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Universidade Federal do Rio de Janeiro MEMÓRIAS DO CÁRCERE: ACORDOS E DESACORDOS ENTRE O INTELECTUAL E O POLÍTICO Marcio Fonseca Pereira 2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MEMÓRIAS DO CÁRCERE: ACORDOS E DESACORDOS ENTRE O INTELECTUAL E O POLÍTICO

Marcio Fonseca Pereira

2013

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MEMÓRIAS DO CÁRCERE: ACORDOS E DESACORDOS ENTRE O INTELECTUAL E O POLÍTICO

Marcio Fonseca Pereira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Teoria Literária)

Orientador: Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno

Rio de Janeiro

Agosto de 2013

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Memórias do cárcere: Acordos e desacordos entre o intelectual e o político

Marcio Fonseca Pereira

Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da

Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura.

Examinada por:

______________________________________________________________________

Presidente, Prof. Dr. André Luiz de Lima Bueno - UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Danielle dos Santos Corpas - UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo - UERJ

____________________________________________________________________

Prof. Dr. Luís Alberto Nogueira Alves - UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Irenísia Torres de Oliveira - UFC

Suplentes

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Victor Manuel Ramos Lemus - UFRJ

______________________________________________________________________

Profa. Dra. Flávia Trocoli Xavier da Silva - UFRJ

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A G R A D E C I M E N T O S

Ao professor André Bueno pela orientação cuidadosa em todas as etapas da pesquisa

Aos meus pais pelo apoio durante todo o Doutorado

À CAPES pelo apoio financeiro necessário à realização deste trabalho

Aos colegas do Grupo Formação do Brasil Moderno: literatura, cultura e sociedade pela convivência amistosa e pelas trocas intelectuais importantes para o avanço desta pesquisa

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RESUMO

O presente ensaio tem por objetivo fazer uma análise literária da autobiografia Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, tendo como ponto de partida a interpretação clássica de Antonio Candido em Ficção e confissão, cujo foco nos valores ético, testemunhal e artístico do relato influenciou boa parte da crítica subsequente. O propósito é mostrar um viés alternativo, porém não diametralmente oposto ao do crítico, levando em conta a visão de Graciliano sobre o fazer literário bem como sobre o papel do escritor na sociedade brasileira de sua época. De modo complementar, um estudo das contradições políticas do autor também fará parte do trabalho visto ser um elemento muito relevante na forma do texto. A análise dessa combinação peculiar de posições intelectuais e políticas terá por objetivo não só uma compreensão mais ampla da obra como também do escritor enquanto cidadão e intelectual inserido no debate político e cultural dos anos 30.

Palavras-chave: intelectual, contradições

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ABSTRACT

This essay aims at analyzing Graciliano Ramos’ literary autobiography Memórias do cárcere (Memoirs of prison), starting from the classic interpretation by Antonio Candido in Ficção e confissão (Fiction and confession), whose focus on the ethical, testimonial and artistic value of the narrative has influenced much of the subsequent criticism. The purpose is to show an alternative reading, though not diametrically opposed to the critic´s, taking into account Ramos’ view on literary composition as well as on the role of writers in the Brazilian society of his time. In a complementary manner, a study of the political contradictions of the author will also be part of the work since it is a very important element in text form. The analysis of this peculiar combination of intellectual and political positions will aim not only at a broader understanding of the Memoirs but also of the writer himself as a citizen and an intellectual related to the political and cultural debate of the 1930s.

Keywords: intelectual, contradictions

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Os períodos críticos não concedem ao artista o luxo de poder criar, automática e irresponsavelmente, todos os pontos de vista sociais. Todo aquele que se gaba disso, seja insinceramente ou mesmo sem pretensão, esconde uma tendência reacionária ou cai nas tolices sociais ou se torna ridículo.

Leon Trotski, Literatura e Revolução

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..................................................................................................................10

1-Escrita e história

1.1- Graciliano Ramos e o romance de 30................................................................12

1.2 - A passagem à autobiografia.............................................................................24

1.3 - A reconstrução do sentido histórico nas Memórias do cárcere.......................43

2- Reflexões sobre a relação do intelectual com a composição das Memórias do cárcere

2.1- A condição do intelectual e a obra....................................................................47

2.2- As contradições da posição de intelectual.........................................................56

3- A estrutura das Memórias do cárcere: da prisão ao porão

3.1- Graciliano e a comparação com Luís da Silva, de Angústia.............................62

3.2- A segunda parte: a intensificação do abalo nas crenças e a forma do texto..........................................................................................................................80

3.2.1- Panorama da mudança........................................................................80

3.2.2- A relação entre a representação da realidade e a ficção: o porão do Manaus..........................................................................................................84

4- O intelectual e os homens

4.1- Observações gerais............................................................................................90

4.2- A construção de um relato sobre a coletividade................................................92

4.3- Graciliano, os homens cultos e os “políticos”.................................................100

4.3.1- O russo Rafael Kamprad: sobre a razão positivista e a criação literária........................................................................................................100

4.3.2- Rodolfo Ghioldi e os “citadinos”: sobre a fala e a escrita..........................................................................................................110

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4.4 – Graciliano e os homens incultos....................................................................114

4.4.1- Graciliano e o estivador Desidério: entre o preconceito e a crítica..114

4.4.2- Os “vagabundos e malandros”: o estatuto da ficção........................120

4.4.3 - O discurso solicitado por Alfeu: o peso das palavras......................126

4.5- Graciliano e a crítica aos revolucionários.......................................................129

4.5.1- Os rebeldes da Intentona..................................................................129

4.5.2- Miranda x Ghioldi............................................................................142

5 – Marcas da escrita, estigmas e o valor das palavras

5.1 - A escrita e a tatuagem....................................................................................154

5.2 - Investigando as possibilidades da narrativa...................................................160

CONCLUSÃO..................................................................................................................171

BIBLIOGRAFIA..............................................................................................................174

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INTRODUÇÃO

Memórias do cárcere (1953), como ponto de chegada da experiência literária de

Graciliano Ramos, se apresenta em certa medida como a reunião de diversos recursos

formais e estilísticos espalhados por toda sua obra bem como dos principais temas de

interesse do escritor.

Tendo desenvolvido seu sentido artístico em grande medida no romance, o

escritor leva em parte essa experiência para o relato, traço perceptível no tom ficcional

mais ou menos concentrado em diversas passagens do texto. Esse aspecto se presta de

maneira eficaz para a reconstrução do sentido da experiência no cárcere, muitas vezes

difícil por meio do simples depoimento; ao mesmo tempo, alia-se ao relato para dar

notícia da evolução da consciência histórica e social de Graciliano, em grande medida

focada no papel do escritor na sociedade brasileira de sua época. Desse modo, as

Memórias assumem o duplo valor das grandes obras literárias que – além de revelar um

profundo senso de mediação artística podendo, assim, nos proporcionar grande

satisfação estética – jogam luz sobre a realidade social, criando um novo modo de

conhecimento dos homens através do tratamento literário de suas contingências

históricas e sociais.

Com isso, ao afastar-se da ortodoxia do gênero memorialístico, a obra é capaz de

trazer a realidade de maneira mais viva, convidando o leitor a buscar no relato não só a

história de um indivíduo, mas também a história de seu tempo através dos episódios da

dura experiência prisional, os quais, longe de tentarem instituir uma verdade acabada

sobre o próprio escritor ou sobre os homens, estão carregados tanto de

complementaridade como de contradição, pedindo, no conjunto, a sutil reconstrução de

seu sentido histórico.

De um modo geral, as leituras das Memórias, ao buscarem esse sentido, têm se

baseado no valor testemunhal do relato, ressaltando sua qualidade artística e

principalmente a capacidade do escritor de revelar o arbítrio do regime ditatorial de

Vargas sem apelos lamuriosos ou intenção de se elevar diante dos demais homens de

sua época. Esse modo dominante de interpretar a obra se estabeleceu por influência das

primeiras leituras, claramente marcadas pelo impacto das revelações trazidas pela

narrativa. Se pensarmos que sua publicação é de 1953, portanto durante a última

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passagem de Vargas pelo poder e no ano anterior ao de sua morte, podemos imaginar o

quanto essas leituras não poderiam deixar de trazer essa marca, especialmente levando-

se em conta o provável sentimento dos críticos com relação àqueles homens (seus

contemporâneos) diante dos terríveis acontecimentos narrados. Por sua vez, as leituras

subsequentes não se distanciam muito dessa visão ao reforçarem o caráter “humano” do

relato, mostrando como Graciliano tenta evitar o tom de discurso político em favor do

resgate da humanidade de seus companheiros aviltados ou mesmo com o intuito de

focalizar a vida no cárcere enquanto doloroso processo de resistência.

Sem negar o valor dessa vertente crítica, podemos dizer que a passagem de seis

décadas desde o lançamento das Memórias permite um distanciamento “afetivo”

certamente facilitado pela visão retrospectiva do fracasso das lutas da esquerda nas

décadas seguintes e, em consequência, pela observação da crescente interferência do

capitalismo em todas as instâncias da vida social e política. Nesse novo contexto

histórico, torna-se menos difícil a percepção do envolvimento problemático de

Graciliano com as questões políticas da época, cujo tratamento no texto é em boa parte

mediado por suas concepções intelectuais de escritor, mas sem deixar de

episodicamente emitir opiniões mais categóricas. Com isso, pode-se dizer num sentido

mais estritamente político que uma releitura das Memórias se faz necessária na medida

em que possa atuar também como interpretação crítica da atuação da esquerda,

reavaliando algumas de suas crenças e certos episódios de sua atuação tanto a partir dos

pontos de vista mais equilibrados do escritor quanto pelos momentos nos quais ele se

mostra mais próximo da ortodoxia política de esquerda.

Tendo por base o estudo das implicações formais desses elementos na narrativa,

objetivamos um melhor entendimento da relação entre a escrita e o processo histórico

por ela representado. Para isso buscaremos aprofundar o conhecimento da complexa

figura do escritor por meio da análise de seus pontos de vista intelectuais e políticos os

quais, por vezes em choque, tornam-se uma importante chave para a compreensão mais

ampla do texto das Memórias.

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1-Escrita e história

1.1 - Graciliano Ramos e o romance de 30

O romance de Graciliano Ramos surge num momento histórico dos mais

sugestivos que foi o contexto da passagem da República Velha para a Nova República.

Nos anos iniciais da década de 30, a tomada do poder por Vargas, apoiado por facções

oligárquicas dissidentes e pelos “tenentes”, sobrepujou as antigas oligarquias estaduais

de São Paulo e do Nordeste, as quais – não sendo propriamente eliminadas – tiveram

seu poder outrora absoluto reduzido pela interferência do governo central que

rapidamente tratou de centralizar todas as decisões econômico-financeiras e políticas,

invertendo a lógica de poder da República Velha.

Em toda a República Velha, prevaleceu no meio intelectual brasileiro a figura do

polígrafo anatoliano1, cuja independência política ficava seriamente comprometida

devido à falta de opções de carreira intelectual. Entretanto, as condições de

profissionalização desse intelectual – desenvolvidas ao longo do período em virtude da

necessidade cada vez maior de sofisticação do trabalho ideológico de dominação –

abriram espaço para a formação de um grupo de escritores, dos quais alguns que

dispunham dos meios, muitas das vezes extraliterários, viriam a formar a primeira

geração do Modernismo (Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Cassiano Ricardo etc.).

Com isso, as lentas mudanças ocorridas ao longo da República Velha e a

reviravolta política no início da década de 30 formavam uma nova conjuntura que

permitiria o desenvolvimento de uma forma de atuação distinta por parte do escritor,

como, por exemplo, através da adoção do romance como o gênero literário por

excelência.

1 Na República Velha era muito escassa a possibilidade de viver profissionalmente de forma autônoma como escritor, uma vez que toda a vida intelectual estava dominada pela grande imprensa. Desse modo, os escritores contratados viam-se obrigados a se dedicar aos diversos gêneros importados da imprensa francesa como a reportagem, a entrevista, o inquérito policial e, em especial, a crônica. Juntando-se a isso a influência de Anatole France, escritor muito lido por aqui na época, temos a denominação de polígrafos anatolianos. A respeito do assunto, ver Sérgio Miceli, Poder, sexo e letras na República Velha. In: Intelectuais à brasileira. Cf. p.13-17.

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Esse processo de mudanças foi de início responsável pelo caráter um tanto

incerto da atuação estético-política dos romancistas. A queda do antigo sistema político

trazia consigo o abandono de uma série de valores a ele relacionados bem como a

necessidade de criar novos padrões culturais que dessem conta da nova realidade

política. Os escritores se viam impelidos a atuar de forma decisiva nas discussões sobre

os caminhos intelectuais da nova geração e mesmo aqueles que se julgavam

despreparados para enveredar na discussão sobre os destinos políticos do país

perceberam a pressão das temáticas que passavam à ordem do dia.

Contudo, as forças recém-chegadas ao poder tinham uma organização complexa,

daí o aspecto ideologicamente heterogêneo que o compunha. Ademais, a fração

hegemônica desse novo grupo em muitos aspectos era tão conservadora quanto o grupo

anteriormente no poder por ser oriunda de uma dissidência dentro das elites dominantes.

Tudo isso causava uma indefinição que impedia a muitos intelectuais uma visão clara

dos acontecimentos políticos no país. Essa incerteza, por sua vez, levou não raro os

escritores a uma participação literária e política hesitante nos primeiros momentos,

tendo apenas mais tarde a chance de se deparar com um terreno propício à sua

superação.

Muitos dos intelectuais, oriundos das elites rurais decadentes dos diversos

estados do Nordeste, viam o antigo mundo de seus avós e pais (do qual naturalmente

haviam sido beneficiários) arruinar-se com a substituição dos antigos métodos de

produção na reestruturação da fazenda segundo moldes capitalistas modernos. Num

momento inicial, essa confusão apareceu tanto na literatura, na medida em que certas

obras revelavam as indefinições estéticas e políticas de seus criadores, quanto na crítica

que, por conta dessas indefinições, por vezes não conseguia desenvolver seu trabalho de

análise precisa dessas obras.

O fracasso da Revolução Constitucionalista de 1932 – e a melhor compreensão

por parte das oligarquias derrotadas em 1930 de que o novo processo político era

irreversível – finalmente impulsionou os escritores a uma tomada de posição estético-

política, fazendo o romance – que inicialmente revelava de maneira não tão assertiva

um tom de insatisfação social (misturando preocupações sociais legítimas com ranço

proveniente da derrota das oligarquias) e um certo intimismo (também sintoma

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profundo dessa mesma derrota) – adquirir contornos mais específicos. Os dois grupos

de escritores originários dessa “polarização” foram denominados, dentre as variadas

nomenclaturas existentes, “sociais” e “intimistas”.

A tomada de partido de um escritor por um ou outro grupo em geral

correspondia a uma separação estética e política que os incompatibilizava, de modo que

se formaram “panelas” literárias interessadas em defender ferozmente suas bandeiras.

