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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE LÍNGUAS
CLARISSE DUTRA AURÉLIO
AUTOBIOGRAFIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: O DISCURSO DO SUJEITO-ALUNO SOBRE SI
Bagé 2019
CLARISSE DUTRA AURÉLIO
AUTOBIOGRAFIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: O DISCURSO DO SUJEITO-ALUNO SOBRE SI
Dissertação de Mestrado Profissional em Ensino de Línguas da Universidade Federal do Pampa – apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre.
Orientadora Profª. Drª. Carolina Fernandes
Coorientadora Profª. Drª. Sara dos Santos Mota
Bagé
2019
A927a
Aurélio, Clarisse Dutra
Autobiografia na educação de jovens e adultos: o
discurso do sujeito-aluno sobre si / Clarisse Dutra
Aurélio.
100 p.
Dissertação(Mestrado)-- Universidade Federal do
Pampa, MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE LÍNGUAS,
2019.
"Orientação: Carolina Fernandes".
1. Discurso sobre si. 2. Aurobiografia. 3. Educação
de jovens e adultos. 4. Identidade. I. Título.
CLARISSE DUTRA AURÉLIO
AUTOBIOGRAFIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: O DISCURSO DO SUJEITO-ALUNO SOBRE SI
Dissertação de Mestrado Profissional em Ensino de Línguas da Universidade Federal do Pampa – apresentada como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre.
Dissertação defendida e aprovada em: 08 de dezembro de 2019.
Banca examinadora:
Profª. Drª. Carolina Fernandes Orientadora (UNIPAMPA)
Profª. Drª. Paula Daniele Pazon (UNIPAMPA)
À Rita, Ivan, Niumar e Renato
Minha família,
meu coração.
À Educação de Jovens e Adultos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Criador e aos espíritos de luz que me acompanharam, me guiaram
e me protegeram durante essa caminhada.
Aos meus pais, Ivan e Rita, por tudo que sempre fizeram por mim,
principalmente por me ensinarem a viver e lutar com dignidade. Em especial à minha
mãe, minha fonte de força e coragem, que sempre me reergueu nos trechos mais
cinzentos de minha vida.
Ao meu irmão, Niumar, pelos exemplos de persistência e determinação.
Ao João Alberto, meu padrasto, pelo apoio em um dos momentos mais difíceis
desse Ano.
À minha orientadora, Carolina Fernandes, por todos os ensinamentos,
principalmente pela generosidade e carinho a cada encontro de orientação – eles
foram essenciais para eu seguir em frente e concluir cada etapa desse desafio. Minha
eterna gratidão! À minha coorientadora, Sara Mota, por toda a disponibilidade e
atenção. Muito obrigada!
Ao meu colega Pedro e sua esposa Mari, pela acolhida gentil e pacienciosa nas
fases mais críticas da construção deste trabalho. Grata pelos livros emprestados,
pelas dicas, pelos esclarecimentos – principalmente pelas palavras de incentivo e
gestos de carinho diante dos meus desabafos, minhas inquietações. Gratidão,
amigos!
Ao meu anjinho de quatro patas, Lola, pelo amor, olhar carinhoso e companhia
nos momentos mais solitários de estudo e escrita.
À Educação de Jovens e Adultos da EMEB Marcelo Faraco, à vice-diretora Cátia
Braga e aos meus colegas professores, pelo apoio e compreensão durante essa
jornada. Em especial aos meus queridos alunos, sem eles minha pesquisa não seria
possível. Às minhas colegas de Mestrado – pela amizade e parceria.
E aos meus professores do Programa de Mestrado Profissional, o meu muito obrigada!
“A memória sabe de mim mais que
eu; e ela não perde o que merece ser
salvo”.
Eduardo Galeano
RESUMO
A presente dissertação se propõe a analisar a aplicação de um trabalho com o gênero
discursivo autobiografia na Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma escola
municipal de Alegrete/RS, enfocando a questão da identidade, bem como o
desenvolvimento da autoria nos sujeitos-alunos. Nosso trabalho tem como aporte
teórico-metodológico a Análise de Discurso de linha francesa, iniciada por Michel
Pêcheux, o que permite que nossa análise se sustente em conceitos como paráfrase,
polissemia, discurso e formações imaginárias, possibilitando que se faça um gesto de
leitura que leve em consideração que os sentidos mobilizados pelos sujeitos-alunos
são produzidos através de identificações ideológicas. Assim, nas autobiografias
produzidas, são analisados os deslizamentos de sentidos, observando-se a
emergência de novos discursos sobre si; quanto à questão do gênero discursivo,
estamos baseados nos estudos de Mikhail Bakhtin, quando trata dos gêneros
primários e secundários. Através da análise de nossa intervenção, pudemos formular
um produto pedagógico, a fim de auxiliar os demais professores da EJA a trabalhar o
gênero autobiográfico com seus alunos, que intitulamos “Autobiografia na Educação
de Jovens e Adultos: uma proposta para a prática docente”, onde introduzimos além
de sugestões de aulas, com objetivos, também inserimos, de maneira sucinta,
conceitos teóricos, a fim de subsidiar os gestos de leitura dos docentes.
Palavras-chave: Discurso sobre si. Autobiografia. Educação de jovens e adultos.
Identidade.
RESUMEN
Esta tesis de maestría se propone a analizar la aplicación de clases con el género
discursivo autobiografía en la modalidad de enseñanza de Jóvenes y Adultos (EJA)
en una escuela de la ciudad de Alegrete/RS, abordando el problema de la identidad y
el desarrollo de la autoría en los sujetos-alumnos. La fundamentación teórica de este
trabajo es el Análisis de Discurso de línea francesa, empezado por Michel Pêcheux,
la que permite a nuestro análisis el apoyo en los siguientes conceptos: paráfrasis,
polisemia, discurso y formaciones imaginarias, posibilitándole al profesor que
considere a los sentidos movilizados por el sujeto-alumno como producidos, y no
creados originalmente por ellos. De esta manera, en las autobiografías producidas por
ellos, son analizados los cambios de sentidos, observando la emergencia de nuevos
discursos sobre su identidad; sobre el género discursivo, estamos basados en los
estudios de Mikhail Bakhtin a respecto de los géneros primarios y secundarios. A
través del análisis de nuestra intervención, fue posible formular un producto
pedagógico, con la finalidad de auxiliar los profesores de la EJA en sus clases sobre
el género autobiográfico, lo que intitulamos “Autobiografia na Educação de Jovens e
Adultos: uma proposta para a prática docente”, en lo cual introducimos no solamente
sugestiones de clases y objetivos, pero también, de manera breve, conceptos teóricos,
para apoyar la lectura de los docentes.
Palabras clave: Discurso sobre si. Autobiografía. Enseñanza de jóvenes y adultos.
Identidad.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Atividade de atribuição de sentidos aos colegas e para si próprio
Respostas de M.S.P. (SD.3) .................................................................................. 65
Figura 2: I.B. Atribuição de sentidos (SD.5) ........................................................... 68
Figura 3: I.B. Relato (SD. 6) ................................................................................... 68
Figura 4: Caderno de I.B. (SD. 7) ........................................................................... 69
Figura 5: Caderno de S.N.S. (S.D. 28) ................................................................... 83
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Coleta de dados. ..................................................................................... 54
Quadro 2: Aulas aplicadas em uma turma de Educação de Jovens e Adultos .......... 57
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 14
1.1 Experiência e trajetória profissional ............................................................... 14
1.2 Atual situação profissional e motivações para a pesquisa........................... 17
1.3 Justificativa ...................................................................................................... 18
1.4 Objetivos da pesquisa ..................................................................................... 21
1.4.1 Objetivo Geral ................................................................................................ 21
1.4.2 Objetivos Específicos ................................................................................... 21
2 REFERENCIAL TEÓRICO ................................................................................... 22
2.1 A Educação de Jovens e Adultos ................................................................... 22
2.2 Análise do Discurso: sujeito e linguagem ...................................................... 26
2.2.1 A noção de sujeito para a AD ....................................................................... 28
2.2.2 Linguagem na perspectiva discursiva ......................................................... 32
2.2.3 Noção de autoria na Análise de Discurso ................................................... 34
2.3 Sujeito e identidade ......................................................................................... 35
2.4 Paráfrase e Polissemia no contexto da EJA .................................................. 39
2.5 Gêneros Discursivos e AD .............................................................................. 42
2.5.1 Autobiografia ................................................................................................. 44
3 METODOLOGIA DA PESQUISA .......................................................................... 46
4 METODOLOGIA DA INTERVENÇÃO .................................................................. 52
4.1 O espaço escolar da aplicação ....................................................................... 53
4.2 Perfil dos alunos .............................................................................................. 53
4.3 Procedimentos para obtenção de fatos.......................................................... 54
4.4 Cronograma das atividades que foram realizadas ........................................ 54
4.5 Diário de campo ............................................................................................... 55
4.6 Registro fotográfico ......................................................................................... 55
4.7 Cuidados éticos ............................................................................................... 55
4.8 Objetivo pedagógico ........................................................................................ 55
4.9 Objetivos pedagógicos específicos ................................................................ 56
4.9.1 Desenvolvimento da proposta pedagógica ................................................. 56
5 ANÁLISE DOS DISCURSOS DOS SUJEITOS-ALUNOS SOBRE SI................... 59
5.1 Sentidos sobre a mulher: paráfrase e polissemia ......................................... 61
5.2 Sentidos sobre o trabalhador e o ensino formal ........................................... 75
6 ANÁLISE DA INTERVENÇÃO ............................................................................. 85
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 91
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 93
APÊNDICES ......................................................................................................... 96
14
1 INTRODUÇÃO
O capítulo introdutório deste trabalho apresenta-se em subseções. Exponho, de
forma simples e breve, um pouco da minha história profissional, bem como os motivos
que têm guiado meus propósitos como professora-pesquisadora. Também são
apresentados a delimitação da questão de pesquisa, os objetivos geral e específicos.
O tema deste trabalho é o estudo sobre uma intervenção pedagógica sobre a escrita
de autobiografia para um público da Educação de Jovens e Adultos, analisando
questões referentes ao discurso empregado pelos sujeitos-alunos sobre si mesmos,
bem como com respeito à identidade. Esta dissertação se organiza a partir de um
enfoque teórico da Análise de Discurso de linha francesa e de análises realizadas em
cima dos sentidos produzidos pelos sujeitos-alunos. No final elaborou-se um produto
pedagógico intitulado Autobiografia na Educação de Jovens e Adultos: uma proposta
para uma prática docente, que visa auxiliar a prática docente na aula com o gênero
autobiografia na EJA.
1.1 Experiências e trajetória profissional
Nasci e vivo em Alegrete, cidade da região da Fronteira Oeste do estado do Rio
Grande do Sul. Desde a minha infância, fui estimulada à leitura, meus pais mesmo
com poucos recursos sempre me presenteavam com livros e revistas infantis. Recordo
com carinho da revista Nosso Amiguinho, cujas publicações eram mensais e em
função disso eu sempre ficava ansiosa à espera do novo exemplar. O conteúdo dessa
revista me encantava por seu universo lúdico, seus ensinamentos e propósitos
pedagógicos, que de forma criativa aguçavam o meu interesse pelo mundo das
palavras e das histórias. Com tudo isso criei um laço afetivo com o universo das letras
e, consequentemente, um envolvimento intenso com a linguagem. Essa experiência
mais tarde será determinante para a escolha de uma futura graduação.
Com a conclusão do ensino médio, surgiu a dúvida sobre qual curso superior
escolher. Pedagogia foi o curso escolhido. No entanto, uma vez que esse curso era
mais voltado à alfabetização, não sentia que meus potenciais estavam sendo
contemplados, por exemplo o aprofundamento da produção textual e da literatura. A
Pedagogia mostrava ser um campo fértil e riquíssimo, mas para os meus interesses
ainda era bastante restrito. Também o seu público alvo não me possibilitava ter um
15
contato pedagógico com diferentes faixas etárias, o que limitaria a minha prática
pedagógica, de modo que trabalharia apenas com o público infantil.
Esse anseio mudou e após um semestre veio a certeza de que a troca pelo
curso de Letras era o caminho certo a seguir. O novo curso aos poucos foi despertando
em mim novas perspectivas acerca do complexo campo da linguagem, como a
linguística, o discurso, as literaturas e a língua estrangeira.
Depois de formada, fiquei alguns anos sem atuar na área, mas a vida se
encarregou de me colocar em sala de aula. No primeiro momento, em 2011, trabalhei
para Prefeitura Municipal de Alegrete e para o Serviço Nacional de Aprendizagem
Comercial (SENAC), em ambos como docente contratada temporária. Neste mesmo
ano, fui aprovada em concurso público e nomeada como docente de Língua
Portuguesa e Língua Espanhola da rede municipal de ensino de Alegrete. Nesse ano,
foi a primeira vez que lecionei Língua Portuguesa. Como era comum na rede municipal
à maioria dos novatos, minha preocupação era com as regras, correção gramatical e
o conteúdo programático, o que, de certa forma, era supervalorizado, respeitado e bem
visto pelas demais disciplinas e setores pedagógicos no ambiente escolar. O objetivo
principal era que os alunos aprendessem tudo à base de exercícios sistematizados e
mecânicos. Sem possibilidade dos alunos exercerem algum tipo de autoria. Foi
possível ver, durante essa experiência, que em geral as escolas, à época, tinham uma
imagem muito redutora acerca do ensino de Língua Portuguesa, sem compreender de
maneira mais complexa a profundidade que envolve o trabalho com a leitura. Os
demais profissionais da mesma área utilizavam a correção gramatical como ferramenta
de poder, de medo, de dificuldade, fazendo com que a língua parecesse mais um
mistério que uma forma de expressão, de compreensão, de produção de sentidos etc.
O motivo principal dessa prática parecia ser amedrontar os alunos para que
mantivessem certa disciplina, ou seja, o ensino da língua era voltado a manter o
controle. Existe, e isso é bem comum, certo imaginário sobre alguns professores de
Língua Portuguesa entre os demais docentes: esse profissional é tido como aquele
que pode exercer a correção de todos, perto do qual é necessário cuidar as próprias
palavras. Esses mesmos professores, por sua vez, assumem essa imagem e
colocam-se como “corretores ortográficos”, sempre atentos a tudo que é dito ao seu
redor. Não cuidam necessariamente de sentidos, mas sim do modo de dizer, como as
concordâncias verbais e nominais, as tonicidades, a sintaxe etc. Aos poucos fui
percebendo através de experiências, estudos e reflexões que para mim essa fórmula
16
já estava se esgotando. As normas gramaticais não poderiam mais ser o foco principal
de minha prática pedagógica enquanto professora de Língua Portuguesa. Elas não
garantem o desenvolvimento da leitura nos alunos, embora tenham a sua importância,
e a língua precisa ser utilizada para auxiliá-los no trato com a linguagem e também
para promover a autoria. Uma das experiências que foram determinantes para essa
mudança foi o trabalho com o ensino médio regular na rede pública estadual, entre os
anos 2013 e 2017. Nesse momento, tive a oportunidade de participar de projetos
desenvolvidos na escola, como um em especial, que englobava toda a área de
linguagens, chamado “Planeta Leitura”. Esse projeto trabalha diretamente com a
leitura: os alunos leem determinadas obras, estudam-nas a fim de apresenta-las em
formato de feira para toda a comunidade escolar, sendo garantido aos mesmos alunos
a criação de um modo particular de exposição, através de teatro, contação de
histórias, jogos pedagógicos etc.
Em 2012, fui presenteada com um dos amores da minha vida – a Educação de
Jovens e Adultos (EJA). No início, a insegurança e o medo. Hoje, um solo fértil com
muitos desafios, conquistas e, principalmente, a convicção de que cada vez é mais
necessário buscar atualização e novos conhecimentos para, assim, construir práticas
que contribuam efetivamente no processo de ensino-aprendizagem. Essa é uma
experiência muito marcante, pois ao mesmo tempo que os alunos vêm com a imagem
da aula tradicional de Língua Portuguesa, vivenciada em seu passado, eles anseiam
por atividades mais dinâmicas em que possam ter voz e possibilidade de expressão
de suas memórias e conhecimentos. Ou seja, possuem maior envolvimento em aulas
que vão além dos modos tradicionais de ensino.
Já no período de 2017 e 2018, fui professora substituta no Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha – IFFar Campus Alegrete – com Língua
Portuguesa e Literatura nos cursos técnicos integrados ao Ensino Médio de
Agropecuária e Informática. Nesse momento, com a experiência acumulada na
docência no ensino médio regular e Educação de Jovens e Adultos, busquei
metodologias mais voltadas para a produção textual e exercício da autoria, cito como
exemplo as rodas de leitura compartilhada e o projeto realizado conjuntamente como
outro colega da mesma área, chamado “Poesia na varanda”. Essas práticas e
metodologias já mostravam uma certa desenvoltura e segurança para sair dos moldes
tradicionais de ensino da língua, isto é, marcavam um deslocamento maior em relação
à época em que iniciei na prática docência, conferindo à linguagem uma compreensão
17
de que se trata de algo em movimento, dotado de vida, no sentido de que não se trata
de algo estático.
1.2 Atual situação profissional e motivações para a pesquisa
Atualmente, trabalho como professora na Escola Municipal de Educação
Básica Marcelo de Freitas Faraco na Educação de Jovens e Adultos com o ensino de
Língua Portuguesa e Língua Espanhola.
Durante esses anos em que atuo como docente nomeada na Prefeitura
Municipal de Alegrete, muitas foram as formações pedagógicas oferecidas pela
Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SMEC) em que a Educação de Jovens e
Adultos nunca era contemplada e assistida. Por muito tempo, reivindicamos, meus
colegas e eu, por uma maior atenção a essa modalidade que tem uma importante
função de reparação social. Felizmente, nossas queixas foram ouvidas e há pouco
tempo nos são oferecidos encontros de formação, dando à área das linguagens mais
espaço.
Como já foi dito, a Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem uma função muito
importante, pois, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação 9.394 (1996) –
LDB – tem como objetivo principal oportunizar acesso à educação a qualquer pessoa
– especialmente àquelas que, pelos mais diversos motivos, não conseguiram
desenvolver sua escolarização no dito tempo certo.
Uma das características dos alunos da EJA é a motivação por compartilhar
suas próprias vivências e seus olhares acerca do que os rodeiam, uma vez que as
trajetórias de vida desses alunos são marcadas pelas mais diversas experiências.
Pensando nisso, proponho em minha intervenção uma proposta pedagógica que
busque valorizar este universo de experiências, através do gênero autobiografia, mais
especificamente, por meio da produção de autobiografias pelos alunos.
A proposta pedagógica contempla atividades que promovam a realização de
rodas de conversa com os alunos, nas quais os mesmos tenham contato com o gênero
apresentado, através de suas histórias de vida, discursos, sentidos e reflexões sobre
a própria identidade. Desenvolvendo, nesse processo, a sua autoria.
No Mestrado Profissional em Ensino de Línguas outros trabalhos prévios já
foram desenvolvidos no âmbito da EJA, tais como: Amaral (2015), Bosco (2015),
Martinez (2017) e Sanches (2018). Nessas pesquisas, Amaral focalizou a leitura de
18
textos jornalísticos do período da Ditadura Militar sob a perspectiva discursiva. Bosco
teve como foco a problemática da Evasão. Já Martinez - eventos de envolvimento
escolar, letramento e a apropriação do gênero autobiografia. E Sanches trabalhou
com a escrita de contos em língua adicional (no caso, a língua espanhola), com foco
também nas identidades locais dos alunos.
Dando sequência a essa linha de trabalhos voltados à Educação de Jovens e
Adultos, proponho esta pesquisa, agora, voltada ao ensino de língua portuguesa por
meio do estudo do gênero autobiográfico, a fim de que possa ser colocada em primeiro
plano a questão da identidade (CORACINI, 2003), do discurso do sujeito-aluno da
EJA, dos sentidos mobilizados sobre si mesmo e o imaginário, mobilizando, assim,
seu arquivo e sua autoria.
1.3 Justificativa
O presente trabalho justifica-se pela demanda crescente de conhecer melhor a
Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como por produzir novas formas de ensino-
aprendizagem nessa modalidade de ensino.
A EJA é composta de um público que busca retomar conhecimentos que, por
diferentes motivos, foram interrompidos no âmbito do ensino formal. No entanto, ao
retornarem, trazem consigo os seus antigos medos, dificuldades e distintas concepções
sobre como é uma aula, sobre o que é aprender. Existem muitos casos de alunos que
têm facilidade no trato com a linguagem, por exemplo, mas a contrapartida também é
verdadeira, ou seja, muitos são os alunos que encontram dificuldades para aprender.
A EJA é esse ponto de encontro entre um passado escolar que não foi resolvido e
novas perspectivas de ensino e de vida.
Dessa forma, afigura-se como fundamental realizar uma pesquisa aplicada
nessa modalidade que reflita sobre novas estratégias para tornar a aula na EJA mais
próxima da vida e dos anseios dos alunos. Ou seja, promover nas aulas de língua
portuguesa uma forma diferente de ensinar, que se diferencie das antigas
metodologias tradicionais, que estavam vigentes quando esses alunos evadiram. É
como se pudéssemos dizer a eles que se não deu daquela forma inicial, agora vai dar
para aprender significativamente, de uma outra maneira, valorizando as identidades,
os saberes e os conhecimentos adquiridos ao longo de suas vidas.
A escolha de trabalhar a linguagem a partir do gênero autobiográfico no
19
contexto da EJA não se deu sem antes ter ocorrido um diagnóstico durante o tempo
de contato que tive com meus alunos, de modo que me possibilitou conhecê-los
previamente. A razão principal de escolher este tema em específico foi pelo fato da
autobiografia possibilitar condições do sujeito-aluno trazer à tona a própria
subjetividade, os sentimentos, a identidade, a ideologia, o discurso e colocá-los em
contato com o conhecimento especializado que o professor possui. Dessa forma, se
trabalham ao mesmo tempo as questões relativas à língua portuguesa, ao gênero
discursivo em questão e toda a dimensão que envolve a identidade dos alunos, bem
como a sua criatividade, pois essa última é de muita importância na formação dos
sujeitos, uma vez que caminha na direção contrária da mera reprodução. Para Gadotti
(1997), a criatividade, bem como tudo o que ela envolve, desde trabalhos manuais até
criações, foi muito mal compreendida nas escolas, pois foi considerada sempre de
menor importância, sem se perceber que ela envolve aspectos necessários de serem
desenvolvidos nos sujeitos, como a possibilidade de criar e de compreender o
processo de criação e a finalidade, por exemplo, de um trabalho manual, uma pintura,
um poema, uma carta etc.
Assim, na nossa compreensão, a escolha de trabalhar com autobiografia tem
uma possibilidade riquíssima de desenvolver nos alunos diversas potencialidades,
trazendo para a sala de aula o discurso que eles têm de si mesmos, podendo através
de práticas didáticas mais criativas, refletir sobre a própria identidade e os discursos
que são feitos sobre ela, assim como as condições de encontrar novos sentidos para si
mesmos. Juntamente com isso, pode- se desenvolver neles a autoria, que é uma
questão essencial para sair das práticas reprodutivistas tradicionais, pois ao aluno é
dada a possibilidade de dizer, de reformular, de buscar outros sentidos e não apenas
de permanecer na mesma posição de repetir o que o professor diz.
