grande equiliacutebrio do clima campos muito feacuterteis colinas bastante

ensolaradas bosques bastante intactos muitas florestas sombreadas

inuacutemeros tipos generosos de matas vaacuterios ventos dos montes enorme

fertilidade de frutos das videiras e das oliveiras tatildeo nobres velos dos

animais muitas nucas gordas de touros tantos lagos tamanha abundacircncia

de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia tantos mares portos e o seio

das terras que se abre ao comeacutercio por todos os lados e que avanccedila de tal

forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios mares 42 Natildeo falarei

sobre os engenhos costumes homens e povos vencidos pela liacutengua e pela

luta Os proacuteprios gregos ndash um povo muito dissipado em sua gloacuteria ndash assim o

fizeram ao chamar uma pequena parte da Itaacutelia de Magna Greacutecia

Certamente isso tambeacutem deve ser feito nessa parte ndash como jaacute fizemos na

descriccedilatildeo do ceacuteu ndash de modo que atinjamos certos indiacutecios e poucos astros

Peccedilo aos leitores que se recordem que acelerei as descriccedilotildees de cada coisa

sobre todo o mundo (grifos nossos)

Pliacutenio comeccedilou esse capiacutetulo enumerando as regiotildees da Itaacutelia considerada o

centro da Europa e Roma o centro do mundo (terrarum caput) A partir do sect39 ele

passa a elogiar a Itaacutelia Pliacutenio da mesma forma que Liacutevio tambeacutem usa a justificativa

439

A partir desse ponto Pliacutenio faz apenas descriccedilotildees de caraacuteter geograacutefico da Itaacutelia dos seus rios e suas

cidades mais importantes 440

Atual Basilicata 441

Calaacutebria 442

Temos a enumeraccedilatildeo das regiotildees seguindo a partir da costa do mar Tirreno no sentido Norte-Sul e a

partir de entatildeo no sentido Sul-Norte seguindo a costa do mar Adriaacutetico Vemos que a descriccedilatildeo da Itaacutelia eacute

ampla abarcando regiotildees que vatildeo ateacute a bacia do rio Poacute os Alpes e a peniacutensula da Iacutestria Esse tipo de

descriccedilatildeo como se fosse ―sobrevo ndo regiatildeo er ch m d de periplum (peacuteriplo)

206

divin p r explic r o domiacutenio rom no dizendo que ess terr foi ―escolhid pel

vont de dos deuses p r torn r o proacuteprio ceacuteu m is glorioso (numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret)443

Temos na sequecircncia o papel moral do povo romano de

―reunir os impeacuterios dispersos br nd r os costumes junt r s liacutengu s diferentes e

selvagens de t ntos povos em um idiom comum p r os diaacutelogos Podemos consider r

como o trecho mais significativo a passagem em que Pliacutenio disse que o romano deveria

―conceder hum nid de o homem e em sum ser no mundo todo uacutenic paacutetri de

todos os povos (humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum gentium in toto

orbe patria fieret) Como mencionamos antes a respeito de Liacutevio percebemos a

significativa mudanccedila da mentalidade imperialista romana Se ateacute o seacuteculo I aC o

imperialismo e a conquista se justificavam pela legitimidade e honestidade do povo

romano a partir do final da Repuacuteblica esse pensamento passa a ser fundamentado no

direito divino444

Notamos ainda que em Pliacutenio o romano passa a ter tambeacutem a

obrig ccedilatildeo de ―civiliz r os povos conquist dos ao dizer que Roma deveria abrandar os

costumes de todos os povos juntar as liacutenguas selvagens conceder humanidade

(humanitas) o homem e ser ― uacutenic paacutetri de todos os povos 445

Em seguida Pliacutenio

question ―quem poderi enumer r enorme nobrez de todos os lugares e a grande

fama de cada uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma

c beccedil dign de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser n rr d Esse eacute

mais um ponto que justifica o imperialismo romano aleacutem da vontade divina os

italianos possuiacuteam enorme nobreza de todos os lugares e a fama dos povos

No sect41 Pliacutenio enumera todas as riquezas naturais devidas ao clima ameno da

Itaacutelia a fertilidade dos campos os rebanhos saudaacuteveis e a abundacircncia de aacutegua tudo de

acordo com a teoria hipocraacutetica446

No sect42 Pliacutenio deixa claro que natildeo se ocuparaacute de

etnogr fi dizendo ―natildeo falarei sobre os engenhos costumes homens e povos

vencidos pel liacutengu e pel lut como ele deix cl ro no fin l dess p ss gem su

preocupaccedilatildeo eacute sobretudo as descriccedilotildees de cada coisa sobre todo o mundo (ad singula

443

Cf p 161 e nota 322 deste trabalho 444

A esse respeito cf o subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da

expansatildeo imperialista) especialmente p 96 445

Carey (2003 p 35 e 36) aprofunda essa anaacutelise do elogio da Itaacutelia e suas implicaccedilotildees em termos

poliacuteticos e imperialistas 446

Cf p 32 e 33 Segundo Hipoacutecr tes s regiotildees m is dist ntes do ―centro do mundo (que p r ele er

a Greacutecia) possuiacuteam climas ou severos demais (que tornavam os habitantes dessas aacutereas mais brutos e

fortes) ou suaves em demasia (o que deixava os indiviacuteduos moles e fracos) No centro do mundo que em

contexto latino passou a ser Roma o clima era temperado entre estaccedilotildees severas e amenas por

conseguinte as pessoas tambeacutem possuiacuteam compleiccedilotildees fiacutesicas e morais moderadas eram fortes sem

serem estuacutepidas e suaves sem serem fraacutegeis

207

toto orbe edissertanda festinari) Veremos mais adiante que Pliacutenio cumpre esse

propoacutesito Ao falar das Gaacutelias ele apenas mencionou a geografia rios cidades e naccedilotildees

dessas regiotildees de fato haacute pouquiacutessimas passagens de cunho etnograacutefico Assim temos

o seguinte trecho no livro IV 17 (31)

XVII (31) ndash 105 Gallia omnis Comata uno nomine appellata in tria

populorum genera diuiditur amnibus maxime distincta A Scalde ad

Sequanam Belgica ab eo ad Garunnam Celtica eademque Lugdunensis inde

ad Pyrenaei montis excursum Aquitanica Aremorica antea dicta Vniversam

oram XVIIL Agrippa Galliarum inter Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum

ac montes Cebennam et Iures quibus Narbonensem Galliam excludit

longitudinem CCCCXX latitudinem CCCXVIII computauit 106 A Scaldi

incolunt extera Texuandri pluribus nominibus dein Menapi Morini ora

Marsacis iuncti pago qui Gesoriacus uocatur Britanni Ambiani Bellouaci

Bassi Introrsus Catoslugi Atrebates Nerui liberi Veromandui Suaeuconi

Suessiones liberi Vlmanectes liberi Tungri Sunuci Frisiauones Baetasi

Leuci liberi Treueri liberi antea et Lingones foederati Remi foederati

Mediomatrici Sequani Raurici Helueti coloniae Equestris et Raurica

Rhenum autem accolentes Germaniae gentium in eadem prouincia Nemetes

Triboci Vangiones in Vbis colonia Agrippinensis Guberni Bataui et quos in

insulis diximus Rheni

XVII (31) ndash 105 Toda a Gaacutelia que eacute chamada pelo uacutenico nome de Cabeluda

se divide em trecircs raccedilas de povos separadas sobretudo por meio de rios447

Do rio Escalda ateacute o Sena haacute a Gaacutelia Beacutelgica do Sena ateacute o Garona a Gaacutelia

Ceacuteltica ou Lugdunense de laacute ateacute o promontoacuterio dos montes Pireneus haacute a

Gaacutelia Aquitacircnia antes chamada de Armoacuterica448

Agripa calculou toda a costa

das Gaacutelias em mil setecentas e cinquenta milhas entre o Reno e os Pireneus e

entre o oceano e os montes das Cevenas e do Jura dos quais se exclui a Gaacutelia

Narbonense haacute uma extensatildeo de quatrocentas e vinte milhas e uma largura

de trezentas e dezoito milhas 106 Ao exterior do Escalda habitam os

toxandros de muitos nomes depois haacute os menaacutepios na praia haacute os moacuterinos

que satildeo proacuteximos aos marsaacutecios por um povoado que eacute chamado de

Gesoriaco449

os britanos os ambianos os beloacutevacos e os bassos No interior

estatildeo os catoslugos os atreacutebates os livres neacutervios os veromacircnduos os

suaeuconos os suessiotildees livres os ulmanectes livres os tungros os sunucos

os frisiabotildees os betasos os livres leucos os treacuteveros outrora livres os

aliados liacutengones os remos aliados os mediomaacutetricos os seacutequanos os

raacuteuricos os helveacutecios e as colocircnias Equestre e Raacuteurica Haacute ainda os

habitantes dos povos da Germacircnia que estatildeo proacuteximos ao Reno nessa mesma

proviacutencia estatildeo os necircmetes os tribocos e os vangiacuteones dentre os uacutebios haacute a

colocircnia de Agripina450

os gubernos os batavos e os que jaacute mencionamos

sobre as ilhas do Reno (grifos nossos)

Nesse trecho notamos que os rios desempenham duas funccedilotildees a primeira e

principal delas era servir de linhas que dividem e marcam fronteiras separando um

447

Pliacutenio fez uma descriccedilatildeo que obviamente ressoa o famosiacutessimo proecircmio do BGall de Ceacutesar (cf

p129) 448

Armoacuterica do ceacuteltico Ar mor significava junto ao mar Sobre o estabelecimento dessas quatro

proviacutencias gaulesas por Augusto cf p 152 449

Atual Boulogne-sur-Mer 450

Colocircnia na atual Alemanha

208

espaccedilo do outro a segunda era ajudar na feitura de mapas (MURPHY 2004 p 142)451

Pliacutenio no comeccedilo desse trecho falou em Gaacutelia cabeluda (Gallia comata) mas esse

epiacuteteto assim como a designaccedilatildeo Gaacutelia de calccedilas (Gallia bracata) natildeo era mais usado

em sua eacutepoca (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) No tempo de Pliacutenio as proviacutencias

gaulesas jaacute estavam bastante inseridas na cultura romana e a elite dessas regiotildees haacute

muito jaacute natildeo usavam mais calccedilas ou cabelos longos452

A Gaacutelia Transalpina outrora era

conhecida por Gaacutelia cabeluda devido ao costume das pessoas terem cabelos compridos

(coma em latim) A Narbonense era a Gaacutelia de calccedilas no trecho acima Pliacutenio registrou

que Agripa exluiu a Narbonense da Gaacutelia De fato como jaacute apareceu em III 31 a

Narbonense na opiniatildeo de Pliacutenio era mais Itaacutelia do que proviacutencia453

Por fim temos o

cataacutelogo das naccedilotildees da Gaacutelia e as divisotildees geograacuteficas marcadas por rios e montes

como as Cevenas e o Jura

Seguindo a descriccedilatildeo da Gaacutelia Lugdunense temos em IV 18 (32)

XVIII (32) ndash 107 Lugdunensis Gallia habet Lexouios Veliocasses Caletos

Venetos Abrincatuos Ossismos flumen clarum Ligerem sed paeninsulam

spectatiorem excurrentem in oceanum a fine Ossismorum circuitu DCXXV

ceruice in latitudinem CXXV Vltra eum Namnetes intus autem Aedui

foederati Carnuteni foederati Boi Senones Aulerci qui cognominantur

Eburouices et qui Cenomani Meldi liberi Parisi Tricasses Andecaui

Viducasses Bodiocasses Venelli Coriosuelites Diablinti Riedones

Turones Atesui Segusiaui liberi in quorum agro colonia Lugudunum

XVIII (32) ndash 107 A Gaacutelia Lugdunense engloba os lexoacutevios454

os

veliocassos455

os caletos456

os vecircnetos457

os abrincacirctuos458

os ossismos459

o

famoso rio Liacuteger460

e uma peniacutensula muito notaacutevel que avanccedila para o oceano

a partir da fronteira dos ossismos em um contorno de seiscentas e vinte e

cinco milhas e no estreito com uma largura de cento e vinte e cinco

milhas461

Do outro lado estatildeo os namnetes e462

no interior os eacuteduos

aliados463

os carnutos tambeacutem aliados464

os boios465

os secircnones466

os

451

Murphy (2004 p 142-148) detalha mais o papel dos rios como marcos fronteiriccedilos na literatura latina

O proacuteprio Ceacutesar (BGall I 1) utilizou os rios Garona Marne e Sena para separar as trecircs principais naccedilotildees

ceacutelticas (cf p 129) 452

Estrabatildeo cita as calccedilas e cabelos longos dos belgas em IV43 Taacutecito usou o termo comata apenas

uma vez quando disse que os gauleses introduzidos no senado por Claacuteudio passaram a adotar a toga

romana como vestimenta (Anais XI 231) 453

Cf p 200 e 201 454

Habitavam nas proximidades da atual Lisieux 455

Estavam nas proximidades da atual Rouen 456

Vizinhos da atual Lillebonne 457

Daiacute o nome da atual Vannes 458

Perto da atual Avranches no departamento de La Manche 459

Habitavam o noroeste da Bretanha perto da atual Carhaix-Plougher 460

O rio Loire 461

Atual Bretanha 462

Habitantes do atual Loire inferior a cidade principal da regiatildeo eacute Nantes 463

Essa grande naccedilatildeo habitava os atuais departamentos do Saocircne e do Loire as principais cidades atuais

satildeo Autun e Chalonssur-Marne

209

aulercos que satildeo chamados tanto de eburovices467

quanto os que satildeo

chamados de cenomanos468

os livres meldos469

os pariacutesios470

os tricasses471

os andecavos472

os viducassos473

os bodiocassos474

os venelos475

os

coriosvelites476

os diablintos os rieacutedones477

os turotildees478

os ateacutesuos e os

livres segusiavos em cujo territoacuterio estaacute a colocircnia de Lugduno479

Sobre esse recurso das descriccedilotildees em narrativas geograacuteficas Hartog (1999 p

263) afirma que isso estaacute relacionado agrave taxionomia de fato a descriccedilatildeo eacute ver e fazer

ver eacute esp ci liz ccedilatildeo de um s ber Por conseguinte el ―t mbeacutem vem ser t mbeacutem

saber e fazer saber (esse fazer constituindo precisamente a mise en scegravene do

taxionocircmico) (HARTOG 1999 p 263) Ao pormenorizar aspectos geograacuteficos da

Gaacutelia Pliacutenio portanto vecirc e faz seu puacuteblico ver e conhece e faz conhecer essa regiatildeo

pertencente ao domiacutenio romano

Em seguida segue a descriccedilatildeo da Gaacutelia Aquitacircnia em IV 19 (33)

XIX (33) ndash 108 Aquitanicae sunt Ambilatri Anagnutes Pictones Santoni

liberi Bituriges liberi cognomine Viuisci Aquitani unde nomen prouinciae

Sedibouiates Mox in oppidum contributi Conuenae Begerri Tarbelli

Quattuorsignani Cocosates Sexsignani Venami Onobrisates Belendi saltus

Pyrenaeus infraque Monesi Oscidates Montani Sybillates Camponi

Bercorcates Pinpedunni Lassunni Vellates Toruates Consoranni Ausci

Elusates Sottiates Oscidates Campestres Succasses Latusates

Basaboiates Vassei Sennates Cambolectri Agessinates 109 Pictonibus

iuncti autem Bituriges liberi qui Cubi appellantur dein Lemouices Aruerni

liberi Vellaui liberi Gabales Rursus Narbonensi prouinciae contermini

Ruteni Cadurci Nitiobroges Tarneque amne discreti a Tolosanis Petrocori

Maria circa oram ad Rhenum septentrionalis oceanus inter Rhenum et

Sequanam Britannicus inter id et Pyrenaeum Gallicus Insulae conplures

Venestorum et quae Veneticae appellantur et in Aquitanico sinu Vliaros

XIX (33) ndash 108 Na Aquitacircnia estatildeo os ambilatros os anagnutos os

piacutectones480

os santotildees livres481

os bituacuteriges livres de cognome viviscos482

os

464

Viviam entre o Sena e o Loire perto das atuais Orleacuteans e Chartres 465

Perto da atual Moulins 466

No atual departamento do Yonne 467

Perto da atual Passy-sur-Eure 468

Habitavam as vizinhanccedilas da atual Le Mans 469

Perto da atual Meaux 470

Onde hoje estaacute Paris 471

Habitantes proacuteximos agrave atual Troyes 472

Na regiatildeo atual de Anjou 473

Proacuteximos agrave atual Vieux 474

Perto da atual Bayeux 475

Nas vizinhanccedilas da atual Carentan 476

Proacuteximo agrave Corseul 477

Perto da atual Rennes 478

Nas cercanias da atual Tours 479

Hoje a cidade de Lyon 480

Na atual regiatildeo de Poitou na Franccedila 481

Perto da atual Saintes

210

aquitanos483

ndash daiacute o nome da proviacutencia ndash e os sediboviatos Depois unidos

em uma cidade estatildeo os convenos484

os begerros485

os tarbelos de quatro

ensiacutegnias486

os cocosates de seis ensiacutegnias487

os venamos os onobrisates os

belendos488

os montes Pireneus e abaixo os monesos489

os oscidates

montanheses490

os sibilates491

os camponos os bercorcates os pimpedunos

os lassunos os velates os torvates os consoranos os auscos492

os

elusates493

os sotiatos os oscidates das planiacutecies os sucasses os latusates os

basaboiates os vasseus os senates os cambolectros agessinates494

109 Por

outro lado junto aos piacutectones estatildeo os livres bituacuteriges que satildeo chamados de

cubos495

depois os lemovices496

os livres arvernos497

os livres velavos e os

gaacutebalos Novamente vizinhos agrave proviacutencia Narbonense estatildeo os rutenos os

cadurcos os nitioacutebriges e separados dos tolosanos pelo rio Tarne498

os

petrocoros Os mares que rodeiam a costa satildeo o oceano setentrional499

que

vai ateacute o Reno entre o Reno e o Sena o oceano Britacircnico500

entre esse e os

Pireneus o oceano Gaacutelico501

Haacute vaacuterias ilhas dos vecircnetos que satildeo chamadas

de Vecircnetas502

e no golfo aquitacircnio haacute a ilha de Uliaros503

Ponderamos que Pliacutenio escreveu essas detalhadas descriccedilotildees geograacuteficas visando

a um ponto mais aleacutem do que inventariar o mundo conhecido ou fornecer um panorama

geral com finalidades poliacuteticas504

Na verdade se considerarmos a definiccedilatildeo de Martins

(2013 p 35) sobre a eacutecfrase (ἔθθξαζηο) como sendo um procedimento descritivo viacutevido

e claro podemos entender que Pliacutenio de certa forma desenvolveu uma eacutecfrase

geograacutefica na Historia naturalis Tomemos como exemplo as trecircs Gaacutelias descritas

482

Os bituacuteriges possuiacuteam grande importacircncia e habitavam nas proximidades da atual Bourges os viviscos

viviam perto da foz do rio Garona nas proximidades da atual Bordeaux Liacutevio citou os bituacuteriges em Ab

urbe cond V 34 (cf p 163 e 164) dizendo que foi essa naccedilatildeo que liderou a migraccedilatildeo gaulesa para a

Itaacutelia por volta de 600 aC 483

Viviam entre os Pirineus o rio Garona e o Atlacircntico 484

Pompeu fundou a povoaccedilatildeo de Lugdunum Conuenarum (atual Bagnegraveres-de-Bigorre) de onde foram

trazidos os locais que apoiaram Sertoacuterio O nome deriva do verbo latino conuenire (reunir) 485

Ceacutesar (BGall III 27) chamou-os de bigerriotildees 486

ao dizer quatro signos Pliacutenio parece fazer referecircncia a quatro maniacutepulos de soldados que guarneciam

o lugar cada um com um signum (insiacutegnia ou estandarte) Essa naccedilatildeo habitava proacuteximo da atual cidade

de Dax 487

Proacuteximos da atual Sescouze e Maresin As seis ensiacutegnas datildeo a entender que eles eram guarnecidos por

seis maniacutepulos de soldados 488

Nos arredores da atual Belin-sur-la-Leyre 489

Nas vizinhanccedilas da atual Luchon 490

Nos atuais vales do Aspe e Ossau 491

No vale do atual Soule 492

Perto da atual Auch 493

Perto da atual Eauze 494

Na regiatildeo de Aizenay 495

Os cubos tinham sua capital em Auaricum atual Bourges 496

Perto da atual Limoges 497

Habitavam proacuteximo agrave atual Clermont-Ferrand Vercingetoacuterige era dessa naccedilatildeo 498

Atual Tarn 499

Ou mar do Norte 500

Atual canal da Mancha 501

Onde o Atlacircntico banha a regiatildeo oeste da Franccedila 502

Hoje as ilhas de Belle-Isle Houat e outras que existem na foz do Loire 503

Atual ilha de Oleron 504

Como falamos na p 203 e 204

211

anteriormente cuja primeir aacutere pormenoriz d foi Gaacuteli ―C belud 505

Percebe-se

que Pliacutenio adotou uma descriccedilatildeo como se fosse um panorama como podemos ver no

mapa na proacutexima paacutegina (considerando as principais naccedilotildees mencionadas na Historia

naturalis)

Pliacutenio comeccedilou seu ―inventaacuterio d Gaacuteli ―C belud o nordeste do m p

partindo da Germacircnia e seguindo pelo norte em direccedilatildeo ao oceano Atlacircntico citando os

atreacutebates os neacutervios os suessiotildees aleacutem de outras naccedilotildees ateacute chegar novamente ao

interior do territoacuterio e agrave fronteira com a Germacircnia o erudito entatildeo retomou os povos

que habitavam a Gaacutelia Beacutelgica temos entatildeo os remos os seacutequanos os raacuteuricos e os

helveacutecios Por fim Pliacutenio mencionou as naccedilotildees germacircnicas dos uacutebios e dos batavos

Murphy preconizou que essa visatildeo panoracircmica da geografia se dava em cinco modelos

imaginativos506

Pelo modelo proposto por Pliacutenio percebemos que ele adotou um

esquema misto pois ao seguirmos a ordem das naccedilotildees citadas percebemos que haacute um

vaiveacutem imaginaacuterio no mapa seguindo o referencial do rio Escalda507

Pliacutenio considerou

os povos que viviam nas margens exteriores do rio (ou seja que estavam proacuteximos agrave

costa mariacutetima) e os que se encontravam ao interior e tambeacutem aqueles que eram

vizinhos ao Reno

Apoacutes essa passagem temos a Gaacutelia Lugdunense508

dessa vez o rio que serve

como eixo p r gui r ess ―vi gem foi o Liacuteger 509

Pliacutenio tambeacutem falou dos povos que

viviam proacuteximo ao Atlacircntico (no mapa acima o mar Gaacutelico) enumerando os lexoacutevios

os veliocassos os vecircnetos os ossismos e do outro lado da peniacutensula que hoje

chamamos de Bretanha localizou os namnetes e ao interior da regiatildeo os eacuteduos os

carnutos os secircnones os aulercos e dentre outros os turotildees Por fim haacute a Gaacutelia

Aquitacircnia510

Aiacute foram citados os piacutectones os santotildees os bituacuteriges viviscos e os

proacuteprios aquitanos nessa parte Pliacutenio fez uma linha descritiva vertical no sentido norte-

sul (dos piacutectones aos aquitanos) Em seguida haacute a menccedilatildeo aos Pirineus e voltamos ao

centro novamente seguindo o Liacuteger e em seguida a proviacutencia Narbonense Por uacuteltimo

Pliacutenio dotou o esquem de descriccedilatildeo ―m r m r mencion ndo o oce no setentrion l

que vai do norte da Germacircnia ateacute o Reno o oceano Britacircnico que engloba do Reno ao

Sena e finalmente o oceano Gaacutelico entre o Sena e os Pireneus

505

Em HN IV 17 (31) cf p 207 506

Cf nota 442 na p 205 507

Cujo nome francecircs eacute Escaut 508

HN IV 18 (32) p 208 e 209 509

Rio Loire 510

CF HN IV 19 (33) p 209 e 210

212

Mapa retirado de (PLINIO EL VIEJO 1998 p 161)

Em se tratando de uma obra de erudiccedilatildeo como a Historia naturalis natildeo

podemos concord r com M rtins (2013 p 76) que consider que eacutecfr se ―eacute um

n rr tiv ficcion l agrave serviccedilo d rgument ccedilatildeo pois que Pliacutenio faz descriccedilotildees de aacutereas

que jaacute eram proviacutencias romanas e amplamente conhecidas pelos seus contemporacircneos

Por outro lado a eacutecfrase geograacutefica mesmo natildeo sendo ficcional funciona como uma

ferramenta natildeo soacute de narraccedilatildeo mas ainda de embelezamento e enriquecimento textual

nesse sentido ela pode ser inserida na descriccedilatildeo de eacutecfrase preconizada por Martins

(2013 p 76 e 77) entendid como ―um descriccedilatildeo viacutevid que tr z o objeto di nte dos

nossos olhos ( ) 511

Dessa maneira Pliacutenio fez um pormenorizado mapeamento por

meio de p l vr s que nos possibilit ―vi j r pel s trecircs proviacutenci s g ules s e loc liz r s

511

Martins (2013 p 77) faz uma importante distinccedilatildeo entre a digressatildeo (que seria uma narraccedilatildeo) e a

eacutecfrase (que se localiza entre a narraccedilatildeo e a descriccedilatildeo) para maior aprofundamento sobre o papel da

eacutecfrase na retoacuterica e da sua funccedilatildeo de deleitar e ornar o discurso cf especialmente p 72-78

213

suas inuacutemeras naccedilotildees Com isso encerra-se essa passagem de descriccedilatildeo administrativa

das Gaacutelias

Seguindo o corpus separado para anaacutelise neste trabalho passemos agora ao livro

VIII dedicado aos animais terrestes Pliacutenio fala das ovelhas (VIII 72) e em seguida da

latilde e seu processo de feitura Temos entatildeo o trecho em VIII 73 (48)

LXXIII (48) ndash 190 Lana autem laudatissima Apula et quae in Italia Graeci

pecoris appellatur alibi Italica tertium locum Milesiae oues obtinent

Apulae breues uillo nec nisi paenulis celebres circa Tarentum Canusiumque

summam nobilitatem habent in Asia uero eodem genere Laudiceae Alba

Circumpadanis nulla praefertur nec libra centenos nummos ad hoc aeui

excessit ulla () Histriae Liburniaeque pilo propior quam lanae pexis

aliena uestibus et quam Salacia scutulato textu commendat in Lusitania

Similis circa Piscinas prouinciae Narbonensis similis et in Aegypto ex qua

uestis detrita usu pingitur rursusque aeuo durat Est et hirtae pilo crasso in

tapetis antiquissima gratia iam certe his usos Homerus auctor est Aliter

haec Galli pingunt aliter Parthorum gentes 192 Lanae et per se coactae

uestem faciunt et si addatur acetum etiam ferro resistunt immo uero etiam

ignibus nouissimo sui purgamento Quippe aenis polientium extracta in

tomenti usum ueniunt Galliarum ut arbitror inuento certe Gallicis hodie

nominibus discernitur 193 Nec facile dixerim qua id aetate coeperit

antiquis enim torus e stramento erat qualiter et iam nunc in castris

LXXIII (48) ndash 190 De fato a latilde mais famosa eacute a da Apuacutelia em seguida a latilde

que na Itaacutelia eacute chamada de grega e que em outros lugares eacute chamada de

itaacutelica ocupam o terceiro lugar as latildes mileacutesias A latilde da Apuacutelia eacute curta no pelo

e famosa apenas para fazer capas a latilde que vem das redondezas de Tarento e

Canuacutesio tem maior renome na verdade na Aacutesia haacute a latilde do mesmo tipo de

Laodiceia Nenhuma latilde branca eacute superior agrave latilde das vizinhanccedilas do Poacute e

nunca nenhuma latilde excedeu o valor de cem sesteacutercios por libra () A latilde da

Iacutestria e da Libuacuternia eacute mais parecida com cabelo do que com latilde e eacute improacutepria

para vestes de pelos eacute essa a que Salaacutecia na Lusitacircnia utiliza para tecidos

xadrez Eacute semelhante agrave latilde das redondezas de Piscinas512

na proviacutencia

Narbonense e semelhante tambeacutem a que tem no Egito com a qual se

remenda um traje gasto pelo uso e que de novo dura muito tempo Tambeacutem eacute

antiquiacutessima a popularidade da latilde dura de pelo grosso para tapetes

certamente Homero jaacute atestou esses usos Os gauleses trabalham a latilde de uma

forma de outra forma o fazem os povos partos 192 As latildes condensadas

formam uma veste que caso se lhes adicione vinagre elas resistem ao ferro

e ainda mais resistem ao fogo depois de uma nova purificaccedilatildeo513

Na

verdade os restos que ficam nos caldeirotildees depois de trabalhados satildeo

utilizados como enchimento de colchotildees514

que eu considero como um

invento das Gaacutelias certamente hoje os distinguimos atraveacutes dos nomes

gauleses 193 Eu natildeo poderia dizer facilmente em que eacutepoca esse uso

comeccedilou de fato nossos ancestrais usavam cordas de palha como colchatildeo

como ainda agora se faz nos acampamentos (grifos nossos)

Pliacutenio evidentemente citou a latilde da Apuacutelia (uma regiatildeo da Itaacutelia) como sendo a

m is f mos M is agrave frente ele diz que ―nenhum latilde br nc eacute superior agrave latilde d s

512

Atual Peacutezenas jaacute mencionada por Pliacutenio na descriccedilatildeo geograacutefica da Narbonense (cf p 203) 513

Esse tecido eacute o feltro (informaccedilatildeo retirada de PLINIO EL VIEJO 2003 p 202) 514

Traduzimos o termo tomentum por colchatildeo embora soe anacrocircnico por falta de um eacutetimo melhor em

portuguecircs que se proxime do sentido l tino que signific ―enchimento ou ―estof mento

214

vizinh nccedil s do Poacute ndash esse rio era o antigo marco divisoacuterio entre a Itaacutelia e a Gaacutelia

Cisalpina De fato essa regiatildeo foi a primeira proviacutencia a receber de forma coletiva o

direito de cidadania romana515

Pliacutenio entatildeo fala sobre a latilde de Piscinas na Narbonense

parecida com a latilde de Salaacutecia na Lusitacircnia O ponto que mais nos chama a atenccedilatildeo se

encontra no sect192 Pliacutenio explica o processo de feitura do feltro e como o resto desse

produto er us do como enchimento de colchatildeo Pliacutenio diz que consider esse ―um

invento d s Gaacuteli s e corrobor ess inform ccedilatildeo dizendo que os colchotildees recebiam o

nome de gauleses e haacute muito tempo eram utilizados como tais pelos romanos Ele ainda

cita o fato dos seus ancestrais usarem ―cord s de p lh como colchatildeo m s ess form

de leito na sua eacutepoca era utilizada apenas em acampamentos militares Esse tipo de

informaccedilatildeo curiosa eacute importante como registro de objetos de uso cotidiano (como

vestimentas colchotildees etc) e eacute raro na literatura claacutessica jaacute que a maioria das obras

foram escritas visando a abordagem de temas mais literaacuterios retoacutericos ou

historiograacuteficos e que pouco mencionavam aspectos do dia a dia desse tempo

Passemos agora ao livro XXX no qual Pliacutenio disserta sobre magia e remeacutedios

Temos o seguinte trecho 4 (13)

IV ndash 13 Gallias utique possedit et quidem ad nostram memoriam Namque

Tiberii Caesaris principatus sustulit Druidas eorum et hoc genus uatum

medicorumque Sed quid ego haec commemorem in arte Oceanum quoque

transgressa et ad naturae inane peruecta Britannia hodieque eam attonita

celebrat tantis caerimoniis ut dedisse Persis uideri possit Adeo ista toto

mundo consensere quamquam discordi et sibi ignoto nec satis aestimari

potest quantum Romanis debeatur qui sustulere monstra in quibus hominem

occidere religiosissimum erat mandi uero etiam saluberrimum

IV ndash 13 Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a

nossa eacutepoca O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e

esse tipo de adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria

isso sobre uma arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da

natureza Ainda hoje a aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos

de modo que possa parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os

povos em todo o mundo ainda que entre si fossem diferentes e

desconhecidos por fim entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar

suficientemente o quanto se deve aos romanos que suprimiram essas

monstruosidades para as quais era muito religioso sacrificar um homem e o

fato de devoraacute-lo era considerado salutar

Nessa passagem temos a menccedilatildeo de Pliacutenio sobre os aspectos maacutegicos das Gaacutelias

O aspecto histoacuterico mais importante desse trecho foi o banimento dos druidas no

principado de Tibeacuterio Gruen (2011a p 156) destaca que Augusto jaacute probira os

515

Isso se deu na eacutepoca de Ceacutesar cf p 111 para mais detalhes

215

cidadatildeos romanos de adotarem essa religiatildeo Tibeacuterio baniu os druidas mas como Pliacutenio

deixou cl ro eles ind se dedic v m agrave m gi ―cert mente teacute noss eacutepoc Depois

de Tibeacuterio foi Claacuteudio o governante que voltou a agir no sentido de coibir a magia na

Gaacutelia condenando o rito do sacrifiacutecio como horriacutevel e desumano De fato os romanos

baniram a praacutetica de sacrifiacutecios humanos na Gaacutelia e na Aacutefrica516

Como destaca Le

Bohec (2009 p 31) um dos fatores que levou agrave aboliccedilatildeo dessa praacutetica foi a evoluccedilatildeo da

mentalidade da eacutepoca que finalmente passou a considerar os sacrifiacutecios como atos

inuacuteteis e crueacuteis dignos de povos selvagens Quanto aos druidas a questatildeo fica mais

complexa devido agrave imprecisatildeo das fontes mas haacute pelo menos o consenso de que eles

representavam para os romanos um problema mais poliacutetico do que religioso (LE

BOHEC 2009 p 31) A poliacutetica romana era a de destruir complexos religiosos antigos

ou aristocraacuteticos cuja influecircncia poderia servir como centros de resistecircncia contra a

Urbe e ao mesmo tempo criar laccedilos para unir Roma agraves vaacuterias classes sociais das naccedilotildees

conquistadas (RANKIN 1996 p 262) A elite das naccedilotildees conquistadas ou aliadas a

Roma recebendo a cidadania e desejando fazer parte do modus uiuendi romano passou

a adotar a educaccedilatildeo claacutessica para seus filhos e isso contribuiu para diminuir o papel dos

druidas como educadores517

Assim percebemos a mudanccedila ocorrida do seacuteculo I aC

ateacute a segunda metade do seacuteculo I dC no modo de se referir aos druidas Diodoro assim

como Ceacutesar se referiu aos druidas chamando-os de filoacutesofos e teoacutelogos de honras

extraordinaacuterias518

Ciacutecero mencionou sua amizade com o druida Diviciacuteaco falando a

seu respeito no De diuinatione519

Pliacutenio como notamos referiu-se aos druidas e agraves

praacuteticas maacutegicas dos gauleses de forma pejorativa dizendo que no seu tempo a

― turdid Britacircni celebr ess rte com muitos ritos e natildeo temos nenhum menccedilatildeo agrave

honradez deles520

Como Rankin (1996 p 291) destaca Pliacutenio foi procurador na Gaacutelia

Narbonense e na Gaacutelia Beacutelgica e possivelmente teve conhecimento pessoal do

druidismo Pliacutenio foi negativo em suas descriccedilotildees porque provavelmente teve contato

516

A conquista romana aparentemente acabou com a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos embora em aacutereas

remotas da Gaacutelia (e de outros confins do impeacuterio) eles continuassem acontecendo (RANKIN 1996 p

288) De modo geral os romanos tinham profundo desgosto por exclusividade religiosa e associavam

esse tipo de coisa a subversatildeo poliacutetica por isso as perseguiccedilotildees aos druidas cristatildeos judeus etc

(RANKIN 1996 p 288) 517

Estrabatildeo jaacute mencionou esse fato em IV 1 5 (cf p 87) Ceacutesar (BGall VI 13) tambeacutem disse que os

druidas desfrutavam de grande honradez entre os gauleses e que um grande nuacutemero de jovens acorria ateacute

eles para educar-se (cf p 137 e 138) 518

Biblioteca V 31 2-4 cf p 83-84 519

Cf p 76 520

P r m ior profundid de sobre esse tem recomend mos o c piacutetulo ―Religion nd the druids de

Rankin (1996 p 259-294)

216

com essa forma marginalizada de druidismo comum em sua eacutepoca Outro fator que

contribuiu para o gradual decliacutenio dos druidas era o fato de que os ensinamentos deles

embora prestigiosos tinham pouco apelo popular pois eram muito complexos521

Finalmente chegamos ao uacuteltimo trecho de Pliacutenio a ser analisado retirado do

livro XXXIII em que ele trata dos metais e seus usos Assim destacamos na HN

XXXIII 5 (14)

