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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE POacuteS GRADUACcedilAtildeO EM ESTUDOS LITERAacuteRIOS
Priscilla Adriane Ferreira Almeida
OS GAULESES EM CEacuteSAR TITO LIacuteVIO E PLIacuteNIO O VELHO
SOBRE A RETOacuteRICA DA REPRESENTACcedilAtildeO DO OUTRO E A
CONSTRUCcedilAtildeO DO SI
Belo Horizonte
2018
PRISCILLA ADRIANE FERREIRA ALMEIDA
OS GAULESES EM CEacuteSAR TITO LIacuteVIO E PLIacuteNIO O VELHO
SOBRE A RETOacuteRICA DA REPRESENTACcedilAtildeO DO OUTRO E A
CONSTRUCcedilAtildeO DO SI
Trabalho apresentado ao Programa de Poacutes
Graduaccedilatildeo em Estudos Literaacuterios da
Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor O
presente trabalho foi realizado com apoio
da CAPES Coordenaccedilatildeo de
Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel
Superior ndash Brasil
Aacuterea de concentraccedilatildeo Literaturas Claacutessicas
e Medievais
Orient dor Prof Dr S ndr M ri
Gualberto Braga Bianchet
Belo Horizonte
2018
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai Elveacutecio e agrave minha saudosa matildee Sandra Aos meus irmatildeos Karla e Juninho
pelo companheirismo
Ao Flaacutevio amor e luz dos meus dias
Agraves irmatildes Juliana Nanda Priscilla e Marina pela amizade e carinho
Agrave Sandra que muito mais que uma boa orientadora representa verdadeiro oaacutesis no
meio acadecircmico Obrigada pela confianccedila e por ter topado fazer essa jornada comigo
Aos professores doutores Jacyntho Joseacute Lins Brandatildeo Rafael Scopacasa Faacutebio da Silva
Fortes e Artur Costrino que compuseram a banca e fizeram comentaacuterios muito
relevantes para o enriquecimento deste trabalho
Aos meus professores da Letras e da Histoacuteria da UFMG
Agradeccedilo a proacutepria FALE ao POSLIT CAPES Bibliothegraveque Nationale de France e a
Fondation Hardt (paraiacuteso dos classicistas) pela oportunidade de concretizar este
trabalho
Tu regere imperio populos Romane memento
(hae tibi erunt artes) pacique imponere morem
parcere subiectis et debellare superbos
Tu romano lembra-te de comandar os povos com tua autoridade
(essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz
poupar os vencidos e dominar os soberbos
(Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853)
RESUMO
Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nenhum material escrito e sua cultura e
histoacuteria nos satildeo conhecidas apenas por relatos de terceiros ou por estudos
arqueoloacutegicos Por isso o tema das representaccedilotildees dos gauleses em Ceacutesar Tito Liacutevio e
Pliacutenio que compreende o periacuteodo entre o seacuteculo I aC a I dC eacute o foco principal desta
pesquisa jaacute que corresponde ao momento em que a Gaacutelia eacute definivamente conquistada
pelos romanos e transformada em proviacutencia
Propomos no comeccedilo deste trabalho uma reflexatildeo sobre o proacuteprio eacutetimo
―baacuterb ro leacutem de bord mos o conceito de b rbaacuterie ndash e de civilidade ndash entre gregos e
romanos Em seguida falaremos sobre a expansatildeo do domiacutenio de Roma e como foi o
contato entre romanos e gauleses Apoacutes essa investigaccedilatildeo nos propomos a estudar a
fundo algumas passagens latinas sobre os gauleses cujas fontes satildeo o De bello Gallico
(Sobre a guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito
Liacutevio e a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho Nessa anaacutelise dos
trechos latinos veremos como se estrutura a retoacuterica de representaccedilatildeo dos gauleses e de
como se operava essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada e
faremos consideraccedilotildees sobre o que era considerado ser baacuterbaro (ou civilizado) pelos
romanos do seacuteculo I aC a I dC Igualmente realizaremos um estudo dos elementos
retoacutericos empregados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para caracterizar os gauleses bem como
analisaremos o tipo de vocabulaacuterio utilizado e as recorrentes figuras representativas
empregadas para essas descriccedilotildees Por fim encerraremos este trabalho com algumas
consideraccedilotildees sobre o que se sabe hoje dos gauleses atraveacutes de pesquisas
historiograacuteficas e arqueoloacutegicas
Palavras-chave Gauleses Ceacutesar Tito Liacutevio Pliacutenio o Velho Retoacuterica Alteridade
ABSTRACT
We know th t the G uls didnlsquot le ve ny written m teri l nd their culture nd
history are known today by third-part reports and by archeological studies Therefore
the theme of G ulslsquo represent tions in C es r Livy nd Pliny the Elder s it
comprehends the temporal period from the I Century BC to I AC is the main
objective of this academic paper as it coincides with the moment in wich Gaul was
conquered and transformed into a Roman province
In the beginning of this paper we offer a reflection about the word ―b rb ri n
itself besides we focus on the concept of barbarity ndash and civilization ndash among Greeks
nd Rom ns There fter we t lk bout the exp nsion of Romelsquos dom in nd how w s
the contact between Romans and Gauls In addition we put forward to research some
Latin passages about the Gauls and the sources are De bello Gallico (The Gallic War)
of Caesar Ab urbe condita (The History of Rome) of Livy and in the Historia
naturalis (Natural History) of Pliny the Elder In this analysis of the Latin passages we
will be ble to re lize how the rhetoric of G ulslsquo represent tions is structured nd how
the construction of the image of the barbarian worked We will also make some
considerations about what was by the Romans from the I Century BC to I AC
considered as barbarian (or civilized) Furthermore we make a research of the rhetoric
elements used by Caesar Livy and Pliny to distinguish the Gauls as well to analyze the
type of vocabulary and representative figures applied in these descriptions Finally we
close this academic paper by bringing some facts of what is know today by the Gauls
through historiographical and archeological researches
Keywords Gauls Caesar Livy Pliny the Elder Rhetoric Alterity
SUMAacuteRIO
Introduccedilatildeo 9
Do tema de pesquisa 16
Da traduccedilatildeo e estudo 21
Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas 29
11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas
romanitas 29
12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC 42
121 ndash Poliacutebio 46
122 ndash Catatildeo o Censor 58
13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC 63
131 ndash Posidocircnio 63
132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio 66
1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina 76
133 ndash Diodoro Siacuteculo 80
134 ndash Estrabatildeo 84
Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia 89
21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC 89
211 ndash O exeacutercito romano 90
212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo
imperialista 92
213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana 97
22 ndash A conquista da Gaacutelia 100
221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa
Ocidental 106
222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar 110
23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar 112
231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de
Ceacutesar 113
232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo 116
233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar 121
24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico 128
Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas 148
31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano 148
32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia 151
33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita 153
34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita 154
341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana 157
342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio 159
35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita 162
36 ndash Pliacutenio o Velho 195
361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis 195
362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder 196
363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis 199
Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celta 218
41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses 218
42 ndash Mecanismos retoacutericos 221
421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo 223
422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia 230
423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia 231
43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade 235
431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio 235
432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem 238
44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz 243
Consideraccedilotildees finais 250
Referecircncias bibliograacuteficas 255
Ediccedilotildees e traduccedilotildees de textos antigos 255
Dicionaacuterios 259
Bibliografia geral 260
Anexo ndash antologia de autores 271
1 ndash Ceacutesar 271
2 ndash Tito Liacutevio 280
3 ndash Pliacutenio o Velho 304
9
Introduccedilatildeo
Consideramos importante iniciar este trabalho ressaltando o caraacuteter da
historiografia antiga jaacute que as obras que seratildeo objeto de estudo e de referecircncia para essa
pesquisa pertencem em sua maioria a esse gecircnero A histoacuteria soacute passa a ser
consider d ―ciecircnci com metodologi e sistem tiz ccedilatildeo proacutepri s poacutes o seacuteculo XIX 1
O historiador antigo natildeo era um pesquisador mas sim um escritor Isso natildeo quer dizer
que ele jamais se preocupava com a realidade dos fatos Entretanto as suas ferramentas
de pesquisa historiograacutefica eram amiuacutede mas natildeo soacute os relatos de autores anteriores a
persistecircncia de uma soacutelida tradiccedilatildeo oral (mitos lendas etc) e a verossimilhanccedila dos atos
e personagens (MARTIN GAILLARD 1981 p 108)
Quanto ao uso de fontes documentais como Marincola ressalta (In ERSKINE
2009 p19) os historiadores antigos natildeo faziam uso dos mesmos da forma que os
pesquisadores passaram a fazer a partir do seacuteculo XIX ndash ou seja tendo por meacutetodo o
uso de documentos como uma base confiaacutevel para um relato histoacuterico Isso acontecia na
Antiguidade por vaacuterias razotildees a primeira eacute a de que as evidecircncias documentais natildeo
eram guardadas sistematicamente e natildeo eram facilmente acessiacuteveis segundo os
historiadores tinham o costume de inquirir testemunhas oculares e participantes dos
fatos terceiro o foco em grandes indiviacuteduos e em grandes batalhas ndash em suma em uma
grande histoacuteria ndash tornava os documentos irrelevantes para tais tipos de narrativa por
fim os antigos natildeo viam os documentos como testemunhas imparciais mas apenas
como um outro meio de testemunho que poderia ou natildeo ser confiaacutevel (MARINCOLA
In ERSKINE 2009 p 19)2 O historiador antigo portanto preocupava-se
primeiramente em recontar os fatos natildeo cientificamente mas artisticamente o
historiador atual preocupa-se com a anaacutelise dos acontecimentos (MARTIN
GAILLARD 1981 p 108) Como Nicolai (In MARINCOLA 2007 p 14) descreve o
objetivo da historiografia antiga estava relacionado agrave criaccedilatildeo de paradigmas sobretudo
os de cunho poliacutetico-militar ou eacuteticos todos esses paradigmas da historiografia tinham
em certo sentido uma finalidade poliacutetica a de formar uma classe governante
oferecendo modelos de anaacutelise e exemplos de comportamento (como em Tuciacutedides) dar
1 Gu rinello no c piacutetulo ―Um morfologi d Histoacuteri de su tese de livre docecircnci (2014 p 53 a 74)
faz uma reflexatildeo sobre a Histoacuteria enquanto ciecircncia bem como sobre as questotildees metodoloacutegicas e campo
de estudo da mesma 2 Marincola no capiacutetulo 2 intitul do ―Historiogr phy (In ERSKINE 2009 p 13 22) det lh de
forma profunda a questatildeo da escrita historiograacutefica na Antiguidade bem como realiza um debate sobre os
pressupostos dos historiadores antigos quanto agrave sua maneira de escrever o gecircnero histoacuteria
10
destaque a grandes personalidades ndash de modo positivo ou negativo ndash a tiacutetulo de
exemplos de evoluccedilatildeo moral (como em Saluacutestio) ou ainda cumprir o objetivo de
construir memoacuteria e identidade coletiva como nas historiografias locais e ktiseis
relacionadas agraves origens e fundaccedilotildees Evidentemente o corpus de autores de
historiografia antiga eacute bastante heterogecircneo com caracteriacutesticas muito diferentes entre
si ndash sendo que o denominador comum a todos eles eacute o fato de terem escrito uma
narraccedilatildeo de evento ou eventos (NICOLAI In MARINCOLA 2007 p 14) Aleacutem
disso embora o gecircnero historiograacutefico pressupusesse a imparcialidade e a auto-anulaccedilatildeo
do autor evidentemente uma escrita completamente imparcial era algo inviaacutevel a
histoacuteria escrita por um indiviacuteduo natildeo deixa de ser um texto como qualquer outro e
como tal ele passa em maior ou menor grau a visatildeo de mundo de seu autor Como
Fornara (1983 p 169) lembra comumente um poeta desejava expressar a si mesmo em
sua obra (mesmo que fosse seu eu liacuterico) um historiador por sua vez optava por se
esconder por traacutes dos sentimentos dos personagens da narrativa (sobretudo por meio dos
seus discursos) ou poderia ser vagamente percebido na forma como ele descrevia os
eventos3
Sobre definiccedilatildeo d histoacuteri Veyne (1998 p 18) pontu ― histoacuteri eacute um
narrativa de eventos todo o resto resulta disso Jaacute que eacute de fato uma narrativa ela natildeo
faz reviver esses eventos assim como tampouco o faz o romance o vivido tal como
ress i d s matildeos do histori dor natildeo eacute o dos tores eacute um n rr ccedilatildeo ( ) Veyne f z
nessa citaccedilatildeo uma referecircncia importante que relaciona a histoacuteria ao romance jaacute que
ambos satildeo narrativas em prosa Brandatildeo em seu livro A invenccedilatildeo do romance
esclarece de forma didaacutetica e acessiacutevel como os antigos (sobretudo Platatildeo e
Aristoacuteteles) defini m os gecircneros n rr tivos nos c piacutetulos ―O est tuto d n rr tiv
dieacutegesis e miacutemesis e seguintes 4
Focaremos aqui de forma resumida na relaccedilatildeo entre a histoacuteria e o romance
Como Br ndatildeo (2005 p 50) lembr ―( ) histoacuteri enqu dr -se na modalidade da
3 Para maior aprofundamento sobre a composiccedilatildeo historiograacutefica e em que medida o ponto de vista do
autor antigo pode ser contestado cf JOLY (2007 p 7-9) 4 Como Brandatildeo (2005 p 40 e ss) destaca para Platatildeo a narrativa poderia ser classificada em narrativa
simples (haplegrave dieacutegesis) cujo exemplo eacute o ditirambo narrativa mimeacutetica (miacutemesis) cujo maior exemplo
eacute o drama e a narrativa mista (dieacutegesis e miacutemesis) que tem como exemplo a epopeia Aristoacuteteles segue o
modelo de Platatildeo mas efetua em sua classificaccedilatildeo uma enorme modificaccedilatildeo ele faz da mimese (e natildeo da
narrativa) o nuacutecleo central Para Platatildeo tudo quanto dizem prosadores e poetas eacute dieacutegesis Para
Aristoacuteteles todas as narrativas (de prosadores e poetas) bem como a escultura a muacutesica e a pintura eacute
miacutemesis Para Aristoacuteteles a mimese se daacute agraves vezes narrando tornando-se em algo outro (como faz
Homero) como si mesmo e natildeo mudando ou com todos mimetizados agindo e atuando
11
narrativa mista jaacute que comporta a fala do narrador e discursos diretos de personagens
(pelo menos em rel ccedilatildeo agrave m iori dos histori dores ntigos) ( ) Ess definiccedilatildeo de
narrativa mista tambeacutem se aplica ao romance ainda que esse gecircnero de composiccedilatildeo
tenha surgido em periacuteodo posterior agraves definiccedilotildees de narrativa descritas por Platatildeo e
Aristoacuteteles
Brandatildeo (2005 p 51 e 52) resume essa questatildeo
Assim trecircs caracteriacutesticas separam a narrativa literaacuteria da narrativa histoacuterica
a primeira refere-se ao universal ocupando-se do que poderia acontecer
enquanto a segunda se volta para o particular e visa ao acontecido a primeira
organiza-se segundo os criteacuterios da verossimilhanccedila e da necessidade
enquanto a segunda conforme as accedilotildees tenham acontecido num determinado
tempo guardando umas com as outras um nexo puramente casual
finalmente a primeira por suas caracteriacutesticas formais tem como objetivo
produzir prazer (poieicirc hedoneacuten) Embora Aristoacuteteles natildeo esclareccedila os
objetivos da histoacuteria eacute lugar comum admitir que ela visa ao uacutetil
Dessa forma o foco da narraccedilatildeo seraacute percebido por duas vias a da utilidade ou
da natildeo utilidade (ou seja o divertimento) e por consequecircncia pela via da verdade
(aleacutetheia) ou da ficccedilatildeo (pseucircdos) (BRANDAtildeO 2005 p 56) O historiador antigo
tod vi natildeo possuiacute ess concepccedilatildeo de ―verd de histoacuteric t l como se tem hoje de
acordo com Martin e Gaillard (1981 p 109) o historiador antigo presumia que seus
predecessores tinham dito a verdade e se acontecesse de ele suprimir um ou outro
detalhe que lhe parecesse inverossiacutemil em essecircncia ele considerava a tradiccedilatildeo como
conferidora da autoridade a partir do momento em que o relato fornecido era racional e
coerente era aceitaacutevel
No contexto romano jaacute existiam relatos rudimentares dos fatos ndash desde meados
de 300 aC o pontiacutefice maacuteximo escrevia em uma taacutebula branca os eventos cotidianos
conflitos beacutelicos bem como o calendaacuterio religioso e prodiacutegios diversos e essa placa era
afixada no foacuterum (ANDREacute HUS 1974 p 10) Aleacutem disso tinham-se registros de leis
tratados diplomaacuteticos anais religiosos e os registros das grandes famiacutelias patriacutecias
Quanto agrave literatura latina em si ndash e evidentemente a historiografia ndash tem-se uma
grande influecircncia dos gregos a partir do contato entre essas duas culturas sobretudo a
partir de meados do seacuteculo II aC quando Roma conquistou vaacuterias cidades helecircnicas O
proacuteprio termo grego ἱζηνξία do qual vem o vocaacutebulo latino historia a princiacutepio
signific v ―pesquis Com o tempo ἱζηνξία passou a designar conhecimento obtido
ou informaccedilatildeo e por fim tornou-se sinocircnimo de narrativa sobre fatos eou feitos de
algueacutem (LIDDELL SCOTT JONES 1996 p 842) Em latim esse tipo de narrativa de
12
realizaccedilotildees pessoais eacute conhecido como res gestae (fatos realizados) ndash sendo as Res
Gestae do imperador Otaacutevio Augusto o exemplo mais conhecido5
Quanto agrave origem de narrativas historiograacuteficas em Roma jaacute em 220 aC Neacutevio
escreveu uma epopeia de cunho historiograacutefico intitulada Bellum Punicum (Da guerra
puacutenica) da qual existem poucos fragmentos Essa obra tratava dos primoacuterdios de Roma
e das suas origens troianas Ecircnio contemporacircneo de Catatildeo o Velho escreveu os
Annales (Anais) entre 180 e 169 aC em hexacircmetros datiacutelicos A obra possuiacutea 18
livros que tratavam desde os primoacuterdios de Roma ateacute a Guerra da Iacutestria entre 178 e 177
aC Depois de Ecircnio as obras historiograacuteficas latinas passam a ser escritas
exclusivamente em prosa O grande florescimento do gecircnero em Roma ocorreu
especialmente no periacuteodo entre o seacuteculo I aC ao seacuteculo II dC com autores como
Ceacutesar Saluacutestio Tito Liacutevio e Taacutecito
Como Martin e Gaillard (1981 p 109 e 110) afirmam episoacutedios dramaacuteticos
momentos eacutepicos discursos e perigos constituiacuteam parte da mateacuteria historiograacutefica
antiga ndash o esforccedilo de racionalismo e anaacutelise poliacutetica nunca estavam ausentes de fato o
saber histoacuterico era indispensaacutevel agrave clarividecircncia poliacutetica pois a historiografia latina era
endereccedilada ao homem de estado ao homem de accedilatildeo e deveria ter uma finalidade uacutetil6
Escrever histoacuteria na Antiguidade portanto consistia na preocupaccedilatildeo de conservar para
a posteridade a lembranccedila dos atos e feitos dos ancestrais () e a iniciativa de fazer um
relato literaacuterio do passado (MARTIN GAILLARD 1981 p 110) A historiografia
antiga era um gecircnero que abarcava vaacuterios subgecircneros como o commentarius (utilizado
por Ceacutesar) e os annales (utilizado por Tito Liacutevio)7
5 Tambeacutem conhecido pelo nome de Monumentum Ancyranum ndash Monumento de Ancira) jaacute que a
inscriccedilatildeo dos feitos de Otaacutevio se encontra em uma estela na atual cidade de Ancara 6 Abordaremos mais adiante no subcapiacutetulo 132 referente a Ciacutecero a concepccedilatildeo da historiografia latina
e a sua utilidade sobretudo como ferramenta poliacutetica ao orador 7O commentarius (comentaacuterio) do antecedente grego hypomnema (memoacuteria) consistia em narrativas
provenientes de materiais sem acabamento como anotaccedilotildees relatoacuterios etc e era bastante utilizado por
magistrados e chefes militares para informar o governo sobre suas atividades ou ainda como rascunho
para depois ser melhor desenvolvido Os maiores exemplos desse tipo de composiccedilatildeo satildeo os dois textos
de Ceacutesar Ciacutecero tambeacutem escreveu um comentaacuterio sobre seu consulado mas natildeo foi publicado (CONTE
1999 p226) Os annales (anais) formam um gecircnero de escrita no qual os acontecimentos satildeo narrados
ano a ano e foram o primeiro modelo historiograacutefico utilizado pelos romanos Segundo Conte (1999 p
368) a obra de Liacutevio Ab urbe condita teria uma subdivisatildeo de livros por deacutecadas Aleacutem de Tito Liacutevio
outro exemplo desse gecircnero satildeo os Annales de Taacutecito Todavia Liacutevio pelo fato de contar a histoacuteria de
Roma desde a sua fundaccedilatildeo ateacute os dias que lhe eram contemporacircneos tambeacutem se encaixa no subgecircnero
da histoacuteria universal Para explicaccedilatildeo mais detalhada sobre os subgecircneros da historiografia latina cf
ANDREacute HUS 1974 p 9-14
13
Sobre a evoluccedilatildeo da historiografia romana sob influecircncia heleniacutestica e o seu
desenvolvimento ao longo do tempo Lintott (In BOARDMAN et al 1986 p 641)
afirma
In the late second century a distinction was drawn between annales in the
strict sense of a chronicle of events year by year and historiae which
involved casual analysis In due course the term histori elsquo w s to be used by
S llust nd T citus for works bout their own lifetime while nn leslsquo tended
to mean ancient history Cato had been the pioneer in turning history into a
political weapon by 100 BC politicians were writing memoirs to set the
record right bout themselves This trend led in time to C es rlsquos
comment ries nd Augustuslsquo Res Gestae (hellip) However side by side with
contemporary history antiquarian history flourished as never before The
material in the earlier annals was expanded by material culled from a variety
of documents whether genuine or forged and supplemented by frequently
stereotyped inventions such as led Livy to wonder how the Volscians and
Aequians had enough men to be slaughtered so often by the Romans(grifos
do autor) 8
A respeito da proacutepria histoacuteria de Roma desde o seu iniacutecio a cidade sempre se
envolveu em guerras e conquistas em grande contato com povos estrangeiros De
acordo com relatos literaacuterios que bebiam na fonte das narrativas lendaacuterias o heroacutei
primordial Eneias fugiu de Troia e partiu em busca da Itaacutelia para ali estabelecer o novo
povo romano e a nova paacutetria Virgiacutelio narra esse episoacutedio nos primeiros versos do livro I
da Aeneis (Eneida) e tambeacutem nesse livro estaacute a passagem em que Eneias chega a
Cartago Nesse lugar o heroacutei troiano conta para Dido nos livros II e III sobre a queda
de Troia e tambeacutem sobre suas andanccedilas e aventuras em busca da costa da Itaacutelia Eneias
deixa Cartago e Dido suicida-se (livro IV) temos em seguida a narraccedilatildeo da viagem dos
troianos ateacute a Itaacutelia (livro V) e a ida de Eneias ao inferno onde ele tem uma visatildeo do
futuro grandioso de Roma (livro VI) Eneias finalmente chega agrave peniacutensula Itaacutelica e
encontra-se com o rei Latino a guerra entre itaacutelicos e troianos se inicia quando o rei
Latino oferece a matildeo da sua filha Laviacutenia a Eneias sendo que a mesma jaacute tinha sido
prometida ao priacutencipe Turno (livro VII) Virgiacutelio conta sobre os confrontos entre os
exeacutercitos de Turno e Eneias entre os cantos VIII e XI A guerra entre troianos e ruacutetulos
apenas se encerra quando em um duelo Eneias vence Turno no livro XII da Aeneis
8 ―No fin l do segundo seacuteculo uma distinccedilatildeo foi feita entre annales (anais) no sentido estrito de uma
crocircnica de eventos ano a ano e historiae (histoacuterias) que envolviam anaacutelise dos fatos Mais tarde o termo
histori elsquo er us do por S luacutestio e Taacutecito p r tr b lhos sobre o seu proacuteprio tempo enqu nto nn leslsquo
tendia a designar histoacuteria antiga Catatildeo foi o pioneiro em transformar a histoacuteria em uma arma poliacutetica jaacute
em 100 aC poliacuteticos escreviam memoacuterias para um registro correto sobre eles mesmos Essa tendecircncia
levou no futuro aos comentaacuterios de Ceacutesar e Res Gestae (feitos) de Augusto () Todavia lado a lado com
a histoacuteria contemporacircnea a histoacuteria antiga floresceu como nunca antes O teor dos antigos anais foi
expandido por materiais selecionados a partir de uma variedade de documentos tanto genuiacutenos quanto
forjados e acrescidos de frequentes invenccedilotildees estereotipadas como as que levaram Liacutevio a duvidar como
volscos e eacutequos pudessem possuir homens suficientes para serem mortos frequentemente pelos rom nos
14
Muitos outros exemplos de conflitos com outros povos podem ser encontrados na
histoacuteria miacutetica de Roma como as lendas que envolvem Horaacutecio Cocles Muacutecio Ceacutevola
Reacutegulo9
No campo historiograacutefico jaacute no seacuteculo V aC Roma iniciou a conquista de
outros povos itaacutelicos como os eacutequos os volscos e os sabinos Em 390 aC Roma
(exceto o Capitoacutelio) foi tomada pelos gauleses e obrigada a pagar um pesado tributo
para recuperar a cidade10
Posteriormente Roma e Cartago se envolveram em violentas
disputas pela hegemonia do mar mediterracircneo que resultaram nas Guerras Puacutenicas A
primeira dessas guerras ocorreu entre 264 e 241 aC a segunda entre 218 e 201 aC e a
terceira entre 149 e 146 aC Entrementes Roma entrou em conflito contra a Hispacircnia
de 218 a 206 aC e no periacuteodo entre 201 e 175 aC Roma conseguiu a submissatildeo
definitiva da Gaacutelia Cisalpina11
Novamente temos confrontos entre romanos e gauleses
Entre 105 e 101 aC o general Maacuterio aniquilou os cimbros e os teutotildees em Aix na
Gaacutelia (102 aC) e em Vercelas na Itaacutelia (101 aC) Posteriormente Juacutelio Ceacutesar
conquistou a Gaacutelia definitivamente entre os anos 58 e 51 aC12
Cabe aqui fazer um esclarecimento sobre os termos celta e gaulecircs nas palavras
do proacuteprio Ceacutesar no comeccedilo de sua obra De bello Gallico (I1) em traduccedilatildeo nossa
Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam Aquitani
tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur ―Tod Gaacuteli eacute dividid
em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a terceira
h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss
g uleseslsquo Or p r os rom nos h vi distinccedilatildeo entre os celt s e outros povos que
habitavam a Gaacutelia Neste trabalho ao conjunto dos povos da Gaacutelia (belgas aquitanos e
celtas) vamos nos referir a todos eles indistintamente como gauleses galos e celtas13
9 Pereira faz uma raacutepida antologia sobre os heroacuteis miacuteticos de Roma (1993 p 11 a 32)
10 Tito Liacutevio narra o episoacutedio no livro V (48 a 51) de Ab urbe condita Schmidt (2010) narra todos os
enfrentamentos entre gauleses e romanos desde o seacuteculo IV aC ateacute o fim do impeacuterio romano no seacuteculo V
dC 11
Para mais detalhes sobre a conquista da Gaacutelia Cisalpina ver SCHMIDT (2010 p 105 e 106) 12
Para todas as datas citadas nesse trecho e tambeacutem as datas mencionadas anteriormente sobre
acontecimentos entre 264 e 175 aC usamos a cronologia de Bornecque e Mornet (2002 p 6 a 12) 13
O termo celta era um atributo eacutetnico usado primeiramente pelos gregos para se referir aos povos que
viviam ao norte da colocircnia de Marselha Possivelmente tem ligaccedilatildeo com a raiz kel tendo o obscuro
significado de exaltado ou combativo O termo gaulecircs por sua vez jaacute era usado pelos romanos para se
referir ao povo que veio do norte e saqueou a cidade no comeccedilo do seacuteculo IV aC e posteriormente para
se referir a todos os povos que possuiacuteam linguagem e cultura ceacutelticas (RANKIN 1996 p 1 e 2)
15
Tais incursotildees romanas eram motivadas por vaacuterios aspectos poliacuteticos
econocircmicos e sociais No plano poliacutetico Goudineau (2007 p 324) resume a nova
posiccedilatildeo de Roma ao conquistar a Gaacutelia ao afirmar
L conquecircte ceacutes rienne modifieacute de fond en comble llsquoeacutequilibre du monde
rom in jusqulsquo lors centreacute sur l Meacutediterr neacutee (agrave llsquoexception tout juste du
Pont-Euxin) En superficie les ―nouve ux territoires repreacutesentent environ
30 de ce monde Italie exclue ndash ce qui est eacutenorme () La guerre des
Gaules a radicalement et deacutefinitivement transformeacute les donneacutees geacuteo-
politiques du monde ntique Inversement llsquohistoire des G ules tient en
grande partie agrave leur environnement aux nouvelles donneacutees strateacutegiques (les
frontiegraveres germaniques la proximiteacute de la Bretagne) qui eurent de
conseacutequences agrave la fois sociales et eacuteconomiques14
Quanto ao aspecto econocircmico Roma passou a ter maior matildeo de obra escrava
para os grandes latifuacutendios receita maior com tributos pagos pelos povos vencidos e
tambeacutem maior nuacutemero de soldados jaacute que as proviacutencias deveriam fornecer tropas
auxiliares (DELAPLACE FRANCE 2011 p 53) Aleacutem disso Roma aumentou a zona
de comeacutercio e circulaccedilatildeo de mercadorias e explorou minas de ouro e prata na Gaacutelia
Transalpina (GOUDINEAU 2007 p 340)
No campo social Roma em seus domiacutenios tornou-se mais versaacutetil em termos
culturais Ao contraacuterio dos gregos que jamais concederam a cidadania aos povos
estrangeiros em Roma esse processo foi diferente Apoacutes a conquista definitiva da Gaacutelia
empreendida por Ceacutesar o territoacuterio passou a ser romanizado e as elites locais foram
mantidas Delaplace e France (2011 p 53) afirmam o seguinte sobre esse fenocircmeno
En effet les aristocraties locales profitent quant agrave elles de la romanisation
qui mecircme si elle s`accompagne de mesures contraignantes leur apporte le
soutien de Rome pour renforcer leur domination sociale et leur permet de
beacuteneacuteficier de privilegraveges lieacutes agrave llsquoobtention de l citoyenneteacute rom ine Degraves ce
moment plusieurs de ces not bles g ulois beacuteneacuteficient en effet de llsquooctroi de
la ciuitas(grifo do autor)15
14
―A conquist ces ri n modificou complet mente o equiliacutebrio do mundo rom no gor centr do no
Mediterracircneo (com exceccedilatildeo t lvez do Ponto Euxino) Em superfiacutecie os ―novos territoacuterios represent m
cerca de 30 desse mundo excluiacuteda a Itaacutelia - o que eacute enorme () A guerra das Gaacutelias transformou de
forma radical e definitiva os domiacutenios geopoliacuteticos do mundo antigo Inversamente a histoacuteria das Gaacutelias
se deve em grande parte ao seu ambiente e aos novos domiacutenios estrateacutegicos (as fronteiras germacircnicas a
proximid de d Bret nh ) que c rret r m consequecircnci s t nto soci is qu nto econocircmic s 15
―De f to s ristocr ci s loc is desfrut v m el s mesm s d rom niz ccedilatildeo que mesmo se
acompanhada de medidas restritivas lhes concedia o suporte de Roma para reforccedilar a sua dominaccedilatildeo
social e lhes permitia se favorecer dos privileacutegios relacionados agrave obtenccedilatildeo da cidadania romana A partir
desse momento muitos desses notaacuteveis gauleses passaram a se beneficiar da concessatildeo da ciuitas
16
Dessa maneira ao longo do seacuteculo I aC e do seacuteculo I dC temos a conquista de
territoacuterios da Europa ocidental e esses lugares permaneceratildeo de certa forma sob
influecircncia definitiva da romanizaccedilatildeo mesmo apoacutes a queda do impeacuterio romano com o
predomiacutenio das liacutenguas latinas (BASSETTO 2005 p 99 e 100)
Os romanos tiveram um contato muito grande com os ditos baacuterbaros jaacute que
lutaram contra eles durante quase a totalidade de sua histoacuteria ampliando e defendendo
suas fronteiras Todavia esse processo de conquistas natildeo foi unilateral apesar de os
romanos terem dominado povos diferentes eles tambeacutem adquiriram muitos dos haacutebitos
estrangeiros ndash como o culto persa a Mitra o culto a deuses egiacutepcios e a grande
influecircncia cultural dos gregos sobre Roma dentre outros exemplos Quanto aos povos
conquistados Roma possuiacutea uma dupla forma de tratar com os vencidos Os
estrangeiros que eram inimigos da cidade e que resistiam agrave conquista quando
derrotados eram subjugados e obrigados a pagar altos tributos Todavia alguns povos
se aliavam a Roma de maneira diplomaacutetica O grande aspecto que diferenciava Roma
dos outros povos antigos contudo era a manutenccedilatildeo das elites locais dos territoacuterios
conquistados pacificamente e ateacute mesmo a concessatildeo de cidadania plena ou parcial a
essas elites Esse fenocircmeno visava tanto a diminuir revoltas contra Roma quanto coibir
alianccedilas entre os inimigos do impeacuterio (GUARINELLO 2014 p 296)16
Roma que
desde as suas origens jaacute se relacionava com outros povos tornou-se entatildeo um domiacutenio
multicultural17
Do tema de pesquisa
Vimos que Roma ampliou seus territoacuterios atraveacutes das conquistas obtendo terras
e matildeo de obra para os latifuacutendios aleacutem de receitas com tributos e aumento do seu
territoacuterio18
Sobre esses escravos obtidos em conquistas militares jaacute Bloch e Cousin
(1964 p 123) afirmaram que ―( ) Luacuteculo Muren Serviacutelio Pompeio vatildeo enviar do
Oriente verdadeiros carregamentos de homens entre os anos 80 e 63 Ceacutesar passa por ter
16
Mencionamos anteriormente vaacuterias conquistas que foram realizadas durante o periacuteodo da Repuacuteblica
romana Ao falar de impeacuterio estamos considerando aqui o sentido de conquista e dominaccedilatildeo dos romanos
perante outros povos e natildeo a forma de governo iniciada por Otaacutevio Augusto 17
No capiacutetulo 2 deste trabalho voltaremos ao tema da conquista romana bem como ao processo de
romanizaccedilatildeo de forma mais profunda 18
A discussatildeo sobre os motivos que impulsionaram as conquistas de Roma natildeo se esgota apenas nessa
justificativa econocircmica aprofundaremos m is esse ssunto di nte no subc piacutetulo 2 1 2 intitul do ―o
romano como o povo-rei e justific tiv ideoloacutegic d exp nsatildeo imperi list
17
trazido das suas campanhas consoante os autores 150000 400000 e mesmo um
milhatildeo de prisioneiros este recrut mento contiacutenuo de g dolsquo hum no desafia todo o
numer mento T mbeacutem sobre o genociacutedio dos g uleses C nfor (2002 p 157) firm
que ― Gaacuteli o mundo ceacuteltico foi dess form com violecircnci e o genociacutedio
mergulh d no circuito d civiliz ccedilatildeolsquo rom n Muito se f l sobre exp nsatildeo do
impeacuterio romano mas ao ler as citaccedilotildees anteriores temos uma ideia de quatildeo violento esse
processo foi
No tocante aos gauleses diferem os discursos e escritos tanto os antigos quanto
os contemporacircneos Aleacutem da miscelacircnea de fontes antigas temos ainda o preconceito de
estudiosos da aacuterea que agraves vezes valorizam a supremacia greco-romana em detrimento
de outras culturas Sobre esse aspecto temos um exemplo neste trecho escrito por
Anderson (1982 p 67)
A Espanha e a Gaacutelia e mais tarde a Noacuterica a Reacutetia e a Bretanha eram terras
remotas e primitivas povoadas por comunidades tribais celtas muitas delas
sem qualquer contacto histoacuterico com o mundo claacutessico A sua integraccedilatildeo
neste levantou problemas de ordem completamente diversa dos da
helenizaccedilatildeo do Proacuteximo Oriente Tratava-se natildeo somente de povos social e
culturalmente atrasados mas de regiotildees interiores de um tipo que a
Antiguidade claacutessica fora ateacute entatildeo incapaz de organizar economicamente
O utor firm cim que os povos baacuterb ros er m ―social e culturalmente
tr s dos De cordo com outros pesquis dores n verd de os g uleses natildeo seri m tatildeo
atrasados como Anderson escreveu No livro Roma e o seu destino por exemplo Bloch
e Cousin (1964 p 234) afirmam o seguinte sobre os gauleses na eacutepoca da conquista
romana
Os gauleses conhecem com efeito os processos de heranccedila e de estremas a
venda em leilatildeo o dote da mulher uma espeacutecie de vassalidade comparaacutevel agrave
clientela romana ateacute mesmo a escravidatildeo o arrendamento da cobranccedila de
impostos taxas pesagens e postagens os seus sistemas econoacutemicos e sociais
que eram os que tinham servido de base aos Celtas de Hallstatt e de La Tegravene
serviratildeo aos Romanos conquistadores para estabelecer sobre uma aristocracia
fundiaacuteria jaacute em contacto com as civilizaccedilotildees danubiana renana oceacircnica e
mediterracircnea em resultado das migraccedilotildees e das osmoses o seu poder e a sua
propaganda
Desde a Antiguidade era comum que esses povos fossem por vezes retratados
como oriundos de um c tegori civiliz cion l ―inferior agrave dos rom nos A p l vr
baacuterbaro que para os gregos e romanos designava os povos estrangeiros depois se
18
tornou sinocircnimo de falta de civilizaccedilatildeo selvageria crueldade Os pesquisadores
Delaplace e France (2011 p 43) a esse respeito escrevem
De mecircme llsquoim ge ethnique du G ulois se nourriss it plus volontiers de
clicheacutes que de connaissances positives Le Gaulois eacutetait un Barbare
quelqulsquoun qulsquoon ne comprend p s et qui est eacutetr nger ux bienf its comme
aux exigences de la civilisation Les Romains comme les Grecs nlsquo v ient
sans doute pas de preacutejugeacutes raciaux mais leurs a priori culturels eacutetaient
exclusifs Cette infeacuterioriteacute culturelle conditionn it llsquoinfeacuterioriteacute mor le du
Barbare sa cruauteacute sa sauvagerie et le caractegravere primitif de ses structures
eacuteconomiques sociales et politiques Ce peu de consideacuteration pour le monde
b rb re en geacuteneacuter l explique llsquo bsence de scrupules et llsquo rrog nce dont les
Rom ins f is ient preuve agrave llsquoeacuteg rd des provinci ux ( ) Cette ttitude eacutet it
heacuteriteacutee des topoi de llsquoethnogr phie grecque depuis Heacuterodote m is elle doit
ecirctre nuanceacutee et eacutevolua certainement au contact des realiteacutes et agrave cause du
nombre de plus en plus important de non-Rom ins d ns llsquoEmpire On ne
trouve pas chez Ceacutesar ou chez Tacite la mecircme veacuteheacutemence et le mecircme meacutepris
vis-agrave-vis des Gaulois voire des Germains Ils leur reconnaissent des qualiteacutes
et l c p citeacute de slsquo d pter ux modegraveles culturels de Rome Ceacutes r estime
dlsquo illeurs qulsquoil pouv it y voir des degreacutes d ns l b rb rie comme ceux qulsquoil
eacutetablit entre Gaulois Belges et Germains19
O que nos propomos a fazer nesta pesquisa eacute justamente estudar a fundo alguns
registros antigos sobre os gauleses como eles eram representados e de como se operava
essa construccedilatildeo da imagem de baacuterbaro por eles exemplificada nos autores romanos do
corpus escolhido imagem essa que poderia ser bastante complexa jaacute que nem sempre
os baacuterb ros er m retr t dos como os ―vilotildees Empreg remos s seguintes fontes p r
anaacutelise da representaccedilatildeo do gaulecircs em nossa pesquisa o De bello Gallico (Sobre a
guerra da Gaacutelia) de Ceacutesar o Ab urbe condita (Da fundaccedilatildeo da Cidade) de Tito Liacutevio e
a Historia naturalis (Histoacuteria natural) de Pliacutenio o Velho20
19
―Do mesmo modo im gem eacutetnic do g ulecircs se sustent v m is com clichecircs do que com
conhecimentos positivos O gaulecircs era um baacuterbaro algueacutem que natildeo era compreendido e que era alheio
aos benefiacutecios como requisitos da civilizaccedilatildeo Os romanos assim como os gregos sem duacutevida natildeo
possuiacuteam preconceitos raciais mas a priori esses preconceitos eram exclusivamente culturais Essa
inferioridade cultural constituiacutea a inferioridade moral do baacuterbaro sua crueldade sua selvageria e o caraacuteter
primitivo de suas estruturas econocircmicas sociais e poliacuteticas Essa consideraccedilatildeo sobre o mundo baacuterbaro em
geral explica a ausecircncia de escruacutepulos e a arrogacircncia dos romanos perante os provincianos () Essa
atitude eacute herdeira dos toacutepoi da etnografia grega desde Heroacutedoto mas ela foi atenuada e certamente
evoluiu em contato com as realidades e tambeacutem devido ao nuacutemero cada vez mais importante de natildeo
romanos dentro do impeacuterio Natildeo se encontrou em Ceacutesar ou em Taacutecito a mesma veemecircncia e desprezo
perante os gauleses ateacute mesmo os germanos Eles reconheceram as qualidades deles e a sua capacidade
de se adaptar aos modelos culturais de Roma Ceacutesar aleacutem disso considerou que poderia haver gradaccedilotildees
dentro da barbaacuterie como aquelas que ele estabeleceu entre g uleses belg s e germ nos 20
Do trabalho de Ceacutesar temos no Brasil pesquisas recentes mais concentradas no De bello ciuili do que
no De bello Gallico Desse uacuteltimo temos uma traduccedilatildeo do seacuteculo XIX feita pelo maranhense Francisco
Sotero dos Reis Sobre o tema relacionado agrave Gaacutelia temos tambeacutem a dissertaccedilatildeo de mestrado de Diego
Verissimo Oliveira sobre o perfil de Vercingetoacuterige em Ceacutesar do ano de 2008 Quanto a Tito Liacutevio os
estudos atuais concentram-se mais em aspectos poliacuteticos ou historiograacuteficos romanos Temos por
exemplo a tese de doutorado de Juliana Bastos Marques sobre renovaccedilatildeo da identidade romana em Liacutevio
e Taacutecito (2007) de Marco Antonio Collares haacute um livro sobre representaccedilotildees do senado romano em
19
Escolhemos Ceacutesar porque em se tratando de gauleses sua obra eacute fundamental
para esse estudo21
Durante seus nove anos de campanha na Gaacutelia ele penetrou em um
territoacuterio alheio em um universo ateacute entatildeo desconhecido e temido pelos romanos Ceacutesar
aprendeu a conhecer os diferentes graus de ferocitas a diversidade de povos ceacutelticos e
de tribos germacircnicas e observou a instabilidade poliacutetica e social dos gauleses e tambeacutem
sua cultura e sua bravura (DAUGE 1981 p 93) Apesar de autores gregos como
Poliacutebio22
jaacute terem escrito sobre os celtas na verdade eacute de Ceacutesar que temos um relato
mais detalhado (o primeiro em liacutengua latina) e mais aprofundado23
Alguns autores
gregos jaacute escreveram sobre os gauleses antes de Ceacutesar mas nunca tiveram contato
duradouro com esse povo Nas palavras de Gruen (2011a p 141) temos
That corpus offers an invaluable entrance to a critical subject the mode of
representing to a Roman readership a foe with a long history of hostility and
one that had recently claimed many Roman lives while straining the
manpower and resources of the nation for several bloody years24
Sobre Tito Liacutevio um traccedilo essencial de sua obra Ab urbe condita tambeacutem
conhecida por Histoacuteria romana eacute a preocupaccedilatildeo em retratar o romano como um povo
que vence os baacuterbaros ao longo de vaacuterios seacuteculos de luta A esse respeito Dauge (1981
p 170) firm que ―les 142 livres de cette veacuterit ble eacutepopeacutee en prose dont l richesse
slsquoordonne en structures rigoureuses eacutetaient destineacutes agrave illustrer le geacutenie romain et agrave
retr cer les luttes du premier peuple du mondelsquo contre l b rb rie au cours des
Liacutevio (2010) A respeito de Pliacutenio as pesquisas realizadas no Brasil atualmente concentram-se em
aspectos bioloacutegicos da Historia naturalis Destacamos aqui dentre outros trabalhos o artigo de Roberto
de Andrade Martins sobre descriccedilatildeo das aves em Aristoacuteteles e Pliacutenio (2006) e ainda o artigo de Ana
Thereza Basilio Vieira que trata do conceito de natureza em Pliacutenio (2010) 21
Todavia em maior ou menor grau os comentaacuterios de Ceacutesar possuem distorccedilotildees histoacutericas com a
finalidade de propaganda para a sua ascensatildeo ao poder Falaremos mais sobre essa questatildeo no capiacutetulo 2
deste trabalho 22
Desde o seacuteculo IV aC temos relatos gregos sobre os povos da Gaacutelia sobretudo de Massalia (hoje
Marselha) Momigliano (1991 p 57 a 60) faz um levantamento de todos os autores gregos (antes do
domiacutenio de Roma) que mencionaram os gauleses 23
De fato Catatildeo o Censor jaacute tivera contato com os celtiberos em 195 aC quando se dirigiu para a
Hispacircnia a fim de estabelecer a administraccedilatildeo romana durante seu consulado Momigliano (1991 p 63)
resume de forma exemplar a experiecircncia de Catatildeo com os celtiberos e afirma que ele foi o primeiro
romano a demonstrar maior interesse sobre os gauleses Infelizmente de toda a obra de Catatildeo atualmente
possuiacutemos apenas fragmentos e pouco pode ser depreendido desse material 24
―Esse corpus oferece um inestimaacutevel entrada para um assunto criacutetico o modo de representar ao leitor
romano um inimigo com uma longa histoacuteria de hostilidade e que ateacute recentemente reivindicou muitas
vidas romanas enquanto constringia a matildeo-de-obra e recursos da naccedilatildeo por muitos anos sangrentos
20
siegravecles 25
No livro V por exemplo Liacutevio narrou os primeiros contatos entre romanos e
gauleses e tambeacutem o saque de Roma por estes uacuteltimos
Quanto a Pliacutenio em sua vasta obra enciclopeacutedica o autor mencionou uma
enorme quantidade de povos das mais variadas regiotildees O autor tambeacutem se preocupou
em retratar a ferocitas (ferocidade) baacuterbara mas foi aleacutem descreveu os haacutebitos
culturais a diversidade dos costumes alguns aspectos de alimentaccedilatildeo a constituiccedilatildeo
fiacutesica dos indiviacuteduos e a vida social desses povos (dentre eles os gauleses)
Consideramos portanto que esse relato bastante heterogecircneo seja de grande interesse
para o tema de nossa pesquisa jaacute que mostra um ponto de vista diferente do gaulecircs
retratado em histoacuterias de campanhas militares e guerras Um exemplo que temos desse
ponto de vista diverso eacute que Pliacutenio chegou a elogiar a forma como os gauleses fiavam a
latilde em Historia naturalis VIII 73 Ceacutesar (BGall VII 22) tambeacutem fez uma descriccedilatildeo
menos estereotipada dos gauleses e elogiou a forma como eles se defendiam do asseacutedio
dos romanos ao dizer
Singulari militum nostrorum uirtuti consilia cuiusque modi Gallorum
occurrebant ut est summae genus sollertiae atque ad omnia imitanda et
efficienda quae ab quoque traduntur aptissimum Nam et laqueis falces
auertebant quas cum destinauerant tormentis introrsus reducebant et
aggerem cuniculis subtrahebant eo scientius quod apud eos magnae sunt
ferrariae atque omne genus cuniculorum notum atque usitatum est Totum
autem murum ex omni parte turribus contabulauerant atque has coriis
intexerant Tum crebris diurnis nocturnisque eruptionibus aut aggeri ignem
inferebant aut milites occupatos in opere adoriebantur et nostrarum turrium
altitudinem quantum has cotidianus agger expresserat commissis suarum
turrium malis adaequabant et apertos cuniculos praeusta et praeacuta
materia et pice feruefacta et maximi ponderis saxis morabantur moenibusque
adpropinquare prohibebant
Ao singular valor dos nossos soldados opunham-se os projetos de todo tipo
dos gauleses pois satildeo um povo de enorme habilidade e muito apto a imitar e
praticar as invenccedilotildees alheias Na verdade natildeo soacute desviavam as foices com
laccedilos mas como as prendessem de novo impeliam-nas para dentro com
maacutequinas eles tambeacutem muito habilmente destruiacuteam o talude26
atraveacutes de
cavas porque eles dispunham de grandes jazidas de ferro e todo tipo de
escavaccedilotildees eacute conhecido e utilizado por eles Aleacutem disso de todos os lados os
gauleses guarneceram o muro com torres de taacutebuas e as cobriram com peles
Depois com frequentes saiacutedas de dia ou de noite ora incendiavam o talude
25
―Os 142 livros dess verd deir epopei em pros d qu l riquez se orden em estrutur s rigoros s
er m destin dos ilustr r o gecircnio rom no e retr t r s lut s do ―primeiro povo do mundo contr
b rbaacuterie o longo dos seacuteculos 26
O talude (agger) consistia em um caminho elevado criado a partir da terra retirada do fosso Em cercos
como na situaccedilatildeo descrita nesse trecho o talude era um aterro feito para tentar invadir uma fortificaccedilatildeo
em sua extremidade os romanos construiacuteam torres moacuteveis de madeira para facilitar a passagem das
muralhas As cavas (cunniculi) eram passagens subterracircneas feitas sob o talude que permitiam minar a
base do muro inimigo Para mais detalhes sobre engenharia militar cf Bornecque e Mornet (2002 p 119
a 123) Tambeacutem sobre esse assunto o Compecircndio da arte militar de Vegeacutecio fornece detalhes preciosos
21
ora atacavam os soldados ocupados nas manobras tambeacutem eles igualavam a
altura das nossas torres juntando os postes das suas quanto o talude a cada
dia as elevara Eles fechavam as cavas abertas com madeira queimada e
pontuda pez fervente e pedras de enorme peso e impediam-nos a
aproximaccedilatildeo das muralhas
Evidentemente ao longo de toda a literatura latina os galos apareceram em
vaacuterios textos historiograacuteficos e de outros gecircneros de composiccedilatildeo Em nossa pesquisa
achamos menccedilatildeo aos celtas e gauleses em autores como Catulo (poemas 37 e 39)
Saluacutestio (Bellum Iugurthinum 114) Valeacuterio Maacuteximo (Facta et dicta memorabilia II 6
e III 2) Virgiacutelio (Aeneis VIII 656) Oviacutedio (Amores I 15 e Fasti IV 361) Lucano
(Bellum ciuile IV 10) Amiano Marcelino (Rerum gestarum XV 12 1) dentre outros
Restringimos nosso corpus a Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho devido ao recorte
temporal do seacuteculo I aC a I dC que coincide com a conquista da Gaacutelia e o
estabelecimento de proviacutencias romanas nesse territoacuterio Aleacutem disso nos concentramos
nesses trecircs autores pois os consideramos inseridos no gecircnero historiograacutefico ndash embora
Pliacutenio seja considerado por muitos como enciclopedista julgamos que a Historia
naturalis possa ser incluiacuteda na historiografia pois Pliacutenio a escreveu com finalidades de
pesquisa e compilaccedilatildeo de conhecimento
Da traduccedilatildeo e estudo
Foram os gregos em nossa zona de cultura os primeiros a desenvolverem o
conceito de baacuterbaro Para eles baacuterbaro simbolizava tudo aquilo que natildeo fosse grego
existindo assim uma oposiccedilatildeo eacutetnica cultural e linguiacutestica27
Com o tempo esse
conceito passou a ser revestido de julgamentos de valor nos quais os baacuterbaros eram
considerados inferiores aos helecircnicos Gruen (2011a p 2) resume bem esse conceito
The line of reasoning has had a potent impact on scholarship regarding
antiquity Negative images misrepresentations and stereotypes permitted
ncients to invent the ―Other thereby justifying marginalization
subordination and exclusion Creation of the opposite served as a mean to
establish identity distinctiveness and superiority28
27
Dauge na introduccedilatildeo de seu livro Le Barbare (1991 p 10 e 11) aborda de forma abrangente a
experiecircncia grega com o estrangeiro ao longo de sua histoacuteria 28
―A linh de r ciociacutenio teve um potente imp cto no estudo sobre ntiguid de Im gens neg tiv s
deturpaccedilotildees e estereoacutetipos permitir m os ntigos invent r o Outrolsquo dessa forma justificando a
marginalizaccedilatildeo a subordinaccedilatildeo e a exclusatildeo A criaccedilatildeo do antagocircnico serviu como meio para estabelecer
identid de distinccedilatildeo e superiorid de
22
Gruen (2011a p 344 e 345) destaca que os romanos natildeo possuiacuteam tradiccedilotildees que
preconizavam uma pureza de linhagem nem sequer tinham um eacutetimo especiacutefico para
designar o natildeo romano ndash de fato eles buscaram no grego a noccedilatildeo de estrangeiro inserida
no termo baacuterbaro A identidade helecircnica se definia em fundamentos eacutetnicos culturais e
genealoacutegicos a identidade romana por sua vez se estabelecia especialmente em
pressupostos culturais e poliacuteticos como veremos a seguir Contudo a experiecircncia
romana com os estrangeiros foi diferente da vivecircncia que os gregos tiveram com outros
povos
Roma desde os primoacuterdios e durante toda a sua histoacuteria teve contato com outros
povos e os conquistou seja no Ocidente europeu seja no Oriente Roma lutou contra
esses estrangeiros e durante muito tempo conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto
impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave
civilizaccedilatildeo romana ocidental Dessa forma o contato dos romanos com povos
considerados baacuterbaros foi mais duradouro e profundo do que o contato que os gregos
tiveram com os povos externos Dauge (1981 p 18 e 19) assim falou sobre a
experiecircncia do romano perante o estrangeiro
( ) le concept de b rb rie ne concerne p s uniquement llsquoexteacuterieur les gentes
ou nationes exterae mais se trouve eacutetroitement mecircleacute agrave son activiteacute ndash
politique social eacutethique religieux artistique etc Ayant ducirc combat pour
maicirctriser la violence et la deacutemesure inheacuterentes agrave son tempeacuterament ayant
longuement reacutefleacutechi sur llsquoessence de l civilis tion et const mment lutteacute pour
eacuteviter le reproche de barbarie et se rendre digne dlsquoecirctre reconnu comme le
civilis teur il beacuteneacuteficieacute dlsquoune expeacuterience personnelle uthentique de l
nature de la barbarie et de ses dangers Aussi deacutepasse-t-il aiseacutement le point de
vue strictement ethnique ou national qui fut celui des Grecs pour eacutelargir la
notion de b rb rie ux dimensions de llsquouniversel (grifos do autor) 29
Nesta tese pretendemos aprofundar o estudo do conceito de baacuterbaro e de como
se operava a dicotomia romanobaacuterbaro na Antiguidade latina nos relatos
historiograacuteficos Esse tema seraacute tratado no capiacutetulo 1 bem como falaremos das fontes
greco-latinas que abordaram os galos entre os seacuteculos III e I dC Temos tambeacutem por
objetivo estudar a representaccedilatildeo do povo gaulecircs agrave luz dos escritos de Ceacutesar Tito Liacutevio e
29
―( ) o conceito de b rbaacuterie natildeo se plic unic mente o exterior agraves gentes ou agraves nationes exterae mas
se encontra ligado estreitamente agrave sua atividade ndash poliacutetica social eacutetica religiosa artiacutestica etc Tendo o
combate para controlar a violecircncia e o excesso inerentes ao seu temperamento tendo longamente pensado
sobre a essecircncia da civilizaccedilatildeo constantemente lutado para evitar a degradaccedilatildeo da barbaacuterie e se tornar
digno de ser reconhecido como o civilizador que se beneficiou de uma experiecircncia pessoal autecircntica
sobre a natureza da barbaacuterie e os seus perigos Tambeacutem isso facilmente ultrapassa o ponto de vista
estritamente eacutetnico ou nacional que foi o dos gregos para alargar a noccedilatildeo de barbaacuterie agraves dimensotildees do
universal
23
Pliacutenio o Velho Concentraremos nosso estudo nos gauleses jaacute que a seu respeito
possuiacutemos fontes antigas mais bem documentadas do que por exemplo sobre os povos
da Ibeacuteria Aleacutem disso os gauleses foram um dos povos que mais resistiram agrave conquista
romana e soacute foram subjugados apoacutes vaacuterias tentativas e confrontos sangrentos podendo
desse modo exemplificar com excelecircncia o contato com a alteridade Quanto aos
trechos especiacuteficos dos autores latinos que compotildeem o corpus deste trabalho tecircm-se
estas passagens
De bello Gallico de Ceacutesar
Livro I ndash 1 (descriccedilatildeo da Gaacutelia) 31 (Diviciacuteaco se queixa do asseacutedio do
germano Ariovisto) 33 (Ceacutesar ao perceber o perigo dos germanos promete
socorrer os gauleses)
Livro II ndash 4 (descriccedilatildeo da origem dos belgas) 15 (Ceacutesar se prepara para lutar
com os neacutervios)
Livro IV ndash 5 (Ceacutesar desconfia dos gauleses que satildeo inconstantes) 12 (os
germanos atacam a cavalaria de Ceacutesar morte do aquitano Pisatildeo)
Livro VI ndash 11 13 14 15 16 18 19 (passagem de maior interesse
conhecid como ―etnogr fi descriccedilatildeo dos costumes dos g uleses) 21 22
(costumes dos germanos) 24 (o valor dos gauleses passou para os
germanos)
Livro VII ndash 22 (defesa dos gauleses sitiados pelos romanos) 42 (os eacuteduos
massacram os romanos)
Ab urbe condita de Tito Liacutevio
Livro V ndash 34 35 36 37 38 39 41 42 48 (passagem de grande interesse
pois narra os primeiros contatos entre romanos e gauleses e o saque de
Roma em 390 aC)
Livro VII ndash 10 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Tito Macircnlio
e um gaulecircs) 26 (guerra entre gauleses e romanos confronto entre Marco
Valeacuterio e um gaulecircs)
24
Livro XXIII ndash 24 (os gauleses preparam armadilhas contra Roma que sofre
derrota para os gauleses ao optar por se dedicar mais agrave guerra contra
Cartago)
Livro XXXVIII ndash 17 (migraccedilatildeo dos gauleses para a Aacutesia Menor e o
surgimento da Galaacutecia vitoacuteria dos romanos sobre os gaacutelatas)
Historia naturalis de Pliacutenio o Velho
Livro III ndash 5 (descriccedilatildeo geograacutefica da Gaacutelia Narbonense) 6 (elogio da Itaacutelia
e o papel de Roma governante do mundo)
Livro IV ndash 31 32 33 (descriccedilotildees geograacuteficas da Gaacutelia Beacutelgica da Gaacutelia
Lugdunense e da Gaacutelia Aquitacircnia)
Livro VIII ndash 73 (Pliacutenio admira o jeito como os gauleses fazem a latilde)
Livro XXX ndash 4 (descriccedilatildeo dos druidas das proviacutencias gaulesas)
Livro XXXIII ndash 5 (a respeito de como os gauleses utilizavam o ouro como
ornamento)
Para todos esses trechos empregaremos os textos latinos estabelecidos pela
Socieacuteteacute dlsquoEacutedition Les Belles Lettres e f remos tr duccedilatildeo de todo o corpus para nos
debruccedilarmos sobre os originais Aleacutem disso todas as demais citaccedilotildees de textos latinos
complementares deste trabalho tambeacutem teratildeo traduccedilotildees nossas salvo quando vierem
com referecircncia de outro tradutor Visamos em nossa transposiccedilatildeo ao leitor que natildeo
conhece a liacutengua ou a literatura latina Manteremos a traduccedilatildeo em prosa e procuraremos
sempre nos manter o mais proacuteximo possiacutevel do sentido dos trechos originais Todavia
satildeo necessaacuterias certas adaptaccedilotildees para que a traduccedilatildeo em portuguecircs possa manter o
sentido e transmitir mais claramente a mensagem do texto latino Para Roacutenai (1981 p
78) todo texto eacute alguma coisa mais do que simples soma das palavras que o compotildeem
O que devemos traduzir eacute sempre algo mais isto eacute a mensagem Faremos tambeacutem o uso
das notas de rodapeacute para pontuar aspectos que natildeo poderiam ser facilmente inseridos na
proacutepria traduccedilatildeo ou ainda para esclarecer quanto a elementos histoacutericos estiliacutesticos etc
Sobre a abreviatura dos nomes de obras gregas e latinas seguiremos os paracircmetros dos
dicionaacuterios A Greek-English Lexicon (LIDDEL SCOTT JONES 1996) e Oxford Latin
Dictionary (GLARE 1982) respectivamente
25
Nessa anaacutelise das passagens latinas veremos como se estrutura a retoacuterica de
representaccedilatildeo do gaulecircs em cada um desses autores latinos Hartog em seu livro O
espelho de Heroacutedoto define bem certos mecanismos retoacutericos de identificaccedilatildeo do outro
e tambeacutem de si mesmo30
Embora analise as Histoacuterias sua pesquisa sobre a retoacuterica de
alteridade tambeacutem poderia estender-se a outros autores que natildeo Heroacutedoto Destacamos
aqui o seguinte trecho no qual Hartog (1999 p229) afirma
Dizer o outro eacute enunciaacute-lo como diferente - eacute enunciar que haacute dois termos a
e b e que a natildeo eacute b Por exemplo existem gregos e natildeo-gregos Mas a
diferenccedila natildeo se torna interessante senatildeo a partir do momento em que a e b
entram num mesmo sistema Natildeo se tinha antes senatildeo uma pura e simples
natildeo-coincidecircncia Daiacute para a frente encontramos desvios portanto uma
diferenccedila possiacutevel de ser assinalada e significativa entre os dois termos Por
exemplo existem gregos e baacuterbaros Desde quando a diferenccedila eacute dita ou
transcrita torna-se significativa jaacute que eacute captada nos sistemas da liacutengua e da
escrita Comeccedila entatildeo esse trabalho incessante e indefinido como os das
ondas quebrando na praia que consiste em levar do outro ao proacuteprio (grifos
do autor)
Como cit do n not cim H rtog firm que ―dizer o outro eacute enunciaacute-lo como
diferente Eacute just mente ess m neira de se referir ao outro no caso o gaulecircs que seraacute
objeto de estudo desse trabalho Ceacutesar seraacute o objeto principal de nossa pesquisa pela
extensatildeo e importacircncia da obra sobre a guerra da Gaacutelia e por ter sido o primeiro a ter
contato direto com os gauleses31
Por conseguinte o capiacutetulo 2 seraacute dedicado a Ceacutesar e
ao De bello Gallico igualmente nesse capiacutetulo trataremos do contexto histoacuterico em que
se deu a conquista da Gaacutelia aleacutem de uma discussatildeo sobre questotildees de romanizaccedilatildeo e
subjugaccedilatildeo de um novo territoacuterio De fato o De bello Gallico aleacutem de interessar pelo
tipo de composiccedilatildeo feita por Ceacutesar32
encerra ainda vaacuterias informaccedilotildees importantes
como a passagem etnograacutefica do livro VI que detalha os costumes dos gauleses
Veremos quais as fontes empregadas por Ceacutesar para compor essa obra e tambeacutem como
30
Tambeacutem sobre esse tema recomendamos o livro de Hall Ethnic identity in Greek antiquity (1997) 31
Jaacute mencionamos o contato de Catatildeo o Censor com os celtiberos na nota n22 (p 19) mas dele temos
apenas fragmentos Por isso consideramos Ceacutesar o primeiro a ter contato direto com os gauleses jaacute que
seu relato foi mais bem preservado 32
Ceacutesar levou o commentarius (usado apenas como anotaccedilotildees raacutepidas que depois seriam refinadas) a
outro patamar A esse respeito Conte (1999 p226) afirma ―Both Cicero (Brutus 262) and Hirtius in the
preface to the eighth book of the De bello Gallico spe k of C es rlsquos Commentarii as a work written to
offer to other histori ns the m teri l out of which to construct their own n rr tive (hellip) Cicero nd Hirtius
himself emphasize that no one would have dared to attempt to rewrite what Caesar had already said with
incomparable simplicity In f ct C es rlsquos ttitude m y h ve conce led cert in trickery bene th the
humble clothing the commentarius as he conceived and practiced it probably came close to historia
26
a retoacuterica e a ideologia influenciam em razoaacutevel medida o De bello Gallico33
Ao final
do capiacutetulo 2 traremos o estudo dos trechos especiacuteficos de Ceacutesar levando em
consideraccedilatildeo os argumentos e o vocabulaacuterio empregado por ele para as suas
representaccedilotildees dos galos destacando alguns dos frequentes adjetivos usados para
descrevecirc-los como ferox hostilis barbarus etc Examinaremos ainda as recorrentes
figuras representativas como por exemplo o clicheacute de retratar os gauleses como
homens altos fortes e corajosos poreacutem natildeo muito inteligentes ou confiaacuteveis (DAUGE
1981 p 20) o interesse dos celtas por cultura e erudiccedilatildeo atraveacutes do papel dos druidas
a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos dentre outros aspectos culturais A seguir no capiacutetulo
3 falaremos sobre o momento histoacuterico da ascensatildeo de Augusto e enfocaremos Tito
Liacutevio e Pliacutenio o Velho bem como trataremos dos aspectos literaacuterios de Ab urbe condita
e Historia naturalis Ao final do subcapiacutetulo dedicado a Liacutevio traremos os trechos de
sua obra e do mesmo modo assim o faremos com Pliacutenio sendo cada passagem
analisada em termos literaacuterios e retoacutericos O foco por conseguinte seraacute a anaacutelise desses
discursos visando a uma discussatildeo dos argumentos vocabulaacuterio e figuras de linguagem
empregados pelos autores Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para descrever os gauleses No capiacutetulo
4 retomaremos alguns dos trechos jaacute citados ao longo dos capiacutetulos 2 e 3 para realizar o
estudo comparativo entre Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e os seus gecircneros de composiccedilatildeo
destacando os mecanismos retoacutericos da representaccedilatildeo dos gauleses entre os gecircneros de
composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Cabe aqui fazer
algumas consideraccedilotildees sobre a retoacuterica jaacute que ela eacute tratada ao longo de todo este
trabalho
Entendemos aqui a retoacuterica claacutessica em um sentido amplo de uma disciplina que
buscava um estudo unificado dos discursos (fossem eles pronunciados ou escritos) que
regulava a sua produccedilatildeo e delimitava limites sobre os gecircneros de composiccedilatildeo Aleacutem
disso como dest c Rezende (2009 p 16) retoacuteric possui ―especi l ecircnf se n su
funccedilatildeo de gerar um efeito praacutetico imediato mas previamente estabelecido e esperado
sobre aquele a quem se destin um discurso produzido P r se obter esse efeito
especiacutefico em um puacuteblico-alvo o discurso era regido por regras e normas de conduta
com finalidades especiacuteficas Aristoacuteteles em sua Retoacuterica estabeleceu esses gecircneros
discursivos que posteriormente foram seguidos por Ciacutecero e Quintiliano os grandes
33
De fato Ceacutesar escreve seu commentarius sobre a guerra gaulesa natildeo apenas para descrever seus feitos
mas especialmente como forma de propaganda de sua figura para rivalizar com o seu grande oponente
Pompeu Magno (CONTE 1999 p 229)
27
nomes desse tema em Roma Segundo o Estagirita havia trecircs gecircneros do discurso o
deliberativo (projetava uma accedilatildeo futura tem funccedilatildeo de aconselhar ou dissuadir o
puacuteblico para uma deliberaccedilatildeo) o juriacutedico (sua motivaccedilatildeo era um fato passado lidava
com acusaccedilatildeo ou defesa) e o epidiacutectico (tambeacutem conhecido por demonstrativo seu
tema era localizado especialmente no presente e consistia em fazer elogio ou
censura)34
Cada gecircnero portanto era dirigido a um puacuteblico especiacutefico dessa maneira
cada um possuiacutea traccedilos proacuteprios para se alcanccedilar os objetivos propostos Segundo
Tringali (1988 p 19) o ponto crucial da retoacuterica que a diferenciava das outras
disciplinas era a implicaccedilatildeo na existecircncia de um emissor (orador ou autor) um receptor
(audiecircncia ou leitor) e um discurso que apresentava uma questatildeo provaacutevel elaborada de
modo a persuadir o receptor sobre certa ideia ou conceito35
Por essa importacircncia em
contexto poliacutetico e judiciaacuterio o estudo da retoacuterica era parte essencial da formaccedilatildeo
(paideia) do cidadatildeo grego e posteriormente do cidadatildeo romano tambeacutem36
A retoacuterica claacutessica em contexto romano era dividida em cinco partes inuentio
(invenccedilatildeo) dispositio (disposiccedilatildeo) elocutio (enunciaccedilatildeo)37
memoria (memoacuteria) e actio
(accedilatildeo) Essas cinco partes formavam a ferramenta com a qual o emissor do discurso
estruturava sua composiccedilatildeo38
Como dest c Rezende (2009 p 25) ―eacute n praacutetic da
elocutio que por exemplo o or dor conform raacute o seu estilo su identid de or toacuteri
34
Cf Retoacuterica 1358b Na mesma passagem Aristoacuteteles destaca que a proacutepria retoacuterica era fundamentada
em trecircs elementos essenciais aquele que profere o discurso aquele que recebe esse discurso e o proacuteprio
discurso 35
Tringali (1988 p 20 e ss) aprofunda a questatildeo da persuasatildeo na retoacuterica antiga sobretudo em
Aristoacuteteles e tambeacutem sobre os mecanismos formais (persuasatildeo pela loacutegica pela afeiccedilatildeo ou pela esteacutetica)
e os mecanismos materiais (sofiacutestica analiacutetica e dialeacutetica) utilizados para esse fim 36
Os autores greco-romanos de fato como parte de uma elite letrada natildeo eram apenas testemunhas dos
fatos histoacutericos mas muitas vezes eram os proacuteprios agentes dos acontecimentos Para maior
aprofundamento sobre esse tema cf Marincola (In ERSKINE 2009 p 13) A paideia era importante
ferramenta na formaccedilatildeo moral oratoacuteria e literaacuteria desses indiviacuteduos como afirmou o proacuteprio Ciacutecero (cf
subcapiacutetulo 1321) De todas as personalidades que citamos neste trabalho Tuciacutedides Xenofonte
Poliacutebio Catatildeo Ciacutecero Ceacutesar e Pliacutenio desempenharam carreiras puacuteblicas importantes A exceccedilatildeo eacute Liacutevio
que natildeo ocupou nenhum cargo puacuteblico Para mais detalhes sobre o papel da retoacuterica tanto na vida literaacuteria
quanto na vida poliacutetica na tradiccedilatildeo helecircnic e l tin cf o c piacutetulo ―History nd rhetoric de Gr h m (In
BUGH 2006 p 113-135) 37
Como discute Rezende (2009 p 22) o vocaacutebulo elocuccedilatildeo embora muito utilizado natildeo traduziria
completamente o eacutetimo elocutio por isso assim como o professor tambeacutem adotamos a traduccedilatildeo desse
termo por enunciaccedilatildeo (ou seja a expressatildeo da palavra) que se aproxima mais do sentido original latino 38
Sobre cada uma dessas partes tem-se a invenccedilatildeo (coleta ou seleccedilatildeo do material que constituiraacute o
conteuacutedo do texto) a disposiccedilatildeo (colocaccedilatildeo de cada elemento do discurso em seu devido lugar ou seja a
organizaccedilatildeo do discurso) a enunciaccedilatildeo (ou elocuccedilatildeo que em uma definiccedilatildeo simplista consistia no ato de
compor o discurso escolha de vocabulaacuterio enfim o estilo) a memoacuteria (o equiliacutebrio entre decorar e
memorizar um discurso sobretudo em contexto de linguagem oral) e por fim a accedilatildeo (tambeacutem em
contexto de transmissatildeo oral de um enunciado consistia na forma como o orador proferia o seu discurso
para a audiecircncia) Natildeo nos aprofundamos muito nesta nota sobre o termo elocuccedilatildeo jaacute que ele seraacute tratado
mais detalhadamente no corpo do texto deste trabalho Para esse resumo utilizamos Tringali (1988 p 62
e ss) que discutiu essas cinco partes de forma bastante abrangente
28
Por conseguinte a elocutio no campo da literatura torna o discurso retoacuterico mais
eficiente ao assimilar as qualidades do texto literaacuterio constituindo-se ―num poderoso
mec nismo de cesso e consolid ccedilatildeo de um cultur ger l (REZENDE 2009 p 25)
Dessa maneira eacute atraveacutes da elocutio que as ideias satildeo expressas por meio de palavras
levando a figuras de linguagem conceitos e toacutepoi literaacuterios e culturais Por essa razatildeo
nosso objetivo aqui seraacute tratar sobretudo da elocutio jaacute que eacute a parte que consideramos
como essencial para desenvolver as anaacutelises sobre a figura do gaulecircs nos escritos de
Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho Como destaca Rezende (2009 p 30) a civilizaccedilatildeo
rom n fez d retoacuteric ―um poderoso instrumento de ccedilatildeo soci l Embora a elocutio
seja o objetivo principal tambeacutem levaremos em conta nas anaacutelises a inuentio jaacute que a
seleccedilatildeo do material empregado por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio foi obtida a partir de fontes
literaacuterias que tambeacutem satildeo parte importante desta tese e tambeacutem porque de acordo com
a Retoacuteria a Herecircnio a proacutepria narraccedilatildeo eacute parte da inuentio39
Tambeacutem levaremos em
conta a dispositio uma vez que a ordem em que os argumentos foram empregados
dentro dessas obras eacute igualmente relevante
Atraveacutes desse estudo tambeacutem no capiacutetulo 4 perceberemos como foi se
modificando a imagem do gaulecircs ao longo dos seacuteculos I aC a I dC ndash e tambeacutem a
proacutepria mentalidade latina jaacute que esses discursos eram especialmente dirigidos a um
puacuteblico-alvo romano Veremos nesse mesmo capiacutetulo como as imagens figurativas do
gaulecircs surgiram e foram reelaboradas pelas fontes greco-romanas e por Ceacutesar Liacutevio e
Piacutenio o Velho Aleacutem dos autores antigos pesquisaremos tambeacutem a bibliografia
histoacuterica e arqueoloacutegica atual para resgatar o que se sabe hoje a respeito dos gauleses
da organizaccedilatildeo de suas sociedades e quais eram seus haacutebitos e costumes Ao fim do
trabalho traremos uma antologia biliacutengue dos trechos traduzidos do De bello Gallico
Ab urbe condita e Historia naturalis para maior facilitaccedilatildeo da leitura e do estudo
comparativo do corpus
39
Cf I34
29
Capiacutetulo 1 ndash Gregos romanos e celtas
11 ndash Consideraccedilotildees sobre alguns termos fundamentais barbarus hostis humanitas
romanitas
Como o termo baacuterbaro eacute parte importante deste trabalho faz-se necessaacuteria uma
apresentaccedilatildeo do que significava esse termo para os antigos gregos e romanos
O termo baacuterbaro eacute de origem grega Esse eacutetimo com a repeticcedilatildeo de barbar
seria uma onomatopeia que designaria quem tem dificuldade de elocuccedilatildeo de
pronunciaccedilatildeo que gagueja ou tem uma fala entrecortada (BEEKES 2010 p 201)
As primeiras descriccedilotildees que os gregos fizeram sobre outros povos e regiotildees
eram apenas relatos dos navegadores (periploi) e relatos creacutedulos de maravilhas de
terras distantes ateacute que no seacuteculo VI aC temos narrativas de pesquisas etnograacuteficas em
Heroacutedoto com suas Histoacuterias (VASALY 1993 p 146) Segundo Gauthier ateacute entatildeo o
termo μέλνο era mais utilizado no periacuteodo arcaico para designar na Greacutecia o
estrangeiro e tambeacutem o hoacutespede como podemos ver nas relaccedilotildees de hospitalidade
representadas nos poemas homeacutericos Gauthier (1973 p 5) poreacutem ressalta
Comme on s it llsquoopposition entre Grecs et non-Grecs nlsquoest nette ni chez
Homegravere ni agrave la peacuteriode archaiumlque elle apparaicirct peut-ecirctre au VIegraveme siegravecle
d ns llsquooeuvre dlsquoHeacutec teacutee et devient cour nte seulement u deacutebut du Vegraveme
siegravecle Aux peacuteriodes reculeacutees llsquo ire dlsquoextension de l μελία et de llsquoeacutetr nger-
μέλνο est donc elle aussi assez indeacutecise on en aperccediloit neacuteanmoins quelques
contours Chez Homegravere il faudrait distinguer autant que faire se peut le
monde mythique du monde reacuteel Dans le monde mythique la μελία est
pratiqueacutee par tous les peuples laquociviliseacutesraquo elle est absente chez les autres
appeleacutes ἄγξηνη ainsi les Cyclopes les Lestrygons40
Jaacute em Heroacutedoto μέλνο passou a designar no contexto helecircnico o proacuteprio grego
que habitava em outra cidade mas que compartilhava os mesmos deuses costumes e
idioma (GAUTHIER 1973 p 7) Jaacute o termo βάξβαξνο era usado para designar o natildeo
grego que natildeo partilhava da mesma cultura e liacutengua sem conotaccedilatildeo pejorativa41
A esse
40
―Como eacute s bido oposiccedilatildeo entre gregos e natildeo gregos natildeo eacute cl r nem em Homero nem no periacuteodo
arcaico ela aparece talvez no seacuteculo VI aC na obra de Hecateu e torna-se corrente somente no comeccedilo
do seacuteculo V Quanto aos periacuteodos remotos a aacuterea de extensatildeo da μελία e do estrangeiro eacute entatildeo ela
mesma bastante imprecisa contudo pode-se perceber alguns contornos Em Homero eacute necessaacuterio
distinguir tanto quanto possiacutevel o mundo miacutetico do mundo real No mundo miacutetico a μελία eacute praticada
por todos os povos ―civiliz dos el eacute inexistente p r os outros ch m dos ἄγξηνη como os ciclopes e os
lestrigotildees 41
Gruen no capiacutetulo ―Greeks and non-Greeks (In BUGH 2006 p 296) lembra que em Heroacutedoto a
divisatildeo entre gregos e natildeo gregos eacute sutil e complexa Gruen ressalta que Heroacutedoto demonstrou
30
respeito H rtog (2014 p 108) firm que ―em todo c so eacute entre o sexto e o quinto
seacuteculo C que baacuterb rolsquo no sentido de natildeo grego form ssoci do gregolsquo um
conceito antocircnimoassimeacutetrico acoplando um nome proacuteprio Heacutellenes e uma
designaccedilatildeo geneacuterica baacuterbaroi Ateacute entatildeo n liter tur rc ic baacuterbaro simplesmente
assinalava o estrangeiro sem qualquer conotaccedilatildeo negativa ou inferior e sem o valor de
distinguir entre categorias ou subgrupos42
Como Rochette ressalta (1997 p 37) as
populaccedilotildees que natildeo falam a liacutengua do paiacutes seratildeo reagrupadas sob a geneacuterica
denominaccedilatildeo de baacuterbaro para os egiacutepcios os que natildeo falavam a liacutengua egiacutepcia para os
romanos os que ignoravam o latim etc43
Para se pensar em uma identidade cultural proacutepria geralmente eacute necessaacuterio
definir esse conceito levando em consideraccedilatildeo a relaccedilatildeo ndash e o contraste ndash com o outro
Com as Guerras Meacutedicas no seacuteculo V aC o baacuterbaro para o grego assumiu o rosto do
persa Como Herring lembra (In ERSKINE 2009 p 129) a identidade grega
gradualmente tornou-se definida em termos de diferenccedila (e superioridade) perante o
baacuterbaro ndash especialmente o oriental essa nova identidade contrastante condenou o outro
como sendo decadente sacriacutelego e subserviente tudo o que os gregos (a seus proacuteprios
olhos) natildeo eram Dessa maneira se ser grego tornou-se sinocircnimo de ser civilizado o
contraacuterio tambeacutem valia pois o baacuterbaro tinha a caracteriacutestica oposta ndash era o primitivo
Com os conflitos dos gregos contra os persas tambeacutem surgiu uma visatildeo poliacutetica da
diferenciaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros jaacute que os gregos conheciam a poacutelis enquanto os
baacuterbaros ignorando-a natildeo podiam viver senatildeo submetidos a reis44
Segundo Hartog
(2014 p 111) o grego er ―poliacutetico isto eacute livre e o baacuterb ro er ―re l submisso um
senhor (deacutespotes) Os baacuterbaros natildeo escapavam ndash ou natildeo escapavam de forma duradoura
ndash da realeza O termo baacuterbaro tambeacutem passou a ter uma concepccedilatildeo marginalizada
segundo Champion (2004 p 34) eacute com a vitoacuteria grega sobre os persas que os
atenienses fomentaram a autoconfianccedila de terem vencido tatildeo forte inimigo e por
imparcialidade e ndash ateacute mesmo em certas passagens ndash admiraccedilatildeo pelas peculiaridades caracteriacutesticas e
realizaccedilotildees de povos natildeo gregos especialmente os egiacutepcios persas e feniacutecios 42
Gruen no mesmo capiacutetulo citado na nota cima (p 297 e ss) aprofunda mais a questatildeo das nuances da
utilizaccedilatildeo do termo baacuterbaro (ora pejorativo ora respeitoso) por parte de vaacuterios autores gregos do periacuteodo
claacutessico ateacute o contexto de dominaccedilatildeo romana 43
Rochette (1997 p 38 e ss) detalha o uso do termo baacuterbaro desde Homero e autores arcaicos passando
tambeacutem pela filosofia e trageacutedia ateacute o periacuteodo heleniacutestico 44
Nesse contexto de diferenciar o aspecto poliacutetico e cultural entre gregos e baacuterbaros estamos
considerando aqui como referencial os gregos de Atenas
31
conseguinte adotaram a noccedilatildeo cultural de que os gregos eram superiores aos outros
povos45
De fato durante o periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) as cidades gregas possuiacuteam
poucos laccedilos que as ligavam umas agraves outras sobretudo porque eram cidades-Estado
independentes As relaccedilotildees eram mais estreitas entre as famiacutelias e os indiviacuteduos
Embora as semelhanccedilas linguiacutesticas os ritos religiosos os deuses e a produccedilatildeo literaacuteria
fossem compartilhados as cidades-Estado como Champion (2004 p 33) ressalta
possuiacuteam organizaccedilatildeo variada padrotildees proacuteprios de pesos e medidas e calendaacuterio O
sentimento de pan-Helenismo era reforccedilado sobretudo em periacuteodos de guerra contra
inimigos externos em comum ndash como os proacuteprios persas ndash ou crise poliacutetica ndash como a
guerra do Peloponeso que motivou a mobilizaccedilatildeo das cidades-estado em alianccedilas
capitaneadas por Atenas e Esparta respectivamente (GAUTHIER 1973 p 14)46
Com os seacuteculos quarto e terceiro antes de Cristo se o par antocircnimo
gregosbaacuterbaros permaneceu em operaccedilatildeo para classificar e distinguir os gregos dos
outros povos sua definiccedilatildeo foi-se modificando com aspecto menos poliacutetico acentuou-
se claramente o lado cultural Com os reinos heleniacutesticos o contato entre gregos e
baacuterbaros aumentou consideravelmente e estereoacutetipos puderam ser contestados mas
tambeacutem muitos laccedilos culturais do que era ser grego puderam ser reforccedilados o processo
de assimilaccedilatildeo dos baacuterbaros comeccedilou mas de forma alguma acabou com essa distinccedilatildeo
cultural pelo contraacuterio ser grego talvez passou a ser mais importante nessa eacutepoca do
que nunca de acordo com Herring (In ERSKINE 2009 p 130)
Desde Heroacutedoto a identidade grega estava circunscrita por um conjunto de traccedilos
culturais (ao lado da comunidade de sangue)47
mas como sublinha Hartog (2014
p127) essa grecidade apresentava-se como algo que pode ser adquirido atraveacutes da
educaccedilatildeo ―haacute mestres ness m teacuteri (hellip) O que t is propoacutesitos nunci m eacute o universo
cultur l d eacutepoc heleniacutestic A paideia que primeiramente significava a criaccedilatildeo ou a
45
Resumimos aqui a questatildeo do tratamento do baacuterbaro em contexto grego jaacute que esse natildeo eacute o foco deste
trabalho Para estudo mais abrangente sobre o baacuterbaro na literatura grega recomendamos o livro de
Dejardin (2010) 46
Para discussatildeo mais profunda sobre a questatildeo do que era ser grego para os proacuteprios helenos
recomendamos o subcapiacutetulo ―Identity in the Greek World escrito por Herring (In ERSKINE 2009 p
126 a 130) Tambeacutem nesse mesmo livro Harrison aprofunda o tema da evoluccedilatildeo do conceito de grego
frente ao baacuterbaro ao longo do periacuteodo histoacuterico que vai desde as Guerras Meacutedicas ateacute o periacuteodo
heleniacutestico no seu capiacutetulo ―The Greeks (In ERSKINE 2009 p 213 a 221) 47
Em Heroacutedoto (Histoacuterias VIII 144) os atenienses em resposta aos espartanos deixaram claro que natildeo
se aliariam aos persas uma vez que eles partilhavam dos mesmos laccedilos culturais de Esparta ambas as
cidades-Estado cultuavam os mesmo deuses e possuiacuteam os mesmos ritos tinham a mesma identidade
linguiacutestica e racial e possuiacuteam haacutebitos e costumes similares
32
educaccedilatildeo de uma crianccedila jaacute no seacuteculo V aC tornou-se sinocircnimo de cultura sobretudo
a partir de Isoacutecrates a diferenccedila entre o grego e o baacuterbaro era antes de tudo um
problema natildeo de natureza mas de cultura Assim Isoacutecrates disse no discurso Panegiacuterico
(50)
ηνζνῦηνλ δ᾽ ἀπνιέινηπελ ἡ πόιηο ἡκλ πεξὶ ηὸ θξνλεῖλ θαὶ ιέγεηλ ηνὺο
ἄιινπο ἀλζξώπνπο ὥζζ᾽ νἱ ηαύηεο καζεηαὶ ηλ ἄιισλ δηδάζθαινη γεγόλαζη
θαὶ ηὸ ηλ Ἑιιήλσλ ὄλνκα πεπνίεθε κεθέηη ηνῦ γέλνπο ἀιιὰ ηῆο δηαλνίαο
δνθεῖλ εἶλαη θαὶ κιινλ Ἕιιελαο θαιεῖζζαη ηνὺο ηῆο παηδεύζεσο ηῆο
ἡκεηέξαο ἢ ηνὺο ηῆο θνηλῆο θύζεσο κεηέρνληαο
Nuestra ciudad aventajoacute tanto a los demaacutes hombres en el pensamiento y
oratoria que sus disciacutepulos han llegado a ser maestros de otros y ha
conseguido que el nombre de griegos se aplique no a la raza sino a la
inteligencia y que se llame griegos maacutes a los partiacutecipes de nuestra educacioacuten
que a los de nuestra misma sangre48
O termo grego portanto se aplicava mais para designar uma mentalidade do que
a uma questatildeo de raccedila ou naccedilatildeo Como Gruen frisa (In BUGH 2006 p 296) essa
afirmaccedilatildeo de Isoacutecrates indicava que a obtenccedilatildeo da grecidade era viaacutevel aos natildeo gregos
mas que poucos poderiam alcanccedilaacute-la Isoacutecrates escrevendo em apoio agrave cruzada pan-
helecircnica contra os persas manteve forte essa distinccedilatildeo
O traccedilo caracteriacutestico do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era explicado por
questotildees geograacuteficas Com Hipoacutecrates e seus preceitos de medicina abordados na obra
Sobre o ar aacuteguas e lugares do seacuteculo V aC entrou em voga a teoria geograacutefica na
qual o ambiente de algum modo determinava a constituiccedilatildeo fiacutesica e o caraacuteter das
pessoas que habitavam em aacutereas especiacuteficas do mundo conhecido ateacute entatildeo De acordo
com essa teoria fatores como a temperatura local a qualidade da aacutegua e a topografia da
regiatildeo determinariam as forccedilas e fraquezas de grupos que habitavam lugares diferentes
dessa forma pessoas de aacutereas quentes tenderiam a ser moles e lentas por outro lado
pessoas de aacutereas frias seriam fortes e corajosas poreacutem estuacutepidas49
Como Vasaly (1993
p 133) ressalta para cada cultura o mundo fora do territoacuterio natal era visto como uma
seacuterie de ciacuterculos concecircntricos nos quais o centro era o lugar mais civilizado e por
conseguinte as fronteiras distantes menos civilizadas Acreditava-se que no ―centro do
48
―Noss cid de superou t nto os dem is homens no pens mento e n or toacuteri que seus disciacutepulos se
tornaram mestres dos outros e conseguiu que o nome dos gregos se aplicasse natildeo agrave raccedila mas sim agrave
inteligecircncia e que se chame de gregos mais aos que participam da nossa educaccedilatildeo do que aos do nosso
proacuteprio s ngue Esse trecho foi retirado de Isoacutecrates (1979 v 1 p 212 e 213) 49
O livro de Borca (2003) detalha de forma profunda esses conceitos em Hipoacutecrates e outros autores da
Antiguidade greco-romana Abordaremos mais sobre como a teoria geograacutefica caracteriza o baacuterbaro no
c piacutetulo 4 ―Noacutes e os outros retoacuteric de representaccedilatildeo do celta
33
mundo o clima natildeo era tatildeo quente nem tatildeo frio e isso era uma condiccedilatildeo favoraacutevel para
um povo ser mais civilizado ndash no caso helecircnico do periacuteodo claacutessico (seacuteculo V aC) os
gregos estariam no centro do mundo
Atraveacutes de toda essa tradiccedilatildeo helecircnica para a etnografia ndash que chegou a Roma
sobretudo via Poliacutebio e Posidocircnio ndash tal ideia tambeacutem passou a ser parte do contexto
romano Certamente os contemporacircneos de Ciacutecero consideravam habitar o centro do
mundo (VASALY 1993 p 133)50
Ainda de acordo com Vasaly (1993 p 144) a
importacircncia da obra Sobre o ar aacuteguas e lugares consistia no fato de a conexatildeo crucial
entre ethos e locus ou seja o jeito como a pessoa eacute e seu caraacuteter ser definido de acordo
com seu ambiente fiacutesico Esse tipo de relaccedilatildeo entre ethos e locus posteriormente tornou-
se parte dos toacutepoi de representaccedilatildeo do baacuterbaro
Ateacute entatildeo no periacuteodo claacutessico grego (seacuteculo V aC) a cultura helecircnica ficara
geograficamente concentrada na Greacutecia Com o Helenismo atraveacutes das conquistas de
Alexandre o Grande no seacuteculo IV aC a cultura grega se espalhou e fez contato com
outras civilizaccedilotildees (PERNOT 2005 p 57) Os ideais gregos e o tograve Hellenikoacuten
tornaram-se patrimocircnio literaacuterio que se compartilhava e que se ensinava (HARTOG
2014 p 141) Durante o Helenismo o pensamento grego a filosofia a retoacuterica e a
literatura se espalharam pelo mundo helenizado
Posteriormente ao Helenismo sob o contexto da ascensatildeo romana esse
pensamento helecircnico se difundiu por todo o mundo romanizado Sabemos que desde os
primoacuterdios Roma jaacute tivera contato com os gregos Pereira (1993 p 38) lembra que jaacute se
conhecem duzentos e trecircs vasos gregos dos anos 530 a 500 aC que confirmam
relaccedilotildees comerciais entre os dois povos Esse contato tornou-se regular quando no
seacuteculo III aC os romanos ampliaram seu domiacutenio geograacutefico para o sul da Itaacutelia
regiatildeo conhecida ateacute entatildeo como Magna Greacutecia Em 272 aC com a tomada de
Tarento Liacutevio Andronico foi levado a Roma e ateacute onde foi possiacutevel saber pelo que nos
restou da literatura dessa eacutepoca foi considerado como o fundador da literatura latina
com sua traduccedilatildeo da Odisseia Posteriormente com o ciacuterculo dos Cipiotildees no seacuteculo II
aC as altas esferas da sociedade romana passaram a ter ainda mais contato com a
cultura helecircnica o que acarretou em uma profunda contaminatio entre as literaturas e
50
Falaremos mais sobre Ciacutecero e a representaccedilatildeo de um povo baacuterbaro no caso o gaulecircs mais adiante no
subcapiacutetulo 132
34
costumes desses dois povos51
Depois disso os romanos ampliaram cada vez mais seu
domiacutenio em direccedilatildeo agrave Greacutecia e em 146 aC ela foi completamente subjugada Essa
aproximaccedilatildeo e o contato mais profundo entre romanos e gregos consolidou a proacutepria
civilizaccedilatildeo romana que se distanciava da barbaacuterie52
Oliveira fala em helenizaccedilotildees para
definir esse fenocircmeno de contato cultural entre romanos e gregos ndash de fato natildeo houve
um movimento contiacutenuo e geral de adoccedilatildeo dos costumes gregos (In BRANDAtildeO
OLIVEIRA 2015 p 265) Os primeiros contatos foram muito antigos desde os
primoacuterdios de Roma como a arqueologia evidenciou Oliveira tambeacutem lembra que
―desde s m is remot s origens Rom bri -se agrave influecircncia grega de forma direta e
indireta e isso eacute visiacutevel de form p rticul r n religiatildeo como proacutepri doccedilatildeo de
deuses gregos no panteatildeo romano (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269)53
Pernot chega a usar o termo globalizaccedilatildeo no seu livro Rhetoric in Antiquity para falar
desse fenocircmeno Segundo o utor (2005 p 58) o termo ―glob liz ccedilatildeo p l vr muito
em voga hoje resume os avanccedilos e contato cultural daquela eacutepoca em que a retoacuterica se
tornou um sistema global pelo menos dentro do mundo greco-romano Apesar do livro
Rhetoric in Antiquity se referir agrave retoacuterica esse conceito de globalizaccedilatildeo defendido por
Pernot pode ser aplicado agrave literatura e tambeacutem ao proacuteprio conceito de baacuterbaro e o que
era considerado civilizado ou natildeo pelos romanos
Em Roma o contexto de contato entre povos baacuterbaros diferiu bastante da
realidade grega Embora Roma partilhasse certos aspectos com outras cidades do Laacutecio
(liacutengua religiatildeo costumes) existiu no periacuteodo arcaico o domiacutenio dos etruscos a
invasatildeo dos gauleses em Roma no ano de 390 aC aleacutem de outros inimigos que
habitavam do outro lado dos Alpes como os germanos Sobre o contato dos romanos
com os povos do ocidente G uthier (1973 p 14) firm ―Rome est en cont ct tregraves tocirct
51
Consideramos aqui a contaminatio no amplo sentido de que a cultura grega exerceu forte influecircncia na
literatura latina levando esta uacuteltima a composiccedilotildees de temas e gecircneros narrativos comuns aos helecircnicos 52
Para anaacutelise mais profunda do conceito de um romano ser considerado baacuterbaro cf Gouvecirca Juacutenior
(2012 p 5 a 27) 53
Oliveira fala que na verdade Roma controlava a influecircncia que vinha dos helenos tanto eacute que alguns
elementos da cultura grega soacute vieram a ter alcance em Roma jaacute no seacuteculo I aC a I dC com Catulo
Horaacutecio e Oviacutedio O utor defende que ―A origin lid de de Rom eacute pois c p cid de de sintetiz r
outras culturas sem perda de identidade e foi isso o que a urbe aprendeu a fazer desde as origens () A
postura psicoloacutegica dos romanos perante as culturas estrangeiras eacute pois seletiv e pr gmaacutetic ( ) (In
BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 268 e 269) Oliveira entatildeo define que os romanos possuiacuteam trecircs
mecanismos para lidar com uma cultura estrangeira a interpretatio como por exemplo nas comeacutedias de
Plauto que possuiacuteam certos elementos proacuteprios a imitatio postura de veneraccedilatildeo ao modelo e a emulatio
que era o desejo de rivalizar e fazer melhor do que o modelo (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 270
e ss)
35
vec laquollsquoeacutetr nger culturelraquo eacutetr nger qulsquoelle subit qulsquoelle comb t et uquel elle
emprunte be ucoup 54
No periacuteodo arcaico o termo latino usado para designar o estrangeiro era hostis
Isso jaacute foi atestado na Lei das Doze Taacutebuas (taacutebuas II e III) de meados do seacuteculo V aC
Como lembra Gauthier (1973 p 15) entre os pesquisadores haacute consenso de que os
hostes citados na Lei das Doze Taacutebuas eram os estrangeiros que possuiacuteam em Roma
certos direitos ndash essa relaccedilatildeo de proximidadeigualdade se pareceria com o grego μέλνο
Assim todos os que natildeo eram romanos nessa eacutepoca eram chamados de hostes natildeo
importava a sua origem Varratildeo jaacute no seacuteculo I aC notara a mudanccedila de significado de
hostis que passou a designar inimigo ndash d iacute temos em portuguecircs o termo ―hostil 55
Assim Varratildeo escreveu (De lingua latina V 1 3)
Quae ideo sunt obscuriora quod neque omnis impositio verborum exstat
quod vetustas quasdam delevit nec quae exstat sine mendo omnis imposita
nec quae recte est imposita cuncta manet (multa enim verba litteris
commutatis sunt interpolata) neque omnis origo est nostrae linguae e
vernaculis verbis et multa verba aliud nunc ostendunt aliud ante
significabant ut hostis nam tum eo verbo dicebant peregrinum qui suis
legibus uteretur nunc dicunt eum quem tum dicebant perduellem Assim essas coisas satildeo obscuras pois nem toda imposiccedilatildeo de palavras se
manteacutem jaacute que o tempo apaga algumas nem toda palavra imposta perdura
sem erro nem a que foi posta corretamente permanece iacutentegra (na verdade
muitas palavras foram mudadas com a troca de letras) nem toda origem estaacute
na nossa liacutengua ou nas palavras vernaacuteculas muitas palavras agora designam
uma coisa mas antes significavam outra como inimigo de fato com esse
termo chamavam o peregrino que utilizasse as suas leis agora assim o
chamam aquele que antes nomeavam inimigo (traduccedilatildeo e grifos nossos)
No trecho acima Varratildeo fez distinccedilatildeo entre hostis (que antes servia para se
referir ao peregrino mas que na sua eacutepoca jaacute designava o inimigo) e perduellem (nom
perduellis) eacutetimo usado com o significado de inimigo e depois suplantado pelos termos
hostis e inimicus no latim claacutessico (FARIA 2003 p 723) Ainda sobre esses vocaacutebulos
como atestado no dicionaacuterio de Faria (2003 p 456) durante a Repuacuteblica romana o
termo hostis nomeava o inimigo puacuteblico enquanto inimicus era o inimigo particular jaacute
durante o periacuteodo imperial hostis passou a significar inimigo em geral assim como
inimicus se tornou sinocircnimo de hostilis O fato de vaacuterios termos latinos que antes
designavam o adversaacuterio depois se resumirem a hostis ou inimicus sobretudo a partir do
54
―Rom desde muito cedo esteve com cont to com o estr ngeiro cultur llsquo estr ngeiro que el sujeit
comb te e do qu l muito incorpor 55
Gauthier descreve de forma aprofundada a evoluccedilatildeo do termo hostis e a relaccedilatildeo desse termo com o
eacutetimo hospes (1973 p 14 a 19)
36
seacuteculo I aC denota a proacutepria mudanccedila cultural pela qual Roma passava
Simultaneamente agraves suas inuacutemeras conquistas militares nesse periacuteodo a Urbe passou a
reconhecer indiviacuteduos e naccedilotildees em amigos ou rivais Gauthier (1973 p 19 a 21) resume
bem essa questatildeo
En grec un seul terme μέλνο deacutesigne agrave l fois llsquoeacutetr nger grec vec lequel
entente et meacutefiance sont eacutegalement ou tour agrave tour possibles et llsquohocircte lieacute p r
des obligations reacuteciproques () Au contraire en latin hostis deacutesigne
llsquoeacutetr nger proche reconnu comme p rten ire de droit ccueilli et proteacutegeacute u
sein de l commun uteacute t ndis qlsquoun terme composeacute hospes deacutesigne llsquohocircte
personnel ou f mili l ( ) Encore utiliseacute vec le sens dlsquolaquoeacutetr ngerraquo u milieu
du Vegraveme siegravecle hostis ser it devenu un siegravecle plus t rd llsquolaquoennemiraquo ( ) En
derniegravere n lyse llsquoetude de l notion dlsquoeacutetr nger renvoie elle ussi agrave l
opposition cl ssique entre les citeacutes grecques dlsquo ut nt moins ouvertes ux
eacutetr ngers que l notion dlsquoEacutet t y est moins deacuteveloppeacutee et l citeacute rom ine plus
disciplineacutee et plus ouverte Les guerres entre citeacutes grecques entretiennent les
particularismes elles ne saur ient boutir agrave llsquo ssimil tion ou agrave l conquecircte
Le μέλνο nlsquoest p s ougrave nlsquoest guegravere proteacutegeacute m is les commun uteacutes de μέλνη ne
sont pas de proies A Rome on protegravege ses voisins puis on les absorbe
Llsquoeacutetr nger devient un ennemi ou il devient Rom in 56
Quanto aos estrangeiros Roma lutou contra eles e durante muito tempo
conseguiu sustentar as fronteiras de um vasto impeacuterio ateacute que no seacuteculo V dC as
invasotildees dos povos germacircnicos puseram fim agrave civilizaccedilatildeo romana ocidental Como
vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Roma teve relaccedilotildees mais profundas de contato
cultural com os baacuterbaros