Para além do que já foi exposto, este trabalho se justifica pela constante
demanda de alunos que precisam desenvolver a leitura e a escrita fora dos modelos
já esgotados da repetição meramente formal. No entanto, para um público composto
de jovens e adultos, compreendo que não basta apenas trabalhar a leitura e a escrita
de maneira distante da sua realidade e da própria subjetividade, pois o problema da
evasão escolar não é um problema que se situa somente fora do sujeito-aluno, mas o
envolve em seus sentimentos, projetos de vida e relações interpessoais. Um ponto
importante, refletindo sobre esse mesmo assunto, é a questão da autoestima. Esses
alunos, se pensarmos em muitos deles, foram vítimas de vários tipos de preconceitos,
20
comuns ao sistema político, e que se refletem e reproduzem em sala de aula:
discriminação de gênero (mulheres, homossexuais, transexuais, bissexuais etc), de
aspectos físicos (obesos e demais pessoas fora dos padrões de beleza impostos pela
cultura de massa), de condição social e também de racismo. O sistema educacional,
que pesem os projetos de inclusão e de promoção do respeito e da tolerância, ainda
é uma instituição imperfeita no combate a esses diversos tipos de preconceito, em
razão de várias causas, má formação dos profissionais ou ausência de formações
continuadas, turmas lotadas, alta carga horária dos profissionais, pedagogias
próximas do tecnicismo, além de um olhar ainda muito reduzido para questões
humanas que envolvem o mundo interior dos sujeitos.
Dessa forma, a autobiografia vem a ser um gênero discursivo poderoso para
atingir- se ao menos uma parte dessa subjetividade esquecida pela escola, que
remonta seu silenciamento a um período de evasão escolar. Sabe-se que escrever
memórias ou algo do tipo não é uma tarefa fácil, ao contrário, pode ser um trabalho
bastante árduo para quem escreve, pois acarreta um movimento nas próprias
lembranças, experiências, frustrações, alegrias etc. Mas que, em um ambiente
aprazível, de respeito e cooperação, pode se tornar uma atividade libertadora: de
sentimentos, de angústias e de amor próprio.
A autobiografia, contudo, pode não ser necessariamente o gênero mais
valorizado pelos profissionais da língua no ambiente escolar, uma vez que vai na
contramão de concepções típicas de uma educação em acordo com o modo de operar
empresarial, ou seja, traduzido em noções como habilidades e competências, de quem
precisa saber manejar, operar máquinas, vender, vigiar, empilhar caixas, apertar
parafusos, isto é, tudo aquilo que reduz o sujeito a meras funções de dentro do
mercado de trabalho. A autobiografia, portanto, resgata o arquivo do sujeito, faz com
que ele olhe e reflita sobre si mesmo no mundo, em sua trajetória, seu conhecimento
e também seu papel dentro da escola e da sociedade.
De modo que surge a questão importante para reflexão, sobre como possibilitar
aos sujeitos-alunos, nos anos finais da EJA, o desenvolvimento da autoria através de
textos autobiográficos? Para tal questão, primeiramente é importante observar que
esses mesmos sujeitos se constituem pela ideologia e pelo inconsciente, como bem
postula a Análise de Discurso, de modo que, no contexto escolar, eles trazem consigo
esse valioso arquivo, que pode, através da pratica pedagógica do sujeito-professor, ser
alimentado e mobilizado através da criação de condições para o exercício da autoria
21
por parte desses sujeitos, a fim de que no âmbito do ensino-aprendizagem a criação
dessas condições seja um ponto fundamental para que se produzam novas leituras e
novos sentidos.
1.4 Objetivos da pesquisa
1.4.1 Objetivo Geral
Desenvolver uma proposta didática que faça o sujeito-aluno refletir sobre
sua identidade e que favoreça a autoria.
1.4.2 Objetivos Específicos
Promover o desenvolvimento de uma proposta didática para a produção de
autobiografias;
Analisar o discurso dos alunos da EJA sobre si;
Analisar o desenvolvimento da autoria dos sujeitos-alunos através das suas
produções.
22
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1. A Educação de Jovens e Adultos
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) enquanto modalidade de ensino que, no
Brasil, tem grande importância, uma vez que tem como objetivo proporcionar o acesso
e a continuação dos estudos na Educação Básica para aquelas pessoas que não
tiveram como continuar seus estudos, ou mesmo iniciá-los, no tempo regular.
As Constituições Federais de 1934, 1946, 1961 e 1967 reconhecem que o
jovem e o adulto possuem o direito à educação. Diversas foram as políticas, no
decorrer do século XX, que articularam o ensino para adultos, como o Ensino
Supletivo, o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e a Fundação
EDUCAR. Contudo antes do surgimento do MOBRAL, houve um projeto de
alfabetização de jovens e adultos, durante o governo de João Goulart, que adotou o
famoso método de Freire. Mas, com o golpe de 1964, esse projeto foi perseguido.
Já na Constituição Federal de 1988, foi determinado que todas as pessoas, não
importando a idade, têm direito à educação do ensino fundamental. No entanto
somente em 1996 a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) nº 9.394 estabeleceu a EJA
enquanto uma modalidade da educação básica, devendo estar adequada às
necessidades do público estudante. De acordo com o artigo 4º “oferta de educação
escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidade adequadas
as suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem trabalhadores
as condições de acesso e permanência na escola” (BRASIL, 1996, p.8).
Essa modalidade de ensino tem, então, o objetivo de oportunizar a educação
àqueles indivíduos os quais não puderam completar os estudos na idade adequada.
O foco era alcançar um público que estivesse trabalhando, tendo a disponibilidade de
horário noturno, a fim de facilitar a sua matrícula e a sua permanência no contexto
escolar. E, tendo ela essa particularidade heterogênea em relação ao seu público,
precisa de um olhar especial por parte do professor, para que essas diferenças sejam
levadas em consideração.
A questão da educação de jovens e adultos, na história recente do Brasil, foi
alvo de muitas concepções que se contradizem no movimento da nossa história.
Existiram as teorias que relacionavam o aluno sem escolarização à marginalidade,
23
relacionando-o às causas da pobreza no país, no lugar de serem compreendidos
como efeitos desse problema (SAVIANI, 1986). E houve diversos momentos em que o
Estado brasileiro encarou a educação de adultos como o suprimento de uma carência,
no sentido em que o aluno era encarado como um sujeito sem saberes ou com saberes
sem importância, inferiores ao conhecimento científico promovido pela escola (o
MOBRAL, por exemplo, durante a ditadura militar). Dessa forma, a cultura e a
identidade dos alunos era “mal vista” ou tratada como se não existisse, aquilo que
Santos (2008) trabalha em seu conceito de sociologia das ausências, que nos diz que
a “ausência” ou a não existência de certas culturas são produzidas como “ausências”
ou não existências. Considerar o sujeito dentro de pré-conceitos como ignorante,
atrasado, inferior, particular ou improdutivo é um modo de produzir essa ausência de
sua cultura e de seu saber (SANTOS, 2010, p. 22). Ao educador, frente a isso, cabe
refletir sobre a sua relação com a cultura do aluno, seu saber, sua identidade. Vejamos
o que diz Gadotti (2008, p. 32):
[...] esses educadores precisam respeitar as condições culturais do jovem e do adulto [...]. Eles precisam fazer o diagnóstico histórico-econômico do grupo ou comunidade onde irão trabalhar e estabelecer um canal de comunicação entre o saber técnico (erudito) e o saber popular.
Assim, para além da simples escolarização quando compreendida como
transmissão de um saber formal, Gadotti fala também da possibilidade de algumas
vezes o educador ser da própria comunidade onde se situam os alunos, porém isso não
sendo possível na totalidade dos casos da educação de jovens e adultos, ele salienta
a importância desse olhar do professor para as particularidades dos alunos, sua
cultura, seu modo de vida, suas necessidades etc.
Nesse sentido, é importante levar em consideração a contribuição de uma
educação popular, ainda que essa não se confunda totalmente com a educação formal
de jovens e adultos, pois nos seus primórdios a educação popular esteve ligada a uma
educação fora do sistema oficial do país, sendo empreendida por comunidades
eclesiais, movimentos sociais e estudantis etc., cujo objetivo era a educação
juntamente com a politização das populações pobres e oprimidas. Para isso, era
necessário um educador que estivesse comprometido com a compreensão sobre a
cultura, o trabalho e as relações sociais em determinada comunidade. Com base nisso,
outras questões são também importantes, não apenas a aquisição de novos
24
conhecimentos, como a solidariedade entre os alunos, a sua capacidade de expressar
seus discursos, o olhar crítico sobre o seu contexto etc. Sendo assim, a educação de
jovens e adultos, situada no campo do ensino formal, ofertado pelo Estado pode entrar
em contato com os saberes que nos legou a educação popular, não formal, que
visavam à educação crítica das massas. Como nos diz Gadotti (2008, p. 33):
[...] não se pode medir a qualidade da educação de adultos pelos palmos de saber sistematizado que foram assimilados pelos alunos. Ela deve ser medida pela possibilidade que os dominados tiveram de manifestar seu ponto de vista
e pela solidariedade que tiver criado entre eles.
Dessa forma, temos muito a aprender com a ideia de educador popular, forjado
nas experiências educacionais não formais, para o qual as características e o trabalho
com o aspecto coletivo têm importância fundamental dentro do processo de ensino e
aprendizagem. Assim a organização coletiva precisa ser vista como algo decisivo na
formação dos sujeitos e o educador popular é, nesse contexto, um articulador e
organizador, não sendo nem ingênuo nem espontaneísta, no sentido de quem espera
uma mudança na vida dos alunos vinda de cima, sem esforço, disciplina e trabalho
(GADOTTI, 2008, p. 33). Com o educador popular, portanto, aprendemos a não
silenciar a cultura do aluno em nome do acesso à “cultura geral” valorizada pela
educação oficial, mas sim englobar ambas as instâncias como importantes na
formação dos sujeitos. Compreende-se cultura aqui, conforme Santos (1983), como
os diferentes modos de compreender e organizar a vida social, de concebê-la e
expressá-la, assim como, os distintos costumes e práticas dos povos. Sendo assim,
seria prejudicial para uma educação que se queira democrática o apagamento da
identidade dos alunos bem como de sua cultura. Isso acarretaria inclusive na
alienação da parte dos conhecimentos legados pela humanidade valorizados pela
educação formal, uma vez que esses mesmos conhecimentos seriam postos como
algo externo aos sujeitos, independente deles, sem nenhuma relação com a sua
atuação e transformação do mundo. Alienação aqui adquire esse sentido de algo que
está apartado da obra humana, adquirindo a impressão de ter uma existência
independente de quem a produziu. Assim, para que o conhecimento não figure como
algo distante da realidade dos alunos é preciso pensar em uma educação de jovens e
adultos que leve em consideração as culturas dos sujeitos envolvidos no contexto de
ensino e aprendizagem:
25
Trata-se de incorporar uma abordagem do ensino/aprendizagem que se baseia em valores e crenças democráticas e procura fortalecer o pluralismo cultural num mundo cada vez mais interdependente. Por isso que a educação de adultos deve ser sempre uma educação multicultural, uma educação que desenvolve o conhecimento e a integração na diversidade cultural. É uma educação para a compreensão mútua, contra a exclusão por motivos de raça, sexo, cultura ou outras formas de discriminação. A filosofia primeira, na qual o educador de jovens e adultos precisa ser formado, é a filosofia do diálogo. E o pluralismo é também uma filosofia do diálogo (GADOTTI, 2008, p. 33-34).
Extraímos do pensamento do autor referido, a importância de não trabalhar de
maneira fechada, isto é, sem a possibilidade da tensão e da emergência de outros
saberes no contexto de ensino-aprendizagem. Para a nossa concepção, a palavra
diálogo estará ligada a criação de condições de produção do discurso que sejam
favoráveis à presença de outros sentidos, oriundos das leituras de diferentes sujeitos.
Isso aprendemos com o legado da educação popular, que soube, em diferentes
contextos de trabalho com as populações carentes, valorizar os saberes não
institucionalizados. Talvez tenhamos ainda nessa região de tensões ideológicas que é
a escola um muro que separa os saberes e práticas da educação popular e da
educação formal. No entanto, é importante aproveitar os espaços em que essa
separação apresenta falhas e ocupar esses pontos de encontro. E nesse lugar, os
saberes do professor, que são institucionalizados, têm muito a contribuir com os
saberes do aluno, valorizando-os ao mesmo tempo em que promove o seu ponto de
encontro com os conhecimentos científicos ofertados pela escola, mostrando que as
identidades e as culturas não precisam ser produzidas como “ausências” (SANTOS,
2008).
E uma cultura ou identidade quando é produzida como uma “ausência” nos faz
refletir sobre a pertinência da linguagem enquanto forma material do discurso existir,
esse que produz sentidos, que mostra ou esconde, que promove ditos e não ditos (por
exemplo na educação pública a ausência pode ser produzida quando o aluno não é
visto em sua especificidade, possuindo sua cultura, sua memória, seu conhecimento,
sua forma de ler o mundo etc). A teoria da AD nos auxiliará a compreender como o
discurso funciona e o quanto são pertinentes seus pressupostos teóricos no campo
de trabalho com a linguagem, principalmente no contexto educativo. Passamos,
então, à próxima seção, de modo a tratar dessa teoria.
26
2.2 Análise do Discurso: sujeito e linguagem
Tendo em vista que existem várias formas de estudo da linguagem, algumas
dessas centradas apenas no aspecto formal de normas. Como, por exemplo, o
Estruturalismo e as gramáticas normativas, a Análise do Discurso surge a partir de um
posicionamento crítico a respeito desse tipo de estudo pois propõe investigar a
produção de sentido. Dessa forma, a Análise de Discurso tem sua razão de ser como
um novo campo de compreensão e estudo da linguagem, assim:
A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (ORLANDI, 2010, p.15).
Portanto, podemos considerar que a Análise de Discurso (doravante AD) não
se preocupa com a língua como um fato fechado, sem ligação com o mundo. Para ela
as palavras, conforme a autora citada, estão em movimento. O discurso é uma forma
de intervenção entre o homem e o seu exterior e também com outros sujeitos. Através
dele o homem conserva ou modifica a sua existência enquanto sujeito.
A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana (ORLANDI, 2010, p. 15).
Ou seja, o discurso estabelece uma forma de relação entre o sujeito e o seu
entorno como, por exemplo, a sociedade, a natureza e os demais sujeitos. Nesse
momento, é que ele se constitui enquanto sujeito, com a capacidade de reproduzir o
seu modo de existência, bem como de promover as mudanças históricas e sociais no
seu meio.
Ao contrário das teorias da comunicação, a AD não coloca como foco principal a
noção de mensagem, que seria uma forma límpida e infalível de comunicação entre
dois elementos: emissor e receptor. Nessa teoria, ambos são entidades impessoais, ou
seja, não são consideradas como sujeitos. Assim sendo, podemos considerar que: “o
termo discurso [...] implica que não se trata necessariamente de uma transmissão de
27
informação entre A e B mas, de modo mais geral, de um efeito de sentidos”
(PÊCHEUX, 1997, p.82). O discurso não é, portanto, mensagem, mas sim uma
maneira de materializar a ideologia, de modo que A e B (emissor e receptor para a
Teoria da Comunicação) deixam esse lugar, ilusoriamente transparente, para dar
espaço ao sujeito, dotado de ideologia e inconsciente.
Dessa forma, não é o conteúdo o foco principal, mas como ele produz os
sentidos a partir do que é dito. Então, o analista de discurso não vai procurar o que as
palavras estão significando, como se tivessem que encontrar um conteúdo
transparente, direto, neutro. Ele, ao contrário, estará empenhado em analisar como
determinado discurso produz sentidos. Nesse ponto, é que importa a ideologia. Nesse
sentido, podemos dizer que ela:
Trata-se assim de uma definição discursiva de ideologia [...]. O fato mesmo da interpretação, ou melhor, o fato que não há sentido sem interpretação, atesta a presença da ideologia. [...] Neste movimento da interpretação o sentido aparece-nos como evidência, como se ele estivesse já sempre lá. Interpreta-se e ao mesmo tempo nega-se a interpretação, colocando-a no grau zero. Naturaliza-se o que é produzido na relação do histórico e do simbólico. Por esse mecanismo – ideológico – de apagamento da interpretação, há transposição de formas materiais em outras, construindo-se transparências. [...] Este é o trabalho da ideologia: produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência (ORLANDI, 2010, p. 45-46).
Com base na citação acima, consideramos que a ideologia atua produzindo
transparências. Isto é, apaga o caráter material do discurso, fazendo com que os
sentidos pareçam óbvios para os sujeitos, como se transmitissem sentidos fixos e
imutáveis. Mas é importante pontuar que o seu significado não é necessariamente
negativo, pois a partir dela o sujeito se constitui. Por exemplo, a questão do feminismo:
suponhamos um sujeito que se identifica com determinadas posições ideológicas mas
mesmo sem considerar-se feminista, ainda assim, esse discurso está presente na sua
constituição enquanto sujeito.
Portanto, a ideologia está envolvida diretamente na relação simbólica da
linguagem com o mundo, tendo a ver com as crenças, valores, ideias etc., pelas quais
o sujeito é constituído. Considerando esse princípio, pode-se dizer que o sujeito não
existe sem a ideologia. A partir daí, podemos também falar de um assujeitamento, uma
ilusão de autonomia por parte do sujeito. Então:
28
O sentido é assim uma relação determinada do sujeito – afetado pela língua – pela história. É o gesto de interpretação que realiza esta relação do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos. Esta é a marca da subjetivação e, ao mesmo tempo, o traço da relação com a língua com a exterioridade: não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados (ORLANDI, 2010, p. 47).
A partir desse momento, concebe-se que o discurso é a
realizaçãodaideologia, que está fundamentalmente ligada ao sujeito. Pode-se
evidenciar que ideologia e sujeito são inseparáveis, ou seja, um não existe sem o
outro. Essa é a sua relação necessária.
Nessa dissertação, os discursos dos sujeitos-alunos serão considerados nessa
perspectiva. De modo que cada sujeito-aluno, compreendido como sendo constituído
pela ideologia, mobiliza seus sentidos a partir dessa determinação. Para evocarmos
a questão da forma como o sujeito aluno se reconhece dentro do ambiente escolar,
em especial da EJA, não é difícil de encontrar o imaginário de inferioridade, comum
em discursos a respeito do brasileiro (CORACINI, 2007), parafraseado em jornais,
televisão, mídias sociais etc. Essa ideologia que coloca o brasileiro e o estudante de
escola pública como um sujeito inferior, degradado e inculto é da ordem conservadora,
cujos sentidos produzidos colocam aquilo que é estrangeiro (europeu e americano,
mais precisamente) como superior, como espécie de modelo de civilização a ser
seguido.
2.2.1 A noção de sujeito para a AD
Para a AD, a noção de sujeito diverge de outras teorias, que colocam o sujeito
como um produto acabado, o centro de suas decisões, isto é, como um ser onipotente.
Sendo assim, um ser de tal natureza é visto através de uma noção ilusória, para a
qual ele é o dono de seus ditos, sem ideologia, portanto, passível de neutralidade. Já
no campo de estudo da AD, o sujeito não é neutro e se constitui pela ideologia e na
sua ligação material com o inconsciente que também o determina (PÊCHEUX, 2010).
A partir de então, está claro que a noção de sujeito dentro desta perspectiva é
heterogênea, ou seja, o sujeito se constitui a partir da relação com o outro e consigo
mesmo dentro de um contexto sócio-histórico. A noção de inconsciente contribui para
a compreensão de que o sujeito não é o senhor dos sentidos que mobiliza, isto é, ele
não possui a onisciência sobre tudo o que enuncia (PÊCHEUX, 2010).
O sujeito é chamado a existir enquanto tal através de uma interpelação
29
ideológica, ideia que surge de Althusser (1980) de que os indivíduos são interpelados
ideologicamente. Essa noção de sujeito será importante para Pêcheux (2010) por ser
uma abordagem não subjetivista da subjetividade, contrária a uma concepção
idealista para qual tudo nasce dos sujeitos.
Althusser (1980) traz a dimensão material para a abordagem da
subjetividade,em que a ideologia figura como força material e não como uma ideia que
brota espontaneamente dos sujeitos. Nesse sentido, a ideologia está ligada a uma
prática e não como um arsenal de ideias já existentes (PÊCHEUX, 2010). A questão
posta por Pêcheux então é de que o sujeito é produzido, como por exemplo, o “sujeito
de direito” é uma produção das leis. E é nesse caso que o sentido também é concebido
como sendo produzido em determinadas condições e posições ideológicas que estão
em jogo no processo sócio-histórico (PÊCHEUX, 2010). Assim proposições,
expressões e palavras mudam seu sentido de acordo com as posições sustentadas
pelos sujeitos que as empregam, isso quer dizer que os sentidos são produzidos
materialmente dentro de condições de produção, ou seja, não há um sentido absoluto.
(PÊCHEUX, 2010, p. 147).
E é com base em leituras de Freud, que Pêcheux e Fuchs (1997) trabalham a
noção de esquecimento, apelando para o inconsciente e também para as seleções
que o sujeito falante realiza em seus enunciados. O autor chama de esquecimento
número 1, a dimensão que está relacionada com a “impressão de realidade de seu
pensamento para o sujeito falante (“eu sei o que estou dizendo”, “eu sei do que estou
falando”)”.
Assim sendo, o esquecimento número um trata da ilusão do sujeito acerca
daquilo que ele enuncia, ou seja, de ser a origem verdadeira do que diz. Por exemplo,
podemos pensar a seguinte formulação: Sou a mãe coruja dos meninos [...] sou a
pessoa comprometida com o meu trabalho, minha família, escola (vide SD.2).
Podemos perceber inicialmente que há um sujeito que enuncia a frase citada e que
se posiciona de acordo com o imaginário conferido à mulher de ter que ser a cuidadora
dos filhos, a pessoa “do lar”, ainda que esteja trabalhando fora, ou seja, há uma
naturalização, operada pela ideologia, do lugar da mulher. Essa é a posição que
assume no momento de enunciação. Antes de tudo, devemos lembrar que o sujeito
em questão se inscreve em uma formação discursiva, isto é, não é neutro, muito
menos construiu essa formulação ao acaso. E mais, não é o primeiro sujeito a fazer
uma colocação como esta, embora não com as mesmas palavras, mas certamente
30
mobilizando os mesmos sentidos. Mas ela acredita que realmente é quem elaborou
tal construção pela primeira vez, que é a sua “opinião”. Esse é um dos vários exemplos
possíveis de esquecimento n.1. Quanto à questão da formulação, existe o outro tipo
de esquecimento, que chamamos de número dois:
Concordamos em chamar esquecimento número 2 ao “esquecimento” pelo qual todo sujeito-falante “selecione” no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá- lo na formação discursiva considerada (grifos do autor) (PÊCHEUX, 2010, p. 161).
Então, o esquecimento número dois diz respeito ao sujeito crer que os
enunciados só podem ser construídos daquela forma, ou seja, as formulações só
podem ser elaboradas através de apenas uma maneira ou com um determinado
direcionamento. Vamos analisar o mesmo exemplo do esquecimento número um: [...]
sou a pessoa comprometida com omeu trabalho, minha família, escola. Para o sujeito
que construiu essa formulação, essa é a única elaboração possível sobre o papel da
mulher/mãe, isto é, não existe outra construção que possa comunicar a respeito do
assunto tratado. Por exemplo, a formulação “Sou uma trabalhadora superexplorada”
não poderia de forma alguma ser dita. Dessa forma, vamos percebendo que existe,
por assim dizer, uma espécie de regulação daquilo que é dito no discurso, ou seja,
existe uma instância reguladora no discurso, definindo aquilo que pode ou não ser dito.
A essa instância, na AD, chama-se Formação Discursiva (FD). Para Pêcheux (2010,
p. 147), a FD pode ser definida como:
[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma
posição dada numa conjuntura dada determinada pelo estado da luta de
classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma
arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa
etc) (grifos do autor).