Na crítica, uma divisão correspondente também se realizou, tornando comuns nas

revistas ou jornais da época avaliações que passavam ao largo do caráter estético da

obra e tinham como a priori a posição política de quem escrevia como principal critério

de valor.

Para os escritores “sociais” de um modo geral, a atitude literária se definia muito

com base no caráter de revelação das desigualdades sociais brasileiras, na capacidade da

obra de trazer a vida do espoliado para o centro da representação artística, representando

uma mudança da antiga visão de “país novo” para “país subdesenvolvido”2. Essa

atitude, nos romances bem realizados, trouxe uma nova concepção estética, em especial

no caso dos “escritores do Norte”, redefinindo o regionalismo sem o traço exótico do

regionalismo de fins do século XIX e início do século XX e com uma linguagem mais

limpa, livre de beletrismo, na qual ficava marcada a preocupação de comunicar a

realidade brasileira a um público maior sem falseá-la. Nos casos mal realizados – cada

vez mais frequentes devido à enxurrada de novos escritores – o resultado foi uma

literatura panfletária ou próxima do documento puro e simples cuja pobreza estética era

patente.

No lado dos escritores “intimistas”, por sua vez, a construção da narrativa nos

casos bem sucedidos podia se dar através da representação do sentimento profundo de

perda de um passado mais estável, explorando a psicologia do personagem de modo a

recuperar por meio de traços individuais e sutis a atmosfera de uma experiência social

profundamente contrastante com a do momento presente, de modo que não só toda uma

época perdida, mas um presente desalentador e “real” em demasia apareciam por meio

da mediação da memória. Nos casos mal sucedidos, por outro lado, prevalecia certa

atitude de negação da realidade social, na qual transparecia nas linhas do escritor uma

2 Antonio Candido. Literatura e subdesenvolvimento. In: A Educação pela Noite. Cf. p.169.

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concepção de mundo idealista, abordando a realidade a partir do inchaço de um “eu”

cuja atitude era meramente especulativa, claramente redutora e escapista em relação aos

aspectos trágicos do presente3.

Em meio a esse debate – que envolveu muitas paixões, gerou desavenças sérias

entre participantes dos dois lados (escritores e críticos) e juízos não raro feitos com base

em critérios de ordem política ou pessoal – a posição assumida por Graciliano foi

singular. Sentia-se ligado ao grupo dos escritores “sociais” como Jorge Amado, Rachel

de Quieroz e José Lins do Rego, cujos romances, movidos pela intenção de apresentar a

dura realidade de homens e mulheres marginalizados, estudavam “o subúrbio, a fábrica,

o engenho, a prisão da roça, o colégio do professor cambembe”4. Entretanto, não

poupou críticas à literatura de seus companheiros quando estes negligenciaram algum

aspecto considerado relevante para a construção da verossimilhança em suas narrativas.

Sua crítica sobre Suor (1934), de Jorge Amado, deixa clara sua crença na mediação da

técnica literária como imprescindível em qualquer circunstância. Primeiramente

defendeu o livro por apresentar a sociedade sem véus ou compensações a partir da

realidade degradada, algo esquecido, segundo ele, por seu conterrâneo, o escritor

católico Jorge de Lima, cuja percepção da vida do catador de sururu era tingida de uma

poética elitista por nunca haver trabalhado naquelas condições e por conhecer “remédio

para a maleita”, já que era médico5. Aqui, não obstante a crítica ao conservadorismo

poético, a ligação entre este e a classe social é um tanto problemática uma vez que a

maior ou menor distância entre o mundo de quem escreve e o de seus personagens não é

necessariamente um empecilho para a realização de uma grande obra literária. Diga-se

de passagem a situação do próprio Graciliano, cuja “investigação” da psicologia de um

indivíduo rústico o levou a compor Vidas secas, uma das maiores obras da prosa

brasileira. No que diz respeito ao livro do escritor baiano, por outro lado, a crítica de

Graciliano apontava uma fraqueza pela intenção de denúncia à maneira da reportagem

ao se ocupar em reproduzir em certas partes o detalhe, porém sem a devida

3 Tendo em vista as diferenças gerais quanto à composição literária bem como a semelhança na visão crítica da realidade, deve-se ressaltar o quanto há de arbitrário na distinção entre escritores “sociais” e “intimistas” adotada pela crítica da época. Esta tendia, por sua visão estética mais estreita, a julgar as obras sem uma análise que pudesse estabelecer as relações adequadas entre forma literária e processo social. Esquecendo-se de que mesmo os traços mais profundos da subjetividade têm relação com a objetividade do social, a crítica frequentemente se apegava aos aspectos mais patentes do texto, o que influenciava tanto na classificação quanto no valor atribuído às obras. 4 Graciliano Ramos. O romance de Jorge Amado. In:____. Linhas tortas. Cf. p.93. 5 Idem.

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profundidade literária, mais alcançada pelo modo de construção que pelo tema em si.

Segundo Graciliano, ao apresentar o ódio dos de baixo pelos ricos, a narrativa de Suor

pecaria pelo discurso excessivamente politizado, ou seja, o próprio Jorge Amado (já

ligado ao Partido Comunista desde 1933), emprestando sua voz em certos momentos,

privaria o romance de um andamento mais natural, traço a ser compensado por outras

belas passagens de discurso mais espontâneo. Nesse sentido, o trecho abaixo, no qual se

verifica a relação entre discurso romanesco (mediado) e discurso político (dirigido), dá

uma boa medida da visão literária do escritor alagoano:

Tudo natural quando os pobres se manifestam em palavrões de gíria, quase sempre numa linguagem obscena em excesso, nada literária, está visto, mas que tem curso na Ladeira do Pelourinho e até em certos lugares de boa reputação. O autor falha, porém, nos pontos em que a revolta da sua gente deixa de ser instintiva e adota as fórmulas inculcadas pelos agitadores. As figuras de Álvaro Lima, do anarquista espanhol, do comunista judeu, não têm relevo, apesar de serem as mais trabalhadas. Quando elas aparecem, o livro torna-se quase campanudo, por causa das explicações, das definições que dão aos três personagens um ar pedagógico e contrafeito. O preto Henrique, as moças do terceiro andar, o mendigo, os fregueses da bodega do Fernández, as meretrizes, exprimem-se ingenuamente. Chega um desses homens, traduz a fala em linguagem política, de cartaz – e sentimos um pouco mais ou menos o que experimentamos quando vemos letras explicativas por baixo de desenhos traçados a carvão nas paredes. Não nos parece que o autor, revolucionário, precisasse fazer mais que exibir a miséria e o descontentamento dos hóspedes do casarão. A obra não seria menos boa por isso.6

Fica claro então para Graciliano o erro da primazia do político sobre o artístico,

de modo que suas observações a respeito de Suor poderiam muito bem ser aplicadas a

outros escritores “políticos” acostumados a ver a obra primordialmente como objeto de

panfletagem. Ainda a propósito de Suor, Graciliano destaca a intenção do escritor

baiano de atribuir ao personagem coletivo a primazia do enredo, o que relacionado à

passagem anterior reforça a ideia da necessidade de emancipação coletiva fora das

páginas. A observação de que “em Suor o personagem principal é o prédio” em

contraste com a ideia de que “o Sr. Jorge Amado embirra com os heróis”7 salienta essa

motivação.

A crítica de Graciliano ao livro pode também servir como mote para avaliarmos

a posição estética do alagoano, dentro da qual a figura do “herói” tem grande destaque,

visto centralizar muito da força narrativa de seus romances. É a partir da colocação do

6 Idem. Cf. p.95. 7 Ibidem, p. 96.

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personagem principal no centro de seu pequeno mundo (a cidade interiorana, a fazenda,

a lógica da interioridade etc.) que Graciliano explora inversamente a pequenez do

indivíduo diante de forças sociais e históricas às quais sucumbe. Não é à toa, por

exemplo, que um personagem como Paulo Honório – representante de uma elite agrária,

autoritário e responsável pelo sofrimento de diversas pessoas às quais impõe seu mando

– aparece também como vítima de um processo social e pessoal de reificação

influenciado por ele próprio.

Esse tipo de sutileza em explorar meandros psicológicos na construção do

personagem não poderia entrar nos planos de exercício literário de escritores “sociais”

cujo foco fosse unicamente a denúncia da realidade brasileira. Esse aprimoramento no

estudo das motivações do personagem individual, em que aspectos da sociedade se

ligam em profundidade com outras razões aparentemente motivadas por pura

idiossincrasia é parte de um trabalho consciente do escritor, para o qual a técnica sofreu

as devidas evoluções em cada um de seus livros. Não por acaso Antonio Candido

mencionou o fato de Graciliano “com extraordinário senso de problemas” fazer de seus

romances “experiências de vida ou experiências com a vida”8. Esse modo de conceber a

literatura levou o desenho das características do personagem rumo ao aprofundamento

psicológico e ao aproveitamento cada vez mais intenso do dado autobiográfico, como se

o estudo do personagem fosse determinante para o conhecimento que o autor pretendia

ter de si mesmo.

Luís Bueno compreendeu essa exploração da psicologia do personagem de

maneira muito interessante em termos da relação com o “outro”. Desse modo, na

sequência dos três romances em primeira pessoa (Caetés, São Bernardo e Angústia), o

outro passa a ter papel crescente no imaginário do narrador9.

Em Caetés, boa parte das ações dos personagens se organiza de modo a realçar

aspectos da personalidade ou dificuldades específicas de João Valério, o personagem

principal. O narrador-personagem não tenta grandes aprofundamentos psicológicos, até

porque sua crise se dá em grande medida pelo fato de buscar apenas ascensão social, o

8 Antonio Candido. Ficção e confissão. In:______. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Cf. p.93. Daqui em diante sob a sigla FC quando citada no próprio texto. 9 Luís Bueno. Uma História do Romance de 30. Cf. p.597-641.

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que acaba conseguindo de forma indireta como fica revelado ao fim da narrativa. Nesse

sentido, o romance que pretende escrever e não consegue aparece não só como prova de

sua incompetência literária, mas principalmente da pouca firmeza de seu caráter e de

seus propósitos, pois procura na literatura apenas seus dividendos, frágeis

compensações para sua posição social instável. Desse modo, a função do “outro” para o

protagonista seria a de reconhecer uma superioridade intelectual que o próprio João

Valério sabe não possuir. Nesse sentido, a crítica de João Valério ao meio em que vive,

realmente social e economicamente injusto, aparece distorcida por uma perspectiva

meramente individualista. A propósito de sua atitude literária, ao fim da narrativa, diz:

Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacurau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivo que me atiram para a cama, embrutecido e pesado... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem... Explosões súbitas de dor teatral... logo substituídas por indiferença completa...Admiração exagerada às coisas brilhantes, ao período sonoro, às miçangas literárias, o que me induz a pendurar no que escrevo adjetivos de enfeite, que depois risco... (RAMOS, G., 1986b, p.222)

Graciliano decide realçar essa personalidade inconstante do narrador-

personagem pelo quase apagamento das demais figuras (com a exceção talvez única de

Luísa), proporcionando uma adequação formal sensível às atitudes concentradoras e

mesquinhas do protagonista.

Em São Bernardo, Paulo Honório, fazendeiro acostumado a pisar os outros e a

compreendê-los apenas como meios de atingir seus próprios objetivos, passa senão por

uma transformação profunda em seu modo de compreender o “outro”, ao menos por

uma crise que abala a concepção de si mesmo e de seus atos.

A responsabilidade pelo suicídio da esposa Madalena, mulher educada e

sensível, não chega a martirizá-lo com uma culpa insuportável capaz de levá-lo também

ao suicídio, mas é suficiente para fazê-lo compreender a falta de sentido de toda sua

vida até então. O objetivo de ser proprietário da fazenda São Bernardo, alcançado por

uma lógica implacável, bem como o modo de desenvolver a fazenda produtivamente

aparecem em sua narrativa como os meios de seu próprio processo de animalização.

Está consciente, porém, que àquela altura da vida a mudança não é mais possível e, caso

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fosse, também não representaria grande benefício para si. A propósito da situação dos

trabalhadores de sua fazenda, diz Paulo Honório:

Para ser franco declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou. (RAMOS, G., 1988, p.187)

A crise de Paulo Honório é maior que a de João Valério, pois chega a mexer

com valores aparentemente inabaláveis desde o início da narrativa. Valério nunca chega

a enveredar pelo questionamento profundo de sua própria vida, contentando-se com o

verniz social e abandonando qualquer projeto literário quando assume a condição de

sócio do armazém no qual trabalha. O máximo que o narrador de Caetés nessa

circunstância decide fazer é se desculpar, como vimos no trecho citado anteriormente e,

mesmo assim, conserva algo da hipocrisia de quem, agora bem posicionado, nem se

sente tão obrigado a fazê-lo. Paulo Honório, entretanto, chega a contrapor a atitude de

Madalena à sua de tal forma que, a partir dessa convivência, Graciliano precisa adequar

a forma do texto para dar conta da mudança no seu comportamento, o que é um grande

mérito literário do escritor. Se na primeira parte do livro, a narrativa se desenvolve no

ritmo da própria atitude ambiciosa e empreendedora de Paulo Honório, na segunda, o

ritmo mais lento é a própria representação de uma mente já em dúvida e, por isso,

incapaz de atos igualmente afirmativos10. O trecho abaixo mostra como, passados os

anos, a figura de Madalena deixou suas marcas:

Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins... Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio. (RAMOS, G., 1988, p.187)

Paulo Honório, assim como João Valério, tenta encontrar desculpa para seus

atos: a profissão. Certa dureza de sua posição, mesmo depois de todos os

acontecimnetos, se deve à personalidade de homem rude (não obstante ser um indivíduo

intelectualizado em sua classe: “sou versado em estatística, pecuária, agricultura,

10 João Luiz Lafetá. O mundo à revelia. In: Ramos, Graciliano. São Bernardo. Cf. p.189-213

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escrituração mercantil...”, p.10-11) , acostumado desde quando era empregado da

fazenda a entender os homens como bichos, uns mais fortes, que mandam e outros mais

fracos, que obedecem. Quando percebe que Madalena não pode ser submetida, como

faz com todos, já é tarde demais para tomar alguma atitude. Portanto, ao reconhecer

seus erros, Paulo Honório não tem traço de hipocrisia, como João Valério. Além disso,

de certa forma o êxito intelectual conseguido por Paulo Honório é maior que o de João

Valério, pois o modo como arruinou sua vida se transforma efetivamente em obra

literária, enquanto Valério não consegue dar forma ao romance histórico sobre os índios

Caetés.