V ndash 14 Romae ne fuit quidem aurum nisi admodum exiguum longo tempore

Certe cum a Gallis capta urbe pax emeretur non plus quam mille pondo

effici potuere Nec ignoro MM pondo auri perisse Pompeii III consulatu e

Capitolini Iovis solio a Camillo ibi condita et ideo a plerisque existimari

MM pondo collata Sed quod accessit ex Gallorum praeda fuit detractumque

ab iis in parte captae urbis delubris 15 Gallos cum auro pugnare solitos

Torquatus indicio est ndash Apparet ergo Gallorum templorumque tantundem

nec amplius fuisse quod quidem in augurio intellectum est cum Capitolinus

duplum reddidisset Illud quoque obiter indicari conuenit ndash etiam de anulis

sermonem repetiuimus ndash aedituum custodiae eius conprehensum fracta in

ore anuli gemma statim expirasse et indicium ita extinctum 16 Ergo ut

maxime MM tantum pondo cum capta est Roma anno CCCLXIIII fuere cum

iam capitum liberorum censa essent CLII DLXXIII In eadem post annos

CCCVII quod ex Capitolinae aedis incendio ceterisque omnibus delubris C

Marius filius Praeneste detulerat XIII pondo quae sub eo titulo in triumpho

transtulit Sulla et argenti VI Idem ex reliqua omni uictoria pridie

transtulerat auri pondo XV argenti p CXV

V ndash 14 Na verdade em Roma por muito tempo natildeo houve ouro exceto em

diminuta quantidade De fato quando a cidade foi tomada pelos gauleses e a

paz seria estabelecida eles natildeo puderam juntar mais do que mil libras Natildeo

ignoro que duas mil libras de ouro se perderam do trono de Juacutepiter Capitolino

ndash aiacute colocadas por Camilo ndash durante o terceiro consulado de Pompeu por

isso muitos consideram que na verdade foram juntadas duas mil libras de

ouro Mas o que acresceu a isso foram o butim e a pilhagem daqueles

templos que os gauleses fizeram na parte da cidade que foi tomada 15 Como

indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar usando

ouro Assim parece evidente tal quantidade de ouro natildeo ser maior que aquela

que tinham os gauleses ou os templos na verdade o que se percebeu foi que

Juacutepiter Capitolino em uma profecia retornaria o dobro Jaacute que recordamos o

assunto sobre os aneacuteis tambeacutem conveacutem mencionar o episoacutedio em que o

guarda do templo de Juacutepiter Capitolino ao ser surpreendido quebrou a gema

do seu anel na boca e imediatamente morreu dessa forma o indiacutecio do ladratildeo

desapareceu 16 Portanto na ocasiatildeo do ano 364 da cidade quando Roma foi

tomada havia no maacuteximo duas mil libras de ouro e como constava no censo

152573 homens livres Apoacutes 307 anos o ouro da cidade ndash que Caio Maacuterio

Filho levara a Preneste apoacutes o incecircndio do templo Capitolino e de todos os

outros santuaacuterios ndash totalizava treze mil libras Sila transcreveu esse nuacutemero

em uma inscriccedilatildeo durante um triunfo assim como seis mil libras de prata Ele

tambeacutem trouxera no triunfo da veacutespera quinze mil libras de ouro e cento e

quinze mil libras de prata obtidas em todas as outras vitoacuterias

Pliacutenio fala da quantidade de ouro disponiacutevel em Roma durante o saque da cidade

pelos gauleses Para ele a cidade dispunha de pouquiacutessima reserva do metal e diz que

521

Ceacutesar (BGallVI 14) citou o fato dessa educaccedilatildeo chegar a durar vinte anos (cf p 140)

217

houve alguma confusatildeo entre o montante de ouro que havia no templo de Juacutepiter

Capitolino No sect15 Pliacutenio fala de Torquato e o fato dos gauleses combaterem usando

joacuteias de ouro522

Outro ponto de interesse pode ser percebido no fato de que mais de

trezentos anos depois Caio Maacuterio Filho levou de Roma para Preneste treze mil libras de

ouro Sila celebrando seus triunfos exibiu em um dia treze mil libras de ouro e seis mil

libras de prata e no outro quinze mil libras de ouro e cento e quinze mil libras de prata

―obtid s em tod s s outr s vitoacuteri s Percebemos m is um vez como Pliacutenio menciona

as coisas sempre as relacionando a Roma Fica evidente como a cidade que na eacutepoca do

saque tinha apenas mil libras de ouro prosperou com sua poliacutetica imperialista e jaacute

durante a eacutepoca de Sila acumulou enorme fortuna natildeo soacute de ouro mas tambeacutem de

prata

Tanto Liacutevio quanto Pliacutenio abordaram certos fatos dos primoacuterdios de Roma

como o episoacutedio do saque da cidade e a menccedilatildeo a Torquato e o colar de ouro Outro

aspecto em comum eacute o fato de ambos os autores ressaltarem o dever do romano de

conquistar novos povos e regiotildees usando como justificativa a vontade divina523

Esse eacute

um ponto que natildeo apareceu em Ceacutesar o general alegou que a guerra foi motivada por

questatildeo de seguranccedila uma vez que as migraccedilotildees dos germanos ateacute a Gaacutelia

representavam uma iminente ameaccedila a Roma524

Em Liacutevio como vimos os galos foram

representados como os inimigos de Roma e geralmente caracterizados como baacuterbaros e

exemplos de comportamento a serem evitados ndash na histoacuteria liviana esse era o maior

papel a ser desempenhado pelos adversaacuterios do impeacuterio Pliacutenio pela proacutepria natureza

erudita de sua obra foi aleacutem nos seus retratos dos galos ele se preocupou em descrever

geograficamente as proviacutencias com riquezas de detalhes bem como trouxe informaccedilotildees

natildeo usuais na literatura latina como o processo de feitura da latilde Por conseguinte Liacutevio

ao fazer relatos de antigos acontecimentos de Roma e tratando dos gauleses dessa

eacutepoca e Pliacutenio ao trazer informaccedilotildees tatildeo diversas como a geografia e os costumes dos

galos enriquecem a nossa pesquisa do corpus iniciada com Ceacutesar e o seu relato in loco

da conquista da Gaacutelia

522

Liacutevio (VII 10) narrou o episoacutedio que justificou o apelido de Torquato adotado por Tito Macircnlio jaacute que

ele tomou o colar de ouro do gaulecircs que ele venceu (cf p 182-183) 523

Cf Plinio III 6 (5) p 204 e 205 p 206 e nota 444 deste trabalho Quanto a Liacutevio e o direito divino do

romano governar outros povos cf sect11 e sect7 (p 161) 524

Cf BGall I 33 p 134

218

Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celt

Neste capiacutetulo faremos a anaacutelise entre o De bello Gallico Ab urbe condita e a

Historia naturalis visando ao estudo de como se opera a retoacuterica de representaccedilatildeo do

gaulecircs entre os gecircneros de composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e

erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Aleacutem disso pretendemos analisar o tipo de vocabulaacuterio e figuras de

linguagem empregados pelos autores latinos supracitados para essas representaccedilotildees e

observar como cada um deles faz um retrato muito peculiar dos gauleses Ceacutesar com

seu relato distante e agraves vezes respeitoso agraves vezes hostil Liacutevio e a figura do gaulecircs como

o exemplo maacuteximo de inimigo durante o periacuteodo arcaico de Roma e Pliacutenio com um

enfoque de informar sobre a geografia e costumes dos gauleses de forma puramente

instrutiva Primeiramente falaremos sobre como surgiram as imagens recorrentes sobre

os galos a seguir abordaremos a questatildeo da retoacuterica de modo abrangente e em seguida

passaremos agraves anaacutelises dos elementos textuais

41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses

Vimos ao longo dessa pesquisa os termos e estereoacutetipos que apareceram nos

textos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho para a caracterizaccedilatildeo dos gauleses bem como

os mesmos toacutepoi recorrentes nas fontes citadas (como Poliacutebio Catatildeo o Censor etc)

Nesse momento entatildeo analisaremos como possivelmente surgiu esses clichecircs de

representaccedilatildeo dos galos na percepccedilatildeo greco-romana

Como destaca Vasaly (1993 p 245) no comeccedilo do seacuteculo III aC autores

romanos jaacute buscavam na literatura grega teacutecnicas retoacutericas para embelezar os rascunhos

de informaccedilatildeo sobre Roma que eles recebiam das geraccedilotildees que lhes eram anteriores525

por conseguinte ao recorrerem a padrotildees de narrativas que lhes eram familiares e

reconheciacuteveis eles transformaram simples nomes e escassos registros relacionados aos

primoacuterdios da Cidade em uma rica tapeccedilaria ilustrando o triunfo da virtude romana

sobre os desafios enfrentados dentro e fora de Roma De maneira semelhante tambeacutem

podemos entender que a respeito dos gauleses os romanos buscaram nos gregos as

primeiras representaccedilotildees dessa naccedilatildeo e depois as adaptaram e remodelaram de acordo

com sua proacutepria experiecircncia de vida e a realidade da eacutepoca em que viviam

525

Falamos desses registros rudimentares registrados em anais pelo pontiacutefice maacuteximo na p 11 deste

trabalho

219

A respeito dos gauleses retratados como sendo fortes altos e aterrorizantes essa

imagem se justificava atraveacutes dos primeiros contatos que os romanos (e outras naccedilotildees

itaacutelicas) tiveram com os povos de aleacutem dos Alpes no comeccedilo do seacuteculo III aC contatos

esses que eram especialmente violentos e que resultavam em guerras e saques Foram

muito marcantes tambeacutem a proacutepria invasatildeo a Roma bem como as migraccedilotildees dos celtas

para a Aacutesia Menor e o saque de Delfos em 278 aC526

Com esses acontecimentos

emblemaacuteticos fixou-se na cabeccedila de gregos romanos e outros povos itaacutelicos a ideia do

gaulecircs feroz e beligerante Nos principais autores do seacuteculo II aC cujos textos nos

chegaram com certa substacircncia material como Poliacutebio e Catatildeo vemos novos relatos

sobre as populaccedilotildees da Gaacutelia Em ambos apareceu com destaque o caraacuteter belicoso dos

galos527

Poliacutebio e Catatildeo em suas obras jaacute estavam selecionando elementos de uma

literatura em grego preexistente e que mencionava os celtas essa literatura antecessora

natildeo era inteiramente devotada agraves caracteriacutesticas materiais dos galos mas tambeacutem

continham informaccedilotildees de natureza geograacutefica e etnograacutefica528

Relatos escritos depois

de Poliacutebio e Catatildeo como o de Posidocircnio (do comeccedilo do seacuteculo I aC) e Ceacutesar com

suas longas digressotildees etnograacuteficas haveriam de introduzir (ou reintroduzir) na

literatura antiga informaccedilotildees sobre os celtas e seus exoacuteticos costumes dieta

comportamentos sociais crenccedilas etc (WOOLF 2011 p 22)

No periacuteodo do seacuteculo I aC entatildeo circulavam vaacuterias imagens de representaccedilatildeo

dos galos na literatura greco-latina como vimos alguns dos maiores exemplos em

Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Estrabatildeo citados no capiacutetulo 1529

Essas vaacuterias representaccedilotildees

dos gauleses de todo tipo (como ferozes religiosos voluacuteveis etc) eram utilizadas pelo

escritor de acordo com o gecircnero de composiccedilatildeo que adotava e o tipo de mensagem que

ele queria passar fosse ela de cunho poliacutetico moralizante nacionalista etc Eacute o que

526

Cf p 102 para esses acontecimentos Na p 102 e ss falamos dos vaacuterios conflitos entre romanos e

aliados contra os celtas ao longo dos seacuteculos II e I aC ateacute a ascensatildeo de Ceacutesar 527

Cf Poliacutebio (Histoacuterias II 17 9 a 12) na p 48 e II 15 7 na p 49 Sobre Catatildeo cf fragmento 34 na p

62 528

De fato os registros mais remotos sobre os celtas que temos satildeo do seacuteculo IV aC e infelizmente nos

chegaram bastante fragmentados Jaacute mencionamos alguns dos autores dessa eacutepoca como Eacuteforo e Timeu

(cf p 44 e ss) Tambeacutem haacute outros que natildeo citamos ou falamos de forma muito raacutepida como Teopompo e

Piacuteti s de M rselh sobre esses e outros nomes do seacuteculo IV C recomend mos o c piacutetulo ―Notices in

some fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48) Tambeacutem Platatildeo (Leis 637 d-e) retratou

os gauleses (junto com citas persas ibeacuterios traacutecios e cartagineses) como beberrotildees e belicosos

Aristoacuteteles (em uma obra perdida sobre costumes dos baacuterbaros) na Poliacutetica e no De gener anim

similarmente falou sobre os galos (cf p 45) 529

Sem contar os relatos dos celtas que natildeo registramos aqui e que satildeo de outros gecircneros de composiccedilatildeo

como a eacutepica a poesia e o teatro (cf p 21) ou os autores que abordamos de forma bem raacutepida como

Dioniacutesio de Halicarnasso e os mencionados na nota acima

220

Woolf ch m de ―moldur s interpret tiv s que er m os toacutepoi disponiacuteveis para os

autores da etnografia antiga (e outros gecircneros) para serem escolhidos e selecionados de

acordo com os seus propoacutesitos de composiccedilatildeo literaacuteria (WOOLF 2011 p 54) Woolf

(2011 p 62) chega agrave conclusatildeo de que a maioria das narrativas sobre os baacuterbaros (e ele

fala de vaacuterios povos que eram considerados alheios aos romanos) se originou no meio

do seacuteculo I aC ocorrendo ao mesmo tempo com a raacutepida expansatildeo territorial romana

cujas conquistas de Ceacutesar Pompeu e Augusto aceleraram ainda mais o processo de

contato com outras naccedilotildees Esse fato tambeacutem coincidiu com o final das guerras

Mitridaacuteticas e a chegada a Roma de vaacuterios autores gregos que escreviam sob o patronato

dos membros da elite da Urbe No caso dos gauleses acreditamos que essas imagens

cujos registros passaram a ser substanciais a partir do seacuteculo IV aC530

foram sendo

apropriadas e reelaboradas ao longo do tempo pelos autores que vieram depois Com

isso fica difiacutecil separar ou distinguir quando exatamente essas imagens surgiram ou

desapareceram especialmente apoacutes a unificaccedilatildeo do mundo mediterracircneo sob o comando

de Roma (WOOLF 2011 p 62) Um exemplo que encontramos e que mostra como

uma dessas imagens sobre os galos surgiu (e depois caiu em desuso) pode ser

encontrado em Pliacutenio o Velho O erudito em Historia naturalis V IV 31 chamou a

Gaacuteli N rbonense de ―Gaacuteli de c lccedil s531

e Tr ns lpin como ―Gaacuteli C belud 532

Esse estereoacutetipo do galo em trajar calccedilas e possuir cabelo comprido era comum no

seacuteculo I aC e em contexto romano Ciacutecero jaacute usara essa mesma imagem para depreciar

os galos (Pro Fonteio 33) ―Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas

com postura tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias

recorrem o poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos N d eacute menos verd deiro N

eacutepoca de Pliacutenio esses clichecircs jaacute estavam em desuso pois as proviacutencias gaulesas jaacute

estavam avanccediladas em termos de romanizaccedilatildeo (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) Aleacutem

disso a elite dessas regiotildees jaacute abandonara completamente o haacutebito de usar calccedilas

saiotes ou cabelos longos na verdade adotava-se o modo de vestir (e o penteado) dos

romanos

Podemos notar atraveacutes das fontes que nos restaram que os relatos etnograacuteficos

da Europa ocidental evidentemente por causa da consolidaccedilatildeo das proviacutencias nessa

aacuterea simplesmente foram sumindo ao longo do seacuteculo I dC O puacuteblico-alvo de Ceacutesar

530

Como falamos na nota 528 531

Cf trecho completo na p 200 a 203 532

HN XVII (31) 105 p 207

221

era diferente do puacuteblico de Liacutevio ou Pliacutenio mais de um seacuteculo depois Os nomes que

escreveram sobre os gauleses com material substancial de etnografia pararam em

Estrabatildeo Aos romanos a partir de Augusto natildeo mais interessavam os ―baacuterb ros g los

jaacute que eles for m ―civiliz dos e com o tempo b st nte integr dos o modus uiuendi da

Urbe O interesse dos romanos por conseguinte passou a se voltar para os povos que

habitavam nas fronteiras do mundo Quanto mais distantes esses povos maior a

curiosidade por essa razatildeo mais eles eram retratados como exoacuteticos bizarros ou

maravilhosos especialmente nas regiotildees que o impeacuterio natildeo alcanccedilou como a Iacutendia a

Etioacutepia a Ciacutetia e a Germacircnia Esse tipo de interesse eacute proacuteprio da natureza humana em

querer conhecer o que lhe eacute alheio e excecircntrico e ateacute hoje podemos perceber como

culturas que nos satildeo exoacuteticas ainda possuem um grande apelo e aticcedilam a curiosidade da

populaccedilatildeo

42 ndash Mecanismos retoacutericos

Ao pensarmos na claacutessica divisatildeo aristoteacutelica da retoacuterica (Retoacuterica 1358b) em

trecircs gecircneros discursivos (deliberativo juriacutedico e o proacuteprio epidiacutectico) julgamos que as

obras de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio inserem-se no gecircnero epidiacutectico pois a caracterizaccedilatildeo de

gauleses e romanos nessas narrativas possui ora a funccedilatildeo de elogio ora de censura

como composiccedilotildees literaacuterias esse discurso de representaccedilatildeo do outro e de si sofre vaacuterias

mud nccedil s Como pontu Seb sti ni (In Joly 2007 p 81) ― experiecircnci pesso l diret

fica em segundo plano qu ndo histoacuteri p ss ser tr t d como gecircnero literaacuterio ndash ao

contraacuterio do que pregavam Heroacutedoto e Tuciacutedides que diziam que se devia escrever

sobre o que se viu e se presenciou A historiografia antiga portanto natildeo tinha a

preocupaccedilatildeo em estabelecer uma verdade que correspondia exatamente aos fatos mas

sim visava a uma construccedilatildeo retoacuterica em que esses fatos eram recriados artisticamente

com um propoacutesito pragmaacutetico ndash fosse ele moralista ou que visava ao estabelecimento

de uma identidade coletiva por exemplo533

Temos alguns exemplos de elementos

retoacutericos que ilustram essa imprecisatildeo na historiografia especialmente no que concerne

a acontecimentos muito recuados no tempo e praticamente impossiacuteveis de se

comprovar Dessa maneira Ceacutesar (BGall VI 24) escreveu que ―houve ntes um tempo

533

Jaacute aprofundamos essa questatildeo nas paacuteginas 9 e 11 deste trabalho

222

em que os g uleses super v m os germ nos em virtude 534

No BGall VI 19 tambeacutem

tem-se ― teacute pouco ntes de noss eacutepoc os escr vos e clientes que er certo terem sido

estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados

junto 535

Em Liacutevio tambeacutem eacute possiacutevel encontrar esse tipo de argumentaccedilatildeo

especialmente em Ab urbe cond V 34 no trecho que trata da passagem dos gauleses

pelos Alpes ―nesse lug r est v m opostos os Alpes sem duacutevid natildeo me espanto que

eles pareccedilam insuperaacuteveis jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como

certamente temos na memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas (fabulis) sobre

Heacutercules 536

Do mesmo modo lecirc-se em Ab urbe cond V 35 ―Eu soube que foi essa a

tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram

ou natildeo com o poio de todos os povos d Gaacuteli Cis lpin 537

Como pontua Phillips

(1982 p 1001 e 1002) Liacutevio ao tratar dos acontecimentos da primeira deacutecada da sua

histoacuteria considerava desnecessaacuterio passar julgamento de verdade nas fabulae pois

verdadeiras ou natildeo elas serviam essencialmente como exempla para fins didaacuteticos e

simboacutelicos Em Pliacutenio encontramos vocabulaacuterio similar na HN V (4) 33 ele disse que

―haacute utores que dizem ter existido um cid de ch m d Her clei n foz do Roacuted no 538

Igualmente em HN XXXIII 5 (14) sobre o resgate que os romanos pagaram aos

gauleses tem-se ―muitos consider m que n verd de for m junt d s du s mil libr s de

ouro 539

Sobre ess s form s de enunci ccedilatildeo ―eu ouvi ou ―dizem que H rtog (1999 p

281) pontua

Depois da oacutepsis vem a akoeacute natildeo mais eu vi mas eu ouvi Eis um segundo

modo de intervenccedilatildeo do narrador na narrativa uma outra espeacutecie de marca de

enunciaccedilatildeo O eu ouvi reveza com o eu vi quando este uacuteltimo natildeo eacute mais

possiacutevel () Sua marca de enunciaccedilatildeo eacute se posso dizer assim menos forte

O narrador engaja-se menos mantendo-se a alguma distacircncia de sua

narrativa deixando em consequumlecircncia mais espaccedilo para o ouvinte modular

sua crenccedila Em resumo afrouxam-se suas reacutedeas (grifos do autor)

Igu lmente o ―cont -se ou ―muitos credit m que e outros enunciados do

tipo tambeacutem corroboram essa imprecisatildeo do discurso ao sinalizar para o puacuteblico-alvo

que tal passagem eacute vaga jaacute que natildeo se pode definir com exatidatildeo quando como ou por

534

P 128 535

Cf p 143 536

P 163 537

Trecho mencionado na p 165 Cf tambeacutem Ab urbe cond V 41 (p 175) ―Cont -se que estando agrave

frente M rco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recit r m um c nto ( ) 538

P 202 539

Cf p 216

223

quem tal narrativa foi produzida ou sequer para quem foi produzida (HARTOG 1999

p 282)

Ao considerarmos a definiccedilatildeo aristoteacutelica da retoacuterica como sendo a faculdade de

teorizar sobre o que eacute adequado em cada caso para convencer (Retoacuterica 1355b)

pretendemos nos proacuteximos subcapiacutetulos analisar os discursos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio

em seus objetivos de se construir e propagar uma imagem representativa do povo

gaulecircs A elocutio (enunciaccedilatildeo) do gecircnero epidiacutectico se operava sobretudo atraveacutes da

criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo de paradigmas (especialmente poliacuteticos militares ou eacuteticos)

dirigidos especificamente a um puacuteblico-alvo Como lembra Sebastiani (In Joly 2007

p 81) essa construccedilatildeo retoacuterica situava a verdade no plano da plausibilidade que o leitor

encontra no relato e natildeo necessariamente na exata correspondecircncia entre realidade e

discurso A retoacuterica portanto tambeacutem servia para instruir a audiecircncia para os limites do

proacuteprio texto de fato ao estabelecer as regras para a produccedilatildeo textual

independentemente do gecircnero escolhido mais do que o conteuacutedo em si o que era

bastante esperado pelo puacuteblico-alvo era a capacidade compositiva do autor e a sua

habilidade em compor sua obra respeitando essas normas reguladoras do gecircnero textual

(TRINGALI 1988 p 31)

Dessa maneira percebemos que um texto da Antiguidade qualquer que fosse

ele estava profundamente imbuiacutedo de uma finalidade especiacutefica e tudo no discurso era

voltado para um propoacutesito ou objetivo do autor nesse sentido o texto possui camadas

de significados elaboradas especialmente para um puacuteblico-alvo capaz de identificar e

reconhecer esses elementos No proacuteximo item aprofundaremos sobre as representaccedilotildees

dos gauleses detalhando os mecanismos retoacutericos que identificamos nos textos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho

421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo

Em se tratando das obras que compotildeem o nosso corpus os autores utilizavam

sobretudo duas formas de abordar o gaulecircs Eram elas a alienaccedilatildeo que focava no que o

outro tinha de diferente e a assimilaccedilatildeo (ou analogia) que enfatizava as semelhanccedilas

entre o povo retratado e a proacutepria cultura do emissor do discurso540

Como falamos

antes sobre esse mecanismo (especialmente no subcapiacutetulo 24) apenas retomaremos

540

Cf p 37-40 e p 57-58 sobre processos de alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo dos romanos feitos pelos gregos

224

aqui alguns aspectos de forma pontual de modo a obter uma visualizaccedilatildeo abrangente do

corpus

O primeiro autor que vimos neste trabalho foi Ceacutesar De todas as passagens jaacute

citadas relembraremos algumas delas nas quais percebemos esse mecanismo de

alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de gauleses por parte dos romanos541

O primeiro (e

significativo) trecho que temos eacute a narraccedilatildeo da morte de Pisatildeo Aquitano o gaulecircs que

lutou nas fileiras de Ceacutesar e se sacrificou pelo irmatildeo Nesse episoacutedio Pisatildeo e os

gauleses de modo geral foram retratados no BGall (IV 12) mais proacuteximos aos

romanos Ceacutesar simultaneamente ressaltou a alienaccedilatildeo dos germanos acentuando o

caraacuteter desonesto deles ao desrespeitarem a treacutegua como temos

Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil

(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que

atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em

nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-

se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles

rapidamente nos desordenaram com um ataque542

Por outro lado eacute no livro VI na famosa passagem etnograacutefica sobre gauleses e

germanos que Ceacutesar acentuou essa assimilaccedilatildeo dos gauleses (e a alienaccedilatildeo dos

germ nos) frente os rom nos Como o proacuteprio gener l escreveu ―jaacute que chegamos a

este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e

expor em que est s n ccedilotildees diferem entre si 543

Embora existissem vaacuterias naccedilotildees na

Gaacutelia Ceacutesar escreveu de forma uniforme sobre os seus costumes e haacutebitos de fato as

naccedilotildees que serviram de base para essas descriccedilotildees foram a dos eacuteduos e a dos seacutequanos

aliadas dos romanos e com as quais Ceacutesar teve mais contato O motivo de o general

romano ter feito essa uniformizaccedilatildeo da Gaacutelia servia ao seu propoacutesito de retratar todo

esse territoacuterio como sendo uacutenico facilitando o entendimento do seu puacuteblico-alvo para

essa campanha de conquista O autor jaacute deixou claro esse objetivo de tratar a Gaacutelia

como uma unidade territorial no proacuteprio proecircmio do BGall I 1 ―Tod Gaacuteli eacute

dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a

541

Para evitar a repeticcedilatildeo desnecessaacuteria do que jaacute foi discutido antes citaremos essas passagens mais

sucintamente no corpo do texto para rememorar os termos e figuras citados contudo sempre

colocaremos em notas a localizaccedilatildeo dos trechos completos 542

Cf excerto completo na p 125 543

BGall VI 11 cf p 136

225

terceir h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss

g uleseslsquo 544

Outro exemplo do mecanismo de alienaccedilatildeo entre romanos e gauleses eacute

encontrado no trecho em que Ceacutesar descreveu os druidas em BGall VI 14 Os galos

o contraacuterio dos rom nos natildeo confi v m ssuntos import ntes agrave escrit ―eles natildeo

consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos demais

assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e priv dos utiliz m s letr s greg s m is di nte

na mesma passagem tem-se a menccedilatildeo de que eles acreditavam em vida apoacutes a morte

―sobretudo querem persu dir de que s lm s natildeo perecem m s sim p ss m de uns p r

outros apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor

desprez do o temor d morte 545

Ora os romanos natildeo consideravam essencial morrer

gloriosamente em batalha mas sim guerrear vencer e sobreviver a inuacutemeros

combates546

Tambeacutem os celtas diferiam dos romanos no costume de considerar a

divisatildeo do tempo natildeo pelos dias mas sim pelas noites e ainda no fato de eles natildeo

admitirem que os filhos aparecessem em puacuteblico diante de si ateacute que se tornassem

adultos como vemos em BGall VI 14

Eles delimitam as divisotildees de todo o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas

sim pelo das noites () Nos demais costumes de vida os gauleses diferem

dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos

venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem

assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade

pueril aparece publicamente agrave vista do pai

De maneira geral Ceacutesar mais acentuou as semelhanccedilas do que as diferenccedilas

entre gauleses e romanos No trecho VI 13 percebemos que os gauleses embora

considerados muitas vezes como primitivos no De bello Gallico jaacute possuiacuteam vaacuterias

caracteriacutesticas consideradas civilizadas para os romanos como o fato de eles possuiacuterem

um erudiccedilatildeo ―um gr nde nuacutemero de jovens acorre ateacute eles para educar-se e os druidas

desfrut m de gr nde honr dez junto deles 547

Tambeacutem haacute certo fundamento

civilizatoacuterio na menccedilatildeo agrave heranccedila para maridos e esposas como se lecirc em BGallVI 19

Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto

reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em

544

Cf p 129 545

Cf p 140 546

Detalhamos esse tema na nota 355 p 182 547

P 137 e 138

226

conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos

qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os

rendimentos do tempo precedente

E por fim utorid de do p i per nte os outros membros d f miacuteli ―os

maridos possuem direito de vida e morte tanto sobre as esposas quanto sobre os

filhos 548

Mesmo assim nessa mesma passagem o caraacuteter baacuterbaro do gaulecircs pode ser

encontrado no fato de que Ceacutesar escreveu que as mulheres poderiam ser torturadas caso

morte dos seus m ridos fosse suspeit ―qu ndo morre um chefe da famiacutelia nascido em

posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e havendo alguma suspeita sobre a

morte sujeitam as esposas a um interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto

lgo eles s execut m tortur d s pelo fogo e com todos os tormentos 549

Igualmente

teacute pouco ntes d cheg d de Ceacutes r ―os escr vos e clientes que er certo terem sido

estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados

junto 550

Podemos tambeacutem acrescentar que ao utilizar termos e conceitos da sociedade

romana (como chefe de famiacutelia cliente etc) para descrever os galos Ceacutesar optou por

f zer um comp r ccedilatildeo que foi leacutem do mero ―a eacute como b Como Hartog (1999 p 241)

esclarece aleacutem desse tipo de comparaccedilatildeo elementar a eacute como b (sendo a e b

diretamente comparaacuteveis) existem outras formas de comparaccedilotildees mais sutis em que haacute

uma mudanccedila de registro assim quando essa comparaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel porque a e b

natildeo podem ser considerados equivalentes deve-se entatildeo fazer uma transposiccedilatildeo Na

Retoacuterica a Herecircnio (IV 45 59) o autor deixou claro que a comparaccedilatildeo serve para

embelezar provar explicar ou tornar algo manifesto A seguir ele fez uma explicaccedilatildeo

detalhada das quatro maneiras em que eacute possiacutevel efetuar essa comparaccedilatildeo (similitudo

em latim) satildeo elas contraste negaccedilatildeo paralelismo ou comparaccedilatildeo abreviada551

Dessas

quatro maneiras a que nos interessa aqui eacute a comparaccedilatildeo por paralelismo ndash que foi

descrito pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio (IV 47 60) como sendo uma maneira de

colocar algo diante dos olhos No caso de Ceacutesar ao natildeo conseguir efetuar a comparaccedilatildeo

da sociedade gaulesa como sendo parecida com a romana ele optou pelo paralelismo

os galos possuem instituiccedilotildees que podem ser comparaacuteveis agraves romanas e o uso do

vocabulaacuterio latino por parte de Ceacutesar facilitou esse paralelismo como no exemplo do

548

BGall VI 19 (p 143) 549

Mesmo trecho da nota acima 550

P 143 551

Para o detalhamento de cada tipo de comparaccedilatildeo cf Retoacuteria a Herecircnio IV 46-48

227

pater familias (chefe de famiacutelia) citado acima Evidentemente os gauleses natildeo

possuiacuteam tal conceito do chefe de famiacutelia o paralelismo funcionou aqui de forma a

facilitar o entendimento do puacuteblico-alvo de Ceacutesar em compreender como se organizava

a estrutura familiar dos galos Ainda de cordo com H rtog (1999 p 245) ess ―ficccedilatildeo

n rr tiv visa a convencer o destinataacuterio do seu argumento de fato trata-se de ―uma

diferenccedila assinalaacutevel e mensuraacutevel o que significa que eacute dominaacutevel Por conseguinte

Ceacutesar ao fazer com que romanos e gauleses fossem assimilados (e alienando os

germanos) deixou claro que o primeiro grupo poderia ser abarcado por Roma enquanto

que o segundo seria simplesmente deixado de lado

Voltando agora agrave questatildeo sobre o que era considerado um comportamento

baacuterbaro (na opiniatildeo de gregos e romanos) temos o fato dos gauleses praticarem

sacrifiacutecios humanos (VI 16)

Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse

motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se

encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas

ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os

druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com

a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo

pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente

instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros

entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses

membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem

mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos

por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute

muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de

inocentes

Ceacutesar mesmo evitando emitir julgamento de valor no fato dos gauleses terem

esse costume de imolar seres humanos citou esse estereoacutetipo que considero o mais

comum na Antiguidade (e ateacute os dias de hoje) para caracterizar alguma naccedilatildeo como

baacuterbara552

Qu nto ess form ―neutr de se referir o comport mento d imol ccedilatildeo de

homens Hartog (1999 p 268) lembra que ao se optar por descrever praacuteticas

abominaacuteveis (abominaacuteveis do ponto de vista de quem narra) de um modo

completamente isento de opiniatildeo esse tipo de narrativa produz um maior efeito de

alteridade para tanto geralmente o autor emprega um vocabulaacuterio teacutecnico ―como se se

tratasse das praacuteticas mais simples e corriqueiras do mundo Ainda segundo Hartog

(1999 p 269)

552

Contemporacircneo a Ceacutesar Diodoro escreveu sobre sacrifiacutecios humanos praticados por gauleses em

Biblioteca V 31 2 a 4

228

A ausecircncia de marcas de enunciaccedilatildeo ou seu apagamento eacute pois uma das

teacutecnicas empregadas pelo narrador para aumentar o peso da alteridade de sua

narrativa Ele daacute a impressatildeo de transmitir ao destinataacuterio a alteridade em

―est do bruto ou ―selv gem Tod via os vestiacutegios enunciativos que

pontuam a descriccedilatildeo dirigem-se ao saber impliacutecito do destinataacuterio e orientam

a maneira como este a recebe

Pliacutenio por sua vez fez uma descriccedilatildeo criacutetica desse costume ressaltando que os

gauleses praticavam monstruosidades como vimos em Historia naturalis XXX IV

(13)

Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a nossa eacutepoca

O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e esse tipo de

adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria isso sobre uma

arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da natureza Ainda hoje a

aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos de modo que possa

parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os povos em todo o

mundo ainda que entre si fossem diferentes e desconhecidos por fim

entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar suficientemente o

quanto se deve aos romanos que suprimiram essas monstruosidades para as

quais era muito religioso sacrificar um homem e o fato de devoraacute-lo era

considerado salutar

Pelo trecho acima Pliacutenio deixou claro que essa monstruosidade consistia no

consumo de carne humana A esse respeito Aristoacuteteles deixou claro que o canibalismo

era o ponto mais baixo do comportamento baacuterbaro Assim temos na Eacutetica Nicomaqueia

(1148b)

ιέγσ δὲ ηὰο ζεξηώδεηο νἷνλ ηὴλ ἄλζξσπνλ ἣλ ιέγνπζη ηὰο θπνύζαο

ἀλαζρίδνπζαλ ηὰ παηδία θαηεζζίεηλ ἢ νἵνηο ραίξεηλ θαζὶλ ἐλίνπο ηλ

ἀπεγξησκέλσλ πεξὶ ηὸλ Πόληνλ ηνὺο κὲλ ὠκνῖο ηνὺο δὲ ἀλζξώπσλ

θξέαζηλ ηνὺο δὲ ηὰ παηδία δαλείδεηλ ἀιιήινηο εἰο εὐσρίαλ ἢ ηὸ πεξὶ

Φάιαξηλ ιεγόκελνλ

Considero por ejemblo brutales disposiciones como la de la mujer de

quien se dice que hiende a las prentildeadas para comerse a los nintildeos o aqueacutellas

como las de algunos pueblos salvajes del Ponto que se complacen en comer

carne cruda o carne humana o se entregan unos a outros los nintildeos para los

banquetes o lo que se cuenta de Faacutelaris553

Todavia Ceacutesar buscou mais assimilar os galos aos romanos jaacute que ele se

preocupava em estabelecer uma relaccedilatildeo profunda entre Roma e essas naccedilotildees atraveacutes de

uma ocupaccedilatildeo militar Dessa maneira o autor deixou claro o propoacutesito poliacutetico de sua

553

―Considero por exemplo brut is s disposiccedilotildees como d mulher d qu l se diz que el cort s

graacutevidas para comer as crianccedilas ou aquelas como as de alguns povos selvagens do Ponto que se

comprazem em comer carne crua ou carne humana ou se entregam uns aos outros as crianccedilas para os

b nqueletes ou o que se cont de Faacutel ris Essa citaccedilatildeo de Aristoacuteteles foi retirada da traduccedilatildeo feita por

Bonet (ARISTOacuteTELES 1998 p 303)