No entanto, a FD não é um lugar fechado, de maneira que tenha uma natureza
homogênea, que aprisiona os sujeitos e os impede de ir para além de suas posições.
Ela possui modalidades que a relativizam, a fim de comportar a contradição e o
dissenso. Temos então, a forma-sujeito como uma instância que regula os saberes da
FD (INDURSKY, 2007) e com a qual o sujeito pode “reduplicar a sua identificação”,
assumindo essas posições em consenso com a forma-sujeito, sem questioná-la.
31
Contudo, isso não é o suficiente para compreender o funcionamento da FD como uma
categoria não homogênea. Assim, dentre as modalidades de identificação do sujeito
com a FD temos uma segunda modalidade em que está situado o chamado discurso
do “mau-sujeito” (PÊCHEUX, 2010), que diz respeito justamente à tomada de posição
pelo sujeito que entra em contraposição à forma-sujeito. E essa contra identificação
se dá no interior mesmo da FD, estabelecendo uma tensão, trazendo para o seu interior
o discurso outro, resultando dessa forma em uma FD heterogênea (INDURSKY,
2007). Dentre essas modalidades, temos a terceira delas que trata da desidentificação
do sujeito com determina FD e sua forma-sujeito e a consequente identificação com
outra FD e sua forma-sujeito correspondente.
Podemos dizer, assim, que uma FD não é necessariamente idêntica a si
mesmo, comportando, então, a divergência e a contra identificação. Ou seja, existe a
“falha no ritual” (PÊCHEUX, 2010), possibilitando a entrada de novos saberes em
determinado domínio do saber, produzindo uma transformação e reconfiguração de
uma FD.
A FD, portanto, é essa instância heterogênea, capaz de comportar tensões, que
vai exercer o papel de definir o que pode ser dito, bem como o que deverá ser ocultado
no discurso. Ela então, vai representar no discurso as formações ideológicas, pois os
sentidos são determinados inevitavelmente pela ideologia. Pode-se considerar que
não existem palavras soltas pois elas sempre estão inscritas em uma formação
discursiva (FD). Por exemplo, uma mesma palavra pode ter sentidos distintos em FD
diferentes.
Tomaremos o mesmo exemplo já citado. A expressão “mãe coruja” pode
adquirir sentidos diferentes de acordo com a ideologia e com a FD que a regula. Para
um discurso machista a expressão citada está ligada a uma noção de valor, virtude,
ou seja, uma obrigação moral exclusiva da mulher. Já em um discurso feminista, a
mesma expressão tem sentido compreendido como sendo construído em uma
sociedade marcada pela desigualdade de gênero, não adquirindo necessariamente
valoração de virtude. Portanto, a palavra por si só não tem poder de significação
isoladamente, pois segundo Orlandi (2010, p. 43): “As palavras falam com outras
palavras”.
No entanto, é importante pensar que o sentido não é totalmente arbitrário, pois
conforme Orlandi (1994, p. 56): “A Análise de Discurso considera que o sentido não
está já fixado a priori, como essência das palavras, nem tampouco pode ser qualquer
32
um: há determinação histórica do sentido”.
Assim, as palavras não possuem um sentido estático, mas os sentidos
atribuídos a elas precisam ser determinados historicamente. O sujeito de maneira
isolada não pode decidir o sentido das palavras, pois existe uma ideologia e uma
formação discursiva que direcionam os sentidos. De acordo com o que foi exposto,
a AD requer uma nova abordagem do conceito de linguagem que veremos a seguir.
2.2.2 Linguagem na perspectiva discursiva
Em uma perspectiva tradicional da linguagem, ela é estudada como sendo
transparente, imanente, necessitando de uma série de regras para que possa fazer
sentido, ou seja, o mundo externo é completamente anulado neste estudo. Por
exemplo: o estudo da análise sintática nas aulas de Língua Portuguesa, onde ao aluno
são oferecidos exercícios sobre orações e seus termos: essenciais e acessórios. Isto
é, a regra pela regra. Pêcheux (1997) refletindo em seu trabalho sobre a Análise
Automática do Discurso, dizia que até então o estudo da língua resumia-se somente a
estudar textos. E desses eram solicitados que extraíssem respostas a perguntas
variadas, o que se convencionou chamar, dentro da prática escolar, de compreensão
de textos, o que englobava também a atividade do gramático, voltado para
modalidades descritivas ou normativas (PÊCHEUX, 1997, p. 61). No que consta à
semântica, Pêcheux (1997, p. 61) assim coloca:
Mais precisamente, as questões concernentes aos usos semânticos e sintáticos colocados em evidência pelo texto ajudavam a responder as questões que diziam respeito ao sentido do texto (o que o autor “quis dizer”). Em outros termos, a ciência clássica da linguagem pretendia ser ao mesmo tempo ciência da expressão e ciência dos meios desta expressão, e o estudo gramatical e semântico era um meio a serviço de um fim, a saber a compreensão do texto (grifos do autor).
Já na AD, o estudo da linguagem é deslocado desta função, assim sendo, o
foco não se detém exclusivamente no campo linguístico, pois esta teoria abarca a
exterioridade como dimensão fundamental e constitutiva na produção de sentidos.
Assim, para Pêcheux e Fuchs (1997), a língua é o lugar material onde se produzem
os efeitos de sentido, o que vale dizer que não possui sentido dado de antemão,
colado às palavras, mas adquire o sentido em determinada condição de produção que
se dá no social, envolvendo as condições materiais de existência, os diferentes ditos
33
possíveis e a ideologia.
De acordo com o autor, a linguagem só adquire sentido no momento em que
está relacionada com o mundo externo, isto é, ela faz sentido apenas porque está
inscrita na história. A linguagem na AD exerce o papel de mediação entre o sujeito e
universo social e natural. É através dela que os sujeitos estabelecem sentidos em
suas relações e também atribuem significação aos acontecimentos no seu entorno.
Vejamos o que diz a outra autora:
Posso considerar a linguagem como trabalho. No sentido de que não tem um caráter nem arbitrário nem natural, mas necessário. E essa necessidade se assenta na homologia que podemos fazer entre linguagem e trabalho, isto é, considerando que ambos são resultados da interação entre homem e realidade natural e social, logo, mediação necessária, produção social (ORLANDI, 1980, p.25).
Portanto, a linguagem para AD é o resultado da relação entre o sujeito e o seu
contexto, daí a sua semelhança com o trabalho, pois ambos realizam uma mediação,
ou seja, uma maneira do sujeito de construir sentidos entre ele e a sua realidade
social. No entanto, quando se fala em mediação não se está colocando a linguagem
como um simples instrumento, pois a sua relação com a historicidade é também de
transformação. Ela está posta como materialidade, abrigando desde já os
antagonismos e conflitos sociais. Daí a importância de encará-la dentro de uma teoria
discursiva, pois, enquanto discurso existe uma impossibilidade, que é justamente a de
encará-lo como um texto, no sentido de entidade fechada, para a qual se fazem
perguntas superficiais, fora da dimensão conflituosa, que constituem as condições de
produção. Segundo Pêcheux (1997, p. 79):
[...] é impossível analisar um discurso como um texto, isto é, como uma sequência linguística fechada sobre si mesmo, mas[...] é necessário referi-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido das condições de produção (grifos do autor).
Então, a relação da linguagem com o mundo exterior não é direta, há uma
relação conflituosa entre a linguagem e a realidade, pois existe uma mediação
ideológica em que se produz o efeito de evidência, ou seja, se produz a ilusão de que a
realidade seria um conteúdo veiculado transparentemente pelas palavras.
Dessa forma, entre linguagem e mundo se interpõe a ideologia, como a
instância que aponta em uma determinada direção e não em outra (ORLANDI,1996).
34
Por exemplo: um sujeito inscrito em uma formação ideológica machista não fala
necessariamente sobre a realidade, mas sim através de um saber patriarcal legado
pelo contexto histórico. É esse saber, portanto, que faz a mediação entre a linguagem
e a exterioridade. Concluímos com isso que, na perspectiva da AD, a linguagem está
relacionada com o universo exterior, sendo analisada em sua elaboração em
determinadas condições de produção. No entanto, não se pode excluir a
constituição ideológica dessa relação.
2.2.3 Noção de autoria na Análise de Discurso
Para a perspectiva teórico-metodológica, com a qual nos propomos trabalhar,
é de fundamental importância considerar a noção de autoria. Portanto, analisaremos
essa noção a partir de nosso recorte teórico, que se baseia na Análise de Discurso.
Primeiramente, vamos observar o que diz Eni Orlandi:
Podemos então dizer que a autoria é uma função do sujeito. A função-autor, que é uma função discursiva do sujeito, estabelece-se ao lado de outras funções, estas enunciativas, que são o locutor e o enunciador. [...] O autor é então considerado como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como fulcro de sua coerência (ORLANDI, 2010, p.74-75).
Percebe-se assim, que a noção de autoria está diretamente relacionada à
existência do sujeito. Autor é nada mais que uma função assumida pelo sujeito ao
produzir um texto. Sua existência se dá na textualidade como no exposto: ele é um
princípio de organização do discurso. Isto é, do autor é que se exige a coerência,
disciplina, não contradição etc. Conforme Lagazzi- Rodrigues (2015, p. 93):
Da mesma maneira que sujeito e linguagem se constituem mutuamente, também autor e texto mantém entre si uma relação necessária. O autor (se) produz no texto, dá ao texto seus limites e se reconhece no texto. O sentido da autoria depende do efeito de unidade e coesão do texto. Há nesse processo uma tensão constitutiva: ao mesmo tempo em que um texto precisa ser delimitado por um autor para receber esta denominação, permite ao autor constituir-se como produtor deste texto e assim ser nomeado e/ ou nomear- se autor deste texto.
Há, portanto, uma relação recíproca entre autor e texto pois um depende do
outro para se constituir. Como vimos na citação, o autor além de produzir o texto é
também produzido por ele. Eles só existem enquanto estão nessa relação de
35
construção, sendo subordinados às exigências estabelecidas pelo mundo externo.
Nesse sentido, o autor necessita contemplar as regras determinadas pelas convenções
da língua. Consideramos, juntamente com Orlandi:
Essas exigências têm uma finalidade: elas procuram tornar o sujeito visível (enquanto autor) com suas intenções, objetivos, direção argumentativa. Um sujeito visível é calculável, identificável, controlável. Como autor, o sujeito ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade à qual ele deve se referir, ele também se remete à sua interioridade, construindo desse modo sua identidade como autor. Trabalhando a articulação interioridade-exterioridade, ele “aprende” a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica. (ORLANDI, 2010, p.76)
Assim, o efeito de autoria é essencial a fim de que o sujeito se torne visível
e identificável, o que ele não é estando fora do texto. Por exemplo: um sujeito-aluno
é heterogêneo, incompleto, afetado por formações discursivas e
ideológicas, contraditório, em suma, descontinuo. Mas quando assume a função-
autor, ele se posiciona de forma coerente, buscando uma direção para o seu dizer.
Em resumo, o sujeito mesmo é opaco enquanto o autor produz o efeito de
transparência e unidade. Está claro dessa forma, que a autoria está no princípio de
textualidade (ORLANDI, 2010), por isso cumpre uma função discursiva sendo o “eu”
do discurso. É o autor que produz o texto, o que está visível, compreensível,
ilusoriamente desprovido de erro. É a partir do autor que se chega ao efeito de ser a
origem do dizer, exigindo-se dele progressão do seu discurso (ORLANDI, 2010).
O autor, podemos dizer com Orlandi (2010), é quem assume a responsabilidade
pelos seus dizeres. Ele faz a passagem necessária da multiplicidade anárquica para
um patamar em que prevalece o agrupamento ordenador. De acordo com Lagazzi-
Rodrigues (2015, p. 98-99):
[...] a autoria não é uma qualidade, mas uma prática na configuração de um texto. Texto tomado como delimitação em diferentes formulações significantes, sempre sob a determinação da produção dos efeitos de desfecho, unidade, coesão, coerência e responsabilidade. Não só o texto escrito, composto em palavras, mas também o texto que busca espacializar a autoria no desenho, nas imagens, na pintura, na música, na dança, na mímica, no grafite, na tatuagem... Sem indistinguir as diferentes materialidades, é importante considerar que elas compõem conjuntos que se colocam sob a demanda da textualização.
Desse modo, é pertinente ressaltar que autoria, sendo uma prática, não se
materializa somente no texto, mas também nas mais diversas imagens, pois o aspecto
36
fundamental é a produção do efeito discursivo de unidade. Assim, devemos encerrar
dizendo que a autoria é necessária, estando na origem da textualidade, cumprindo
uma função enunciativa. Também é preciso mencionar que a função autor é
fundamental na constituição da identidade do sujeito, mas sobre a questão da
identidade falaremos no subcapítulo seguinte.
2.3 Sujeito e identidade
Uma vez que esta prática se propõe a trabalhar com sujeitos-alunos dentro de
um contexto escolar, é indispensável que se reflita sobre a questão da identidade, pois
o sujeito- aluno não possui somente uma relação cognoscente com a escola, mas
também imaginária, que envolve uma dimensão mais complexa. Antes, porém,
refletiremos sobre o conceito de formações imaginárias. Para Pêcheux (1997), a
noção de formações imaginárias implica em reconhecer que os sujeitos se encontram
presentes entre si através da imagem que mutuamente fazem uns dos outros, bem
como de si mesmos, isto é, não se pode atribuir sentidos aos sujeitos que não seja
através da produção desses mesmos sentidos, dentro de condições especificas. O
sujeito tem uma imagem de seus interlocutores, que por sua vez também têm uma
imagem específica dele, bem como daquilo sobre o que falam. Colocando essa noção
no campo do ensino, podemos dizer que o sujeito-professor tem uma imagem do
sujeito-aluno, e também uma imagem sobre si mesmo, e inclusive sobre o conteúdo
que está ministrando. Da mesma forma, o sujeito-professor tem uma formação
imaginária a respeito de como o sujeito-aluno o vê. Complementando com Orlandi
(2010, p. 40):
[...] não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. São estas projeções que permitem passar das situações empíricas – os lugares dos sujeitos – para as posições dos sujeitos no discurso.
Assim sendo, no discurso está em funcionamento uma imagem construída sobre
quem está falando, do mesmo modo em que há um imaginário sobre o que se está
falando, bem como sobre quem está ouvindo. Por exemplo: pode-se tomar um caso
de uma sujeito-mãe falando com um filho, ele projeta uma imagem dela, enquanto mãe.
E ela também projeta uma formação imaginária sobre ela mesma, na posição de mãe,
37
bem como do filho. O que não impede que o mesmo sujeito, em questão, tenha uma
imagem de si como filho em um momento de interlocução com a própria mãe. Isso
nos mostra que, uma identidade é fragmentada em diferentes posições, ou seja, não
é homogênea, é forjada nas condições de produção (INDURSKY, 2008).
Sobre a questão levantada da identidade, observemos o que aponta Coracini
(2003, p. 201):
Assim como nomear é dar realidade ao objeto, é possível afirmar que falar de um povo ou de um grupo social e até mesmo de um indivíduo é dar-lhes existência, fazê-los serem e acreditarem que são ou que existem. Não é à toa que se diz que falar de alguém é manter este alguém vivo, na memória do outro e, portanto, na sua própria memória.
De acordo com a citação, pode-se dizer que a identidade é produzida no
discurso, sendo através dele que os sujeitos são chamados a existir conforme
determinado imaginário criado sobre eles, que constitui a sua identidade, ou seja, o
modo que eles projetam a si mesmos e que também são projetados pelos demais
sujeitos. As condições de produção são partes vitais para a constituição da identidade.
Se voltarmos ao exemplo da sujeito-mãe, não é necessariamente o fato de
biologicamente ter um filho que fará com que seja criada a identidade de mãe, mas
sim determinações sociais e ideológicas. Basta pensarmos em qual era a imagem de
mãe de algumas décadas atrás e na atualidade. Seguimos com Coracini (2003,
p.202):
[...] o que somos e que pensamos ver está carregado do dizer alheio, dizer que nos precede ou precede nossa consciência e que herdamos, sem saber como nem porquê, de nossos antepassados ou daqueles que parecem não deixar rastros. O que somos e o que vemos está carregado, portanto, do que ficou silenciosamente abafado na memória discursiva, como um saber anônimo, esquecido.
Então, o que somos é fruto daquilo que “esboçaram” sobre nós, mesmo quando
ainda não éramos nascidos, ou mesmo antes de termos consciência, bastando
pertencer a um determinado grupo como, por exemplo, ricos, pobres, patrões,
empregados, religiosos, ateus etc. Também a identidade pode estar relacionada a
questões de poder:
38
[...] a identidade, quer nacional, individual ou subjetiva, é produzida ou construída socialmente por aquele(s) a quem se atribui maior poder, e, portanto, a quem se concede autoridade para legitimamente dizer verdades ou a verdade sobre os fatos, o povo, o indivíduo. É (são) essa(s) verdade(s) que, internalizada(s), garante(m), como dizíamos, a possibilidade de um ser humano se constituir como um sujeito da linguagem, isto é, sujeito do discurso (CORACINI, 2003, p. 202).
Dessa maneira, a identidade é tecida em uma conflituosa relação de poder, que
busca definir um efeito de verdade sobre o sujeito. Um aluno da EJA que constrói
sobre si uma imagem de fracassado, limitado, incapaz com base em seu histórico na
escola, da sua memória discursiva que, em determinado momento, se constituiu na
sua identidade de aluno, a partir de discursos sobre si que ele reproduz, como aquele
de que este não concluiu os estudos na “idade certa”. E como a EJA foi instituída para
atender a esse público específico, porém não trabalhando devidamente a sua
autoestima (que também se trata de uma questão produzida a partir de determinado
imaginário), foi-se atribuindo uma imagem a essa modalidade de ensino, produzindo
um efeito de verdade de que é um ensino sem qualidade direcionado para sujeitos
que não concluíram no tempo “adequado”.
É importante para esse trabalho, então, fazer essa reflexão sobre a produção
da identidade do sujeito-aluno sem perder de vista seu caráter heterogêneo pois a
identidade não é uma essência mas uma construção social.
Podemos assim retornar à AD, juntamente com a nossa reflexão de que a
identidade, uma vez que não é algo acabado, isolado, fora de todas as relações
sociais, e referenciá-la como sendo também uma produção discursiva (ORLANDI,
1998). O próprio discurso não é, segundo Pêcheux (1990, p. 56): um “aerólito
miraculoso”, que traz do céu uma verdade pronta, livre de contradições, equívocos e
antagonismos, mas sim uma produção histórica em que há lugar para descontinuidade.
E nesse sentido, os sujeitos estão em contato com a identidade não como “uma
identificação plenamente bem-sucedida” (PÊCHEUX, 1990, p. 56). Ou seja, podemos
dizer que não há estabilidade no tocante à identidade dos sujeitos, pois não se trata de
um dado pronto que se aplica a ele, no sentido que o sujeito sendo um “objeto”,
colocamos nele uma identidade. Ou mesmo que possamos extrair dele uma
determinada identidade pronta, originada junto ao seu nascedouro. A questão é que,
em sociedade, dentro de suas relações, seus antagonismos, a identidade é construída
e, como vimos, vários fatores concorrem para isso, desde as instâncias do
inconsciente até as formações imaginárias.
39
Assim, poderemos refletir sobre a identidade dos alunos da Educação de
Jovens e Adultos. Esses alunos, como qualquer sujeito, estão marcados
profundamente pelo que Pêcheux chama de discurso-outro, ligado a uma “insistência
do outro como lei do espaço social e da memória histórica” (PÊCHEUX, 1990, p.55).
Isto é, dentro da materialidade que compõe a sua identidade, eles são afetados por
tudo aquilo que é dito a respeito deles. É comum, por exemplo, em turmas marcadas
por diferenças de idade, acontecer de um determinado aluno se sentir o “velho” da
classe e, por mais que não aparente se importar com essa imagem, às vezes,
materializa isso em seu discurso. Isso, de certa forma, tem ligação com o modo como
o Estado brasileiro e parte da sociedade civil e militar, em nossa história recente,
trataram a educação de adultos, desde uma perspectiva “supletiva” (GADOTTI, 2008),
no sentido de que a esses sujeitos lhes falta um “pedaço” a suprir, pois estão velhos e
não aprenderam o que deveriam no tempo certo. Assim no âmbito escolar o próprio
Estado produziu um imaginário de que o aluno mais velho tem uma marca distintiva,
a qual é necessariamente negativa. Ainda assim, existem os pontos de tensão, em
que é emergente a possibilidade de novos sentidos abalarem esse imaginário. E a
própria escola é um espaço em que muitos sentidos são confrontados, onde há
inúmeras identificações e desidentificações. E, tomando o mesmo exemplo, é possível
que o sujeito marcado pelo imaginário de “velho”, possa efetuar uma leitura de si
mesmo em que há condições de deslize de sentidos, em que a equação velho =
negativo possa estar sujeita a um processo polissêmico, em que sentidos outros
começam a vir à tona.
Nosso trabalho, em sua estruturação e planejamento, visa a criar uma prática
pedagógica em que sejam criadas condições para a reflexão sobre a própria
identidade, de modo que os sujeitos envolvidos no contexto da sala de aula possam
colocar em movimento os sentidos que trazem consigo mesmos, abalando algumas
vezes aquilo que eles têm como certeza, e deixando vir à superfície aquilo que ficou
emudecido.
2.4 Paráfrase e Polissemia no contexto da EJA
Será importante para o desenvolvimento de nosso trabalho a reflexão a respeito
de duas noções teóricas, a saber, a paráfrase e a polissemia. Esses conceitos nos
permitirão apreender o movimento que a linguagem faz no discurso dos alunos, a
40
possibilidade de mudança nos sentidos, bem como a manutenção dos mesmos.
É fundamental compreender, no contexto de ensino e aprendizagem da
Educação de Jovens e Adultos, essa dimensão discursiva nos enunciados dos
sujeitos-alunos, as suas mudanças, as permanências, os deslocamentos de sentidos
etc. Portanto, a produção da linguagem está envolvida nessa tensão de câmbio de
sentidos ou de continuidade. Vejamos o que nos diz Orlandi:
Teoricamente, e em termos bastante gerais, podemos dizer que a produção da linguagem se faz na articulação de dois grandes processos: o parafrástico e polissêmico. Isto é, de um lado, a um retorno constante a um mesmo dizer sedimentado – a paráfrase – e, de outro, há no texto uma tensão que aponta para o rompimento (ORLANDI, 1996, p. 27).
Assim, ao falarmos em paráfrase, é preciso distinguir o que comumente se
compreende por esse conceito do que a Análise de Discurso aborda.
Tradicionalmente, paráfrase se refere a uma reformulação de determinado enunciado,
oração ou frase, sem compromisso com a abordagem em dimensão discursiva. Já na
AD, importam os sentidos que permanecem cristalizados, apesar das materialidades
que mudam. Quando falamos, portanto, em paráfrase estamos nos referindo a essa
questão em que, a despeito das formulações, existe a manutenção de certos sentidos,
em detrimento de outros, “um mesmo dizer sedimentado”, como disse a autora.
Quanto ao conceito de polissemia, conforme Orlandi (1996), o que importa é a
mudança, o deslocamento nos sentidos: “Há um conflito entre o garantido e o que se
tem de garantir. A polissemia é essa força na linguagem que desloca o mesmo, o
garantido, o sedimentado” (ORLANDI, 1996, p. 27). Isso nos mostra o contexto de
tensão e antagonismo entre o novo e o cristalizado, que constitui a realidade do
discurso, já que o mesmo não se trata de uma entidade imutável e com sentido
definitivo. Isso permite uma ruptura com a Formação Discursiva dominante, o que cria
a possibilidade de uma contraidentificação ou mesmo desidentificação.