Já em Angústia, a posição ocupada pelo “outro” no imaginário do narrador Luís

da Silva é enorme. Quando age e pensa, leva em consideração a suposta opinião alheia,

ainda que por uma lógica distorcida. Como homem derrotado pela falência material do

avô e do pai, vê-se obrigado a ir para Maceió tentar a sorte. Sua crise se dá em grande

medida por ser um intelectual frustrado, obrigado a escrever artigos sob encomenda e a

conviver com a rotina de funcionário público.

Dos três primeiros romances, Luís da Silva é o único narrador cujo

posicionamento é minimamente crítico em relação à sociedade, uma vez que João

Valério apenas espera a possibilidade de ascender socialmente, enquanto Paulo Honório

é claramente beneficiário da exploração do trabalhador. Luís da Silva, entretanto, não

deixa de ter certa admiração pelo bacharel Julião Tavares, seu rival, sujeito gordo e de

hábitos burgueses, que acaba tomando sua namorada, Marina, atraída pela possibilidade

de uma vida farta. Luís da Silva admira certa desenvoltura de Julião mesmo odiando sua

presunção de indivíduo bem colocado na vida. Portanto, Luís da Silva carrega um

estigma agravado pelo fato de até o sexo lhe ser negado. A forma na qual Graciliano

organiza esses impasses é a do comportamento obsessivo do personagem principal. As

memórias da infância retornam constantemente, misturando-se ao presente da narrativa

e ao passado mais recente, mais especificamente aos motivos que o espicaçam a matar

Julião Tavares, ao momento do crime e à posterior sensação de inutilidade de seu ato.

Nesse sentido, o início da narrativa é bastante exemplar, pois mostra bem a dificuldade

de um homem tentando organizar suas ideias. Enquanto João Valério vai diretamente ao

relato e Paulo Honório leva apenas cinco páginas para definir os problemas relativos à

escrita de sua obra, Luís da Silva começa sua narrativa de maneira tortuosa,

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reproduzindo a própria dificuldade de quem tenta recomeçar a vida após seu crime que,

de início, o leitor não conhece. O entrecruzamento de passado e presente nos faz levar

algum tempo para compreender a linha narrativa, precisando às vezes retomar alguns

parágrafos para organizar a relação entre os episódios. Do início da narrativa até a

primeira pausa (graficamente marcada ao final por três asteriscos) são pouco mais de

duas páginas onde há um atropelo de informações no qual se misturam lugares (rua,

livraria, a repartição) e pessoas (Vitória, Marina, Dr. Gouveia, Moisés e Julião Tavares),

todos mencionados de passagem. Com isso, a forma reproduz o estado psicológico do

narrador e ficamos com a nítida impressão de um indivíduo atormentado, sem, no

entanto, sabermos muito sobre sua vida:

Não consigo escrever. Dinheiro e propriedades, que me dão sempre desejos violentos de mortandade e outras destruições, as duas colunas mal impressas, caixilho, dr. Gouveia, Moisés, homem da luz, negociantes, políticos, diretor e secretário, tudo se move na minha cabeça, como um bando de vermes, em cima de uma coisa amarela, gorda e mole que é, reparando-se bem, a cara balofa de Julião Tavares muito aumentada. Essas sombras se arrastam com lentidão viscosa, misturando-se, formando um novelo confuso. Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas. (RAMOS, G., 1986a, p.9)

Em seguida, trechos enormes da infância são recuperados e o presente aparece

aqui e ali nas brechas do passado, uma inversão representando o desejo de fuga

impossível de se realizar (“Se pudesse, abandonaria tudo e recomeçaria as minhas

viagens”, p.9).

O sentimento de opressão vai se agravando ao longo da narrativa com a presença

da infância do narrador que, em grande medida, é a do próprio Graciliano como vemos

relatada em Infância, sua primeira autobiografia. O acúmulo de imagens da fazenda

onde viveu (a imagem do pai morto, uma corda, a cobra enroscada no pescoço do avô

etc.) reforça o desejo de matar Julião. E na figura de José Baía, capataz da fazenda, Luís

da Silva acha forças para o ato fatal.

Vemos, com isso, que Luís da Silva, homem obsessivo, ao mesmo tempo que

cria uma realidade apartada do real, é invadido de modo marcante pelo “outro”, não

chegando, entretanto, a construir sua própria identidade de maneira equilibrada.

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Podemos dizer, portanto, que os romances de Graciliano – ao apresentar a

atitude de cada protagonista como variável na relação com o “outro” e manter sua força

concentradora do enredo – viabilizaram também um tipo de leitura mais atenta nos

traços psicológicos, mesmo talvez não sendo essa a intenção do próprio escritor,

criticamente mais próximo da vertente “social”. Por esse motivo, sua obra não foi

totalmente condenada pelos “intimistas”, interessados em sua complexidade na

abordagem das relações humanas e nos demais aspectos capazes de extrapolar o

explicitamente político.

Graciliano por sua vez não condenava a literatura “intimista” em geral; apenas

alertava que os maus intimistas – assim como outros escritores de uma literatura

rançosa, nos moldes oficiais e ligada à estética das três primeiras décadas do sécu-

lo XX – falseavam a realidade e, portanto, deviam ter sua escrita desmistificada. Prova

do grande equilíbrio de sua posição foi seu depoimento à Revista Acadêmica (1940) por

ocasião da escolha dos dez melhores romances da década, figurando em sua lista não só

obras de escritores “sociais”, mas também de “intimistas” como Cyro dos Anjos e Lúcia

Miguel Pereira11.

Em meados da década de 40 reafirma suas posições. Com distanciamento crítico

ainda mais apurado, retoma sua crítica aos colegas “sociais” com o argumento

materialista de que faltava ao romance social – já atento para as questões sociais e

políticas – a consideração do aspecto econômico, sem o qual estas primeiras questões

perdiam sua base. Após tomar por referência a literatura de Balzac, em que toda sorte de

tipos não aparece sem a representação da estrutura econômica da cidade de Paris,

Graciliano aponta falhas em nossa literatura:

Lendo certas novelas, temos o desejo de perguntar de que vivem as suas personagens. Está claro que os autores não conseguem furtar-se a algumas explicações referentes a este assunto, mas fazem-no como quem toca em matéria desagradável, percebemos que eles se repugnam e não querem deter-se em minúcias. Um cidadão é capitalista. Muito bem. Ficamos sem saber donde lhe veio o capital e de que maneira o utiliza. Outro é agricultor. Não visita as plantações, ignoramos como se entende com os moradores se a safra lhe deu lucro. O terceiro é operário. Nunca o vemos na fábrica, sabemos que trabalha porque nos afirmam que isto acontece, mas os seus músculos nos aparecem ordinariamente em repouso. Não surpreendemos essas pessoas no ato de criar riqueza. A riqueza surge criada, como nas histórias maravilhosas, faz-nos pensar no deserto, onde o

11 Luís Bueno. Uma História do Romance de 30. Cf. p.416.

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povo eleito recebia o alimento do céu. Torna-se irreal, misteriosa – e como é indispensável à existência humana, irrealidade e mistério transmitem-se aos indivíduos que circulam na maior parte dos livros nacionais.12

A fim de ilustrar seu argumento, em si já bastante convincente, Graciliano, assim

como fizera dez anos antes, escolhe a obra de Jorge Amado como exemplo:

Testemunhas do conflito em que se debatem o capital e o trabalho, os romancistas brasileiros nos apresentam ora o capitalista, ora o trabalhador, mas as relações entre as duas classes ordinariamente não se percebem [...] E, não tendo visto o operário no serviço, dificilmente acreditamos que ele manifeste ódio a um patrão invisível e queira vingar-se. Em Suor, de Jorge Amado, as personagens descansam ou se exercitam nos movimentos de greve, e em Jubiabá mexe-se uma gente vagabunda, que vive de pequenos furtos e contrabandos. O trabalho aparece aí quase como um prazer e torna meio inconsequente esse livro notável, que tem passagens como a sentinela de defuntos, uma das melhores páginas escritas no Brasil.13

Agora em 1945 (já ao fim do Estado Novo, portanto), a retomada da crítica a

Jorge Amado é oportuna não só em si mesma, mas porque dando balanço de uma

geração de escritores Graciliano afinou o argumento em outra direção. Ressaltando a

atitude de certos “intimistas” os quais, a partir do início do Estado Novo recuaram ainda

mais em relação a posições críticas do início da década, o escritor pôde revelar que sob

certos aspectos estéticos – ligados a motivações mais profundas do caráter ideológico de

classe inconscientemente reproduzido pelo escritor brasileiro na forma literária – os dois

lados não se diferenciavam tanto como gostariam. Nesse sentido, o ensaio a certa altura

volta a atenção a alguns “intimistas” que, naturalmente incorrendo no mesmo erro,

apenas de modo mais grave, confirmam a tendência de grande parte dos escritores da

época:

Acontece que certos escritores se habituam a utilizar em romance apenas coisas de natureza subjetiva. Provavelmente há o receio de que, sendo comércio e indústria, oferta e procura, etc. vistos muito de perto, a questão social venha à baila. Deve existir também um pouco do velho preconceito medieval que jogava para um plano secundário os produtores. Como quer que seja, vemos aqui nos livros uma pequena humanidade incompleta que às vezes sente e pensa, mas é absolutamente desprovida das necessidades essenciais. Com certeza os nossos autores dirão que não desejam ser fotógrafos, não têm o intuito de reproduzir com fidelidade o que se passa na vida. Mas então por que põem nomes de gente nas suas idéias, por que as vestem, fazem que elas andem e falem, tenham alegrias e dores? Pode efetivamente haver grandeza nesses monstros, mas é inegável que são monstros. Abandonando os fatos objetivos, investigando exclusivamente o interior dos seus tipos, alguns escritores geraram uma fauna de seres estranhos em que há um pouco de homens, muito de espíritos e demônios.14

12 Graciliano Ramos. O fator econômico no romance brasileiro. In: ____. Linhas tortas. Cf. p.254-255. 13 Idem. p.255. 14 Ibidem. p.256.

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Se os escritores “sociais” falhavam na tentativa de apresentar o país real, alguns

“intimistas” cada vez mais fugiam deste de modo consciente, o optando por um viés

cada vez mais puramente especulativo ou espiritualmente vazio, o qual viria a ter

continuidade em alguns poetas da geração de 45.

Não obstante a crítica mais acerba a quem optava pela criação de “monstros”, a

reunião dos dois grupos mediante uma crítica materialista mais rigorosa mostra a

capacidade de matização da análise literária do escritor alagoano. Por outro lado, aponta

para uma problemática maior de ordem histórica e política, a saber, a cooptação de

intelectuais aos quadros do Estado Novo, não sendo evidentemente o caso de Jorge

Amado, que permaneceu fiel ao comunismo, sendo inclusive eleito deputado federal por

São Paulo pelo Partido Comunista no ano da publicação do artigo de Graciliano (1945).

De qualquer modo, lendo nas entrelinhas, a proximidade dos dois grupos em

termos de apagamento literário do fator econômico (não percebida por muitos daquela

época) aparece mais clara sob a luz desse fenômeno maior, responsável em muitos casos

por uma acomodação política (do já abrandado aspecto de classe do escritor brasileiro

em geral), a qual dificultou a aparição de obras formalmente mais adequadas à

representação de nossa realidade, impulsionando boa parte de nossa literatura a um

recuo até posições acríticas e pré-revolucionárias.

1.2- A passagem à autobiografia

A propósito da trajetória literária de Graciliano, Antonio Candido ressalta que a

certa altura ocorre uma mudança, correspondendo à passagem da “necessidade de

inventar... à necessidade de depor”, fator que teria levado o escritor a abandonar o

romance em favor da autobiografia de modo natural, podendo assim manter “visões

igualmente válidas da vida e do mundo”15.

15 Antonio Candido. Os Bichos do subterrâneo. In: Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Cf. p.103.

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Na perspectiva de Antonio Candido, desde o início da carreira como romancista

já estaria contido em Graciliano o desejo de testemunhar sobre si mesmo, sendo

marcado pela projeção de seus problemas pessoais nos personagens, de modo que o

resultado literário seria a deformação artística dele próprio. O crítico atribui essa

deformação em grande medida ao resultado de um processo que viria da infância do

escritor, período sabidamente marcado pela solidão e pela dificuldade de

relacionamento com os pais, mais especificamente com o pai, cujo uso costumeiro do

cinturão em suas punições injustas (fato relatado em Infância), teria criado no ainda

muito jovem Graciliano o sentimento duro da injustiça, sendo depois projetado nas

demais relações sociais como uma marca fundamental.

Essa condição seria responsável por uma visão “pessimista” e “sórdida” dos

homens, não impedindo, no entanto, a possibilidade de aproximação solidária com eles

por meio da oposição comum aos valores instituídos pelo poder, essencialmente

contrários à liberdade do homem. Nesse sentido, o escritor teria desenvolvido de

maneira muito aguda o sentimento de que a norma é o mal e somente o afastamento dela

poderia de algum modo restituir certa humanidade aos indivíduos. Com base nessa

conjunção de fatores, a visão estabelecida na escrita de Graciliano seria a de uma

evolução com sentido cada vez mais agudo dos problemas humanos tratados. Sendo

assim, cada obra representaria uma experiência de vida distinta, daí o escritor não se

repetir formalmente a cada livro.

Podemos dizer com isso que Graciliano foi um experimentador no melhor

sentido do termo ao contrário de outros romancistas de seu tempo, mais preocupados

com a comunicação direta de visões políticas ou religiosas. Estes, descuidando do

aspecto formal ou, em outros casos, tendo desenvolvido um modelo narrativo “ideal”,

não se renovavam em termos formais. Estando claro para Graciliano o modo como a

literatura deveria representar a realidade, percebia que essa ligação seria bem sucedida

apenas se realizada através de mediação, pois reconhecia a autonomia da obra literária,

cujo valor estético entendia como relacionado a critérios específicos da elaboração

artística.

Tendo chegado talvez em certo limite de seu interesse pelo romance (Angústia,

se considerarmos o nível de recurso à memória do próprio escritor; Vidas Secas, caso

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consideremos o extremo da composição romanesca já como montagem de fragmentos)

Graciliano envereda pela autobiografia. Antonio Candido fala em “molde apertado e

incompleto” (FC, p.90) ao se referir ao modo como Graciliano via o romance, daí a

mudança de gênero a fim de poder dar vazão às suas largas necessidades expressivas.

Em Infância, ainda prevaleceria segundo o crítico o traço romanesco forte, fruto da

dificuldade natural de se reconstituir fatos ocorridos em tão tenra idade, o que exigiria

uma transposição literária com relativo esforço criativo e solicitaria amplo uso da

linguagem à maneira ficcional, resultando numa obra cuja composição fragmentária, de

capítulos temáticos com certa frouxidão conectiva, seria o correlato estrutural das

diversas limitações impostas ao processo de composição da obra.