229

obra os gauleses (em parte civilizados e assimilados) seriam abarcados no processo de

conquista jaacute os germanos exemplos maacuteximos de baacuterbaros natildeo entrariam nesse plano

de subjugaccedilatildeo554

Por isso ainda no livro VI Ceacutesar aprofundou as diferenccedilas entre

romanos (e gauleses) frente aos germanos Os germanos seriam mais baacuterbaros pelo fato

de que ao contraacuterio dos gauleses eles natildeo possuiacuterem ―druid s que presid m os ritos

religiosos nem pr tic m s crifiacutecios e ―tod su vid consiste em c ccedil d s e exerciacutecios

de praacutetic milit r555

Aleacutem disso eles ―natildeo pr tic v m gricultur nem possuiacute m

terr s proacutepri s 556

Passando agora a Liacutevio no Ab urbe condita o autor usou apenas a ferramenta da

alienaccedilatildeo ndash mesmo descrevendo diferentes naccedilotildees Isso se justifica pelo fato de que ele

buscou enfatizar que todos os outros povos seriam inimigos de Roma Evidentemente

em uma obra com forte propoacutesito nacionalista era isso que o puacuteblico esperava encontrar

nesse tipo de narrativa Na verdade Liacutevio natildeo teve um interesse em se aprofundar na

etnografia ou em explicar as caracteriacutesticas poliacutetico-culturais desses povos pela forte

caracteriacutestica moralista do historiador os inimigos de Roma sobretudo representavam

arqueacutetipos de viacutecios a serem evitados pelos cidadatildeos da Urbe557

Liacutevio por conseguinte

deixou claro que o que era mais importante em sua obra era analisar os feitos histoacutericos

e aconselhou

Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos

histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora

ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por

princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar558

Sobre Pliacutenio em suas anaacutelises sobre os gauleses ele natildeo se preocupou muito em

assimilar ou alienar esse povo e mais adiante veremos alguns exemplos disso De fato

ele mesmo disse em Historia naturalis que natildeo f l ri sobre ―os engenhos costumes

homens e povos vencidos pel liacutengu e pel lut 559

Pliacutenio se concentrou mais em

legitimar o imperialismo romano e criar uma identidade cultural que abarcasse a todos

os povos que faziam parte desse impeacuterio Outro fator que corrobora esse aspecto era

554

Para discussatildeo aprofundada sobre esse assunto cf p 147 555

BGall VI 21 p 144 556

BGall VI 22 p 145 Sobre a falta de agricultura como sinal de barbaacuterie ver tambeacutem a nota 159 na p

86 557

Cf p 158 e 159 sobre o papel moralizante da Ab urbe cond Quanto ao (mau) retrato que Liacutevio fez dos

gauleses jaacute mencionamos esses estereoacutetipos ao longo de todas as passagens jaacute citadas no subcapiacutetulo 35

Por tal motivo natildeo repetiremos aqui esses trechos 558

Cf sect10 p 158 em traduccedilatildeo de Oliva Neto 559

Ver HN III VI 42 na p 204 e 205

230

porque em sua eacutepoca as obras de etnografia eram de faacutecil acesso por isso ele natildeo visou

a reescrever sobre esse tema560

422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia

Nos trechos do corpus analisado encontramos alguns exemplos sobre como a

genealogia servia de ferramenta para a assimilaccedilatildeo (ou alienaccedilatildeo) dos celtas por parte

dos romanos Aleacutem disso como destaca Woolf (2011 p 41) mitos genealoacutegicos

serviam como um instrumento versaacutetil para relacionar grupos eacutetnicos bem como para

estabelecer uma certa hierarquia temporal entre eles Aleacutem disso a genealogia era usada

para relacionar esses grupos a histoacuterias de migraccedilatildeo em consideraacuteveis distacircncias Com

essas consideraccedilotildees em mente destacamos as seguintes passagens

Ceacutesar (BGall II 4) deixou claro que os belgas eram fortes porque descendiam

dos germanos

a maior parte dos belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo

atravessaram o Reno por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram

tendo expulsado os Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos

que pela lembranccedila dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram

os teutotildees e os cimbros de adentrar em seu territoacuterio

Vecirc-se acima que os belgas foram os uacutenicos que conseguiram impedir a invasatildeo

dos cimbros e teutotildees agraves suas terras Outra passagem emblemaacutetica sobre a importacircncia

da genealogia ndash e que mais uma vez destacamos ndash eacute o trecho sobre Pisatildeo Aquitano

(BGall IV 12) Ceacutesar justificou o fato de o gaulecircs ser aliado dos romanos ao escrever

que ―Pisatildeo Aquit no er n scido de import ntiacutessim f miacuteli cujo vocirc obtiver o

com ndo em su cid de e que for ch m do migolsquo por nosso sen do 561

O avocirc de

Pisatildeo muito provavelmente fora cidadatildeo romano ele proacuteprio pois recebeu essa alcunha

de ― migo pelo sen do d Urbe Aind eacute digno de not o proacuteprio nome Pisatildeo de

origem latina usado para designar esse indiviacuteduo muitas vezes os clientes e aliados dos

romanos adotavam o nome das famiacutelias que lhes favoreciam (BORNECQUE

MORNET 2002 p 84)

Em Liacutevio salientamos a genealogia de Beloveso e Segoveso sobrinhos do rei

Ambigato que foram enviados pelo tio para conquistar novos territoacuterios para os celtas

no episoacutedio em que Liacutevio escreveu sobre as migraccedilotildees dos galos para a Itaacutelia Em Ab

560

Sobre o papel poliacutetico e cultural da erudiccedilatildeo cf p 198 e 199 561

Cf p 125

231

urbe cond V 34 temos que Ambig to ―est ndo idoso e jaacute desej ndo livr r o reino de

uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso filhos da

sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes mostrariam por meio

de uguacuterios 562

Como pontua Woolf (2011 p 10) essa narrativa buscou conectar as

populaccedilotildees da Gaacutelia do norte da Itaacutelia e o Danuacutebio em uma eacutepoca em que os antigos

estudiosos concluiacuteram que celtas galos e gaacutelatas eram essencialmente povos com uma

mesma origem territorial ancestral563

Ciacutecero no Pro Fonteio (30) jaacute fizera essa ligaccedilatildeo

dos gaacutelatas (e os que saquearam Roma) como tendo sua origem na Gaacutelia

Essas satildeo as naccedilotildees que outrora partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute

Delfos para atacar e pilhar Apolo Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas

mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e

aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu nome os maiores dos nossos quiseram ter a

boa-feacute dos testemunhos

Dessa maneira o recurso da genealogia podia ser usado de forma versaacutetil para

explicar e relacionar grupos eacutetnicos da Gaacutelia dentre alguns exemplos os proacuteprios

gregos consideravam que os galos eram descendentes de um gigante chamado Keltos

outra variaacutevel atestava que esse povo teve sua origem com Heacuteracles na eacutepoca em que

ele passou por essa regiatildeo e se relacionou com a princesa de nome Celta564

423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia

Na Antiguidade a geografia desempenhava um importante papel para a

construccedilatildeo das imagens fiacutesicas e morais dos povos descritos por gregos e romanos565

Foi a partir do texto Ares aacuteguas e lugares atribuiacutedo a Hipoacutecrates (seacuteculo V aC) que

se fundamentou em detalhes a teoria de que as condiccedilotildees climaacuteticas e naturais de uma

regiatildeo determinavam o caraacuteter e compleiccedilatildeo fiacutesica dos seus habitantes De acordo com

esse pensamento quanto mais ameno o clima (como na Aacutesia) mais fraco e tranquilo o

povo se as circunstacircncias do ambiente fossem severas (como em certas aacutereas da

Europa) consequentemente os indiviacuteduos seriam mais fortes e corajosos Como lembra

Gruen (In BUGH 2006 p 295 e 296) para os antigos gregos o clima sozinho era

capaz de produzir diferenccedilas essenciais entre os proacuteprios gregos os europeus os citas

562

Cf p 163 563

Cf nota 84 sobre a explicaccedilatildeo dos gregos para o surgimento dos galos 564

Cf nota 84 565

Cf tambeacutem p 32 e 33 deste trabalho

232

os asiaacuteticos e outros povos566

O proacuteprio Hipoacutecrates (Aer XII 2 e 6) a respeito dos

asiaacuteticos registrou

Afirmo que a Aacutesia difere mais da Europa no que concerne agraves naturezas de

todas as coisas que brotam da terra e dos homens Pois na Aacutesia tudo eacute muito

mais belo e maior essa regiatildeo eacute mais doacutecil e os caracteres dos homens mais

amenos e mais afaacuteveis A causa disso eacute a mistura das estaccedilotildees porque a Aacutesia

fica em meio aos levantes do Sol voltada para a aurora e mais aleacutem do frio

() Eacute normal que essa regiatildeo esteja muito proacutexima da primavera conforme a

natureza e moderaccedilatildeo das estaccedilotildees Natildeo seria possiacutevel que a virilidade a

vivacidade o gosto pelo esforccedilo e o caraacuteter resoluto estivessem contidos em

tal natureza567

Quanto aos europeus temos (Aer XXIII 1-3)

A outra estirpe a que se situa na Europa eacute muito diversificada entre si tanto

no que concerne agrave estatura quanto no que diz respeito agrave compleiccedilatildeo Isso por

causa das mudanccedilas das estaccedilotildees que satildeo grandes e frequentes do forte calor

do sol aleacutem dos invernos rigorosos das chuvas abundantes e de forma

inversa das estiagens prolongadas e dos ventos ndash nos quais as mudanccedilas satildeo

numerosas e diversificadas () O mesmo raciociacutenio se aplica aos caracteres

O caraacuteter selvagem indoacutecil e indomaacutevel existe numa natureza como essa

Pois os golpes frequentes no espiacuterito implantam a selvageria e destroem a

docilidade e a amenidade Por isso considero que os habitantes da Europa

satildeo mais animosos do que os da Aacutesia pois em climas quase iguais haacute

indolecircncia em climas que se modificam haacute a vivacidade no corpo e na alma

e a partir da tranquilidade e da indolecircncia aumenta a covardia a partir da

vivacidade e dos esforccedilos aumenta a virilidade568

Considerando os dois excertos acima de Hipoacutecrates remetemos a Tito Liacutevio

que usou esses mesmos argumentos para caracterizar (e depreciar) os galos Em Ab urbe

cond V 48 o autor disse

() tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois eles fizeram seu

acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as colinas esse lugar

era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de vapor tambeacutem a cinza e

o poacute com qualquer movimento do vento se levantavam Esse povo era muito

intolerante a isso pois estava acostumado agrave umidade e ao frio abalados por

esse calor e tormento eles morriam como gado quando se espalhavam as

doenccedilas

Do mesmo modo encontramos na geografia a justificativa que Liacutevio usou para

explicar por que os gaacutelatas eram mais fracos que os galos jaacute que eles emigraram para a

566

Aleacutem de Gruen Borca (p 42 e ss) fala bastante sobre como os gregos compreendiam o mundo e

explica detalhadamente a teoria hipocraacutetica em relaccedilatildeo aos modos e caraacuteter dos indiviacuteduos que habitavam

aacutereas especiacuteficas do mundo entatildeo conhecido 567

Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 103-104) 568

Traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 110-111)

233

Aacutesi Menor Assim ele escreveu ―ness eacutepoc os nossos ncestr is tiver m cont to com

gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de agora estatildeo degenerados

miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos 569

No mesmo trecho Liacutevio

afirmou que os gauleses amoleceram ao se estabelecerem em um territoacuterio tatildeo propiacutecio

e ssim descreveu ess regiatildeo ―ess terr que produz um f rtur de tod s s cois s

acolheu esses homens endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo

feacutertil com ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham

qu ndo cheg r m se br ndou Por fim ind nesse c piacutetulo Liacutevio deixou registr do o

lert ―esses pr zeres estr ngeiros t nto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o

mesmo pode ocorrer tr veacutes do cont to com os haacutebitos e costumes dos vizinhos

Sobre essa teoria da geografia influir na constituiccedilatildeo fiacutesica e moral de um grupo

de indiviacuteduos o ponto de vista de Liacutevio a esse respeito era muito estrito ele como

historiador que visava exaltar Roma apenas considerava a influecircncia do meio

geograacutefico em termos de consequecircncias morais que essencialmente determinavam o

valor guerreiro (no caso o dos romanos objeto de sua glorificaccedilatildeo) ou a falta de

coragem de um grupo que em Ab urbe Condita pode ser resumido a todos os que natildeo

eram romanos (GIROD 1982 p 1223)

Embora a teoria geograacutefica tenha entrado em voga no seacuteculo V aC ela passou a

ter contornos poliacuteticos mais niacutetidos com Aristoacuteteles Na Poliacutetica (1327b) o Estagirita

especifica que os gregos beneficiaacuterios de um clima equilibrado entre estaccedilotildees amenas e

duras eram superiores aos outros povos da Europa que mesmo sendo fortes para

suportar climas desfavoraacuteveis eram estuacutepidos e incapazes de governarem a si mesmos

Dessa maneira Aristoacuteteles justificava o domiacutenio dos gregos sobre as outras naccedilotildees

alegando que eles eram os mais capacitados para governar Posteriormente os romanos

pelo menos nos textos literaacuterios utilizaram-se desse argumento para justificar sua

postura imperialista Nesse contexto selecionamos certos trechos de Ceacutesar que

consideram o gaulecircs por esse prisma O autor justificou o fato de que belgas eram os

mais corajosos da Gaacutelia pois aleacutem de estarem mais distantes de Roma eles se

encontravam mais proacuteximos aos germanos com os quais lutavam constantemente em I

1

569

Ab urbe cond XXXVIII 17 cf Trecho completo na p 189 a 191 Vecirc-se tambeacutem certo aspecto

genealoacutegico pois os galos se enfraqueceram tambeacutem pela miscigenaccedilatildeo com os gregos

234

de todos esses os mais corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da

civilizaccedilatildeo e urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e

importam aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque

estatildeo proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com

esses travam guerra constantemente

Pela mesma razatildeo os helveacutecios se destacavam em termos de bravura ―os

helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em coragem jaacute que lutam em

combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer quando os afastam de suas fronteiras

quer qu ndo lev m por si guerr os territoacuterios d queles (BGall I 1) Outro fator

geograacutefico que serviu para enfraquecer os gauleses foi a proximidade com a proviacutencia

da Gaacutelia Cisalpina e a influecircncia da humanitas como visto no trecho acima e que

tambeacutem aparece novamente em BGall VI 24

a proximidade das proviacutencias e o conhecimento dos itens de aleacutem mar

propiciam aos gauleses muitos meios para a fartura e a comodidade e aos

poucos acostumados a serem superados e vencidos em muitos combates

sequer se comparam eles proacuteprios aos germanos em bravura

Pelos excertos acima percebemos que em Ceacutesar a superioridade de uma naccedilatildeo

sobre a outra (ou o seu enfraquecimento) se dava por questotildees geograacuteficas

semelhantes aos argumentos defendidos por Aristoacuteteles e mencionados no paraacutegrafo

anterior Nos exemplos acima os belgas foram descritos como superiores aos outros

galos porque viviam mais perto das fronteiras da Germacircnia e do seu clima (e povo)

hostil Curioso notar que Liacutevio considerava a proximidade com os povos da Aacutesia

Menor como fator de enfraquecimento dos galos pois a Aacutesia era muito agradaacutevel em

termos climaacuteticos Ceacutesar ao contraacuterio fazia uma afirmaccedilatildeo bem diferente e que pode

nos soar contraditoacuteria para o general os gauleses se amoleciam devido agrave sua

proximidade com Roma como mencionamos acima

Quanto a Pliacutenio ainda sobre o quesito da boa reputaccedilatildeo de um lugar e seus

habitantes como sendo diretamente proporcional agraves benesses geograacuteficas e climaacuteticas

ele escreveu que a Narbonense na verdade deveria ser considerada como parte da

proacutepri Itaacuteli ―devido agrave cultur dos seus c mpos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e

pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada

proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci 570

O elogio agrave Itaacutelia em Historia

570

HN III 5 31 p 201 Outro fator que explica o por quecirc de Pliacutenio ter escrito isso foi o fato de ele

mesmo ter nascido em Como que antes estava localizada na Gaacutelia Cisalpina e soacute recebeu a cidadania

romana no seacuteculo I aC

235

naturalis pelo mesmo motivo tambeacutem eacute muito significativo os romanos se

sobressaiacuteam aos outros povos pois segundo Pliacutenio eles habitavam no melhor lugar do

mundo conhecido ateacute entatildeo (HN III VI 41)

De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene grande equiliacutebrio do

clima campos muito feacuterteis colinas bastante ensolaradas bosques bastante

intactos muitas florestas sombreadas inuacutemeros tipos generosos de matas

vaacuterios ventos dos montes enorme fertilidade de frutos das videiras e das

oliveiras tatildeo nobres velos dos animais muitas nucas gordas de touros tantos

lagos tamanha abundacircncia de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia

tantos mares portos e o seio das terras que se abre ao comeacutercio por todos os

lados e que avanccedila de tal forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios

mares

Pliacutenio natildeo se preocupou tanto com a etnografia de fato em obras do gecircnero

enciclopeacutedico (assim como a Biblioteca de Diodoro) a geografia se sobrepunha agrave

investigaccedilatildeo etnograacutefica Por esse motivo era comum o esquema organizacional de

descriccedilotildees geograacuteficas como periplum571

uma vez que isso minimizava as mudanccedilas de

ordem cultural ou poliacuteticas tudo estava subordinado agrave geografia inclusive a proacutepria

etnografia (WOOLF 2011 p 11) Por essa razatildeo encontramos mais exemplos da

geografia relacionados agrave etnografia em Ceacutesar e Liacutevio do que em Pliacutenio

43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade

Dando sequecircncia agraves nossas anaacutelises retoacutericas passaremos ao uacuteltimo toacutepico

instrumental da construccedilatildeo da imagem do gaulecircs no corpus escolhido que se deu

atraveacutes de vocabulaacuterio e figuras de linguagem recorrentes

431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio

Ao longo deste trabalho estudamos alguns termos muito usados pelos romanos

para se referirem aos gauleses Veremos entatildeo como eles aparecem nos textos de

Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e como estatildeo de acordo com as normas dos gecircneros de

composiccedilatildeo de cada uma dessas narrativas

Os eacutetimos mais significativos que surgiram foram baacuterbaro e feroz Em Ceacutesar

esses vocaacutebulos apareceram para dois tipos de designaccedilotildees Sobre os germanos o

571

Sobre o periplum cf nota 442

236

gener l se referiu eles como sendo ―baacuterb ros e ferozes p r centu r que ess n ccedilatildeo

era mais selvagem do que os galos572

No outros excertos estudados de Ceacutesar a respeito

dos povos da Gaacutelia o baacuterbaro natildeo foi utilizado mas feroz sim Esse termo apareceu

exclusivamente para denominar os belgas natildeo sendo usado para nenhuma outra naccedilatildeo

da Gaacutelia Vimos que em BGall II 15 o autor se referiu aos neacutervios (uma naccedilatildeo belga)

como sendo ―homens ferozes e de gr nde virtude que censuravam e acusavam os

belgas restantes que tinham se rendido ao povo romano e abandonado os valores

paacutetrios 573

Essa denominaccedilatildeo se justificava em Ceacutesar porque de acordo com ele os

belgas seriam descendentes dos germanos aleacutem disso eles estavam mais distantes da

proviacutencia e da influecircncia civilizatoacuteria de Roma574

No caso dos neacutervios eles

consideravam que as outras naccedilotildees da Beacutelgica tinham se rendido aos romanos e perdido

seus valores paacutetrios como citado acima Os belgas contudo natildeo foram chamados de

baacuterbaros por Ceacutesar pois ele queria deixar clara a diferenciaccedilatildeo dos graus de barbaacuterie

entre galos e germanos mesmo sendo os mais corajosos da Gaacutelia os belgas tambeacutem

seriam submetidos a Roma Jaacute os germanos exemplo de ferocitas primitiva em Ceacutesar

natildeo estavam nos planos de conquista do general575

Mais uma vez fica evidente o caraacuteter

poliacutetico do De bello Gallico

Nas passagens estudadas de Liacutevio o termo baacuterbaro apareceu apenas para

designar os galos no sentido de povo estrangeiro substituindo o proacuteprio eacutetimo gaulecircs

Um exemplo disso estaacute em Ab urbe cond V 36 no episoacutedio em que os galos se

queixam do comportamento desrespeitoso dos Faacutebios que mesmo no papel de

emissaacuterios mataram o liacuteder dos gauleses Assim lemos ―os emissaacuterios dos g uleses

comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a accedilatildeo dos

Faacutebios e eles reconhecer m como sendo justo o pedido dos baacuterb ros 576

O proacuteprio

senado considerou que a postura dos Faacutebios foi indigna

De modo semelhante em V 38 (no qual haacute a narraccedilatildeo da vitoacuteria dos galos sobre

os rom nos proacuteximo o Aacuteli ) Liacutevio escreveu que ― teacute esse ponto natildeo pen s sorte

m s t mbeacutem inteligecircnci est v com os baacuterb ros 577

Em V 39 que trata do cerco a

572

Cf BGall I31 (p 103-105) e BGall I33 (p 134) 573

Cf p 131 574

Cf BGall I 1 em que Ceacutesar afirmou que os belgas eram os mais corajosos dentre os gauleses (p 129

e tambeacutem p 234) Sobre a ferocidade de germanos e gauleses ver p 143-145 575

Cf p 228 e 229 576

Ver p 167 577

Cf p 171

237

Rom os h bit ntes d Urbe ―logo ouvir m os gritos e uivos dissonantes dos baacuterbaros

que em b ndos per mbul v m em volt d s mur lh s 578

Jaacute o termo feroz em Ab urbe condita possui um emprego diferente mais do que

mera denominaccedilatildeo para os gauleses esse vocaacutebulo foi usado especialmente com o

sentido adverbial para ressaltar o mau comportamento dos galos579

Assim no episoacutedio

(V 36) em que os Faacutebios perguntaram aos galos qual interesse que eles tinham na

Etruacuteri eles responder m ―ferozmente que tinh m o direito tr veacutes d s rm s e tudo

pertenci os homens m is fortes n sequecircnci do mesmo trecho Liacutevio escreveu que

Quinto Faacutebio m tou o liacuteder dos g uleses que ―ferozmente se l nccedil v contr os

est nd rtes dos etruscos 580

Jaacute em V 37 Liacutevio descreveu a marcha dos gauleses ateacute

Rom dizendo ―jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e

esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com

horrendo cl mor 581

No trecho de Ab urbe cond VII 10 que descreveu o episoacutedio da

vitoacuteria de Macircnlio em um combate individual Liacutevio escreveu que o gaulecircs saltitava feroz

―di nte dos est nd rtes dos inimigos 582

Apenas em XXXVIII 17 atraveacutes do discurso

de Macircnlio p r os rom nos Liacutevio se referiu os g los como ―ess feroz n ccedilatildeo p r

acentuar que os gauleses outrora selvagens perderam muito do seu valor em guerra ao

emigrarem para a Aacutesia Menor miscigenando-se com os gregos e amolecendo os acircnimos

devido ao clima ameno e vizinhos paciacuteficos583

Por conseguinte com esse uso do

vocabulaacuterio Liacutevio buscou ressaltar o povo gaulecircs como inimigo de Roma

Sobre esses termos recorrentes para descreverem uma naccedilatildeo (como baacuterbaro

feroz dentre outros)584

percebemos que eles funcionavam como marcos colocados na

narrativa de modo que o puacuteblico imediatamente reconhecesse e identificasse o povo

descrito pelo autor do texto Como Rankin (1996 p 127) pontua esses termos-chave

usados repetidamente funcionavam na prosa quase como os epiacutetetos empregados na

eacutepica585

Em Ceacutesar um exemplo do uso de vocabulaacuterio que se aproximou da eacutepica pode

ser encontrado na caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo Aquitano586

Em Liacutevio natildeo soacute o uso de

578

P 173 579

De fato o termo feroz em latim relacionava-se a fera ou seja era um eacutetimo que designava um

comportamento primitivo natildeo-civilizado selvagem Cf tambeacutem p 40 para mais detalhes 580

Ver p 167 581

p 169 582

Cf p 182 583

p189-191 584

Aprofundaremos o estudo sobre os gauleses descritos como voluacuteveis altos (dentre outros

estereoacutetipos) no proacuteximo subcapiacutetulo que fala das figuras de linguagem 585

Sobre epiacutetetos e sua funccedilatildeo na eacutepica cf Almeida (2012 p 48 e ss) 586

Ver p 125

238

vocabulaacuterio mas toda a Ab urbe condita de modo geral pode ser entendida como uma

espeacutecie de eacutepica nacional587

A respeito de Pliacutenio ele natildeo empregou os termos baacuterbaro ou feroz para os

gauleses isso se justificava pelo fato de que em sua eacutepoca a Gaacutelia jaacute era uma proviacutencia

romana estabelecida e pacificada Natildeo fazia sentido Pliacutenio reescrever sobre a barbaacuterie

dos antigos galos jaacute que as fontes sobre esse tema eram acessiacuteveis ao puacuteblico de seu

tempo O seu interesse etnograacutefico por isso concentrou-se nos povos mais distantes e

que habitavam as fronteiras do mundo conhecido como por exemplo os indianos e os

etiacuteopes grandes exemplos de exotismo588

432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem

Apoacutes a anaacutelise do vocabulaacuterio passaremos agora ao estudo das imagens

cristalizadas dos gauleses que foram mais recorrentes nos trechos do corpus deste

trabalho para tanto utilizamos como referecircncia algumas das imagens citadas na

Retoacuterica a Herecircnio589

Mais do que anaacutelise dessas figuras tambeacutem levaremos em conta

outros fatores textuais utilizados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para a caracterizaccedilatildeo dos

galos como os argumentos e imagens empregados que podem ser inseridos na inuentio

(invenccedilatildeo) retoacuterica A primeira imagem que destacamos eacute a do gaulecircs retratado como

covarde e que facilmente fugia quando percebia que estava em desvantagem Ceacutesar no

episoacutedio da morte de Pisatildeo Aquitano disse que os germanos aterrorizaram os gauleses a

t l ponto que ―eles natildeo cess r m de fugir teacute virem agrave presenccedil de noss trop 590

Liacutevio

escreveu algo parecido no capiacutetulo da descriccedilatildeo da luta entre Valeacuterio e um gaulecircs Apoacutes

o confronto individual romanos e galos se enfrentaram mesmo com um iacutempeto inicial

de ataque os galos r pid mente desistir m do comb te Assim temos ―entre os que

avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os outros o embate foi atroz o resto da

multidatildeo ntes que pudesse l nccedil r os d rdos virou s cost s 591

Fica evidente na perspectiva analisada que os celtas embora movidos por uma

ira inicial facilmente abandonavam essa bravura Outro exemplo disso estaacute tambeacutem no

discurso de Macircnlio os rom nos em que ele diz que ―se resistirmos o primeiro t que

587

Cf p 158 e159 588

Cf p 199 e 200 589

Para todas as figuras de linguagem descritas nesse tratado cf IV 19 e ss 590

BGall IV 12 p 125 591

VII 26 p 186 e 187

239

que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se enfraquecem e

s rm s c em devido o suor e agrave f dig 592

Ainda achamos outro exemplo dessa

inconstacircncia dos gauleses tambeacutem citada por Macircnlio nesse mesmo discurso ele disse

que os rom nos jaacute est v m ―f mili riz dos com esses tumultos gaacutelicos e que t mbeacutem

conheci m ― s inconstacircnci s (uanitates) deles 593

Liacutevio adotou bastante essa imagem

do gaulecircs desordeiro e barulhento ao longo do Ab urbe condita De fato esse povo

demonstrava na narrativa um comportamento cecircnico na forma de agir para causar ainda

mais terror nos inimigos594

Encontramos exemplo disso em Ab urbe condV 37

Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as comunidades

aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a fuga com

grande clamor eles anunci v m ―v mos Rom Por onde quer que

passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e tropas se

espalhando em comprimento e largura () Jaacute todos os locais em frente e ao

redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com

canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor

No trecho acima percebemos a figura de linguaguem da acumulaccedilatildeo ndash no caso

das accedilotildees que vatildeo se sucedendo os celtas ocuparam enorme lugar com a sua fileira e

depois que preencheram todos os locais pela frente e pelos lados passaram a gritar para

aumentar o terror Igualmente em Ab urbe cond V 38 Liacutevio narrou o terror por parte

dos romanos

No exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem

junto aos comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os

acircnimos de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior

parte deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os

retivesse) e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas

e filhos Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra

linha de batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos

que estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que

sem nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram

um combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e

ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram

impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo

Na passagem anterior haacute a figura da gradaccedilatildeo de ideias que transmitem ao

puacuteblico-alvo como o pavor dos romanos na batalha foi paulatinamente aumentando

primeiro Liacutevio escreveu que os romanos natildeo pareciam com os proacuteprios romanos em

592

XXXVIII 17 p 191 593

Mesma passagem da nota acima 594

Diodoro Siacuteculo tambeacutem falou sobre esse tumulto causado pelos gauleses (Bibl V 30 3)

240

seguida uma parte dos soldados apavorada fugiu e tomou o caminho errado que levava

a Veios (e natildeo a Roma) Depois a tropa reserva por pouco tempo conseguiu resistir

mas ao ouvir o grito dos gauleses e sem sequer ver os inimigos de fato tambeacutem

debandou O aacutepice dessa gradaccedilatildeo estaacute ao final no qual temos que os romanos

morreram natildeo pelo combate em si mas sim pela bagunccedila desordenada e pela briga da

proacutepria multidatildeo dos soldados no desespero da fuga Por fim citamos Ab urbe cond

XXXVIII 17 um exemplo de como os galos provocavam terror

Eles possuem corpos enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e

espadas muito longas Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos

que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas

nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para

causar terror 595

Acima um outro exemplo de acumulaccedilatildeo aleacutem de sua imponente forma fiacutesica

os gauleses tambeacutem causavam pacircnico pelo seu modo de agir cantando gritando e

fazendo barulho com as armas

Outro elemento que comumente caracterizava o gaulecircs no corpus analisado era

sua leviandade Ceacutesar escreveu que eles eram voluacuteveis e tomavam decisotildees baseados

em rumores em IV 5

Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses

que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees

considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume

gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar

saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas

cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o

que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os

gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute

forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior

parte mente ao responder segundo a vontade deles

Em outra passagem Ceacutesar afirmou que os gauleses natildeo eram confiaacuteveis mas

sim gananciosos e levianos por causa dessa ganacircncia eles inclusive desrespeitaram a

garantia dada ao tribuno Marco Ariacutestio e atacaram os cidadatildeos romanos como se lecirc em

BGall VII 42

Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido

os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para

verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que

eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram

595

Essa imagem do gaulecircs aterrorizante apareceu em Diodoro (Bibl V 31 1)

241

qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos

romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a

fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-

se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio

tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias obrigam

a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar Logo os

atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam dia e noite

os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam maior

multidatildeo agraves armas

Um outro exemplo dessa ganacircncia dos galos pode ser tambeacutem encontrado em

Liacutevio no episoacutedio em que os gauleses ao receberem o butim dos romanos apoacutes o saque

da Urbe trouxeram uma balanccedila injusta Em Ab urbe condita V 48 temos

Logo na conferecircncia entre Q Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos

gauleses arranjou-se um acordo foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao

povo que em breve haveria de governar as naccedilotildees Uma indignidade foi

acrescida a essa determinaccedilatildeo bastante vergonhosa pois a balanccedila que os

gauleses trouxeram era injusta Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs

insolente adicionou a espada ao peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os

rom nos dizer ― i dos vencidos

O comportamento do gaulecircs contra Tito Macircnlio no confronto narrado em Ab

urbe cond VII 10 tambeacutem foi insensato jaacute que o oponente de Macircnlio antes de lutar

saltitava feroz diante dos estandartes estava insensatamente feliz e mostrava a liacutengua

em escaacuternio demonstrando um comportamento temeraacuterio de quem jaacute tinha vencido a

luta596

apesar de tudo isso ele foi rapidamente derrotado pelo romano597

Em Liacutevio

essa ferocidade cega e inuacutetil do gaulecircs se contrapunha agrave astuacutecia e sangue-frio do

rom no como disse Macircnlio no discurso os rom nos ―de f to Tito Macircnlio e M rco

Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana (Romana uirtus) se sobressaiacutea agrave fuacuteria

gaulesa (Gallicam rabiem)598

Nos escritos de Ceacutesar e Liacutevio notamos que algumas vezes os galos eram

movidos por certas maacutes tendecircncias natas e por isso difiacuteceis de serem dominadas No

BGall VII 42 lemos ― cobiccedil (auaritia) impele alguns a outros a ira (iracundia) e a

temeridade (temeritas) que eacute especi lmente in t ness espeacutecie de homens 599

Jaacute Liacutevio

disse que os g los ―qu ndo souber m que for concedid t l honr os viol dores do

direito das naccedilotildees e aleacutem disso ter sido frustrada a sua embaixada inflamados pela ira

596

Em Diodoro (Biblioteca V 29 2 e 3) o apareceu o caraacuteter fanfarratildeo dos gauleses bem como o haacutebito

de um deles se adiantar para propor um confronto individual com o inimigo 597

Cf p 182 e 183 598

XXXVIII 17 p 189 e 191 599

Cf trecho completo a partir da paacutegina anterior

242

(que esse povo eacute incapaz de controlar) imediatamente tomaram os estandartes e

m rch r m pelo c minho com fileir press d 600

Outro exemplo de comportamento considerado baacuterbaro dos galos estaacute em Liacutevio

que disse em XXXIII 24

Os boios exultantes levaram ateacute o templo que era muito sagrado entre eles

os despojos do corpo e a cabeccedila decepada do general Entatildeo apoacutes limparem a

cabeccedila como era o costume deles ornaram o cracircnio com ouro que para eles

passou a ser um recipiente sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas

solenidades e o mesmo serviria de copo para os sacerdotes do templo 601

Os gauleses igualmente eram preocupados com sua religiatildeo Ceacutesar (BGall VI

16) disse ―tod n ccedilatildeo dos g uleses eacute muito d d os escruacutepulos religiosos 602

Liacutevio

no episoacutedio em que conta a travessia dos Alpes feita pelos galos (Ab urbe cond V 34)

escreveu que natildeo soacute a altura das montanhas os retinha mas tambeacutem a religiatildeo na

verdade eles ajudaram os marselheses contra os saacutelvios e igualmente fundaram Milatildeo

seguindo pressaacutegios603

A respeito da aparecircncia fiacutesica dos gauleses era comum eles serem descritos

como enormes e fortes Essas descriccedilotildees dos galos se encaixam na figura da hipeacuterbole

de fato as caracteriacutesticas fiacutesicas (e ateacute comportamentais) dos galos satildeo bastante

exageradas a fim de enfatizar esse caraacuteter baacuterbaro e que inspirava terror nos outros Por

isso eles eram comumente descritos como possuidores de corpos imensos de grande

estatura etc604

Liacutevio (VII 10) ao contar o confronto entre Macircnlio e um galo descreveu

esse uacuteltimo como possuidor de um corpo ―notaacutevel pelo t m nho respl ndecente em

um veste multicolorid de vaacuterios tons e com rm s orn d s de ouro 605

Era recorrente

a representaccedilatildeo de os gauleses lutarem usando ornamentos de ouro e vestes coloridas e

chamativas606

Outra passagem que destacamos a esse respeito estaacute tambeacutem no Ab urbe

cond XXXVIII 17 em que os g uleses for m descritos por Liacutevio como tendo ―corpos

600

Ab urbe cond V 37 p 169 601

Capiacutetulo completo na p 188 e 189 Sobre o costume de se guardar cabeccedilas como trofeacuteus cf Diodoro

(Bibl V 29 5) e Estrabatildeo (parafraseando Posidocircnio) em Geog IV 4 5 (p 85 e 86 desse trabalho) 602

P 141 603

p 163 e 164 604

Esse estereoacutetipo do gaulecircs de grande estatura tambeacutem apareceu em Poliacutebio (Histoacuterias II 15 7 na p

49) Diodoro (Biblioteca V 28 1 na p 82) e Estrabatildeo (Geog IV 4 2 na p 85) 605

Cf p 183 606

Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) falou natildeo soacute do fato de os gauleses gostarem de andar cobertos de ouro

mas ainda sobre seu caraacuteter fanfarratildeo

243

enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito long s 607

Pliacutenio

utilizando-se do relato de Liacutevio sobre a luta de Torquato (que recebeu esse nome ao

pegar o colar de ouro do gaulecircs derrotado) afirmou (HN XXXIII V 14) ―como

indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar us ndo ouro

44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz

Falaremos agora da arqueologia enquanto elemento paratextual desta pesquisa

O recorte temporal seraacute o mesmo adotado ateacute aqui isto eacute de meados do seacuteculo II aC

(quando temos relatos mais consistentes sobre as naccedilotildees da Gaacutelia) ao seacuteculo I dC

Como pontua Dyson (In ERSKINE 2009 p 61) a arqueologia eacute a ferramenta central

nos estudos da Antiguidade que possibilita ampliar confirmar ou refutar informaccedilotildees

fornecidas por fontes textuais limitadas ou cuja veracidade era muito discutida Dessa

maneira nos seraacute possiacutevel entatildeo vislumbrar como se organizava a Gaacutelia e entender o

que a arqueologia traz que complementa as discussotildees textuais e literaacuterias que

realizamos ao longo desta tese608

O conceito de celta era bastante abrangente servia para designar os habitantes da