Os gregos possivelmente foram os primeiros a estudar os costumes e cultura dos
estrangeiros atraveacutes de relatos de mercadores ou colonizadores De fato desde tempos
muito antigos os gregos empreenderam viagens pelo Mediterracircneo estabelecendo
colocircnias e tendo contato com outros povos (JARDEacute 1977 p 5) Por volta do seacuteculo VI
aC temos jaacute algumas obras de pesquisa etnograacutefica ou historia (no sentido de
pesquisa) Desse seacuteculo temos as Histoacuterias de Heroacutedoto que conta sobre povos que
habitavam em terras distantes os citas os persas os egiacutepcios dentre outros Apesar
56
―Em grego um soacute termo μέλνο designa tanto o estrangeiro grego com o qual tanto a compreensatildeo
quanto a desconfianccedila satildeo igualmente possiacuteveis quanto o hoacutespede ligado por obrigaccedilotildees reciacuteprocas ()
Ao contraacuterio no latim hostis designa o estrangeiro proacuteximo reconhecido como parceiro por direito
acolhido e protegido no seio da comunidade enquanto um termo composto hospes designa o hoacutespede
pesso l ou f mili r ( ) Aind utiliz do com o sentido de ―estr ngeiro dur nte o seacuteculo V C hostis se
tornaria um seacuteculo depois o ―inimigo ( ) Em uacuteltim naacutelise o estudo d noccedilatildeo de estr ngeiro remete
ela mesma agrave oposiccedilatildeo claacutessica entre as cidades gregas ndash embora menos abertas ao estrangeiro pois a
noccedilatildeo de Estado eacute menos desenvolvida ndash e agrave cidade romana mais disciplinada e mais aberta As guerras
entre as cidades gregas mantecircm suas particularidades elas natildeo podem conduzir agrave assimilaccedilatildeo ou agrave
conquista O μέλνο natildeo costuma ser protegido mas as comunidades de μέλνη natildeo satildeo viacutetimas Em Roma
jaacute se protege os vizinhos e tambeacutem os absorve O estrangeiro ou deve se tornar inimigo ou deve se tornar
rom no
37
desse interesse etnograacutefico os gregos natildeo se aprofundaram no contato com os
estrangeiros ou se preocuparam em civilizaacute-los de maneira sistemaacutetica (DAUGE 1981
p 12)
Ateacute o seacuteculo III aC Roma era principalmente considerada como um territoacuterio
baacuterbaro para os proacuteprios gregos O contato direto entre essas duas civilizaccedilotildees contudo
trouxe grandes mudanccedilas Em 280 aC na costa de Tarento pela primeira vez os
exeacutercitos grego e romano se encontraram Os gregos entatildeo possuiacuteam duas formas de
abordar o estrangeiro a assimilaccedilatildeo (ou analogia) em que um povo teria sua origem
relacionada aos gregos e a alienaccedilatildeo em que o povo considerado baacuterbaro seria mantido
lheio agrave ―civiliz ccedilatildeo (HARTOG 2014 p 211) A p rtir dos seacuteculos III I C
portanto essas duas abordagens em relaccedilatildeo aos romanos foram contraditoacuterias eles
foram considerados anaacutelogos ou alienados perante os gregos de acordo com as grandes
transformaccedilotildees poliacuteticas e as relaccedilotildees ora amistosas ora adversas entre esses dois
povos A esse respeito Champion (2004 p 46) afirma ― ncient Hellenism like ny
ethnic-cultural identity formation was an adaptable and negotiable cultural tool that was
deployed for politic l purposes 57
Desde a literatura grega arcaica jaacute temos alguns registros que posteriormente
for m us dos como ―g nchos p r definir origem grega dos romanos Um exemplo
disso pode ser encontrado em Hesiacuteodo que disse que Latino era filho de Odisseu e
Circe58
Como Herring pontua (In ERSKINE 2009 p 130) o orgulho grego tornava
mais faacutecil ver os romanos como gregos e natildeo outros Dentre outros modelos desse fato
um dos mais significativos eacute o de Dioniacutesio de Halicarnasso autor grego do seacuteculo I
aC que justificou a origem helecircnica dos romanos pela genealogia dizendo que os
primeiros habitantes do Laacutecio eram gregos que tinham migrado da Arcaacutedia para a Itaacutelia
antes da Guerra de Troia e tambeacutem pelo fato dos proacuteprios troianos terem origens
gregas Segundo Dioniacutesio Daacuterdano antecedente dos troianos seria neto de Atlas o
primeiro rei da Arcaacutedia Teucro entatildeo rei da regiatildeo onde depois seria fundada Troia
deu a Daacuterdano a terra para ele fundar a cidade Teucro tambeacutem seria grego pois sua
origem era da Aacutetica Teucro entatildeo se aliou ao grego Daacuterdano contra os baacuterbaros que ali
habitavam para que a futura cidade de Troia natildeo sucumbisse Daacuterdano se casou com a
57
―o helenismo ntigo como qu lquer form ccedilatildeo de identid de eacutetnico-cultural era uma ferramenta
cultur l d ptaacutevel e negociaacutevel que foi us d p r propoacutesitos poliacuteticos 58
Na Teogonia (2003 v 1011 1016) Hesiacuteodo ssim escreveu ―Circe filh de Sol Hiperionid m d
por Odisseu de sofrida prudecircncia gerou Aacutegrio Latino irrepreensiacutevel e poderoso e pariu Teleacutegono graccedilas
agrave aacuteurea Afrodite Bem longe no interior de ilhas sagradas e eles reinam sobre os iacutenclitos tirrenos Esse
trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Torrano (HESIacuteODO 2003)
38
filha de Teucro e da sua linhagem nasceria Eneias dessa forma descendente de
arcaacutedios59
Essa assimilaccedilatildeo dos romanos por parte de alguns gregos natildeo foi contudo uma
via de matildeo uacutenica jaacute que os proacuteprios romanos tambeacutem escreveram sobre suas origens
estrangeiras o que resultou em divers s lend s com vaacuteri s conexotildees que ―borr r m s
fronteiras entre gregos e romanos Citamos o exemplo de Faacutebio Pictor (seacuteculo III aC)
um dos primeiros a escrever histoacuteria latina que abordou a origem helecircnica dos romanos
pois escreveu sobre a passagem de Heacuteracles pela Itaacutelia e o arcaacutedio Evandro que teria
estabelecido uma colocircnia na colina do Palatino60
Gruen (2011a p 244) a esse respeito
firm ―The Rom n histori n stepped in Hellenic lore unequivoc lly embr ced
legends that postulated Greek ancestry for Rome indeed acknowledged that cultural
underpinnings went back to the Phoenicians Far from shunning alien associations he
proudly procl imed them 61
Paralelamente agrave tradiccedilatildeo da origem helecircnica dos romanos tecircm-se ainda relatos
mitoloacutegicos ndash como na Iliacuteada de Homero ndash que servir m de ―g ncho p r utores
posteriores relacionarem o surgimento de Roma com os gregos Na Iliacuteada o heroacutei
troiano Eneias simplesmente eacute mencionado como o precursor de uma nova raccedila Assim
temos a fala de Posecircidon a Hera (XX 293 a 308)
ὢ πόπνη ἦ κνη ἄρνο κεγαιήηνξνο Αἰλείαν
ὃο ηάρα Πειεΐσλη δακεὶο Ἄτδνο δὲ θάηεηζη
πεηζόκελνο κύζνηζηλ Ἀπόιισλνο ἑθάηνην
λήπηνο νὐδέ ηί νἱ ρξαηζκήζεη ιπγξὸλ ὄιεζξνλ
ἀιιὰ ηί ἢ λῦλ νὗηνο ἀλαίηηνο ἄιγεα πάζρεη
κὰς ἕλεθ᾽ ἀιινηξίσλ ἀρέσλ θεραξηζκέλα δ᾽ αἰεὶ
δξα ζενῖζη δίδσζη ηνὶ νὐξαλὸλ εὐξὺλ ἔρνπζηλ
ἀιι᾽ ἄγεζ᾽ ἡκεῖο πέξ κηλ ὑπὲθ ζαλάηνπ ἀγάγσκελ
κή πσο θαὶ Κξνλίδεο θερνιώζεηαη αἴ θελ Ἀρηιιεὺο
ηόλδε θαηαθηείλῃ κόξηκνλ δέ νἵ ἐζη᾽ ἀιέαζζαη
ὄθξα κὴ ἄζπεξκνο γελεὴ θαὶ ἄθαληνο ὄιεηαη
Γαξδάλνπ ὃλ Κξνλίδεο πεξὶ πάλησλ θίιαην παίδσλ
νἳ ἕζελ ἐμεγέλνλην γπλαηθλ ηε ζλεηάσλ
ἤδε γὰξ Πξηάκνπ γελεὴλ ἔρζεξε Κξνλίσλ
59
Resumimos aqui a histoacuteria narrada por Dioniacutesio de Halicarnasso em sua obra Antiguidades romanas
livro II 1 e 2 Existiam ainda vaacuterias outras lendas sobre as origens helecircnicas dos romanos as quais
citamos rapidamente agrave guisa de exemplo como Gruen (In BOUGH 2006 p 300 a 302) pontua as
variantes nas quais Odisseu e seus descendentes desempenharam papel importante na fundaccedilatildeo de Roma
as narrativas sobre os arcaacutedios (como Enotro e Evandro) e tambeacutem Heacuteracles que teria percorrido a Itaacutelia
se relacionado com a filha de Evandro e ali deixado seus filhos Palante e Latino ndash esse uacuteltimo ao ser
adotado pelo rei dos aboriacutegenes Fauno depois se tornaria sogro de Eneias 60
Pictor fragmentos 1ndash2 (In BECK WALTER 2005 v1) 61
―O histori dor rom no mergulh do n tr diccedilatildeo greg sem duacutevid br ccedilou s lend s que postul v m
ancestralidade grega de Roma de fato reconhecendo que os fundamentos culturais remontavam aos
feniacutecios Longe de evit r ssoci ccedilotildees estr ngeir s ele orgulhos mente s procl m v
39
λῦλ δὲ δὴ Αἰλείαν βίε Τξώεζζηλ ἀλάμεη
θαὶ παίδσλ παῖδεο ηνί θελ κεηόπηζζε γέλσληαη
―Ah que sofrimento o meu pelo m gnacircnimo Enei s
Ele que rapidamente subjugado pelo Pelida desceraacute ao Hades
por se ter deixado convencer por Apolo que atinge de longe
estulto pois o deus natildeo afastaraacute dele a funesta desgraccedila
Mas por que razatildeo deve ele homem sem culpa sofrer dores
em vatildeo por causa de sofrimentos que satildeo de outros ele que sempre
ofereceu dons aos deuses que o vasto ceacuteu detecircm
Conduzamo-lo entatildeo noacutes para longe da morte
para que se natildeo enfureccedila o Croacutenida se Aquiles
o matar Pois estaacute fadado que ele sobreviva agrave guerra
para que desprovida de esperma natildeo pereccedila a raccedila de Daacuterdano
a quem o Croacutenida amou mais do que todos os filhos
que lhe foram gerados por mulheres mortais
Entretanto o Croacutenida pocircs-se a odiar a raccedila de Priacuteamo
e agora seraacute a Forccedila de Eneias a reger os Troianos
ssim como os filhos de seus filhos que de futuro n sceratildeo 62
Na Eneida temos o maior exemplo latino da origem troiana dos romanos
Virgiacutelio seguindo a narrativa mitoloacutegica que jaacute fora abordada por Homero utilizou essa
profecia que apareceu na Iliacuteada ndash de que Eneias estava destinado a fundar uma nova
raccedila ndash para justificar a origem miacutetica dos romanos em seu poema63
Na Eneida (IV)
quando Eneias se encontra em Cartago ele eacute lembrado por Hermes do destino que
deveria cumprir o troiano entatildeo deixa Dido e parte em direccedilatildeo agrave Itaacutelia64
No canto VII
Eneias finalmente chega ao Laacutecio e se encontra com o rei Latino que por recomendaccedilatildeo
dos deuses oferece-lhe a matildeo de sua filha Laviacutenia65
Eneias em algumas narrativas
lendaacuterias eacute considerado o antecessor de Rocircmulo e Remo e por conseguinte se deve a
ele a origem miacutetica dos romanos
Natildeo deixa de ser curioso o fato de que natildeo temos registros de uma possiacutevel
resistecircncia por parte dos romanos em remontar suas origens em povos indiacutegenas ou em
r iacutezes no Laacutecio como Gruen lembr (2011 p 244) ―But we h ve no sign of Rom n
resistance to foreign roots or insistence on native beginnings The reverse holds
62
Traduccedilatildeo citada de Lourenccedilo (HOMERO 2005) 63
Virgiacutelio escreveu a Eneida a pedido de Augusto Primeiro imperador romano Otaacutevio Augusto queria
um poema eacutepico agrave altura de Homero para exaltar as gloacuterias e faccedilanhas do incipiente impeacuterio atraveacutes de
suas origens lendaacuterias Virgiacutelio encontrou no troiano Eneias tanto o heroacutei de sua epopeia como tambeacutem o
elo miacutetico que ligou a Iliacuteada agrave Eneida Aleacutem disso Eneias era considerado por Ceacutesar e por Augusto o
miacutetico fundador da gens Julia ndash da qual faziam parte ndash remontando a origem da famiacutelia ateacute a deusa Vecircnus
(MARTIN GAILLARD 1981 p 33-36) 64
Na narrativa de Virgiacutelio Dido era a rainha da cidade de Cartago e acolheu Eneias quando ele chegou a
sua terra Abandonada pelo heroacutei ela suicidou-se desesperada de paixatildeo esse seria o motivo mitoloacutegico
que provocou as Guerras Puacutenicas 65
Todavia o vieacutes de Dioniacutesio era o de considerar os proacuteprios troianos em sua origem como sendo
gregos Dessa maneira o encontro de Latino e Eneias ndash segundo Dioniacutesio ndash seria novamente a
confluecircncia de descendentes de gregos em uma nova terra da mesma maneira que ele narrou a respeito
dos troianos (cf nota 59)
40
Historians and poets welcomed that association with the Easter Mediterranean reshaped
nd perpetu ted it 66
Gruen (2011a p 247 e 248) ainda reforccedila
Greek authors converted the sagas of Troy to bring Romans within the matrix
of Hellenic traditions And Romans in turn spun those stories to their own
taste embracing a Trojan lineage that gave them a character distinct from that
of Greeks but solidly within the Greek construct This was no linear
development but an intricate overlapping in which Romans defined
themselves as a constituent element in a broader cultural network67
Falamos aqui sobre a assimilaccedilatildeo dos romanos quanto a suas possiacuteveis origens
gregas Mais adiante no subcapiacutetulo 121 referente a Poliacutebio abordaremos a questatildeo
da alienaccedilatildeo dos romanos por parte dos gregos em um fenocircmeno no qual os romanos
eram considerados baacuterbaros
Os gregos consideravam que uma forma de deixar a condiccedilatildeo baacuterbara era atraveacutes
da paideia como vimos anteriormente Em Roma temos um termo que se aproximaria
desse conceito helecircnico eacute a humanitas palavra que deriva de homo (homem) e humus
(terr ) Desse eacutetimo temos em portuguecircs p l vr ―hum nid de deriv d de
―hum no Em contexto rom no no periacuteodo rc ico humanitas designava a natureza e
o sentimento dos homens posteriormente a partir do seacuteculo II aC humanitas adquiriu
o significado de civilidade que se opunha agrave crueldade primitiva (ferocitas)68
Humanitas grosso modo significava a pertenccedila ao gecircnero humano e tudo que lhe
estava relacionado a cultura os aspectos literaacuterio filosoacutefico e religioso Terecircncio
resumiu esse conceito ao escrever o seguinte verso na peccedila Heautontimorumenos (ato I
v 25) ―homo sum humani nihil a me alienum puto 69
Segundo Veyne (1992 p 283)
humanitas se referia agrave cultura literaacuteria virtude de humanidade e estado de civilizaccedilatildeo
Para Pereira (1993 p 421) os termos paideia e humanitas se aproximaram durante o
tempo dos Cipiotildees Inicialmente o termo humanitas serviu para traduzir a palavra grega
paideia e a humanitas assim como aconteceu com a paideia em contexto grego
tornou-se mais um meacuterito do que uma caracteriacutestica universal um instrumento atraveacutes
66
―Natildeo temos sin l de resistecircnci rom n frente agraves r iacutezes estr ngeir s ou insistecircnci em primoacuterdios
nativos pelo contraacuterio Historiadores e poetas receberam bem a associaccedilatildeo com o oriente mediterracircneo
remoldando-a e perpetuando- 67
―Autores gregos converter m as sagas de Troia para inserir os romanos na matriz das tradiccedilotildees
helecircnicas Os romanos por sua vez adaptaram essas histoacuterias ao seu proacuteprio gosto abraccedilando a linhagem
troiana que deu a eles um caraacuteter distinto do dos gregos mas solidamente inserido na construccedilatildeo grega
Esse natildeo foi um desenvolvimento linear mas sim uma intrincada sobreposiccedilatildeo na qual os romanos
definir m si mesmos como elemento constituinte de um rede cultur l m is mpl 68
Pereira (1993 p 415 a 421) detalha mais o surgimento do termo humanitas bem como a evoluccedilatildeo do
seu sentido A autora tambeacutem aborda sobretudo os escritos de Ciacutecero a respeito de humanitas 69
―sou homem penso que nada que eacute humano me eacute estr nho em tr duccedilatildeo noss
41
do qual um indiviacuteduo ou povo poderia se afastar da barbaacuterie A humanitas poderia ser
conquistada ou alcanccedilada e ensinada aos povos considerados primitivos
Em Ceacutesar por exemplo temos em algumas passagens a denominaccedilatildeo dos
germ nos como sendo ―baacuterb ros e ferozes (por exemplo em BGall I 31 e 33) e dos
gauleses (no caso os belgas) descritos como ―homens ferozes e de gr nde virtude
(BGall II 15) Nesse sentido o baacuterbaro diferia do romano porque ele natildeo tinha os
valores relacionados agrave humanitas (a civilidade que se opotildee agrave crueldade primitiva ndash a
ferocitas)70
A esse respeito Dauge (1981 p 19 e 20) explica
Il est bien entendu que pour le Romain le barbare ne constitue pas une
espegravece diffeacuterente mais un eacutetat infeacuterieur ndash soit collectif soit individuel ndash de
l`homme une maniegravere d`ecirctre deacutefectueuse inacheveacutee incomplegravete - non pas
deacutefinitive mais variable Le barbare comme d`ailleurs le civiliseacute est sujet agrave
mutation et peut toujours eacutevoluer l`accegraves agrave l`humanitas est toujours possible
de mecircme que la chute ou rechute dans la barbarie Du reste le Romain sait
bien qu`aux deux extreacutemiteacutes du cycle eacutevolutif se trouvent deux formes
compleacutementaires de la barbarie et qu`il est tregraves difficile dans la mobiliteacute du
reacuteel d`ecirctre et de rester civiliseacute Le tout est de controcircler l`eacutevolution pour
atteindre le point d`eacutequilibre et s`y maintenir ndash en associant agrave cet effort le
plus possible d`individus ce qui a eacuteteacute l`ideacuteal romain proprement dit71
Especificamente em relaccedilatildeo aos celtas embora Roma desde muito cedo fora
ameaccedilada por eles e inclusive saqueada no iniacutecio do seacuteculo IV aC o conhecimento
que se tinha desse povo pelo menos em termos literaacuterios era muito escasso e vinha
sobretudo de fontes gregas como veremos a seguir Roma tinha mais conhecimento dos
povos orientais considerados decadentes e paradigma de luxo excessivo Apoacutes a
conquista da Gaacutelia de forma definitiva sob Juacutelio Ceacutesar o conhecimento dos povos
ocidentais se aprofundou O romano ateacute entatildeo considerado baacuterbaro pelo homem grego
passou a tratar como baacuterbaro o homem gaulecircs considerado rude e ignorante (VEYNE
In GIARDINA 1992 p 295) Com o alargamento das fronteiras do impeacuterio e com a
romanizaccedilatildeo o termo humanitas deu lugar ao termo romanitas o modo de vida dos
romanos passa a ser gradualmente o modelo de vida dos povos conquistados ndash
70
Pereira (1993 p 317 a 428) aleacutem da humanitas analisa outros conceitos morais e poliacuteticos dos
romanos como a fides a clementia o mos maiorum etc 71
―Estaacute bem entendido que para o romano o baacuterbaro natildeo constitui uma espeacutecie diferente mas um estado
inferior - seja coletivo seja individual - do homem uma maneira de ser defeituosa inacabada
incompleta - natildeo definitiva mas variaacutevel De qualquer maneira o baacuterbaro como o civilizado estaacute sujeito
agrave mudanccedila e pode sempre evoluir o acesso agrave humanitas eacute sempre possiacutevel bem como a queda ou a
recaiacuteda na barbaacuterie De resto o romano sabe bem que nas duas extremidades do ciclo evolutivo se
encontram duas formas complementares de barbaacuterie e que eacute muito difiacutecil dentro da mobilidade do real
ser e se manter civilizado Tudo se resume a controlar a evoluccedilatildeo para atingir o ponto de equiliacutebrio e aiacute se
manter - acrescentando a esse esforccedilo o maacuteximo possiacutevel de indiviacuteduos o que foi o ideal romano
propri mente dito
42
sobretudo na Europa ocidental Todavia esse foi um processo lento e de amaacutelgama
cultural entre conquistadores e conquistados como Guarinello (2014 p 297) define
Os historiadores mais antigos da primeira metade do seacuteculo XX descreviam
a aparente homogeneidade cultural do Impeacuterio atraveacutes dos conceitos de
romanizaccedilatildeo e helenizaccedilatildeo como se as populaccedilotildees conquistadas tivessem
acolhido de braccedilos abertos as benesses de civilizaccedilotildees superiores romana no
ocidente grega no oriente Satildeo ideias ultrapassadas A proacutepria criaccedilatildeo de
uma identidade romana foi um processo complexo acelerado no seacuteculo final
da repuacuteblica e agrave eacutepoca de Augusto72
Nesse periacuteodo de raacutepida expansatildeo entre os seacuteculos III aC a I aC a proacutepria
Roma natildeo tinha uma identidade definida Como Guarinello (2014 p 297) ressalta a
urbe era formada por um complexo conjunto de romanos italianos estrangeiros
escravos e libertos vindos de vaacuterias partes do mundo ateacute entatildeo conhecido Com a
ascensatildeo de Otaacutevio Augusto a identidade romana teve que ser recriada para servir de
paracircmetro para o Impeacuterio contudo ela nunca foi baseada em uma identificaccedilatildeo eacutetnica
nem monoliacutetica nem mesmo imune agrave accedilatildeo do tempo (GUARINELLO 2014 p 297)73
Dessa forma a partir do seacuteculo I aC o termo baacuterbaro natildeo designava mais o
estrangeiro qualquer que fosse ele Esse termo passou a definir o primitivo o rude e
violento que constantemente ameaccedilava as fronteiras do Impeacuterio como Veyne (In
GIARDINA 1992 p 300 e 301) afirma
As palavras laquoromanoraquo laquolatinoraquo ou laquoperegrinoraquo indicavam um estatuto natildeo
uma origem eacutetnica e natildeo se estabelecia nenhuma diferenccedila entre os cidadatildeos
romanos de origem itaacutelica e de origem provinciana As diferenccedilas eacutetnicas
contavam tatildeo pouco para os Romanos que no final da Antiguidade natildeo
tiveram nenhuma repugnacircncia em recrutar os seus soldados e generais entre
os Germanos
12 ndash Os celtas vistos pelos gregos e romanos do seacuteculo III e II aC
Os gregos desde muito cedo jaacute escreviam obras de cunho etnograacutefico devido ao
fato de eles terem estabelecido colocircnias fora da Greacutecia (jaacute na eacutepoca arcaica) e entrado
em contato com outras naccedilotildees ndash sendo tambeacutem o contato com os celtas muito antigo
Vasaly (1993 p 144) lembra que os primeiros textos etnograacuteficos de outros povos e
72
Aprofundaremos nossa discussatildeo sobre o conceito de romanizaccedilatildeo no subcapiacutetulo 221 ― lgum s
consider ccedilotildees sobre questatildeo d rom niz ccedilatildeo n Europ Ocident l 73
Discutiremos de forma aprofundada o estabelecimento da identidade romana a partir do principado de
Augusto no capiacutetulo 3 deste trabalho
43
regiotildees eram apenas relatos superficiais dos primeiros navegadores e narraccedilotildees de
maravilhas e fatos fantaacutesticos relacionados a terras distantes e desconhecidas O proacuteprio
Heroacutedoto nas suas Histoacuterias herda esse traccedilo da narrativa etnograacutefica ao escrever
sobre aspectos assombrosos de outros povos74
Posteriormente a etnografia voltou a
entrar em voga no periacuteodo heleniacutestico com a expansatildeo dos territoacuterios helenizados e
contato entre populaccedilotildees diferentes e com a expansatildeo romana as digressotildees
etnograacuteficas tambeacutem se tornaram comuns em autores latinos Como Dihle (apud
VASALY 1993 p 146) ress lt ―( ) the Hellenistic material was strongly influenced
by the inclination to ascertain the rational causes of observed phenomen 75
Abordaremos mais a fundo no subcapiacutetulo sobre Poliacutebio essa questatildeo sobre a anaacutelise
racional das causas de fenocircmenos e eventos
A respeito de Marselha uma das mais importantes colocircnias gregas Tuciacutedides
contou que a cidade foi fundada por emigrantes da Foceia que ao fugirem dos persas se
estabeleceram no sul da Franccedila76
Marselha de acordo com fontes antigas e com
pesquisas arqueoloacutegicas atuais teria sido fundada no seacuteculo VI aC77
A cidade
mantinha-se em constante vigilacircncia contra os seus vizinhos celtas Momigliano (1991
p 53) ressalta
Em seu comeacutercio Massilia era sem duacutevida auxiliada pelas outras colocircnias
gregas ao longo das costas da Franccedila e da Espanha que se natildeo pela origem
ao menos de fato eram as suas proacuteprias subsidiaacuterias Nicaea Antiacutepolis
Rodes Emporiae Mainace etc Mas eacute difiacutecil avaliar o esforccedilo de
coordenaccedilatildeo militar e social que tais postos avanccedilados isolados devem ter
exigido tanto eram um risco quanto um auxiacutelio78
O alfabeto grego usado pelos celtas se deveu agrave influecircncia dos massaliotas entre
os seacuteculos III e II aC de acordo com inscriccedilotildees celtas e tambeacutem com o relato do
74
Segundo Fornara (1983 p 12 e ss) a etnografia natildeo constituiacutea um gecircnero literaacuterio em si e os antigos
textos escritos pelos gregos nesse formato geralmente eram designados pelo nome do povo a que se
referiam Lydiaka Babyloniaka etc Ess espeacutecie de ―subgecircnero de composiccedilatildeo foi b st nte popul r o
longo dos seacuteculos desde primoacuterdios do seacuteculo V aC ateacute o periacuteodo tardio do impeacuterio romano jaacute que
sempre se recorria agrave etnografia para a descriccedilatildeo de outros povos sua cultura e costumes Jaacute em Homero e
Hesiacuteodo temos trechos de cunho etnograacutefico mas foi sobretudo a partir de Heroacutedoto que a etnografia
passa a ser comumente escrita em digressotildees dentro de obras de cunho historiograacutefico 75
―O m teri l heleniacutestico foi fortemente influenciado pela inclinaccedilatildeo para averiguar as causas racionais
de fenocircmenos observ dos 76
Cf Tuciacutedides I 13 6 (1990 p 149) 77
De acordo com Esbarranch em nota agrave sua traduccedilatildeo do texto de Tuciacutedides a dataccedilatildeo da fundaccedilatildeo da
cidade situa-se no seacuteculo VI aC O tradutor cita outras fontes aleacutem de Tuciacutedides como Heroacutedoto e
Aristoacuteteles bem como pesquisadores do assunto (TUCIacuteDIDES 1990 p 149) 78
Para maiores informaccedilotildees acerca dos contatos entre os celtas e Massilia e de como os gregos
influenciaram essa naccedilatildeo vide Momigliano (1991 p 53 e ss)
44
proacuteprio Ceacutesar Sabemos que os gauleses natildeo deixaram nada escrito a respeito de si
mesmos e sua histoacuteria e cultura desse periacuteodo apenas satildeo conhecidas no campo literaacuterio
atraveacutes de relatos de terceiros A respeito da falta de escrita por parte dos gauleses e do
uso do alfabeto grego Ceacutesar escreveu no De bello Gallico (VI 14)
Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX
in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum
in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur
Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum
disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus
memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum
diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant
Diz-se que aiacute eles decoram um grande nuacutemero de versos Assim alguns
permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais
preceitos agrave escrita ndash como geralmente nos demais assuntos ndash e quanto aos
registros puacuteblicos e privados utilizam-se das letras gregas Parecem-me tecirc-lo
assim determinado por dois motivos por natildeo querer que seu saber passe ao
vulgo nem que aqueles que aprendem confiando nas letras se dediquem
menos a memorizar isso de ordinaacuterio sucede agrave maioria de modo que com o
respaldo da escrita afrouxem-se a dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de
aprendizado
Momigliano ainda ressalta que Massilia (Marselha) buscando manter-se
helecircnica e aristocraacutetica nunca se preocupou em explorar o interior da Gaacutelia ou
transmitiu aos outros gregos qualquer conhecimento sobre os costumes dos galos O
autor (1991 p 57) afirma
Ateacute o seacuteculo II aC os gregos sabiam deploravelmente pouco sobre o mundo
celta ndash e a Franccedila em particular () As primeiras autoridades sobre os celtas
que encontramos Eacuteforo e Timeu eram tiacutepicos historiadores de gabinete
Foram pioneiros simplesmente porque os massaliotas nunca fizeram
qualquer esforccedilo para conhecer os seus vizinhos Eacuteforo que escreveu os
primeiros livros em torno de 350 aC incluiu os celtas em sua descriccedilatildeo de
mundo79
Sobre esses dois historiadores gregos temos pouco material aleacutem de fragmentos
Eacuteforo e Timeu viveram no seacuteculo IV aC Eacuteforo de Cumas (405 ndash 330 aC) era
conhecido por ter sido aluno de Isoacutecrates de acordo com Oswyn Murray (In
BOARDMAN et al 1986 p 198) por esse motivo Eacuteforo teria comeccedilado a perigosa
relaccedilatildeo entre histoacuteria e retoacuterica com a tendecircncia de se sacrificar a verdade em prol do
efeito O autor escreveu uma obra chamada Histoacuteria que teria 30 livros que tratavam
79
Tem-se notiacutecia de que Hecateu de Mileto geoacutegrafo que viveu no final do seacuteculo VI aC jaacute escrevera
sobre os celtas Contudo como haacute pouquiacutessimos fragmentos de sua obra consideramos Eacuteforo e Timeu
como os mais antigos que deixaram um registro que nos chegou mais consistente
45
da histoacuteria grega dos primoacuterdios ateacute o seu tempo dedicando um livro a cada regiatildeo da
Heacutelade (OLIVER in BUGH 2006 p 117) Poliacutebio (Hist V 33 2) considerava que
foi Eacuteforo o primeiro a escrever histoacuteria de caraacuteter universal Ele tambeacutem redigiu uma
obra sobre a histoacuteria de Cumas e tratados sobre invenccedilatildeo e sobre estilo Muito do que
se sabe sobre a perdida obra de Eacuteforo depende de Diodoro Siacuteculo que o teria usado
como fonte De cordo com H rtog (2014 p 130) Eacuteforo ―pertence jaacute ess c tegori
de intelectuais poliacutegrafos historiadores sim mas que trabalham a partir dos textos dos
outros compiladores Diodoro da Siciacutelia atribui-lhe expressamente a opiniatildeo de que os
baacuterb ros er m m is ntigos que os gregos 80
Quanto a Timeu era de Taormina na Siciacutelia e viveu no comeccedilo do seacuteculo IV
aC Sua Histoacuteria teria sido composta em 38 livros e abordava sobretudo a Siciacutelia e
eventos de lugares proacuteximos como a Liacutebia e a Itaacutelia Sua importacircncia se deveu ao fato
dele ter servido de fonte para Poliacutebio como veremos mais detalhadamente adiante81
Aleacutem de Eacuteforo e Timeu que falaram sobre os celtas no seacuteculo IV e III aC
Momigliano (1991 p 58) afirma
Aristoacuteteles por certo deve tecirc-los incluiacutedo em sua obra perdida sobre os
costumes dos baacuterbaros Em Poliacutetica ele soube interpretar as instituiccedilotildees
celtas no contexto da sua classificaccedilatildeo Embora fossem um povo guerreiro os
celtas ao contraacuterio dos espartanos natildeo eram dominados pelas mulheres
porque tendiam ao homossexualismo mas assim como os espartanos
educavam os filhos austeramente Para aleacutem da poliacutetica Aristoacuteteles conteacutem
mistura costumeira de informaccedilotildees curiosas ndash por exemplo que determinadas
regiotildees da terra celta satildeo frias para que os burros procriem (De gener anim
28748a) Ele natildeo parece ter pesquisado muito a respeito dos celtas Mais
tarde poreacutem se descobriu que mesmo Eacuteforo e Timeu eram informantes
superficiais sobre eles
Antes que os romanos passassem a expandir seu territoacuterio para a Europa
ocidental os proacuteprios gregos sabiam muito pouco sobre os celtas82
Massilia
(Marselha) que poderia ter servido como ponto de exploraccedilatildeo do territoacuterio celta acabou
se concentrando em explorar o litoral Todavia os celtas natildeo passaram despercebidos
80
Para maior detalhamento sobre Eacuteforo e sua produccedilatildeo historiograacutefica recomendamos o subcapiacutetulo
―Ephorus de Marincola (2007 v1 p 172 a 174) 81
Para estudo mais profundo de Eacuteforo e Timeu bem como de outros historiadores gregos do seacuteculo IV e
III C recomend mos o c piacutetulo ―Polybius nd his predecessors (USHER 2001) 82
Sobre o que os gregos do seacuteculo IV C escrever m sobre os celt s cf o c piacutetulo ―Notices in some
fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48)
46
sobretudo apoacutes o saque de Roma em 390 aC83
Jaacute durante o governo de Alexandre o
Grande os celtas assediavam as fronteiras macedocircnias Chegaram a capturar Delfos em
278 aC por um curto espaccedilo de tempo e posteriormente se instalaram na Aacutesia Menor
na regiatildeo conhecida como Galaacutecia84
Os proacuteprios celtas segundo Momigliano teriam
servido como estopim para que certas cidades se organizassem de forma efetiva e por
consequecircncia se tornassem fortes impeacuterios Momigliano (1991 p 59 e 60) ainda
acrescenta
Cada uma dessas intervenccedilotildees dos celtas provava a sua importacircncia ao
produzir importantes desenvolvimentos nos sistemas poliacuteticos que atacavam
Por volta de 350 aC Roma surgiu como a maior potecircncia na Itaacutelia quando os
latinos por temor aos celtas renunciaram agrave sua independecircncia O novo reino
da Macedocircnia sob a autoridade firme de Antiacutegono Gocircnatas foi o resultado
direto da invasatildeo celta da Macedocircnia e da Greacutecia A vitoacuteria sobre os gaacutelatas
consolidou o estado de Peacutergamo e provavelmente forneceu a Aacutetalo I a
oportunidade certa para se declarar rei Por fim foi a vitoacuteria de Gnaeus
Manlius Vulso sobre os gaacutelatas em 189 aC que justificou a intervenccedilatildeo dos
romanos na Aacutesia Menor e lhes forneceu os clientes de que necessitavam para
controlar as ambiccedilotildees de Peacutergamo Inuacuteteis nos ataques contra estados
defendidos por falange ou legiatildeo os celtas tinham a superioridade numeacuterica
a coragem e a rapidez do saqueador completo
121 ndash Poliacutebio
Os gregos durante a expansatildeo do impeacuterio romano passaram a escrever sobre os
celtas a serviccedilo da elite romana O primeiro grande nome de que temos notiacutecia que
tratou mais profundamente sobre os celtas ndash e tambeacutem sobre os romanos ndash foi Poliacutebio
Poliacutebio era filho de Lycortas um importante cidadatildeo de Megaloacutepolis na Arcaacutedia ndash com
isso teve uma educaccedilatildeo refinada Quando Poliacutebio nasceu Roma jaacute tinha vencido a
Segunda Guerra Puacutenica obtendo a hegemonia no Mediterracircneo e comeccedilava a avanccedilar
em direccedilatildeo agrave Greacutecia Os romanos em conflitos com os monarcas heleniacutesticos Filipe V
Perseu da Macedocircnia e Antiacuteoco da Siacuteria passaram tambeacutem a se envolver em disputas
com a Liga Aqueia e Etoacutelia Depois que venceram Perseu em 168 aC em Pidna os
romanos acusaram os aqueus de fomentar revoltas e exigiram mil refeacutens de famiacutelias
83
Ogilvie (1965 p 629) detalha o motivo da confusatildeo de datas entre a cronologia romana e a grega
afirmando que o saque se deu provavelmente em 387 ou 386 aC Para todos os efeitos consideramos a
tradicional data de 390 aC 84
A questatildeo da assimilaccedilatildeo cultural tambeacutem foi empregada pelos gregos para se referir aos celtas Como
destaca Rankin (1996 p 81) a Galaacutecia na concepccedilatildeo helecircnica teria recebido esse nome devido a Gaacutelato
(filho do Ciclope e de Galateia) outra variaacutevel registrada por Timeu (FHG 1200 ediccedilatildeo Muumlller) dizia
que eles eram descendentes de um gigante chamado Keltos e tambeacutem haacute a variaacutevel de que Heacuteracles
quando esteve no oeste teve um breve relacionamento com a princesa Celta e se tornou o ascendente
dessa naccedilatildeo (Diodoro Siacuteculo V 24)
47
proeminentes Dessa forma Poliacutebio chegou a Roma onde permaneceu entre 167 e 150
aC depois retornando agrave sua terra natal85
Poliacutebio mostrou aos seus captores que natildeo tinha envolvimento nas revoltas e
conseguiu a liberdade concedida aos estrangeiros livres Sobretudo por sua amizade
com o jovem Cipiatildeo Emiliano da proeminente famiacutelia dos Cipiotildees e filho de Emiacutelio
Paulo vencedor de Pidna Poliacutebio decidiu permanecer em Roma Na cidade ele se
dedicou a escrever sobre as fontes literaacuterias e documentais que Roma estava obtendo
com suas conquistas Cipiatildeo Emiliano agrave frente dos exeacutercitos da Repuacuteblica liderou
campanhas militares na Hispacircnia e Poliacutebio estava com ele em Cartago em 146 aC
quando na Terceira Guerra Puacutenica a cidade caiu de forma definitiva Quando Corinto foi
conquistada tambeacutem em 146 Poliacutebio voltou para a Greacutecia para interceder a favor dos
seus conterracircneos conseguindo acordos favoraacuteveis e aiacute viveu ateacute sua morte Aleacutem
dessas viagens militares Poliacutebio acompanhando Cipiatildeo ainda fez viagens
exploratoacuterias visitando as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) navegando pela
costa da Ibeacuteria e da Aacutefrica e refazendo a rota dos cartagineses pelos Alpes
As viagens empreendidas por Poliacutebio forneceram material para as suas
Histoacuterias obra que infelizmente nos chegou bem fragmentada Originalmente composta
em 40 livros as Histoacuterias cobririam os fatos desde a Segunda Guerra Puacutenica ateacute a queda
de Corinto Os cinco primeiros livros chegaram mais ou menos intactos enquanto os
outros estatildeo incompletos Poliacutebio foi o primeiro grego de que temos notiacutecia a percorrer
a Hispacircnia onde provavelmente foi por duas vezes entre 151 e 134 aC e visitou
tambeacutem a Gaacutelia e o norte da Aacutefrica como ele mesmo afirma em sua obra (Histoacuterias III
59 5 a 8)
δένλ ἂλ εἴε θαὶ βέιηηνλ γηλώζθεηλ θαὶ ἀιεζηλώηεξνλ ὑπὲξ ηλ πξόηεξνλ
ἀγλννπκέλσλ ὅπεξ ἡκεῖο αὐηνί ηε πεηξαζόκεζα πνηεῖλ ιαβόληεο ἁξκόδνληα
ηόπνλ ἐλ ηῇ πξαγκαηείᾳ ηῶ κέξεη ηνύηῳ ηνύο ηε θηινπεπζηνῦληαο
ὁινζρεξέζηεξνλ βνπιεζόκεζα ζπλεπηζηῆζαη πεξὶ ηλ πξνεηξεκέλσλ ἐπεηδὴ
θαὶ ηὸ πιεῖνλ ηνύηνπ ράξηλ ὑπεδεμάκεζα ηνὺο θηλδύλνπο [θαὶ ηὰο
θαθνπαζείαο] ηνὺο ζπκβάληαο ἡκῖλ ἐλ πιάλῃ ηῇ θαηὰ Ληβύελ θαὶ θαη᾽
Ἰβεξίαλ ἔηη δὲ Γαιαηίαλ θαὶ ηὴλ ἔμσζελ ηαύηαηο ηαῖο ρώξαηο ζπγθπξνῦζαλ
ζάιαηηαλ ἵλα δηνξζσζάκελνη ηὴλ ηλ πξνγεγνλόησλ ἄγλνηαλ ἐλ ηνύηνηο
γλώξηκα πνηήζσκελ ηνῖο Ἕιιεζη θαὶ ηαῦηα ηὰ κέξε ηῆο νἰθνπκέλεο
Seriacutea conveniente y necesario un conocimiento maacutes real de lo que antes se
ignoraba Esto es lo que intentaremos hacer cuando encontremos en nuestra
Historia un lugar adecuado Querriacuteamos que los que quieren saber por
curiosidad participaran de un conocimiento maacutes completo de lo enunciado
85
Para a biografia de Poliacutebio bem como os outros eventos histoacutericos narrados nos proacuteximos dois
paraacutegrafos utilizamos como referecircncia o livro de Usher (2001 p 105 a 107)
48
Fue principalmente por esto por lo que afrontamos los peligros y las
penalidades que nos ocurrieron en un viaje por Africa por Espantildea por la
Galia y por el Mar Exterior que cierra estos paiacuteses para proporcionar a los
griegos el conocimiento de estas partes del universo y corregir la ignorancia
de nuestros antepasados sobre estos temas86
A primeira vez que os gauleses foram mencionados na obra de Poliacutebio foi em
Histoacuterias I 6 2 a 4 em que ele narra rapidamente o saque de Roma no seacuteculo IV aC
Sobre a Gaacutelia Cisalpina temos uma descriccedilatildeo geograacutefica da regiatildeo no livro II das
Histoacuterias entre os capiacutetulos 14 e 17 Poliacutebio (II 17 9 a 12) assim descreveu alguns
costumes dos gauleses
ᾤθνπλ δὲ θαηὰ θώκαο ἀηεηρίζηνπο ηῆο ινηπῆο θαηαζθεπῆο ἄκνηξνη
θαζεζηηεο δηὰ γὰξ ηὸ ζηηβαδνθνηηεῖλ θαὶ θξεαθαγεῖλ ἔηη δὲ κεδὲλ ἄιιν
πιὴλ ηὰ πνιεκηθὰ θαὶ ηὰ θαηὰ γεσξγίαλ ἀζθεῖλ ἁπινῦο εἶρνλ ηνὺο βίνπο
νὔη᾽ ἐπηζηήκεο ἄιιεο νὔηε ηέρλεο παξ᾽ αὐηνῖο ηὸ παξάπαλ γηλσζθνκέλεο
ὕπαξμίο γε κὴλ ἑθάζηνηο ἦλ ζξέκκαηα θαὶ ρξπζὸο δηὰ ηὸ κόλα ηαῦηα θαηὰ ηὰο
πεξηζηάζεηο ῥᾳδίσο δύλαζζαη παληαρῇ πεξηαγαγεῖλ θαὶ κεζηζηάλαη θαηὰ ηὰο
αὑηλ πξναηξέζεηο πεξὶ δὲ ηὰο ἑηαηξείαο κεγίζηελ ζπνπδὴλ ἐπνηνῦλην δηὰ ηὸ
θαὶ θνβεξώηαηνλ θαὶ δπλαηώηαηνλ εἶλαη παξ᾽ αὐηνῖο ηνῦηνλ ὃο ἂλ πιείζηνπο
ἔρεηλ δνθῇ ηνὺο ζεξαπεύνληαο θαὶ ζπκπεξηθεξνκέλνπο αὐηῶ
Habitaban aldeas no amuralladas y no usaban de maacutes ajuar que el
estrictamente necesario Dormiacutean en lechos de hojarasca comiacutean carne y soacutelo
practicaban la agricultura o la guerra por lo cual su vida era muy simple
Entre elles artes y ciencias eran algo desconocido Sus uacutenicos bienes eran el
ganado y el oro ya que dado su geacutenero de vida era lo uacutenico que podiacutean
llevarse faacutecilmente a todas partes y trasladarlo seguacuten sus preferencias Poniacutean
su maacuteximo empentildeo en formar clanes porque entre ellos se consideraba el
maacutes poderoso y el maacutes temible el que diera la impresioacuten de tener el maacuteximo
nuacutemero de clientes y de asociados87
No trecho acima Poliacutebio ressaltou o caraacuteter bruto dos gauleses que natildeo
possuiacuteam qualquer tipo de instruccedilatildeo formal ou organizaccedilatildeo social e se dedicavam
apenas a satisfazer suas necessidades baacutesicas Poliacutebio que conviveu com os romanos e
86
―Seri conveniente e necessaacuterio um conhecimento mais real do que antes se ignorava Eacute isso que
tentaremos fazer quando encontrarmos em nossa histoacuteria um lugar adequado Queriacuteamos que os que
querem saber por curiosidade participem de um conhecimento mais completo do enunciado Foi
principalmente por isso que afrontamos os perigos e as penalidades que nos ocorreram em uma viagem
pela Aacutefrica pela Espanha pela Gaacutelia e pelo Mar Exterior que cerra esses paiacuteses para proporcionar aos
gregos o conhecimento dessas partes do universo e corrigir a ignoracircncia de nossos antepassados sobre
esses tem s Ess cit ccedilatildeo de Poliacutebio bem como s cit ccedilotildees n s proacutexim s not s (87 89 e 90) foi retirada
da traduccedilatildeo feita por Recort (POLIBIO 1981) 87
―H bit v m ldei s sem muros e natildeo us v m de m is objetos do que o estritamente necessaacuterio
Dormiam em leitos de folhas comiam carne e soacute praticavam a agricultura ou a guerra pelo que sua vida
era muito simples Entre eles as artes e as ciecircncias eram algo desconhecido Seus uacutenicos bens eram o
gado e o ouro jaacute que dado seu tipo de vida era o que se podia transportar facilmente a todas as partes e
mudaacute-los segundo suas preferecircncias Colocavam seu maacuteximo empenho em formar clatildes porque entre eles
se considerava o mais poderoso e o mais temiacutevel o que dava a impressatildeo de ter o maior nuacutemero de
clientes e ssoci dos
49
viu seus conflitos com os gauleses escreveu sobre esse povo de forma ora cortecircs ora
temerosa A esse respeito Gruen (2011 p 142) lembr ―Celts h d gener l reput tion
for greed and untrustworthiness so the historian maintains perfectly capable of
appropriating the property of neighbors or llies 88
Um dos aspectos negativos
mencionado por Poliacutebio eacute a falta de compromisso dos gauleses com juramentos e
promessas Um exemplo dessa falta de credibilidade estaacute na seguinte passagem na qual
Poliacutebio escreveu que os romanos receavam fazer acordo com os gauleses Assim temos
(Histoacuterias II 32 8) ηὰ δὲ ζπιινγηζάκελνη ηήλ ηε Γαιαηηθὴλ ἀζεζίαλ θαὶ δηόηη πξὸο
ὁκνθύινπο ηλ πξνζιακβαλνκέλσλ κέιινπζη πνηεῖζζαη ηὸλ θίλδπλνλ εὐιαβνῦλην
ηνηνύηνηο ἀλδξάζηλ ηνηνύηνπ θαηξνῦ θαὶ πξάγκαηνο θνηλσλεῖλ (―Sin emb rgo les
preocupaba la posible deslealtad de aquellas gentes que iban a entrar en combate con
hombres de lin je fiacuten)89
Eckstein (1995 p 123) lembra que em Poliacutebio o grande
nuacutemero dos baacuterbaros a sua violecircncia deslealdade ganacircncia e comportamento insano
compunham um retrato de terriacutevel desordem de fato o conceito de baacuterbaro conduzia o
indiviacuteduo para uma vida indisciplinada Contudo Poliacutebio fez tambeacutem descriccedilotildees que
louvavam algumas caracteriacutesticas dos celtas como em II157 ηό γε κὴλ πιῆζνο ηλ
ἀλδξλ θαὶ ηὸ κέγεζνο θαὶ θάιινο ηλ ζσκάησλ ἔηη δὲ ηὴλ ἐλ ηνῖο πνιέκνηο ηόικαλ ἐμ
αὐηλ ηλ πξάμεσλ ζαθο ἔζηαη θαηακαζεῖλ (―L s cciones beacutelic s explic raacuten por siacute
mismas el gran nuacutemero de hombres su estatura y prestancia corporales e incluso su
ud ci en l guerr )90
Como lembr Gruen (2011 p 142) ―Polybius sketches those
qu lities th t m de G uls worthy dvers ries for Rome 91
Sobre a influecircncia de Timeu na obra de Poliacutebio Usher (2001 p 104) afirma que
Poliacutebio comeccedilou sua obra historiograacutefica a partir do ponto em que Timeu parou e ainda
dedicou boa parte do livro XII a criticar os meacutetodos de Timeu De fato Poliacutebio buscou
escrever histoacuteria de forma metoacutedica sempre justificando aos leitores seus propoacutesitos e
intenccedilotildees Momigliano (1991 p 64) afirma
Poliacutebio foi o primeiro a fazer um relato de primeira matildeo do interior da
Espanha Descreveu a Gaacutelia ndash ou ao menos a Gaacutelia meridional ndash de uma
forma que representou uma novidade para o puacuteblico grego (3597) Podemos
ver como utilizou o seu conhecimento para os capiacutetulos sobre Aniacutebal na
88
―Os celt s tinh m reput ccedilatildeo comum de serem g n nciosos e natildeo confiaacuteveis ssim sustent v o
historiador perfeitamente capazes de se apoderar d propried de dos vizinhos ou li dos 89
―No ent nto os preocup v possiacutevel desle ld de d quel s gentes que i m entr r em comb te com
homens de linh gem fim 90
―As ccedilotildees beacutelic s explic r m por si mesm s o gr nde nuacutemero de homens su est tur e estrutura
corpor l inclusive su udaacuteci n guerr 91
―Poliacutebio esboccedil ess s qu lid des que torn r m os g uleses dversaacuterios difiacuteceis p r Rom
50
Gaacutelia do livro 3 de suas histoacuterias mas o livro 24 em que resumia as suas
descobertas se perdeu Quando afirmou no livro 12 que ao contraacuterio de
Timeu se dera ao trabalho de visitar as terras dos liacutegures e dos gauleses
estava sendo fiel aos fatos Mas pelo menos no livro 3 e no livro 12 se
esqueceu de dizer que as suas exploraccedilotildees foram possibilitadas pelos
romanos e beneficiaram os romanos
Poliacutebio por conseguinte especialmente criticava em Timeu a metodologia desse
uacuteltimo ndash pois Poliacutebio natildeo soacute escreveu sobre os fatos mas tambeacutem testemunhou vaacuterios
acontecimentos bem como teve uma carreira poliacutetica de prestiacutegio Jaacute Timeu por ter
escrito histoacuteria sem ter tido uma participaccedilatildeo direta na vida puacuteblica deveria ser ndash na
criacutetica de Poliacutebio ndash menos digno de autoridade92
De toda a obra de Poliacutebio o livro mais estudado eacute o VI (embora fragmentado)
pois nele Poliacutebio escreveu uma anaacutelise dos romanos do seu sistema poliacutetico e militar e
de como eles obtiveram a hegemonia no Mediterracircneo Eckstein (In CARTLEDGE et
al 1997 p 190) afirma
The point of the spectacular funeral-processions of the wax imagines of the
ancestors of the telling of traditional stories about the great Roman heroes
was ndash Polybius insisted ndash to create a fierce desire in the new generation to
emul te the virtues of their predecessors (6 53 10 54 3 55 d) (hellip) Thus it
was not physis but nomos that made the Romans great and it is precisely
because the Romans are but men to Polybius that he spends so much time in
Book 6 analyzing the social systems that created Roman success93
Poliacutebio entretanto tambeacutem teve um tom pessimista ao longo de sua obra jaacute que
para ele apoacutes a derrota de Aniacutebal e do grande fluxo de riqueza o nomos (cultura)
romano mais faacutecil de ser corrompido do que a physis (natureza) se perdeu com o
grande fluxo de luxo e riqueza a partir dos espoacutelios de Siracusa em 211 aC94
Usher
92
Oliver no seu c piacutetulo ―History nd rhetoric (In BUGH 2006 p 120 122) det lh m is criacutetic de
Poliacutebio a Timeu ndash bem como a outros historiadores Oliver tambeacutem ressalta que embora o trabalho de
Timeu natildeo tenha sobrevivido ele gozava de grande popularidade entre gregos e romanos e que o fato de
Poliacutebio o ter criticado denota a importacircncia que esse historiador teve (In BUGH 2006 p 122) 93
―O ponto dos espet cul res funer is-procissotildees das imagens de cera dos ancestrais de se contar
histoacuterias tradicionais sobre os grandes heroacuteis romanos era ndash Poliacutebio insistia ndash para criar na nova geraccedilatildeo
um forte desejo de emular as virtudes dos predecessores (VI5310 VI543 VI552) () Assim natildeo
foi a physis mas sim nomos que tornou os romanos grandes e eacute precisamente porque os romanos eram
apenas homens para Poliacutebio que ele gastou bastante tempo no livro VI analisando os sistemas sociais que
cri r m o sucesso rom no 94
Para maior detalhamento sobre esse pessimismo em Poliacutebio e tambeacutem das constataccedilotildees parecidas que
Catatildeo o Censor faz a esse respeito recomendamos o artigo de Eckstein ―Physis and Nomos Polybius
the Romans and Cato the Elder (In CARTLEDGE et al 1997 p 191 e ss) Eckstein nesse mesmo
artigo (p 192 e ss) questiona o suposto pragmatismo de Poliacutebio e afirma que Poliacutebio e Catatildeo
considerado moralista na verdade partilhariam muito a visatildeo de mundo romano que tinham
especialmente a respeito do que eles consideravam como a causa da decadecircncia romana ndash isto eacute as
riquezas obtidas com as conquistas
51
(2001 p 108) ressalta que a grande inovaccedilatildeo de Poliacutebio consistiu no fato de um autor
grego ter usado Roma como seu principal foco e buscado a escrita de uma genuiacutena
histoacuteria universal natildeo centrada na Greacutecia como os antecessores Eacuteforo e Timeu
buscaram fazer Usher tambeacutem afirma (2001 p 109)
Polybius describes his conception of history s pr gm ticlsquo by which he
means that the factual material should consist primarily of events which
directly affect the political situation and their interpretation should likewise
be concerned primarily with political implications This rule out everything
that is merely marvellous terrifying or amusing history is to be a serious
subject if it is to provide instruction for men of state as he intends it
should95
Poliacutebio visou a escrever histoacuteria de forma pragmaacutetica realccedilando aspectos
poliacuteticos e militares que teriam um valor praacutetico para o seu leitor tanto por causa das
explicaccedilotildees e motivaccedilotildees por traacutes dos eventos quanto porque tambeacutem julgava
criticamente o espiacuterito dos homens como exemplos para uma conduta futura
(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639) Lintott tambeacutem afirma (In
BOARDMAN et al 1986 p 639)
Because the whole history of the Mediterranean had become united through
Roman power he believed it was possible to write a universal history which
w s t the s me time coherent nd h d n expl n tory v lue Polybiuslsquo work
was thus the culmination of Hellenistic historiography in that politico-
military history traditionally focused on the city-state was given the breadth
of a universal chronicle His narrative chronologically based on Olympiads
and their constituent years dealt successively with the different regions of the
world known to the Greeks cross-cutting in order to keep parallel stories in
step with one another and stressing their interrelation and convergence At
the same time he transformed the Greek historiography because his central
theme was the rise of an alien empire96
Como Strasburger (1965 p 46) destaca o grande objetivo de Poliacutebio era
descrever e explicar o fenocircmeno da ascensatildeo de Roma em um periacuteodo relativamente
95
―Poliacutebio descreveu su concepccedilatildeo de histoacuteri como ―pr gmaacutetic pelo que ele entendia que o material
factual deveria consistir primeiramente nos eventos que diretamente afetavam uma situaccedilatildeo poliacutetica e a
sua interpretaccedilatildeo deveria do mesmo modo se ater primeiramente agraves implicaccedilotildees poliacuteticas Essa regra
excluiu tudo que eacute meramente maravilhoso aterrorizante ou divertido a histoacuteria deveria ser um assunto
seacuterio se for p r prover instruccedilatildeo os homens de Est do como ele credit que dev ser 96
―Como tod histoacuteri do Mediterracircneo se uniu tr veacutes do poder rom no ele creditou que era possiacutevel
escrever uma histoacuteria universal que seria ao mesmo tempo coerente e de valor explanatoacuterio O trabalho
de Poliacutebio entatildeo foi o apogeu da historiografia heleniacutestica nessa histoacuteria poliacutetico-militar
tradicionalmente focada em cidade-estado a qual foi dada a abrangecircncia de uma crocircnica universal Sua
narrativa cronologicamente baseada nas Olimpiacuteadas e seus anos constituintes lidou sucessivamente com
as diferentes regiotildees do mundo conhecido pelos gregos fazendo um corte para manter histoacuterias paralelas
no mesmo ponto uma com a outra e acentuando sua inter-relaccedilatildeo e convergecircncia Ao mesmo tempo ele
tr nsformou historiogr fi greg porque seu tem centr l er scensatildeo de um impeacuterio estr ngeiro
52
curto de tempo bem como esclarecer as origens da superioridade romana e os fatores
poliacuteticos militares e morais que proporcionaram essa supremacia97
Dessa forma
Poliacutebio escreveu no comeccedilo de suas Histoacuterias (I15)
ηίο γὰξ νὕησο ὑπάξρεη θαῦινο ἢ ῥᾴζπκνο ἀλζξώπσλ ὃο νὐθ ἂλ βνύινηην
γλλαη πο θαὶ ηίλη γέλεη πνιηηείαο ἐπηθξαηεζέληα ζρεδὸλ ἅπαληα ηὰ θαηὰ
ηὴλ νἰθνπκέλελ νὐρ ὅινηο πεληήθνληα θαὶ ηξηζὶλ ἔηεζηλ ὑπὸ κίαλ ἀξρὴλ
ἔπεζε ηὴλ Ῥσκαίσλ ὃ πξόηεξνλ νὐρ εὑξίζθεηαη γεγνλόο
En efecto iquestpuede haber alguacuten hombre tan necio y negligente que no se
interese en conocer coacutemo y por queacute geacutenero de constituicioacuten poliacutetica fue
derrotado casi todo el universo en ciquenta y tres antildeos no cumplidos y cayoacute
bajo el imperio indisputado de los romanos Se puede comprobar que antes
esto no habiacutea ocurrido nunca98
Todavia Poliacutebio natildeo buscou justificar o fenocircmeno do poderio romano mas
apenas admirava a dominaccedilatildeo de um grande poder ndash da mesma forma que o faraacute Catatildeo
o Censor (BARONOWSKI 2011 p61) Tambeacutem de acordo com Dubuisson (1985 p
227) Poliacutebio buscava compreender e natildeo julgar o sucesso dos romanos ele buscava
apreciar esse sucesso em termos de eficaacutecia e natildeo de valor moral natildeo se encontram em
Poliacutebio ndash como mais tarde se encontraraacute em Posidocircnio ndash as tentativas de cunho estoico
de se justificar a dominaccedilatildeo dos romanos devido a suas eminentes qualidades
Em suas Histoacuterias Poliacutebio tambeacutem apresentou retratos de grandes
personalidades como Aniacutebal e o proacuteprio Cipiatildeo Emiliano Ele buscou uma escrita
neutra narrando os acontecimentos de forma clara e precisa pois condenava os usos da
retoacuterica da eacutepica e da trageacutedia na historiografia escrita por autores que foram seus
contemporacircneos (como a longa criacutetica a Timeu) e Poliacutebio teve Tuciacutedides como modelo
de escrita (USHER 2001 p 109 e ss) assim como Tuciacutedides ele foi um historiador
com consciecircncia de seus princiacutepios e metodologia de seu trabalho e sua prioridade
maacutexima era procurar a verdade atraveacutes das mais autecircnticas evidecircncias possiacuteveis
(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 639)
Ao ser o primeiro grego de que temos notiacutecia que foi a Roma viu e conheceu a
cidade ndash e sobretudo escreveu sobre a sua histoacuteria ndash eacute importante notar que Poliacutebio
algumas vezes se referiu aos proacuteprios romanos como baacuterbaros Esse eacute um ponto
97
Para maior detalhamento sobre o estilo de escrita de Poliacutebio recomendamos o capiacutetulo ―Poliacutebio de
Marques (in JOLY 2007 p 45 a 63) 98
―Com efeito pode h ver lgum homem tatildeo neacutescio e negligente que natildeo se interesse em conhecer como
e por que gecircnero de constituiccedilatildeo poliacutetica foi derrotado quase todo o universo em cinquenta e trecircs anos
incompletos e caiu sob o impeacuterio incontestaacutevel dos romanos Pode-se comprovar que antes isso nunca
tinh ocorrido Ess cit ccedilatildeo t mbeacutem foi retir d de Polibio (1981 p 56)
53
polecircmico pois alguns pesquisadores como Hartog (2014 p214) consideram que
Poliacutebio o grego passou a se identificar com os romanos e ao fazer parte desse grupo
ele natildeo se referi os rom nos como baacuterb ros Ch mpion em seu rtigo ―Rom ns s
βάξβαξνη three Polybian speeches and the politics of cultural indetermin cy discord
dessa opiniatildeo e afirma que Poliacutebio chamou os romanos indiretamente de baacuterbaros em
trecircs discursos mencionados em sua obra
De acordo com Champion em apenas uma passagem das suas Histoacuterias Poliacutebio
falou da sua proacutepria boca que os romanos eram baacuterbaros No trecho que Champion
destaca Poliacutebio estaacute criticando Timeu No livro XII Poliacutebio acusou o erro de Timeu na
descriccedilatildeo de um ritu l religioso ch m do ―c v lo de outubro Ness cerimocircni de
acordo com Timeu os romanos sacrificavam um cavalo no campo de Marte em um dia
especiacutefico para relembrar o desastre da guerra de Troia por causa do famoso cavalo de
madeira que levou agrave queda da cidade ndash Timeu considerava os romanos descendentes dos
troianos (CHAMPION 2000 p431) Ao criticar essa explicaccedilatildeo de Timeu Poliacutebio
afirmou que essa praacutetica romana era um costume rotineiro entre quase todos os povos
baacuterbaros Ele disse que se fosse seguir o argumento de Timeu entatildeo todos os baacuterbaros
seriam descendentes dos troianos Poliacutebio acusou Timeu de falta de experiecircncia e
conhecimento superficial ao relacionar o sacrifiacutecio do cavalo em Roma com o mito das
origens troianas dos romanos Champion (2000 p 432) assim explica
In this inst nce Polybius t kes exception to both Tim euslsquo linking of Rome
to the Homeric tradition and his implication that the original Romans were
refugees from the civilized city of Troy Greater learning and diligence
Polybius maintains would have led Timaeus to realize that the answer was
much simpler horse sacrifice is nearly univers l mong βάξβαξνη Rom ns
as barbarians act according to a widespread barbarian custom If Timaeus
had realized this he would not have relayed the silly story of the Trojan
horse in this context99
Quanto aos discursos nos quais Poliacutebio chamou os romanos de baacuterbaros de
forma indireta temos trecircs passagens A primeira delas eacute a fala do embaixador etoacutelio
Agelau no final do livro V das Histoacuterias no contexto da conferecircncia de paz realizada
99
―Dess form Poliacutebio f z objeccedilatildeo t nto o f to de Timeu lig r Rom agrave tr diccedilatildeo homeacuteric qu nto su
implicaccedilatildeo de que os romanos originais eram refugiados da civilizada cidade de Troia Maior estudo e
diligecircncia Poliacutebio sustenta teriam levado Timeu a perceber que a resposta era muito mais simples o
sacrifiacutecio do cavalo eacute quase universal entre os baacuterbaros Os romanos como baacuterbaros agem de acordo
com um costume baacuterbaro muito difundido Se Timeu tivesse percebido isso ele natildeo teria confiado na
boba histoacuteri do c v lo troi no nesse contexto
54
em Naupactus (atual Lepanto) em 217 aC100
Agelau afirmou que seria melhor que os
gregos ao inveacutes de lutarem entre si se unissem contra os invasores baacuterbaros que
assediavam as suas cidades para ele qualquer lado que fosse o vencedor da guerra
entre Roma e Cartago invadiria a Greacutecia e teria um comportamento exacerbado para
com os vencidos Assim Poliacutebio escreveu o discurso de Agelau (Hist V 104 1-7)
ὃο ἔθε δεῖλ κάιηζηα κὲλ κεδέπνηε πνιεκεῖλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιιήινηο ἀιιὰ
κεγάιελ ράξηλ ἔρεηλ ηνῖο ζενῖο εἰ ιέγνληεο ἓλ θαὶ ηαὐηὸ πάληεο θαὶ
ζπκπιέθνληεο ηὰο ρεῖξαο θαζάπεξ νἱ ηνὺο πνηακνὺο δηαβαίλνληεο δύλαηλην
ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο ἀπνηξηβόκελνη ζπζζῴδεηλ ζθο αὐηνὺο θαὶ ηὰο
πόιεηο νὐ κὴλ ἀιι᾽ εἰ ηὸ παξάπαλ ηνῦην κὴ δπλαηόλ θαηά γε ηὸ παξὸλ ἠμίνπ
ζπκθξνλεῖλ θαὶ θπιάηηεζζαη πξντδνκέλνπο ηὸ βάξνο ηλ ζηξαηνπέδσλ θαὶ
ηὸ κέγεζνο ηνῦ ζπλεζηηνο πξὸο ηαῖο δύζεζη πνιέκνπ δῆινλ γὰξ εἶλαη παληὶ
ηῶ θαὶ κεηξίσο πεξὶ ηὰ θνηλὰ ζπνπδάδνληη θαὶ λῦλ ὡο ἐάλ ηε Καξρεδόληνη
Ῥσκαίσλ ἐάλ ηε Ῥσκαῖνη Καξρεδνλίσλ πεξηγέλσληαη ηῶ πνιέκῳ δηόηη θαη᾽
νὐδέλα ηξόπνλ εἰθόο ἐζηη ηνὺο θξαηήζαληαο ἐπὶ ηαῖο Ἰηαιησηλ θαὶ
Σηθειησηλ κεῖλαη δπλαζηείαηο ἥμεηλ δὲ θαὶ δηαηείλεηλ ηὰο ἐπηβνιὰο θαὶ
δπλάκεηο αὑηλ πέξα ηνῦ δένληνο δηόπεξ ἠμίνπ πάληαο κὲλ θπιάμαζζαη ηὸλ
θαηξόλ κάιηζηα δὲ Φίιηππνλ εἶλαη δὲ θπιαθήλ ἐὰλ ἀθέκελνο ηνῦ
θαηαθζείξεηλ ηνὺο Ἕιιελαο θαὶ πνηεῖλ εὐρεηξώηνπο ηνῖο ἐπηβαιινκέλνηο
θαηὰ ηνὐλαληίνλ ὡο ὑπὲξ ἰδίνπ ζώκαηνο βνπιεύεηαη θαὶ θαζόινπ πάλησλ
ηλ ηῆο Ἑιιάδνο κεξλ ὡο νἰθείσλ θαὶ πξνζεθόλησλ αὑηῶ πνηῆηαη
πξόλνηαλ ηνῦηνλ γὰξ ηὸλ ηξόπνλ ρξσκέλνπ ηνῖο πξάγκαζη ηνὺο κὲλ
Ἕιιελαο εὔλνπο ὑπάξρεηλ αὐηῶ θαὶ βεβαίνπο ζπλαγσληζηὰο πξὸο ηὰο
ἐπηβνιάο ηνὺο δ᾽ ἔμσζελ ἧηηνλ ἐπηβνπιεύζεηλ αὐηνῦ ηῇ δπλαζηείᾳ
θαηαπεπιεγκέλνπο ηὴλ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο αὐηὸλ πίζηηλ εἰ δὲ πξαγκάησλ
ὀξέγεηαη πξὸο ηὰο δύζεηο βιέπεηλ αὐηὸλ ἠμίνπ θαὶ ηνῖο ἐλ Ἰηαιίᾳ ζπλεζηζη
πνιέκνηο πξνζέρεηλ ηὸλ λνῦλ ἵλα γελόκελνο ἔθεδξνο ἔκθξσλ πεηξαζῇ ζὺλ
θαηξῶ ηῆο ηλ ὅισλ ἀληηπνηήζαζζαη δπλαζηείαο
Declaroacute que lo maacutes necesario era que los griegos no se hicieran nunca la
guerra mutuamente debiacutean dar muchas gracias a los dioses si lograban decir
todos la misma cosa y estar de acuerdo daacutendose las manos como los que
cruzan un riacuteo con ello rechazariacutean las incursiones de los baacuterbaros se
salvariacutean ellos mismos y sus ciudades En el caso con todo de que ello no
fuera totalmente posible pidioacute que al menos en aquel momento se pusieran
de acuerdo y se precavieran era preciso tener en cuenta los formidables
ejeacutercitos y la magnitud de la guerra que se desarrollaba en occidente Porque
es evidente incluso al que ahora no estaacute muy metido en poliacutetica que en esta
guerra da lo mismo que los romanos venzan a los cartagineses o que eacutestos
triunfen de los romanos ya que miacuterese como se mire lo loacutegico es que los
vencedores no se den por satisfechos con la posesioacuten de Italia y de Sicilia
acudiraacuten aquiacute y ampliaraacuten sus operaciones y desplegaraacuten sus fuerzas maacutes
allaacute de lo que es justo (grifos nossos) 101
100
Trata-se da negociaccedilatildeo de paz entre os etoacutelios e Filipe da Macedocircnia Poliacutebio narrou esse
acontecimento em V 103 e 104 101
―Decl rou que o m is import nte er que os gregos nunc tr v r m guerr mutu mente devi m dar
muitas graccedilas aos deuses se conseguissem dizer todos a mesma coisa e estar de acordo dando-se as matildeos
como os que cruzam um rio com isso rechaccedilariam as incursotildees dos baacuterbaros salvariam a eles mesmos e
as suas cidades No caso contudo de que isso natildeo fosse totalmente possiacutevel pediu que ao menos naquele
momento entrassem em acordo e se preparassem era preciso ter em conta os formidaacuteveis exeacutercitos e a
magnitude da guerra que se desenrolava no ocidente Porque eacute evidente inclusive ao que agora natildeo estaacute
muito metido em poliacutetica que nessa guerra daacute no mesmo os romanos vencerem os cartagineses ou que
estes vencedores triunfem sobre os romanos jaacute que de uma forma ou de outra o loacutegico eacute que os
55
No original grego Agelau disse ηὰο ηλ βαξβάξσλ ἐθόδνπο (as incursotildees dos
baacuterbaros) para se referir aos romanos ou aos cartagineses ndash que haveriam de invadir a
Greacutecia natildeo se contentando apenas com a Itaacutelia ou a Siciacutelia O comportamento baacuterbaro
tambeacutem consistia em usar a forccedila mais do que necessaacuterio
O segundo discurso eacute o de Licisco no livro IX 32 a 40 Licisco embaixador
arcaacutedio foi a Esparta em nome dos macedocircnios para formar uma alianccedila contra Roma e
os seus aliados etoacutelios Sua fala enfatizou os grandes serviccedilos que os macedocircnios
prestaram aos gregos ao ajudar a combater os baacuterbaros no norte e que uma nova alianccedila
deveria ser feita para rechaccedilar os romanos que satildeo comparados com os persas Poliacutebio
dessa forma escreveu o discurso de Licisco (Hist IX 37 5-8) em que ele se dirigiu aos
etoacutelios
ηίζη δὲ λῦλ θνηλσλεῖηε ηλ ἐιπίδσλ ἢ πξὸο πνίαλ παξαθαιεῖηε ηνύηνπο
ζπκκαρίαλ ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ ὅκνηά γε δνθεῖ ηὰ πξάγκαζ᾽
ὑκῖλ ὑπάξρεηλ λῦλ θαὶ πξόηεξνλ ἀιι᾽ νὐ ηἀλαληία ηόηε κὲλ γὰξ ὑπὲξ
ἡγεκνλίαο θαὶ δόμεο ἐθηινηηκεῖζζε πξὸο Ἀραηνὺο θαὶ Μαθεδόλαο ὁκνθύινπο
θαὶ ηὸλ ηνύησλ ἡγεκόλα Φίιηππνλ λῦλ δὲ πεξὶ δνπιείαο ἐλίζηαηαη πόιεκνο
ηνῖο Ἕιιεζη πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπονὓο ὑκεῖο δνθεῖηε κὲλ ἐπηζπζζαη
θαηὰ Φηιίππνπ ιειήζαηε δὲ θαηὰ ζθλ αὐηλ ἐπεζπαζκέλνη θαὶ θαηὰ πάζεο
Ἑιιάδνο
Y ahora iquestcon quieacuten compartiacutes los ideales iquestCon quieacuten exigiacutes de eacutestos que
hagan una alianza iquestNo es con los baacuterbaros iquestY os parece que las cosas
estaacuten como antes iquestNo es exactamente lo contrario Antes disputabais la
hegemoniacutea y el prestigio a aqueos y a macedonios que son linaje vuestro
concretamente a su caudillo Filipo pero en la guerra de ahora unos hombres
baacuterbaros extranjeros pretenden esclavizar a Grecia entera(grifos nossos) 102
Licisco acusou abertamente os etoacutelios de estarem fazendo uma alianccedila com um
povo baacuterbaro ndash no original grego temos ἆξ᾽ νὐ πξὸο ηὴλ ηλ βαξβάξσλ Vemos
novamente a ameaccedila de os romanos escravizarem toda a Greacutecia ndash em grego os homens
estrangeiros (πξὸο ἀιινθύινπο ἀλζξώπνπο)
vencedores natildeo se deem por satisfeitos com a possessatildeo da Itaacutelia e da Siciacutelia chegaratildeo ateacute aqui
mpli ratildeo su s oper ccedilotildees e us ratildeo d s su s forccedil s muito leacutem do que eacute justo (POLIBIO 1981 p 138 e
139) 102
―E gor com quem comp rtilh is os ide is O que exigis desses com quem f zem um li nccedil Natildeo
eacute com os baacuterbaros Parece-vos que as coisas estatildeo como antes Natildeo eacute exatamente o contraacuterio Antes
disputaacuteveis a hegemonia e o prestiacutegio com aqueus e macedocircnios que satildeo uma linhagem sua
concretamente ao seu liacuteder Filipe mas na guerra de agora os homens baacuterbaros estrangeiros pretendem
escr viz r Greacuteci inteir (POLIBIO 1981 p 338 e 339)
56
O uacuteltimo discurso eacute atribuiacutedo de maneira incerta a Trasiacutecrates103
que estaria na
embaixada grega aliada aos macedocircnicos Em 207 aC essa delegaccedilatildeo se dirigiu agrave
Confederaccedilatildeo Etoacutelia (aliada dos romanos) para negociar um tratado Esse discurso
apareceu no livro XI 4-7 das Histoacuterias e o legado destacou aos etoacutelios que todos os
gregos corriam o risco de serem arruinados pelos romanos na descriccedilatildeo de Poliacutebio (XI
5 1-6)
θαηὲ κὲλ γὰξ πνιεκεῖλ ὑπὲξ ηλ Ἑιιήλσλ πξὸο Φίιηππνλ ἵλα ζῳδόκελνη κὴ
πνηζη ηνύηῳ ηὸ πξνζηαηηόκελνλ πνιεκεῖηε δ᾽ ἐπ᾽ ἐμαλδξαπνδηζκῶ θαὶ
θαηαθζνξᾶ ηῆο Ἑιιάδνο ηαῦηα γὰξ αἱ ζπλζῆθαη ιέγνπζηλ ὑκλ αἱ πξὸο
Ῥσκαίνπο αἳ πξόηεξνλ κὲλ ἐλ ηνῖο γξάκκαζηλ ὑπῆξρνλ λῦλ δ᾽ ἐλ ηνῖο
πξάγκαζη ζεσξνῦληαη γηλόκελαη θαὶ ηόηε κὲλ αὐηὰ ηὰ γξάκκαηα ηὴλ
αἰζρύλελ ὑκῖλ ἐπέθεξε λῦλ δὲ δηὰ ηλ ἔξγσλ ὑπὸ ηὴλ ὄςηλ ηνῦην γίλεηαη
πζη θαηαθαλέο ινηπὸλ ὁ κὲλ Φίιηππνο ὄλνκα γίλεηαη θαὶ πξόζρεκα ηνῦ
πνιέκνπ πάζρεη γὰξ νὐδὲλ δεηλόλ ηνύηῳ δὲ ζπκκάρσλ ὑπαξρόλησλ
Πεινπνλλεζίσλ ηλ πιείζησλ Βνησηλ Δὐβνέσλ Φσθέσλ Λνθξλ
Θεηηαιλ Ἠπεηξσηλ θαηὰ ηνύησλ πεπνίεζζε ηὰο ζπλζήθαο ἐθ᾽ ᾧ ηὰ κὲλ
ζώκαηα θαὶ ηἄπηπια Ῥσκαίσλ ὑπάξρεηλ ηὰο δὲ πόιεηο θαὶ ηὴλ ρώξαλ
Αἰησιλ θαὶ θπξηεύζαληεο κὲλ αὐηνὶ πόιεσο νὔη᾽ ἂλ ὑβξίδεηλ ὑπνκείλαηηε
ηνὺο ἐιεπζέξνπο νὔη᾽ ἐκπηπξάλαη ηὰο πόιεηο λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ
ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ
Afirmaacuteis que luchaacuteis contra Filipo en pro de Grecia entera la cual una vez
liberada no deberaacute obedecer las oacuterdenes de aqueacutel La verdad es sin embargo
que combatiacutes para arruinar y esclavizar a todos los griegos Esto es lo que
dice vuestro pacto con los romanos establecido primero en la letra pero que
ahora vemos trasladado a la realidad Y a entonces lo escrito os llenoacute de
oprobio pero ahora los hechos lo han hecho perceptible a todos Filipo es
soacutelo un pretexto nominal para la guerra Eacutel no corre riesgo Se ha aliado con
la mayoriacutea de peloponesios con los beocios los eubeos los focenses los
locros los tesalios y los epirotas y es contra todos estos uacuteltimos que vosotros
habeacuteis pactado en los teacuterminos que siguen l s person s y los ju res
corresponderaacuten los rom nos l s tierr s y l s ciud des los etolioslsquo Si
fuerais vosotros los que tomarais las ciudades no tolerariacuteais que sus
habitantes fueran maltratados ni que se pegara fuego a las poblaciones En
efecto estaacuteis convencidos de que esto es cruel y salvaje(grifos nossos) 104
No discurso acima o comportamento dos romanos eacute tido como cruel e selvagem
ndash em grego Poliacutebio escreveu λνκίδνληεο ὠκὸλ εἶλαη ηὸ ηνηνῦην θαὶ βαξβαξηθόλ Nos trecircs
103
Poliacutebio natildeo especificou quem pronunciou esse discurso mas mencionou apenas que essa foi a fala de
um embaixador Em nota de rodapeacute da sua traduccedilatildeo das Histoacuterias Recort (POLIBIO 1981 p 422 nota
14) afirma que de acordo com Tito Liacutevio quem fez esse discurso foi Trasiacutecrates de Rodes 104
―Afirm stes que lut is contr Filipe em prol de tod Greacuteci qu l um vez libert d natildeo deveraacute
obedecer agraves ordens daquele A verdade eacute poreacutem que combateis para arruinar e escravizar a todos os
gregos Eacute isso que diz o vosso pacto com os romanos estabelecido primeiro na letra mas que agora o
vemos transformado em realidade Jaacute entatildeo o escrito os encheu de vergonha mas agora os feitos o tornou
perceptiacutevel a todos Felipe eacute soacute um pretexto nominal para a guerra Ele natildeo corre risco Se aliou com a
maioria dos peloponesos com os beoacutecios os eubeus os focenses os locros os tessaacutelios e os epirotas e eacute
contra todos esses uacuteltimos que voacutes fizestes o p cto nos termos que se seguem s pesso s e os bens
corresponderi m os rom nos s terr s e s cid des os etoacutelioslsquo Se focircsseis voacutes os que tomaacutesseis s
cidades natildeo tolerariacuteeis que seus habitantes fossem maltratados nem que se ateasse fogo agraves populaccedilotildees
De f to est is convencidos de que isso eacute cruel e selv gem (POLIacuteBIO 1981 p 424)
57
trechos mencionados anteriormente os romanos foram retratados como baacuterbaros que
ameaccedilavam a liberdade grega Champion (2000 p 437) afirma que Poliacutebio teve certo
cuid do o escrever esses discursos ―Polybius then h s f ithfully reported historic l
speeches with the degree of accuracy that his historiographical conventions allowed but
the conditions in which he worked entailed a good deal of what we should call authorial
license 105
Para Poliacutebio o uso desses discursos ndash e desse recurso retoacuterico ndash tinha a
finalidade de causar certo efeito de ressaltar as accedilotildees dos indiviacuteduos seu caraacuteter ou
personalidade ndash ou no caso dos discursos das embaixadas ressaltar a posiccedilatildeo de certos
grupos como por exemplo os etoacutelios (OLIVER In BUGH 2006 p 124) Champion
(2000 p 438) a respeito da criacutetica aos romanos nos discursos acima mencionados
ameniza o tom dessas passagens ao afirmar que esses discursos ndash e o retrato dos
romanos como baacuterbaros ndash devem ser lidos dentro do contexto das interaccedilotildees da poliacutetica
aqueia com os romanos e como o patriota Poliacutebio que era originaacuterio da Aqueia via o
domiacutenio romano Finalizando essa discussatildeo Champion (2000 p 441 e 442) resume
Polybius clearly admired many qualities in the Romans but the Achaean
patriot was also able to assert his independence in giving voice to the
negative aspects of Roman behavior His representations of Romans as both
―honor ry Greeks nd s b rb ri ns le ve the Rom ns in n indetermin te
cultural position106
Na primeira metade do seacuteculo III aC as opiniotildees dos gregos em relaccedilatildeo aos
romanos eram bastante contraditoacuterias ora os romanos eram os descendentes dos
troianos (povo considerado ora civilizado ora baacuterbaro) ora baacuterbaros Champion (2000
p 427) a esse respeito afirma
As early as the mid-fourth century Pl tolsquos pupil Her clides of Pontic
referred to Rome as a Greek city Timaeus writing c 280 incorporated
Rome into the Hellenic-Homeric tradition when he maintained that the
Rom ns were descend nts of the Troj ns (hellip) Cle rly then the Greeks were
willing to think of Romans as part of the civilized world insofar as they lived
in an impressively organized city But Greek attitudes towards Rome in the
late third and second centuries were for the most part instrumental when
Romans acted in Greek interests as in the case of the Acarnanians Greeks
engaged what I have called a politics of cultural assimilation treating
105
―Poliacutebio entatildeo fielmente reportou os discursos histoacutericos com o gr u de cuid de que su s
convenccedilotildees historiograacuteficas lhe permitiram mas as condiccedilotildees nas quais trabalhou implicaram em um
bom acordo do que noacutes chamariacuteamos de licenccedil utor l 106
―Poliacutebio cl r mente dmir v muit s qu lid des dos rom nos m s o queu p triot t mbeacutem er c p z
de afirmar sua independecircncia ao dar voz aos aspectos negativos do comportamento romano As suas
represent ccedilotildees dos rom nos t nto como gregos honoraacuterioslsquo quanto baacuterbaros deixam os romanos em uma
posiccedilatildeo cultur l indetermin d
58
Rom ns s ―honor ry Greeks when they cted in brut l f shion in Greek
l nds the Rom ns bec me βάξβαξνη through Greek politics of cultural
alienation 107
Poliacutebio ao falar dos conflitos entre gauleses e romanos retratou os romanos
como civilizados (Histoacuterias I a V) Para o autor grego o termo baacuterbaro era
essencialmente negativo e soacute faria sentido se oposto ao Helenismo esse termo servia
para designar a falta de temperanccedila moderaccedilatildeo e razatildeo consideradas como as balizas
da sociedade helecircnica civilizada Assim como Isoacutecrates Poliacutebio tambeacutem achava que a
paideia era uma ferramenta para combater a barbaacuterie (CHAMPION 2000 p431)
Poliacutebio profundamente pragmaacutetico defendia o ensino e a escrita da Histoacuteria
como sendo algo positivo aos homens Ele ressaltou que o historiador deveria conhecer
os locais dos quais fala utilizar as fontes disponiacuteveis buscar a exatidatildeo em sua obra e
ser imparcial O historiador tambeacutem deveria buscar as causas dos eventos e narrar as
tradiccedilotildees costumes e instituiccedilotildees das naccedilotildees ou povos mencionados (JARDEacute 1977 p
85 e 86)
122 ndash Catatildeo o Censor
O contato dos romanos com os gauleses foi bem diferente da experiecircncia que os
gregos tiveram Desde os primoacuterdios de sua histoacuteria os romanos sofriam com as
ameaccedilas dos povos que estavam proacuteximos o que resultou no saque de Roma e
posteriormente durante a consolidaccedilatildeo do impeacuterio romano com inuacutemeras batalhas
contra povos estrangeiros como vimos na introduccedilatildeo deste trabalho Os romanos
embora mais proacuteximos dos celtas todavia recorriam aos escritores gregos para tratados
de etnografia jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo natildeo era o foco dos romanos ndash pelo menos
natildeo haacute fontes latinas que tratam de etnografia que nos chegaram Do material que haacute
disponiacutevel Catatildeo se destacou como o primeiro nome romano que escreveu a respeito
dos gauleses jaacute no seacuteculo II aC
107
―Jaacute em me dos do seacuteculo qu rto o pupilo de Platatildeo Heraacuteclides de Pocircntica referiu-se a Roma como
uma cidade grega Timeu escrevendo por volta do ano 280 incorporou Roma na tradiccedilatildeo helecircnica-
homeacuterica quando afirmou que os romanos eram descendentes dos troianos () Claramente entatildeo os
gregos ansiavam por considerar os romanos como parte do mundo civilizado jaacute que eles viviam em uma
cidade impressionantemente organizada Mas as atitudes dos gregos perante Roma no fim do seacuteculo III e
no seacuteculo II aC foram na maior parte instrumentais quando os romanos agiam de acordo com os
interesses gregos como no caso dos acarnacircnios os gregos aderiram ao que chamei de poliacutetica de
ssimil ccedilatildeo cultur l tr t ndo os rom nos como ―gregos honoraacuterios qu ndo eles gi m de m neir
brutal nas terras gregas os romanos se tornaram baacuterbaros atraveacutes d poliacutetic greg de lien ccedilatildeo cultur l
59
Catatildeo o Censor tambeacutem conhecido como Catatildeo o Velho viveu durante o
periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica Nasceu em Tuacutesculo em 234 aC oriundo de uma
proacutespera famiacutelia plebeia de fazendeiros e obteve vaacuterias magistraturas Em 204 aC
Catatildeo entatildeo questor acompanhou Cipiatildeo ateacute a Siciacutelia e agrave Aacutefrica Em 198 aC foi pretor
no governo da Sardenha e em 195 aC obteve o consulado exercido por ele e por
Valeacuterio Flaco108
Dois anos antes em 197 aC a proviacutencia da Hispacircnia fora dividida em
Citerior e Ulterior para facilitar o domiacutenio romano sobre esse territoacuterio que se rebelara
tanto com o jugo de Cartago quanto com o jugo de Roma Catatildeo apoacutes ter sido eleito
cocircnsul recebeu o governo da Hispacircnia em 195 aC para colocar fim a essa revolta
(CONTE 1999 p 85) Em 184 aC Catatildeo tornou-se censor e combateu com rigor o
luxo excessivo dos romanos causado sobretudo pelas riquezas que afluiacuteram para Roma
atraveacutes das vitoacuterias obtidas em Siracusa (211 aC) e posteriormente em Pidna (168
aC) Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 361) destaca que Catatildeo tentou criar
taxas para coibir esse luxo excessivo mas que falhou nesse propoacutesito Em 155 aC
tentando combater a corrupccedilatildeo dos valores romanos perante a cultura grega que fazia
sucesso entre a elite da Cidade Catatildeo se manifestou contra uma embaixada de filoacutesofos
enviados por Atenas expulsando-os de Roma109
Apesar das tentativas de coibir a
crescente influecircncia grega os romanos passaram cada vez mais a considerar que a
educaccedilatildeo helecircnica era sinocircnimo de refinamento os filhos da elite eram criados com
pedagogos e educadores helecircnicos muitas vezes trazidos a Roma na condiccedilatildeo de
escravos e depois esses jovens iam completar seus estudos em cidades gregas Em 153
aC Catatildeo ao visitar Cartago ndash que ressurgia apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica ndash
manifestou a ideia de que essa cidade devia ser destruiacuteda apoacutes uma proliacutefica vida
puacuteblica ele faleceu em 149 aC110
Pela sua produccedilatildeo literaacuteria Catatildeo eacute considerado em
alguns compecircndios de literatura ndash como no proacuteprio livro de Conte (1999 p 86) ndash como
o fundador da prosa latina pela sua obra que nos chegou quase completa o De
108
Durante a Repuacuteblica romana o consulado ndash mais alto degrau das magistraturas ndash era exercido por dois
indiviacuteduos que tinham as seguintes atribuiccedilotildees convocar e presidir o Senado e os comiacutecios fazer
executar as decisotildees do Senado e do povo recrutar e comandar exeacutercitos (BORNECQUE MORNET
2002 p 91) 109
Gruen no capiacutetulo ―C to nd Hellenism (1992 p 52 83) question tatildeo bem est belecid ntip ti
de Catatildeo com os gregos discutindo certos aspectos filohelecircnicos por parte de Catatildeo bem como sobre sua
educaccedilatildeo e conhecimento da cultura grega 110
Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Catatildeo o livro de Conte (1999 p 85 e
86)
60
agricultura (Sobre a agricultura) com conselhos sobre a vida no campo111
Dos
discursos que proferiu no senado temos apenas fragmentos
Outra obra bastante conhecida de Catatildeo eacute Origines (Origens) em sete livros
escrita por ele quando jaacute estava em idade avanccedilada (CONTE 1999 p 86) O primeiro
livro era dedicado agrave fundaccedilatildeo de Roma o segundo e terceiro livros falavam sobre as
origens das cidades italianas O quarto livro era sobre a Primeira Guerra Puacutenica o
quinto sobre a Segunda Guerra Puacutenica e os dois uacuteltimos livros narravam os eventos
romanos ateacute a pretura de Seacutervio Sulpiacutecio Galba em 152 aC (CONTE 1999 p 87)
Origines eacute considerada a primeira obra latina em prosa dedicada agrave histoacuteria de que temos
notiacutecia112
Os romanos Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento (que nasceram alguns anos antes de
Catatildeo) escreveram sobre a histoacuteria latina em prosa mas em liacutengua grega ndash dos quais
temos apenas poucos fragmentos (ASTIN 1978 p 221) Pelo que nos eacute possiacutevel
conhecer Faacutebio Pictor e Ciacutencio Alimento foram os primeiros historiadores a escrever
exclusivamente sobre a histoacuteria romana113
Como Lintott (In BOARDMAN et al
1986 p 637) ressalta ambos viveram no periacuteodo da Segunda Guerra Puacutenica e
ocuparam cargos puacuteblicos aleacutem disso eles tambeacutem escreveram suas obras histoacutericas
desde os primoacuterdios de Roma Deve-se levar em conta que Faacutebio Pictor e Ciacutencio
Alimento evidentemente ao escrever sua obra histoacuterica em grego tinham em mente o
puacuteblico helecircnico tanto o da Magna Greacutecia e da Siciacutelia como tambeacutem o da proacutepria
Greacutecia De cordo com Emilio G bb (2000 p 66) ―questo interess mento per un
pubblico greco () voleva presentare Roma nel quadro della storia greca per garantirne
in certo senso l legittimitagrave non solo dell presenz m nche delllsquoegemoni che
nd v conquist ndo 114
Conhecido por seu caraacuteter anti-helecircnico Catatildeo escreveu suas
obras em latim como citamos acima sobre as Origines para impor a liacutengua latina como
veiacuteculo de tratados em prosa
111
Em portuguecircs temos a traduccedilatildeo do De agricultura feita por Trevizam (2016) 112
Para maior aprofundamento sobre as Origens e do que pode ser entendido a seu respeito a partir de
seus fragmentos e de fontes sobre essa obra recomendamos Astin (1978) 113
Beck escreve de forma mais aprofundada sobre Faacutebio Pictor e sua obra no capiacutetulo ―The early Roman
tradition (In MARINCOLA 2007 v 1 p 259 e 260) Nesse mesmo capiacutetulo (p 263 e ss) Beck
tambeacutem fala sobre outros autores de histoacuteria latina como Luacutecio Calpuacuternio Pisatildeo Frugi Luacutecio Caacutessio
Hemina entre outros cujo trabalho nos chegou de forma bastante fragmentada 114
―Esse interesse por um puacuteblico grego ( ) vis v present r Rom no qu dro d histoacuteri greg p r
garantir em certo sentido a legitimidade natildeo soacute da presenccedila mas tambeacutem da hegemonia que ela andava
conquist ndo
61
Ecircnio imigrante de origem messaacutepia que foi trazido a Roma por Catatildeo compocircs
um poema eacutepico em latim sobre a histoacuteria de Roma desde a queda de Troia ateacute a eacutepoca
que lhe era contemporacircnea Pelo fato de a narrativa desenrolar-se ano a ano a obra
recebeu o nome de Annales (Anais) Aleacutem da inovaccedilatildeo de uma obra historiograacutefica em
latim ter sido escrita em versos outro fator ateacute entatildeo ineacutedito foi o fato de a histoacuteria de
Roma ter sido escrita por algueacutem que natildeo era da elite da urbe (BECK In
MARINCOLA 2007 v 1 p 262) Em 184 aC Ecircnio conseguiu a cidadania romana
Essa premissa de autores latinos de escrever em grego para um puacuteblico helecircnico
ndash que durou ateacute metade do seacuteculo II aC ndash cessou com a hegemonia de Roma no
Mediterracircneo ao vencer Cartago e conquistar a Greacutecia a necessidade de se justificar ou
de convencer os outros povos do poderio romano se encerrou (GABBA 2000 p 66 e
67) Gabba (2000 p 67) afirma
Catone aveva giagrave reagito alla tendenza e alle finalitagrave della storiografia in
greco con le sue Origines nelle quali pur accanto al riconoscimento di
presenze greche nella fase protostorica di Roma si insisteva piuttosto sulle
connessioni italiche di Roma e della sua storia Catone si rivolgeva ad un
pubblico romano-italico e per questo inseriva nel suo texto anche alcune
importanti orazioni politiche da lui pronunciate115
A escolha de Catatildeo por escrever em latim tambeacutem se justificava pelo seu notaacutevel
repuacutedio agrave influecircncia da cultura grega em Roma Ao contraacuterio dos autores analistas isto
eacute que escreviam a histoacuteria ano a ano Catatildeo escolheu escrever sua histoacuteria por temas e
acontecimentos Pimentel (1997 p 53) ressalta outro aspecto interessante dessa obra
Catatildeo inovou tambeacutem porque entendeu a histoacuteria natildeo soacute em funccedilatildeo de Roma
mas sim de toda a Itaacutelia e dos povos que a habitavam e porque sobretudo nos
quatro uacuteltimos livros encarou a gesta de Roma sob o prisma de todos os
conflitos em que se envolveu onde quer que se dessem Tudo que viu e viveu
durante a segunda Guerra Puacutenica na Hispacircnia na Siciacutelia ou na Greacutecia
serviu-lhe obviamente como factor enriquecedor das Origines Assim os
fragmentos que chegaram ateacute noacutes respiram o contacto proacuteximo com terras
gentes lendas em informaccedilotildees pormenorizadas e amiuacutede pitorescas que nos
revelam o militar o administrador o poliacutetico mas tambeacutem o homem curioso
e interessado que Catatildeo era Assim sabemos que os Liacutegures eram mentirosos
e ignorantes que a maior parte dos gauleses tinha como ideal de vida falar
bem e combater muito ou ouvimos Catatildeo evocar a riqueza da Peniacutensula
Ibeacuterica com os seus rios cheios de peixe e ouro as suas minas de ferro e
prata
115
―C tatildeo jaacute h vi re gido contr tendecircnci e fin lid de d historiogr fi em grego com su s Origens
nas quais por questatildeo do reconhecimento da presenccedila grega na fase proto-histoacuterica de Roma ele insistia
sobretudo nas conexotildees itaacutelicas de Roma e da sua histoacuteria Catatildeo se dirigia a um puacuteblico romano-itaacutelico e
por isso inseri no seu texto t mbeacutem lguns import ntes discursos poliacuteticos pronunci dos por ele
62
Como Conte (1999 p 87) relembra essa abordagem histoacuterica de Catatildeo ndash
considerando sua escrita natildeo soacute sobre Roma mas tambeacutem sobre os outros povos itaacutelicos
que contribuiacuteram para a grandeza de Roma ndash se justificaria pelo fato de o proacuteprio Catatildeo
ser um homo nouus que natildeo era originaacuterio da urbe Aleacutem dos povos da Itaacutelia ele
escreveu sobre os gauleses que habitavam ao norte da peniacutensula itaacutelica Catatildeo tambeacutem
acrescentou agrave narrativa digressotildees e relatos maravilhosos como Heroacutedoto jaacute fizera
antes e tambeacutem algumas versotildees dos seus discursos (LINTOTT In BOARDMAN et
al 1986 p 639)
Por ter viajado por vaacuterias proviacutencias e territoacuterios Catatildeo tambeacutem abordou os
povos estrangeiros em Origines sobretudo costumes dos hispanos e africanos jaacute que ele
teve maior contato com esses povos (CONTE 1999 p 87) Quanto aos gauleses desde
jovem Catatildeo jaacute tivera contato com eles pois lutara na batalha de Metauro contra o liacuteder
cartaginecircs Asdruacutebal que tinha o apoio dos celtas durante a Segunda Guerra Puacutenica Ateacute
entatildeo no periacuteodo do seacuteculo III a II aC os gregos demonstraram interesse maior sobre
os celtas do que autores latinos Catatildeo que viveu no mesmo periacuteodo que Poliacutebio parece
ter sido o uacutenico romano que se interessou por escrever sobre os gauleses pelo que
temos notiacutecia Sobre a curiosidade que Catatildeo tinha por outros povos Momigliano
(1991 p 63) esclarece
Catatildeo tinha um interesse instintivo e talvez respeito pelas populaccedilotildees
vencidas da Itaacutelia e das proviacutencias Observou os celtas com atenccedilatildeo e parece
ter sido o primeiro a consideraacute-los rgutos ―pler que G lli du s res
industriosissime persequitur rem milit rem et rgute loqui(fr 34 Peter) ( )
Os celtas assomavam enormes em Origines de Catatildeo Ele tentou ser claro
quanto a lugares e nomes Encontrou um ramo dos perigosos cenomanes
entre os volcas natildeo distante de Marselha Provavelmente foi o primeiro a
incluir os gauleses em uma histoacuteria da Itaacutelia embora Faacutebio Pictor que em 225
aC lutou contra eles estivesse fadado a dizer algo sobre as suas
caracteriacutesticas Enquanto Catatildeo ainda estava vivo a classe governante
romana fez um esforccedilo deliberado para comeccedilar a conhecer melhor os celtas
Infelizmente o uacutenico fragmento que nos chegou de Catatildeo que menciona os
celt s eacute o que foi cit do cim por Momigli no Temos ―pleraque Gallia duas res
industriosissime persequitur rem militarem et argute loqui 116
Esse fragmento eacute do
livro II das Origens e diz que ― m ior p rte d Gaacuteli busc du s cois s com muit
dedic ccedilatildeo praacutetic milit r e o f l r rgut mente Erich Gruen consider que embor
breve este fragmento possui relevacircncia para percebermos que Catatildeo natildeo se referia de
116
Fragmento nuacutemero 34 retirado de Cato (In PETER 1914 v1)
63
maneira pejorativa aos gauleses N s p l vr s de Gruen (2011 p 146) ―the comment
brief though it be evidently represents a general judgment and by no means a hostile
one 117
13 ndash Os celtas vistos pelas fontes greco-romanas do seacuteculo I aC a I dC
Depois de Poliacutebio o proacuteximo nome relevante da Greacutecia que tratou dos galos foi
o historiador Posidocircnio
131 ndash Posidocircnio
Nascido em Apameia na atual Siacuteria permaneceu por muito tempo em Rodes ndash
daiacute ser conhecido tanto por Posidocircnio de Apameia ou de Rodes Viveu provavelmente
entre os anos 135 a 51 aC Momigliano (1991 p 65) a respeito de Posidocircnio diz
Podemos ser mais categoacutericos a respeito de Artemidoro de Eacutefeso e Posidocircnio
de Rodes a quem Estrabatildeo tratou como suas fontes mais autorizadas para a
Espanha e a Gaacutelia Ambos eram embaixadores em Roma de suas proacuteprias
cidades ndash ou seja eram muito bem-vindos pela classe dirigente de Roma ()
Eacute evidente que Artemidoro e Posidocircnio viajaram pela Espanha e pela Gaacutelia
com o apoio das autoridades romanas
Posidocircnio foi disciacutepulo do filoacutesofo Paneacutecio responsaacutevel pela difusatildeo do
Estoicismo em Rom Sobre Posidocircnio Pereir (1993 p 97) diz ―( ) o seu gosto pel
observaccedilatildeo tanto o levava a descrever costumes de povos como a estudar o fluxo das
mareacutes ou os fenocircmenos de vulc nismo De cordo com Str sburger (1965 p 40)
Posidocircnio participou de uma grande viagem exploratoacuteria por Marselha e sudeste da
Gaacutelia pela Hispacircnia e sua costa atlacircntica e por algumas ilhas a oeste do Mediterracircneo
Entre o inverno de 87 e 86 aC ele foi a Roma como embaixador e fez uma visita a
Maacuterio entatildeo bastante doente A obra Histoacuterias de Posidocircnio era um trabalho
monumental muito usada e citada por autores posteriores e era composta de
aproximadamente 52 livros que narravam acontecimentos a partir do ano 146 aC ndash
dando continuidade agrave Histoacuteria de Poliacutebio ndash ateacute provavelmente os anos 80 do primeiro
seacuteculo antes de Cristo Kidd (1999 p 25) assim afirma sobre a obra histoacuterica de
117
―O comentaacuterio embor breve evidentemente represent um julg mento gener list e de modo lgum
hostil
64
Posidocircnio ―its r nge nd scope w s formid ble covering the whole of Mediterranean
centred world from Asia Minor to Spain Egypt and Africa to Gaul and the northern
peoples to Jutl nd nd of course t the centre the Rom n nd Greek worlds 118
Por sua formaccedilatildeo filosoacutefica ndash o Estoicismo focava sobretudo na questatildeo social
do homem e seu aprimoramento ndash Posidocircnio escrevia histoacuteria de um ponto de vista
moralista e se preocupava com a razatildeo de ser da natureza da vida e dos acontecimentos
humanos 119
Segundo Bringm nn (In CARTLEDGE et l 1997 p 145) ― s
philosopher he held p rticul r theory on the origins of m nlsquos ctions nd reg rded
history as a source of material to support his views on the psychological causes of
hum n error 120
Isso justifica o tamanho monumental de sua obra histoacuterica e atraveacutes
dela Posidocircnio alcanccedilou grande prestiacutegio entre os romanos a ponto de Ciacutecero pedir a
ele para compor uma histoacuteria sobre seu consulado com base em suas anotaccedilotildees ndash ou
comentarii (HAHM In HAASE 1989 p1326)
Posidocircnio ndash tambeacutem de acordo com a filosofia estoica ndash defendia o bom
tratamento dos povos subjugados como um dever moral e necessidade praacutetica dos
Estados imperialistas (BARONOWSKI 2011 p 59) Para Posidocircnio essa postura justa
e comedida em relaccedilatildeo agraves naccedilotildees conquistadas era o criteacuterio pelo qual se justificava o
domiacutenio imperialista por conseguinte sua doutrina entatildeo incorpora a abordagem
utilitaacuteria de Tuciacutedides que acreditava que a dominaccedilatildeo imperialista poderia ser um
instrumento de progresso e civilizaccedilatildeo mas que tambeacutem tatildeo grande poder oferecia
perigo caso se degenerasse em busca do proacuteprio interesse egoiacutesta (BARONOWSKI
2011 p 60) Essa questatildeo do dever moral do romano de bem tratar os vencidos depois
apareceraacute em autores latinos e gregos como Filodemo Ciacutecero Saluacutestio Diodoro
Nicolau de Damasco Dioniacutesio de Halicarnasso Pompeu Trogo e Tito Liacutevio essa
doutrina ainda de acordo com Baronowski (2011 p 59) atinge seu aacutepice nos
memoraacuteveis versos de Virgiacutelio nos quais ele defende que a vocaccedilatildeo do romano eacute
subjugar os vencidos e trataacute-los com paz justiccedila e clemecircncia121
118
―seu lc nce e escopo er m formidaacuteveis cobrindo todo o mundo centr do no Mediterracircneo desde
Aacutesia Menor ateacute a Espanha Egito e Aacutefrica ateacute a Gaacutelia e os povos do norte ateacute a terra dos jutas e claro no
centro os mundos rom no e grego 119
Para maior aprofundamento sobre Posidocircnio e sua teoria de causas histoacutericas recomendamos Hahm
(In HAASE 1989 p 1325 a 1361) 120
―Como filoacutesofo ele credit v em uma teoria particular sobre as origens das accedilotildees dos homens e
considerava a histoacuteria como fonte de material para embasar seus pontos de vista sobre as causas
psicoloacutegic s do erro hum no 121
tu regere imperio populos Romane memento (hae tibi erunt artes) pacique imponere morem
parcere subiectis et debellare superbos ―Tu rom no lembr -te de comandar os povos com tua
65
Posidocircnio era sistemaacutetico em suas descriccedilotildees etnograacuteficas e tinha talento para
narrar as singularidades dos povos retratados e tambeacutem se concentrava em etnografia
para de acordo com sua teoria de causa e efeito identificar os aspectos caracteriacutesticos
de indiviacuteduos e naccedilotildees e relacionar esses aspectos com o sucesso ou fracasso que
obtinham (HAHM In HAASE 1989 p1342)122
Hahm (In HAASE 1989 p1344 e
1345) ainda acrescenta
The character traits of nations and social groups which for Posidonius made
the actions and fortunes of these groups intelligible could be discovered in
their constitutions laws and customs This is presumably the reason that
Posidonius p ys so much ttention to ethnology in both his Historylsquo nd On
the Oce nlsquo The best ex mple in the surviving fr gments of the Historylsquo is
his discussion of the customs of the Celts This probably came as a prelude to
his account of the war between the Romans and the Celtic tribes who lived in
the foothills of the Alps in southeastern France namely the Allobroges and
the Averni The war culminated in decisive victories for the Romans in 121
and 120 BC In introducing the Celts Posidonius described in great detail
their customs their diet and eating habits their wines and drinking customs
their protocol and entertainment at banquets their status symbols and their
competitions for honor123
Posidocircnio apreciava a estrutura hieraacuterquica dos celtas porque aleacutem de sua
organizaccedilatildeo era tambeacutem uma sociedade extravagante (MOMIGLIANO 1991 p 66)
De cordo com Momigli no (1991 p 67) ―Posidocircnio confessou que princiacutepio se
perturbara com o espetaacuteculo de cabeccedilas humanas cravadas na entrada das casas
aristocraacuteticas celtas poreacutem mais tarde laquohabituando-se a isso ele podia toleraacute-lo com
serenid deraquo (Estr batildeo IV 4 5) Posidocircnio descreveu isso no fr gmento 274 (F55 J c)
do qual temos o seguinte registro em Estrabatildeo (IV 4 5)
πξόζεζηη δὲ ηῇ ἀλνίᾳ θαὶ ηὸ βάξβαξνλ θαὶ ηὸ ἔθθπινλ ὃ ηνῖο πξνζβόξξνηο
ἔζλεζη παξαθνινπζεῖ πιεῖζηνλ ηὸ ἀπὸ ηῆο κάρεο ἀπηόληαο ηὰο θεθαιὰο ηλ
πνιεκίσλ ἐμάπηεηλ ἐθ ηλ αὐρέλσλ ηλ ἵππσλ θνκίζαληαο δὲ
autoridade (essas seratildeo tuas artes) impor a lei em benefiacutecio da paz poupar os vencidos e dominar os
soberbos (Virgiacutelio Eneida VI 851 a 853 traduccedilatildeo nossa) 122
Sobre a relaccedilatildeo da escrita da histoacuteria com o estoicismo praticado por Posidocircnio recomendamos o
capiacutetulo de Hahm (In HAASE 1989 p 1357 a 1361) 123
―Os tr ccedilos c r cteriacutesticos d s n ccedilotildees e grupos soci is que p r Posidocircnio tornaram inteligiacuteveis as
accedilotildees e destinos desses grupos poderiam ser descobertos em suas estruturas leis e costumes Essa eacute a
r zatildeo provaacutevel pel qu l Posidocircnio prest muit tenccedilatildeo n etnologi t nto n su Histoacuteri lsquo qu nto no
Sobre o oce nolsquo O melhor exemplo dos fr gmentos supeacuterstites d Histoacuteri lsquo eacute su discussatildeo sobre os
costumes dos celtas Isso provavelmente seria um preluacutedio para seu relato sobre a guerra entre romanos e
as tribos celtas que viviam ao peacute dos Alpes no sudeste da Franccedila chamados de aloacutebroges e de avernos A
guerra culminou em decisivas vitoacuterias dos romanos em 121 e em 120 aC Ao introduzir os celtas
Posidocircnio descreveu em grandes detalhes seus costumes dieta e haacutebitos alimentares seus vinhos e
costumes ao beber seu protocolo e divertimento nos banquetes seus siacutembolos de status e suas
competiccedilotildees pel honr
66
πξνζπαηηαιεύεηλ ηνῖο πξνππιαίνηο θεζὶ γνῦλ Πνζεηδώληνο αὐηὸο ἰδεῖλ
ηαύηελ ηὴλ ζέαλ πνιιαρνῦ θαὶ ηὸ κὲλ πξηνλ ἀεζίδεζζαη κεηὰ δὲ ηαῦηα
θέξεηλ πξᾴσο δηὰ ηὴλ ζπλήζεηαλ
Again in addition to their witlessness there is also that custom barbarous
and exotic which attends most of the northern tribes mdash mean the fact that
when they depart from the battle they hang the heads of their enemies from
the necks of their horses and when they have brought them home nail the
spectacle to the entrances of their homes At any rate Poseidonius says that
he himself saw this spectacle in many places and that although at first he
loathed it afterwards through his familiarity with it he could bear it
calmly124
O fato de os gauleses colecionarem as cabeccedilas dos inimigos era um toacutepos de
representaccedilatildeo da selvageria baacuterbara que tambeacutem se referia a outros povos como os
citas125
Posidocircnio ainda serviu de fonte para Ceacutesar que provavelmente o usou como
referecircncia para as suas digressotildees etnograacuteficas no De bello Gallico e teve trechos
citados por Estrabatildeo Plutarco e Ateneu (HAHM In HAASE 1989 p1326)
Momigliano (1991 p 67) tambeacutem afirma
Foi Posidocircnio quem definiu o lugar dos druidas dos vates e dos bardos na
sociedade celta Toda a tradiccedilatildeo posterior praticamente depende dele ()
Mas a sua simpatia pelos druidas vates e bardos significa um
reconhecimento autecircntico da funccedilatildeo que desempenhavam no mundo celta