Não obstante essas explicações ligadas aos aspectos afetivos, a análise de caráter

pessoal sobre a evolução do romance de Graciliano deixa de considerar a trajetória

ocupacional do pai do escritor, cuja variação de profissões (proprietário de pequena

fazenda de gado, pequeno comerciante e juiz substituto do interior) refletiu sua tentativa

de evitar o rebaixamento socioeconômico devido à posição decadente da família dentro

das elites agrárias.

Em primeiro lugar, essa condição afastou Graciliano de qualquer possibilidade

de assumir o comando dos negócios da família; em segundo, propiciou a experiência de

distanciamento dos valores originários de seu clã, permitindo-lhe ver com maior clareza

o jogo de interesses dentro de sua própria classe. Portanto, pode-se dizer que acima de

uma consciência política de esquerda, os romances do escritor transfiguram

literariamente algo de suas próprias vicissitudes. Nesse sentido, mesmo Vidas secas, já

claramente posicionado na crítica social mais aguda, não deixa de lhe dizer respeito,

pois ali o distanciamento crítico conseguido em relação ao passado, adotando um

personagem de uma classe mais baixa que a sua própria (inclusive com a mudança da

voz para a terceira pessoa), mostra como o escritor experimentava literária e

politicamente um afastamento cada vez maior da realidade de seus ancestrais.

Retomando a visão de Antonio Candido, no caso da interpretação de Memórias

do cárcere vemos o crítico ressaltar o afastamento definitivo do viés da criação e a

concentração no puro depoimento. O crítico entende as Memórias como o relato de

experiências em alguma extensão contrárias às expectativas do escritor, como por

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exemplo, a inesperada solidariedade entre os homens, verificada na vida subterrânea da

prisão. Nesse sentido, suas crenças se chocavam com a nova realidade, formando uma

visão de mundo mais complexa, permitindo aflorar o sentimento de solidariedade no

próprio escritor.

Na visão do crítico, o grande peso atribuído à personalidade do escritor é

responsável, em última instância, por sua visão política. Desse modo, o sentimento de

insatisfação diante das iniquidades estaria vinculado a uma posição formada antes

mesmo de qualquer adesão ao comunismo. Com isso, a ligação ideológica com o

comunismo se faria como atitude natural, simples prolongamento de sua visão de

mundo, e não como atitude baseada em sectarismo político. Assim, “um desajuste

essencial” (FC, p.99) seria o responsável pela necessidade de protesto bem como de

autoavaliação observado com especial intensidade nas Memórias do cárcere.

Essa concepção de Antonio Candido sobre a obra de Graciliano (marcada por

considerações de base psicológica ou psicossocial), ao atribuir a realização e os trajetos

da obra literária aos aspectos da personalidade do escritor, possibilita um entendimento

importante sobre características gerais, portanto unificadoras, do modo peculiar do

escritor alagoano fazer literatura. Além disso, ilumina aspectos contraditórios da vida do

escritor, ajudando a afastar qualquer visão simplista que o reduza a homem totalmente

endurecido pela vida, pois apresenta sua visão crítica do mundo como resultado de uma

rica experiência e, principalmente, como seu modo pessoal de nele se inserir e resistir ao

existente. O ensaio de Antonio Candido consegue, desse modo, ir muito além de sua

intenção panorâmica aprofundando-se em análise cuidadosa, além de levantar diversas

questões importantes para estudos posteriores.

Essa visão da obra de Graciliano é conformada dentro da metodologia analítica

própria ao ensaísmo dos anos 30 – em especial aquele marcado pela influência de

Sérgio Buarque de Holanda e seu Raízes do Brasil – com suas dualidades organizadas a

partir de aspectos ligados à nossa formação histórica, como as oposições Mundo

novo/velha civilização, método/ improviso, trabalho/aventura, norma impessoal/aspecto

afetivo etc. Com efeito, essa abordagem baseada em dicotomias permitiu em geral aos

ensaístas da época uma interpretação das linhas gerais de nossa realidade. É daí que

Antonio Candido descobre na obra de Graciliano as componentes de controle

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(equilíbrio) e desvario (desequilíbrio). A primeira apareceria no estilo conciso e sem

apelo ao sentimentalismo, a segunda estaria ligada às emoções perceptíveis em diversos

graus dentre os diferentes personagens. Em Caetés, seu primeiro romance, as emoções

estariam fortemente sublimadas devido à intenção do escritor em forjar seu estilo; em

São Bernardo já ocorreria certa revelação emotiva por parte de Paulo Honório, no

entanto, sublimada pela impossibilidade de mudança efetiva por parte do protagonista

àquela altura da vida; em Angústia (último dos romances em primeira pessoa), o

desvario finalmente transbordaria, mas guiado pelo estilo que poria ordem ao caos dos

sentimentos do protagonista Luís da Silva.

Partindo do ponto de vista adotado por Antonio Candido, pode-se relacionar essa

crescente expansão do desvario com o próprio incremento da “necessidade de depor”

até o ponto em que seria necessária uma obra como Memórias do cárcere para dar

vazão à expressividade não mais ajustável aos moldes apertados do romance. Esse tipo

de observação está de acordo com o aspecto psicológico marcado da análise de nosso

crítico e segue na esteira da ligação homem-obra por ele cuidadosamente apresentada.

Por outro lado, a dialética de Antonio Candido em Ficção e confissão, ao

aproveitar a polaridade exposta em Raízes do Brasil, deixa de contemplar (ou pouco

aproveita) justamente o que no ensaio sociológico é essencial: o caráter histórico-social

do tema abordado. Mesmo quando o crítico chega a referir a ligação entre a “atitude

política” e a arte de Graciliano (FC, p.94), o argumento envereda por uma visão mais

geral da personalidade do escritor, de modo que quando o foco são as Memórias do

cárcere não é mencionado o período em que o escritor ficou preso, ficando a análise

apoiada na dialética dos fatores pessimismo/solidariedade: o primeiro, marca de toda a

obra do escritor; o segundo, compensação do primeiro e possível devido ao inusitado da

situação extrema na prisão, que permite ao homem Graciliano agir de modo diferente do

habitual.

Tomando por base essa pouca presença do caráter histórico-social na análise da

obra, a própria ideia de pessimismo (atribuída à visão de mundo de Graciliano em

repetidas passagens de Ficção e confissão), ficando mais presa aos aspectos imutáveis

da personalidade do escritor, torna-se parcialmente elucidativa por não considerar as

novas realidades históricas e pessoais como fatores igualmente determinantes da forma

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literária, o que solicita visões complementares, principalmente no caso da análise

específica de uma obra autobiográfica como as Memórias do cárcere.

Ainda sobre o pessimismo na obra de Graciliano Ramos, Antonio Candido já na

década de 80 – em mesa-redonda da qual também participaram Alfredo Bosi, Silviano

Santiago, entre outros16 – reforça seu argumento sobre o escritor alagoano. O crítico

afirma que Graciliano inconscientemente fez parte de um processo no qual a literatura

da década de 30 esteve inserida (“processo cultural um pouco caótico, mas

extremamente generoso; um processo cultural que radicalizou muito o pensamento, não

do Brasil em geral, mas da classe média brasileira.”17), visto não ter assumido

claramente um programa, ao contrário de outros escritores, o que não o impediu de

pertencer ao mesmo contexto geral de radicalização, com o qual estavam especialmente

envolvidos os romancistas do Nordeste. Com isso, foi capaz de mostrar sem

dogmatismo “uma imagem dura da realidade segundo um padrão formal duradouro”18, a

qual, segundo o crítico, correspondia ao pessimismo do escritor na vida e na literatura.

Em sua exposição, Antonio Candido, mantendo a ideia central da crítica anterior

(Ficção e confissão), traz o argumento para o lado do “processo cultural”, afirmando

que Graciliano, dentro do conjunto de escritores preocupados em dar status de

dignidade ao homem simples, era o mais bem sucedido exatamente por não se render ao

populismo de uma aproximação mais fácil, como fizeram José Lins do Rego e Jorge

Amado, os quais adotaram uma linguagem que fazia concessão à rusticidade da fala

popular. Percebe-se então que o argumento atinge o campo da relação não só das classes

sociais (classe média e os pobres), mas se dirige ao específico da condição cultural, em

que a consciência de Graciliano sobre sua posição de intelectual (apesar de sabermos

que ele frequentemente a denegava) tinha peso decisivo na maneira como dispunha da

linguagem em seus escritos.

Estas novas considerações de Antonio Candido não o fazem abandonar a visão

anterior, apenas fazem vislumbrar novas possibilidades analíticas que, no entanto,

ficariam a cargo de outros estudiosos, pois o mais interessante para o crítico na

16 Mesa-redonda. In: José Carlos Garbuglio et al. Graciliano Ramos: Antologia e Estudos. Cf.p.417-454 17 Idem, p.426. 18 Ibidem, p.426.

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literatura de Graciliano é entender como o escritor transforma em linguagem níveis de

perscrutação cada vez mais severos sobre as razões profundas dos atos do indivíduo.

Dessa nova combinação de argumentos surge um traço afetivo marcante no tom

da fala do crítico. Por ter vivenciado na juventude a trajetória literária de Graciliano e o

contexto das grandes mudanças no cenário literário posterior à “Revolução” de 30

(“Naquela época, quando a gente lia uma banalidade como “a literatura precisa voltar-se

para o social”, era um choque espantoso! que fazia tremer as fibras!”, GARBUGLIO,

1987, p. 425), sua visão da época contém um elemento de proximidade por meio do

qual avalia aquela reviravolta processada desde o Modernismo de 22 e que após 1930

encontrou o chão histórico para inclusive possibilitar aos “escritores sociais” seguirem

pelo caminho aberto pelos predecessores.

Na mesma mesa-redonda, Silviano Santiago, ao concordar em linhas gerais com

a ideia de pessimismo veiculada por Antonio Candido – que curiosamente até aquela

altura do debate não utilizara o termo (bastante recorrente, como já dissemos, em

Ficção e confissão) –, envereda por um caminho mais específico ao tratar do que ele

considera o pessimismo dos textos de Graciliano.

Silviano Santiago acreditava que àquela altura (década de 80) o ciclo do

Modernismo estava na iminência de se encerrar e poderia ser avaliado pelos intelectuais

mais jovens de um ponto de vista mais crítico. Estas observações aparecem como parte

de uma concepção estético-política distinta. Naturalmente, Silviano não negava a

importância do movimento Modernista, mas criticava o fato de todos os seus membros

terem aderido a uma concepção ideológica do progresso ao imaginar o país como

destinado a encontrar seu lugar ao sol entre as nações industrializadas:

Acho que a impiedade do balanço vai ser em demonstrar que todos estavam, mais ou menos, comprometidos com o projeto de modernização do Brasil, todos tinham uma mente desenvolvimentista, em todos a necessidade de atualização era capital e todos queriam fazer com que o Brasil entrasse na História, e numa História que seria pura industrialização.19

A objeção a uma crença ingênua no progresso poderia ser feita com base na

literatura do próprio Graciliano, o único, segundo o crítico, a não se iludir com o projeto

de modernização. De fato se avaliarmos Graciliano em sua relação, por exemplo, com 19 Ibidem, p.423.

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os modernistas e seus epígonos, veremos que certos desentendimentos sobre aspectos

literários e linguísticos de primeiro plano indicavam em última instância divergências

políticas mais profundas, as quais estavam relacionadas ao modo como cada uma das

partes compreendia a evolução da realidade brasileira. A quebra sistemática de regras

gramaticais – utilizada por certos modernistas com o objetivo de aproximar a literatura

da fala popular – era um desses aspectos causadores de mal-estar no escritor alagoano.

Aliás, Graciliano tinha especial desgosto pela ideia da Gramatiquinha (de Mario de

Andrade), como se lê em sua crônica Uma palestra, de fevereiro de 1952, mostrando

como sua posição se manteve inalterada até o fim da vida:

Temos o direito de achar desagradáveis as palavras que nos impingiram na infância, a maneira de flexioná-las e juntá-las. Mas é com essa matéria-prima, boa ou má, que fabricamos os nossos livros. No Brasil, nesse infeliz meio século que se foi, indivíduos sagazes, de escrúpulos medianos, resolveram subir rápido criando uma língua nova do pé para a mão, uma espécie de esperanto, com pronomes e infinitivos em greve, oposicionistas em demasia, e preposições no fim dos períodos. Revolta, cisma, e devotos desse credo tupinambá logo anunciaram nos jornais uma frescura que se chamava “Gramatiquinha da fala brasileira.” Essa gramatiquinha não foi publicada, é claro: não existe língua brasileira. Existirá, com certeza, mas por enquanto ainda percebemos a prosa velha dos cronistas. De fato, na lavoura, na fábrica, na repartição, no quartel, podemos contentar-nos com a nossa gíria familiar. Seria absurdo, entretanto, buscarmos fazer com ela um romance. Às vezes a expressão vagabunda consegue estender-se, dominar os vizinhos, alargar-se no tempo e no espaço.20

Partindo de uma visão simplista, que considere a seco meras transformações

linguísticas como forma de vanguardismo literário, pode-se entender a posição de

Graciliano como um modo de defender uma escrita supostamente pura, erudita, o que

não é verdade. Se por um lado o escritor cultivou obsessivamente a correção gramatical

– fato já bem conhecido pelos diversos relatos de críticos e amigos – construindo uma

escrita “clássica” para os padrões modernos, também incluiu, por exemplo, expressões

arcaicas remanescentes na realidade interiorana, trabalhando-as de modo a não se

tornarem mero atrativo literário, mas usando-as para exprimir de maneira objetiva, sem

qualquer amenidade o cotidiano e a cultura dos lugares representados. O resultado é

uma combinação única de linguagem matuta e discurso letrado, um meio-termo que

revela a mediação artística enquanto dá a mesma dignidade literária aos desprovidos de

instrução formal. Essa característica talvez tenha alcançado seu ponto alto em Histórias 20 Graciliano Ramos. Uma palestra. In: ____. Linhas tortas. Cf. p.275-276.

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de Alexandre, coletânea de histórias apanhadas do folclore nordestino, em que

Graciliano faz de Alexandre, homem de pouca instrução, um contador de “casos” de

expressividade natural aliada a um razoável domínio do português culto.

Vendo o problema por outro ângulo, deve-se considerar também o fato de o

escritor ter – salvo alguns casos mais específicos, como o de Manuel Bandeira – um

desapreço pela literatura dos modernistas em geral (e pela arte de vanguarda como um

todo), o que, naturalmente, constitui um erro. Seus modelos – muitas vezes lidos nos

originais quando ainda morava em Palmeira dos Índios – foram os franceses e russos do

século XIX, além de Eça de Queirós e Machado de Assis. A leitura dedicada e quase

exclusiva destes escritores – realistas ou naturalistas, portanto – guiou sua formação

cultural de autodidata (de “sertanejo ignorante”, como ele mesmo dizia) e explica em

grande medida seu apreço quase exclusivo por certos tipos de construção narrativa.