Gaacutelia os da Britacircnia (atual Inglaterra) da atual Irlanda bem como englobava os que

viviam na Ibeacuteria (os celtiberos) e ainda os gaacutelatas na Aacutesia Menor (tambeacutem chamados

de galo-gregos) Pelas vaacuterias regiotildees acima percebemos que os limites geograacuteficos dos

celtas eram fluidos heterogecircneos e em constantes mudanccedilas aleacutem das aacutereas

supracitadas os celtas chegaram a habitar desde a antiga Hispacircnia ateacute o atual norte da

Itaacutelia As fronteiras ao norte satildeo ainda mais incertas chegando agraves atuais Alemanha e

Holanda e possivelmente aleacutem (WITT IN ERSKINE 2009 p 287) Neste trabalho

607

P 184 e 185 Sobre gauleses com cabelos longos ver Diodoro (Bibl V 28 1) na p 82 deste trabalho

e Estrabatildeo (Geog IV 4 3) 608

Aqui consideramos como Gaacutelia o territoacuterio que compreende a atual Franccedila Beacutelgica e Suiacuteccedila ateacute as

fronteiras do rio Reno que desde Ceacutesar era o marco do limite do territoacuterio romano Para estudo mais

profundo e abrangente sobre os povos da Europa ocidental recomendamos o livro de Wells The

Barbarians speak (1999) Nessa obra o pesquisador tem por objetivo abordar os povos nativos da Europa

de clima temperado e as suas experiecircncias indo do final da Idade do Bronze (cerca de 1200 aC) e se

concentrando especialmente durante as conquistas romanas e os seacuteculos de dominaccedilatildeo imperial Ao

analisar restos arqueoloacutegicos eacute possiacutevel entender como essas comunidades lidaram com as incursotildees

romanas e como elas mesmas se acomodaram em novas estruturas sociais poliacuteticas e culturais a partir do

novo domiacutenio

244

quanto agrave geografia concentramos nossos estudos nos celtas da Gaacutelia devido ao material

que vimos nas fontes claacutessicas e no corpus aqui analisado609

Em termos temporais os primoacuterdios da histoacuteria dos celtas remontam agrave Idade do

Ferro O periacuteodo mais antigo chamado pelos estudiosos de Hallstatt compreende o

intervalo entre os seacuteculos VII a meados do seacuteculo V aC O termo Hallstatt serve

igualmente para designar o estilo artiacutestico e a cultura eacutetnica arqueoloacutegica e social dessa

eacutepoca O periacuteodo seguinte apoacutes cerca de 450 aC ateacute a conquista romana eacute chamado de

La Tegravene e tambeacutem serve para nomear o estilo de arte e a cultura dessa fase610

O

periacuteodo final do La Tegravene coincide com os relatos do seacuteculo II aC (como Poliacutebio e

Catatildeo o Censor) Dessa maneira jaacute em meados do seacuteculo II aC a arqueologia revela

habitaccedilotildees em fazendas vilas centros de comeacutercio complexos de mineraccedilatildeo e os

oppida611

Esses oppida (assim nomeados por Ceacutesar) consistiam em cidades fortificadas

com muralhas e satildeo considerados os primeiros assentamentos urbanos do La Tegravene

situavam-se no topo de colinas e aleacutem disso eram centros de comeacutercio Os oppida

podem ser encontrados no territoacuterio da atual Franccedila central ateacute o Danuacutebio no oeste da

Eslovaacutequia alguns exemplos de oppida da antiga Gaacutelia citados em Ceacutesar satildeo Avaacuterico

Aleacutesia Luteacutecia e Bibracte (WELLS 1999 p 50)612

As sociedades do tardio periacuteodo La Tegravene na Gaacutelia praticavam agricultura e

pastoreio aleacutem de jaacute adquirirem bens oriundos das regiotildees Mediterracircneas seja por via

do comeacutercio seja por via de invasotildees Haacute registros de vasos de bronze coral tirreno

acircmbar baacuteltico marfim da Aacutefrica corantes do Oriente proacuteximo aleacutem de achados da Ciacutetia

e da Traacutecia em troca os celtas forneciam sal carne seca peles tecircxteis madeira mel e

escravos (WITT IN ERSKINE 2009 p 293) Sobre a produccedilatildeo tecircxtil muitos

assentamentos tecircm evidecircncias de tecelagem sofisticada trajes de latilde e linho foram

encontrados em vaacuterios siacutetios (no norte da Alemanha Dinamarca assentamentos perto

609

Sobre todo o conjunto das naccedilotildees ceacutelticas acima citadas faz-se necessaacuterio citar a monumental obra

The Celtic world (2007) editada em 4 volumes por Karl e Stifter que trata dos celtas desde os seus

primoacuterdios na Idade do Ferro ateacute o periacuteodo medieval Assim cada volume eacute dedicado a um ramo

especiacutefico de estudo como a teoria dos estudos ceacutelticos a arqueologia a histoacuteria e a linguiacutestica 610

O nome Hallstatt se deve a uma cidade homocircnima na Aacuteustria onde se encontram dois siacutetios

arqueoloacutegicos importantes uma mina de sal e um cemiteacuterio da eacutepoca da virada da Idade do Bronze para a

do Ferro O Hallstatt enquanto estilo englobava entatildeo o territoacuterio onde hoje estatildeo a Aacuteustria a Alemanha

a Franccedila o norte da Itaacutelia Suiacuteccedila ateacute o Danuacutebio na Hungria Jaacute o periacuteodo conhecido por La Tegravene tem esse

nome por causa de um siacutetio homocircnimo agraves margens do lago Neuchacirctel na Suiacuteccedila O estilo La Tegravene

desenvolveu-se a partir do Hallstatt (abrangendo as mesmas aacutereas) com influecircncia da cultura

mediterracircnea devido aos primeiros contatos que os povos dessas regiotildees tiveram com os gregos no seacuteculo

V aC Para mais detalhes dessas divisotildees cf Witt (IN ERSKINE 2009 p 287-292) 611

Do latim oppidum (oppida no neutro plural) significava cidade fortificada ou fortaleza como esse

termo eacute usado ateacute hoje para designar essas cidades preferimos natildeo traduzir esse vocaacutebulo 612

Para maior aprofundamento sobre os oppida cf Wells (1999 p 49-53) e Woolf (2003 p 107-112)

245

de lagos na Suiacuteccedila em paiacuteses que circundam os Alpes nas minas de sal de Hallstatt e

Hallein na Aacuteustria) onde condiccedilotildees quiacutemicas natildeo usuais resultaram na preservaccedilatildeo das

fibras orgacircnicas que se mantiveram em oacutetimas condiccedilotildees de preservaccedilatildeo (WELLS

1999 p 58 e 59) Ao ler essa informaccedilatildeo nos vem na lembranccedila o comentaacuterio sobre a

latilde feito por Pliacutenio que disse que na Gaacutelia havia um processo proacuteprio de trabalhar a latilde

aleacutem de mencionar como era feito o resistente feltro e o fato de os restos da latilde serem

usados como enchimento de colchotildees (HN VIII 192)613

Quanto ao comeacutercio com o

Mediterracircneo o vinho jaacute era comercializado na Gaacutelia antes do domiacutenio romano ndash desde

o comeccedilo do seacuteculo II aC especialmente com as cidades helecircnicas e posteriormente a

partir das proviacutencias romanas ao norte da Itaacutelia (WOOLF 203 p 175-179) Outros

achados foram a ceracircmica da Campacircnia e artigos de mesa feitos em bronze Apoacutes a

conquista romana passaram a ser encontradas acircnforas de azeite e molho da Hispacircnia e

percebe-se que a produccedilatildeo de vinho na proacutepria Gaacutelia (e da Hispacircnia tambeacutem) tem mais

circulaccedilatildeo do que os vinhos que antes vinham da Itaacutelia614

Em termos de organizaccedilatildeo social as primeiras comunidades celtas eram

entendid s como ―domiacutenios dos chefes ou sej naacutelog s os basileis de Homero ou ao

feudalismo medieval Natildeo haacute duacutevida de que essas sociedades eram extremamente

hierarquizadas mas a simples oposiccedilatildeo entre elite e povo natildeo era assim tatildeo simplista e

variavam muito de acordo com o tempo e as regiotildees dentro da Gaacutelia Quando os

romanos invadiram a Gaacutelia em 58 aC sob a lideranccedila de Ceacutesar as comunidades que

eles encontraram eram dinacircmicas abertas e jaacute estavam passando por grandes mudanccedilas

culturais e poliacuteticas Naccedilotildees de vaacuterias partes da Europa ocidental jaacute tinham contato com

o mundo romano mais de um seacuteculo antes da conquista em interaccedilotildees comerciais havia

assentamentos urbanos (oppida) e a escrita comeccedilava a ser usada por algumas

comunidades (WELLS 1999 p 32 e 33) Sobre a escrita Woolf (2003 p 92) destaca

que grupos que estavam a leste do Roacutedano adaptaram caracteres gregos dos marselheses

em uma linguagem ceacuteltica usada em inscriccedilotildees chamada de galo-grega todavia vaacuterias

naccedilotildees dessa regiatildeo natildeo adotavam a escrita615

A arqueologia desde o periacuteodo final da

Idade do ferro e comeccedilo do La Tegravene mostra que os povos natildeo eram muito bem divididos

em tribos como parecia evidente em autores gregos e romanos que mencionaram

613

Cf p 213 614

Par m is det lhes sobre troc s comerci is entre Gaacuteli e Rom cf o c piacutetulo ―Consuming Rome de

Woolf (2003 p 169-205) 615

Para aprofundamento sobre questotildees de liacutengua e escrita na Gaacutelia antes e durante a conquista romana

cf o c piacutetulo ―M pping cultur l ch nge de Woolf (2003 p 77-105)

246

organizaccedilotildees tribais bem distintas como os eacuteduos os helveacutecios os boios etc Segundo

Wells (1999 p 57) as evidecircncias arqueoloacutegicas discordam dessa afirmaccedilatildeo de uma

sociedade altamente dividida mas sim demonstram que havia um grande espectro de

variaccedilotildees sem distinccedilotildees expressivas em termos de riqueza ou status As tribos que

Ceacutesar e outros autores descreveram poderiam ter sido recentemente formadas em

resposta ao proacuteprio avanccedilo romano (e tambeacutem em resposta agraves migraccedilotildees dos cimbros e

teutotildees algumas deacutecadas antes da Guerra da Gaacutelia) As comunidades celtas vendo-se

ameaccediladas por incursotildees de inimigos passaram a se juntar em grupos maiores e a

escolher um liacuteder (chefe ou rei) para se organizarem contra os adversaacuterios616

De fato

antes dessas invasotildees os povos da Europa temperada se organizavam em grupos

diminutos e familiares e viviam em aldeias e territoacuterios pequenos Isso tambeacutem

corrobora a evidecircncia arqueoloacutegica de que natildeo existia uma estrutura hieraacuterquica aleacutem da

comunidade local (WELLS 1999 p 57) O proacuteprio conhecimento que se tem dessas

hierarquias foi bastante afetado pela conquista romana O mesmo Ceacutesar no De bello

Gallico simplesmente resumiu ess questatildeo dizendo que existi m ―du s espeacutecies desses

homens que satildeo tidos em lgum cont e honr dez 617

Nas palavras dele nesse mesmo

trecho o povo (plebe) quase natildeo tinha direitos a elite era composta pelos druidas e

pelos cavaleiros (equites) O uso de termos latinos para descrever aspectos da sociedade

celta tambeacutem afetou esse conhecimento nas fontes Devemos lembrar que Ceacutesar

simplificou a hierarquia social dos gauleses em dois poacutelos por questotildees especiacuteficas de

poliacutetica e autopropaganda618

Por outro lado vimos em outras fontes outros papeis

sociais importantes aleacutem dos druidas e os cavaleiros como os bardos e os vates619

Com

a conquista definitiva da Gaacutelia e especialmente apoacutes o estabelecimento das proviacutencias

gaulesas por Augusto as cidades comeccedilaram a florescer620

As estradas abertas tambeacutem

facilitaram a urbanizaccedilatildeo e a circulaccedilatildeo de mercadorias na Gaacutelia continental

Sobre a organizaccedilatildeo militar dos celtas e seu caraacuteter guerreiro tecircm-se vaacuterios

indiacutecios interessantes Na Romecircnia foi encontrada uma tumba do seacuteculo III aC

contendo vaacuterios aparatos beacutelicos O que destacamos desse achado eacute um capacete em

ferro coroado com uma figura em bronze de uma ave de rapina o curioso eacute que as asas

616

Ceacutesar (BGall VII 4) escreveu que vaacuterias naccedilotildees gaulesas (como os secircnones os pariacutesios os aulercos

etc) uniram-se sob a lideranccedila de Vercingetoacuterige (aclamado rei pelos seus da naccedilatildeo arverna) em uma

derradeira tentativa de derrotar os romanos 617

BGall VI 13 p 137 e 138 618

Cf p 139 619

Sobre o que Posidocircnio disse a respeito cf p 66 quanto a Diodoro cf p 83 620

Cf p 153 Para mais detalhes sobre urbanizaccedilatildeo e cidades na Gaacutelia cf Woolf (2003 p 112-125)

247

se moviam de modo que quando o guerreiro corria ou se lanccedilava ateacute o inimigo seu

capacete produzia um barulho estrondoso e aterrorizante (WITT IN ERSKINE 2009

p 294) Abaixo uma foto do artefato621

Esse capacete nos traz agrave memoacuteria o comentaacuterio de Liacutevio que disse a respeito dos

gauleses se comportarem deliberadamente para infligir terror aos seus inimigos622

Jaacute no final da Preacute-histoacuteria (ateacute o periacuteodo final da Idade do Ferro) foram

encontradas vaacuterias tumbas de guerreiros ricamente equipados contendo vaacuterios objetos

como longas espadas de ferro com bainhas decoradas com ornamentos elaborados

escudos com um centro ovalado de metal e esporas enfeitadas623

Esses objetos

extremamente adornados denotavam o status dos guerreiros e cavaleiros que gozavam

de grande fama na arte da equitaccedilatildeo (WELLS 1999 p 62)624

Quanto agraves crenccedilas religiosas eacute muito difiacutecil reconstruir os fatos a partir dos

achados arqueoloacutegicos Haacute indiacutecios de rituais e sacrifiacutecios de animais mas natildeo se sabe

muito sobre os atributos dos deuses ceacutelticos e germacircnicos Wells (1999 p 59) destaca

que ironicamente o que se sabe dos nomes e atributos das divindades veio das fontes

greco-romanas e natildeo se sabe o quanto essas concepccedilotildees jaacute tinham mudado na eacutepoca

dos romanos aleacutem disso natildeo haacute evidecircncia arqueoloacutegica clara sobre os druidas

621

Im gem retir d de Koch (2006 p 448) o c p cete eacute conhecido como Ciumești por ter sido

encontrado na homocircnima cid de de Ciumești n Romecircni 622

Cf Ab urbe cond XXXVIII 17 na p 240 em que Liacutevio disse ―o horrendo b rulho que f zem o

bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar

terror 623

Percebemos que as fontes antigas corroboram o fato dos guerreiros possuiacuterem vestimentas ricamente

elaboradas e enfeitadas (cf p 242 para essas imagens recorrentes) 624

Ceacutesar falou do alto status social de que gozavam os cavaleiros gauleses como mencionamos na p 246

Ainda sobre os cavaleiros os romanos passaram a adotar grandes contingentes de cavalaria gaulesa em

suas fileiras desde Ceacutesar indo ao longo de toda a sua histoacuteria posterior Cf o episoacutedio do ataque a Pisatildeo

Aquitano e agrave cavalaria gaulesa em BGall IV 12 p 125 Jaacute no seacuteculo III aC os gaacutelatas eram

contratados como mercenaacuterios por reinos heleniacutesticos Aniacutebal tambeacutem utilizou mercenaacuterios gauleses

durante a Segunda Guerra Puacutenica

248

Tambeacutem haacute poucos indiacutecios arqueoloacutegicos de sacrifiacutecios humanos A respeito dos

relatos greco-romanos que mencionavam essa praacutetica deve-se ter em mente que os

autores dessa eacutepoca muitas vezes natildeo hesitavam em retratar os baacuterbaros com cores

selvagens acentuando comportamentos negativos ou bizarros Outro fato que

possivelmente corrobora isso eacute o de que no tempo do contato com o mundo claacutessico

greco-romano as sociedades autoacutectones da Europa passavam por situaccedilotildees extremas e

possivelmente devem ter recorrido a essa praacutetica dos sacrifiacutecios humanos isso poderia

ter coincidido com os relatos escutados por autores como Posidocircnio Diodoro e Ceacutesar

(WELLS 1999 p 59 e 60)625

Vimos ao longo deste trabalho como as representaccedilotildees do gaulecircs foram se

transformando desde os primeiros contatos entre esse povo e os gregos e romanos e

essa transformaccedilatildeo se daacute ateacute os dias de hoje A retomada do estudo sobre os gauleses se

deu principalmente na Franccedila a partir do seacuteculo XVIII com obras historiograacuteficas que

passaram a tratar a histoacuteria desse paiacutes levando em consideraccedilatildeo o seu passado ceacuteltico

(antes as obras se concentravam apenas nos romanos e fatos posteriores) Dentre tantos

exemplos a partir desse seacuteculo citamos aqui alguns como a obra Antiquiteacute des Celtes

de Dom Paul Pezron (de 1703) e Histoire des Gaules de Dom Jacques Martin

(1752)626

A partir de Napoleatildeo III a Franccedila passou a buscar nos gauleses a figura de um

heroacutei nacional especialmente na pessoa de Vercingetoacuterige que apareceu em pinturas e

esculturas de artistas como Aimeacute Millet (Vercingeacutetorix dlsquoAleacutesia) Emmanuel Freacutemiet

(Le chef gaulois) e Auguste Barholdi (Monument agrave vercingeacutetorix em Clermont-

Ferrand) Jaacute do seacuteculo XX de nossa era natildeo podemos deixar de citar a ceacutelebre Histoire

de la Gaule de Camille Jullian (publicada de 1903 a 1926) Com tanto material sobre os

galos facilmente percebemos que eles ateacute hoje despertam a curiosidade das pessoas e

aparecerem em vaacuterios tipos de obras artiacutesticas e culturais nas histoacuterias em quadrinhos

escritas por Goscinny e Uderzo sobre Asteacuterix e Obeacutelix (que inclusive possuem um

parque temaacutetico exclusivo na Franccedila) em documentaacuterios vaacuterios veiculados em canais

de televisatildeo como History Channel e Discovery Civilization e em exposiccedilotildees de arte

como de tem ―G ulom ni que ocorreu em P ris em 1996 no Museacutee N tion l des

Arts et Traditions Populaires Igualmente os galos satildeo retratados em reconstituiccedilotildees de

muacutesica e liacutengua celta em festivais populares como o Montelago Celtic Festival que

625

Os proacuteprios romanos em periacuteodos criacuteticos de sua histoacuteria chegaram a praticar o sacrifiacutecio de dois

gauleses e dois gregos como forma de aplacar os deuses (WOOLF 2003 p 61) 626

Cf Thill (1998) para mais exemplos de obras que trazem os gauleses como personagens de destaque

desde o seacuteculo XVIII ateacute os dias atuais

249

ocorre anualmente na Itaacutelia Mesmo que atualmente os celtas existam em imagens que

muitas vezes guardam pouca semelhanccedila com os indiviacuteduos reais que viveram entre a

Preacute-histoacuteria e Antiguidade de certa forma esses seres descritos com figuras de imagens

e vocabulaacuterio proacuteprios na literatura greco-latina se eternizaram no imaginaacuterio popular

250

Consideraccedilotildees finais

Desde a Antiguidade as imagens dos galos sofreram vaacuterias transformaccedilotildees que

se perpetuam ateacute os dias atuais627

Percebemos que nas fontes greco-romanas citadas e

no corpus analisado (Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho) como a retoacuterica aleacutem de definir o

lugar do outro tambeacutem serviu para definir o lugar de si Ao se tratar do outro (no caso

o galo) vimos que gregos e romanos nem sempre se mostraram apenas como

superiores Como Veyne (1992 p 284) destaca os gregos e romanos quando natildeo

satisfeitos consigo mesmos pensavam se os baacuterbaros natildeo eram os uacutenicos a conservarem

a pureza e o vigor primitivos e inerentes agrave raccedila humana Mais do que isso percebemos

que havia muitas e variadas imagens dos galos e que cada autor utilizou uma (ou

vaacuteri s) dess s ―moldur s de cordo com mens gem que queri p ss r em su obr

Ao estudar o gaulecircs pudemos igualmente entender o que era ser romano e como

Roma evoluiu de uma pequena cidade para um impeacuterio vasto e multicultural aberto a

todos que estivessem dispostos a participar dele Por esse motivo natildeo deixa de ser

curioso sublinhar que muitos dos autores citados ao longo deste trabalho natildeo eram

romanos de nascimento628

Liacutevio nasceu em Paacutedua (em 59 aC) na Gaacutelia Cisalpina e

essa proviacutencia recebeu a cidadania romana apenas em 49 aC Para Ratti (2009 p 128)

esse fato ajudava a explicar o grande fervor patrioacutetico do historiador629

Gruen (2011a

p 344 e 345) lembra que os romanos natildeo tinham tradiccedilotildees que preconizavam uma

pureza de linhagem e sequer possuiacuteam um termo para designar o natildeo romano ndash na

verdade os romanos buscaram no grego a noccedilatildeo de estrangeiro inserida no termo

baacuterbaro A identidade grega se definia em fundamentos eacutetnicos culturais e

genealoacutegicos a identidade romana por sua vez se estabelecia especialmente em

pressupostos culturais e poliacuteticos O que de fato era relevante para o mundo romano era

a cidadania ndash cidadania essa que poderia ser obtida via de regra por qualquer um esse

fato desde a Antiguidade era tido como um dos sucessos do imperialismo romano

(HERRING In ERSKINE 2009 p 131) Desde que natildeo fossem contra o status quo os

627

Thill (1998) fala rapidamente de como a imagem dessa naccedilatildeo se transformou ao longo da histoacuteria da

Franccedila (especialmente a partir do seacuteculo XIX e da III Repuacuteblica) e de como os franceses se apropriaram

desses estereoacutetipos para justificarem fatos de sua proacutepria histoacuteria e os seus siacutembolos nacionais (o galo

Vercingetoacuterige retratado como heroacutei etc) 628

Como Catatildeo o Censor (de Tuacutesculo) Ciacutecero (de Arpino) e os proacuteprios Liacutevio e Pliacutenio o Velho (da

Gaacutelia Cisalpina) Emblemaacutetico tambeacutem o caso de Terecircncio cartaginecircs levado a Roma como cativo de

guerra e que posteriormente se dedicou a escrever comeacutedias 629

De fato Usher (2001 p 165) considera que nenhum outro texto da literatura latina possui um

patriotismo mais exaltado do que o Ab urbe condita

251

territoacuterios conquistados eram livres para manterem suas instituiccedilotildees poliacuteticas cultura

costumes e liacutengua atraveacutes desse sistema de conquista Roma poderia facilmente dominar

as regiotildees a ela submetidas

O termo baacuterbaro cujo primeiro significado era para designar aquele que natildeo

falava grego passou a ter a acepccedilatildeo de nomear os que viviam fora do territoacuterio romano

Por conseguinte quem se encontrava dentro do impeacuterio era civilizado os que habitavam

aleacutem dos limites eram baacuterbaros selvagens que viviam em lugares inoacutespitos Nas

p l vr s de Herring (In ERSKINE 2009 p 131) ― t the edges of the world where the

environment and climate were untamed and harsh lived savage men shaped by that

world Such peoples needed to be either conquered and brought into the civilized world

or shut out from it by strongly defended borders 630

Na Antiguidade os contatos entre os povos ditos civilizados e os baacuterbaros

ocorriam principalmente nas zonas contiacuteguas ou fronteiriccedilas e esses contatos eram

motivados por comeacutercio conquistas guerras ou falta de terras (migraccedilotildees e

colonizaccedilotildees) Como lembra Murphy (2004 P 78) os gregos e os romanos desde o

periacuteodo arcaico de suas histoacuterias ateacute o fim dos seus impeacuterios sempre se mostraram

curiosos e interessados nos povos que habitavam as periferias de suas civilizaccedilotildees Por

isso podemos encontrar narrativas de cunho etnograacutefico em praticamente todos os

gecircneros como a eacutepica a poesia didaacutetica a liacuterica a elegia a trageacutedia a filosofia etc Foi

no gecircnero da historiografia contudo que a etnografia foi mais utilizada e apareceu com

maior relevacircncia documental jaacute que eram parte essencial desse gecircnero as descriccedilotildees e

explicaccedilotildees do mundo registrado do ponto de vista do autor Todavia a etnografia em si

diferia muito pouco em seu conteuacutedo pois como gecircnero literaacuterio estava condicionada a

certas regras convenccedilotildees e expectativas de uma audiecircncia especiacutefica A importacircncia da

tradiccedilatildeo literaacuteria na Antiguidade era tatildeo grande que de certa forma explicava o porquecirc

de vaacuterios autores que escreveram etnografia sequer terem viajado ou conhecido in loco

os locais que descreveram eles buscaram nas fontes as informaccedilotildees necessaacuterias631

Aleacutem disso a informaccedilatildeo jaacute consagrada de um povo raramente era suplantada ou

atualizada por mais enganosa que fosse nesse tempo o mais comum era que as

observaccedilotildees que se ajustassem para as teorias e natildeo o contraacuterio (MURPHY 2004 P

630

―Nos limites do mundo onde o mbiente e o clim er m indomaacuteveis e severos vivi m homens

selvagens moldados por tal mundo Tais povos precisavam ou ser conquistados e trazidos para o mundo

civilizado ou mantidos separados dele por fronteiras fortemente defendid s 631

De fato dos gregos que mencionamos no cap 1 apenas Poliacutebio e Posidocircnio de fato estiveram na

Gaacutelia Jaacute Diodoro e Estrabatildeo natildeo conheceram pessoalmente a Gaacutelia (WOOLF 2011 p 21)

252

82) Por essa razatildeo era comum que autores posteriores recorressem a autores anteriores

para passagens etnograacuteficas tanto para descriccedilotildees dos mesmos povos e lugares como

tambeacutem a adoccedilatildeo de toacutepoi e clichecircs iguais de outras descriccedilotildees aplicados a novas naccedilotildees

e regiotildees632

A precisatildeo desse tipo de narrativa consista entatildeo na repeticcedilatildeo de elementos

dessa tradiccedilatildeo literaacuteria e de certas variantes como o destaque de caracteriacutesticas

maravilhosas ou bizarras de povos diferentes (SYED In HARRISON 2005 p 362)

Como pontua Hartog (199 p 246) os aspectos maravilhosos e curiosos (thocircma em

grego) deveriam figurar no elenco dos procedimentos da retoacuterica da alteridade

certamente esses fatos maravilhosos produziam um efeito de credibilidade e aleacutem

disso o autor natildeo poderia os suprimir da sua narrativa uma vez que o puacuteblico esperava

esse tipo de conteuacutedo nas obras de cunho etnograacutefico

Considerado o que foi dito acima notamos entatildeo que o antagonismo entre os

estr ngeiros e os n tivos soacute se oper v em um contexto de matildeo dupl ―noacutes x eles em

que um grupo se reconhecia como civilizado frente a outro baacuterbaro Reconhecer o outro

que lhe era alheio implicava em reconhecer a si mesmo Na concepccedilatildeo de Murphy

(2004 p 94) os estrangeiros natildeo eram estrangeiros absolutos mas sim estrangeiros de

Roma e as culturas diferentes soacute poderiam ser expressas nas palavras da Urbe em

categorias e valores relacionados a si proacutepria Ser baacuterbaro implicava em ausecircncia

ausecircncia de estabilidade de instituiccedilotildees em suma ausecircncia de humanitas eacute justamente

disso que resulta a forccedila e poder do baacuterbaro eles estatildeo entre a ordem e o caos entre o

humano e o animal (MURPHY 2004 P 165)

No caso das representaccedilotildees latinas de outros povos e naccedilotildees essas narrativas

servem mais para compreender o que os romanos pensavam desses uacuteltimos do que de

fato em obter um conhecimento sobre os natildeo-romanos Todavia como pontua Sayed

(In HARRISON 2005 p 360) a tentaccedilatildeo de se buscar informaccedilotildees sobre os natildeo-

romanos na literatura greco-romana sempre foi grande e isso ateacute recentemente

acontecia bastante Se antes a tendecircncia de pesquisa dos Estudos Claacutessicos era mais no

sentido de identificar o que era real ou verdadeiro nas etnografias antigas hoje os

estudos se concentram mais em perceber como gregos e romanos entendiam o mundo a

partir dos antigos estereoacutetipos

632

Como discutimos no cap 1 deste trabalho os romanos primeiramente buscaram nos gregos (sendo

Poliacutebio o maior nome nesse contexto) as narrativas etnograacuteficas ateacute que eles mesmos a partir do seacuteculo

III aC passaram a ser autores desse gecircnero

253

Ao estudar os relatos da Antiguidade percebemos que essas narrativas seguiam

uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria e retoacuterica por conseguinte eacute uma tarefa impossiacutevel tentar

filtrar o que elas possuiacuteam de verdade ou de criaccedilatildeo ndash embora muitos estudiosos tenham

buscado identificar o que havia de conteuacutedo factual nesses relatos633

Natildeo cremos ser

possiacutevel encerrar essa questatildeo de forma definitiva O que identificamos neste trabalho

de forma niacutetida foi a evoluccedilatildeo no conceito de gaulecircs e tambeacutem o proacuteprio

desenvolvimento de Roma como um impeacuterio No corpus escolhido aqui percebemos

que Ceacutesar ressaltou a virtude guerreira dos galos mas como tinha fins de conquista os

assimilou e os inseriu no contexto da civilizaccedilatildeo romana As passagens que analisamos

de Ab urbe condita localizadas distantes no tempo (no recorte que fizemos analisamos

trechos contemporacircneos ao saque de Roma e a guerra entre romanos e gaacutelatas em 189

aC) se perdem na bruma do mito por isso Liacutevio simplesmente preocupou-se em

retratar os gauleses como meros inimigos descrevendo-os nos mesmos moldes usados

para todos os opositores de Roma que apareceram ao longo de sua obra Ora o

propoacutesito de Liacutevio era o de moralizar e entreter sempre ressaltando a virtude romana e

natildeo descrever profundamente os costumes dos outros povos sua cultura etc Com

Pliacutenio o Velho o impeacuterio (enquanto territoacuterios submetidos a Roma) jaacute estava

estabelecido haacute bastante tempo e por isso ele natildeo se concentrou muito na etnografia da

Europa ocidental ou os gauleses em si mas sim buscou enfocar em seus estudos

assuntos especiacuteficos como o fiar da latilde Ao descrever a geografia das regiotildees ateacute entatildeo

submetidas a Roma Pliacutenio se preocupava mais em delimitar os limites do impeacuterio e

estabelecer as fronteiras do mundo conhecido e civilizado (oikumene)

Ao chegarmos ao final desta pesquisa fica clara para noacutes a imensa forccedila de

certos estereoacutetipos dos gauleses que parecem indeleacuteveis Surgidos na Antiguidade e

reelaborados por autores como Poliacutebio Posidocircnio Estrabatildeo Diodoro Ciacutecero Ceacutesar

Liacutevio Pliacutenio o Velho dentre tantos outros esses clichecircs foram e estatildeo sendo retomados

desde aqueles tempos e ao longo de todos esses seacuteculos

Em pleno seacuteculo XXI o se f l r em ―g ulecircs ou ―celt nos vem logo agrave

memoacuteria indiviacuteduos muito altos fortes com vistosos bigodes imprevisiacuteveis e

corajosos seja na figura dos simpaacuteticos Asteacuterix e Obeacutelix seja na imponente imagem de

Vergingetoacuterige politicamente recuperada no seacuteculo XIX e transformada em heroacutei

nacional da Franccedila A forccedila do liacuteder arverno simbolizava a resistecircncia de todos os galos

633

Marincola (In ERSKINE 2009 p 15 e ss) levanta uma interessante discussatildeo a esse respeito

254

frente a um inimigo comum hoje Vercingetoacuterige tornou-se o arqueacutetipo da firmeza

poliacutetica natildeo soacute dos gauleses mas tambeacutem de todos os franceses contemporacircneos diante

de adversaacuterios comuns Natildeo por acaso podemos encontrar estaacutetuas de Vercingetoacuterige

em vaacuterios locais franceses bem como o fato de antigas cidades celtas serem nomes de

ruas como a proacutepria rue Vercingeacutetorix rue Gergovie e rue dlsquoAleacutesi tod s em P ris

255

Referecircncias bibliograacuteficas

Ediccedilotildees e traduccedilotildees de textos antigos

ARISTOTLE Aristotlelsquos Ethica Nicomachea Edited by J Bywater Oxford Clarendon

Press 1894 Disponiacutevel em Perseus digital library

lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

ARISTOacuteTELES Etica Nicomaacutequea Eacutetica Eudemia Introduccioacuten por Emilio Lledoacute

Iacutentildeigo traduccioacuten y notas por Julio Palliacute Bonet Madrid Gredos 1998

_____________ Poliacutetica Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Manuela Garciacutea Valdeacutes

Madrid Gredos 1988

_____________ Poeacutetica Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra Madrid Gredos

1999

_____________ Retoacuterica Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Quintiacuten Racionero

Madrid Gredos 1994

CATO M Porcius Origines In PETER H (ed) Historicorum Romanorum Reliquiae

Leipzig [se] 1914 v1

CATAtildeO Da agricultura Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Matheus Trevizam

Campinas Unicamp 2016

CEacuteSAR La Guerre des Gaules Texte eacutetabli et traduit par L A Constans Paris Les

Belles Lettres 1947-1972 tomes I et II

_______ Comentaacuterios de Ceacutesar sobre a guerra gaulesa Traduccedilatildeo de Nicolau Firmino

Porto Livraria Simotildees Lopes 1946

CIacuteCERO As Catilinaacuterias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do latim e notas de Sebastiatildeo Tavares

de Pinho Lisboa Ediccedilotildees 70 1990

CICEacuteRON M T De la divination Introduction de Amin Maalouf traduit par Geacuterard

Freyburger e John Scheid Paris Les Belles Lettres 1992

______________ Discours Catilinaires Texte eacutetabli par H Bornecque et traduit par E

Bailly Paris Les Belles Lettres 1926 tome X

_____________ Discours pour M Fonteio pour A Ceacutecina sur les pouvoirs de

Pompeacutee Texte eacutetabli et traduit par Andreacute Boulanger Paris Les Belles Lettres 1961

tome VII

256

______________ Discours Seconde action contre Verregraves livre II La Preacuteture de Sicile

Texte eacutetabli et traduit par H de La Ville de Mirmont Paris Les Belles Lettres 1936

tome III

______________ Discursos En defensa de Sexto Roscio Amerino En defesa de la ley

Manilia En defensa de Aulo Cluencio Catilinarias En defensa de Lucio Murena

Traducciones introducciones y notas de Jesuacutes Aspa Cereza Madrid Gredos 1995

______________ Discursos Verrinas Traduccioacuten y notas de Joseacute Mariacutea Requejo

Prieto Madrid Gredos 1990 2 v

______________ Les devoirs Texte eacutetabli par Maurice Testard Introduction nouvelle

traduction et notes par Steacutephane Mercier Paris Les Belles Lettres 2014

______________ Llsquoorateur et du meilleur genre dlsquoorateurs Texte eacutetabli et traduit par

Albert Yon Paris Les Belles Lettres 1964

______________ Sobre la advinacioacuten Sobre el destino Timeo Introduccioacuten

traduccioacuten y notas de Aacutengel Escobar Madrid Gredos 1999

DIODORO DE SICILIA Biblioteca histoacuterica libros I a III Introduccioacuten traduccioacuten y

notas de Francisco Parreu Alasagrave Madrid Gredos 2001

___________________ Biblioteca histoacuterica libros IV a VIII Traduccioacuten y notas de

Juan Joseacute Torres Esbarranch Madrid Gredos 2004

DIODORUS OF SICILY Library of History With an English translation by C H

Oldfather Cambridge Harvard University Press 1952 v3

DIONYSIUS OF HALICARNASSUS The Roman antiquities With an English

translation by Earnest Cary Cambridge Harvard University Press 1937-1950 v1

DIODORUS SICULUS Diodori Bibliotheca Historica Edited by Immanel Bekker

Ludwig Dindorf Friedrich Vogel Leipzig Teubner 1888-1890 2v Disponiacutevel em

Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

ESTRABOacuteN Geografiacutea libros I-II Introduccioacuten general de J Garciacutea Blaco

Traduccioacuten y notas de J L Garciacutea Ramoacuten y J Garciacutea Blanco Madrid Gredos 1991

__________ Geografiacutea libros III-IV Traducciones introducciones y notas de Maria

Joseacute Meana y Feacutelix Pintildeero Madrid Gredos 1992

HERODOTE Histoires Texte eacutetabli et traduit par Phillippe Ernest Legrand Paris Les