Dessa forma, temos um espaço conflituoso quanto ao sentido, de modo que
sua petrificação é impossível, embora exista a tendência a que se permaneçam os
sentidos que foram, dentro do contexto social, preservados, por diversos motivos
relacionados à vida em sociedade e a ideologia. Podemos, por exemplo, refletir sobre
os sentidos que envolvem uma formação imaginária de estima baixa, de ignorância,
de incapacidade, de pessimismo, que muitos sujeitos-alunos têm a respeito de si,
41
quando estão na EJA. Eles são parafraseados em diversos momentos e lugares
diferentes, como as formulações muito comuns de serem ouvidas nesse contexto
educacional, quando, por exemplo, certos alunos falam não sei falar português. Os
professores diversas vezes ouvem falar isso em sala de aula, ou até mesmo fora dela,
conversando com alunos que estão cursando ou já cursaram a EJA. Esses sentidos,
conforme sabemos com a ajuda da AD, não são originários desses sujeitos-alunos,
não saíram de suas bocas por acaso, nem são fruto imediato de sua experiência em
sala de aula necessariamente. Basta, nesse caso específico, atentar para autores da
sociolinguística, que criticam diversos gramáticos normativos por difundem
incessantemente a ideia de que o brasileiro “fala mal” a Língua Portuguesa. Isso tem
uma raiz colonialista, de subordinação econômica e cultural à antiga colônia
portuguesa. Também a estratificação social da sociedade brasileira, que nega o saber
do povo, da periferia, da cultura popular, reproduz essa formação imaginária a respeito
do sujeito-aluno não saber falar a sua própria língua materna.
Assim sendo, os sujeitos-alunos acabam por parafrasear esse discurso que,
tantas vezes, também é parafraseado pelos seus sujeitos-professores. Mesmo assim,
a emergência de novos sentidos é sempre possível, principalmente, quando sujeitos-
professores e sujeitos- alunos desenvolvem a autoria dentro de sua prática no
contexto de ensino-aprendizagem.
Pêcheux (1994) nos diz, em relação a isso, que há uma divisão social do papel
da leitura. E a paráfrase cumpre um papel com relação à reprodução, pois está ligada
aos grupos de sujeitos que estão inseridos na função de mera reprodução dos
sentidos sedimentados, esse papel que eles exercem com relação à leitura. Segundo
o autor:
Não faltam boas almas se dando como missão livrar o discurso de suas ambiguidades, por um tipo de “terapêutica da linguagem” que fixaria enfim o sentido legítimo das palavras, das expressões e dos enunciados. É uma das significações políticas do desígnio neopositivista esta de visar construir logicamente, com a benção de certos linguistas, uma semântica universal suscetível de regulamentar não somente a produção e a interpretação dos enunciados científicos, tecnológicos administrativos (PÊCHEUX, 1994, p. 60).
Podemos ver, então, que há uma produção de sentidos que sofre tentativas de
controle, no que diz respeito a sua ambiguidade, sua polissemia, e uma busca por um
sentido único e universal, como se pudesse exercer uma regulamentação infalível dos
sentidos possíveis, e aceitos, para os enunciados. Trazendo isso para o nosso contexto,
42
pode se refletir que os sentidos que os sujeitos-alunos mobilizam, uma vez inseridos
no contexto de tensão, que é o campo do discurso, envolvem toda essa gama de
sentidos produzidos sobre eles mesmos, mas de fora para dentro, apenas como
reprodução daquilo que ficou cristalizado. No entanto, a possibilidade constante de
novos sentidos, a polissemia, não é passível de dissolução, ou seja, ela pode ser
proibida, censurada, mas nunca apagada do sujeito-aluno. Com isso, a questão da
possibilidade desses mesmos sujeitos atribuírem novos sentidos para si mesmos e
para os enunciados que mobilizam a respeito de si na sala de aula é sempre presente,
e precisa ser articulada.
Portanto, para a nossa reflexão essas noções de paráfrase e polissemia são
bem mais que dois conceitos cabíveis de aplicação, mas sim estão ligadas a todo o
modo de ver o discurso dos sujeitos-alunos, como uma região de emergência de
novos sentidos e de mudança.
2.5 Gêneros Discursivos e AD
O objetivo de nossa abordagem, nesta seção, ao tratar do tema dos gêneros
discursivos, da autobiografia e da AD é, primeiramente, escrever a respeito da
perspectiva de Bakhtin sobre os gêneros, esclarecendo de antemão que essa teoria
possui pontos de descontinuidade em relação à AD, que todavia não serão tratados
de maneira exaustiva, mas apenas no que interessa a nossa dissertação, ou seja, a
possibilidade de trabalhar o que, na escola e nos documentos oficiais, também é
chamado de gênero do discurso. No entanto, não serão abordados em nosso texto
como sendo obra de sujeitos conscientes que os produzem de maneira límpida e
transparente. Comecemos, inicialmente, tratando da perspectiva de Bakhtin sobre
os gêneros discursivos.
Podemos dizer, por agora, que o sujeito não vive sem se comunicar. Para tal
utiliza-se de diferentes formas linguísticas (materialidades para AD) – desde gestos,
sons como também da oralidade e da escrita. A língua torna-se uma das ferramentas
importantes nesse processo. Ela proporciona a elaboração de diversos enunciados
em variadas formas, ou seja, gêneros. Assim sendo, tudo aquilo que falamos,
escrevemos, compomos só é possível por que está submetido a um formato específico
e relativamente estável, que possibilita o entendimento por uma coletividade. Segundo
43
Bakhtin:
Todos os campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana (BAKHTIN, 1997, p. 261).
Portanto, a todo momento usamos gêneros discursivos para nos comunicar,
seja na produção de enunciados simples como uma mensagem no WhatsApp, quanto
no preenchimento de uma ficha cadastral ou ainda a elaboração de um relato de
experiência científica. Tudo aquilo que ouvimos no dia-a-dia está sempre acomodado
em gêneros discursivos já existentes. Conforme Rojo e Barbosa:
Em todas essas atividades, valemo-nos de vários gêneros discursivos -- orais e escritos, impressos ou digitais -- utilizados socialmente e típicos de nossa cultura letrada urbana: cumprimento, bilhete, mensagem eletrônica, formulário, relatório, apresentação empresarial. Os gêneros discursivos permeiam nossa vida diária e organizam nossa comunicação. Nós osconhecemos e utilizamos sem nos dar conta disso. Mas, geralmente, se sabemos utilizá-los, conseguimos nomeá-los (ROJO; BARBOSA, 2015, pp. 16-17).
Para Bakhtin (1997, p.263), os gêneros discursivos são dotados de
heterogeneidade, logo não possuem uma natureza fechada. Por isso, é importante
atentar para a diferença entre os gêneros discursivos primários (simples) e os
secundários (complexos). Tratam-se de gêneros discursivos secundários, por
exemplo, os romances, as pesquisas científicas, os poemas etc. Na sua construção
são articulados gêneros primários, que são gestados nas condições de comunicação
discursiva cotidiana, por exemplo a conversa, que pode muito bem aparecer em um
gênero de mais complexidade como a narrativa, figurando nos diálogos dos
personagens.
Contudo, na AD, em nossa concepção, tratamos o gênero do discurso como
materialidade, que é produzida dentro de condições materiais de existência, por
sujeitos constituídos pela ideologia e pelo inconsciente.
Dentre os gêneros discursivos (materialidades) está a Autobiografia, que é um
gênero no qual o sujeito fala de si mesmo. Não se resumindo necessariamente a uma
imagem fiel, mas uma projeção de si para os outros, não se ligando ao intencional,
44
pois existe essa inegável determinação ideológica e também da ordem do
inconsciente (VENTURINI; TEIXEIRA, 2012).
Abordaremos esse gênero a seguir, bem como uma breve leitura dele efetuada
aqui no âmbito da teoria da Análise de Discurso, uma vez que para essa teoria um
gênero como a Autobiografia não é analisada como um gênero literário, composto por
um “indivíduo” coeso e totalmente consciente, que seria o seu criador.
A noção de gênero do discurso foi tomada aqui emprestada de Bakhtin (1997),
para corresponder a uma determinada materialidade que, no contexto das aulas de
Língua Portuguesa, é bastante utilizada, pois faz parte dos conhecimentos que os
sujeitos-alunos precisam ter de acordo com os documentos oficiais, como os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs e a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) de 2018. Mas, mesmo assim, faz-se necessário realizar uma releitura dos
gêneros do discurso, a fim de não entrar em contradição com a teoria que nos servirá
de aporte metodológico para analisar os discursos produzidos pelos alunos. Vejamos
mais detidamente esse ponto na seção seguinte.
2.5.1 Autobiografia
Perguntamo-nos sobre a maneira como podemos ler o gênero discursivo a
partir também da Análise de Discurso de linha francesa, uma vez que essa pertinente
contribuição teórica é o nosso principal aporte na compreensão dos discursos dos
sujeitos-alunos sobre si mesmos. Dentre os vários pontos, passíveis de encontrarem-
se com o trabalho dos gêneros discursos, está a noção de autoria. A princípio, quando
falamos de autoria, estamos falando aqui de uma função do sujeito, através da qual
ele produz efeito de unidade do discurso (ORLANDI, 2010), como já vimos em outra
seção.
Portanto, para a AD, não será necessariamente trabalhada a imagem
consagrada de um “autor” ou “escritor” enquanto um sujeito que possui certa
exclusividade genial de criação, dando “vida” a um universo de coisas novas, aparte
da história e independentemente das condições materiais de existência.
Os gêneros, se fizermos uma leitura a partir da perspectiva da AD, vamos
concordar que eles, antes de tudo, são materialidades, isto é, são a realização material
de um discurso inscrito na história, o qual por sua vez é também a existência material
da ideologia.
45
Vejamos novamente o que escreveu Bakhtin: “o princípio organizador da
narrativa que conta a vida do outro, mas também pode ser o princípio organizador do
que eu mesmo tiver vivido” (BAKHTIN, 1997, p. 166). Não interessa aqui colocar lado
a lado citações de Bakhtin e Pêcheux para compará-las em um extenso trabalho, mas
sim encontrar pontos de leitura da teoria de Bakhtin sobre os gêneros que possam ser
lidos de acordo com uma perspectiva discursiva. Na citação, podemos ler o “princípio
organizador” do qual fala o autor como uma forma de agrupamento, de organização,
em que se busca produzir determinado sentido, em outras palavras, mais próximas da
AD, poderíamos dizer que se trata de uma autoria. No entanto, quando Bakhtin fala
do “vivido”, para a AD trata-se apenas de uma leitura, de um imaginário, do sujeito
acerca daquilo que acredita ter vivido, ou seja, não é a transposição pura e simples
da vida para o papel.
Atentemos a outro ponto pertinente:
[...] é o outro possível que penetrou em minha consciência e que com frequência me governa a conduta, o juízo de valor e que, na visão que tenho de mim, vem colocar-se ao lado de meu eu-para mim; é o outro instalado em minha consciência1 (BAKHTIN, 1997, p.166).
É possível, portanto, lermos atentamente no “outro” de quem fala Bakhtin, a
importância constitutiva da exterioridade no sujeito, dos demais sujeitos e das
condições de produção. Também aqui que, no âmbito da AD, irá constituir o arquivo e
a memória discursiva. Nada, dessa forma, é dito sem travar contato com tudo o que
outrora fora dito em outros tempos, numa relação de paráfrase ou polissemia, de
permanência do mesmo ou possibilidade do novo. Nem para Bakhtin e nem para
Pêcheux “as palavras caem do céu”. Para ambos, existe um real da história, sujeito
aos conflitos ideológicos e às condições materiais de existência dos sujeitos.
Então, quando falamos em gênero autobiográfico estamos não somente nos
referindo a um tipo de texto com determinadas características, elaborado em
sociedade, divididos por Bakhtin em primários e secundários, mas principalmente a
uma materialidade discursiva, em que é possível, no âmbito do contexto de ensino e
aprendizagem, desenvolver a autoria e que mobiliza o arquivo e memória dos sujeitos-
alunos. A questão de mobilizar a memória dos sujeitos não se refere necessariamente
à narração de vivências, mas como uma interpretação de si mesmo, como vemos em
Venturini & Teixeira (2012, p.148):
46
[...] o texto autobiográfico não tem a função de narrar acontecimentos da ordem do vivido, posto que na prática narrativa o sujeito, sempre tomado como posição e inscrito a lugares, interpreta a si mesmo, mas essa interpretação não se liga ao intencional, tendo em vista interpelação ideológica e atravessamento pelo inconsciente. Assim, mesmo quando diz “eu”, o sujeito que assume o lugar e função de autor, não fala exatamente de si mesmo, mas organiza a memória, o que faz sentido e ressoa como o já sabido, a partir de uma posição social.
Assim, a autobiografia não é encarada como criação consciente do sujeito, dono
de si e de seus sentidos, mas antes como uma leitura de si mesmo, uma produção de
sentidos sobre si. E mesmo se tratando de memória, o que o sujeito faz, enquanto
autor, é uma projeção acerca de seu próprio sujeito. E esse fato pode ser inclusive a
criação de uma ficção, ou uma forma de conferir sentido à própria vida, o que também
não está desprovido da presença da ideologia, como apontam as autoras:
A autobiografia não é a representação de uma vida em seu real, ela pode ser a criação de uma ficção, a materialização de um desejo, mas é também, uma prática, na qual um sujeito, ilusoriamente dono do seu dizer, que a partir do que é memória, do que faz sentido para ele, enquanto sujeito inscrito em um lugar interpreta a própria vida. Dá sentido a ela. Discursivamente se diz que essa interpretação não está isenta do ideológico e nem do atravessamento do inconsciente (VENTURINI; TEIXEIRA, 2012, p. 158).
Essas questões postas nos levam à seguinte reflexão sobre a importância de
um trabalho com a autobiografia em sala de aula, especificamente na modalidade da
EJA. É possível pensar com Venturini & Teixeira (2012, p.149) no papel terapêutico
desse tipo de abordagem, que possibilita recordar/ler acontecimentos da própria vida
a fim de refletir sobre a própria identidade, podendo fortalecer ou até reconquistar a
autoconfiança. Esses pontos são fundamentais para que os sujeitos-alunos, na EJA,
saiam da escola um pouco mais diferentes que entraram, acreditando mais em si
mesmos e no seu poder de transformar a própria vida, possibilitando assim com que
esses sujeitos-alunos produzam novas formações imaginárias.
47
3 METODOLOGIA DA PESQUISA
Este capítulo apresenta as escolhas metodológicas para o desenvolvimento e
a implementação desta pesquisa. A seguir, apresento pressupostos importantes para
a compreender como se situa a AD, a fim de poder utilizá-la nas análises dos discursos
dos sujeitos-alunos, como também no desenvolvimento da autoria no decorrer das
aulas.
Uma abordagem metodológica, com base na AD, compreende
indiscutivelmente a linguagem como um processo, um movimento, permeada pelas
contradições e antagonismos presentes na vida social dos sujeitos, de maneira que é
no movimento da história e nas relações sociais que se deve apreender o vasto e
complexo campo do discurso.
Para melhor compreender a sua particularidade, pode se distingui-la das outras
metodologias e teorias que se centram no suposto papel autossuficiente das palavras,
apenas concebendo-as como transmissoras, mas não produtoras de sentido. Sendo
o discurso um acontecimento que se dá na vida dos sujeitos em sociedade, ele é
dotado de um caráter dinâmico, assim como tudo o que eles produzem, através do
trabalho e práxis, no mundo. Isto é, nada do que existe que seja obra dos sujeitos,
existe desde sempre, de forma independente, e deslocado da conflituosa existência
em sociedade. O discurso, portanto, para a AD é uma forma de mediação entre o
sujeito e o mundo, mas não uma mediação transparente, imutável, mas sim opaca e
constituída de tensão, falhas, silêncios etc. Pêcheux (2010) compreende a língua,
dessa forma, sem nenhum tipo de realidade idealista, mas sim como algo concreto,
material.
A partir disso, o autor faz uma reflexão de como a leitura obedece a certo
conflito de posições entre os sujeitos inseridos no processo da interpretação, quando
fala em divisão social da leitura (PÊCHEUX, 1990). A linguagem, enquanto mediação
dos sujeitos com sua exterioridade, uma vez inserida numa sociedade estratificada, é,
da mesma forma, posta dentro dessas relações de contradição. Alguns produzem
interpretações, outros reproduzem. É a divisão de funções que existe em nossa
realidade. Assim, determinado gesto de leitura realizado por um sujeito-aluno na sala
de aula não será uma leitura desvinculada de seu mundo, suas formações imaginárias,
seus conflitos, e de tudo aquilo que a sociedade constrói ao seu redor: preconceitos,
injustiças, hierarquias etc.
48
E é sob esse movimento da linguagem que nosso aporte teórico-metodológico
pretende se debruçar, compreendendo que o discurso dos sujeitos-alunos está em
movimento, se direcionam para determinada ideologia, ou podem fazer desvios,
estando permeados de várias outras formações ideológicas, uma vez que, se tratando
da linguagem, não existe reprodução perfeita da ideologia, porque existe a falha.
Importante para a compreensão disso é a instância do inconsciente, legada pela
psicanálise, que nos mostra que o sujeito é um processo marcado por traumas,
complexos, normas etc. que determinam a sua estrutura psíquica, de maneira que é
impossível se pensar em um sujeito plenamente dono de seu discurso (PÊCHEUX,
2010).
Dessa maneira, para nossa metodologia importam as noções de paráfrase e
polissemia, por serem capazes de satisfazer a nossa análise no que concerne ao
discurso dos sujeitos-alunos, principalmente, no que está relacionado às mudanças
que ocorrem em sua leitura e ao discurso que produzem, ou reproduzem, sobre si
mesmos. Pois assim como existe a tendência à permanência do mesmo, também há
a possibilidade da ruptura e a emergência do novo (ORLANDI, 2012).
Levando isso em consideração, à AD interessa o discurso não como uma
informação verificável, dada, mas sim passar para além do nível segmentado, ou seja,
o importante vem a ser a significação como uma multiplicidade, e não uma linearidade.
Nesse sentido, passa- se da mera frase ao texto, isto é, adentra-se à noção de
unidade. Portanto, não são as frases dispersas que são levadas em conta, mas sim a
relação da parte com o todo: um recorte, que vem a ser uma unidade discursiva, um
pedaço de um todo, conforme Orlandi (1984, p. 16): “O recorte é naco, pedaço,
fragmento. Não é segmento mensurável em sua linearidade”. Dessa forma, a AD tem
a especificidade de compreender os recortes de um texto como não sendo
desvinculado de um todo maior, levando-se em consideração a polissemia que constitui
esses recortes. E para realizar essa seleção de recortes através de sequências
discursivas se parte de um gesto de interpretação do analista, é a partir de sua
“operação de recorte” que se extraem as sequências discursivas que comporão o
corpus da análise” (FERNANDES; VINHAS, 2019, p. 146). Assim, na AD, a
preocupação do analista não é com frases entendidas como dados novos,
segmentados, mas sim com recortes advindos do gesto de interpretação realizado
pelo seu sujeito, o que, no nosso caso, condiz com as memórias discursivas ligadas à
identidade dos sujeitos-alunos da EJA, aquilo que sobre eles foi dito em outros lugares
49
e que constituiu seus sujeitos. Dessa forma, consideramos as sequências discursivas
extraídas de um todo, as suas autobiografias e demais textos, que correspondem aos
discursos sobre si mobilizados por esses sujeitos-alunos.
No item seguinte abordaremos o nosso corpus de pesquisa, a partir de uma
perspectiva discursiva.
A fim de produzir a análise das materialidades obtidas das autobiografias e
demais textos dos sujeitos-alunos, utilizaremos nesta dissertação do campo teórico-
metodológico da AD. De início, diremos com Orlandi (1990) que para essa teoria não
se usa a noção de dados, mas sim de fatos, uma vez que na AD, se aborda a linguagem
como materialidade. Conforme Orlandi (1990, p.25):
A análise de discurso [...] visa a construir um método de compreensão dos objetos de linguagem. Para isso não trabalha com a linguagem enquanto dado, mas como fato. [...] mais do que isso, ela acaba por inaugurar uma nova percepção do político, pela convivência com a materialidade da linguagem, materialidade esta ao mesmo tempo linguística e histórica.
Isso diz respeito, portanto, ao fato da linguagem nessa teoria ser compreendida
enquanto produção dos sujeitos em sociedade e determinadas condições de
produção. Isto é, a AD não dissocia a língua da exterioridade. Assim sendo, as
materialidades linguísticas são transpassadas pela ideologia e pelas contradições que
são constitutivas tanto da linguagem quanto da sociedade.
Dessa forma, para a análise de nosso corpus serão pertinentes duas categorias
presentes na AD, a de paráfrase e a de polissemia. Pois não estão inseridas em uma
concepção de leitura e a produção de sentidos se reduzam a uma codificação de
mensagens límpidas através de uma materialidade que é a língua. Ao contrário, para
a categoria de paráfrase, os mesmos sentidos podem ser mantidos com formulações
distintas, o que vale dizer que eles são produzidos através de uma realização material
que é a linguagem. Por exemplo, um sujeito-aluno pode usar das palavras que tem
disponíveis na memória discursiva, a fim de manter os mesmos sentidos,
reproduzindo-os da maneira como pode. Ou, então, pode, com as mesmas palavras
disponíveis, produzir outros sentidos, de maneira que, para a nossa teoria, o discurso
tem uma realidade material, não nos sendo dado por uma entidade superior (como se
fossem os dez mandamentos), mas sendo produzido pelos sujeitos nas suas
condições materiais de existência.
Nesse sentido, será importante para a elaboração de nossa análise do corpus a
50
noção de arquivo (PÊCHEUX, 1990). Para o autor, trata-se de um campo muito amplo
de documentos pertinentes e disponíveis a respeito de uma determinada questão,
que, no entanto, não se limita, na AD, a documentos escritos, mas também a
diferentes gestos de leitura realizados no decorrer do tempo. Pêcheux (1990) faz uma
crítica ao que chama de divisão social da leitura, em que somente alguns poucos
autorizados elaboram as leituras ditas corretas sobre determinados assuntos, tendo o
direito exclusivo de produzir de gestos de interpretação, enquanto que os demais
sujeitos apenas se limitam a reproduzir. Essa noção restrita de arquivo não é a noção
trabalhada pela AD. Para nós, portanto, importam os arquivos mobilizados pelos
sujeitos para produzir suas leituras em relação a certo tema. E aqui o tema em questão
são os próprios sujeitos-alunos e os sentidos que eles produzem a respeito de si
mesmos. E isso envolve aquilo que foi escrito, digamos, em “papéis” e aquilo que não
foi escrito, mas que de alguma maneira foi construído a respeito desses mesmos
sujeitos e está na memória discursiva.
Nosso corpus é composto de sequências discursivas escritas pelos próprios
sujeitos- alunos a respeito de si mesmos. Essas sequências discursivas são extraídas
de autobiografias que eles próprios produziram sobre o modo como eles se veem, seja
na sua vida cotidiana, na escola, nas redes sociais etc. Nesse sentido, portanto, o
arquivo mobilizado não pode ser reduzido a documentos escritos de sujeitos
autorizados a produzir leituras, mas, ao contrário, se expande pela memória, pelos
ditos elaborados no cotidiano, reproduzidos na escola, na família, na mídia etc.