Desse modo, compreende-se que uma crítica como a exposta acima tem uma faceta

positiva ao revelar uma compreensão profunda de como ideologias se consolidam

através dos mecanismos da linguagem, enquanto, por outro lado, acaba por negligenciar

aspectos importantes da visão dos escritores modernistas, obviamente nem sempre

populistas, revelando uma atitude defensiva em relação a novas formas de criação

artística.

Se por um lado a utilização por Graciliano das formas convencionais de

expressão não deixa de ser um modo de aceitar os padrões dominantes da cultura, por

outro mostra sua compreensão de que no terreno mesmo da ordem é possível e

necessário compor formas discursivas capazes de desestabilizar noções preconcebidas

da realidade. Fatores como a linguagem clara e o aproveitamento do universo de valores

culturais ao qual tanto o intelectual como o cidadão comum têm acesso permitem o

alargamento do alcance de sua literatura na medida em que trata de temas de interesse

social amplo. Em seus romances, nos quais a linguagem sempre entra como um dos

temas de maior relevância (em Caetés, São Bernardo e Angústia os protagonistas

escrevem; em Vidas Secas Fabiano percebe que a linguagem representa poder para

quem a domina), o escritor usa o discurso dos protagonistas como meio de revelar

visões de mundo incapazes de se desvencilhar dos valores impostos pela tradição das

normas de convivência social. A partir daí, o escritor promove a crise e o impasse de

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seus protagonistas para veicular sua própria visão da realidade, fazendo a conduta

conservadora aparecer sempre em sua faceta nefasta.

Concomitantemente, Graciliano não deixa de entender a linguagem como um

processo dinâmico ao afirmar que a língua brasileira “existirá, com certeza, mas por

enquanto ainda percebemos a prosa velha dos cronistas”. Essa afirmação corresponde,

com efeito, a uma percepção dos aspectos arcaicos remanescentes na sociedade, de

modo a ressaltar o fato de as coisas em geral não mudarem nem na velocidade nem da

maneira que o senso comum costuma crer, daí sua preferência por representar em suas

obras a realidade primordialmente em seus aspectos de permanência (comportamentos

nocivos e repetitivos, mundos aparentemente sem saída, etc.). Essa é inclusive uma das

razões pelas quais o escritor foi considerado essencialmente pessimista, rótulo

geralmente rejeitado por ele com a alegação de não poder representar a realidade senão

da forma dura como ela se apresentava.

Sob essa perspectiva, no texto supracitado, apesar de Graciliano procurar manter

em primeiro nível a discussão exclusivamente em torno do uso do português, não deixa

de insinuar o populismo do “credo tupinambá” estampado nos jornais. A atitude dos

“indivíduos sagazes” corresponde, segundo Graciliano, a certa visão ufanista do povo e

do país encontrada em alguns escritores, cujo efeito visível é o anúncio de uma língua

nacional que marcaria nossa suposta identidade cultural. Dessa forma, depreende-se da

visão de Graciliano uma crítica em relação ao modo como certos literatos muitas vezes

tentam uma aproximação fácil com as camadas baixas, aparando arestas que deveriam

ser preservadas, tendo como resultado prático uma literatura que acaba fracassando em

sua tarefa de representação de uma realidade complexa e repleta de desigualdades como

a nossa.

Retomando a posição de Silviano Santiago, devemos dizer que – apesar das

observações pertinentes a propósito da compreensão de Graciliano sobre o perigo da

ideologia do progresso (compreensão por nós aqui reforçada) – o crítico colocou o

escritor numa posição praticamente isolada, um pouco diferentemente de Antonio

Candido, que o viu como singular em termos literários, mas inconscientemente

participante de um grupo em termos políticos, matizando sua posição de Ficção e

confissão. Nesse sentido, o pessimismo visto por Silviano Santiago na obra de

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Graciliano parece rumar a uma posição absoluta, segundo ele, incansavelmente

reproduzida pelos romances sob formas distintas, aspecto que – descontada a relação

entre infância e obra apontada por Antonio Candido – guarda traços de semelhança com

a visão de Ficção e Confissão, mostrando o quanto é necessário o trânsito dialético do

pensamento (aqui parcialmente realizado) a fim de se compreender as sutilezas da obra

do escritor alagoano.

Com uma visão mais ou menos próxima à ideia geral de pessimismo proposta

por Antonio Candido e Silviano Santiago, Alfredo Bosi, em seu livro Literatura e

Resistência, compreende as Memórias do cárcere como uma obra em que a experiência

do cárcere é narrada sempre com foco na impossibilidade de realização dos intentos do

Graciliano-personagem.

Para o crítico, apesar das afirmativas do narrador das Memórias de ser refratário

ao capitalismo, a narrativa é compreendida como a contemplação de “corpos sofridos”,

os quais emitem “farrapos de idéias” que em si mesmas pouco importam ao narrador.

Nesse sentido, a solidariedade inspirada pelos outros presos seria “existencial ou

estritamente corporal”. O crítico entende que o autor, arredio e perplexo, tem apenas

uma “visada tópica” da situação, detendo-se no horizonte da situação vivida, não

olhando ou mesmo avaliando os companheiros enquanto “sujeitos de um drama

político”, daí não empreender uma “explicação articulada” dos valores pelos quais

lutaram aqueles homens21. Se por um lado o escritor não visou a essa “explicação

articulada”, em nossa opinião não se pode exatamente dizer que nas Memórias ele não

enxergue seus companheiros e a si mesmo como tendo vivido intensamente um drama

político. De fato, como disse Bosi, as Memórias do cárcere não estão saturadas de

polêmicas e de juízos sobre as ideologias do tempo como os cadernos do cárcere de

Antonio Gramsci, aos quais ao menos parcialmente Graciliano teve acesso. Contudo, a

obra não nos parece limitada a narrar apenas a perplexidade do escritor diante da

inesperada realidade ou a dificuldade de comunicação, também mencionada por Bosi.

Se é certo existir na obra uma acentuada preocupação em narrar o assombro diante de

situações e atos até então impensados para um homem acostumado à sua vida mais ou

21 Alfredo Bosi. A escrita do testemunho em Memórias do cárcere. In:_____. Literatura e resistência. Cf. p.221-237.

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menos regulamentar – incluindo por vezes menção à própria passividade – deve-se notar

que o escritor não tinha intenção de fazer-se de vítima das circunstâncias ou falar da

situação geral da política no país com alarde, a qual nem por isso deixou de ser exposta.

O ato de gritar em “alto e bom tom” nunca foi atitude do escritor alagoano, pois

acreditava que “libelos terríveis” podem comportar “louvores indulgentes ou cegos”

(MC, p.12), como já ocorria a propósito da Nova República. Na condição de grande

romancista sabia muito bem que os fatos se esclarecem melhor a partir da aproximação

adequada das pequenas coisas, de modo a fazer vir gradativamente à tona a realidade do

todo. Ainda assim, deve-se ressaltar que indicações expressas do momento histórico e

das condições políticas como em “fascismo tupinambá” (p.12), congresso poltrão

(p.64), “Câmara prostituída” (p.396), etc., e a referência a diversas pessoas e instituições

– muitas das vezes acompanhadas da opinião (às vezes breve) do narrador – não deixam

de aparecer na obra nos momentos julgados cruciais à narrativa.

A preferência por tratar com maior relevo a vida cotidiana daqueles homens

tinha por objetivo recuperar a condição de humanidade à qual todos os presos (políticos

ou não) teriam direito, aspecto negado pelo governo e por boa parte da imprensa da

época. Vendo desse modo, o desejo do próprio Graciliano de as Memórias saírem

apenas em publicação póstuma (fato realmente ocorrido devido à sua morte precoce)

sugere não um desinteresse pela intervenção literária e política, como pode parecer à

primeira vista, mas antes o discernimento de que aquela experiência possuía algo de

exemplar e dizia respeito não só às condições específicas de seu cárcere, mas à própria

característica do estado de exceção, que nega firmemente direitos e distorce verdades,

fazendo do arbítrio generalizado sua moeda comum. Nesse sentido, o modo como

Graciliano construiu seu texto, desemaranhando o “novelo de casos... com lentidão”

(MC, p.13), demonstra sem qualquer vaidade uma intenção de deixar um testemunho

válido para a conscientização política de futuros leitores. Assim, a opção pela técnica de

compor a autobiografia com traços ficcionais, ajudando a reforçar a impressão de relato

com peso político diminuído, termina por se revelar um meio propício, talvez o único

possível ao escritor para revelar com precisão a realidade inverossímil à qual se viu

repentinamente amarrado.

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Retomando o argumento de Bosi, podemos dizer que o crítico passa brevemente

pelos aspectos políticos, mas sempre preservando a ideia central de pessimismo. Não é

exagerado supor que haja implicitamente em seu entendimento das Memórias uma

relação com Vidas Secas, obra cuja discussão naturalmente não poderia ser esquecida na

mesa-redonda (anterior à publicação de seu livro Literatura e resistência), tanto devido

a seu valor literário quanto à compreensão da realidade ali veiculada. A comparação

implícita, na qual a questão do pessimismo vem à tona, parece ocorrer exatamente no

reconhecimento em ambas as obras de uma espécie de caminho sem saída. Sabemos que

em Vidas Secas este é representado pelo círculo infernal em que vivem Fabiano e sua

família que, ao início da obra, mudam-se em busca da sobrevivência, passam por

dificuldades e privações extremas e, ao final se veem presos à mesma condição de

retirantes. No caso das Memórias, Bosi ressalta uma espécie de vivência repetitiva e

sofrida do Graciliano-prisioneiro, a qual sempre revela os obstáculos a impedi-lo de ter

um entendimento mais profundo dos fatos e um melhor conhecimento dos

companheiros de prisão. No que se refere à expressão afetiva, os sentimentos

recorrentes são, segundo o crítico, de “tédio à comunicação, aborrecimento, embaraço,

enfezamento, apoquentação, quizília, azucrinamento e, para tudo resumir,

infernização”22.

Nesse sentido, o foco do crítico em sua análise é a repetição, naturalmente

justificável, mas cuja exclusividade nos parece deixar de lado o progresso (apesar de

problemático) percebido por Graciliano na visão de si mesmo e dos homens. A narrativa

desse progresso, inicialmente feita pela crítica das semelhanças entre si mesmo e Luís

da Silva, seu personagem do romance Angústia, se transforma ao longo das Memórias

na comparação de si próprio com todos. Como ele próprio diz a certa altura: “Analiso-

me e sofro”. Desse sofrimento brota uma renovação em seus pontos de vista mais

arraigados o que, sem revelar propriamente otimismo, não deixa de se apresentar como

uma mudança relevante.

Na linha de análise de Bosi, a questão da comunicação nas Memórias teria um

papel crucial, assim como ocorre em Vidas secas. O crítico ressalta o distanciamento

existente entre a consciência precária de Fabiano e a crítica social do escritor, colocando

a posição do intelectual e a do homem simples num movimento de aproximação e

22 Idem, p.227.

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afastamento, distanciamento não ocorrido quando ele faz a comparação entre o

Graciliano-personagem e o Graciliano-narrador das Memórias. Naturalmente não

pretendemos uma analogia exata entre a ignorância de Fabiano e o desconhecimento de

certas realidades por parte do Graciliano-personagem, muito mais influenciado por

crenças pequeno-burguesas que o narrador pós-cárcere. No entanto, o distanciamento

possível nas Memórias – diferente em qualidade e em grau do de Vidas secas – deve

também ser ressaltado, pois nele aparecem as contradições do intelectual ou, mais

precisamente, seu processo de luta contra uma visão de mundo estagnada (algo diferente

do reconhecimento da realidade brasileira enquanto produto de relações sociais e

políticas imóveis), estabelecida desde a infância como apontou Antonio Candido em

Ficção e Confissão.

Bosi atenta para o fato de haver certa identificação entre a posição do escritor e a

mente de Fabiano quando ambos reconhecem (cada um a seu modo, naturalmente) a

dura divisão da sociedade em classes e a linguagem dominante enquanto enganadora.

Entretanto, imediatamente já afasta qualquer possibilidade de “fusão emotiva” entre

Graciliano e o povo, como ocorreu no caso de certos escritores modernistas e

regionalistas. O distanciamento, segundo ele, se devia ao fato de o povo viver numa

situação de dominação, o que só permitiria ao escritor lamentar e representar a realidade

a partir da ideia de mundo sem saída.23

Apesar de transplantar em grande medida a análise do romance para a

autobiografia, o próprio Bosi, de maneira interessante, nos dá a dica para um

posicionamento crítico diverso em relação às Memórias. Ao fechar o argumento sobre o

determinismo de Vidas secas, o crítico envereda por uma breve explanação de São

Bernardo. Além de reconhecer uma espécie de “escuridão” na obra de Graciliano,

advinda do fato de o escritor ser crítico tanto do projeto burguês quanto do folclorista

(ou populista), acompanha o argumento de Antonio Candido quando admite a

solidariedade do escritor com o pensamento radical surgido em 1930. Para Bosi, São

Bernardo representa a medida possível do caráter revolucionário na sociedade brasileira

de então através da figura de Madalena, cujo socialismo acabou por ser derrotado.

Segundo Bosi, a visão radicalmente crítica do escritor se deu por ele ter percebido muito

mais fortemente a continuidade de velhas estruturas de poder (na figura de Paulo

23 Mesa-redonda supracitada, p. 441.

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Honório) do que as mudanças sugeridas por um início de processo de modernização em

curso.

O argumento aqui faz jus à posição difícil na qual se equilibrava o escritor e, em

nossa opinião, já deixa entrever o fato de a “escuridão” ser muito mais um problema de

impasse das condições históricas que propriamente de visão pessimista (ou derrotista)

do próprio escritor. Para confirmar esse desvio o próprio Bosi resume o ponto,

sugerindo que a posição de Graciliano talvez “em 37 fosse outra e em 45 outra”, o que

dependeria “da evolução... da Revolução de 30”.24

Com efeito, podemos dizer que Graciliano possuía uma consciência profunda de

nosso atraso. Não se deixando levar por qualquer visão culturalista muito comum no

intelectual brasileiro, sua medida eram as condições reais de existência do indivíduo

espoliado, com as quais teve contato desde criança. Essa proximidade com a dureza da

exclusão social influenciou sua ideia firme de que a sociedade capitalista se organiza

efetivamente com base no roubo, daí a criação de figuras como Paulo Honório (o

“coronel ladrão e assassino”, baseado em pessoas conhecidas pelo próprio escritor) ou o

patrão de Fabiano, que sempre fica com uma parte de seu pagamento. Aliás, essa noção

de roubo em Graciliano vai muito além do aspecto econômico e aparece também nas

outras instâncias da vida individual e coletiva como fica claro, por exemplo, na já

mencionada exclusão linguística (e cultural) de Fabiano, impedindo-o de esboçar

qualquer questionamento diante da ordem estabelecida. Para Graciliano a realidade se

apresentava mais fortemente em seu imobilismo exatamente por compreender que a luta

contra as injustiças no país se travava em condições históricas de atraso, limitando a

possibilidade de ação do indivíduo ao mínimo. Guardadas as devidas particularidades,

permanece até hoje essa imobilidade social, uma vez que o progresso econômico e

tecnológico não tem evitado (e até tem promovido) historicamente a exclusão social de

contingentes significativos da população que, vivendo em condição de extrema pobreza

econômica e cultural, tem suas vidas voltadas apenas para a sobrevivência imediata, um

claro obstáculo a um processo de mobilização coletiva. Essa imobilidade (e até

regressão) promovida pelo progresso explica em grande medida a permanência do valor

da obra de Graciliano nas condições históricas atuais. Nesse sentido, a representação da

figura individual na obra de Graciliano se dá na condição de isolamento. Todos estão

24 Idem, p.441.

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isolados entre si e ao mesmo tempo juntos diante do império da realidade,

caracterizando uma representação dialética de nossos impasses históricos revividos de

maneira crônica.