Para Posidocircnio os druidas eram mais importantes do que os outros dois
grupos porque proporcionavam lideranccedila conceitos morais e religiosos e
justiccedila
Infelizmente tambeacutem a obra de Posidocircnio nos chegou excessivamente
fragmentada e muito do que se sabe a respeito de seu trabalho veio atraveacutes da obra de
Estrabatildeo sobre o qual falaremos mais agrave frente126
132 ndash Ciacutecero e a presenccedila dos gauleses em seu discurso Pro Fonteio
Nascido em 106 aC em Arpino em uma proacutespera famiacutelia equestre Ciacutecero
concluiu com sucesso seus estudos em Roma Em 89 aC participou da Guerra Social
124
―M is um vez leacutem d su f lt de discernimento existe t mbeacutem quele costume baacuterb ro e exoacutetico
que eacute comum entre muitas das tribos do Norte ndash que eacute o fato de eles ao deixarem a batalha pendurarem
as cabeccedilas dos inimigos nos pescoccedilos dos seus cavalos e quando as trazem para casa as exibem como
espetaacuteculo na entrada de suas moradias De qualquer forma Posidocircnio diz que ele mesmo viu esse
espetaacuteculo em muitos lugares e que apesar de primeiramente ter abominado isso mais tarde ao se
familiarizar com esse costume ele pode toleraacute-lo c lm mente Trecho retir do da traduccedilatildeo de James
(STRABO 1954 v 2 p249) 125
Cf Heroacutedoto (IV 64) 126
Muitos fragmentos de Posidocircnio tambeacutem podem ser encontrados em Ateneu que escreveu no final do
seacuteculo II dC e abordavam sobretudo haacutebitos alimentares
67
sob comando de Pompeu Estrabatildeo pai de Pompeu Magno Entre 79 e 77 aC Ciacutecero
fez uma longa viagem pela Greacutecia onde estudou filosofia e retoacuterica essa viagem
tambeacutem foi um pretexto para Ciacutecero escapar dos inimigos que fez entre os membros do
regime de Sila Foi questor na Siciacutelia e considerado um governador honesto e
cuidadoso Por esse motivo em 70 aC Ciacutecero aceitou o pedido dos sicilianos de
acusar Verres ndash ex governador da Siciacutelia ndash de maacute administraccedilatildeo e corrupccedilatildeo Seu triunfo
sobre Verres trouxe-lhe a reputaccedilatildeo de ser o maior orador de Roma O auge de sua
carreira poliacutetica foi em 63 aC quando foi cocircnsul e desbaratou a conjuraccedilatildeo de Catilina
Ciacutecero partiu para o exiacutelio em 58 aC ao ser acusado de excessos no julgamento dos
cuacutemplices de Catilina (que foram condenados agrave morte) mas jaacute em 57 aC retornou a
Roma Durante a Guerra Civil precipitada por Ceacutesar e Pompeu em 49 aC Ciacutecero ficou
do lado deste uacuteltimo Apoacutes a morte de Ceacutesar Ciacutecero fez os discursos intitulados
Filiacutepicas contra Marco Antocircnio Com o triunvirato firmado entre Marco Antocircnio
Otaacutevio e Leacutepido Ciacutecero tornou-se proscrito e foi assassinado por cuacutemplices de Antocircnio
em 43 aC127
Ciacutecero era grande admirador de Catatildeo o Censor mas ao contraacuterio deste uacuteltimo
abordou de maneira superficial os celtas em suas obras Em seu discurso Pro Fonteio (A
favor de Fonteio) do ano 69 aC Ciacutecero defendeu Fonteio que era propretor na Gaacutelia
das acusaccedilotildees dos celtas de que ele governava mal Momigliano (1991 p 68) ressalta
Pelo que sabemos posteriormente Ciacutecero jamais voltou a tratar seacuterio do tema
da sociedade celta ndash nem sequer no discurso a Ceacutesar De provinciis
consularibus Os livros e existem tantos sobre o pensamento poliacutetico de
Ciacutecero podiam ao menos mencionar a temeraacuteria imprecisatildeo das suas noccedilotildees
sobre os provincianos que no caso dos gauleses equivalia ao desprezo
Apesar da posiccedilatildeo de Momigliano a retoacuterica da representaccedilatildeo do outro em
Ciacutecero natildeo era tatildeo simples assim Eacute importante ter em mente que no contexto juriacutedico
Ciacutecero atraveacutes da descriccedilatildeo de povos e seu caraacuteter (ethos) tinha um objetivo em sua
fala ao tribunal que era acusar ou tentar defender algueacutem Como Vasaly (1993 p 131)
afirma a imagem que Ciacutecero apresentava agrave sua audiecircncia era em essecircncia uma
construccedilatildeo verbal que ele tinha liberdade para manipular do melhor jeito que lhe
aprouvesse Para ser bem sucedido ele deveria levar em conta dois aspectos um que as
127
Utilizamos como referecircncia bibliograacutefica para a biografia de Ciacutecero o livro de Conte (1999 p 175 e
176)
68
imagens de mundo criadas por ele deveriam ser de acordo com seus objetivos e dois
que essas imagens parecessem uma acurada reflexatildeo da realidade para a sua audiecircncia
natildeo importava se essas imagens eram reais ou falsas o que importava era se essas
imagens parecessem reais (VASALY 1993 p 132) Sobre povos estrangeiros que
reportavam abusos de governadores romanos em suas proviacutencias a estrateacutegia mais
comum era a defesa tentar impugnar o caraacuteter de toda a raccedila agrave qual esse povo pertencia
e geralmente essas reclamaccedilotildees vinham das proviacutencias que tinham sido submetidas agrave
forccedila (VASALY 1993 p 191)
Voltamos agora a nossa atenccedilatildeo ao Pro Fonteio Esse discurso trata da defesa
que Ciacutecero fez de Marco Fonteio acusado de maacute administraccedilatildeo durante sua pretura na
Gaacutelia Transalpina O Pro Fonteio nos chegou fragmentado e natildeo se sabe qual foi a
decisatildeo dos juiacutezes sobre o processo (VASALY 1993 p 193) A proviacutencia da Gaacutelia
Transalpina foi organizada apoacutes as vitoacuterias romanas de 121 aC se estendia pelo mar
Mediterracircneo e ligava a Itaacutelia agrave Hispacircnia onde hoje estaacute localizada Provenccedila na Franccedila
Essa regiatildeo tambeacutem era conhecida como Gaacutelia Narbonense por causa da capital Narbo
Martius (atual Narbonne fundada em 118 aC) ou Gallia Bracata devido ao costume
gaulecircs de se usar calccedilas (bracae) O governador da proviacutencia tendo a magistratura de
pretor propretor ou proconsul tinha o comando militar do territoacuterio fixava as
requisiccedilotildees e tarefas estabelecia as taxas e exercia sobre os povos indiacutegenas uma
jurisdiccedilatildeo sem apelaccedilatildeo128
Por volta do ano 70 aC os antigos administrados de Fonteio decidiram entrar
com uma accedilatildeo contra o mesmo encorajados pelo processo movido pelos sicilianos
contra a maacute gestatildeo do governador Verres ndash acusaccedilatildeo essa feita pelo proacuteprio Ciacutecero que
tinha relaccedilotildees de amizade com os sicilianos por ter sido governador da regiatildeo Os
gauleses enviaram a Roma uma delegaccedilatildeo dirigida por Indutiomaro chefe da naccedilatildeo dos
aloacutebroges para denunciar os abusos de Fonteio Com exceccedilatildeo dos romanos
estabelecidos na Gaacutelia Transalpina e das cidades de Narbo Martius (Narbonne) e
Massilia (Marselha) aliadas de Roma a proviacutencia inteira acusava o propretor Fonteio
cliente de Ciacutecero natildeo foi citado em outras fontes que natildeo nesse discurso129
Ele
pertencia a uma famiacutelia de Tuacutesculo antiga e honrada mas plebeia como o proacuteprio
Ciacutecero afirmou em seu discurso (Pro Fonteio 41)
128
Usamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles
Lettres p 7 e 8 129
Novamente utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les
Belles Lettres p 9
69
Ciacutecero defendeu seu cliente fundamentando sua argumentaccedilatildeo na ideia de que os
gauleses natildeo eram confiaacuteveis devido ao seu caraacuteter e de que natildeo havia contra Fonteio
quaisquer acusaccedilotildees vindas de outros romanos ou aliados Ele assim disse (Pro Fonteio
15)
Quoniam igitur uidetis qui oppugnatum M Fonteium cognostis qui defensum
uelint statuite nunc quid uestra aequitas quid populi Romani dignitas
postulet utrum colonis uestris negotiatoribus uestris amicissimis atque
antiquissimis sociis et credere et consulere malitis an iis quibus neque
propter iracundiam fidem neque propter infidelitatem honorem habere
debetis
Portanto porque vedes os que atacam M Fonteio e conheceis os que querem
sua defesa decidis agora o que reclamam a vossa justiccedila e a dignidade do
povo romano se acaso preferis acreditar e consultar os vossos colonos e os
vossos negociantes amiciacutessimos e antiquiacutessimos aliados ou acaso acreditar
naqueles os quais natildeo deveis ter em nenhuma consideraccedilatildeo por causa de seu
caraacuteter irasciacutevel e sua deslealdade130
Ciacutecero ainda reforccedilou essa ideia ao dizer (Pro Fonteio 21)
Potest igitur testibus iudex non credere Cupidis et iratis et coniuratis et ab
religione remotis non solum potest sed etiam debet
Pode entatildeo um juiz natildeo acreditar nas testemunhas Se as testemunhas forem
passionais iradas conjuradas e distantes da religiatildeo natildeo soacute pode mas
tambeacutem deve
De acordo com Ciacutecero as queixas dos gauleses natildeo deveriam ser levadas a seacuterio
pois eles eram incapazes de fornecer evidecircncias confiaacuteveis jaacute que natildeo tinham noccedilatildeo da
responsabilidade de dar um testemunho em juramento Esse fato para Ciacutecero natildeo
causaria espanto uma vez que os gauleses eram um povo distinto dos outros natildeo
sentindo temor nem respeito pelo juramento ou pelos deuses imortais Ciacutecero assim
fundamentou esse argumento (Pro Fonteio 30)
An uero istas nationes religione iuris iurandi ac metu deorum immortalium
in testimoniis dicendis commoueri arbitramini quae tantum a ceterarum
gentium more ac natura dissentiunt Quod ceterae pro religionibus suis bella
suscipiunt istae contra omnium religiones illae in bellis gerendis ab dis
immortalibus pacem ac ueniam petunt istae cum ipsis dis immortalibus bella
gesserunt Hae sunt nationes quae quondam tam longe ab suis sedibus
Delphos usque ad Apollinem Pythium atque ad oraculum orbis terrae
uexandum ac spoliandum profectae sunt Ab isdem gentibus sanctis et in
130
Todos os trechos citados do Pro Fonteio ao longo do trabalho bem como outras passagens de Ciacutecero
aqui mencionadas satildeo de nossa traduccedilatildeo
70
testimonio religiosis obsessum Capitolium est atque ille Iuppiter cuius
nomine maiores nostri uinctam testimoniorum fidem esse uoluerunt
Por ventura de fato credes essas naccedilotildees ao pronunciarem seus testemunhos
serem comovidas pela moralidade do juramento ou por medo dos deuses
imortais Essas naccedilotildeezinhas que estatildeo tatildeo afastadas dos costumes e da iacutendole
dos outros povos Pois os outros empreendem guerras a favor de suas
religiotildees esses fazem guerras contra as religiotildees de todos aqueles ao
fazerem guerras suplicam aos deuses imortais paz e graccedila esses contra os
proacuteprios deuses imortais travaram guerras Essas satildeo as naccedilotildees que outrora
partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute Delfos para atacar e pilhar Apolo
Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias
em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu
nome os maiores dos nossos quiseram ter a boa-feacute dos testemunhos (grifos
nossos)
No trecho acima colocamos o termo naccedilotildees em itaacutelico e tambeacutem utilizamos o
diminutivo ―n ccedilotildeezinh s p r reforccedil r n noss traduccedilatildeo a ironia com que Ciacutecero
trata os gauleses referindo-se vaacuterias vezes a esse povo como istae nationes O uso do
pronome istae denota o desprezo com que os gauleses satildeo tratados no Pro Fonteio bem
como tambeacutem o sarcasmo de Ciacutecero ao dizer que as comunidades gaulesas embora
―s nt s e pi s no testemunho n praacutetic er m primitivas e saqueadoras de cidades e
templos
Alguns anos depois da defesa de Fonteio Ciacutecero volta a empregar o pronome
iste para desqualificar um adversaacuterio no caso o acusado era Catilina que em 63 aC
tentara dar um golpe de Estado em Roma e fracassara Ciacutecero entatildeo cocircnsul e sabendo
da trama conspiratoacuteria se colocou como defensor da Repuacuteblica e assumiu o papel de
acusar Catilina no Senado A primeira Catilinaacuteria se destaca pelo tom forte ameaccedilador
e repleto de pathos Ciacutecero que pela lei natildeo podia desterrar ou condenar Catilina por
ele ser um cidadatildeo romano apela para o pateacutetico para conseguir a condenaccedilatildeo deste
Citamos aqui alguns exemplos como o famoso exoacuterdio (Cat I 1) no qual Ciacutecero jaacute
abre o seu discurso atacando Catilina e a sua insolecircncia
Quo usque tandem abutere Catilina patientia nostra Quam diu etiam furor
iste tuus nos eludet
Ateacute quando enfim Catilina abusaraacutes de nossa paciecircncia Por quanto tempo
esse teu furor zombaraacute de noacutes (grifos nossos)
Pode-se perceber no trecho acima que Ciacutecero denota ironia ao se referir a
C tilin e o seu ―furor ndash na argumentaccedilatildeo retoacuterica e aparece como o haacutebil cocircnsul que
percebeu os planos nefastos de Catilina e o humilhou perante o Senado Um pouco mais
agrave frente Ciacutecero diz (Cat I 3)
71
() Fuit fuit ista quondam in hac re publica uirtus ut uiri fortes acrioribus
suppliciis ciuem perniciosum quam acerbissimum hostem coercerent
Habemus senatus consultum in te Catilina uehemens et graue ()
Existiu existiu outrora esta virtude nesta repuacuteblica a de que os homens
valorosos reprimissem o cidadatildeo perigoso com castigos mais violentos do
que se fosse ao mais cruel inimigo Temos um decreto do senado contra ti
Catilina um decreto severo e grave (grifos nossos)
Ciacutecero usou o pronome ista uirtus para destacar que a virtude dos homens
valorosos presente na Repuacuteblica romana em um passado glorioso na eacutepoca do orador
jaacute tinha desaparecido com isso Ciacutecero destacou que no periacuteodo que lhe era
contemporacircneo os cidadatildeos romanos ndash outrora honrados ndash eram capazes de tudo para
colocar os proacuteprios interesses agrave frente da Paacutetria e da moralidade assim Ciacutecero mais
uma vez ressaltou a postura temeraacuteria e ilegal de Catilina desrespeitador de qualquer
virtude ou qualidade
Voltando ao discurso de defesa de Fonteio outro ponto que ressaltava a barbaacuterie
dos gauleses consistia no seu costume de fazer sacrifiacutecios humanos (Pro Fonteio 31)
Postremo his quicquam sanctum ac religiosum uideri potest qui etiam si
quando aliquo metu adducti deos placandos esse arbitrantur humanis hostiis
eorum aras ac templa funestant ut ne religionem quidem colere possint nisi
eam ipsam prius scelere uiolarint Quis enim ignorat eos usque ad hanc
diem retinere illam immanem ac barbaram consuetudinem hominum
immolandorum Quam ob rem quali fide quali pietate existimatis esse eos
qui etiam deos immortalis arbitrentur hominum scelere et sanguine facillime
posse placari Cum his uos testibus uestram religionem coniungetis Ab his
quicquam sancte aut moderate dictum putabitis
Finalmente pode algo parecer santo e venerado a esses que embora levados
por algum medo e decidam que os deuses devam ser agradados desonram os
seus altares e templos com viacutetimas humanas Como podem ao menos cultuar
a religiatildeo se antes essa mesma tenham violado criminalmente com
abominaccedilatildeo Quem de fato ignora que eles ateacute estes dias mantiveram aquele
costume desumano e baacuterbaro de imolar homens Em vista de quecirc voacutes
considerais que eles tenham alguma feacute alguma piedade eles que tambeacutem
pensam que podem agradar facilmente os deuses imortais com crime de
homens e sangue Com eles voacutes ajuntareis a vossa religiatildeo Considerareis
algum dito deles como honrado ou moderado
Ciacutecero tambeacutem salienta a rivalidade entre gauleses e romanos ao construir no
seu discurso im gem de ―noacutes contr eles ress lt ndo vaacuterios toacutepoi de caracterizaccedilatildeo
negativa do gaulecircs (Pro Fonteio 32)
Potestis igitur ignotos notis iniquos aequis alienigenas domesticis cupidos
moderatis mercennarios gratuitis impios religiosis inimicissimos huic
imperio ac nomini bonis ac fidelibus et sociis et ciuibus anteferre
72
Podeis entatildeo preferir os desconhecidos aos conhecidos os parciais aos
imparciais os estrangeiros aos compatriotas os cuacutepidos aos moderados os
mercenaacuterios aos voluntaacuterios os iacutempios aos piedosos os maiores inimigos
deste impeacuterio e desta reputaccedilatildeo aos bons e fieacuteis aliados e cidadatildeos
Ciacutecero ainda afirmou que Fonteio teria vaacuterias caracteriacutesticas positivas jaacute que era
o tipo de cidadatildeo romano de que Roma precisava como forma de desqualificar a accedilatildeo
judicial movida pelos gauleses (Pro Fonteio 41)
Videte igitur utrum sit aequius hominem honestissimum uirum fortissimum
ciuem optimum dedi inimicissimis atque immanissimis nationibus an reddi
amicis praesertim cum tot res sint quae uestris animis pro huius innocentis
salute supplicent ()
Vede entatildeo o que eacute mais justo um homem honestiacutessimo indiviacuteduo fortiacutessimo
e oacutetimo cidadatildeo ser dado aos inimiciacutessimos e crudeliacutessimos povos ou ele ser
restituiacutedo aos amigos sobretudo quando existem tantas razotildees que impelem
os vossos acircnimos a favor da salvaccedilatildeo deste inocente ()
Ciacutecero tambeacutem afirmou algo parecido na seguinte passagem (Pro Fonteio 43)
Quae si diligenter attendetis profecto iudices uirum ad labores belli
impigrum ad pericula fortem ad usum ac disciplinam peritum ad consilia
prudentem ad casum fortunamque felicem domi uobis ac liberis uestris
retinere quam inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis
tradere et condonare maletis
Se vedes com atenccedilatildeo juiacutezes certamente o homem infatigaacutevel para os
esforccedilos da guerra forte frente aos perigos perito na praacutetica e ciecircncia militar
prudente para as deliberaccedilotildees favoraacutevel ao acaso e fortuna voacutes preferireis
mantecirc-lo na paacutetria entre voacutes e vossos filhos a entregaacute-lo agraves naccedilotildees
inimiciacutessimas e crudeliacutessimas ao povo romano
Por fim Ciacutecero recorreu ateacute ao tipo de vestimenta dos gauleses (saiotes e calccedilas)
para desmoralizaacute-los (Pro Fonteio 33)
Sic existimatis eos hic sagatos bracatosque uersari animo demisso atque
humili ut solent ii qui adfecti iniuriis ad opem iudicum supplices
inferioresque confugiunt Nihil uero minus Hi contra uagantur laeti atque
erecti passim toto foro cum quibusdam minis et barbaro atque immani
terrore uerborum ()
Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas com postura
tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias recorrem
ao poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos Nada eacute menos verdadeiro Eles
pelo contraacuterio vagam desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes
com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e desumano da sua liacutengua ()
73
Pelos trechos citados acima Ciacutecero caracterizou os gauleses com vaacuterios termos
pejorativos temos a repeticcedilatildeo dos adjetivos cupidus (21 e 32) aleacutem de outros termos
dentre os quais ignotus iniquus mercennarius e impius ndash que aparecem no paraacutegrafo
32 Ciacutecero ainda acentuou o (mau) caraacuteter dos gauleses pela distacircncia que esse povo
mantinha da civilizaccedilatildeo tanto geograacutefica quanto moral ao dizer que eles estavam longe
da religiatildeo (21 ab religione remotis) e afastados dos costumes e da iacutendole dos outros
povos (30 a ceterarum gentium more ac natura dissentiunt)131
Ciacutecero tambeacutem
considerava os gauleses como sendo os piores inimigos de Roma e faz essa
caracterizaccedilatildeo atraveacutes do uso de superlativos inimicissimis atque immanissimis
nationibus (41) e inimicissimis populo Romano nationibus et crudelissimis (43) Pelos
trechos do Pro Fonteio destacados acima podemos ver que Ciacutecero utiliza a oposiccedilatildeo
entre gauleses e romanos para reforccedilar seus argumentos a fim de defender Fonteio
Todo esse discurso baseia-se na representaccedilatildeo do gaulecircs como exemplo maacuteximo de
antiacutetese ao romano o gaulecircs eacute primitivo o romano eacute civilizado o gaulecircs eacute desleal e
mentiroso enquanto o romano eacute confiaacutevel e correto e assim por diante Todos esses
argumentos citados do Pro Fonteio reforccedilavam a imagem do gaulecircs como sendo a de
uma naccedilatildeo cruel e ameaccediladora que natildeo era intimidada nem por homens ou deuses que
natildeo respeitava a religiatildeo ou os juramentos e que era consumida por um desejo de
vinganccedila contra seus conquistadores Vasaly (1993 p 253 e 254) resume
() Cicero appended to his descriptions of the world a variety of
explanations for the characteristics imputed to the people racial mixing and
degeneration explain the character of the Sardinians in the Pro Scauro in the
Pro Flacco Cicero implies that exposure to the decadent and slavish cultures
of the East is the reason for the cultural and moral debasement of the Asian
Greeks as compared with the European Greeks () Only in the Pro Fonteio
does the orator rely on an appeal to negative prejudice unsupported by any
arguments as to the grounds for that prejudice132
Como Gruen (2011a p 147) destaca o medo dos gauleses (metus gallicus) era
um conveniente recurso empregado na literatura latina mas os proacuteprios romanos da
eacutepoca de Ciacutecero natildeo consideravam seriamente uma segunda invasatildeo dos gauleses
131
Jaacute abordamos anteriormente ndash ainda que de forma resumida ndash a questatildeo da teoria hipocraacutetica de que o
centro seria o lugar mais civilizado enquanto as naccedilotildees mais distantes seriam consideradas mais
selvagens nas paacuteginas 32 e 33 deste trabalho 132
―( ) Ciacutecero crescentou agraves su s descriccedilotildees de mundo um v ried de de explic ccedilotildees p r s
caracteriacutesticas imputadas aos povos a mistura racial e a degeneraccedilatildeo explicam o caraacuteter dos sardenhos no
Pro Scauro no Pro Flacco Ciacutecero afirma que a exposiccedilatildeo agraves culturas decadentes e escravocratas do
oriente eacute a razatildeo do decliacutenio cultural e moral dos gregos asiaacuteticos comparados com os gregos europeus
() Apenas no Pro Fonteio o orador se fundamenta no recurso do preconceito negativo embasado por
nenhum rgumento que natildeo s r zotildees do proacuteprio preconceito
74
Ciacutecero distorceu a figura dos gauleses utilizando-se de antigos estereoacutetipos com fins
puramente juriacutedicos No caso desse processo contra Fonteio tambeacutem era desfavoraacutevel
aos gauleses o interesse do Estado romano que buscava o estabelecimento do comeacutercio
e da circulaccedilatildeo de mercadorias da proviacutencia ateacute Roma Como Vasaly afirma (1993 p
194) dos romanos que moravam na Gaacutelia nenhum testemunhou contra Fonteio com
isso Ciacutecero pode retratar o caso como sendo uma batalha entre todos aqueles que eram
leais ao estado e agraves hordas baacuterbaras Como pontua Vasaly (1993 p 137) o
etnocentrismo cultural provia ao orador da Roma antiga ndash e de qualquer outra cultura ndash
o toacutepos comum do ―eles e noacutes ao explorar o lado negativo desse toacutepos o orador
poderia facilmente convencer sua audiecircncia romana de que os povos distantes eram
baacuterbaros monstruosos inimigos implacaacuteveis e moralmente inferiores Os ―nossos
interesses cruciais para a preservaccedilatildeo de todo o impeacuterio portanto vinham antes dos
interesses ―deles
Sobre Marco Fonteio natildeo sabemos qual foi o resultado do julgamento de toda
forma seu nome apoacutes 69 aC natildeo apareceu mais nas listas das magistraturas
romanas133
Nem sempre contudo o discurso juriacutedico de Ciacutecero era contraacuterio aos povos
estrangeiros Temos como exemplo o jaacute mencionado processo contra Verres no qual
Ciacutecero defendeu os sicilianos dos abusos cometidos pelo entatildeo pretor enviado por
Roma O retrato que Ciacutecero fez de Verres ndash e seus partidaacuterios ndash o mostrou como um
tirano ansioso por bens e ao mesmo tempo como uma figura dissoluta que descansava
languidamente em sua liteira sempre cheirando um buquecirc de rosas (CONTE 1999 p
180) Ciacutecero assim escreveu sobre Verres (Verrinas II 5 27)
Nam ut mos fuit Bithyniae regibus lectica octophoro ferebatur in qua
puluinus erat perlucidus Melitensis rosa fartus ipse autem coronam habebat
unam in capite alteram in collo reticulumque ad naris sibi admouebat
tenuissimo lino minutis maculis plenum rosae
De fato tal como fora o costume dos reis da Bitiacutenia ele era conduzido em
uma liteira levada por oito homens na qual havia uma almofada transluacutecida
de Malta repleta de rosas ele mesmo tinha uma coroa na cabeccedila outra no
pescoccedilo e aproximava ao seu nariz um saquinho de linho finiacutessimo de
malhas diminutas cheio de rosas
Ciacutecero no Pro Fonteio usou de todos os recursos retoacutericos para rebaixar a
queixa dos gauleses Como Gruen (2011a p 147) lembra sobre Ciacutecero o orador
133
Utilizamos como referecircncia para esse paraacutegrafo o prefaacutecio do Pro Fonteio da ediccedilatildeo da Les Belles
Lettres p 16
75
romano natildeo poupou acusaccedilotildees para desqualificar as testemunhas gaulesas sobretudo o
liacuteder Indutiomaro nesse processo Ciacutecero levou a difamaccedilatildeo a um niacutevel mais grave ao
dizer que o mais distinto dos gauleses natildeo poderia ser comparado ao pior dos romanos
Aind n s p l vr s de Gruen (2011 p 147) ― s is notorious the same Allobroges
whom Cicero defames as faithless witnesses here he employs only a few years later as
trustworthy witnesses against the Catilinarians and they were generously rewarded for
their testimony by the Senate (Cic Cat 3 4 5) 134
Durante a conspiraccedilatildeo de Catilina
por volta do ano 63 aC um grupo dos aloacutebroges estava em Roma para queixar-se ao
senado contra os desmandos de Luacutecio Murena entatildeo governador da proviacutencia da Gaacutelia
Narbonense Lecircntulo aliado de Catilina entrou em contato com os aloacutebroges para fazer
uma alianccedila em troca do apoio romano os aloacutebroges cederiam tropas para Catilina Os
aloacutebroges se aconselharam com o senador Quinto Faacutebio Sanga que imediatamente
contou tudo a Ciacutecero Ciacutecero aconselhou os aloacutebroges junto a um certo Tito Voltuacutercio
a fingirem o tratado com os conspiradores e conseguiu provas da conjuraccedilatildeo apoacutes a
prisatildeo dos envolvidos o senado decretou accedilotildees de graccedilas pelo ocorrido135
Assim
Ciacutecero descreveu esses acontecimentos (Cat III IV 5) ―() maximeque quod meo
nomine supplicationem decrevistis qui honos togato habitus ante me est nemini
postremo hesterno die praemia legatis Allobrogum Titoque Volturcio dedistis
amplissima (Princip lmente voacutes decret stes ccedilotildees de gr ccedil s em meu nome honr que
antes de mim nunca fora concedida a ningueacutem trajando toga por fim ontem voacutes
concedestes vastiacutessimas recompensas aos legados dos aloacutebroges e a Tito Voltuacutercio)
Quanto aos gauleses as suas representaccedilotildees durante o periacuteodo final da
Repuacuteblica romana eram complexas refletindo reaccedilotildees mistas de curiosidade
desconfianccedila e admiraccedilatildeo que gregos e romanos tinham em relaccedilatildeo a eles ndash como nos
relatos de Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Ceacutesar (GRUEN 2011a p 146) Eacute significativo que
embora Ciacutecero tenha se referido aos gauleses de forma tatildeo preconceituosa no Pro
Fonteio ndash e tenha sido ajudado pelos mesmos aloacutebroges para desbaratar a conjuraccedilatildeo de
Catilina ndash ele na verdade teve relaccedilotildees de amizade com Diviciacuteaco um eminente druida
134
―Como eacute notoacuterio os mesmos loacutebroges que qui Ciacutecero dif mou como testemunh s natildeo confiaacuteveis
apenas alguns anos depois ele as empregou como testemunhas confiaacuteveis contra os catilinaacuterios e eles
foram generosamente recompensados pelo senado por causa do seu testemunho (Cic Cat 4 5 4 10) 135
Todas as informaccedilotildees sobre o falso pacto entre aloacutebroges e os conspiradores aliados de Catilina foram
retiradas do prefaacutecio de Pinho agrave sua traduccedilatildeo das Catilinaacuterias (CIacuteCERO 1990 p 21 e 22)
76
que eacute mencionado na obra De diuinatione (Sobre a adivinhaccedilatildeo)136
Diviciacuteaco foi
retratado como um amante dos estudos e capaz de predizer o futuro com uma
combinaccedilatildeo de auguacuterios e conjecturas (GRUEN 2011a p 146) Ciacutecero assim escreveu
sobre o druida (De Diuinatione I 90)
Eaque diuinationum ratio ne in barbaris quidem gentibus neglecta est
siquidem et in Gallia Druidae sunt e quibus ipse Diuitiacum Haeduum
hospitem tuum laudatoremque cognoui qui et naturae rationem quam
physiologiam Graeci appellant notam esse sibi profitebatur et partim
auguriis partim coniectura quae essent futura dicebat ()
Esse interesse por adivinhaccedilotildees natildeo foi indiferente sequer aos povos
baacuterbaros visto que ateacute mesmo na Gaacutelia existem os druidas dentre os quais eu
mesmo conheci o eacuteduo Diviciacuteaco teu hoacutespede e admirador o qual afirmava
ter compreensatildeo da natureza ndash que os gregos chamam de fisiologia ndash
conhecida por ele em parte atraveacutes de auguacuterios em parte atraveacutes de
conjectur s que nunci v m o que seri o futuro (hellip)
1321 Ciacutecero e o papel da historiografia latina
Ciacutecero preocupou-se em trazer para Roma natildeo soacute a filosofia e a retoacuterica grega
mas tambeacutem a historiografia Natildeo pretendemos aprofundar muito nesse aspecto apenas
falar de forma introdutoacuteria sobre a concepccedilatildeo de histoacuteria ciceroniana jaacute que isso serviraacute
de influecircncia para os autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio Andreacute e Hus (1974 p
15) consideram que antes de Ciacutecero natildeo existia em Roma o gecircnero literaacuterio histoacuteria
Antes dele existia apenas a histoacuteria poeacutetica ndash nas epopeias de Neacutevio e Ecircnio a narrativa
analiacutetica e o comentaacuterio
Ciacutecero aleacutem de poliacutetico e orador de sucesso tambeacutem foi o primeiro romano de
que temos notiacutecia a teorizar sobre a ciecircncia de se escrever histoacuteria tema que abordou
sobretudo em suas obras De oratore (Do orador) (especialmente no livro II entre os
capiacutetulos 51 e 64) e Orator (O orador) Destacamos o seguinte trecho (De Or II 36)
Historia vero testis temporum lux veritatis vita memoriae magistra uitae
nuntia vetustatis qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur
De fato a Histoacuteria que eacute testemunha dos tempos luz da verdade vida da
memoacuteria mestra da vida mensageira da antiguidade ndash atraveacutes de qual outra
voz que natildeo a do orador eacute transformada em imortalidade
136
Segundo Ceacutesar (BGall I 31) o gaulecircs Diviciacuteaco irmatildeo de Dumnorige e chefe dos eacuteduos viera a
Roma para requerer auxiacutelio ao Senado contra os seacutequanos e contra Ariovisto rei dos germanos que
invadira o seu territoacuterio Provavelmente foi nessa ocasiatildeo que Ciacutecero pode conhececirc-lo em 61 aC
77
Ciacutecero considerava que o dever de se escrever histoacuteria deveria ser assumido
pelo orador pois apenas ele teria conhecimento capacidade teacutecnica e refinamento
retoacuterico para compor esse tipo de obra O proacuteprio termo orador tinha concepccedilotildees
muacuteltiplas para Ciacutecero Orador no sentido estrito era o homem que sabe falar bem em
puacuteblico graccedilas a seus dons naturais e ao estudo da retoacuterica Para Ciacutecero o orador
tambeacutem seria o perfil ideal do escritor jaacute que a retoacuterica tambeacutem servia bem agrave escrita
ele tambeacutem era o homem de estado jaacute que a palavra era por excelecircncia o meio de
governar (MARTIN GAILLARD 1981 p 114-115) Daiacute Ciacutecero centrar o orador no
papel de escritor da histoacuteria137
Andreacute e Hus (1974 p 16) lembram
Il faut notamment distinguer les textes ougrave il p rle de llsquoantiquitas des rerum
gestarum monumenta etc de ceux ougrave figure le mot historia Les premiers
slsquo ppliquent ux con iss nces historiques neacutecess ires agrave llsquoor teur et agrave
llsquohomme dlsquoEt t les seconds u genre litteacuter ire dont l composition est
revendiqueacutee pour llsquoorator-eacutecrivain138
A ideia de Ciacutecero era a de que o orador deveria ter um vasto conhecimento da
cultura geral aleacutem de conhecer a dialeacutetica a filosofia a retoacuterica o direito civil e a
histoacuteria (De Or I 201) A histoacuteria entatildeo seria a base de conhecimento do passado
fundamental para o orador ter conhecimento do presente bem como o meio privilegiado
pelo qual o homem pode aperfeiccediloar sua conduta e se situar no mundo A filosofia
tambeacutem teria esse papel Ciacutecero contudo acreditava que a histoacuteria seria mais efetiva do
que a filosofia jaacute que no contexto latino os romanos eram mais sensiacuteveis aos exempla
do que agraves palavras que resultavam do pensamento especulativo139
Aleacutem disso uma
obra de cunho histoacuterico requereria menos trabalho para ser escrita do que uma obra
filosoacutefica Como Brunt (1993 p 196 e 197) ress lt ―both l w nd philosophy were
recognized as hard disciplines only to be mastered by prolonged application By
contrast the collation or investigation of historical evidence though time-consuming
137
Para maior discussatildeo sobre esse tema bem como maior aprofundamento recomendamos o capiacutetulo
―Cicero nd Historiogr phy (in BRUNT 1993) Sobre os trechos em que Ciacutecero fez ess s firm ccedilotildees
cf De oratore I18 e I159 138
―Deve-se especialmente distinguir os textos onde ele usa os termos antiquitas rerum gestarum
monumenta etc dos que trazem o termo historia Os primeiros se aplicam aos conhecimentos histoacutericos
necessaacuterios ao orador e ao homem de Estado o segundo ao gecircnero literaacuterio cuja composiccedilatildeo eacute
reivindic d pelo or dor escritor 139
Cf Pro Archia sect14-16
78
required no technic l prep r tion 140
Por conseguinte assim temos no Orador (cap
120)
Cognoscat etiam rerum gestarum et memoriae ueteris ordinem maxime
scilicet nostrae ciuitatis sed etiam imperiosorum populorum et regum
inlustrium quem laborem nobis Attici nostri leuauit labor qui conseruatis
notatisque temporibus nihil cum inlustre praetermitteret annorum
septingentorum memoriam uno libro conligauit Nescire autem quid ante
quam natus sis acciderit id est semper esse puerum () Commemoratio
autem antiquitatis exemplorumque prolatio summa cum delectatione et
auctoritatem orationi adfert et fidem
Conheccedila tambeacutem a sucessatildeo dos fatos acontecidos e de memoacuteria antiga
evidentemente a histoacuteria da nossa cidade e ainda a dos povos poderosos e
dos reinos ilustres o trabalho do nosso Aacutetico nos poupou o esforccedilo pois ele
reuniu em um uacutenico livro a memoacuteria de setecentos anos com as eacutepocas
preservadas e demarcadas sem se esquecer de nada importante De fato
desconhecer o que tenha acontecido antes de nascer eacute como permanecer
sempre crianccedila () A recordaccedilatildeo da antiguidade e a citaccedilatildeo de exemplos
como causa grande deleite tambeacutem confere ao discurso autoridade e
confianccedila
Pelo trecho acima vemos a importacircncia que a histoacuteria tem tanto como aspecto
cientiacutefico ndash com a memoacuteria dos feitos do passado de forma a instruir os cidadatildeos como
tambeacutem o aspecto literaacuterio que provoca prazer na audiecircncia Percebe-se tambeacutem que o
trabalho praacutetico de juntar informaccedilotildees embora dificultoso natildeo requeria grande
habilidade teacutecnica ndash Ciacutecero demonstra que Aacutetico fizera o trabalho por ele Aleacutem disso o
fato de um orador fazer histoacuteria levanta a profunda questatildeo das implicaccedilotildees poliacuteticas jaacute
que o proacuteprio orador dedicava-se agrave vida puacuteblica Dessa maneira para o orador o criteacuterio
da composiccedilatildeo historiograacutefica natildeo eacute mais a uacutenica preocupaccedilatildeo em narrar os eventos que
aconteceram mas sim escolher esses eventos e manipulaacute-los (ateacute mesmo distorcendo-
os) com o uacutenico propoacutesito de convencer a audiecircncia de algum ponto de vista
(FORNARA 1983 p 170) Por conseguinte eacute a necessidade da situaccedilatildeo que
condiciona a escrita da obra e pelos exemplos supracitados do Pro Fonteio foi
exatamente isso que Ciacutecero fez ao retratar os gauleses como os tiacutepicos vilotildees com a
finalidade de absolver Fonteio
Para Ciacutecero a filosofia e a histoacuteria eram mateacuterias importantes contudo cada
uma tinha um enfoque diferente A filosofia ao tratar de temas e conceitos abstratos
visava a provocar uma reflexatildeo subjetiva no puacuteblico-alvo A histoacuteria na concepccedilatildeo
140
―T nto o direito qu nto filosofi er m reconhecidos como disciplin s dur s que pen s seri m
dominadas atraveacutes de longa dedicaccedilatildeo Por contraste a verificaccedilatildeo ou investigaccedilatildeo de evidecircncia histoacuterica
apesar de consumir tempo natildeo requereria preparaccedilatildeo teacutecnic
79
ciceroniana tinha um objetivo concreto de ser fonte de exemplos praacuteticos para guiar a
conduta dos cidadatildeos em situaccedilotildees parecidas com as narradas nas obras historiograacuteficas
(ANDREacute HUS 1974 p 18) Esse conceito da histoacuteria natildeo eacute inovaccedilatildeo de Ciacutecero de
fato Aristoacuteteles (Retoacuterica 1360a) tambeacutem destacou o caraacuteter uacutetil da histoacuteria que era
escrita sobre as accedilotildees dos homens de modo a fornecer exemplos de como agir frente a
problemas ou situaccedilotildees semelhantes aos narrados em tal gecircnero Apesar da grande
importacircncia que Ciacutecero deu ao papel da histoacuteria ele mesmo natildeo escreveu nenhuma obra
histoacuterica jaacute que preferiu compor tratados filosoacuteficos141
Dessa maneira Ciacutecero
concentrou-se mais em escrever sobre a teoria da historiografia suas consideraccedilotildees a
respeito das implicaccedilotildees teoacutericas desse ramo do conhecimento foram ineacuteditas
influenciando autores posteriores sobretudo Tito Liacutevio (PEREIRA 1993 p 139)
Ciacutecero considerava que a histoacuteria deveria ser escrita de maneira veriacutedica e
imparcial levando-se em conta a ordem cronoloacutegica dos fatos bem como enunciar suas
causas e consequecircncias Aleacutem disso o historiador teria que fazer a descriccedilatildeo dos locais
a biografia das personalidades importantes seguindo essa tradiccedilatildeo da cronologia dos
eventos (De Or II 62 a 64) O orador tambeacutem deveria ter cuidado com o estilo e o
aspecto formal da composiccedilatildeo e a obra deveria ser agradaacutevel de ser lida (PEREIRA
1993 p 139) Destacamos aqui as palavras de Andreacute e Hus (1974 p 22) a esse
respeito
( ) llsquohistoire doit ecirctre composeacutee d ns le loisir et l seacutereacuteniteacute Aux ntipodes
de la veacuteheacutemence judiciaire mais proche du calme des sophistes laquoqui ne son
pas faits pour le comb traquo il est le style dlsquoun genre litteacuter ire de c binet
produit non de llsquoorator- voc t m is de llsquoorator-eacutecrivain qui se penche
sereinement sur les vicissitudes hum ines en slsquo id nt de son expeacuterience
dlsquohomme dlsquoEacutet t 142
Ciacutecero defendia a concepccedilatildeo da histoacuteria como historia ornata ou histoacuteria
ornada que eacute escrita de forma bela com o compromisso da verdade Daiacute tem-se a
exigecircncia da qualidade do estilo ndash em se tratando de Ciacutecero um estilo abundante sem
desacordos sem paixatildeo mas que evidenciava as belezas da histoacuteria (MARTIN
GAILLARD 1981 p 115) Ciacutecero tambeacutem ressaltava natildeo soacute o caraacuteter pragmaacutetico da
141
De fato Ciacutecero chegou a escrever comentaacuterios sobre o seu consulado em 63 aC O orador romano
chegou a pedir a Posidocircnio que usasse esse material para escrever uma obra historiograacutefica ao que o
historiador e filoacutesofo grego recusou (cf p 64) 142
―( ) histoacuteri deve ser escrit no l zer e n serenid de Aos romp ntes d veemecircnci judiciaacuteri m s
proacuteximo da calma dos sofistas laquoque natildeo satildeo feitos para o combateraquo esse eacute o estilo de gecircnero literaacuterio de
escritoacuterio produzido natildeo pelo orador advogado mas pelo orador escritor que aborda serenamente as
vicissitudes hum n s com o uxiacutelio de su experiecircnci de homem de Est do
80
histoacuteria mas tambeacutem a sua importacircncia quanto ao seu papel moral de modo a fornecer
exemplos de virtude para as geraccedilotildees vindouras Aleacutem disso Ciacutecero preferia que a
histoacuteria que lhe era contemporacircnea servisse de material aos autores pois as histoacuterias dos
tempos passados estavam envolvidas em brumas contraditoacuterias e na sua eacutepoca havia
muitos exemplos de acontecimentos e fatos que tiveram importacircncia capital para Roma
(MARTIN GAILLARD 1981 p 115) Sobre essa concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero
pode-se comparaacute-la com duas obras de capital importacircncia na literatura latina que
representam esse ideal as monografias de Saluacutestio por abordarem temas
contemporacircneos ou receacutem acontecidos mas de estilo breve que recusava a abundacircncia
oratoacuteria e Tito Liacutevio que praticava o estilo ornado e de frases amplas tal como
preconizava Ciacutecero mas que por outro lado adotava a metodologia de composiccedilatildeo em
anais e cuja amplitude com contornos traacutegicos era ateacute mesmo criticada pelo orador
(MARTIN GAILLARD 1981 p 115)143
133 ndash Diodoro Siacuteculo
Desde Poliacutebio no seacuteculo II aC os romanos jaacute dispunham de tratados e relatos
etnograacuteficos sobre os celtas Foi no seacuteculo I aC contudo que Roma conquistou os
povos da Europa ocidental (celtas hispanos e iberos) de forma definitiva consolidando
seu domiacutenio e ampliando cada vez mais seu territoacuterio Desse periacuteodo entre os seacuteculos I
aC e I dC temos mais dois autores gregos que se destacaram ao escreverem sobre os
celtas Diodoro Siacuteculo e Estrabatildeo
Diodoro Siacuteculo nasceu provavelmente em 90 aC em Agirium hoje Agira na
Siciacutelia daiacute o cognome Siacuteculo Foi contemporacircneo de Ceacutesar e sua morte teria sido em 30
aC144
Diodoro Siacuteculo com sua Biblioteca (ou Bibliotheca historica) eacute uma fonte
importante tanto por sua tentativa de superar Eacuteforo ao colocar todas as civilizaccedilotildees em
destaque na sua obra historiograacutefica e natildeo soacute a Greacutecia quanto por tentar cobrir o
periacuteodo desde as origens da criaccedilatildeo ateacute o ano de 59 aC (quando Ceacutesar obteve seu
primeiro consulado) Por essa abordagem abrangente sua obra eacute considerada universal
A catalogaccedilatildeo de autores e obras estava na moda na Roma do seacuteculo I aC Diodoro
influenciado pelo periacuteodo que passou em Alexandria compocircs sua Biblioteca com base
143
Abordaremos Tito Liacutevio e sua obra de forma mais aprofundada no capiacutetulo 3 deste trabalho 144
Para essa pequena biografia de Diodoro Siacuteculo tomamos como referecircncia a introduccedilatildeo escrita por
Alasagrave (DIODORO DE SICILIA 2001 p 8-9)
81
em uma grande coleccedilatildeo com vaacuterias citaccedilotildees de outros historiadores sem nomear
necessariamente toda fonte que empregou em sua obra (SACKS 1990 p 77) Diodoro
dessa forma fez uma sucessatildeo de resumos dos trabalhos e obras de outros autores
muito deles hoje perdidos o que justificava o tiacutetulo de seu livro Biblioteca (MURRAY
In BOARDMAN et al 1986 p 201) Diodoro de fato era mais um intelectual curioso
que compilou textos de caraacuteter etnograacutefico geograacutefico mitoloacutegico historiograacutefico
dentre outros ramos do saber para refletir a cultura no acircmbito da tradiccedilatildeo greco-
latina145
A longa obra de Diodoro seria composta de quarenta livros dos quais temos
apenas os livros I-V e XI-XX do restante temos apenas fragmentos146
Diodoro se interessou de forma significativa pela etnografia celta dedicando
sete capiacutetulos de sua obra a esse povo (Biblioteca V 26 a 32) Ele descreveu o clima da
regiatildeo geografia recursos naturais aleacutem de aspectos culturais dos gauleses como
vestuaacuterio haacutebitos crenccedilas etc Assim como outros autores jaacute citados Diodoro tambeacutem
relacionou o clima de uma regiatildeo com o tipo fiacutesico e sauacutede do povo que a habitava
(VASALY 1993 p 147) Diodoro dessa forma escreveu (Bib III 34 8) δηόπεξ ηῆο
δηαθνξο ηῆο ηλ ἀέξσλ ἐλ ὀιίγῳ δηαζηήκαηη κεγάιεο νὔζεο νὐδὲλ παξάδνμνλ θαὶ ηὴλ
δίαηηαλ θαὶ ηνὺο βίνπο ἔηη δὲ ηὰ ζώκαηα πνιὺ δηαιιάηηεηλ ηλ παξ᾽ ἡκῖλ (―por tanto
siendo grande la diferencia de climas en poco intervalo no es nada asombroso que no
soacutelo la dieta sino tambieacuten los modos de vida e incluso los cuerpos cambien mucho de
los nuestros )147
Como Gruen (2011 p 143) lembr sobre ess obr ―Comments re
generally bland and descriptive But they give a sense of the impressions of Gauls that
circulated among Greek writers contempor neous with C es r 148
Assim como Poliacutebio
Diodoro tambeacutem mencionou a grande estatura dos gauleses (V 28 1) νἱ δὲ Γαιάηαη
ηνῖο κὲλ ζώκαζίλ εἰζηλ εὐκήθεηο ηαῖο δὲ ζαξμὶ θάζπγξνη θαὶ ιεπθνί ηαῖο δὲ θόκαηο νὐ
κόλνλ ἐθ θύζεσο μαλζνί ἀιιὰ θαὶ δηὰ ηῆο θαηαζθεπῆο ἐπηηεδεύνπζηλ αὔμεηλ ηὴλ
θπζηθὴλ ηῆο ρξόαο ἰδηόηεηα (―Los g los tienen un consider ble est tur muacutesculos
145
Citaccedilatildeo tambeacutem retirada da introduccedilatildeo de Alasagrave citada acima (2001 p 10) 146
Informaccedilatildeo retirada do prefaacutecio de Oldfather da sua traduccedilatildeo de Diodorus of Sicily (1952 v1 p XV) 147
―Port nto sendo gr nde diferenccedil de clim s em pouco interv lo natildeo eacute n d ssombroso que natildeo soacute
diet m s t mbeacutem os modos de vid e inclusive os corpos sej m tatildeo diferentes dos nossos (DIODORO
DE SICIacuteLIA 2001 p 470) 148
―Os comentaacuterios satildeo ger lmente br ndos e descritivos Eles contudo datildeo uma percepccedilatildeo das
impressotildees dos g uleses que circul v m entre os escritores gregos contemporacircneos de Ceacutes r
82
flaacutecidos piel blanca cabellos rubios no soacutelo por naturaleza sino tambieacuten porque por
medios artificiales se dedican a acentuar su propio color n tur l )149
No geral Diodoro narrou sobre os costumes dos gauleses de forma mais
imparcial do que preconceituosa ou criacutetica com vaacuterias curiosidades e diferenccedilas de
costumes (GRUEN 2011a p 145) Destacamos aqui uma passagem em que Diodoro
compara um costume gaulecircs ndash o de oferecer os melhores cortes de carne aos homens
mais bravos ndash a alguns versos da Iliacuteada Lecirc-se em Biblioteca V 28 4
δεηπλνῦζη δὲ θαζήκελνη πάληεο νὐθ ἐπὶ ζξόλσλ ἀιι᾽ ἐπὶ ηῆο γῆο
ὑπνζηξώκαζη ρξώκελνη ιύθσλ ἢ θπλλ δέξκαζη δηαθνλνῦληαη δ᾽ ὑπὸ ηλ
λεσηάησλ παίδσλ ἐρόλησλ ἡιηθίαλ ἀξξέλσλ ηε θαὶ ζειεηλ πιεζίνλ δ᾽
αὐηλ ἐζράξαη θεῖληαη γέκνπζαη ππξὸο θαὶ ιέβεηαο ἔρνπζαη θαὶ ὀβεινὺο
πιήξεηο θξελ ὁινκεξλ ηνὺο δ᾽ ἀγαζνὺο ἄλδξαο ηαῖο θαιιίζηαηο ηλ
θξελ κνίξαηο γεξαίξνπζη θαζάπεξ θαὶ ὁ πνηεηὴο ηὸλ Αἴαληα παξεηζάγεη
ηηκώκελνλ ὑπὸ ηλ ἀξηζηέσλ ὅηε πξὸο Ἕθηνξα κνλνκαρήζαο
ἐλίθεζελώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξε
Todos comen sentados no en asientos sino en el suelo utilizando como
almohadas pieles de lobos o de perros De servir en las comidas se ocupan los
maacutes joacutevenes tanto los varones como las hembras que tienen la edad
adecuada Cerca de ellos hay chimeneas llenas de fuego con calderas y
asadores repletos de piezas enteras de carne Recompensan a los hombres
valerosos daacutendoles los mejores trozos de carne de la misma manera que
ocurre cuando el poeta presenta a Ayante honrado por los jefes una vez que
resultoacute vencedor en el combate singular con Heacutector recompensoacute a Ayante
con el ancho lomo (grifo do tradutor) 150
O verso da passagem acima colocado em itaacutelico pelo tradutor Esbarranch
refere-se ao canto VII da Iliacuteada Diodoro mencionou os seguintes versos de Homero em
sua comparaccedilatildeo com o haacutebito dos gauleses (Iliacuteada VII v 319 a 322)
αὐηὰξ ἐπεὶ παύζαλην πόλνπ ηεηύθνληό ηε δαῖηα
δαίλπλη᾽ νὐδέ ηη ζπκὸο ἐδεύεην δαηηὸο ἐΐζεο
λώηνηζηλ δ᾽ Αἴαληα δηελεθέεζζη γέξαηξελ
ἥξσο Ἀηξεΐδεο εὐξὺ θξείσλ Ἀγακέκλσλ
Quando puseram termo ao esforccedilo de preparar o jantar
comeram e nada lhes faltou naquele festim compartilhado
A Aacutejax honrou com o lombo contiacutenuo do boi
149
―Os g uleses tecircm um est tur consideraacutevel muacutesculos flaacutecidos pele branca cabelos ruivos natildeo soacute por
n turez m s t mbeacutem porque por meios rtifici is se dedic m centu r su proacutepri cor n tur l Esse
trecho foi retirado da traduccedilatildeo de Esbarranch para a obra de Diodoro (2004 p 270 e 271) 150
―Todos comem sentados natildeo em assentos mas no chatildeo utilizando como almofadas peles de lobos ou
catildees Os mais jovens se ocupam de servir a comida tanto os rapazes quanto as moccedilas que tenham a idade
adequada Perto deles haacute lareiras cheias de fogo com caldeiras e grelhas repletas de peccedilas inteiras de
carne Recompensam os homens dando-lhes os melhores nacos de carne da mesma maneira que acontece
quando o poeta presenteia Aacutejax honrado por seus chefes uma vez que ele saiu vencedor do combate
individual com Heitor recompensou Aacutejax com o lombo do boi (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 270)
83
o heroacutei filho de Atreu Agameacutemnon de vasto poder151
Os banquetes eram uma importante caracteriacutestica em sociedades indoeuropeias
como os celtas e os proacuteprios gregos e serviam para estreitar os laccedilos entre os membros
desses grupos sobretudo dos liacutederes para com os guerreiros152
Diodoro em sua
descriccedilatildeo etnograacutefica dos celtas os descreveu natildeo soacute como sendo corajosos e fortes
mas tambeacutem possuidores de erudiccedilatildeo ndash representada na figura dos bardos e dos druidas
chamados por Diodoro de filoacutesofos e tambeacutem dos adivinhos (vates) que realizavam
sacrifiacutecios humanos Assim ele narrou (Biblioteca V 31 2 a 4)
εἰζὶ δὲ παξ᾽ αὐηνῖο θαὶ πνηεηαὶ κειλ νὓο βάξδνπο ὀλνκάδνπζηλ νὗηνη δὲ
κεη᾽ ὀξγάλσλ ηαῖο ιύξαηο ὁκνίσλ ᾄδνληεο νὓο κὲλ ὑκλνῦζηλ νὓο δὲ
βιαζθεκνῦζη θηιόζνθνί ηέ ηηλέο εἰζη θαὶ ζενιόγνη πεξηηηο ηηκώκελνη νὓο
δξνπίδαο ὀλνκάδνπζη ρξληαη δὲ θαὶ κάληεζηλ ἀπνδνρῆο κεγάιεο ἀμηνῦληεο
αὐηνύο νὗηνη δὲ δηά ηε ηῆο νἰσλνζθνπίαο θαὶ δηὰ ηῆο ηλ ἱεξείσλ ζπζίαο ηὰ
κέιινληα πξνιέγνπζη θαὶ πλ ηὸ πιῆζνο ἔρνπζηλ ὑπήθννλ κάιηζηα δ᾽ ὅηαλ
πεξί ηηλσλ κεγάισλ ἐπηζθέπησληαη παξάδνμνλ θαὶ ἄπηζηνλ ἔρνπζη λόκηκνλ
ἄλζξσπνλ γὰξ θαηαζπείζαληεο ηύπηνπζη καραίξᾳ θαηὰ ηὸλ ὑπὲξ ηὸ
δηάθξαγκα ηόπνλ θαὶ πεζόληνο ηνῦ πιεγέληνο ἐθ ηῆο πηώζεσο θαὶ ηνῦ
ζπαξαγκνῦ ηλ κειλ ἔηη δὲ ηῆο ηνῦ αἵκαηνο ῥύζεσο ηὸ κέιινλ λννῦζη
παιαηᾶ ηηλη θαὶ πνιπρξνλίῳ παξαηεξήζεη πεξὶ ηνύησλ πεπηζηεπθόηεο ἔζνο δ᾽
αὐηνῖο ἐζηη κεδέλα ζπζίαλ πνηεῖλ ἄλεπ θηινζόθνπ δηὰ γὰξ ηλ ἐκπείξσλ ηῆο
ζείαο θύζεσο ὡζπεξεί ηηλσλ ὁκνθώλσλ ηὰ ραξηζηήξηα ηνῖο ζενῖο θαζη δεῖλ
πξνζθέξεηλ θαὶ δηὰ ηνύησλ νἴνληαη δεῖλ ηἀγαζὰ αἰηεῖζζαη
Entre ellos se encuentran asimismo poetas liacutericos que ellos llaman bardos
Estos poetas cantan con el acompantildeamiento de instrumentos semejantes a la
lira celebran a unos personajes e infaman a otros Tambieacuten hay unos
filoacutesofos y teoacutelogos que son objeto de honores extraordinarios y reciben el
nombre de druidas Los galos asimismo recurren a adivinos a los que
consideran merecedores de gran reconocimiento estos adivinos predicen el
futuro mediante la observacioacuten del vuelo de los paacutejaros y el sacrificio de las
viacutectimas y todo el pueblo estaacute atento a sus dictados Observan una costumbre
extrantildea e increiacuteble sobre todo cuando deben indagar respecto a algunos
asuntos de importancia en estos casos en efecto ofrecen en sacrificio la vida
de un hombre al que apuntildealan con una daga en un lugar situado encima del
diafragma y cuando cae el hombre acuchillado a partir de la observacioacuten de
la caiacuteda de la convulsioacuten de los miembros y tambieacuten de la efusioacuten de la
sangre los adivinos comprenden el futuro fieles a una antigua praacutectica de
observacioacuten de estos hechos usada durante muchos antildeos Es costumbre entre
los galos no realizar ninguacuten sacrificio sin la presencia de un filoacutesofo dicen
en efecto que es preciso ofrecer sacrificios de agradecimiento a los dioses
por medio de personas expertas en la naturaleza divina que hablen por
151
Novamente usamos a traduccedilatildeo feita por Lourenccedilo 152
Destaca-se no Brasil o professor Teodoro Rennoacute Assunccedilatildeo por sua pesquisa sobre os banquetes em
Homero com vaacuterias publicaccedilotildees e palestras proferidas sobre esse tema Dentre as suas publicaccedilotildees mais
recentes a esse respeito destacamos ASSUNCcedilAtildeO T R O banquete e as narrativas na Odisseia
Romanitas v 2 p 100-115 2013 _____________ Boa comida em banquetes como razatildeo para arriscar a
vida o discurso de Sarpeacutedon a Glauco (Iliacuteada XII 310-328) Nuntius Antiquus v 1 p 1-17 2008
_________ Os banquetes transgressivos dos pretendentes na Odisseacuteia In Martinho Marcos (Org) 1deg
Simpoacutesio de Estudos Claacutessicos da USP Satildeo Paulo Humanitas 2006 p 35-56
84
decirlo asiacute la misma lengua de los dioses por medio de estos hombres
piensan que ha de pedirse el favor divino153
Gruen (2011a p 144) lembra que a praacutetica do sacrifiacutecio humano por parte dos
gauleses natildeo eacute mencionada por Poliacutebio Esse tema acima narrado por Diodoro
impressionou o autor grego Embora considere os sacrifiacutecios como sendo costume
estranho e incriacutevel Diodoro de forma alguma ofendeu os gauleses ou seus haacutebitos em
sua descriccedilatildeo
134 ndash Estrabatildeo
Estrabatildeo nasceu em Amaacutesia no Ponto por volta de 63 aC e viajou por vaacuterias
regiotildees da Aacutesia Menor da Itaacutelia e do Egito Historiador ele escreveu uma obra
histoacuterica hoje perdida a partir do ponto em que Poliacutebio parou Como geoacutegrafo compocircs
um tratado universal em dezessete livros que foram preservados conhecidos como
Geografia A data de sua morte eacute desconhecida tendo ocorrido certamente depois do
ano 23 dC jaacute que Estrabatildeo citou em sua obra o rei Juba II que faleceu nesse ano154
Como afirma Hartog (2014 p 243) ―esse quadro geograacutefico do mundo
habitado escrito por um grego da Aacutesia acostumado com a corte em Roma pretende ser
declaradamente uma geografia poliacutetica sobretudo para uso dos governantes destinada a
dar conta do estado do mundo ( ) Esse c raacuteter univers list er comum os escritores
do periacuteodo heleniacutestico como jaacute vimos em Poliacutebio e depois com Diodoro Siacuteculo
Estrabatildeo usou Posidocircnio como fonte dentre outros autores Segundo Momigliano
153―Entre eles t mbeacutem se encontr m poet s liacutericos que eles ch m m de b rdos Esses poetas cantam com
acompanhamento de instrumentos semelhantes agrave lira celebram uns personagens e difamam outros
Tambeacutem haacute alguns filoacutesofos e teoacutelogos que satildeo objeto de honras extraordinaacuterias e que recebem o nome de
druidas Os galos tambeacutem recorrem a adivinhos aos quais consideram merecedores de grande
reconhecimento esses adivinhos predizem o futuro mediante a observaccedilatildeo do voo dos paacutessaros e o
sacrifiacutecio das viacutetimas e todo o povo estaacute atento aos seus ditos Observam um costume estranho e incriacutevel
sobretudo quando devem perguntar a respeito de alguns assuntos de importacircncia nesses casos de fato
oferecem como sacrifiacutecio a vida de um homem que apunhalam com uma adaga em um lugar situado
acima do diafragma e quando o homem esfaqueado cai a partir da observaccedilatildeo da queda da convulsatildeo
dos membros e tambeacutem da efusatildeo de sangue os adivinhos compreendem o futuro fieacuteis a uma antiga
praacutetica de observaccedilatildeo desses feitos durante muitos anos Eacute tambeacutem costume entre os gauleses natildeo realizar
nenhum sacrifiacutecio sem a presenccedila de um filoacutesofo dizem de fato que eacute preciso oferecer sacrifiacutecios de
agradecimento aos deuses por meio de pessoas peritas na natureza divina e que falem por assim dizer a
mesma liacutengua dos deuses por meio desses homens eles pensam que haacute de se pedir o favorecimento
divino (DIODORO DE SICIacuteLIA 2004 p 275e 276) 154
Usamos como referecircncia bibliograacutefica para esse resumo da vida de Estrabatildeo a introduccedilatildeo do livro de
ESTRABOacuteN (1991 p 7 a 13)
85
(1991 p 66) ele ―est v inteir do d s muitas fontes da eacutepoca de Ceacutesar e Augusto e ateacute
cita os commentarii de Ceacutes r
Se os gregos e posteriormente os romanos consideravam habitar o centro do
mundo o que estava localizado nas esferas mais distantes causava estranhamento e era
considerado diferente (VASALY 1993 p 136) Nas palavras do proacuteprio Estrabatildeo
(Geografia I 2 29) ἄιισο ηε ηλ παξ᾽ ἑθάζηνηο ἰδίσλ ηαῦη᾽ ἐζηὶ γλσξηκώηαηα ἃ θαὶ
παξαδνμίαλ ἔρεη ηηλά θαὶ ἐλ ηῶ θαλεξῶ πζίλ ἐζηη (―Por lo demaacutes de l s
peculiaridades de cada pueblo son con mucho las maacutes llamativas aquellas que producen
cierta sorpresa y son a todos evidentes) 155
Embora as grandes diferenccedilas entre povos
fossem as mais notadas pelos gregos e romanos para Estrabatildeo as particularidades de
cada gente eram mais resultado de circunstacircncias culturais econocircmicas e geograacuteficas do
que devido a traccedilos natos de um povo (VASALY 1993 p 148) Da mesma forma que
Poliacutebio e Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo (IV 4 2) tambeacutem citou o recorrente toacutepos de
representaccedilatildeo do gaulecircs como sendo alto e forte dizendo ηῆο δὲ βίαο ηὸ κὲλ ἐθ ηλ
ζσκάησλ ἐζηὶ κεγάισλ ὄλησλ ηὸ δ᾽ ἐθ ηνῦ πιήζνπο (―Su fuerz procede t nto de su
elev d est tur como de su gr n nuacutemero )156
Assim como Diodoro Estrabatildeo evitou fazer julgamentos de valor ou criacuteticas em
relaccedilatildeo aos haacutebitos dos gauleses contentando-se apenas em narrar seus costumes
culturais (GRUEN 2011a p 145) A uacutenica passagem que Estrabatildeo se referiu a um
costume gaulecircs como sendo baacuterbaro e exoacutetico foi ao descrever o modo como os
gauleses guardavam as cabeccedilas dos inimigos na entrada de suas casas ndash ao que ele citou
diretamente Posidocircnio157
Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) tambeacutem falou da praacutetica celta
de sacrificar humanos
ηὰο δὲ ηλ ἐλδόμσλ θεθαιὰο θεδξνῦληεο ἐπεδείθλπνλ ηνῖο μέλνηο θαὶ νὐδὲ
πξὸο ἰζνζηάζηνλ ρξπζὸλ ἀπνιπηξνῦλ ἠμίνπλ θαὶ ηνύησλ δ᾽ ἔπαπζαλ αὐηνὺο
Ῥσκαῖνη θαὶ ηλ θαηὰ ηὰο ζπζίαο θαὶ καληείαο ὑπελαληίσλ ηνῖο παξ᾽ ἡκῖλ
λνκίκνηο ἄλζξσπνλ γὰξ θαηεζπεηζκέλνλ παίζαληεο εἰο ληνλ καραίξᾳ
ἐκαληεύνλην ἐθ ηνῦ ζθαδαζκνῦ ἔζπνλ δὲ νὐθ ἄλεπ δξπτδλ θαὶ ἄιια δὲ
ἀλζξσπνζπζηλ εἴδε ιέγεηαη θαὶ γὰξ θαηεηόμεπόλ ηηλαο θαὶ ἀλεζηαύξνπλ ἐλ
ηνῖο ἱεξνῖο θαὶ θαηαζθεπάζαληεο θνινζζὸλ ρόξηνπ θαὶ μύισλ ἐκβαιόληεο
εἰο ηνῦηνλ βνζθήκαηα θαὶ ζεξία παληνῖα θαὶ ἀλζξώπνπο ὡινθαύηνπλ
Muestran a los extranjeros las cabezas de los enemigos famosos
embalsamadas con aceite de cedro y ni siquiera a cambio de su peso en oro
155
―Aleacutem disso d s peculi rid des de c d povo satildeo muito m is signific tiv s quel s que produzem
certa surpresa e satildeo evidentes todos Tr duccedilatildeo de R moacuten e Bl nco (in ESTRABOacuteN 1991 p 301) 156
―Su forccedil procede t nto de su elev d est tur como de seu gr nde nuacutemero Utiliz mos qui
traduccedilatildeo de Meana e Pintildeero (in ESTRABOacuteN 1992 p 178) 157
Jaacute mencionamos essa passagem no subcapiacutetulo referente a Posidocircnio conferir p 65 e 66
86
se avienen a devolverlas Los romanos les hicieron terminar con esas
praacutecticas y con las referentes a los sacrificios y a la adivinacioacuten que eran
contrarias a nuestros usos Golpeaban por ejemplo en la espalda con una
espada a un hombre elegido ritualmente como viacutectima y practicaban la
adivinacioacuten a partir de sus convulsiones No sacrificaban sin embargo jamaacutes
sin la presencia de un druida He oiacutedo hablar tambieacuten de otras formas de
sacrificios humanos como por ejemplo la praacutectica de matar a flechazos a
algunos o la de crucificarlos en los templos o la de fabricar un enorme
muntildeeco de paja y madera en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos
de todo tipo y hombres y hacer con eacutel un holocausto158
Quanto a essa praacutetica celta de guardar as cabeccedilas dos inimigos Estrabatildeo
mencionou Posidocircnio dizendo que esse haacutebito a princiacutepio chocante depois foi aceito
com tranquilidade pelo autor grego Vasaly (1993 p 148) a respeito desses haacutebitos
selvagens dos estrangeiros e da sua condiccedilatildeo de baacuterbaro tambeacutem ressalta
Although it is true that Strabo often has recourse to stereotypical descriptions
of ethnic groups ndash the Iberians for example are dour and malicious the
Celts passionate and fickle and the Western barbarians in general are cruel ndash
he implies that the passage from savagery to civilization may be made by all
This passage is initiated through contact with Greco-Roman city-states and
leads in places where geography has been suitable to the creation of stable
agriculture private property law and the ultimate sign of civilized life large
urban centers Where land was not suitable for settled agriculture however
the inhabitants were apparently doomed to a life of savagery159
Sobre descriccedilatildeo de Estr batildeo ―de f bric r un enorme muntildeeco de p j y m der
en el que metiacutean algunas cabezas de ganado bichos de todo tipo y hombres y hacer
con eacutel un holoc usto como mencion do cim ele cert mente retirou esse f to de
Ceacutesar que assim disse (De bello Gallico VI 16)
() pro uita hominis nisi hominis uita reddatur non posse deorum
immortalium numen placari arbitrantur publiceque eiusdem generis habent
158
―Eles mostr m os estr ngeiros s c beccedil s dos inimigos f mosos emb ls m d s com oacuteleo de cedro e
nem sequer em troca do seu peso de ouro cogitam devolvecirc-las Os romanos os fizeram terminar com essas
praacuteticas e com as praacuteticas referentes aos sacrifiacutecios e a adivinhaccedilatildeo que eram contraacuterios aos nossos usos
Golpeavam por exemplo nas costas com uma espada a um homem escolhido ritualmente como viacutetima e
praticavam a adivinhaccedilatildeo a partir de suas convulsotildees Natildeo sacrificavam jamais poreacutem sem a presenccedila de
um druida Ouvi falar tambeacutem de outras formas de sacrifiacutecios humanos como por exemplo a praacutetica de
matar a flechas a alguns ou de crucificaacute-los nos templos ou de fabricar um enorme boneco de palha e
madeira no qual enfiavam algumas cabeccedilas de gado bichos de todo o tipo e homens e fazer com ele um
holoc usto (ESTRABOacuteN 1992 p 181 e 182) 159
―Apes r de ser verd de que Estr batildeo ger lmente recorreu descriccedilotildees estereotip d s de grupos eacutetnicos
- os ibeacuterios por exemplo satildeo severos e maliciosos os celtas passionais e inconstantes e os baacuterbaros
ocidentais em geral satildeo crueacuteis ndash ele daacute a entender que a passagem da selvageria para a civilizaccedilatildeo pode
ser feita por todos Essa passagem se inicia atraveacutes do contato com cidades-Estado greco-romanas e leva
em locais onde a geografia eacute propiacutecia agrave criaccedilatildeo de agricultura estaacutevel propriedade privada direito e ao
uacuteltimo sinal da vida civilizada grandes centros urbanos Onde a terra natildeo era propiacutecia para o
estabelecimento da agricultura poreacutem os habitantes eram aparentemente condenados a uma vida de
selv geri
87
instituta sacrificia Alii immani magnitudine simulacra habent quorum
contexta uiminibus membra uiuis hominibus complent quibus succensis
circumuenti flamma exanimantur homines
() na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com a vida de outro
homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo pode ser aplacado
e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente instituiacutedos Outros
possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros entrelaccedilados com
vimes preenchem de homens vivos incendiados esses membros morrem os
homens envoltos pelas chamas160
Gruen tambeacutem lembra que as imagens dos gauleses como altos e fortes aleacutem de
belicosos eram bastante recorrentes nos escritos etnograacuteficos mais antigos como jaacute
citamos em Poliacutebio etc o que eacute mais significativo de nota seria o interesse dos gauleses
pela educaccedilatildeo e literatura um ponto que aparece tanto em Diodoro quanto em Estrabatildeo
(GRUEN 2011a p 146) Poliacutebio por sua vez natildeo se interessou em abordar a cultura
poeacutetica ou filosoacutefica dos celtas de fato ele estava mais interessado no caraacuteter militar e
guerreiro desse povo e como ele se opunha aos romanos Sobre a educaccedilatildeo dos gauleses
e o papel de Marselha como centro de instruccedilatildeo Estrabatildeo disse (IV 1 5)
ἐμεκεξνπκέλσλ δ᾽ ἀεὶ ηλ ὑπεξθεηκέλσλ βαξβάξσλ θαὶ ἀληὶ ηνῦ πνιεκεῖλ
ηεηξακκέλσλ ἤδε πξὸο πνιηηείαο θαὶ γεσξγίαο δηὰ ηὴλ ηλ Ῥσκαίσλ
ἐπηθξάηεηαλ νὐδ᾽ αὐηνῖο ἔηη ηνύηνηο ζπκβαίλνη ἂλ πεξὶ ηὰ ιερζέληα ηνζαύηε
ζπνπδή δεινῖ δὲ ηὰ θαζεζηεθόηα λπλί πάληεο γὰξ νἱ ραξίεληεο πξὸο ηὸ
ιέγεηλ ηξέπνληαη θαὶ θηινζνθεῖλ ὥζζ᾽ ἡ πόιηο κηθξὸλ κὲλ πξόηεξνλ ηνῖο
βαξβάξνηο ἀλεῖην παηδεπηήξηνλ θαὶ θηιέιιελαο θαηεζθεύαδε ηνὺο Γαιάηαο
ὥζηε θαὶ ηὰ ζπκβόιαηα ἑιιεληζηὶ γξάθεηλ ἐλ δὲ ηῶ παξόληη θαὶ ηνὺο
γλσξηκσηάηνπο Ῥσκαίσλ πέπεηθελ ἀληὶ ηῆο εἰο Ἀζήλαο ἀπνδεκίαο ἐθεῖζε
θνηηλ θηινκαζεῖο ὄληαο
Y como por influencia de los romanos los baacuterbaros del interior se iban
civilizando y apartando de la guerra concentraacutendose en ocupaciones urbanas
y agriacutecolas tampoco ellos teniacutean ya por queacute poner demasiado empentildeo en las
actividades citadas como se ve por lo que ocurre hoy diacutea En efecto todos
los ciudadanos de posicioacuten desahogada se han dedicado a la oratoria y a la
filosofiacutea de forma que hasta no hace mucho su ciudad ha servido como
escuela para los baacuterbaros convirtiendo a los galos en filohelenos de tal modo
que los contratos se redactan en griego Actualmente Masalia ha persuadido
a los romanos maacutes ilustres que desean instruirse para que vengan a estudiar
aquiacute en lugar de hacer el viaje a Atenas161
160
Sherwin-White sobre esse tema escreveu um capiacutetulo inteiro ―The Northern Barbarians in Strabo
and Caesar (1967 p 1-32) 161
―E como por influecircnci dos rom nos os baacuterb ros do interior i m se civiliz ndo e se f st ndo d
guerra concentrando-se em ocupaccedilotildees urbanas e agriacutecolas tampouco eles tinham que por demasiado
empenho nas atividades citadas como se vecirc pelo que ocorre hoje em dia De fato todos os cidadatildeos de
posiccedilatildeo elevada se dedicaram agrave oratoacuteria e agrave filosofia de forma que ateacute haacute pouco sua cidade serviu como
escola para os baacuterbaros convertendo os galos em filo-helenos jaacute que os contratos satildeo redigidos em grego
Atualmente Marselha persuadiu os romanos mais ilustres que desejam se instruir para que venham
estud r qui o inveacutes de f zer vi gem teacute Aten s (ESTRABOacuteN 1992 p 151)
88
Com Estrabatildeo encerram-se os relatos de autores gregos sobre os gauleses ndash ao
menos eacute o que podemos entender a partir das fontes que nos chegaram Jaacute no seacuteculo I
aC toda a Europa ocidental tinha sido conquistada pelos romanos que passaram a ter
contato direto com outros povos Assim ao inveacutes de gregos escrevendo etnografia e
narrativas sobre outras naccedilotildees vimos surgir em autores latinos obras desse contexto
De fato com Ceacutesar temos o maior expoente romano que tratou da figura do
gaulecircs Quanto aos historiadores latinos do periacuteodo de governo de Otaacutevio Augusto o
mesmo Estrabatildeo (III 4 19) escreveu que os romanos apenas imitavam os autores
gregos quanto aos tratados etnograacuteficos
νἱ δὲ ηλ Ῥσκαίσλ ζπγγξαθεῖο κηκνῦληαη κὲλ ηνὺο Ἕιιελαο ἀιι᾽ νὐθ ἐπὶ
πνιύ θαὶ γὰξ ἃ ιέγνπζη παξὰ ηλ Ἑιιήλσλ κεηαθέξνπζηλ ἐμ ἑαπηλ δ᾽ νὐ
πνιὺ κὲλ πξνζθέξνληαη ηὸ θηιείδεκνλ ὥζζ᾽ ὁπόηαλ ἔιιεηςηο γέλεηαη παξ᾽
ἐθείλσλ νὐθ ἔζηη πνιὺ ηὸ ἀλαπιεξνύκελνλ ὑπὸ ηλ ἑηέξσλ ἄιισο ηε θαὶ
ηλ ὀλνκάησλ ὅζα ἐλδνμόηαηα ηλ πιείζησλ ὄλησλ Ἑιιεληθλ
Los historiadores romanos imitan a los griegos pero no llevan muy lejos su
imitacioacuten pues lo que dicen lo traducen de los griegos sin aportar de siacute una
gran avidez de conocimientos de forma que cada vez que hay un vaciacuteo de
informacioacuten por parte de aqueacutellos no es mucho lo que completan los otros y
ocurre esto especialmente en la cuestioacuten de los nombres maacutes conocidos que
son griegos en su mayoriacutea162
A partir do seacuteculo I dC tambeacutem natildeo haacute mais relatos de autores gregos e
romanos a respeito dos gauleses se de fato existiram esses textos se perderam ao longo
do tempo Sobre narrativas etnograacuteficas em geral apenas no final do seacuteculo I dC
teremos novos textos em contexto latino com Pliacutenio o Velho cuja Historia naturalis
possui trechos de cunho etnograacutefico e tambeacutem a sua obra hoje perdida sobre os
germanos Taacutecito contemporacircneo de Pliacutenio o Velho com base no texto perdido desse
uacuteltimo dedicou um livro inteiro a um povo estrangeiro ndash a Germania ndash que se tornou o
maior exemplo de obra etnograacutefica essencialmente latina
162
―Os histori dores rom nos imit m os gregos m s natildeo lev m muito longe su imit ccedilatildeo pois o que
dizem o traduzem dos gregos sem fornecer por si uma grande avidez de conhecimentos de forma que
cada vez que haacute um vazio de informaccedilatildeo por parte daqueles natildeo eacute muito que completam os outros e
ocorre isso especialmente na questatildeo dos nomes mais conhecidos que satildeo gregos em su m iori
(ESTRABOacuteN 1992 p 112)
89
Capiacutetulo 2 ndash Ceacutesar e a Gaacutelia
No contexto do nosso tema de pesquisa enfocamos nosso trabalho nos escritos
de Juacutelio Ceacutesar Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho Concentramos nos autores do seacuteculo I aC
a II dC sobretudo porque esse foi um periacuteodo de grandes conquistas e de grandes
transformaccedilotildees no seio da sociedade romana Antes poreacutem de aprofundar sobre esses
autores e suas respectivas obras faz-se necessaacuterio realizar algumas consideraccedilotildees sobre
o contexto histoacuterico em que se deu a expansatildeo imperialista de Roma Sobre o proacuteprio
termo imperialismo destacamos aqui a consideraccedilatildeo feita por Guarinello (2014 p 118)
Primeiro uma distinccedilatildeo Impeacuterio e imperialismo satildeo termos proacuteximos mas
se referem na verdade a realidades bem distintas Imperialismo eacute uma accedilatildeo
poliacutetica ou econocircmica de expansatildeo ou dominaccedilatildeo de um estado sobre outros
Impeacuterio eacute um estado por vezes o resultado da accedilatildeo imperialista mas que natildeo
se confunde com esta No mundo antigo ao contraacuterio do mundo
contemporacircneo podemos acompanhar na longa duraccedilatildeo a transformaccedilatildeo de
uma accedilatildeo imperialista em um grande Impeacuterio163
Dessa forma neste capiacutetulo nos concentraremos nas conquistas imperialistas
empreendidas por Roma especialmente entre o seacuteculo I aC e I dC que depois iratildeo
culminar com a origem do principado ndash o governo imperial que se inicia com Otaacutevio
na segunda metade do seacuteculo I aC164
21 ndash Imperialismo romano periacuteodo de expansatildeo do seacuteculo II aC a I aC
Como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho desde o seacuteculo III aC Roma
jaacute tinha conquistado vaacuterios territoacuterios comeccedilando pela proacutepria peniacutensula Itaacutelica e depois
avanccedilando para a Europa Ocidental o norte da Aacutefrica e o Oriente proacuteximo Quando da
conquista da Peniacutensula Itaacutelica as cidades eram aliadas de Roma natildeo pagavam tributos e
apenas forneciam homens para ajudar a aumentar as legiotildees Por volta de 90 aC essas
cidades ndash que buscavam maior participaccedilatildeo nos despojos de guerra que aumentaram
consideravelmente com as recentes batalhas no Oriente ndash se rebelaram contra Roma
Natildeo deixa de ser curioso ainda notar que as cidades italianas tambeacutem exigiam a
163
Para discussatildeo mais aprofundada sobre imperialismo na Antiguidade e questotildees metodoloacutegicas
relacionadas a esse tema recomendamos Nicolet (2011 p 883 e ss) 164
Sobre o contexto de surgimento do principado abordaremos mais sobre esse assunto no proacuteximo
capiacutetulo
90
cidadania romana Essa revolta resultou na Guerra Social ou Guerra dos Soacutecios (91 a 87
aC) e de acordo com Guarinello (2014 p 291) ―os li dos represent r m m ior
ameaccedila domeacutestica agrave hegemonia romana em seacuteculos A Itaacutelia se tornou o palco de
grandes batalhas entre os que h vi m sido teacute entatildeo sold dos de um mesmo exeacutercito
Depois desse atrito ndash que natildeo teve um vencedor definido mas na verdade resultou em
um acordo ndash todas as cidades ao sul do rio Poacute (que entatildeo era o limite do territoacuterio
itaacutelico) receberam a cidadania o que levou agrave unificaccedilatildeo poliacutetica da peniacutensula jaacute em uma
fase avanccedilada da histoacuteria romana Essa junccedilatildeo das cidades itaacutelicas com Roma
consolidou ainda mais o aspecto imperialista da urbe os soacutecios isentos de tributos
contribuiacuteam com os proacuteprios homens para os exeacutercitos de Roma e tambeacutem partilhavam
do butim de guerra Dessa maneira a expansatildeo romana tendo por base essa grande
alianccedila entre cidades envolveu vaacuterios interesses comuns dos povos das planiacutecies contra
os montanheses dos habitantes da Itaacutelia contra os gauleses de gregos e etruscos contra
Cartago das aristocracias da Itaacutelia central contra as plebes urbanas e rurais
(GUARINELLO 2014 p 126)
Entrementes apoacutes a Segunda Guerra Puacutenica Roma ocupou a Siciacutelia
definitivamente em 241 aC a ilha tornou-se a primeira proviacutencia romana como tal o
territoacuterio conquistado era explorado como butim de guerra e forccedilado a pagar taxas a
Roma Como Guarinello lembra (2014 p 284) ―A exp nsatildeo subsequente f voreceri s
elites que disputavam o comando das guerras e o prestiacutegio e riquezas que obtinham
com elas bem como os camponeses meacutedios que formavam o grosso do exeacutercito
itaacutelico
211 ndash O exeacutercito romano
Roma teve a formaccedilatildeo de um exeacutercito a partir do seacuteculo VI aC e ao longo do
tempo as suas fileiras ficaram cada vez maiores e com teacutecnicas militares mais eficazes ndash
sendo um dos fatores para o aumento do exeacutercito o proacuteprio recrutamento de tropas entre
as cidades aliadas de Roma como abordamos no subitem anterior Desde seu princiacutepio
o exeacutercito romano era composto sobretudo pelos cidadatildeos da urbe Com a
consolidaccedilatildeo de Roma na Peniacutensula Itaacutelica aumentou-se a participaccedilatildeo dos aliados
(soacutecios) Grande parte do sucesso de Roma se deveu a uma organizaccedilatildeo militar uacutenica a
legiatildeo que surgiu no seacuteculo V aC Cada legiatildeo era composta por cerca de 4 a 6 mil
homens divididos em centuacuterias (cem soldados) e maniacutepulos (duas centuacuterias) Como
91
Schmidt (2004 p 20) ressalta essa hierarquia permitiu ao exeacutercito romano uma grande
flexibilidade de movimentaccedilotildees taacuteticas aleacutem disso as legiotildees eram acompanhadas pela
cavalaria responsaacutevel pela proteccedilatildeo das tropas e tambeacutem por ajudar a semear o pacircnico
entre os inimigos De toda forma essas tropas natildeo eram permanentes em sua maior
parte os soldados eram na verdade camponeses que depois das batalhas eram
dispensados do dever militar O exeacutercito ateacute o seacuteculo I aC era formado pela cavalaria
ndash composta pelos cidadatildeos de elite que podiam arcar com os elevados custos de se
manter um cavalo e pela infantaria formada pelos camponeses a ocupaccedilatildeo militar era
obrigatoacuteria O sucesso das legiotildees romanas estava principalmente na sua sofisticaccedilatildeo
com o emprego de maacutequinas de guerra elaboradas e versaacuteteis taacuteticas beacutelicas
Durante os seacuteculos derradeiros do periacuteodo republicano Roma conquistou vastos
territoacuterios acumulando grandes riquezas O sistema poliacutetico republicano natildeo se
sustentava mais nos novos moldes do imenso territoacuterio multicultural Esses vaacuterios ecircxitos
militares acentuaram profundas dissensotildees no seio de Roma Os constantes
recrutamentos dos cidadatildeos romanos enfraqueceram a populaccedilatildeo e a desigualdade
social aumentou bastante Os veteranos tendo deixado o exeacutercito exigiam distribuiccedilatildeo
de terras e do lucro obtido com os saques mas a oligarquia senatorial nada fazia de
relevante para recompensar os soldados que ajudaram na expansatildeo do domiacutenio romano
(GUARINELLO 2014 p 290-291)
Dessa forma as tropas comeccedilaram a obedecer mais agrave autoridade dos generais ndash
jaacute que eles passaram a distribuir o butim de guerra entre suas legiotildees ndash do que ao
proacuteprio Senado A relaccedilatildeo dos soldados com seus superiores criou uma ligaccedilatildeo
poderosa de troca de vantagens os legionaacuterios conseguiam compensaccedilatildeo financeira por
seus serviccedilos militares e os chefes dispunham da fidelidade de suas tropas atraveacutes das
quais tinham respaldo para concretizar suas ambiccedilotildees poliacuteticas (GUARINELLO 2014
p 113-114) Esse processo comeccedilou a se formar a partir da segunda Guerra Puacutenica jaacute
que aumentou a necessidade de comandos prolongados com duradouro contato direto
entre os liacutederes e as proacuteprias tropas e tambeacutem desses com as populaccedilotildees e elites locais
que em alguns casos tornaram-se clientes desses generais Esses liacutederes carismaacuteticos
como Puacuteblio Corneacutelio Cipiatildeo e outros que surgiram depois como Maacuterio Sila Pompeu
e Ceacutesar levaram a um reforccedilo das lideranccedilas pessoais que abriu portas para
concentraccedilatildeo de poder poliacutetico nas figuras dos generais (OLIVEIRA in BRANDAtildeO
OLIVEIRA 2015 p 258 e 259) Esse processo se acentuou sobretudo depois da
reforma militar de Maacuterio em 107 aC os soldados passaram a ser alistados como
92
voluntaacuterios e a exigecircncia de se possuir bens para participar do exeacutercito foi abolida165
Aleacutem disso foi nessa reforma que ficou estabelecida a legiatildeo composta por 6 mil
homens sendo cada legiatildeo designada por um nuacutemero e uma aacuteguia Com o recrutamento
contiacutenuo entre os cidadatildeos as fileiras do exeacutercito mantinham-se constantemente estaacuteveis
(BORNECQUE MORNET 2002 p 115)166
Os legionaacuterios viam uma boa chance de
melhorar de vida atraveacutes do dever militar graccedilas agraves pilhagens e presentes por parte dos
generais e tambeacutem por conseguirem uma porccedilatildeo de terra quando eram dispensados por
conseguinte a carreira militar tornou-se de fato uma profissatildeo (GUARINELLO 2014
p 128) As tropas que outrora respondiam ao comando do Senado transformaram-se
em verdadeiros exeacutercitos particulares dos grandes generais Isso dentre outros fatores ndash
como as transformaccedilotildees soacutecio-econocircmicas o empobrecimento da Itaacutelia (cada vez mais
dependente das proviacutencias) e as mudanccedilas culturais e de costumes ndash levou agraves crises
poliacuteticas que culminaram no fim da Repuacuteblica e no surgimento do poder centralizado na
figura de um uacutenico indiviacuteduo167
212 ndash O romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista
Durante a Repuacuteblica ateacute meados do seacuteculo II aC a diplomacia romana era
baseada em princiacutepios religiosos e morais que norteavam a convivecircncia de Roma com
os outros povos Esses princiacutepios implicavam uma relaccedilatildeo reciacuteproca na qual os
vencedores deveriam ser clementes protetores e moderados para com os vencidos
(MENDES 1988 p 46) Evidentemente essas relaccedilotildees embora reciacuteprocas natildeo eram
igualitaacuterias como Veyne (in GIARDINA 1992 p 296) afirma
() o povo romano eacute um povo-rei as suas relaccedilotildees com os suacuteditos ou com os
estrangeiros satildeo um patrocinium natildeo satildeo relaccedilotildees com parceiros iguais
165
Como destaca Gabba (1977 p 52) ateacute entatildeo tanto para gregos quanto para romanos era forte a
crenccedila de que aos cidadatildeos pobres natildeo deveria ser permitido o alistamento militar jaacute que a elite temia
armar uma populaccedilatildeo que poderia se revoltar contra ela Em Roma com a inovadora mudanccedila feita por
Maacuterio no exeacutercito os mais pobres passaram a ser aceitos (inclusive natildeo cidadatildeos) e eles passaram a se
identificar com a causa imperialista romana mais que uma questatildeo de patriotismo servir ao exeacutercito
tornou-se um meio de conseguir ganhos financeiros e ateacute a cidadania 166
Para estudo profundo sobre o exeacutercito romano bem como sua evoluccedilatildeo desde a Roma arcaica ateacute o
periacuteodo de Justiniano recomendamos o livro de Erdkamp (2007) 167
Natildeo iremos nos aprofundar sobre os detalhes de fatos histoacutericos que levaram ao fim da Repuacuteblica
romana jaacute que eles foram muitos e de natureza cultural poliacutetica e social Para maior estudo sobre o tema
do final da Repuacuteblica romana e as grandes mudanccedilas sociais e poliacuteticas que ocorreram recomendamos
para uma leitura inicial Boardman et al (1986) e Mendes (1988) Sobre uma bibliografia mais recente e
que aborda a historiografia de forma mais detalhada destacamos as obras de Guarinello (2014) e Brandatildeo
e Oliveira (2015 v 1)
93
segundo regras formais mas relaccedilotildees pessoais desiguais e informais natildeo se
atribui uma norma a um rei os suacuteditos devem entregar-se com confianccedila agrave
sua boa-feacute e agrave sua humanidade
Dessa forma esse tipo de relacionamento entre romanos e naccedilotildees vencidas
aproximava-se da clientela fundamental no relacionamento entre os membros da
sociedade romana168
Todavia ao inveacutes da correlaccedilatildeo de confianccedila da esfera privada ndash
isto eacute da boa feacute que o cidadatildeo romano tinha para com seu cliente ndash temos essa
correlaccedilatildeo na esfera puacuteblica que implicava na boa feacute do Estado para com o
conquistado O cliente seja ele um indiviacuteduo ou um povo deveria ser leal ao seu
patrono caso contraacuterio ele deveria ser duramente punido por sua insubordinaccedilatildeo De
acordo com Veyne (in GIARDINA 1992 p 295) nesse periacuteodo republicano a
justificativa ideoloacutegica para o domiacutenio romano natildeo se baseava em uma noccedilatildeo de que
eles eram de uma civilizaccedilatildeo superior agraves outras mas sim o direito de comandar se
justificava pelo proacuteprio sucesso militar de Roma e sobretudo a honestidade com a qual
a urbe exercia esse controle que deveria ser feito com moderaccedilatildeo169
Por conseguinte
os romanos natildeo travavam guerras para impor a sua religiatildeo cultura ou liacutengua desde que
os povos e naccedilotildees clientes aceitassem o domiacutenio eles poderiam manter suas proacuteprias
instituiccedilotildees poliacuteticas liacutengua e cultura (LE BOHEC 2009 p 30)170
Segundo Mendes
(1988 p 46) sobre a postura de Roma para com os seus os aliados com o tempo
passou a ser reforccedilada a noccedilatildeo de uma guerra justa fundamentada na justificativa
juriacutedica da accedilatildeo militar romana em defesa dos seus soacutecios e reinos aliados171
Como o
168
Desde tempos arcaicos existia em Roma a clientela Agraves famiacutelias patriacutecias ligavam-se os clientes que
eram homens livres que participavam do culto familiar mas natildeo possuiacuteam direitos poliacuteticos O cliente era
protegido pelo pater familias (patrono) que era a autoridade suprema no contexto domeacutestico o cliente
poderia adotar o nome gentiacutelico e ser sepultado no tuacutemulo da gens (espeacutecie de clatilde) Por sua vez ele devia
completa obediecircncia a seu patrono o qual poderia dispor de seus bens A clientela era hereditaacuteria e a
partir do regime imperial cada vez mais cidadatildeos ricos acumulavam uma larga clientela de pobres
miseraacuteveis que recebiam auxiacutelio financeiro Famiacutelias eminentes chegavam a possuir comunidades
inteiras como clientes Para esse pequeno resumo sobre a clientela tomamos por referecircncia Bornecque e
Mornet (2002 p 84) 169
Cf o famoso trecho de Virgiacutelio na nota 121 p 64 e 65 170
Falaremos sobre esse tema de forma mais detalhada no subcapiacutetulo 221 (algumas consideraccedilotildees
sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental) 171
H rris (1979) questionou esse ―dever dos rom nos de serem imperi list s por questotildees de
sobrevivecircncia ou de proteccedilatildeo de si mesmos ou aliados O autor defendeu a teoria de que os romanos
foram imperialistas intencionalmente que todas as accedilotildees da oligarquia senatorial visavam aos ganhos
com butins terras e escravos e que essa elite sempre buscava confrontos para esse fim Sherwin-White
(1980) questionou essa ideia defendida por Harris afirmando que nem sempre os romanos foram
envolvidos em guerras com outros povos uacutenica e exclusivamente visando aos lucros da atividade
imperialista ndash agraves vezes os romanos travavam batalhas com fins de proteccedilatildeo um exemplo dentre os vaacuterios
citados por Sherwin-White foi o fato de terem acontecido poucas guerras na segunda metade do seacuteculo II
aC Concordamos que essa questatildeo deva ser analisada em um ponto de meio-termo natildeo considerando
que os romanos fizeram tudo de caso pensado para fins imperialistas mas tambeacutem de que essas
94
proacuteprio Poliacutebio escreveu (Hist I 3 10) ἀιι᾽ ἐθ ηνύησλ ηλ βύβισλ θαὶ ηῆο ἐλ ηαύηαηο
πξνθαηαζθεπῆο δῆινλ ᾖ ηνῖο ἐληπγράλνπζηλ ὅηη θαὶ ιίαλ εὐιόγνηο ἀθνξκαῖο
ρξεζάκελνη πξόο ηε ηὴλ ἐπίλνηαλ ὥξκεζαλ θαὶ πξὸο ηὴλ ζπληέιεηαλ ἐμίθνλην ηῆο ηλ
ὅισλ ἀξρῆο θαὶ δπλαζηείαο ―(hellip) los que usen estos dos libros y l introduccioacuten que
contienen veraacuten muy claro que los romanos se arrojaron a tales empresas con medios
sumamente razonables y que por ello lograron el imperio y el gobierno de todo el
mundo 172
Sobre esse ―direito de guerr n su obr De officiis (Sobre os deveres) Ciacutecero
assim escreveu (I 38)
Cum uero de imperio decertatur belloque quaeritur gloria causas omnino
subesse tamen oportet easdem quas dixi paulo ante iustas causas esse
bellorum Sed ea bella quibus imperii proposita gloria est minus acerbe
gerenda sunt Ut enim cum ciui aliter contendimus si est inimicus aliter si
competitor (cum altero certamen honoris et dignitatis est cum altero capitis
et famae) sic cum Celtiberis cum Cimbris bellum ut cum inimicis gerebatur
uter esset non uter imperaret cum Latinis Sabinis Samnitibus Poenis
Pyrrho de imperio dimicabatur
De fato como se combate pela supremacia e se busque a gloacuteria atraveacutes da
guerra entatildeo conveacutem inteiramente que essas causas as mesmas as quais
mencionei pouco antes sejam as causas justas das guerras Mas essas
guerras para as quais se realiza a gloacuteria da supremacia devem ser feitas da
forma menos cruel Com efeito quando rivalizamos com um cidadatildeo agimos
de uma maneira se eacute inimigo ou de outra se eacute concorrente (com o primeiro a
disputa eacute por sobrevivecircncia e gloacuteria com o segundo eacute por honra e prestiacutegio)
assim contra os celtiberos e os cimbros a guerra foi empreendida como
contra inimigos natildeo para que um dos dois lados vencesse mas sim para que
sobrevivesse contra os latinos sabinos samnitas puacutenicos e Pirro a guerra
foi travada por supremacia173
Ciacutecero ainda no De officiis escrito por ele no periacuteodo final da Repuacuteblica
ressaltou que os romanos p ss r m exercer m l o ―direito de guerr just Ele
criticou Ceacutesar natildeo pelas guerras gaulesas mas sim pela guerra civil Assim temos (De
officiis II 8)
conquist s natildeo for m pen s improvis d s Como Mendes (2007 p 28) dest c ― ccedilatildeo imperi list
romana manifestou-se atraveacutes do estabelecimento de uma relaccedilatildeo de poder obtida inicialmente por meio
de alianccedilas razoavelmente igualitaacuterias protetorados formaccedilatildeo de zonas de influecircncia e ateacute a submissatildeo
tot l pel guerr do dversaacuterio e nex ccedilatildeo de seu territoacuterio 172
―( ) queles que us m estes dois livros e introduccedilatildeo que contecircm veratildeo muito claro que os romanos
se lanccedilaram a tais empresas com meios extremamente razoaacuteveis e que por isso lograram o impeacuterio e o
governo de todo o mundo Ness p ss gem dentre outr s que podem ser encontr d s o longo d s
Histoacuterias Poliacutebio reforccedilou o direito de Roma governar o mundo justificando as accedilotildees imperialistas da
urbe como ―guerr just e ―destino de Rom M is um vez utiliz mos tr duccedilatildeo de Poliacutebio feita por
Recort (1981) 173
Saluacutestio tambeacutem afirmou algo parecido no final de sua obra Bellum Iugurthinum (capiacutetulo CXIV) ao
dizer que contra os gauleses a luta natildeo era por gloacuteria mas sim pela sobrevivecircncia de Roma
95
Verum tamen quam diu imperium populi Romani beneficiis tenebatur non
iniuriis bella ut pro sociis aut de imperio gerebantur exitus erant bellorum
aut mites aut necessarii regum populorum nationum portus erat et
refugium senatus nostri autem magistratus imperatoresque ex hac una re
maximam laudem capere studebant si prouincias si socios aequitate et fide
defendissent itaque illud patrocinium orbis terrae uerius quam imperium
poterat nominari Sensim hanc consuetudinem et disciplinam iam antea
minuebamus post uero Sullae uictoriam penitus amisimus desitum est enim
uideri quicquam in socios iniquum cum exstitisset in ciues tanta crudelitas
() Secutus est qui in causa impia uictoria etiam foediore non singulorum
ciuium bona publicaret sed uniuersas prouincias regionesque uno
calamitatis iure comprehenderet
Na verdade por muito tempo a soberania do povo romano foi mantida por
meio de benefiacutecios e natildeo por injusticcedilas de modo que as guerras eram
travadas a favor dos aliados ou sobre essa soberania os termos das guerras
eram ou indulgentes ou ao menos indispensaacuteveis e o senado era um porto e
refuacutegio dos reinos povos e naccedilotildees ora nossos magistrados e comandantes a
partir disso se esforccedilavam para alcanccedilar a mais alta honra uma vez que
defendessem as proviacutencias ou aliados com justiccedila e fidelidade assim isso
poderia mais justamente ser chamado de proteccedilatildeo do mundo todo do que
desmando Antes jaacute perdiacuteamos esse costume e princiacutepio de forma gradual
mas na verdade foi apoacutes a vitoacuteria de Sila que o abandonamos
completamente de fato natildeo eacute mais possiacutevel considerar algo de injusto contra
os aliados uma vez que passou a existir contra os proacuteprios cidadatildeos tamanha
crueldade () O que veio de depois de Sila com uma causa iacutempia natildeo soacute
confiscou os bens dos proacuteprios cidadatildeos com uma vitoacuteria vergonhosa mas
tambeacutem envolveu todas as proviacutencias e regiotildees em um soacute estado de
calamidade
No trecho acima Ciacutecero constatou que o fim da mentalidade do povo romano
como protetor dos aliados comeccedilou a partir de Sila que travou contra Maacuterio a primeira
guerra civil da histoacuteria romana e tornou-se ditador e governante absoluto174
Para
Ciacutecero essa ideologia acabou de fato a partir de Ceacutesar ndash o qual o orador designou como
o que ―veio depois de Sil gr nde criacutetic de Ciacutecero port nto consisti n f lt de
honestidade de Ceacutesar capaz de lutar contra seus proacuteprios concidadatildeos e aliados de
longa data demonstrando que pouco se importava com a legitimidade ou justiccedila de suas
accedilotildees
Como Ciacutecero mesmo afirmou acima a mentalidade da boa feacute do domiacutenio
romano foi mudando lentamente agrave medida que o territoacuterio conquistado crescia e
aumentava o nuacutemero de proviacutencias e naccedilotildees aliadas A ideia da missatildeo de Roma que se
considerava predestinada a formar um impeacuterio universal transformava-se pois a urbe
174
A ditadura consistia em uma magistratura extraordinaacuteria que substituiacutea o consulado e era dotada de
poderes excepcionais O Senado decidia quando se devia recorrer a um ditador sendo esse recurso usado
apenas em momentos de grande perigo ou gravidade para Roma O ditador escolhia o magister equitum
(mestre ou comandante da cavalaria) que era o seu braccedilo direito A ditatura tinha a duraccedilatildeo de seis
meses mas o ideal era que ela terminasse antes desse prazo No caso de Sila ele tornou-se ditador ao
vencer a guerra civil contra Maacuterio obtendo o controle total da Cidade atraveacutes do seu exeacutercito Para mais
detalhes sobre a ditadura em Roma cf Canfora (2002 p 486)
96
dependia cada vez mais dos recursos vindos de lugares exteriores agrave Itaacutelia Jaacute durante o
periacutedo final da Repuacuteblica eacute possiacutevel ver uma mudanccedila nos argumentos que apoiavam as
conquistas a noccedilatildeo de uma guerra preventiva passa a prevalecer jaacute que Roma natildeo
poderia ter como vizinho um povo ou estado militarmente forte que pudesse ameaccedilar
sua hegemonia (MENDES 1988 p 46)
Dessa maneira eacute possiacutevel notar que os romanos tambeacutem eram motivados a
conquistar outros territoacuterios por razotildees psicoloacutegicas o medo (metus) do outro
impulsionava essas guerras preventivas aleacutem da proacutepria noccedilatildeo de seguranccedila que natildeo
pode ser desconsiderada de fato caso fossem derrotados os perdedores sofreriam nas
matildeos dos vencedores (LE BOHEC 2009 p 30) Nas palavras de Riggsby (2006 p
21) um aspecto fundamental dessa ideologia imperialista de Roma era um territoacuterio
pacificado em seu interior frente ao perigoso exterior Destacamos como exemplo
desse processo o posicionamento de Roma a partir do seacuteculo III aC que buscava se
defender do asseacutedio de macedocircnicos e siacuterios (que almejavam expandir seus domiacutenios)
Houve vaacuterios conflitos que se iniciaram em 214 aC ndash quando comeccedilou a Primeira
Guerra dos romanos contra Felipe da Macedocircnia ndash tendo ainda combates entre romanos
e siacuterios entre 192 a 188 aC ateacute o periacuteodo entre 172 a 168 aC quando os romanos
venceram a Terceira Guerra da Macedocircnia Roma nesse momento ateacute entatildeo se portava
como a protetora de cidades gregas e pequenos Estados heleniacutesticos (MENDES 1988
p 46) esse protetorado regido por relaccedilotildees de obediecircncia e sujeiccedilatildeo a Roma acabou
fomentando vaacuterias revoltas dessas cidades Por conseguinte a urbe novamente optou
por guerras que levaram agrave criaccedilatildeo da proviacutencia da Macedocircnia (em 149 aC) a
destruiccedilatildeo de Corinto e a submissatildeo de toda a Greacutecia (146 aC) De acordo com
Mendes (1988 p 47) ―Rom p ssou ser gui d pel doutrin segundo qu l os reis
ou os povos livres independentes e amigos de Roma deviam esta situaccedilatildeo agrave vontade do
povo rom no Ess mud nccedil de ment lid de form d no seacuteculo III C no seacuteculo I
aC justificou a sede de conquista de Roma levando agraves grandes anexaccedilotildees de terras e
estabelecimento de novas proviacutencias
Outro fator que contribuiu bastante para a ampliaccedilatildeo do domiacutenio romano foi a
proacutepria ambiccedilatildeo dos grandes generais (sobretudo no periacuteodo final da Repuacuteblica) Como
destaca le Bohec (2009 p 29 e 30) para fazer carreira poliacutetica um aristocrata romano
devia servir agrave urbe tanto no campo civil quanto no militar demonstrando ser um bom
administrador e um bom general apresentando sua capacidade tanto na guerra quanto
na paz De fato em Roma as esferas poliacutetica e militar sempre estiveram juntas uma vez
97
que vaacuterias magistraturas possuiacuteam o imperium175
Assim por todos esses motivos acima
elencados Roma portanto ultrapassou os limites geograacuteficos da cidade e tornou-se de
fato todo o territoacuterio conquistado
213 ndash Poliacutetica de conquista a cidadania romana
Durante a expansatildeo da urbe grandes naccedilotildees como os puacutenicos gregos hispanos
e gauleses dentre outros sucumbiram ao poderio do exeacutercito romano Com as guerras
teve-se o aumento consideraacutevel da matildeo-de-obra escrava em Roma matildeo-de-obra essa
que trabalhava sobretudo nos grandes latifuacutendios mas tambeacutem nas cidades como
servos professores etc Como eram tratados esses povos conquistados em Roma Os
povos vencidos recebiam tratamento muito diversificado de acordo com sua posiccedilatildeo em
relaccedilatildeo aos romanos ao seu poderio se resistiram bravamente agrave conquista ou se
submeteram a ela pacificamente A elite dos povos que tranquilamente se aliavam
recebia a cidadania romana plena ou parcial176
Os que resistiam quando subjugados
tornavam-se escravos e as naccedilotildees rebeldes eram submetidas a pesados tributos e
impostos Sobre o meacutetodo de conquista romana Guarinello (2014 p 112-113) afirma
A expansatildeo da estado-cidade de Roma sobre as peniacutensula criaraacute novos
problemas A expansatildeo romana foi na verdade a de uma alianccedila de estados-
cidades todas contribuindo para o esforccedilo militar e todas pleiteando e
obtendo em graus diferentes e em momentos distintos participaccedilatildeo na
cidadania romana direito a matrimocircnio direito ao comeacutercio e por fim direito
agrave participaccedilatildeo poliacutetica Comparando-se a cidadania romana com seus
congecircneres gregos estaacute sempre foi de certo modo mais aberta os proacuteprios
escravos ao adquirirem a liberdade por alforria tornavam-se cidadatildeos Por
outro lado no curso de sua expansatildeo pela peniacutensula Roma fundou cerca de
quarenta outras cidades cujos habitantes preservaram em graus diferentes
seu direito agrave cidadania romana Aleacutem disso no territoacuterio das cidades
conquistadas Roma assentou parte de sua populaccedilatildeo mais pobre ora como
colonos ora como proprietaacuterios individuais de modo que no curso do seacuteculo
III aC Roma tendia a desterritorializar a noccedilatildeo da cidadania ampliando-a
para os habitantes das colocircnias e ao menos para aselites das cidades
conquistadas Aos poucos Roma deixa de ser uma estado-cidade tiacutepica e se
torna um Estado imperial
Roma surgida de uma uniatildeo de povos sabia conviver com as diferenccedilas e
engenhosamente adotava essa estrateacutegia de concessatildeo da cidadania sendo essa taacutetica