A sequência discursiva não é encerrada em um sentido fixo que o sujeito-aluno
transmite sobre si mesmo, mas sim como uma materialidade em que ele produz ou
reproduz certo sentido, desenvolve a autoria, ou seja, é um ponto de encontro e
desencontro de sentidos. Onde, por vezes, será o lugar do mesmo ou do diferente, da
paráfrase ou da polissemia, conceitos que, como dissemos, serão utilizados em nossa
análise.
Assim, nossa proposta metodológica se diferencia de abordagens em que o
objetivo principal é “descoberta” pura e simples de sentidos prontos e desejáveis nos
discursos dos alunos, o que, em outras palavras, é uma forma de controle dos
sentidos. Vejamos Pêcheux (1990, p. 60):
51
[...] o risco é simplesmente o de um policiamento dos enunciados, de uma normalização asséptica da leitura e do pensamento, e de um apagamento seletivo da memória histórica: “quando se quer liquidar os povos”, escreve Milan Kundera, “se começa a lhes roubar a memória”.
Assim, a nossa análise das sequências discursivas, no contexto da EJA, busca
valorizar não a permanência de sentidos institucionalizados ou legitimados, mas
aqueles que são mobilizados pelos sujeitos-alunos em seus gestos de leitura de si
mesmos, em que importa a memória discursiva e o desenvolvimento de sua autoria.
Em outras palavras, utilizando a imagem evocada por Pêcheux (1990), não é
importante aqui encerrá-lo na condição de um antigo copista, mas sim de
compreendê-lo enquanto um sujeito que produz sentidos.
52
4 METODOLOGIA DA INTERVENÇÃO
Esta dissertação, quanto a sua intervenção, está embasada
metodologicamente na pesquisa-ação. De início vejamos o que diz o teórico Tripp
(2005, p. 445-446), para ele a pesquisa-ação trata-se de:
[...] um termo genérico para qualquer processo que seja um ciclo no qual se aprimora a prática pela oscilação sistemática entre agir no campo da prática e investigar a respeito dela. Planeja-se, implementa-se, descreve-se e avalia- se uma mudança para a melhora de sua prática, aprendendo mais no correr do processo, tanto a respeito da prática quanto da própria investigação.
Nesse sentido, este processo metodológico permite ao pesquisador uma ação
mais efetiva dentro do grupo que está inserido. Tendo que estar atento às
circunstâncias e às alterações que podem ocorrer durante a sua ação. Assim sendo, o
objetivo fundamental neste contexto é compreender a pesquisa-ação enquanto uma
linha de pesquisa que está ligada a formas de ação coletiva, preocupada na solução
de problemas que se apresentam e ocupando-se de uma transformação (THIOLLENT,
2003, p. 7).
Dessa forma, é importante assinalar junto com o autor que:
[...] a pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com uma resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 2003, p. 14).
E assim pensado um projeto a ser aplicado no âmbito do processo de ensino-
aprendizagem, especificamente na educação básica, onde a pluralidade é dado
marcante e onde existem diferenças nas formas de aprender, é necessário lançar mão
desse caráter cooperativo e participativo do qual fala o autor.
Vimos que a pesquisa-ação enquanto variedade da investigação-ação venha a
ser uma forma de pesquisa que é feita no campo da prática, adaptando-se mesmo
assim às exigências de trabalhos acadêmicos (TRIPP, 2003). Dito isso, uma outra
instância importante será a da reflexão, que se trata de uma fase distinta no ciclo da
investigação, pois se dá intermitentemente durante todo o ciclo. Conforme Tripp (2003,
p. 454):
53
O processo começa com reflexão sobre a prática comum a fim de identificar o que melhorar [...]. A reflexão também é essencial para um planejamento eficaz, implementação e monitoramento, e o ciclo termina com uma reflexão sobre o que sucedeu.
Dessa forma, a reflexão sobre a prática pedagógica se faz necessária dentro
do contexto de aplicação do projeto proposto na educação básica, pois se lida
constantemente com modificações, problemas e situações novas. O contexto em que
esse projeto tem sido aplicado, em uma escola periférica de Alegrete, é composto de
um alunado bastante heterogêneo, como veremos na próxima seção.
4.1 O espaço escolar da aplicação
A instituição escolhida para a aplicação deste projeto de pesquisa foi a Escola
Municipal de Educação Básica Marcelo de Freitas Faraco, localizada na periferia da
zona leste de Alegrete, no estado do Rio Grande do Sul. A escola funciona nos três
turnos, sendo a modalidade Educação de Jovens e Adultos no período noturno. A EJA
é composta por cinco turmas. Destas, uma é de Alfabetização e as demais, anos finais
de ensino fundamental. As turmas são classificadas em: etapas I, II, III, IV, V e VI.
4.2 Perfil dos alunos
A turma escolhida para a aplicação desta pesquisa é uma turma de 9º ano do
ensino fundamental da EJA, denominada Etapa VI, composta por 16 alunos
matriculados. A faixa etária é de 15 a 60 anos, sendo oito alunos menores de idade.
Nesse coletivo existem diversas pluralidades que são naturais na EJA, como
diferenças de aprendizagem, medos, crenças e experiências de vidas variadas. Por
exemplo, muitos deixaram de estudar em uma outra época, por diversos motivos
como: gravidez na adolescência, trabalho, problemas familiares etc.
A escolha desta turma tem como critérios o envolvimento em atividades
anteriores realizadas em disciplinas ministradas por mim, a aceitação por propostas
não convencionais, o bom relacionamento interpessoal e, principalmente, pelo
interesse em compartilhar suas vivências e saberes.
54
4.3 Procedimentos para obtenção de fatos
Durante a aplicação deste projeto de pesquisa foram utilizados determinados
procedimentos para obtenção de fatos, a fim de ter subsídios para posterior análise,
avaliação e reelaboração do produto pedagógico. Os instrumentos que foram
utilizados: Diário de campo; Cadernos de registros dos alunos; Registros fotográficos
de cada aula; Autobiografias produzidas pelos alunos.
4.4 Cronograma das atividades que foram realizadas
O quadro abaixo apresenta as atividades e os procedimentos de coleta de fatos.
Quadro 1: Coleta de dados.
FASES DA
INTERVENÇÃO
CRONOGRAMA DE
REALIZAÇÃO
NÚMERO DE AULAS/
PERÍODOS
INSTRUMENTOS DE
COLETA DE FATOS
Aplicação
da
Proposta
Pedagógica
03/2019 1 período
(60 minutos)
Diário de campo;
Registro fotográfico;
03/2019 1 período
(60 minutos)
Diário de campo;
Registro fotográfico;
03/2019 1 período
(60 minutos)
Diário de campo;
Registro fotográfico;
03/2019
1 período
(60 minutos)
Produção textual.
Diário de campo;
Registro fotográfico;
03/2019
1 período
(60 minutos)
Atividade no caderno;
Diário de
campo; Registro
fotográfico;
04/2019
2 períodos
(60 minutos cada)
Registro
fotográfico; Textos
autobiográficos
produzidos pelos
alunos. Fonte: Autora (2019).
55
4.5 Diário de campo
O diário de campo é uma importante ferramenta utilizada pelo pesquisador para
registrar as suas impressões durante o processo de aplicação da Proposta
Pedagógica. É nele que ficaram escritas as reflexões que o professor fez enquanto
realizou o seu trabalho. Essas impressões foram sendo produzidas no diário à medida
que a ação do pesquisador foi desenrolando, encontrando empecilhos ou facilidades,
êxitos ou fracassos.
4.6 Registro fotográfico
Os registros fotográficos foram realizados durante todo o decorrer do processo.
O objetivo desse procedimento foi justamente coletar e captar momentos importantes
do envolvimento escolar dos alunos nas atividades propostas, bem como possibilitar
ao pesquisador rememorar momentos de construção e apropriação do gênero
autobiográfico pelos alunos, em suas várias etapas, bem como seus momentos de
tensão, alegria e cooperação.
4.7 Cuidados éticos
Para que o trabalho proposto fosse conduzido dentro de preocupações éticas,
bem como na confiabilidade entre todos os participantes da pesquisa, tomamos o
cuidado de firmar um Termo de Autorização de Uso de Imagem e Voz (ANEXO A), a
fim de que seja assinado pelos alunos maiores de idade e pelos pais ou responsáveis
pelos alunos menores. Nesse documento, constam todos os objetivos do projeto,
explicados de modo que não reste nenhuma dúvida quanto às razões da necessidade
de captação da imagem e da voz dos envolvidos. Aos mesmos é garantida a adesão
ou não à pesquisa empreendida, não incorrendo em nenhum tipo de prejuízo àqueles
que, por ventura, não queiram ou deixem de participar.
4.8 Objetivo pedagógico
Implementar uma Proposta Pedagógica voltada para o desenvolvimento da
aprendizagem da Língua Portuguesa através da produção de autobiografias.
56
4.9 Objetivos pedagógicos específicos
Desenvolver a autoria nos sujeitos-alunos da educação de jovens e adultos;
Trabalhar o gênero discursivo autobiografia, mobilizando o arquivo discursivo
dos sujeitos- alunos;
Criar condições de leitura polissêmica, com atribuição de novos sentidos ao
discurso que os sujeitos-alunos têm sobre si;
Trabalhar a identidade do sujeito-aluno no contexto da sala de aula.
4.9.1 Desenvolvimento da Proposta Pedagógica
Conforme explicitado em outro item, a Educação de Jovens e Adultos possui
um público heterogêneo em que os chamados “níveis de adiantamento” variam muito
dentro de uma mesma turma. Para sondar, portanto, essas diferenças, utilizou-se uma
roda de conversa inicial, a fim de criar um ambiente mais leve para mobilizar as
memórias discursivas e os arquivos dos alunos. Esse momento foi muito importante
para a reflexão e elaboração da Proposta Pedagógica. Dessa forma, procedeu-se da
seguinte maneira:
Mobilização dos arquivos através de uma roda de conversa;
Construção das aulas e atividades com base nos arquivos e memória
discursiva dos alunos, levantados durante a conversa;
Entrega do Termo de Autorização de Uso de Imagem e Voz (ANEXO A)
para os alunos ou seus responsáveis (no caso dos menores de idade);
Análise das sequências discursivas obtidas através da operação de
recorte;
Análise da Proposta Pedagógica e sua consequente reelaboração.
A primeira aplicação da Proposta Pedagógica ocorreu, como foi dito antes, em
uma turma da Educação de Jovens e Adultos, e foi organizada dentro das aulas de
acordo com o quadro a seguir.
57
Quadro 2: Aulas aplicadas em uma turma de Educação de Jovens e Adultos.
Aula/ Unidade
Atividade
Objetivo da aula
Coleta de fatos
Aula 1
Apresentação de um vídeo autobiográfico.
Roda de conversas.
Personalização do
caderno de registros do aluno.
Reconhecer o gênero autobiográfico.
Mobilizar o arquivo discursivo dos alunos
sobre si. Trabalhar a
identidade na personalização do
caderno de registros do aluno.
Diário de campo; Registro
fotográfico; Caderno de registros do
aluno.
Aula 2
Questionário inicial.
Promover o discurso dos alunos a respeito
de sua identidade. Mobilizar a memória
discursiva.
Diário de campo; Registro
fotográfico; Caderno de registros do
aluno.
Aula 3
Escrita da autobiografia
Trabalhar a autoria através da produção
de um texto autobiográfico.
Mobilizar a memória e o arquivo discursivo.
Diário de campo; Registro
fotográfico; Caderno de registros do
aluno.
Aula 4
Momento de leitura:
textos autobiográficos
em grupos.
Destacar nos textos
trabalhados os adjetivos e termos
desconhecidos.
Com o uso de
dicionários buscar sinônimos para as
palavras destacadas.
Socialização das leituras para o grande
grupo.
Produzir sentidos a partir do texto.
Fomentar a produção da leitura (parafrástica
e polissêmica).
Trabalhar as classes gramaticais: adjetivos
,substantivos e verbos.
. Criar condições de leitura parafrástica.
Ampliar o
repertório através da sinonímia.
Diário de campo; Registro
fotográfico;
Caderno de registros do
aluno.
(Continua)
58
Aula 5
Realização da
atividade de produção
textual: “Quem eu sou
nas redes sociais?”
(descrever as últimas
postagens)
“Quem eu sou fora das redes sociais?”
Refletir sobre a produção de um
imaginário dentro das redes sociais e fora
delas.
Compreender que a identidade é construída
socialmente.
Diário de campo;
Registro fotográfico; Caderno de registros
do aluno.
Aula 6
Produzindo sentidos sobre a sua
personalidade.
Quais outras materialidades posso
utilizar dentro da língua para dizer o mesmo?
E quais outros sentidos posso atribuir à mesma
materialidade?
Mobilizar as formações
imaginárias sobre si. Refletir sobre sua
identidade.
Promover a autoria.
Desenvolver a paráfrase e a polissemia.
Diário de campo; Registro
fotográfico;
Caderno de registros do aluno.
Aula 7
Escrita de uma nova
autobiografia.
Possibilitar um novo momento para a
autoria e o discurso sobre si.
Nutrir o arquivo discursivo dos
alunos.
Diário de campo; Registro
fotográfico.
Caderno de registros do
aluno.
Aula 8
Autoavaliação.
Roda de conversa.
Promover uma reflexão em grupo a
respeito do tema e da construção de um
novo olhar sobre si.
Diário de campo; Registro
fotográfico.
Caderno de registros do
aluno.
Aula 9
Socialização das
produções.
Confraternização entre os alunos.
Compartilhar com a turma as
autobiografias produzidas.
Promover um momento de
integração entre os alunos e professora.
Diário de campo; Registro
fotográfico. Vídeo-relato do
professor.
Caderno de registros do aluno.
Fonte: Autora (2019).
(Conclusão)
59
5 ANÁLISE DOS DISCURSOS DOS SUJEITOS-ALUNOS SOBRE SI
Neste capítulo, analisaremos o discurso dos sujeitos-alunos sobre si mesmos.
Trataremos desses sentidos que esses alunos mobilizaram durante a intervenção que
se deu nas aulas de Língua Portuguesa, sendo possível a mim, enquanto educadora e
pesquisadora, adentrar nos princípios teórico-metodológicos que norteiam o presente
trabalho com o público da EJA. Não esquecendo que essa nossa análise envolve a
compreensão do texto enquanto materialidade do discurso, este que é uma instância
que não se esgota na pura e simples análise das palavras, em sua forma sintática ou
gramatical.
Estamos, portanto, não somente com o olhar teórico voltado para o texto em si,
na condição de materialidade, mas com o cuidado de não abrir mão da complexidade
que caracteriza o discurso de um sujeito em determinado contexto social. Dessa
forma, precisamos também olhar para a exterioridade, para a identidade, para a
produção de sentido nas relações de paráfrase e polissemia. Também é de grande
importância atentarmos sempre para o campo do desenvolvimento da autoria por parte
dos sujeitos-alunos, pois nós professores devemos compreender que eles não são
meros reprodutores nem dos discursos do seu meio social, nem da formação
imaginária produzida a respeito deles. Uma visão meramente reprodutivista, que
coloca os sujeitos-alunos como uma espécie de “robô”, não está em consonância com
a concepção de sujeito da AD, onde cabe o antagonismo, contradição e o
deslizamento de sentidos, de modo que o sujeito é atravessado por diferentes
formações discursivas.
Assim sendo, não nos interessa de nenhuma perspectiva a extensão dos textos
produzidos pelos sujeitos-alunos, mas sim a materialidade dos sentidos que são
mobilizados, sua inscrição em determinada Formação Discursiva e a possibilidade de
deslizamentos de sentidos nos discursos dos sujeitos-alunos.
Em nossas aulas com o conteúdo de autobiografia, realizamos as seguintes
atividades divididas em um espaço de nove encontros de duas horas/aula:
Apresentação de um vídeo autobiográfico, seguido de uma roda de conversa
sobre o mesmo, momento em que foi perguntado aos alunos o que eles consideravam
interessante na história narrada. Na sequência, foram dados aos alunos pequenos
cadernos, a fim de que eles os utilizassem para fazer seus registros e produções com
o intuito de esboçarem sentidos acerca de sua identidade. Para isso, foi demonstrada
60
a técnica de Fanzines, para que os sujeitos-alunos pudessem produzir os discursos
sobre si.
Aplicou-se aos alunos um questionário inicial com o objetivo de que eles
mobilizassem seu arquivo. Foi perguntado a eles:
Como eu me vejo?
Como eu acho que as pessoas me veem?
Como eu não gosto de ser visto?
Como eu gostaria que me vissem?
O que minhas marcas e traços (cabelos, tatuagens, piercing, cicatrizes)
significam para mim?
O que você gostaria que seu modo de vestir dissesse a seu respeito?
Como eu gostaria de me ver no futuro?
Essas perguntas iniciais foram muito importantes enquanto prática de criação
de condições para que os sujeitos-alunos trouxessem à tona os sentidos sobre si
mesmos, que envolvem as suas próprias identidades.
Foi solicitado aos sujeitos-alunos que produzissem uma primeira autobiografia.
Entregou-se aos sujeitos-alunos em torno de seis autobiografias, dentre elas textos
de anônimos e também de personalidades, como o poeta Mário Quintana. Nesse
momento, além de terem contato com aspectos textuais, como regras específicas do
tipo de materialidade trabalhada, eles puderam ter contato com os sentidos que esses
outros sujeitos produziram sobre si.
Solicitou-se aos sujeitos-alunos fazerem uma atividade referente aos sentidos
que produzem sobre si nas redes sociais. Na ocasião, tiveram que responder as
seguintes perguntas:Quem sou eu nas redes sociais? Descrever as últimas
postagens.Quem eu sou fora das redes sociais?
Em círculo, os sujeitos-alunos receberam folhas coloridas, nas quais deveriam
escrever características do colega que estava ao seu lado direito. Depois, trocam-se as
folhas entre os colegas. Na sequência, cada sujeito-aluno deveria, munido das
características que recebeu do colega, atribuir sentidos a elas, de modo a possibilitar
a polissemia.
Os sujeitos-alunos escreveram uma nova autobiografia, uma vez que, no decorrer
das aulas, foram criadas novas condições de alimentação de seu arquivo.
61
Aos sujeitos-alunos foi pedido que elencassem palavras-chaves de suas
autobiografias a fim de confeccionar um cartaz sob o título “Quem é o(a) aluno (a) da
EJA?”, definindo com essas mesmas palavras passado, presente e futuro. Esse cartaz
foi exposto no hall de entrada da escola.
Momento dedicado à transcrição das autobiografias em molduras expostas nos
corredores da escola, a fim de que a comunidade pudesse também realizar o seu
gesto de leitura.
Desses materiais produzidos pelos sujeitos-alunos, pode-se produzir diversos
gestos de interpretação referentes às suas identidades, e ao modo como eles se
atribuem sentidos através da paráfrase e da polissemia. Vê-se que, como em todo o
discurso, a exterioridade e as condições de produção do discurso têm uma relação
constitutiva, bem como a ideologia, como veremos nas análises que seguem.
Em nosso trabalho nos preocupamos em inspirar nossa elaboração nas
concepções de Dolz e Scneuwly (2004) a respeito do que chamam de Sequência
Didática, que é um esquema didático construído por módulos para ensinar os gêneros
discursivos. Ao nosso ver, esse esquema aliado a um trabalho pedagógico baseado
na AD francesa permite ao sujeito-aluno o exercício da autoria. Como se organiza de
forma sistemática, é importante que haja, da parte do sujeito-professor, uma contínua
reflexão diagnóstica em cima do modo como os alunos interagem com o gênero
textual trabalhado, de maneira que os módulos construídos façam juz ao
desenvolvimento da autoria por parte dos sujeitos-alunos. Assim, nosso trabalho
contou com uma primeira situação comunicativa, uma produção inicial e, na medida
em que os módulos foram sendo construídos, partiu-se para uma produção final. A
seguir, trataremos do discurso dos sujeitos-alunos durante esse processo.
5.1 Sentidos sobre a mulher: paráfrase e polissemia
Vejamos, primeiramente, uma análise do discurso da sujeito-aluna M.S.P., o
qual respondeu às seguintes perguntas do questionário que aplicamos com a turma
na parte inicial da Proposta Didática. Para realizar a análise, utilizaremos sequências
discursivas (SD) devidamente numeradas:
(SD.1) 1. Como eu me vejo? Muito mãe – família – otimista Sentimental – instável –
emotiva
2.Como eu acho que as pessoas me veem? Antipática.
62
3.Como eu não gosto de ser visto? Antipática.
4. Como eu gostaria que me vissem? Como sou.
6. O que minhas marcas e traços (cabelos, tatuagens, piercing, cicatrizes) significam
para mim? Os sinais de minha idade não me revelam, sou elegante.
7. O que você gostaria que seu modo de vestir dissesse a seu respeito? Uma senhora
de muitos filhos. Elegante.
8. Como eu gostaria de me ver no futuro? Realizada, com duas faculdade2.
Muito mãe, família, otimista, sentimental, instável, emotiva: em princípio, um
sujeito-professor não habituado à dimensão discursiva dos enunciados, leria esse
discurso do referido sujeito-aluno como algo sem grandes possibilidades de análise,
apenas como uma autodefinição, talvez elogiosa, que se basta a si mesma, no sentido
de que um certo objetivo foi atingido, ao responder a determinado questionamento.
Por exemplo, esse professor daria atenção ao fato de a escrita estar correspondendo
ou não à coesão, à coerência e às normas ortográficas, talvez também para algum
aspecto do sentido, já que se tratam de palavras em uma enumeração, que requerem
certa identidade de sentido, como por exemplo, se todas são da mesma classe
gramatical. No entanto, não se daria atenção ao aspecto discursivo desse enunciado.
É possível analisar no discurso empregado pela sujeito-aluna em questão que
o mesmo é constituído ideologicamente e mantém relação com a exterioridade, com as
relações sociais e de gênero. Dessa forma, está ligado a uma formação imaginária
em que à mulher corresponde imediatamente o papel de mãe e de família, o que não
ocorre com o imaginário mobilizado comumente em relação ao gênero masculino. A
sujeito-aluna M.S.P., então, produz uma paráfrase, reproduzindo um discurso que foi
construído em uma organização social marcada pela formação ideológica do
patriarcado, onde o lugar do gênero feminino está circunscrito ao ambiente do lar e às
funções domésticas. Muito mãe mantém uma relação de paráfrase com outras
materialidades, como: mãezona, rainha do lar, grande mulher atrás de um grande
homem, dona de casa, edificadora do lar etc. Todas as formulações contêm palavras
diferentes, porém os sentidos que elas mobilizam possuem concordância entre si.
Essa identidade, assim sendo, acaba por ser mobilizada pela aluna em questão,
constituindo seu sujeito e os discursos que produz. Essa dimensão da memória
discursiva não está ao acesso do sujeito que fala, em razão do esquecimento número
um (PÊCHEUX, 2010), que é da ordem do inconsciente e que permite ao sujeito crer
ser o dono de seus ditos. As demais materialidades empregadas pela sujeito-aluna
63
reforçam esse imaginário constituído na desigualdade de gênero existente no contexto
social, como a palavra “família”.
Podemos analisar a formulação Sentimental, instável, emotiva a partir também
de uma formação imaginária a respeito da identidade do gênero feminino dentro das
condições materiais de produção do discurso. Os sentidos mobilizados pelas
materialidades em questão estão inscritos em uma Formação Ideológica que separa
homens e mulheres de acordo com determinado imaginário fixado para cada papel.