Nas Memórias do cárcere por sua vez, em virtude do próprio caráter

autobiográfico, a tensão entre velhas e novas posições é o que mais salta aos olhos como

força construtiva do relato. Ao narrar um fato surpreendente, é comum Graciliano

combinar a visão do presente da escrita a uma tentativa de reproduzir no leitor algo do

sentimento do prisioneiro. Decorre disso que o grau de ficcionalização varie bastante

dentro da narrativa, indo do relato sóbrio a momentos em que percebemos claramente a

intenção de recriar determinadas sensações ou recompor a atmosfera de um determinado

lugar. Esse grau maior ou menor de ficcionalização parece corresponder em parte ao

receio do escritor de tornar sua narrativa inadmissível pelo relato ortodoxo, pois, como

ele admite em várias ocasiões ao longo das Memórias, os acontecimentos na prisão

constantemente lhe pareciam irreais.

Com isso, o recurso à construção beirando o ficcional aparece como um meio de

se reforçar a autoinvestigação e a compreensão da realidade, de modo que, ao se

combinar com o depoimento puro e simples, revele melhor a complexidade de sua

experiência.

Se é verdade que em meio às críticas de Graciliano a boa parte da esquerda

brasileira faltam “propostas de curto prazo” e ele “não trabalha essas marcas negativas a

fundo”, como diz Alfredo Bosi25, deve-se entender o absoluto cuidado do escritor em

não se deixar levar por qualquer otimismo fácil. No lugar das propostas entra a contínua

reposição dos temas do escritor em sua relação com o fazer literário, consigo mesmo e

com os demais homems. E esta é sua ética, sua maneira peculiar de intervenção crítica

contra a realidade injusta.

Buscando um viés político e histórico para discutir essa questão, pode-se tentar

compreender o pessimismo segundo Lukács26. Para ele, trata-se de uma forma de

eternizar o presente, sendo própria à ideologia burguesa, que forma uma barreira para o

desenvolvimento humano, pois de modo geral faz a apologia da ordem existente. Nesse

25 Alfredo Bosi. A escrita do testemunho em Memórias do cárcere. Cf. p.223. 26 Georg Lukács. História e consciência de classe. Cf. p.136.

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sentido, quando aplicado a Graciliano, o termo deve ser matizado e posto no seu devido

contexto. Ele – assim como boa parte dos escritores brasileiros de seu tempo, oriundos

de classes mais ou menos elitizadas e decaídas – adquiriu diversos traços dos quais se

lamentava como, por exemplo, certos preconceitos de classe de que honestamente se

acusa nas Memórias.

Além disso e igualmente importante foi o papel assumido pelo escritor próximo

ao final da vida, quando as condições históricas e pessoais o impulsionaram a uma

participação relativamente mais ativa na política. Se por um lado esta em grande medida

não correspondeu às suas expectativas, por outro deu ao escritor maior clareza quanto

ao seu papel de intelectual, o que aparece mais nitidamente em Memórias do cárcere.

A combinação contraditória de origem mais ou menos elitizada e certa “traição

de classe” é um aspecto importante que levou Graciliano à tentativa de superar suas

visões limitadas e a opção pela autobiografia tem relação com o objetivo de vencer o

mundo aparentemente fechado no qual vivem seus personagens romanescos, ou seja, no

qual repetiu em grande medida traços de si mesmo. De modo aparentemente paradoxal,

as Memórias (uma autobiografia) parecem ter permitido maior liberdade visto não ter

ficado preso às notas da prisão e, principalmente, por ter procurado colocar-se como

mais um dentro daquele contexto onde viveram centenas de homens de todos os tipos,

de modo que o escritor tenha sido especialmente obrigado a se enxergar com certo

distanciamento. Desse modo, dialeticamente, a condição de preso o levaria a uma maior

“liberdade” em sua obra.

Retomando o vínculo mais estreito estabelecido por Antonio Candido entre

psicologia e obra, vemos que ele parece advir da vontade de encontrar certa “verdade

profunda” na obra do escritor, a qual se sobreporia a certos fios temáticos, marcando,

dessa forma, toda sua estética. Nesse sentido, vale ressaltar a afirmação do crítico de

que para Graciliano “a verdade é a sua verdade” (FC, p.91), sendo esta uma motivação

natural da opção de abandono do romance pela autobiografia.

Com isso, poderíamos dizer que a presença do psicológico na fortuna crítica de

Graciliano tem frequentemente por critério o destaque dessa intenção investigativa de

seu texto que, segundo o crítico, possivelmente “tenha sido mais valorizado pelo

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temário, considerado inconformista e contundente, do que pela qualidade da fatura”27,

situação possivelmente responsável até então por apreciações mais ou menos indevidas

de sua obra. Seja como for, o crítico faz jus a aspectos formais não valorizados

devidamente pela crítica (e mesmo por outros escritores) da época em que as obras

foram lançadas, pois o calor do debate dos intelectuais em torno da necessidade de

representação da “realidade” do país na literatura tendeu, via de regra, a tornar

secundária a discussão sobre o modo mais adequado de fazê-la. Assim, a dualidade

percebida na obra não seria superficial – ligada simplesmente à necessidade de crítica

social – mas profunda, e por meio da qual a própria crítica social tomaria corpo.

Como estamos tentando mostrar, a ligação entre vida e obra de Graciliano

segundo o aspecto psicológico analisada por Antonio Candido é muito produtiva. Com

efeito, o crítico consegue encontrar um dos esteios da obra de nosso escritor na oposição

entre indivíduo e norma. O panorama derivado dessa abordagem, sempre ponteado por

especificidades bastante relevantes de cada obra, consegue ir muito além da função

geralmente cumprida pelos panoramas, daí certa heterodoxia produtiva em seu ensaio.

Entretanto, a obra de Graciliano, sem prejuízo das marcas produzidas na

experiência infantil refletidas no adulto, pode ser avaliada – partindo-se de uma

perspectiva complementar – como produto do processo de conscientização estético-

política do escritor, em que as contradições em seu modo de pensar tiveram

consequências formais importantes, especialmente na passagem do romance à

autobiografia.

Pode-se dizer que Graciliano, como intelectual crítico na década de 30, estava

interessado nos debates sobre arte e literatura não só por motivações estéticas, mas

também pelos aspectos políticos que davam ensejo a esses debates. Nesse sentido,

aderiu ao posicionamento político mais à esquerda de parte da intelectualidade não só

por uma tendência natural à oposição ao poder constituído, mas porque compreendia

que o momento histórico (com a ascensão do nazi-fascismo, a guerra, etc.) exigia uma

definição clara das posições assumidas pelo intelectual.

27 Antonio Candido. A Revolução de 1930 e a cultura. In:_____. A Educação pela Noite. Cf. p.239.

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Entretanto, não se decidiu imediatamente pela atuação político-partidária não só

por ser cuidadoso e por não ser homem de grandes paixões que não a literária, mas

principalmente por estar sempre às voltas com necessidades prementes de

sobrevivência, assim como muitos intelectuais de seu tempo, precisando escrever

artigos para jornais e revistas para garantir o pão para si e suas famílias. Ademais,

estava sempre com novos projetos literários, que em geral demandavam muito de seu

tempo e só eram realizados com a lentidão característica de quem muito repisava as

ideias e as formas até estarem satisfatoriamente desenvolvidas.

Apenas após o reconhecimento literário mais amplo – atingido já na década de

40 e que de modo algum representou independência financeira – decidiu quase por

acidente ingressar no Partido Comunista. A vivência no cárcere em 1936-1937 lhe

fornecera certamente motivo (mas talvez nem tanta motivação) para a adesão partidária.

De qualquer modo, já acumulara experiência política e literária suficiente para

compreender que o papel do escritor dentro uma sociedade como a nossa era parte de

um debate maior sobre a ideologia do caráter nacional, aspecto que naturalmente se

verificava de modo peculiar em cada uma das diferentes gerações de escritores.

Em 1939, após a publicação de seu último romance (Vidas Secas, 1938) dá um

depoimento interessante sobre seus personagens (segundo ele, “alguns tipos sem

importância”) no qual pode-se ver uma das possíveis razões de sua mudança de gênero

literário:

Todos os meus tipos foram constituídos por observações apanhadas aqui e ali, durante anos. É o que penso, mas talvez me engane. É possível que eles não sejam senão pedaços de mim mesmo e que o vagabundo, o coronel assassino, o funcionário e a cadela não existam.28

Se a dúvida surge em relação ao próprio objeto registrado (o “outro” ou ele

próprio?), parece justa sua tentativa de resolver essa pendência que afinal, após alguns

anos escrevendo romances, lhe aparecia como um problema mais definido.

A autobiografia vem então como uma escolha para unir o literário e o político.

A insatisfação de Graciliano – apesar de tanto anunciá-la como sendo de ordem

28 Graciliano Ramos. Alguns tipos sem importância. In: _____. Linhas tortas. Cf. p.196.

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meramente estética, algo natural em um escritor tão exigente – parece advir da crença

de que o romance enquanto gênero teria a capacidade de enganá-lo quanto ao objeto

literário, o qual, após escolhido, se perderia em meio às exigências próprias da ficção.

1.3 - A reconstrução do sentido histórico nas Memórias do cárcere

Em Memórias do cárcere, a tentativa de representação das peculiaridades da

vida na prisão se amplia no caminho da reconstrução do sentido da experiência histórica

brasileira de vésperas do Estado Novo. Graciliano pôs sua condição de intelectual em

perspectiva, revelando desapego e aguda percepção das variáveis impostas pelo arbítrio.

Assim, produziu uma obra que tem relevância pelo valor artístico e pelo caráter de

testemunho muito peculiar que tanto investiga o indivíduo como nos dá a conhecer a

história da época por um prisma diferenciado.

Em primeiro lugar, as Memórias refletem um processo de descoberta e

questionamento da própria identidade por parte do narrador. Numa dialética fina, seus

pensamentos e atitudes são, ao longo de toda a obra, postos em confronto com a

realidade circundante. Assim, o narrador se revela em sua complexidade humana num

processo que varia dos preconceitos arraigados e do egoísmo a uma concepção mais

profunda da sua relação com o outro. Sem se descuidar do caráter estético, o resultado é

a representação do processo evolutivo do homem em moldes semelhantes aos dos

personagens ficcionais.

Não se trata, portanto, de um narrador distanciado, que fala de sua vida

ostentando a autoridade de quem sobreviveu a grandes sofrimentos e agora paira sobre

tudo aquilo com segurança e até certa vaidade típica de quem pretende se incluir no rol

dos homens resistentes e experimentados. O que Graciliano promove é o encontro do

passado com o presente numa narrativa que mistura tentativa de afastamento racional

com aproveitamento de certos componentes emocionais e psicológicos. Consciente das

condições específicas (da realidade histórica, do distanciamento temporal da escrita em

relação aos eventos etc.), o escritor não incorre nem na ilusão de estar reconstituindo o

passado de maneira exata, seja por ter receio da imprecisão da memória (“De que modo

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reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias?”, MC, p.15), seja por

frequentemente duvidar da própria realidade que presenciara (“O ato que nos ocorre

nítido, irrecusável, terá sido realmente praticado? Não será incongruência?”, MC, p.15).

O fato de não ter guardado as anotações da prisão – pois em momentos de dificuldade

fora obrigado a se desfazer delas – também teve implicações importantes no modo de

realização da narrativa, pois a impeliu ainda mais a uma aproximação com o romance.

Sem as notas não se viu pressionado, como ele disse, a consultá-las a todo momento em

busca de informações precisas. Com isso, procurou registrar suas impressões assumindo

com naturalidade a repetição de certos fatos e assuntos com base na intensidade das

marcas deixadas por eles, apoiando-se na medida do possível em certa organização

temática dos eventos, o que permitiu a elaboração do texto como reconstrução – e não

mera tentativa ilusória de recuperação – do sentido da vida no cárcere.

Desse modo, não adere à realidade aparente dos acontecimentos mesmo os tendo

vivenciado, pois compreende os caminhos tortuosos da memória e, principalmente, a

realidade muitas vezes fantasmática própria à vida em regimes de exceção. Sendo

assim, apesar de a obra antes de tudo ser um testemunho da experiência (individual e

coletiva) e fazer justiça àqueles homens ofendidos pelo regime autoritário, Graciliano

procura escapar a certas contingências da realidade imediatamente observável. Assume,

portanto (na medida do possível em uma autobiografia heterodoxa), a posição de

Adorno relativa ao narrador do romance29 que, numa realidade tornada complexa em

demasia, não deve fazer uma representação direta da fachada do real, sempre cheia de

falácias, sob pena de produzir uma falsificação. O escritor então procura trazer à tona

sempre um significado mais complexo dos acontecimentos, para isso se utilizando, entre

outros recursos, de representações extraídas de outras obras suas, em especial de

Angústia, certamente o mais autobiográfico dentre seus romances.

Ao usar termos e construções emprestados de suas obras Graciliano acaba por

fazer uma espécie de síntese de sua experiência de vida e de aspectos marcantes de sua

trajetória literária. Como o homem e a obra se ligam fortemente, Graciliano evoca a

memória dessas experiências para poder narrar o absurdo da realidade do cárcere, pois

29 Theodor Adorno. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ______. Notas de Literatura I. Cf. p.55-63.

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sem a união desses dois níveis a estranheza e a opacidade da situação bem como do

momento histórico ficariam inadequadamente representados. A vida no cárcere é

representada, portanto, como um momento de concentração máxima de experiências.

Por isso, para tentar descrever o turbilhão de emoções e a luta para se manter vivo

enquanto preso, Graciliano se retrata como portador ocasional de traços de seus

personagens e vivente de situações que de algum modo se ligam às de seus romances.

Com isso, autobiografia e romance se aproximam.