Belles Lettres 1939-1954

HESIacuteODO Teogonia a origem dos deuses Estudo e traduccedilatildeo de Jaa Torrano Satildeo

Paulo Iluminuras 2003

257

HIPOacuteCRATES Ares Aacuteguas e Lugares In CAIRUS Henrique F RIBEIRO JR

Wilson A Textos hipocraacuteticos o doente o meacutedico e a doenccedila Rio de Janeiro Fiocruz

2005 p 91-129

HOMER Homeri Opera in five volumes Oxford Oxford University Press 1920

Disponiacutevel em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso

em 23 mai 2018

HOMERO Iliacuteada Traduccedilatildeo de Frederico Lourenccedilo Lisboa Cotovia 2005

ISOacuteCRATES Discursos Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Juan Manuel Guzmaacuten

Hermida Madrid Gredos 1979 v 1

ISOCRATES Isocrates with an English translation in three volumes Translated by

George Norlin Cambridge Harvard University Press 1980 Disponiacutevel em Perseus

digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai 2018

KIDD IG Posidonius Cambridge Cambridge University Press 1999 v III

NOVAK Maria da Gloria NERI Maria Luiza PETERLINI Ariovaldo Augusto (org)

Historiadores latinos antologia biliacutengue Satildeo Paulo Martins Fontes 1999

PLATOacuteN Diaacutelogos Leyes (libros I-VI) Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Francisco

Lisi Madrid Gredos 1999

PLINE LlsquoANCIEN Histoire naturelle livre III Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Hubert Zehnacker Paris Les Belles Lettres 2004

_______________ Histoire naturelle livre IV Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Hubert Zehnacker et Alain Silberman Paris Les Belles Lettres 2015

_______________ Histoire naturelle livre VIII Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Alfred Ernout Paris Les Belles Lettres 1952

_______________ Histoire naturelle livre XXX Texte eacutetabli traduit et commenteacute par

Alfred Ernout Paris Les Belles Lettres 1963

_______________ Histoire naturelle livre XXXIII Texte eacutetabli traduit et commenteacute

par Hubert Zehnacker Paris Les Belles Lettres 1983

PLINIO EL VIEJO Historia natural libros III-VI Traduccioacuten y notas de Antonio

Fontaacuten Ignacio Garciacutea Arribas Encarnacioacuten del Barrio Maria Luisa Arribas Madrid

Gredos 1998

_________________ Historia natural libros VII-XI Traduccioacuten y notas de

Encarnacioacuten del Barrio Sanz Ignacio Garciacutea Arribas A M Moure Casas L A

Hernaacutendez Miguel y Maria Luisa Arribas Hernaacuteez Madrid Gredos 2003

258

PLUTARCO Vidas paralelas Introduccioacuten traduccioacuten y notas por Aurelio Peacuterez

Jimeacutenez Madrid Gredos 2008 tomo II

POLIBIO Historias Traduccioacuten y notas de Manuel Balasch Recort Madrid Gredos

1981

POLYBE Histoires livre II Texte eacutetabli et traduit par Paul Peacutedech Paris Les Belles

Lettres 1970

POLYBIUS The Histories Translated by W R Paton Cambridge Harvard University

Press 2010

__________ Historiae Theodorus Buumlttner-Wobst after L Dindorf Leipzig Teubner

1893 Disponiacutevel em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt

Acesso em 23 mai 2018

RETOacuteRICA a Herenio Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Salvador Nuacutentildees Madrid

Gredos 1997

STRABO The Geography Translated by Horace Leonard Jones Cambridge Harvard

University Press 1954 v2 e v3

________ Geographica Edited by A Meineke Leipzig Teubner 1877 Disponiacutevel

em Perseus digital library lthttpwwwperseustuftseduhoppergt Acesso em 23 mai

2018

SUETOcircNIO AUGUSTO A vida e os feitos do divino Augusto Traduccedilatildeo de Matheus

Trevizam Paulo Seacutergio Vasconcellos e Antocircnio Martinez de Rezende Belo Horizonte

Editora UFMG 2007

TAacuteCITO C Anais Traduccedilatildeo de Leopoldo Pereira Rio de Janeiro [se] 1964

TITE LIVE Histoire romaine livre V Texte eacutetabli par Jean Bayet et traduit par Gaston

Baillet Paris Les Belles Lettres 1954 tome V

_________ Histoire romaine livre VII Texte eacutetabli par Jean Bayet et traduit par

Raymond Bloch Paris Les Belles Lettres 1968 tome VII

_________ Histoire romaine livre XXIII Texte eacutetabli et traduit par Paul Jal Paris Les

Belles Lettres 2001 tome XIII

_________ Histoire romaine livre XXXVIII Texte eacutetabli et traduit par Richard Adam

Paris Les Belles Lettres 1982 tome XXVIII

TITO LIacuteVIO Histoacuteria de Roma livro I ndash a monarquia Traduccedilatildeo de Mocircnica Costa

Vitorino introduccedilatildeo e notas de Juacutelio Ceacutesar Vitorino Belo Horizonte Crisaacutelida 2008

VARROacuteN La lengua latina libros V-VI Introduccioacuten traduccioacuten y notas de Luis

Alfonso Hernaacutendez Miguel Madrid Gredos 1998

259

VARRON La langue latine livre V Texte eacutetabli et traduit par Jean Collart Paris Les

Belles Lettres 1954 tome I

VEGEacuteCIO Compecircndio da arte militar Traduccedilatildeo de Joatildeo Gouveia Monteiro e Joseacute

Eduardo Braga Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2009

TUCIacuteDIDES Historia de la guerra del Peloponeso libros I-II Traduccioacuten y notas de

Juan Joseacute Torres Esbarranch Madrid Gredos 1990

Dicionaacuterios

ALMOYNA Julio Martinez Dicionaacuterio de espanhol-portuguecircs 2 ed Porto Porto ed

1999

BEEKES Robert Etymological Dictionary of Greek Leiden Brill 2010 v 1

BENEDETTI Ivone Castilho Dicionaacuterio Martins Fontes italiano-portuguecircs Satildeo

Paulo Martins Fontes 2004

CARVALHO Oliacutevio Dicionaacuterio de francecircs-portuguecircs 2 ed Porto Porto ed 1997

CHANTRAINE Pierre Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque Paris

Eacuteditions Klincksieck 1968

FARIA Ernesto Dicionaacuterio latino ndash portuguecircs Belo Horizonte Garnier 2003

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio Aureacutelio da liacutengua

portuguesa Curitiba Ed Positivo 2004

GAFFIOT Felix Dictionnaire illustre latin franccedilais Paris Hachette 1957

GLARE PGW(ed) Oxford Latin dictionary Oxford Claredon Press 1982

HARVEY Paul Dicionaacuterio Oxford de literatura claacutessica grega e latina Traduccedilatildeo de

Maacuterio da Gama Kury Rio de Janeiro Jorge Zahar 1998

HOUAISS Antonio Dicionaacuterio Houaiss da liacutengua portuguesa Rio de Janeiro

Objetiva 2001

LIDDEL Henry George SCOTT Robert JONES Henry Stuart A Greek-English

Lexicon Oxford Clarendon Press 1996

REZENDE Antocircnio Martinez BIANCHET Sandra Braga Dicionaacuterio do latim

essencial Belo Horizonte Tessitura 2005

SARAIVA FR dos Santos QUICHERAT L Noviacutessimo dicionaacuterio latino-portuguecircs

Rio de Janeiro Garnier 2003

260

SUMMERS Della Longman dictionary of contemporary English 3 ed Bungay

Longman Dictonaries 1995

TORRINHA Francisco Dicionaacuterio latino portuguecircs Porto Ediccedilotildees e execuccedilatildeo de

graacuteficos reunidos Ltda 2001

VAAN Michiel Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages

Leiden Brill 2008

Bibliografia geral

ADLER Erich Valorizing the Barbarians enemy speeches in Roman historiography

Austin Texas University Press 2011

ALMEIDA Priscilla A F Iliacuteada Latina traduccedilatildeo e estudo literaacuterio da adaptaccedilatildeo da

Iliacuteada de Homero na Antiguidade latina 2012 166 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Estudos Claacutessicos) ndash Faculdade de Letras Universidade Federal de Minas Gerais Belo

Horizonte 2012

ANDERSON Perry Passagens da Antiguidade ao Feudalismo 2 ed Porto

Afrontamento 1982

ANDREacute Jean-Marie HUS Alain LlsquoHistoire agrave Rome historiens et biographes dans la

litteacuterature latine [sl] Presses Universitaires de France 1974

ANDREacute Jean-M rie Ethongr phie et sociologie ―b rb re chez Ceacutes r Vita Latina

Montpellier n162 p 2-10 2001

AILI H ns Livylsquos l ngu ge critic l survey of rese rch In HAASE Wolfg ng (ed )

Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de Gruyter

1982 band II 302 p 1122-1147

ASTIN Alan E Cato the Censor Oxford Claredon Press 1978

AUSTIN Michel The Hellenistic world from Alexander to the Roman conquest

Cambridge Cambridge University Press 2006

BADIAN E Roman imperialism in the late Republic Oxford Basil Blackwell 1968

BARONOWSKI Donald Walter Polybius and Roman imperialism London Bristol

Classical Press 2011

BASSETTO Bruno Fregni Elementos de filologia romacircnica 2 ed Satildeo Paulo Editora

da Universidade de Satildeo Paulo 2005

261

BECK Franccediloise CHEW Heacutelegravene Quand les Gaulois eacutetaient romains Paris

Deacutecouvertes GallimardReacuteunion des museacutees nationaux 2008

BECK Hans The early Roman tradition In MARINCOLA John (ed) A companion

to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell Companions to the Ancient

World 2007 v 1 p 259-265

BLOCH Raymond COUSIN Jean Roma e o seu destino Lisboa Ediccedilotildees Cosmos

1964

BOARDMAN John GRIFFIN Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History

of the Classical World Oxford Oxford University Press 1986

BORCA Federico Luoghi corpi costumi determinismo ambientale ed etnografia

antica Roma Edizione di Storia e Letteratura 2003

BORNECQUE H MORNET D Roma e os romanos Satildeo Paulo EPU Editora da

Universidade de Satildeo Paulo 2002 Reimpressatildeo

BRANDAtildeO Jacyntho Lins A invenccedilatildeo do romance Brasiacutelia Editora UnB 2005

BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes Do ―1ordm triunvir to os idos de m rccedilo In BRANDAtildeO Joseacute

Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra Imprensa da

Universidade de Coimbra 2015 v1 p 389-427

BRINGMANN Klaus Poseidonius and Athenion a study in Hellenistic historiography

In CARTLEDGE Paul GARNSEY Peter GRUEN Erich (ed) Hellenistic

constructs essays in culture history and historiography Los Angeles University of

California Press 1997 p 145-158

BRISCOE John A commentary on Livy books 38-40Oxford Oxford University Press

2008

BROSMAN Catharine Savage The functions of war literature South Cetral Review

Baltimore v9 n 1 p 85-98 1992

BROWN A Civilized G ul C es rlsquos portr it of Piso Aquit nus (De bello G llico

4124-6) Mnemosyne a journal of Classical Studies Amsterdam v 67 f 3 p 391-

404 2014

BRUNAUX Jean-Louis Nos ancecirctres les Gaulois Paris Eacuteditions du Seuil 2008

____________________ Aleacutesia Paris Gallimard 2012

____________________ Les Gaulois Paris Les Belles Lettres 2005

____________________ Voyage en Gaule Paris Eacuteditions du Seuil 2011

BRUNT PA Studies in Greek History and Thought Oxford Claredon Press 1993

262

BUGH Glenn R (ed) The Cambridge Companion to the Hellenistic world

Cambridge Cambridge University Press 2006

CANFORA Luciano Juacutelio Ceacutesar o ditador democraacutetico Trad Antonio da Silveira

Mendonccedila Satildeo Paulo Estaccedilatildeo Liberdade 2002

CAREY Sorcha Plinylsquos catalogue of culture art and empire in the Natural History

Oxford Oxford University Press 2003

CHAMPION Craige Romans as Bapbapoi three Polybian speeches and the politics of

cultural indeterminacy Classical Philology Chicago v 95 n 4 p 425-444 2000

_________________ Cultural politcs in Polybiuslsquo Histories Los Angeles University

of California Press 2004

CHAPLIN Jane D Livylsquos exemplary history Oxford Oxford University Press 2000

CODONtildeER Carmen (org) Historia de la Literatura Latina Madrid Caacutetedra 2007

COLLARES MA Representaccedilotildees do senado romano na Ab Urbe Condita Libri de

Tito Liacutevio Satildeo Paulo Editora UNESPCultura Acadecircmica 2010

CONTE Gian Biagio Latin Literature a history Trad Joseph B Solodow Baltimore

Johns Hopkins University Press 1999

CORASSIN Maria Luiza Comentaacuterio sobre as Res Gestae Divi Augusti In JOLY

Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo

Alameda 2007 p 97-118

DAUGE YA Le Barbare recherches sur la conception romaine de la barbarie et de

la civilisation Bruxelles Eacuteditions Latomus 1981

DEJARDIN Isabel Visages antiques de la barbarie enquecircte sur llsquoemergence dlsquoune

notion Paris Editions Bouchene 2010

DELAPLACE Christine FRANCE Jeacuterocircme Histoire des Gaules Paris Armand Colin

2011

DUBUISSON Michel Le latin de Polybe les implic tions historiques dlsquoun c s de

bilinguisme Paris Klincksieck 1985

DUFF John Wight A Literary History of Rome From Tiberius to Hadrian 3 ed

London Benn 1964

DYSON Stephen L Archaeology and Ancient History In ERSKINE Andrew (ed) A

companion to Ancient History Oxford Blackwell companions to the ancient world

2009 p 59-66

EASTERLING PE KNOX BMW (eds) Historia de la literatura claacutesica

(Cambridge University) Madrid Gredos 1990 v 1 (Literatura griega)

263

ECKSTEIN Arthur M Moral vision in The Histories of Polybius Berkeley University

of California Press 1995

__________________ Physis and Nomos Polybius the Romans and Cato the Elder

In CARTLEDGE Paul GARNSEY Peter GRUEN Erich (ed) Hellenistic

constructs essays in culture history and historiography Los Angeles University of

California Press 1997 p 175-198

ERDKAMP Paul (ed) A companion to the Roman army Oxford Blackwell

Publishing 2007

___________________ The Cambridge companion to Ancient Rome Cambridge

Cambridge University Press 2013

ERSKINE Andrew (ed) A companion to Ancient History Oxford Blackwell

companions to the ancient world 2009

FAVERSANI Faacutebio JOLY Faacutebio D Da Liga Latina ao saque de Roma In

BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra

Imprensa da Universidade de Coimbra 2015 v1 p 103-125

FISHER Nick Citizens foreigners and slaves in Greek society In KINZL Konrad H

(ed) A companion to the Classical Greek world Oxford Blackwell Publishing 2006

p 327-349

FLORENZANO Maria Beatriz B O mundo antigo economia e sociedade 13 ed Satildeo

Paulo Brasiliense 1994

FORNARA Charles The nature of history in ancient Greece and Rome University of

California Press 1983

FORSYTHE Gary A critical history of early Rome from prehistory to the first Punic

War Berkeley University of California Press 2005

FUNARI Pedro Paulo A Antiguidade Claacutessica a Histoacuteria e a cultura a partir dos

documentos Campinas Editora da Unicamp 2003

_____________________ GARRAFFONI Renata Senna Historiografia Saluacutestio

Tito Liacutevio e Taacutecito Campinas Editora Unicamp 2016

GABBA Emilio Aspetti culturali dell`imperialismo romano Athenaeum Pavia n55

p 49-74 1977

___________ Roma arcaica storia e storiografia Roma Edizioni di Storia e

Letteratura 2000

GAUTHIER Philippe Notes sur l`eacutetranger et l`hospitaliteacute en Gregravece et agrave Rome Ancient

Society n 4 p 1-22 1973

264

GIARDINA Andrea (ed) O homem romano Lisboa Editorial Presenccedila 1992

GIROD M R La geacuteographie de Tite-Live In HAASE Wolfgang (ed) Aufstieg und

Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de Gruyter 1982 band II

302 p 1190-1229

GOUDINEAU Christian Regard sur la Gaule Paris Babel 2007

GOUVEcircA JUacuteNIOR Maacutercio Meirelles Roma et barbaries a evoluccedilatildeo do conceito de

barbaacuterie na antiga Roma Phaos revista de estudos claacutessicos Campinas n12 p 5-27

2012

_________________ Variae Medeae a recepccedilatildeo da fabula de Medeia pela literatura

latina 2013 292 f Tese (Doutorado em Literatura Comparada) ndash Faculdade de Letras

Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte 2013

GRIMAL Pierre A civilizaccedilatildeo romana Lisboa Ediccedilotildees 70 1993

______________ La formacioacuten del imperio romano el mundo mediterraacuteneo em la

Edad Antigua Madrid Siglo XXI 2002

GRUEN Erich S Culture and national identity in Republican Rome Ithaca Cornell

University Press 1992

_______________ Greeks and non-Greeks In BUGH Glenn R (ed) The Cambridge

Companion to the Hellenistic world Cambridge Cambridge University Press 2006 p

295-314

______________ Rethinking the other in Antiquity Oxford Princeton University

Press 2011a

______________ (ed) Cultural identity in the ancient Mediterranean Los Angeles

Getty Research Institute 2011b

GUARINELLO Norberto Luiz Ensaios sobre Histoacuteria Antiga 2014 330 f Tese

(livre-docecircncia) Departamento de Histoacuteria da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias

Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2014

GUILLAUMIN J Y Ceacutesar In RATTI Steacutephane Eacutecrire l`Histoire agrave Rome Paris

Les Belles Lettres 2009 p 11-29

HABINEK Thomas The politcs of Latin literature writing identity and empire in

ancient Rome Princeton Princeton University Press 1998

HAHM D vid E Posidoniuslsquo theory of historic l c us tion In HAASE Wolfg ng

(ed) Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter de

Gruyter 1989 band II 363 p 1325-1361

265

HALL Jonathan M Ethnic identity in Greek antiquity Cambridge Cambridge

University Press 2001

HARRIS William V War and imperialism in Republican Rome 327-70 BC Oxford

Oxford University Press 1979

HARRISON Thomas The Greeks In ERSKINE Andrew (ed) A companion to

Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 213-

221

HARTOG Franccedilois O espelho de Heroacutedoto ensaio sobre a representaccedilatildeo do outro

Traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo Belo Horizonte Editora UFMG 1999

________________ Memoacuteria de Ulisses narrativas sobre a fronteira na Greacutecia antiga

Traduccedilatildeo de Jacyntho Lins Brandatildeo 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2014

HENDERSON John Knowing someone through their books Pliny on uncle Pliny

(Epistles 35) Classical Philology Chicago n 97 p 256-254 2002

HERRING Edward Ethnicity and culture In ERSKINE Andrew (ed) A companion

to Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 123-

133

HINGLEY Richard Globalizing Roman culture unity diversity and empire London

Routledge 2005

JAEGER Werner Paideia a formaccedilatildeo do homem grego Trad Artur M Parreira Satildeo

Paulo Martins Fontes 2001

JARDEacute A A Greacutecia antiga e a vida grega Satildeo Paulo EPU 1977

JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo

Paulo Alameda 2007

JULLIAN Camille La Gaule avant Ceacutesar Paris Editions du Trident 1993

_______________ Vercingeacutetorix Paris Tallandier 2012

KARL Raimund STIFTER David The Celtic world New York Routledge 2007

v1-4

KENNEY E J CLAUSEN WV (eds) Historia de la literatura claacutesica (Cambridge

University) Madrid Gredos 1989 v 2 (Literatura latina)

KOCH John T (ed) Celtic culture a historical encyclopedia Santa Barbara ABC

Clio 2006 v 1

KONSTAN David Clemency as a virtue Classical Philology Chicago v 100 n 4 p

337-349 october 2005

266

LAPLANTINE Franccedilois NOUSS Alexis Meacutetissages de Arcimboldo agrave Zombi Paris

Pauvert 2001

LEAtildeO Delfim BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes As origens da urbe e o periacuteodo da monarquia

In BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma

Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2015 v1 p 27-51

LE BOHEC Yann Rome et les provinces de l`Europe occidentale jusqu`agrave la fin du

principat Paris Editions du Temps 2009

LESKY Albin Histoacuteria da literatura grega Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian

1995

LEVENE DS Roman historiography in the late Republic In MARINCOLA John

(ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v 1 p 275-289

LINTOTT Andrew W Roman historians In BOARDMAN John GRIFFIN Jasper

MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford Oxford

University Press 1986 p 529-539

__________________ The Romans in the age of Augustus Oxford Wiley-Blackwell

2010

LUCE T J Livy the composition of his history Princeton Princeton University Press

1977

MAFRA Johnny Joseacute Cultura claacutessica grega e latina Belo Horizonte Ed PUC

Minas 2010

MARINCOLA John Universal History from Ephorus to Diodorus In

_____________ A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v1 p 171-179

_________________ Historiography In ERSKINE Andrew (ed) A companion to

Ancient History Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2009 p 13-22

MARQUES Juliana Bastos Tradiccedilatildeo e renovaccedilotildees da identidade romana em Tito

Liacutevio e Taacutecito 2007 250 f Tese (Doutorado em Histoacuteria Social) - Departamento de

Histoacuteria da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2007

_____________________ Poliacutebio In JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e retoacuterica

ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo Alameda 2007 p 45-64

_____________________ O Capitoacutelio como representaccedilatildeo de Roma em Tito Liacutevio e

Taacutecito Caliacuteope presenccedila claacutessica Rio de Janeiro n 13 p 94-409 2005

267

MARTIN Reneacute GAILLARD Jacques Les genres litteacuteraires agrave Rome Paris Nathan

Scodel 1981

MARTIN Paul M La Guerre des Gaules la Guerre Civile Paris Ellipses 2000

MARTINS Paulo Literatura latina Curitiba IESDE Brasil 2009

_______________ Pictura Loquens Poesis Tacens limites da representaccedilatildeo 2013

348 f Tese (livre-docecircncia) Departamento de Letras Claacutessicas e Vernaacuteculas da

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo Satildeo

Paulo 2013

MATHISEN Ralph W Peregrini Barbari and Cives Romani concepts of citizenship

and the legal identity of Barbarians in the Later Roman Empire The American

Historical Review v 111 n 4 p 1011-1040 2006

MENDES Norma Musco Roma republicana Satildeo Paulo Aacutetica 1988

_____________________ Impeacuterio e rom niz ccedilatildeo ―estr teacutegi s domin ccedilatildeo e col pso

Brathair Rio de Janeiro v1 p 25-48 2007

MOMIGLIANO Arnaldo Os limites da helenizaccedilatildeo Rio de Janeiro Jorge Zahar

1991

MOREL (W) BUCHNER (K) BLANSDORF (Juumlrgen) (eds) Fragmenta poetarum

latinorum epicorum et lyricorum praeter Enni Annales et Ciceronis Germanicique

aratea 4 ed Berlin De Gruyter 2011

MURPHY Trevor Pliny the Elderlsquos Natural History Oxford Oxford University Press

2004

NICOLAI Roberto The place of History in the Ancient world In MARINCOLA John

(ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford Blackwell

Companions to the Ancient World 2007 v1 p 13-26

NICOLET Claude Rome et la conquecircte du monde meacutediterraneacuteen 6 ed Paris Presses

Universitaires de France 2011 v 2 (Genegravese d`um empire)

OGILVIE R M A commentary on Livy books 1-5 Oxford Claredon Press 1965

OlsquoGORMAN Ellen No place like Rome identity and difference in the Germania of

Tacitus In ASH Rhiannon (ed) Oxford Readings in Classical Studies Tacitus

Oxford Oxford University Press 2012 p 95-118

OAKLEY Stephen P A commentary on Livy books VI-X Oxford Claredon Press

1998 vII

__________________ Re ding Livylsquos Book 5 In MINEO Bern rd (ed ) A

companion to Livy Oxford Wiley-Blackwell 2015 p 230-241

268

OLIVER Graham J History and rhetoric In BUGH Glenn R (ed) The Cambridge

Companion to the Hellenistic world Cambridge Cambridge University Press 2006 p

113-135

OLIVEIRA Diego Verissimo O perfil de Vercingetoacuterige no De bello Gallico de Ceacutesar

2008 65 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras Claacutessicas) - Faculdade de Letras

Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2008

OLIVEIRA Francisco Consequecircncias da expansatildeo romana In BRANDAtildeO Joseacute Luiacutes

OLIVEIRA Francisco (coord) Histoacuteria de Roma Coimbra Imprensa da Universidade

de Coimbra 2015 v1 p 233-311

OLIVIERI Filippo Lourenccedilo Os druidas Satildeo Paulo Perspectiva 2014

PARATORE Ettore Histoacuteria da literatura latina Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1983

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de histoacuteria da cultura classica 7 ed

Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1993 v2

PERNOT Laurent Rhetoric in antiquity Traduccedilatildeo de WE Higgins Washington The

Catholic University of America Press 2005

PHILLIPS Jane E Current research in Livy`s first decade 1959-1979 In HAASE

Wolfgang (ed) Aufstieg und Niedergang der Roumlmischen Welt (ANRW) Berlin Walter

de Gruyter 1982 band II 302 p 998-1051

PIMENTEL Cristina de Sousa Catatildeo censor Lisboa Editoral Inqueacuterito 1997

POTTER David A companion to the Roman Empire Oxford Blackwell Companions

to the Ancient World 2006

RAMBAUD Michel L`art de la deacuteformation historique dans les Commentaires de

Ceacutesar 2 ed Paris Les Belles Lettres 2011

RANKIN David Celts and the classical world London Routledge 1996

RATTI Steacutephane Tite-Live In _________________ Eacutecrire l`Histoire agrave Rome Paris

Les Belles Lettres 2009 p 127-173

RAWSON Elizabeth The expansion of Rome In BOARDMAN John GRIFFIN

Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford

Oxford University Press 1986 p 343-364

REVELL Louise Roman imperialism and local identities Cambridge Cambridge

University Press 2009

269

REZENDE Antonio Martinez Rompendo o Silecircncio a construccedilatildeo do discurso oratoacuterio

em Quintiliano 2009 280 f Tese (Doutorado em Estudos Linguiacutesticos) - Faculdade de

Letras Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte 2009

RIGGSBY Andrew M Caesar in Gaul and Rome war in words Austin University of

Texas Press 2006

_________________ Memoir and autobiography in Republican Rome In

MARINCOLA John (ed) A companion to Greek and Roman historiography Oxford

Blackwell Companions to the Ancient World 2007 v 1 p 226-274

ROCHETTE Bruno Grecs Rom ins et B rb res l recherche de llsquoidentiteacute ethnique

et linguistique des Grecs et des Romains Revue belge de philologie et dhistoire

Bruxelles tome 75 fasc 1 p 37-57 1997

ROacuteNAI Paulo A traduccedilatildeo vivida 2 ediccedilatildeo mpli d Rio de Janeiro Nova Fronteira

1981

RUSSEL DA WILSON NG (eds) Menander rhetor Oxford Claredon Press

1981

SACKS Kenneth Diodorus Siculus and the first century Princeton Princeton

University Press 1990

SANTINI Andreacute La Gaule raconteacutee aux gaulois Paris Editions 1 Socieacuteteacute 1999

SCHMIDT Joeumll Les Gaulois contre les Romains Paris Perrin 2010

SEBASTIANI Breno A poliacutetica como objeto de estudo Tito Liacutevio e o pensamento

historiograacutefico romano do seacuteculo I aC In JOLY Faacutebio Duarte (org) Histoacuteria e

retoacuterica ensaios sobre historiografia antiga Satildeo Paulo Alameda 2007 p 77-96

SHERWIN-WHITE Adrian N Racial prejudice in imperial Rome Cambridge

Cambridge University Press 1967

_____________________ Rome the agressor Review of War and imperialism in

Republican Rome by William V Harris The Journal of Roman Studies Cambridge v

70 p 177-181 1980

STOCKTON David The founding of the Empire In BOARDMAN John GRIFFIN

Jasper MURRAY Oswyn (eds) The Oxford History of the Classical World Oxford

Oxford University Press 1986 p 443-461

STRASBURGER Hermann Poseidonios on problems of the Roman Empire The

Journal of Roman Studies Cambridge v 55 n 12 p 40-53 1965

270

SYED Yasmin Romans and others In HARRISON Stephen (ed) A companion to

Latin literature Oxford Blackwell Companions to the Ancient World 2005 p 360-

371

TAPLIN Oliver (ed) Literature in the Greek and Roman worlds Oxford Oxford

University Press 2000

THILL Andreacute ―G ulom ni une exposition de l bibliothegraveque du MNATP

Ethnologie franccedilaise nouvelle serie Paris tome 28 n 3 p 312-316 1998

TRINGALI Dante Introduccedilatildeo agrave retoacuterica Satildeo Paulo Duas Cidades 1988

USHER Stephen The historians of Greece and Rome London Bristol Classical 2001

Reimpressatildeo

VASALY Ann Representations images of the world in Ciceronian oratory Los

Angeles University of California Press 1993

VEYNE Paul Y a-t-il eu un impeacuterialisme romain Antiquiteacute Paris v 87 n 2 p 793-

855 1975

____________ Humanitas romanos e natildeo romanos In GIARDINA Andrea (ed) O

homem romano Lisboa Editorial Presenccedila 1992 p 283-302

____________ Como se escreve a histoacuteria Traduccedilatildeo de Alda Baltazar e Maria

Auxiliadora Kneipp 4 ediccedilatildeo Brasiacutelia Editora UnB 1998

VIEIRA Ana Thereza Basilio O conceito de natureza em Pliacutenio o Velho Anais de

Filosofia Claacutessica Rio de Janeiro v IV n 8 p 60-69 2010

WALBANK Frank W Polybius Rome and the Hellenistic world essays and

reflections Cambridge Cambridge University Press 2002

WALLACE-HADRILL Andrew Romelsquos cultural revolution Cambridge Cambridge

University Press 2008

WELLS Peter S The Barbarians speak how the conquered peoples shaped Roman

Europe Princeton Princeton University Press 1999

WOOLF Greg Becoming Roman the origins of provincial civilization in Gaul

Cambridge Cambridge University Press 2003

_____________ Tales of the Barbarians ethnography and empire in the Roman West

Oxford Blackwell Publishing 2011

YAVETZ Zvi Ceacutesar et son image Paris Les Belles Lettres 2004

271

Anexo ndash antologia de autores

1 ndash Ceacutesar

Sobre a guerra da Gaacutelia - Livro I

1 ndash Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam

Aquitani tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur Hi omnes lingua

intitutis legibus inter se differunt Gallos ab Aquitanis Garumna flumen a Belgis

Matrona et Sequana diuidit Horum omnium fortissimi sunt Belgae propterea quod a

cultu atque humanitate prouinciae longissime absunt minimeque ad eos mercatores

saepe commeant atque ea quae ad effeminandos animos pertinent inportant proximique

sunt Germanis qui trans Rhenum incolunt quibuscum continenter bellum gerunt Qua

de causa Heluetii quoque reliquos Gallos uirtute praecedunt quod fere cotidianis

proeliis cum Germanis contendunt cum aut suis finibus eos prohibent aut ipsi in eorum

finibus bellum gerunt Eorum uma pars quam Gallos optinere dictum est initium capit

a flumine Rhodano continetur Garumna flumine Oceano finibus Belgarum attingit

etiam ab Sequanis et Heluetiis flumen Rhenum uergit ad septentriones Belgae ab

extremis Galliae finibus oriuntur pertinent ad inferiorem partem fluminis Rheni

spectant in septentrionem et orientem solem Aquitania a Garumna flumine ad

Pyrenaeos montes et eam partem Oceani quae est ad Hispaniam pertinet spectat inter

occasum solis et septentriones

1 ndash Toda a Gaacutelia eacute dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os

aquitanos a outra e a terceira habitam aqueles que em sua proacutepria liacutengua satildeo chamados

―celt s n noss ―g uleses Todos esses diferem entre si pel liacutengu pelos costumes e

pelas leis O rio Garona separa os gauleses dos aquitanos dos belgas os rios Marne e

Sena De todos esses os mais corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da

civilizaccedilatildeo e urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e importam

aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque estatildeo proacuteximos dos

germanos que habitam o outro lado do Reno e com esses travam guerra

constantemente Pelo mesmo motivo os helveacutecios tambeacutem superam os gauleses

restantes em coragem jaacute que lutam em combates quase diaacuterios contra os germanos ndash

quer quando os afastam de suas fronteiras quer quando levam por si a guerra aos

272

territoacuterios daqueles Uma parte dessas terras ndash que foi dito antes os gauleses ocuparem ndash

tem iniacutecio ao lado do rio Roacutedano eacute limitada pelo rio Garona pelo Oceano e pelo

territoacuterio dos belgas ela se estende tambeacutem ateacute o rio Reno pelo lado dos seacutequanos e dos

helveacutecios inclinando-se para o norte Os belgas satildeo oriundos do territoacuterio longiacutenquo da

Gaacutelia estendem-se ateacute a parte inferior do rio Reno e veem o sol ao norte e a leste A

Aquitacircnia estende-se do rio Garona aos montes Pirineus e agravequela parte do Oceano que

estaacute junto agrave Hispacircnia fitando entre o por do sol e o norte

31 ndash Eo concilio dimisso idem principes ciuitatum qui ante fuerant ad Caesarem

reuerterunt petieruntque uti sibi secreto in occulto de sua omniumque salute cum eo

agere liceret Ea re impetrata sese omnes flentes Caesari ad pedes proiecerunt non

minus se id contendere et laborare ne ea quae dixissent enuntiarentur quam uti ea

quae uellent impetrarent propterea quod si enuntiatum esset summum in cruciatum se

uenturos uiderent Locutus est pro his Diuiciacus Haeduus Galliae totius factiones

esse duas harum alterius principatum tenere Haeduos alterius Aruernos Hi cum

tantopere de potentatu inter se multos annos contenderent factum esse uti ab Aruernis

Sequanisque Germani mercede arcesserentur Horum primo circiter milia XV Rhenum

transisse posteaquam agros et cultum et copias Gallorum homines feri ac barbari

adamassent traductos plures nunc esse in Gallia ad centum et XX milium numerum

Cum his Haeduos eorumque clientes semel atque iterum armis contendisse magnam

calamitatem pulsos accepisse omnem nobilitatem omnem senatum omnem equitatum

amisisse Quibus proeliis calamitatibusque fractos qui et sua uirtute et populi Romani

hospitio atque amicitia plurimum ante in Gallia potuissent coactos esse Sequanis

obsides dare nobilissimos ciuitatis et iure iurando ciuitatem obstringere sese neque

obsides repetituros neque auxilium a populo Romano inploraturos neque recusaturos

quo minus perpetuo sub illorum dicione atque imperio essent Unum se esse ex omni

ciuitate Haeduorum qui adduci non potuerit ut iuraret aut liberos suos obsides daret

Ob eam rem se ex ciuitate profugisse et Romam ad senatum uenisse auxilium

postulatum quod solus neque iure iurando neque obsidibus teneretur Sed peius

uictoribus Sequanis quam Haeduis uictis accidisse propterea quod Ariouistus rex

Germanorum in eorum finibus consedisset tertiamque partem agri Sequani qui esset

optimus totius Galliae occupauisset et nunc de altera parte tertia Sequanos decedere

iuberet propterea quod paucis mensibus ante Harudum milia hominum XXIV ad eum

273

uenissent quibus locus ac sedes pararentur Futurum esse paucis annis uti omnes ex

Galliae finibus pellerentur atque omnes Germani Rhenum transirent neque enim

conferendum esse gallicum cum Germanorum agro neque hanc consuetudinem uictus

cum illa comparandam Ariouistum autem ut semel Gallorum copias proelio uicerit

quod proelium factum sit Admagetobrigae superbe et crudeliter imperare obsides

nobilissimi cuiusque liberos poscere et in eos omnia exempla cruciatusque edere si qua

res non ad nutum aut ad uoluntatem eius facta sit Hominem esse barbarum

iracundum temerarium non posse eius imperia diutius sustinere Nisi si quid in

Caesare populoque Romano sit auxilii omnibus Gallis idem esse faciendum quod

Heluetii fecerint ut domo emigrent aliud domicilium alias sedes remotas a Germanis

petant fortunamque quaecumque accidat experiantur Haec si enuntiata Ariouisto sint

non dubitare quin de omnibus obsidibus qui apud eum sint grauissimum supplicium

sumat Caesarem uel auctoritate sua atque exercitus uel recenti uictoria uel nomine

populi Romani deterrere posse ne maior multitudo Germanorum Rhenum traducatur

Galliamque omnem ab Ariouisti iniuria posse defendere

31 ndash Despedido esse conselho os mesmos chefes das comunidades que anteriormente

foram ateacute Ceacutesar retornaram e pediram-lhe que lhes fosse permitido dirigir-se a ele em

um lugar reservado e sem testemunhas a respeito da sua salvaccedilatildeo e da salvaccedilatildeo de

todos Obtida a permissatildeo todos se lanccedilaram chorosos aos peacutes de Ceacutesar igualmente

pretendiam e diligenciavam natildeo se divulgar aquilo que disseram e concretizar o seu

desejo pois caso algo se divulgasse haveriam de incorrer nos piores supliacutecios O eacuteduo