175
Possuiacuteam o imperium os cocircnsules pretores prococircnsules propretores ditador e comandante da
cavalaria O imperium consistia no direito de comando superior militar e jurisdicional aleacutem de entre
outras prerrogativas o direito de recrutar e comandar o exeacutercito convocar o povo para comiacutecios etc 176
Mendes (2007) detalha mais as maneiras como as elites das naccedilotildees conquistadas cooperavam com
Roma bem como as diferenccedilas legais entre os estatutos das proviacutencias e cidades sob o domiacutenio romano
98
eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar possiacuteveis aliados Ao se conceder
cidadania agraves naccedilotildees derrotadas e manter as elites locais no poder Roma adotava uma
postura muito oposta da que os gregos tinham em relaccedilatildeo aos povos subjugados como
pode-se ler no trecho acima Nas cidades-Estado helecircnicas os povos vencidos eram
obrigados a fornecer somente dinheiro para o eraacuterio enquanto que Roma aleacutem de
impostos exigia fornecimento de tropas estreitando os viacutenculos entre conquistadores e
conquistados Outro estatuto que o estrangeiro poderia obter em Atenas seria o de
meteco177
Quanto aos estrangeiros em Esparta eles eram reduzidos agraves categorias de
hilotas ou escravos178
Ao se comparar o modo com que estrangeiros eram tratados em
Roma em Atenas e em Esparta percebe-se que Roma sempre foi de certo modo mais
aberta a esses forasteiros pois ateacute mesmo escravos tornavam-se cidadatildeos ao receberem
a alforria de seus proprietaacuterios (GUARINELLO 2014 p 112) Como Veyne ressalta
(In GIARDINA 1992 P 300) ―Os rom nos satildeo uns empiacutericos que natildeo se comport m
como ideoacutelogos convictos naturalizam o estrangeiro e o liberto mais facilmente do que
os gregos que se mantinham fieacuteis os seus princiacutepios restritos Tod vi em rel ccedilatildeo
aos devedores e insubordinados Roma mantinha uma postura extremamente rigorosa
Esse tipo de dominaccedilatildeo por parte de Roma ineacutedito ateacute entatildeo mostrava-se eficaz para
conter possiacuteveis revoltas ou alianccedilas entre os inimigos da Cidade Roma desde a sua
origem jaacute tinha a presenccedila muito forte do estrangeiro que depois foi assimilado e
incorporado agrave cultura latina179
Esse raacutepido crescimento de Roma se deveu a inuacutemeros
fatores como a capacidade de integraccedilatildeo e acolhimento de outras naccedilotildees (inclusive
pobres fugitivos escravos) raacutepido aumento demograacutefico (pela guerra ao conseguir
coaptar aliados e derrotar os inimigos) e por fim pela capacidade em se absorver
177
Os estrangeiros que se estabeleciam na Aacutetica conhecidos como metecos gozavam de um estatuto
melhor do que os hilotas espartanos Embora tambeacutem natildeo gozassem de direitos na cidade pagavam uma
taxa e deviam ter como responsaacutevel um cidadatildeo ateniense Entretanto os metecos participavam da vida
puacuteblica da cidade prestavam serviccedilo militar assistiam agraves festas religiosas Em virtude de trabalhos
prestados poderiam obter a igualdade de direitos (JARDEacute 1977 p 170) 178
Os hilotas eram servos subordinados em Esparta Junto suas famiacutelias moravam em terras que
pertenciam a um cidadatildeo espartano e eram obrigados a cultivaacute-las geraccedilatildeo apoacutes geraccedilatildeo Os hilotas natildeo
podiam ser expulsos dessa terra e pagavam ao proprietaacuterio uma taxa anual fixa O hilota poderia
participar do exeacutercito em caso de necessidade contudo ele natildeo gozava de cidadania e nem era protegido
pelas leis (JARDEacute 1977 p 163) Fisher (In KINZL 2006 p339) lembra que o estrangeiro era
comumente tratado de duas formas diferentes nas cidades-Estado gregas Em um extremo em Esparta e
algumas poucas cidades era adotada uma poliacutetica cautelosa e restritiva perante os estrangeiros que natildeo
eram normalmente bem vindos o que ocasionalmente acarretava em expulsotildees Por outro lado em
Atenas ndash e provavelmente em muitas cidades ndash desenvolveram-se gradualmente arranjos para o registro e
organizaccedilatildeo dos metecos (FISHER In KINZL 2006 p 339) Para discussatildeo mais profunda do status do
estrangeiro na Greacutecia no periacuteodo claacutessico recomend mos o c piacutetulo ―Citizens foreigners nd slaves in
Greek society de Fisher (in KINZL 2006 p 327 a 349) 179
Jaacute abordamos rapidamente esse assunto na p 16
99
elementos externos como imigrantes povos vencidos ritos religiosos etc (LEAtildeO
BRANDAtildeO In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 28 e 29)
Com a concessatildeo da cidadania romana aos povos dominados criou-se tambeacutem
uma complexidade maior na organizaccedilatildeo social de Roma e de seus territoacuterios Os
aliados que contribuiacuteam no esforccedilo de conquista pleiteavam e obtinham em momentos
e graus distintos a cidadania romana ndash com direito ao matrimocircnio ao comeacutercio e ateacute
mesmo agrave participaccedilatildeo poliacutetica (GUARINELLO 2014 p 112) Aleacutem disso Roma
assentou nas proviacutencias parte da sua populaccedilatildeo mais pobre a fim de colonizar as terras
A cidadania romana (que adquiriu mais nuances entre os direitos do cidadatildeo pleno ou
parcial) gradualmente comeccedilou a se desvincular do territoacuterio da proacutepria urbe Roma
passou a ser natildeo soacute a cidade mas tambeacutem as regiotildees ocupadas nas quais havia cidadatildeos
romanos ndash mesmo que nas proviacutencias essa cidadania fosse concedida apenas agraves elites
locais180
Ainda segundo Guarinello (2014 p 113) ―Rom deix de ser um est do-
cidade tiacutepica e se torna um Estado imperi l
Todavia grandes penas eram infligidas aos povos que resistiam aos romanos A
romanizaccedilatildeo se deu com mais forccedila na Europa ocidental disso ateacute hoje temos o
predomiacutenio das liacutenguas latinas dos haacutebitos e costumes herdados dos romanos181
Sobre
esse processo de romanizaccedilatildeo Rawson (In BOARDMAN et al 1986 p 363) ressalta
que os romanos acreditavam que natildeo tinham muito o que aprender com os ocidentais ndash
embora um tratado isolado de Cartago sobre agricultura tenha sido traduzido para o
latim182
Os romanos tampouco se interessaram em aprender as liacutenguas ocidentais e
para as elites locais embora o domiacutenio fosse a princiacutepio odiado com o tempo passou a
ser considerado como um avanccedilo civilizacional (RAWSON in BOARDMAN et al
1986 p 363) O comeacutercio e o fluxo de mercadorias tambeacutem ajudaram no processo de
romanizaccedilatildeo183
180
Na verdade a partir do seacuteculo I aC a noccedilatildeo de cidadania romana esvazia-se gradualmente jaacute que o
poder de fato encontrava-se cada vez mais concentrado nas matildeos dos generais ditadores (como Pompeu
e Ceacutesar) e posteriormente nas matildeos do imperador Em 212 dC Caracala atraveacutes de um eacutedito concedeu
a todos os habitantes livres do Impeacuterio a cidadania romana (GUARINELLO 2014 p 312) Sobre o
conceito da cidadania romana e sua evoluccedilatildeo dos tempos da Repuacuteblica ateacute o baixo Impeacuterio
recomendamos o c piacutetulo ―A cid d ni ntig (In GUARINELLO 2014) 181
Para aprofundamento sobre o tema da conquista romana na Europa Ocidental recomendados o livro de
le Bohec (2009) 182
Esse tratado escrito por Mago (que viveu provavelmente entre os seacuteculos III e II aC) foi traduzido
para o latim por ordem oficial sendo depois citado por Varratildeo e Columela hoje temos apenas fragmentos
dessa obra (CONTE 1999 p 499) 183
Falaremos mais desse assunto adiante na p 107-108
100
Outro fator que ajudou na consolidaccedilatildeo cultural de Roma no Ocidente foi o fato
de que embora houvesse preconceito cultural o preconceito motivado simplesmente
por questotildees raciais era pequeno Se os baacuterbaros estivessem dispostos a abandonar seus
haacutebitos selvagens eles poderiam deixar a condiccedilatildeo de barbaacuterie184
Rawson (In
BOARDMAN et al 1986 p 360) destaca como exemplo emblemaacutetico o fato de Luacutecio
Corneacutelio Balbo proeminente cidadatildeo romano nascido na Beacutetica (onde hoje eacute o sul da
Espanha) ter chegado ao cargo de cocircnsul em 40 aC ndash o primeiro cidadatildeo natildeo itaacutelico da
histoacuteria a ocupar o maior posto da Repuacuteblica romana185
Se no Ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi mais profundo jaacute no mundo
heleniacutestico a conquista foi bem diferente Roma hesitou mais preferindo o bloqueio
comercial e alianccedilas por meio de clientelas do que a invasatildeo direta e domiacutenio ostensivo
As civilizaccedilotildees orientais como os proacuteprios gregos e os egiacutepcios jaacute eram muito
avanccediladas com cultura e literatura desenvolvidas nunca houve por parte dos vencidos
uma tentativa de se adotar a cultura ou costumes romanos A fronteira linguiacutestica serve
como testemunho disso jaacute que esses povos mantiveram o uso de seus idiomas e
percebe-se que o latim de forma alguma foi a liacutengua predominante (GUARINELLO
2014 p 127)
22 ndash A conquista da Gaacutelia
A partir do seacuteculo V aC Roma iniciou o processo de expansatildeo na Peniacutensula
Itaacutelica ndash processo esse que teve seu auge no seacuteculo III aC e que se consolidou de forma
definitiva apoacutes a Guerra Social no seacuteculo I aC Ateacute entatildeo Roma nunca tivera sido
ameaccedilada por algum inimigo de forma draacutestica ou implacaacutevel dessa forma a invasatildeo
dos gauleses na urbe no comeccedilo do seacuteculo IV aC nas palavras de Faversani e Joly (In
BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 118) ―foi como um tempest de c indo de um ceacuteu
cl ro Esse evento de gr nde m gnitude chegou ser notici do por fontes greg s do
seacuteculo IV aC186
Os celtas se estabeleceram na Europa Ocidental especialmente na
184
Cf nota 71 na p 41 deste trabalho 185
No discurso Pro Balbo (A favor de Balbo) Ciacutecero defende a concessatildeo da cidadania romana a Balbo
perante o Senado 186
Plutarco em sua obra Vidas paralelas na biografia de Camilo (XXII4) menciona que Aristoacuteteles sem
duacutevida tivera conhecimento sobre a ocupaccedilatildeo de Roma pelos celtas (In PLUTARCO 2008 tomo II p
372) Pliacutenio o Velho (HN III 957) menciona que Teopompo (historiador e retoacuterico da eacutepoca de
Alexandre) tambeacutem disse que os gauleses tinham conquistado a Cidade (In PLINIO EL VIEJO 1998
p37)
101
segunda metade do seacuteculo V aC quando deixaram as terras do norte da Alemanha e
aacutereas proacuteximas (onde hoje eacute a Dinamarca agraves margens do mar Baacuteltico e do rio Elba) e
migraram para o sul em busca de clima mais ameno e terras feacuterteis essas naccedilotildees
assim estabeleceram-se onde hoje eacute a Franccedila a Catalunha (dando origem aos
celtiberos) a Beacutelgica a Suiacuteccedila estendendo-se ateacute o rio Danuacutebio e tambeacutem na Inglaterra
e norte da Itaacutelia (SCHMIDT 2004 p 11 a 14) A naccedilatildeo celta dos secircnones que tinha seu
territoacuterio onde hoje estaacute situada a cidade de Sens na Franccedila era bastante populosa e
sofria com escassez de terras por conseguinte parte desse povo cruzou os Alpes em
400 aC e se estabeleceu na regiatildeo entre Ravena e Ancona depois de expulsarem os
uacutembrios e foram eles os responsaacuteveis pelo saque de Roma (SCHMIDT 2004 p 15)
Entrementes os romanos ainda em luta contra os etruscos a princiacutepio consideraram ter
com os celtas uma neutralidade muacutetua embora esse povo estivesse muito proacuteximo jaacute
que em 396 aC romanos e celtas fizeram uma alianccedila contra os etruscos na tomada de
Veios sob o comando do entatildeo ditador Camilo em 390 aC Camilo acusado de
distribuiccedilatildeo desonesta do butim de Veios foi obrigado a se exilar em Ardea
(SCHMIDT 2004 p 21) Assim Roma ficou sem uma lideranccedila forte que permitisse
que ela se defendesse da invasatildeo iminente dos gauleses187
Ainda restam algumas duacutevidas sobre as razotildees dos celtas terem invadido Roma
de acordo com Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 120) o
deslocamento dos gauleses era mais motivado por ganhos imediatos advindos de butins
do que pela conquista de novas terras Por conseguinte embora tenha sido uma grande
humilhaccedilatildeo para os romanos o saque da cidade natildeo deixou uma grande devastaccedilatildeo
ainda segundo Faversani e Joly (In BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 121) a proacutepria
recuperaccedilatildeo de Roma apoacutes a invasatildeo de forma raacutepida e efetiva eacute indiacutecio de que a
destruiccedilatildeo natildeo foi tatildeo grande assim Esse acontecimento contudo ficou definitivamente
gravado na memoacuteria dos romanos como sendo a maior cataacutestrofe que ocorreu agrave urbe
Apesar de abalada com esse assalto Roma voltou a colocar em praacutetica sua
poliacutetica expansionista na Peniacutensula Itaacutelica188
Entre 343 e 290 aC aconteceram as Trecircs
Guerras Samnitas primeiramente derrotada Roma depois conseguiu vencer os samnitas
e seus aliados (etruscos e gauleses) e se consolidou na Itaacutelia central Os celtas depois da
187
Tito Liacutevio no livro V da Ab urbe condita escreveu sobre as migraccedilotildees dos celtas para a Itaacutelia bem
como sobre os eventos que culminaram no saque da urbe e nos seus desdobramentos No capiacutetulo 3 deste
trabalho abordaremos mais a obra de Liacutevio e o que ele registrou entre os capiacutetulos 34 e 48 de Ab urbe
condita 188
Para a cronologia dos eventos aqui narrados ateacute o fim deste subcapiacutetulo utilizamos como referecircncia
Schmidt (2004 passim)
102
derrota nas Guerras Samnitas deixaram de exercer pressatildeo nas fronteiras do domiacutenio
romano na Itaacutelia e preferiram dirigir-se agraves terras dos Baacutelcatildes instalando-se na Macedocircnia
e na Traacutecia chegando inclusive a saquear Delfos em 278 aC189
Os gauleses voltam a aparecer na histoacuteria romana de forma mais expressiva
apenas durante as Guerras Puacutenicas uma vez que Cartago recrutou mercenaacuterios para
ajudar em suas fileiras Com a derrota de Cartago os gauleses passaram cada vez menos
a opor resistecircncia na Gaacutelia Cisalpina (onde hoje eacute o norte da Itaacutelia) a partir do seacuteculo III
aC e antes da regiatildeo ter se tornado proviacutencia romana jaacute existiam assentamentos
romanos diversos Segundo Yavetz (2004 p 77) Placentia (Placencia) e Cremona (218
aC) Bononia (Bolonha 189 aC) e Aquileia (181 aC) eram colocircnias latinas e como
tais gozavam do ius Latii mas natildeo possuiacuteam cidadania plena Parma e Mutina
(Moacutedena) desde 183 aC eram colocircnias romanas Aleacutem disso existiam tambeacutem
povoados que possuiacuteam mercados como Forum Popilii (Forlimpopoli) Forum Liuii
(Forli) Forum Cornelii (Iacutemola) e do seacuteculo II aC os postos avanccedilados de Dertona
(Tortona) e Eporedia (Ivrea)
Novos conflitos surgem ao longo do seacuteculo II aC especialmente na Hispacircnia e
nesse meio tempo os gauleses voltam a atravessar os Alpes em 179 aC Paulo Emiacutelio
entatildeo cocircnsul combate os liacutegures no norte da Itaacutelia e indiretamente enfrenta os gauleses
ateacute que uma alianccedila eacute feita entre romanos e liacutegures
Quanto agrave Hispacircnia em 150 aC Roma venceu o conflito e dominou os
celtiberos Alguns anos depois em 125 aC Marselha pediu ajuda aos romanos contra
os gauleses e em 122 aC eacute fundada Aquae Sextiae (atual Aix-en-Provence) a primeira
fortificaccedilatildeo romana em territoacuterio gaulecircs aleacutem dos Alpes Dessa maneira Roma possuiacutea
vastos domiacutenios de terra contiacutenuos na Hispacircnia passando pela Gaacutelia Narbonense (sul da
Franccedila) ateacute a Peniacutensula Itaacutelica190
Em 115 aC uma grande invasatildeo dos cimbros e dos teutotildees (naccedilotildees germacircnicas)
passou a deixar os limites do territoacuterio romano proacuteximos agrave Gaacutelia instaacuteveis os romanos
inclusive foram derrotados em algumas batalhas contra essas naccedilotildees Nesse contexto se
inseriu Maacuterio que conseguiu rechaccedilar os germanos para o norte da Gaacutelia e obteve um
189
Jaacute mencionamos esse acontecimento na paacutegina 46 190
Abordamos a Gaacutelia Narbonense bem como seu processo de transformaccedilatildeo em proviacutencia romana na p
68
103
breve periacuteodo de paz na Gaacutelia transalpina191
Em 80 aC Sertoacuterio nomeado pretor na
Hispacircnia e aproveitando-se da guerra civil entre Maacuterio e Sila aliou-se aos celtiberos e
por vaacuterias vezes lutou contra as legiotildees romanas inclusive derrotando Pompeu Magno
entre 77 e 75 aC Sertoacuterio por fim foi assassinado por seu lugar-tenente Perrena no ano
72 aC Enquanto isso mais uma vez os germanos (dessa vez liderados por Ariovisto
rei dos suevos) voltaram a fazer pressatildeo sobre os gauleses entre os anos de 71 e 70
aC192
Devido ao avanccedilo de Ariovisto em 58 aC uma grande migraccedilatildeo dos helveacutecios
se desenrola a partir de onde hoje eacute a Suiacuteccedila193
A partir desse momento histoacuterico a figura
de Ceacutesar se tornaraacute proeminente quando o general romano partir para a Gaacutelia com a
alegaccedilatildeo de defender os interesses da Repuacuteblica e ajudar os gauleses contra Ariovisto e
seus conterracircneos Sobre esses acontecimentos Ceacutesar escreveu (BGall I 31)
Eo concilio dimisso idem principes ciuitatum qui ante fuerant ad Caesarem
reuerterunt petieruntque uti sibi secreto in occulto de sua omniumque salute
cum eo agere liceret Ea re impetrata sese omnes flentes Caesari ad pedes
proiecerunt () Locutus est pro his Diuiciacus Haeduus Galliae totius
factiones esse duas harum alterius principatum tenere Haeduos alterius
Aruernos Hi cum tantopere de potentatu inter se multos annos contenderent
factum esse uti ab Aruernis Sequanisque Germani mercede arcesserentur
Horum primo circiter milia XV Rhenum transisse posteaquam agros et
cultum et copias Gallorum homines feri ac barbari adamassent traductos
plures nunc esse in Gallia ad centum et XX milium numerum Cum his
Haeduos eorumque clientes semel atque iterum armis contendisse magnam
calamitatem pulsos accepisse omnem nobilitatem omnem senatum omnem
equitatum amisisse Quibus proeliis calamitatibusque fractos qui et sua
uirtute et populi Romani hospitio atque amicitia plurimum ante in Gallia
potuissent coactos esse Sequanis obsides dare nobilissimos ciuitatis et iure
iurando ciuitatem obstringere sese neque obsides repetituros neque auxilium
a populo Romano inploraturos neque recusaturos quo minus perpetuo sub
illorum dicione atque imperio essent Unum se esse ex omni ciuitate
Haeduorum qui adduci non potuerit ut iuraret aut liberos suos obsides daret
Ob eam rem se ex ciuitate profugisse et Romam ad senatum uenisse auxilium
postulatum quod solus neque iure iurando neque obsidibus teneretur Sed
peius uictoribus Sequanis quam Haeduis uictis accidisse propterea quod
Ariouistus rex Germanorum in eorum finibus consedisset tertiamque partem
agri Sequani qui esset optimus totius Galliae occupauisset et nunc de altera
parte tertia Sequanos decedere iuberet propterea quod paucis mensibus ante
Harudum milia hominum XXIV ad eum uenissent quibus locus ac sedes
pararentur Futurum esse paucis annis uti omnes ex Galliae finibus
pellerentur atque omnes Germani Rhenum transirent neque enim
conferendum esse gallicum cum Germanorum agro neque hanc
consuetudinem uictus cum illa comparandam Ariouistum autem ut semel
Gallorum copias proelio uicerit quod proelium factum sit Admagetobrigae
superbe et crudeliter imperare obsides nobilissimi cuiusque liberos poscere
191
Fizemos uma listagem das batalhas travadas por Maacuterio na Gaacutelia na p 14 deste trabalho Para detalhes
dos confrontos entre romanos contra naccedilotildees gaulesas e germanas ao longo do seacuteculo I aC (e conflitos
posteriores a esse periacuteodo) cf Rankin (1993 p 107 e ss) 192
Ceacutesar faz seu relato da Guerra da Gaacutelia a partir do momento em que Ariovisto ampliou sua
movimentaccedilatildeo na Gaacutelia Falaremos novamente sobre isso um pouco mais agrave frente 193
Para maiores detalhes das tensotildees sociais na Gaacutelia recomendamos Canfora (2002 p 136 e ss)
104
et in eos omnia exempla cruciatusque edere si qua res non ad nutum aut ad
uoluntatem eius facta sit Hominem esse barbarum iracundum temerarium
non posse eius imperia diutius sustinere Nisi si quid in Caesare populoque
Romano sit auxilii omnibus Gallis idem esse faciendum quod Heluetii
fecerint ut domo emigrent aliud domicilium alias sedes remotas a
Germanis petant fortunamque quaecumque accidat experiantur Haec si
enuntiata Ariouisto sint non dubitare quin de omnibus obsidibus qui apud
eum sint grauissimum supplicium sumat Caesarem uel auctoritate sua atque
exercitus uel recenti uictoria uel nomine populi Romani deterrere posse ne
maior multitudo Germanorum Rhenum traducatur Galliamque omnem ab
Ariouisti iniuria posse defendere
Despedido esse conselho os mesmos chefes das comunidades que
anteriormente foram ateacute Ceacutesar retornaram e pediram-lhe que lhes fosse
permitido dirigir-se a ele em um lugar reservado e sem testemunhas a
respeito da sua salvaccedilatildeo e da salvaccedilatildeo de todos Obtida a permissatildeo todos se
lanccedilaram chorosos aos peacutes de Ceacutesar () O eacuteduo Diviciacuteaco falou por eles
―Em tod Gaacuteli existi m du s f cccedilotildees os eacuteduos tinh m lider nccedil de um
delas e os arvernos da outra Como eles duramente lutassem entre si por
causa do poder durante muitos anos aconteceu que pelos arvernos e pelos
seacutequanos mercenaacuterios germanos fossem chamados Primeiramente cerca de
quinze mil deles atravessaram o Reno como tais homens ferozes e baacuterbaros
comeccedilassem a gostar das terras do modo de vida e das riquezas dos gauleses
muitos mais atravessaram agora estavam na Gaacutelia aproximadamente cento e
vinte mil Contra esses os eacuteduos e os seus clientes simultaneamente
opuseram as armas uma ou duas vezes sendo eles batidos sofreram grande
calamidade perderam toda a nobreza todo o senado e toda a cavalaria
Alquebrados por tais combates e calamidades eles que anteriormente
tiveram enorme poder na Gaacutelia tanto por sua virtude quanto pela
hospitalidade e amizade dos romanos foram coagidos a entregar aos
seacutequanos como refeacutens os mais nobres de seu povo e a comprometecirc-lo por
meio de um juramento de que natildeo os pediriam de volta natildeo implorariam
socorro aos romanos nem recusariam estar para sempre sob o mando e o
poder dos seacutequanos Ele Diviciacuteaco era o uacutenico de toda a comunidade dos
eacuteduos que natildeo pudera ser levado a jurar ou a dar seus filhos como refeacutens Por
tal motivo fugira da comunidade e viera a Roma ao senado pedir auxiacutelio
pois apenas ele natildeo era impedido nem por um juramento nem por refeacutens
Contudo sucedera algo pior aos seacutequanos vencedores do que aos eacuteduos
vencidos porque Ariovisto rei dos germanos tinha-se estabelecido no
territoacuterio daqueles e ocupara um terccedilo das terras seacutequanas as melhores de
toda a Gaacutelia Agora Ariovisto ordenava que os seacutequanos se retirassem da
outra terccedila parte pois poucos meses antes juntaram-se a ele vinte e quatro
mil homens dos harudos para os quais territoacuterio e morada eram
providenciados Sucederia em poucos anos que todos fossem expulsos do
territoacuterio da Gaacutelia e todos os germanos atravessassem o Reno natildeo com
efeito eram as terras dos germanos comparaacuteveis agraves terras gaulesas nem
aquele modo de vida podia ser cotejado com este Por outro lado como
Ariovisto vencera uma vez em combate as tropas dos gauleses ndash combate este
que se travou em Admagetoacutebriga ndash comandava com soberba e crueldade
exigia como refeacutens os filhos de cada um dos mais nobres gauleses e a eles
infligia todas as torturas a tiacutetulo de exemplo se algo natildeo fosse feito ao
primeiro aceno ou vontade sua Ele era um homem baacuterbaro irasciacutevel e
temeraacuterio eles natildeo podiam suportar por mais tempo seu comando A natildeo ser
que houvesse algum auxiacutelio em Ceacutesar e no povo romano o mesmo que os
helveacutecios fizeram deveria ser feito por todos os gauleses sair da paacutetria e
procurar outro domiciacutelio outras moradas distantes dos germanos e por agrave
prova a fortuna qualquer que fosse Se essas coisas fossem divulgadas a
Ariovisto natildeo duvidava que ele infligiria o mais duro supliacutecio a todos os
refeacutens que estavam sob seu poder Que Ceacutesar quer por sua autoridade e pela
do exeacutercito quer pela recente vitoacuteria ou quer pelo nome do povo romano
105
podia impedir que maior multidatildeo de germanos atravessasse o Reno e
poderia defender a Gaacutelia inteira dos abusos de Ariovisto194
(grifos nossos)
No trecho acima Ceacutesar justifica sua intervenccedilatildeo da Gaacutelia argumentando que os
proacuteprios gauleses (na figura do eacuteduo Diviciacuteaco) lhe pediram ajuda aleacutem do fato de os
germanos terem cruzado o rio Reno e penetrado na Gaacutelia Ceacutesar destacou o caraacuteter
selvagem dos germanos chamando-os de homines feri ac barbari (homens ferozes e
baacuterbaros) sendo esses germanos liderados por Ariovisto retratado no trecho como
exemplo maior da maldade sendo denominado como hominem barbarum iracundum
temerarium (homem baacuterbaro irasciacutevel e temeraacuterio)195
Vemos que Ceacutesar finalizou o
capiacutetulo dizendo que ele mesmo (representando o Estado romano) poderia impedir o
v nccedilo germacircnico e ―defender Gaacuteli inteir dos busos de Ariovisto Como Schmidt
(2004 p 180) ressalta a conquista da Gaacutelia eacute tanto uma necessidade estrateacutegica para
Roma quanto um imperativo poliacutetico para Ceacutesar que desejava desfrutar de fama
tamanha a ponto de rivalizar com Pompeu o grande conquistador do Oriente proacuteximo e
que colocou fim agrave pirataria no mar Mediterracircneo Schmidt (2004 p 189) considera que
provavelmente o senado romano se absteria de intervir na Gaacutelia em uma questatildeo que
natildeo a afetava diretamente jaacute que essas migraccedilotildees ocorriam fora de sua zona de
influecircncia mas que Ceacutesar aacutevido de gloacuteria militar buscou os argumentos mais
falaciosos para intervir militarmente na Gaacutelia Todavia acreditamos que Roma
dificilmente deixaria a Gaacutelia desocupada ateacute pelas proviacutencias na Espanha e norte da
Itaacutelia os gauleses e germanos estariam muito proacuteximos como de fato ocorreu jaacute que
Ariovisto estava cada vez mais tomando terreno e se aproximando dos limites da
proviacutencia romana196
Mesmo com o exagero de Ceacutesar tambeacutem natildeo podemos ignorar
que os gauleses (especialmente os que habitavam agraves margens do Reno do Roacutedano e do
Saocircne) de fato se sentiam ameaccedilados com os germanos e buscaram em Roma o auxiacutelio
de que necessitavam fato comprovado pela visita de Diviciacuteaco a Roma para solicitar
ajuda Eacute tambeacutem possiacutevel perceber nessa justificativa de Ceacutesar a explicaccedilatildeo baseada no
194
Cf nota 136 na p76 na qual abordamos o pedido de ajuda aos romanos feito por Diviciacuteaco emissaacuterio
dos eacuteduos uma das naccedilotildees celtas amigas dos romanos 195
Rambaud (2011 p 112-113) chama essa caracterizaccedilatildeo de Ariovisto de captatio maleuolentiae ou
seja Ceacutesar exagerou essas caracteriacutesticas do liacuteder germano para conquistar o puacuteblico e convencecirc-lo de
que a intervenccedilatildeo romana na Gaacutelia era necessaacuteria para se evitar o mal maior dos germanos que natildeo
respeitavam fronteiras e eram um possiacutevel risco para Roma Ariovisto representava o arqueacutetipo maacuteximo
do baacuterbaro feroz e terriacutevel e de certa forma serviu como paradigma em uma escala de barbaacuterie dentro do
De bello Gallico representando o poacutelo mais primitivo 196
Essa proviacutencia que vai ser citada por Ceacutesar vaacuterias vezes no De bello Gallico era a Gaacutelia Transalpina
(ou Narbonense)
106
―direito justo dos rom nos intervirem em outr s n ccedilotildees e territoacuterios jaacute que os eacuteduos
(aliados dos romanos) sofriam por parte de Ariovisto e dos germanos uma injuacuteria para
evit r o perigo e desgr ccedil er necessaacuteri um m nobr de ― uto-defes (RIGGSBY
2006 p 18) Todavia como Schmidt (2004 p 270) destaca mesmo com a conquista
definitiv d Gaacuteli ―p z rom n nunc seraacute de f to um re lid de pois s revolt s
nunca cessaram ao longo do domiacutenio romano Embora as elites tenham obtido a
cidadania romana e embora a vida citadina tenha sido mais facilmente romanizada e
tenha sido uma assimilaccedilatildeo cultural no acircmbito urbano no acircmbito rural os descendentes
dos antigos povos celtas mantiveram-se irredutiacuteveis em sua revolta (SCHMIDT 2004
p 273)
221 ndash Algumas consideraccedilotildees sobre a questatildeo da romanizaccedilatildeo na Europa Ocidental
Anteriormente neste trabalho abordamos a forma como Roma teria ampliado
seus domiacutenios e conquistado diversos povos e regiotildees atraveacutes de vaacuterias conquistas
militares ao longo de alguns seacuteculos Todavia a ideia de um impeacuterio tal qual
conhecemos hoje natildeo se aplica ao que pensamos do impeacuterio romano Nas palavras de
Guarinello (2014 p 119) ―T lvez princip l diferenccedil entre o Impeacuterio e um est do
nacional resida no fato de que o poder natildeo se repartia homogeneamente sobre o
territoacuterio do Impeacuterio dada a grande heterogeneidade de estatutos entre sua populaccedilatildeo e
usecircnci de um socied de civil cl r mente identific d Assim o impeacuterio romano
abrigava uma grande variedade de naccedilotildees e sociedades diversas que mantinham seus
costumes e suas formas de governo proacuteprias aleacutem de grande diversidade cultural e
social Como Guarinello lembra (2014 p 119) no domiacutenio romano inseriam-se antigos
impeacuterios orientais como o egiacutepcio-heleniacutestico que mantiveram suas instituiccedilotildees sociais
proacuteprias ateacute o periacuteodo imperial tardio Essa diversidade justificava-se pela postura de
Roma ter sido aberta ao estrangeiro desde seus primoacuterdios e tambeacutem pelo fato da urbe
ter feito largo uso de artiacutefices de outros povos chegando inclusive a melhoraacute-los197
Se no lado oriental Roma teve uma postura menos intervencionista no modo de
vida e costumes dos povos dessas regiotildees no ocidente o processo de romanizaccedilatildeo foi
197
De fato desde o iniacutecio miacutetico de Roma constava nas narrativas que Rocircmulo acolheu os fora-da-lei
estrangeiros para aumentar a populaccedilatildeo da Urbe que acabara de fundar bem como o rapto das sabinas
(uma naccedilatildeo que vivia nas vizinhanccedilas) para obter mulheres para a cidade (NICOLET 2011 p 887) Das
fontes latinas que falaram sobre esse episoacutedio destacamos Tito Liacutevio (Ab urbe cond I 8) Oviacutedio
(Fasti III 432-734) Lucano (Bellum ciuile I 96-99 e VII 437-439) e Pliacutenio o Velho (HN XVI 5)
107
mais profundo198
Hoje discute-se bastante sobre o quatildeo profundo ou extenso foi esse
processo Pesquisadores mais antigos como Bloch e Cousin e tambeacutem mais recentes
como Canfora definiram que a romanizaccedilatildeo na Europa ocidental foi um processo cruel
e que se deu com total violecircncia e arbitrariedade por parte dos romanos199
Hoje em dia
vaacuterios estudiosos acreditam que esse processo natildeo foi tatildeo intenso ou tatildeo opressivo
assim Nesse sentido temos as palavras do proacuteprio Guarinello (2014 p 119 a 125)
Organizaccedilotildees sociais preacute-urbanas permaneceram majoritaacuterias em vastas
regiotildees da Gaacutelia da Bretanha e das proviacutencias fronteiriccedilas centrais Durante
seacuteculos povos montanheses mantiveram-se arredios agrave influecircncia romana no
proacuteprio coraccedilatildeo do Impeacuterio Todas essas eram contudo formas de
organizaccedilatildeo social dominadas formadas por populaccedilotildees submetidas A forccedila
com efeito encontrava-se em outro lugar nas cidades O Impeacuterio Romano
representou uma vitoacuteria das cidades mediterracircneas sobre essas sociedades E
o imperialismo romano foi antes o resultado das deficiecircncias estruturais
dessas cidades do que o efeito de uma supremacia singular do povo
conquistador () Como vimos apenas algumas poucas cidades as de maior
porte conseguem minimizar os conflitos internos atraveacutes da expansatildeo
militar que fornece ocupaccedilatildeo para a populaccedilatildeo mais pobre e carreia terras e
riquezas para o centro As demais cidades soacute alcanccedilam uma situaccedilatildeo de
estabilidade pela imposiccedilatildeo de um poder superior externo capaz de dirimir
os conflitos e regular as relaccedilotildees entre os grupos de cada comunidade A
expansatildeo de Roma se daacute precisamente nesse quadro
Em um primeiro momento temos as conquistas militares e muitas vezes a
imposiccedilatildeo da ordem pela forccedila ao longo do tempo com o estabelecimento das
proviacutencias e a consolidaccedilatildeo de um amplo territoacuterio imperial a paz passou a predominar
(GUARINELLO 2014 p 127) Todavia o papel do exeacutercito na expansatildeo e
consolidaccedilatildeo do poderio romano natildeo se restringiu apenas ao uso da forccedila ele tambeacutem
foi agente importante da difusatildeo da cultura de Roma nas aacutereas submetidas atraveacutes da
integraccedilatildeo econocircmica (jaacute que a manutenccedilatildeo das legiotildees estimulava a engrenagem de
produccedilatildeo de mercadorias e comeacutercio) e tambeacutem da interaccedilatildeo social com o recrutamento
de tropas e pelos matrimocircnios com os locais (GUARINELLO 2014 p 128) Aleacutem
disso como destaca Le Bohec (2009 p 31) um bom comandante sabia que era
importante ganhar a simpatia dos civis do povo vencido uma vez que nenhum exeacutercito
conseguiria se impor indefinidamente usando apenas a forccedila Os domiacutenios romanos
eram notadamente multiculturais o latim e grego uacutenicas liacutenguas usadas em contexto
oficial aprendidas pelas elites locais e tambeacutem como veiacuteculo literaacuterio a princiacutepio natildeo
se impuseram como os uacutenicos idiomas Como lembra Guarinello (2014 p 127) por
198
Sobre a romanizaccedilatildeo mais pesada no ocidente e natildeo no oriente ver p100 199
Cf p 16-17 deste trabalho
108
muito tempo as populaccedilotildees locais continuavam se expressando em seus idiomas de
origem como o celta na Gaacutelia o puacutenico no norte da Aacutefrica o aramaico na Palestina etc
Do ponto de vista da cultura e dos haacutebitos os povos conquistados mantiveram suas
tradiccedilotildees e modo de vida Com o passar do tempo o mundo foi sendo paulatinamente
transformado a elite dessas naccedilotildees buscando conquistar a cidadania adotou os
costumes romanos e aprendeu o latim especialmente nas cidades a mescla entre
romanos e conquistados se deu mais rapidamente No contexto da Europa ocidental o
fenocircmeno de fusatildeo entre romanos e provincianos aconteceu em tal profundidade que
hoje temos na regiatildeo o predomiacutenio das liacutenguas romacircnicas derivadas do latim o que se
sabe dos costumes e liacutenguas preacute-romacircnicas nos eacute conhecido sobretudo por meio da
arqueologia e da linguiacutestica histoacuterica
Os resquiacutecios de liacutenguas ou de religiotildees que nos chegaram mesmo seacuteculos apoacutes
as conquistas romanas nas palavras de Wallace-Hadrill (2008 p 7) sugerem que a
produccedilatildeo de uma fusatildeo raacutepida e homogecircnea apoacutes a conquista natildeo pode ser tomada como
certa se eacute que de fato isso alguma vez ocorreu dessa forma Ainda de acordo com o
autor (2008 p 10) o mais interessante no estudo entre os romanos e os outros povos eacute
perceber como se opera a dialeacutetica de apropriaccedilatildeo pela qual bens e peculiaridades do
poder conquistador satildeo adotados pelos conquistados para fins especiacuteficos e pode-se
ainda adicionar a essa dialeacutetica a reciprocidade com a qual o poder conquistador adota
traccedilos do conquistado para consolidar a sua ocupaccedilatildeo Assim ao longo deste trabalho
veremos como se deu o contato dos romanos com gauleses e como essa dialeacutetica
justificou a construccedilatildeo cultural que os romanos fizeram dos gauleses
O termo romanizaccedilatildeo por si soacute jaacute eacute considerado problemaacutetico no campo atual
de pesquisa em estudos claacutessicos jaacute que ateacute meados do seacuteculo XX esse termo englobava
a noccedilatildeo de que os romanos impuseram sua cultura aos povos vencidos em um processo
unilateral e arbitraacuterio Ora como mencionamos acima vimos que na verdade a
romanizaccedilatildeo ocorreu em vaacuterias esferas sociais (e natildeo em um movimento de cima para
baixo em que a elite romana impunha seu status quo) e que os povos ditos conquistados
mantiveram muitos dos seus costumes instituiccedilotildees poliacuteticas e sociais e ateacute seus
idiom s Como Veyne (In GIARDINA 1992 p 299) pontu ―( ) os h bit ntes d s
proviacutencias romanizavam-se espontaneamente O poder central aplaudia e dava a sua
s nccedilatildeo juriacutedic agrave form ccedilatildeo de nov s cid des Dentre os vaacuterios pesquisadores que
contestam esse conceito defasado de romanizaccedilatildeo destacamos aqui Hingley (2005) que
109
abandona o termo romanizaccedilatildeo (exceto quando estritamente necessaacuterio) e adota em seu
lugar o termo globalizaccedilatildeo200
Devemos tambeacutem ter em mente que muitos estudos sobre o conceito de
romanizaccedilatildeo e imperialismo romano foram embasados em obras da elite letrada de
Roma de fato muitas vezes as fontes antigas eram tratadas ora como relatos literaacuterios
ora como fontes historiograacuteficas especialmente ateacute meados do seacuteculo XX Hingley
(apud FUNARI GARRAFONI 2016 p 34) lembra que embora os textos antigos sejam
importantes atualmente com a arqueologia eacute possiacutevel perceber outros aspectos da
sociedade e cultura antigas que nem sempre eram retratados nessas obras que muitas
vezes visavam agrave exaltaccedilatildeo da gloacuteria de Roma e aspectos especiacuteficos como vitoacuterias em
guerras e conquistas militares Isso tambeacutem contribuiu para flexibilizar a noccedilatildeo de
romanizaccedilatildeo O termo romanizaccedilatildeo ainda hoje eacute bastante usado por estudiosos da aacuterea
inclusive noacutes mesmos que utilizamos aqui o vocaacutebulo com essa nova acepccedilatildeo mais
flexiacutevel levando em consideraccedilatildeo que tanto os vencedores quanto os vencidos
contribuiacuteram para criar uma nova forma de cultura heterogecircnea nas proviacutencias com
interpretaccedilotildees mais livres que levam em conta a grande variaccedilatildeo desses processos que
ocorreram no impeacuterio201
Assim entendemos que o processo de romanizaccedilatildeo se deu em
um contexto de grande dinacircmica social por um lado pela assimilaccedilatildeo da cultura
romana pelas elites conquistadas por outro atraveacutes da resistecircncia aos valores romanos
por parte da populaccedilatildeo sobretudo a do campo o que levou a novas estruturas culturais
200
Hingley argumenta que esse conceito antigo de romanizaccedilatildeo passou a ser muito usado no contexto do
poacutes-colonialismo europeu ocidental entre o seacuteculo XIX e primeira metade do seacuteculo XX e focava no
eurocentrismo e na oposiccedilatildeo entre civilizaccedilatildeo e barbaacuterie O autor considera que essa antiga teoria de
romanizaccedilatildeo eacute extremamente simplista e focada apenas na elite do impeacuterio Assim a partir da segunda
metade do seacuteculo XX a proacutepria definiccedilatildeo de romanizaccedilatildeo evoluiu largamente Para discussatildeo mais
profunda sobre esse tema da romanizaccedilatildeo surgimento desse conceito e de como ele foi usado para ajudar
a formar a mentalidade da Europa ao longo dos seacuteculos e dos problemas que surgem a partir dos usos (e
abusos) dessa concepccedilatildeo recomend mos o c piacutetulo ―Ch nging concepts of Rom n identity nd soci l
ch nge (In HINGLEY 2005 p14 a 48) Mendes (2007 p 27) ao se referir ao processo complexo de
romanizaccedilatildeo prefere adotar o termo mundializaccedilatildeo no lugar de globalizaccedilatildeo jaacute que mundializaccedilatildeo
acentua a heterogeneidade cultural entre conquistadores e conquistados enquanto que globalizaccedilatildeo
transmite uma ideia de homogeneidade que natildeo daria conta de explicar o complexo contexto em que se
deu a romanizaccedilatildeo Outros estudiosos tambeacutem adotam o termo mundializaccedilatildeo como Laplantine e Nouss
(2001) 201
Hingley (2005 p 47 a 49) aborda mais a questatildeo complexa da romanizaccedilatildeo e sobre os papeacuteis
desempenhados por conquistadores e conquistados ao construir uma nova ordem social do que
simplesmente os gauleses terem sido absorvidos em uma ordem social preacute existente Ele tambeacutem aborda
de form profund ess questatildeo do imperi lismo e cultur no c piacutetulo ―Rom n inperi lism nd culture
(2005 p 49 a 71)
110
222 ndash Biografia concisa de Ceacutesar
Nesse contexto histoacuterico de grandes expansotildees romanas temos Caio Juacutelio Ceacutesar
que teria nascido em Roma provavelmente em 100 aC de uma famiacutelia patriacutecia Pelo
fato de sua tia Juacutelia ter sido esposa de Maacuterio ele chegou a ser perseguido durante o
regime de Sila Durante esse periacuteodo serviu no exeacutercito na Aacutesia Em 78 aC com o fim
do regime silano Ceacutesar retornou a Roma e passou a se dedicar agrave carreira poliacutetica tendo
sido questor (68 aC) edil (65 aC) e pretor na Hispacircnia (61 aC) dentre outros
cargos Em 60 aC formou um pacto junto com Pompeu e Crasso que foi chamado
erroneamente de primeiro triunvirato jaacute que natildeo foi estabelecido por uma lei para
dividir o poder entre os trecircs Em 59 Ceacutesar foi cocircnsul pela primeira vez e para aumentar
sua popularidade fez votar duas leis agraacuterias semelhantes agraves que os irmatildeos Graco
tentaram promover em seu tempo uma dessas leis facilitava a concessatildeo de terra aos
soldados veteranos enquanto a outra ajudava a populaccedilatildeo mais pobre de Roma
(SCHMIDT 2004 p 178) No ano seguinte ele tornou-se prococircnsul da Iliacuteria e das
Gaacutelias romanizadas ndash a Cisalpina e a Narbonense que se tornaram proviacutencias
consulares em 60 aC em face ao avanccedilo do germano Ariovisto nessa regiatildeo Com o
pretexto de violaccedilotildees das fronteiras romanas por parte dos celtas Ceacutesar decidiu
conquistar e submeter toda a Gaacutelia ao poderio romano Como Brandatildeo afirma (In
BRANDAtildeO OLIVEIRA 2015 p 395) ―Ceacutes r geriu o proconsul do d Gaacuteli muit s
vezes contra o parecer do senado tendo em conta a sua promoccedilatildeo pessoal e a
preservaccedilatildeo da sua dignitas Como pretexto p r mpli r territoacuterios rom nos ndash
expansatildeo essa que natildeo estava incluiacuteda nos planos do senado para seu proconsulado ndash
Ceacutesar aproveitou-se sobretudo de conflitos internos dos gauleses e do estabelecimento
do germano Ariovisto a oeste do Reno em 60 aC (BRANDAtildeO In BRANDAtildeO
OLIVEIRA 2015 p 396) Apoacutes seis anos (58 a 52 aC) Ceacutesar finalmente converteu a
Gaacutelia em uma proviacutencia romana e com isso passou a ter maior popularidade
conquistou fortunas e alargou a base do seu poder pessoal ao contar com vastas
clientelas provincianas202
Nesse iacutenterim em 54 aC morreu a filha de Ceacutesar Juacutelia que
era casada com Pompeu e no ano seguinte faleceu Crasso que lutava no oriente contra
os partos esses acontecimentos levaram ao fim do triunvirato e acentuou a rivalidade
entre Ceacutesar e Pompeu Ceacutesar que visava a um segundo consulado apoacutes a conquista da
202
Canfora (2002 p 124 e ss) detalha mais os vaacuterios motivos de Ceacutesar ter optado pela conquista da
Gaacutelia
111
Gaacutelia foi impedido legalmente de disputar as eleiccedilotildees Dessa forma ele decidiu por
invadir a Itaacutelia com seu exeacutercito em 49 aC dando iniacutecio a uma nova guerra civil Em
48 aC Ceacutesar venceu Pompeu na batalha de Farsaacutelia e este ao fugir para o Egito foi
assassinado Sobre a guerra civil Grimal (1993 p 46) afirma
() o velho mundo estaacute a desfazer-se um pouco por toda a parte as instituiccedilotildees
tradicionais jaacute natildeo podem suportar o enorme peso do Impeacuterio e apesar das
oscilaccedilotildees que momentaneamente parecem conter a evoluccedilatildeo o lento trabalho
prossegue obscura e irreversivelmente ateacute que a maacutequina se revele adaptada a
todas as novas necessidades
Apoacutes novas batalhas na Aacutefrica (46 aC) e na Hispacircnia (45 aC) Ceacutesar saiu
vencedor do conflito e tornou-se o chefe supremo de Roma Em fevereiro de 44 aC
Ceacutesar foi declarado ditador perpeacutetuo ndash e aproveitou-se disso para ampliar a base poliacutetica
do poder favorecendo os populares cavaleiros e ―homens novos (receacutem dmitidos no
Senado) Yavetz (2004 p 204) diz que Ceacutesar fez atos ineacuteditos ateacute entatildeo na poliacutetica
romana foi o primeiro a conceder o direito de cidadania a uma proviacutencia inteira (a
Gaacutelia Cisalpina) a recrutar uma legiatildeo completa de provincianos e a nomear um
provinciano para o Senado ndash o hispaniense Balbo203
Evidentemente todas essas
medidas serviram para aumentar ainda mais o receio e oacutedio dos opositores de Ceacutesar que
viam o ditador aumentar o seu poder pessoal Ceacutesar acumulou tanto poder e honras que
alarmou os outros aristocratas que julgaram que ele queria tornar-se rei Nos idos de
marccedilo Ceacutesar foi assassinado por um grupo de senadores em uma sessatildeo do senado204
Acreditava-se que com a morte de Ceacutesar a Repuacuteblica voltaria a ser como antes
Seu assassinato contudo natildeo fez com que a necessidade de reformas fosse abandonada
Como Guarinello escreveu no prefaacutecio da obra de Canfora (2002 p 14 e 15) o periacuteodo
do seacuteculo II a I aC foi marcado por grandes transformaccedilotildees sociais e crises profundas
como a fracassada reforma proposta pelos irmatildeos Graco e os golpes de Estado de Maacuterio
e Sila a cidadania dividira-se em partes em facccedilotildees organizadas como vastas clientelas
que lutavam por seus interesses particulares sem conseguir um meio-termo que
atendesse a todos populares e poderosos As estruturas e instituiccedilotildees poliacuteticas romanas
jaacute estavam falidas e ficava clara a necessidade de um novo sistema de governo que
centralizasse o poder nas matildeos de um uacutenico indiviacuteduo como forma de minimizar as
disputas e trazer a paz e estabilidade agrave comunidade romana Essa mudanccedila se
203
Citamos Balbo na p 100 deste trabalho 204
Para esta breve biografia de Ceacutesar utilizamos como referecircncia o livro de Conte (1999 p 225)
112
consolidaraacute com a ascensatildeo de Otaacutevio (sobrinho-neto de Ceacutesar por ele adotado como
seu herdeiro em seu testamento) e o principado se tornaraacute enfim o sistema poliacutetico que
acompanharaacute a nova sociedade imperialista que surgia
23 ndash De bello Gallico aspectos gerais da obra de Ceacutesar
Ceacutesar teve uma relevante produccedilatildeo literaacuteria dos seus escritos que chegaram aos
nossos dias temos apenas o De bello Gallico (Sobre a Guerra da Gaacutelia) e o De bello
ciuili (Sobre a Guerra Civil) Ceacutesar tambeacutem compocircs um epigrama (fragmento 9 em
Fragmenta Poetarum Latinorum de Morel) sobre Terecircncio O resto da obra de Ceacutesar
(discursos o tratado De analogia205
ndash sobre a pureza de linguagem e o fazer literaacuterio ndash e
o Anticato contra Catatildeo de Uacutetica) se perdeu Tambeacutem fazem parte do corpo cesariano
do periacuteodo final da guerra civil as obras Bellum Alexandrinum Bellum Africum e
Bellum Hispaniense que relatam respectivamente as campanhas militares de Ceacutesar em
Alexandria (Egito 48 aC) Tapso (norte da Aacutefrica 46 aC) e Munda (Espanha 45
aC)206
O De bello Gallico tambeacutem conhecido em portuguecircs como Relato da Guerra da
Gaacutelia foi composto por Ceacutesar em sete livros nos quais se desenrola a narrativa de
confrontos entre romanos e gauleses aleacutem da geografia costumes e cultura das tribos
que habitavam essas regiotildees207
Ceacutesar dedicou cada livro do De bello Gallico a um ano
de campanha militar Temos no livro I a descriccedilatildeo da Gaacutelia e a narrativa das batalhas
ocorridas em 58 aC contra os helveacutecios e contra Ariovisto rei dos suevos o livro II eacute
sobre a campanha contra os belgas no ano 57 aC o livro III conta a campanha de
Ceacutesar contra as cidades armoricanas (57 aC) e possui ainda um comentaacuterio da presenccedila
de Crasso na Aquitacircnia (56 aC) No livro IV temos a campanha de Ceacutesar contra os
germanos e a primeira ida de Ceacutesar agrave Britacircnia (55 aC) O livro V concentra-se na
segunda ida de Ceacutesar agrave Britacircnia e nova campanha contra os belgas em 54 aC O livro
205
Provavelmente escrito por Ceacutesar enquanto era prococircnsul durante uma travessia dos Alpes
(CONSTANS 1964 p XVII) 206
Aacuteulo Hiacutercio tenente de Ceacutesar foi o provaacutevel autor do livro VIII do De bello Gallico ndash o objetivo era
de dar continuidade agrave narrativa cesariana de modo que a obra abrangendo os acontecimentos do ano 51 e
50 aC tivesse ligaccedilatildeo com o comeccedilo do De bello ciuili o Bellum Alexandrinum tambeacutem seria de Hiacutercio
(CONTE 1999 p 230) Quanto ao Bellum Africum e o Bellum Hispaniense natildeo se sabe da autoria dessas
obras provavelmente foram escritas por algum militar ligado a Ceacutesar 207
Aleacutem do que o proacuteprio Ceacutesar ditou para seus secretaacuterios e que virou o texto final do De bello Gallico
tambeacutem foram utilizados como fontes os relatoacuterios dos membros do Estado-maior de Ceacutesar que
informavam ao general do que acontecia em outros campos de batalha e das accedilotildees as quais Ceacutesar natildeo
tomou parte diretamente
113
VI aleacutem de narrar confrontos de Ceacutesar contra gauleses e germanos possui uma
descriccedilatildeo dos costumes de ambos os povos (53 aC) Essa descriccedilatildeo eacute conhecida como
ceacutelebre ―n rr ccedilatildeo etnograacutefic de Ceacutes r O livro VII tr t do lev nte d Gaacuteli lider do
por Vercingetoacuterige a tomada de Luteacutecia cerco e capitulaccedilatildeo de Aleacutesia e a rendiccedilatildeo de
Vercingetoacuterige a Ceacutesar no ano 52 aC208
Ceacutesar em sua narrativa contou as suas campanhas militares na Gaacutelia e a
expansatildeo do poderio romano nesse territoacuterio Sobre essa obra Lintott lembra (In
BOARDMAN et al 1986 p 642)
Caesar tells us of the expansion of Roman power in a successful war
enlivening the story with digressions on geography and the characteristics of
foreign races and explains its significance by comments in the first person
and by speeches in which both he and his opponents justify their conduct
The whole work is a testimony to Roman virtue not only that Caesar himself
but of his troops whose abilities are rarely portrayed so effectively
elsewhere There is a political message too Although Caesar was radical and
violent in his own political career when discussing the Gallic communities
he exalts established power and conservatism209
No De bello Gallico Ceacutesar seguiu o modelo de historiografia heleniacutestica ndash que
tambeacutem apareceu em Diodoro Siacuteculo e depois em Estrabatildeo ndash que fornecia informaccedilotildees
etnograacuteficas sobre os costumes a geografia a economia e niacutevel de civilizaccedilatildeo dos
povos narrados Esse tipo de conteuacutedo era escasso em Roma e as digressotildees em Ceacutesar
serviam para explicar algumas situaccedilotildees justificar certas decisotildees e davam agrave obra uma
aparecircncia de objetividade cientiacutefica respondendo agrave curiosidade do leitor (ANDREacute
HUS 1974 p 33)
231 ndash Discussatildeo sobre gecircnero literaacuterio e aspectos formais nos comentaacuterios de Ceacutesar
Quanto ao gecircnero narrativo dos comentaacuterios haacute certa discordacircncia se as obras de
Ceacutesar podem ser encaixadas no gecircnero da historiografia Os pesquisadores Andreacute e Hus
(1974) defendem que Ceacutesar eacute memorialista e natildeo historiador ndash apesar de as obras de
208
Este resumo da obra de Ceacutesar foi baseado em Conte (1999 p 227 e 228) 209
―Ceacutes r nos cont sobre exp nsatildeo do poder rom no em uma guerra bem sucedida dando vida agrave
histoacuteria com digressotildees sobre a geografia e as caracteriacutesticas das raccedilas estrangeiras e explica seus
significados atraveacutes de comentaacuterios em primeira pessoa e por meio de discursos nos quais tanto ele
quanto seus oponentes justificam sua conduta Todo o trabalho eacute um testemunho da virtude romana natildeo
apenas a de Ceacutesar mas tambeacutem a de suas tropas cuja habilidade foi raramente retratada de forma tatildeo
efetiva em outros lugares Haacute tambeacutem uma mensagem poliacutetica Embora Ceacutesar fosse radical e violento em
sua proacutepria carreira poliacutetica quando discutindo sobre as comunidades gaulesas ele exalta o poder
est belecido e conserv dorismo
114
Ceacutesar seguirem a tradiccedilatildeo analiacutestica De acordo com ambos Ceacutesar era uma figura
poliacutetica de destaque que visava ao poder que ele conquistou de forma ilegal e ele soacute
escreveu os eventos que lhe foram contemporacircneos com a finalidade de justificar suas
accedilotildees passadas e de preparar sua accedilatildeo futura de se tornar liacuteder supremo de Roma
(ANDREacute HUS 1974 p 27) Ainda segundo Andreacute e Hus (1974 p 29) os comentaacuterios
de Ceacutesar eram mera exposiccedilatildeo de fatos precisos e sem ornamentos literaacuterios sendo o
contraacuterio do que os gregos ou Ciacutecero entendiam por histoacuteria Assim ateacute hoje muitos
estudiosos entendem que esse estilo natildeo pode ser considerado historia pela proacutepria
natureza do commentarius ndash que preconizava a clareza a precisatildeo o tom objetivo e
essencial com poucos discursos e sem introduccedilotildees pretensiosas e descriccedilotildees
interminaacuteveis e sem retratos de personalidades ou consideraccedilotildees morais ou
filosoacuteficas210
Consideramos as obras de Ceacutesar natildeo como comentaacuterios mas sim como
histoacuteria uma vez que elas se encaixam na definiccedilatildeo aristoteacutelica desse gecircnero ndash ou seja
elas satildeo narrativas sobre fatos acontecidos211
Lintott contudo prefere inserir essa atividade literaacuteria de Ceacutesar dentro da
tr diccedilatildeo historiograacutefic Embor os comentaacuterios de Ceacutes r fossem tendenciosos e
visassem a auto-glorificaccedilatildeo esses viacutecios natildeo eram exclusivos da autobiografia
(LINTOTT In BOARDMAN et al 1986 p 532) Por conseguinte devemos
considerar os relatos de autores antigos natildeo soacute de Ceacutesar como discursos inseridos em
uma longa tradiccedilatildeo literaacuteria que possuiacuteam puacuteblico-alvo especiacutefico aleacutem de tambeacutem
propagandearem conceitos sociais e visotildees de mundo (FUNARI GARRAFFONI 2016
p 35) Aleacutem disso apesar de carecer de ornamentos estiliacutesticos e ter tom austero os
assuntos tratados nos comentaacuterios de Ceacutesar ndash como a virtude romana natildeo soacute de Ceacutesar
mas tambeacutem de suas fieacuteis legiotildees aleacutem da exaltaccedilatildeo de uma guerra bem sucedida ndash satildeo
tiacutepicos da historiografia latina madura (LINTOTT in BOARDMAN et al 1986 p
532)212
Independentemente de Ceacutesar ter escrito historiografia autobiografia ou
memoacuteria de toda forma os comentaacuterios sobre a conquista da Gaacutelia ficaram como uacutenico
210
Fornara (1983 p 184) aprofunda essa discussatildeo de gecircnero de composiccedilatildeo do De bello Gallico
destacando que essa obra de Ceacutesar possui caracteriacutesticas tanto de histoacuteria quanto de comentaacuterio e
memoacuteria 211
Cf Poeacutetica 1451b 212
Lintott tambeacutem destacou o caraacuteter poliacutetico do De bello Gallico ―embor Ceacutes r fosse r dic l e
violento em sua proacutepria carreira poliacutetica em se tratando da Gaacutelia ele exaltou as comunidades e suas
caracteriacutesticas de organizaccedilatildeo Apesar da ironia disso Ceacutesar pode ter escrito isso com certa sinceridade
pois Roma tradicionalmente se sentia no dever de socorrer seus aliados para assegurar seu proacuteprio
impeacuterio (In BOARDMAN et al 1986 p 532) Abordamos a questatildeo do dever moral de Roma defender
seus aliados no subcapiacutetulo 212
115
documento escrito por um protagonista dos proacuteprios fatos e que nos chegou de forma
satisfatoacuteria Ele tambeacutem tinha pressa em divulgar suas obras e escolheu justamente o
estilo do comentaacuterio jaacute que esse tipo de composiccedilatildeo era mais livre do que escrever
historia que seria um processo mais demorado De acordo com Usher (2001 p 138)
como os comentaacuterios foram escritos para publicaccedilatildeo imediata e com claros propoacutesitos
poliacuteticos pode-se deduzir que Ceacutesar considerou a sua forma literaacuteria satisfatoacuteria Como
destaca Guillaumin (in RATTI 2009 p 19) eacute certo que o propoacutesito de Ceacutesar ao
escrever os comentaacuterios natildeo foi unicamente ndash nem mesmo prioritaacuterio ndash a preocupaccedilatildeo
literaacuteria mas sim poder escrever e divulgar rapidamente suas obras com fins
propagandiacutesticos (De bello Gallico) e apologeacuteticos (De bello ciuili)
De todos os instrumentos usados por Ceacutesar para alcanccedilar poder e prestiacutegio os
comentaacuterios de certo er m os m is sofistic dos ―em um tempo em que s riv lid des
poliacutetic s er m express s em p nfletos vulg res e c luacuteni s de todo tipo (MARTIN
GAILLARD 1981 p 119) Sobre o De bello Gallico Conte tambeacutem lembra que Ciacutecero
(Brutus 262) e Hiacutercio (no prefaacutecio do livro VIII do De bello Gallico) afirmaram que
embora Ceacutesar tenha adotado o estilo comentaacuterio que serviria de possiacutevel fonte para
historiadores de tempos vindouros na verdade ningueacutem se atreveria a tentar reescrever
o que Ceacutesar jaacute tinha narrado com incomparaacutevel simplicidade De fato a atitude de Ceacutesar
possivelmente teri escondido um ―truque sob humilde c p o commentarius como
ele escreveu se aproximou da historia (CONTE 1999 p 226)
Sobre a forma em que a obra foi escrita existem algumas discordacircncias entre os
pesquisadores Como Conte ressalta (1999 p 227) alguns estudiosos acreditam que
Ceacutesar compocircs o De bello Gallico ano a ano durante os invernos quando o exeacutercito
ficava aquartelado e as operaccedilotildees militares eram suspensas Essa uacuteltima teoria eacute
favorecida pela existecircncia de certas contradiccedilotildees dentro do trabalho de Ceacutesar o que
seria difiacutecil de explicar se a obra tivesse sido composta de uma soacute vez (CONTE 1999
p 227) Por sua vez a teoria de que Ceacutesar compocircs sua obra de uma vez soacute entre o
inverno de 52 a 51 aC tambeacutem possui um fundamento favoraacutevel a obra tem uma
perceptiacutevel evoluccedilatildeo estiliacutestica que pode ser detectada Sobre essa evoluccedilatildeo estiliacutestica
Conte (1999 p 227) afirma
Such an evolution seems to advance from the bare unadorned style of the
true commentarius towards a style that increasingly allows the typical
ornaments of historia thus in the second half of the work one finds more
116
frequent use of direct discourse and recourse to a greater variety of
synonyms which denotes a certain expansion of the traditional vocabulary213
Seja de uma ou de outra maneira a narrativa de Ceacutesar sobre suas campanhas
militares na Gaacutelia foi publicada provavelmente em 51 aC Sem duacutevida Ceacutesar escreveu
o De bello Gallico com fins propagandiacutesticos pois ele mostrava-se como o comandante
justo e valoroso disposto a defender os romanos e seus ideais Por outro lado pode-se
pensar que o De bello Gallico tambeacutem tenha sido direcionado agrave elite gaulesa receacutem
conquistada Os romanos de acordo com Ceacutesar seriam os responsaacuteveis por trazer
ordem e paz nessa proviacutencia que sofrera tanto por ataques dos germanos como por
ataques internos de outras naccedilotildees gaulesas Nas palavras de Gouvecirca Juacutenior (2012 p
12) ―Ceacutes r com os exempla de suas vitoacuterias oferecia agrave aristocracia gaulesa aculturada
e predisposta a fornecer-lhe apoio poliacutetico a proteccedilatildeo contra os chefes da rebeliatildeo
caracterizados como f ciacutenor s em busc d inst ur ccedilatildeo de um regime tiracircnico
232 ndash O estilo do De bello Gallico e discussotildees sobre sua composiccedilatildeo
O De bello Gallico tem estilo claro simples e elegante sem grande variaccedilatildeo no
tom ou no vocabulaacuterio Eacute possiacutevel que Ceacutesar tenha usado um vocabulaacuterio bastante
simples como forma de alcanccedilar o maior nuacutemero de leitores possiacuteveis Evidentemente
Ceacutesar (que escreveu o De analogia)214
adotou as normas do aticismo ndash como escolha
cuidadosa do vocabulaacuterio sem recorrer a palavras raras ou desusadas e o uso de
analogia em oposiccedilatildeo agrave anomalia (asianismo) O texto eacute aacutegil conciso e essencial natildeo haacute
introduccedilatildeo nos comentaacuterios de Ceacutesar ateacute mesmo por questatildeo de estilo Ceacutesar tambeacutem
adotou o uso da 3ordf pessoa para se referir a si mesmo ndash sendo esse recurso empregado
para destacar o protagonista ndash jaacute que o proacuteprio Ceacutesar se coloca como personagem
autocircnomo215
Eacute comum ainda o emprego do discurso indireto o que elimina a
dramaticidade e daacute amplificaccedilatildeo retoacuterica ao texto embora alguns episoacutedios decisivos
213
―T l evoluccedilatildeo p rece vanccedilar do estilo nu e sem adornos do verdadeiro comentaacuterio em direccedilatildeo a um
estilo que cada vez mais permite os tiacutepicos ornamentos da histoacuteria consequentemente na segunda metade
do trabalho eacute possiacutevel encontrar usos mais frequentes do discurso direto e recurso de maior variedade de
sinocircnimos o que denota uma certa expansatildeo do vocabulaacuterio tr dicion l 214
Como jaacute citado na p 112 215
Ceacutesar tomou da Anaacutebase de Xenofonte esse aspecto de se referir a sim mesmo na 3ordf pessoa (ANDREacute
HUS 1974 p 30 a 32)
117
possuam carga dramaacutetica216
Depois de Tuciacutedides toda obra historiograacutefica passou a
conter discursos e Ceacutesar fez uso de discursos (sendo o direto bem raro) e sempre em
momentos estrateacutegicos mas sem banalizaccedilotildees ou dramatizaccedilotildees excessivas da narrativa
Esses discursos fictiacutecios eram um recurso literaacuterio empregado pelo autor para ajudar na
caracterizaccedilatildeo de um personagem ou para explicar uma situaccedilatildeo etc (ANDREacute HUS
1974 p 32) Riggsby (2006 p 142) lembra que geralmente as falas na historiografia
satildeo de personagens importantes (como generais) para dar contexto agrave narrativa ou
fornecer uma anaacutelise da situaccedilatildeo ou caracterizaccedilatildeo do personagem em si em Ceacutesar
como exemplo temos o apelo do eminente Diviciacuteaco em que ele pede ajuda ao general
contra os germanos217
Todavia em vaacuterias vezes os discursos satildeo pronunciados por
personagens menores desconhecidos ateacute que servem como uma quebra na narrativa e
que enriquecem o texto explicando alguns fatos que ocorreram (ou ocorreratildeo) na
narrativa Como exemplo destacamos o trecho IV 7 em que os germanos enviam
embaixadores a Ceacutesar eles sequer foram nomeados
A quibus cum paucorum dierum iter abesset legati ab iis uenerunt quorum
haec fuit oratio Germanos neque priores populo Romano bellum inferre
neque tamen recusare si lacessantur quin armis contendant quod
Germanorum consuetudo [haec] sit a maioribus tradita Quicumque bellum
inferant resistere neque deprecari Haec tamen dicere uenisse inuitos
eiectos domo si suam gratiam Romani uelint posse iis utiles esse amicos
uel sibi agros attribuant uel patiantur eos tenere quos armis possederint
sese unis Suebis concedere quibus ne di quidem immortales pares esse
possint reliquum quidem in terris esse neminem quem non superare possint
() Como distasse destes um caminho de poucos dias vieram embaixadores
d p rte d queles cujo discurso foi este ―que os germ nos natildeo er m os
primeiros que levavam a guerra ao povo romano nem todavia a recusavam
se eram provocados a que lutassem com as armas porque era este o costume
dos germanos transmitido pelo seus antepassados ndash resistir a todos aqueles
que lhes levassem guerra e natildeo fazer suacuteplicas Todavia dizem estas coisas
que eles tinham vindo constrangidos e tinham sido expulsos da paacutetria se os
romanos queriam a sua amizade podiam ser para eles amigos uacuteteis ou lhes
concedam campos ou consitam que eles ocupem aqueles que tinham
possuiacutedo pelas armas Que eles cediam soacute aos suebos aos quais nem sequer
os deuses imortais podiam ser iguais que ningueacutem certamente havia na terra
o qu l natildeo pudesse vencer 218
216
Como na descriccedilatildeo da resistecircncia dos gauleses frente aos romanos (cf BGall VII 22 p 20-21) e na
morte de Pisatildeo Aquitano a ser abordada na p 125 e ssdeste trabalho 217
BGall I 31 p 103-105 Dentre outros discursos diretos citamos a resposta de Ariovisto rei dos
germanos a Ceacutesar em I 36 a fala do proacuteprio Ceacutesar aos seus soldados em I 40 e o discurso de
Vercingetoacuterige exortando os gauleses em VII 29 218
Traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) Outro exemplo desse tipo de discurso tambeacutem pode ser
encontado em BGall VII 21
118
Ainda de acordo com os preceitos da analogia no De bello Gallico haacute uma
precisatildeo relativa ao tempo lugares pessoas e coisas com repeticcedilatildeo dos termos e
vocabulaacuterio teacutecnico (ANDREacute HUS 1974 p 30) Essa repeticcedilatildeo de termos ou
expressotildees ajudava a gravar uma ideia no consciente do leitor e de acordo com
Rambaud (2011 p 186) esse eacute um recurso usado em propagandas para convencer o
puacuteblico A breuitas (concisatildeo) no texto cesariano daacute a impressatildeo de que o comentaacuterio eacute
desprovido de artifiacutecios retoacutericos o que contribui enormemente para conferir ao relato
seu caraacuteter objetivo e dar um verniz de veracidade De acordo com Constans (1964 p
XVII) no prefaacutecio de sua traduccedilatildeo do De bello Gallico esse estilo cru e sem
ornamentos combinava bastante com a imagem seca de um comunicador
Provavelmente Ceacutesar escreveu dessa forma tambeacutem como um modo de que seu texto
denotasse a expressatildeo de uma inteligecircncia precisa e luacutecida unida a um temperamento de
homem de accedilatildeo (CONSTANS 1964 p XVII) Natildeo seraacute possiacutevel saber exatamente mas
o fato eacute que Ceacutesar como homem culto e com fins poliacuteticos claros escreveu seus
comentaacuterios de forma pensada e seus textos fizeram bastante sucesso219
Segundo
Conte (1999 p 229) esse estilo sem ornamentos de Ceacutesar e a rejeiccedilatildeo dos artifiacutecios
retoacutericos para embelezar a narrativa contribuem para dar ao texto uma aura de aparente
objetividade e tom impassiacutevel e distante ao narrador220
Pode-se notar que sob essa
―imp ssivid de e ―dist nci mento haacute muito tempo os estudiosos perceber m
interpretaccedilotildees tendenciosas e distorccedilotildees de eventos para fins de propaganda poliacutetica que
natildeo podem ser desconsideradas De toda forma Conte (1999 p 229) pontua que essa
distorccedilatildeo histoacuterica pode ser percebida em maior escala no De bello ciuili
provavelmente porque essa obra foi escrita para dar suporte agrave candidatura de Ceacutesar para
o seu segundo consulado Para Conte (1999 p 229) ―in ny event the presence of
distortions in both works is undeniable It is never a matter of large-scale falsifications
but of omissions of greater or lesser importance a certain way of presenting the
rel tions between events 221
Evidentemente Ceacutesar possuiacutea seus detratores como ele
219
De acordo com Conte (1999 p 231 e 232) Ceacutesar foi levado a seacuterio pelos seus contemporacircneos natildeo soacute
como homem de Estado mas tambeacutem como escritor ndash como jaacute mencionamos os elogios feitos por Ciacutecero
e Hiacutercio a Ceacutesar na paacutegina 115 deste trabalho Posteriormente autores de historiografia como Liacutevio
Nicolau de Damasco Plutarco Taacutecito e outros apreciaram suas qualidades e utilizaram eventualmente
seu material como fonte 220
Riggsby (2006 p 150 a 155) aprofunda a discussatildeo sobre o papel de Ceacutesar narrador e Ceacutesar
personagem no De bello Gallico 221
―em qu lquer evento presenccedil de distorccedilotildees em mbos os tr b lhos eacute inegaacutevel Nunc eacute um c so de
falsificaccedilatildeo em larga escala mas sim omissotildees de maior ou menor importacircncia uma certa maneira de
present r s rel ccedilotildees entre os eventos
119
mesmo mencionou no De bello Gallico222
Ora Ceacutesar natildeo precisava distorcer
grandemente seus feitos para melhorar sua reputaccedilatildeo caso assim o fizesse seria
facilmente desmentido (OGILVIE In KENNEY 1989 p 316)
Haacute ateacute hoje uma grande discussatildeo sobre a veracidade dos fatos em Ceacutesar ndash
discussatildeo essa que talvez nunca chegue a um consenso Jaacute na Antiguidade Suetocircnio
(Caesar 56 4) relatou que Asiacutenio Poliatildeo acusava Ceacutesar de inexatidatildeo (embora Poliatildeo
se referisse ao relato da guerra civil jaacute que ele natildeo estava com Ceacutesar durante o
proconsulado desse uacuteltimo na Gaacutelia)223
Alguns pesquisadores consideram Ceacutesar um
memorialista sincero que foi inexato por questotildees involuntaacuterias enquanto outros
estudiosos julgam que Ceacutesar foi um mero propagandista sem escruacutepulos como Barwick
e Rambaud (ANDREacute HUS 1974 p 33) Rambaud (2011) de fato dedicou um livro
inteiro a esse assunto224
Constans (1964 p XIII) lembra que para apreciar as informaccedilotildees em Ceacutesar eacute
necessaacuterio observar as fontes que ele utilizou que satildeo de trecircs naturezas relatoacuterios ao
Senado depois de cada campanha relatos dos seus lugares-tenentes e memoacuterias
pessoais ditadas pelo proacuteprio Ceacutesar a seus auxiliares Evidentemente os relatos de Ceacutesar
o favoreciam os dos tenentes tambeacutem possuiacuteam falhas e imprecisotildees como exageros
ou inexatidatildeo sobre informaccedilotildees dos inimigos Qual a consequecircncia dessas
imprecisotildees Para Constans o De bello Gallico seria comparaacutevel ao relato sobre a
guerra da Gaacutelia escrito por outros autores225
De toda forma o corpus cesariano sofreu
grandes modificaccedilotildees uma vez que Otaacutevio determinou com matildeo de ferro o que devia
ser mantido e o que devia ser escondido do puacuteblico De Ceacutes r temos o rel to ―ofici l
dos comentaacuterios e aleacutem dele algumas outras poucas fontes citadas sobretudo por
Suetocircnio Guillaumin (In RATTI 2009 p 19) destaca que no caso especiacutefico do De
bello Gallico essa obra natildeo possui outras fontes que possam demonstrar as distorccedilotildees
222
No BGall (I 44) Ceacutesar disse que o germano Ariovisto fora informado por vaacuterios nobres cidadatildeos
romanos que se matasse Ceacutesar ele obteria reconhecimento desses mesmos romanos 223
O desaparecimento da obra de Asiacutenio Poliatildeo que escreveu depois da batalha de Aacutecio (31 aC)
representa uma grande perda para a literatura latina Seu relato contrapunha Ceacutesar enquanto os
acontecimentos ainda estavam bem recentes (CANFORA 2002 p 405) Ainda de acordo com Canfora
(2002 p 406) ―As Histoacuterias de Asiacutenio er m um seacuterio tent do agrave vulg t lsquo ces ri n ou melhor agrave
verdade posta em circulaccedilatildeo pelos commentarii Otaacutevio censur v s obr s que contr dissessem Ceacutes r e
com Poliatildeo natildeo foi diferente Aleacutem de os escritos de Poliatildeo se oporem a Ceacutesar Otaacutevio tambeacutem lhe nutria
profunda antipatia jaacute que Poliatildeo era aliado de Antocircnio 224
Sobre deformaccedilotildees histoacutericas em Ceacutesar a obra de Rambaud eacute definitiva e analisa de forma profunda
todo o conteuacutedo dos comentaacuterios de Ceacutesar Por conseguinte natildeo aprofundaremos aqui sobre essa questatildeo
de distorccedilatildeo histoacuterica salvo quando necessaacuterio em discussatildeo de passagens especiacuteficas do De bello
Gallico a serem citadas mais adiante neste trabalho 225
Constans (1964 p XIII) lembra que muitos autores simplesmente repetiram o que foi escrito por
Ceacutesar com exceccedilatildeo de Suetocircnio Plutarco e Apiano que parecem mais independentes
120
histoacutericas de Ceacutesar ndash o mesmo natildeo pode ser dito do De bello ciuili mais facilmente
desmentido por outras fontes sobre a guerra civil como o proacuteprio Ciacutecero dentre outros
Ainda de acordo com Constans (1964 p XIII e XIV) a escrita do De bello
Gallico foi raacutepida226
e o uso das fontes por parte dele tambeacutem comprometeu a
qualidade do trabalho Constans afirma que as fontes histoacutericas de Ceacutesar eram boas mas
as geograacuteficas eram mediacuteocres As indicaccedilotildees de Ceacutesar sobre a localizaccedilatildeo de diferentes
partes da Gaacutelia e da Britacircnia foram equivocadas ele se utilizou de mapas errocircneos e ele
proacuteprio natildeo se preocupou em corrigir esse tipo de falha (CONSTANS 1964 p XIV)
Justamente por essas omissotildees deformaccedilotildees e exageros a obra carece de um completo
valor histoacuterico Em certa medida as obras de Ceacutesar foram improvisadas e escritas em
circunstacircncias bem especiacuteficas e natildeo se pode deixar de ter isso em mente ao se estudar
os comentaacuterios (CONSTANS 1964 p XV) 227
De acordo com Andreacute e Hus (1974 p
36) podemos admirar o Ceacutesar escritor e na falta de outras fontes importantes dos
acontecimentos que ele narra natildeo daacute para simplesmente ignorar sua obra apenas ter
cuidado com essas distorccedilotildees
Quanto agrave sua proacutepria imagem Ceacutesar se mostrou no De bello Gallico como um
ceacuterebro que pensa nas batalhas um general dotado de surpreendente conhecimento da
arte da guerra uma vez que a organizaccedilatildeo de uma campanha eacute um jogo intelectual e
inteligente Canfora (2002 p 126) lembra que as lendas de Ceacutesar como comandante
militar se consolidaram pouco a pouco e que essas lendas eram provavelmente
baseadas em fatos reais era famosa a resistecircncia fiacutesica de Ceacutesar sua camaradagem e
sua capacidade de suportar a dureza diaacuteria da vida militar apesar de ele ter sido um
homem ristocraacutetico e culto ―se submeti com gilid de e obstin ccedilatildeo agrave m is aacutesper e
perigos d s disciplin s (CANFORA 2002 p 127) Ele conheci os p iacuteses e homens
que combatia e apreciava nos chefes gauleses a sua grandeza de alma a energia a
coragem o espiacuterito de decisatildeo que suplanta a inferioridade teacutecnica e a desuniatildeo
(ANDREacute HUS 1974 p 35) Ceacutesar tambeacutem aparece no De bello Gallico como um
general que sempre agiu dentro da lei um poliacutetico moderado do qual natildeo se deveria
esperar arroubos revolucionaacuterios
Embora se mostrasse como general habilidoso Ceacutesar contudo natildeo criou em
torno de si uma aura de carisma o proacuteprio tom do comentaacuterio e o distanciamento
226
Como mencionamos na p 115 Ceacutesar precisava se justificar perante Roma daiacute a pressa para divulgar
seus comentaacuterios 227
Sobre interpolaccedilotildees de cunho geograacutefico em Ceacutesar ver Constans (1964 p XIV)
121
causado pelo uso da 3ordf pessoa justificam esse fato e aleacutem disso o general romano
buscava a sutileza ao se auto vangloriar em suas obras228
Sobre o De bello Gallico
Conte considera que essa obra natildeo pode ser lida apenas como uma glorificaccedilatildeo de uma
conquista militar segundo ele (1999 p 230) jaacute era um costume estabelecido do
imperialismo romano apresentar as guerras de conquista como sendo necessaacuterias para a
proteccedilatildeo do Estado romano e seus aliados contra os perigos que se levantavam no
estrangeiro Aleacutem disso Ceacutesar se dirige agrave aristocracia gaulesa assegurando-lhes de sua
proteccedilatildeo contra os homens sem lei que por traacutes de ideais de independecircncia ocultavam
sua aspiraccedilatildeo agrave tirania (CONTE 1999 p 230)
233 ndash Alguns conceitos romanos fundamentais em Ceacutesar
Na introduccedilatildeo deste trabalho abordamos a questatildeo da humanitas Alguns outros
conceitos fundamentais para os romanos tambeacutem aparecem em Ceacutesar e em Tito Liacutevio
sendo elementos-chave dentro dos textos em termos de estabelecer algumas questotildees
culturais por esse motivo discutiremos um pouco mais sobre eles nas proacuteximas linhas
O primeiro desses importantes elementos de que falaremos eacute a sorte (fortuna) poreacutem
ela natildeo eacute representada como uma divindade (CONTE 1999 p 230) Ainda segundo
Conte (1999 p 230) a fortuna eacute
() a concept that serves to explain sudden changes in a situation an
imponder ble f ctor th t sometimes ids C es rlsquos enemies too it is bove
ll wh t lies beyond m nlsquos bilities of foresight nd r tion l control C es r
attempts to explain events trough human and natural causes to grasp clearly
their inner logic and he practically never has recourse to divine
intervention229
O p pel d sorte e do c so n historiogr fi l tin se deve Poliacutebio ―Poliacutebio
tambeacutem seraacute uma das fontes de inspiraccedilatildeo da noccedilatildeo de papel decisivo do acaso (tykheacute
fortuna em latim) divindade que explica tanto as improbabilidades como a sorte
quilo que p receraacute em divers s n rr tiv s historiograacutefic s l tin s como felicitas (o
b fejo d sorte) (FUNARI GARRAFFONI 2016 p 34) Citamos alguns exemplo
228
Cf Riggsby (2006 p 150 a 155) sobre a 3ordf pessoa em Ceacutesar e a questatildeo do Ceacutesar narrador e do Ceacutesar
personagem 229
―( ) um conceito que serve p r explicar mudanccedilas repentinas em uma situaccedilatildeo um fator
imponderaacutevel que ora auxilia tambeacutem os inimigos de Ceacutesar eacute acima de tudo o que estaacute aleacutem das
habilidades de previsatildeo de controle racional do homem Ceacutesar tenta explicar os eventos atraveacutes de causas
humanas e naturais compreender claramente a sua loacutegica interna e ele praticamente nunca recorre agrave
intervenccedilatildeo divin
122
como em (BGall I 53) em que Ceacutesar mencionou que seu amigo Caio Valeacuterio Procilo
prisioneiro de Ariovisto foi resgatado incoacutelume graccedilas agrave fortuna
Quae quidem res Caesari non minorem quam ipsa uictoria uoluptatem
attulit quod hominem honestissimum prouinciae Galliae suum familiarem et
hospitem ereptum ex manibus hostium sibi restitutum uidebat neque eius
calamitate de tanta uoluptate et gratulatione quicquam fortuna deminuerat
Is se praesente de se ter sortibus consultum dicebat utrum igni statim
necaretur an in aliud tempus reseruaretur sortium beneficio se esse
incolumem Item M Metius repertus et ad eum reductus est
Este fato na verdade natildeo trouxe a Ceacutesar uma alegria menor do que a proacutepria
vitoacuteria porque via que o homem mais honesto da proviacutencia da Gaacutelia seu
amigo e hoacutespede lhe fora restituiacutedo salvo das matildeos dos inimigos nem com
a morte deste a fortuna diminuiacutera coisa alguma de tamanho prazer e
felicitaccedilatildeo Este estando ele presente dizia que consultara trecircs vezes as
sortes acerca daquele se porventura seria imediatamente morto no fogo ou
se estaria guardado para outro tempo que ele estava incoacutelume por benefiacutecio
das sortes230
No livro II 20 a 22 Ceacutesar surpreendido por um ataque dos neacutervios mal tem
tempo de dispor o exeacutercito para a batalha por causa dessa improvisaccedilatildeo ele disse
itaque in tanta rerum iniquitate fortunae quoque euentus uarii sequebantur ―por isso
em tamanha desigualdade de vantagens tambeacutem deviam seguir-se variados os sucessos
d fortun 231
No De bello Gallico (VII 89) Ceacutesar escreveu que Vercingetoacuterige se
rendeu visto que devia ceder agrave fortuna jaacute que ele natildeo conseguira derrotar os romanos
Postero die Vercingetorix concilio conuocato id bellum se suscepisse non
suarum necessitatium sed communis libertatis causa demonstrat et quoniam
sit fortunae cedendum ad utramque rem se illis offerre seu morte sua
Romanis satisfacere seu uiuum tradere uelint Mittuntur de his rebus ad
Caesarem legati
No dia seguinte Vercingetoacuterige convocada uma assembleia demonstra que
ele empreendera esta guerra natildeo por causa das suas necessidades mas por
causa da liberdade comum e visto que se deve ceder agrave fortuna oferece-se
agravequeles para uma e outra coisa quer desejem satisfazer aos romanos com a
sua morte quer entregaacute-lo vivo Acerca destas coisas satildeo enviados
embaixadores a Ceacutesar232
Outro conceito que teve destaque em Ceacutesar foi a clemecircncia (clementia) Ainda
no seacuteculo I aC Roma jaacute enfrentara uma sangrenta guerra civil entre Maacuterio e Sila e
menos de um seacuteculo depois uma outra guerra civil entre Ceacutesar e Pompeu Depois desse
conflito entre esses generais muitos esperavam novas proscriccedilotildees e banhos de sangue
230
Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 231
BGall II 22 em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946) 232
Em traduccedilatildeo de Firmino (CEacuteSAR 1946)
123
Ceacutesar contudo sempre se mostrou publicamente como um general clemente e foi
justamente essa sua caracteriacutestica que contribuiu para a sua ruiacutena Ora essa
caracteriacutestica tambeacutem foi usada habilmente por Ceacutesar em seus escritos Em suas obras
Ceacutesar mostrou justamente sua clemecircncia com os derrotados em contraste com a
crueldade dos seus inimigos conquistando assim a opiniatildeo puacuteblica233
Pereira (1984 p
358) afirma que a clementia eacute um ―termo poliacutetico especi lmente dequ do fin lid des
de propaganda goza de uma aura extraordinaacuteria no tempo das guerras civis e fica
particularmente ligado agrave figura de Ceacutesar a quem o Senado honra com um templo
dedicado agrave Clementia Caesaris ( ) Ceacutesar embora buscasse o poder individual
colocou em praacutetica uma forma de governar original ele buscava mobilizar
mesmo entre seus inimigos as melhores forccedilas e aleacutem disso natildeo exercia
qualquer tipo de censura cultural ou sobre trabalhos intelectuais (CANFORA
2002 p 421) O sucessor de Ceacutesar Otaacutevio natildeo adotaraacute essa praacutetica pelo
contraacuterio ele exerceraacute censur com matildeo de ferro ―( ) que no plano poliacutetico
simul raacute um rest ur ccedilatildeolsquo republic n e no pl no cultur l pr tic raacute um
intervencionismolsquo destin do se torn r modelo p r experiecircnci s sinistr s
(CANFORA 2002 p 421) Como exemplo emblemaacutetico da clemecircncia de Ceacutesar
temos o episoacutedio em que ele confiou a Varratildeo (ex partidaacuterio de Pompeu) a tarefa
de abrir uma biblioteca puacuteblica greco-latina em Roma e de receber a maior
quantidade possiacutevel de obras e colocar esse material agrave disposiccedilatildeo do puacuteblico
Otaacutevio por outro lado ditava ordens precisas ao bibliotecaacuterio Pompeu Macro
especificando quais obras poderiam ser puacuteblicas e quais natildeo (CANFORA 2002
p 423) Ceacutesar buscava a aprovaccedilatildeo do povo para essa sua postura mas seu grande erro
contudo foi ter tido clemecircncia para com seus mais determinados inimigos que o
233
Eacute importante lembrar que a clemecircncia de Ceacutesar se dirigia apenas a seus concidadatildeos seus pares e
iguais mas ele foi extremamente cruel com os povos vencidos como os gauleses Todavia Rambaud
(2011 p 283) questiona a tatildeo famosa clemecircncia cesariana lembrando de vaacuterios exemplos de vinganccedila
praticados pelo general como o episoacutedio em que ele se vingou cruelmente dos piratas que o
sequestraram aleacutem de ter se envolvido em obscuras mortes de seus rivais como Luacutecio Ceacutesar Fausto etc
Por outro lado Veyne (In GIARDINA 1992 p 293 e 294) destaca que em relaccedilatildeo aos gauleses Ceacutesar
soacute foi impiedoso com os baacuterbaros rebeldes que teimavam em desafiar o poder de Roma a fim de dar um
exemplo aos outros possiacuteveis revoltosos como em BGall II 33 em que os romanos arrasaram com os
aduaacuteticos que tinham preparado uma cilada noturna para Ceacutesar Quanto aos neacutervios que tentaram resistir
mas natildeo conseguiram vencer as legiotildees romanas Ceacutesar poupou os vencidos e natildeo saqueou suas aldeias a
fim de mostr r todos os g uleses que ele er misericordioso com os ―infelizes e suplic ntes (BGall II
28) Quanto ao uso da clemecircncia de Ceacutesar para fins propagandiacutesticos e justificatoacuterios para a conquista da
Gaacutelia cf Rambaud (2011 p 272 a 275)
124
assassinaram234
Nesse aspecto e com a sua juventude Otaacutevio tomou uma decisatildeo mais
acertada politicamente se tornando um dos governantes com mais longevo comando
A uirtus tambeacutem eacute um conceito de destaque no De bello Gallico O termo uirtus
estaacute relacionado a uir (homem) e como destaca Pereira (1993 p 407) uir significaria
―ser homem no sentido de ―ser homem direito Virtus comumente traduzida por
virtude signific v ―v lenti ou ―cor gem em princiacutepio em sentido militar e
posteriormente designando tambeacutem a virtude de caraacuteter (PEREIRA 1993 p 407) Pelo
contexto do De bello Gallico o eacutetimo uirtus aparece vaacuterias vezes para designar
momentos de coragem dos romanos e o mais surpreendente designar tambeacutem a
valentia dos gauleses Ceacutesar se preocupou em deixar registrado o elogio agrave uirtus dos
seus proacuteprios soldados um dos fatores decisivos de sua vitoacuteria natildeo soacute na guerra da
Gaacutelia mas tambeacutem na guerra civil Para Conte (1999 p 229) natildeo se pode separar esse
enaltecimento dos soldados da poliacutetica cesariana de inserir homines noui (homens
novos) de origem militar no Senado aleacutem disso Ceacutesar tinha uma preocupaccedilatildeo com a
posteridade ao preservar nomes de centuriotildees e soldados que se distinguiram em atos
de heroiacutesmo235
Quanto ao termo uirtus em si Gruen (2011a p 150) detalha que esse
eacutetimo foi usado 31 vezes para descrever os gauleses 28 vezes para falar dos romanos e
5 vezes para os germanos Constatamos que Ceacutesar usou desse conceito para descrever
os gauleses como valentes e bravos de forma a aumentar ainda mais seu meacuterito (e de
seus soldados) que foram capazes de vencer tatildeo forte inimigo Jaacute no primeiro capiacutetulo
do De bello Gallico Ceacutesar (I 1) assim escreveu sobre os helveacutecios
() Qua de causa Heluetii quoque reliquos Gallos uirtute praecedunt quod
fere cotidianis proeliis cum Germanis contendunt cum aut suis finibus eos
prohibent aut ipsi in eorum finibus bellum gerunt ()
Pelo mesmo motivo os helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em
coragem jaacute que lutam em combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer
quando os afastam de suas fronteiras quer quando levam por si a guerra aos
territoacuterios daqueles
234
Como Konstan (2005 p 337) destaca os contemporacircneos de Ceacutesar da aristocracia percebiam a
clemecircncia cesariana natildeo como virtude mas sim como uma manifestaccedilatildeo de seu poder tiracircnico jaacute que era
um gesto de complacecircncia do superior para com o inferior a aristocracia senatorial se considerava em peacute
de igualdade com Ceacutesar e ficou ressentida de ser tratada por ele como se fosse alvo de uma caridade
condescendente Ciacutecero em carta a Aacutetico (XIV 221) falou que foi justamente a clemecircncia de Ceacutesar que
permitiu o seu assassinato e que embora a clemecircncia fosse um gesto louvaacutevel ela devia ser evitada em
tempos difiacuteceis como o da guerra civil Konstan (2005) aprofunda mais a discussatildeo sobre a clemecircncia
tanto a de Ceacutesar quanto a tratada por Secircneca no De clementia 235
O que justifica o registro de discursos dos personagens anocircnimos ou pouco importantes em Ceacutesar (cf
p 117)
125
Gruen (2011a p 150) afirma que Ceacutesar usou essa denominaccedilatildeo latina para os
gauleses para demonstrar que esses possuiacuteam caracteriacutesticas semelhantes aos romanos
(as mesmas aspiraccedilotildees e qualidades) e por conseguinte para unir as naccedilotildees em um
niacutevel profundo Ceacutesar tambeacutem recorreu a termos latinos para descrever os gauleses de
modo a facilitar a compreensatildeo do seu puacuteblico sobre uma sociedade tatildeo diferente dos
romanos Assim tem um grande destaque na narrativa o episoacutedio de Pisatildeo o aquitano
(BGall IV 12)
At hostes ubi primum nostros equites conspexerunt quorum erat V milium
numerus cum ipsi non amplius octingentos equites haberent quod ii qui
frumentandi causa ierant trans Mosam nondum redierant nihil timentibus
nostris quod legati eorum paulo ante a Caesare discesserant atque is dies
indutiis erat ab his petitus impetu facto celeriter nostros perturbauerunt
rursus his resistentibus consuetudine sua ad pedes desiluerunt subfossis
equis conpluribusque nostris deiectis reliquos in fugam coniecerunt atque ita
perterritos egerunt ut non prius fuga desisterent quam in conspectum
agminis nostri uenissent In eo proelio ex equitibus nostris interficiuntur
quattuor et septuaginta in his uir fortissimus Piso Aquitanus amplissimo
genere natus cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu
nostro appellatus Hic cum fratri intercluso ab hostibus auxilium ferret illum
ex periculo eripuit ipse equo uulnerato deiectus quoad potuit fortissime
restitit cum circumuentus multis uulneribus acceptis cecidisset atque id
frater qui iam proelio excesserat procul animaduertisset incitato equo se
hostibus obtulit atque interfectus est
Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil
(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que
atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em
nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-
se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles
rapidamente nos desordenaram com um ataque Novamente resistindo os
nossos saltaram eles de peacute conforme seu costume matando os cavalos
montados e derrubando em maior nuacutemero os nossos puseram em fuga os
restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute
virem agrave presenccedila de nossa tropa Nesse combate satildeo mortos setenta e quatro
dos nossos cavaleiros entre eles um homem fortiacutessimo Pisatildeo Aquitano
nascido de importantiacutessima famiacutelia cujo avocirc obtivera o comando em sua
cidade e que for ch m do migolsquo por nosso sen do Lev ndo ele uxiacutelio o
irmatildeo cercado por inimigos livrou-o do perigo ele mesmo derrubado de
seu cavalo ferido resistiu muito bravamente enquanto pode rodeado tombou
ao receber vaacuterios ferimentos Notando-o de longe o irmatildeo que jaacute deixara a
batalha esporeou seu cavalo lanccedilou-se contra os inimigos e foi morto
Nesse episoacutedio temos o contexto do ataque empreendido pelos usipetes e
tencteros (n ccedilotildees germacircnic s no trecho cim design d s por ―inimigos) agrave c v l ria
gaulesa de Ceacutesar sendo que esses mesmos povos tinham solicitado uma treacutegua a Ceacutesar
que eles mesmos desrespeitaram Esse trecho dedicado a narrar a accedilatildeo heroica de um
gaulecircs a serviccedilo de Roma eacute significativo Devemos sempre ter em mente que Ceacutesar natildeo
apenas se preocupou em narrar os acontecimentos mas a forma como o fez tambeacutem eacute
126
muito importante tudo nos comentaacuterios foi escrito com propoacutesitos bem especiacuteficos
como autopropaganda e finalidade poliacutetica Assim o relato da morte de Pisatildeo Aquitano
estaacute revestido de significados A traiccedilatildeo por parte dos germanos justifica o posterior
massacre que eles sofrem de Ceacutesar aleacutem disso esse fato valorizava os gauleses que
estavam do lado dos romanos mostrando que eles eram reconhecidos Como Brown
(2014 p 392) destaca nos comentaacuterios eacute comum essas descriccedilotildees de mortes de
indiviacuteduos em atos heroicos em batalhas ndash sobretudo as que foram perdidas por Ceacutesar ndash
como se essas narrativas servissem para compensar a derrota e aliviar o fracasso A
caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo eacute feita com contornos eacutepicos antes de ter seu nome citado ele
foi descrito como uir fortissimus (homem fortiacutessimo) aleacutem disso ele era de famiacutelia
importante (amplissimo genere natus) e seu avocirc fora um proeminente liacuteder de sua
cidade considerado amigo dos romanos e muito provavelmente cidadatildeo romano ele
proacuteprio (cuius auus in ciuitate sua regnum obtinuerat amicus ab senatu nostro
appellatus) Apesar de natildeo diretamente especificado pode-se considerar Pisatildeo piedoso
(pius) pelo fato de ele ter se sacrificado para salvar o irmatildeo ato que o proacuteprio irmatildeo
retribui ao se sacrificar tambeacutem por Pisatildeo (BROWN 2014 p 393)236
Em uma anaacutelise
ingecircnua pode-se acreditar que Ceacutesar narrou esse episoacutedio porque genuinamente
admirou a atitude de Pisatildeo mas como Brown pontua (2014 p 393) Ceacutesar
provavelmente quis dar contornos nobres e eacutepicos a um episoacutedio bastante controverso o
do massacre dos germanos A morte do nobre e valoroso Pisatildeo tambeacutem acentua a
proacutepria falta de caraacuteter e perfiacutedia dos usipetes e tencteros que desrespeitaram a treacutegua e
atacaram a cavalaria gaulesa (LEE 1969 apud BROWN 2014 p 395) Aleacutem disso
percebe-se que os gauleses muito corajosos todavia entravam em pacircnico quando
percebiam que a luta estava perdida nas palavras de Ceacutesar os germanos aterrorizaram
os gauleses reliquos in fugam coniecerunt atque ita perterritos egerunt ut non prius
fuga desisterent quam in conspectum agminis nostri uenissent (puseram em fuga os
restantes e de tal modo os aterrorizaram que eles natildeo cessaram de fugir ateacute virem agrave
presenccedila de nossa tropa)237
O ato de coragem de Pisatildeo tambeacutem redime a falta de
236
A pietas um dos valores romanos consistia em um sentimento de devoccedilatildeo e lealdade para com a
famiacutelia e em sentido mais amplo para com o Estado (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Quanto a outros
episoacutedios de narrativas eacutepicas envolvendo a morte de irmatildeos em batalhas cf Brown (2014 p 394) 237
A imagem do gaulecircs corajoso a princiacutepio e depois se acovardando eacute um clichecirc recorrente Ceacutesar
mencionou sobre a falta de coragem dos gauleses em De bello Gallico III 19 Nam ut ad bella
suscipienda Gallorum alacer ac promptus est animus sic mollis ac minime resistens ad calamitates
ferendas mens eorum est (De fato assim como o acircnimo dos gauleses eacute impetuoso e pronto para
empreender guerras tambeacutem o espiacuterito deles eacute fraco e muito pouco resistente para suportar os desastres)
em traduccedilatildeo nossa Esse tema aparece tambeacutem em Poliacutebio (Hist II 356)
127
coragem dos gauleses frente a uma luta perdida e ainda acentua o papel da cooperaccedilatildeo
gaulesa em lutar com os romanos contra a barbaacuterie germana com seu nome romano e
seus valores de uirtus e pietas Pisatildeo se aproximava dos romanos e era colocado em um
poacutelo diferente dos baacuterbaros
Ainda sobre essa descriccedilatildeo nas palavras de Brown (2014 p 396)
It is striking however and in my view deliberate that Caesar devotes the
first battle obituary in the Gallic War to a warrior of Gallic origin whose
Gallo-Roman identity resonates with a context that anticipates in several
ways the ethnographic comparison of Gauls and Germans in Book Six238
De fato percebe-se jaacute nesse trecho que os gauleses estavam mais abertos ao
contato com os romanos enquanto que os belgas germanos eram mais ferozes e natildeo
seriam abarcados pela romanizaccedilatildeo239
A tendecircncia comum dos germanos agrave perfiacutedia natildeo
era meramente um sinal de criminalidade mas tambeacutem era um sinal de sua total
separaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo humana (RIGGSBY 2006 p 61) Ao mostrar esse feito
heroico de um membro importante da sociedade aquitana Ceacutesar tambeacutem demonstrou
que agrave elite conquistada estava aberta a via para o estabelecimento de um muacutetuo
relacionamento com Roma possibilitando trocas comerciais e culturais240
Como
Canfora (2002 p 150) lembra
Haacute em Ceacutesar o acircnimo do grande colonizador impiedade paternalismo
astuacutecia mas tambeacutem grande disposiccedilatildeo para compreender e estudar os
sujeitos-viacutetimas de sua accedilatildeo Natildeo eacute puro acaso por exemplo que o grande
excursus sobre os costumes e a religiatildeo dos celtas e dos germanos ndash que
ocupa grande parte do livro sexto ndash figure exatamente aiacute como a explicar
atraveacutes da anaacutelise etnograacutefica e socioloacutegica as razotildees da derrota daqueles
povos no momento em que se punha a caminho sua grande e infausta
rebeliatildeo Como grande colonizador estudou seriamente os povos com os
quais iria ter de lidar e coabitar e sobre os quais tatildeo longamente iria governar
238
―Eacute marcante e contudo a meu ver eacute deliberado que Ceacutesar tenha dedicado o primeiro obituaacuterio de uma
batalha na Guerra da Gaacutelia a um soldado de origem gaulesa cuja identidade galo-romana ressoa em um
contexto que antecipa de vaacuterias formas a comparaccedilatildeo etnograacutefica entre gauleses e germanos no livro
sexto 239
Cf o trecho de De bello Gallico VI 24 nas paacuteginas 128 e tambeacutem BGall I 1 p 124 240
Rambaud (2011 p 275) destaca tambeacutem que como Ceacutesar ocupou o proconsulado da Gaacutelia
Narbonense depois de Fonteio ele tinha certa preocupaccedilatildeo em conseguir o apoio dos provincianos dessa
forma o general louvou a coragem dos gauleses (na figura de Pisatildeo) e tambeacutem no fato de Ceacutesar justificar
a guerra dizendo que os eacuteduos lhe pediram ajuda (BGall I 30) dentre outros exemplos
128
24 ndash Estudo de trechos selecionados do De bello Gallico
Quanto ao que Ceacutesar escreveu sobre gauleses e germanos a imagem que o
general romano criou sobre esses povos foi bastante complexa Um dos motivos para os
gregos (e depois os romanos) considerarem o baacuterbaro como sendo inferior se devia agrave