Nessa Formação Imaginária que o sujeito- aluno projeta sobre si existe uma paráfrase,
que reproduz os sentidos de que à mulher cabem os sentimentos e aos homens a
racionalidade. Não interessa a nós colocarmos a questão dos sentimentos como algo
inferior, muito pelo contrário, mas interessa analisar esses sentidos sedimentados
historicamente, produzidos em determinado contexto sócio-histórico. E lembramos o
esquecimento número 2 (PÊCHEUX, 2010), da ordem das formulações, que se refere
a que o sujeito tem a ilusão de que os sentidos só podem ser ditos de uma maneira,
excluindo outras formas de se referir sobre seu mundo subjetivo. Podemos ver esses
sentidos produzidos dentro do contexto de desigualdade entre gêneros parafraseados
também na materialidade “instável”. Remonta, dessa forma, a uma Formação
Imaginária de que mulher é frágil emocionalmente, portanto, carente de maior
sensatez e racionalidade que têm os homens.
Também em seu discurso, os “muitos filhos” parafraseiam sentidos de que a
mulher dita “completa” é a mulher que teve filhos, ou seja, que, de acordo com o
discurso mais conservador, cumpriu com seu “papel”. Cabe, contudo, sempre lembrar
o inconsciente (no sentido psicanalítico) do sujeito ao movimentar seus sentidos em
uma direção, o que vale dizer que a sujeito-aluna não está necessariamente
enquadrada em uma posição patriarcal, mas que realiza uma paráfrase de sentidos
produzidos anteriormente a ela, em um determinado contexto social, marcado pela
sedimentação de certo discurso.
Nesse sentido, também concorre a materialidade “Antipática”, que reproduz os
sentidos de que à mulher é dado de ser simpática e “elegante”, algo como os sentidos
mobilizados nos concursos de Miss Universo, de ser sorridente, preocupada com a
paz mundial, “elegante”. A sujeito-aluna se identifica com esse discurso, preocupando-
se em enquadrar-se no imaginário de “mulher padrão”.
Como dissemos anteriormente nesta dissertação, ao nos referirmos à
Formação Discursiva e seu caráter heterogêneo, vamos ter a possibilidade de, neste
64
trabalho, ver mais adiante outros sentidos mobilizados pela mesma aluna, que
apontam em outras direções. E já no próprio questionário inicial, podemos ver um
deslizamento de sentidos, como em: Realizada com duas faculdade.
Esse deslizamento é muito importante para a compreensão dos diferentes
sentidos que são mobilizados pelos sujeitos-alunos da Educação de Jovens e Adultos
em nossos dias. O sentido de realização que a sujeito-aluna movimenta em seu
discurso rompe com a identidade atribuída à mulher nas outras respostas. Quando ela
escreve Realizada com duas faculdade (sic), os sentidos produzidos são de outra
ordem, que não mais restringem identidade da mulher ao lar, ao cuidado dos filhos e
ao aspecto sentimental, mas à possibilidade de fazer uma (duas) faculdade(s).
Assumindo, dessa forma, uma posição a respeito de que a faculdade é também um
lugar para as mulheres, inclusive aquelas que têm filhos, são trabalhadoras e as que
estudam na EJA. O próprio contexto de uma escola pública que oferece educação para
jovens e adultos já é um acontecimento que auxilia a criar condições de polissemia.
Bastante elucidativo para nossa análise é o que a sujeito-aluna escreve em
outro dia, quando foi feita uma abordagem sobre a questão das redes sociais e sua
relação com a identidade dos alunos. Ela escreveu, em resposta ao questionamento
que utilizamos:
(SD.2) 1. Quem sou eu nas redes sociais? Sou a mãe coruja dos meninos.
2. Quem sou eu fora das redes sociais? Sou a pessoa comprometida com meu
trabalho, com minha família, escola.
Existe ainda a paráfrase empregada com relação aos sentidos que colocam
fixada no papel de mãe e responsável pelos filhos, o que ocorre na materialidade: Sou
a mãe coruja dos meninos. Trata-se de uma paráfrase dos mesmos sentidos que
foram mobilizados no primeiro questionário. Um ponto importante a ser destacado é a
questão da sujeito-aluna produzir uma diferença entre a projeção de si que a mesma
faz no âmbito das redes sociais e a identidade que se atribui fora delas, em que
predomina sentidos novos relacionados a sua identidade enquanto estudante e
trabalhadora.
Veremos, agora, outra figura correspondente à imagem em que os sujeitos-
alunos deveriam atribuir adjetivos aos colegas, estes, munidos do papel com os
respectivos adjetivos, deveriam atribuir os sentidos às materialidades expressas no
papel. Essa atividade visou a mobilizar os arquivos dos sujeitos com relação às suas
identidades, possibilitando não só a paráfrase, mas a polissemia. A sujeito-aluna
65
M.S.P. pode atribuir sentidos, nesse momento, à materialidade que outro colega
escreveu sobre ela (na figura, o texto central se trata dos sentidos que o colega evoca,
e o texto introduzido através de setas são os sentidos de M.S.P.):
Figura 1: Atividade de atribuição de sentidos aos colegas e para si próprio. Respostas de M.S.P (SD.3).
Fonte: Autora (2019).
É possível verificar ainda a mobilização de sentidos que fixam a identidade da
mulher dentro do que é permitido dizer no âmbito de uma Formação Discursiva
correspondente ao discurso patriarcal sobre o feminino. Quando é empregada a
materialidade “pessoa educada” para qualificar a sujeito-aluna, a mesma emprega
uma paráfrase, a fim de manter os mesmos sentidos que vinha mobilizando a respeito
de determinada formação imaginária sobre a mulher de maneira mais conservadora,
de que ela é emotiva, “mãe coruja”, aquela que edifica o lar, etc. A sujeito-aluna confere
à materialidade “pessoa educada” outra materialidade, “bons modos”, que embora não
seja explicitamente um discurso mais conservador com relação à mulher, não oferece
contradição ao mesmo, de certa forma o complementa, uma vez que é mobilizado
desde o arquivo do sujeito.
Mas há deslizamento também no mesmo discurso, quando a sujeito-aluna
atribui outros sentidos à materialidade “estudiosa”. Podemos muito bem dizer que uma
pessoa é estudiosa sem necessariamente dar a entender que a considera inteligente.
Um estudioso não precisa, portanto, ser alguém inteligente, mas minimamente
esforçado, a sujeito-aluna busca outras significações, assim mobiliza os efeitos de
66
inteligente e de facilidade de compreensão que fazem contraste com as formações
imaginárias que reduzem a mulher cognitivamente, como podemos verificar em
materialidades como “mulher burra”, “loira burra”, “mulher só serve para pilotar fogão”
etc. A própria presença de mulheres no ambiente da EJA, inclusive sendo maioria, já
demonstra uma ruptura com a formação ideológica que busca legitimar a
desigualdade de gênero e cria condições para que haja um deslizamento de sentidos
no discurso desses sujeitos. Em outros momentos, vamos observar também no
discurso de alunos homens uma preocupação com a mobilização de outros sentidos
sobre sua própria identidade, bem como com a expressão de sentimentos.
No discurso de M.S.P., ao longo do desenvolvimento da atividade, percebeu-
se esse deslizamento que não é mecânico, mas que, em condições dadas de
produção, possibilita uma leitura polissêmica de materialidades, deixando vir à tona
outros sentidos. Vejamos, agora, o discurso da sujeito-aluna I.B., referente à SD que
segue:
(SD.4) 1. Como eu me vejo? Eu me vejo como uma pessoa chata, perfeccionista. Eu
até no escuro acho minhas coisas. Não gosto que mexam em nada.
Como eu acho que as pessoas me veem? As pessoas me veem como uma pessoa
que podem contar a toda hora.
Como eu não gosto de ser visto? Eu não gosto que as pessoas me procurem só para
falarem mal dos outros.
Como eu gostaria que me vissem? Gostaria que me vissem como uma amiga, uma
pessoa para toda hora.
O que minhas marcas e traços (cabelos, tatuagens, piercing, cicatrizes) significam
para mim? Eu gosto do meu cabelo natural, mas às vezes tem tinta.
O que você gostaria que seu modo de vestir dissesse a seu respeito? O modo de me
vestir é o que eu gosto, às vezes de tar bem vestido às vezes não.
Como eu gostaria de me ver no futuro? No futuro eu gostaria de ser uma pessoa bem
acolhedora para cuidar de idoso e crianças.
Na resposta à primeira questão, I.B. centra seu discurso em alguns sentidos
relativos à sua personalidade, vinculando à sua identidade materialidades como
“chata”, “perfeccionista”, “amiga”, “acolhedora”. Os sentidos que mobiliza, em parte,
giram em torno de questões relativas ao mundo do lar, afirmando, por exemplo, sobre
o cuidado que tem com suas “coisas”, muito próximo também dos aspectos das
amizades, do acolhimento, ainda não muito bem definido em sua natureza, ou seja,
67
não identifica necessariamente que tipo de acolhimento, se é aquele fechado no seu
mundo privado e de suas relações de amizade ou de outra natureza, embora a
materialidade “cuidar de idoso e crianças” movimentem sentidos que vão além do mero
aspecto das relações particulares. A questão é que a sujeito-aluna em seu discurso
não movimentou sentidos que fossem além de seu mundo das relações privadas, do
lar. Esse sujeito, dotado de inconsciente, precisa ser lido também em seu silêncio. E
o silêncio, nesse caso, está muito ligado aos sentidos que apontam para um mundo
que fica além do particular, onde o sujeito se sente seguro. Em outros momentos
veremos que I. B., em sua autobiografia (ver SD.8), quando criança, teve que morar
com pessoas estranhas, uma experiência que a mesma recorda com pesar, pois se
trata de um momento em que seu lar de origem se dissolve, a partir da morte de sua
mãe., Nessa outra casa, ela era carente de cuidados, teve que trabalhar desde a
infância, além de sofrer agressões físicas. Mas todas essas rememorações não
surgem de imediato, mas apenas quando em sala de aula são criadas condições de
produção propícias, de modo que a sujeito-aluna pode deixar vir à tona novos sentidos
sobre a sua identidade e as suas memórias. Não estamos arriscando nenhum tipo de
análise psicológica, embora seja interessante apontar o fato de que no discurso
primeiro da sujeito-aluna foram valorizados os sentidos de acolhimento e cuidado,
referindo- se a crianças e idosos, ou seja, sujeitos mais vulneráveis, e é difícil o
pesquisador não ficar intrigado em fazer uma relação, mas aqui o objetivo é apontar
o movimento que o discurso faz de mostrar e esconder, de dizer e de silenciar, de
maneira que o silêncio se torna constitutivo do discurso (ORLANDI, 1992). Para que
a sujeito-aluna materializasse nas respostas ao questionário certos discursos, foi
preciso que ela silenciasse outros sentidos. É impossível dizer tudo, sentidos ficam
legados ao silêncio, por diversas razões, inclusive pela censura.
Vejamos a próxima produção de I. B, correspondente à atividade de polissemia,
já referida de quando um sujeito-aluno confere a I. B sentidos quanto à sua identidade,
a qual ela precisa atribuir os sentidos que surgem do arquivo:
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Figura 2: I.B. Atribuição de sentidos (SD.5).
Fonte: Autora (2019).
A criação de condições de produção do discurso que valoriza a polissemia
e a autoria do sujeito permite uma mobilização maior do arquivo da sujeito-aluna,
colocando-a como produtora de sentidos acerca de sua identidade. A SD.5 nos
mostra isso, quando permite à sujeito-aluna atribuir os sentidos que mobiliza a
seu respeito, conferindo-os às materialidades que o seu colega lhe atribui. Para
a materialidade “brincalhona”, ela movimenta os mesmos sentidos, numa leitura
parafrástica, de cuidado com as crianças e idosos, que é bastante recorrente em
seu discurso, tentando, através da paráfrase, produzir uma unidade para a sua
identidade. Os sentidos de perfeccionismo e franqueza também aparecem
novamente, atribuindo sentidos à materialidade “sincera”.
Um acontecimento importante para a análise ocorre em um outro
momento, em outro dia, quando I.B, sem estar necessariamente realizando
nenhum tema proposto, escreve:
Figura 3: I.B. Relato (SD.6).
Fonte: Autora (2019).
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Os sentidos produzidos tratam de uma tristeza em não saber nada sobre o filho
e uma apreensão por chegar a casa e poder falar com ele. Esses sentidos contrastam
com aqueles que foram mobilizados anteriormente, de alegria, de gostar de brincar
com crianças e idosos, o que nos mostra que os sujeitos não são centrados e únicos,
mas cindidos em diferentes posições-sujeito, de modo que não se tem uma identidade
permanente, mas móvel. Existe, contudo, uma espécie de autocensura de I.B para
com seu próprio discurso escrito, como se quisesse dizer que “isso não deveria estar
no papel”, a ponto de rabiscar por cima do escrito, e escrever “desculpa”. Ocorre, nesse
momento, um deslizamento nos sentidos, dando espaço para a possibilidade de
mobilizar também os sentidos mais íntimos, de tristeza e apreensão, mas mostrando
que eles fazem parte do que I.B queria deixar no silêncio.
Criar condições de produção adequadas à polissemia, dessa forma, tem um
efeito sobre a produção de sentidos por parte dos sujeitos-alunos, de modo que eles
não se restringem à reprodução parafrástica dos mesmos sentidos ou dos sentidos
que os professores costumam, muitas vezes, estabelecer como corretos ou
desejáveis.
Prestemos atenção à próxima imagem, relativa à confecção do caderno,
proposta pela professora:
Figuara 4: Caderno de I.B (SD.7).
Fonte: Autora (2019).
Analisemos, portanto, a imagem bastante colorida, de figuras sobrepostas
como também uma materialidade, dotada de sentidos. Vemos nela flores, pessoas,
70
mãos, palavras etc. No canto superior esquerdo da capa do caderno, vemos uma cena
que mostra uma criança brincando com um adulto, que pode ser lido como uma
paráfrase dos sentidos movimentados pela sujeito-aluna sobre cuidado e brincadeiras
com crianças, retomando-se, assim, a questão do acolhimento familiar. Temos
também as seguintes palavras: “viva”, “viver agora”, “confiança”, “realizações”,
“tolerância”, “projeta Brasil” e “compartilha”. Todas movimentam sentidos em uma
direção positiva, e, ao mesmo tempo em que colocam questões sobre realização e a
necessidade de viver o momento atual, também mantêm um elo com os outros
sujeitos, o que pode se ler a partir das materialidades que se referem à tolerância e
ao compartilhar. E ao mesmo tempo que, na capa, podemos ver materialidades que
remetem à alegria, na contracapa vemos a imagem de uma pessoa com as mãos no
rosto e uma palavra colada em cima, “autoestima”, uma borboleta e um vaso de flores.
Essa parte já mobiliza sentidos de conflito referentes à autoestima. A pessoa com as
mãos no rosto é, pelo que se pode notar, o ex-presidente Lula, mas pode ser lida
também como qualquer pessoa de idade e que possui determinada relação com a
autoestima no contexto da sobreposição de imagens. Mãos no rosto mobilizam
também, sentidos que estão ligados ao silêncio, àquilo que o sujeito não quer mostrar
ou que o constrange, o que faz contraste com a alegria, de modo que o sujeito gostaria
de apagar, ou seja, assim como os rabiscos anteriormente realizados por I.B. barram
o que ela quer deixar de fora da construção de sua identidade, mas que faz parte dela,
embora “não deva ser dito”, sendo silenciado, entendido como não cabendo ser
produzido na escola. O texto que I.B. escreveu e que rabiscou por cima traz um
sentido a mais com relação a isso, pois os riscos por cima do texto evocam sentidos
de que o sujeito realizou um silenciamento dos sentimentos que estavam surgindo. É
de se refletir, com o aporte da AD, que também com relação à escola existem sentidos
em emergência. Ao mesmo tempo ela figura como uma instituição que possibilita a
expressão dos sujeitos, com o ensino formal da língua, mas, do outro lado, ainda está
ligada a efeitos de silenciamento. É como se suscitasse no sujeito-aluno determinado
questionamento: “tenho os conhecimentos necessários para dizer, mas será que
posso?”. As mãos no rosto já trabalham, então, sentidos de I.B. está presente na
escola, mas ao mesmo tempo está distante, pois nem tudo ela acredita que pode
mostrar.
I.B produziu, após, esses exercícios todos, a sua autobiografia, assumindo a
autoria e fazendo um recorte de sua história, e os deslizamentos de sentido verificados
71
em seu discurso anterior parecem ter se encaminhado para a polissemia, quando
outros sentidos, que estavam silenciados, vêm à tona. Faremos uma análise com
relação à SD seguinte:
(SD.8) Bom tenho que reescrever a minha história. Eu não sei se é certo contar,
escrever, para a profe ler.
Não sei o certo minha idade era 5, ou 6 anos, meu pai me colocou numa casa para
cuidar de um bebê, imagine uma criança cuidando outra, por troca de caderno para ir
pro colégio. O homem era muito ruim, me batia muito, quando eu não sabia escrever
ou ler ele me batia e me colocava de castigo toda a noite, ele não me deixava dormir
e de dia eu ajudava a mulher, eles eram pobres e cuidavam umas vacas e cavalos de
outra pessoa não sei quem era, me lembro vem sempre na minha mente, tava
chovendo e tinha umas valetas em volta de um mato, eu achei um monte de moeda,
e levei para a mulher lembro que ela me pediu para eu levar ela, e eu a levei, depois
eu fugi e fui para a minha mãe e eles foram embora para Uruguaiana não levou muito
eles voltaram ricos, com casas, chácaras, compravam e vendiam animais. Um dia
agora adulta, eu falei para ela, ela disse que não valia que era real mas é mentira não
existia real na época. Será que pode ser coisa da minha cabeça? Lembro eu com as
mãos cheia de moeda, meu pai sabia ele disse que ela tirou a minha sorte. Não, eu
sou feliz, tenho meus dois filhos lindo, meu marido que eu amo e ela tá só ela e minha
irmã.
Vejamos, primeiramente, a seguinte sequência: Bom tenho que reescrever, a
minha história. Eu não sei se é certo eu contar, escrever, para a prof ler. Existe uma
certa hesitação, um conflito que envolve o silêncio constitutivo, que mostra a
emergência de novos sentidos, antes silenciados pela sujeito-aluna. É preciso lermos
o silêncio de I.B como algo que faz parte de sua identidade, que o constitui, que
possibilita o seu dizer. No entanto, nesse momento de autoria da própria autobiografia,
o silêncio anterior, vem à tona, quando I.B se permite contar partes de sua história que
não condizem com os sentidos anteriormente mobilizados de alegria, cuidado,
acolhimento, família etc., pois emergem sentidos que possibilitam outra leitura sobre
si, de modo que a sua história já não está mais ligada à alegria, ao cuidado, ao
acolhimento e à família, mas sim a um movimento polissêmico, que mobiliza sentidos
de tristeza, ausência de cuidado, ausência de acolhimento e ausência de família. Isso
ocorre quando as condições de produção do discurso possibilitam trazer para o
trabalho em sala de aula o campo do passado, da memória de cada sujeito-aluno.
72
Vejamos a próxima sequência:
(SD.9) Não sei o certo minha idade era cinco, ou seis anos, meu pai me colocou numa
casa para cuidar de um bebê, imagine uma criança cuidando outra, por troca de
caderno para ir pro colégio. O homem era muito ruim me batia muito, quando eu não
sabia ler ou escrever ele me batia.
Percebemos que os sentidos mostram uma ausência de cuidados, de
acolhimento, uma história triste, e esses sentidos também mostram uma relação
conflituosa no campo da educação, como a pobreza que impossibilitava comprar
materiais escolares e a agressão quando I.B. não atingia às obrigações de ler e
escrever. A questão da aprendizagem envolvia, em sua história, uma relação tensa,
sem alegria, de medo, apreensão etc.
Quanto à sua relação familiar e de afeto, tão bem marcada os discursos
anteriores, nesses novos sentidos mobilizados se colocam como uma carência, a
família não estava estruturada, I.B tivera por força que morar com outras pessoas, que
a oprimiam, onde havia um homem que não lhe tratava bem e lhe impunha castigos.
E, sem receber afeto ou acolhimento, tinha que cuidar de um outro ser, um bebê.
Assim, já tinha o compromisso do trabalho e não brincava como uma criança, de modo
que estes sentidos com relação ao trabalho fizeram parte do seu arquivo, do trabalho
como sacrifício, e que seria assim um modo de suprir suas necessidades, como os
materiais escolares. O que nos leva a analisar que, de acordo com a memória de I.B.,
existem silenciamentos com relação aos sentidos voltados para si mesmo, e que os
outros seres (como o bebê) realmente precisavam de atenção, de maneira que com
relação ao próprio sujeito restam as mãos para taparem seu rosto, como se dissesse
“não olhem para mim, eu não devo ser olhado”.
Essas novas condições de produção, que colocam o sujeito em
desenvolvimento de sua autoria, em um movimento de leitura polissêmica, a respeito
de si e de sua identidade, trazem à tona múltiplos sentidos, antes silenciados.
Percebe-se, assim, a importância de se possibilitar a autoria da parte dos sujeitos-
alunos, de modo que o discurso parafrástico deixa de ser a forma predominante de
mobilizar sentidos e os arquivos dos sujeitos. Para tanto, é preciso ir além da prática
pedagógica tradicional, que aborda a leitura como algo mecânico, desprovido de
movimento e centrado fora do sujeito.
I.B., em sua primeira autobiografia, ainda deixa um sentido bastante
interessante para a análise, quando conta a história das moedas que teria encontrado
73
no campo, e que talvez fossem muito valiosas, a ponto de possibilitar a alguém mudar
de vida. Ela traz esses sentidos - e não nos interessa aqui, em nossa análise, a
veracidade do relato, mas sim seus efeitos – como algo que oscila e apresenta-se
vacilante, tanto que precisa perguntar o que a professora pensa a respeito. Há a
presença de sentidos de insegurança e a possibilidade de silenciamento com relação
ao que I.B. deixa vir à tona em sua autobiografia, de modo que a emergência de um
julgamento dos demais sujeitos em relação aos sentidos que ela deixa emergir
é determinante quanto à manutenção destes.
Outros gestos de interpretação emergem da segunda autobiografia produzida
por I. B.:
(SD.10) Na minha primeira autobiografia sobre a minha vida, eu falei quando era
criança, que tinha muitos irmãos e não podia ter muito estudo, só saber ler e escrever
o nome já era o suficiente, mas eu queria mais. Que depois de adulta eu comecei no
EJA e já estou no oitavo ano, e que morei quando muito pequena na casa de uma
pessoa que o homem era muito ruim e a mulher sabia e não fazia nada.
Que um dia eu acho que é verdade eu acho. Que achei um montão de moeda e levei
para ela, e levei-a no lugar eu não sei se é verdade ou é coisa da minha cabeça, mas
tudo bem, eu não sei se foi ou não.
Mas hoje eu sou muito feliz, tenho 2 filhos lindos um menino e 1 menina, um neto
lindo, eu quero estudar para fazer um curso de enfermagem, de doce. O meu sonho
é ver meus filhos formado, fazendo o que eles gostam.
E eu não tenho que pedir só agradecer pelos meus filhos, meu marido que é meu
companheiro, meu amigo, ha eu quero estudar e poder colocar alguma coisa para
trabalhar em casa futuramente, eu quero tar bem preparada. Mas vou chegar lá.
De início, nos detemos na seguinte sequência, de fala sobre o passado e o
presente: “não podia ter muitos estudo só saber ler e escrever o nome já era suficiente
mas eu queria mais, que depois de adulta eu comecei no EJA e já estou no 8º ano”.
A sujeito-aluna já mobiliza outros sentidos, que colocam a perspectiva da educação
formal como sendo algo a mais que simplesmente ler e escrever, o que era, quando
da sua infância, a única possibilidade de aprendizagem que estava em seu horizonte.