Diviciacute co f lou por eles ―Em tod Gaacuteli existi m du s f cccedilotildees os eacuteduos tinh m

lideranccedila de uma delas e os arvernos da outra Como eles duramente lutassem entre si

por causa do poder durante muitos anos aconteceu que pelos arvernos e pelos seacutequanos

mercenaacuterios germanos fossem chamados Primeiramente cerca de quinze mil deles

atravessaram o Reno como tais homens ferozes e baacuterbaros comeccedilassem a gostar das

terras do modo de vida e das riquezas dos gauleses muitos mais atravessaram agora

estavam na Gaacutelia aproximadamente cento e vinte mil Contra esses os eacuteduos e os seus

clientes simultaneamente opuseram as armas uma ou duas vezes sendo eles batidos

sofreram grande calamidade perderam toda a nobreza todo o senado e toda a cavalaria

Alquebrados por tais combates e calamidades eles que anteriormente tiveram enorme

poder na Gaacutelia tanto por sua virtude quanto pela hospitalidade e amizade dos romanos

foram coagidos a entregar aos seacutequanos como refeacutens os mais nobres de seu povo e a

274

comprometecirc-lo por meio de um juramento de que natildeo os pediriam de volta natildeo

implorariam socorro aos romanos nem recusariam estar para sempre sob o mando e o

poder dos seacutequanos Ele Diviciacuteaco era o uacutenico de toda a comunidade dos eacuteduos que

natildeo pudera ser levado a jurar ou a dar seus filhos como refeacutens Por tal motivo fugira da

comunidade e viera a Roma ao senado pedir auxiacutelio pois apenas ele natildeo era impedido

nem por um juramento nem por refeacutens Contudo sucedera algo pior aos seacutequanos

vencedores do que aos eacuteduos vencidos porque Ariovisto rei dos germanos tinha-se

estabelecido no territoacuterio daqueles e ocupara um terccedilo das terras seacutequanas as melhores

de toda a Gaacutelia Agora Ariovisto ordenava que os seacutequanos se retirassem da outra terccedila

parte pois poucos meses antes juntaram-se a ele vinte e quatro mil homens dos

harudos para os quais territoacuterio e morada eram providenciados Sucederia em poucos

anos que todos fossem expulsos do territoacuterio da Gaacutelia e todos os germanos

atravessassem o Reno natildeo com efeito eram as terras dos germanos comparaacuteveis agraves

terras gaulesas nem aquele modo de vida podia ser cotejado com este Por outro lado

como Ariovisto vencera uma vez em combate as tropas dos gauleses ndash combate este que

se travou em Admagetoacutebriga ndash comandava com soberba e crueldade exigia como refeacutens

os filhos de cada um dos mais nobres gauleses e a eles infligia todas as torturas a tiacutetulo

de exemplo se algo natildeo fosse feito ao primeiro aceno ou vontade sua Ele era um

homem baacuterbaro irasciacutevel e temeraacuterio eles natildeo podiam suportar por mais tempo seu

comando A natildeo ser que houvesse algum auxiacutelio em Ceacutesar e no povo romano o mesmo

que os helveacutecios fizeram deveria ser feito por todos os gauleses sair da paacutetria e procurar

outro domiciacutelio outras moradas distantes dos germanos e por agrave prova a fortuna

qualquer que fosse Se essas coisas fossem divulgadas a Ariovisto natildeo duvidava que ele

infligiria o mais duro supliacutecio a todos os refeacutens que estavam sob seu poder Que Ceacutesar

quer por sua autoridade e pela do exeacutercito quer pela recente vitoacuteria ou quer pelo nome

do povo romano podia impedir que maior multidatildeo de germanos atravessasse o Reno e

poderia defender a Gaacutelia inteira dos abusos de Ariovisto

33 ndash His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit pollicitusque est

sibi eam rem curae futuram magnam se habere spem et beneficio suo et auctoritate

adductum Ariouistum finem iniuriis facturum Hac oratione habita concilium dimisit Et

secundum ea multae res eum hortabantur quare sibi eam rem cogitandam et

suscipiendam putaret in primis quod Haeduos fratres consanguineosque saepe numero

a senatu appellatos in seruitute atque in dicione uidebat Germanorum teneri eorumque

275

obsides esse apud Ariouistum ac Sequanos intellegebat quod in tanto imperio populi

Romani turpissimum sibi et rei publicae esse arbitrabatur Paulatim autem Germanos

consuescere Rhenum transire et in Galliam magnam eorum multitudinem uenire populo

Romano periculosum uidebat neque sibi homines feros ac barbaros temperaturos

existimabat quin cum omnem Galliam occupauissent ut ante Cimbri Teutonique

fecissent in prouinciam exirent atque inde in Italiam contenderent praesertim cum

Sequanos a prouincia nostra Rhodanus diuideret quibus rebus quam maturrime

occurrendum putabat Ipse autem Ariouistus tantos sibi spiritus tantam adrogantiam

sumpserat ut ferendus non uideretur

33 ndash Tendo conhecido essas coisas Ceacutesar fortaleceu com palavras os acircnimos dos

g uleses e prometeu que esse ssunto h veri de ser cuid do por si ―tinh gr nde

esperanccedila de que movido tanto por seus benefiacutecios quanto por sua autoridade Ariovisto

cess ri os busos Tendo proferido tal discurso despediu o conselho Em

conformidade muitas outras coisas o exortavam a considerar por qual razatildeo esse

assunto devia ser examinado e cuidado por si Sobretudo porque via os eacuteduos ndash amiuacutede

ch m dos pelo sen do irmatildeos e cons guiacuteneoslsquo ndash serem mantidos sob a servidatildeo e o

controle dos germanos e ele sabia que os refeacutens deles estavam em poder de Ariovisto e

dos seacutequanos o que considerava bastante vergonhoso para si e para a Repuacuteblica dada a

grandeza do domiacutenio do povo romano Ele via por outro lado que era perigoso para o

povo romano que os germanos aos poucos se acostumassem a atravessar o Reno e uma

grande multidatildeo deles viesse agrave Gaacutelia Pensava consigo que tais homens ferozes e

baacuterbaros natildeo haveriam de evitar tendo ocupado a Gaacutelia inteira como antes fizeram os

cimbros e os teutotildees que partissem para a proviacutencia e de laacute marchassem contra a Itaacutelia

sobretudo porque apenas o Roacutedano separava os seacutequanos de nossa proviacutencia Ceacutesar

considerava que devia resolver esse inconveniente com a maior presteza Por outro lado

o proacuteprio Ariovisto se inflara de tamanha soberba e tamanha arrogacircncia que parecia natildeo

dever ser suportado

Livro II

4 ndash Cum ab his quaereret quae ciuitates quantaeque in armis essent et quid in bello

possent sic reperiebat plerosque Belgas esse ortos ab Germanis Rhenumque

antiquitus traductos propter loci fertilitatem ibi consedisse Gallosque qui ea loca

276

incolerent expulisse solosque esse qui patrum nostrorum memoria omni Gallia uexata

Teutonos Cimbrosque intra fines suos ingredi prohibuerint qua ex re fieri uti earum

rerum memoria magnam sibi auctoritatem magnosque spiritus in re militari sumerent

De numero eorum omnia se habere explorata Remi dicebant propterea quod

propinquitatibus adfinitatibusque coniuncti quantam quisque multitudinem in communi

Belgarum concilio ad id bellum pollicitus sit cognouerint Plurimum inter eos

Bellouacos et uirtute et auctoritate et hominum numero ualere hos posse conficere

armata milia centum pollicitos ex eo numero electa sexaginta totiusque belli imperium

sibi postulare Suessiones suos esse finitimos fines latissimos feracissimosque agros

possidere Apud eos fuisse regem nostra etiam memoria Diuiciacum totius Galliae

potentissimum qui cum magnae partis harum regionum tum etiam Britanniae

imperium optinuerit nunc esse regem Galbam ad hunc propter iustitiam

prudentiamque summam totius belli omnium uoluntate deferri oppida habere numero

XII polliceri milia armata quinquaginta totidem Neruios qui maxime feri inter ipsos

habeantur longissimeque absint quindecim milia Atrebates Ambianos decem milia

Morinos XXV milia Menapios VII milia Caletos X milia Veliocasses et Viromanduos

totidem Atuatucos XVIIII milia Condrusos Eburones Caeroesos Paemanos qui uno

nomine Germani appellantur arbitrari ad XL milia

4 ndash Como Ceacutesar lhes perguntasse quais comunidades e de qual tamanho pegaram em

armas bem como seu poder na guerra descobria isto a maior parte dos belgas

descendia dos germanos eles haacute muito tempo atravessaram o Reno por causa da

fertilidade do lugar e ali se estabeleceram tendo expulsado os Gauleses que habitavam

tais paragens Eram os uacutenicos que pela lembranccedila dos nossos pais dilapidando-se toda

a Gaacutelia impediram os teutotildees e os cimbros de adentrar em seu territoacuterio disso resultava

que pela lembranccedila de tais feitos atribuiacutessem para si grande autoridade e grande

confianccedila na arte militar Os Remos diziam tudo ter conhecido acerca dos efetivos

deles visto que ligados pelo parentesco e alianccedilas souberam quatildeo grandes tropas cada

qual prometera para esta guerra no conselho comum dos belgas Os beloacutevacos muito

sobressaiacuteam entre eles tanto por seu valor e autoridade quanto pelo nuacutemero de homens

eles podiam reunir cem mil homens armados e nesse nuacutemero prometeram sessenta mil

excelentes exigindo para si o comando de toda a guerra Os suessiotildees eram seus

vizinhos possuindo vastiacutessimo territoacuterio e terras muito feacuterteis Foi seu rei ateacute haacute pouco

Diviciacuteaco o mais poderoso de toda a Gaacutelia que obtivera o comando natildeo soacute de grande

277

parte destas regiotildees mas tambeacutem da Britacircnia agora Galba era rei por sua justiccedila e

prudecircncia era-lhe confiado o comando de toda a guerra com o consenso de todos tinha

doze cidades fortificadas e prometia cinquenta mil homens armados outros tantos

prometeram os neacutervios que eram tidos como os mais ferozes entre eles proacuteprios e

habitavam muito longe os atreacutebates prometiam quinze mil os ambianos dez mil os

morinos vinte e cinco mil os menaacutepios sete mil os caletos dez mil os veliocassos e

os veromacircnduos outros tantos os aduaacuteticos dezenove mil os condrusos eburotildees

ceresos e pem nos que por um soacute nome satildeo ch m dos germ noslsquo pens v m em cerc

de quarenta mil homens

15 ndash Caesar honoris Diuiciaci atque Haeduorum causa sese eos in fidem recepturum et

conseruaturum dixit quod erat ciuitas magna inter Belgas auctoritate atque hominum

multitudine praestabat sexcentos obsides poposcit His traditis omnibusque armis ex

oppido conlatis ab eo loco in fines Ambianorum peruenit qui se suaque omnia sine

mora dediderunt Eorum fines Neruii attingebant quorum de natura moribusque

Caesar cum quaereret sic reperiebat Nullum aditum esse ad eos mercatoribus nihil

pati uini reliquarumque rerum ad luxuriam pertinentium inferri quod iis rebus

relanguescere animos eorum et remitti uirtutem existimarent esse homines feros

magnaque uirtutis increpitare atque incusare reliquos Belgas qui se populo Romano

dedidissent patriamque uirtutem proiecissent confirmare sese neque legatos missuros

neque ullam condicionem pacis accepturos

15 ndash Ceacutesar por acato a Diviciacuteaco e aos eacuteduos disse que ele os haveria de receber e

conservar em seguranccedila como a comunidade tinha grande autoridade entre os belgas e

destacava-se devido agrave multidatildeo de homens Ceacutesar exigiu seiscentos refeacutens Sendo esses

entregues e todas as armas da fortaleza fornecidas ele partiu daquele lugar para o

territoacuterio dos ambianos os quais entregaram a si mesmos e a todas as suas coisas sem

demora Os neacutervios confinavam com seu territoacuterio Como Ceacutesar indagasse a respeito da

natureza e dos costumes deles descobriu isto que os mercadores natildeo tinham acesso

algum ateacute eles natildeo permitiam que se importasse nada de vinho e dos demais itens de

luxo porque consideravam com tais coisas que se enfraqueciam seus espiacuteritos e

minguava seu valor eram homens ferozes e de grande virtude censuravam e acusavam

os belgas restantes que se tinham rendido ao povo romano e abandonado os valores

278

paacutetrios e afirmavam que natildeo haveriam de enviar embaixadores nem de aceitar condiccedilatildeo

de paz alguma

Livro IV

5 ndash His de rebus Caesar certior factus et infirmitatem Gallorum ueritus quod sunt in

consiliis capiendis mobiles et nouis plerumque rebus student nihil his committendum

existimauit Est enim hoc Gallicae consuetudinis uti et uiatores etiam inuitos consistere

cogant et quid quisque eorum de quaque re audierit aut cognouerit quaerant et

mercatores in oppidis uulgus circumsistat quibusque ex regionibus ueniant quasque ibi

res cognouerint pronuntiare cogat his rebus atque auditionibus permoti de summis

saepe rebus consilia ieunt quorum eos in uestigio paenitere necesse est cum incertis

rumoribus seruiant et plerique ad uoluntatem eorum ficta respondeant

5 ndash Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses que satildeo

voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees considerou que nada

devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume gaulecircs natildeo soacute obrigar

constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar saber aquilo que cada um deles

ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los

a falar de quais regiotildees provecircm e o que ali conheceram movidos por tais feitos e

boatos muitas vezes os gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos

das quais eacute forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a

maior parte mente ao responder segundo a vontade deles

12 ndash At hostes ubi primum nostros equites conspexerunt quorum erat V milium

numerus cum ipsi non amplius octingentos equites haberent quod ii qui frumentandi

causa ierant trans Mosam nondum redierant nihil timentibus nostris quod legati

eorum paulo ante a Caesare discesserant atque is dies indutiis erat ab his petitus

impetu facto celeriter nostros perturbauerunt rursus his resistentibus consuetudine sua

ad pedes desiluerunt subfossis equis conpluribusque nostris deiectis reliquos in fugam

coniecerunt atque ita perterritos egerunt ut non prius fuga desisterent quam in

conspectum agminis nostri uenissent In eo proelio ex equitibus nostris interficiuntur

quattuor et septuaginta in his uir fortissimus Piso Aquitanus amplissimo genere natus

279

cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu nostro appellatus Hic

cum fratri intercluso ab hostibus auxilium ferret illum ex periculo eripuit ipse equo

uulnerato deiectus quoad potuit fortissime restitit cum circumuentus multis uulneribus

acceptis cecidisset atque id frater qui iam proelio excesserat procul animaduertisset

incitato equo se hostibus obtulit atque interfectus est

12 ndash Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil (natildeo

dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que atravessaram o

Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em nada temendo os nossos

porque os embaixadores deles pouco antes tinham-se despedido de Ceacutesar e aquele era

o dia de treacutegua solicitado por eles rapidamente nos desordenaram com um ataque

Novamente resistindo os nossos saltaram eles de peacute conforme seu costume matando os

cavalos montados e derrubando em maior nuacutemero os nossos puseram em fuga os

restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute virem agrave

presenccedila de nossa tropa Nesse combate satildeo mortos setenta e quatro dos nossos

cavaleiros entre eles um homem fortiacutessimo Pisatildeo Aquitano nascido de

importantiacutessima famiacutelia cujo avocirc obtivera o comando em sua cidade e que fora

ch m do migolsquo por nosso sen do Lev ndo ele uxiacutelio o irmatildeo cerc do por

inimigos livrou-o do perigo ele mesmo derrubado de seu cavalo ferido resistiu muito

bravamente enquanto pode rodeado tombou ao receber vaacuterios ferimentos Notando-o

de longe o irmatildeo que jaacute deixara a batalha esporeou seu cavalo lanccedilou-se contra os

inimigos e foi morto

280

2 ndash Tito Liacutevio

Da fundaccedilatildeo da Cidade - Livro V

34 ndash De transitu in Italiam Gallorum haec accepimus Prisco Tarquinio Romae

regnante Celtarum quae pars Galliae tertia est penes Bituriges summa imperii fuit ii

regem Celtico dabant Ambigatus is fuit uirtute fortunaque cum sua tum publica

praepollens quod in imperio eius Gallia adeo frugum hominumque fertilis fuit ut

abundans multitudo uix regi uideretur posse Hic magno natu ipse iam exonerare

praegrauante turba regnum cupiens Bellouesum ac Segouesum sororis filios impigros

iuuenes missurum se esse in quas di dedissent auguriis sedes ostendit quantum ipsi

uellent numerum hominum excirent ne qua gens arcere aduenientes posset Tum

Segoueso sortibus dati Hercynei saltus Belloueso haud paulo laetiorem in Italiam uiam

di dabant Is quod eius ex populis abundabat Bituriges Aruernos Senones Haeduos

Ambarros Carnutes Aulercos exciuit Profectus ingentibus peditum equitumque copiis

in Tricastinos uenit Alpes inde oppositae erant quas inexsuperabiles uisas haud

equidem miror nulladum uia quod quidem continens memoria sit nisi de Hercule

fabulis credere libet superatas Ibi cum uelut saeptos montium altitudo teneret Gallos

circumspectarentque quanam per iuncta caelo iuga in alium orbem terrarum transirent

religio etiam tenuit quod allatum est aduenas quaerentes agrum ab Saluum gente

oppugnari Massilienses erant ii nauibus a Phocaea profecti Id Galli fortunae suae

omen rati adiuuere ut quem primum in terram egressi occupauerant locum patientibus

Saluis communirent Ipsi per Taurinos saltus quiete Alpis transcenderunt fusisque acie

Tuscis haud procul Ticino flumine cum in quo consederant agrum Insubrium appellari

audissent cognominem Insubribus pago Haeduorum ibi omen sequentes loci condidere

urbem Mediolanium appellarunt

34 ndash Sobre a vinda dos gauleses para a Itaacutelia conhecemos isto enquanto Tarquiacutenio

Prisco era rei em Roma estiveram os maiores domiacutenios dos celtas em poder dos

bituacuteriges (que compotildeem a terccedila parte da Gaacutelia) e foram esses que deram um rei ao povo

ceacuteltico Foi ele Ambigato entatildeo muito poderoso pela virtude e fortuna sua e do seu

povo no governo dele a Gaacutelia ateacute entatildeo fora tatildeo feacutertil em cereais e homens que com

custo tamanha multidatildeo pareceria ser governada Ele estando idoso e jaacute desejando livrar

o reino de uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso

filhos da sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes mostrariam

281

por meio de auguacuterios Eles mesmos deveriam chamar o nuacutemero de homens que

quisessem de modo que nenhuma naccedilatildeo pudesse repelir a sua chegada Assim a

Segoveso foi dada pelos oraacuteculos a floresta Herciacutenia a Beloveso os deuses concederam

um caminho mais favoraacutevel para a Itaacutelia Beloveso chamou o excedente dos seus povos

bituacuteriges arvernos secircnones eacuteduos ambarros carnutos e aulercos Partindo com

grandes tropas de soldados e cavaleiros chegou ateacute aos tricastinos Nesse lugar estavam

opostos os Alpes sem duacutevida natildeo me espanto que eles pareccedilam insuperaacuteveis jaacute que por

nenhuma estrada foram cortados ndash como certamente temos na memoacuteria ndash a natildeo ser que

se acredite nas narrativas sobre Heacutercules Nesse local como a altura das montanhas

mantivesse os gauleses retidos eles examinavam os arredores por onde haveriam de

passar atraveacutes de cimos quase unidos ao ceacuteu para outro mundo de terras Tambeacutem a

religiatildeo os retinha pois lhes fora anunciado que estrangeiros desejosos de terra eram

atacados pelo povo saluacutevio Esses estrangeiros eram os marselheses que vieram da

Foceia em navios Os gauleses considerando isso o pressaacutegio de sua sorte os ajudaram

a fortificar o primeiro local que ocuparam ao chegar a essa terra sendo os saluacutevios

suportados Eles mesmos atravessaram tranquilamente os Alpes atraveacutes do desfiladeiro

taurino tendo expulsado os etruscos em uma batalha natildeo muito longe do rio Ticino

ouviram que eles se encontravam naquele local que era chamado campo dos iacutensubres o

nome da povoaccedilatildeo dos iacutensubres e dos eacuteduos Nesse lugar seguindo eles o pressaacutegio

fundaram uma cidade que chamaram de Mediolano634

35 ndash Alia subinde manus Cenomanorum Etitouio duce uestigia priorum secuta eodem

saltu fauente Belloueso cum transcendisset Alpes ubi nunc Brixia ac Verona urbes sunt

locos tenuere Libui considunt post hos Salluuiique prope antiquam gentem Laeuos

Ligures incolentes circa Ticinum amnem Poeninum deinde Boii Lingonesque

transgressi cum iam inter Padum atque Alpes omnia tenerentur Pado ratibus traiecto

non Etruscos modo sed etiam Vmbros agro pellunt intra Appenninum tamen sese

tenuere Tum Senones recentissimi aduenarum ab Vtente flumine usque ad Aesim fines

habuere Hanc gentem Clusium Romamque inde uenisse comperio id parum certum

est solamne an ab omnibus Cisalpinorum Gallorum populis adiutam Clusini nouo

bello exterriti cum multitudinem cum formas hominum inuisitatas cernerent et genus

armorum audirentque saepe ab iis cis Padum ultraque legiones Etruscorum fusas

quamquam aduersus Romanos nullum eis ius societatis amicitiaeue erat nisi quod

634

Atual Milatildeo

282

Veientes consanguineos aduersus populum Romanum non defendissent legatos Romam

qui auxilium ab senatu peterent misere De auxilio nihil impetratum legati tres M Fabi

Ambusti filii missi qui senatus populique Romani nomine agerent cum Gallis ne a

quibus nullam iniuriam accepissent socios populi Romani atque amicos oppugnarent

Romanis eos bello quoque si res cogat tuendos esse sed melius uisum bellum ipsum

amoueri si posset et Gallos nouam gentem pace potius cognosci quam armislsquo

35 ndash Logo depois outro grupo de cenomanos tendo por liacuteder Etitovio seguiu os passos

dos precedentes e com a ajuda de Beloveso atravessou os Alpes pelo mesmo

desfiladeiro esse grupo ocupou os lugares onde hoje estatildeo as cidades de Briacutexia635

e

Verona Os liacutebuos se estabeleceram depois desses e tambeacutem os saluacutevios perto da antiga

tribo dos levos liacutegures que habitavam proacuteximo ao rio Ticino Em seguida tendo os

boios e os liacutengones atravessado os Apeninos como jaacute estivessem ocupadas todas as

terras entre o rio Poacute e os Alpes com barcos atravessaram o Poacute e expulsaram da terra natildeo

soacute os etruscos mas tambeacutem os umbros contudo eles se estabeleceram nos limites dos

Apeninos Entatildeo os secircnones que vieram por uacuteltimo tomaram o territoacuterio do rio Utente

ateacute o rio Eacutesis Eu soube que foi essa a tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para Roma o que

parece pouco certo eacute se eles contaram ou natildeo com o apoio de todos os povos da Gaacutelia

Cisalpina Os clusinos aterrorizados com essa guerra singular ao ver a multidatildeo de

figuras desconhecidas tanto de homens quanto de tipo de armas e ouvindo que por

vaacuterias vezes as tropas dos etruscos foram dispersadas do lado de caacute e do lado de laacute do

Poacute enviaram emissaacuterios a Roma para que pedissem auxiacutelio ao senado embora natildeo

tivessem com os romanos nenhum direito de alianccedila ou amizade ndash com exceccedilatildeo do fato

de eles natildeo terem defendido os seus parentes de Veios contra o povo romano Sobre o

auxiacutelio nada foi obtido poreacutem foram enviados trecircs legados filhos de Marco Faacutebio

Ambusto para que em nome do senado e do povo romano tivessem com os gauleses

―p r que natildeo lut ssem contr os li dos e migos do povo rom no pois natildeo tinh m

recebido deles nenhuma injuacuteria Pelos romanos eles seriam defendidos atraveacutes da

guerra se algo se sucedesse mas parecia melhor a proacutepria guerra ser evitada se

pudesse e que os gauleses uma gente receacutem conhecida fossem conhecidos mais pela

p z do que pel s rm s

635

Atual Breacutescia

283

36 ndash Mitis legatio ni praeferoces legatos Gallisque magis quam Romanis similes

habuisset Quibus postquam mandata ediderunt in concilio Gallorum datur responsum

etsi nouum nomen audiant Romanorum tamen credere uiros fortes esse quorum

auxilium a Clusinis in re trepida sit imploratum et quoniam legatione aduersus se

maluerint quam armis tueri socios ne se quidem pacem quam illi adferant aspernari si

Gallis egentibus agro quem latius possideant quam colant Clusini partem finium

concedant aliter pacem impetrari non posse Et responsum coram Romanis accipere

uelle et si negetur ager coram iisdem Romanis dimicaturos ut nuntiare domum

possent quantum Galli uirtute ceteros mortales praestarentlsquo Quodnam id ius esset

agrum a possessoribus petere aut minari armalsquo Romanis quaerentibus et quid in

Etruria rei Gallis essetlsquo cum illi se in armis ius ferre et omnia fortium uirorum esselsquo

ferociter dicerent accensis utrimque animis ad arma discurritur et proelium

conseritur Ibi iam urgentibus Romanam urbem fatis legati contra ius gentium arma

capiunt Nec id clam esse potuit cum ante signa Etruscorum tres nobilissimi

fortissimique Romanae iuuentutis pugnarent tantum eminebat peregrina uirtus Quin

etiam Q Fabius euectus extra aciem equo ducem Gallorum ferociter in ipsa signa

Etruscorum incursantem per latus transfixum hasta occidit spoliaque eius legentem

Galli agnouere perque totam aciem Romanum legatum esse signum datum est Omissa

inde in Clusinos ira receptui canunt minantes Romanis Erant qui extemplo Romam

eundum censerent uicere seniores ut legati prius mitterentur questum iniurias

postulatumque ut pro iure gentium uiolato Fabii dederentur Legati Gallorum cum ea

sicut erant mandata exposuissent senatui nec factum placebat Fabiorum et ius

postulare barbari uidebantur sed ne id quod placebat decerneret in tantae nobilitatis

uiris ambitio obstabat Itaque ne penes ipsos culpa esset [cladis forte Gallico bello

acceptae] cognitionem de postulatis Gallorum ad populum reiciunt ubi tanto plus

gratia atque opes ualuere ut quorum de poena agebatur tribuni militum consulari

potestate in insequentem annum crearentur Quo facto haud secus quam dignum erat

infensi Galli bellum propalam minantes ad suos redeunt Tribuni militum cum tribus

Fabiis creati Q Sulpicius Longus Q Seruilius quartum P Cornelius Maluginensis

36 ndash A delegaccedilatildeo seria paciacutefica se natildeo fossem os emissaacuterios tatildeo violentos que mais

parecessem gauleses do que romanos A eles depois que anunciaram os assuntos

orden dos no conselho dos g uleses foi d d seguinte respost ― ind que

escutassem pela primeira vez o nome dos romanos contudo acreditavam que eles eram

284

os homens fortes aos quais pelos clusinos tenha sido implorado o auxiacutelio em uma

ocasiatildeo alarmante como eles preferiram defender os aliados mais com uma embaixada

do que com armas na verdade eles natildeo haveriam de recusar a paz se aos gauleses

necessitados de terra os clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles

possuiacuteam mais terra de outra maneira a paz natildeo poderia ser obtida Desejavam receber

a resposta diante dos romanos e se a terra fosse negada diante dos mesmos romanos

eles haveriam de combater de modo que eles pudessem anunciar agrave sua paacutetria o quanto

os g uleses ultr p ss v m os outros mort is em v lor Os rom nos pergunt r m ―que

interesse tinh m os g uleses n Etruacuteri Como eles respondessem ferozmente que

―tinh m o direito tr veacutes d s rm s e tudo pertenci os homens m is fortes dess

forma os acircnimos de um e outro lado se inflamaram Eles correram para as armas e

travaram combate Entatildeo jaacute estando a urbe romana proacutexima ao seu destino funesto os

emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas Isso natildeo pocircde ser feito agraves

escondidas jaacute que os trecircs homens nobres e fortiacutessimos da juventude romana lutavam

diante dos estandartes dos etruscos e muito se elevava o valor estrangeiro Ainda mais

que Quinto Faacutebio levado com o cavalo para aleacutem da batalha matou o liacuteder dos gauleses

que ferozmente se lanccedilava contra os estandartes dos etruscos transpassando-lhe o

flanco com uma lanccedila Os gauleses o reconheceram pegando os despojos e por toda a

batalha foi dada a notiacutecia de ele ser o emissaacuterio dos romanos Entatildeo a ira contra os

clusinos foi deixada de lado e eles se afastaram gritando ameaccedilas contra os romanos

Eles estavam decididos a partir imediatamente para Roma poreacutem venceram os anciotildees

para que antes fossem enviados emissaacuterios para reclamar das injuacuterias e requerer que os

Faacutebios lhes fossem entregues devido ao direito violado das naccedilotildees Os emissaacuterios dos

gauleses comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a

accedilatildeo dos Faacutebios e eles reconheceram como sendo justo o pedido dos baacuterbaros

Contudo a condescendecircncia por homens de tamanha nobreza fazia oposiccedilatildeo para que

natildeo fosse decidido o que agradava ao senado Assim para que a culpa natildeo caiacutesse sobre

o mesmo (caso uma guerra gaulesa causasse destruiccedilatildeo) o senado passou para o povo a

decisatildeo sobre os pedidos dos gauleses Como a influecircncia e o recurso valessem mais do

que o que fora discutido sobre a sua puniccedilatildeo eles foram eleitos tribunos militares com

poder consular para o ano seguinte Irritados com esse fato indigno os gauleses

ameaccedilando abertamente uma guerra voltaram para os seus Foram eleitos tribunos

militares junto com os trecircs Faacutebios Quinto Sulpiacutecio Longo Quinto Serviacutelio (pela quarta

vez) e Puacuteblio Corneacutelio Maluginense

285

37 ndash Cum tanta moles mali instaret ndash adeo occaecat animos Fortuna ubi uim suam

ingruentem refringi non uolt ndash ciuitas quae aduersus Fidenatem ac Veientem hostem

aliosque finitimos populos ultima experiens auxilia dictatorem multis tempestatibus

dixisset ea tunc inuisitato atque inaudito hoste ab Oceano terrarumque ultimis oris

bellum ciente nihil extraordinarii imperii aut auxilii quaesiuit Tribuni quorum

temeritate bellum contractum erat summae rerum praeerant dilectumque nihilo

accuratiorem quam ad media bella haberi solitus erat extenuantes etiam famam belli

habebant Interim Galli postquam accepere ultro honorem habitum uiolatoribus iuris

humani elusamque legationem suam esse flagrantes ira cuius impotens est gens

confestim signis conuolsis citato agmine iter ingrediuntur Ad quorum praetereuntium

raptim tumultum cum exterritae urbes ad arma concurrerent fugaque agrestium fieret

Romam se irelsquo magno clamore significabant quacumque ibant equis uirisque longe ac

late fuso agmine immensum obtinentes loci Sed antecedente fama nuntiisque

Clusinorum deinceps inde aliorum populorum plurimum terroris Romam celeritas

hostium tulit quippe quibus uelut tumultuario exercitu raptim ducto aegre ad

undecimum lapidem occursum est qua flumen Allia Crustuminis montibus praealto

defluens alueo haud multum infra uiam Tiberino amni miscetur Iam omnia contra

circaque hostium plena erant et nata in uanos tumultus gens truci cantu clamoribusque

uariis horrendo cuncta compleuerant sono

37 ndash Como tamanho mal estivesse iminente ndash de tal forma a Fortuna cega os acircnimos

quando ela natildeo quer que a sua vontade de agir seja reprimida ndash a cidade que contra os

inimigos de Fidena e de Veios e contra outros povos vizinhos experimentando muitas

calamidades recorreu a um ditador para supremos auxiacutelios Essa cidade entatildeo diante de

um inimigo novo e estranho que buscava a guerra vindo do oceano e dos uacuteltimos

recantos das terras natildeo recorreu a nenhum poder extraordinaacuterio ou auxiacutelio Os tribunos

cuja temeridade provocou a guerra estavam agrave frente do supremo comando e

considerando nada mais cuidadosamente do que jaacute fosse o usual para as guerras

comuns menosprezaram ainda o perigo da guerra Nesse meio tempo os gauleses

quando souberam que fora concedida tal honra aos violadores do direito das naccedilotildees e

aleacutem disso que tinha sido frustrada a sua embaixada inflamados pela ira (que esse povo

eacute incapaz de controlar) imediatamente tomaram os estandartes e marcharam pelo

caminho com fileira apressada Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente

as comunidades aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a fuga com

286

gr nde cl mor eles nunci v m ―v mos Rom Por onde quer que p ss ssem com

fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e tropas se espalhando em comprimento

e largura Mas mesmo antes do rumor e dos mensageiros dos clusinos e tambeacutem dos

mensageiros dos outros povos foi a rapidez dos inimigos que trouxe o terror a Roma

certamente porque o seu exeacutercito fora recrutado agraves pressas e mesmo rapidamente

conduzido com dificuldade ele avanccedilou onze milhas ateacute onde o rio Aacutelia descendo dos

montes crustuacutemios por um canal muito profundo se unia agrave corrente tiberina natildeo muito

abaixo do curso Jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e

esse povo dado a tumultos vatildeos com canto cruel e vaacuterios gritos preenchiam tudo com

horrendo clamor

38 ndash Ibi tribuni militum non loco castris ante capto non praemunito uallo quo receptus

esset non deorum saltem si non hominum memores nec auspicato nec litato instruunt

aciem diductam in cornua ne circumueniri multitudine hostium possent nec tamen

aequari frontes poterant cum extenuando infirmam et uix cohaerentem mediam aciem

haberent Paulum erat ab dextera editi loci quem subsidiariis repleri placuit eaque res

ut initium pauoris ac fugae sic una salus fugientibus fuit Nam Brennus regulus

Gallorum in paucitate hostium artem maxime timens ratus ad id captum superiorem

locum ut ubi Galli cum acie legionum recta fronte concucurrissent subsidia in auersos

transuersosque impetum darent ad subsidiarios signa conuertit si eos loco depulisset

haud dubius facilem in aequo campi tantum superanti multitudini uictoriam fore Adeo

non fortuna modo sed ratio etiam cum barbaris stabat In altera acie nihil simile

Romanis non apud duces non apud milites erat Pauor fugaque occupauerat animos et

tanta omnium obliuio ut multo maior pars Veios in hostium urbem cum Tiberis arceret

quam recto itinere Romam ad coniuges ac liberos fugerent Parumper subsidiarios

tutatus est locus in reliqua acie simul est clamor proximis ab latere ultimis ab tergo

auditus ignotum hostem prius paene quam uiderent non modo non temptato certamine

sed ne clamore quidem reddito integri intactique fugerunt nec ulla caedes pugnantium

fuit terga caesa suomet ipsorum certamine in turba impedientium fugam Circa ripam

Tiberis quo armis abiectis totum sinistrum cornu defugit magna strages facta est

multosque imperitos nandi aut inualidos graues loricis aliisque tegminibus hausere

gurgites maxima tamen pars incolumis Veios perfugit unde non modo praesidii

quicquam sed ne nuntius quidem cladis Romam est missus Ab dextro cornu quod

287

procul a flumine et magis sub monte steterat Romam omnes petiere et ne clausis

quidem portis urbis in arcem confugerunt

38 ndash Entatildeo os tribunos militares sem escolher um lugar para o acampamento ou

fortificar uma trincheira que serviria de refuacutegio e nem ao menos se lembrando dos

deuses ou dos homens ao natildeo tomar os auspiacutecios ou oferecer os sacrifiacutecios postaram

em linha de batalha o exeacutercito alinhado em alas de modo que a multidatildeo dos inimigos

natildeo o cercassem Contudo natildeo puderam igualar as alas jaacute que com essa disposiccedilatildeo a

linha do meio ficou fraca e com custo se mantinha unida Havia uma pequena elevaccedilatildeo

pelo lado direito que os tribunos decidiram ocupar com as tropas de reserva essa

manobra que marcou o iniacutecio do pavor e da fuga tambeacutem serviu como o uacutenico meio de

salvaccedilatildeo aos desertores que debandavam De fato Breno comandante dos gauleses

especialmente receando um engodo devido ao pequeno nuacutemero de inimigos ndash e

avaliando que essa elevaccedilatildeo tinha sido ocupada de modo que no momento em que os

gauleses atacassem de frente a linha reta das legiotildees essas tropas reservas fizessem um

ataque pelos lados e por traacutes ndash virou as suas tropas contra essas de reserva Se os

expulsasse daquele lugar sem duacutevida a vitoacuteria em um terreno plano seria faacutecil jaacute que os

gauleses os superavam pela maior quantidade de homens Ateacute esse ponto natildeo apenas a

sorte mas tambeacutem a inteligecircncia estava com os baacuterbaros No exeacutercito contraacuterio natildeo

havia nada que se assemelhasse aos romanos nem junto aos comandantes nem junto

aos soldados O pavor e a fuga tomaram os acircnimos de tal forma que tamanho

esquecimento de tudo fez com que a maior parte deles fugisse para a inimiga cidade de