Devido ao fato de as Memórias objetivarem o testemunho também em nome dos

impossibilitados de se pronunciar, a dialética entre o estritamente pessoal e o coletivo se

torna um dos principais focos de atenção de Graciliano para a escrita do texto. A

representação da relação com o “outro” – que nos romances se estabelece com gradativo

aumento de importância em relação ao personagem principal – aqui ressurge como o

meio de construir o Graciliano-personagem. Assim, numa só obra aparecem etapas da

vida real sendo reconstruídas na difícil representação de si mesmo e da vida dos demais

presos, de modo que o exercício de supressão da autossuficiência atravessa toda a

narrativa inclusive enquanto tema, pois faz parte da atitude do intelectual que se

pergunta sobre a possibilidade de aproximação e relacionamento com indivíduos de

extração social mais baixa, procurando sempre encontrar os aspectos que os tornam

semelhantes.

Não por acaso já no prefácio faz menção ao uso do “pronomezinho irritante” da

primeira pessoa, que o incomodava e só se justificava por facilitar-lhe a narração, pois,

como diz ele ao final da explicação sobre a tarefa de escrever as Memórias: “...não

desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros,

fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-

se” (MC, p.16). Aqui, sem falsa modéstia, ele revela a compreensão do verdadeiro

alcance de suas forças e, por isso, atua sempre de maneira inteligente na obra,

invertendo nos detalhes mais sutis a lógica corriqueira, fazendo do pequeno fato o

importante, desarticulando mitos e imagens predominantes na era Vargas como, por

exemplo, a ideia veiculada pela imprensa sobre todos os presos pelo regime serem

“monstros”.

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O fato de haver inclusive verdadeiros criminosos entre aqueles homens torna a

tarefa do escritor ainda mais delicada. Equilibrando-se entre evitar juízos de valor

excessivamente moralistas sobre suas crenças, suas atividades ilegais e não se tornar

convivente com eles, o que produz nesse exercício narrativo é uma imagem que procura

registrar o indivíduo sempre na corda bamba, condição pela qual se aproxima deles,

sendo narrada como um eterno reconstruir-se e que na forma do texto privilegia os

processos de construção do homem e da escrita, retomados dolorosamente e

efetivamente nunca terminados. Nesse sentido, seus questionamentos sobre o criminoso

Paulo Turco (conhecido na Casa de Correção) são exemplares da dificuldade que

atormenta o escritor quando questões de ética estão envolvidas. Autor de crimes graves

e ao mesmo tempo zeloso benfeitor de duas meninas adotadas, a intrigante figura

desafia a imaginação do escritor:

Esse caso me preocupou em demasia. Sempre me parecera que os criminosos não se diferençavam muito da gente comum, mas ali me surgia um deles superior aos outros homens. Paulo Turco era, se não me engano, assassino e ladrão. Contudo inspirava respeito. E aquele procedimento levava-me a admirá-lo. A extraordinária antinomia me assombrou: um vivente nocivo, capaz de matar, roubar, sacrificava-se para manter e educar pessoas encontradas por acaso, muito diferentes dele. E perguntei a mim mesmo se a virtude singular não compensava as faltas anteriores. Uma dúvida me torturava: se Paulo Turco se libertasse, praticaria novos crimes ou buscaria ofício honesto para sustentar as pobres? (RAMOS, G., 2008, p.610)

Por absoluta ironia do destino, as Memórias realmente não terminam. Ainda

faltavam alguns episódios a serem narrados, em especial, o da libertação do escritor, de

modo que a tarefa de fechar o livro (tão cobrada por seu filho Ricardo Ramos), ao ser

definitivamente inviabilizada por sua morte, acabou adicionando não intencionalmente

mais um traço de incompletude e incerteza aos que ele já nos deixara por conta dos

diversos questionamentos ao longo da narrativa.

O sentido profundo da obra nasce, portanto, da formalização de um equilíbrio

entre a autopreservação intelectual – instituído através da escrita como meio de

autopreservação física no cárcere – e o afastamento gradativo de problemáticos valores

arraigados, de modo que a narrativa, ao fixar a luta do escritor por atingir uma posição

crítica com relação a si e aos de sua classe, aparece como suficientemente íntegra para

ocupar o status de testemunho de uma época.

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2- Reflexões sobre a relação do intelectual com a composição das Memórias

do cárcere

2.1- A condição do intelectual e a obra

A complexidade das Memórias está relacionada não só à quantidade de temas

tratados na obra – visto o intuito do escritor ser não apenas representar a realidade do

cárcere, mas também a partir desta representação veicular uma visão sobre a realidade

histórica do país, o que podemos relacionar com a ideia de “prisão enquanto mundo”30,

de Antonio Candido – mas também ao autoquestionamento de posições políticas e

intelectuais, resultando na confecção de um texto que, além da tentativa de compreensão

da trajetória pessoal, mantém características de romance e de testemunho sobre a

história.

A propósito dessa estrutura variada, Antonio Candido diz que “o livro é

desigual” e menciona possíveis escrúpulos na longa realização da obra, que estaria

marcada pelo esforço de objetividade e imparcialidade em contraste com a ânsia de

confissão, oposição responsável, segundo ele, por algum ressecamento da veia artística

em certas passagens31.

Certamente a observação é correta em relação à “objetividade”, visto já no

prefácio das Memórias Graciliano revelar a dificuldade de realizar a narrativa, que por

um lado sofreria pela falta das notas jogadas fora e, por outro, pelo receio de cometer

injustiça aos indivíduos ali retratados. Ademais, ao longo de todo o texto, o escritor

ressalta características marcantes de certos personagens e fatos em contraste com outros

que ficaram apagados, sendo, portanto, objetivo na medida da relevância de certos

indivíduos e acontecimentos para compor o sentido trágico de sua vivência, algo

também relacionado com seus interesses literários e a capacidade de sua memória.

Assim ele põe a questão em sua proposta para as Memórias:

Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. (RAMOS, G., 2008, p.14)

30 Antonio Candido. Os Bichos do subterrâneo. In: Ficção e confissão. Cf. p.127. 31 Idem, p.125.

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No que respeita à “ânsia de confissão”, vale lembrar o esforço de um homem

raramente disposto a se abrir mesmo aos mais próximos e, no entanto, corajoso a ponto

de dar um depoimento público de vulto no qual revelou aspectos fundamentais de sua

vida e as contradições de sua personalidade. A propósito do ressecamento da veia

artística podemos falar mesmo em quase abandono dela em certas partes. Sobre esse

aspecto Antonio Candido faz menção ao caráter insatisfatório dos diálogos (perfeitos no

romance, segundo ele) bem como à dificuldade do escritor na construção de episódios e

cenas32.

Talvez para o crítico o fato de Graciliano ter atingido excelência no romance

devesse se impor de modo mais decisivo na construção das Memórias, ajudando a

promover mais o artístico dentro do depoimento, na continuidade de suas visões da vida

e do mundo. Entretanto, Graciliano não queria fazer de seu relato “uma espécie de

romance” (MC, p.11); o que ocorreu foi a seleção de um gênero no seu entendimento

capaz de refletir de forma mais direta sua própria tentativa de posicionamento

intelectual mais ligado à prática das coisas sem, no entanto, deixar totalmente de lado o

caráter artístico do relato. A propósito desse caráter, Antonio Candido lembra

corretamente que “toda autobiografia de artista contém maior ou menor dose de

romance, pois frequentemente ele não consegue pôr-se em contato com a vida sem

recriá-la” (FC, p.70). No caso específico de Graciliano, podemos dizer que isso ocorre

também pela própria situação inusitada e estranha da vida no cárcere, a qual demandou

o tratamento de certas situações aos moldes do romance, bem como pelo

aproveitamento de aspectos da vida de Luís da Silva – muitos dos quais ficcionalizados

a partir de si próprio – e que nas Memórias passaram a ser um termo de comparação ora

aparecendo de forma mais evidente, através do aproveitamento de falas e trechos de

Angústia, ora de forma menos clara, como, por exemplo, por meio da utilização de

algumas estruturas textuais do romance as quais, inseridas em contexto diverso,

apontam para um embate entre um Graciliano em certa medida lutando contra os

aspectos de Luís da Silva presentes em seu modo de pensar e de agir. Pode-se dizer que

na comparação entre os dois personagens (se compreendermos o Graciliano das

Memórias como personagem de si mesmo) aparece uma tentativa de aprimoramento em

termos de atitude política do intelectual.

32 Ibidem, p.124.

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Ao longo dos anos anteriores à escrita das Memórias Graciliano acumulara a

experiência literária do romance, bem como algumas leituras de textos traduzidos de

Karl Marx e a leitura de Os intelectuais e a organização da cultura, de Antonio

Gramsci (lido no original e tido como um dos seus livros preferidos), os quais o

ajudaram na sua precária formação de materialista autodidata.

A dura experiência do cárcere, por sua vez, o colocara em posição tida por ele

mesmo como privilegiada ao permitir uma investigação particularmente esclarecedora

dos homens em sua condição-limite, algo especialmente importante para um escritor

capaz de narrar, segundo ele próprio, apenas o que conhecia de perto, revelando antes

de tudo, a visão de quem sempre entendeu a arte como meio privilegiado de expressão

da realidade.

Podemos dizer que os anos 40 foram importantes na vida de Graciliano Ramos

tanto devido à sua participação política não partidária, interessada nos assuntos da

cultura e política nacionais (em reuniões de intelectuais em que se discutiam os destinos

do país, por exemplo) quanto como membro efetivo do Partido Comunista do Brasil

(PCB), com cuja direção, bastante ortodoxa, manteve um relacionamento difícil, não se

negando, entretanto, a atender à solicitação de envolvimento público em momentos

decisivos para a organização partidária.

Em 1945, com o PCB retornando à legalidade e sob o convite de Luís Carlos

Prestes, Graciliano ingressa no partido apenas devido ao fato de Prestes convencê-lo de

que sua “pena” (assim como a expressão de outros intelectuais como Cândido Portinari

e Oscar Niemeyer) tinha grande importância para o partido. Além disso, e talvez

igualmente importante, tenha sido o fato de que o PCB (sob influência da linha dura de

Moscou) desejava evitar um confronto entre as superpotências e pregava a via eleitoral

para o país através da campanha pela Assembleia Constituinte ao invés da luta

revolucionária, algo melhor relacionado com o pensamento do escritor, que imaginava a

disputa política nacional como uma conquista gradativa de espaços. Assim, apesar da

aliança do PCB com Vargas (de quem Graciliano não gostava) o escritor aceitou o

convite por acreditar que o momento histórico exigia certas atitudes políticas em prol do

que julgava ser o bem coletivo, fator indicativo dos limites de sua visão reformista.

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Toda essa conjuntura certamente tem grande importância na produção das

Memórias, cuja escrita inicia-se em 1946 e estende-se até 1951 – quando então cede

espaço a outras atividades políticas e literárias como a viagem à Tchecoslováquia e à

URSS em 1952 e a subsequente escrita das impressões dessa visita –, não sendo

retomada devido à morte prematura do escritor em 1953, deixando as Memórias com a

falta de alguns capítulos. Esse período corresponde a um momento no qual o escritor,

apesar de ser homem de poucas palavras e índole reservada, toma parte em diversos

assuntos do partido. Desde 1945 participa de discursos em comícios de candidatos do

partido por exigência do Comitê Central, tendo sido ele próprio candidato (também por

exigência do partido) a deputado federal por Alagoas. Já no início do Governo Dutra,

participa na luta em favor do partido, posto na ilegalidade em maio de 1947.

Deve-se logo ressaltar, entretanto, que mesmo a aceitação praticamente sem

oposição efetiva às regras políticas do partido nunca foi feita de maneira cega ou

laudatória, pois seu compromisso político se deveu ao fato de acreditar que o único

meio para se atingir a democracia seria pelo trabalho coletivo de uma instituição

partidária como o PCB. No que respeita às suas concepções artísticas, permaneceu

afastado do endurecimento imposto pela doutrina de Andrei Zdanov (líder do Partido

Comunista da URSS e pregador do “realismo socialista” aos escritores dos PCs do

mundo inteiro), a qual foi adotada por alguns escritores aqui no país, em especial os que

desejavam ver suas carreiras alçadas com o apoio do partido, sendo, por essa razão,

foram favoráveis à partidarização da Associação Brasileira de Escritores (ABDE),

contra a qual Graciliano também se manteve firme (juntamente com Carlos Drummond

de Andrade e outros), pois entendia que a criação literária não deveria se submeter a

dogmas tanto de direita quanto de esquerda.

Essa trajetória, por outro lado, tendo como ponto de partida para a reflexão a

maneira como se deu a inscrição de Graciliano no partido, reflete a seu modo a crise

pela qual passou o intelectual do século XX e que hoje, devido à ampla derrota das

esquerdas pelo mundo, dá a impressão de ter se tornado menos dramática: o confronto

entre engajamento e não engajamento. Desde o período entre guerras, com as

perspectivas revolucionárias geradas a partir da Revolução Russa de 1917 e a ascensão

do fascismo e do nazismo, qualquer ambição de neutralidade por parte do intelectual

tornou-se muito mais difícil. Instado a opinar em questões éticas, políticas e morais, a

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função do intelectual apareceu de modo mais claro para as sociedades como indo além

da atuação nas coisas meramente ligadas ao espírito. Com isso, o intelectual decidido a

afastar-se das discussões de problemas cruciais para a existência do homem ou de sua

sociedade em particular, restringindo-se a seu universo pessoal de cultura, não raro foi

criticado por negligenciar a política e a ética, visto pertencer a uma classe privilegiada.

Por outro lado, o envolvimento político, em especial o partidário, também foi motivo de

críticas àqueles que estariam supostamente rebaixando sua atuação ao aceitar o

envolvimento em assuntos menos nobres que a alta cultura. De qualquer modo, o

intelectual esteve sempre em situação difícil e o aumento da complexidade das

estruturas do Estado e da sociedade civil no mundo moderno serviu em grande medida

para agravar esse impasse. Naturalmente, no caso de Graciliano essa dúvida passava

pelo momento histórico do Brasil que, como nação periférica, apresentava

peculiaridades capazes de tornar ainda mais difícil a condição do intelectual.

Após a “Revolução” de 30, o crescimento do aparelho estatal – aliado a uma

estrutura ainda relativamente pouco organizada da sociedade civil, a qual não abria ao

intelectual diversas formas de sobrevivência além da ocupação de cargos públicos –

forçou muitos escritores a assumirem postos que os afastassem em maior ou menor grau

de suas posições políticas de oposição. Mesmo o “boom” editorial dos anos 30 e 40 não

foi suficiente para fornecer essa autonomia aos escritores, uma vez que o baixo índice

de leitores – tanto levando-se em consideração as altas taxas de analfabetismo como o

reduzido número de leitores entre os cidadãos alfabetizados – impedia que o

crescimento editorial fosse usufruído por largas parcelas da população, permanecendo o

livro em grande medida como privilégio de pequenos grupos. O próprio Graciliano, nos

anos 40, apesar de já reconhecido como grande escritor, viu-se na necessidade de aceitar

um cargo de Inspetor de Ensino no MEC e de escrever sobre cultura do Nordeste por

certo período à revista Cultura Política do Departamento de Imprensa e Propaganda

(DIP), situações certamente evitáveis caso sua condição econômica fosse um pouco

melhor. Não se pode dizer, entretanto, que sua participação na revista configure

“mudança de lado”, mas evidentemente o escritor não passou por ela sem uma sensação

de mal-estar e provavelmente a desconfiança por parte de alguns de seus pares.