Os sentidos relativos ao “querer mais” já apontam em uma direção diferente, de que o
sujeito não se resume ao pouco que lhe foi oferecido quando era criança, mostrando
a importância que a EJA tem em sua vida e em sua identidade, enquanto alguém que
74
pode, sim, ter direito a uma formação melhor, a estudo e a construir a sua vida. I.B
mobiliza sentidos na direção, também, de um futuro profissional, conforme a
sequência: eu quero estuda para fazer um curso de enfermagem, ou de doce, o meu
sonho é ver meus filho formado, fazendo o que eles gostam. Vimos, em discurso
anterior de I.B, o quanto os sentidos, apesar das paráfrases empregadas,
permaneciam em torno do cuidado, do acolhimento, do brincar com as crianças e os
idosos. No decorrer, outros sentidos foram sendo mobilizados, como é o caso da
sequência referida, a qual trata dos sentidos sobre o futuro profissional, como o curso
de enfermagem e os planos para uma vida diferente (provavelmente diferente da vida
que ela teve e tem) para os filhos. Vemos também que o sentido de cuidar permanece
presente na escolha profissional, embora outros sentidos venham à tona. A sujeito-
aluna vai produzindo também para si uma identidade enquanto trabalhadora, alguém
que batalha e ajuda a sustentar a casa, papel que, em muitos casos, na formação
imaginária do patriarcado, é conferido apenas aos homens: “eu quero estudar e poder
colocar alguma coisa para trabalhar em casa futuramente, eu quero tar bem preparada.
Mas vou chegar lá.” Podemos ver, portanto, no discurso de I. B alguns momentos
importantes: 1) A sujeito-aluna movimenta sentidos sobre cuidado, alegria,
acolhimento, e à medida que escreve, através de paráfrases discursivas, vai
mantendo esses mesmos sentidos, mas na direção da profissionalização e não
apenas no âmbito privado, esperando receber daí o seu sustento; 2) Verifica-se aos
poucos, um deslizamento de sentidos, começam a aparecer sentidos que, a princípio,
estavam relegados ao silêncio. 3) Polissemia e novos sentidos emergem, quando I.B
rememora sua infância, de modo que os sentidos de alegria e cuidado dão lugar à
tristeza e falta de cuidado, e, aos poucos, o discurso sobre si vai abrindo-se a novos
sentidos, de perspectiva de um futuro profissional, que seria a superação dessas
dificuldades enfrentadas em sua trajetória de vida.
Por fim, nos perguntamos, mas... e as moedas? I.B. talvez ainda corra atrás
delas, não mais na direção do passado, mas do futuro, com a sua nova perspectiva de
vida, com o projeto que tem para a sua família e para si. Podemos analisar dois pontos
com relação à evocação novamente das moedas em sua segunda autobiografia: 1)
elas deixam de ter importância nos sentidos mobilizados, quando as condições de
produção permitem a I.B. olhar mais para si e para os sentidos que almeja para a sua
vida; 2) a vacilação e a necessidade de julgamento sobre a história a levou a relativizar
a veracidade do relato das moedas encontradas.
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Essas mudanças desenvolvidas pelos sujeitos-alunos, quando produzem
novos efeitos de sentido sobre si, nos levam a considerar que eles tornam-se autores
de seus textos, de maneira que não se limitam apenas a parafrasear aquilo que foi dito
sobre eles mesmos, em outro tempo e lugar.
5.2 Sentidos sobre o trabalhador e o ensino formal
Vejamos a seguir as sequências discursivas relativas ao discurso do sujeito-
aluno N.S.R., o qual mobiliza sentidos que tratam de valores diversos referentes à
família, ao trabalho e a perspectiva de futuro. Inicialmente tratemos da seguinte
sequência, relativa ao questionário realizado com o sujeito-aluno:
(SD.11) 1. Como eu me vejo? Bom eu me vejo uma pessoa divertida com muita
vontade de viver apaixonado pela natureza, com muitos defeitos bastante bravo. Mas
com um coração enorme, com muito amor para oferecer. E apaixonado pelo meu filho
e a minha esposa.
Como eu acho que as pessoas me veem? Talvez como um cara de poucos amigos
meio antipático, de poucos assuntos.
Como eu não gosto de ser visto? Eu jamais gostaria que me vissem como uma pessoa
do mal ou desonesta.
Como eu gostaria que me vissem? Como um ser humano do bem, trabalhador
cumpridor dos compromissos.
O que minhas marcas e traços (cabelos, tatuagens, piercing, cicatrizes) significam
para mim? As marcas de cicatrizes significam para mim trabalho pesado, e muitas
lembranças de criança por ser um menino levado, bem travesso, e já os cabelos
significa para mim um pouquinho de experiência de vida e as tatuagens, ilusões de
adolescente.
O que você gostaria que seu modo de vestir dissesse a seu respeito? Simplicidade,
um homem de família.
Como eu gostaria de me ver no futuro? Em paz e com os estudos concluídos e com
um serviço de carteira assinada para dar um futuro melhor para o meu filho ou minha
família.
Como podemos ver na resposta ao questionamento primeiro, o sujeito-aluno
move seu arquivo sobre si no campo social, das relações interpessoais e da
subjetividade. N.S.R. trata de seus sentimentos, como em: muito amor para oferecer,
76
apaixonado pela natureza, apaixonado pelo meu filho e minha esposa, com um
coração enorme”e bastante bravo. Dessa forma, os sentidos sobre si que o sujeito-
aluno produz estão voltados às emoções com relação à família e às pessoas. O sentido
de “bravo” já promove um deslizamento com relação aos demais sentidos, pois
contrasta com o “amor”, a “paixão” e o “coração enorme”. Esse deslizamento pode
estar ligado a uma imagem dele mesmo sobre si ou do discurso dos outros. É o que
podemos analisar ao vermos a resposta que N.S.R. dá ao segundo questionamento,
relativo ao modo como acredita que as pessoas o veem. Ele diz que talvez as pessoas
o vejam como alguém “antipático”, “com cara de poucos amigos”, o que traz à tona
novos sentidos a respeito de quem ele é. Vemos, portanto, o quão presentes são os
sentidos que os demais sujeitos mobilizam a respeito de N.S.R., o que alimenta o
arquivo sobre si de discursos polissêmicos, ou seja, distintos daqueles que ele mesmo
mobiliza na pergunta número um.
Dessa forma, os sentidos de “antipático” e “poucos amigos” envolvem uma
formação imaginária de negatividade, de alguém sem simpatia, isolado no mundo,
sem amigos, que, talvez, não se importe com os outros, e de quem pouco se sabe
sobre a vida. Algo que, de certa forma, está em desacordo com a imagem que se tem
de “boa pessoa”. É importante sempre pensarmos que as materialidades não surgem
por acaso, que N.S.R. não as elege do nada para colocar em suas respostas, pois,
vemos na AD, o sujeito é constituído de inconsciente e de ideologia, de maneira que
esses sentidos que emergem em seu discurso são gestados nessa condição de
produção. N.S.R. é um sujeito que viveu boa parte de sua vida como trabalhador rural
tendo que interromper seus estudos no quarto ano (antiga 4ª série), sofreu, no campo,
acidentes de trabalho, passou por perícias médicas, trabalhou em lidas bastante
extenuantes, realizou serviços em diferentes estâncias, passou situações difíceis
nesses locais, como má alimentação e ausência de atendimento médico. Assim, essa
memória faz parte dos sentidos que mobiliza na sua autobiografia e dos que mobiliza
com respeito às formações imaginárias que são feitas sobre ele. Assim sendo, quando
ele escreve no questionário que jamais gostaria que o vissem como uma pessoa do
mau ou como alguém desonesto é uma forma de responder a esses sentidos que julga
serem atribuídos a ele por parte dos outros. Da mesma forma que a imagem que
gostaria que fizessem dele, quando mobiliza as materialidades “ser humano do bem
trabalhador cumpridor dos compromissos”, trazendo sentidos que contrastam com
“antipático” e “poucos amigos”.
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N.S.R., em sua autobiografia, segue mobilizando sentidos que vão em uma
direção muito diferente do que, na cidade, muitos sujeitos costumam atribuir ao
“homem do campo”.
Vejamos a SD.12:
(SD.12) Já vivi tantos momentos maravilhosos nessa vida, vários deles no campo, no
meio rural. Por exemplo você estar campereando e localiza uma vaca ou novilha
parindo com dificuldades de parir. E então você ajuda a trazer uma vida para este
mundo é muito gratificante, eu me sentia um doutor dos pampas, riograndense, terra
que amo de coração.
Na SD acima, N.S.R. mobiliza sentidos que dão uma visão diferenciada sobre
si, trazendo do arquivo as questões relativas ao trabalho no meio rural, mostrando
também a sensibilidade e a relação emotiva com o campo. Esses sentidos de
emotividade e sensibilidade seguirão aparecendo em sua autobiografia, o que mostra
a não manutenção das materialidades que trouxe à tona quando escreveu sobre como
os sujeitos o veem.
Importante, também, é a memória que evoca sobre o trato com os animais. É
outro imaginário sobre o trabalhador rural, que compõem a sua própria identidade
enquanto trabalhador e estudante, pois trabalha a polissemia com relação a essa
atividade, não a colocando como uma atividade apenas manual, brutal ou insensível,
mas sim produz uma formação imaginária em que há espaço para considerar a lida
campeira como um serviço também intelectual. Nesse trabalho há que se ter
conhecimento, habilidade, sensibilidade e afeto pelos animais. Em “eu me sentia um
doutor”, N.S.R. faz emergir esses sentidos de que são necessários certos saberes
para tratar com os animais e trabalhar no campo. Ele segue, colocando em choque as
duas formações imaginárias sobre essa lida.
(SD.13) pros da cidade é judiaria, pra nós só mais um dia vivido, é a lida, é o ofício,
ou seja, a rotina do campeiro.
Vemos, na sequência acima, que N.S.R. mobiliza os sentidos que a cidade tem
sobre o campo, na memória discursiva, opondo outra formação imaginária, de que se
trata de um trabalho, “é o ofício”, que faz parte da rotina dos que trabalham nesse
contexto rural e não se trata, como atribui à formação imaginária que o sujeito-urbano
faz do “homem do campo”, como sujeito de uma atividade embrutecida, cruel em
relação ao trato com os animais, feita por homens duros e, quem sabe, “antipáticos”
e de “poucos amigos”.
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A esse imaginário que atribui aos sujeitos da cidade, N.S.R. oferece sentidos
sobre o campo que fazem emergir uma relação emotiva e sensível, de quem possui
saberes e valoriza a natureza, conforme a SD.14:
(SD.14) adoro o campo, o cheiro das matas no mês de primavera. O cantar dos galos
de madrugada, o mugir das vacas na hora de tirar o leite, o terneiro apojando o úbere
da vaca para baixar o leite com a boca cheia de espuma de leite, o terneiro, alguns
gatos ao redor miando para que nós le demos o leitinho quente na hora, o bicho sabe
ser oportunista, risos muitos risos.
Os sentidos mobilizados aproximam-se da beleza da poesia campeira, que
valoriza o lugar, o campo, o aroma das matas, o cantar de galos, a primavera. Como
o sujeito-aluno evocou do arquivo, trabalhando a polissemia com relação à zona rural,
muitas vezes estigmatizada na cidade, que é compreendida como sendo o local da
cultura e do conhecimento, enquanto que o campo figura como lugar apenas de
atraso.
Com relação aos sentidos sobre o conhecimento de mundo, aprendido fora da
escola, o sentir-se um “doutor dos pampas”, vê-se na segunda autobiografia de N.S.R.
um deslizamento de sentidos, indo na direção da importância do ensino formal,
primeiramente como uma experiência vivida pela própria esposa:
(SD.15) minha esposa sempre trabalhou, muito dedicada não escolhia serviço. Foi
faxineira, trabalhou de atendente no comércio e nunca parou de estudar, fez a
faculdade de Matemática no Instituto Federal Farroupilha, e é funcionária pública,
atualmente está trabalhando na área da saúde.
O gesto de interpretação produzido por N.S.R., agora, toca a questão do ensino
formal, colocando-o como algo importante para uma perspectiva de futuro profissional.
Importante frisar o momento em que ele não opõe trabalho e estudo, o que mantém
relação com as experiências que teve no campo, quando utilizava não só trabalho
manual, mas intelectual (embora não aprendido na dimensão escolar), o que alerta o
sujeito-professor da importância de respeitar a cultura do jovem e do adulto
(GADOTTI,2008), a fim de não auxiliar na produção de “ausências”, o que suprimiria
as diferentes compreensões culturais no espaço escolar (SANTOS, 2010). N.S.R.
valoriza bastante a identidade de trabalhador, daquele que luta para ganhar a vida, não
escolhe serviço etc. e coloca os estudos e a faculdade como algo que também é para
o trabalhador. O fato de dizer que a esposa nunca parou de estudar contrasta com o
que ocorreu com ele:
79
(SD.15) estudei até a 4ª série incompleta, e fui retirado da escola por ter que trabalhar
no meio rural, e o tempo foi passando, peguei o mundo por conta trabalhando em
fazenda.
Afirmar que foi “retirado da escola” é bastante elucidativo sobre o modo como
compreende a relação trabalho-escola. Embora valorize o trabalho, a lida, ele mobiliza
sentidos de que o trabalho infantil e falta de garantia dos serviços básicos são fatores
que retiram, de fato, as crianças mais carentes da escola, o que mostra que N.S.R.
não tem uma visão romântica do trabalho, fazendo vir à tona sentidos de que o
trabalho infantil levou embora o seu direito ao estudo, levando-o a “pegar o mundo por
conta”. N.S.R., assim, na próxima SD mobiliza sentidos na direção de um resgate do
que lhe foi privado:
(SD.17) E por muita influência de minha amada esposa que sempre me incentivou a
voltar a estudar de novo e graças ao nosso bom Jesus Cristo já estou concluindo o
ensino fundamental, eu e meus amigos e colegas de sala de aula!
E estou muito feliz por estar vencendo mais uma etapa de minha vida, eu precisava
disto para mim!
E daí para frente o meu objetivo é concluir o ensino médio e futuramente fazer
uma faculdade, e mesmo para ter mais chances de fazer um concurso público. Para
ter mais segurança profissional mesmo para dar um futuro melhor para o meu filho
amado.
Conforme a SD.17, N.S.R. mobiliza o arquivo que tem sobre a educação formal,
conferindo-lhe a importância, tanto da educação básica quanto da faculdade,
principalmente no que diz respeito às oportunidades profissionais, como é o caso do
concurso público, ao qual faz referência, que, de acordo com o que foi dito, irá conferir
a ele maior “segurança profissional”, possibilitando um futuro melhor para o próprio
filho. Mas, embora promova esse deslizamento nos sentidos com relação ao trabalho
e à educação formal, N.S.R. não abandona a identidade ligada às suas raízes, e ao
sentimento de pertencimento ao meio rural, suas paisagens, aromas, animais etc.,
como pode nos mostrar a SD.18:
(SD.18) E talvez mais na velhice voltar às minhas origens da campanha, sentir o cheiro
dos campos e das matas, dos animais, vivenciar e matar saudades dos tempos que
não voltam mais [...] e deixar ensinamentos para meu filho, e chegar num fim de tarde
e fazer um fogo na lareira com lenhas de angico... e colocar uma costela gorda nas
brasas e cevar um mate amargo na presença de minha família.
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De acordo com os sentidos trazidos por N.S.R. na SD recém-exposta,
percebemos a mobilização de seu arquivo que traz ainda a importância das suas
raízes na formação imaginária que tem sobre a sua perspectiva de vida, bem como a
sua identidade, e a consequente valorização de sua realidade cultural, que engloba
seus costumes, modo de vida (SANTOS, 1983), o que, juntamente com a educação
formal, promove uma inserção, deivdo a prática do sujeito-professor, desse universo
cultural do campeiro no âmbito da educação.
Esse sujeito- aluno, devido à sua relação com a escola, bem como com o
incentivo de sua esposa, aliado à prática pedagógica discursiva torna-se autor de seu
próprio discurso em sua autobiografia, de modo que é possível promover a polissemia
fazendo com que não só o trabalho seja importante na definição da sua identidade e
do discurso que mobiliza sobre si mesmo, como também o fato de estar buscando
resgatar o ensino formal, que não teve na sua infância e juventude e buscar um melhor
futuro profissional.
É recorrente essa história, na EJA, de alunos que tiveram a sua educação formal
interrompida durante a infância, em razão do trabalho informal, e que, na atualidade,
veem essa modalidade de ensino como a oportunidade de retomada daquilo que foi
interrompido, bem como de ter oportunidades profissionais que proporcionem maior
estabilidade financeira. É o caso também de S.N.S. que teve seus estudos
interrompidos aos dez anos de idade em razão do serviço. Nas SDs selecionadas
dessa sujeito-aluna, vemos sentidos negativos a respeito do modo como ela se vê.
Vejamos, de início, as suas respostas ao questionário inicial:
(SD.19) 1. Como eu me vejo? Uma pessoa pessimista!
Como eu acho que as pessoas me veem? Uma pessoa pessimista, resmungona, e de
autoestima baixa.
Como eu não gosto de ser vista? Como uma pessoa acomodada.
Como eu gostaria que me vissem? Uma pessoa que tem defeitos mas também tem
qualidades. Não sou perfeita, sou humana.
O que minhas marcas e traços (cabelos, tatuagens, piercings, cicatrizes) significam
para mim? Que estou chegando na terceira idade.
O que você gostaria que seu modo de vestir dissesse a seu respeito? Que sou uma
pessoa recatada.
Como eu gostaria de me ver no futuro? Uma pessoa tranquila.
S.N.S., na SD acima, mobiliza sentidos do arquivo que confere a si mesma
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características negativas, “pessimista”, “resmungona”, “autoestima baixa”, o que nos
mostra que a formação imaginária a respeito do modo como os demais sujeitos a veem
é bastante presente nos sentidos que ela atribui a si mesma. Podemos ver isso sendo
reforçado na resposta ao questionamento número quatro, quando para dizer que tem
qualidades e que é humana, mantém os sentidos de que tem realmente seus defeitos.
A resposta dada ao número cinco, tem uma relação de paráfrase com à sua autoestima
baixa, não que “terceira idade” seja sinônimo de ”autoestima baixa”, mas dentro do
discurso de S.N.S. essas materialidades mobilizam os mesmos sentidos. Quando ela
fala que gostaria de ser vista como uma pessoa recatada, também podemos perceber
uma certa preocupação com a própria imagem, bem como o julgamento dos demais
sujeitos. O fato de no futuro desejar se ver como uma “pessoa tranquila” mobiliza
sentidos em direção a uma forma de estar satisfeita e em paz consigo mesma.
Vejamos inicialmente a SD.20 relacionada ao trabalho precoce:
(SD.20) Com 10 anos comecei a trabalhar em casa de família. E só parei quando fiz
curso para cabeleireira e fui trabalhar num salão de beleza [...]. Não tive oportunidade
de estudar quando nova, hoje sei a falta que faz.
(SD.21) Atualmente estou divorciada, e sinto o quanto é importante se ter uma
profissão e um trabalho de carteira assinada.
Vemos então, na SD.20, sentidos que nos mostram um ingresso nas atividades
laborais bastante cedo, o que provavelmente foi determinante para que S.N.S. fosse
privada dos estudos aos dez anos de idade. Há sentidos de crescimento e melhoria
das condições de trabalho quando a sujeito-aluna relata ter feito curso para ser
cabeleireira e começado a trabalhar em um salão de beleza, o que move os sentidos
de que a instrução possibilita o acesso a mais oportunidades. Observamos, assim,
sentidos que demarcam uma passagem de um trabalho menos valorizado para um
mais valorizado, de doméstica para cabeleireira.
Já na SD.21, S.N.S movimenta outros sentidos com relação àquilo que lhe
faltou durante a sua trajetória pregressa: “um trabalho de carteira assinada”. Ao que
parece, as novas condições de vida e a nova “fase” pela qual passa, estar “divorciada”,
ajudou a fazer emergir outros sentidos, voltado à independência, a um trabalho mais
seguro, a uma profissão (S.N.S disse ter sido cabeleireira, o que é uma profissão, na
maioria das vezes autônoma, mas não esclareceu se isso foi algo duradouro e se teve
um impacto em sua vida que fosse mais além da passagem do trabalho como
doméstica para outra profissão). Também mostra que se casou cedo e que se dedicou
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muito à família, o que vai reforçando os sentidos de que teve muitas privações,
inclusive o pensar em si mesma:
(SD.22) nos casamos muito jovens, sempre tivemos ser responsáveis [...] Me dediquei
inteira à minha família e esqueci de mim. Sempre eles estavam em primeiro lugar, não
tem nada mais importante.
(SD.23) A família sempre esteve em primeiro lugar. Abri mão de muitas coisas para
cuidar dela, inclusive de mim, me desliguei.
A sujeito-aluna, na SD.22, interpreta o sujeito que sempre teve de ser
responsável com a família, como quem, desde cedo, assumiu compromissos, como
foi o caso do seu casamento. E a partir de então, sua vida foi dedicada à família,
esquecendo-se de si. Ela reproduz o discurso de valorização da família, ainda na
mesma SD, o que vai nos ajudar a perceber sentidos que estão em deslize, de que a
família é o mais importante, mas que, conforme a SD.23, a fez “abrir mão de muitas
coisas”, até de si mesma. Nessa SD. 23 é que podemos observar nos gestos de
interpretação da sujeito-aluna, ela reconhece que houve uma preocupação tamanha
com a família que ela mesma ficou de lado, o que pode estar relacionado com a
“autoestima baixa” à qual a sujeito-aluna faz referência nas respostas do questionário.
Esse efeito negativo sobre a própria identidade pode ser verificado também nas
próximas SDs:
(SD.24) Tenho a autoestima baixa, me preocupo com o que os outros vão dizer, quero
sempre agradar. Mesmo que não seja o que eu quero, concordar com os outros dizem.
(SD.25) Preciso me amar, me ver com outros olhos, não gosto de me olhar no espelho.
Me acho gorda, feia, nunca pensei que iria envelhecer. Não tive tempo para pensar
nisso e hoje não aceito muito bem.
(SD.26) Mas não quero mais isso para mim, quero me olhar no espelho e me gostar.
Daqui pra frente vou rever tudo isso. Não vou mais me preocupar em agradar, vou ser
eu mesma. Vou me amar e cuidar de mim, vou me valorizar!
Percebemos, na SD.24, que os sentidos que os demais sujeitos mobilizam a
respeito de S.N.S. vão constituindo o modo como ela produz o discurso sobre si
mesma, de modo que vai constituindo a sua identidade, contribuindo na sua
“autoestima baixa”. Ocorre também uma paráfrase, quando os mesmos sentidos de
se dedicar totalmente a outras pessoas, esquecendo-se de si, reaparece com a
materialidade “quero sempre agradar” e “mesmo que não seja o que eu quero”. É como
se a sujeito-aluna dissesse: se eu não agrado, esqueço de mim, e assim está bem. Já
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na SD.25, observamos um deslizamento de sentidos, apesar dos sentidos
depreciativos sobre o seu corpo, “gorda”, “feia” etc., produzidos sob um imaginário de
beleza padrão, ela dá espaço para outros sentidos, dizendo que precisa se amar e
ver-se “com outros olhos”. E na SD.26, os sentidos produzidos para si abrem-se para
a polissemia, dizendo que vai se amar, cuidar de si e se valorizar, sentidos diferentes
daqueles mobilizados anteriormente, muito marcados pela formação imaginária
produzida pelos demais sujeitos, o que a levava a se autodepreciar. E importante
nessa passagem para um novo olhar sobre sua identidade será a experiência com a
EJA. Podemos observar isso, na seguinte SD:
(SD.27) Eu por minha vez estou tentando meu espaço. Estou fazendo a EJA, faço
pães, cucas, doces em calda para vender na feira.