sua inferioridade cultural como jaacute explicamos na introduccedilatildeo deste trabalho241
Dessa
maneira o baacuterbaro ndash regido natildeo pelos valores relacionados agrave humanitas mas sim agrave
ferocitas ndash era considerado inferior aos romanos mas ao baacuterbaro o acesso agrave humanitas
era possiacutevel242
Aleacutem disso havia entre os poacutelos civilizaccedilatildeo-barbaacuterie degraus
intermediaacuterios e o civilizado tambeacutem natildeo estava imune de se tornar baacuterbaro assim
como o baacuterbaro poderia se civilizar Assim temos em Ceacutesar (BGall VI 24)
Ac fuit antea tempus cum Germanos Galli uirtute superarent ultro bella
inferrent propter hominum multitudinem agrique inopiam trans Rhenum
colonias mitterent Itaque ea quae fertilissima Germaniae sunt loca circum
Hercyniam siluam quam Eratostheni et quibusdam Graecis fama notam esse
uideo quam illi Orcyniam appellant Volcae Tectosages occupauerunt atque
ibi consederunt quae gens ad hoc tempus his sedibus sese continet
summamque habet iustitiae et bellicae laudis opinionem Nunc quod in
eadem inopia egestate patientiaque Germani permanent eodem uictu et
cultu corporis utuntur Gallis autem prouinciarum propinquitas et
transmarinarum rerum notitia multa ad copiam atque usus largitur paulatim
adsuefacti superari multisque uicti proeliis ne se quidem ipsi cum illis uirtute
comparant
Houve antes um tempo em que os gauleses superavam os germanos em
virtude levavam-lhes por si as guerras espontaneamente e por causa da
multidatildeo de homens e da falta de terra enviavam colocircnias ao outro lado do
Reno Assim os volcos tectoacutesagos ocuparam aqueles lugares que satildeo os mais
feacuterteis da Germacircnia ao redor da floresta Herciacutenia ndash a qual vejo que eacute
conhecida de Eratoacutestenes e de alguns gregos pela fama eles que a chamavam
de ―Orciacuteni e iacute eles se est belecer m Esses povos ateacute nosso tempo
mantecircm-se nessas paragens e detecircm a mais elevada reputaccedilatildeo de justiccedila e de
gloacuteria beacutelica Atualmente como os germanos se conservam na mesma
pobreza privaccedilatildeo e sofrimento eles fazem uso dos mesmos viacuteveres e dos
mesmos trajes por outro lado a proximidade das proviacutencias e o
conhecimento dos itens de aleacutem mar propiciam aos gauleses muitos meios
para a fartura e a comodidade e aos poucos acostumados a serem superados e
vencidos em muitos combates sequer se comparam eles proacuteprios aos
germanos em bravura
Se por um lado ao baacuterbaro fosse possiacutevel o acesso agrave civilizaccedilatildeo natildeo deixa de ser
curioso notar que para Ceacutesar esse mesmo contato com a civilizaccedilatildeo enfraquecia o
baacuterbaro como ele deixou claro no trecho acima ao dizer que os gauleses perderam sua
forccedila e bravura por causa da proximidade com Roma de fato foi-se a eacutepoca em que os
241
Cf p 30-32 242
Cf p 40 e ss
129
gauleses excediam os germanos em virtude Nesse contexto uirtus designa algo aleacutem da
mera coragem em batalha Ceacutesar usou o termo para se referir a uma ferocidade baacuterbara
primitiva O comeacutercio e fluxo de mercadorias foram ferramentas importantes no
processo de romanizaccedilatildeo e de submissatildeo do gaulecircs como o proacuteprio Ceacutesar mencionou
no De bello Gallico ao dizer que os gauleses se civilizaram pelo contato com os
romanos243
O traccedilo caracteriacutestico da ferocidade do baacuterbaro aleacutem de cultural tambeacutem era
explicado por questotildees geograacuteficas244
Sobre a questatildeo da geografia como sendo
determinante na questatildeo da barbaacuterie retomamos o que Ceacutesar escreveu (BGall I 1)
Gallia est omnis diuisa in partes tres quarum unam incolunt Belgae aliam
Aquitani tertiam qui ipsorum lingua Celtae nostra Galli appellantur Hi
omnes lingua intitutis legibus inter se differunt Gallos ab Aquitanis
Garumna flumen a Belgis Matrona et Sequana diuidit Horum omnium
fortissimi sunt Belgae propterea quod a cultu atque humanitate prouinciae
longissime absunt minimeque ad eos mercatores saepe commeant atque ea
quae ad effeminandos animos pertinent inportant proximique sunt Germanis
qui trans Rhenum incolunt quibuscum continenter bellum gerunt
Toda a Gaacutelia eacute dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os
aquitanos a outra e a terceira habitam aqueles que em sua proacutepria liacutengua satildeo
ch m dos ―celt s n noss ―g uleses Todos esses diferem entre si pel
liacutengua pelos costumes e pelas leis O rio Garona separa os gauleses dos
aquitanos dos belgas os rios Marne e Sena De todos esses os mais
corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da civilizaccedilatildeo e
urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e importam
aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque estatildeo
proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com esses
travam guerra constantemente
No trecho cim Ceacutes r escreveu ―tod Gaacuteli eacute dividid em trecircs p rtes
(Gallia est omnis diuisa in partes tres) ou seja embora Ceacutesar tenha feito uma divisatildeo
por aacutereas e naccedilotildees a Gaacutelia foi retratada como um todo ndash como se observa pelo vocaacutebulo
omnis Nota-se que o rio Reno tambeacutem servia para delimitar a Gaacutelia e separar gauleses
de germanos245
Tratar a Gaacutelia como unidade era importante para Ceacutesar ele queria
mostrar que ao contraacuterio dos seus antecessores ele iria conquistar todo esse territoacuterio
243
Jaacute eacute possiacutevel notar mudanccedila na sociedade gaulesa do periacuteodo de Poliacutebio ateacute Ceacutesar Como escreveu
Poliacutebio os gauleses habitavam em aldeias tinham um modo de vida bastante simples praticavam apenas
a agricultura eou a guerra e eram nocircmades (cf nota 87 p 48) nesse mesmo trecho de Poliacutebio tambeacutem eacute
possiacutevel perceber que os gauleses natildeo possuiacuteam artes ou ciecircncias e tambeacutem natildeo haacute menccedilatildeo aos druidas
Jaacute em Ceacutesar como pudemos ver os gauleses passaram a ter contato com os romanos acesso a bens e
mercadorias mais refinados e deixaram de ser nocircmades 244
Abordamos essa questatildeo bem como a teoria hipocraacutetica de que a geografia explicaria o temperamento
e constituiccedilatildeo fiacutesica dos indiviacuteduos na p 32 e 33 245
Cf a fala de Diviciacuteaco (I 31) nas paacuteginas 103-105 deste trabalho
130
de forma definitiva o que ressaltava sua importacircncia para seu puacuteblico em Roma de
fato a urbe concedia a gloacuteria do triunfo aos generais que natildeo apenas venceram batalhas
importantes mas que tambeacutem subjugaram os inimigos completamente (RIGGSBY
2006 p 68)246
Outro fato que ajuda a corroborar essa teoria foi que Ceacutesar ao inveacutes de
ter mantido a separaccedilatildeo entre as naccedilotildees gaulesas se assim o quisesse na verdade
celebrou a conquista da Gaacutelia em um uacutenico triunfo no ano de 46 aC (RIGGSBY
2006 p 144)
Aleacutem disso Ceacutesar deixou claro que os belgas soacute eram mais fortes porque
estavam distantes da proviacutencia romana (fator civilizatoacuterio e de certa forma causador de
enfraquecimento de um povo) e proacuteximos dos germanos com os quais lutavam
frequentemente A humanitas era fator de enfraquecimento e no trecho acima Ceacutesar
escreveu ―ad effeminandos animos ndash liter lmente tr duccedilatildeo seri ―p r femin r os
acircnimos Or o uso desse termo effeminandos natildeo eacute mero acaso e forma um paralelo
diametralmente oposto ao conceito de uirtus ligado em sua essecircncia ao termo uir
(homem) e que depois passou a significar dentre outras ideias a virtude247
Dessa
maneira tanto a proximidade da proviacutencia quanto a proacutepria humanitas facilitavam a
submissatildeo dos baacuterbaros ao poderio de Roma248
Por conseguinte a proximidade com os germanos aumentava a uirtus jaacute a
proximidade com a proviacutencia romana diminuiacutea a uirtus Por esse raciociacutenio podemos
pensar que haacute uma gradaccedilatildeo da uirtus sendo os germanos o poacutelo mais forte e feroz e os
romanos o mais fraco todavia no relato de Ceacutesar essa gradaccedilatildeo esconde um truque
embora aparentemente tivessem uma uirtus menos elevada os romanos conseguiram
vencer natildeo soacute os gauleses mas tambeacutem os germanos (RIGGSBY 2006 p 84) Ainda
sobre a forccedila dos belgas Ceacutesar foi informado de que eles eram de origem germacircnica
Assim temos no De bello Gallico II 4
Cum ab his quaereret quae ciuitates quantaeque in armis essent et quid in
bello possent sic reperiebat plerosque Belgas esse ortos ab Germanis
246
O triunfo consistia na entrada solene do general vitorioso e de suas tropas em Roma com as maiores
gloacuterias militares O triunfo era autorizado pelo Senado e as ruas e edifiacutecios deviam ser ornados com toda
a pompa O cortejo se organizava no Campo de Marte e o desfile seguia ateacute o templo de Juacutepiter
Capitolino e era acompanhado por todos os senadores magistrados e cidadatildeos importantes Para mais
detalhes sobre como era o triunfo cf Canfora (2002 p 494) 247
Jaacute falamos mais detalhadamente do termo uirtus na p 124 e ss 248
Seguindo esse paradigma entre distacircncia da proviacutencia e niacutevel de barbaacuteriecivilidade eacute possiacutevel
perceber como os eacuteduos e os aquitanos ateacute pela proximidade desses territoacuterios com a urbe eram mais
abertos a Roma e considerados aliados (cf o trecho do BGall I 31 citado entre as paacuteginas 103-105 deste
trabalho)
131
Rhenumque antiquitus traductos propter loci fertilitatem ibi consedisse
Gallosque qui ea loca incolerent expulisse solosque esse qui patrum
nostrorum memoria omni Gallia uexata Teutonos Cimbrosque intra fines
suos ingredi prohibuerint qua ex re fieri uti earum rerum memoria magnam
sibi auctoritatem magnosque spiritus in re militari sumerent
Como Ceacutesar lhes perguntasse quais comunidades e quantas pegaram em
armas bem como seu poder na guerra descobria isto a maior parte dos
belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo atravessaram o Reno
por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram tendo expulsado os
Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos que pela lembranccedila
dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram os teutotildees e os
cimbros de adentrar em seu territoacuterio disso resultava que pela lembranccedila de
tais feitos atribuiacutessem para si grande autoridade e grande confianccedila na arte
militar
Nota-se tambeacutem no trecho acima que Ceacutesar mencionou a invasatildeo dos cimbros e
teutotildees proxim ndo ssim seus proacuteprios feitos os de Maacuterio que foi seu ―p drinho
poliacutetico249
Mais agrave frente no De bello Gallico Ceacutesar tambeacutem escreveu sobre a proacutepria
discrepacircncia entre os belgas tidos como os mais corajosos dos gauleses e dentro do
grupo dos belgas a naccedilatildeo dos neacutervios era a mais brava ndash designada no trecho abaixo
por homines feros (homens ferozes) e magnaeque uirtutis (de grande virtude) (BGall
II15)
() quorum de natura moribusque Caesar cum quaereret sic reperiebat
Nullum aditum esse ad eos mercatoribus nihil pati uini reliquarumque
rerum ad luxuriam pertinentium inferri quod iis rebus relanguescere animos
eorum et remitti uirtutem existimarent esse homines feros magnaeque
uirtutis increpitare atque incusare reliquos Belgas qui se populo Romano
dedidissent patriamque uirtutem proiecissent confirmare sese neque legatos
missuros neque ullam condicionem pacis accepturos
() Como Ceacutesar indagasse a respeito da natureza e dos costumes deles (os
neacutervios) descobriu isto que os mercadores natildeo tinham acesso algum ateacute eles
natildeo permitiam que se importasse nada de vinho e dos demais itens de luxo
porque consideravam com tais coisas que se enfraqueciam seus espiacuteritos e
minguava seu valor eram homens ferozes e de grande virtude censuravam e
acusavam os belgas restantes que se tinham rendido ao povo romano e
abandonado os valores paacutetrios e afirmavam que natildeo haveriam de enviar
embaixadores nem de aceitar condiccedilatildeo de paz alguma (grifos nossos)
O vinho ndash fruto da cultura grega e disseminada pelos romanos ndash sempre serviu
como siacutembolo maacuteximo de civilizaccedilatildeo assim o fato de os belgas rejeitarem o vinho (e
outros itens luxuosos) significava negar a proacutepria civilizaccedilatildeo e manter intacto o seu
valor (uirtus)250
Outro toacutepico que destacamos e que apareceu nos dois trechos acima foi
249
Jaacute mencionamos a vitoacuteria obtida por Maacuterio contra cimbros e teutotildees na p 102-103 deste trabalho 250
Riggsby (2006 p 15 a 19) aprofunda essa discussatildeo da questatildeo do vinho entre os gauleses bem como
o fato de algumas naccedilotildees celtas tomarem vinho puro (tambeacutem considerado ato transgressor da civilidade)
132
o papel desempenhado pelos mercadores junto agraves naccedilotildees ditas baacuterbaras251
Como Andreacute
(2001 p 5) pontua os romanos recorreram aos mercadores em maior ou menor
medida para obter informaccedilotildees sobre as terras desconhecidas da Gaacutelia sendo essa uma
contribuiccedilatildeo valiosa com esses relatos era possiacutevel aos romanos compreender em que
grau de civilizaccedilatildeo (ou barbaacuterie) se encontravam as naccedilotildees estrangeiras de acordo com
a receptividade delas ao comeacutercio aleacutem disso se os gauleses se utilizavam dos
mercadores para conhecer as novidades da proviacutencia os romanos obtinham deles os
detalhes da natureza e costumes dos gauleses Todavia os gauleses muitas vezes
acreditavam em boatos dos mercadores e viajantes como Ceacutesar registrou (BGall IV
5)
His de rebus Caesar certior factus et infirmitatem Gallorum ueritus quod
sunt in consiliis capiendis mobiles et nouis plerumque rebus student nihil his
committendum existimauit Est enim hoc Gallicae consuetudinis uti et
uiatores etiam inuitos consistere cogant et quid quisque eorum de quaque re
audierit aut cognouerit quaerant et mercatores in oppidis uulgus circumsistat
quibusque ex regionibus ueniant quasque ibi res cognouerint pronuntiare
cogat his rebus atque auditionibus permoti de summis saepe rebus consilia
ieunt quorum eos in uestigio paenitere necesse est cum incertis rumoribus
seruiant et plerique ad uoluntatem eorum ficta respondeant
Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses
que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees
considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume
gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar
saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas
cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o
que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os
gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute
forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior
parte mente ao responder segundo a vontade deles
No trecho acima Ceacutesar recorreu ao famoso estereoacutetipo do gaulecircs leviano que
por vezes era feito de tolo Todavia agraves vezes os gauleses baseados em rumores
tomavam decisotildees temeraacuterias e entravam facilmente em conflitos e batalhas Sobre esse
traccedilo destacamos a seguinte passagem (BGall VII 42)
Dum haec ad Gergouiam geruntur Haedui primis nuntiis ab Litauicco
acceptis nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt Impellit alios
auaritia alios iracundia et temeritas quae maxime illi hominum generi est
251
O papel do comeacutercio foi grande para alteraccedilotildees culturais e poliacuteticas na Gaacutelia De acordo com Riggsby
(2006 p 17) cerca de um seacuteculo antes da conquista romana a Gaacutelia viu um movimento de reorganizaccedilatildeo
poliacutetica que abandonava os chefes e liacutederes das tribos adotando um sistema baseado em cidades essa
mudanccedila foi precipitada dentre outras coisas pelas trocas comerciais no Mediterracircneo (inclusive o
vinho)
133
innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta Bona ciuium
romanorum diripiunt caedes faciunt in seruitutem abstrahunt Adiuuat rem
proclinatam Conuictolitauis plebemque ad furorem inpellit ut facinore
admisso ad sanitatem reuerti pudeat M Aristium tribunum militum iter ad
legionem facientem fide data ex oppido Cauillono educunt idem facere
cogunt eos qui negotiandi causa ibi constiterant Hos continuo in itinere
adorti omnibus impedimentis exuunt repugnantes diem noctemque obsident
multis utrimque interfectis maiorem multitudinem ad arma concitant
Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido
os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para
verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que
eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram
qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos
romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a
fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-
se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio
tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias
obrigam a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar
Logo os atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam
dia e noite os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam
maior multidatildeo agraves armas (grifos nossos) 252
Os eacuteduos logo que receber m s notiacuteci s natildeo ―deixam passar o tempo para
verific r os f tos (nullum sibi ad cognoscendum spatium relinquunt) e movidos por
cobiccedila ira e temeridade jaacute tomam um rumor por algo confirmado Nota-se que Ceacutesar
deixou claro que esse comportamento era parte da natureza dos gauleses ao escrever
que ― ir e a temeridade que eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo
que consider m qu lquer rumor como lgo confirm do (iracundia et temeritas quae
maxime illi hominum generi est innata ut leuem auditionem habeant pro re conperta)
por ser algo inerente agrave sua essecircncia essa tendecircncia a acreditar em rumores era difiacutecil de
ser combatida pelos gauleses253
Outro clichecirc mencionado por Ceacutesar eacute o fato de os
gauleses natildeo serem confiaacuteveis jaacute que desrespeitaram o tribuno Marco Ariacutestio que foi
expulso de Cabilono aleacutem dos gauleses serem desleais jaacute que atacaram os romanos
mesmo tendo oferecido garantias (fide data)254
De acordo com Riggsby (2006 p 62) a
proacutepria audiecircncia de Ceacutesar esperava esses estereoacutetipos dos inimigos de Roma sendo
252
A imagem do gaulecircs natildeo confiaacutevel natildeo eacute novidade em Ceacutesar de fato jaacute apareceu em Poliacutebio (cf nota
89 p 49) 253
Nota-se essa dificuldade na proacutepria narrativa do De bello Gallico afinal Ceacutesar disse que os gauleses
tentaram coibir a crenccedila em rumores no livro VI 20 e aqui essa descriccedilatildeo estereotipada de que os
gauleses eram temeraacuterios estaacute no livro VII 254
Fides tambeacutem era um dos conceitos morais dos romanos no periacuteodo republicano significava garantia
(depois passou a ser identificada tambeacutem como confianccedila) A fides era a feacute e lealdade ao juramento e
devia ser respeitada e honrada por ambas as partes (PEREIRA 1993 p 320 e ss) Percebemos que Ceacutesar
utilizou o termo fides (fide data ou seja dada a garantia) para ressaltar a deslealdade dos gauleses em natildeo
manter a fides concedida
134
que esses mesmos clichecircs de certa forma ajudavam os romanos a divisar os povos
estrangeiros
Por viverem nas fronteiras do mundo conhecido os baacuterbaros representavam o
caos que poderia derrubar o impeacuterio e colocar um fim agrave identidade cultural dos
romanos Ceacutesar reconheceu esse perigo os germ nos m is dist ntes do ―centro que os
gauleses e porque enfrentavam dificuldades vaacuterias (como guerras frequentes e clima
hostil) eram considerados ainda mais baacuterbaros Ceacutesar assim disse (BGall I 33)
His rebus cognitis Caesar Gallorum animos uerbis confirmauit pollicitusque
est sibi eam rem curae futuram magnam se habere spem et beneficio suo et
auctoritate adductum Ariouistum finem iniuriis facturum Hac oratione
habita concilium dimisit Et secundum ea multae res eum hortabantur quare
sibi eam rem cogitandam et suscipiendam putaret in primis quod Haeduos
fratres consanguineosque saepe numero a senatu appellatos in seruitute
atque in dicione uidebat Germanorum teneri eorumque obsides esse apud
Ariouistum ac Sequanos intellegebat quod in tanto imperio populi Romani
turpissimum sibi et rei publicae esse arbitrabatur Paulatim autem Germanos
consuescere Rhenum transire et in Galliam magnam eorum multitudinem
uenire populo Romano periculosum uidebat neque sibi homines feros ac
barbaros temperaturos existimabat quin cum omnem Galliam occupauissent
ut ante Cimbri Teutonique fecissent in prouinciam exirent atque inde in
Italiam contenderent praesertim cum Sequanos a prouincia nostra Rhodanus
diuideret quibus rebus quam maturrime occurrendum putabat Ipse autem
Ariouistus tantos sibi spiritus tantam adrogantiam sumpserat ut ferendus
non uideretur
Tendo conhecido essas coisas Ceacutesar fortaleceu com palavras os acircnimos dos
g uleses e prometeu que esse ssunto h veri de ser cuid do por si ―tinh
grande esperanccedila de que movido tanto por seus benefiacutecios quanto por sua
autoridade Ariovisto cessaria os busos Tendo proferido t l discurso
despediu o conselho Em conformidade muitas outras coisas o exortavam a
considerar por qual razatildeo esse assunto devia ser examinado e cuidado por si
Sobretudo porque via os eacuteduos ndash miuacutede ch m dos pelo sen do irmatildeos e
cons guiacuteneoslsquo ndash serem mantidos sob a servidatildeo e o controle dos germanos e
ele sabia que os refeacutens deles estavam em poder de Ariovisto e dos seacutequanos
o que considerava bastante vergonhoso para si e para a Repuacuteblica dada a
grandeza do domiacutenio do povo romano Ele via por outro lado que era
perigoso para o povo romano que os germanos aos poucos se acostumassem a
atravessar o Reno e uma grande multidatildeo deles viesse agrave Gaacutelia Pensava
consigo que tais homens ferozes e baacuterbaros natildeo haveriam de evitar tendo
ocupado a Gaacutelia inteira como antes fizeram os cimbros e os teutotildees que
partissem para a proviacutencia e de laacute marchassem contra a Itaacutelia sobretudo
porque apenas o Roacutedano separava os seacutequanos de nossa proviacutencia Ceacutesar
considerava que devia resolver esse inconveniente com a maior presteza Por
outro lado o proacuteprio Ariovisto se inflara de tamanha soberba e tamanha
arrogacircncia que parecia natildeo dever ser suportado (grifo nosso)
Tambeacutem destacamos acima o trecho que Ceacutesar escreveu sobre os refeacutens em
poder de Ariovisto e que Ceacutesar devia resolver o impasse rapidamente pois era algo
―b st nte vergonhoso p r si e p r Repuacuteblic d d gr ndez do domiacutenio do povo
rom no Eacute possiacutevel perceber como Ceacutes r se colocou como o instrumento do Est do
135
romano para intervir na Gaacutelia e como tanto a sua honra pessoal quanto a honra de
Roma estavam em risco Aleacutem disso ele justificou sua accedilatildeo alegando que foram os
gauleses que lhe procuraram pedindo proteccedilatildeo255
Destacamos acima o fato de Ceacutesar ter
se referido aos germanos como homens ferozes e baacuterbaros (homines feros ac barbaros)
Riggsby (2006 p 151) ressalta que Ceacutesar usou o termo baacuterbaro de duas formas
diferentes ora negativa e ora neutra Nesse trecho acima destacado percebemos que
Ceacutesar se referiu aos germanos de modo negativo e ateacute mesmo pejorativo acentuando
seu caraacuteter perigoso256
Qu nto agrave form neutr do uso do termo ―baacuterb ro esse
vocaacutebulo poderia ser substituiacutedo por um mais geneacuterico ndash com o inimigo ndash sem prejuiacutezo
do sentido (RIGGSBY 2006 p 151)257
Em sua obra Ceacutesar tambeacutem reconheceu as qualidades e a capacidade dos
gauleses em combate como no trecho do De bello Gallico VII 22 que jaacute citamos nas
paacuteginas 22 e 23 no qual Ceacutesar elogiou a grande h bilid de dos g uleses em ―imit r e
pr tic r s invenccedilotildees lhei s leacutem de rech ccedil r o v nccedilo dos rom nos 258
Evidentemente que Ceacutesar ressaltou a habilidade guerreira dos gauleses e tambeacutem a
grande uirtus dos germanos como meio de reforccedilar seu proacuteprio sucesso militar e como
Riggsby (2006 p 83) destaca essa habilidade de certa forma aumentava o perigo que
os povos ditos baacuterbaros representavam para os romanos Aleacutem disso ao descrever a
grande forccedila combativa dos gauleses e germanos Ceacutesar tambeacutem de certa forma
justificava as derrotas sofridas por ele ou seus lugares-tenentes259
Apesar das grandes
dificuldades da conquista da Gaacutelia e da destreza dos povos que habitavam essa regiatildeo
Ceacutesar foi mais engenhoso e conseguiu submetecirc-la ao domiacutenio romano
Contudo Ceacutesar foi aleacutem de meras descriccedilotildees de batalhas em seu relato pois se
preocupou natildeo soacute em narrar suas vitoacuterias mas tambeacutem em fazer um registro dos
costumes e cultura de gauleses e germanos dedicando a eles uma consideraacutevel
255
Nota-se que os mesmos eacuteduos desse trecho ch m dos de ―irmatildeos e cons guiacuteneos pelo sen do
romano no livro VII atacam os romanos baseados em boatos (cf BGall I 33 na p 134 e as notas 252
e 253) essa seria mais uma construccedilatildeo retoacuterica de Ceacutesar que ressalta o fato dos eacuteduos (e dos gauleses em
geral) terem dificuldades de combater essa tendecircncia de tomar decisotildees importantes baseadas em
rumores pode-se pensar que civilizar um baacuterbaro era um processo lento e por vezes difiacutecil 256
Veja-se tambeacutem o modo como Ceacutesar descreveu os germanos e Ariovisto no discurso de Diviciacuteaco
entre as paacuteginas 104-105 257
Riggsby (2006 p 151) detalha mais essa questatildeo do uso do termo baacuterbaro em Ceacutesar inclusive com
uma tabela com todas as passagens que esse eacutetimo aparece no De bello Gallico seja de forma pejorativa
ou neutra Percebe-se tambeacutem que o termo latino barbarus (ao contraacuterio do grego) designava mais um
estado de comportamento do que uma categoria eacutetnica daiacute o fato de um gaulecircs (Diviciacuteaco) se referir a um
germano (Ariovisto) como baacuterbaro (RIGGSBY 2006 p 215) 258
Sobre o avanccedilo tecnoloacutegico dos gauleses especialmente depois do contato direto com os romanos cf
c piacutetulo 3 ―Technology virtue victory de Riggsby (2006 p 73 105) 259
Como o proacuteprio episoacutedio que resultou na morte de Pisatildeo Aquitano descrito nas paacuteginas 125 e ss
136
passagem etnograacutefica no livro VI A esse respeito afirma Gruen (2011a p 150)
―C es rlsquos interest in the G uls goes beyond depiction of the foe or sh ping the Otherlsquo
And the ethnography at best takes second place Caesar calls attention to contexts and
characteristics whereby the societies shed light e ch on the other 260
Assim Ceacutesar
escreveu (BGall VI 11)
Quoniam ad hunc locum peruentum est non alienum esse uidetur de Galliae
Germaniaeque moribus et quo differant hae nationes inter sese proponere In
Gallia non solum in omnibus ciuitatibus atque in omnibus pagis partibusque
sed paene etiam in singulis domibus factiones sunt earumque factionum
principes sunt qui summam auctoritatem eorum iudicio habere existimantur
quorum ad arbitrium iudiciumque summa omnium rerum consiliorumque
redeat Idque eius rei causa antiquitus institutum uidetur ne quis ex plebe
contra potentiorem auxilii egeret suos enim quisque opprimi et circumueniri
non patitur neque aliter si faciat ullam inter suos habet auctoritatem Haec
eadem ratio est in summa totius Galliae namque omnes ciuitates in partes
diuisae sunt duas
Jaacute que chegamos a este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os
costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e expor em que estas naccedilotildees diferem entre
si Na Gaacutelia natildeo soacute em todas as comunidades em todas as aldeias e em todas
as regiotildees mas tambeacutem em quase todas as casas existem dois partidos e os
liacutederes desses partidos satildeo aqueles que satildeo considerados pelo juiacutezo alheio
donos da maior autoridade a cujo arbiacutetrio e juiacutezo se atribui o controle de
todos os assuntos e deliberaccedilotildees Isso parece ter sido instituiacutedo haacute muito
tempo por esta razatildeo para que ningueacutem da plebe carecesse de auxiacutelio contra
um homem mais poderoso na verdade liacuteder algum admite que os seus sejam
oprimidos e atacados nem caso aja de outra maneira tem qualquer
autoridade entre os seus Essa mesma disposiccedilatildeo existe no governo da Gaacutelia
inteira e na verdade todas as comunidades satildeo divididas entre duas facccedilotildees
Como Andreacute (2001 p 5) lembra os relatos dos membros do Estado-maior de
Ceacutesar eram bem sucintos e descreviam apenas acontecimentos relacionados agraves
campanhas militares na Gaacutelia ateacute mesmo por serem extremamente resumidos de forma
a informar o senado romano do que acontecia Foi o proacuteprio Ceacutesar que se encarregou da
composiccedilatildeo das passagens de cunho etnograacutefico A esse respeito Momigliano (1991 p
68) afirma que Ceacutesar buscou essas informaccedilotildees etnograacuteficas sobretudo em suas fontes ndash
a saber Posidocircnio via Diodoro Momigliano (1991 p 69 e 70) afirma
Como Ceacutesar escreveu a sua etnografia perto do final da guerra estava em
condiccedilotildees de combinar as proacuteprias observaccedilotildees com o que encontrou nas suas
fontes Eacute inuacutetil qualquer tentativa de separar o antigo do novo Mas em linhas
gerais a sua imagem da sociedade celta coincide com a de Posidocircnio ()
260
―O interesse de Ceacutes r nos g uleses v i leacutem d represent ccedilatildeo do inimigo ou model gem do outrolsquo
E a etnografia no miacutenimo ocupa o segundo lugar Ceacutesar chama atenccedilatildeo para contextos e caracteriacutesticas
pelas quais as sociedades ajudam a explicar uma agrave outr
137
Ceacutesar encontrou nele natildeo soacute preciosas informaccedilotildees efetivas sobre lugares e
instituiccedilotildees mas uma animadora anaacutelise da fraqueza da sociedade celta
De toda forma como lembra Canfora (2002 p 131) Ceacutesar fez uso de
conhecimentos etnograacuteficos atualizados de sua eacutepoca e ele mesmo contribuiu em certa
medida para aumentar esses conhecimentos associando ciecircncia e imperialismo Ceacutesar
ateacute pelo longo contato que teve com os gauleses com seus liacutederes e legados aleacutem de
estar no proacuteprio campo de batalha durante toda a guerra da Gaacutelia teve um maior
entendimento da sociedade celta do que os etnoacutegrafos antecessores a ele que
rapidamente passaram por ali evidentemente natildeo eacute possiacutevel saber com certeza ateacute que
ponto o relato de Ceacutesar foi fiel ao que ele viu (e ao que aconteceu) na Gaacutelia mas como
destaca Gruen (2011a p 148) atraveacutes do De bello Gallico podemos compreender um
pouco a mentalidade do general e entender o sentido do retrato que ele buscou fazer da
campanha gaulesa de acordo com seu puacuteblico-alvo261
Evidentemente como Rambaud
destaca (2011 p 324 e 325) Ceacutesar escreveu esse longo trecho etnograacutefico
simplificando bastante ao falar dos gauleses e suas vaacuterias naccedilotildees como se fossem todas
dos mesmos costumes e haacutebitos Ainda segundo Rambaud (2011 p 328) essa
descriccedilatildeo da sociedade gaulesa no livro VI se referia agraves naccedilotildees dos eacuteduos e dos
seacutequanos Lembramos que Ceacutesar fez isso pois queria que a Gaacutelia fosse vista como uma
sociedade uacutenica essa repeticcedilatildeo sutil mais uma vez ajudava a gravar na cabeccedila do leitor
esse conceito de unidade262
Sobre os gauleses Ceacutesar descreveu sua sociedade e organizaccedilatildeo ressaltando que
eles se dividiam em dois poacutelos (BGall VI 13)
In omni Gallia eorum hominum qui aliquo sunt numero atque honore genera
sunt duo Nam plebes paene seruorum habetur loco quae nihil audet per se
nullo adhibetur consilio Plerique cum aut aere alieno aut magnitudine
tributorum aut iniuria potentiorum premuntur sese in seruitutem dicant
261
Segundo Riggsby (2006 p 48) provavelmente Ceacutesar e Posidocircnio foram os uacutenicos autores que
realmente tiveram uma experiecircncia direta com os gauleses assim eacute possiacutevel que muitas das informaccedilotildees
que apareceram em outros textos derivem de algumas poucas fontes mas infelizmente natildeo haacute muitos
dados disponiacuteveis para precisar melhor essa questatildeo de origem das fontes Mais uma vez de acordo com
Riggsby (2006 p 68) ainda eacute importante ressaltar que Ceacutesar escreveu o De bello Gallico com um claro
objetivo poliacutetico enquanto que Posidocircnio escreveu seu relato com fins etnograacuteficos Lembramos tambeacutem
que Ceacutesar esteve muito ocupado durante seu proconsulado na Gaacutelia recebendo relatos de seus lugares-
tenentes (como mencionamos na p 119) e tambeacutem de mercadores e outros informantes como ele mesmo
escreveu (cf p132) Tambeacutem a esse respeito como Nicolet (2011 p 889) destaca o De bello Gallico
exprime precisamente as ideias que deviam tocar o puacuteblico efetivo dos partidaacuterios italianos de Ceacutesar a
cuidadosa distinccedilatildeo dentre os gauleses daqueles tratados em peacute de igualdade e que satildeo da alianccedila
rom n e evidentemente do v lor milit r dos dversaacuterios e criacutetic de seus defeitos ―tr dicion is 262
Jaacute mencionamos essa questatildeo de Ceacutesar tratar todas as naccedilotildees gaulesas de forma uniformizante na p
129-130
138
nobilibus in hos eadem omnia sunt iura quae dominis in seruos Sed de his
duobus generibus alterum est druidum alterum equitum Illi rebus diuinis
intersunt sacrificia publica ac priuata procurant religiones interpretantur
ad hos magnus adulescentium numerus disciplinae causa concurrit
magnoque hi sunt apud eos honore Nam fere de omnibus controuersiis
publicis priuatisque constituunt et si quod est admissum facinus si caedes
facta si de hereditate de finibus controuersia est idem decernunt praemia
poenasque constituunt si qui aut priuatus aut populus eorum decreto non
stetit sacrificiis interdicunt Haec poena apud eos est grauissima Quibus ita
est interdictum hi numero impiorum ac sceleratorum habentur his omnes
decedunt aditum sermonemque defugiunt ne quid ex contagione incommodi
accipiant neque iis petentibus ius redditur neque honos ullus communicatur
His autem omnibus druidibus praeest unus qui summam inter eos habet
auctoritatem Hoc mortuo aut si qui ex reliquis excellit dignitate succedit
aut si sunt plures pares suffragio druidum non numquam etiam armis de
principatu contendunt Hi certo anni tempore in finibus Carnutum quae
regio totius Galliae media habetur considunt in loco consecrato Huc omnes
undique qui controuersias habent conueniunt eorumque decretis iudiciisque
parent Disciplina in Britannia reperta atque inde in Galliam translata esse
existimatur et nunc qui diligentius eam rem cognoscere uolunt plerumque
illo discendi causa proficiscuntur
Em toda a Gaacutelia existem duas espeacutecies desses homens que satildeo tidos em
alguma conta e honradez Na verdade a plebe eacute quase tida em lugar servil
pois nada ousa por si nem eacute admitida em conselho algum A maior parte dela
quando oprimida por diacutevidas pela exorbitacircncia dos tributos ou pela afronta
dos poderosos aos nobres se entregam em servidatildeo esses possuem todos os
mesmos direitos que os senhores sobre os seus escravos Todavia quanto
essas duas espeacutecies uma eacute a dos druidas a outra a dos cavaleiros Aqueles
assistem o culto divino presidem os sacrifiacutecios puacuteblicos e privados e
interpretam os ritos religiosos um grande nuacutemero de jovens acorre ateacute eles
para educar-se e os druidas desfrutam de grande honradez junto deles Na
verdade eles decidem sobre quase todas as disputas puacuteblicas ou privadas e
se algum crime foi cometido se sucedeu alguma morte se haacute conflito sobre
heranccedila ou sobre um territoacuterio eles mesmos julgam e instituem as
recompensas e os castigos se uma pessoa ou privada ou puacuteblica natildeo se
conforma agrave sua decisatildeo eles lhes vedavam os sacrifiacutecios Essa puniccedilatildeo entre
eles eacute a graviacutessima Aqueles aos quais assim se vedaram satildeo tidos no nuacutemero
dos iacutempios e criminosos todos se afastam deles e evitam sua proximidade e
palavras para que desse contato natildeo recebam dano algum nem para esses
sob sua solicitaccedilatildeo eacute cumprida a justiccedila nem lhes eacute concedido cargo honroso
algum Por outro lado um uacutenico preside a todos estes druidas o que tem a
maior autoridade entre eles No caso da sua morte se algueacutem se sobressai em
meacuterito aos restantes sucede-lhe ou havendo muito iguais decidem atraveacutes
do sufraacutegio dos druidas e natildeo raramente tambeacutem com armas disputam pela
lideranccedila Eles em certa eacutepoca do ano reuacutenem-se nos territoacuterios dos
carnutos na regiatildeo que eacute tida como o centro de toda a Gaacutelia em um lugar
consagrado Para laacute de todas as partes afluem todos aqueles que tecircm litiacutegios
e eles acatam as decisotildees e as sentenccedilas dos druidas Considera-se que seu
saber foi definido na Britacircnia e de laacute levado para a Gaacutelia e agora os que
desejam conhececirc-lo com mais cuidado em geral partem para laacute para
aprender (grifos nossos)
De fato como os gauleses se organizavam em duas facccedilotildees haacute um contraponto
com os romanos mais bem organizados (SCHMIDT 2004 p 184) Aleacutem disso ficava
claro que os gauleses embora fortes natildeo conseguiram se unir (nem com a lideranccedila de
Vercingetoacuterige) para derrotar um inimigo comum representado pelos romanos
139
Tambeacutem se pode notar pelo trecho acima que Ceacutesar usou alguns termos latinos mais
uma vez para descrever a sociedade gaulesa o povo era a plebe e percebemos que
Ceacutesar dedicou poucas palavras a seu respeito acreditamos que Ceacutesar se concentrou
mais na descriccedilatildeo da elite (e principalmente dos druidas) jaacute que falar de aspectos da
sociedade gaulesa que eram diferentes da dos romanos atraiacutea a atenccedilatildeo de seu puacuteblico
Na elite tem-se os dois grupos os druidas e o cavaleiros (equites) Ceacutesar reforccedilou o
paralelo uma vez que em Roma os equites eram da elite situados abaixo apenas dos
patriacutecios que descendiam da nobreza Percebemos que em Ceacutesar natildeo haacute qualquer
menccedilatildeo aos bardos ou advinhos Ceacutesar queria manter a dualidade em vaacuterios aspectos da
sociedade gaulesa e por conseguinte os druidas incorporaram o papel de detentores da
cultura e da sabedoria (RIGGSBY 2006 p 63)263
Ao natildeo descrever bardos e advinhos
(que apareceram em fontes gregas como Posidocircnio e Diodoro) Ceacutesar queria priorizar o
caraacuteter poliacutetico e de autopropaganda de sua obra ao inveacutes de ter realmente uma
preocupaccedilatildeo de cunho etnograacutefico ou antropoloacutegico Todavia como visto em vaacuterios
trechos citados ao longo deste trabalho Ceacutesar natildeo se desviou muito da tradiccedilatildeo
etnograacutefica antecessora a ele ndash de fato os estereoacutetipos serviam como marcos que
auxiliavam o puacuteblico em Roma a se identificar com o texto de Ceacutesar e a reconhecer o
tipo de inimigo que ele combatia
Como Momigliano observa (1991 p 69) Ceacutesar jamais mencionou os druidas a
natildeo ser na digressatildeo etnograacutefica do livro VI provavelmente ele natildeo encontrou os
druidas em suas campanhas mas sim em suas fontes literaacuterias O proacuteprio Ceacutesar
escreveu que os druidas natildeo participavam das guerras aleacutem de outras informaccedilotildees sobre
eles Assim temos no De bello Gallico (VI 14)
Druides a bello abesse consuerunt neque tributa una cum reliquis pendunt
militiae uacationem omniumque rerum habent immunitatem Tantis excitati
praemiis et sua sponte multi in disciplinam conueniunt et a parentibus
propinquisque mittuntur Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur
Itaque annos non nulli XX in disciplina permanent Neque fas esse existimant
ea litteris mandare cum in reliquis fere rebus publicis priuatisque
rationibus graecis litteris utantur Id mihi duabus de causis instituisse
uidentur quod neque in uulgum disciplinam efferri uelint neque eos qui
discunt litteris confisos minus memoriae studere quod fere plerisque accidit
ut praesidio litterarum diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant In
primis hoc uolunt persuadere non interire animas sed ab aliis post mortem
transire ad alios atque hoc maxime ad uirtutem excitari putant metu mortis
263
Posidocircnio definiu o lugar dos vates e bardos na sociedade gaulesa (cf p 66) e em Diodoro temos uma
descriccedilatildeo mais profunda a respeito deles (cf Biblioteca V 31 2 a 4 p 83-84 deste trabalho) Ceacutesar
tambeacutem citou o caraacuteter dual da sociedade gaulesa nas palavras de Diviciacuteaco em I 31 (cf p 103-105) e
tambeacutem em VI 11 (cf p 136)
140
neglecto Multa praeterea de sideribus atque eorum motu de mundi ac
terrarum magnitudine de rerum natura de deorum immortalium ui ac
potestate disputant et iuuentuti tradunt
Os druidas costumam ficar afastados da guerra e natildeo pagam os tributos
juntamente com os demais eles tecircm dispensa do serviccedilo militar e imunidade
de todas as obrigaccedilotildees Animados com tamanhos precircmios natildeo soacute muitos por
sua espontacircnea vontade vecircm a esse saber mas tambeacutem muitos satildeo mandados
pelos pais e parentes Diz-se que nisso eles decoram um grande nuacutemero de
versos Assim alguns permanecem vinte anos educando-se Eles natildeo
consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos
demais assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e privados utilizam as letras
gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado isso por dois motivos por natildeo
querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem
confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio
sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a
dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado Sobretudo querem
persuadir de que as almas natildeo perecem mas sim passam de uns para outros
apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor
desprezado o temor da morte Aleacutem disso debatem e transmitem agrave juventude
sobre muitas coisas sobre os astros e seu movimento sobre a grandeza do
mundo e das terras sobre a natureza das coisas e a forccedila e o poder dos deuses
imortais 264
Os druidas entatildeo se concentravam em se dedicar aos assuntos do mundo
sobrenatural aleacutem de serem mediadores entre os humanos e os deuses jaacute que nenhum
sacrifiacutecio podia ser realizado sem a presenccedila deles265
Aleacutem disso eles tinham grande
influecircncia poliacutetica tanto na paz quanto na guerra (RANKIN 1996 p69) Acima
podemos ver uma justificativa para a grande coragem e fuacuteria dos gauleses na guerra
qual seja o fato de que eles acreditvam que a alma era eterna266
Ainda sobre os druidas
e os rituais religiosos dos gauleses Ceacutesar (BGall VI 16) escreveu
Natio est omnis Gallorum admodum dedita religionibus atque ob eam
causam qui sunt affecti grauioribus morbis quique in proeliis periculisque
uersantur aut pro uictimis homines immolant aut se immolaturos uouent
administrisque ad ea sacrificia druidibus utuntur quod pro uita hominis nisi
hominis uita reddatur non posse deorum immortalium numen placari
arbitrantur publiceque eiusdem generis habent instituta sacrificia Alii
immani magnitudine simulacra habent quorum contexta uiminibus membra
uiuis hominibus complent quibus succensis circumuenti flamma exanimantur
homines Supplicia eorum qui in furto aut in latrocinio aut ex aliqua noxia
sint comprehensi gratiora dis immortalibus esse arbitrantur sed cum eius
generis copia defecit etiam ad innocentium supplicia descendunt
264
De fato Gruen (2011a p 155) lembra que Ceacutesar escreveu sobre a religiatildeo ndash e os druidas
provavelmente porque havia um interesse grande por parte do seu puacuteblico leitor sobre esse tema Os
druidas sempre chamaram atenccedilatildeo dos autores antigos e foram mencionados por Aristoacuteteles Posidocircnio
Diodoro Siacuteculo Estrabatildeo dentre outros De acordo com Pliacutenio o Velho foi durante o principado de
Tibeacuterio que os druidas foram banidos como veremos mais adiante neste trabalho 265
Cf BGall VI 13 nas paacuteginas 137 e 138 266
Esse estereoacutetipo jaacute apareceu em Posidocircnio (Estrabatildeo IV 197) e tambeacutem em Diodoro Siacuteculo (V 28
6)
141
Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse
motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se
encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas
ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os
druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com
a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo
pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente
instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros
entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses
membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem
mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos
por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute
muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de
inocentes
Pelo relato acima Ceacutesar natildeo disse que os druidas praticavam magia e ele apenas
descreveu os ritos de sacrifiacutecios humanos sem condenaccedilatildeo ou julgamento de valor267
Percebe-se tambeacutem que os gauleses possuiacuteam uma justiccedila primitiva ao condenar os
criminosos aos sacrifiacutecios humanos (RIGGSBY 2006 p 63) O trecho acima tambeacutem
se aproxima bastante do que Ciacutecero escreveu sobre o fato dos gauleses praticarem
sacrifiacutecios humanos268
poreacutem se em Ciacutecero os gauleses simplesmente sacrificam as
viacutetimas indistintamente em Ceacutesar os gauleses sacrificavam sobretudo os criminosos
apenas recorrendo ao supliacutecio dos inocentes na falta desses (RAMBAUD 2011 p 330)
Quanto ao outro poacutelo da sociedade gaulesa Ceacutesar escreveu brevemente (BGall VI
15)
Alterum genus est equitum Hi cum est usus atque aliquod bellum incidit
(quod fere ante Caesaris aduentum quotannis accidere solebat uti aut ipsi
iniurias inferrent aut illatas propulsarent) omnes in bello uersantur atque
eorum ut quisque est genere copiisque amplissimus ita plurimos circum se
ambactos clientesque habet Hanc unam gratiam potentiamque nouerunt
A outra espeacutecie eacute a dos cavaleiros Esses quando haacute necessidade e se
sobreveacutem alguma guerra ndash o que costumava acontecer quase todos os anos
antes da chegada de Ceacutesar causando eles proacuteprios prejuiacutezos ou repelindo os
recebidos ndash exercitam-se todos na guerra e agrave medida que cada um deles eacute
mais ilustre pela estirpe e pelas riquezas tanto mais tem agrave sua volta
267
Como Schmidt (2004 p 185) pontua eacute curioso notar que tanto Ciacutecero quanto Ceacutesar insistiram em
ressaltar o fato dos gauleses fazerem sacrifiacutecios humanos uma vez que em Roma os combates de
gladiadores (heranccedila etrusca) podiam ser considerados como verdadeiras imolaccedilotildees de viacutetimas inocentes
sem mencionar os diversos supliacutecios infligidos aos escravos revoltados ou ladrotildees sendo o mais terriacutevel a
crucificaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Liacutevio (Ab urbe cond XXII 57 2-6) os proacuteprios romanos chegaram a
sacrificar humanos Durante a segunda guerra puacutenica contra Aniacutebal os romanos passando por
dificuldades excepcionais decidiram imolar um casal gaulecircs e um casal grego de acordo com o oraacuteculo
de Delfos e os livros sibilinos a fim de aplacar os deuses e conseguirem vencer os cartagineses 268
Cf Pro Fonteio 31 citado na p 71 deste trabalho Ciacutecero contudo explorou ao maacuteximo a falta de
caraacuteter dos gauleses e foi bastante veemente em condenar a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos feitos por
eles
142
numerosos servos e clientes eacute a uacutenica forma de prestiacutegio e poder que
conhecem (grifos nossos)
Destacamos acima como Ceacutesar habilmente ressaltou que trouxera paz agrave Gaacutelia ao
dizer que as guerras antes de sua conquista aconteciam quase todos os anos Ceacutesar
tambeacutem descreveu certos costumes gauleses que diferiam dos costumes romanos
(BGall VI 18)
Galli se omnes ab Dite patre prognatos praedicant idque ab druidibus
proditum dicunt Ob eam causam spatia omnis temporis non numero dierum
sed noctium finiunt dies natales et mensum et annorum initia sic obseruant
ut noctem dies subsequatur In reliquis uitae institutis hoc fere ab reliquis
differunt quod suos liberos nisi cum adoleuerunt ut munus militiae
sustinere possint palam ad se adire non patiuntur filiumque puerili aetate in
publico in conspectu patris adsistere turpe ducunt
Todos os gauleses se gabam de serem descendentes do pai Dite e dizem que
isso foi revelado pelos druidas Por tal motivo delimitam as divisotildees de todo
o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas sim pelo das noites de tal modo
observam os dias de aniversaacuterio e os iniacutecios dos meses e dos anos de modo
que o dia vem logo apoacutes a noite Nos demais costumes de vida os gauleses
diferem dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos
venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem
assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade
pueril aparece publicamente agrave vista do pai (grifos nossos)
Gruen (2011a p 158) afirma que Ceacutesar natildeo gostava de gastar muito tempo
investigando as particularidades dos rituais gauleses ou as nuances de suas
caracterizaccedilotildees dos deuses ndash como fica evidente pelo curto capiacutetulo acima mas o fato
de ele ter escolhido descrever a religiatildeo gaulesa com vocabulaacuterio latino eacute significativo
Ceacutesar mais minimizou do que acentuou as diferenccedilas de crenccedila entre romanos e
gauleses Ceacutesar tambeacutem escreveu que quanto aos costumes os gauleses apenas se
diferenciavam dos demais no fato de contarem a passagem do tempo pelas noites (e natildeo
dias) e tambeacutem por natildeo permitirem que seus filhos aparecessem diante do pai em idade
pueril
Aleacutem disso Ceacutesar tambeacutem relatou que os gauleses dispunham de mecanismos
legais como por exemplo ao mencionar que eles deixavam heranccedila que ficava tanto
para o marido ou para a esposa que sobrevivia ao cocircnjuge Temos (BGallVI 19)
Viri quantas pecunias ab uxoribus dotis nomine acceperunt tantas ex suis
bonis aestimatione facta cum dotibus communicant Huius omnis pecuniae
coniunctim ratio habetur fructusque seruantur uter eorum uita superarit ad
eum pars utriusque cum fructibus superiorum temporum peruenit Viri in
uxores sicuti in liberos uitae necisque habent potestatem et cum pater
143
familiae inlustriore loco natus decessit eius propinqui conueniunt et de
morte si res in suspicionem uenit de uxoribus in seruilem modum
quaestionem habent et si conpertum est igni atque omnibus tormentis
excruciatas interficiunt Funera sunt pro cultu Gallorum magnifica et
sumptuosa omniaque quae uiuis cordi fuisse arbitrantur in ignem inferunt
etiam animalia ac paulo supra hanc memoriam serui et clientes quos ab iis
dilectos esse constabat iustis funeribus confectis una cremabantur
Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto
reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em
conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos
qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os
rendimentos do tempo precedente Os maridos possuem direito de vida e
morte tanto sobre as esposas quanto sobre os filhos quando morre um chefe
da famiacutelia nascido em posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e
havendo alguma suspeita sobre a morte sujeitam as esposas a um
interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto algo eles as
executam torturadas pelo fogo e com todos os tormentos Os funerais de
acordo com o costume dos gauleses satildeo magniacuteficos e suntuosos e eles
lanccedilam ao fogo tudo o que consideram ter sido estimado em vida inclusive
os animais e ateacute pouco antes de nossa eacutepoca os escravos e clientes que era
certo terem sido estimados por um homem em finalizando-se corretamente
os funerais eram cremados junto (grifos nossos)
Pelos trechos acima percebemos que embora considerada baacuterbara a sociedade
gaulesa possuiacutea vaacuterias caracteriacutesticas consideradas civilizadas como a erudiccedilatildeo dos
druidas e o processo de se deixar heranccedila ndash sendo permitido inclusive agraves mulheres
disporem dos bens do marido Destacamos tambeacutem no trecho acima o fato de Ceacutesar ter
se referido ao chefe de famiacutelia gaulecircs como pater familiae o pater familiae em
contexto romano designava o chefe da famiacutelia ndash inclusive os escravos Ele era o
sacerdote do culto domeacutestico e o uacutenico proprietaacuterio dos bens aleacutem de ter autoridade de
vida e morte sobre todos os outros membros da famiacutelia269
Ao novamente usar termos
latinos para descrever a sociedade gaulesa ndash como dizer que o pater familiae possuiacutea
servos e clientes Ceacutesar destacou a semelhanccedila entre essas duas culturas270
Por outro
l do embor em certos spectos ―civiliz d eacute possiacutevel not r que no comentaacuterio de
Ceacutesar havia certa perversidade na sociedade gaulesa uma vez que as mulheres
poderiam ser torturadas caso houvesse duacutevida sobre a morte do marido Aleacutem disso os
gauleses queimavam os animais junto com os defuntos e ateacute pouco antes da guerra
contra os romanos colocavam na pira funeraacuteria os escravos e clientes eles tambeacutem
sacrificavam viacutetimas inocentes caso natildeo houvesse criminosos disponiacuteveis para os
269
O pater familiae romano conservava seus direitos ateacute agrave morte ou caso emancipasse seus filhos a partir
do seacuteculo I aC em diante com o progresso da sociedade romana os poderes do pater sofreram reduccedilotildees
Para essas informaccedilotildees sobre o pater familiae utilizamos como referecircncia Bornecque e Mornet (2002 p
84) 270
Cf BGall VI 13 (p 137-138) em que Ceacutesar usou os termos plebes e equites etc e tambeacutem VI15
(p 141-142)
144
sacrifiacutecios humanos271
Todavia eacute possiacutevel perceber em Ceacutesar uma evoluccedilatildeo
―civiliz toacuteri dos g uleses jaacute que ele registrou que eles b ndon r m o costume de
cremar junto com o falecido os seus escravos e clientes que lhes eram queridos A
clientela era uma forma estrutural tiacutepica da sociedade romana os clientes eram homens
livres ligados agraves famiacutelias patriacutecias que lhes davam proteccedilatildeo os laccedilos de clientela eram
passados de pai para filho e os clientes deviam completa obediecircncia aos seus
patronos272
Os gauleses por essa razatildeo natildeo possuiacuteam clientes jaacute que natildeo havia tal tipo
de estrutura social em sua comunidade Ceacutesar se utilizou do termo cliente para facilitar a
compreensatildeo da Gaacutelia por parte do seu puacuteblico-alvo
Quanto aos germanos de acordo com Ceacutesar eles eram ainda mais baacuterbaros que
os gauleses pelo fato de natildeo terem cultos religiosos estabelecidos e de se dedicarem
apenas a caccediladas e exerciacutecios beacutelicos Assim temos (BGall VI 21)
Germani multum ab hac consuetudine differunt Nam neque druides habent
qui rebus diuinis praesint neque sacrificiis student Deorum numero eos
solos ducunt quos cernunt et quorum aperte opibus iuuantur Solem et
Vulcanum et Lunam reliquos ne fama quidem acceperunt Vita omnis in
uenationibus atque in studiis rei militaris consistit a paruis labori ac
duritiae student Qui diutissime impuberes permanserunt maximam inter suos
ferunt laudem hoc ali staturam ali uires neruosque confirmari putant Intra
annum uero uicesimum feminae notitiam habuisse in turpissimis habent
rebus cuius rei nulla est occultatio quod et promiscue in fluminibus
perluuntur et pellibus aut paruis renonum tegimentis utuntur magna corporis
parte nuda
Os germanos diferem muito desses costumes Na verdade natildeo possuem
druidas que presidam os ritos religiosos nem praticam sacrifiacutecios Contam no
nuacutemero dos deuses apenas aqueles que divisam e por cujos recursos
abertamente satildeo auxiliados o Sol Vulcano e a Lua e nem ao menos
admitiram outros deuses transmitidos pela fama Toda sua vida consiste em
caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor
e na severidade Aqueles que permaneceram castos por muito tempo
desfrutam da maior honra entre os seus por esse motivo julgam que a sua
estatura seja alimentada e as forccedilas e os nervos sejam nutridos e fortalecidos
Na verdade eles consideram entre as coisas mais vergonhosas algueacutem ter
tido relaccedilotildees com uma mulher antes do vigeacutesimo aniversaacuterio natildeo haacute misteacuterio
algum sobre essas coisas pois eles misturados se banham nos rios e se
cobrem com peles de renas ou de pequenas coberturas mantendo nua uma
grande parte do corpo (grifo nosso)
Pelo trecho acima vemos tambeacutem um fator que caracterizava os germanos como
um povo mais primitivo que o gaulecircs (e o romano) eles cultuavam apenas as forccedilas da
271
Cf p 104-141 (BGall VI 16) 272
Para mais detalhes sobre a clientela cf nota 168 na p 93
145
natureza como o sol Vulcano e a lua e natildeo deuses antropomorfos Aleacutem disso os
germanos natildeo praticavam a agricultura nem possuiacuteam terras proacuteprias (BGall VI 22)
Agriculturae non student maiorque pars eorum uictus in lacte caseo carne
consistit Neque quisquam agri modum certum aut fines habet proprios sed
magistratus ac principes in annos singulos gentibus cognationibusque
hominum qui [cum] una coierunt quantum et quo loco uisum est agri
adtribuunt atque anno post alio transire cogunt Eius rei multas adferunt
causas ne adsidua consuetudine capti studium belli gerendi agricultura
commutent ne latos fines parare studeant potentioresque humiliores
possessionibus expellant ne accuratius ad frigora atque aestus uitandos
aedificent ne qua oriatur pecuniae cupiditas qua ex re factiones
dissensionesque nascuntur ut animi aequitate plebem contineant cum suas
quisque opes cum potentissimis aequari uideat
Os germanos natildeo se dedicam agrave agricultura e a maior parte de seu sustento
consiste em leite queijo e carne Ningueacutem possui medida certa de terra ou
limites proacuteprios contudo os magistrados e os chefes a cada ano atribuem agraves
famiacutelias e parentelas dos homens que juntos coabitam quanto de terra e onde
lhes pareceu bem e apoacutes um ano obrigam-nos a mudar-se Alegam vaacuterias
razotildees para esse comportamento para que levados pela forccedila do haacutebito natildeo
troquem o interesse de fazer a guerra pela agricultura para que natildeo se
esforcem em obter um grande limite nem os mais poderosos expulsem os
mais fracos das ocupaccedilotildees para que natildeo construam com mais cuidado a fim
de barrar o frio e o calor para que natildeo surja cobiccedila alguma de riqueza de
que nascem as facccedilotildees e discoacuterdias para que contenham a plebe pela
moderaccedilatildeo do espiacuterito vendo cada qual suas posses serem igualadas agraves dos
mais poderosos (grifo nosso)
Destacamos nos dois trechos acima que Ceacutesar disse que os germanos desde cedo
dedicavam toda sua vida agrave arte da guerra e agraves caccediladas (―toda sua vida consiste em
caccediladas e exerciacutecios de praacutetica militar desde pequenos se esforccedilam no labor e na
severidade) e que eles construiacuteam casas simples que mal barravam as intempeacuteries
naturais (―para que natildeo construam com mais cuidado a fim de barrar o frio e o calor)
O fato de natildeo praticarem a agricultura ou sequer barrar as intempeacuteries naturais em suas
casas servia para manter os germanos fortes e evitar a fraqueza advinda da
sedentarizaccedilatildeo da sociedade Riggsby (2006 p 85) lembra que eacute justamente a partir
desse coacutedigo de vida riacutegido e da firmeza contra os fenocircmenos naturais aleacutem de
frequentes confrontos com outras naccedilotildees que os germanos exercitavam e aumentavam
sua forte uirtus Os romanos tambeacutem obtinham sua uirtus da disciplina na guerra de
forma parecida agrave dos germanos a grande diferenccedila eacute que os romanos faziam isso de
forma coletiva enquanto uma legiatildeo organizada jaacute os germanos o faziam de forma
individual e sem um meacutetodo sistematizado (RIGGSBY 2006 p 87)
Os germanos embora considerados ainda mais baacuterbaros que os gauleses no
relato de Ceacutesar aparecem preocupados em manter uma certa equidade social entre todos
146
sejam poderosos ou fracos com isso os germanos evitariam os conflitos por ganacircncia e
a sociedade se mantinha forte como um todo Percebemos que mesmo entre um povo
considerado extremamente feroz a estrutura social organizava-se de forma bastante
inovadora273
Sobre a caracterizaccedilatildeo de gauleses e germanos Gouvecirca Juacutenior (2012 p
12) afirma
separando-os com clareza ele pode dispensar-lhes tratamentos diferentes
para incluir os gauleses e excluir os germacircnicos em seu projeto de ampliaccedilatildeo
das fronteiras poliacuteticas ndash pessoais e romanas Para analisaacute-los Ceacutesar assumiu
a mesma posiccedilatildeo de superioridade dos que julgam seus diferentes como
pertencentes agrave barbaacuterie Entatildeo conferiu uma condiccedilatildeo mais favoraacutevel aos
gauleses salientando uma certa humanitas barbara com a demonstraccedilatildeo de
respeito agrave lei e agrave justiccedila de reverecircncia aos costumes aos deuses e aos mortos
de conhecimento do alfabeto grego e sobretudo com a noccedilatildeo de
desenvolvimento a partir do aprimoramento individual como na formaccedilatildeo
dos druidas
Quanto aos germanos Ceacutesar foi mais criacutetico os germanos em suas palavras
natildeo praticavam a agricultura eram promiacutescuos nocircmades etc A diferenccedila entre gauleses
e germanos era o grau de ferocitas e no De bello Gallico Ceacutesar apenas usou o termo
ferox para designar os germanos e os belgas que eram os mais valentes dentre os
gauleses274
Percebemos que Ceacutesar ao usar o vocabulaacuterio latino para designar
caracteriacutesticas dos gauleses (como os deuses que cultuavam etc) salientou as
semelhanccedilas entre gauleses e romanos o que possibilitava a romanizaccedilatildeo e mescla de
culturas275
o mesmo natildeo pode ser dito dos germanos que mal praticavam a agricultura
ou possuiacuteam uma religiatildeo estabelecida276
Mais uma vez percebe-se a dualidade
representada pelos romanos (civilizados) e gauleses (em parte civilizados) frente aos
germanos (baacuterbaros) de fato como Hartog (1999 p 289) destaca o discurso da
retoacuterica da alteridade no mundo antigo eacute essencialmente um discurso de dualidade e
273
Andreacute (2001 p 2 e 3) aprofunda a forma como os germanos foram retratados em Ceacutesar bem como as
fontes usadas por ele para descrever os germanos Andreacute (2001 nota 17 p 8) tambeacutem destaca que a
virtude moral e a superioridade baacuterbara primitiva eacute um toacutepos que aparece no epicurismo (como no canto
V de Lucreacutecio) e ainda no seio do cinismo e estoicismo 274
Cf sobre os belgas o trecho II 15 (p 131) em que Ceacutesar escreveu que eles eram homines feros
magnaeque uirtutis (homens ferozes de grande virtude) Quanto aos germanos cf o trecho I 33 citado
na p 134 em que Ceacutesar se referiu a eles como homines feros ac barbaros a partiacutecula ac vai aleacutem da
mera conjunccedilatildeo aditiva e pois iguala os dois termos Aleacutem disso jaacute abordamos o caraacuteter pejorativo do
termo ―baacuterb ro p r se referir os germ nos (cf p 135) 275
Ou seja de acordo com Woolf (2003 p 63) o gaulecircs devia exibir certa humanitas jaacute que apenas
atraveacutes da humanitas as relaccedilotildees sociais eram asseguradas 276
Cf nota 159 na p 86 sobre estereoacutetipos dos baacuterbaros e de como a falta de agricultura condenava os
povos agrave barbaacuterie e por outro lado como a proximidade com as cidades facilitava a civilizaccedilatildeo
147
polaridade277
Dessa forma na praacutetica uma reparticcedilatildeo triacuteplice natildeo ocorre se haacute dois
tipos de barbarismo no discurso um deles vai ser assimilado aos romanos278
Aleacutem
disso Ceacutesar ao dividir os gauleses e germanos em grupos distintos nos quais os
gauleses jaacute se encontravam mais abertos agrave romanizaccedilatildeo (enquanto os germanos foram
retratados como selvagens que natildeo poderiam ser subjugados) definiu a sua aacuterea de
accedilatildeo todavia ambos os grupos representavam perigo a Roma Os gauleses tinham uma
tendecircncia agraves guerras pelos motivos mais fuacuteteis e eram voluacuteveis e natildeo confiaacuteveis quanto
aos germanos ateacute mesmo pela sua natureza nocircmade eles natildeo respeitavam as fronteiras
ou territoacuterios e nada os impediria de atacar as proviacutencias romanas (RIGGSBY 2006 p
69) Dessa maneira a justificativa para se agir contra gauleses e germanos consistia em
―prevenir um desgr ccedil e c b r com o ―perigo que essas naccedilotildees representavam
Riggsby (2006 p 180) define ess estr teacutegi como ― utodefes por p rte dos rom nos
Em Ceacutesar portanto gauleses e germanos embora representando certo perigo
para Roma natildeo deixaram de possuir suas virtudes como vimos anteriormente seja a
habilidade dos galos e a sua resistecircncia frente aos romanos seja os germanos e sua
bravura e coragem inerentes Aleacutem disso apesar de os romanos terem colonizado povos
diferentes como os proacuteprios gauleses esse processo de conquistas natildeo foi unilateral jaacute
que os romanos adquiriram muitos dos haacutebitos estrangeiros Assim Roma transformou-
se em um grande impeacuterio multicultural A Urbe surgida de uma uniatildeo de povos sabia
conviver com as diferenccedilas e engenhosamente adotava a estrateacutegia de concessatildeo da
cidadania sendo essa taacutetica eficaz para evitar a oposiccedilatildeo dos inimigos e cooptar
possiacuteveis aliados279
De fato Roma natildeo se restringia apenas agrave cidade em si mas passou
a existir em todo o seu territoacuterio
277
O proacuteprio significado do termo alter em l tim eacute ―um de dois 278
Outro exemplo dessa dualidade referente a gregos e romanos encontra-se na paacutegina 37 deste trabalho 279
Para a abertura de Roma ao estrangeiro cf especialmente p 97 e 98
148
Capiacutetulo 3 ndash Retratos e relatos sobre os celtas
Neste capiacutetulo estudaremos as outras fontes latinas ndash Tito Liacutevio e Pliacutenio o Velho
ndash uma por vez Vimos anteriormente que Ceacutesar desempenhou um papel fundamental na
conquista definitiva da Europa Ocidental pelos romanos e tambeacutem no esfacelamento da
Repuacuteblica Esses dois fenocircmenos ocorreram com muita luta e conflitos Sobre a origem
do impeacuterio Florenzano (1994 p 84) ressalta
A estrutura oligaacuterquica de governo estabelecida durante a Repuacuteblica
mostrou-se ndash no seacutec I ndash incapaz de integrar efetivamente o enorme territoacuterio
conquistado em toda a bacia do Mediterracircneo A classe dirigente composta
pelos senadores outorgava-se direitos exclusivos sobre a cidadania a
distribuiccedilatildeo dos impostos e as decisotildees excluindo assim do poder todo e
qualquer segmento populacional das proviacutencias Estas sofriam os abusos de
poder as confiscaccedilotildees e extorsotildees dos arrecadadores de impostos e
embaixadores do Senado romano O comportamento extremamente
conservador da classe senatorial mostrava-se incompatiacutevel com a necessidade
de atender pelo menos agraves elites provinciais tendo em vista manter unificado
o territoacuterio conquistado Diante desta situaccedilatildeo os diferentes membros da
oligarquia dominante propunham alternativas tambeacutem diferentes como
soluccedilatildeo agrave crise provocando assim entre os partidos e as facccedilotildees poliacuteticas
lutas que se prolongaram por quase um seacuteculo O estabelecimento do
Impeacuterio na verdade foi a soluccedilatildeo poliacutetica encontrada para assegurar a
estabilidade do poder e anular os conflitos existentes entre as vaacuterias facccedilotildees
Evidentemente as causas que levaram ao fim da Repuacuteblica foram bem
complexas e natildeo nos aprofundaremos nessa discussatildeo aqui ateacute porque existem obras
especiacuteficas sobre o assunto Dessa maneira abordaremos o surgimento do impeacuterio de
forma mais geral de modo que facilite a compreensatildeo do contexto histoacuterico em que se
insere a obra de Tito Liacutevio
31 ndash A ascensatildeo de Otaacutevio e o surgimento do impeacuterio romano
Com o assassinato de Ceacutesar os muitos opositores do ditador acreditavam que a
Repuacuteblica voltaria agrave su ntig ―norm lid de Tod vi M rco Antocircnio proveitou-se
do vaacutecuo criado no poder e rapidamente assumiu o controle da Itaacutelia e de vaacuterias legiotildees
Nesse meio tempo Ciacutecero tentou colocar Otaacutevio contra Marco Antocircnio e dividir os
cesaristas mas a estrateacutegia natildeo funcionou em 43 aC Otaacutevio Antocircnio e Leacutepido (que
149
com nd v s legiotildees n Gaacuteli ) form r m o ―segundo triunvir to 280
Com o poder
assim dividido Leacutepido se incumbiu da Itaacutelia Antocircnio e Otaacutevio foram combater a uacuteltima
frente que lhes era contraacuteria na Macedocircnia Na batalha de Filipos (42 aC) Bruto e
Caacutessio (dois dos principais senadores que articularam a morte de Ceacutesar) satildeo
derrotados281
Em 36 aC Sexto Pompeu (filho de Pompeu Magno) foi derrotado pelos
triuacutenviros na Siciacutelia e com isso as legiotildees de Leacutepido passaram a apoiar Otaacutevio Dessa
forma com apenas Antocircnio e Otaacutevio no poder uma segunda guerra civil delineou-se
Entre tantas batalhas o confronto decisivo aconteceu em Aacutecio (31 aC) no Mar Jocircnico
em que a frota de Otaacutevio aniquilou a esquadra de Antocircnio que derrotado suicidou-se
logo depois Finalmente depois das turbulecircncias e guerras civis que marcaram o seacuteculo
I aC a via do poder encontrava-se livre para um uacutenico governante
Otaacutevio inaugurou uma nova forma de governo na qual o comando centrava-se
em um uacutenico indiviacuteduo Esse sistema poliacutetico conhecido na Roma antiga por
principado hoje em dia eacute popularmente chamado de impeacuterio282
Todavia Otaacutevio
comportou-se de maneira bem diferente de seu tio-avocirc Ceacutesar pois sabia que para os
romanos seria inaceitaacutevel um novo rei ou ditador perpeacutetuo Como Mendes (1988 p 75
e 76) destaca apoacutes vencer Antocircnio Otaacutevio percebeu que em sua accedilatildeo poliacutetica natildeo
poderia menosprezar os sentimentos da tradiccedilatildeo republicana enraizados na sociedade
romana e deveria considerar que os que combateram ao seu lado desejavam juntamente
com a paz a manutenccedilatildeo de suas prerrogativas e privileacutegios soacutecio-econocircmicos Nas
palavras do proacuteprio Otaacutevio (RG V e VI)
Dictaturam et apsenti et praesenti mihi delatam et a populo et a senatu M
Marcello et L Arruntio consulibus non accepi () Consulatum quoque tum
annuum et perpetuum mihi delatum non recepiConsulibus M Vinicio et Q
Lucretio et postea P Lentulo et Cn Lentulo et tertium Paullo Fabio Maximo
280
Colocamos esses termos entre aspas jaacute que o primeiro triunvirato natildeo deveria ter recebido esse nome
jaacute que foi estabelecido fora da lei romana (cf p 110) A alianccedila firmada em 43 aC foi aprovada pelo
Senado concedendo extraordinariamente a ditadura aos trecircs cidadatildeos mencionados por cinco anos No
mesmo ano Ciacutecero viria a ser assassinado pelos homens de Antocircnio 281
Para esse resumo dos eventos entre a morte de Ceacutesar e a ascensatildeo de Otaacutevio utilizamos como
referecircnci o c piacutetulo ―The founding of the Empire de Stockton (in BOARDMAN et al 1986 p 443 a
461) 282
O princeps (priacutencipe) era o cidadatildeo que tinha o direito de ser o primeiro a usar a palavra no Senado e
era tambeacutem o primeiro a ser inscrito no aacutelbum dos senadores Na praacutetica natildeo conferia poderes mas sim
prestiacutegio Augusto foi priacutencipe do senado durante quarenta anos (Res Gestae I 7) Jaacute o termo imperador
(imperator) era um tiacutetulo dado por aclamaccedilatildeo popular (ou do Senado) ao general vitorioso que obtinha o
direito de celebrar o triunfo Aleacutem disso imperator designava o magistrado que era investido com o
imperium (cf nota 175) Com o tempo o significado de imperador passou a ser o do liacuteder uacutenico de Roma
(suplantando o termo priacutencipe) e impeacuterio passou a designar essa forma de governo Daiacute vem tambeacutem a
confusatildeo de se designar Ceacutesar como imperador jaacute que ele foi aclamado imperator pelos seus soldados
mas nunca chegou a ser princeps Cf Canfora (2002 p 487 e 488) para mais detalhes sobre o imperium
150
et Q Tuberone senatu populoque Romano consentientibus ut curator legum
et morum summa potestate solus crearer nullum magistratum contra morem
maiorum delatum recepi Quae tum per me geri senatus uoluit per
tribuniciam potestatem perfeci cuius potestatis conlegam et ipse ultro
quinquiens a senatu depoposci et accepi
Natildeo aceitei a ditadura a mim presente ou ausente oferecida pelo povo e pelo
senado quando eram cocircnsules M Marcelo e L Arruacutencio () Agravequela mesma
eacutepoca natildeo aceitei o consulado anual e vitaliacutecio a mim oferecido No
consulado de M Viniacutecio e Q Lucreacutecio depois no de P Lecircntulo e Cn
Lecircntulo e em terceiro lugar no de Paulo Faacutebio Maacuteximo e Q Tuberatildeo
havendo entre o senado e o povo romano consenso de que eu fosse escolhido
para curador uacutenico das leis e costumes com o poder maacuteximo nenhum cargo
concedido contrariamente ao costume dos antepassados eu aceitei283
Otaacutevio assim deixou claro nessas e em vaacuterias outras passagens registradas no
monumento de Ancara que agiu sempre dentro da lei e do costume dos romanos nunca
aceitando as magistraturas extraordinaacuterias como a ditadura ou o consulado vitaliacutecio284
Embor n praacutetic ele fosse o senhor bsoluto de Rom seus poderes er m ―renov dos
periodicamente pelo senado Por conseguinte ele criou um regime hiacutebrido de governo
manteve as instituiccedilotildees republicanas e as antigas magistraturas (embora esvaziadas de
poder poliacutetico) mas o poder de fato encontrava-se nas matildeos do princeps Otaacutevio
mostrava-se como o restaurador da Repuacuteblica e da paz apoacutes as sangrentas guerras civis
e fez questatildeo de alardear isso na agenda da propaganda imperial285
Aleacutem disso o
princeps recebeu do povo e do senado a alcunha de Augusto286
em honra a tudo que ele
fez por Roma como ele mesmo registrou (RG XXXIV)
In consulatu sexto et septimo postquam bella ciuilia exstinxeram per
consensum uniuersorum potitus rerum omnium rem publicam ex mea
potestate in senatus populique Romani arbitrium transtuli Quo pro merito
meo senatus consulto Augustus appellatus sum et laureis postes aedium
mearum uestiti publice coronaque ciuica super ianuam meam fixa est et
clupeus aureus in curia Iulia positus quem mihi senatum populumque
Romanum dare uirtutis clementiaeque et iustitiae et pietatis caussa testatum
est per eius clupei inscriptionem Post id tempus auctoritate omnibus
praestiti potestatis autem nihilo amplius habui quam ceteri qui mihi quoque
in magistratu conlegae fuerunt
283
Utilizamos aqui a traduccedilatildeo feita por Trevizam e Rezende (SUETOcircNIO AUGUSTO 2007 p 128 e
129) 284
Para aprofundamento sobre a Res Gestae e d postur poliacutetic de Augusto cf o c piacutetulo ―Comentaacuterio
sobre as Res Gestae Divi Augusti de Cor ssin (In JOLY 2007 p 97-118) 285
Como o proacuteprio Augusto alardeou o fato de ter fechado o templo de Jano (o que era um sinal de paz
obtida por vitoacuterias romanas tanto em terra quanto no mar) por trecircs vezes durante seu governo (Res
Gestae XIII) aleacutem dele e sua eacutepoca terem sido exaltados em obras de vaacuterios autores do periacuteodo
sobretudo Virgiacutelio 286
Augusto signific v o ―veneraacutevel e esse tiacutetulo (recebido em 27 C ) p ssou f zer p rte do nome de
Otaacutevio
151
Em meu sexto e seacutetimo consulados depois de extinguir as guerras civis e por
consenso de todos senhor de tudo passei a repuacuteblica de meu poder para o
arbiacutetrio do senado e do povo romano Por esse meacuterito pessoal fui chamado de
―Augusto por decreto do sen do os umbr is de minh c s for m
publicamente cobertos com louros uma coroa ciacutevica foi afixada acima de
minha porta e um escudo de ouro posto na cuacuteria Juacutelia Atestava a inscriccedilatildeo do
escudo que o senado e o povo romano o davam a mim pelo valor pela
clemecircncia pela justiccedila e pelo senso do dever Depois disso vi-me agrave frente de
todos pela autoridade mas nenhum poder tive a mais que meus outros
colegas tambeacutem investidos de cargos (grifos nossos) 287
Pelo trecho acima Otaacutevio Augusto deixa claro que o escudo exaltava o seu valor
(uirtus) clemecircncia (clementia) justiccedila (iustitia) e senso do dever (pietas) aleacutem disso
ele tambeacutem estava agrave frente dos outros pela autoridade (auctoritas) e natildeo pelo poder
(potestas) que era o mesmo p r todos ―os investidos de c rgos 288
Augusto
habilmente definiu que sua superioridade sobre os outros cidadatildeos era devido ao fato de
o senado e o povo romano lhe terem conferido a auctoritas e o honoriacutefico tiacutetulo de
Augusto por livre e espontacircnea vontade jaacute que ele mesmo devolveu o poder agrave repuacuteblica
depois de terminadas as guerras civis Evidentemente depois de tantas convulsotildees
internas em Roma Augusto foi bastante astuto em sua carreira puacuteblica e tomou cuidado
para natildeo se indispor com o senado e o povo Ele buscou manter a repuacuteblica os costumes
e as instituiccedilotildees tradicionais sempre deixando claro que exercia o poder porque a urbe
lhe pedia isso e que esse mesmo poder vinha de Roma natildeo por coincidecircncia Augusto
foi um dos governantes mais longevos exercendo o poder de 27 aC ateacute 14 dC
quando veio a falecer com aproximadamente 76 anos de idade
32 ndash A poliacutetica externa durante o governo de Augusto e a situaccedilatildeo da Gaacutelia
Apoacutes a conquista da Gaacutelia empreendida por Ceacutesar os civis passaram a adaptar-
se agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica os gauleses foram privados da sua liberdade aleacutem da grande
perda de pessoas e prejuiacutezos materiais289
Do periacuteodo entre 52 aC (que marcou o fim
287
Novamente usamos a traduccedilatildeo de Trevizam e Rezende (2007 p 137 e 138) 288
Anteriormente jaacute mencionamos a uirtus (cf p 124 e ss) a clementia (p 122 e ss) a iustitia (de forma
bem abrangente no subcapiacutetulo 212) e a pietas (cf p 126) A auctoritas como definiu Pereira (1993 p
351 e ss) era um valor intriacutenseco que conferia maior peso a um indiviacuteduo ou seja que lhe conferia
autoridade Esse valor diretamente relacionado agrave uirtus natildeo se exercia pela funccedilatildeo ou pela persuasatildeo
mas sim pelo meacuterito da pessoa ou da corporaccedilatildeo que toma uma decisatildeo ndash nesse sentido o Senado
representava a auctoritas de Roma A potestas consistia no poder poliacutetico de um magistrado
intrinsecamente ligado ao cargo que ele ocupava 289
Quanto ao nuacutemero de baixas militares haacute muita discordacircncia entre as fontes como lembra Le Bohec
(2009 p 116) Veleio Pateacuterculo (II 47) falou em 400000 mortos quanto aos civis Plutarco (Ceacutesar XV
3) citou 1000000 de falecidos e Pliacutenio o Velho (VII 92) estabeleceu o nuacutemero de 1192000 Aleacutem
152
da guerra da Gaacutelia) a 31 aC natildeo temos muitas informaccedilotildees sobre o que se passou
nessa regiatildeo jaacute que as fontes concentraram-se em narrar os desdobramentos das guerras
civis de Ceacutesar contra Pompeu e posteriormente de Augusto contra Antocircnio Desse
espaccedilo de tempo temos a brusca mudanccedila de sorte de Marselha Durante os conflitos de
na Gaacutelia a cidade (que era cliente de Ceacutesar) enriqueceu ao fornecer equipamento militar
aos legionaacuterios Poreacutem Marselha tambeacutem tinha outro patrono Pompeu Como lembra
Le Bohec (2009 p 117) assim que estourou a guerra entre esses dois generais
Marselha manteve-se neutra ateacute que em 49 aC no auge da crise civil a cidade passou
a apoiar Pompeu Ceacutesar natildeo perdoou essa traiccedilatildeo e depois que sitiou e tomou a cidade
ele retirou uma grande parte do territoacuterio marselhecircs e passou essas terras para as
municiacutepios vizinhos Aleacutem desse ocorrido haacute ainda relatos de que em 46 aC houve
uma revolta dos beloacutevacos (naccedilatildeo gaulesa) mas natildeo dispomos de detalhes sobre o
ocorrido
Quanto agrave urbanizaccedilatildeo Ceacutesar assentou um grande nuacutemero de veteranos nas
colocircnias gaulesas em data incerta ndash sendo que possivelmente algumas dessas eram
anteriores a Ceacutesar Dessa forma Narbonne recebeu os soldados da X legiatildeo Beacuteziers
d VII Freacutejus d VIII Arles d VI e Or nge d II 290
Lugudunum (Lyon) e Raurica
(Augst) foram fundadas em 43 aC por Luacutecio Munaacutetio Planco (LE BOHEC 2009 p
117)
Em 27 aC Augusto com seu poder consolidado dividiu todas as proviacutencias
romanas em dois grupos as imperiais sob a administraccedilatildeo direta do priacutencipe ndash que
eram aqueles territoacuterios receacutem conquistados ou mal pacificados que requeriam uma
forte presenccedila militar e as senatoriais confiadas ao Senado (GRIMAL 2002 p 212)
Evidentemente Augusto plenamente dotado do imperium poderia intervir em todas as
proviacutencias inclusive as senatoriais Todo o territoacuterio da Gaacutelia foi dividido em quatro
proviacutencias todas imperiais que eram a Narbonense a Aquitacircnia a Lugdunense (devido
agrave capital Lugdunum hoje conhecida por Lyon) e a Beacutelgica Em 22 aC a Narbonense
foi doada ao povo romano ou seja passou para administraccedilatildeo do Senado (LE BOHEC
2009 p 139) As cidades que surgiram a partir de entatildeo foram importantes na
integraccedilatildeo comercial e cultural entre Roma e as naccedilotildees conquistadas e muitas
receberam seus nomes a partir da onomaacutestica imperial Como destaca Le Bohec (2009
dessas perdas tambeacutem foi grande a parcela da populaccedilatildeo transformada em escrava (cf p 16 e 17) aleacutem
do pesado tributo que deveria ser pago a Roma anualmente 290
Pliacutenio o Velho menciona esses assentamentos em HN III 32 e 36
153
p 140) temos a cidade de Caesarodunum (atualmente Tours) Iuliobona (Lillebonne)
Iuliomagus (tanto Angers na Franccedila quanto Schleitheim na atual Suiacuteccedila) Augustobona
(Troyes) dentre outras Ainda segundo Le Bohec (2009 p 140) nenhuma dessas
cidades recebeu seu nome latino por pressatildeo ou imposiccedilatildeo de Roma mas sim essa
escolha foi feita pela aristocracia local que desejava demonstrar seu reconhecimento ao
imperador que de certa forma defendia os seus interesses
De acordo com Guarinello (214 p 293-295) foi durante o principado de
Augusto que muitas das medidas externas de Roma foram definidas e com a paz as
proviacutencias passaram a se integrar cada vez mais ao modo de vida romano Essa
integraccedilatildeo foi bastante impulsionada pela sedentarizaccedilatildeo e profissionalizaccedilatildeo do
exeacutercito evidentemente esse processo comeccedilara antes com Maacuterio mas foi a partir de
Augusto que as tropas foram claramente afirmadas e definitivamente integradas agrave vida
militar e tambeacutem agrave vida cotidiana nos assentamentos nas proviacutencias (LE BOHEC 2009
p 154) Dessa maneira a divisatildeo entre Roma e as proviacutencias deu lugar agrave divisatildeo entre o
impeacuterio e os ditos baacuterbaros que viviam aleacutem das fronteiras e natildeo participavam do
mundo considerado civilizado Durante o principado de Augusto ocorreu a grande
derrota romana perto da floresta de Teutoburgo (9 dC) quando o comandante Varro e
suas trecircs legiotildees foram emboscadas pelos germanos e inteiramente destruiacutedas Com esse
grande reveacutes as fronteiras do impeacuterio durante Augusto ficaram estabelecidas na Europa
ocidental ateacute os rios Reno e Danuacutebio na parte oriental ateacute o impeacuterio dos partas
reconhecidos pelos romanos como um povo autocircnomo (GRIMAL 1993 p 306 e 313)
33 ndash Breve biografia de Tito Liacutevio e descriccedilatildeo do Ab urbe condita
Liacutevio nasceu em Patauium (Paacutedua) em 59 aC e pelo que se tem registrado nas
fontes (como Secircneca o Velho e Quintiliano) natildeo se dedicou agrave vida puacuteblica ou militar
mas sim agrave retoacuterica como professor e escritor Por volta do ano 30 aC ele passou a se
dedicar inteiramente agrave composiccedilatildeo de sua monumental obra historiograacutefica ndash conhecida
como Ab urbe condita libri291
Ogilvie (1965 p 3) destaca que Liacutevio de forma alguma
foi associado ao ciacuterculo de Mecenas ou a qualquer outro autor que fazia parte do meio
literaacuterio augustano Por isso provavelmente Liacutevio comeccedilou a escrever sua histoacuteria na
obscuridade e de alguma forma esse fato chegou ao conhecimento de Augusto que
291
O tiacutetulo tr duzido seri ―Livros sobre fund ccedilatildeo d Cid de m s ess obr t mbeacutem eacute conhecid
simplesmente como ―Histoacuteri rom n
154
certamente ficou interessado em apadrinhar um escritor de talento para promover a nova
Repuacuteblica Poreacutem Liacutevio como veremos adiante natildeo exaltou as qualidades do novo
regime em sua obra O historiador alternou sua residecircncia entre Roma e Paacutedua onde
veio a falecer em 17 dC provavelmente ele empenhou-se na escrita de seu trabalho ateacute
o fim de sua vida292
Ab urbe condita a grande obra de Liacutevio seria composta em 142 livros Aleacutem do
prefaacutecio nos chegaram apenas 35 desses livros que satildeo Prefaacutecio I-X e XXI a XLV
tendo este uacuteltimo uma lacuna ao final293
Dos outros livros apenas temos inuacutemeros
fragmentos Assim sobre o conteuacutedo dos livros de I a V temos a fundaccedilatildeo lendaacuteria de
Roma (753 aC) o periacuteodo da monarquia o princiacutepio da Repuacuteblica ateacute o saque de
Roma pelos gauleses em 390 aC Nos livros VI a XV haacute os conflitos entre romanos e
samnitas antes das Guerras Puacutenicas (por volta de 387 a 264 aC) Jaacute os livros XVI a
XXX narrariam as duas primeiras Guerras Puacutenicas (entre 264 a 201 aC) Os livros
XXXI a XLV seriam a respeito de guerras dos romanos contra os macedocircnios e outros
povos do oriente (entre 201 a 167 aC) Os livros XLVI a LXX trariam os
acontecimentos do periacuteodo entre 167 ateacute as Guerras Sociais em 90 aC Os livros LXXI
a XC seriam referentes aos anos de 90 aC ateacute a morte de Sila em 78 aC Nos livros
XCI a CVIII que seriam sobre os anos 78 a 50 aC temos os confrontos entre romanos
e gauleses e a submissatildeo da Gaacutelia por Ceacutesar os livros CIX a CXVI narrariam sobre a
guerra civil ateacute a morte de Ceacutesar em 44 aC CXVII a CXXXIII abordaria o periacuteodo
posterior agrave morte de Ceacutesar ateacute a morte de Marco Antocircnio em 30 aC por fim os livros
CXXXIV a CXLII seriam a respeito do principado de Augusto ateacute sua morte no ano 14
dC Os livros remanescentes tambeacutem foram preservados por epiacutetomes (resumos)
chamados Periochae provavelmente feitos para propoacutesitos didaacuteticos como afirma
Conte (1999 p 374)
34 ndash Aspectos gerais de Ab urbe condita
Segundo Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 644) Liacutevio eacute o primeiro
escritor analiacutetico do qual temos uma obra que sobreviveu em boa quantidade e eacute atraveacutes
dele e dos elementos de escritos antigos percebidos em sua histoacuteria que eacute possiacutevel
292
Para essa biografia de Liacutevio utilizamos como referecircncia bibliograacutefica FORSYTHE (2005 p 67) 293
Desde Heroacutedoto e Tuciacutedides era comum o historiador escrever um proecircmio antes de sua obra com o
escopo e propoacutesito do seu trabalho A partir de Isoacutecrates esses prefaacutecios passaram a ter grande influecircncia
da retoacuterica e buscavam sobretudo captar a atenccedilatildeo e interesse do leitor para a narrativa como algo uacutetil e
proveitoso (OGILVIE 1965 p 23)
155
formar julgamentos dos antigos anais da Repuacuteblica294
A tendecircncia romana de se
escrever histoacuteria em uma estrutura anual se justificava pela proacutepria origem dos relatos
dos fatos desde meados do seacuteculo IV aC295
Esse tipo de estrutura eacute marcante na
literatura latina e vai ser seguida por vaacuterios autores ao longo dos seacuteculos posteriores
De acordo com Beck (in MARINCOLA 2007 v 1 p 265) a tendecircncia de se fazer
historiografia por meio da estrutura analiacutetica assinalava continuidade seguranccedila e
estabilidade institucional desde os primoacuterdios de Roma ateacute o periacuteodo contemporacircneo
Liacutevio retomou a estrutura analiacutetica que caracterizou a antiga historiografia
romana rejeitando o estilo monograacutefico de Saluacutestio296
Os livros de Ab urbe condita
que contavam desde os primoacuterdios de Roma se tornavam maiores agrave medida em que a
narrativa se aproximava dos dias proacuteximos ao autor297
Aleacutem disso como destaca
Marincola (2007 v2 p 172) o fato dos livros contemporacircneos serem mais detalhados
seguiam a tradiccedilatildeo iniciada por Eacuteforo (e adotada por muito autores que escreveram
longas narrativas historiograacuteficas) Esse fato justificava-se ateacute mesmo pelo maior
interesse do puacuteblico em eventos recentes como o proacuteprio Liacutevio deixou claro no prefaacutecio
de sua histoacuteria (sect4) () et legentium plerisque haud dubito quin primae origines
proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad haec noua ()
―( ) agrave m iori dos leitores natildeo tenho duacutevid de que s primeir s origens e s p rtes
proacuteximas agraves origens seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos
tempos ( ) 298
Outro aspecto que tambeacutem contribuiacutea para esse aumento dos livros mais
proacuteximos da eacutepoca do autor era a maior quantidade disponiacutevel de fontes do que as do
periacuteodo mais antigo envolto em lendas e narrativas miacuteticas Para a primeira deacutecada
(livros I a X) Liacutevio usou como fontes historiograacuteficas sobretudo Faacutebio Pictor Valeacuterio
Antias (cronista do seacuteculo I aC do periacuteodo posterior a Sila) e Liciacutenio Macer
294
De fato como destaca Forsythe (2005 p 59) apenas Liacutevio e Dioniacutesio de Halicarnasso deixaram uma
quantidade substancial de material sobre a primitiva Roma e ambos escreveram nas uacuteltimas deacutecadas do
seacuteculo I aC Todos os outros autores que escreveram sobre o periacuteodo remoto da histoacuteria romana nos
chegaram muito fragmentados 295
Cf p 11 sobre as taacutebulas com os eventos listados pelo pontiacutefice maacuteximo 296
Levene (in MARINCOLA 2007 v 1 p 280) destaca que jaacute na Antiguidade havia o reconhecimento
de que Saluacutestio e Liacutevio representavam o ponto alto na historiografia do periacuteodo republicano e sempre
foram considerados duas figuras contrastantes (como escreveu o proacuteprio Quintiliano Inst II 5 18)
Quintiliano (Inst X 1 101) igualmente comparou Saluacutestio com Tuciacutedides e Liacutevio com Heroacutedoto Em
contexto latino Saluacutestio era o pessimista desiludido com a corrupta poliacutetica romana Liacutevio por sua vez
era o otimista (ingecircnuo ateacute) que celebrava a antiga virtude romana em uma grande escala analiacutetica
(LEVENE In MARINCOLA 2007 v 1 p 280) 297
Liacutevio dessa forma coloca sua obra dentro da tradiccedilatildeo de ktisis ou seja de contar os fatos desde a
fundaccedilatildeo da Urbe (cf p 10 deste trabalho) 298
Traduccedilatildeo de Joatildeo Angelo Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)
156
(proeminente poliacutetico contemporacircneo de Ciacutecero)299
Para narrar a expansatildeo de Roma no
Mediterracircneo Liacutevio usou especialmente Poliacutebio de quem mais do que outras fontes
tomou a visatildeo unificada do mundo mediterracircneo e as relaccedilotildees entre Roma e os reinos
heleniacutesticos sobretudo nos livros finais de Ab urbe condita (CONTE 1999 p 369)300
Apesar desse uso de Poliacutebio como fonte Liacutevio rejeitava a sua visatildeo pragmaacutetica da
histoacuteria301
As descriccedilotildees do estilo de vida dos gauleses feitas por Poliacutebio (II 17 e ss)
foram bastante uacuteteis a Liacutevio (RANKIN 1996 p 72) Liacutevio preferia acentuar o aspecto
traacutegico da narrativa embelezando e variando os acontecimentos de acordo com a
retoacuterica historiograacutefica de Ciacutecero ao inveacutes de se comprometer com o apuro
historiograacutefico302
Sobre esse aspecto mais literaacuterio do que historiograacutefico de Liacutevio
Conte (1999 p 369) lembra
It has often been emphasized that Livy does not appear to carry out his
historic l work on the b sis of c reful critic l ev lu tion of his sources (hellip)
Furthermore he conspicuously fails to fill the gaps in the historiographic
tradition by having recourse to other kinds of documentation which may
have been readily accessible thus Livy makes very scant use of the
documentation to be found in manuscripts and ancient inscriptions or of the
results obtained by the scrupulous research of antiquarians from the previous
generation such as Atticus and Varro Consequently he has frequently been
seen as a mere exornator rerum whose chief concern is to amplify and
embellish what he found in his source by dramatizing it by giving it variety
and movement 303
Liacutevio como dissemos priorizava o aspecto dramaacutetico em sua obra mas sem
deixar que essa caracteriacutestica se sobrepusesse aos fatos (CONTE 1999 p 372) Assim
para ele a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo e devia respeitar
os acontecimentos e os embelezar com as cores do estilo de acordo com o que pregava
Ciacutecero304
Assim Conte (1999 p 372) pontua
299
Para detalhes sobre esses e outros autores (como L Caacutessio Hemina e Q Claacuteudio Quadrigaacuterio) cf
FORSYTHE 2005 p 62 e ss 300
Como destaca Oliver (In BUGH 2006 p 115) o trabalho de Poliacutebio foi base para partes relevantes
da histoacuteria de Liacutevio (especialmente os livros XXXI a CXLV) 301
Para aprofundamento sobre o meacutetodo de trabalho de Liacutevio bem como as fontes utilizadas por ele cf
Ogilvie (1965 p 5 e ss) e tambeacutem Luce (1977) 302
Cf a concepccedilatildeo historiograacutefica de Ciacutecero na paacutegina 78 e ss 303
―Frequentemente foi enf tiz do que Liacutevio natildeo parece realizar seu trabalho histoacuterico com base em uma
cuidadosa avaliaccedilatildeo criacutetica de suas fontes () Aleacutem disso ele evidentemente falha em preencher as
lacunas na tradiccedilatildeo historiograacutefica ao recorrer a outros tipos de documentaccedilatildeo que possivelmente
estariam facilmente disponiacuteveis portanto Liacutevio faz um uso muito escasso da documentaccedilatildeo a ser
encontrada em manuscritos e antigas inscriccedilotildees ou de resultados obtidos em escrupulosa pesquisa de
antiquaacuterios de uma geraccedilatildeo anterior como Aacutetico e Varratildeo Consequentemente ele frequentemente foi
visto como um mero exornator rerum cuja principal preocupaccedilatildeo era amplificar e ornamentar o que ele
encontrou em sua fonte ao dramatizaacute-la dando-lhe v ried de e movimento 304
No proacuteximo subcapiacutetulo aprofundaremos a influecircncia de Ciacutecero na concepccedilatildeo historiograacutefica de Liacutevio
157
Livy conceives history not as a political study that explains attitudes and
events and takes into account strategies of parties and factions ideologies and
material interests but rather as a narrative that is conducted in terms of
human personalities and representative individuals The moral passion that
marks such a conception derives in part from the Hellenistic historiographic
tradition This was probably the manner of historical interpretation that
characterized the works now lost of historians such as Ephorus305
Por conseguinte Liacutevio julgava sua histoacuteria mais como uma rica atividade
retoacuterica do que uma investigaccedilatildeo da verdade como ele colocou no prefaacutecio (sect6) do Ab
urbe cond quae ante conditam condendamue urbem poeticis magis decora fabulis
quam incorruptis rerum gestarum monumentis traduntur ea nec adfirmare nec refellere
in animo est (― s tradiccedilotildees que antes de fundada a cidade ou de pensar-se em fundaacute-la
nos chegam adornadas mais pelas efabulaccedilotildees dos poetas do que por provas autecircnticas
das accedilotildees realizadas essas tradiccedilotildees natildeo tenho em mente nem confirmar nem
refut r )306
O maior propoacutesito do historiador era o de mostrar que as qualidades morais
e intelectuais dos personagens da narrativa tinham impacto decisivo nos eventos Liacutevio
considerava que os sucessos (e fracassos) dos romanos eram fundamentalmente
explicados pelos valores que os personagens desempenhavam na narrativa dramaacutetica
como veremos a seguir no proacuteximo subcapiacutetulo
341 ndash Liacutevio e a concepccedilatildeo historiograacutefica ciceroniana
Liacutevio como citado antes foi o primeiro historiador de que temos notiacutecia que natildeo
pertenceu agrave aristocracia senatorial romana nem sequer teve um cargo militar307
A
maior ocupaccedilatildeo de sua vida foi a redaccedilatildeo de Ab urbe condita escrita respeitando vaacuterios
dos pressupostos metodoloacutegicos preconizados por Ciacutecero Um desses fundamentos era
sobre a historia ornata ou seja a histoacuteria embelezada308
Ainda sobre o rico estilo de
Liacutevio Lintott (in BOARDMAN et al 1986 p 645) lembra
305
―Liacutevio concebe histoacuteri natildeo como um estudo poliacutetico que explica atitudes e eventos e que leva em
conta estrateacutegias de partidos e facccedilotildees ideologias e interesses materiais mas sim como uma narrativa que
eacute conduzida em termos de personalidades humanas e indiviacuteduos representativos A paixatildeo moral que
marca tal concepccedilatildeo deriva em parte da tradiccedilatildeo historiograacutefica heleniacutestica Essa era provavelmente a
maneira de interpretaccedilatildeo histoacuterica que caracterizava os trabalhos agora perdidos de historiadores como
Eacuteforo 306
Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 307
Ciacutecero considerava que o orador encarregado de escrever histoacuteria tambeacutem deveria ser um homem