Veios (ainda que o Tibre os retivesse) e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma

para as suas esposas e filhos Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na

outra linha de batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos que

estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que sem nem ao

menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram um combate ou sequer

responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e ningueacutem morreu lutando na

verdade eles feridos pelas costas eram impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da

multidatildeo Em volta da margem do Tibre fugiu toda a ala esquerda tendo atirado no rio

as armas Fez-se uma grande carnificina e muitos incapazes de nadar pelo peso das

couraccedilas e outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram engolidos pelos turbilhotildees das

aacuteguas Todavia a maior parte deles fugiu incoacutelume para Veios de onde nenhum socorro

ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma Da ala direita que estivera

288

mais longe do rio e mais perto do peacute do monte todos fugiram para Roma e nem ao

menos fechando as portas da cidade se refugiaram na cidadela

39 ndash Gallos quoque uelut obstupefactos miraculum uictoriae tam repentinae tenuit et

ipsi pauore defixi primum steterunt uelut ignari quid accidisset deinde insidias uereri

postremo caesorum spolia legere armorumque cumulos ut mos eis est coaceruare tum

demum postquam nihil usquam hostile cernebatur uiam ingressi haud multo ante solis

occasum ad urbem Romam perueniunt Ubi cum praegressi equites non portas clausas

non stationem pro portis excubare non armatos esse in muris rettulissent aliud priori

simile miraculum eos sustinuit noctemque ueriti et ignotae situm urbis inter Romam

atque Anienem consedere exploratoribus missis circa moenia aliasque portas quaenam

hostibus in perdita re consilia essent Romani cum pars maior ex acie Veios petisset

quam Romam nemo superesse quemquam praeter eos qui Romam refugerant crederet

complorati omnes pariter uiui mortuique totam prope urbem lamentis impleuerunt

Priuatos deinde luctus stupefecit publicus pauor postquam hostes adesse nuntiatum est

mox ululatus cantusque dissonos uagantibus circa moenia turmatim barbaris

audiebant Omne inde tempus suspensos ita tenuit animos usque ad lucem alteram ut

identidem iam in urbem futurus uideretur impetus primo aduentu quia accesserant ad

urbem mdashmansuros enim ad Alliam fuisse nisi hoc consilii foretlsquomdash deinde sub

occasum solis quia haud multum diei supererat mdash ante noctem satius inuasuroslsquomdash

tum in noctem dilatum consilium esse quo plus pauoris inferrentlsquo postremo lux

appropinquans exanimare timorique perpetuo ipsum malum continens fuit cum signa

infesta portis sunt inlata Nequaquam tamen ea nocte neque insequenti die similis illi

quae ad Alliam tam pauide fugerat ciuitas fuit Nam cum defendi urbem posse tam

parua relicta manu spes nulla esset placuit cum coniugibus ac liberis iuuentutem

militarem senatusque robur in arcem Capitoliumque concedere armisque et frumento

conlato ex loco inde munito deos hominesque et Romanum nomen defendere flaminem

sacerdotesque Vestales sacra publica a caede ab incendiis procul auferre nec ante

deseri cultum eorum quam non superessent qui colerent si arx Capitoliumque sedes

deorum si senatus caput publici consilii si militaris iuuentus superfuerit imminenti

ruinae urbis facilem iacturam esse seniorum relictae in urbe utique periturae turbaelsquo

Et quo id aequiore animo de plebe multitudo ferret senes triumphales consularesque

simul se cum illislsquo palam dicere obituros nec his corporibus quibus non arma ferre

non tueri patriam possent oneraturos inopiam armatorumlsquo

289

39 ndash O prodiacutegio de uma vitoacuteria tatildeo repentina deixou os gauleses de tal maneira

estupefatos que em um primeiro momento eles mesmos ficaram imoacuteveis de espanto

como se natildeo entendessem o que tinha acontecido depois temeram uma armadilha Por

fim recolheram os despojos dos mortos e os amontoaram em pilhas de armas de acordo

com o costume deles Depois que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela

estrada e chegaram a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol Quando os cavaleiros

batedores retornaram e informaram que natildeo viram as portas fechadas nem sentinela

vigiando as entradas e nenhum soldado a postos nas muralhas outro prodiacutegio

(semelhante ao anterior) os conteve Receando a noite e o abandono da desconhecida

cidade eles acamparam entre Roma e o Acircnio depois de enviar batedores ao redor das

muralhas e das outras portas para saber quais planos tinham os inimigos em uma

situaccedilatildeo tatildeo desesperadora Quanto aos romanos a maior parte da tropa tinha fugido

para Veios ao inveacutes de Roma ningueacutem acreditava que havia mais sobreviventes do que

aqueles que tinham se refugiado em Roma todos ao mesmo tempo lastimando os vivos

e os mortos encheram toda a cidade com seus lamentos Em seguida o pavor

generalizado se sobrepocircs aos gemidos pessoais assim que foi anunciado que os

inimigos estavam por perto logo eles ouviram os gritos e uivos dissonantes dos

baacuterbaros que em bandos perambulavam em volta das muralhas A partir de entatildeo e por

todo o tempo ateacute o dia seguinte os acircnimos se mantiveram inquietos a tal ponto que

continuamente parecia que ia acontecer o ataque agrave cidade primeiro na chegada pois

eles jaacute tinham se aproximado da cidade ndash ―de f to teri m perm necido em Aacuteli se isso

natildeo fosse de seu consenso Depois ch r m que o t que ia ser realizado ao pocircr do sol

pois jaacute natildeo h vi muit cl rid de e ―inv diri m melhor ntes do c ir d noite Em

seguid consider r m que ―o t que tinh sido di do p r noite p r c us r m is

p vor Por fim proacuteximo o m nhecer o temor ger l se juntou o proacuteprio perigo

quando as tropas hostis adentraram pelas portas Contudo de forma alguma durante

aquela noite nem durante o dia seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que

com tamanho pavor tinham fugido para Aacutelia De fato como natildeo havia esperanccedila de que

a cidade pudesse ser defendida pelas poucas tropas que restavam decidiu-se entatildeo que

junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores vigorosos se

refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Com armas e provisotildees estocadas desse lugar

fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o nome romano O flacircmine e as

sacerdotisas vestais manteriam os ritos sagrados do povo protegidos do massacre e dos

290

incecircndios e natildeo abandonariam o seu culto a natildeo ser que natildeo existisse mais ningueacutem

que o vener sse ―se cid del do C pitoacutelio sede dos deuses o sen do fonte d

deliberaccedilatildeo puacuteblica e os jovens soldados resistissem agrave iminente ruiacutena da cidade seria

aceitaacutevel o sacrifiacutecio dos anciatildeos jaacute que essa multidatildeo que fora deixada na cidade

h veri de morrer de qu lquer form Assim p r que multidatildeo d plebe suport sse

isso de acircnimo mais calmo os anciatildeos que jaacute tinham obtido triunfos e consulados

decl r r m public mente que ―junt mente com eles h veri m de morrer natildeo gr v ndo

a falta de soldados com esses corpos que natildeo podem carregar armas e nem defender a

paacutetri

41 ndash Romae interim satis iam omnibus ut in tali re ad tuendam arcem compositis

turba seniorum domos regressi aduentum hostium obstinato ad mortem animo

exspectabant Qui eorum curules gesserant magistratus ut in fortunae pristinae

honorumque aut uirtutis insignibus morerentur quae augustissima uestis est tensas

ducentibus triumphantibusue ea uestiti medio aedium eburneis sellis sedere Sunt qui

M Folio pontifice maximo praefante carmen deuouisse eos se pro patria Quiritibusque

Romanis tradant Galli et quia interposita nocte a contentione pugnae remiserant

animos et quod nec in acie ancipiti usquam certauerant proelio nec tum impetu aut ui

capiebant urbem sine ira sine ardore animorum ingressi postero die urbem patente

Collina porta in forum perueniunt circumferentes oculos ad templa deum arcemque

solam belli speciem tenentem Inde modico relicto praesidio ne quis in dissipatos ex

arce aut Capitolio impetus fieret dilapsi ad praedam uacuis occursu hominum uiis

pars in proxima quaeque tectorum agmine ruunt pars ultima uelut ea demum intacta et

referta praeda petunt inde rursus ipsa solitudine absterriti ne qua fraus hostilis uagos

exciperet in forum ac propinqua foro loca conglobati redibant ubi eos plebis

aedificiis obseratis patentibus atriis principum maior prope cunctatio tenebat aperta

quam clausa inuadendi adeo haud secus quam uenerabundi intuebantur in aedium

uestibulis sedentes uiros praeter ornatum habitumque humano augustiorem maiestate

etiam quam uoltus grauitasque oris prae se ferebat simillimos dis Ad eos uelut

simulacra uersi cum starent M Papirius unus ex iis dicitur Gallo barbam suam ut

tum omnibus promissa erat permulcenti scipione eburneo in caput incusso iram

mouisse atque ab eo initium caedis ortum ceteros in sedibus suis trucidatos post

principium caedem nulli deinde mortalium parci diripi tecta exhaustis inici ignes

291

41 ndash Enquanto isso em Roma jaacute estava tudo preparado para tamanha emergecircncia e

defesa da cidadela entatildeo a multidatildeo dos anciatildeos regressou agraves casas para esperar a

chegada dos inimigos com acircnimo firme para a morte Os que exerceram magistraturas

curuis a fim de morrer com as distinccedilotildees de sua antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela

virtude trajaram a augustiacutessima veste que era concedida aos que foram comandantes ou

que obtiveram um triunfo e se sentaram em cadeiras de marfim no meio das casas

Conta-se que estando agrave frente Marco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recitaram um canto

e ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos Os gauleses devido

agrave passagem da noite abrandaram seus acircnimos da tensatildeo da luta e como de modo algum

tivessem combatido em uma luta incerta ocupavam a cidade sem grande iacutempeto ou

forccedila Sem ira e sem ardor dos acircnimos no dia seguinte eles ingressaram na cidade pela

porta Colina que estava aberta e chegaram ao foacuterum movendo os olhos ao redor para

os templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que tinha um aspecto de combate

Daquele lugar entatildeo sendo deixada uma pequena guarda para que nenhum ataque se

fizesse contra os que estavam espalhados da cidadela ou do Capitoacutelio eles se

dispersaram pelas ruas vazias em busca da pilhagem sem encontrar ningueacutem Uma

parte deles correu em bando ateacute algumas casas proacuteximas outra parte se dirigiu para as

distantes como se somente essas intocadas estivessem cheias de despojos Entatildeo de

novo amedrontados por esse mesmo abandono e para que aqueles que perambulavam

natildeo fossem surpreendidos por uma armadilha inimiga eles voltaram reunidos para o

foacuterum e os lugares proacuteximos Nesse lugar estando as casas da plebe fechadas e as da

nobreza abertas eles hesitavam mais em invadir as casas abertas do que as trancadas

Bastante respeitosos ele observaram atentamente os homens sentados nos vestiacutebulos

das casas com ornamento e aspecto mais divino do que humano e tambeacutem muito

semelhantes aos deuses pela majestade do seu semblante e a dignidade que se mostrava

de sua aparecircncia Diante deles como se fossem estaacutetuas eles ficaram parados conta-se

que um deles Marco Papiacuterio com um bastatildeo de marfim bateu na cabeccedila de um gaulecircs

que lhe acariciava a sua longa barba (como outrora era costume de todos) tendo

provocado a sua ira Com ele o massacre comeccedilou e os outros em seus assentos foram

trucidados depois que se iniciou a carnificina nenhum dos mortais foi poupado e apoacutes

esvaziarem as casas saqueadas lhes atearam fogo

42 ndash Ceterum seu non omnibus delendi urbem libido erat seu ita placuerat principibus

Gallorum et ostentari quaedam incendia terroris causa si compelli ad deditionem

292

caritate sedum suarum obsessi possent et non omnia concremari tecta ut quodcumque

superesset urbis id pignus ad flectendos hostium animos haberent nequaquam perinde

atque in capta urbe primo die aut passim aut late uagatus est ignis Romani ex arce

plenam hostium urbem cernentes uagosque per uias omnes cursus cum alia atque alia

parte noua aliqua clades oreretur non mentibus solum concipere sed ne auribus

quidem atque oculis satis constare poterant Quocumque clamor hostium mulierum

puerorumque ploratus sonitus flammae et fragor ruentium tectorum auertisset

pauentes ad omnia animos oraque et oculos flectebant uelut ad spectaculum a Fortuna

positi occidentis patriae nec ullius rerum suarum relicti praeterquam corporum

uindices tanto ante alios miserandi magis qui unquam obsessi sunt quod interclusi a

patria obsidebantur omnia sua cernentes in hostium potestate Nec tranquillior nox

diem tam foede actum excepit lux deinde noctem inquieta insecuta est nec ullum erat

tempus quod a nouae semper cladis alicuius spectaculo cessaret Nihil tamen tot onerati

atque obruti malis flexerunt animos quin etsi omnia flammis ac ruinis aequata

uidissent quamuis inopem paruumque quem tenebant collem liberati relictum uirtute

defenderent et iam cum eadem cottidie acciderent uelut adsueti malis abalienauerant

ab sensu rerum suarum animos arma tantum ferrumque in dextris uelut solas reliquias

spei suae intuentes

42 ndash Aliaacutes ou nem todos tinham o desejo de destruir a cidade ou agradava aos liacutederes

dos gauleses o seguinte por um lado ao se exibir alguns incecircndios como a causa do

terror eles poderiam forccedilar os sitiados agrave rendiccedilatildeo devido ao amor pelas suas habitaccedilotildees

por outro lado ao natildeo queimarem todas as casas eles teriam como garantia que o que

quer que restasse da cidade serviria para dobrar os acircnimos dos inimigos De forma

alguma no primeiro dia o fogo se espalhou em desordem e amplamente como

aconteceria em uma cidade tomada Os romanos da cidadela observavam a cidade

repleta de inimigos que corriam por todas as ruas como em uma e outra parte surgia

algum novo desastre natildeo soacute natildeo entenderam com as mentes mas tambeacutem sequer

puderam confiar em seus ouvidos e olhos Por onde quer que o clamor dos inimigos o

choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o estrondo das casas que ruiacuteam

desviavam-lhes a atenccedilatildeo eles assustados para tudo viravam os acircnimos rostos e olhos

como se a fortuna os tivesse posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria

Natildeo lhes restava nada de suas posses para defenderem exceto seus proacuteprios corpos eles

eram muito mais miseraacuteveis do que os outros que outrora foram atacados pois sendo

293

privados da paacutetria viam todas as suas posses em poder dos inimigos Natildeo mais

tranquila foi a noite que sucedeu um dia tatildeo horriacutevel depois dela seguiu-se um dia

turbulento e natildeo houve um momento em que parou de surgir algum espetaacuteculo de um

novo massacre Por outro lado oprimidos e subjugados por tantos males por nada eles

mudaram os acircnimos ainda que vissem todas as coisas serem atingidas pelas chamas e

ruiacutenas Sem duacutevida eles haveriam de defender a colina fraca e pequena que ocupavam

que pela virtude lhes restava liberada Como esses mesmos acontecimentos se repetiam

todos os dias eles ficaram acostumados com o mal e afastando da mente os

pensamentos de suas posses consideravam as armas e o ferro nas destras como os

uacutenicos meios para sua esperanccedila

48 ndash Sed ante omnia obsidionis bellique mala fames utrimque exercitum urgebat Gallos

pestilentia etiam cum loco iacente inter tumulos castra habentes tum ab incendiis

torrido et uaporis pleno cineremque non puluerem modo ferente cum quid uenti motum

esset Quorum intolerantissima gens umorique ac frigori adsueta cum aestu et angore

uexati uolgatis uelut in pecua morbis morerentur iam pigritia singulos sepeliendi

promisce aceruatos cumulos hominum urebant bustorumque inde Gallicorum nomine

insignem locum fecere Indutiae deinde cum Romanis factae et conloquia permissu

imperatorum habita In quibus cum identidem Galli famem obicerent eaque necessitate

ad deditionem uocarent dicitur auertendae eius opinionis causa multis locis panis de

Capitolio iactatus esse in hostium stationes Sed iam neque dissimulari neque ferri ultra

fames poterat Itaque dum dictator dilectum per se Ardeae habet magistrum equitum

L Valerium a Veiis adducere exercitum iubet parat instruitque quibus haud impar

adoriatur hostes interim Capitolinus exercitus stationibus uigiliis fessus superatis

tamen humanis omnibus malis cum famem unam natura uinci non sineret diem de die

prospectans ecquod auxilium ab dictatore appareret postremo spe quoque iam non

solum cibo deficiente et cum stationes procederent prope obruentibus infirmum corpus

armis uel dedi uel redimi se quacumque pactione possint iussit iactantibus non

obscure Gallis haud magna mercede se adduci posse ut obsidionem relinquant Tum

senatus habitus tribunisque militum negotium datum ut paciscerentur Inde inter Q

Sulpicium tribunum militum et Brennum regulum Gallorum conloquio transacta res est

et mille pondo auri pretium populi gentibus mox imperaturi factum Rei foedissimae per

se adiecta indignitas est pondera ab Gallis allata iniqua et tribuno recusante additus

294

ab insolente Gallo ponderi gladius auditaque intoleranda Romanis uox ―uae uictis

[esse]

48 ndash Por outro lado a fome mais do que todos os males do cerco e da guerra afligia

ambos os exeacutercitos tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois eles fizeram seu

acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as colinas esse lugar era muito

quente por causa dos incecircndios e cheio de vapor tambeacutem a cinza e o poacute com qualquer

movimento do vento se levantavam Esse povo era muito intolerante a isso pois estava

acostumado agrave umidade e ao frio abalados por esse calor e tormento eles morriam como

gado quando se espalhavam as doenccedilas Por causa da lentidatildeo de se sepultar um por

um eles cremavam indistintamente pilhas e montes de homens e por isso esse lugar se

tornou conhecido pelo nome de piras gaulesas Entatildeo foi feita uma treacutegua com os

romanos e conversas foram mantidas com a permissatildeo dos chefes Nesses diaacutelogos

como os gauleses continuamente reclamassem da fome e por essa necessidade

incitassem os romanos agrave rendiccedilatildeo conta-se que para tirar deles essa ideia de muitos

lugares do Capitoacutelio eles lanccedilaram patildeo em direccedilatildeo agraves guarniccedilotildees dos inimigos Contudo

a fome jaacute natildeo podia mais ser dissimulada ou suportada Assim o ditador enquanto

pessoalmente recrutava em Aacuterdea ordenou que o comandante da cavalaria L Valeacuterio

trouxesse o exeacutercito de Veios ele preparou e dispocircs daqueles para atacar os inimigos de

forma mais equilibrada Nesse iacutenterim a guarniccedilatildeo que estava no Capitoacutelio cansada

pelas vigiacutelias insones mesmo superando todos os males humanos tinha um uacutenico mal

a fome que pela natureza natildeo podia ser vencida dia apoacutes dia eles observavam se vinha

algum auxiacutelio do ditador Por fim como jaacute faltava natildeo soacute a esperanccedila mas tambeacutem o

alimento e como as tropas natildeo avanccedilariam mais pois por causa dos sofrimentos o

corpo ficara fraco para as armas decidiu-se que poderiam ou se render ou se submeter a

qualquer acordo que fosse parecia claramente que eles poderiam dar aos altivos

gauleses uma pequena recompensa de modo que abandonassem o cerco Entatildeo o

senado se reuniu e ordenou que os tribunos militares fizessem um tratado Logo na

conferecircncia entre Q Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos gauleses arranjou-se

um acordo foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao povo que em breve haveria de

governar as naccedilotildees Uma indignidade foi acrescida a essa determinaccedilatildeo bastante

vergonhosa pois a balanccedila que os gauleses trouxeram era injusta Como o tribuno

recusasse isso o gaulecircs insolente adicionou a espada ao peso e ouviu-se a intoleraacutevel

voz p r os rom nos dizer ― i dos vencidos

295

Livro VII

10 ndash Diu inter primores iuuenum Romanorum silentium fuit cum et abnuere certamen

uererentur et praecipuam sortem periculi petere nollent Tum T Manlius L filius qui

patrem a uexatione tribunicia uindicauerat ex statione ad dictatorem pergit ―Iniussu

tuo inquit imperator extra ordinem nunquam pugnauerim non si certam uictoriam

uideam si tu permittis uolo ego illi beluae ostendere quando adeo ferox praesultat

hostium signis me ex ea familia ortum quae Gallorum agmen ex rupe Tarpeia deiecit

Tum dictator ―Macte uirtute inquit ac pietate in patrem patriamque T Manli esto

Perge et nomen Romanum inuictum iuuantibus dis praesta Armant inde iuuenem

aequales pedestre scutum capit hispano cingitur gladio ad propiorem habili pugnam

Armatum adornatumque aduersus Gallum stolide laetum et ndash quoniam id quoque

memoria dignum antiquis uisum est ndash linguam etiam ab inrisu exserentem producunt

Recipiunt inde se ad stationem et duo in medio armati spectaculi magis more quam

lege belli destituuntur nequaquam uisu ac specie aestimantibus pares Corpus alteri

magnitudine eximium uersicolori ueste pictisque et auro caelatis refulgens armis

media in altero militaris statura modicaque in armis habilibus magis quam decoris

species non cantus non exsultatio armorumque agitatio uana sed pectus animorum

iraeque tacitae plenum omnem ferociam in discrimen ipsum certaminis distulerat Vbi

constitere inter duas acies tot circa mortalium animis spe metuque pendentibus Gallus

uelut moles superne imminens proiecto laeua scuto in aduenientis arma hostis uanum

caesim cum ingenti sonitu ensem deiecit Romanus mucrone subrecto cum scuto scutum

imum perculisset totoque corpore interior periculo uolneris factus insinuasset se inter

corpus armaque uno alteroque subinde ictu uentrem atque inguina hausit et in spatium

ingens ruentem porrexit hostem Iacentis inde corpus ab omni alia uexatione intactum

uno torque spoliauit quem respersum cruore collo circumdedit suo Defixerat pauor

cum admiratione Gallos Romani alacres ab statione obuiam militi suo progressi

gratulantes laudantesque ad dictatorem perducunt Inter carminum prope modo

incondita quaedam militariter ioculantes Torquati cognomen auditum celebratum

deinde posteris etiam [familiae] honori fuit Dictator coronam auream addidit donum

mirisque pro contione eam pugnam laudibus tulit

10 ndash Durante muito tempo houve um silecircncio entre os nobres jovens romanos jaacute que

por um lado eles receavam recusar o combate e por outro natildeo queriam se dirigir

296

primeiro para essa sorte de perigo Entatildeo Tito Macircnlio filho de Luacutecio que tinha livrado

o pai da perseguiccedilatildeo do tribuno v nccedilou do seu lug r teacute o dit dor e disse ―sem tu

ordem general eu nunca lutaria fora da linha de batalha nem mesmo se visse que a

vitoacuteria era certa se tu permitires quero eu mesmo mostrar agravequele animal visto que ele

saltita feroz diante dos estandartes dos inimigos que sou oriundo daquela famiacutelia que

derrubou um multidatildeo de g uleses d roch T rpei O dit dor ssim respondeu

―Tens honr d virtude Tito Macircnlio e pied de p r com o p i e paacutetri Av nccedil tu

e com o uxiacutelio dos deuses defende o invenciacutevel nome rom no Em seguid os

companheiros armaram o jovem ele tomou o escudo de um soldado e cingiu-se com

uma espada hispana conveniente para a luta corpo a corpo Eles o conduziram armado

e equipado ateacute o gaulecircs insensatamente feliz e ndash porque aos antigos parecesse esse ser

um fato digno de nota ndash que mostrava a liacutengua em escaacuternio Os jovens entatildeo se

retiraram para sua posiccedilatildeo No centro os dois armados foram deixados mais agrave maneira

de espetaacuteculo do que de guerra De forma alguma eram parecidos considerando-se seu

aspecto e tipo O corpo de um deles era notaacutevel pelo tamanho resplandecente em uma

veste multicolorida de vaacuterios tons e com armas ornadas de ouro O outro tinha a

estatura mediana e modesta de um soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais ele

natildeo produziu nenhum canto nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas mas o seu

peito estava cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade para o

momento da proacutepria luta Quando eles se postaram entre as duas linhas de batalha todos

os que estavam agrave sua volta ficaram com os acircnimos suspensos pela esperanccedila e pelo

medo O gaulecircs que por cima se aproximava devido ao seu grande tamanho lanccedilou o

escudo contra as armas adversas do inimigo que se aproximava e projetou a espada

com grande ruiacutedo mas esse golpe foi inuacutetil O romano com a ponta da espada erguida

com seu proacuteprio escudo bateu no escudo inimigo pela parte inferior e comprimindo-se

todo entre o corpo e as armas do inimigo aproximou-se ainda mais do perigo do ataque

com um golpe e depois outro ele feriu-lhe o ventre e a virilha e jogou o adversaacuterio

derrubado em um espaccedilo enorme Entatildeo do corpo abatido intocado por nenhuma outra

indignidade ele tirou somente o colar que manchado de sangue colocou em volta do

seu proacuteprio pescoccedilo O pavor junto com a admiraccedilatildeo paralisou os gauleses os

romanos entusiasmados avanccedilaram de sua posiccedilatildeo ateacute o seu soldado e louvando-o e

agradecendo-o conduziram-no ateacute o ditador Entre o canto militar e os gracejos

desordenados que eles diziam ouvia-se o nome Torquato que depois foi celebrado

pelos seus descendentes e tornou-se ainda a honoriacutefica alcunha da famiacutelia O ditador

297

acrescentou uma coroa de ouro ao precircmio e com admiraacuteveis elogios narrou essa luta

em um discurso

26 ndash Vbi cum stationibus quieti tempus tererent Gallus processit magnitudine atque

armis insignis quatiensque scutum hasta cum silentium fecisset prouocat per

interpretem unum ex Romanis qui secum ferro decernat M erat Valerius tribunus

militum adulescens qui haud indigniorem eo decore se quam T Manlium ratus prius

sciscitatus consulis uoluntatem in medium armatus processit Minus insigne certamen

humanum numine interposito deorum factum Namque conserenti iam manum Romano

coruus repente in galea consedit in hostem uersus Quod primo ut augurium caelo

missum laetus accepit tribunus precatus deinde si diuus si diua esset qui sibi

praepetem misisset uolens propitius adessetlsquo Dictu mirabile tenuit non solum ales

captam semel sedem sed quotienscumque certamen initum est leuans se alis os

oculosque hostis rostro et unguibus appetit donec territum prodigii talis uisu oculisque

simul ac mente turbatum Valerius obtruncat coruus ex conspectu elatus orientem petit

Hactenus quietae utrimque stationes fuere postquam spoliare corpus caesi hostis

tribunus coepit nec Galli se statione tenuerunt et Romanorum cursus ad uictorem etiam

ocior fuit Ibi circa iacentis Galli corpus contracto certamine pugna atrox concitatur

Iam non manipulis proximarum stationum sed legionibus utrimque effusis res geritur

Camillus laetum militem uictoria tribuni laetum tam praesentibus ac secundis dis ire

in proelium iubet ostentansque insignem spoliis tribunum ―Hunc imitare miles

aiebat et circa iacentem ducem sterne Gallorum cateruas Di hominesque illi adfuere

pugnae depugnatumque haudquaquam certamine ambiguo cum Gallis est adeo duorum

militum euentum inter quos pugnatum erat utraque acies animis praeceperat Inter

primos quorum concursus alios exciuerat atrox proelium fuit alia multitudo

priusquam ad coniectum teli ueniret terga uertit Primo per Volscos Falernumque

agrum dissipati sunt inde Apuliam ac mare inferum petierunt ()

26 ndash Como os romanos estivessem quietos e passassem o tempo em guarda um gaulecircs

avanccedilou com tamanho e armas notaacuteveis ele fez silecircncio batendo no escudo com a

lanccedila e por meio de um inteacuterprete chamou um dos romanos para que lutasse consigo

atraveacutes do ferro Havia um jovem tribuno militar Marco Valeacuterio que natildeo se

considerava menos digno daquela honra do que Tito Macircnlio Ele tendo antes se

informado da vontade do cocircnsul avanccedilou armado ateacute o centro Menos ilustre se

298

mostrou o combate humano jaacute que interferiram os poderes dos deuses De fato

enquanto o romano se dirigia para a luta um corvo de repente pousou no seu capacete

virado para o inimigo Feliz primeiramente o tribuno aceitou isso como um pressaacutegio

vindo do ceacuteu e depois suplicou ―c so fosse um deus ou deusa que a ele enviou o

paacutess ro que o voo propiacutecio lhe f vorecesse Ocorreu lgo m r vilhoso de se cont r

ave natildeo se contentou apenas em ficar no lugar mas todas as vezes que a luta comeccedilava

com as asas ela levantou-se e atacou o rosto e os olhos do inimigo com o bico e as

garras Por fim o gaulecircs aterrorizado pela visatildeo de tamanho prodiacutegio e ao mesmo tempo

ferido nos olhos e na mente foi morto por Valeacuterio o nobre corvo saindo de vista

dirigiu-se para o oriente Ateacute entatildeo as tropas dos dois lados estiveram paradas Assim

que o tribuno comeccedilou a despojar o corpo do inimigo morto os gauleses natildeo se

mantiveram mais em posiccedilatildeo e a corrida dos romanos ateacute o vencedor foi ainda mais

raacutepida Ali travando um acirrado combate ao redor do corpo do gaulecircs derrubado

houve uma luta atroz A batalha jaacute natildeo era mais travada pelos maniacutepulos nas posiccedilotildees

proacuteximas mas sim pelas legiotildees dispersas pelos dois lados Camilo ordenou ir para o

combate os soldados que estavam felizes tanto com a vitoacuteria do tribuno quanto pela

presenccedila dos deuses favoraacuteveis mostrando-lhes o tribuno reluzente com os despojos

disse-lhes ―imit i-o soldados e ao redor do liacuteder derrubado derrotai as multidotildees dos

g uleses Deuses e homens tom r m p rte ness luta e de forma alguma foi duvidoso o

combate contra os gauleses uma e outra parte jaacute compreendera nos acircnimos o resultado

do combate que fora travado pelos dois soldados Entre os que avanccedilaram primeiro e

cuja luta inflamara os outros o embate foi atroz o resto da multidatildeo antes que pudesse

lanccedilar os dardos virou as costas Primeiro eles se dispersaram pela aacuterea dos volscos e

pelo territoacuterio de falerno de laacute se dirigiram para a Apuacutelia e o mar inferior

Livro XXIII

24 ndash () Cum eae res maxime agerentur noua clades nuntiata aliam super aliam

cumulante in eum annum fortuna L Postumium consulem designatum in Gallia ipsum

atque exercitum deletos Silua erat uasta ndash Litanam Galli uocabant ndash qua exercitum

traducturus erat Eius siluae dextra laeuaque circa uiam Galli arbores ita inciderunt ut

immotae starent momento leui impulsae occiderent Legiones duas Romanas habebat

Postumius sociumque ab supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia

armatorum in agros hostium induxerit Galli oram extremae siluae cum

299

circumsedissent ubi intrauit agmen saltum tum extremas arborum succisarum

impellunt quae alia in aliam instabilem per se ac male haerentem incidentes ancipiti

strage arma uiros equos obruerunt ut uix decem homines effugerent Nam cum

exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum ceteram

multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati circumsedentes

interfecerunt paucis e tanto numero captis qui pontem fluminis petentes obsesso ante

ab hostibus ponte interclusi sunt Ibi Postumius omni ui ne caperetur dimicans

occubuit Spolia corporis caputque praecisum ducis Boii ouantes templo quod

sanctissimum est apud eos intulere Purgato inde capite ut mos iis est caluam auro

caelauere idque sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem

sacerdoti esset ac templi antistitibus Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria

fuit nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat tamen ceterae res

quia nihil dissipatum fuga est stratae per omnem iacentis agminis ordinem inuentae

sunt

24 ndash () Enquanto essas coisas aconteciam soube-se de uma nova cataacutestrofe pois que

naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a outra L Postuacutemio designado cocircnsul

foi massacrado na Gaacutelia junto com seu exeacutercito A floresta pela qual ele deveria

conduzir a tropa era vasta ndash os gauleses a chamavam de Litana Ao longo do caminho

pela direita e pela esquerda os gauleses cortaram as aacutervores assim elas pareceriam de

peacute mas com um leve movimento elas cairiam Postuacutemio tinha duas legiotildees romanas e

como tinha recrutado muitos aliados do mar superior ele conduzia vinte e cinco mil

soldados para os territoacuterios dos inimigos Os gauleses ficaram ao longo da borda da

floresta no momento em que a fileira entrou no mato eles logo empurraram aacutervores

cortadas que estavam mais externas Elas caiacuteram umas sobre as outras instaacuteveis e mal

estabilizadas com esse desabamento elas destruiacuteram as armas os homens e os cavalos

de tal forma que apenas dez indiviacuteduos escaparam com muita dificuldade De fato

muitos foram sufocados pelos troncos das aacutervores e pedaccedilos de galhos Os gauleses

armados rodeando toda a floresta mataram a outra parte deles que estava atemorizada

por esse repentino mal De um nuacutemero tatildeo grande poucos foram capturados jaacute que eles

foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora bloqueada pelos inimigos Foi ali

que Postuacutemio lutando com toda a forccedila para natildeo ser apanhado morreu Os boios

exultantes levaram ateacute o templo que era muito sagrado entre eles os despojos do corpo

e a cabeccedila decepada do general Entatildeo apoacutes limparem a cabeccedila como era o costume

300

deles ornaram o cracircnio com ouro que para eles passou a ser um recipiente sagrado

Com ele fariam as libaccedilotildees nas solenidades e o mesmo serviria de copo para os

sacerdotes do templo Para os gauleses o butim foi tatildeo grande quanto a vitoacuteria de fato

embora grande parte dos animais pereceu com a queda das aacutervores todavia os demais

objetos ndash jaacute que nada se perdeu na fuga ndash foram encontrados caiacutedos por toda a fileira do

exeacutercito derrubado

Livro XXXVIII

17 ndash Cum hoc hoste tam terribili omnibus regionis eius quia bellum gerendum erat pro

contione milites in hunc maxime modum adlocutus est consul ―non me praeterit

milites omnium quae Asiam colunt gentium Gallos fama belli praestare Inter

mitissimum genus hominum ferox natio peruagata bello prope orbem terrarum sedem

cepit Procera corpora promissae et rutilatae comae uasta scuta praelongi gladii ad

hoc cantus inchoantium proelium et ululatus et tripudia et quatientium scuta in patrium

quemdam modum horrendus armorum crepitus omnia de industria composita ad

terrorem Sed haec quibus insolita atque insueta sunt Graeci et Phryges et Cares

timeant Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt Semel primo

congressu ad Alliam olim fuderunt maiores nostros Ex eo tempore per ducentos iam

annos pecorum in modum consternatos caedunt fugantque et plures prope de Gallis

triumphi quam de toto orbe terrarum acti sunt Iam usu hoc cognitum est si primum

impetum quem feruido ingenio et caeca ira effundunt sustinueris fluunt sudore et

lassitudine membra labant arma mollia corpora molles ubi ira consedit animos sol

puluis sitis ut ferrum non admoueas prosternunt Non legionibus legiones eorum solum

experti sumus sed uir unus cum uiro congrediendo T Manlius M Valerius quantum

Gallicam rabiem uinceret Romana uirtus docuerunt iam M Manlius unus agmine

scandentes in Capitolium Gallos detrusit Et illis maioribus nostris cum haud dubiis

Gallis in sua terra genitis res erat hi iam degeneres sunt mixti et Gallograeci uere

quod appellantur sicut in frugibus pecudibusque non tantum semina ad seruandam

indolem ualent quantum terrae proprietas caelique sub quo aluntur mutat Macedones

qui Alexandriam in Aegypto qui Seleuciam ac Babyloniam quique alias sparsas per

orbem terrarum colonias habent in Syros Parthos Aegyptios degenerarunt Massilia

inter Gallos sita traxit aliquantum ab accolis animorum Tarentinis quid ex Spartana

dura illa et horrida disciplina mansit Generosius in sua quidquid sede gignitur

301

insitum alienae terrae in id quo alitur natura uertente se degenerat Phrygas igitur

Gallicis oneratos armis sicut in acie Antiochi cecidistis uictos uictores caedetis Magis

uereor ne parum inde gloriae quam ne nimium belli sit Attalus eos rex saepe fudit

fugauitque Nolite existimare beluas tantum recens captas feritatem illam siluestrem

primo seruare dein cum diu manibus humanis alantur mitescere in hominum feritate

mulcenda non eamdem naturam esse eosdemne hos creditis esse qui patres eorum

auique fuerunt Extorres inopia agrorum profecti domo per asperrimam Illyrici oram