Vemos, portanto, que S.N.S. segue mobilizando os sentidos de valorização de
sua identidade como trabalhadora, acrescidos de produtos que faz para vender.
Estando na mesma SD sobre a EJA, essa atividade laboral se reveste de sentidos de
luta pela conquista de seu espaço. Ela retoma, assim, a interpretação de que precisa
de independência e autovalorização. O “tentar o seu espaço” mantém relação
parafrástica com o “fazer a EJA” e também os produtos para venda. Na análise do
discurso da sujeito-aluna, podemos perceber, dessa forma, como dos outros sujeitos
analisados, um deslizamento nos sentidos, promovendo a emergência de outro
discurso sobre si. A criação de condição de produção de autobiografias, promovendo
a polissemia, permite aos sujeitos-alunos a mobilização do arquivo, e no caso de
S.N.S. podemos ver, desde a confecção da capa de seu caderno, os diversos sentidos
que constituíram o seu discurso, bem como a sua identidade:
Figura 5: Caderno de S.N.S (SD.28).
Fonte: Autora (2019).
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Na SD.28, os sentidos de maternidade, harmonia, vida, beleza, equilíbrio estão
presentes, entrando em relação com o discurso que a sujeito-aluna produziu sobre si.
Por exemplo, quando se analisou a questão familiar e a importância que isso teve na
constituição da identidade e na vida de S.N.S., podemos ver na imagem, um bordado
em forma de ventre. A inscrição “caminho do equilíbrio” tem relação de paráfrase com
a materialidade “uma pessoa tranquila”, que a sujeito-aluna mobilizou durante a
realização do questionário inicial. “Sem tempo ruim”, em destaque na capa do
caderno, mantém relação também com a questão do trabalho, muitas vezes, trazida
à tona no seu discurso. Igualmente em destaque, assumindo em nossa análise
bastante importância, é a presença da palavra “linda”, que está relacionada ao
deslizamento de sentidos com relação à autoestima baixa, mostrando, dessa forma,
uma mudança no discurso da sujeito-aluna, assim como, quando, ainda na capa,
S.N.S. coloca a inscrição sobre tornar os sonhos realidade.
Ao longo das análises do discurso dos sujeitos-alunos sobre si, podemos
perceber a importância de criar condições de produção que favoreçam a autoria, bem
como a polissemia, de modo que é possível observar uma mudança nas formações
imaginárias desses mesmos sujeitos com relação a si mesmos e seu papel no mundo,
sua relação com as pessoas, com os locais que frequentam e com a escola. Esta
última, na formação imaginária deles, figura como uma instituição que possibilitará que
mudem aspectos importantes de sua vida e de sua identidade. Passaremos no próximo
capítulo para a análise da intervenção.
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6 ANÁLISE DA INTERVENÇÃO
Medindo o impacto de nosso trabalho com a autobiografia na EJA, que partiu
das preocupações do sujeito-professor com questões concretas, tanto com relação à
identidade dos sujeitos-alunos quanto ao desenvolvimento da leitura e da escrita, a
intervenção pedagógica foi fundamental para a promoção da autoria e da leitura
polissêmica nos sujeitos- alunos.
O sujeito-professor, nesse trabalho, não se limitou somente àquele que ministra
as aulas, expõe os conteúdos de maneira didática, executando o seu trabalho de uma
forma tradicional, sem considerar o contexto dos sujeitos-alunos. Na perspectiva
teórica que assumimos nessa pesquisa, o professor precisou realizar um gesto de
leitura sobre os sujeitos-alunos, seus anseios, suas expectativas, seu modo de
conceber a si mesmos, a produção de sua identidade, pois foi preciso haver uma
reflexão da parte do professor, a fim de melhorar a sua prática educativa.
Para tanto, a participação na cultura da escola foi um aspecto fundamental, no
sentido de que se reconheceram as pluralidades que compunham a vida e a realidade
da instituição escolar, por exemplo, a entendemos como sendo composta de
diferentes gerações, as quais possuem valores os mais variados e, talvez, conflitantes.
Coube, então, ao professor o entendimento de que seus valores não precisavam
necessariamente corresponder e ser assimilados pelos sujeitos-alunos, sendo assim
importante o respeito ao outro. De modo que para o próprio sujeito-professor se criam
condições para um gesto de leitura polissêmica sobre os textos dos sujeitos-alunos
bem como de suas identidades, sendo possível ler que a memória que determinado
sujeito mobiliza em sua autobiografia não requer uma apreciação da parte do sujeito-
professor na perspectiva de um julgamento, de “bem” e “mal”, mas sim uma leitura
que permite a passagem a novos sentidos e discursos. Para citar um exemplo, quando
da análise do discurso de N.S.R., o sujeito-professor, embora seja alguém que vive
no meio urbano, está inserido em um espaço de ensino-aprendizagem que possibilita
o contato com esses outros discursos que constituem a identidade do sujeito-aluno em
questão, e não cabe, em sua investigação, o silenciamento, de modo que há de se ter
cuidado, pois esse silenciar pode ocorrer mesmo que não seja a intenção do sujeito-
professor. No caso de N.S.R., ele tem uma formação imaginária sobre o modo como
os habitantes da zona urbana veem certas atividades do meio rural, o que expôs em
sua autobiografia. Assim, o sujeito- professor, analisando o discurso, precisou levar
86
em consideração essas memórias e o que elas significam com relação ao discurso
que o sujeito-aluno trabalha sobre si, em sua autobiografia. Em relação a isso, o aporte
teórico da AD veio a ser de grande valor, uma vez que dá subsídios para que se
compreenda a produção dos discursos, os sentidos mobilizados, os deslizamentos de
sentidos, a polissemia e a paráfrase. E são justamente esses pressupostos da AD,
aplicados à leitura dos materiais coletados pelo sujeito-professor (questionários,
autobiografias, colagens em capas de caderno) que possibilitam na análise da
intervenção, refletir sobre os impactos na aprendizagem dos sujeitos- alunos de um
trabalho sobre autobiografias.
Podemos dizer inicialmente, que todo aquele que retoma seus estudos na EJA
possui uma formação imaginária sobre o que é ser um aluno, o que é aprender, o que é
um professor, uma escola etc. e também produz uma formação imaginária sobre si
mesmo nesse espaço institucional. E esses discursos que produz sobre si não estão
desvinculados da memória, da vida que tiveram e que têm fora da escola. É possível
perceber, dentre esses sentidos, a recorrência de um imaginário de “ter ficado para
trás”, e se formos mais profundamente na nossa reflexão, esse “ter ficado para trás”
não se resume necessariamente apenas à questão educativa, mas a vários aspectos
da vida: o tempo que passou, a idade que chegou sem se perceber, a autoestima que
foi afetada, o cuidado para consigo mesmo, a infância vivida sem brincar e – também
– a escola. E pudemos ler os sentidos relacionados à EJA como uma espécie de
resgate daquilo que ficou para trás e que, em condições novas, precisa ser retomado.
Dessa forma, para esses sujeitos-alunos, não apenas a educação formal está sendo
mobilizada no arquivo, mas também vários aspectos importantes de suas vidas, o que
foi possível compreender com a prática pedagógica voltada para o trabalho com
autobiografias, criando condições de produção favoráveis, a fim de que, com o
exercício da autoria, esses sujeitos-alunos possam “olhar para si”, deixando vir à tona
os sentidos sobre suas identidades, às vezes através da paráfrase, ou seja, a
manutenção dos mesmos sentidos por meio de outras formulações e, às vezes, por
meio de deslizamentos, possibilitando que os sentidos tenham outros
direcionamentos, apontando para novos sentidos, a polissemia.
Primeiramente tivemos contato com as materialidades empregadas para
responder ao questionário previamente elaborado pelo sujeito-professor. Nesse
momento, pudemos fazer os primeiros gestos de leitura a respeito dos sentidos que
os sujeitos-alunos mobilizavam sobre si mesmos, a formação imaginária que têm
87
sobre como são vistos pelos demais sujeitos, quando veem à tona sentidos negativos
sobre a própria personalidade: “resmungona”, “de poucos amigos”, “antipática” etc.
Esses sentidos fazem parte do arquivo que esses sujeitos possuem, constituído por
aquilo que ouviram das pessoas ao longo de suas vidas, e são constituintes
igualmente de suas identidades, estando inclusive junto deles em sua nova trajetória
enquanto sujeitos-alunos da EJA, silenciando novos sentidos mais positivos a respeito
de si mesmos.
No entanto, a quebra dos sentidos sedimentados sobre o sujeito-professor –
como aquele que julga, aplica notas, define o que é ser um bom ou mau aluno – que
se deu através de uma outra postura empregada por esse: de valorização do diálogo,
de possibilidade de um retorno aos sujeitos-alunos sobre suas autobiografias, de
criação de condições de produção e desenvolvimento da autoria que permitiram aos
sujeitos-alunos escreverem, sem se sentirem a todo o momento ameaçados pelo
silenciamento e pela censura, foi fundamental para a boa condução dos trabalhos em
sala de aula e na aprendizagem.
Assim, ao longo do desenvolvimento da nossa prática pedagógica foi possível
constatar um deslizamento nos discursos dos sujeitos-alunos sobre si mesmos,
fazendo emergir outros sentidos, antes silenciados, de modo que se contribuiu para
que a identidade desses sujeitos pudesse ser afetada por novos sentidos e por outros
discursos produzidos no contexto ensino-aprendizagem. Enfatizamos esse contexto,
por realmente acreditarmos no seu papel educativo e de provocador de mudanças nos
sentidos que os sujeitos possuem em seu arquivo, oferecendo subsídios que auxiliam
o desenvolvimento da autoria e da leitura polissêmica.
No caso da sujeito-aluna M.S.P., que mobilizou o imaginário de si enquanto
mulher, parafraseando sentidos que encerram a mulher como sendo um sujeito
puramente sentimental e ligado unicamente à família. Reconhecemos esses sentidos
como sendo produzidos antes mesmo do emprego deles por M.S.P., constituído de
uma memória discursiva, ligados ao discurso machista, de que o lugar da mulher é
circunscrito ao lar e às atividades domésticas. Nessa mesma direção estavam os
sentidos da sujeito-aluna S.N.S., que se dedicou intensamente à família, adquirindo
responsabilidades desde cedo, considerando esses sentidos como valores
solidificados, deixando-se a si mesma de lado, desfazendo-se de qualquer valorização
pessoal, “não tem nada mais importante [que a família]” (SD.22), conforme ela mesma
escreveu. Foi possível, durante a mobilização de materialidades e de arquivos, abrir
88
espaço de deslizamento de sentidos, em que o papel da mulher dá espaço àquilo que
ficou legado ao silêncio, como a autoestima, a autonomia, o direito ao estudo e a um
futuro profissional. Essas novas possibilidades passam a constituir as suas
identidades, não apagando ou silenciando suas relações familiares ou seu passado,
suas experiências, seus imaginários, mas mexendo com eles, inserindo contradições,
dando espaço ao equívoco, de maneira que aquilo que ficou sedimentado pode, na
escola, ser remexido, em um processo que coloca os sujeitos-alunos em
desenvolvimento de sua autoria, produzindo novos sentidos sobre si. Dessa forma o
“amar-se”, “cuidar de si” e “se valorizar” (SD.26) vem à tona, dentro de movimento
polissêmico, durante a prática da autoria pelos sujeitos-alunos.
O deslizamento e a emergência de novos sentidos são também encontrados
na autobiografia de N.S.R., que, assim como outros sujeitos, foi privado da educação
formal de maneira precoce, a fim de trabalhar na zona rural. Existe no arquivo todo
um conhecimento adquirido nos seus serviços realizados no campo, no trato com os
animais e da lida campeira, bem como uma memória de experiências e paisagens que
constituem a sua identidade e a sua perspectiva de bem-estar. Sem silenciar essas
raízes, N.S.R. promove em sua escrita um deslizamento reconhecendo a necessidade
e a importância da aprendizagem também no espaço escolar, a fim de alcançar novas
expectativas profissionais. O próprio casamento, com uma pessoa que teve acesso à
escolaridade e possui emprego formal, já constituiu condições de mudança nos
sentidos sobre o trabalho e a escola, promovendo um retorno aos estudos, agora na
modalidade EJA. No desenvolvimento de sua autoria, N.S.R. traz esses novos
sentidos, ligados a um resgate daquilo que, em condições adversas, não pode ter
acesso. Assim, a sua identidade não figura mais apenas como sendo o “homem do
campo”, mas também como aquele que possui conhecimentos dessa realidade, o
sentir-se um “doutor dos pampas” (SD.12), e que é um estudante em busca de um
futuro profissional, sem perder suas raízes ligadas ao ambiente campeiro.
Esses sentidos oriundos do passado fazem parte da identidade desses sujeitos,
a tal ponto que permanecem em suas autobiografias, ou como bonitas memórias,
ligadas a um estilo de vida, como é o caso dos sentidos mobilizados por N.S.R. ou
como foi o caso de I.B., que em sua autobiografia promoveu deslizamentos no sentido
que a escola, sem ser somente um local para aprender a ler e escrever, reveste-se da
imagem de algo que possibilita um novo rumo para a vida, e para novas possibilidades
de realização. E é o que se configura na escolha de uma profissão, a enfermagem,
89
que traz em si ainda os sentidos de cuidado, que marcam muito a sua identidade e
modo como ela produz o discurso sobre si. Assim, a sua identidade, constituída pela
memória, que traz os sentidos de cuidar de outros seres, no processo de
desenvolvimento da autoria ao encontro de novos sentidos, encontra o caminho de
uma profissão que possui uma ligação com o cuidado.
Nosso trabalho, munido dos pressupostos teóricos-metodológicos da AD, foi
fundamental para que esses sujeitos assumissem o papel de autores do discurso
sobre si, deixando-se permear por sentidos novos, ligados às suas identidades. Dessa
forma, observar a questão do discurso na EJA ligado à autobiografia é de grande
importância, principalmente se tratando dessa modalidade de ensino, composta de
sujeitos com histórias de vida, receios, medos, e muitos silenciamentos, e os sujeitos
precisam de condições para desfazer esses silêncios, a fim de pensar a sua identidade
e seu papel na escola e na vida.
Dessa forma, mobilizando-se sentidos em uma direção de valorização da
autoestima do sujeito-aluno da EJA, criam-se condições de elevar o processo de
ensino-aprendizagem, pois confere aos sujeitos a possibilidade de produzirem novos
discursos sobre si, o que tem efeitos no seu desempenho escolar, uma vez que ele
compreende que a escola não é um lugar estranho, ou seja, não assume
necessariamente a imagem de uma instituição que não o valoriza para além das
avaliações e cobranças, percebendo também que a atividade com a escrita não se
reduz a “copiar” conteúdos que, talvez, lhes sejam estranhos e, à primeira vista,
“inúteis”, mas que é uma forma importante de produzir sentidos sobre o mundo e sobre
si. Assim sendo, a valorização desses sujeitos alunos promove a valorização da escrita
por parte dos mesmos, levando-os a assumir a posição de autor, incluindo-se também
a melhoria na qualidade de seus textos, produzindo o efeito literário.
As atividades de intervenção proporcionaram justamente à percepção por parte
do sujeito-professor de que a abordagem da identidade e do discurso na EJA fornece
um importante arsenal para o crescimento dos sujeitos-alunos. Com a aplicação e os
resultados da escrita da autobiografia, foi possível entender o quanto os sujeitos são
capazes de produzir ou se identificar com novos sentidos, diferentes daqueles outros
que ficaram sedimentados na memória discursiva, e que, muitas vezes, reforçam uma
imagem mais negativa de sua própria identidade. Foram muito importantes, nesse
aspecto, principalmente as discussões em aula sobre a autobiografia, com vídeos
motivadores, textos autobiográficos e problematizações sobre a identidade. Essas
90
aulas, ao menos o essencial delas, foram levadas em consideração para a construção
do produto pedagógico, voltado ao trabalho com a autobiografia na EJA, resultado
dessa pesquisa aplicada.
Assim, este produto – uma proposta pedagógica para o trabalho com
autobiografia na EJA – é composto de teoria e sugestões de aulas que auxiliam a
trabalhar esse gênero sob um olhar teórico da Análise de Discurso, a fim de subsidiar
os professores em sua prática pedagógica com o gênero em questão. Foi uma
preocupação não necessariamente encher o manual de detalhes sobre as aulas, mas
em deixá-lo não tão prescritivo, porém mais reflexivo, expondo de maneira sucinta,
juntamente com as aulas, conceitos da análise de discurso, que promovem uma
reflexão no sujeito-professor acerca do discurso dos sujeitos-alunos sobre si.
91
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Trabalhar com a EJA, ao contrário do que muitos profissionais pensam, não é
uma tarefa simples ou de menor importância. Essa formação imaginária infelizmente
está difundida nas escolas, e muitos professores acreditam que, para a EJA, qualquer
aula serve, já que eles ficaram “para trás”, qualquer coisa já é um avanço. Para alguns,
essa “lacuna” pode ser preenchida com o quadro cheio, para outros com ditados que
duram o tempo todo de uma aula, há também aqueles para os quais basta apenas
“discipliná-los”, como se fossem crianças. Nosso trabalho pode mostrar que muitos
desses profissionais estão equivocados. Não é qualquer aula que serve para essa
modalidade de ensino, ou seja, aulas desprovidas de respeito com os saberes e a
memória dos alunos não devem ser o tipo de trabalho a ser realizado nesse contexto
de ensino-aprendizagem. A constatação de que cada sujeito-aluno tem suas
expectativas, seus anseios, sua realidade e sua cultura, é fundamental no modo como
deve se desenvolver a metodologia e o embasamento teórico das aulas.
Em nosso trabalho, a teoria que adotamos, a AD de linha francesa, nos
possibilitou, no papel de professora-pesquisadora, a análise do discurso dos sujeitos-
alunos da EJA. A análise nos permitiu acompanhar os sentidos produzidos enquanto
se movimentavam, mantendo a cautela para que se deixasse fluir as memórias, sem
apressá-las forçosamente, mas estimulando-as e deixando que os sentidos mais
sedimentados, arraigados, pudessem encontrar equívocos, deslizamentos,
polissemias, de modo que esses sujeitos desenvolvessem, através de suas
autobiografias, a autoria, e olhassem para as próprias identidades enquanto sujeitos.
Mais importante que preencher um quadro inteiro com um texto para ser copiado é
entender que o próprio sujeito-aluno, no desenvolvimento da autoria, pode escrever o
próprio texto, aplicando os saberes formais sobre a escrita, e dizendo com suas
singelas palavras que irá se “amar” e “se valorizar”, ou que deseja, no futuro, terem
trabalho e uma vida tranquila, voltar ao campo e ao bem-estar que ele proporciona, ou
então, que deseja estudar para ter uma profissão que lhe permita cuidar de outros
seres humanos necessitados de atenção, como o próprio sujeito um dia precisou mas
não teve.
Dessa forma, a nossa prática pedagógica, através da análise do discurso dos
sujeitos-alunos sobre si, teve um impacto no desenvolvimento da autoria desses
sujeitos-alunos, dando a eles a possibilidade de produzir um discurso sobre si e sobre
92
suas perspectivas de vida, envolvendo o ambiente de ensino-aprendizagem. Dessa
maneira, foi possível a eles promoverem um deslizamento nos sentidos que estavam
no arquivo a respeito de como eles se viam e como imaginam que os demais sujeitos
os viam, fazendo emergir novos sentidos, a polissemia. A importância deste trabalho
se deve também ao fato de não ser fácil produzir uma autobiografia, ainda que
pequena, pois mexe com memórias, angústias, emoções contraditórias e
desconfortáveis, e é necessária a construção de condições propícias para que o
discurso dos sujeitos não se prenda totalmente aos sentidos que ficaram sedimentados
por medo do silenciamento.
Esperamos que este trabalho possa auxiliar na produção de um novo olhar em
relação à EJA, demostrando que essa modalidade de ensino é importante na vida dos
sujeitos e que faz parte de seu projeto de vida, seus sonhos, seus resgates, ainda que
saibamos de nossas limitações nas realizações desses desejos. É necessário um
trabalho sério, um olhar atento e respeitoso para com todos que ingressam na EJA,
pois a educação é o direito no qual esses sujeitos acreditam desde o momento em
que entram pelos portões da escola, e precisamos estar com eles.
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REFERÊNCIAS
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APÊNDICES
Apêndice A – Termos de autorização de uso de imagem e voz
Prezado senhor ou senhora responsável pelo(a)
aluno(a)____________________________________________________________.
Sou a aluna Clarisse Dutra Aurélio do Mestrado Profissional em Ensino de Línguas
e professora regente da disciplina de Língua Portuguesa da turma Et. 6 (9º ano) da
Educação de Jovens e Adultos da E.M.E.B. Marcelo Faraco - onde aplicarei uma
Proposta Didática que faz parte da minha dissertação de mestrado que tem como título:
Autobiografia na Educação de Jovens e Adultos: o discurso do sujeito- aluno
sobre si. Durante as aulas serão tiradas fotos, feitas anotações e produções textuais.
Após a intervenção todo o material será analisado e posteriormente utilizado na escrita
da dissertação e em materiais voltados ao ensino. Tais informações também poderão
ser disponibilizados em web sites e redes sociais. Gostaria de poder contar com a sua
autorização para aplicar essa pesquisa. Desde já agradeço sua a atenção.
Clarisse Dutra Aurélio
LI A DESCRIÇÃO ACIMA E DOU O MEU CONSENTIMENTO PARA QUE A PESQUISADORA (CLARISSE DUTRA AURÉLIO) APLIQUE SUAS PESQUISAS E COLETE OS DADOS NECESSÁRIOS PARA O REFERENTE ESTUDO. BEM COMO AUTORIZO O USO DOS REGISTROS DA PESQUISA CONFORME INDICADO ACIMA.
NOME DO(A) ESTUDANTE: ____
NOME DO RESPONSÁVEL: ___________________________________________
ASSINATURA DO RESPONSÁVEL: ____
Alegrete, de março de 2019.
AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E VOZ (MENOR DE IDADE)
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Eu RG nº__________________
CPF___________________
aluno(a) da turma da E.M.E.B.
Marcelo de Freitas Faraco, pelo presente termo particular de autorização de uso de
imagem e voz, autorizo a mestranda Clarisse Dutra Aurélio a realizar pesquisa
utilizando minha imagem e voz, em decorrência da participação na aplicação de uma
Proposta Didática que faz parte da dissertação intitulada: Autobiografia na
Educação de Jovens e Adultos: o discurso do sujeito-aluno sobre si. Estou ciente
que durante as aulas serão tiradas fotos, feitas anotações e produções textuais. E que
após a intervenção todo o material será analisado e posteriormente utilizado na escrita
da dissertação e em produtos voltados ao ensino. Tais informações também poderão
ser disponibilizadas em web sites e redes sociais.
Aluno (a)
Alegrete, de março de 2019.
AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E VOZ (MAIOR DE IDADE)
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Apendice B – Fotografias da intervenção.
Figura 1: alunos.
Fonte: Autora (2019).
Figura 2: leitura das autobiografias.
Fonte: Autora (2019).
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Figura 3: atividade no quadro.
Fonte: Autora (2019).
Figura 4: roda de conversa.
Fonte: Autora (2019).
100
00
Figura 5: construção de um painel.
Fonte: Autora (2019).
Figura 6: socialização das autobiografias.
Fonte: Autora (2019).