puacuteblico (cf p 77 deste trabalho) Ao contraacuterio de todos os historiadores ateacute entatildeo Liacutevio foi o primeiro
cidadatildeo particular a se dedicar agrave histoacuteria 308
Cf p 79-80
158
His resources in language and deployment of his material were everything
that Cicero himself could have wished Avoiding Sallustian abruptness he
yet contrived a swift and varied narrative built from a rich vocabulary and an
immense flexibility of construction309
Como destaca Sebastiani (in JOLY 2007 p 84) Ciacutecero tambeacutem preconizava
que o historiador deveria se ater exclusivamente agrave composiccedilatildeo da narrativa natildeo
necessariamente embasando seu texto em uma experiecircncia proacutepria ou vivecircncia dos fatos
ndash como preconizava Heroacutedoto e Tuciacutedides ndash ou se preocupando com uma abordagem
pragmaacutetica como fizera Poliacutebio Liacutevio buscou centrar-se nas accedilotildees humanas e nas suas
consequecircncias Aleacutem disso uma caracteriacutestica marcante na historiografia latina que
tambeacutem tem destaque em Liacutevio era a preocupaccedilatildeo em analisar os fatos sob o prisma das
questotildees morais bem como fornecer vaacuterios exempla de boas (e maacutes) condutas310
O
proacuteprio Liacutevio assim escreveu no prefaacutecio (sect10)
Hoc illud est praecipue in cognitione rerum salubre ac frugiferum omnis te
exempli documenta in inlustri posita monumento intueri inde tibi tuaeque rei
publicae quod imitere capias inde foedum inceptu foedum exitu quod uites
Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos
histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora
ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por
princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar311
Tambeacutem sobre o papel pedagoacutegico da histoacuteria assim afirma Sebastiani (in
JOLY 2007 p 95) ―Fruto d rte retoacuteric n concepccedilatildeo ciceroni n histoacuteri
identifica a instruccedilatildeo do leitor e a preservaccedilatildeo da memoacuteria como meio de
entretenimento deleitoso 312
Devemos lembrar que Liacutevio ao contraacuterio do que
preconizava Ciacutecero natildeo se preocupou em fornecer exemplos com finalidades poliacuteticas
ou relacionados agrave vida puacuteblica Sem duacutevida com o novo sistema de governo iniciado
com Otaacutevio Augusto esse tipo de exemplificaccedilatildeo perdeu o sentido de existir Por
conseguinte o grande foco de Ab urbe condita era o de ajudar o cidadatildeo comum a se
desenvolver moralmente ao acompanhar os antigos feitos e como as virtudes (e os
viacutecios) influenciavam no rumo dos acontecimentos O uso de exempla por parte de
Liacutevio confirmava a grande capacidade retoacuterica pela qual ele foi elogiado e como
309
―Seus recursos de lingu gem e o desenvolvimento do seu m teri l for m tudo o que o proacuteprio Ciacutecero
poderia ter desejado Evitando a brusquidatildeo salustiana ele poreacutem efetuou uma narrativa raacutepida e variada
construiacuteda a partir de um rico vocabulaacuterio e um imens flexibilid de de construccedilatildeo 310
Tambeacutem segundo Ciacutecero esses exemplos serviriam como meio de os homens melhorarem sua proacutepria
conduta (cf p 78 e 79) 311
Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 312
Para o que o proacuteprio Ciacutecero escreveu sobre isso cf na p 78 o trecho de Orador cap 120
159
destaca Chaplin (2000 p 72) era um ponto central em sua visatildeo de histoacuteria a
capacidade de manipular a percepccedilatildeo de uma audiecircncia sobre o passado vem da
oratoacuteria Liacutevio poreacutem transformou essa caracteriacutestica em uma ferramenta de
interpretaccedilatildeo histoacuterica Os personagens de dentro do texto ensinavam os romanos de
fora a verdade simples e direta do que Liacutevio considerava como o verdadeiro valor da
histoacuteria as liccedilotildees deveriam ser lidas e entatildeo imitadas ou evitadas (CHAPLIN 2000 p
77)313
Liacutevio ao escrever sua histoacuteria levando em conta tanto o aspecto retoacuterico de
fornecer exemplos quanto o aspecto de deleitar seu puacuteblico com uma narrativa
extremamente trabalhada e dramatizada aparentemente alcanccedilou enorme sucesso ainda
em vida caso possamos confiar nas fontes a esse respeito (embora posteriores ao
autor)314
Ab urbe condita por todas as caracteriacutesticas mencionadas anteriormente de
cert form virou um espeacutecie de ―eacutepic n cion l que eclipsou todos os n is
anteriores que descreviam os fatos ocorridos ano a ano (SEBASTIANI In JOLY
2007 p 88)
342 ndash A ideologia poliacutetica em Liacutevio
O regime poliacutetico de Augusto aparentemente natildeo tentou controlar as obras
historiograacuteficas como fez com a poesia Virgiacutelio Horaacuterio entre outros em seus versos
celebravam a nova forma de governo como um renascimento moral romano (MARTIN
GAILLARD 1981 p 124) Liacutevio poreacutem jaacute no prefaacutecio de sua obra deixava entrever
um pouco do seu pessimismo315
Temos um exemplo no prefaacutecio (sect4)
Res est praeterea et immensi operis ut quae supra septingentesimum annum
repetatur et quae ab exiguis profecta initiis eo creuerit ut iam magnitudine
laboret sua et legentium plerisque haud dubito quin primae origines
proximaque originibus minus praebitura uoluptatis sint festinantibus ad
haec noua quibus iam pridem praeualentis populi uires se ipsae conficiunt
A histoacuteria de Roma eacute aleacutem disso digna de grande esforccedilo jaacute que remonta
para mais de 700 anos e porque a Cidade partindo de exiacuteguos iniacutecios a tal
ponto cresceu que jaacute padece de sua proacutepria grandeza e agrave maioria dos leitores
natildeo tenho duacutevida de que as primeiras origens e as partes proacuteximas agraves origens
313
Para discussatildeo profunda sobre o papel dos exempla em Liacutevio recomendamos o livro de Chaplin
(2000) 314
Dentre autores da Antiguidade que elogiaram Liacutevio temos Secircneca (De ira I206) Pliacutenio o Jovem
(Ep II38) Taacutecito (Ann IV343) e Quintiliano (Inst X 1101) 315
Para maior aprofundamento sobre o pessimismo em Liacutevio e na historiografia latina cf MARTIN
GAILLARD 1981 p 123 a 125
160
seratildeo motivo de pouco deleite apressados para atingir estes nossos tempos
em que as forccedilas de um povo antes altivo jaacute se destroem a si mesmas316
Acima Liacutevio deixou claro que Roma jaacute estava em decliacutenio durante a sua eacutepoca
sofrendo com a proacutepria grandeza De fato o historiador natildeo chegou a ser opositor de
Augusto mas tambeacutem natildeo era um entusiasta do novo tipo de governo (CONTE 1999
p 369) Taacutecito (Ann IV 34) contou que Augusto chegou a fazer um comentaacuterio jocoso
sobre Liacutevio chamando-o de pompeiano pelo fato de o historiador ter certa nostalgia
pelos ideais republicanos que foram inclusive refletidos em sua obra317
Contudo
como a parte de Ab urbe condita que narrava sobre a guerra civil entre Pompeu e Ceacutesar
se perdeu natildeo eacute possiacutevel saber ateacute que ponto Liacutevio defendeu os ideais republicanos318
Como Conte (1999 p 370) ressalta atraveacutes do proacuteprio Taacutecito ainda foi possiacutevel saber
que Liacutevio elogiou Pompeu e foi respeitoso em relaccedilatildeo aos oponentes de Ceacutesar
incluindo aiacute os seus assassinos Bruto e Caacutessio Tal fato natildeo era assim tatildeo temeraacuterio pois
Augusto ndash especialmente apoacutes a reforma constitucional de 27 aC ndash gostaria de ser visto
pelo povo mais como o restaurador da antiga repuacuteblica do que como herdeiro de Ceacutesar
Tambeacutem era um ponto a favor de Liacutevio o fato de ele ter se preocupado em narrar fatos
entremeados de exemplos morais para os cidadatildeos o que ia ao encontro da poliacutetica de
Augusto de restabelecer os tradicionais valores morais e religiosos dos romanos
Todavia Liacutevio deixa claro que o novo regime instaurado com Augusto natildeo era uma
volta agrave era de ouro tatildeo alardeada por Virgiacutelio Um exemplo disso encontra-se no
prefaacutecio de Ab urbe condita (sect9)
ad illa mihi pro se quisque acriter intendat animum quae uita qui mores
fuerint per quos uiros quibusque artibus domi militiaeque et partum et
auctum imperium sit labente deinde paulatim disciplina uelut desidentes
primo mores sequatur animo deinde ut magis magisque lapsi sint tum ire
coeperint praecipites donec ad haec tempora quibus nec uitia nostra nec
remedia pati possumus peruentum est
Cada um deve ao meu ver com o maacuteximo de si dirigir vivamente a atenccedilatildeo
a outros assuntos que vida e que costumes tiveram os antigos romanos por
meio de que homens e com que meios na paz e na guerra o impeacuterio surgiu e
cresceu em seguida fraquejando aos poucos a disciplina dever-se-ia rastrear
316
Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 317
Taacutecito narrou esse episoacutedio no contexto da defesa de Cremuacutecio Cordo entatildeo acusado de crime contra
o governo por ter publicado uma obra historiograacutefica na qual elogiava Bruto e Caacutessio Cremuacutecio entatildeo
discursou falando assim ―( ) Dizem que elogiei Bruto e Caacutessio cujos feitos jaacute muitos memor r m
ningueacutem sem louvores Tito Liacutevio entre os mais assinalados por sua eloquecircncia e lealdade com tanto
calor exaltou Cn Pompeu que Augusto lhe chamou pompeano e isto natildeo prejudicou a sua reciacuteproca
miz de ( ) P r esse trecho utiliz mos tr duccedilatildeo feit por Pereir (TAacuteCITO 1964 p 163) 318
Martin (2000 p 112-124) analisando os resumos das Periochae faz uma interessante discussatildeo sobre
Liacutevio como cesariano ou pompeiano
161
como os costumes de iniacutecio soltos por assim dizer depois cada vez mais
relaxaram e entatildeo comeccedilaram a ir por terra ateacute chegar-se a estes tempos em
que natildeo podemos suportar nem nossos viacutecios nem seus remeacutedios319
Nota-se pelo trecho acima que Liacutevio percebia que a antiga virtude dos romanos
foi com o tempo sendo perdida ateacute chegar agrave sua fase na qual natildeo podiam ser
suport dos nem ―os viacutecios nem seus remeacutedios P r ele crise d s recentes guerr s
civis natildeo tinha sido solucionada de forma completamente satisfatoacuteria e nem o
principado era a soluccedilatildeo milagrosa que salvaria Roma de seu decliacutenio (CONTE 1999
p 370 e 371) Aleacutem disso Liacutevio deixou claro que queria falar de assuntos relacionados
agrave vida e costumes dos romanos rejeitando o caraacuteter pragmaacutetico da histoacuteria
Outro trecho que sintetiza o que discutimos acima estaacute tambeacutem no prefaacutecio
(sect11)
Ceterum aut me amor negotii suscepti fallit aut nulla unquam res publica
nec maior nec sanctior nec bonis exemplis ditior fuit nec in quam
[ciuitatem] tam serae auaritia luxuriaque immigrauerint nec ubi tantus ac
tam diu paupertati ac parsimoniae honos fuerit
De resto ou o amor do empreendimento me engana ou nunca Estado algum
houve nem maior nem mais iacutentegro nem mais rico de bons exemplos nem
cidade agrave qual imigraram tatildeo tardios a ganacircncia e o excesso e onde se prestou
tatildeo grande honra e por tanto tempo agrave frugalidade e parcimocircnia320
Embora deixasse claro o seu desencanto com o principado Liacutevio contudo
apoiava a supremacia romana e o seu domiacutenio sobre os outros povos No prefaacutecio
temos (sect7)
Datur haec uenia antiquitati ut miscendo humana diuinis primordia urbium
augustiora faciat et si cui populo licere oportet consecrare origines suas et
ad deos referre auctores ea belli gloria est populo Romano ut cum suum
conditorisque sui parentem Martem potissimum ferat tam et hoc gentes
humanae patiantur aequo animo quam imperium patiuntur
Eacute dada esta vecircnia aos antigos para que reunindo accedilotildees humanas agraves divinas
tornem mais veneraacutevel o primoacuterdio das cidades e se a algum povo se deve
permitir consagrar suas origens e os deuses referir como fundadores a gloacuteria
do povo romano eacute tal que quando apontam o poderosiacutessimo Marte como pai
e pai de seu fundador os povos natildeo soacute aceitam isso de bom grado como
tambeacutem aceitam o impeacuterio321
319
Novamente recorremos agrave traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) Liacutevio tambeacutem deixa
entrever seu desgosto com a eacutepoca em que vivia no Prefaacutecio sect 4 11 e 12 320
Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160) 321
Traduccedilatildeo de Oliva Neto (In MARTINS 2009 p 160)
162
Liacutevio legitimou a soberania romana afirmando que a origem da urbe era a mais
veneraacutevel e por conseguinte o povo era o mais glorioso Nota-se uma grande mudanccedila
de mentalidade sobre a motivaccedilatildeo imperialista do periacuteodo republicano (e que perdurou
ateacute Ciacutecero) para a fase do principado Se antes o domiacutenio era legitimado pela
honestid de com que Rom exerci su utorid de e teacute por um ―guerr just contr
os inimigos em Liacutevio percebemos que essa legitimaccedilatildeo se devia agrave gloacuteria romana e
tambeacutem agraves suas origens eminentes e divin s O povo rom no est ri ―destin do
imperar porque era o melhor e as proacuteprias naccedilotildees subjugadas reconhecendo esse
―direito de bom gr do ceit ri m o impeacuterio 322
Nos trechos que restaram de sua obra eacute
possiacutevel identificar passagens que justificavam isso sobretudo da forte cooperaccedilatildeo entre
a Fortuna (em sua essecircncia a divina providecircncia) e a uirtus do povo romano nenhum
povo poderia fazer frente ao romano jaacute que nenhum povo poderia dispor de uma forccedila
moral comparaacutevel agrave autoridade em que Roma fora fundada (CONTE 1999 p 371)323
35 ndash Estudo de trechos selecionados do Ab urbe condita
Tito Liacutevio retratou os celtas de forma bem diferente do que fizera Ceacutesar Ele foi
bastante enfaacutetico em ressaltar toda a barbaacuterie e selvageria desse povo (e tambeacutem de
qualquer outra naccedilatildeo rival de Roma) e isso se justificava pelo caraacuteter majoritariamente
moralista e nacionalista de sua obra Evidentemente os gauleses tambeacutem tinham sua
ferocidade exacerbada bem como estereoacutetipos de comportamentos beacutelicos como uma
forma de abrilhantar as vitoacuterias romanas Assim Liacutevio buscou sempre enfatizar o
caraacuteter inferior tanto da cultura quanto da moral dos inimigos e passou longe de uma
generosa descriccedilatildeo (ou isenta ateacute de julgamento) como o fizera Ceacutesar no De bello
Gallico
Para ilustrar o que descrevemos acima vamos comeccedilar analisando o livro V de
Ab urbe condita que fala dos acontecimentos que vatildeo da migraccedilatildeo dos gauleses para a
Itaacutelia ateacute o saque de Roma Assim temos (Ab urbe cond V 34)
322
No subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da expansatildeo imperialista)
levantamos essa discussatildeo sobre os motivos que os romanos usavam para legitimar a conquista sobre
outros povos Conferir especialmente p 95-96 323
De acordo com o sect4 do prefaacutecio Liacutevio deixou claro que o uacutenico que poderia derrotar o romano era o
proacuteprio romano (cf p 155)
163
De transitu in Italiam Gallorum haec accepimus Prisco Tarquinio Romae
regnante Celtarum quae pars Galliae tertia est penes Bituriges summa
imperii fuit ii regem Celtico dabant Ambigatus is fuit uirtute fortunaque
cum sua tum publica praepollens quod in imperio eius Gallia adeo frugum
hominumque fertilis fuit ut abundans multitudo uix regi uideretur posse Hic
magno natu ipse iam exonerare praegrauante turba regnum cupiens
Bellouesum ac Segouesum sororis filios impigros iuuenes missurum se esse
in quas di dedissent auguriis sedes ostendit quantum ipsi uellent numerum
hominum excirent ne qua gens arcere aduenientes posset Tum Segoueso
sortibus dati Hercynei saltus Belloueso haud paulo laetiorem in Italiam
uiam di dabant Is quod eius ex populis abundabat Bituriges Aruernos
Senones Haeduos Ambarros Carnutes Aulercos exciuit Profectus
ingentibus peditum equitumque copiis in Tricastinos uenit Alpes inde
oppositae erant quas inexsuperabiles uisas haud equidem miror nulladum
uia quod quidem continens memoria sit nisi de Hercule fabulis credere
libet superatas Ibi cum uelut saeptos montium altitudo teneret Gallos
circumspectarentque quanam per iuncta caelo iuga in alium orbem terrarum
transirent religio etiam tenuit quod allatum est aduenas quaerentes agrum
ab Saluum gente oppugnari Massilienses erant ii nauibus a Phocaea
profecti Id Galli fortunae suae omen rati adiuuere ut quem primum in
terram egressi occupauerant locum patientibus Saluis communirent Ipsi per
Taurinos saltus quiete Alpis transcenderunt fusisque acie Tuscis haud
procul Ticino flumine cum in quo consederant agrum Insubrium appellari
audissent cognominem Insubribus pago Haeduorum ibi omen sequentes loci
condidere urbem Mediolanium appellarunt
Sobre a vinda dos gauleses para a Itaacutelia conhecemos isto enquanto
Tarquiacutenio Prisco era rei em Roma estiveram os maiores domiacutenios dos celtas
em poder dos bituacuteriges (que compotildeem a terccedila parte da Gaacutelia) e foram esses
que deram um rei ao povo ceacuteltico Foi ele Ambigato entatildeo muito poderoso
pela virtude e fortuna sua e do seu povo no governo dele a Gaacutelia ateacute entatildeo
fora tatildeo feacutertil em cereais e homens que com custo tamanha multidatildeo
pareceria ser governada Ele estando idoso e jaacute desejando livrar o reino de
uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso
filhos da sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes
mostrariam por meio de auguacuterios Eles mesmos deveriam chamar o nuacutemero
de homens que quisessem de modo que nenhuma naccedilatildeo pudesse repelir a sua
chegada Assim a Segoveso foi dada pelos oraacuteculos a floresta Herciacutenia a
Beloveso os deuses concederam um caminho mais favoraacutevel para a Itaacutelia
Beloveso chamou o excedente dos seus povos bituacuteriges arvernos secircnones
eacuteduos ambarros carnutos e aulercos Partindo com grandes tropas de
soldados e cavaleiros chegou ateacute aos tricastinos324
Nesse lugar estavam
opostos os Alpes sem duacutevida natildeo me espanto que eles pareccedilam insuperaacuteveis
jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como certamente temos na
memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas sobre Heacutercules Nesse
local como a altura das montanhas mantivesse os gauleses retidos eles
examinavam os arredores por onde haveriam de passar atraveacutes de cimos
quase unidos ao ceacuteu para outro mundo de terras Tambeacutem a religiatildeo os
retinha pois lhes fora anunciado que estrangeiros desejosos de terra eram
atacados pelo povo saluacutevio325
Esses estrangeiros eram os marselheses que
vieram da Foceia em navios Os gauleses considerando isso o pressaacutegio de
sua sorte os ajudaram a fortificar o primeiro local que ocuparam ao chegar a
essa terra sendo os saluacutevios suportados Eles mesmos atravessaram
324
Povo da Gaacutelia Narbonense 325
Ogilvie (1965 p 711) diz que o termo correto em latim para os salvos era salluvii (saluacutevios) povo que
vivia entre o Roacutedano e os Alpes mariacutetimos A confusatildeo de saluacutevios por salvos se justifica pela influecircncia
grega jaacute que nessa liacutengua essa naccedilatildeo era conhecida como Σάιιπεο Mantivemos a traduccedilatildeo como saluacutevio
em todas as passagens em que Liacutevio menciona essa tribo
164
tranquilamente os Alpes atraveacutes do desfiladeiro taurino326
tendo expulsado
os etruscos em uma batalha natildeo muito longe do rio Ticino ouviram que eles
se encontravam naquele local que era chamado campo dos iacutensubres o nome
da povoaccedilatildeo dos iacutensubres e dos eacuteduos Nesse lugar seguindo eles o
pressaacutegio fundaram uma cidade que chamaram de Mediolano327
(grifos
nossos)
A migraccedilatildeo dos gauleses segundo Liacutevio fora motivada pela grande multidatildeo de
pessoas o que levaria a uma superpopulaccedilatildeo e tambeacutem ao caos O trecho acima
menciona que a Gaacutelia era muito feacutertil em terras e homens somente Liacutevio citou essa
motivaccedilatildeo uacutenica e inacreditaacutevel de campo fecundo para uma migraccedilatildeo as outras fontes
como o proacuteprio Ceacutesar apontaram que o motivo foi a escassez de territoacuterio328
Possivelmente Liacutevio se confundiu e acabou falando em fertilidade de terra e de homens
quando o mais provaacutevel seria apenas fertilidade de homens (OGILVIE 1965 p 708)
Liacutevio situou esse acontecimento no reinado de Tarquiacutenio Prisco ou seja por volta de
600 aC Os bituacuteriges eram considerados por Liacutevio como os liacutederes dos celtas que
compunham a terceira parte da Gaacutelia o que imediatamente remete ao famoso proecircmio
do De bello Gallico Como Ogilvie (1965 p 707) pontua apenas Ceacutesar e Liacutevio
consideravam os celtas como sendo aqueles que habitavam a aacuterea central da Gaacutelia entre
os rios Garona e Marne Em todos os outros que escreveram a esse respeito os termos
gaulecircs e celta eram usados indistintamente para todo o conjunto eacutetnico das naccedilotildees da
Gaacutelia Liacutevio tambeacutem destacou que uma parte desses celtas se estabeleceram nas
proximidades da floresta Herciacutenia Ceacutesar tambeacutem mencionou o fato de gauleses
motivados pela grande populaccedilatildeo e escassez de terra terem estabelecido colocircnias
proacuteximas agrave floresta Herciacutenia329
Liacutevio ainda ressaltou que o oraacuteculo indicando o
caminho da Itaacutelia foi mais favoraacutevel a Beloveso do que a Segoveso De fato a floresta
Herciacutenia proacutexima do Reno estava bastante perto dos germanos e por isso era uma
localidade menos agradaacutevel tanto pela proacutepria ferocidade dos germanos quanto pelo
clima adverso Ogilvie (1965 p 713) detalha sobre esses povos citados nesse trecho
(eacuteduos secircnones arvernos etc) o conflito entre etruscos e gauleses na uacuteltima metade do
seacuteculo V aC foi confirmado por meio de estelas funeraacuterias de Bolonha
Destacamos tambeacutem o seguinte trecho (V 35)
326
Esse desfiladeiro taurino estaria proacuteximo de onde hoje eacute a cidade de Turim (Ogilvie 1965 p 712) 327
Atual Milatildeo 328
Cf BGall VI 24 na p 128 329
Cf novamente o BGall VI 24
165
Alia subinde manus Cenomanorum Etitouio duce uestigia priorum secuta
eodem saltu fauente Belloueso cum transcendisset Alpes ubi nunc Brixia ac
Verona urbes sunt locos tenuere Libui considunt post hos Salluuiique prope
antiquam gentem Laeuos Ligures incolentes circa Ticinum amnem
Poeninum deinde Boii Lingonesque transgressi cum iam inter Padum atque
Alpes omnia tenerentur Pado ratibus traiecto non Etruscos modo sed etiam
Vmbros agro pellunt intra Appenninum tamen sese tenuere Tum Senones
recentissimi aduenarum ab Vtente flumine usque ad Aesim fines habuere
Hanc gentem Clusium Romamque inde uenisse comperio id parum certum
est solamne an ab omnibus Cisalpinorum Gallorum populis adiutam Clusini
nouo bello exterriti cum multitudinem cum formas hominum inuisitatas
cernerent et genus armorum audirentque saepe ab iis cis Padum ultraque
legiones Etruscorum fusas quamquam aduersus Romanos nullum eis ius
societatis amicitiaeue erat nisi quod Veientes consanguineos aduersus
populum Romanum non defendissent legatos Romam qui auxilium ab senatu
peterent misere De auxilio nihil impetratum legati tres M Fabi Ambusti filii
missi qui senatus populique Romani nomine agerent cum Gallis ne a
quibus nullam iniuriam accepissent socios populi Romani atque amicos
oppugnarent Romanis eos bello quoque si res cogat tuendos esse sed
melius uisum bellum ipsum amoueri si posset et Gallos nouam gentem pace
potius cognosci quam armislsquo
Logo depois outro grupo de cenomanos tendo por liacuteder Etitovio seguiu os
passos dos precedentes e com a ajuda de Beloveso atravessou os Alpes pelo
mesmo desfiladeiro esse grupo ocupou os lugares onde hoje estatildeo as cidades
de Briacutexia e Verona Os liacutebuos se estabeleceram depois desses e tambeacutem os
saluacutevios perto da antiga tribo dos levos liacutegures que habitavam proacuteximo ao rio
Ticino330
Em seguida tendo os boios e os liacutengones atravessado os Apeninos
como jaacute estivessem ocupadas todas as terras entre o rio Poacute e os Alpes com
barcos atravessaram o Poacute e expulsaram da terra natildeo soacute os etruscos mas
tambeacutem os umbros contudo eles se estabeleceram nos limites dos Apeninos
Entatildeo os secircnones que vieram por uacuteltimo tomaram o territoacuterio do rio Utente
ateacute o rio Eacutesis Eu soube que foi essa a tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para
Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram ou natildeo com o apoio de
todos os povos da Gaacutelia Cisalpina Os clusinos aterrorizados com essa guerra
singular ao ver a multidatildeo de figuras desconhecidas tanto de homens quanto
de tipo de armas e ouvindo que por vaacuterias vezes as tropas dos etruscos foram
dispersadas do lado de caacute e do lado de laacute do Poacute enviaram emissaacuterios a Roma
para que pedissem auxiacutelio ao senado embora natildeo tivessem com os romanos
nenhum direito de alianccedila ou amizade ndash com exceccedilatildeo do fato de eles natildeo
terem defendido os seus parentes de Veios contra o povo romano Sobre o
auxiacutelio nada foi obtido poreacutem foram enviados trecircs legados filhos de Marco
Faacutebio Ambusto para que em nome do senado e do povo romano tivessem
com os g uleses ―p r que natildeo lut ssem contr os li dos e migos do povo
romano pois natildeo tinham recebido deles nenhuma injuacuteria Pelos romanos eles
seriam defendidos atraveacutes da guerra se algo se sucedesse mas parecia
melhor a proacutepria guerra ser evitada se pudesse e que os gauleses uma gente
receacutem conhecid fossem conhecidos m is pel p z do que pel s rm s
Liacutevio mencionou essas sucessivas levas migratoacuterias dos gauleses (cenomanos
liacutebuos boios liacutengones e os secircnones) de forma condensada de acordo com Ogilvie
(1965 p 713) esses deslocamentos ocorreram num intervalo temporal de 200 anos
Liacutevio para esse trecho usou como fonte Poliacutebio (II 17) com algumas poucas
330
Os liacutebuos eram uma tribo gaulesa e os levos era uma naccedilatildeo liacutegure ambos viviam onde hoje estaacute a
riviera francesa e italiana (OGILVIE 1965 p 714)
166
modificaccedilotildees No capiacutetulo acima comeccedila a se desenrolar a accedilatildeo que vai culminar na
derrota dos romanos por parte dos gauleses Abaixo a sequecircncia dos eventos (V 36)
Mitis legatio ni praeferoces legatos Gallisque magis quam Romanis similes
habuisset Quibus postquam mandata ediderunt in concilio Gallorum datur
responsum etsi nouum nomen audiant Romanorum tamen credere uiros
fortes esse quorum auxilium a Clusinis in re trepida sit imploratum et
quoniam legatione aduersus se maluerint quam armis tueri socios ne se
quidem pacem quam illi adferant aspernari si Gallis egentibus agro quem
latius possideant quam colant Clusini partem finium concedant aliter
pacem impetrari non posse Et responsum coram Romanis accipere uelle et
si negetur ager coram iisdem Romanis dimicaturos ut nuntiare domum
possent quantum Galli uirtute ceteros mortales praestarentlsquo Quodnam id
ius esset agrum a possessoribus petere aut minari armalsquo Romanis
quaerentibus et quid in Etruria rei Gallis essetlsquo cum illi se in armis ius
ferre et omnia fortium uirorum esselsquo ferociter dicerent accensis utrimque
animis ad arma discurritur et proelium conseritur Ibi iam urgentibus
Romanam urbem fatis legati contra ius gentium arma capiunt Nec id clam
esse potuit cum ante signa Etruscorum tres nobilissimi fortissimique
Romanae iuuentutis pugnarent tantum eminebat peregrina uirtus Quin
etiam Q Fabius euectus extra aciem equo ducem Gallorum ferociter in
ipsa signa Etruscorum incursantem per latus transfixum hasta occidit
spoliaque eius legentem Galli agnouere perque totam aciem Romanum
legatum esse signum datum est Omissa inde in Clusinos ira receptui canunt
minantes Romanis Erant qui extemplo Romam eundum censerent uicere
seniores ut legati prius mitterentur questum iniurias postulatumque ut pro
iure gentium uiolato Fabii dederentur Legati Gallorum cum ea sicut erant
mandata exposuissent senatui nec factum placebat Fabiorum et ius postulare
barbari uidebantur sed ne id quod placebat decerneret in tantae nobilitatis
uiris ambitio obstabat Itaque ne penes ipsos culpa esset [cladis forte
Gallico bello acceptae] cognitionem de postulatis Gallorum ad populum
reiciunt ubi tanto plus gratia atque opes ualuere ut quorum de poena
agebatur tribuni militum consulari potestate in insequentem annum
crearentur Quo facto haud secus quam dignum erat infensi Galli bellum
propalam minantes ad suos redeunt Tribuni militum cum tribus Fabiis
creati Q Sulpicius Longus Q Seruilius quartum P Cornelius Maluginensis
A delegaccedilatildeo seria paciacutefica se natildeo fossem os emissaacuterios tatildeo violentos que
mais parecessem gauleses do que romanos A eles depois que anunciaram os
assuntos ordenados no conselho dos gauleses foi dada a seguinte resposta
― ind que escut ssem pel primeir vez o nome dos rom nos contudo
acreditavam que eles eram os homens fortes aos quais pelos clusinos tenha
sido implorado o auxiacutelio em uma ocasiatildeo alarmante como eles preferiram
defender os aliados mais com uma embaixada do que com armas na verdade
eles natildeo haveriam de recusar a paz se aos gauleses necessitados de terra os
clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais
terra de outra maneira a paz natildeo poderia ser obtida Desejavam receber a
resposta diante dos romanos e se a terra fosse negada diante dos mesmos
romanos eles haveriam de combater de modo que eles pudessem anunciar agrave
sua paacutetria o quanto os gauleses ultrapassavam os outros mortais em valor
Os rom nos pergunt r m ―que interesse tinh m os g uleses n Etruacuteri
Como eles respondessem ferozmente que ―tinham o direito atraveacutes das
armas e tudo pertencia aos homens mais fortes dess form os acircnimos de
um e outro lado se inflamaram Eles correram para as armas e travaram
combate Entatildeo jaacute estando a urbe romana proacutexima ao seu destino funesto os
emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas Isso natildeo
pocircde ser feito agraves escondidas jaacute que os trecircs homens nobres e fortiacutessimos da
juventude romana lutavam diante dos estandartes dos etruscos e muito se
167
elevava o valor estrangeiro Ainda mais que Quinto Faacutebio levado com o
cavalo para aleacutem da batalha matou o liacuteder dos gauleses que ferozmente se
lanccedilava contra os estandartes dos etruscos transpassando-lhe o flanco com
uma lanccedila Os gauleses o reconheceram pegando os despojos e por toda a
batalha foi dada a notiacutecia de ele ser o emissaacuterio dos romanos Entatildeo a ira
contra os clusinos foi deixada de lado e eles se afastaram gritando ameaccedilas
contra os romanos Eles estavam decididos a partir imediatamente para
Roma poreacutem venceram os anciotildees para que antes fossem enviados
emissaacuterios para reclamar das injuacuterias e requerer que os Faacutebios lhes fossem
entregues devido ao direito violado das naccedilotildees Os emissaacuterios dos gauleses
comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a
accedilatildeo dos Faacutebios e eles reconheceram como sendo justo o pedido dos
baacuterbaros Contudo a condescendecircncia por homens de tamanha nobreza fazia
oposiccedilatildeo para que natildeo fosse decidido o que agradava ao senado Assim para
que a culpa natildeo caiacutesse sobre o mesmo (caso uma guerra gaulesa causasse
destruiccedilatildeo) o senado passou para o povo a decisatildeo sobre os pedidos dos
gauleses Como a influecircncia e o recurso valessem mais do que o que fora
discutido sobre a sua puniccedilatildeo eles foram eleitos tribunos militares com
poder consular para o ano seguinte Irritados com esse fato indigno os
gauleses ameaccedilando abertamente uma guerra voltaram para os seus Foram
eleitos tribunos militares junto com os trecircs Faacutebios Quinto Sulpiacutecio Longo
Quinto Serviacutelio (pela quarta vez) e Puacuteblio Corneacutelio Maluginense (grifos
nossos)
No comeccedilo desse capiacutetulo Liacutevio jaacute deixou claro o desprezo com que considerava
os celtas dizendo que os emissaacuterios eram tatildeo violentos que mais pareciam gauleses do
que romanos (Gallis magis quam Romanis similes) Podemos tambeacutem ver que Liacutevio ao
fazer esse comentaacuterio logo no iniacutecio de certa forma jaacute adianta o (peacutessimo) rumo que a
situaccedilatildeo vai tomar A resposta dada pelos celtas para justificar o asseacutedio a Cluacutesio vai de
acordo com a justificativa da questatildeo do desejo pela terra aos gauleses necessitados de
terra os clusinos concedessem uma parte do territoacuterio jaacute que eles possuiacuteam mais terra
Essa era a explicaccedilatildeo mais comum para as suas migraccedilotildees Os gauleses tambeacutem
afirmam que ultrapassavam os outros mortais em valor (uirtus) Jaacute sabendo de antematildeo
que logo em seguida eles saqueariam Roma podemos estabelecer uma relaccedilatildeo com
Ceacutesar que dissera que os gauleses haacute muito tempo superavam os germanos em bravura
mas que na sua eacutepoca eles tinham perdido sua uirtus331
Temos um novo reforccedilo da
ideia da barbaacuterie gaulesa pois eles apelam para a violecircncia ao responder ferozmente
(ferociter dicerent) que tinham o direito atraveacutes das armas e tudo pertencia aos
homens mais fortes (se in armis ius ferre et omnia fortium uirorum esse) Nesse ponto
Liacutevio jaacute deixa entrever o futuro nefasto de Roma dizendo que a urbe ficou perto do seu
destino funesto (iam urgentibus Romanam urbem fatis) a partir do momento em que os
331
Cf De bello Gallico (VI 24) p 128 Liacutevio narrando fatos muito recuados no tempo escreveu que os
gauleses excediam em virtude ateacute para justificar a derrota romana sofrida em 390 aC Em Ceacutesar que
escreveu os acontecimentos que lhe eram contemporacircneos o novo modelo de uirtus primitiva se
encontrava nos germanos e natildeo mais nos gauleses (cf p 129)
168
emissaacuterios contra o direito das naccedilotildees empunharam as armas (legati contra ius
gentium arma capiunt) Aqui tambeacutem temos um exemplo da traacutegica inevitabilidade no
rumo dos acontecimentos pois fica claro que nesse caso os celtas tinham o direito e a
legalidade do lado deles Curioso notar que embora os gauleses sejam retratados como
baacuterbaros eles decidem primeiramente enviar uma embaixada a Roma (como era
costume das naccedilotildees ditas civilizadas) refreando o impulso de imediatamente rumar para
atacar os romanos mesmo com o grave desrespeito cometido pelos emissaacuterios O
proacuteprio senado de Roma natildeo gostou da accedilatildeo dos Faacutebios e considerou justa a queixa dos
gauleses Todavia eles se abstiveram de assumir a responsabilidade passando essa
decisatildeo para o povo Os Faacutebios aleacutem de natildeo serem penalizados ainda por cima
receberam a honra de serem eleitos tribunos militares e isso irritou ainda mais os
gauleses
Liacutevio entatildeo continua a narraccedilatildeo dos acontecimentos (V 37)
Cum tanta moles mali instaret ndash adeo occaecat animos Fortuna ubi uim
suam ingruentem refringi non uolt ndash ciuitas quae aduersus Fidenatem ac
Veientem hostem aliosque finitimos populos ultima experiens auxilia
dictatorem multis tempestatibus dixisset ea tunc inuisitato atque inaudito
hoste ab Oceano terrarumque ultimis oris bellum ciente nihil extraordinarii
imperii aut auxilii quaesiuit Tribuni quorum temeritate bellum contractum
erat summae rerum praeerant dilectumque nihilo accuratiorem quam ad
media bella haberi solitus erat extenuantes etiam famam belli habebant
Interim Galli postquam accepere ultro honorem habitum uiolatoribus iuris
humani elusamque legationem suam esse flagrantes ira cuius impotens est
gens confestim signis conuolsis citato agmine iter ingrediuntur Ad quorum
praetereuntium raptim tumultum cum exterritae urbes ad arma concurrerent
fugaque agrestium fieret Romam se irelsquo magno clamore significabant
quacumque ibant equis uirisque longe ac late fuso agmine immensum
obtinentes loci Sed antecedente fama nuntiisque Clusinorum deinceps inde
aliorum populorum plurimum terroris Romam celeritas hostium tulit quippe
quibus uelut tumultuario exercitu raptim ducto aegre ad undecimum lapidem
occursum est qua flumen Allia Crustuminis montibus praealto defluens
alueo haud multum infra uiam Tiberino amni miscetur Iam omnia contra
circaque hostium plena erant et nata in uanos tumultus gens truci cantu
clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono
Como tamanho mal estivesse iminente ndash de tal forma a Fortuna cega os
acircnimos quando ela natildeo quer que a sua vontade de agir seja reprimida ndash a
cidade que outrora contra os inimigos de Fidena e de Veios e contra outros
povos vizinhos experimentando muitas calamidades recorreu a um ditador
para supremos auxiacutelios dessa vez a cidade diante de um inimigo novo e
estranho que buscava a guerra vindo do oceano e dos uacuteltimos recantos das
terras natildeo recorreu a nenhum poder extraordinaacuterio ou auxiacutelio Os tribunos
cuja temeridade provocou a guerra estavam agrave frente do supremo comando e
considerando nada mais cuidadosamente do que jaacute fosse o usual para as
guerras comuns menosprezaram ainda o perigo da guerra Nesse meio
tempo os gauleses quando souberam que fora concedida tal honra aos
violadores do direito das naccedilotildees e aleacutem disso que tinha sido frustrada a sua
embaixada inflamados pela ira (que esse povo eacute incapaz de controlar)
169
imediatamente tomaram os estandartes e marcharam pelo caminho com
fileira apressada Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as
comunidades aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a
fuga com grande clamor eles nunci v m ―v mos Rom Por onde quer
que passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e
tropas se espalhando em comprimento e largura Mas mesmo antes do rumor
e dos mensageiros dos clusinos e tambeacutem dos mensageiros dos outros povos
foi a rapidez dos inimigos que trouxera o terror a Roma certamente porque o
seu exeacutercito fora recrutado agraves pressas e mesmo rapidamente conduzido com
dificuldade ele avanccedilou onze milhas ateacute onde o rio Aacutelia descendo dos
montes crustuacutemios por um canal muito profundo se unia agrave corrente tiberina
natildeo muito abaixo do curso Jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam
repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto cruel e
vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (grifos nossos)
Mais uma vez a sorte desempenha papel importante no desenrolar da accedilatildeo eacute ela
que justifica as mudanccedilas repentinas nas situaccedilotildees narradas (favorecendo um ou outro
lado) e eacute um fator imponderaacutevel ou seja que estaacute aleacutem das habilidades do homem de
prever e de racionalizar algum acontecimento332
Nesse trecho entatildeo eacute a fortuna cega
que explica o fato dos romanos mesmo diante de grande perigo natildeo recorrerem a um
ditador ou outras medidas emergenciais333
Liacutevio tambeacutem atribuiu a culpa de tal
calamidade aos proacuteprios Faacutebios cuja temeridade provocou a guerra jaacute que eles natildeo soacute
empunharam armas quando eram emissaacuterios (indo contra o que era de direito) mas
tambeacutem fizeram uma peacutessima avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo pois consideraram essa como
sendo uma guerra banal e menosprezaram ainda o perigo da guerra Podemos
relacionar tambeacutem esse trecho ao que apareceu no capiacutetulo 36 no qual os Faacutebios por
causa da sua violecircncia se pareciam mais com gauleses do que com romanos334
Aqui
podemos citar que a falta de discernimento dos Faacutebios frente a tamanho perigo lembra o
estereoacutetipo do gaulecircs que natildeo raciocina direito335
Liacutevio usou o proacuteprio termo temeritas
(relacionado aos gauleses) para descrever a postura dos tribunos Quanto agrave
caracterizaccedilatildeo do gaulecircs um toacutepos que Liacutevio citou no trecho foi o da ira que o gaulecircs eacute
incapaz de controlar e que apareceu tambeacutem em Ceacutesar336
A carga dramaacutetica se
acentua na descriccedilatildeo da marcha dos celtas em que Liacutevio enfatizou o alvoroccedilo
provocado por eles (ao tumulto deles que passavam) bem como o terror que causavam
pelo seu caminho Temos repeticcedilatildeo do adjetivo exterritus usado no trecho acima para
descrever as comunidades aterrorizadas (exterritae urbes) e que tambeacutem apareceu para
332
Falamos do papel da fortuna na historiografia latina tambeacutem na p 121 e 122 333
Esse trecho ecoa o destino funesto a que Roma se dirigia citado em V 36 (cf p 166 e 167) 334
Cf p 166 335
Era bastante comum o toacutepos do gaulecircs leviano e de voluacutevel decisatildeo cf BGall IV 5 p 132 336
Ceacutesar escreveu que a ira e temeridade eram especialmente inatas nessa espeacutecie de homens (BGall
VII 42) cf p 133 Poliacutebio (II 353) tambeacutem falou sobre a ira dos gauleses
170
descrever os clusinos aterrorizados (Clusini exterriti)337
O capiacutetulo termina em um
suspense dramaacutetico com vaacuterios toacutepoi relacionados aos gauleses com a repeticcedilatildeo dos
tumultos que causavam seu canto cruel (truci cantu) e seus vaacuterios gritos que
preenchiam tudo com horrendo clamor (clamoribusque uariis horrendo cuncta
compleuerant sono)338
Continuamos entatildeo a narrativa (V 38)
Ibi tribuni militum non loco castris ante capto non praemunito uallo quo
receptus esset non deorum saltem si non hominum memores nec auspicato
nec litato instruunt aciem diductam in cornua ne circumueniri multitudine
hostium possent nec tamen aequari frontes poterant cum extenuando
infirmam et uix cohaerentem mediam aciem haberent Paulum erat ab
dextera editi loci quem subsidiariis repleri placuit eaque res ut initium
pauoris ac fugae sic una salus fugientibus fuit Nam Brennus regulus
Gallorum in paucitate hostium artem maxime timens ratus ad id captum
superiorem locum ut ubi Galli cum acie legionum recta fronte
concucurrissent subsidia in auersos transuersosque impetum darent ad
subsidiarios signa conuertit si eos loco depulisset haud dubius facilem in
aequo campi tantum superanti multitudini uictoriam fore Adeo non fortuna
modo sed ratio etiam cum barbaris stabat In altera acie nihil simile
Romanis non apud duces non apud milites erat Pauor fugaque occupauerat
animos et tanta omnium obliuio ut multo maior pars Veios in hostium urbem
cum Tiberis arceret quam recto itinere Romam ad coniuges ac liberos
fugerent Parumper subsidiarios tutatus est locus in reliqua acie simul est
clamor proximis ab latere ultimis ab tergo auditus ignotum hostem prius
paene quam uiderent non modo non temptato certamine sed ne clamore
quidem reddito integri intactique fugerunt nec ulla caedes pugnantium fuit
terga caesa suomet ipsorum certamine in turba impedientium fugam Circa
ripam Tiberis quo armis abiectis totum sinistrum cornu defugit magna
strages facta est multosque imperitos nandi aut inualidos graues loricis
aliisque tegminibus hausere gurgites maxima tamen pars incolumis Veios
perfugit unde non modo praesidii quicquam sed ne nuntius quidem cladis
Romam est missus Ab dextro cornu quod procul a flumine et magis sub
monte steterat Romam omnes petiere et ne clausis quidem portis urbis in
arcem confugerunt
Entatildeo os tribunos militares sem escolher um lugar para o acampamento ou
fortificar uma trincheira que serviria de refuacutegio e nem ao menos se
lembrando dos deuses ou dos homens ao natildeo tomar os auspiacutecios ou oferecer
os sacrifiacutecios colocaram em linha de batalha o exeacutercito alinhado em alas de
modo que a multidatildeo dos inimigos natildeo o cercassem Contudo natildeo puderam
igualar as alas jaacute que com essa disposiccedilatildeo a linha do meio ficou fraca e com
custo se mantinha unida Havia uma pequena elevaccedilatildeo pelo lado direito que
os tribunos decidiram ocupar com as tropas de reserva essa manobra que
marcou o iniacutecio do pavor e da fuga tambeacutem serviu como o uacutenico meio de
salvaccedilatildeo aos desertores que debandavam De fato Breno comandante dos
gauleses especialmente receando um engodo devido ao pequeno nuacutemero de
inimigos ndash e avaliando que essa elevaccedilatildeo tinha sido ocupada de modo que no
momento em que os gauleses atacassem de frente a linha reta das legiotildees
essas tropas reservas fizessem um ataque pelos lados e por traacutes ndash virou as
suas tropas contra essas de reserva Se os expulsasse daquele lugar sem
duacutevida a vitoacuteria em um terreno plano seria faacutecil jaacute que os gauleses os
337
Cf V 35 na p 165 338
Esse canto cruel dos gauleses tambeacutem foi mencionado por Poliacutebio (II 295) e Ceacutesar (V 37)
171
superavam pela maior quantidade de homens Ateacute esse ponto natildeo apenas a
sorte mas tambeacutem a inteligecircncia estava com os baacuterbaros No exeacutercito
contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem junto aos
comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os acircnimos
de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior parte
deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os retivesse)
e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas e filhos
Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra linha de
batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos que
estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que sem
nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram um
combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e
ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram
impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo Em volta da margem
do Tibre fugiu toda a ala esquerda tendo atirado no rio as armas Fez-se uma
grande carnificina e muitos incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e
outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram engolidos pelos turbilhotildees das
aacuteguas Todavia a maior parte deles fugiu incoacutelume para Veios de onde
nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma
Da ala direita que estivera mais longe do rio e mais perto do peacute do monte
todos fugiram para Roma e nem ao menos fechando as portas da cidade se
refugiaram na cidadela (grifos nossos)
Mais uma vez Liacutevio ressaltou a desobediecircncia dos Faacutebios ao modo tradicional
dos romanos fazerem guerra dizendo que eles foram para a batalha sem escolher um
lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira e natildeo tomando os auspiacutecios ou
oferecendo os sacrifiacutecios (non loco castris ante capto non praemunito uallo nec
auspicato nec litato)339
Breno se mostrou um grande estrategista avaliando
corretamente os planos dos romanos e Liacutevio reconhecendo o meacuterito da vitoacuteria deles
escreveu que os baacuterbaros aleacutem de sorte tiveram com eles a inteligecircncia (adeo non
fortuna modo sed ratio etiam cum barbaris stabat) Como Rankin (1996 p 105)
pontua a derrota terriacutevel dos romanos foi tanto pela arrogacircncia e descuido dos Faacutebios
quanto pela habilidade dos gauleses que tinham melhor comandante Em seguida
temos a informaccedilatildeo de que no exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse
aos romanos (in altera acie nihil simile Romanis) De novo Liacutevio ressaltou que os
romanos natildeo se comportavam como romanos Esse conceito que antes fora usado para
descrever os Faacutebios (que pareciam mais gauleses que romanos) foi alargado para
descrever todos os que estavam em Aacutelia fossem eles liacutederes ou soldados (non apud
duces non apud milites) Liacutevio sempre preocupado em ressaltar a superioridade moral
e a nobreza de espiacuterito do povo romano em sua obra dessa forma frisou ainda mais o
339
Os Faacutebios jaacute tinham violado o direito das naccedilotildees em V 36 quando na condiccedilatildeo de emissaacuterios
pegaram em armas A nova violaccedilatildeo cometida nesse capiacutetulo apenas reforccedila a causa para a derrota
romana Como destaca Ogilvie (1965 p 716) aquela embaixada dos Faacutebios foi mais um pretexto
psicoloacutegico e moral para justificar o desastre de Aacutelia A ecircnfase de dizer que os Faacutebios se comportavam
mais como gauleses do que como romanos tambeacutem justifica esse acontecimento catastroacutefico
172
comportamento desonroso da deserccedilatildeo dos combatentes Temos entatildeo vaacuterias passagens
que enfatizam esse fato o pavor e a fuga tomaram os acircnimos (pauor fugaque
occupauerat animos) de tal forma que os romanos fugiram para a inimiga cidade de
Veios ao inveacutes de pegarem o reto caminho para Roma Novamente temos a referecircncia
ao pacircnico causado pelo grito dos gauleses foi ouvido um clamor (est clamor auditus)
Os romanos se acovardaram a tal ponto que sem nem ao menos ver o inimigo
desconhecido de forma alguma tentaram um combate ou sequer responderam o grito
O desespero de correr foi tamanho que ningueacutem morreu lutando mas sim na confusatildeo
da multidatildeo que ansiava em partir sendo feridos pelas costas ndash o que era extremamente
vergonhoso para o povo romano A outra parte do exeacutercito que ficara junto ao Tibre foi
massacrada (fez-se uma grande carnificina) e muitos tambeacutem morreram afogados
incapazes de nadar pelo peso das couraccedilas e outras proteccedilotildees ou sendo feridos foram
engolidos pelos turbilhotildees das aacuteguas Por conseguinte como muitas dessas baixas
foram causadas pela briga da multidatildeo que fugia e tambeacutem pela malsucedida passagem
do Tibre percebemos que a terriacutevel derrota romana foi causada mais por essa
debandada desordenada do que pelo proacuteprio confronto direto com os celtas Liacutevio
escreveu que nenhum socorro ou sequer um mensageiro da derrota foi enviado a Roma
o que foi mais uma funesta consequecircncia do pacircnico generalizado tambeacutem salientado
pelo fato de que uma parte dos fugitivos ao chegarem em Roma sequer fechou as
portas da cidade (ne clausis quidem portis urbis) Toda essa descriccedilatildeo foi permeada de
imagens fortes e grande carga pateacutetica um traccedilo marcante de Ab urbe condita Para
Liacutevio a histoacuteria era assunto natildeo soacute de razatildeo mas tambeacutem de emoccedilatildeo
Os gauleses vencedores se dirigem a Roma como temos em V 39
Gallos quoque uelut obstupefactos miraculum uictoriae tam repentinae
tenuit et ipsi pauore defixi primum steterunt uelut ignari quid accidisset
deinde insidias uereri postremo caesorum spolia legere armorumque
cumulos ut mos eis est coaceruare tum demum postquam nihil usquam
hostile cernebatur uiam ingressi haud multo ante solis occasum ad urbem
Romam perueniunt Ubi cum praegressi equites non portas clausas non
stationem pro portis excubare non armatos esse in muris rettulissent aliud
priori simile miraculum eos sustinuit noctemque ueriti et ignotae situm
urbis inter Romam atque Anienem consedere exploratoribus missis circa
moenia aliasque portas quaenam hostibus in perdita re consilia essent
Romani cum pars maior ex acie Veios petisset quam Romam nemo
superesse quemquam praeter eos qui Romam refugerant crederet complorati
omnes pariter uiui mortuique totam prope urbem lamentis impleuerunt
Priuatos deinde luctus stupefecit publicus pauor postquam hostes adesse
nuntiatum est mox ululatus cantusque dissonos uagantibus circa moenia
turmatim barbaris audiebant Omne inde tempus suspensos ita tenuit animos
usque ad lucem alteram ut identidem iam in urbem futurus uideretur impetus
173
primo aduentu quia accesserant ad urbem mdashmansuros enim ad Alliam
fuisse nisi hoc consilii foretlsquomdash deinde sub occasum solis quia haud multum
diei supererat mdash ante noctem satius inuasuroslsquomdash tum in noctem dilatum
consilium esse quo plus pauoris inferrentlsquo postremo lux appropinquans
exanimare timorique perpetuo ipsum malum continens fuit cum signa
infesta portis sunt inlata Nequaquam tamen ea nocte neque insequenti die
similis illi quae ad Alliam tam pauide fugerat ciuitas fuit Nam cum defendi
urbem posse tam parua relicta manu spes nulla esset placuit cum coniugibus
ac liberis iuuentutem militarem senatusque robur in arcem Capitoliumque
concedere armisque et frumento conlato ex loco inde munito deos
hominesque et Romanum nomen defendere flaminem sacerdotesque Vestales
sacra publica a caede ab incendiis procul auferre nec ante deseri cultum
eorum quam non superessent qui colerent si arx Capitoliumque sedes
deorum si senatus caput publici consilii si militaris iuuentus superfuerit
imminenti ruinae urbis facilem iacturam esse seniorum relictae in urbe
utique periturae turbaelsquo Et quo id aequiore animo de plebe multitudo ferret
senes triumphales consularesque simul se cum illislsquo palam dicere obituros
nec his corporibus quibus non arma ferre non tueri patriam possent
oneraturos inopiam armatorumlsquo
O prodiacutegio de uma vitoacuteria tatildeo repentina deixou os gauleses de tal maneira
estupefatos que em um primeiro momento eles mesmos ficaram imoacuteveis de
espanto como se natildeo entendessem o que tinha acontecido depois temeram
uma armadilha Por fim recolheram os despojos dos mortos e os
amontoaram em pilhas de armas de acordo com o costume deles340
Depois
que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e
chegaram a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol Quando os cavaleiros
batedores retornaram e informaram que natildeo viram as portas fechadas nem
sentinela vigiando as entradas e nenhum soldado a postos nas muralhas
outro prodiacutegio (semelhante ao anterior) os conteve Receando a noite e o
abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e o Acircnio341
depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para
saber quais planos tinham os inimigos em uma situaccedilatildeo tatildeo desesperadora
Quanto aos romanos a maior parte da tropa tinha fugido para Veios ao inveacutes
de Roma ningueacutem acreditava que havia mais sobreviventes do que aqueles
que tinham se refugiado em Roma todos ao mesmo tempo lastimando os
vivos e os mortos encheram toda a cidade com seus lamentos Em seguida o
pavor generalizado se sobrepocircs aos gemidos pessoais assim que foi
anunciado que os inimigos estavam por perto logo eles ouviram os gritos e
uivos dissonantes dos baacuterbaros que em bandos perambulavam em volta das
muralhas A partir de entatildeo e por todo o tempo ateacute o dia seguinte os acircnimos
se mantiveram inquietos a tal ponto que continuamente parecia que ia
acontecer o ataque agrave cidade primeiro na chegada pois eles jaacute tinham se
aproximado da cidade ndash ―de f to teri m perm necido em Aacuteli se isso natildeo
fosse de seu consenso Depois acharam que o ataque ia ser realizado ao pocircr
do sol pois jaacute natildeo h vi muit cl rid de e ―inv diri m melhor ntes do c ir
d noite Em seguid consider r m que ―o t que tinh sido di do p r
noite p r c us r m is p vor Por fim proacuteximo o m nhecer ao temor
geral se juntou o proacuteprio perigo quando as tropas hostis adentraram pelas
portas Contudo de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia
seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor
tinham fugido para Aacutelia De fato como natildeo havia esperanccedila de que a cidade
pudesse ser defendida pelas poucas tropas que restavam decidiu-se entatildeo
que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores
vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Com armas e provisotildees
estocadas desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o
nome romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos
340
Ceacutesar (BGall VI 17) jaacute descrevera esse costume de se empilhar os despojos 341
Afluente do Tibre
174
sagrados do povo protegidos do massacre e dos incecircndios e natildeo
abandonariam o seu culto a natildeo ser que natildeo existisse mais ningueacutem que o
vener sse ―se a cidadela do Capitoacutelio sede dos deuses o senado fonte da
deliberaccedilatildeo puacuteblica e os jovens soldados resistissem agrave iminente ruiacutena da
cidade seria aceitaacutevel o sacrifiacutecio dos anciatildeos jaacute que essa multidatildeo que fora
deix d n cid de h veri de morrer de qu lquer form Assim p r que
multidatildeo da plebe suportasse isso de acircnimo mais calmo os anciatildeos que jaacute
tinham obtido triunfos e consulados declararam publicamente que
―juntamente com eles haveriam de morrer natildeo agravando a falta de
soldados com esses corpos que natildeo podem carregar armas e nem defender a
paacutetria (grifos nossos)
Os gauleses demoraram a perceber que venceram os romanos e a partir para a
urbe O seu lento e cuidadoso avanccedilo (em um primeiro momento eles mesmos ficaram
imoacuteveis depois temeram uma armadilha por fim recolheram os despojos dos mortos
depois que notaram que natildeo havia nada de hostil avanccedilaram pela estrada e chegaram
a Roma natildeo muito antes do pocircr do sol) contrasta com o o pacircnico desordenado dos
romanos que enchiam toda a cidade com seus lamentos Aleacutem disso na narrativa os
celtas levaram apenas um dia para alcanccedilar Roma de acordo com Ogilvie (1965 p
720) isso eacute uma ecircnfase dramaacutetica de Liacutevio jaacute que outras fontes como Poliacutebio (II 18) e
Diodoro (XIV 115) disseram que eles demoraram trecircs dias nessa jornada Mais uma
vez fica claro que os gauleses planejaram com cuidado o que haveriam de fazer jaacute que
receando a noite e o abandono da desconhecida cidade eles acamparam entre Roma e
o Acircnio depois de enviar batedores ao redor das muralhas e das outras portas para
saber quais planos tinham os inimigos
Temos nova descriccedilatildeo de um pacircnico descontrolado assim que os romanos
souberam que os inimigos estavam por perto e temos mais uma referecircncia aos gritos e
uivos dissonantes dos gauleses (ululatus cantusque dissonos) A partir dessa chegada
dos gauleses Liacutevio desenvolveu cada episoacutedio como sendo uma etapa na restauraccedilatildeo da
moral romana com exemplos de coragem e respeito aos deuses (OGILVIE 1965 p
720) Assim ele escreveu que de forma alguma durante aquela noite nem durante o dia
seguinte os cidadatildeos se comportaram como aqueles que com tamanho pavor tinham
fugido para Aacutelia O povo sabia que natildeo havia esperanccedila de que a cidade pudesse ser
defendida pelas poucas tropas que restavam e aceitou esse fato com determinaccedilatildeo jaacute
que se decidiu que junto com as esposas e os filhos a juventude militar e os senadores
vigorosos se refugiariam na cidadela do Capitoacutelio Ficou clara a importacircncia dessa
decisatildeo pois desse lugar fortificado eles defenderiam os deuses os homens e o nome
romano O flacircmine e as sacerdotisas vestais manteriam os ritos () e natildeo
abandonariam o seu culto Vemos que haacute uma grande preocupaccedilatildeo em proteger os
175
deuses outrora desrespeitados pelos Faacutebios e tambeacutem a defesa do nome romano342
Assim os cidadatildeos passaram a se comportar de forma digna a tal ponto que poderiam
retomar a designaccedilatildeo de romanos que eles natildeo honraram no fracasso em Aacutelia Tudo que
era mais valioso para a urbe se encontrava no Capitoacutelio que era a sede dos deuses o
senado fonte da deliberaccedilatildeo puacuteblica os sacerdotes e a juventude militar Por fim os
anciotildees datildeo o exemplo supremo de honradez aceitando morrer com a plebe de modo a
natildeo atrapalhar a defesa da cidade
Seguindo a narrativa temos (V 41)
Romae interim satis iam omnibus ut in tali re ad tuendam arcem compositis
turba seniorum domos regressi aduentum hostium obstinato ad mortem
animo exspectabant Qui eorum curules gesserant magistratus ut in fortunae
pristinae honorumque aut uirtutis insignibus morerentur quae augustissima
uestis est tensas ducentibus triumphantibusue ea uestiti medio aedium
eburneis sellis sedere Sunt qui M Folio pontifice maximo praefante carmen
deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis tradant Galli et quia
interposita nocte a contentione pugnae remiserant animos et quod nec in acie
ancipiti usquam certauerant proelio nec tum impetu aut ui capiebant urbem
sine ira sine ardore animorum ingressi postero die urbem patente Collina
porta in forum perueniunt circumferentes oculos ad templa deum arcemque
solam belli speciem tenentem Inde modico relicto praesidio ne quis in
dissipatos ex arce aut Capitolio impetus fieret dilapsi ad praedam uacuis
occursu hominum uiis pars in proxima quaeque tectorum agmine ruunt pars
ultima uelut ea demum intacta et referta praeda petunt inde rursus ipsa
solitudine absterriti ne qua fraus hostilis uagos exciperet in forum ac
propinqua foro loca conglobati redibant ubi eos plebis aedificiis obseratis
patentibus atriis principum maior prope cunctatio tenebat aperta quam
clausa inuadendi adeo haud secus quam uenerabundi intuebantur in aedium
uestibulis sedentes uiros praeter ornatum habitumque humano augustiorem
maiestate etiam quam uoltus grauitasque oris prae se ferebat simillimos dis
Ad eos uelut simulacra uersi cum starent M Papirius unus ex iis dicitur
Gallo barbam suam ut tum omnibus promissa erat permulcenti scipione
eburneo in caput incusso iram mouisse atque ab eo initium caedis ortum
ceteros in sedibus suis trucidatos post principium caedem nulli deinde
mortalium parci diripi tecta exhaustis inici ignes
Enquanto isso em Roma jaacute estava tudo preparado para tamanha emergecircncia
e defesa da cidadela entatildeo a multidatildeo dos anciatildeos regressou agraves casas para
esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a morte Os que
exerceram magistraturas curuis343
a fim de morrer com as distinccedilotildees de sua
antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela virtude trajaram a augustiacutessima
veste que era concedida aos que foram comandantes ou que obtiveram um
triunfo e se sentaram em cadeiras de marfim no meio das casas Conta-se
que estando agrave frente Marco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recitaram um
canto e ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos
Os gauleses devido agrave passagem da noite abrandaram seus acircnimos da tensatildeo
da luta e como de modo algum tivessem combatido em uma luta incerta
342
Como discutido algumas vezes ao longo deste trabalho o nome romano representava em Liacutevio
elevaccedilatildeo moral e personificaccedilatildeo da uirtus Para discussatildeo profunda sobre o que era ser romano cf o
subcapiacutetulo de O kley ―like Rom n (In MINEO 2015 p 235-237) 343
Durante essa eacutepoca as magistraturas curuis eram exercidas pelo ditador mestre da cavalaria cocircnsules
e censores que eram dotados de imperium
176
ocupavam a cidade sem grande iacutempeto ou forccedila Sem ira e sem ardor dos
acircnimos no dia seguinte eles ingressaram na cidade pela porta Colina que
estava aberta e chegaram ao foacuterum movendo os olhos ao redor para os
templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que tinha um aspecto de
combate Daquele lugar entatildeo sendo deixada uma pequena guarda para que
nenhum ataque se fizesse contra os que estavam espalhados da cidadela ou do
Capitoacutelio eles se dispersaram pelas ruas vazias em busca da pilhagem sem
encontrar ningueacutem Uma parte deles correu em bando ateacute algumas casas
proacuteximas outra parte se dirigiu para as distantes como se somente essas
intocadas estivessem cheias de despojos Entatildeo de novo amedrontados por
esse mesmo abandono e para que aqueles que perambulavam natildeo fossem
surpreendidos por uma armadilha inimiga eles voltaram reunidos para o
foacuterum e os lugares proacuteximos Nesse lugar estando as casas da plebe fechadas
e as da nobreza abertas eles hesitavam mais em invadir as casas abertas do
que as trancadas Bastante respeitosos ele observaram atentamente os
homens sentados nos vestiacutebulos das casas com ornamento e aspecto mais
divino do que humano e tambeacutem muito semelhantes aos deuses pela
majestade do seu semblante e a dignidade que se mostrava de sua aparecircncia
Diante deles como se fossem estaacutetuas eles ficaram parados conta-se que um
deles Marco Papiacuterio com um bastatildeo de marfim bateu na cabeccedila de um
gaulecircs que lhe acariciava a sua longa barba (como outrora era costume de
todos) tendo provocado a sua ira Com ele o massacre comeccedilou e os outros
em seus assentos foram trucidados depois que se iniciou a carnificina
nenhum dos mortais foi poupado e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas
lhes atearam fogo (grifos nossos)
Ogilvie (1965 p 725) aprofunda a discussatildeo sobre a questatildeo ritualiacutestica dos
velhos magistrados que se ofereciam em sacrifiacutecio pela cidade a multidatildeo dos anciatildeos
regressou agraves casas para esperar a chegada dos inimigos com acircnimo firme para a
morte Segundo o pesquisador esse era provavelmente um antigo ato religioso de
devotio (devoccedilatildeo) No latim temos deuouisse eos se pro patria Quiritibusque Romanis
tradant (ofereceram a si mesmos a favor da paacutetria e dos cidadatildeos romanos) Liacutevio
minimizou esse elemento sacro e no lugar desenvolveu um quadro secular no qual os
anciatildeos estoicamente esperam pelo seu fim com isso evidenciou-se a uirtus romana
(OGILVIE 1965 p 725) No trecho acima foi escrito que os idosos magistrados
haveriam de morrer com as distinccedilotildees de sua antiga condiccedilatildeo de seus cargos ou pela
virtude (uirtus) Eacute interessante notar que os gauleses devido agrave passagem da noite
abrandaram seus acircnimos da tensatildeo da luta e entraram na cidade sem ira e sem ardor
dos acircnimos Ora esse tipo de atitude era bastante incomum para o que se acontecia na
Antiguidade quando um povo hostil invadia uma cidade De forma tranquila (sine ira
sine ardore animorum) os gauleses ingressaram na cidade pela porta Colina que
estava aberta e chegaram ao foacuterum Liacutevio sublinhou a curiosidade dos gauleses que
moviam os olhos ao redor para os templos dos deuses e a cidadela que era a uacutenica que
tinha um aspecto de combate Dando sequecircncia agrave postura interessada dos celtas temos o
fato de que eles bastante respeitosos observaram atentamente os homens sentados nos
177
vestiacutebulos que tinham aspecto mais divino do que humano A peripeacutecia acontece
quando um gaulecircs que acariciava a barba de Marco Papiacuterio recebeu um golpe de
bastatildeo na cabeccedila A partir desse ato os gauleses se comportaram como os selvagens que
eram (pelo menos na visatildeo de Liacutevio) irados iniciaram a carnificina sem poupar
nenhum dos mortais e apoacutes esvaziarem as casas saqueadas lhes atearam fogo
Depois temos (V 42)
Ceterum seu non omnibus delendi urbem libido erat seu ita placuerat
principibus Gallorum et ostentari quaedam incendia terroris causa si
compelli ad deditionem caritate sedum suarum obsessi possent et non omnia
concremari tecta ut quodcumque superesset urbis id pignus ad flectendos
hostium animos haberent nequaquam perinde atque in capta urbe primo die
aut passim aut late uagatus est ignis Romani ex arce plenam hostium urbem
cernentes uagosque per uias omnes cursus cum alia atque alia parte noua
aliqua clades oreretur non mentibus solum concipere sed ne auribus quidem
atque oculis satis constare poterant Quocumque clamor hostium mulierum
puerorumque ploratus sonitus flammae et fragor ruentium tectorum
auertisset pauentes ad omnia animos oraque et oculos flectebant uelut ad
spectaculum a Fortuna positi occidentis patriae nec ullius rerum suarum
relicti praeterquam corporum uindices tanto ante alios miserandi magis qui
unquam obsessi sunt quod interclusi a patria obsidebantur omnia sua
cernentes in hostium potestate Nec tranquillior nox diem tam foede actum
excepit lux deinde noctem inquieta insecuta est nec ullum erat tempus quod
a nouae semper cladis alicuius spectaculo cessaret Nihil tamen tot onerati
atque obruti malis flexerunt animos quin etsi omnia flammis ac ruinis
aequata uidissent quamuis inopem paruumque quem tenebant collem liberati
relictum uirtute defenderent et iam cum eadem cottidie acciderent uelut
adsueti malis abalienauerant ab sensu rerum suarum animos arma tantum
ferrumque in dextris uelut solas reliquias spei suae intuentes
Aliaacutes ou nem todos tinham o desejo de destruir a cidade ou agradava aos
liacutederes dos gauleses o seguinte por um lado ao se exibir alguns incecircndios
como a causa do terror eles poderiam forccedilar os sitiados agrave rendiccedilatildeo devido
ao amor pelas suas habitaccedilotildees por outro lado ao natildeo queimarem todas as
casas eles teriam como garantia que o que quer que restasse da cidade
serviria para dobrar os acircnimos dos inimigos De forma alguma no primeiro
dia o fogo se espalhou em desordem e amplamente como aconteceria em
uma cidade tomada Os romanos da cidadela observavam a cidade repleta de
inimigos que corriam por todas as ruas como em uma e outra parte surgia
algum novo desastre natildeo soacute natildeo entenderam com as mentes mas tambeacutem
sequer puderam confiar em seus ouvidos e olhos Por onde quer que o clamor
dos inimigos o choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o
estrondo das casas que ruiacuteam desviavam-lhes a atenccedilatildeo eles assustados
para tudo viravam os acircnimos rostos e olhos como se a fortuna os tivesse
posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Natildeo lhes restava
nada de suas posses para defenderem exceto seus proacuteprios corpos eles eram
muito mais miseraacuteveis do que os outros que outrora foram atacados pois
sendo privados da paacutetria viam todas as suas posses em poder dos inimigos
Natildeo mais tranquila foi a noite que sucedeu um dia tatildeo horriacutevel depois dela
seguiu-se um dia turbulento e natildeo houve um momento em que parou de
surgir algum espetaacuteculo de um novo massacre Por outro lado oprimidos e
subjugados por tantos males por nada eles mudaram os acircnimos ainda que
vissem todas as coisas serem atingidas pelas chamas e ruiacutenas Sem duacutevida
eles haveriam de defender a colina fraca e pequena que ocupavam que pela
virtude lhes restava liberada Como esses mesmos acontecimentos se
178
repetiam todos os dias eles ficaram acostumados com o mal e afastando da
mente os pensamentos de suas posses consideravam as armas e o ferro nas
destras como os uacutenicos meios para sua esperanccedila (grifos nossos)
Os gauleses embora irados continuaram tendo um comportamento calculado jaacute
que natildeo queimaram tudo ou porque natildeo queriam destruir a cidade (uma possibilidade
que soa bastante improvaacutevel) ou porque queriam deixar alguma coisa de peacute de modo a
forccedilar uma rendiccedilatildeo romana (o que era mais factiacutevel) O barulho ferramenta comum
para causar terror tambeacutem foi amplificado certamente aleacutem do clamor dos inimigos o
choro das mulheres e crianccedilas o som das chamas e o estrondo das casas que ruiacuteam
serviram para apavorar os que se encontravam na cidadela do Capitoacutelio Temos nova
menccedilatildeo ao papel da sorte jaacute que Liacutevio disse que os romanos viam tudo como se a
fortuna os tivesse posicionado para assistir ao espetaacuteculo da queda da paacutetria Assim
fecha-se o ciclo de destruiccedilatildeo que comeccedilou com a violaccedilatildeo dos Faacutebios e culminou na
destruiccedilatildeo de Roma e que jaacute fora profetizado no capiacutetulo 36 que dizia que a urbe
romana ficou proacutexima ao seu destino funesto344
Pode-se perceber ainda uma mudanccedila
de postura dos romanos a partir do capiacutetulo 39345
no qual eles de forma alguma
haveriam de se comportar como os soldados em Aacutelia mas sim suportariam tudo o que
estava para acontecer com coragem e bravura Antes no capiacutetulo 38 os romanos
violaram natildeo soacute os costumes mas tambeacutem os ritos pois os tribunos militares foram
para a guerra sem escolher um lugar para o acampamento ou fortificar uma trincheira
e nem tomaram os auspiacutecios ou ofereceram os sacrifiacutecios346
No capiacutetulo 39 fica clara a
alteraccedilatildeo de conduta os romanos no Capitoacutelio defenderiam os deuses os homens e o
seu proacuteprio nome347
Igualmente os sacerdotes e vestais protegeriam os cultos e natildeo os
abandonariam jamais348
Para enfatizar essa atitude resoluta no capiacutetulo 41 haacute o
sacrifiacutecio dos anciatildeos que ofereceram suas proacuteprias vidas pelos cidadatildeos e pela
344
Cf p 166 345
Cf p 172 a 174 346
Cf p 170 347
M rques em seu rtigo ―O C pitoacutelio como represent ccedilatildeo de Rom em Tito Liacutevio e Taacutecito profund
a discussatildeo sobre o papel do Capitoacutelio como representaccedilatildeo primordial do poder de Roma e a relaccedilatildeo dele
com a construccedilatildeo da imagem de Roma como sendo caput mundi De acordo com Marques (2005 p 96)
essa colina representava a ideia do destino de Roma como cidade guerreira expansionista e
conquistadora Por esse motivo em Liacutevio essa foi a uacutenica parte da cidade que natildeo foi invadida pelos
gauleses 348
Liacutevio usou o termo fortuna no sentido da boa sorte concedida por uma divindade ou providecircncia
protetora a Estados ou indiviacuteduos geralmente em retribuiccedilatildeo agrave pietas (OGILVIE 1965 p 708)
179
paacutetria349
Todos esses fatos entatildeo gradativamente serviram para que os romanos
recuperassem a sua uirtus e tambeacutem a pietas350
Para encerrar esse episoacutedio do saque de Roma temos (V 48)
Sed ante omnia obsidionis bellique mala fames utrimque exercitum urgebat
Gallos pestilentia etiam cum loco iacente inter tumulos castra habentes tum
ab incendiis torrido et uaporis pleno cineremque non puluerem modo ferente
cum quid uenti motum esset Quorum intolerantissima gens umorique ac
frigori adsueta cum aestu et angore uexati uolgatis uelut in pecua morbis
morerentur iam pigritia singulos sepeliendi promisce aceruatos cumulos
hominum urebant bustorumque inde Gallicorum nomine insignem locum
fecere Indutiae deinde cum Romanis factae et conloquia permissu
imperatorum habita In quibus cum identidem Galli famem obicerent eaque
necessitate ad deditionem uocarent dicitur auertendae eius opinionis causa
multis locis panis de Capitolio iactatus esse in hostium stationes Sed iam
neque dissimulari neque ferri ultra fames poterat Itaque dum dictator
dilectum per se Ardeae habet magistrum equitum L Valerium a Veiis
adducere exercitum iubet parat instruitque quibus haud impar adoriatur
hostes interim Capitolinus exercitus stationibus uigiliis fessus superatis
tamen humanis omnibus malis cum famem unam natura uinci non sineret
diem de die prospectans ecquod auxilium ab dictatore appareret postremo
spe quoque iam non solum cibo deficiente et cum stationes procederent
prope obruentibus infirmum corpus armis uel dedi uel redimi se quacumque
pactione possint iussit iactantibus non obscure Gallis haud magna mercede
se adduci posse ut obsidionem relinquant Tum senatus habitus tribunisque
militum negotium datum ut paciscerentur Inde inter Q Sulpicium tribunum
militum et Brennum regulum Gallorum conloquio transacta res est et mille
pondo auri pretium populi gentibus mox imperaturi factum Rei foedissimae
per se adiecta indignitas est pondera ab Gallis allata iniqua et tribuno
recusante additus ab insolente Gallo ponderi gladius auditaque intoleranda
Romanis uox ―uae uictis [esse]
Por outro lado a fome mais do que todos os males do cerco e da guerra
afligia ambos os exeacutercitos tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois
eles fizeram seu acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as
colinas esse lugar era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de
vapor tambeacutem a cinza e o poacute com qualquer movimento do vento se
levantavam Esse povo era muito intolerante a isso pois estava acostumado agrave
umidade e ao frio abalados por esse calor e tormento eles morriam como
gado quando se espalhavam as doenccedilas Por causa da lentidatildeo de se sepultar
um por um eles cremavam indistintamente pilhas e montes de homens e por
isso esse lugar se tornou conhecido pelo nome de piras gaulesas Entatildeo foi
feita uma treacutegua com os romanos e conversas foram mantidas com a
permissatildeo dos chefes Nesses diaacutelogos como os gauleses continuamente
reclamassem da fome e por essa necessidade incitassem os romanos agrave
rendiccedilatildeo conta-se que para tirar deles essa ideia de muitos lugares do
Capitoacutelio eles lanccedilaram patildeo em direccedilatildeo agraves guarniccedilotildees dos inimigos Contudo
a fome jaacute natildeo podia mais ser dissimulada ou suportada Assim o ditador351
enquanto pessoalmente recrutava em Aacuterdea ordenou que o comandante da
cavalaria L Valeacuterio trouxesse o exeacutercito de Veios ele preparou e dispocircs
daqueles para atacar os inimigos de forma mais equilibrada Nesse iacutenterim a
guarniccedilatildeo que estava no Capitoacutelio cansada pelas vigiacutelias insones mesmo
superando todos os males humanos tinha um uacutenico mal a fome que pela
349
Cf p 175 350
Falamos mais detalhadamente da pietas na p 126 351
Trata-se de Camilo que banido para Veios ao saber do ocorrido em Roma partiu para a cidade e
liderou a vitoacuteria dos romanos contra os gauleses
180
natureza natildeo podia ser vencida dia apoacutes dia eles observavam se vinha algum
auxiacutelio do ditador Por fim como jaacute faltava natildeo soacute a esperanccedila mas tambeacutem
o alimento e como as tropas natildeo avanccedilariam mais pois por causa dos
sofrimentos o corpo ficara fraco para as armas decidiu-se que poderiam ou
se render ou se submeter a qualquer acordo que fosse parecia claramente
que eles poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa de
modo que abandonassem o cerco Entatildeo o senado se reuniu e ordenou que os
tribunos militares fizessem um tratado Logo na conferecircncia entre Q
Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos gauleses arranjou-se um acordo
foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao povo que em breve haveria de
governar as naccedilotildees Uma indignidade foi acrescida a essa determinaccedilatildeo
bastante vergonhosa pois a balanccedila que os gauleses trouxeram era injusta
Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs insolente adicionou a espada ao
peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os romanos dizer ― i dos vencidos
(grifos nossos)
Nesse capiacutetulo apoacutes sitiarem Roma por muito tempo os gauleses do mesmo
modo que os romanos padecem eles ainda sofrem por causa da peste jaacute que
acampavam em um lugar insalubre Com esse impasse ambos os lados fazem uma
treacutegua e passam a conversar buscando uma saiacuteda para o conflito Os romanos que ateacute
entatildeo resistiram bravamente (e continuamente esperavam a ajuda do ditador) finalmente
satildeo vencidos natildeo diretamente pelos gauleses mas sim porque lhes faltava a esperanccedila
e tambeacutem o alimento e que por esse motivo as tropas fracas natildeo avanccedilariam mais
Eles decidiram que poderiam ou se render ou se submeter a qualquer acordo mas
subestimaram o valor do pagamento aos gauleses (parecia claramente que eles
poderiam dar aos altivos gauleses uma pequena recompensa) Depois da reuniatildeo do
senado temos a conferecircncia entre Sulpiacutecio e Breno que fazem um acordo o povo
romano que em breve haveria de governar as naccedilotildees deveria pagar mil libras em ouro
aos gauleses352
Liacutevio destaca a falta de dignidade dos celtas que para trapacear e
conseguir mais ouro trouxeram uma balanccedila injusta Aleacutem disso o gaulecircs
caracterizado como insolente acrescentou a espada ao peso e com voz intoleraacutevel disse
os rom nos ― i dos vencidos 353
Ogilvie (1965 p 737) destaca que essa voz
intoleraacutevel marca uma peripeacutecia a favor dos romanos Na sequecircncia Camilo aparece e
derrota os gauleses Os romanos como recuperaram sua pietas por essa razatildeo
mereceram essa vitoacuteria Curioso notar que nenhuma das fontes para esse periacuteodo como
Poliacutebio ou Diodoro menciona Camilo Evidentemente Liacutevio se aproveitou da lendaacuteria
histoacuteria desse personagem para transformar essa vergonhosa derrota em sucesso jaacute que
352
Liacutevio demonstra mais uma vez que apoiava o imperialismo romano como antes escrevera no prefaacutecio
de Ab urbe condita (sect7) e t mbeacutem desse ―direito qu se divino de Rom govern r outros povos (cf p
161) 353
Os gauleses jaacute tinham firm do ntes que ―tinh m o direito tr veacutes das armas e tudo pertencia aos
homens m is fortes no c piacutetulo 36 (cf p 166)
181
sua histoacuteria tinha um profundo caraacuteter nacionalista e laudatoacuterio da uirtus romana Com
esse capiacutetulo encerramos a anaacutelise dos trechos do livro V de Ab urbe condita
Passamos agora agraves passagens do livro VII Nesse livro a partir do capiacutetulo 9
temos a narraccedilatildeo dos fatos que aconteceram em 361 aC O contexto era o de uma nova
guerra entre romanos e gauleses Com o comando do ditador Tito Quiacutencio Peno os
romanos se posicionaram nas margens do rio Acircnio Como eles disputassem pelo
controle da ponte com os gauleses e com forccedilas parecidas nem um ou outro exeacutercito
conseguisse vencer temos entatildeo o episoacutedio do duelo entre um gaulecircs e um romano
Assim temos (VII 9)
Tum eximia corporis magnitudine in uacuum pontem Gallus processit et
quantum maxima uoce potuit ―Quem nunc inquit ―Roma uirum
fortissimum habet procedat agedum ad pugnam ut noster duorum euentus
ostendat utra gens bello sit melior
Entatildeo um gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal avanccedilou ateacute a ponte vazia e
com a voz mais forte que pode disse ― gora que o homem mais valoroso de
que Roma dispotildee avance para o combate de modo que esse resultado entre
mbos mostre qu l dos dois povos eacute melhor n guerr (grifos nossos)
Liacutevio recorreu ao estereoacutetipo do gaulecircs de notaacutevel grandeza corporal (eximia
corporis magnitudine) e que chamou um inimigo para o confronto individual com a voz
mais forte que pode354
Nesse trecho vemos tambeacutem o antigo costume indo-europeu de
decidir uma batalha em um confronto entre dois guerreiros tido como os melhores de
suas tropas Essa tradiccedilatildeo que depois foi desaparecendo entre gregos e romanos a partir
do seacuteculo IV aC ainda era praticada pelos celtas desse periacuteodo Em sua comunidade
era aceitaacutevel que toda a questatildeo da vitoacuteria (ou derrota) de um exeacutercito poderia ser
decidida nesses torneios (RANKIN 1996 p 63 e 64) Eles inclusive adotavam esse
costume em conflitos contra povos natildeo ceacutelticos como vimos acima em que o gaulecircs
354
De acordo com Rankin (1996 p 68) um guerreiro gaulecircs com toda sua estatura e fuacuteria deveria ser
aterrorizante Em vaacuterios autores eles foram descritos fisicamente como altos e loiros com vozes
profundas e guturais aleacutem de terem um comportamento ameaccedilador e dramaacutetico Falamos desses toacutepoi em
Poliacutebio (II 15 7) na p 49 deste trabalho tambeacutem em Diodoro (V 28 1) na p 81-82 e em Estrabatildeo
(IV 4 2) na p 85 Sherwin-White (1967 p 58) pontua que apoacutes os contatos que os romanos tiveram
com germanos e bretotildees no seacuteculo I aC esse estereoacutetipo da enorme altura gaulesa foi transferido para
eles Um exemplo disso pode ser encontrado em Ceacutesar que disse que a antiga virtude dos celtas passou
aos germanos (cf BGall VI 24 p 128) No seu comentaacuterio ele em momento algum descreveu os
gauleses como altos mas sim os germanos (cf BGall VI 21 p 144) quando Ceacutesar disse que essa
grande estatura germacircnica se devia agrave sua abstinecircncia sexual) ou os belgas (que embora habitantes da
Gaacutelia na verdade seriam descendentes dos germanos como temos no livro II 4 cf p 131)
182
chamou um romano para o combate355
Em seguida temos a narrativa do duelo (VII
10)
Diu inter primores iuuenum Romanorum silentium fuit cum et abnuere
certamen uererentur et praecipuam sortem periculi petere nollent Tum T
Manlius L filius qui patrem a uexatione tribunicia uindicauerat ex statione
ad dictatorem pergit ―Iniussu tuo inquit imperator extra ordinem nunquam
pugnauerim non si certam uictoriam uideam si tu permittis uolo ego illi
beluae ostendere quando adeo ferox praesultat hostium signis me ex ea
familia ortum quae Gallorum agmen ex rupe Tarpeia deiecit Tum dictator
―Macte uirtute inquit ac pietate in patrem patriamque T Manli esto Perge
et nomen Romanum inuictum iuuantibus dis praesta Armant inde iuuenem
aequales pedestre scutum capit hispano cingitur gladio ad propiorem habili
pugnam Armatum adornatumque aduersus Gallum stolide laetum et ndash
quoniam id quoque memoria dignum antiquis uisum est ndash linguam etiam ab
inrisu exserentem producunt Recipiunt inde se ad stationem et duo in medio
armati spectaculi magis more quam lege belli destituuntur nequaquam uisu
ac specie aestimantibus pares Corpus alteri magnitudine eximium
uersicolori ueste pictisque et auro caelatis refulgens armis media in altero
militaris statura modicaque in armis habilibus magis quam decoris species
non cantus non exsultatio armorumque agitatio uana sed pectus animorum
iraeque tacitae plenum omnem ferociam in discrimen ipsum certaminis
distulerat Vbi constitere inter duas acies tot circa mortalium animis spe
metuque pendentibus Gallus uelut moles superne imminens proiecto laeua
scuto in aduenientis arma hostis uanum caesim cum ingenti sonitu ensem
deiecit Romanus mucrone subrecto cum scuto scutum imum perculisset
totoque corpore interior periculo uolneris factus insinuasset se inter corpus
armaque uno alteroque subinde ictu uentrem atque inguina hausit et in
spatium ingens ruentem porrexit hostem Iacentis inde corpus ab omni alia
uexatione intactum uno torque spoliauit quem respersum cruore collo
circumdedit suo Defixerat pauor cum admiratione Gallos Romani alacres
ab statione obuiam militi suo progressi gratulantes laudantesque ad
dictatorem perducunt Inter carminum prope modo incondita quaedam
militariter ioculantes Torquati cognomen auditum celebratum deinde
posteris etiam [familiae] honori fuit Dictator coronam auream addidit
donum mirisque pro contione eam pugnam laudibus tulit
Durante muito tempo houve um silecircncio entre os nobres jovens romanos jaacute
que por um lado eles receavam recusar o combate e por outro natildeo queriam
se dirigir primeiro para essa sorte de perigo Entatildeo Tito Macircnlio filho de
Luacutecio que tinha livrado o pai da perseguiccedilatildeo do tribuno avanccedilou do seu
lugar ateacute o ditador e disse ―sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora
da linha de batalha nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa se tu
permitires quero eu mesmo mostrar agravequele animal visto que ele saltita feroz
diante dos estandartes dos inimigos que sou oriundo daquela famiacutelia que
355
Esses torneios marcavam o valoroso ritual dos celtas cuja maior motivaccedilatildeo era a honra guerreira
Diodoro Siacuteculo (V 29 2-3) escreveu sobre esse costume de um celta chamar um rival para uma disputa
individual brandindo suas armas e fazendo bastante barulho para inspirar medo no adversaacuterio Tambeacutem
de acordo com Rankin (1996 p 67) os gregos e os romanos viam no celta a sobrevivecircncia do antigo
coacutedigo de vida heroacuteico Nas estaacutetuas do gaulecircs moribundo estava expressa a riacutegida determinaccedilatildeo de um
guerreiro que escolhia a morte por sua proacutepria matildeo a viver uma vida em desonra (RANKIN 1996 p 67)
Essa caracteriacutestica lembra tambeacutem o episoacutedio do aquitano Pisatildeo que salvara seu irmatildeo da batalha o
irmatildeo por sua vez vendo que Pisatildeo morrera em combate voltou para a luta e foi morto pelos inimigos
(cf p 125 e ss) Se para os gauleses era mais importante ter uma morte gloriosa do que uma sobreviecircncia
humilhada para os romanos a circunstacircncia era diferente Hope (apud BROWN 2014 p 393) lembra que
nas campanhas militares romanas o ideal era combater vencer e sobreviver a ecircnfase estava toda na
vitoacuteria e natildeo nas viacutetimas que tombaram para criar esse sucesso
183
derrubou um multidatildeo de g uleses d roch T rpei 356
O ditador assim
respondeu ―Tens a honrada virtude Tito Macircnlio e a piedade para com o
pai e a paacutetria Avanccedila tu e com o auxiacutelio dos deuses defende o invenciacutevel
nome romano 357
Em seguida os companheiros armaram o jovem ele tomou
o escudo de um soldado e cingiu-se com uma espada hispana conveniente
para a luta corpo a corpo358
Eles o conduziram armado e equipado ateacute o
gaulecircs insensatamente feliz e ndash porque aos antigos parecesse esse ser um fato
digno de nota ndash que mostrava a liacutengua em escaacuternio Os jovens entatildeo se
retiraram para sua posiccedilatildeo No centro os dois armados foram deixados mais
agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra De forma alguma eram parecidos
considerando-se seu aspecto e tipo O corpo de um deles era notaacutevel pelo
tamanho resplandecente em uma veste multicolorida de vaacuterios tons e com
armas ornadas de ouro O outro tinha a estatura mediana e modesta de um
soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais ele natildeo produziu nenhum
canto nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas mas o seu peito
estava cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade
para o momento da proacutepria luta Quando eles se postaram entre as duas
linhas de batalha todos os que estavam agrave sua volta ficaram com os acircnimos
suspensos pela esperanccedila e pelo medo O gaulecircs que por cima se aproximava
devido ao seu grande tamanho lanccedilou o escudo contra as armas adversas do
inimigo que se aproximava e projetou a espada com grande ruiacutedo mas esse
golpe foi inuacutetil O romano com a ponta da espada erguida com seu proacuteprio
escudo bateu no escudo inimigo pela parte inferior e comprimindo-se todo
entre o corpo e as armas do inimigo aproximou-se ainda mais do perigo do
ataque com um golpe e depois outro ele feriu-lhe o ventre e a virilha e
jogou o adversaacuterio derrubado em um espaccedilo enorme Entatildeo do corpo
abatido intocado por nenhuma outra indignidade ele tirou somente o colar
que manchado de sangue colocou em volta do seu proacuteprio pescoccedilo O
pavor junto com a admiraccedilatildeo paralisou os gauleses os romanos
entusiasmados avanccedilaram de sua posiccedilatildeo ateacute o seu soldado e louvando-o e
agradecendo-o conduziram-no ateacute o ditador Entre o canto militar e os
gracejos desordenados que eles diziam ouvia-se o nome Torquato que
depois foi celebrado pelos seus descendentes e tornou-se ainda a honoriacutefica
alcunha da famiacutelia O ditador acrescentou uma coroa de ouro ao precircmio e
com admiraacuteveis elogios narrou essa luta em um discurso359
356
Oakley (1998 p 132) sublinha que era algo comum a todas as sociedades antigas os filhos desejarem
emular as conquistas de seus ancestrais em Roma isso era bastante comum em famiacutelias aristocraacuteticas
que herdavam prestiacutegio ao longo de geraccedilotildees (fato citado ao final desse capiacutetulo em que os descendentes
de Macircnlio herdam o nome Torquato) Os romanos assim motivados buscavam alcanccedilar faccedilanhas
similares agraves dos seus ascendentes Assim Tito Macircnlio demonstra sua vontade de lutar com o gaulecircs como
forma de rivalizar o feito do seu pai que derrubando os gauleses da rocha Tarpeia ficou conhecido como
Tito Macircnlio Capitolino (Ab urbe cond VI 17) 357
Gilmartin (1975 apud PHILLIPS 1982 p 1045) sugere que essa segunda pessoa do singular usada
por Liacutevio geralmente aparecia em contextos que estimulavam seus leitores a terem uma reaccedilatildeo (seja de
admiraccedilatildeo ou vergonha) dando mais ecircnfase no impacto que os exemplos criariam em seu puacuteblico do que
em fazer uma simples descriccedilatildeo dos acontecimentos 358
Na eacutepoca em que esse confronto aconteceu (361 aC) os romanos ainda natildeo tinham conquistado a
Hispacircnia trata-se entatildeo de um anacronismo de Liacutevio A espada (gladius) de Macircnlio mais curta que a do
gaulecircs (ensis) era ideal para confrontos muito proacuteximos Era bastante comum em Liacutevio esse fato do
gaulecircs ser prejudicado em um duelo por causa de uma espada muito longa Para discussatildeo mais detalhada
sobre as formas de combate com espada curta e longa cf Oakley (1998 p 134-136) 359
A coroa de ouro era um precircmio recorrente durante a Repuacutelica De acordo com Oakley (1998 p 148)
no periacuteodo final da Repuacuteblica passou a ser comum conceder coroas especiacuteficas como a corona ciuica
muralis etc Augusto (RG XXXIV p 150) mencionou que ganhou uma coroa ciacutevica e um escudo de
ouro
184
No capiacutetulo 9 o gaulecircs por conta proacutepria decidira avanccedilar e propor uma luta
individual Tito Macircnlio antes de aceitar esse desafio primeiro pediu a autorizaccedilatildeo ao
ditador dizendo sem a tua ordem general eu nunca lutaria fora da linha de batalha
nem mesmo se visse que a vitoacuteria era certa360
Podemos perceber a assimetria entre a
uirtus baacuterbara e a disciplina contida do romano de fato a visatildeo romana considerava que
a uirtus era alcanccedilada coletivamente e natildeo individualmente (RIGGSBY 2006 p 90 e
91)361
Os pronomes tu e ego na fala de Macircnlio chamam atenccedilatildeo para a forma com a
qual ele subordina seu proacuteprio desejo de gloacuteria agrave autoridade do seu general (OAKLEY
1998 p 131) Liacutevio igualmente sublinhou a primitividade do gaulecircs atraveacutes das
palavras de Macircnlio que a ele se referiu como sendo um animal visto que ele saltita
feroz diante dos estandartes dos inimigos (illi beluae ostendere quando adeo ferox
praesultat hostium signis) Em contraste a essa caracteriacutestica selvagem do celta temos a
oposiccedilatildeo representada pela civilidade romana de fato o ditador em resposta diz que
Macircnlio tem a honrada virtude e a piedade para com o pai e a paacutetria (macte uirtute ac
pietate in patrem patriamque esto) e que com o auxiacutelio dos deuses o heroacutei haveria de
defender o invenciacutevel nome romano (nomen Romanum inuictum iuuantibus dis
praesta)362
Em seguida Liacutevio segue com a descriccedilatildeo clichecirc do gaulecircs insensatamente
feliz e que mostrava a liacutengua em escaacuternio363
Os combatentes armados foram deixados
no centro mais agrave maneira de espetaacuteculo do que de guerra Como Riggsby (2006 p 90
e 91) lembra para os romanos o valor de um cidadatildeo dependia do julgamento da
comunidade mais do que de padrotildees absolutos pois para os romanos era marcante essa
noccedilatildeo de coletividade por conseguinte isso encorajava a visatildeo de que a atividade
romana se desenrolava como se fosse em um palco com a audiecircncia desempenhando o
papel de juiacuteza Isso eacute um padratildeo constante no Ab urbe condita em que batalhas e duelos
comumente satildeo descritos como espetaacuteculos de forma a deixar a narrativa mais viacutevida
Dando continuidade agrave descriccedilatildeo estereotipada do celta (e tambeacutem do romano) temos
que o gaulecircs era notaacutevel pelo tamanho resplandecente em uma veste multicolorida com
360
Oakley (1998 p131) destaca que nenhum soldado romano podia sair do seu posto por nenhum
motivo a natildeo ser por ordem do seu comandante 361
Jaacute falamos a esse respeito na p 145 em que Ceacutesar tambeacutem afirmara algo semelhante sobre a uirtus
dos germanos e a disciplina romana 362
Conforme discutimos em vaacuterias passagens do livro V aqui tambeacutem o romano imbuiacutedo da uirtus e da
pietas contava com o auxiacutelio da divina providecircncia (a boa fortuna) e por isso defenderia o nome
romano sinocircnimo de honra e dignidade 363
Sobre o comportamento ameaccedilador e dramaacutetico que os gauleses tinham em batalha cf nota 354 Aleacutem
disso Ciacutecero t mbeacutem fez um descriccedilatildeo b st nte hostil dos g uleses dizendo que ―eles v g m
desordenadamente por todo o foro felizes e arrogantes com vaacuterias ameaccedilas e com o terror baacuterbaro e
desum no d su liacutengu (cf Pro Fonteio 33 p 72)
185
armas ornadas de ouro364
O romano pelo contraacuterio tinha a estatura mediana e
modesta de um soldado e armas mais uacuteteis do que ornamentais Em oposiccedilatildeo agrave postura
teatral do gaulecircs que saltitava e mostrava a liacutengua Macircnlio natildeo produziu nenhum canto
nenhuma exultaccedilatildeo ou agitaccedilatildeo inuacutetil das armas (non cantus non exsultatio
armorumque agitatio uana)365
Na verdade o romano embora impassiacutevel tinha o peito
cheio de coragem e ira silenciosa e guardava toda sua ferocidade para o momento da
proacutepria luta (sed pectus animorum iraeque tacitae plenum omnem ferociam in
discrimen ipsum certaminis distulerat) Mais do que ficar desempenhando o papel do
guerreiro tiacutepico Macircnlio se preocupou em guardar sua energia feroz para o combate em
si Podemos pensar que embora Liacutevio tenha usado os termos ira e ferocia ndash comumente
empregados na historiografia latina para a descriccedilatildeo das naccedilotildees consideradas baacuterbaras ndash
para referir-se a um romano contudo Macircnlio possuiacutea a disciplina a uirtus e a pietas
assim a ira e a ferocidade devidamente controladas serviram como importantes
ferramentas para sua vitoacuteria366
Macircnlio aproveitando-se do fato de ser menor que o
gaulecircs comprimiu-se todo entre o corpo e as armas do inimigo e com apenas dois
golpes feriu-lhe o ventre e a virilha e venceu De todos os ricos ornamentos Macircnlio
tomou como butim somente o colar que manchado de sangue colocou em volta do seu
proacuteprio pescoccedilo (uno torque spoliauit quem respersum cruore collo circumdedit suo)
Mais uma vez temos a imagem dos gauleses paralisados por causa do pavor e da
admiraccedilatildeo (defixerat pauor cum admiratione Gallos)367
Por ter se apoderado do colar
(torquis) Macircnlio passou a ser reconhecido pelo nome Torquato
Tambeacutem no livro VII destacamos a seguinte passagem que se passa em 348
aC na qual o impasse da guerra eacute decidido em um novo duelo entre um gaulecircs e um
romano (VII 26)
Vbi cum stationibus quieti tempus tererent Gallus processit magnitudine
atque armis insignis quatiensque scutum hasta cum silentium fecisset
prouocat per interpretem unum ex Romanis qui secum ferro decernat M
364
Diodoro Siacuteculo (V 29 3) fala do costume dos gauleses tanto homens quanto mulheres usarem vaacuterios
adereccedilos em ouro Diodoro tambeacutem fala do costume dos guerreiros gauleses usarem vestes multicoloridas
em V 30 1 365
Cf p 169 em que essa conduta jaacute fora descrita com vocabulaacuterio similar em V 37 Jaacute todos os locais
em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e
vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor (iam omnia contra circaque hostium plena erant et