Paeoniam inde et Thraeciam pugnando cum ferocissimis gentibus emensi has terras

ceperunt Duratos eos tot malis exasperatosque accepit terra quae copia rerum omnium

saginaret Vberrimo agro mitissimo caelo clementibus accolarum ingeniis omnis illa

cum qua uenerant mansuefacta est feritas Vobis mehercule Martiis uiris cauenda ac

fugienda quam primum amoenitas est Asiae tantum hae peregrinae uoluptates ad

extinguendum uigorem animorum possunt quantum contagio disciplinae morisque

accolarum ualet Hoc tamen feliciter euenit quod sicut uim aduersus uos nequaquam

ita famam apud Graecos parem illi antiquae obtinent cum qua uenerunt bellique

gloriam uictores eandem inter socios habebitis quam si seruantes antiquum specimen

animorum Gallos uicissetis

17 ndash Como eles devessem empreender a guerra contra esse inimigo que era o mais

terriacutevel de todos dessa regiatildeo o cocircnsul reuniu os combatentes e proferiu o seguinte

discurso ―natildeo me esc p sold dos que de todos os povos que h bit m Aacutesi os

gauleses satildeo superiores pela sua fama na guerra Essa feroz naccedilatildeo depois que percorreu

quase todos os lugares fazendo guerra por fim tomou lugar entre esse povo muito

paciacutefico Eles possuem corpos enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e

espadas muito longas Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos que

comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas nos escudos

de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar terror Os

gregos os friacutegios e o caacuterios como natildeo estatildeo acostumados a essas coisas estranhas e

incomuns sentem medo Por outro lado noacutes romanos estamos familiarizados com

esses tumultos gaacutelicos e tambeacutem jaacute conhecemos as inconstacircncias deles Apenas uma

vez no primeiro encontro os nossos antepassados fugiram para Aacutelia Desde entatildeo e jaacute

ao longo de duzentos anos eles satildeo mortos ou fogem atemorizados como se fossem

gado Celebramos vaacuterios triunfos muito mais sobre os gauleses do que sobre o resto do

mundo Jaacute aprendemos esse costume se resistirmos ao primeiro ataque que eles lanccedilam

302

com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se enfraquecem e as armas caem

devido ao suor e agrave fadiga No momento em que a ira deles se acalma por causa do sol

da poeira e da sede eles derrubam seus corpos moles e acircnimos por isso natildeo

precisamos mover o ferro Natildeo somos experientes apenas nos combates entre nossos

exeacutercitos contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um soacute homem contra outro

De fato Tito Macircnlio e Marco Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana se

sobressaiacutea agrave fuacuteria gaulesa e outrora Marco Macircnlio sozinho derrubou os gauleses que

em coluna escalavam o Capitoacutelio Nessa eacutepoca os nossos ancestrais tiveram contato

com gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de agora estatildeo degenerados

miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos No caso dos gratildeos ou dos

animais as sementes natildeo podem conservar sua iacutendole quando muda a propriedade da

terra e do ceacuteu sob o qual se desenvolvem Do mesmo modo os macedocircnios que antes

possuiacuteram Alexandria no Egito Selecircucia Babilocircnia e outras colocircnias espalhadas por

todo o mundo se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios Marselha situada entre os

gauleses tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos Quanto aos tarentinos o que restou

daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Tudo o que eacute produzido em seu lugar de

origem eacute mais digno quando introduzido em outra terra da qual se nutre ele transforma

sua natureza e se degenera Portanto assim como voacutes matastes na fileira de Antiacuteoco

agora matareis os friacutegios que portam armas gaulesas voacutes vencedores e eles os

vencidos Receio mais que disso resulte uma gloacuteria escassa do que bastante luta O rei

Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Natildeo acreditais que apenas as feras

quando capturadas primeiro mantecircm aquela sua ferocidade selvagem e em seguida

domesticam-se quando por muito tempo satildeo alimentadas por matildeos humanas O mesmo

ocorre com a natureza dos homens quando sua ferocidade se acalma ou acreditais esses

serem iguais aos que foram seus pais e antepassados Eles deixaram a paacutetria por causa

da falta de terras avanccedilaram pela duriacutessima regiatildeo da Iliacuteria depois percorreram a

Peocircnia e a Traacutecia e tendo lutado contra povos ferociacutessimos tomaram essas paragens

Essa terra que produz uma fartura de todas as coisas acolheu esses homens

endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo feacutertil com ceacuteu muito

ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham quando chegaram se

abrandou Por Heacutercules Voacutes homens de Marte deveis o quanto antes evitar e fugir da

amenidade da Aacutesia Esses prazeres estrangeiros tanto podem extinguir o vigor dos

acircnimos quanto o mesmo pode ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes dos

vizinhos Felizmente acontece que embora os gauleses de forma alguma sejam fortes

303

perante voacutes todavia entre os gregos eles ainda possuem aquela mesma fama com a qual

chegaram outrora Voacutes vencedores tereis entre os aliados a mesma gloacuteria da guerra

como se tiveacutesseis vencido os g uleses dot dos de su ntig disposiccedilatildeo de acircnimos

304

3 ndash Pliacutenio o Velho

Histoacuteria natural - Livro III

V (4) ndash 31 Narbonensis prouincia appellatur pars Galliarum quae interno mari

adluitur Bracata antea dicta amne Varo ab Italia discreta Alpiumque uel saluberrimis

Romano imperio iugis a reliqua uero Gallia latere septentrionali montibus Cebenna et

Iuribus agrorum cultu uirorum morumque dignatione amplitudine opum nulli

prouinciarum postferenda breuiterque Italia uerius quam prouincia 32 In ora regio

Sordonum intusque Consuaranorum flumina Tecum Vernodubrum oppida Illiberis

magnae quondam urbis tenue uestigium Ruscino Latinorum flumen Atax e Pyrenaeo

Rubrensem permeans lacum Narbo Martius Decumanorum colonia XII p a mari

distans flumina Araris Liria Oppida de cetero rara praeiacentibus stagnis 33 Agatha

quondam Massiliensium et regio Volcarum Tectosagum atque ubi Rhoda Rhodiorum

fuit unde dictus multo Galliarum fertilissimus Rhodanus amnis ex Alpibus se rapiens

per Lemannum lacum segnemque deferens Ararim nec minus se ipso torrentes Isaram et

Druentiam Libica appellantur duo eius ora modica ex his alterum Hispaniense

alterum Metapinum tertium idemque amplissimum Massalioticum Sunt auctores et

Heracleam oppidum in ostio Rhodani fuisse 34 Vltra fossae ex Rhodano C Mari opere

et nomine insignes stagnum Mastromela oppidum Maritima Auaticorum superque

Campi Lapidei Herculis proeliorum memoria regio Anatiliorum et intus Dexiuatium

Cauarumque rursus a mari Tricorium et intus Tritollorum Vocontiorumque et

Segouellaunorum mox Allobrogum At in ora Massilia Graecorum Phocaeensium

foederata promunturium Zao Citharista portus regio Camactulicorum dein Suelteri

supraque Verucini 35 In ora autem Athenopolis Massiliensium Forum Iuli

Octauanorum colonia quae Pacensis appellatur et Classica amnis nomine Argenteus

regio Oxubiorum Ligaunorumque super quos Suebri Quariates Adunicates At in ora

oppidum Latinum Antipolis regio Deciatium amnis Varus ex Alpium monte Caenia

profusus 36 In mediterraneo coloniae Arelate Sextanorum Baeterrae Septimanorum

Arausio Secundanorum in agro Cauarum Valentia Vienna Allobrogum Oppida Latina

Aquae Sextiae Salluuiorum Auennio Cauarum Apta Iulia Vulgientium Alebaece

Reiorum Apollinarium Alba Heluorum Augusta Tricastinorum Anatilia Aerea

Bormani Comani Cabellio Carcasum Volcarum Tectosagum Cessero Carbantorate

Meminorum Caenicenses Cambolectri qui Atlantici cognominantur 37 Forum Voconi

305

Glanum Libii Luteuani qui et Foroneronienses Nemausum Arecomicorum Piscinae

Ruteni Samnagenses Tolosani Tectosagum Aquitaniae contermini Tasgoduni

Tarusconienses Vmbranici Vocontiorum ciuitatis foederatae duo capita Vasio et Lucus

Augusti oppida uero ignobilia XVIIII sicut XXIIII Nemausiensibus adtributa Adiecit

formulae Galba Imperator ex Inalpinis Auanticos atque Bodionticos quorum oppidum

Dinia Longitudinem prouinciae Narbonensis CCCLXX p Agrippa tradit latitudinem

CCXLVIII

V (4) ndash 31 Eacute chamada de proviacutencia Narbonense a regiatildeo das Gaacutelias que eacute banhada pelo

mar interno ntes conhecid por ―Gaacuteli de c lccedil s El estaacute sep r d d Itaacuteli pelo rio

Var e pelos cumes dos Alpes ndash que tecircm sido muitiacutessimo vantajosos para o impeacuterio

romano Pelo lado setentrional ela se divide do resto da Gaacutelia pelos montes das Cevenas

e do Jura Devido agrave cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e pela

amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada proviacutencia

na verdade ela eacute mais Itaacutelia que proviacutencia 32 Pelos litorais haacute a regiatildeo dos sordones e

mais adentro o domiacutenio dos consuaranos os rios Tech e Verdouble as povoaccedilotildees dos

iliberris ndash um pequeno vestiacutegio do que um dia fora uma grande cidade ndash e Ruscino dos

latinos o rio Aude que desce dos Pirineus e atravessa o lago Rubrense Narbo Maacutercio ndash

colocircnia da deacutecima legiatildeo distante doze milhas do mar os rios Aacuterar e Liria De resto as

cidades satildeo raras devido aos pacircntanos que se situam proacuteximos 33 Haacute a cidade de Aacutegata

que um dia foi dos marselheses o territoacuterio dos volcos tectoacutesagos e ainda o local onde

existiu a colocircnia Roda dos roacutedios ndash de onde vem o nome do rio Roacutedano de longe o mais

copioso das Gaacutelias Eacute esse rio que desde os Alpes passa com forccedila pelo lago Lemano e

se mistura ao vagaroso Aacuterar e agraves torrentes dos rios Isara e Druecircncia natildeo menos

impetuosas que ele mesmo As suas duas embocaduras menores satildeo chamadas de

―liacutebic s sendo um del s hisp niense e outr met pin terceir emboc dur que eacute

a maior eacute chamada de massaliota Haacute autores que dizem ter existido uma cidade

chamada Heracleia na foz do Roacutedano 34 Mais aleacutem estatildeo os canais que saem do

Roacutedano obra de Caio Maacuterio e conhecidos pelo seu nome o lago Mastromela a cidade

Mariacutetima dos avaacuteticos e acima as Planiacutecies Pedregosas uma lembranccedila dos combates

de Heacutercules Tem-se a regiatildeo dos anatiacutelios e no interior a regiatildeo dos dexivates e dos

cavaros de novo junto ao mar a aacuterea dos tricoacuterios e no interior estatildeo os tritolos os

vococircncios e os segovelaunos depois desses os aloacutebroges No litoral haacute Marselha dos

gregos foacutecios e nossa aliada o cabo Zao o porto de Citarista a regiatildeo dos

306

camactuacutelicos depois estatildeo os suelteros e acima os verucinos 35 Ainda no litoral haacute

Atenoacutepolis dos marselheses o Foacuterum de Juacutelio colocircnia da oitava legiatildeo que tambeacutem eacute

ch m d de ―P cense e ―claacutessic haacute um rio de nome Argecircnteo regiatildeo dos oxuacutebios

e dos ligaunos e acima desses os suebros os quariates e os adunicates No litoral haacute a

cidade latina de Antiacutepolis a regiatildeo dos deciatos e o rio Var que desce do monte Cenia

dos Alpes 36 No interior haacute as colocircnias de Arelate da sexta legiatildeo Beterras da seacutetima

e Araacuteusio da segunda No territoacuterio cavaro estaacute Valencia e no territoacuterio dos aloacutebroges

Viena Depois as cidades latinas de Aacutegua Sexta (no territoacuterio) dos saluacutevios Avecircnio

dos cavaros Apta Juacutelia dos vulgientes Alebece dos reios apolinaacuterios Alba dos

heacutelvios Augusta dos tricastinos Anatiacutelia Aerea e ainda os bormanos os comanos a

povoaccedilatildeo de Cabeacutelio Carcaso dos volcos tectoacutesagos Cessero Carbantorate dos

meminos os cenicenses os c mbolectros que satildeo ch m dos de ― tlacircnticos 37 Foacuterum

Vocono Glano os liacutebios os lutevanos tambeacutem conhecidos como foroneronienses

Nemauso dos arecocircmicos Piscinas os rutenos os samnagenses os tolosanos

tectoacutesagos vizinhos agrave Aquitacircnia os tasgodunos os tarusconienses os umbracircnicos as

duas capitais do domiacutenio aliado dos vococircncios Vaacutesio e Luco de Augusto Na verdade

haacute tambeacutem dezenove cidades de pouca importacircncia assim como outras vinte e quatro

pertencentes aos nemaacuteusios O imperador Galba acrescentou a essa categoria dentre os

habitantes dos Alpes os avacircnticos e os bodiocircnticos cuja cidade eacute Diacutenia Segundo

Agripa a proviacutencia Narbonense tem trezentas e setenta milhas de comprimento e

duzentas e quarenta e oito milhas de largura

VI (5) ndash 38 Italia dehinc primique eius Ligures mox Etruria Vmbria Latium ibi

Tiberina ostia et Roma terrarum caput XVI p interuallo a mari Volscum postea litus

et Campaniae Picentinum inde ac Lucanum Bruttiumque quo longissime in meridiem

ab Alpium paene lunatis iugis in maria excurrit Italia Ab eo Graeciae ora mox

Salentini Poeduculi Apuli Peligni Frentani Marrucini Vestini Sabini Picentes

Galli Vmbri Tusci Veneti Carni Iapudes Histri Liburni 39 Nec ignoro ingrati ac

segnis animi existimari posse merito si obiter atque in transcursu ad hunc modum

dicatur terra omnium terrarum alumna eadem et parens numine deum electa quae

caelum ipsum clarius faceret sparsa congregaret imperia ritusque molliret et tot

populorum discordes ferasque linguas sermonis commercio contraheret ad conloquia et

humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum gentium in toto orbe patria

fieret 40 Sed quid agam Tanta nobilitas omnium locorum quos quis attigerit tanta

307

rerum singularum populorumque claritas tenet Vrbs Roma uel sola in ea et digna iam

tam festa ceruice facies quo tandem narrari debet opere Qualiter Campaniae ora per

se felixque illa ac beata amoenitas ut palam sit uno in loco gaudentis opus esse

naturae 41 Iam uero tota ea uitalis ac perennis salubritas talis caeli temperies tam

fertiles campi tam aprici colles tam innoxii saltus tam opaca nemora tam munifica

siluarum genera tot montium adflatus tanta frugum uitiumque et olearum fertilitas

tam nobilia pecudi uellera tam opima tauris colla tot lacus tot amnium fontiumque

ubertas totam eam perfundens tot maria portus gremiumque terrarum commercio

patens undique et tamquam iuuandos ad mortales ipsa auide in maria procurrens 42

Neque ingenia ritusque ac uiros et lingua manuque superatas commemoro gentes Ipsi

de ea iudicauere Grai genus in gloriam sui effusissimum quotam partem ex ea

appellando Graeciam Magnam Nimirum id quod in caeli mentione fecimus hac

quoque in parte faciendum est ut notas quasdam et pauca sidera attingamus Legentes

tantum quaeso meminerint ad singula toto orbe edissertanda festinari

VI ndash 38 Em seguida haacute a Itaacutelia e os primeiros dela satildeo os liacutegures depois haacute a Etruacuteria a

Uacutembria o Laacutecio e nesse lugar a foz do Tibre e Roma capital do mundo distante

dezesseis milhas do mar Depois haacute os litorais dos volscos e da Campacircnia o litoral de

Piceno e mais adiante as costas da Lucacircnia e de Bruacutetio a partir da cadeia de

montanhas dos Alpes em forma de meia lua esse eacute o lugar mais ao sul no qual a Itaacutelia

se estende ateacute os mares Desse ponto haacute os litorais da Magna Greacutecia depois os

salentinos os pediacuteculos os aacutepulos os peliacutegnos os frentanos os marrucinos os vestinos

os sabinos os picenos os gauleses os uacutembrios os etruscos os vecircnetos os carnos os

iaacutepides os istros e os liburnos 39 Natildeo ignoro que eu possa ser acusado de conduta

negligente e de espiacuterito fraco devido essa maneira de descrever raacutepida e resumidamente

essa mesma terra que eacute filha e matildee de todas as terras escolhida pela vontade dos deuses

para tornar o proacuteprio ceacuteu mais glorioso reunir os impeacuterios dispersos abrandar os

costumes juntar as liacutenguas diferentes e selvagens de tantos povos em um idioma

comum para os diaacutelogos conceder humanidade ao homem e em suma ser no mundo

todo a uacutenica paacutetria de todos os povos 40 Mas como a descreverei Quem poderia

enumerar a enorme nobreza de todos os lugares e a grande fama de cada uma dessas

partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma cabeccedila digna de tatildeo ilustre

pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser narrada Tambeacutem o litoral da Campacircnia por

si mesmo feacutertil e de rica amenidade que claramente em um soacute lugar estaacute tudo o que eacute

308

necessaacuterio para uma natureza exuberante 41 De fato toda essa terra possui salubridade

vital e perene grande equiliacutebrio do clima campos muito feacuterteis colinas bastante

ensolaradas bosques bastante intactos muitas florestas sombreadas inuacutemeros tipos

generosos de matas vaacuterios ventos dos montes enorme fertilidade de frutos das videiras

e das oliveiras tatildeo nobres velos dos animais muitas nucas gordas de touros tantos

lagos tamanha abundacircncia de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia tantos mares

portos e o seio das terras que se abre ao comeacutercio por todos os lados e que avanccedila de tal

forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios mares 42 Natildeo falarei sobre os

engenhos costumes homens e povos vencidos pela liacutengua e pela luta Os proacuteprios

gregos ndash um povo muito dissipado em sua gloacuteria ndash assim o fizeram ao chamar uma

pequena parte da Itaacutelia de Magna Greacutecia Certamente isso tambeacutem deve ser feito nessa

parte ndash como jaacute fizemos na descriccedilatildeo do ceacuteu ndash de modo que atinjamos certos indiacutecios e

poucos astros Peccedilo aos leitores que se recordem que acelerei as descriccedilotildees de cada

coisa sobre todo o mundo

Livro IV

XVII (31) ndash 105 Gallia omnis Comata uno nomine appellata in tria populorum genera

diuiditur amnibus maxime distincta A Scalde ad Sequanam Belgica ab eo ad

Garunnam Celtica eademque Lugdunensis inde ad Pyrenaei montis excursum

Aquitanica Aremorica antea dicta Vniversam oram XVIIL Agrippa Galliarum inter

Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum ac montes Cebennam et Iures quibus

Narbonensem Galliam excludit longitudinem CCCCXX latitudinem CCCXVIII

computauit 106 A Scaldi incolunt extera Texuandri pluribus nominibus dein Menapi

Morini ora Marsacis iuncti pago qui Gesoriacus uocatur Britanni Ambiani Bellouaci

Bassi Introrsus Catoslugi Atrebates Nerui liberi Veromandui Suaeuconi Suessiones

liberi Vlmanectes liberi Tungri Sunuci Frisiauones Baetasi Leuci liberi Treueri

liberi antea et Lingones foederati Remi foederati Mediomatrici Sequani Raurici

Helueti coloniae Equestris et Raurica Rhenum autem accolentes Germaniae gentium

in eadem prouincia Nemetes Triboci Vangiones in Vbis colonia Agrippinensis

Guberni Bataui et quos in insulis diximus Rheni

309

XVII (31) ndash 105 Toda a Gaacutelia que eacute chamada pelo uacutenico nome de Cabeluda se divide

em trecircs raccedilas de povos separadas sobretudo por meio de rios Do rio Escalda ateacute o Sena

haacute a Gaacutelia Beacutelgica do Sena ateacute o Garona a Gaacutelia Ceacuteltica ou Lugdunense de laacute ateacute o

promontoacuterio dos montes Pireneus haacute a Gaacutelia Aquitacircnia antes chamada de Armoacuterica

Agripa calculou toda a costa das Gaacutelias em mil setecentas e cinquenta milhas entre o

Reno e os Pireneus e entre o oceano e os montes das Cevenas e do Jura dos quais se

exclui a Gaacutelia Narbonense haacute uma extensatildeo de quatrocentas e vinte milhas e uma

largura de trezentas e dezoito milhas 106 Ao exterior do Escalda habitam os toxandros

de muitos nomes depois haacute os menaacutepios na praia haacute os moacuterinos que satildeo proacuteximos aos

marsaacutecios por um povoado que eacute chamado de Gesoriaco os britanos os ambianos os

beloacutevacos e os bassos No interior estatildeo os catoslugos os atreacutebates os livres neacutervios os

veromacircnduos os suaeuconos os suessiotildees livres os ulmanectes livres os tungros os

sunucos os frisiabotildees os betasos os livres leucos os treacuteveros outrora livres os aliados

liacutengones os remos aliados os mediomaacutetricos os seacutequanos os raacuteuricos os helveacutecios e

as colocircnias Equestre e Raacuteurica Haacute ainda os habitantes dos povos da Germacircnia que estatildeo

proacuteximos ao Reno nessa mesma proviacutencia estatildeo os necircmetes os tribocos e os vangiacuteones

dentre os uacutebios haacute a colocircnia de Agripina os gubernos os batavos e os que jaacute

mencionamos sobre as ilhas do Reno

XVIII (32) ndash 107 Lugdunensis Gallia habet Lexouios Veliocasses Caletos Venetos

Abrincatuos Ossismos flumen clarum Ligerem sed paeninsulam spectatiorem

excurrentem in oceanum a fine Ossismorum circuitu DCXXV ceruice in latitudinem

CXXV Vltra eum Namnetes intus autem Aedui foederati Carnuteni foederati Boi

Senones Aulerci qui cognominantur Eburouices et qui Cenomani Meldi liberi Parisi

Tricasses Andecaui Viducasses Bodiocasses Venelli Coriosuelites Diablinti

Riedones Turones Atesui Segusiaui liberi in quorum agro colonia Lugudunum

XVIII (32) ndash 107 A Gaacutelia Lugdunense engloba os lexoacutevios os veliocassos os caletos

os vecircnetos os abrincacirctuos os ossismos o famoso rio Liacuteger e uma peniacutensula muito

notaacutevel que avanccedila para o oceano a partir da fronteira dos ossismos em um contorno de

seiscentas e vinte e cinco milhas e no estreito com uma largura de cento e vinte e cinco

milhas Do outro lado estatildeo os namnetes e no interior os eacuteduos aliados os carnutos

tambeacutem aliados os boios os secircnones os aulercos que satildeo chamados tanto de eburovices

quanto os que satildeo chamados de cenomanos os livres meldos os pariacutesios os tricasses

310

os andecavos os viducassos os bodiocassos os venelos os coriosvelites os diablintos

os rieacutedones os turotildees os ateacutesuos e os livres segusiavos em cujo territoacuterio estaacute a colocircnia

de Lugduno

XIX (33) ndash 108 Aquitanicae sunt Ambilatri Anagnutes Pictones Santoni liberi

Bituriges liberi cognomine Viuisci Aquitani unde nomen prouinciae Sedibouiates

Mox in oppidum contributi Conuenae Begerri Tarbelli Quattuorsignani Cocosates

Sexsignani Venami Onobrisates Belendi saltus Pyrenaeus infraque Monesi Oscidates

Montani Sybillates Camponi Bercorcates Pinpedunni Lassunni Vellates Toruates

Consoranni Ausci Elusates Sottiates Oscidates Campestres Succasses Latusates

Basaboiates Vassei Sennates Cambolectri Agessinates 109 Pictonibus iuncti autem

Bituriges liberi qui Cubi appellantur dein Lemouices Aruerni liberi Vellaui liberi

Gabales Rursus Narbonensi prouinciae contermini Ruteni Cadurci Nitiobroges

Tarneque amne discreti a Tolosanis Petrocori Maria circa oram ad Rhenum

septentrionalis oceanus inter Rhenum et Sequanam Britannicus inter id et Pyrenaeum

Gallicus Insulae conplures Venestorum et quae Veneticae appellantur et in Aquitanico

sinu Vliaros

XIX (33) ndash 108 Na Aquitacircnia estatildeo os ambilatros os anagnutos os piacutectones os santotildees

livres os bituacuteriges livres de cognome viviscos os aquitanos ndash daiacute o nome da proviacutencia ndash

e os sediboviatos Depois unidos em uma cidade estatildeo os convenos os begerros os

tarbelos de quatro ensiacutegnias os cocosates de seis ensiacutegnias os venamos os onobrisates

os belendos os montes Pireneus e abaixo os monesos os oscidates montanheses os

sibilates os camponos os bercorcates os pimpedunos os lassunos os velates os

torvates os consoranos os auscos os elusates os sotiatos os oscidates das planiacutecies os

sucasses os latusates os basaboiates os vasseus os senates os cambolectros

agessinates 109 Por outro lado junto aos piacutectones estatildeo os livres bituacuteriges que satildeo

chamados de cubos depois os lemovices os livres arvernos os livres velavos e os

gaacutebalos Novamente vizinhos agrave proviacutencia Narbonense estatildeo os rutenos os cadurcos os

nitioacutebriges e separados dos tolosanos pelo rio Tarne os petrocoros Os mares que

rodeiam a costa satildeo o oceano setentrional que vai ateacute o Reno entre o Reno e o Sena o

oceano Britacircnico entre esse e os Pireneus o oceano Gaacutelico Haacute vaacuterias ilhas dos vecircnetos

que satildeo chamadas de Vecircnetas e no golfo aquitacircnio haacute a ilha de Uliaros

311

Livro VIII

LXXIII (48) ndash 190 Lana autem laudatissima Apula et quae in Italia Graeci pecoris

appellatur alibi Italica tertium locum Milesiae oues obtinent Apulae breues uillo nec

nisi paenulis celebres circa Tarentum Canusiumque summam nobilitatem habent in

Asia uero eodem genere Laudiceae Alba Circumpadanis nulla praefertur nec libra

centenos nummos ad hoc aeui excessit ulla 191 Oues non ubique tondentur durat

quibusdam in locis uellendi mos Colorum plura genera quippe cum desint etiam

nomina iis quas natiuas appellant aliquot modis Hispania nigri uelleris praecipuas

habet Pollentia iuxta Alpes cani Asia rutili quas Erythraeas uocant item Baetica

Canusium fului Tarentum et suae pulliginis Sucidis omnibus medicata uis Histriae

Liburniaeque pilo propior quam lanae pexis aliena uestibus et quam Salacia scutulato

textu commendat in Lusitania Similis circa Piscinas prouinciae Narbonensis similis et

in Aegypto ex qua uestis detrita usu pingitur rursusque aeuo durat Est et hirtae pilo

crasso in tapetis antiquissima gratia iam certe his usos Homerus auctor est Aliter

haec Galli pingunt aliter Parthorum gentes 192 Lanae et per se coactae uestem

faciunt et si addatur acetum etiam ferro resistunt immo uero etiam ignibus nouissimo

sui purgamento Quippe aenis polientium extracta in tomenti usum ueniunt Galliarum

ut arbitror inuento certe Gallicis hodie nominibus discernitur 193 Nec facile dixerim

qua id aetate coeperit antiquis enim torus e stramento erat qualiter et iam nunc in

castris Gausapae patris mei memoria coepere amphimalla nostra sicut uillosa etiam

uentralia Nam tunica lati claui in modum gausapae texi nunc primum incipit Lanarum

nigrae nullum colorem bibunt De reliquarum infectu suis locis dicemus in conchyliis

maris aut herbarum natura

LXXIII (48) ndash 190 De fato a latilde mais famosa eacute a da Apuacutelia em seguida a latilde que na

Itaacutelia eacute chamada de grega e que em outros lugares eacute chamada de itaacutelica ocupam o

terceiro lugar as latildes mileacutesias A latilde da Apuacutelia eacute curta no pelo e famosa apenas para fazer

capas a latilde que vem das redondezas de Tarento e Canuacutesio tem maior renome na verdade

na Aacutesia haacute a latilde do mesmo tipo de Laodiceia Nenhuma latilde branca eacute superior agrave latilde das

vizinhanccedilas do Poacute e nunca nenhuma latilde excedeu o valor de cem sesteacutercios por libra 191

Natildeo satildeo em todas as partes que as ovelhas satildeo tosquiadas em certos locais ainda existe

o costume de arrancar a latilde Haacute muitos tons de cores de latilde a ponto de faltarem nomes

312

para essas que de qualquer forma se chamam de naturais a Hispacircnia tem excelentes

velos negros Polecircncia perto dos Alpes tem a latilde branca a Aacutesia a latilde vermelha que

chamam de eritreia igual a latilde da Beacutetica Canuacutesio a latilde amarelo-acastanhada Tarento

tem uma latilde proacutepria de cor escura Todas as latildes que ainda estatildeo engorduradas possuem

propriedade medicinal A latilde da Iacutestria e da Libuacuternia eacute mais parecida com cabelo do que

com latilde e eacute improacutepria para vestes de pelos eacute essa a que Salaacutecia na Lusitacircnia utiliza para

tecidos xadrez Eacute semelhante agrave latilde das redondezas de Piscinas na proviacutencia Narbonense

e semelhante tambeacutem a que tem no Egito com a qual se remenda um traje gasto pelo

uso e que de novo dura muito tempo Tambeacutem eacute antiquiacutessima a popularidade da latilde dura

de pelo grosso para tapetes certamente Homero jaacute atestou esses usos Os gauleses

trabalham a latilde de uma forma de outra forma o fazem os povos partos 192 As latildes

condensadas formam uma veste que caso se lhes adicione vinagre elas resistem ao

ferro e ainda mais resistem ao fogo depois de uma nova purificaccedilatildeo Na verdade os

restos que ficam nos caldeirotildees depois de trabalhados satildeo utilizados como enchimento

de colchotildees que eu considero como um invento das Gaacutelias certamente hoje os

distinguimos atraveacutes dos nomes gauleses 193 Eu natildeo poderia dizer facilmente em que

eacutepoca esse uso comeccedilou de fato nossos ancestrais usavam cordas de palha como

colchatildeo como ainda agora se faz nos acampamentos As gausapas comeccedilaram a ser

usadas na eacutepoca do meu pai636

a baeta em nossa eacutepoca assim como tambeacutem os

aventais felpudos De fato agora pela primeira vez a tuacutenica laticlava comeccedilou a ser

tecida agrave maneira de gausapa As latildes negras natildeo absorvem nenhuma cor Sobre o

tingimento das outras latildes falaremos a esse respeito nas passagens sobre as conchas do

mar e sobre a natureza das plantas

Livro XXX

IV ndash 13 Gallias utique possedit et quidem ad nostram memoriam Namque Tiberii

Caesaris principatus sustulit Druidas eorum et hoc genus uatum medicorumque Sed

quid ego haec commemorem in arte Oceanum quoque transgressa et ad naturae inane

peruecta Britannia hodieque eam attonita celebrat tantis caerimoniis ut dedisse

Persis uideri possit Adeo ista toto mundo consensere quamquam discordi et sibi

636

Aportuguesamos o termo latino gausapa que designava um tecido grosso de latilde

313

ignoto nec satis aestimari potest quantum Romanis debeatur qui sustulere monstra in

quibus hominem occidere religiosissimum erat mandi uero etiam saluberrimum

IV ndash 13 Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a nossa eacutepoca O

fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e esse tipo de adivinhos e

meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria isso sobre uma arte que jaacute transpocircs o

Oceano e penetrou no vazio da natureza Ainda hoje a aturdida Britacircnia celebra essa

arte com muitos ritos de modo que possa parecer que isso foi passado aos persas Daiacute

parece que os povos em todo o mundo ainda que entre si fossem diferentes e

desconhecidos por fim entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar

suficientemente o quanto se deve aos romanos que suprimiram essas monstruosidades

para as quais era muito religioso sacrificar um homem e o fato de devoraacute-lo era

considerado salutar

Livro XXXIII

V ndash 14 Romae ne fuit quidem aurum nisi admodum exiguum longo tempore Certe cum

a Gallis capta urbe pax emeretur non plus quam mille pondo effici potuere Nec ignoro

MM pondo auri perisse Pompeii III consulatu e Capitolini Iovis solio a Camillo ibi

condita et ideo a plerisque existimari MM pondo collata Sed quod accessit ex

Gallorum praeda fuit detractumque ab iis in parte captae urbis delubris 15 Gallos cum

auro pugnare solitos Torquatus indicio est ndash Apparet ergo Gallorum templorumque

tantundem nec amplius fuisse quod quidem in augurio intellectum est cum Capitolinus

duplum reddidisset Illud quoque obiter indicari conuenit ndash etiam de anulis sermonem

repetiuimus ndash aedituum custodiae eius conprehensum fracta in ore anuli gemma statim

expirasse et indicium ita extinctum 16 Ergo ut maxime MM tantum pondo cum capta

est Roma anno CCCLXIIII fuere cum iam capitum liberorum censa essent CLII

DLXXIII In eadem post annos CCCVII quod ex Capitolinae aedis incendio ceterisque

omnibus delubris C Marius filius Praeneste detulerat XIII pondo quae sub eo titulo in

triumpho transtulit Sulla et argenti VI Idem ex reliqua omni uictoria pridie transtulerat

auri pondo XV argenti p CXV

314

V ndash 14 Na verdade em Roma por muito tempo natildeo houve ouro exceto em diminuta

quantidade De fato quando a cidade foi tomada pelos gauleses e a paz seria

estabelecida eles natildeo puderam juntar mais do que mil libras Natildeo ignoro que duas mil

libras de ouro se perderam do trono de Juacutepiter Capitolino ndash aiacute colocadas por Camilo ndash

durante o terceiro consulado de Pompeu por isso muitos consideram que na verdade

foram juntadas duas mil libras de ouro Mas o que acresceu a isso foram o butim e a

pilhagem daqueles templos que os gauleses fizeram na parte da cidade que foi tomada

15 Como indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar usando

ouro Assim parece evidente tal quantidade de ouro natildeo ser maior que aquela que

tinham os gauleses ou os templos na verdade o que se percebeu foi que Juacutepiter

Capitolino em uma profecia retornaria o dobro Jaacute que recordamos o assunto sobre os

aneacuteis tambeacutem conveacutem mencionar o episoacutedio em que o guarda do templo de Juacutepiter

Capitolino ao ser surpreendido quebrou a gema do seu anel na boca e imediatamente

morreu dessa forma o indiacutecio do ladratildeo desapareceu 16 Portanto na ocasiatildeo do ano

364 da cidade quando Roma foi tomada havia no maacuteximo duas mil libras de ouro e

como constava no censo 152573 homens livres Apoacutes 307 anos o ouro da cidade ndash que

Caio Maacuterio Filho levara a Preneste apoacutes o incecircndio do templo Capitolino e de todos os

outros santuaacuterios ndash totalizava treze mil libras Sila transcreveu esse nuacutemero em uma

inscriccedilatildeo durante um triunfo assim como seis mil libras de prata Ele tambeacutem trouxera

no triunfo da veacutespera quinze mil libras de ouro e cento e quinze mil libras de prata

obtidas em todas as outras vitoacuterias

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 182: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 183: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 184: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 185: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 186: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 187: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 188: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 189: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 190: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 191: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 192: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 193: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 194: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 195: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 196: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 197: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 198: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 199: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 200: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 201: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 202: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 203: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 204: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 205: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 206: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 207: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 208: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 209: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 210: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 211: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 212: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 213: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 214: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 215: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 216: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 217: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 218: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 219: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 220: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 221: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 222: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 223: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 224: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 225: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 226: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 227: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 228: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 229: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 230: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 231: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 232: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 233: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 234: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 235: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 236: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 237: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 238: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 239: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 240: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 241: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 242: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 243: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 244: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 245: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 246: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 247: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 248: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 249: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 250: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 251: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 252: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 253: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 254: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 255: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 256: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 257: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 258: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 259: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 260: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 261: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 262: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 263: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 264: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 265: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 266: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 267: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 268: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 269: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 270: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 271: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 272: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 273: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 274: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 275: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 276: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 277: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 278: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 279: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 280: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 281: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 282: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 283: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 284: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 285: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 286: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 287: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 288: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 289: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 290: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 291: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 292: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 293: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 294: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 295: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 296: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 297: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 298: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 299: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 300: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 301: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 302: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 303: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 304: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 305: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 306: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 307: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 308: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 309: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 310: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 311: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 312: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 313: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia
Page 314: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE …...fim, os antigos não viam os documentos como testemunhas imparciais, mas apenas como um outro meio de testemunho que poderia