nata in uanos tumultus gens truci cantu clamoribusque uariis horrendo cuncta compleuerant sono) 366
Por conseguinte nota-se mais uma vez essa oposiccedilatildeo entre o romano astuto e o gaulecircs que possuiacutea
essa ira inata e incontrolaacutevel (cf BGall VII 42 p 133 e Ab urbe condV 37 p 169) Evidentemente na
historiografia latina o romano sendo superior em inteligecircncia e virtude sempre vencia seus inimigos 367
Cf V 39 (p 172 e 173) em que os gauleses ao vencerem em Aacutelia ficaram imoacuteveis de espanto
186
erat Valerius tribunus militum adulescens qui haud indigniorem eo decore
se quam T Manlium ratus prius sciscitatus consulis uoluntatem in medium
armatus processit Minus insigne certamen humanum numine interposito
deorum factum Namque conserenti iam manum Romano coruus repente in
galea consedit in hostem uersus Quod primo ut augurium caelo missum
laetus accepit tribunus precatus deinde si diuus si diua esset qui sibi
praepetem misisset uolens propitius adessetlsquo Dictu mirabile tenuit non
solum ales captam semel sedem sed quotienscumque certamen initum est
leuans se alis os oculosque hostis rostro et unguibus appetit donec territum
prodigii talis uisu oculisque simul ac mente turbatum Valerius obtruncat
coruus ex conspectu elatus orientem petit Hactenus quietae utrimque
stationes fuere postquam spoliare corpus caesi hostis tribunus coepit nec
Galli se statione tenuerunt et Romanorum cursus ad uictorem etiam ocior
fuit Ibi circa iacentis Galli corpus contracto certamine pugna atrox
concitatur Iam non manipulis proximarum stationum sed legionibus
utrimque effusis res geritur Camillus laetum militem uictoria tribuni laetum
tam praesentibus ac secundis dis ire in proelium iubet ostentansque
insignem spoliis tribunum ―Hunc imitare miles aiebat et circa iacentem
ducem sterne Gallorum cateruas Di hominesque illi adfuere pugnae
depugnatumque haudquaquam certamine ambiguo cum Gallis est adeo
duorum militum euentum inter quos pugnatum erat utraque acies animis
praeceperat Inter primos quorum concursus alios exciuerat atrox proelium
fuit alia multitudo priusquam ad coniectum teli ueniret terga uertit Primo
per Volscos Falernumque agrum dissipati sunt inde Apuliam ac mare
inferum petierunt () 368
Como os romanos estivessem quietos e passassem o tempo em guarda um
gaulecircs avanccedilou com tamanho e armas notaacuteveis ele fez silecircncio batendo no
escudo com a lanccedila e por meio de um inteacuterprete chamou um dos romanos
para que lutasse consigo atraveacutes do ferro Havia um jovem tribuno militar
Marco Valeacuterio que natildeo se considerava menos digno daquela honra do que
Tito Macircnlio Ele tendo antes se informado da vontade do cocircnsul avanccedilou
armado ateacute o centro Menos ilustre se mostrou o combate humano jaacute que
interferiram os poderes dos deuses De fato enquanto o romano se dirigia
para a luta um corvo de repente pousou no seu capacete virado para o
inimigo Feliz primeiramente o tribuno aceitou isso como um pressaacutegio
vindo do ceacuteu e depois suplicou ―c so fosse um deus ou deus que ele
enviou o paacutess ro que o voo propiacutecio lhe f vorecesse Ocorreu lgo
maravilhoso de se contar a ave natildeo se contentou apenas em ficar no lugar
mas todas as vezes que a luta comeccedilava com as asas ela levantou-se e
atacou o rosto e os olhos do inimigo com o bico e as garras Por fim o
gaulecircs aterrorizado pela visatildeo de tamanho prodiacutegio e ao mesmo tempo ferido
nos olhos e na mente foi morto por Valeacuterio o nobre corvo saindo de vista
dirigiu-se para o oriente Ateacute entatildeo as tropas dos dois lados estiveram
paradas Assim que o tribuno comeccedilou a despojar o corpo do inimigo morto
os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo e a corrida dos romanos ateacute
o vencedor foi ainda mais raacutepida Ali travando um acirrado combate ao redor
do corpo do gaulecircs derrubado houve uma luta atroz A batalha jaacute natildeo era
mais travada pelos maniacutepulos nas posiccedilotildees proacuteximas mas sim pelas legiotildees
dispersas pelos dois lados Camilo ordenou ir para o combate os soldados
que estavam felizes tanto com a vitoacuteria do tribuno quanto pela presenccedila dos
deuses favoraacuteveis mostrando-lhes o tribuno reluzente com os despojos
disse-lhes ―imitai-o soldados e ao redor do liacuteder derrubado derrotai as
multidotildees dos g uleses Deuses e homens tom r m p rte ness lut e de
forma alguma foi duvidoso o combate contra os gauleses uma e outra parte
jaacute compreendera nos acircnimos o resultado do combate que fora travado pelos
dois soldados Entre os que avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os
368
Encerramos a traduccedilatildeo desse capiacutetulo aqui apoacutes esse trecho Liacutevio muda de assunto e passa a narrrar
o conflito entre romanos e gregos na Siciacutelia
187
outros o embate foi atroz o resto da multidatildeo antes que pudesse lanccedilar os
dardos virou as costas Primeiro eles se dispersaram pela aacuterea dos volscos e
pelo territoacuterio de falerno de laacute se dirigiram para a Apuacutelia e o mar inferior
() (grifos nossos)
Esse capiacutetulo guarda muitas semelhanccedilas com a narrativa da vitoacuteria de Tito
Macircnlio mais uma vez um enorme gaulecircs toma a frente e chama um romano para um
duelo Valeacuterio se oferece para lutar tendo antes se informado da vontade do cocircnsul
Mesmo com alguns anos de intervalo entre Macircnlio e Valeacuterio (de 361 aC a 348 aC) a
disciplina romana continua exatamente a mesma369
Uma diferenccedila que temos eacute o fato
de ao contraacuterio do que ocorrera com Macircnlio nesse confronto interferiram os poderes
dos deuses Fica evidente o papel da divina providecircncia atuando em favor dos romanos
Um corvo que pousara no capacete de Valeacuterio atacou o rosto e os olhos do inimigo
com o bico e as garras Rankin (1996 p 109) destaca que para os romanos o corvo era
uma ave sagrada para os gauleses ele era uma representaccedilatildeo comum da deusa celta da
guerra Ao dizer que o corvo ajudou um guerreiro romano Liacutevio destacou ainda mais a
vitoacuteria desse contra o gaulecircs jaacute que esse que seria um pressaacutegio favoraacutevel ao gaulecircs no
fim das contas mostrou-se auspicioso para Valeacuterio Outro acontecimento que difere do
duelo de Macircnlio foi o fato de que assim que Valeacuterio comeccedilou a despojar o corpo do
inimigo morto os gauleses natildeo se mantiveram mais em posiccedilatildeo Antes ao verem a
vitoacuteria de Macircnlio os gauleses ficaram paralisados por medo e admiraccedilatildeo mas se
resignaram com o resultado Jaacute nesse capiacutetulo os gauleses natildeo soacute natildeo ficaram estaacuteticos
mas tambeacutem partiram para cima dos romanos e houve uma luta atroz Temos nas
palavras de Camilo entatildeo um exemplo de comportamento valoroso na guerra uma vez
que ele pede aos soldados que imitem a atitude de Valeacuterio frente ao inimigo370
Mesmo
com essa acirrada batalha Liacutevio ao dizer que de forma alguma foi duvidoso o combate
contra os gauleses salientou que os romanos venceriam de qualquer jeito pois eles
contavam com o auxiacutelio dos deuses
Passamos agora ao livro XXIII em que temos o contexto histoacuterico da Segunda
Guerra Puacutenica Preocupados em derrotar Aniacutebal os romanos sofrem uma terriacutevel
derrota na Gaacutelia Assim temos (Ab urbe cond XXIII 24)
369
Nenhum soldado romano se prontificava a lutar sem antes ter a autorizaccedilatildeo expressa de seu general
(cf VII 10 p 182) 370
Valeacuterio imitou o exemplo de Macircnlio ao confrontar um gaulecircs por sua vez Liacutevio exorta seu puacuteblico-
alvo a imitar Valeacuterio Falamos do importante papel dos exempla no Ab urbe condita nas paacuteginas 158 e
159
188
() Cum eae res maxime agerentur noua clades nuntiata aliam super aliam
cumulante in eum annum fortuna L Postumium consulem designatum in
Gallia ipsum atque exercitum deletos Silua erat uasta ndash Litanam Galli
uocabant ndash qua exercitum traducturus erat Eius siluae dextra laeuaque circa
uiam Galli arbores ita inciderunt ut immotae starent momento leui impulsae
occiderent Legiones duas Romanas habebat Postumius sociumque ab
supero mari tantum conscripserat ut uiginti quinque milia armatorum in
agros hostium induxerit Galli oram extremae siluae cum circumsedissent
ubi intrauit agmen saltum tum extremas arborum succisarum impellunt
quae alia in aliam instabilem per se ac male haerentem incidentes ancipiti
strage arma uiros equos obruerunt ut uix decem homines effugerent Nam
cum exanimati plerique essent arborum truncis fragmentisque ramorum
ceteram multitudinem inopinato malo trepidam Galli saltum omnem armati
circumsedentes interfecerunt paucis e tanto numero captis qui pontem
fluminis petentes obsesso ante ab hostibus ponte interclusi sunt Ibi
Postumius omni ui ne caperetur dimicans occubuit Spolia corporis caputque
praecisum ducis Boii ouantes templo quod sanctissimum est apud eos
intulere Purgato inde capite ut mos iis est caluam auro caelauere idque
sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem sacerdoti
esset ac templi antistitibus Praeda quoque haud minor Gallis quam uictoria
fuit nam etsi magna pars animalium strage siluae oppressa erat tamen
ceterae res quia nihil dissipatum fuga est stratae per omnem iacentis
agminis ordinem inuentae sunt
() Enquanto essas coisas aconteciam soube-se de uma nova cataacutestrofe pois
que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a outra L Postuacutemio
designado cocircnsul foi massacrado na Gaacutelia junto com seu exeacutercito A floresta
pela qual ele deveria conduzir a tropa era vasta ndash os gauleses a chamavam
de Litana371
Ao longo do caminho pela direita e pela esquerda os gauleses
cortaram as aacutervores assim elas pareceriam de peacute mas com um leve
movimento elas cairiam Postuacutemio tinha duas legiotildees romanas e como tinha
recrutado muitos aliados do mar superior372
ele conduzia vinte e cinco mil
soldados para os territoacuterios dos inimigos Os gauleses ficaram ao longo da
borda da floresta no momento em que a fileira entrou no mato eles logo
empurraram aacutervores cortadas que estavam mais externas Elas caiacuteram umas
sobre as outras instaacuteveis e mal estabilizadas com esse desabamento elas
destruiacuteram as armas os homens e os cavalos de tal forma que apenas dez
indiviacuteduos escaparam com muita dificuldade De fato muitos foram
sufocados pelos troncos das aacutervores e pedaccedilos de galhos Os gauleses
armados rodeando toda a floresta mataram a outra parte deles que estava
atemorizada por esse repentino mal De um nuacutemero tatildeo grande poucos foram
capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora
bloqueada pelos inimigos Foi ali que Postuacutemio lutando com toda a forccedila
para natildeo ser apanhado morreu Os boios exultantes levaram ateacute o templo
que era muito sagrado entre eles os despojos do corpo e a cabeccedila decepada
do general Entatildeo apoacutes limparem a cabeccedila como era o costume deles
ornaram o cracircnio com ouro que para eles passou a ser um recipiente
sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas solenidades e o mesmo serviria de
copo para os sacerdotes do templo373
Para os gauleses o butim foi tatildeo grande
371
Essa floresta no territoacuterio da naccedilatildeo celta dos boios era ao sudeste da atual cidade de Moacutedena 372
Hoje conhecido por mar Adriaacutetico 373
Posidocircnio (via Estrabatildeo IV 4 5 cf p 85 e 86) afirmara que os gauleses (assim como vaacuterias outras
tribos do norte) tinham o exoacutetico e baacuterbaro haacutebito de exibirem as cabeccedilas dos inimigos como precircmios na
entrada de suas casas Diodoro Siacuteculo (V 29 4) escreveu que os galos levavam os cracircnios como butim
mantendo-os em casa como trofeacuteus As cabeccedilas dos inimigos mais ilustres eram embalsamadas com oacuteleo
de cedro e guardadas em urnas e eles natildeo as vendiam por quantia nenhuma de ouro Liacutevio aqui
descreveu esse costume de forma um pouco diferente dizendo que os cracircnios eram levados ao sagrado
templo e usados como recipiente para as libaccedilotildees e como copo para os sacerdotes Assim o uso das
cabeccedilas outrora mantidas em contexto privado passam a ser um precircmio puacuteblico ao serem usadas nos
189
quanto a vitoacuteria de fato embora grande parte dos animais pereceu com a
queda das aacutervores todavia os demais objetos ndash jaacute que nada se perdeu na fuga
ndash foram encontrados caiacutedos por toda a fileira do exeacutercito derrubado (grifos
nossos)
Liacutevio escreveu que enquanto os romanos se ocupavam da guerra contra Aniacutebal
houve uma nova cataacutestrofe pois que naquele ano a fortuna as acumulava uma sobre a
outra O autor mais uma vez deixou expliacutecito o papel da fortuna nesse episoacutedio como
forma de justificar os vaacuterios desastres sofridos por Roma nesse periacuteodo O incidente
dessa emboscada na floresta Litana imediatamente nos faz lembrar do massacre sofrido
por Varro em Teutoburgo374
Lembrando do papel dos exempla no Ab urbe condita esse
seria justamente um aviso estrateacutegico aos romanos pelo proacuteprio modus operandi de
uma legiatildeo eles deviam evitar confrontos em florestas densas375
Vemos que os
gauleses foram muito espertos jaacute que eles cortaram as aacutervores de modo que elas
parecessem de peacute mas que com um leve movimento elas caiacutessem sobre os inimigos
Liacutevio disse que Postuacutemio conduzia vinte e cinco mil soldados para os territoacuterios dos
inimigos um nuacutemero bem elevado que ressalta ainda mais o contraste com o nuacutemero de
sobreviventes entre armas homens e animais perdidos apenas dez indiviacuteduos
escaparam Aleacutem disso a menccedilatildeo de que um nuacutemero tatildeo grande poucos foram
capturados jaacute que eles foram impedidos de alcanccedilar a ponte do rio que fora bloqueada
pelos inimigos aumentou ainda mais a expressividade dramaacutetica de tamanha derrota
Postuacutemio sendo corajoso e lutando ateacute o fim acabou perecendo e seu corpo foi
despojado pelos boios
Por fim chegamos ao uacuteltimo trecho de Liacutevio (XXXVIII 17) a ser analisado
neste trabalho Nesse episoacutedio temos o contexto da batalha dos romanos contra os
gaacutelatas (ou galo-gregos) no Monte Olimpo em 189 aC Antes da luta Macircnlio faz um
significativo discurso para as tropas Assim temos (XXXVIII 17)
Cum hoc hoste tam terribili omnibus regionis eius quia bellum gerendum
erat pro contione milites in hunc maxime modum adlocutus est consul ―non
me praeterit milites omnium quae Asiam colunt gentium Gallos fama belli
praestare Inter mitissimum genus hominum ferox natio peruagata bello
prope orbem terrarum sedem cepit Procera corpora promissae et rutilatae
rituais religiosos e solenes Liacutevio com isso provavelmente queria ressaltar o caraacuteter baacuterbaro desse haacutebito
Por outro lado Ceacutesar em momento algum do De bello Gallico citou esse costume Isso se justificava pelo
fato do general ter retratado os gauleses mais proacuteximos culturalmente aos romanos jaacute que a finalidade de
sua obra era poliacutetica e natildeo meramente etnograacutefica (cf p 139) 374
Cf p 153 375
As legiotildees eram muito eficazes em terrenos abertos mas pelo fracasso na floresta Litana e tambeacutem
em Teutoburgo fica claro que elas ficavam em desvantagem em aacutereas de mata fechada
190
comae uasta scuta praelongi gladii ad hoc cantus inchoantium proelium et
ululatus et tripudia et quatientium scuta in patrium quemdam modum
horrendus armorum crepitus omnia de industria composita ad terrorem Sed
haec quibus insolita atque insueta sunt Graeci et Phryges et Cares timeant
Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt Semel primo
congressu ad Alliam olim fuderunt maiores nostros Ex eo tempore per
ducentos iam annos pecorum in modum consternatos caedunt fugantque et
plures prope de Gallis triumphi quam de toto orbe terrarum acti sunt Iam
usu hoc cognitum est si primum impetum quem feruido ingenio et caeca ira
effundunt sustinueris fluunt sudore et lassitudine membra labant arma
mollia corpora molles ubi ira consedit animos sol puluis sitis ut ferrum
non admoueas prosternunt Non legionibus legiones eorum solum experti
sumus sed uir unus cum uiro congrediendo T Manlius M Valerius quantum
Gallicam rabiem uinceret Romana uirtus docuerunt iam M Manlius unus
agmine scandentes in Capitolium Gallos detrusit Et illis maioribus nostris
cum haud dubiis Gallis in sua terra genitis res erat hi iam degeneres sunt
mixti et Gallograeci uere quod appellantur sicut in frugibus pecudibusque
non tantum semina ad seruandam indolem ualent quantum terrae proprietas
caelique sub quo aluntur mutat Macedones qui Alexandriam in Aegypto qui
Seleuciam ac Babyloniam quique alias sparsas per orbem terrarum colonias
habent in Syros Parthos Aegyptios degenerarunt Massilia inter Gallos sita
traxit aliquantum ab accolis animorum Tarentinis quid ex Spartana dura illa
et horrida disciplina mansit Generosius in sua quidquid sede gignitur
insitum alienae terrae in id quo alitur natura uertente se degenerat
Phrygas igitur Gallicis oneratos armis sicut in acie Antiochi cecidistis
uictos uictores caedetis Magis uereor ne parum inde gloriae quam ne
nimium belli sit Attalus eos rex saepe fudit fugauitque Nolite existimare
beluas tantum recens captas feritatem illam siluestrem primo seruare dein
cum diu manibus humanis alantur mitescere in hominum feritate mulcenda
non eamdem naturam esse eosdemne hos creditis esse qui patres eorum
auique fuerunt Extorres inopia agrorum profecti domo per asperrimam
Illyrici oram Paeoniam inde et Thraeciam pugnando cum ferocissimis
gentibus emensi has terras ceperunt Duratos eos tot malis exasperatosque
accepit terra quae copia rerum omnium saginaret Vberrimo agro mitissimo
caelo clementibus accolarum ingeniis omnis illa cum qua uenerant
mansuefacta est feritas Vobis mehercule Martiis uiris cauenda ac fugienda
quam primum amoenitas est Asiae tantum hae peregrinae uoluptates ad
extinguendum uigorem animorum possunt quantum contagio disciplinae
morisque accolarum ualet Hoc tamen feliciter euenit quod sicut uim
aduersus uos nequaquam ita famam apud Graecos parem illi antiquae
obtinent cum qua uenerunt bellique gloriam uictores eandem inter socios
habebitis quam si seruantes antiquum specimen animorum Gallos uicissetis
Como eles devessem empreender a guerra contra esse inimigo que era o mais
terriacutevel de todos dessa regiatildeo o cocircnsul reuniu os combatentes e proferiu o
seguinte discurso ―natildeo me esc p sold dos que de todos os povos que
habitam a Aacutesia os gauleses satildeo superiores pela sua fama na guerra Essa
feroz naccedilatildeo depois que percorreu quase todos os lugares fazendo guerra por
fim tomou lugar entre esse povo muito paciacutefico Eles possuem corpos
enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito longas
Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um
combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas nos escudos de
acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar terror
Os gregos os friacutegios e o caacuterios como natildeo estatildeo acostumados a essas coisas
estranhas e incomuns sentem medo Por outro lado noacutes romanos estamos
familiarizados com esses tumultos gaacutelicos e tambeacutem jaacute conhecemos as
inconstacircncias deles Apenas uma vez no primeiro encontro os nossos
antepassados fugiram para Aacutelia376
Desde entatildeo e jaacute ao longo de duzentos
376
Cf V 38 p 170 e 171
191
anos eles satildeo mortos ou fogem atemorizados como se fossem gado377
Celebramos vaacuterios triunfos muito mais sobre os gauleses do que sobre o resto
do mundo Jaacute aprendemos esse costume se resistirmos ao primeiro ataque
que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se
enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga No momento em
que a ira deles se acalma por causa do sol da poeira e da sede eles
derrubam seus corpos moles e acircnimos por isso natildeo precisamos mover o
ferro Natildeo somos experientes apenas nos combates entre nossos exeacutercitos
contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um soacute homem contra outro
De fato Tito Macircnlio e Marco Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana
se sobressaiacutea agrave fuacuteria gaulesa e outrora Marco Macircnlio sozinho derrubou os
gauleses que em coluna escalavam o Capitoacutelio378
Nessa eacutepoca os nossos
ancestrais tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra
esses de agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de
galo-gregos No caso dos gratildeos ou dos animais as sementes natildeo podem
conservar sua iacutendole quando muda a propriedade da terra e do ceacuteu sob o qual
se desenvolvem Do mesmo modo os macedocircnios que antes possuiacuteram
Alexandria no Egito Selecircucia Babilocircnia e outras colocircnias espalhadas por
todo o mundo se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios Marselha
situada entre os gauleses tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos Quanto aos
tarentinos o que restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Tudo o
que eacute produzido em seu lugar de origem eacute mais digno quando introduzido
em outra terra da qual se nutre ele transforma sua natureza e se degenera
Portanto assim como voacutes matastes na fileira de Antiacuteoco agora matareis os
friacutegios que portam armas gaulesas voacutes vencedores e eles os vencidos
Receio mais que disso resulte uma gloacuteria escassa do que bastante luta O rei
Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Natildeo acreditais que apenas as
feras quando capturadas primeiro mantecircm aquela sua ferocidade selvagem
e em seguida domesticam-se quando por muito tempo satildeo alimentadas por
matildeos humanas O mesmo ocorre com a natureza dos homens quando sua
ferocidade se acalma ou acreditais esses serem iguais aos que foram seus
pais e antepassados Eles deixaram a paacutetria por causa da falta de terras
avanccedilaram pela duriacutessima regiatildeo da Iliacuteria depois percorreram a Peocircnia e a
Traacutecia e tendo lutado contra povos ferociacutessimos tomaram essas paragens
Essa terra que produz uma fartura de todas as coisas acolheu esses homens
endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo feacutertil com
ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham
quando chegaram se abrandou Por Heacutercules Voacutes homens de Marte379
deveis o quanto antes evitar e fugir da amenidade da Aacutesia Esses prazeres
estrangeiros tanto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o mesmo
pode ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes dos vizinhos
Felizmente acontece que embora os gauleses de forma alguma sejam fortes
perante voacutes todavia entre os gregos eles ainda possuem aquela mesma fama
com a qual chegaram outrora Voacutes vencedores tereis entre os aliados a
mesma gloacuteria da guerra como se tiveacutesseis vencido os gauleses dotados de
sua antiga disposiccedilatildeo de acircnimos (grifos nossos)
Sobre a migraccedilatildeo gaulesa para a Aacutesia Menor sem duacutevida Liacutevio usou Poliacutebio
como fonte (BRISCOE 2008 p 71) Todavia esse discurso de Macircnlio sem duacutevida foi
377
M is um vez Liacutevio se referiu os g uleses como ―g do cf V 48 p 179 em que eles morriam como
gado 378
Sobre a vitoacuteria de Macircnlio cf VII 10 p 182 e 183 Para a luta de Valeacuterio cf VII 26 p 185 a 187
Esse episoacutedio em que Marco Macircnlio derrubou os gauleses do Capitoacutelio se encontra em Ab Urb Cond V
47 379
Os romanos ligavam sua origem miacutetica a Marte pois consideravam que o deus da guerra era o pai dos
gecircmeos Rocircmulo e Remo Liacutevio usou essa designaccedilatildeo para acentuar ainda mais o caraacuteter belicoso das
legiotildees
192
uma criaccedilatildeo proacutepria de Liacutevio jaacute que Poliacutebio natildeo fez menccedilatildeo a essa fala (LUCE 1977
p 90) Na historiografia antiga as passagens com discursos eram uma importante
ferramenta que servia como meio de expressatildeo para descrever o estado da mente dos
personagens ou povos retratados Em Liacutevio esses discursos fundamentalmente
trabalhados na arte retoacuterica iam aleacutem no seu propoacutesito Na verdade muito aleacutem de
delinear os pensamentos dos indiviacuteduos para a audiecircncia que se encontrava dentro da
narrativa o foco principal de Liacutevio era endereccedilar esses discursos aos romanos de fora
da narrativa jaacute que o historiador acima de tudo buscava transmitir ao seu puacuteblico-alvo
exempla de virtudes e comportamentos a serem imitados (ou evitados) Liacutevio
geralmente preferia usar o discurso direto ao indireto de modo a natildeo interromper a
expressatildeo dos pensamentos e sentimentos da pessoa envolvida Seguindo seu preceito
de que a histoacuteria servia mais para comover do que para ser um relato pragmaacutetico dos
acontecimentos Liacutevio entatildeo buscou dar mais ecircnfase ao caraacuteter dramaacutetico dos discursos
do que utilizaacute-los como um meio de explicar uma situaccedilatildeo ou contexto histoacuterico
Lambert (1946 apud AILI 1982 p 1133) diz que em Ceacutesar acontecia o contraacuterio a
preferecircncia pelo discurso indireto estava diretamente ligada agrave questatildeo formal do
comentaacuterio Por isso o discurso era introduzido de forma abrupta justamente para
interromper a narrativa de modo a explicar uma situaccedilatildeo ou ajudar a caracterizar um
povo ou personagem380
Macircnlio no capiacutetulo acima comeccedilou seu discurso dizendo que os gauleses de
todos os povos que habitam a Aacutesia eram superiores pela sua fama na guerra e os
chamou de feroz naccedilatildeo (ferox natio)381
Not mos cert depreci ccedilatildeo nesse ―elogio agrave
fama beacutelica dos gauleses entre os povos da Aacutesia jaacute que eles tomaram lugar entre esse
povo muito paciacutefico (inter mitissimum genus hominum) Ora entre populaccedilotildees bastante
pacatas qualquer fama guerreira por menor que fosse se sobressairia Em seguida
temos uma lista de vaacuterios toacutepoi da representaccedilatildeo dos galos eles possuem corpos
enormes (procera corpora) cabelos longos e ruivos (promissae et rutilatae comae)
grandes escudos (uasta scuta) e espadas muito longas (praelongi gladii) Depois Liacutevio
descreveu o modo de agir deles antes de um confronto junto a isso tambeacutem o canto os
gritos e as danccedilas dos que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao
bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente
380
Sobre o papel dos discursos natildeo soacute na historiografia antiga mas tambeacutem especificamente em Ceacutesar cf
p 116 e 117 Quanto agrave preocupaccedilatildeo de Liacutevio em transmitir exempla agrave sua audiecircncia cf p 158 e 159 381
A ferocitas era o traccedilo essencial do baacuterbaro a esse respeito cf p 40 e 41 deste trabalho
193
preparado para causar terror382
Segundo Riggsby (2006 p 48) os relatos antigos
costumavam focar bastante no que parecia pitoresco ou exoacutetico pois isso tinha um
grande apelo em uma audiecircncia greco-romana e aqui isso natildeo seria diferente
Continuando a narrativa Liacutevio atraveacutes de Macircnlio disse que os gregos friacutegios e
caacuterios sentiam medo com esse espetaacuteculo exoacutetico Os romanos como jaacute travaram
contato com os gauleses muito antes dessa migraccedilatildeo para a Aacutesia Menor jaacute estavam
familiarizados natildeo soacute com esse costume mas tambeacutem com a inconstacircncia deles
(Romanis Gallici tumultus adsueti etiam uanitates notae sunt) Liacutevio escreveu que os
romanos se apavoraram apenas uma vez no desastre junto ao Aacutelia apenas porque era a
primeira vez que eles se encontraram frente a frente com os gauleses Depois disso e jaacute
ao longo de duzentos anos eles satildeo mortos ou fogem e os romanos triunfaram mais
sobre os galos do que qualquer outro povo Evidentemente em um discurso para
encorajar as tropas a terriacutevel derrota de Postuacutemio e as legiotildees emboscadas na floresta
Litana foram esquecidas De novo temos o reforccedilo da inconstacircncia dos galos se os
romanos resistirem ao primeiro ataque que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira
logo os braccedilos deles se enfraquecem e as armas caem devido ao suor e agrave fadiga 383
Assim por esse motivo e como igualmente os gauleses se enfraqueciam rapidamente
pelo sol poeira e sede os romanos nem precisavam empunhar as armas Entatildeo Camilo
reafirmou a superioridade romana dizendo natildeo somos experientes apenas nos
combates entre nossos exeacutercitos contra os exeacutercitos deles mas tambeacutem em luta de um
soacute homem contra outro A seguir ele mencionou os sucessos de Tito Macircnlio Marco
Valeacuterio e Marco Macircnlio Esses exemplos da virtude beacutelica serviam de inspiraccedilatildeo natildeo soacute
para as tropas que escutavam Macircnlio mas tambeacutem para os romanos que tinham contato
com a Ab urbe condita Os feitos desses heroacuteis foram ainda significativos pois nessa
eacutepoca eles tiveram contato com gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de
agora estatildeo degenerados miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos Liacutevio
relacionou essa perda da primitiva uirtus gaulesa com a migraccedilatildeo deles e o contato que
tiveram com os gregos com isso os gauleses a que se refere Macircnlio nesse discurso satildeo
mera sombra dos celtas de outrora384
Liacutevio entatildeo citou outros exemplos de como a
miscigenaccedilatildeo enfraqueceu as naccedilotildees dizendo que os macedocircnios que antes possuiacuteram
382
Liacutevio fez uma descriccedilatildeo dos gauleses bem parecida agrave de Diodoro Siacuteculo (V capiacutetulos 29 e 30) 383
Jaacute apareceram ao longo deste tabalho vaacuterios exemplos sobre a inconstacircncia dos voluacuteveis gauleses Cf
especialmente p 121 em que Ceacutesar narrou esse arrefecimento do iacutempeto guerreiro do gaulecircs que se
apavorou frente aos germanos 384
Natildeo deixa de ser irocircnico o fato de que Ceacutesar escreveu que os gauleses perderam sua uirtus justamente
pelo contato com os romanos (cf p 130)
194
um vasto impeacuterio se degeneraram em siacuterios partos e egiacutepcios O mesmo aconteceu com
Marselha que proacutexima aos celtas tomou muitos dos traccedilos dos vizinhos E quanto aos
tarentinos nada restou daquela dura e temiacutevel disciplina espartana Macircnlio com todos
esses argumentos deixou claro para as tropas que ao lutarem com um inimigo tatildeo
enfraquecido eles teriam uma gloacuteria escassa e para reforccedilar essa ideia ele disse que o
rei Aacutetalo muitas vezes os derrotou e os afugentou Se um rei heleniacutestico conseguia
vencer por vaacuterias vezes esses gauleses degenerados para os romanos entatildeo essa tarefa
seria bem tranquila pois haacute tempos estavam acostumados com galos de verdade
Na sequecircncia temos mais detalhes sobre a emigraccedilatildeo dos gauleses e a falta de
terra como sendo a motivaccedilatildeo principal desse ocorrido Ao chegarem a uma nova regiatildeo
com um campo tatildeo feacutertil (uberrimo agro) com ceacuteu muito ameno (mitissimo caelo) e
com vizinhos paciacuteficos eles perderam toda aquela rudeza que tinham quando
chegaram Nota-se o uso dos superlativos uberrimo agro e mitissimo caelo para
salientar ainda mais as benesses dessa aacuterea Por conseguinte foram essas favoraacuteveis
caracteriacutesticas geograacuteficas e climaacuteticas que acalmaram os gauleses Aleacutem disso esse
enfraquecimento tambeacutem podia ocorrer atraveacutes do contato com os haacutebitos e costumes
dos vizinhos Temos um novo alerta para os soldados da mesma forma que as
amenidades da Aacutesia e o conviacutevio com vizinhos paciacuteficos degeneraram os galos o
mesmo poderia acontecer com os romanos Por fim o discurso se encerra com mais um
exemplo dessa vez endereccedilado aos aliados os romanos superando os gauleses teriam
entre os aliados a mesma gloacuteria da guerra Essa luta mais do que mero sucesso militar
serviria tambeacutem como ferramenta importante para granjear o respeito das outras naccedilotildees
195
36 ndash Pliacutenio o Velho
361 ndash Biografia e breve resumo da Historia naturalis
O nome completo de Pliacutenio era Caio Pliacutenio Segundo ndash o tiacutetulo de ―Velho (ou
―Anciatildeo) foi dot do depois p r distingui-lo do seu sobrinho Pliacutenio o Jovem Pliacutenio
nasceu em Como por volta do ano 23 dC membro de uma abastada famiacutelia da ordem
equestre Em sua juventude comeccedilou sua carreira militar na Germacircnia entre os anos de
46 e 58 dC Segundo Conte (1999 p 497) a atividade nessa regiatildeo deu a Pliacutenio a ideia
de compor uma obra histoacuterica em vinte livros a Bella Germaniae que gozou de certo
sucesso e teria sido usada por Taacutecito como fonte para sua Germania Apoacutes a morte do
imperador Claacuteudio Pliacutenio retirou-se da vida puacuteblica devido ao conturbado periacuteodo de
Nero com a estabilidade poliacutetica do governo de Vespasiano Pliacutenio voltou a ter intensa
carreira como procurador imperial entre os anos de 70 e 76 dC e posteriormente
tornou-se conselheiro de Vespasiano e Tito (MURPHY 2004 p 4) Apesar de se
manter bastante ocupado com a administraccedilatildeo do impeacuterio Pliacutenio dedicou-se a escrever
vaacuterios trabalhos literaacuterios como a biografia de seu patrono Pompocircnio Segundo um
livro de teacutecnica de combate de cavalaria (De iaculatione equestri) um tratado sobre a
liacutengua latina (De dubio sermone) sobre a educaccedilatildeo do orador (Studiosi) e uma histoacuteria
romana do governo Juacutelio-Claacuteudio (A fine Aufidi Bassi) Infelizmente nenhuma dessas
obras citadas nos chegou apenas sobreviveu a Historia naturalis escrita entre 77 e 78
dC e dedicada ao novo imperador Tito Pliacutenio faleceu em 79 dC na erupccedilatildeo do
Vesuacutevio que arrasou Pompeia e Herculano385
De todos os trabalhos de Pliacutenio apenas a Historia naturalis nos chegou de forma
satisfatoacuteria Composta em trinta e sete livros Pliacutenio escreveu uma obra que por abordar
vaacuterios temas diferentes geralmente foi classificada como enciclopeacutedia Temos no livro
I a exposiccedilatildeo de Pliacutenio sobre os objetivos de sua obra No livro II ele falou dos astros e
dos elementos da natureza Nos quatro livros seguintes (III-VI) de caraacuteter geograacutefico
Pliacutenio descreveu a paisagem de vaacuterias regiotildees como a Europa o mundo helecircnico o
oriente proacuteximo e o extremo oriente O livro VII de caraacuteter etnograacutefico foi consagrado
385
Retiramos as informaccedilotildees biograacuteficas de Pliacutenio do livro de Conte (1999 p 497 e 498) Para as
informaccedilotildees sobre as obras perdidas de Pliacutenio usamos como referecircncia Murphy (2004 p 17) Para mais
informaccedilotildees sobre a vida de Pliacutenio e suas obras sob o prisma de Pliacutenio o Jovem cf o artigo de
Henderson (2002) Quanto agrave morte do erudito Pliacutenio o Jovem narrou esse acontecimento em duas cartas
endereccediladas a Taacutecito (Ep VI 16 e VI 20)
196
ao estudo das caracteriacutesticas do ser humano contendo vaacuterias narrativas fantaacutesticas de
humanos que possuiacuteam corpos totalmente fora do natural Os quatro livros seguintes
(VIII-XI) foram dedicados agrave descriccedilatildeo dos animais dezesseis livros (XII-XXVII) agrave
descriccedilatildeo dos vegetais principalmente das plantas medicinais cinco livros (XXVIII-
XXXII) dedicados ao estudo dos medicamentos natildeo vegetais e os dois uacuteltimos livros
satildeo sobre as rochas e pedras preciosas (XXXVI-XXXVII)
O tiacutetulo da Historia naturalis deveria ser traduzido mais como Conhecimento da
Natureza devido ao proacuteprio sentido do termo historia em grego O relato da morte de
Pliacutenio ndash narrado por Taacutecito em duas cartas (VI 16 e 20) ndash contribuiu para a fama de
cientista exemplar jaacute que ele perdeu a vida tentando observar o fenocircmeno natural da
erupccedilatildeo do Vesuacutevio Contudo Conte (1999 p 499) salienta
It should be said however th t Plinylsquos conception of science h s little of
experimental or empiric and that according to the account of the Younger
Pliny exposed himself to danger in order to bring aid to some citizens
threatened by the eruption The virtue that emerges from this noble death is
thus philanthropy and the spirit of service rather than thirst for knowledge
just the virtue that drove Pliny to the immense undertaking of the Naturalis
Historia a work intended in its entirely to be of service to mankind386
Conte (1999 p 500 e 501) considera que a Historia naturalis com sua vasta
apresentaccedilatildeo de vaacuterios temas representa a completa realizaccedilatildeo da tendecircncia cultural
romana de tratados ndash longos ou curtos ndash que sintetizavam vaacuterias abordagens como as
obras de Varratildeo Vitruacutevio Columela e posteriormente a Pliacutenio Quintiliano
362 ndash A enciclopeacutedia como gecircnero literaacuterio e instrumento de poder
A enciclopeacutedia como o conjunto de conhecimento compilado em uma soacute obra e
com a finalidade de ser consultada de forma independente foi uma inovaccedilatildeo romana
Embora os gregos tivessem escrito obras de encyclios paideia (daiacute o termo portuguecircs
enciclopeacutedia) na verdade esse tipo de composiccedilatildeo era mais dedicado a abarcar assuntos
de um mesmo tema como a retoacuterica a medicina etc387
Os gregos jamais buscaram
confinar todo o conhecimento em apenas um livro ou obra esse tipo de composiccedilatildeo
386
―Deve-se dizer contudo que a concepccedilatildeo de ciecircncia de Pliacutenio era pouco experimental ou empiacuterica e
que de acordo com o relato do Jovem Pliacutenio expocircs a si mesmo ao perigo de modo a ajudar alguns
cidadatildeos ameaccedilados pela erupccedilatildeo A virtude que emerge dessa nobre morte eacute portanto a filantropia e o
espiacuterito de serviccedilo muito mais do que a sede de conhecimento foi essa virtude que levou Pliacutenio a imensa
tarefa da Histoacuteria natural um trabalho feito inteir mente serviccedilo d hum nid de 387
O termo em grego encyclios paideia signific v ―educ ccedilatildeo ger l
197
floresceu em Roma e se justificou pela consolidaccedilatildeo do proacuteprio impeacuterio que cobria um
vasto territoacuterio e abarcava vaacuterias naccedilotildees e culturas foi a ambiccedilatildeo de alcanccedilar esses
horizontes que tornou possiacutevel esse tipo de narrativa (MURPHY 2004 p 195) As
enciclopeacutedias anteriores a Pliacutenio de que temos notiacutecia foram as Disciplinae
(Disciplinas) escritas por Marco Terecircncio Varratildeo no final da repuacuteblica romana e
tambeacutem as Artes de A Corneacutelio Celso datadas do principado de Tibeacuterio de ambas
temos apenas poucos fragmentos388
Contudo temos diferenccedilas entre o que se pode entender por enciclopeacutedia na
Antiguidade e atualmente No caso da Historia naturalis desde a sua concepccedilatildeo o
propoacutesito dessa obra foi o de servir como um material de consulta isso justifica o
grande tamanho do texto e a sua divisatildeo em temas (geografia botacircnica etc) Conte
(1999 p 502) lembra que ateacute a criaccedilatildeo das enciclopeacutedias modernas (com seu conteuacutedo
dividido por ordem alfabeacutetica e instruccedilotildees para facilitar o acesso agrave informaccedilatildeo) a
Historia naturalis foi um dos trabalhos mais bem organizados no sentido de facilitar
essa consulta Entretanto haacute uma discussatildeo acerca de se a Historia naturalis deve ou
natildeo ser classificada como enciclopeacutedia jaacute que esse termo soa anacrocircnico por causa do
uso atual que fazemos desse tipo de produccedilatildeo De fato a enciclopeacutedia eacute uma obra
autocircnoma que encapsula (ou busca encapsular) o total do conhecimento universal
organizando-o de forma a preservar esse conhecimento e o fazer acessiacutevel a uma grande
audiecircncia Uma observaccedilatildeo geral nos faz perceber que a Historia naturalis eacute bastante
diferente em termos de organizaccedilatildeo taxonomias e referenciais teoacutericos do que hoje
entendemos por enciclopeacutedia389
Assim neste trabalho preferimos considerar a obra de
Pliacutenio como erudiccedilatildeo Embora a Historia naturalis assim como uma enciclopeacutedia atual
busque preservar e abarcar o corpo do saber utilizando uma sistematizaccedilatildeo do
conhecimento todavia ela natildeo foi feita para ser simplesmente lida de forma universal
Como Murphy (2004 p 12) destaca essa composiccedilatildeo foi elaborada para a leitura de um
puacuteblico especiacutefico e sua forma foi feita de modo a ajudar o leitor a ter uma visatildeo de um
assunto e de isolaacute-lo de outros objetos Aleacutem disso o aspecto cientiacutefico da Historia
naturalis eacute muito mais produto de uma tradiccedilatildeo literaacuteria do que observaccedilatildeo direta de
388
Murphy (2004 p 196) fornece mais detalhes sobre essas enciclopeacutedias de Varratildeo e Celso 389
Murphy (2004 p 12 e ss) discute melhor o conceito de enciclopeacutedia (encyclios paideia) em contexto
latino e grego sendo que esse uacuteltimo era bastante diferente da concepccedilatildeo de enciclopeacutedia que temos hoje
em dia
198
Pliacutenio Ao inveacutes de experimentar ou analisar o que estava ao seu alcance Pliacutenio preferiu
recolher e citar descriccedilotildees de inuacutemeros autores anteriores (MURPHY 2004 p 5)390
As enciclopeacutedias tanto as atuais quanto as antigas mais do que depositaacuterios do
saber serviam tambeacutem como importantes ferramentas para se perceber como a cultura
de um povo transparecia Como Murphy (2004 p 1) define a estrutura de uma
enciclopeacutedia e suas estrateacutegias praacuteticas para classificar o conhecimento deixam entrever
as concepccedilotildees da cultura a que pertence o autor desse trabalho Pelo simples fato de
incluir ou excluir uma informaccedilatildeo podemos perceber o que era considerado importante
ou natildeo ou o que era de conhecimento oacutebvio para a audiecircncia dessas composiccedilotildees
Tambeacutem eacute possiacutevel notar que a enciclopeacutedia (e a erudiccedilatildeo) tinha uma funccedilatildeo poliacutetica e
cultural ao se repetir e apresentar informaccedilotildees fundamentais de uma sociedade temos
necessariamente a existecircncia de uma comunidade de leitores que partilhavam de uma
mesma identidade unida pela aceitaccedilatildeo de certos conceitos elementares de valor
cultural (MURPHY 2004 p 16) Assim a funccedilatildeo da enciclopeacutedia era estabelecer a
identidade de seus leitores como participantes de uma mesma cultura No caso da
Historia naturalis mais do que o conhecimento fornecido podemos entrever como os
romanos do seacuteculo I dC percebiam o mundo391
Por conseguinte aleacutem de estabelecer uma identidade cultural com seu puacuteblico
notamos que o caraacuteter poliacutetico nas obras de Pliacutenio era muito forte devido agraves proacuteprias
funccedilotildees administrativas exercidas por ele tanto em Roma junto aos imperadores quanto
nos confins das proviacutencias Como lembra Murphy (2004 p 5) Pliacutenio observou de perto
como o governo central se organizava e se transmitia em vastas distacircncias ele tambeacutem
viu como o conhecimento da periferia era usado localmente e tambeacutem como esse se
relacionava com Roma A Historia naturalis portanto refletiu como o domiacutenio romano
uniu o mundo e tornou possiacutevel a sua observaccedilatildeo A respeito do tratamento dos povos
estrangeiros na Historia naturalis temos vaacuterias passagens etnograacuteficas mas elas natildeo
possuem uma sequecircncia particular ou conexotildees loacutegicas entre si satildeo trechos pontuais
390
Murphy (2004 p 6 e 11) detalha quais foram as inuacutemeras fontes de Pliacutenio e faz uma discussatildeo sobre
como esses autores afetaram o trabalho do autor latino 391
A discussatildeo aqui se aprofunda no sentido de que falamos de uma obra escrita e dirigida a uma
pequena elite letrada Devemos lembrar tambeacutem que o proacuteprio Pliacutenio foi um autor do centro do poder
romano e que exerceu vaacuterios cargos puacuteblicos tanto na Urbe quanto nas proviacutencias e isso teve impacto em
sua composiccedilatildeo erudita Por fim pontuamos que Pliacutenio utilizou vaacuterias fontes gregas e latinas para a sua
Histoacuteria natural e por isso mais do que a percepccedilatildeo de mundo dos romanos do seacuteculo I dC podemos
notar ainda como as fontes ndash ou de forma geral a literatura claacutessica ndash percebiam esse mesmo mundo Por
essas raacutepidas questotildees levantadas nos concentraremos aqui em perceber como essas percepccedilotildees foram
consolidadas a respeito dos gauleses que eacute o cerne deste trabalho
199
que aparecem ao longo de toda a obra (MURPHY 2004 P 87) O proacuteprio estilo da
enciclopeacutedia natildeo idealiza muito o estrangeiro e a Historia naturalis tambeacutem natildeo faz
isso De fato segundo Murphy (2004 p 194) a Historia naturalis era um instrumento
de comunicaccedilatildeo de poder o objetivo de elencar o conhecimento de todos os campos da
dominaccedilatildeo romana e apresentar o conteuacutedo para ser apreciado por uma elite letrada
tudo isso servia como o respaldo textual de um vasto impeacuterio conhecido e governado Eacute
interessante perceber como Pliacutenio ao se empenhar em deixar registrados em sua obra
inuacutemeros saberes fez exatamente o oposto dos gauleses que de forma alguma
confiavam seus importantes preceitos agrave escrita por medo de que eles ficassem
acessiacuteveis a qualquer um Ceacutesar sobre esse comportamento do gaulecircs registrou (BGall
VI 14)
Magnum ibi numerum uersuum ediscere dicuntur Itaque annos non nulli XX
in disciplina permanent Neque fas esse existimant ea litteris mandare cum
in reliquis fere rebus publicis priuatisque rationibus graecis litteris utantur
Id mihi duabus de causis instituisse uidentur quod neque in uulgum
disciplinam efferri uelint neque eos qui discunt litteris confisos minus
memoriae studere quod fere plerisque accidit ut praesidio litterarum
diligentiam in perdiscendo ac memoriam remittant
Eles natildeo consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como geralmente
nos demais assuntos ndash e quanto aos registros puacuteblicos e privados utilizam-se
das letras gregas Parecem-me tecirc-lo assim determinado por dois motivos por
natildeo querer que seu saber passe ao vulgo nem que aqueles que aprendem
confiando nas letras se dediquem menos a memorizar isso de ordinaacuterio
sucede agrave maioria de modo que com o respaldo da escrita afrouxem-se a
dedicaccedilatildeo e a memoacuteria no processo de aprendizado
A Historia naturalis portanto natildeo tinha apenas o objetivo de instruir ou
informar mas tambeacutem o de colocar o mundo natural ao alcance do leitor demonstrando
e demarcando as fronteiras do conhecimento desse mundo conhecido (MURPHY 2004
p 211) Ela tambeacutem natildeo tinha propoacutesito didaacutetico nem visava a ser um guia para uma
accedilatildeo concreta ndash fosse ela militar diplomaacutetica ou administrativa (MURPHY 2004 p
213)
363 ndash Aspectos gerais e anaacutelise de trechos da Historia naturalis
Todas as etnografias que aparecem na Historia naturalis podem ser resumidas
nas seguintes categorias descriccedilatildeo dos limites do conhecimento geograacutefico descriccedilatildeo
dos extremos do corpo humano ilustraccedilatildeo da interaccedilatildeo do homem com os produtos da
200
natureza e comportamentos econocircmicos natildeo romanos que por contraste definem o
comportamento romano (MURPHY 2004 p 213) Pliacutenio natildeo se propotildee a narrar os
costumes haacutebitos e cultura de outros povos como veremos mais adiante392
As naccedilotildees
escolhidas por Pliacutenio para essas passagens etnograacuteficas geralmente eram as que
habitavam nos limites do mundo conhecido e que despertavam a curiosidade da
audiecircncia como os etiacuteopes e os indianos mas mesmo essas passagens se limitavam a
descriccedilotildees exageradas dos corpos humanos dessas naccedilotildees ou a outros aspectos
maravilhosos e exoacuteticos Segundo Yasmin Syed (In HARRISON 2005 p 363) essa
passagem da etnografia indiana servia mais para Pliacutenio marcar os limites entre os
humanos normais (que habitavam o mundo conhecido e governado por Roma) e as
raccedilas consideradas monstruosas deformadas ou com caracteriacutesticas sobrehumanas que
estavam aleacutem desse mundo No caso dos gauleses Pliacutenio fez poucas consideraccedilotildees
sobre eles jaacute que na segunda metade do seacuteculo I dC as proviacutencias dessa regiatildeo se
encontravam estabelecidas e inseridas na cultura romana e portanto eles natildeo eram mais
alvo do interesse do puacuteblico
Os livros III e IV da Historia naturalis satildeo dedicados a narrar a geografia do
mundo conhecido desde as colunas de Heacutercules (estreito de Gibraltar) passando pela
Europa mediterracircnea fornecendo detalhes do relevo e das cidades da Gaacutelia Hispacircnia e
outras dessas aacutereas O primeiro trecho que destacamos aqui eacute o III 5 (4)
V (4) ndash 31 Narbonensis prouincia appellatur pars Galliarum quae interno
mari adluitur Bracata antea dicta amne Varo ab Italia discreta Alpiumque
uel saluberrimis Romano imperio iugis a reliqua uero Gallia latere
septentrionali montibus Cebenna et Iuribus agrorum cultu uirorum
morumque dignatione amplitudine opum nulli prouinciarum postferenda
breuiterque Italia uerius quam prouincia 32 In ora regio Sordonum intusque
Consuaranorum flumina Tecum Vernodubrum oppida Illiberis magnae
quondam urbis tenue uestigium Ruscino Latinorum flumen Atax e Pyrenaeo
Rubrensem permeans lacum Narbo Martius Decumanorum colonia XII p a
mari distans flumina Araris Liria Oppida de cetero rara praeiacentibus
stagnis 33 Agatha quondam Massiliensium et regio Volcarum Tectosagum
atque ubi Rhoda Rhodiorum fuit unde dictus multo Galliarum fertilissimus
Rhodanus amnis ex Alpibus se rapiens per Lemannum lacum segnemque
deferens Ararim nec minus se ipso torrentes Isaram et Druentiam Libica
appellantur duo eius ora modica ex his alterum Hispaniense alterum
Metapinum tertium idemque amplissimum Massalioticum Sunt auctores et
Heracleam oppidum in ostio Rhodani fuisse 34 Vltra fossae ex Rhodano C
Mari opere et nomine insignes stagnum Mastromela oppidum Maritima
Auaticorum superque Campi Lapidei Herculis proeliorum memoria regio
Anatiliorum et intus Dexiuatium Cauarumque rursus a mari Tricorium et
intus Tritollorum Vocontiorumque et Segouellaunorum mox Allobrogum At
in ora Massilia Graecorum Phocaeensium foederata promunturium Zao
Citharista portus regio Camactulicorum dein Suelteri supraque Verucini
392
Abordaremos sobre esse aspecto na anaacutelise do trecho da HN III 6 (5) na p 204-205
201
35 In ora autem Athenopolis Massiliensium Forum Iuli Octauanorum
colonia quae Pacensis appellatur et Classica amnis nomine Argenteus
regio Oxubiorum Ligaunorumque super quos Suebri Quariates Adunicates
At in ora oppidum Latinum Antipolis regio Deciatium amnis Varus ex
Alpium monte Caenia profusus 36 In mediterraneo coloniae Arelate
Sextanorum Baeterrae Septimanorum Arausio Secundanorum in agro
Cauarum Valentia Vienna Allobrogum Oppida Latina Aquae Sextiae
Salluuiorum Auennio Cauarum Apta Iulia Vulgientium Alebaece Reiorum
Apollinarium Alba Heluorum Augusta Tricastinorum Anatilia Aerea
Bormani Comani Cabellio Carcasum Volcarum Tectosagum Cessero
Carbantorate Meminorum Caenicenses Cambolectri qui Atlantici
cognominantur 37 Forum Voconi Glanum Libii Luteuani qui et
Foroneronienses Nemausum Arecomicorum Piscinae Ruteni Samnagenses
Tolosani Tectosagum Aquitaniae contermini Tasgoduni Tarusconienses
Vmbranici Vocontiorum ciuitatis foederatae duo capita Vasio et Lucus
Augusti oppida uero ignobilia XVIIII sicut XXIIII Nemausiensibus
adtributa Adiecit formulae Galba Imperator ex Inalpinis Auanticos atque
Bodionticos quorum oppidum Dinia Longitudinem prouinciae Narbonensis
CCCLXX p Agrippa tradit latitudinem CCXLVIII
V (4) ndash 31 Eacute chamada de proviacutencia Narbonense a regiatildeo das Gaacutelias que eacute
banhada pelo mar interno393
ntes conhecid por ―Gaacuteli de c lccedil s 394
Ela
estaacute separada da Itaacutelia pelo rio Var e pelos cumes dos Alpes ndash que tecircm sido
muitiacutessimo vantajosos para o impeacuterio romano Pelo lado setentrional ela se
divide do resto da Gaacutelia pelos montes das Cevenas e do Jura395
Devido agrave
cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e pela
amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada
proviacutencia na verdade ela eacute mais Itaacutelia que proviacutencia 32 Pelos litorais haacute a
regiatildeo dos sordones396
e mais adentro o domiacutenio dos consuaranos397
os rios
Tech e Verdouble as povoaccedilotildees dos iliberris398
ndash um pequeno vestiacutegio do
que um dia fora uma grande cidade ndash e Ruscino399
dos latinos o rio Aude
que desce dos Pirineus e atravessa o lago Rubrense400
Narbo Maacutercio401
ndash
colocircnia da deacutecima legiatildeo402
distante doze milhas do mar os rios Aacuterar403
e
Liria404
De resto as cidades satildeo raras devido aos pacircntanos que se situam
proacuteximos 33 Haacute a cidade de Aacutegata405
que um dia foi dos marselheses o
territoacuterio dos volcos tectoacutesagos406
e ainda o local onde existiu a colocircnia Roda
dos roacutedios ndash de onde vem o nome do rio Roacutedano de longe o mais copioso
393
Outra denominaccedilatildeo do mar Mediterracircneo 394
Ciacutecero se referiu pejorativamente aos gauleses dizendo que eles usavam saiotes e calccedilas (cf p 72) 395
Pliacutenio citou muitas localidades rios e montanhas na Histoacuteria Natural e isso acarreta uma dificuldade
para a traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees Por isso sempre que possiacutevel manteremos o nome portuguecircs (ou no caso
francecircs) dessas paragens e colocaremos em nota de rodapeacute o nome atual de modo que fique mais faacutecil ao
leitor deste trabalho localizar essas localidades em um mapa O mesmo tambeacutem seraacute feito sobre as naccedilotildees
mencionadas No caso de lugares (ou naccedilotildees) em que natildeo haacute um consenso ou que natildeo eacute possiacutevel saber a
atual correspondecircncia faremos somente a transliteraccedilatildeo do nome latino para o portuguecircs Para essas notas
utilizamos como referecircncia a traduccedilatildeo da Histoacuteria natural public d pel Gredos e o site ―Digit l Atl s of
the Rom n empire el bor do pelo dep rt mento de rqueologi e histoacuteri ntig d Universid de Lund
(Sueacutecia) disponiacutevel em lt httpdarehtluse gt 396
Eles habitavam o Roussillon perto dos Pirineus na atual Franccedila 397
Conserans no oeste do Deacutepartement de l Arrieacutege tambeacutem na Franccedila 398
atual Elne 399
Chacircteau-Roussillon 400
Etangs de Bages et de Sigean 401
Narbonne 402
Pliacutenio aqui seguiu a divisatildeo das colocircnias militares estabelecidas por Ceacutesar cf p 152 403
Rio Heacuterault 404
Lez 405
Agde 406
Citados por Ceacutesar no BGall VI 24 (p 128)
202
das Gaacutelias Eacute esse rio que desde os Alpes passa com forccedila pelo lago Lemano
e se mistura ao vagaroso Aacuterar e agraves torrentes dos rios Isara407
e Druecircncia408
natildeo menos impetuosas que ele mesmo As suas duas embocaduras menores
satildeo ch m d s de ―liacutebic s sendo um del s hisp niense e outr met pin
a terceira embocadura que eacute a maior eacute chamada de massaliota Haacute autores
que dizem ter existido uma cidade chamada Heracleia na foz do Roacutedano409
34 Mais aleacutem estatildeo os canais que saem do Roacutedano obra de Caio Maacuterio e
conhecidos pelo seu nome o lago Mastromela a cidade Mariacutetima dos
avaacuteticos e acima as Planiacutecies Pedregosas uma lembranccedila dos combates de
Heacutercules Tem-se a regiatildeo dos anatiacutelios e no interior a regiatildeo dos dexivates e
dos cavaros de novo junto ao mar a aacuterea dos tricoacuterios e no interior estatildeo os
tritolos os vococircncios e os segovelaunos depois desses os aloacutebroges410
No
litoral haacute Marselha dos gregos foacutecios e nossa aliada411
o cabo Zao o porto
de Citarista a regiatildeo dos camactuacutelicos depois estatildeo os suelteros e acima os
verucinos 35 Ainda no litoral haacute Atenoacutepolis dos marselheses o Foacuterum de
Juacutelio colocircni d oit v legiatildeo que t mbeacutem eacute ch m d de ―P cense e
―Claacutessic 412
haacute um rio de nome Argecircnteo413
a regiatildeo dos oxuacutebios e dos
ligaunos e acima desses os suebros os quariates e os adunicates No litoral
haacute a cidade latina414
de Antiacutepolis415
a regiatildeo dos deciatos e o rio Var que
desce do monte Cenia dos Alpes416
36 No interior haacute as colocircnias de
Arelate417
da sexta legiatildeo Beterras418
da seacutetima e Araacuteusio419
da segunda420
No territoacuterio cavaro estaacute Valencia421
e no territoacuterio dos aloacutebroges Viena422
Depois as cidades latinas de Aacutegua Sexta423
(no territoacuterio) dos saluacutevios424
Avecircnio425
dos cavaros Apta Juacutelia426
dos vulgientes Alebece427
dos reios
apolinaacuterios Alba dos heacutelvios Augusta dos tricastinos Anatiacutelia Aerea428
e
ainda os bormanos os comanos a povoaccedilatildeo de Cabeacutelio429
Carcaso430
dos
407
Isegravere 408
Durance 409
Segundo o dicionaacuterio de Ernesto Faria Heracleia era o nome dado agraves cidades fundadas por Heacuteracles
contudo essa cidade mencionada na Franccedila natildeo apareceu em nenhum outro autor da antiguidade e o
proacuteprio Pliacutenio duvida de sua existecircncia 410
Os aloacutebroges jaacute apareceram algumas vezes ao longo desta pesquisa Foi essa naccedilatildeo que acusou Fonteio
de maacute gestatildeo no governo da Gaacutelia e representada de forma tatildeo desrespeitosa no Pro Fonteio de Ciacutecero
(cf p 68 e ss) Os mesmos aloacutebroges vatildeo ser elogiados por Ciacutecero jaacute que denunciaram a conjuraccedilatildeo de
Catilina (cf p 75) 411
Nota-se que na eacutepoca de Pliacutenio Marselha voltou a ser aliada dos romanos Ceacutesar tinha rebaixado o
status da cidade durante a guerra civil com Pompeu (cf p 152) 412
Forum Iulii eacute a atual Freacutejus o nome Pacensis deve ter sido dado por causa de algum tratado de paz
feita com os habitantes locais Jaacute o termo Classica se justifica pelo fato de uma frota naval que ficou
estacionada por laacute a mando de Augusto 413
Argens 414
Ou seja possuidora de direito latino 415
Antibes 416
Monte Cemelione 417
Arles 418
Beziers 419
Orange 420
Cf p 152 sobre essas colocircnias militares 421
Valence 422
Vienne 423
Aix 424
Foi essa naccedilatildeo que Liacutevio erroneamente chamou de saacutelvios (cf nota 325 p 163) 425
Avignon 426
Apt 427
Riez 428
Eacuterea 429
Cavaillon 430
Carcassone
203
volcos tectoacutesagos Cessero Carbantorate431
dos meminos os cenicenses os
c mbolectros que satildeo ch m dos de ― tlacircnticos 37 Foacuterum Vocono Glano
os liacutebios os lutevanos432
tambeacutem conhecidos como foroneronienses
Nemauso433
dos arecocircmicos Piscinas434
os rutenos os samnagenses os
tolosanos tectoacutesagos vizinhos agrave Aquitacircnia os tasgodunos os tarusconienses
os umbracircnicos as duas capitais do domiacutenio aliado dos vococircncios Vaacutesio435
e
Luco de Augusto Na verdade haacute tambeacutem dezenove cidades de pouca
importacircncia assim como outras vinte e quatro pertencentes aos nemaacuteusios O
imperador Galba acrescentou a essa categoria dentre os habitantes dos Alpes
os avacircnticos e os bodiocircnticos cuja cidade eacute Diacutenia436
Segundo Agripa a
proviacutencia Narbonense tem trezentas e setenta milhas de comprimento e
duzentas e quarenta e oito milhas de largura (grifos nossos)
Nesse capiacutetulo temos a descriccedilatildeo da proviacutencia da Gaacutelia Narbonense Pliacutenio
escreveu que ―devido agrave cultura dos seus campos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e
pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada
proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci (Italia uerius quam prouincia)
Um pouco mais agrave frente em III 5 32 temos que Narbo Maacutercio foi colocircnia da deacutecima
legiatildeo Se na eacutepoca de Ceacutesar essa cidade ficou conhecida por ser o local escolhido para
abrigar esse destacamento militar na eacutepoca de Pliacutenio vemos que Narbonne jaacute gozava de
um status iacutempar sendo considerada por um autor latino como sendo parte da proacutepria
Itaacutelia De fato Narbonne influenciada pela Greacutecia desde os seus primoacuterdios possuidora
de um clima parecido com o da Itaacutelia e devido a sua alianccedila antiga com Roma tornou
possiacutevel esse elogio
Como Carey (2003 p 34) lembra dentro dessas listas de cidades e naccedilotildees tudo
eacute definido de acordo com o relacionamento desses pontos com Roma Assim no sect35 a
cidade de Antiacutepolis eacute mencionada como possuidora do direito latino Especialmente no
sect36 temos as menccedilotildees agraves cidades de Arelate (colocircnia da sexta legiatildeo) Beterras (da
seacutetima) e Araacuteusio (da segunda) Ainda segundo Carey (2003 p 34) taxonomia e
impeacuterio portanto se tornam uma coisa soacute no relato de Pliacutenio e o proacuteprio processo de
listar eacute igual agrave conquista Isso tambeacutem justifica o fato de Pliacutenio ter escrito no sect37 que haacute
―t mbeacutem dezenove cid des de pouc importacircnci ssim como outr s vinte e qu tro
pertencentes os nemaacuteusios ou sej cid des de pouc importacircnci p r Rom e que
natildeo se enquadram na catalogaccedilatildeo da administraccedilatildeo imperial437
431
Carpentras 432
Da atual Lodegraveve 433
Nicircmes 434
Peacutezenas 435
Vaison 436
Digne 437
Carey (2003 p 34-36) aprofunda essa discussatildeo sobre a questatildeo do que era incluiacutedo (ou excluiacutedo)
desses cataacutelogos e como isso se relacionava agrave poliacutetica de conquista romana durante a eacutepoca de Pliacutenio
204
Em obras de caraacuteter enciclopeacutedico como a proacutepria Historia naturalis ou a
Geografia de Estrabatildeo eacute possiacutevel ver como o avanccedilo do impeacuterio romano levou a uma
espeacutecie de ―inventaacuterio do mundo dos seus povos e costumes ssim ―conhecer o mundo
habitado era uma condiccedilatildeo para dominaacute-lo e vice vers (GUARINELLO 2014 p 307)
Nos livros III a VI da Historia naturalis o objetivo de Pliacutenio foi o de fazer uma pesquisa
sobre o orbis terrarum (o mundo conhecido) e temos a completa enumeraccedilatildeo das suas
partes (MURPHY 2004 P 129)438
Essas catalogaccedilotildees de uma regiatildeo visavam a dar ao
leitor um panorama geral da aacuterea em questatildeo isso ocorria muito em obras de retoacuterica e
historiografia antiga e tais descriccedilotildees geograacuteficas tinham implicaccedilotildees poliacuteticas
sobretudo em termos de estabelecimento de impeacuterio e identidade cultural
Nos capiacutetulos iniciais do livro III Pliacutenio descreveu a Europa desde o oceano
Atlacircntico (III 2) passando pela Beacutetica (III 3) Hispacircnia Citerior (III 4) e a Narbonense
(III 5) citada no trecho acima Notamos que Pliacutenio foi aproximando sua descriccedilatildeo
geograacutefica ateacute o que ele considerava como o centro do continente europeu ndash de fato
apoacutes a descriccedilatildeo da Gaacutelia Narbonense temos a exposiccedilatildeo da proacutepria Itaacutelia Assim temos
na Historia naturalis a passagem de III 6 (5)
VI (5) ndash 38 Italia dehinc primique eius Ligures mox Etruria Vmbria
Latium ibi Tiberina ostia et Roma terrarum caput XVI p interuallo a mari
Volscum postea litus et Campaniae Picentinum inde ac Lucanum
Bruttiumque quo longissime in meridiem ab Alpium paene lunatis iugis in
maria excurrit Italia Ab eo Graeciae ora mox Salentini Poeduculi Apuli
Peligni Frentani Marrucini Vestini Sabini Picentes Galli Vmbri Tusci
Veneti Carni Iapudes Histri Liburni 39 Nec ignoro ingrati ac segnis animi
existimari posse merito si obiter atque in transcursu ad hunc modum dicatur
terra omnium terrarum alumna eadem et parens numine deum electa quae
caelum ipsum clarius faceret sparsa congregaret imperia ritusque molliret et
tot populorum discordes ferasque linguas sermonis commercio contraheret
ad conloquia et humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum
gentium in toto orbe patria fieret 40 Sed quid agam Tanta nobilitas
omnium locorum quos quis attigerit tanta rerum singularum populorumque
claritas tenet Vrbs Roma uel sola in ea et digna iam tam festa ceruice facies
quo tandem narrari debet opere Qualiter Campaniae ora per se felixque illa
ac beata amoenitas ut palam sit uno in loco gaudentis opus esse naturae 41
Iam uero tota ea uitalis ac perennis salubritas talis caeli temperies tam
fertiles campi tam aprici colles tam innoxii saltus tam opaca nemora tam
munifica siluarum genera tot montium adflatus tanta frugum uitiumque et
olearum fertilitas tam nobilia pecudi uellera tam opima tauris colla tot
lacus tot amnium fontiumque ubertas totam eam perfundens tot maria
portus gremiumque terrarum commercio patens undique et tamquam
iuuandos ad mortales ipsa auide in maria procurrens 42 Neque ingenia
438
Murphy (2004 p 131) explica que geralmente essa geografia conceitual se dava em cinco modelos
imaginativos descrever a regiatildeo como um itineraacuterio de uma jornada de mar a mar imaginar a vista de um
ponto alto enumerar zonas definidas por seu clima e solo tiacutepico elencar dos lugares mais proacuteximos aos
mais distantes dos romanos e por fim a realizaccedilatildeo de um esquema geomeacutetrico descrevendo simetrias e
formatos de terras ou rios
205
ritusque ac uiros et lingua manuque superatas commemoro gentes Ipsi de ea
iudicauere Grai genus in gloriam sui effusissimum quotam partem ex ea
appellando Graeciam Magnam Nimirum id quod in caeli mentione fecimus
hac quoque in parte faciendum est ut notas quasdam et pauca sidera
attingamus Legentes tantum quaeso meminerint ad singula toto orbe
edissertanda festinari () 439
VI ndash 38 Em seguida haacute a Itaacutelia e os primeiros dela satildeo os liacutegures depois haacute a
Etruacuteria a Uacutembria o Laacutecio e nesse lugar a foz do Tibre e Roma capital do
mundo distante dezesseis milhas do mar Depois haacute os litorais dos volscos e
da Campacircnia o litoral de Piceno e mais adiante as costas da Lucacircnia440
e de
Bruacutetio441
a partir da cadeia de montanhas dos Alpes em forma de meia lua
esse eacute o lugar mais ao sul no qual a Itaacutelia se estende ateacute os mares Desse
ponto haacute os litorais da Magna Greacutecia depois os salentinos os pediacuteculos os
aacutepulos os peliacutegnos os frentanos os marrucinos os vestinos os sabinos os
picenos os gauleses os uacutembrios os etruscos os vecircnetos os carnos os
iaacutepides os istros e os liburnos442
39 Natildeo ignoro que eu possa ser acusado de
conduta negligente e de espiacuterito fraco devido a essa maneira de descrever
raacutepida e resumidamente essa mesma terra que eacute filha e matildee de todas as terras
escolhida pela vontade dos deuses para tornar o proacuteprio ceacuteu mais glorioso
reunir os impeacuterios dispersos abrandar os costumes juntar as liacutenguas
diferentes e selvagens de tantos povos em um idioma comum para os
diaacutelogos conceder humanidade ao homem e em suma ser no mundo todo a
uacutenica paacutetria de todos os povos 40 Mas como a descreverei Quem poderia
enumerar a enorme nobreza de todos os lugares e a grande fama de cada
uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma
cabeccedila digna de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser narrada
Tambeacutem o litoral da Campacircnia por si mesmo feacutertil e de rica amenidade que
claramente em um soacute lugar estaacute tudo o que eacute necessaacuterio para uma natureza
exuberante 41 De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene
grande equiliacutebrio do clima campos muito feacuterteis colinas bastante
ensolaradas bosques bastante intactos muitas florestas sombreadas
inuacutemeros tipos generosos de matas vaacuterios ventos dos montes enorme
fertilidade de frutos das videiras e das oliveiras tatildeo nobres velos dos
animais muitas nucas gordas de touros tantos lagos tamanha abundacircncia
de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia tantos mares portos e o seio
das terras que se abre ao comeacutercio por todos os lados e que avanccedila de tal
forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios mares 42 Natildeo falarei
sobre os engenhos costumes homens e povos vencidos pela liacutengua e pela
luta Os proacuteprios gregos ndash um povo muito dissipado em sua gloacuteria ndash assim o
fizeram ao chamar uma pequena parte da Itaacutelia de Magna Greacutecia
Certamente isso tambeacutem deve ser feito nessa parte ndash como jaacute fizemos na
descriccedilatildeo do ceacuteu ndash de modo que atinjamos certos indiacutecios e poucos astros
Peccedilo aos leitores que se recordem que acelerei as descriccedilotildees de cada coisa
sobre todo o mundo (grifos nossos)
Pliacutenio comeccedilou esse capiacutetulo enumerando as regiotildees da Itaacutelia considerada o
centro da Europa e Roma o centro do mundo (terrarum caput) A partir do sect39 ele
passa a elogiar a Itaacutelia Pliacutenio da mesma forma que Liacutevio tambeacutem usa a justificativa
439
A partir desse ponto Pliacutenio faz apenas descriccedilotildees de caraacuteter geograacutefico da Itaacutelia dos seus rios e suas
cidades mais importantes 440
Atual Basilicata 441
Calaacutebria 442
Temos a enumeraccedilatildeo das regiotildees seguindo a partir da costa do mar Tirreno no sentido Norte-Sul e a
partir de entatildeo no sentido Sul-Norte seguindo a costa do mar Adriaacutetico Vemos que a descriccedilatildeo da Itaacutelia eacute
ampla abarcando regiotildees que vatildeo ateacute a bacia do rio Poacute os Alpes e a peniacutensula da Iacutestria Esse tipo de
descriccedilatildeo como se fosse ―sobrevo ndo regiatildeo er ch m d de periplum (peacuteriplo)
206
divin p r explic r o domiacutenio rom no dizendo que ess terr foi ―escolhid pel
vont de dos deuses p r torn r o proacuteprio ceacuteu m is glorioso (numine deum electa quae
caelum ipsum clarius faceret)443
Temos na sequecircncia o papel moral do povo romano de
―reunir os impeacuterios dispersos br nd r os costumes junt r s liacutengu s diferentes e
selvagens de t ntos povos em um idiom comum p r os diaacutelogos Podemos consider r
como o trecho mais significativo a passagem em que Pliacutenio disse que o romano deveria
―conceder hum nid de o homem e em sum ser no mundo todo uacutenic paacutetri de
todos os povos (humanitatem homini daret breuiterque una cunctarum gentium in toto
orbe patria fieret) Como mencionamos antes a respeito de Liacutevio percebemos a
significativa mudanccedila da mentalidade imperialista romana Se ateacute o seacuteculo I aC o
imperialismo e a conquista se justificavam pela legitimidade e honestidade do povo
romano a partir do final da Repuacuteblica esse pensamento passa a ser fundamentado no
direito divino444
Notamos ainda que em Pliacutenio o romano passa a ter tambeacutem a
obrig ccedilatildeo de ―civiliz r os povos conquist dos ao dizer que Roma deveria abrandar os
costumes de todos os povos juntar as liacutenguas selvagens conceder humanidade
(humanitas) o homem e ser ― uacutenic paacutetri de todos os povos 445
Em seguida Pliacutenio
question ―quem poderi enumer r enorme nobrez de todos os lugares e a grande
fama de cada uma dessas partes e povos A cidade de Roma mesmo sozinha tem uma
c beccedil dign de tatildeo ilustre pescoccedilo com que esforccedilo entatildeo deve ser n rr d Esse eacute
mais um ponto que justifica o imperialismo romano aleacutem da vontade divina os
italianos possuiacuteam enorme nobreza de todos os lugares e a fama dos povos
No sect41 Pliacutenio enumera todas as riquezas naturais devidas ao clima ameno da
Itaacutelia a fertilidade dos campos os rebanhos saudaacuteveis e a abundacircncia de aacutegua tudo de
acordo com a teoria hipocraacutetica446
No sect42 Pliacutenio deixa claro que natildeo se ocuparaacute de
etnogr fi dizendo ―natildeo falarei sobre os engenhos costumes homens e povos
vencidos pel liacutengu e pel lut como ele deix cl ro no fin l dess p ss gem su
preocupaccedilatildeo eacute sobretudo as descriccedilotildees de cada coisa sobre todo o mundo (ad singula
443
Cf p 161 e nota 322 deste trabalho 444
A esse respeito cf o subcapiacutetulo 212 (o romano como o povo-rei e a justificativa ideoloacutegica da
expansatildeo imperialista) especialmente p 96 445
Carey (2003 p 35 e 36) aprofunda essa anaacutelise do elogio da Itaacutelia e suas implicaccedilotildees em termos
poliacuteticos e imperialistas 446
Cf p 32 e 33 Segundo Hipoacutecr tes s regiotildees m is dist ntes do ―centro do mundo (que p r ele er
a Greacutecia) possuiacuteam climas ou severos demais (que tornavam os habitantes dessas aacutereas mais brutos e
fortes) ou suaves em demasia (o que deixava os indiviacuteduos moles e fracos) No centro do mundo que em
contexto latino passou a ser Roma o clima era temperado entre estaccedilotildees severas e amenas por
conseguinte as pessoas tambeacutem possuiacuteam compleiccedilotildees fiacutesicas e morais moderadas eram fortes sem
serem estuacutepidas e suaves sem serem fraacutegeis
207
toto orbe edissertanda festinari) Veremos mais adiante que Pliacutenio cumpre esse
propoacutesito Ao falar das Gaacutelias ele apenas mencionou a geografia rios cidades e naccedilotildees
dessas regiotildees de fato haacute pouquiacutessimas passagens de cunho etnograacutefico Assim temos
o seguinte trecho no livro IV 17 (31)
XVII (31) ndash 105 Gallia omnis Comata uno nomine appellata in tria
populorum genera diuiditur amnibus maxime distincta A Scalde ad
Sequanam Belgica ab eo ad Garunnam Celtica eademque Lugdunensis inde
ad Pyrenaei montis excursum Aquitanica Aremorica antea dicta Vniversam
oram XVIIL Agrippa Galliarum inter Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum
ac montes Cebennam et Iures quibus Narbonensem Galliam excludit
longitudinem CCCCXX latitudinem CCCXVIII computauit 106 A Scaldi
incolunt extera Texuandri pluribus nominibus dein Menapi Morini ora
Marsacis iuncti pago qui Gesoriacus uocatur Britanni Ambiani Bellouaci
Bassi Introrsus Catoslugi Atrebates Nerui liberi Veromandui Suaeuconi
Suessiones liberi Vlmanectes liberi Tungri Sunuci Frisiauones Baetasi
Leuci liberi Treueri liberi antea et Lingones foederati Remi foederati
Mediomatrici Sequani Raurici Helueti coloniae Equestris et Raurica
Rhenum autem accolentes Germaniae gentium in eadem prouincia Nemetes
Triboci Vangiones in Vbis colonia Agrippinensis Guberni Bataui et quos in
insulis diximus Rheni
XVII (31) ndash 105 Toda a Gaacutelia que eacute chamada pelo uacutenico nome de Cabeluda
se divide em trecircs raccedilas de povos separadas sobretudo por meio de rios447
Do rio Escalda ateacute o Sena haacute a Gaacutelia Beacutelgica do Sena ateacute o Garona a Gaacutelia
Ceacuteltica ou Lugdunense de laacute ateacute o promontoacuterio dos montes Pireneus haacute a
Gaacutelia Aquitacircnia antes chamada de Armoacuterica448
Agripa calculou toda a costa
das Gaacutelias em mil setecentas e cinquenta milhas entre o Reno e os Pireneus e
entre o oceano e os montes das Cevenas e do Jura dos quais se exclui a Gaacutelia
Narbonense haacute uma extensatildeo de quatrocentas e vinte milhas e uma largura
de trezentas e dezoito milhas 106 Ao exterior do Escalda habitam os
toxandros de muitos nomes depois haacute os menaacutepios na praia haacute os moacuterinos
que satildeo proacuteximos aos marsaacutecios por um povoado que eacute chamado de
Gesoriaco449
os britanos os ambianos os beloacutevacos e os bassos No interior
estatildeo os catoslugos os atreacutebates os livres neacutervios os veromacircnduos os
suaeuconos os suessiotildees livres os ulmanectes livres os tungros os sunucos
os frisiabotildees os betasos os livres leucos os treacuteveros outrora livres os
aliados liacutengones os remos aliados os mediomaacutetricos os seacutequanos os
raacuteuricos os helveacutecios e as colocircnias Equestre e Raacuteurica Haacute ainda os
habitantes dos povos da Germacircnia que estatildeo proacuteximos ao Reno nessa mesma
proviacutencia estatildeo os necircmetes os tribocos e os vangiacuteones dentre os uacutebios haacute a
colocircnia de Agripina450
os gubernos os batavos e os que jaacute mencionamos
sobre as ilhas do Reno (grifos nossos)
Nesse trecho notamos que os rios desempenham duas funccedilotildees a primeira e
principal delas era servir de linhas que dividem e marcam fronteiras separando um
447
Pliacutenio fez uma descriccedilatildeo que obviamente ressoa o famosiacutessimo proecircmio do BGall de Ceacutesar (cf
p129) 448
Armoacuterica do ceacuteltico Ar mor significava junto ao mar Sobre o estabelecimento dessas quatro
proviacutencias gaulesas por Augusto cf p 152 449
Atual Boulogne-sur-Mer 450
Colocircnia na atual Alemanha
208
espaccedilo do outro a segunda era ajudar na feitura de mapas (MURPHY 2004 p 142)451
Pliacutenio no comeccedilo desse trecho falou em Gaacutelia cabeluda (Gallia comata) mas esse
epiacuteteto assim como a designaccedilatildeo Gaacutelia de calccedilas (Gallia bracata) natildeo era mais usado
em sua eacutepoca (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) No tempo de Pliacutenio as proviacutencias
gaulesas jaacute estavam bastante inseridas na cultura romana e a elite dessas regiotildees haacute
muito jaacute natildeo usavam mais calccedilas ou cabelos longos452
A Gaacutelia Transalpina outrora era
conhecida por Gaacutelia cabeluda devido ao costume das pessoas terem cabelos compridos
(coma em latim) A Narbonense era a Gaacutelia de calccedilas no trecho acima Pliacutenio registrou
que Agripa exluiu a Narbonense da Gaacutelia De fato como jaacute apareceu em III 31 a
Narbonense na opiniatildeo de Pliacutenio era mais Itaacutelia do que proviacutencia453
Por fim temos o
cataacutelogo das naccedilotildees da Gaacutelia e as divisotildees geograacuteficas marcadas por rios e montes
como as Cevenas e o Jura
Seguindo a descriccedilatildeo da Gaacutelia Lugdunense temos em IV 18 (32)
XVIII (32) ndash 107 Lugdunensis Gallia habet Lexouios Veliocasses Caletos
Venetos Abrincatuos Ossismos flumen clarum Ligerem sed paeninsulam
spectatiorem excurrentem in oceanum a fine Ossismorum circuitu DCXXV
ceruice in latitudinem CXXV Vltra eum Namnetes intus autem Aedui
foederati Carnuteni foederati Boi Senones Aulerci qui cognominantur
Eburouices et qui Cenomani Meldi liberi Parisi Tricasses Andecaui
Viducasses Bodiocasses Venelli Coriosuelites Diablinti Riedones
Turones Atesui Segusiaui liberi in quorum agro colonia Lugudunum
XVIII (32) ndash 107 A Gaacutelia Lugdunense engloba os lexoacutevios454
os
veliocassos455
os caletos456
os vecircnetos457
os abrincacirctuos458
os ossismos459
o
famoso rio Liacuteger460
e uma peniacutensula muito notaacutevel que avanccedila para o oceano
a partir da fronteira dos ossismos em um contorno de seiscentas e vinte e
cinco milhas e no estreito com uma largura de cento e vinte e cinco
milhas461
Do outro lado estatildeo os namnetes e462
no interior os eacuteduos
aliados463
os carnutos tambeacutem aliados464
os boios465
os secircnones466
os
451
Murphy (2004 p 142-148) detalha mais o papel dos rios como marcos fronteiriccedilos na literatura latina
O proacuteprio Ceacutesar (BGall I 1) utilizou os rios Garona Marne e Sena para separar as trecircs principais naccedilotildees
ceacutelticas (cf p 129) 452
Estrabatildeo cita as calccedilas e cabelos longos dos belgas em IV43 Taacutecito usou o termo comata apenas
uma vez quando disse que os gauleses introduzidos no senado por Claacuteudio passaram a adotar a toga
romana como vestimenta (Anais XI 231) 453
Cf p 200 e 201 454
Habitavam nas proximidades da atual Lisieux 455
Estavam nas proximidades da atual Rouen 456
Vizinhos da atual Lillebonne 457
Daiacute o nome da atual Vannes 458
Perto da atual Avranches no departamento de La Manche 459
Habitavam o noroeste da Bretanha perto da atual Carhaix-Plougher 460
O rio Loire 461
Atual Bretanha 462
Habitantes do atual Loire inferior a cidade principal da regiatildeo eacute Nantes 463
Essa grande naccedilatildeo habitava os atuais departamentos do Saocircne e do Loire as principais cidades atuais
satildeo Autun e Chalonssur-Marne
209
aulercos que satildeo chamados tanto de eburovices467
quanto os que satildeo
chamados de cenomanos468
os livres meldos469
os pariacutesios470
os tricasses471
os andecavos472
os viducassos473
os bodiocassos474
os venelos475
os
coriosvelites476
os diablintos os rieacutedones477
os turotildees478
os ateacutesuos e os
livres segusiavos em cujo territoacuterio estaacute a colocircnia de Lugduno479
Sobre esse recurso das descriccedilotildees em narrativas geograacuteficas Hartog (1999 p
263) afirma que isso estaacute relacionado agrave taxionomia de fato a descriccedilatildeo eacute ver e fazer
ver eacute esp ci liz ccedilatildeo de um s ber Por conseguinte el ―t mbeacutem vem ser t mbeacutem
saber e fazer saber (esse fazer constituindo precisamente a mise en scegravene do
taxionocircmico) (HARTOG 1999 p 263) Ao pormenorizar aspectos geograacuteficos da
Gaacutelia Pliacutenio portanto vecirc e faz seu puacuteblico ver e conhece e faz conhecer essa regiatildeo
pertencente ao domiacutenio romano
Em seguida segue a descriccedilatildeo da Gaacutelia Aquitacircnia em IV 19 (33)
XIX (33) ndash 108 Aquitanicae sunt Ambilatri Anagnutes Pictones Santoni
liberi Bituriges liberi cognomine Viuisci Aquitani unde nomen prouinciae
Sedibouiates Mox in oppidum contributi Conuenae Begerri Tarbelli
Quattuorsignani Cocosates Sexsignani Venami Onobrisates Belendi saltus
Pyrenaeus infraque Monesi Oscidates Montani Sybillates Camponi
Bercorcates Pinpedunni Lassunni Vellates Toruates Consoranni Ausci
Elusates Sottiates Oscidates Campestres Succasses Latusates
Basaboiates Vassei Sennates Cambolectri Agessinates 109 Pictonibus
iuncti autem Bituriges liberi qui Cubi appellantur dein Lemouices Aruerni
liberi Vellaui liberi Gabales Rursus Narbonensi prouinciae contermini
Ruteni Cadurci Nitiobroges Tarneque amne discreti a Tolosanis Petrocori
Maria circa oram ad Rhenum septentrionalis oceanus inter Rhenum et
Sequanam Britannicus inter id et Pyrenaeum Gallicus Insulae conplures
Venestorum et quae Veneticae appellantur et in Aquitanico sinu Vliaros
XIX (33) ndash 108 Na Aquitacircnia estatildeo os ambilatros os anagnutos os
piacutectones480
os santotildees livres481
os bituacuteriges livres de cognome viviscos482
os
464
Viviam entre o Sena e o Loire perto das atuais Orleacuteans e Chartres 465
Perto da atual Moulins 466
No atual departamento do Yonne 467
Perto da atual Passy-sur-Eure 468
Habitavam as vizinhanccedilas da atual Le Mans 469
Perto da atual Meaux 470
Onde hoje estaacute Paris 471
Habitantes proacuteximos agrave atual Troyes 472
Na regiatildeo atual de Anjou 473
Proacuteximos agrave atual Vieux 474
Perto da atual Bayeux 475
Nas vizinhanccedilas da atual Carentan 476
Proacuteximo agrave Corseul 477
Perto da atual Rennes 478
Nas cercanias da atual Tours 479
Hoje a cidade de Lyon 480
Na atual regiatildeo de Poitou na Franccedila 481
Perto da atual Saintes
210
aquitanos483
ndash daiacute o nome da proviacutencia ndash e os sediboviatos Depois unidos
em uma cidade estatildeo os convenos484
os begerros485
os tarbelos de quatro
ensiacutegnias486
os cocosates de seis ensiacutegnias487
os venamos os onobrisates os
belendos488
os montes Pireneus e abaixo os monesos489
os oscidates
montanheses490
os sibilates491
os camponos os bercorcates os pimpedunos
os lassunos os velates os torvates os consoranos os auscos492
os
elusates493
os sotiatos os oscidates das planiacutecies os sucasses os latusates os
basaboiates os vasseus os senates os cambolectros agessinates494
109 Por
outro lado junto aos piacutectones estatildeo os livres bituacuteriges que satildeo chamados de
cubos495
depois os lemovices496
os livres arvernos497
os livres velavos e os
gaacutebalos Novamente vizinhos agrave proviacutencia Narbonense estatildeo os rutenos os
cadurcos os nitioacutebriges e separados dos tolosanos pelo rio Tarne498
os
petrocoros Os mares que rodeiam a costa satildeo o oceano setentrional499
que
vai ateacute o Reno entre o Reno e o Sena o oceano Britacircnico500
entre esse e os
Pireneus o oceano Gaacutelico501
Haacute vaacuterias ilhas dos vecircnetos que satildeo chamadas
de Vecircnetas502
e no golfo aquitacircnio haacute a ilha de Uliaros503
Ponderamos que Pliacutenio escreveu essas detalhadas descriccedilotildees geograacuteficas visando
a um ponto mais aleacutem do que inventariar o mundo conhecido ou fornecer um panorama
geral com finalidades poliacuteticas504
Na verdade se considerarmos a definiccedilatildeo de Martins
(2013 p 35) sobre a eacutecfrase (ἔθθξαζηο) como sendo um procedimento descritivo viacutevido
e claro podemos entender que Pliacutenio de certa forma desenvolveu uma eacutecfrase
geograacutefica na Historia naturalis Tomemos como exemplo as trecircs Gaacutelias descritas
482
Os bituacuteriges possuiacuteam grande importacircncia e habitavam nas proximidades da atual Bourges os viviscos
viviam perto da foz do rio Garona nas proximidades da atual Bordeaux Liacutevio citou os bituacuteriges em Ab
urbe cond V 34 (cf p 163 e 164) dizendo que foi essa naccedilatildeo que liderou a migraccedilatildeo gaulesa para a
Itaacutelia por volta de 600 aC 483
Viviam entre os Pirineus o rio Garona e o Atlacircntico 484
Pompeu fundou a povoaccedilatildeo de Lugdunum Conuenarum (atual Bagnegraveres-de-Bigorre) de onde foram
trazidos os locais que apoiaram Sertoacuterio O nome deriva do verbo latino conuenire (reunir) 485
Ceacutesar (BGall III 27) chamou-os de bigerriotildees 486
ao dizer quatro signos Pliacutenio parece fazer referecircncia a quatro maniacutepulos de soldados que guarneciam
o lugar cada um com um signum (insiacutegnia ou estandarte) Essa naccedilatildeo habitava proacuteximo da atual cidade
de Dax 487
Proacuteximos da atual Sescouze e Maresin As seis ensiacutegnas datildeo a entender que eles eram guarnecidos por
seis maniacutepulos de soldados 488
Nos arredores da atual Belin-sur-la-Leyre 489
Nas vizinhanccedilas da atual Luchon 490
Nos atuais vales do Aspe e Ossau 491
No vale do atual Soule 492
Perto da atual Auch 493
Perto da atual Eauze 494
Na regiatildeo de Aizenay 495
Os cubos tinham sua capital em Auaricum atual Bourges 496
Perto da atual Limoges 497
Habitavam proacuteximo agrave atual Clermont-Ferrand Vercingetoacuterige era dessa naccedilatildeo 498
Atual Tarn 499
Ou mar do Norte 500
Atual canal da Mancha 501
Onde o Atlacircntico banha a regiatildeo oeste da Franccedila 502
Hoje as ilhas de Belle-Isle Houat e outras que existem na foz do Loire 503
Atual ilha de Oleron 504
Como falamos na p 203 e 204
211
anteriormente cuja primeir aacutere pormenoriz d foi Gaacuteli ―C belud 505
Percebe-se
que Pliacutenio adotou uma descriccedilatildeo como se fosse um panorama como podemos ver no
mapa na proacutexima paacutegina (considerando as principais naccedilotildees mencionadas na Historia
naturalis)
Pliacutenio comeccedilou seu ―inventaacuterio d Gaacuteli ―C belud o nordeste do m p
partindo da Germacircnia e seguindo pelo norte em direccedilatildeo ao oceano Atlacircntico citando os
atreacutebates os neacutervios os suessiotildees aleacutem de outras naccedilotildees ateacute chegar novamente ao
interior do territoacuterio e agrave fronteira com a Germacircnia o erudito entatildeo retomou os povos
que habitavam a Gaacutelia Beacutelgica temos entatildeo os remos os seacutequanos os raacuteuricos e os
helveacutecios Por fim Pliacutenio mencionou as naccedilotildees germacircnicas dos uacutebios e dos batavos
Murphy preconizou que essa visatildeo panoracircmica da geografia se dava em cinco modelos
imaginativos506
Pelo modelo proposto por Pliacutenio percebemos que ele adotou um
esquema misto pois ao seguirmos a ordem das naccedilotildees citadas percebemos que haacute um
vaiveacutem imaginaacuterio no mapa seguindo o referencial do rio Escalda507
Pliacutenio considerou
os povos que viviam nas margens exteriores do rio (ou seja que estavam proacuteximos agrave
costa mariacutetima) e os que se encontravam ao interior e tambeacutem aqueles que eram
vizinhos ao Reno
Apoacutes essa passagem temos a Gaacutelia Lugdunense508
dessa vez o rio que serve
como eixo p r gui r ess ―vi gem foi o Liacuteger 509
Pliacutenio tambeacutem falou dos povos que
viviam proacuteximo ao Atlacircntico (no mapa acima o mar Gaacutelico) enumerando os lexoacutevios
os veliocassos os vecircnetos os ossismos e do outro lado da peniacutensula que hoje
chamamos de Bretanha localizou os namnetes e ao interior da regiatildeo os eacuteduos os
carnutos os secircnones os aulercos e dentre outros os turotildees Por fim haacute a Gaacutelia
Aquitacircnia510
Aiacute foram citados os piacutectones os santotildees os bituacuteriges viviscos e os
proacuteprios aquitanos nessa parte Pliacutenio fez uma linha descritiva vertical no sentido norte-
sul (dos piacutectones aos aquitanos) Em seguida haacute a menccedilatildeo aos Pirineus e voltamos ao
centro novamente seguindo o Liacuteger e em seguida a proviacutencia Narbonense Por uacuteltimo
Pliacutenio dotou o esquem de descriccedilatildeo ―m r m r mencion ndo o oce no setentrion l
que vai do norte da Germacircnia ateacute o Reno o oceano Britacircnico que engloba do Reno ao
Sena e finalmente o oceano Gaacutelico entre o Sena e os Pireneus
505
Em HN IV 17 (31) cf p 207 506
Cf nota 442 na p 205 507
Cujo nome francecircs eacute Escaut 508
HN IV 18 (32) p 208 e 209 509
Rio Loire 510
CF HN IV 19 (33) p 209 e 210
212
Mapa retirado de (PLINIO EL VIEJO 1998 p 161)
Em se tratando de uma obra de erudiccedilatildeo como a Historia naturalis natildeo
podemos concord r com M rtins (2013 p 76) que consider que eacutecfr se ―eacute um
n rr tiv ficcion l agrave serviccedilo d rgument ccedilatildeo pois que Pliacutenio faz descriccedilotildees de aacutereas
que jaacute eram proviacutencias romanas e amplamente conhecidas pelos seus contemporacircneos
Por outro lado a eacutecfrase geograacutefica mesmo natildeo sendo ficcional funciona como uma
ferramenta natildeo soacute de narraccedilatildeo mas ainda de embelezamento e enriquecimento textual
nesse sentido ela pode ser inserida na descriccedilatildeo de eacutecfrase preconizada por Martins
(2013 p 76 e 77) entendid como ―um descriccedilatildeo viacutevid que tr z o objeto di nte dos
nossos olhos ( ) 511
Dessa maneira Pliacutenio fez um pormenorizado mapeamento por
meio de p l vr s que nos possibilit ―vi j r pel s trecircs proviacutenci s g ules s e loc liz r s
511
Martins (2013 p 77) faz uma importante distinccedilatildeo entre a digressatildeo (que seria uma narraccedilatildeo) e a
eacutecfrase (que se localiza entre a narraccedilatildeo e a descriccedilatildeo) para maior aprofundamento sobre o papel da
eacutecfrase na retoacuterica e da sua funccedilatildeo de deleitar e ornar o discurso cf especialmente p 72-78
213
suas inuacutemeras naccedilotildees Com isso encerra-se essa passagem de descriccedilatildeo administrativa
das Gaacutelias
Seguindo o corpus separado para anaacutelise neste trabalho passemos agora ao livro
VIII dedicado aos animais terrestes Pliacutenio fala das ovelhas (VIII 72) e em seguida da
latilde e seu processo de feitura Temos entatildeo o trecho em VIII 73 (48)
LXXIII (48) ndash 190 Lana autem laudatissima Apula et quae in Italia Graeci
pecoris appellatur alibi Italica tertium locum Milesiae oues obtinent
Apulae breues uillo nec nisi paenulis celebres circa Tarentum Canusiumque
summam nobilitatem habent in Asia uero eodem genere Laudiceae Alba
Circumpadanis nulla praefertur nec libra centenos nummos ad hoc aeui
excessit ulla () Histriae Liburniaeque pilo propior quam lanae pexis
aliena uestibus et quam Salacia scutulato textu commendat in Lusitania
Similis circa Piscinas prouinciae Narbonensis similis et in Aegypto ex qua
uestis detrita usu pingitur rursusque aeuo durat Est et hirtae pilo crasso in
tapetis antiquissima gratia iam certe his usos Homerus auctor est Aliter
haec Galli pingunt aliter Parthorum gentes 192 Lanae et per se coactae
uestem faciunt et si addatur acetum etiam ferro resistunt immo uero etiam
ignibus nouissimo sui purgamento Quippe aenis polientium extracta in
tomenti usum ueniunt Galliarum ut arbitror inuento certe Gallicis hodie
nominibus discernitur 193 Nec facile dixerim qua id aetate coeperit
antiquis enim torus e stramento erat qualiter et iam nunc in castris
LXXIII (48) ndash 190 De fato a latilde mais famosa eacute a da Apuacutelia em seguida a latilde
que na Itaacutelia eacute chamada de grega e que em outros lugares eacute chamada de
itaacutelica ocupam o terceiro lugar as latildes mileacutesias A latilde da Apuacutelia eacute curta no pelo
e famosa apenas para fazer capas a latilde que vem das redondezas de Tarento e
Canuacutesio tem maior renome na verdade na Aacutesia haacute a latilde do mesmo tipo de
Laodiceia Nenhuma latilde branca eacute superior agrave latilde das vizinhanccedilas do Poacute e
nunca nenhuma latilde excedeu o valor de cem sesteacutercios por libra () A latilde da
Iacutestria e da Libuacuternia eacute mais parecida com cabelo do que com latilde e eacute improacutepria
para vestes de pelos eacute essa a que Salaacutecia na Lusitacircnia utiliza para tecidos
xadrez Eacute semelhante agrave latilde das redondezas de Piscinas512
na proviacutencia
Narbonense e semelhante tambeacutem a que tem no Egito com a qual se
remenda um traje gasto pelo uso e que de novo dura muito tempo Tambeacutem eacute
antiquiacutessima a popularidade da latilde dura de pelo grosso para tapetes
certamente Homero jaacute atestou esses usos Os gauleses trabalham a latilde de uma
forma de outra forma o fazem os povos partos 192 As latildes condensadas
formam uma veste que caso se lhes adicione vinagre elas resistem ao ferro
e ainda mais resistem ao fogo depois de uma nova purificaccedilatildeo513
Na
verdade os restos que ficam nos caldeirotildees depois de trabalhados satildeo
utilizados como enchimento de colchotildees514
que eu considero como um
invento das Gaacutelias certamente hoje os distinguimos atraveacutes dos nomes
gauleses 193 Eu natildeo poderia dizer facilmente em que eacutepoca esse uso
comeccedilou de fato nossos ancestrais usavam cordas de palha como colchatildeo
como ainda agora se faz nos acampamentos (grifos nossos)
Pliacutenio evidentemente citou a latilde da Apuacutelia (uma regiatildeo da Itaacutelia) como sendo a
m is f mos M is agrave frente ele diz que ―nenhum latilde br nc eacute superior agrave latilde d s
512
Atual Peacutezenas jaacute mencionada por Pliacutenio na descriccedilatildeo geograacutefica da Narbonense (cf p 203) 513
Esse tecido eacute o feltro (informaccedilatildeo retirada de PLINIO EL VIEJO 2003 p 202) 514
Traduzimos o termo tomentum por colchatildeo embora soe anacrocircnico por falta de um eacutetimo melhor em
portuguecircs que se proxime do sentido l tino que signific ―enchimento ou ―estof mento
214
vizinh nccedil s do Poacute ndash esse rio era o antigo marco divisoacuterio entre a Itaacutelia e a Gaacutelia
Cisalpina De fato essa regiatildeo foi a primeira proviacutencia a receber de forma coletiva o
direito de cidadania romana515
Pliacutenio entatildeo fala sobre a latilde de Piscinas na Narbonense
parecida com a latilde de Salaacutecia na Lusitacircnia O ponto que mais nos chama a atenccedilatildeo se
encontra no sect192 Pliacutenio explica o processo de feitura do feltro e como o resto desse
produto er us do como enchimento de colchatildeo Pliacutenio diz que consider esse ―um
invento d s Gaacuteli s e corrobor ess inform ccedilatildeo dizendo que os colchotildees recebiam o
nome de gauleses e haacute muito tempo eram utilizados como tais pelos romanos Ele ainda
cita o fato dos seus ancestrais usarem ―cord s de p lh como colchatildeo m s ess form
de leito na sua eacutepoca era utilizada apenas em acampamentos militares Esse tipo de
informaccedilatildeo curiosa eacute importante como registro de objetos de uso cotidiano (como
vestimentas colchotildees etc) e eacute raro na literatura claacutessica jaacute que a maioria das obras
foram escritas visando a abordagem de temas mais literaacuterios retoacutericos ou
historiograacuteficos e que pouco mencionavam aspectos do dia a dia desse tempo
Passemos agora ao livro XXX no qual Pliacutenio disserta sobre magia e remeacutedios
Temos o seguinte trecho 4 (13)
IV ndash 13 Gallias utique possedit et quidem ad nostram memoriam Namque
Tiberii Caesaris principatus sustulit Druidas eorum et hoc genus uatum
medicorumque Sed quid ego haec commemorem in arte Oceanum quoque
transgressa et ad naturae inane peruecta Britannia hodieque eam attonita
celebrat tantis caerimoniis ut dedisse Persis uideri possit Adeo ista toto
mundo consensere quamquam discordi et sibi ignoto nec satis aestimari
potest quantum Romanis debeatur qui sustulere monstra in quibus hominem
occidere religiosissimum erat mandi uero etiam saluberrimum
IV ndash 13 Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a
nossa eacutepoca O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e
esse tipo de adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria
isso sobre uma arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da
natureza Ainda hoje a aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos
de modo que possa parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os
povos em todo o mundo ainda que entre si fossem diferentes e
desconhecidos por fim entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar
suficientemente o quanto se deve aos romanos que suprimiram essas
monstruosidades para as quais era muito religioso sacrificar um homem e o
fato de devoraacute-lo era considerado salutar
Nessa passagem temos a menccedilatildeo de Pliacutenio sobre os aspectos maacutegicos das Gaacutelias
O aspecto histoacuterico mais importante desse trecho foi o banimento dos druidas no
principado de Tibeacuterio Gruen (2011a p 156) destaca que Augusto jaacute probira os
515
Isso se deu na eacutepoca de Ceacutesar cf p 111 para mais detalhes
215
cidadatildeos romanos de adotarem essa religiatildeo Tibeacuterio baniu os druidas mas como Pliacutenio
deixou cl ro eles ind se dedic v m agrave m gi ―cert mente teacute noss eacutepoc Depois
de Tibeacuterio foi Claacuteudio o governante que voltou a agir no sentido de coibir a magia na
Gaacutelia condenando o rito do sacrifiacutecio como horriacutevel e desumano De fato os romanos
baniram a praacutetica de sacrifiacutecios humanos na Gaacutelia e na Aacutefrica516
Como destaca Le
Bohec (2009 p 31) um dos fatores que levou agrave aboliccedilatildeo dessa praacutetica foi a evoluccedilatildeo da
mentalidade da eacutepoca que finalmente passou a considerar os sacrifiacutecios como atos
inuacuteteis e crueacuteis dignos de povos selvagens Quanto aos druidas a questatildeo fica mais
complexa devido agrave imprecisatildeo das fontes mas haacute pelo menos o consenso de que eles
representavam para os romanos um problema mais poliacutetico do que religioso (LE
BOHEC 2009 p 31) A poliacutetica romana era a de destruir complexos religiosos antigos
ou aristocraacuteticos cuja influecircncia poderia servir como centros de resistecircncia contra a
Urbe e ao mesmo tempo criar laccedilos para unir Roma agraves vaacuterias classes sociais das naccedilotildees
conquistadas (RANKIN 1996 p 262) A elite das naccedilotildees conquistadas ou aliadas a
Roma recebendo a cidadania e desejando fazer parte do modus uiuendi romano passou
a adotar a educaccedilatildeo claacutessica para seus filhos e isso contribuiu para diminuir o papel dos
druidas como educadores517
Assim percebemos a mudanccedila ocorrida do seacuteculo I aC
ateacute a segunda metade do seacuteculo I dC no modo de se referir aos druidas Diodoro assim
como Ceacutesar se referiu aos druidas chamando-os de filoacutesofos e teoacutelogos de honras
extraordinaacuterias518
Ciacutecero mencionou sua amizade com o druida Diviciacuteaco falando a
seu respeito no De diuinatione519
Pliacutenio como notamos referiu-se aos druidas e agraves
praacuteticas maacutegicas dos gauleses de forma pejorativa dizendo que no seu tempo a
― turdid Britacircni celebr ess rte com muitos ritos e natildeo temos nenhum menccedilatildeo agrave
honradez deles520
Como Rankin (1996 p 291) destaca Pliacutenio foi procurador na Gaacutelia
Narbonense e na Gaacutelia Beacutelgica e possivelmente teve conhecimento pessoal do
druidismo Pliacutenio foi negativo em suas descriccedilotildees porque provavelmente teve contato
516
A conquista romana aparentemente acabou com a praacutetica dos sacrifiacutecios humanos embora em aacutereas
remotas da Gaacutelia (e de outros confins do impeacuterio) eles continuassem acontecendo (RANKIN 1996 p
288) De modo geral os romanos tinham profundo desgosto por exclusividade religiosa e associavam
esse tipo de coisa a subversatildeo poliacutetica por isso as perseguiccedilotildees aos druidas cristatildeos judeus etc
(RANKIN 1996 p 288) 517
Estrabatildeo jaacute mencionou esse fato em IV 1 5 (cf p 87) Ceacutesar (BGall VI 13) tambeacutem disse que os
druidas desfrutavam de grande honradez entre os gauleses e que um grande nuacutemero de jovens acorria ateacute
eles para educar-se (cf p 137 e 138) 518
Biblioteca V 31 2-4 cf p 83-84 519
Cf p 76 520
P r m ior profundid de sobre esse tem recomend mos o c piacutetulo ―Religion nd the druids de
Rankin (1996 p 259-294)
216
com essa forma marginalizada de druidismo comum em sua eacutepoca Outro fator que
contribuiu para o gradual decliacutenio dos druidas era o fato de que os ensinamentos deles
embora prestigiosos tinham pouco apelo popular pois eram muito complexos521
Finalmente chegamos ao uacuteltimo trecho de Pliacutenio a ser analisado retirado do
livro XXXIII em que ele trata dos metais e seus usos Assim destacamos na HN
XXXIII 5 (14)
V ndash 14 Romae ne fuit quidem aurum nisi admodum exiguum longo tempore
Certe cum a Gallis capta urbe pax emeretur non plus quam mille pondo
effici potuere Nec ignoro MM pondo auri perisse Pompeii III consulatu e
Capitolini Iovis solio a Camillo ibi condita et ideo a plerisque existimari
MM pondo collata Sed quod accessit ex Gallorum praeda fuit detractumque
ab iis in parte captae urbis delubris 15 Gallos cum auro pugnare solitos
Torquatus indicio est ndash Apparet ergo Gallorum templorumque tantundem
nec amplius fuisse quod quidem in augurio intellectum est cum Capitolinus
duplum reddidisset Illud quoque obiter indicari conuenit ndash etiam de anulis
sermonem repetiuimus ndash aedituum custodiae eius conprehensum fracta in
ore anuli gemma statim expirasse et indicium ita extinctum 16 Ergo ut
maxime MM tantum pondo cum capta est Roma anno CCCLXIIII fuere cum
iam capitum liberorum censa essent CLII DLXXIII In eadem post annos
CCCVII quod ex Capitolinae aedis incendio ceterisque omnibus delubris C
Marius filius Praeneste detulerat XIII pondo quae sub eo titulo in triumpho
transtulit Sulla et argenti VI Idem ex reliqua omni uictoria pridie
transtulerat auri pondo XV argenti p CXV
V ndash 14 Na verdade em Roma por muito tempo natildeo houve ouro exceto em
diminuta quantidade De fato quando a cidade foi tomada pelos gauleses e a
paz seria estabelecida eles natildeo puderam juntar mais do que mil libras Natildeo
ignoro que duas mil libras de ouro se perderam do trono de Juacutepiter Capitolino
ndash aiacute colocadas por Camilo ndash durante o terceiro consulado de Pompeu por
isso muitos consideram que na verdade foram juntadas duas mil libras de
ouro Mas o que acresceu a isso foram o butim e a pilhagem daqueles
templos que os gauleses fizeram na parte da cidade que foi tomada 15 Como
indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar usando
ouro Assim parece evidente tal quantidade de ouro natildeo ser maior que aquela
que tinham os gauleses ou os templos na verdade o que se percebeu foi que
Juacutepiter Capitolino em uma profecia retornaria o dobro Jaacute que recordamos o
assunto sobre os aneacuteis tambeacutem conveacutem mencionar o episoacutedio em que o
guarda do templo de Juacutepiter Capitolino ao ser surpreendido quebrou a gema
do seu anel na boca e imediatamente morreu dessa forma o indiacutecio do ladratildeo
desapareceu 16 Portanto na ocasiatildeo do ano 364 da cidade quando Roma foi
tomada havia no maacuteximo duas mil libras de ouro e como constava no censo
152573 homens livres Apoacutes 307 anos o ouro da cidade ndash que Caio Maacuterio
Filho levara a Preneste apoacutes o incecircndio do templo Capitolino e de todos os
outros santuaacuterios ndash totalizava treze mil libras Sila transcreveu esse nuacutemero
em uma inscriccedilatildeo durante um triunfo assim como seis mil libras de prata Ele
tambeacutem trouxera no triunfo da veacutespera quinze mil libras de ouro e cento e
quinze mil libras de prata obtidas em todas as outras vitoacuterias
Pliacutenio fala da quantidade de ouro disponiacutevel em Roma durante o saque da cidade
pelos gauleses Para ele a cidade dispunha de pouquiacutessima reserva do metal e diz que
521
Ceacutesar (BGallVI 14) citou o fato dessa educaccedilatildeo chegar a durar vinte anos (cf p 140)
217
houve alguma confusatildeo entre o montante de ouro que havia no templo de Juacutepiter
Capitolino No sect15 Pliacutenio fala de Torquato e o fato dos gauleses combaterem usando
joacuteias de ouro522
Outro ponto de interesse pode ser percebido no fato de que mais de
trezentos anos depois Caio Maacuterio Filho levou de Roma para Preneste treze mil libras de
ouro Sila celebrando seus triunfos exibiu em um dia treze mil libras de ouro e seis mil
libras de prata e no outro quinze mil libras de ouro e cento e quinze mil libras de prata
―obtid s em tod s s outr s vitoacuteri s Percebemos m is um vez como Pliacutenio menciona
as coisas sempre as relacionando a Roma Fica evidente como a cidade que na eacutepoca do
saque tinha apenas mil libras de ouro prosperou com sua poliacutetica imperialista e jaacute
durante a eacutepoca de Sila acumulou enorme fortuna natildeo soacute de ouro mas tambeacutem de
prata
Tanto Liacutevio quanto Pliacutenio abordaram certos fatos dos primoacuterdios de Roma
como o episoacutedio do saque da cidade e a menccedilatildeo a Torquato e o colar de ouro Outro
aspecto em comum eacute o fato de ambos os autores ressaltarem o dever do romano de
conquistar novos povos e regiotildees usando como justificativa a vontade divina523
Esse eacute
um ponto que natildeo apareceu em Ceacutesar o general alegou que a guerra foi motivada por
questatildeo de seguranccedila uma vez que as migraccedilotildees dos germanos ateacute a Gaacutelia
representavam uma iminente ameaccedila a Roma524
Em Liacutevio como vimos os galos foram
representados como os inimigos de Roma e geralmente caracterizados como baacuterbaros e
exemplos de comportamento a serem evitados ndash na histoacuteria liviana esse era o maior
papel a ser desempenhado pelos adversaacuterios do impeacuterio Pliacutenio pela proacutepria natureza
erudita de sua obra foi aleacutem nos seus retratos dos galos ele se preocupou em descrever
geograficamente as proviacutencias com riquezas de detalhes bem como trouxe informaccedilotildees
natildeo usuais na literatura latina como o processo de feitura da latilde Por conseguinte Liacutevio
ao fazer relatos de antigos acontecimentos de Roma e tratando dos gauleses dessa
eacutepoca e Pliacutenio ao trazer informaccedilotildees tatildeo diversas como a geografia e os costumes dos
galos enriquecem a nossa pesquisa do corpus iniciada com Ceacutesar e o seu relato in loco
da conquista da Gaacutelia
522
Liacutevio (VII 10) narrou o episoacutedio que justificou o apelido de Torquato adotado por Tito Macircnlio jaacute que
ele tomou o colar de ouro do gaulecircs que ele venceu (cf p 182-183) 523
Cf Plinio III 6 (5) p 204 e 205 p 206 e nota 444 deste trabalho Quanto a Liacutevio e o direito divino do
romano governar outros povos cf sect11 e sect7 (p 161) 524
Cf BGall I 33 p 134
218
Capiacutetulo 4 ndash ―Noacutes e os outros retoacuteric de represent ccedilatildeo do celt
Neste capiacutetulo faremos a anaacutelise entre o De bello Gallico Ab urbe condita e a
Historia naturalis visando ao estudo de como se opera a retoacuterica de representaccedilatildeo do
gaulecircs entre os gecircneros de composiccedilatildeo do comentaacuterio (Ceacutesar) histoacuteria (Liacutevio) e
erudiccedilatildeo (Pliacutenio) Aleacutem disso pretendemos analisar o tipo de vocabulaacuterio e figuras de
linguagem empregados pelos autores latinos supracitados para essas representaccedilotildees e
observar como cada um deles faz um retrato muito peculiar dos gauleses Ceacutesar com
seu relato distante e agraves vezes respeitoso agraves vezes hostil Liacutevio e a figura do gaulecircs como
o exemplo maacuteximo de inimigo durante o periacuteodo arcaico de Roma e Pliacutenio com um
enfoque de informar sobre a geografia e costumes dos gauleses de forma puramente
instrutiva Primeiramente falaremos sobre como surgiram as imagens recorrentes sobre
os galos a seguir abordaremos a questatildeo da retoacuterica de modo abrangente e em seguida
passaremos agraves anaacutelises dos elementos textuais
41 ndash As fontes de onde vieram as imagens dos gauleses
Vimos ao longo dessa pesquisa os termos e estereoacutetipos que apareceram nos
textos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho para a caracterizaccedilatildeo dos gauleses bem como
os mesmos toacutepoi recorrentes nas fontes citadas (como Poliacutebio Catatildeo o Censor etc)
Nesse momento entatildeo analisaremos como possivelmente surgiu esses clichecircs de
representaccedilatildeo dos galos na percepccedilatildeo greco-romana
Como destaca Vasaly (1993 p 245) no comeccedilo do seacuteculo III aC autores
romanos jaacute buscavam na literatura grega teacutecnicas retoacutericas para embelezar os rascunhos
de informaccedilatildeo sobre Roma que eles recebiam das geraccedilotildees que lhes eram anteriores525
por conseguinte ao recorrerem a padrotildees de narrativas que lhes eram familiares e
reconheciacuteveis eles transformaram simples nomes e escassos registros relacionados aos
primoacuterdios da Cidade em uma rica tapeccedilaria ilustrando o triunfo da virtude romana
sobre os desafios enfrentados dentro e fora de Roma De maneira semelhante tambeacutem
podemos entender que a respeito dos gauleses os romanos buscaram nos gregos as
primeiras representaccedilotildees dessa naccedilatildeo e depois as adaptaram e remodelaram de acordo
com sua proacutepria experiecircncia de vida e a realidade da eacutepoca em que viviam
525
Falamos desses registros rudimentares registrados em anais pelo pontiacutefice maacuteximo na p 11 deste
trabalho
219
A respeito dos gauleses retratados como sendo fortes altos e aterrorizantes essa
imagem se justificava atraveacutes dos primeiros contatos que os romanos (e outras naccedilotildees
itaacutelicas) tiveram com os povos de aleacutem dos Alpes no comeccedilo do seacuteculo III aC contatos
esses que eram especialmente violentos e que resultavam em guerras e saques Foram
muito marcantes tambeacutem a proacutepria invasatildeo a Roma bem como as migraccedilotildees dos celtas
para a Aacutesia Menor e o saque de Delfos em 278 aC526
Com esses acontecimentos
emblemaacuteticos fixou-se na cabeccedila de gregos romanos e outros povos itaacutelicos a ideia do
gaulecircs feroz e beligerante Nos principais autores do seacuteculo II aC cujos textos nos
chegaram com certa substacircncia material como Poliacutebio e Catatildeo vemos novos relatos
sobre as populaccedilotildees da Gaacutelia Em ambos apareceu com destaque o caraacuteter belicoso dos
galos527
Poliacutebio e Catatildeo em suas obras jaacute estavam selecionando elementos de uma
literatura em grego preexistente e que mencionava os celtas essa literatura antecessora
natildeo era inteiramente devotada agraves caracteriacutesticas materiais dos galos mas tambeacutem
continham informaccedilotildees de natureza geograacutefica e etnograacutefica528
Relatos escritos depois
de Poliacutebio e Catatildeo como o de Posidocircnio (do comeccedilo do seacuteculo I aC) e Ceacutesar com
suas longas digressotildees etnograacuteficas haveriam de introduzir (ou reintroduzir) na
literatura antiga informaccedilotildees sobre os celtas e seus exoacuteticos costumes dieta
comportamentos sociais crenccedilas etc (WOOLF 2011 p 22)
No periacuteodo do seacuteculo I aC entatildeo circulavam vaacuterias imagens de representaccedilatildeo
dos galos na literatura greco-latina como vimos alguns dos maiores exemplos em
Diodoro Siacuteculo Ciacutecero e Estrabatildeo citados no capiacutetulo 1529
Essas vaacuterias representaccedilotildees
dos gauleses de todo tipo (como ferozes religiosos voluacuteveis etc) eram utilizadas pelo
escritor de acordo com o gecircnero de composiccedilatildeo que adotava e o tipo de mensagem que
ele queria passar fosse ela de cunho poliacutetico moralizante nacionalista etc Eacute o que
526
Cf p 102 para esses acontecimentos Na p 102 e ss falamos dos vaacuterios conflitos entre romanos e
aliados contra os celtas ao longo dos seacuteculos II e I aC ateacute a ascensatildeo de Ceacutesar 527
Cf Poliacutebio (Histoacuterias II 17 9 a 12) na p 48 e II 15 7 na p 49 Sobre Catatildeo cf fragmento 34 na p
62 528
De fato os registros mais remotos sobre os celtas que temos satildeo do seacuteculo IV aC e infelizmente nos
chegaram bastante fragmentados Jaacute mencionamos alguns dos autores dessa eacutepoca como Eacuteforo e Timeu
(cf p 44 e ss) Tambeacutem haacute outros que natildeo citamos ou falamos de forma muito raacutepida como Teopompo e
Piacuteti s de M rselh sobre esses e outros nomes do seacuteculo IV C recomend mos o c piacutetulo ―Notices in
some fourth century BC uthors (in RANKIN 1996 p 45-48) Tambeacutem Platatildeo (Leis 637 d-e) retratou
os gauleses (junto com citas persas ibeacuterios traacutecios e cartagineses) como beberrotildees e belicosos
Aristoacuteteles (em uma obra perdida sobre costumes dos baacuterbaros) na Poliacutetica e no De gener anim
similarmente falou sobre os galos (cf p 45) 529
Sem contar os relatos dos celtas que natildeo registramos aqui e que satildeo de outros gecircneros de composiccedilatildeo
como a eacutepica a poesia e o teatro (cf p 21) ou os autores que abordamos de forma bem raacutepida como
Dioniacutesio de Halicarnasso e os mencionados na nota acima
220
Woolf ch m de ―moldur s interpret tiv s que er m os toacutepoi disponiacuteveis para os
autores da etnografia antiga (e outros gecircneros) para serem escolhidos e selecionados de
acordo com os seus propoacutesitos de composiccedilatildeo literaacuteria (WOOLF 2011 p 54) Woolf
(2011 p 62) chega agrave conclusatildeo de que a maioria das narrativas sobre os baacuterbaros (e ele
fala de vaacuterios povos que eram considerados alheios aos romanos) se originou no meio
do seacuteculo I aC ocorrendo ao mesmo tempo com a raacutepida expansatildeo territorial romana
cujas conquistas de Ceacutesar Pompeu e Augusto aceleraram ainda mais o processo de
contato com outras naccedilotildees Esse fato tambeacutem coincidiu com o final das guerras
Mitridaacuteticas e a chegada a Roma de vaacuterios autores gregos que escreviam sob o patronato
dos membros da elite da Urbe No caso dos gauleses acreditamos que essas imagens
cujos registros passaram a ser substanciais a partir do seacuteculo IV aC530
foram sendo
apropriadas e reelaboradas ao longo do tempo pelos autores que vieram depois Com
isso fica difiacutecil separar ou distinguir quando exatamente essas imagens surgiram ou
desapareceram especialmente apoacutes a unificaccedilatildeo do mundo mediterracircneo sob o comando
de Roma (WOOLF 2011 p 62) Um exemplo que encontramos e que mostra como
uma dessas imagens sobre os galos surgiu (e depois caiu em desuso) pode ser
encontrado em Pliacutenio o Velho O erudito em Historia naturalis V IV 31 chamou a
Gaacuteli N rbonense de ―Gaacuteli de c lccedil s531
e Tr ns lpin como ―Gaacuteli C belud 532
Esse estereoacutetipo do galo em trajar calccedilas e possuir cabelo comprido era comum no
seacuteculo I aC e em contexto romano Ciacutecero jaacute usara essa mesma imagem para depreciar
os galos (Pro Fonteio 33) ―Assim considerais esses aqui trajados com saiotes e calccedilas
com postura tiacutemida e humilde como fazem aqueles que oprimidos por injuacuterias
recorrem o poder dos juiacutezes suacuteplices e submissos N d eacute menos verd deiro N
eacutepoca de Pliacutenio esses clichecircs jaacute estavam em desuso pois as proviacutencias gaulesas jaacute
estavam avanccediladas em termos de romanizaccedilatildeo (SHERWIN-WHITE 1967 p 59) Aleacutem
disso a elite dessas regiotildees jaacute abandonara completamente o haacutebito de usar calccedilas
saiotes ou cabelos longos na verdade adotava-se o modo de vestir (e o penteado) dos
romanos
Podemos notar atraveacutes das fontes que nos restaram que os relatos etnograacuteficos
da Europa ocidental evidentemente por causa da consolidaccedilatildeo das proviacutencias nessa
aacuterea simplesmente foram sumindo ao longo do seacuteculo I dC O puacuteblico-alvo de Ceacutesar
530
Como falamos na nota 528 531
Cf trecho completo na p 200 a 203 532
HN XVII (31) 105 p 207
221
era diferente do puacuteblico de Liacutevio ou Pliacutenio mais de um seacuteculo depois Os nomes que
escreveram sobre os gauleses com material substancial de etnografia pararam em
Estrabatildeo Aos romanos a partir de Augusto natildeo mais interessavam os ―baacuterb ros g los
jaacute que eles for m ―civiliz dos e com o tempo b st nte integr dos o modus uiuendi da
Urbe O interesse dos romanos por conseguinte passou a se voltar para os povos que
habitavam nas fronteiras do mundo Quanto mais distantes esses povos maior a
curiosidade por essa razatildeo mais eles eram retratados como exoacuteticos bizarros ou
maravilhosos especialmente nas regiotildees que o impeacuterio natildeo alcanccedilou como a Iacutendia a
Etioacutepia a Ciacutetia e a Germacircnia Esse tipo de interesse eacute proacuteprio da natureza humana em
querer conhecer o que lhe eacute alheio e excecircntrico e ateacute hoje podemos perceber como
culturas que nos satildeo exoacuteticas ainda possuem um grande apelo e aticcedilam a curiosidade da
populaccedilatildeo
42 ndash Mecanismos retoacutericos
Ao pensarmos na claacutessica divisatildeo aristoteacutelica da retoacuterica (Retoacuterica 1358b) em
trecircs gecircneros discursivos (deliberativo juriacutedico e o proacuteprio epidiacutectico) julgamos que as
obras de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio inserem-se no gecircnero epidiacutectico pois a caracterizaccedilatildeo de
gauleses e romanos nessas narrativas possui ora a funccedilatildeo de elogio ora de censura
como composiccedilotildees literaacuterias esse discurso de representaccedilatildeo do outro e de si sofre vaacuterias
mud nccedil s Como pontu Seb sti ni (In Joly 2007 p 81) ― experiecircnci pesso l diret
fica em segundo plano qu ndo histoacuteri p ss ser tr t d como gecircnero literaacuterio ndash ao
contraacuterio do que pregavam Heroacutedoto e Tuciacutedides que diziam que se devia escrever
sobre o que se viu e se presenciou A historiografia antiga portanto natildeo tinha a
preocupaccedilatildeo em estabelecer uma verdade que correspondia exatamente aos fatos mas
sim visava a uma construccedilatildeo retoacuterica em que esses fatos eram recriados artisticamente
com um propoacutesito pragmaacutetico ndash fosse ele moralista ou que visava ao estabelecimento
de uma identidade coletiva por exemplo533
Temos alguns exemplos de elementos
retoacutericos que ilustram essa imprecisatildeo na historiografia especialmente no que concerne
a acontecimentos muito recuados no tempo e praticamente impossiacuteveis de se
comprovar Dessa maneira Ceacutesar (BGall VI 24) escreveu que ―houve ntes um tempo
533
Jaacute aprofundamos essa questatildeo nas paacuteginas 9 e 11 deste trabalho
222
em que os g uleses super v m os germ nos em virtude 534
No BGall VI 19 tambeacutem
tem-se ― teacute pouco ntes de noss eacutepoc os escr vos e clientes que er certo terem sido
estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados
junto 535
Em Liacutevio tambeacutem eacute possiacutevel encontrar esse tipo de argumentaccedilatildeo
especialmente em Ab urbe cond V 34 no trecho que trata da passagem dos gauleses
pelos Alpes ―nesse lug r est v m opostos os Alpes sem duacutevid natildeo me espanto que
eles pareccedilam insuperaacuteveis jaacute que por nenhuma estrada foram cortados ndash como
certamente temos na memoacuteria ndash a natildeo ser que se acredite nas narrativas (fabulis) sobre
Heacutercules 536
Do mesmo modo lecirc-se em Ab urbe cond V 35 ―Eu soube que foi essa a
tribo que veio ateacute Cluacutesio e de laacute para Roma o que parece pouco certo eacute se eles contaram
ou natildeo com o poio de todos os povos d Gaacuteli Cis lpin 537
Como pontua Phillips
(1982 p 1001 e 1002) Liacutevio ao tratar dos acontecimentos da primeira deacutecada da sua
histoacuteria considerava desnecessaacuterio passar julgamento de verdade nas fabulae pois
verdadeiras ou natildeo elas serviam essencialmente como exempla para fins didaacuteticos e
simboacutelicos Em Pliacutenio encontramos vocabulaacuterio similar na HN V (4) 33 ele disse que
―haacute utores que dizem ter existido um cid de ch m d Her clei n foz do Roacuted no 538
Igualmente em HN XXXIII 5 (14) sobre o resgate que os romanos pagaram aos
gauleses tem-se ―muitos consider m que n verd de for m junt d s du s mil libr s de
ouro 539
Sobre ess s form s de enunci ccedilatildeo ―eu ouvi ou ―dizem que H rtog (1999 p
281) pontua
Depois da oacutepsis vem a akoeacute natildeo mais eu vi mas eu ouvi Eis um segundo
modo de intervenccedilatildeo do narrador na narrativa uma outra espeacutecie de marca de
enunciaccedilatildeo O eu ouvi reveza com o eu vi quando este uacuteltimo natildeo eacute mais
possiacutevel () Sua marca de enunciaccedilatildeo eacute se posso dizer assim menos forte
O narrador engaja-se menos mantendo-se a alguma distacircncia de sua
narrativa deixando em consequumlecircncia mais espaccedilo para o ouvinte modular
sua crenccedila Em resumo afrouxam-se suas reacutedeas (grifos do autor)
Igu lmente o ―cont -se ou ―muitos credit m que e outros enunciados do
tipo tambeacutem corroboram essa imprecisatildeo do discurso ao sinalizar para o puacuteblico-alvo
que tal passagem eacute vaga jaacute que natildeo se pode definir com exatidatildeo quando como ou por
534
P 128 535
Cf p 143 536
P 163 537
Trecho mencionado na p 165 Cf tambeacutem Ab urbe cond V 41 (p 175) ―Cont -se que estando agrave
frente M rco Doacutelio pontiacutefice maacuteximo eles recit r m um c nto ( ) 538
P 202 539
Cf p 216
223
quem tal narrativa foi produzida ou sequer para quem foi produzida (HARTOG 1999
p 282)
Ao considerarmos a definiccedilatildeo aristoteacutelica da retoacuterica como sendo a faculdade de
teorizar sobre o que eacute adequado em cada caso para convencer (Retoacuterica 1355b)
pretendemos nos proacuteximos subcapiacutetulos analisar os discursos de Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio
em seus objetivos de se construir e propagar uma imagem representativa do povo
gaulecircs A elocutio (enunciaccedilatildeo) do gecircnero epidiacutectico se operava sobretudo atraveacutes da
criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo de paradigmas (especialmente poliacuteticos militares ou eacuteticos)
dirigidos especificamente a um puacuteblico-alvo Como lembra Sebastiani (In Joly 2007
p 81) essa construccedilatildeo retoacuterica situava a verdade no plano da plausibilidade que o leitor
encontra no relato e natildeo necessariamente na exata correspondecircncia entre realidade e
discurso A retoacuterica portanto tambeacutem servia para instruir a audiecircncia para os limites do
proacuteprio texto de fato ao estabelecer as regras para a produccedilatildeo textual
independentemente do gecircnero escolhido mais do que o conteuacutedo em si o que era
bastante esperado pelo puacuteblico-alvo era a capacidade compositiva do autor e a sua
habilidade em compor sua obra respeitando essas normas reguladoras do gecircnero textual
(TRINGALI 1988 p 31)
Dessa maneira percebemos que um texto da Antiguidade qualquer que fosse
ele estava profundamente imbuiacutedo de uma finalidade especiacutefica e tudo no discurso era
voltado para um propoacutesito ou objetivo do autor nesse sentido o texto possui camadas
de significados elaboradas especialmente para um puacuteblico-alvo capaz de identificar e
reconhecer esses elementos No proacuteximo item aprofundaremos sobre as representaccedilotildees
dos gauleses detalhando os mecanismos retoacutericos que identificamos nos textos de
Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio o Velho
421 ndash Mecanismo retoacuterico 1 assimilaccedilatildeo x alienaccedilatildeo
Em se tratando das obras que compotildeem o nosso corpus os autores utilizavam
sobretudo duas formas de abordar o gaulecircs Eram elas a alienaccedilatildeo que focava no que o
outro tinha de diferente e a assimilaccedilatildeo (ou analogia) que enfatizava as semelhanccedilas
entre o povo retratado e a proacutepria cultura do emissor do discurso540
Como falamos
antes sobre esse mecanismo (especialmente no subcapiacutetulo 24) apenas retomaremos
540
Cf p 37-40 e p 57-58 sobre processos de alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo dos romanos feitos pelos gregos
224
aqui alguns aspectos de forma pontual de modo a obter uma visualizaccedilatildeo abrangente do
corpus
O primeiro autor que vimos neste trabalho foi Ceacutesar De todas as passagens jaacute
citadas relembraremos algumas delas nas quais percebemos esse mecanismo de
alienaccedilatildeo e assimilaccedilatildeo de gauleses por parte dos romanos541
O primeiro (e
significativo) trecho que temos eacute a narraccedilatildeo da morte de Pisatildeo Aquitano o gaulecircs que
lutou nas fileiras de Ceacutesar e se sacrificou pelo irmatildeo Nesse episoacutedio Pisatildeo e os
gauleses de modo geral foram retratados no BGall (IV 12) mais proacuteximos aos
romanos Ceacutesar simultaneamente ressaltou a alienaccedilatildeo dos germanos acentuando o
caraacuteter desonesto deles ao desrespeitarem a treacutegua como temos
Os inimigos logo ao verem nossos cavaleiros cujo nuacutemero era de cinco mil
(natildeo dispondo eles mesmos de mais de oitocentos cavaleiros pois os que
atravessaram o Mosa para adquirir trigo ainda natildeo tinham retornado) em
nada temendo os nossos porque os embaixadores deles pouco antes tinham-
se despedido de Ceacutesar e aquele era o dia de treacutegua solicitado por eles
rapidamente nos desordenaram com um ataque542
Por outro lado eacute no livro VI na famosa passagem etnograacutefica sobre gauleses e
germanos que Ceacutesar acentuou essa assimilaccedilatildeo dos gauleses (e a alienaccedilatildeo dos
germ nos) frente os rom nos Como o proacuteprio gener l escreveu ―jaacute que chegamos a
este ponto natildeo parece ser improacuteprio narrar sobre os costumes da Gaacutelia e da Germacircnia e
expor em que est s n ccedilotildees diferem entre si 543
Embora existissem vaacuterias naccedilotildees na
Gaacutelia Ceacutesar escreveu de forma uniforme sobre os seus costumes e haacutebitos de fato as
naccedilotildees que serviram de base para essas descriccedilotildees foram a dos eacuteduos e a dos seacutequanos
aliadas dos romanos e com as quais Ceacutesar teve mais contato O motivo de o general
romano ter feito essa uniformizaccedilatildeo da Gaacutelia servia ao seu propoacutesito de retratar todo
esse territoacuterio como sendo uacutenico facilitando o entendimento do seu puacuteblico-alvo para
essa campanha de conquista O autor jaacute deixou claro esse objetivo de tratar a Gaacutelia
como uma unidade territorial no proacuteprio proecircmio do BGall I 1 ―Tod Gaacuteli eacute
dividida em trecircs partes das quais os belgas habitam uma os aquitanos a outra e a
541
Para evitar a repeticcedilatildeo desnecessaacuteria do que jaacute foi discutido antes citaremos essas passagens mais
sucintamente no corpo do texto para rememorar os termos e figuras citados contudo sempre
colocaremos em notas a localizaccedilatildeo dos trechos completos 542
Cf excerto completo na p 125 543
BGall VI 11 cf p 136
225
terceir h bit m queles que em su proacutepri liacutengu satildeo ch m dos celt slsquo n noss
g uleseslsquo 544
Outro exemplo do mecanismo de alienaccedilatildeo entre romanos e gauleses eacute
encontrado no trecho em que Ceacutesar descreveu os druidas em BGall VI 14 Os galos
o contraacuterio dos rom nos natildeo confi v m ssuntos import ntes agrave escrit ―eles natildeo
consideram liacutecito confiar tais preceitos agrave escrita ndash como de ordinaacuterio nos demais
assuntos ndash e nos registros puacuteblicos e priv dos utiliz m s letr s greg s m is di nte
na mesma passagem tem-se a menccedilatildeo de que eles acreditavam em vida apoacutes a morte
―sobretudo querem persu dir de que s lm s natildeo perecem m s sim p ss m de uns p r
outros apoacutes a morte e por isso especialmente consideram que se incita ao valor
desprez do o temor d morte 545
Ora os romanos natildeo consideravam essencial morrer
gloriosamente em batalha mas sim guerrear vencer e sobreviver a inuacutemeros
combates546
Tambeacutem os celtas diferiam dos romanos no costume de considerar a
divisatildeo do tempo natildeo pelos dias mas sim pelas noites e ainda no fato de eles natildeo
admitirem que os filhos aparecessem em puacuteblico diante de si ateacute que se tornassem
adultos como vemos em BGall VI 14
Eles delimitam as divisotildees de todo o tempo natildeo pelo nuacutemero de dias mas
sim pelo das noites () Nos demais costumes de vida os gauleses diferem
dos restantes de ordinaacuterio nisto eles natildeo admitem que os seus filhos
venham ateacute si em puacuteblico exceto depois de crescidos de modo a poderem
assumir os deveres militares e consideram vergonhoso o filho que em idade
pueril aparece publicamente agrave vista do pai
De maneira geral Ceacutesar mais acentuou as semelhanccedilas do que as diferenccedilas
entre gauleses e romanos No trecho VI 13 percebemos que os gauleses embora
considerados muitas vezes como primitivos no De bello Gallico jaacute possuiacuteam vaacuterias
caracteriacutesticas consideradas civilizadas para os romanos como o fato de eles possuiacuterem
um erudiccedilatildeo ―um gr nde nuacutemero de jovens acorre ateacute eles para educar-se e os druidas
desfrut m de gr nde honr dez junto deles 547
Tambeacutem haacute certo fundamento
civilizatoacuterio na menccedilatildeo agrave heranccedila para maridos e esposas como se lecirc em BGallVI 19
Os maridos quatildeo grande soma receberam das esposas a tiacutetulo de dote tanto
reuacutenem de seus bens com os dotes fazendo uma avaliaccedilatildeo Faz-se em
544
Cf p 129 545
Cf p 140 546
Detalhamos esse tema na nota 355 p 182 547
P 137 e 138
226
conjunto um caacutelculo de todo esse dinheiro e guardam-se os rendimentos
qualquer um deles que sobreviva ao outro recebe a parte de ambos com os
rendimentos do tempo precedente
E por fim utorid de do p i per nte os outros membros d f miacuteli ―os
maridos possuem direito de vida e morte tanto sobre as esposas quanto sobre os
filhos 548
Mesmo assim nessa mesma passagem o caraacuteter baacuterbaro do gaulecircs pode ser
encontrado no fato de que Ceacutesar escreveu que as mulheres poderiam ser torturadas caso
morte dos seus m ridos fosse suspeit ―qu ndo morre um chefe da famiacutelia nascido em
posiccedilatildeo de nobreza reuacutenem-se os parentes dele e havendo alguma suspeita sobre a
morte sujeitam as esposas a um interrogatoacuterio ao modo servil caso se tenha descoberto
lgo eles s execut m tortur d s pelo fogo e com todos os tormentos 549
Igualmente
teacute pouco ntes d cheg d de Ceacutes r ―os escr vos e clientes que er certo terem sido
estimados por um homem em finalizando-se corretamente os funerais eram cremados
junto 550
Podemos tambeacutem acrescentar que ao utilizar termos e conceitos da sociedade
romana (como chefe de famiacutelia cliente etc) para descrever os galos Ceacutesar optou por
f zer um comp r ccedilatildeo que foi leacutem do mero ―a eacute como b Como Hartog (1999 p 241)
esclarece aleacutem desse tipo de comparaccedilatildeo elementar a eacute como b (sendo a e b
diretamente comparaacuteveis) existem outras formas de comparaccedilotildees mais sutis em que haacute
uma mudanccedila de registro assim quando essa comparaccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel porque a e b
natildeo podem ser considerados equivalentes deve-se entatildeo fazer uma transposiccedilatildeo Na
Retoacuterica a Herecircnio (IV 45 59) o autor deixou claro que a comparaccedilatildeo serve para
embelezar provar explicar ou tornar algo manifesto A seguir ele fez uma explicaccedilatildeo
detalhada das quatro maneiras em que eacute possiacutevel efetuar essa comparaccedilatildeo (similitudo
em latim) satildeo elas contraste negaccedilatildeo paralelismo ou comparaccedilatildeo abreviada551
Dessas
quatro maneiras a que nos interessa aqui eacute a comparaccedilatildeo por paralelismo ndash que foi
descrito pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio (IV 47 60) como sendo uma maneira de
colocar algo diante dos olhos No caso de Ceacutesar ao natildeo conseguir efetuar a comparaccedilatildeo
da sociedade gaulesa como sendo parecida com a romana ele optou pelo paralelismo
os galos possuem instituiccedilotildees que podem ser comparaacuteveis agraves romanas e o uso do
vocabulaacuterio latino por parte de Ceacutesar facilitou esse paralelismo como no exemplo do
548
BGall VI 19 (p 143) 549
Mesmo trecho da nota acima 550
P 143 551
Para o detalhamento de cada tipo de comparaccedilatildeo cf Retoacuteria a Herecircnio IV 46-48
227
pater familias (chefe de famiacutelia) citado acima Evidentemente os gauleses natildeo
possuiacuteam tal conceito do chefe de famiacutelia o paralelismo funcionou aqui de forma a
facilitar o entendimento do puacuteblico-alvo de Ceacutesar em compreender como se organizava
a estrutura familiar dos galos Ainda de cordo com H rtog (1999 p 245) ess ―ficccedilatildeo
n rr tiv visa a convencer o destinataacuterio do seu argumento de fato trata-se de ―uma
diferenccedila assinalaacutevel e mensuraacutevel o que significa que eacute dominaacutevel Por conseguinte
Ceacutesar ao fazer com que romanos e gauleses fossem assimilados (e alienando os
germanos) deixou claro que o primeiro grupo poderia ser abarcado por Roma enquanto
que o segundo seria simplesmente deixado de lado
Voltando agora agrave questatildeo sobre o que era considerado um comportamento
baacuterbaro (na opiniatildeo de gregos e romanos) temos o fato dos gauleses praticarem
sacrifiacutecios humanos (VI 16)
Toda a naccedilatildeo dos gauleses eacute muito dada aos escruacutepulos religiosos e por esse
motivo aqueles que satildeo acometidos por doenccedilas graves e os que se
encontram em combates e perigos ou imolam homens ao modo de viacutetimas
ou se comprometem haver de sacrificaacute-los tomando para esses sacrifiacutecios os
druidas como agentes na verdade se a vida de um homem natildeo for paga com
a vida de outro homem eles pensam que o poder dos deuses imortais natildeo
pode ser aplacado e dispotildeem de sacrifiacutecios do mesmo gecircnero publicamente
instituiacutedos Outros possuem efiacutegies de enorme grandeza cujos membros
entrelaccedilados com vimes preenchem de homens vivos incendiados esses
membros morrem os homens envoltos pelas chamas Consideram serem
mais agradaacuteveis aos deuses imortais os supliacutecios daqueles que foram presos
por causa do furto latrociacutenio ou em outro delito contudo quando natildeo haacute
muita disponibilidade desses tipos eles tambeacutem recorrem ao supliacutecio de
inocentes
Ceacutesar mesmo evitando emitir julgamento de valor no fato dos gauleses terem
esse costume de imolar seres humanos citou esse estereoacutetipo que considero o mais
comum na Antiguidade (e ateacute os dias de hoje) para caracterizar alguma naccedilatildeo como
baacuterbara552
Qu nto ess form ―neutr de se referir o comport mento d imol ccedilatildeo de
homens Hartog (1999 p 268) lembra que ao se optar por descrever praacuteticas
abominaacuteveis (abominaacuteveis do ponto de vista de quem narra) de um modo
completamente isento de opiniatildeo esse tipo de narrativa produz um maior efeito de
alteridade para tanto geralmente o autor emprega um vocabulaacuterio teacutecnico ―como se se
tratasse das praacuteticas mais simples e corriqueiras do mundo Ainda segundo Hartog
(1999 p 269)
552
Contemporacircneo a Ceacutesar Diodoro escreveu sobre sacrifiacutecios humanos praticados por gauleses em
Biblioteca V 31 2 a 4
228
A ausecircncia de marcas de enunciaccedilatildeo ou seu apagamento eacute pois uma das
teacutecnicas empregadas pelo narrador para aumentar o peso da alteridade de sua
narrativa Ele daacute a impressatildeo de transmitir ao destinataacuterio a alteridade em
―est do bruto ou ―selv gem Tod via os vestiacutegios enunciativos que
pontuam a descriccedilatildeo dirigem-se ao saber impliacutecito do destinataacuterio e orientam
a maneira como este a recebe
Pliacutenio por sua vez fez uma descriccedilatildeo criacutetica desse costume ressaltando que os
gauleses praticavam monstruosidades como vimos em Historia naturalis XXX IV
(13)
Em todo caso a magia se apoderou das Gaacutelias e certamente ateacute a nossa eacutepoca
O fato eacute que o principado de Tibeacuterio Ceacutesar aboliu os druidas e esse tipo de
adivinhos e meacutedicos deles Mas porque eu mesmo recordaria isso sobre uma
arte que jaacute transpocircs o Oceano e penetrou no vazio da natureza Ainda hoje a
aturdida Britacircnia celebra essa arte com muitos ritos de modo que possa
parecer que isso foi passado aos persas Daiacute parece que os povos em todo o
mundo ainda que entre si fossem diferentes e desconhecidos por fim
entraram em acordo sobre isso e natildeo se pode avaliar suficientemente o
quanto se deve aos romanos que suprimiram essas monstruosidades para as
quais era muito religioso sacrificar um homem e o fato de devoraacute-lo era
considerado salutar
Pelo trecho acima Pliacutenio deixou claro que essa monstruosidade consistia no
consumo de carne humana A esse respeito Aristoacuteteles deixou claro que o canibalismo
era o ponto mais baixo do comportamento baacuterbaro Assim temos na Eacutetica Nicomaqueia
(1148b)
ιέγσ δὲ ηὰο ζεξηώδεηο νἷνλ ηὴλ ἄλζξσπνλ ἣλ ιέγνπζη ηὰο θπνύζαο
ἀλαζρίδνπζαλ ηὰ παηδία θαηεζζίεηλ ἢ νἵνηο ραίξεηλ θαζὶλ ἐλίνπο ηλ
ἀπεγξησκέλσλ πεξὶ ηὸλ Πόληνλ ηνὺο κὲλ ὠκνῖο ηνὺο δὲ ἀλζξώπσλ
θξέαζηλ ηνὺο δὲ ηὰ παηδία δαλείδεηλ ἀιιήινηο εἰο εὐσρίαλ ἢ ηὸ πεξὶ
Φάιαξηλ ιεγόκελνλ
Considero por ejemblo brutales disposiciones como la de la mujer de
quien se dice que hiende a las prentildeadas para comerse a los nintildeos o aqueacutellas
como las de algunos pueblos salvajes del Ponto que se complacen en comer
carne cruda o carne humana o se entregan unos a outros los nintildeos para los
banquetes o lo que se cuenta de Faacutelaris553
Todavia Ceacutesar buscou mais assimilar os galos aos romanos jaacute que ele se
preocupava em estabelecer uma relaccedilatildeo profunda entre Roma e essas naccedilotildees atraveacutes de
uma ocupaccedilatildeo militar Dessa maneira o autor deixou claro o propoacutesito poliacutetico de sua
553
―Considero por exemplo brut is s disposiccedilotildees como d mulher d qu l se diz que el cort s
graacutevidas para comer as crianccedilas ou aquelas como as de alguns povos selvagens do Ponto que se
comprazem em comer carne crua ou carne humana ou se entregam uns aos outros as crianccedilas para os
b nqueletes ou o que se cont de Faacutel ris Essa citaccedilatildeo de Aristoacuteteles foi retirada da traduccedilatildeo feita por
Bonet (ARISTOacuteTELES 1998 p 303)
229
obra os gauleses (em parte civilizados e assimilados) seriam abarcados no processo de
conquista jaacute os germanos exemplos maacuteximos de baacuterbaros natildeo entrariam nesse plano
de subjugaccedilatildeo554
Por isso ainda no livro VI Ceacutesar aprofundou as diferenccedilas entre
romanos (e gauleses) frente aos germanos Os germanos seriam mais baacuterbaros pelo fato
de que ao contraacuterio dos gauleses eles natildeo possuiacuterem ―druid s que presid m os ritos
religiosos nem pr tic m s crifiacutecios e ―tod su vid consiste em c ccedil d s e exerciacutecios
de praacutetic milit r555
Aleacutem disso eles ―natildeo pr tic v m gricultur nem possuiacute m
terr s proacutepri s 556
Passando agora a Liacutevio no Ab urbe condita o autor usou apenas a ferramenta da
alienaccedilatildeo ndash mesmo descrevendo diferentes naccedilotildees Isso se justifica pelo fato de que ele
buscou enfatizar que todos os outros povos seriam inimigos de Roma Evidentemente
em uma obra com forte propoacutesito nacionalista era isso que o puacuteblico esperava encontrar
nesse tipo de narrativa Na verdade Liacutevio natildeo teve um interesse em se aprofundar na
etnografia ou em explicar as caracteriacutesticas poliacutetico-culturais desses povos pela forte
caracteriacutestica moralista do historiador os inimigos de Roma sobretudo representavam
arqueacutetipos de viacutecios a serem evitados pelos cidadatildeos da Urbe557
Liacutevio por conseguinte
deixou claro que o que era mais importante em sua obra era analisar os feitos histoacutericos
e aconselhou
Isto eacute o que haacute de mais salutar e fecundo no conhecimento dos feitos
histoacutericos contemplar liccedilotildees de todo tipo postas numa obra esclarecedora
ali para ti e para tua cidade veraacutes o que imitar ali o que eacute desonroso por
princiacutepio ou em seus efeitos veraacutes para evitar558
Sobre Pliacutenio em suas anaacutelises sobre os gauleses ele natildeo se preocupou muito em
assimilar ou alienar esse povo e mais adiante veremos alguns exemplos disso De fato
ele mesmo disse em Historia naturalis que natildeo f l ri sobre ―os engenhos costumes
homens e povos vencidos pel liacutengu e pel lut 559
Pliacutenio se concentrou mais em
legitimar o imperialismo romano e criar uma identidade cultural que abarcasse a todos
os povos que faziam parte desse impeacuterio Outro fator que corrobora esse aspecto era
554
Para discussatildeo aprofundada sobre esse assunto cf p 147 555
BGall VI 21 p 144 556
BGall VI 22 p 145 Sobre a falta de agricultura como sinal de barbaacuterie ver tambeacutem a nota 159 na p
86 557
Cf p 158 e 159 sobre o papel moralizante da Ab urbe cond Quanto ao (mau) retrato que Liacutevio fez dos
gauleses jaacute mencionamos esses estereoacutetipos ao longo de todas as passagens jaacute citadas no subcapiacutetulo 35
Por tal motivo natildeo repetiremos aqui esses trechos 558
Cf sect10 p 158 em traduccedilatildeo de Oliva Neto 559
Ver HN III VI 42 na p 204 e 205
230
porque em sua eacutepoca as obras de etnografia eram de faacutecil acesso por isso ele natildeo visou
a reescrever sobre esse tema560
422 ndash Mecanismo retoacuterico 2 o papel da genealogia
Nos trechos do corpus analisado encontramos alguns exemplos sobre como a
genealogia servia de ferramenta para a assimilaccedilatildeo (ou alienaccedilatildeo) dos celtas por parte
dos romanos Aleacutem disso como destaca Woolf (2011 p 41) mitos genealoacutegicos
serviam como um instrumento versaacutetil para relacionar grupos eacutetnicos bem como para
estabelecer uma certa hierarquia temporal entre eles Aleacutem disso a genealogia era usada
para relacionar esses grupos a histoacuterias de migraccedilatildeo em consideraacuteveis distacircncias Com
essas consideraccedilotildees em mente destacamos as seguintes passagens
Ceacutesar (BGall II 4) deixou claro que os belgas eram fortes porque descendiam
dos germanos
a maior parte dos belgas descendia dos germanos eles haacute muito tempo
atravessaram o Reno por causa da fertilidade do lugar e ali se estabeleceram
tendo expulsado os Gauleses que habitavam tais paragens Eram os uacutenicos
que pela lembranccedila dos nossos pais dilapidando-se toda a Gaacutelia impediram
os teutotildees e os cimbros de adentrar em seu territoacuterio
Vecirc-se acima que os belgas foram os uacutenicos que conseguiram impedir a invasatildeo
dos cimbros e teutotildees agraves suas terras Outra passagem emblemaacutetica sobre a importacircncia
da genealogia ndash e que mais uma vez destacamos ndash eacute o trecho sobre Pisatildeo Aquitano
(BGall IV 12) Ceacutesar justificou o fato de o gaulecircs ser aliado dos romanos ao escrever
que ―Pisatildeo Aquit no er n scido de import ntiacutessim f miacuteli cujo vocirc obtiver o
com ndo em su cid de e que for ch m do migolsquo por nosso sen do 561
O avocirc de
Pisatildeo muito provavelmente fora cidadatildeo romano ele proacuteprio pois recebeu essa alcunha
de ― migo pelo sen do d Urbe Aind eacute digno de not o proacuteprio nome Pisatildeo de
origem latina usado para designar esse indiviacuteduo muitas vezes os clientes e aliados dos
romanos adotavam o nome das famiacutelias que lhes favoreciam (BORNECQUE
MORNET 2002 p 84)
Em Liacutevio salientamos a genealogia de Beloveso e Segoveso sobrinhos do rei
Ambigato que foram enviados pelo tio para conquistar novos territoacuterios para os celtas
no episoacutedio em que Liacutevio escreveu sobre as migraccedilotildees dos galos para a Itaacutelia Em Ab
560
Sobre o papel poliacutetico e cultural da erudiccedilatildeo cf p 198 e 199 561
Cf p 125
231
urbe cond V 34 temos que Ambig to ―est ndo idoso e jaacute desej ndo livr r o reino de
uma desordem generalizada anunciou haver de enviar Beloveso e Segoveso filhos da
sua irmatilde e jovens diligentes para as moradas que os deuses lhes mostrariam por meio
de uguacuterios 562
Como pontua Woolf (2011 p 10) essa narrativa buscou conectar as
populaccedilotildees da Gaacutelia do norte da Itaacutelia e o Danuacutebio em uma eacutepoca em que os antigos
estudiosos concluiacuteram que celtas galos e gaacutelatas eram essencialmente povos com uma
mesma origem territorial ancestral563
Ciacutecero no Pro Fonteio (30) jaacute fizera essa ligaccedilatildeo
dos gaacutelatas (e os que saquearam Roma) como tendo sua origem na Gaacutelia
Essas satildeo as naccedilotildees que outrora partiram tatildeo ao longe de suas moradas ateacute
Delfos para atacar e pilhar Apolo Piacutetio e o oraacuteculo de toda a terra Por essas
mesmas naccedilotildeezinhas santas e pias em testemunho foi sitiado o Capitoacutelio e
aquele Juacutepiter que atraveacutes do seu nome os maiores dos nossos quiseram ter a
boa-feacute dos testemunhos
Dessa maneira o recurso da genealogia podia ser usado de forma versaacutetil para
explicar e relacionar grupos eacutetnicos da Gaacutelia dentre alguns exemplos os proacuteprios
gregos consideravam que os galos eram descendentes de um gigante chamado Keltos
outra variaacutevel atestava que esse povo teve sua origem com Heacuteracles na eacutepoca em que
ele passou por essa regiatildeo e se relacionou com a princesa de nome Celta564
423 ndash Mecanismo retoacuterico 3 a geografia
Na Antiguidade a geografia desempenhava um importante papel para a
construccedilatildeo das imagens fiacutesicas e morais dos povos descritos por gregos e romanos565
Foi a partir do texto Ares aacuteguas e lugares atribuiacutedo a Hipoacutecrates (seacuteculo V aC) que
se fundamentou em detalhes a teoria de que as condiccedilotildees climaacuteticas e naturais de uma
regiatildeo determinavam o caraacuteter e compleiccedilatildeo fiacutesica dos seus habitantes De acordo com
esse pensamento quanto mais ameno o clima (como na Aacutesia) mais fraco e tranquilo o
povo se as circunstacircncias do ambiente fossem severas (como em certas aacutereas da
Europa) consequentemente os indiviacuteduos seriam mais fortes e corajosos Como lembra
Gruen (In BUGH 2006 p 295 e 296) para os antigos gregos o clima sozinho era
capaz de produzir diferenccedilas essenciais entre os proacuteprios gregos os europeus os citas
562
Cf p 163 563
Cf nota 84 sobre a explicaccedilatildeo dos gregos para o surgimento dos galos 564
Cf nota 84 565
Cf tambeacutem p 32 e 33 deste trabalho
232
os asiaacuteticos e outros povos566
O proacuteprio Hipoacutecrates (Aer XII 2 e 6) a respeito dos
asiaacuteticos registrou
Afirmo que a Aacutesia difere mais da Europa no que concerne agraves naturezas de
todas as coisas que brotam da terra e dos homens Pois na Aacutesia tudo eacute muito
mais belo e maior essa regiatildeo eacute mais doacutecil e os caracteres dos homens mais
amenos e mais afaacuteveis A causa disso eacute a mistura das estaccedilotildees porque a Aacutesia
fica em meio aos levantes do Sol voltada para a aurora e mais aleacutem do frio
() Eacute normal que essa regiatildeo esteja muito proacutexima da primavera conforme a
natureza e moderaccedilatildeo das estaccedilotildees Natildeo seria possiacutevel que a virilidade a
vivacidade o gosto pelo esforccedilo e o caraacuteter resoluto estivessem contidos em
tal natureza567
Quanto aos europeus temos (Aer XXIII 1-3)
A outra estirpe a que se situa na Europa eacute muito diversificada entre si tanto
no que concerne agrave estatura quanto no que diz respeito agrave compleiccedilatildeo Isso por
causa das mudanccedilas das estaccedilotildees que satildeo grandes e frequentes do forte calor
do sol aleacutem dos invernos rigorosos das chuvas abundantes e de forma
inversa das estiagens prolongadas e dos ventos ndash nos quais as mudanccedilas satildeo
numerosas e diversificadas () O mesmo raciociacutenio se aplica aos caracteres
O caraacuteter selvagem indoacutecil e indomaacutevel existe numa natureza como essa
Pois os golpes frequentes no espiacuterito implantam a selvageria e destroem a
docilidade e a amenidade Por isso considero que os habitantes da Europa
satildeo mais animosos do que os da Aacutesia pois em climas quase iguais haacute
indolecircncia em climas que se modificam haacute a vivacidade no corpo e na alma
e a partir da tranquilidade e da indolecircncia aumenta a covardia a partir da
vivacidade e dos esforccedilos aumenta a virilidade568
Considerando os dois excertos acima de Hipoacutecrates remetemos a Tito Liacutevio
que usou esses mesmos argumentos para caracterizar (e depreciar) os galos Em Ab urbe
cond V 48 o autor disse
() tambeacutem a peste atormentava os gauleses pois eles fizeram seu
acampamento em um lugar rebaixado que estava entre as colinas esse lugar
era muito quente por causa dos incecircndios e cheio de vapor tambeacutem a cinza e
o poacute com qualquer movimento do vento se levantavam Esse povo era muito
intolerante a isso pois estava acostumado agrave umidade e ao frio abalados por
esse calor e tormento eles morriam como gado quando se espalhavam as
doenccedilas
Do mesmo modo encontramos na geografia a justificativa que Liacutevio usou para
explicar por que os gaacutelatas eram mais fracos que os galos jaacute que eles emigraram para a
566
Aleacutem de Gruen Borca (p 42 e ss) fala bastante sobre como os gregos compreendiam o mundo e
explica detalhadamente a teoria hipocraacutetica em relaccedilatildeo aos modos e caraacuteter dos indiviacuteduos que habitavam
aacutereas especiacuteficas do mundo entatildeo conhecido 567
Utilizamos aqui a traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 103-104) 568
Traduccedilatildeo de Cairus (In HIPOacuteCRATES 2005 p 110-111)
233
Aacutesi Menor Assim ele escreveu ―ness eacutepoc os nossos ncestr is tiver m cont to com
gauleses de verdade nascidos em sua terra esses de agora estatildeo degenerados
miscigenados e por isso satildeo chamados de galo-gregos 569
No mesmo trecho Liacutevio
afirmou que os gauleses amoleceram ao se estabelecerem em um territoacuterio tatildeo propiacutecio
e ssim descreveu ess regiatildeo ―ess terr que produz um f rtur de tod s s cois s
acolheu esses homens endurecidos e exasperados por tantos males Em um campo tatildeo
feacutertil com ceacuteu muito ameno e com vizinhos paciacuteficos toda aquela rudeza que tinham
qu ndo cheg r m se br ndou Por fim ind nesse c piacutetulo Liacutevio deixou registr do o
lert ―esses pr zeres estr ngeiros t nto podem extinguir o vigor dos acircnimos quanto o
mesmo pode ocorrer tr veacutes do cont to com os haacutebitos e costumes dos vizinhos
Sobre essa teoria da geografia influir na constituiccedilatildeo fiacutesica e moral de um grupo
de indiviacuteduos o ponto de vista de Liacutevio a esse respeito era muito estrito ele como
historiador que visava exaltar Roma apenas considerava a influecircncia do meio
geograacutefico em termos de consequecircncias morais que essencialmente determinavam o
valor guerreiro (no caso o dos romanos objeto de sua glorificaccedilatildeo) ou a falta de
coragem de um grupo que em Ab urbe Condita pode ser resumido a todos os que natildeo
eram romanos (GIROD 1982 p 1223)
Embora a teoria geograacutefica tenha entrado em voga no seacuteculo V aC ela passou a
ter contornos poliacuteticos mais niacutetidos com Aristoacuteteles Na Poliacutetica (1327b) o Estagirita
especifica que os gregos beneficiaacuterios de um clima equilibrado entre estaccedilotildees amenas e
duras eram superiores aos outros povos da Europa que mesmo sendo fortes para
suportar climas desfavoraacuteveis eram estuacutepidos e incapazes de governarem a si mesmos
Dessa maneira Aristoacuteteles justificava o domiacutenio dos gregos sobre as outras naccedilotildees
alegando que eles eram os mais capacitados para governar Posteriormente os romanos
pelo menos nos textos literaacuterios utilizaram-se desse argumento para justificar sua
postura imperialista Nesse contexto selecionamos certos trechos de Ceacutesar que
consideram o gaulecircs por esse prisma O autor justificou o fato de que belgas eram os
mais corajosos da Gaacutelia pois aleacutem de estarem mais distantes de Roma eles se
encontravam mais proacuteximos aos germanos com os quais lutavam constantemente em I
1
569
Ab urbe cond XXXVIII 17 cf Trecho completo na p 189 a 191 Vecirc-se tambeacutem certo aspecto
genealoacutegico pois os galos se enfraqueceram tambeacutem pela miscigenaccedilatildeo com os gregos
234
de todos esses os mais corajosos satildeo os belgas pois estatildeo muito distantes da
civilizaccedilatildeo e urbanidade da proviacutencia raramente os mercadores vatildeo ateacute eles e
importam aquelas coisas que servem para enfraquecer os espiacuteritos e porque
estatildeo proacuteximos dos germanos que habitam o outro lado do Reno e com
esses travam guerra constantemente
Pela mesma razatildeo os helveacutecios se destacavam em termos de bravura ―os
helveacutecios tambeacutem superam os gauleses restantes em coragem jaacute que lutam em
combates quase diaacuterios contra os germanos ndash quer quando os afastam de suas fronteiras
quer qu ndo lev m por si guerr os territoacuterios d queles (BGall I 1) Outro fator
geograacutefico que serviu para enfraquecer os gauleses foi a proximidade com a proviacutencia
da Gaacutelia Cisalpina e a influecircncia da humanitas como visto no trecho acima e que
tambeacutem aparece novamente em BGall VI 24
a proximidade das proviacutencias e o conhecimento dos itens de aleacutem mar
propiciam aos gauleses muitos meios para a fartura e a comodidade e aos
poucos acostumados a serem superados e vencidos em muitos combates
sequer se comparam eles proacuteprios aos germanos em bravura
Pelos excertos acima percebemos que em Ceacutesar a superioridade de uma naccedilatildeo
sobre a outra (ou o seu enfraquecimento) se dava por questotildees geograacuteficas
semelhantes aos argumentos defendidos por Aristoacuteteles e mencionados no paraacutegrafo
anterior Nos exemplos acima os belgas foram descritos como superiores aos outros
galos porque viviam mais perto das fronteiras da Germacircnia e do seu clima (e povo)
hostil Curioso notar que Liacutevio considerava a proximidade com os povos da Aacutesia
Menor como fator de enfraquecimento dos galos pois a Aacutesia era muito agradaacutevel em
termos climaacuteticos Ceacutesar ao contraacuterio fazia uma afirmaccedilatildeo bem diferente e que pode
nos soar contraditoacuteria para o general os gauleses se amoleciam devido agrave sua
proximidade com Roma como mencionamos acima
Quanto a Pliacutenio ainda sobre o quesito da boa reputaccedilatildeo de um lugar e seus
habitantes como sendo diretamente proporcional agraves benesses geograacuteficas e climaacuteticas
ele escreveu que a Narbonense na verdade deveria ser considerada como parte da
proacutepri Itaacuteli ―devido agrave cultur dos seus c mpos a reputaccedilatildeo dos homens e costumes e
pela amplitude de recursos a Narbonense de forma alguma deve ser considerada
proviacutenci n verd de el eacute m is Itaacuteli que proviacutenci 570
O elogio agrave Itaacutelia em Historia
570
HN III 5 31 p 201 Outro fator que explica o por quecirc de Pliacutenio ter escrito isso foi o fato de ele
mesmo ter nascido em Como que antes estava localizada na Gaacutelia Cisalpina e soacute recebeu a cidadania
romana no seacuteculo I aC
235
naturalis pelo mesmo motivo tambeacutem eacute muito significativo os romanos se
sobressaiacuteam aos outros povos pois segundo Pliacutenio eles habitavam no melhor lugar do
mundo conhecido ateacute entatildeo (HN III VI 41)
De fato toda essa terra possui salubridade vital e perene grande equiliacutebrio do
clima campos muito feacuterteis colinas bastante ensolaradas bosques bastante
intactos muitas florestas sombreadas inuacutemeros tipos generosos de matas
vaacuterios ventos dos montes enorme fertilidade de frutos das videiras e das
oliveiras tatildeo nobres velos dos animais muitas nucas gordas de touros tantos
lagos tamanha abundacircncia de rios e fontes que vertem por toda a Itaacutelia
tantos mares portos e o seio das terras que se abre ao comeacutercio por todos os
lados e que avanccedila de tal forma que auxilia os aacutevidos mortais aos proacuteprios
mares
Pliacutenio natildeo se preocupou tanto com a etnografia de fato em obras do gecircnero
enciclopeacutedico (assim como a Biblioteca de Diodoro) a geografia se sobrepunha agrave
investigaccedilatildeo etnograacutefica Por esse motivo era comum o esquema organizacional de
descriccedilotildees geograacuteficas como periplum571
uma vez que isso minimizava as mudanccedilas de
ordem cultural ou poliacuteticas tudo estava subordinado agrave geografia inclusive a proacutepria
etnografia (WOOLF 2011 p 11) Por essa razatildeo encontramos mais exemplos da
geografia relacionados agrave etnografia em Ceacutesar e Liacutevio do que em Pliacutenio
43 ndash Os toacutepoi retoacutericos da alteridade
Dando sequecircncia agraves nossas anaacutelises retoacutericas passaremos ao uacuteltimo toacutepico
instrumental da construccedilatildeo da imagem do gaulecircs no corpus escolhido que se deu
atraveacutes de vocabulaacuterio e figuras de linguagem recorrentes
431 ndash Consideraccedilotildees sobre vocabulaacuterio
Ao longo deste trabalho estudamos alguns termos muito usados pelos romanos
para se referirem aos gauleses Veremos entatildeo como eles aparecem nos textos de
Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio e como estatildeo de acordo com as normas dos gecircneros de
composiccedilatildeo de cada uma dessas narrativas
Os eacutetimos mais significativos que surgiram foram baacuterbaro e feroz Em Ceacutesar
esses vocaacutebulos apareceram para dois tipos de designaccedilotildees Sobre os germanos o
571
Sobre o periplum cf nota 442
236
gener l se referiu eles como sendo ―baacuterb ros e ferozes p r centu r que ess n ccedilatildeo
era mais selvagem do que os galos572
No outros excertos estudados de Ceacutesar a respeito
dos povos da Gaacutelia o baacuterbaro natildeo foi utilizado mas feroz sim Esse termo apareceu
exclusivamente para denominar os belgas natildeo sendo usado para nenhuma outra naccedilatildeo
da Gaacutelia Vimos que em BGall II 15 o autor se referiu aos neacutervios (uma naccedilatildeo belga)
como sendo ―homens ferozes e de gr nde virtude que censuravam e acusavam os
belgas restantes que tinham se rendido ao povo romano e abandonado os valores
paacutetrios 573
Essa denominaccedilatildeo se justificava em Ceacutesar porque de acordo com ele os
belgas seriam descendentes dos germanos aleacutem disso eles estavam mais distantes da
proviacutencia e da influecircncia civilizatoacuteria de Roma574
No caso dos neacutervios eles
consideravam que as outras naccedilotildees da Beacutelgica tinham se rendido aos romanos e perdido
seus valores paacutetrios como citado acima Os belgas contudo natildeo foram chamados de
baacuterbaros por Ceacutesar pois ele queria deixar clara a diferenciaccedilatildeo dos graus de barbaacuterie
entre galos e germanos mesmo sendo os mais corajosos da Gaacutelia os belgas tambeacutem
seriam submetidos a Roma Jaacute os germanos exemplo de ferocitas primitiva em Ceacutesar
natildeo estavam nos planos de conquista do general575
Mais uma vez fica evidente o caraacuteter
poliacutetico do De bello Gallico
Nas passagens estudadas de Liacutevio o termo baacuterbaro apareceu apenas para
designar os galos no sentido de povo estrangeiro substituindo o proacuteprio eacutetimo gaulecircs
Um exemplo disso estaacute em Ab urbe cond V 36 no episoacutedio em que os galos se
queixam do comportamento desrespeitoso dos Faacutebios que mesmo no papel de
emissaacuterios mataram o liacuteder dos gauleses Assim lemos ―os emissaacuterios dos g uleses
comunicaram esses assuntos conforme o ordenado ao senado natildeo agradou a accedilatildeo dos
Faacutebios e eles reconhecer m como sendo justo o pedido dos baacuterb ros 576
O proacuteprio
senado considerou que a postura dos Faacutebios foi indigna
De modo semelhante em V 38 (no qual haacute a narraccedilatildeo da vitoacuteria dos galos sobre
os rom nos proacuteximo o Aacuteli ) Liacutevio escreveu que ― teacute esse ponto natildeo pen s sorte
m s t mbeacutem inteligecircnci est v com os baacuterb ros 577
Em V 39 que trata do cerco a
572
Cf BGall I31 (p 103-105) e BGall I33 (p 134) 573
Cf p 131 574
Cf BGall I 1 em que Ceacutesar afirmou que os belgas eram os mais corajosos dentre os gauleses (p 129
e tambeacutem p 234) Sobre a ferocidade de germanos e gauleses ver p 143-145 575
Cf p 228 e 229 576
Ver p 167 577
Cf p 171
237
Rom os h bit ntes d Urbe ―logo ouvir m os gritos e uivos dissonantes dos baacuterbaros
que em b ndos per mbul v m em volt d s mur lh s 578
Jaacute o termo feroz em Ab urbe condita possui um emprego diferente mais do que
mera denominaccedilatildeo para os gauleses esse vocaacutebulo foi usado especialmente com o
sentido adverbial para ressaltar o mau comportamento dos galos579
Assim no episoacutedio
(V 36) em que os Faacutebios perguntaram aos galos qual interesse que eles tinham na
Etruacuteri eles responder m ―ferozmente que tinh m o direito tr veacutes d s rm s e tudo
pertenci os homens m is fortes n sequecircnci do mesmo trecho Liacutevio escreveu que
Quinto Faacutebio m tou o liacuteder dos g uleses que ―ferozmente se l nccedil v contr os
est nd rtes dos etruscos 580
Jaacute em V 37 Liacutevio descreveu a marcha dos gauleses ateacute
Rom dizendo ―jaacute todos os locais em frente e ao redor estavam repletos de inimigos e
esse povo dado a tumultos vatildeos com canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com
horrendo cl mor 581
No trecho de Ab urbe cond VII 10 que descreveu o episoacutedio da
vitoacuteria de Macircnlio em um combate individual Liacutevio escreveu que o gaulecircs saltitava feroz
―di nte dos est nd rtes dos inimigos 582
Apenas em XXXVIII 17 atraveacutes do discurso
de Macircnlio p r os rom nos Liacutevio se referiu os g los como ―ess feroz n ccedilatildeo p r
acentuar que os gauleses outrora selvagens perderam muito do seu valor em guerra ao
emigrarem para a Aacutesia Menor miscigenando-se com os gregos e amolecendo os acircnimos
devido ao clima ameno e vizinhos paciacuteficos583
Por conseguinte com esse uso do
vocabulaacuterio Liacutevio buscou ressaltar o povo gaulecircs como inimigo de Roma
Sobre esses termos recorrentes para descreverem uma naccedilatildeo (como baacuterbaro
feroz dentre outros)584
percebemos que eles funcionavam como marcos colocados na
narrativa de modo que o puacuteblico imediatamente reconhecesse e identificasse o povo
descrito pelo autor do texto Como Rankin (1996 p 127) pontua esses termos-chave
usados repetidamente funcionavam na prosa quase como os epiacutetetos empregados na
eacutepica585
Em Ceacutesar um exemplo do uso de vocabulaacuterio que se aproximou da eacutepica pode
ser encontrado na caracterizaccedilatildeo de Pisatildeo Aquitano586
Em Liacutevio natildeo soacute o uso de
578
P 173 579
De fato o termo feroz em latim relacionava-se a fera ou seja era um eacutetimo que designava um
comportamento primitivo natildeo-civilizado selvagem Cf tambeacutem p 40 para mais detalhes 580
Ver p 167 581
p 169 582
Cf p 182 583
p189-191 584
Aprofundaremos o estudo sobre os gauleses descritos como voluacuteveis altos (dentre outros
estereoacutetipos) no proacuteximo subcapiacutetulo que fala das figuras de linguagem 585
Sobre epiacutetetos e sua funccedilatildeo na eacutepica cf Almeida (2012 p 48 e ss) 586
Ver p 125
238
vocabulaacuterio mas toda a Ab urbe condita de modo geral pode ser entendida como uma
espeacutecie de eacutepica nacional587
A respeito de Pliacutenio ele natildeo empregou os termos baacuterbaro ou feroz para os
gauleses isso se justificava pelo fato de que em sua eacutepoca a Gaacutelia jaacute era uma proviacutencia
romana estabelecida e pacificada Natildeo fazia sentido Pliacutenio reescrever sobre a barbaacuterie
dos antigos galos jaacute que as fontes sobre esse tema eram acessiacuteveis ao puacuteblico de seu
tempo O seu interesse etnograacutefico por isso concentrou-se nos povos mais distantes e
que habitavam as fronteiras do mundo conhecido como por exemplo os indianos e os
etiacuteopes grandes exemplos de exotismo588
432 ndash Consideraccedilotildees sobre figuras de linguagem
Apoacutes a anaacutelise do vocabulaacuterio passaremos agora ao estudo das imagens
cristalizadas dos gauleses que foram mais recorrentes nos trechos do corpus deste
trabalho para tanto utilizamos como referecircncia algumas das imagens citadas na
Retoacuterica a Herecircnio589
Mais do que anaacutelise dessas figuras tambeacutem levaremos em conta
outros fatores textuais utilizados por Ceacutesar Liacutevio e Pliacutenio para a caracterizaccedilatildeo dos
galos como os argumentos e imagens empregados que podem ser inseridos na inuentio
(invenccedilatildeo) retoacuterica A primeira imagem que destacamos eacute a do gaulecircs retratado como
covarde e que facilmente fugia quando percebia que estava em desvantagem Ceacutesar no
episoacutedio da morte de Pisatildeo Aquitano disse que os germanos aterrorizaram os gauleses a
t l ponto que ―eles natildeo cess r m de fugir teacute virem agrave presenccedil de noss trop 590
Liacutevio
escreveu algo parecido no capiacutetulo da descriccedilatildeo da luta entre Valeacuterio e um gaulecircs Apoacutes
o confronto individual romanos e galos se enfrentaram mesmo com um iacutempeto inicial
de ataque os galos r pid mente desistir m do comb te Assim temos ―entre os que
avanccedilaram primeiro e cuja luta inflamara os outros o embate foi atroz o resto da
multidatildeo ntes que pudesse l nccedil r os d rdos virou s cost s 591
Fica evidente na perspectiva analisada que os celtas embora movidos por uma
ira inicial facilmente abandonavam essa bravura Outro exemplo disso estaacute tambeacutem no
discurso de Macircnlio os rom nos em que ele diz que ―se resistirmos o primeiro t que
587
Cf p 158 e159 588
Cf p 199 e 200 589
Para todas as figuras de linguagem descritas nesse tratado cf IV 19 e ss 590
BGall IV 12 p 125 591
VII 26 p 186 e 187
239
que eles lanccedilam com violento acircnimo e cega ira logo os braccedilos deles se enfraquecem e
s rm s c em devido o suor e agrave f dig 592
Ainda achamos outro exemplo dessa
inconstacircncia dos gauleses tambeacutem citada por Macircnlio nesse mesmo discurso ele disse
que os rom nos jaacute est v m ―f mili riz dos com esses tumultos gaacutelicos e que t mbeacutem
conheci m ― s inconstacircnci s (uanitates) deles 593
Liacutevio adotou bastante essa imagem
do gaulecircs desordeiro e barulhento ao longo do Ab urbe condita De fato esse povo
demonstrava na narrativa um comportamento cecircnico na forma de agir para causar ainda
mais terror nos inimigos594
Encontramos exemplo disso em Ab urbe condV 37
Como ao tumulto deles que passavam precipitadamente as comunidades
aterrorizadas corriam agraves armas e os camponeses buscavam a fuga com
grande clamor eles anunci v m ―v mos Rom Por onde quer que
passassem com a fileira ocupavam imenso lugar com os cavalos e tropas se
espalhando em comprimento e largura () Jaacute todos os locais em frente e ao
redor estavam repletos de inimigos e esse povo dado a tumultos vatildeos com
canto feroz e vaacuterios gritos preenchiam tudo com horrendo clamor
No trecho acima percebemos a figura de linguaguem da acumulaccedilatildeo ndash no caso
das accedilotildees que vatildeo se sucedendo os celtas ocuparam enorme lugar com a sua fileira e
depois que preencheram todos os locais pela frente e pelos lados passaram a gritar para
aumentar o terror Igualmente em Ab urbe cond V 38 Liacutevio narrou o terror por parte
dos romanos
No exeacutercito contraacuterio natildeo havia nada que se assemelhasse aos romanos nem
junto aos comandantes nem junto aos soldados O pavor e a fuga tomaram os
acircnimos de tal forma que tamanho esquecimento de tudo fez com que a maior
parte deles fugisse para a inimiga cidade de Veios (ainda que o Tibre os
retivesse) e natildeo em direccedilatildeo ao reto caminho para Roma para as suas esposas
e filhos Por pouco tempo esse local protegeu as tropas reservas na outra
linha de batalha ao mesmo tempo foi ouvido um clamor vindo pelo lado aos
que estavam proacuteximos e por traacutes aos que estavam distantes a tal ponto que
sem nem ao menos ver o inimigo desconhecido de forma alguma tentaram
um combate ou sequer responderam o grito Eles intactos e ilesos fugiram e
ningueacutem morreu lutando na verdade eles feridos pelas costas eram
impedidos de fugir devido agrave proacutepria briga da multidatildeo
Na passagem anterior haacute a figura da gradaccedilatildeo de ideias que transmitem ao
puacuteblico-alvo como o pavor dos romanos na batalha foi paulatinamente aumentando
primeiro Liacutevio escreveu que os romanos natildeo pareciam com os proacuteprios romanos em
592
XXXVIII 17 p 191 593
Mesma passagem da nota acima 594
Diodoro Siacuteculo tambeacutem falou sobre esse tumulto causado pelos gauleses (Bibl V 30 3)
240
seguida uma parte dos soldados apavorada fugiu e tomou o caminho errado que levava
a Veios (e natildeo a Roma) Depois a tropa reserva por pouco tempo conseguiu resistir
mas ao ouvir o grito dos gauleses e sem sequer ver os inimigos de fato tambeacutem
debandou O aacutepice dessa gradaccedilatildeo estaacute ao final no qual temos que os romanos
morreram natildeo pelo combate em si mas sim pela bagunccedila desordenada e pela briga da
proacutepria multidatildeo dos soldados no desespero da fuga Por fim citamos Ab urbe cond
XXXVIII 17 um exemplo de como os galos provocavam terror
Eles possuem corpos enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e
espadas muito longas Junto a isso tambeacutem o canto os gritos e as danccedilas dos
que comeccedilam um combate e o horrendo barulho que fazem ao bater as armas
nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para
causar terror 595
Acima um outro exemplo de acumulaccedilatildeo aleacutem de sua imponente forma fiacutesica
os gauleses tambeacutem causavam pacircnico pelo seu modo de agir cantando gritando e
fazendo barulho com as armas
Outro elemento que comumente caracterizava o gaulecircs no corpus analisado era
sua leviandade Ceacutesar escreveu que eles eram voluacuteveis e tomavam decisotildees baseados
em rumores em IV 5
Ceacutesar informado sobre tais assuntos e receando a leviandade dos gauleses
que satildeo voluacuteveis para decidir e muitas vezes se interessam por sediccedilotildees
considerou que nada devia ser confiado a eles De fato isto eacute do costume
gaulecircs natildeo soacute obrigar constrangidos viajantes a parar mas tambeacutem procurar
saber aquilo que cada um deles ouviu ou soube sobre cada coisa e o povo nas
cidades rodear os mercadores e forccedilaacute-los a falar de quais regiotildees provecircm e o
que ali conheceram movidos por tais feitos e boatos muitas vezes os
gauleses tomam decisotildees sobre os mais importantes assuntos das quais eacute
forccediloso que logo se arrependam pois confiam em rumores incertos e a maior
parte mente ao responder segundo a vontade deles
Em outra passagem Ceacutesar afirmou que os gauleses natildeo eram confiaacuteveis mas
sim gananciosos e levianos por causa dessa ganacircncia eles inclusive desrespeitaram a
garantia dada ao tribuno Marco Ariacutestio e atacaram os cidadatildeos romanos como se lecirc em
BGall VII 42
Enquanto isso se fazia nas vizinhanccedilas de Gergoacutevia os eacuteduos tendo recebido
os primeiros emissaacuterios de Litavico natildeo deixaram passar o tempo para
verificar os fatos A cobiccedila impele alguns a outros a ira e a temeridade que
eacute especialmente inata nessa espeacutecie de homens de modo que consideram
595
Essa imagem do gaulecircs aterrorizante apareceu em Diodoro (Bibl V 31 1)
241
qualquer rumor como algo confirmado Roubam os bens dos cidadatildeos
romanos fazem massacres e levam-nos agrave escravidatildeo Convictolitave aticcedila a
fogueira e impele a plebe ao furor para que cometido o crime envergonhe-
se de recobrar o juiacutezo Potildeem para fora da cidade de Cabilono Marco Ariacutestio
tribuno militar que se dirigia agrave sua legiatildeo tendo oferecido garantias obrigam
a fazer o mesmo aqueles que ali se estabeleceram para negociar Logo os
atacando no caminho despojam-nos de todas as bagagens sitiam dia e noite
os que resistem havendo muitos mortos dos dois lados incitam maior
multidatildeo agraves armas
Um outro exemplo dessa ganacircncia dos galos pode ser tambeacutem encontrado em
Liacutevio no episoacutedio em que os gauleses ao receberem o butim dos romanos apoacutes o saque
da Urbe trouxeram uma balanccedila injusta Em Ab urbe condita V 48 temos
Logo na conferecircncia entre Q Sulpiacutecio tribuno militar e Breno liacuteder dos
gauleses arranjou-se um acordo foi decidido o preccedilo de mil libras de ouro ao
povo que em breve haveria de governar as naccedilotildees Uma indignidade foi
acrescida a essa determinaccedilatildeo bastante vergonhosa pois a balanccedila que os
gauleses trouxeram era injusta Como o tribuno recusasse isso o gaulecircs
insolente adicionou a espada ao peso e ouviu-se a intoleraacutevel voz para os
rom nos dizer ― i dos vencidos
O comportamento do gaulecircs contra Tito Macircnlio no confronto narrado em Ab
urbe cond VII 10 tambeacutem foi insensato jaacute que o oponente de Macircnlio antes de lutar
saltitava feroz diante dos estandartes estava insensatamente feliz e mostrava a liacutengua
em escaacuternio demonstrando um comportamento temeraacuterio de quem jaacute tinha vencido a
luta596
apesar de tudo isso ele foi rapidamente derrotado pelo romano597
Em Liacutevio
essa ferocidade cega e inuacutetil do gaulecircs se contrapunha agrave astuacutecia e sangue-frio do
rom no como disse Macircnlio no discurso os rom nos ―de f to Tito Macircnlio e M rco
Valeacuterio mostraram o quanto a virtude romana (Romana uirtus) se sobressaiacutea agrave fuacuteria
gaulesa (Gallicam rabiem)598
Nos escritos de Ceacutesar e Liacutevio notamos que algumas vezes os galos eram
movidos por certas maacutes tendecircncias natas e por isso difiacuteceis de serem dominadas No
BGall VII 42 lemos ― cobiccedil (auaritia) impele alguns a outros a ira (iracundia) e a
temeridade (temeritas) que eacute especi lmente in t ness espeacutecie de homens 599
Jaacute Liacutevio
disse que os g los ―qu ndo souber m que for concedid t l honr os viol dores do
direito das naccedilotildees e aleacutem disso ter sido frustrada a sua embaixada inflamados pela ira
596
Em Diodoro (Biblioteca V 29 2 e 3) o apareceu o caraacuteter fanfarratildeo dos gauleses bem como o haacutebito
de um deles se adiantar para propor um confronto individual com o inimigo 597
Cf p 182 e 183 598
XXXVIII 17 p 189 e 191 599
Cf trecho completo a partir da paacutegina anterior
242
(que esse povo eacute incapaz de controlar) imediatamente tomaram os estandartes e
m rch r m pelo c minho com fileir press d 600
Outro exemplo de comportamento considerado baacuterbaro dos galos estaacute em Liacutevio
que disse em XXXIII 24
Os boios exultantes levaram ateacute o templo que era muito sagrado entre eles
os despojos do corpo e a cabeccedila decepada do general Entatildeo apoacutes limparem a
cabeccedila como era o costume deles ornaram o cracircnio com ouro que para eles
passou a ser um recipiente sagrado Com ele fariam as libaccedilotildees nas
solenidades e o mesmo serviria de copo para os sacerdotes do templo 601
Os gauleses igualmente eram preocupados com sua religiatildeo Ceacutesar (BGall VI
16) disse ―tod n ccedilatildeo dos g uleses eacute muito d d os escruacutepulos religiosos 602
Liacutevio
no episoacutedio em que conta a travessia dos Alpes feita pelos galos (Ab urbe cond V 34)
escreveu que natildeo soacute a altura das montanhas os retinha mas tambeacutem a religiatildeo na
verdade eles ajudaram os marselheses contra os saacutelvios e igualmente fundaram Milatildeo
seguindo pressaacutegios603
A respeito da aparecircncia fiacutesica dos gauleses era comum eles serem descritos
como enormes e fortes Essas descriccedilotildees dos galos se encaixam na figura da hipeacuterbole
de fato as caracteriacutesticas fiacutesicas (e ateacute comportamentais) dos galos satildeo bastante
exageradas a fim de enfatizar esse caraacuteter baacuterbaro e que inspirava terror nos outros Por
isso eles eram comumente descritos como possuidores de corpos imensos de grande
estatura etc604
Liacutevio (VII 10) ao contar o confronto entre Macircnlio e um galo descreveu
esse uacuteltimo como possuidor de um corpo ―notaacutevel pelo t m nho respl ndecente em
um veste multicolorid de vaacuterios tons e com rm s orn d s de ouro 605
Era recorrente
a representaccedilatildeo de os gauleses lutarem usando ornamentos de ouro e vestes coloridas e
chamativas606
Outra passagem que destacamos a esse respeito estaacute tambeacutem no Ab urbe
cond XXXVIII 17 em que os g uleses for m descritos por Liacutevio como tendo ―corpos
600
Ab urbe cond V 37 p 169 601
Capiacutetulo completo na p 188 e 189 Sobre o costume de se guardar cabeccedilas como trofeacuteus cf Diodoro
(Bibl V 29 5) e Estrabatildeo (parafraseando Posidocircnio) em Geog IV 4 5 (p 85 e 86 desse trabalho) 602
P 141 603
p 163 e 164 604
Esse estereoacutetipo do gaulecircs de grande estatura tambeacutem apareceu em Poliacutebio (Histoacuterias II 15 7 na p
49) Diodoro (Biblioteca V 28 1 na p 82) e Estrabatildeo (Geog IV 4 2 na p 85) 605
Cf p 183 606
Estrabatildeo (Geografia IV 4 5) falou natildeo soacute do fato de os gauleses gostarem de andar cobertos de ouro
mas ainda sobre seu caraacuteter fanfarratildeo
243
enormes cabelos longos e ruivos grandes escudos e espadas muito long s 607
Pliacutenio
utilizando-se do relato de Liacutevio sobre a luta de Torquato (que recebeu esse nome ao
pegar o colar de ouro do gaulecircs derrotado) afirmou (HN XXXIII V 14) ―como
indica a histoacuteria de Torquato os gauleses estavam habituados a lutar us ndo ouro
44 ndash Os antigos celtas o que a arqueologia diz
Falaremos agora da arqueologia enquanto elemento paratextual desta pesquisa
O recorte temporal seraacute o mesmo adotado ateacute aqui isto eacute de meados do seacuteculo II aC
(quando temos relatos mais consistentes sobre as naccedilotildees da Gaacutelia) ao seacuteculo I dC
Como pontua Dyson (In ERSKINE 2009 p 61) a arqueologia eacute a ferramenta central
nos estudos da Antiguidade que possibilita ampliar confirmar ou refutar informaccedilotildees
fornecidas por fontes textuais limitadas ou cuja veracidade era muito discutida Dessa
maneira nos seraacute possiacutevel entatildeo vislumbrar como se organizava a Gaacutelia e entender o
que a arqueologia traz que complementa as discussotildees textuais e literaacuterias que
realizamos ao longo desta tese608
O conceito de celta era bastante abrangente servia para designar os habitantes da
Gaacutelia os da Britacircnia (atual Inglaterra) da atual Irlanda bem como englobava os que
viviam na Ibeacuteria (os celtiberos) e ainda os gaacutelatas na Aacutesia Menor (tambeacutem chamados
de galo-gregos) Pelas vaacuterias regiotildees acima percebemos que os limites geograacuteficos dos
celtas eram fluidos heterogecircneos e em constantes mudanccedilas aleacutem das aacutereas
supracitadas os celtas chegaram a habitar desde a antiga Hispacircnia ateacute o atual norte da
Itaacutelia As fronteiras ao norte satildeo ainda mais incertas chegando agraves atuais Alemanha e
Holanda e possivelmente aleacutem (WITT IN ERSKINE 2009 p 287) Neste trabalho
607
P 184 e 185 Sobre gauleses com cabelos longos ver Diodoro (Bibl V 28 1) na p 82 deste trabalho
e Estrabatildeo (Geog IV 4 3) 608
Aqui consideramos como Gaacutelia o territoacuterio que compreende a atual Franccedila Beacutelgica e Suiacuteccedila ateacute as
fronteiras do rio Reno que desde Ceacutesar era o marco do limite do territoacuterio romano Para estudo mais
profundo e abrangente sobre os povos da Europa ocidental recomendamos o livro de Wells The
Barbarians speak (1999) Nessa obra o pesquisador tem por objetivo abordar os povos nativos da Europa
de clima temperado e as suas experiecircncias indo do final da Idade do Bronze (cerca de 1200 aC) e se
concentrando especialmente durante as conquistas romanas e os seacuteculos de dominaccedilatildeo imperial Ao
analisar restos arqueoloacutegicos eacute possiacutevel entender como essas comunidades lidaram com as incursotildees
romanas e como elas mesmas se acomodaram em novas estruturas sociais poliacuteticas e culturais a partir do
novo domiacutenio
244
quanto agrave geografia concentramos nossos estudos nos celtas da Gaacutelia devido ao material
que vimos nas fontes claacutessicas e no corpus aqui analisado609
Em termos temporais os primoacuterdios da histoacuteria dos celtas remontam agrave Idade do
Ferro O periacuteodo mais antigo chamado pelos estudiosos de Hallstatt compreende o
intervalo entre os seacuteculos VII a meados do seacuteculo V aC O termo Hallstatt serve
igualmente para designar o estilo artiacutestico e a cultura eacutetnica arqueoloacutegica e social dessa
eacutepoca O periacuteodo seguinte apoacutes cerca de 450 aC ateacute a conquista romana eacute chamado de
La Tegravene e tambeacutem serve para nomear o estilo de arte e a cultura dessa fase610
O
periacuteodo final do La Tegravene coincide com os relatos do seacuteculo II aC (como Poliacutebio e
Catatildeo o Censor) Dessa maneira jaacute em meados do seacuteculo II aC a arqueologia revela
habitaccedilotildees em fazendas vilas centros de comeacutercio complexos de mineraccedilatildeo e os
oppida611
Esses oppida (assim nomeados por Ceacutesar) consistiam em cidades fortificadas
com muralhas e satildeo considerados os primeiros assentamentos urbanos do La Tegravene
situavam-se no topo de colinas e aleacutem disso eram centros de comeacutercio Os oppida
podem ser encontrados no territoacuterio da atual Franccedila central ateacute o Danuacutebio no oeste da
Eslovaacutequia alguns exemplos de oppida da antiga Gaacutelia citados em Ceacutesar satildeo Avaacuterico
Aleacutesia Luteacutecia e Bibracte (WELLS 1999 p 50)612
As sociedades do tardio periacuteodo La Tegravene na Gaacutelia praticavam agricultura e
pastoreio aleacutem de jaacute adquirirem bens oriundos das regiotildees Mediterracircneas seja por via
do comeacutercio seja por via de invasotildees Haacute registros de vasos de bronze coral tirreno
acircmbar baacuteltico marfim da Aacutefrica corantes do Oriente proacuteximo aleacutem de achados da Ciacutetia
e da Traacutecia em troca os celtas forneciam sal carne seca peles tecircxteis madeira mel e
escravos (WITT IN ERSKINE 2009 p 293) Sobre a produccedilatildeo tecircxtil muitos
assentamentos tecircm evidecircncias de tecelagem sofisticada trajes de latilde e linho foram
encontrados em vaacuterios siacutetios (no norte da Alemanha Dinamarca assentamentos perto
609
Sobre todo o conjunto das naccedilotildees ceacutelticas acima citadas faz-se necessaacuterio citar a monumental obra
The Celtic world (2007) editada em 4 volumes por Karl e Stifter que trata dos celtas desde os seus
primoacuterdios na Idade do Ferro ateacute o periacuteodo medieval Assim cada volume eacute dedicado a um ramo
especiacutefico de estudo como a teoria dos estudos ceacutelticos a arqueologia a histoacuteria e a linguiacutestica 610
O nome Hallstatt se deve a uma cidade homocircnima na Aacuteustria onde se encontram dois siacutetios
arqueoloacutegicos importantes uma mina de sal e um cemiteacuterio da eacutepoca da virada da Idade do Bronze para a
do Ferro O Hallstatt enquanto estilo englobava entatildeo o territoacuterio onde hoje estatildeo a Aacuteustria a Alemanha
a Franccedila o norte da Itaacutelia Suiacuteccedila ateacute o Danuacutebio na Hungria Jaacute o periacuteodo conhecido por La Tegravene tem esse
nome por causa de um siacutetio homocircnimo agraves margens do lago Neuchacirctel na Suiacuteccedila O estilo La Tegravene
desenvolveu-se a partir do Hallstatt (abrangendo as mesmas aacutereas) com influecircncia da cultura
mediterracircnea devido aos primeiros contatos que os povos dessas regiotildees tiveram com os gregos no seacuteculo
V aC Para mais detalhes dessas divisotildees cf Witt (IN ERSKINE 2009 p 287-292) 611
Do latim oppidum (oppida no neutro plural) significava cidade fortificada ou fortaleza como esse
termo eacute usado ateacute hoje para designar essas cidades preferimos natildeo traduzir esse vocaacutebulo 612
Para maior aprofundamento sobre os oppida cf Wells (1999 p 49-53) e Woolf (2003 p 107-112)
245
de lagos na Suiacuteccedila em paiacuteses que circundam os Alpes nas minas de sal de Hallstatt e
Hallein na Aacuteustria) onde condiccedilotildees quiacutemicas natildeo usuais resultaram na preservaccedilatildeo das
fibras orgacircnicas que se mantiveram em oacutetimas condiccedilotildees de preservaccedilatildeo (WELLS
1999 p 58 e 59) Ao ler essa informaccedilatildeo nos vem na lembranccedila o comentaacuterio sobre a
latilde feito por Pliacutenio que disse que na Gaacutelia havia um processo proacuteprio de trabalhar a latilde
aleacutem de mencionar como era feito o resistente feltro e o fato de os restos da latilde serem
usados como enchimento de colchotildees (HN VIII 192)613
Quanto ao comeacutercio com o
Mediterracircneo o vinho jaacute era comercializado na Gaacutelia antes do domiacutenio romano ndash desde
o comeccedilo do seacuteculo II aC especialmente com as cidades helecircnicas e posteriormente a
partir das proviacutencias romanas ao norte da Itaacutelia (WOOLF 203 p 175-179) Outros
achados foram a ceracircmica da Campacircnia e artigos de mesa feitos em bronze Apoacutes a
conquista romana passaram a ser encontradas acircnforas de azeite e molho da Hispacircnia e
percebe-se que a produccedilatildeo de vinho na proacutepria Gaacutelia (e da Hispacircnia tambeacutem) tem mais
circulaccedilatildeo do que os vinhos que antes vinham da Itaacutelia614
Em termos de organizaccedilatildeo social as primeiras comunidades celtas eram
entendid s como ―domiacutenios dos chefes ou sej naacutelog s os basileis de Homero ou ao
feudalismo medieval Natildeo haacute duacutevida de que essas sociedades eram extremamente
hierarquizadas mas a simples oposiccedilatildeo entre elite e povo natildeo era assim tatildeo simplista e
variavam muito de acordo com o tempo e as regiotildees dentro da Gaacutelia Quando os
romanos invadiram a Gaacutelia em 58 aC sob a lideranccedila de Ceacutesar as comunidades que
eles encontraram eram dinacircmicas abertas e jaacute estavam passando por grandes mudanccedilas
culturais e poliacuteticas Naccedilotildees de vaacuterias partes da Europa ocidental jaacute tinham contato com
o mundo romano mais de um seacuteculo antes da conquista em interaccedilotildees comerciais havia
assentamentos urbanos (oppida) e a escrita comeccedilava a ser usada por algumas
comunidades (WELLS 1999 p 32 e 33) Sobre a escrita Woolf (2003 p 92) destaca
que grupos que estavam a leste do Roacutedano adaptaram caracteres gregos dos marselheses
em uma linguagem ceacuteltica usada em inscriccedilotildees chamada de galo-grega todavia vaacuterias
naccedilotildees dessa regiatildeo natildeo adotavam a escrita615
A arqueologia desde o periacuteodo final da
Idade do ferro e comeccedilo do La Tegravene mostra que os povos natildeo eram muito bem divididos
em tribos como parecia evidente em autores gregos e romanos que mencionaram
613
Cf p 213 614
Par m is det lhes sobre troc s comerci is entre Gaacuteli e Rom cf o c piacutetulo ―Consuming Rome de
Woolf (2003 p 169-205) 615
Para aprofundamento sobre questotildees de liacutengua e escrita na Gaacutelia antes e durante a conquista romana
cf o c piacutetulo ―M pping cultur l ch nge de Woolf (2003 p 77-105)
246
organizaccedilotildees tribais bem distintas como os eacuteduos os helveacutecios os boios etc Segundo
Wells (1999 p 57) as evidecircncias arqueoloacutegicas discordam dessa afirmaccedilatildeo de uma
sociedade altamente dividida mas sim demonstram que havia um grande espectro de
variaccedilotildees sem distinccedilotildees expressivas em termos de riqueza ou status As tribos que
Ceacutesar e outros autores descreveram poderiam ter sido recentemente formadas em
resposta ao proacuteprio avanccedilo romano (e tambeacutem em resposta agraves migraccedilotildees dos cimbros e
teutotildees algumas deacutecadas antes da Guerra da Gaacutelia) As comunidades celtas vendo-se
ameaccediladas por incursotildees de inimigos passaram a se juntar em grupos maiores e a
escolher um liacuteder (chefe ou rei) para se organizarem contra os adversaacuterios616
De fato
antes dessas invasotildees os povos da Europa temperada se organizavam em grupos
diminutos e familiares e viviam em aldeias e territoacuterios pequenos Isso tambeacutem
corrobora a evidecircncia arqueoloacutegica de que natildeo existia uma estrutura hieraacuterquica aleacutem da
comunidade local (WELLS 1999 p 57) O proacuteprio conhecimento que se tem dessas
hierarquias foi bastante afetado pela conquista romana O mesmo Ceacutesar no De bello
Gallico simplesmente resumiu ess questatildeo dizendo que existi m ―du s espeacutecies desses
homens que satildeo tidos em lgum cont e honr dez 617
Nas palavras dele nesse mesmo
trecho o povo (plebe) quase natildeo tinha direitos a elite era composta pelos druidas e
pelos cavaleiros (equites) O uso de termos latinos para descrever aspectos da sociedade
celta tambeacutem afetou esse conhecimento nas fontes Devemos lembrar que Ceacutesar
simplificou a hierarquia social dos gauleses em dois poacutelos por questotildees especiacuteficas de
poliacutetica e autopropaganda618
Por outro lado vimos em outras fontes outros papeis
sociais importantes aleacutem dos druidas e os cavaleiros como os bardos e os vates619
Com
a conquista definitiva da Gaacutelia e especialmente apoacutes o estabelecimento das proviacutencias
gaulesas por Augusto as cidades comeccedilaram a florescer620
As estradas abertas tambeacutem
facilitaram a urbanizaccedilatildeo e a circulaccedilatildeo de mercadorias na Gaacutelia continental
Sobre a organizaccedilatildeo militar dos celtas e seu caraacuteter guerreiro tecircm-se vaacuterios
indiacutecios interessantes Na Romecircnia foi encontrada uma tumba do seacuteculo III aC
contendo vaacuterios aparatos beacutelicos O que destacamos desse achado eacute um capacete em
ferro coroado com uma figura em bronze de uma ave de rapina o curioso eacute que as asas
616
Ceacutesar (BGall VII 4) escreveu que vaacuterias naccedilotildees gaulesas (como os secircnones os pariacutesios os aulercos
etc) uniram-se sob a lideranccedila de Vercingetoacuterige (aclamado rei pelos seus da naccedilatildeo arverna) em uma
derradeira tentativa de derrotar os romanos 617
BGall VI 13 p 137 e 138 618
Cf p 139 619
Sobre o que Posidocircnio disse a respeito cf p 66 quanto a Diodoro cf p 83 620
Cf p 153 Para mais detalhes sobre urbanizaccedilatildeo e cidades na Gaacutelia cf Woolf (2003 p 112-125)
247
se moviam de modo que quando o guerreiro corria ou se lanccedilava ateacute o inimigo seu
capacete produzia um barulho estrondoso e aterrorizante (WITT IN ERSKINE 2009
p 294) Abaixo uma foto do artefato621
Esse capacete nos traz agrave memoacuteria o comentaacuterio de Liacutevio que disse a respeito dos
gauleses se comportarem deliberadamente para infligir terror aos seus inimigos622
Jaacute no final da Preacute-histoacuteria (ateacute o periacuteodo final da Idade do Ferro) foram
encontradas vaacuterias tumbas de guerreiros ricamente equipados contendo vaacuterios objetos
como longas espadas de ferro com bainhas decoradas com ornamentos elaborados
escudos com um centro ovalado de metal e esporas enfeitadas623
Esses objetos
extremamente adornados denotavam o status dos guerreiros e cavaleiros que gozavam
de grande fama na arte da equitaccedilatildeo (WELLS 1999 p 62)624
Quanto agraves crenccedilas religiosas eacute muito difiacutecil reconstruir os fatos a partir dos
achados arqueoloacutegicos Haacute indiacutecios de rituais e sacrifiacutecios de animais mas natildeo se sabe
muito sobre os atributos dos deuses ceacutelticos e germacircnicos Wells (1999 p 59) destaca
que ironicamente o que se sabe dos nomes e atributos das divindades veio das fontes
greco-romanas e natildeo se sabe o quanto essas concepccedilotildees jaacute tinham mudado na eacutepoca
dos romanos aleacutem disso natildeo haacute evidecircncia arqueoloacutegica clara sobre os druidas
621
Im gem retir d de Koch (2006 p 448) o c p cete eacute conhecido como Ciumești por ter sido
encontrado na homocircnima cid de de Ciumești n Romecircni 622
Cf Ab urbe cond XXXVIII 17 na p 240 em que Liacutevio disse ―o horrendo b rulho que f zem o
bater as armas nos escudos de acordo com o seu costume eacute deliberadamente preparado para causar
terror 623
Percebemos que as fontes antigas corroboram o fato dos guerreiros possuiacuterem vestimentas ricamente
elaboradas e enfeitadas (cf p 242 para essas imagens recorrentes) 624
Ceacutesar falou do alto status social de que gozavam os cavaleiros gauleses como mencionamos na p 246
Ainda sobre os cavaleiros os romanos passaram a adotar grandes contingentes de cavalaria gaulesa em
suas fileiras desde Ceacutesar indo ao longo de toda a sua histoacuteria posterior Cf o episoacutedio do ataque a Pisatildeo
Aquitano e agrave cavalaria gaulesa em BGall IV 12 p 125 Jaacute no seacuteculo III aC os gaacutelatas eram
contratados como mercenaacuterios por reinos heleniacutesticos Aniacutebal tambeacutem utilizou mercenaacuterios gauleses
durante a Segunda Guerra Puacutenica
248
Tambeacutem haacute poucos indiacutecios arqueoloacutegicos de sacrifiacutecios humanos A respeito dos
relatos greco-romanos que mencionavam essa praacutetica deve-se ter em mente que os
autores dessa eacutepoca muitas vezes natildeo hesitavam em retratar os baacuterbaros com cores
selvagens acentuando comportamentos negativos ou bizarros Outro fato que
possivelmente corrobora isso eacute o de que no tempo do contato com o mundo claacutessico
greco-romano as sociedades autoacutectones da Europa passavam por situaccedilotildees extremas e
possivelmente devem ter recorrido a essa praacutetica dos sacrifiacutecios humanos isso poderia
ter coincidido com os relatos escutados por autores como Posidocircnio Diodoro e Ceacutesar
(WELLS 1999 p 59 e 60)625
Vimos ao longo deste trabalho como as representaccedilotildees do gaulecircs foram se
transformando desde os primeiros contatos entre esse povo e os gregos e romanos e
essa transformaccedilatildeo se daacute ateacute os dias de hoje A retomada do estudo sobre os gauleses se
deu principalmente na Franccedila a partir do seacuteculo XVIII com obras historiograacuteficas que
passaram a tratar a histoacuteria desse paiacutes levando em consideraccedilatildeo o seu passado ceacuteltico
(antes as obras se concentravam apenas nos romanos e fatos posteriores) Dentre tantos
exemplos a partir desse seacuteculo citamos aqui alguns como a obra Antiquiteacute des Celtes
de Dom Paul Pezron (de 1703) e Histoire des Gaules de Dom Jacques Martin
(1752)626
A partir de Napoleatildeo III a Franccedila passou a buscar nos gauleses a figura de um
heroacutei nacional especialmente na pessoa de Vercingetoacuterige que apareceu em pinturas e
esculturas de artistas como Aimeacute Millet (Vercingeacutetorix dlsquoAleacutesia) Emmanuel Freacutemiet
(Le chef gaulois) e Auguste Barholdi (Monument agrave vercingeacutetorix em Clermont-
Ferrand) Jaacute do seacuteculo XX de nossa era natildeo podemos deixar de citar a ceacutelebre Histoire
de la Gaule de Camille Jullian (publicada de 1903 a 1926) Com tanto material sobre os
galos facilmente percebemos que eles ateacute hoje despertam a curiosidade das pessoas e
aparecerem em vaacuterios tipos de obras artiacutesticas e culturais nas histoacuterias em quadrinhos
escritas por Goscinny e Uderzo sobre Asteacuterix e Obeacutelix (que inclusive possuem um
parque temaacutetico exclusivo na Franccedila) em documentaacuterios vaacuterios veiculados em canais
de televisatildeo como History Channel e Discovery Civilization e em exposiccedilotildees de arte
como de tem ―G ulom ni que ocorreu em P ris em 1996 no Museacutee N tion l des
Arts et Traditions Populaires Igualmente os galos satildeo retratados em reconstituiccedilotildees de
muacutesica e liacutengua celta em festivais populares como o Montelago Celtic Festival que
625
Os proacuteprios romanos em periacuteodos criacuteticos de sua histoacuteria chegaram a praticar o sacrifiacutecio de dois
gauleses e dois gregos como forma de aplacar os deuses (WOOLF 2003 p 61) 626
Cf Thill (1998) para mais exemplos de obras que trazem os gauleses como personagens de destaque
desde o seacuteculo XVIII ateacute os dias atuais