Portanto, a contrariedade do escritor diante da degradação do trabalho intelectual e da

submissão do intelectual ao aparelho oficial foi certamente uma das razões profundas

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que acentuaram seu horror já de longa data ao sistema capitalista, levando-o ao

engajamento político. Desse modo, as Memórias figuram como relato a ser lido não só

como prova de resistência física e psicológica do escritor que, no limite, escreveu para

se manter vivo ou como expressão de uma necessidade artística profunda – a qual levou

Graciliano a transformar quase toda sua vida em literatura – mas também sob o prisma

de uma reação do escritor às pressões para o rebaixamento de sua atuação política e de

sua produção literária, o que vale por extensão à classe dos intelectuais, cuja temática é

central nas Memórias, sendo referida direta e indiretamente desde o prefácio onde o

escritor invoca a participação mais ativa e qualificada dos escritores brasileiros:

Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes por falta de liberdade – talvez ingênuo recurso para justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer... Não caluniemos o nosso pequeno fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato, ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício. (RAMOS, G., 2008, p.12)

Para avaliar melhor a importância desta invocação faz-se necessária uma análise

que, além de cuidar da historicidade específica do momento enunciado, traga também a

discussão para próximo de nossos dias. Graciliano, com total consciência do papel do

escritor enquanto intelectual, exige dele a responsabilidade de tentar com toda a

seriedade produzir obras capazes de dar conta do sentido da realidade de uma época,

aspecto imposto a si mesmo com um rigor que o torna talvez o escritor brasileiro mais

apto a falar nesses termos, bastando para isso lembrar seu obsessivo esmero com o texto

até reduzi-lo à expressão considerada mais clara e livre de excessos verbais. E dada a

dificuldade de se representar uma realidade complexa como sempre foi a nossa, não é

de surpreender que um escritor exigente como Graciliano tenha frequentemente se

sentido frustrado diante de suas próprias criações romanescas, certamente um dos

fatores a impulsioná-lo à escrita autobiográfica.

A firmeza da exigência, se nos concentrarmos no fato de que o alagoano faz

autorreferência, poderá inicialmente parecer um tanto arbitrária. Entretanto, o escritor

não negligencia a necessidade de participação coletiva, tanto que o chamamento se

dirige ao conjunto dos escritores brasileiros de seu tempo, composto por homens em que

Graciliano reconhecia a ligação pelas coisas do espírito sem, no entanto, esquecer-se do

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fato de ocuparem posições sociais distintas, como deixa claro na crônica O que

deveríamos fazer, de abril de 1943:

O sujeito que escreve é diferente. Liga-se decerto a indivíduos que se dedicam ao mesmo exercício, mas afasta-se de outros, e o afastamento produz muitas vezes ódios mortais, expressos, dadas condições favoráveis na calúnia, na delação. Estes nomes, horríveis, não são empregados: invocam-se, para acobertar indecências, motivos nobres! Falta um interesse comum, falta profissão de literato. No jornal e no livro, o homem defende as conveniências da sua classe que não é formada pelos freqüentadores da livraria. Juntam-se lá pessoas residentes em diversos pontos da sociedade, mas erraremos se pensarmos que, por se cumprimentarem, permutarem amabilidades, encurtam as distâncias que as separam. Entre Copacabana e a rua Bento Lisboa alargam-se espaços intransponíveis, é absurdo imaginar relações estáveis do palacete com a casa de pensão. Sucede avizinharem-se espiritualmente, mas como nem sempre vivem espiritualmente, conservam, literatos do Catete e do Leblon, necessidades particulares, amigos particulares, desilusões, encrencas particulares, graúdas e miúdas. E até linguagens particulares, que não figuram nos artigos e nos romances.33

Portanto, o escritor já atentava para essa separação durante o período da guerra,

no qual alegava que muitos “espíritos” fugiram da responsabilidade de se “esforçarem

pela vitória das nações Unidas”34, alertando para o perigo dos fascistas, àquela altura,

envergonhados de bradar em público, mas ainda “cochichando”. A posição por ele

assumida, portanto, e exigida dos demais, é de pronunciamento aberto, considerando

que, a despeito das diferenças evidentes, a atitude do escritor deve ser a de tentar

influenciar na construção de um processo democrático.

Dentro dessa conjunção de aspectos individuais e coletivos vale destacar o fato

de, para Graciliano, o escritor ser o único responsável pelas palavras entregues ao

público. Assim sendo, suas palavras encontram eco nas de Roberto Schwarz (ainda que

estas tenham sido pronunciadas em contexto histórico posterior e de modo

propositadamente unilateral, conforme diz o próprio crítico), segundo as quais “as

condições necessárias para fazer um escritor resumem-se em papel e tinta, alguns livros

e a experiência da vida moderna, à qual aliás não se escapa mesmo”35. Essa posição se

complementa com a ideia de que Graciliano tinha a intenção de fazer sua autobiografia

perdurar, pois logo em seguida à invocação – ao advertir sobre a lentidão de seu

trabalho, desenterrando casos emaranhados num novelo – sugere que a obra

“provavelmente... será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias”

33 Graciliano Ramos. O que deveríamos fazer. In: ______. Linhas tortas. Cf. p.227. 34 Idem, p.229. 35 Roberto Schwarz. Crise e Literatura. In: Que horas são?: ensaios. Cf. p.159.

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(MC, p.13), o que também acaba (talvez não intencionalmente) como alerta aos

desejosos de atingir a glória fácil em vida, fator que levou diversos homens de seu

tempo a publicar suas memórias, causando uma valorização distorcida do gênero

memorialístico. Nesta concepção crítica a qualquer forma de oportunismo, um homem

deve, para falar com Schwarz, tentar “dizer aqui e agora o sentido da vida atual”36,

mesmo que o momento histórico seja desfavorável à publicação, pois “nos piores

momentos da ditadura se pode, com as devidas precauções, escrever a verdade a

respeito, e o manuscrito que não circula agora pode circular depois”37. Percebe-se

novamente um casamento perfeito com as ideias de Graciliano, que imaginava no futuro

as condições favoráveis à publicação de sua obra.

Redimensionando o problema, a proposta de Graciliano toma proporções

maiores quando a verificamos num “contexto histórico distinto”, seja anterior ou

posterior àquele em que viveu. De fato, podemos dizer que as reclamações apontadas

por escritores de um modo geral para a não realização de obras de profundo valor

literário ocorrem desde épocas históricas mais afastadas e tem como alegação as mais

diversas razões. Todas, entretanto, não são capazes de justificar o amesquinhamento do

espírito, como bem lembra Schwarz:

É claro que é fácil encontrar desculpas históricas, enumerar condições brasileiras desvantajosas, tais como a pouca tradição literária, a formação deficiente dos escritores, o público reduzido e ignorante, os efeitos do imperialismo sobre a cultura, dificuldades de publicar etc. Todas explicam a posteriori, a modéstia de nossos resultados literários, mas não deveriam dar cobertura ao apequenamento da intenção literária ela própria. Uma vez compreendida e dominada, toda condição social negativa se transforma, ou pode se transformar, em força literária, em elemento positivo de profundidade artística, e é de desejar que o conjunto de nossas desgraças nacionais resulte logo, não em desculpas, mas numa implacável obra-prima.38

Aqui Schwarz, além de corroborar o pensamento de Graciliano, traz o problema

para o momento atual, em que podemos comprovar o alcance inesperado (até pelo

próprio escritor) da contundente proposta. Nossa propensão à pouca profundidade

literária – fruto originalmente da sempre desvantajosa comparação com os modelos

europeus, inadequados à nossa realidade (fato muito bem apontado por Machado de

Assis em sua fase madura) – aparece como resultado de um sentimento profundo de

36 Idem, p.160. 37 Ibidem, p.160. 38 Ibidem, p.159.

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inferioridade cultural que se tornou para diversos escritores uma desculpa para a

capitulação já de saída diante de qualquer projeto capaz de colocá-los à altura dos seus

pares europeus. Este imperialismo cultural (e já econômico) ampliou-se ainda mais sob

a pressão sempre crescente do capital, chegando em nossos dias ao servilismo da

produção cultural ao mercado. Se à época de Graciliano já começavam a avultar as

questões comerciais do escritor com o crescimento da indústria do livro, hoje a

capitulação já não se dá como fruto da angústia de uma suposta inferioridade cultural,

mas propriamente com base na ideia de atender a uma demanda culturalmente

rebaixada, o que costuma garantir bons lucros.

Portanto, a atualização dos termos da discussão cultural joga luz sobre o texto de

Graciliano dando-lhe nova amplitude sempre a partir do tema já exposto pelo escritor.

Seu caráter prospectivo se dá, assim, por um problema de fundo histórico que é a falta

de compromisso intelectual em nosso país, só raramente superado, deixando-nos no

mais das vezes com obras em que se percebe claramente a presença de um projeto

modesto, contente em ficar a meio caminho da completude.

Essa proposta radical naturalmente não saiu sem uma dura contrapartida,

experimentada pelo próprio Graciliano, a saber, a do rebaixamento da produção cultural

forçada pelo regime prisional, contra a qual o escritor teve de lutar duramente ao ponto

de instituir a escrita como meio de sobrevivência, aspecto a ser contemplado mais

adiante em nosso estudo.

Veremos com o aprofundamento da análise um Graciliano cada vez mais crítico

de seus valores herdados, assim como a adequação de certos aspectos da estrutura da

obra a esta evolução, de modo que o relato das surpresas e contradições experimentadas

por ele e pelos demais presos vai se redimensionando numa visão cada vez mais

complexa da realidade. Nessa evolução de sua trajetória nas Memórias o escritor

compõe uma interpretação da história que procura se manter sempre em contraste com

antigas (e novas) visões pequeno-burguesas recebidas de sua classe social. Desse modo,

a condição do intelectual tentando “trair sua classe” se faz presente na complexidade do

relato, de modo que a certa altura da narrativa o escritor revela sentir-se numa posição

afastada não só de sua própria classe, mas das classes em geral, o que não se trata de

alienação, mas do reflexo da própria conscientização política tomando corpo.

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Com isso, ao tentar compreender sua própria perplexidade diante das estranhezas

da vida nos porões da ditadura, Graciliano pôde – com crítica e consciência agudas e

sempre a partir do reconhecimento de pertença ao grupo dos intelectuais – desconfiar do

valor de suas próprias ideias e das visões mais ou menos conformistas de mundo e

construir uma narrativa capaz de revelar um significado mais profundo da experiência

individual e coletiva no cárcere, o qual, por sua vez, aponta para o sentido social mais

amplo da vida no estado de exceção.

2.2- As contradições da posição de intelectual

As Memórias do cárcere são em grande medida a busca de Graciliano Ramos

por definir a sua posição enquanto intelectual – ainda que em grande medida de modo

inconsciente – diante não só da vida na prisão, mas, por extensão, da realidade brasileira

de seu tempo, tomada sob o mesmo critério de aprisionamento, em que a limitação da

liberdade de ação e expressão se tornou fator marcante da vida pública.

Diante dessa realidade pouco animadora que o escritor busca retratar, a

construção das Memórias se pauta pelo esforço dialético de relacionar o pequeno evento

do cotidiano prisional a um quadro mais amplo da realidade, a fim de fazer surgir um

significado maior no qual se unam o próprio escritor, os homens e a realidade de seu

tempo. Por isso, os questionamentos frequentes do personagem, tão detalhadamente

descritos (em certos trechos, a um custo emocional que se pode imaginar imenso),

visam reproduzir uma luta antes de tudo interna do próprio escritor contra as ideologias

que o ameaçam. Membro de uma classe decadente e com formação cultural pequeno-

burguesa, percebe ao recontar sua própria história a necessidade de uma autocrítica

contínua, o que efetivamente percebemos ao longo do livro. Nesse sentido, a

aproximação cuidadosa feita com aqueles homens de variados tipos e das diversas

classes sociais – apesar da descrição da “promiscuidade” na qual viveram – tem muito

de respeito e algo de distanciamento, marcando a posição de homem consciente de sua

formação, o que, antes de revelar superioridade – aliás, continuamente negada ao longo

do texto – mostra a atenção para o perigo constante de o escritor, homem sempre mais

ou menos aburguesado, incorrer no populismo.

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Diante das contradições próprias à sua posição, Graciliano se mostra disposto se

não decididamente a tentar resolvê-las, ao menos a expressá-las da melhor maneira, ou

seja, deixando transparecer em sua linguagem, e principalmente na forma do texto, o fio

tênue no qual se equilibra. Com isso, a tomada de consciência nas Memórias, longe de

pretender revelar uma personalidade una, de arestas aparadas, põe em curso o processo

da tentativa de libertação do escritor de certos condicionamentos e valores ideológicos,

os quais teimam em reaparecer – como a própria crença numa diversidade essencial dos

homens baseada na origem social, herdada de sua vida no interior, durante a infância e a

juventude.

No capítulo XX, Graciliano trata desse modo preconceituoso de ver os homens a

partir da descrição de atitudes consideradas surpreendentes em indivíduos capturados e

torturados após o levante de Natal em 1935. No porão do Manaus, as falas dos dois

líderes Macedo e Lauro Lago sobre torturas sofridas (não reproduzidas no texto por

provável escrúpulo do escritor, conhecedor da banalização que pode advir da exploração

detalhada de tais assuntos) são o ponto de partida para especulações que vão muito além

do assunto imediato. O tema da tortura, fio condutor do capítulo, leva diretamente ao

passado escravocrata, de onde se organizarão as especulações sobre o caráter social dos

maus-tratos infligidos aos pobres em geral:

Falavam-me também num terceiro chefe da sedição, o mais importante, conservado em Natal por não se poder ainda locomover: seviciado em demasia, agüentara pancadas no rim e, meses depois da prisão, mijava sangue. Arrepiava-me pensando nisso. Achava-me ali diante de criaturas supliciadas e, conseqüentemente, envilecidas. A minha educação estúpida não admitia que um ser humano fosse batido e pudesse conservar qualquer vestígio de dignidade. Tiros, punhaladas, bem: se a vítima conseguia restabelecer-se, era razoável andar de cabeça erguida e até afetar certo orgulho: o perigo vencido, o médico, a farmácia, as vigílias, de algum modo o nobilitavam. Mas surra – santo Deus! – era a degradação irremediável. Lembrava o eito, a senzala, o tronco, o feitor, o capitão-do-mato (RAMOS, G., 2008, p.121).

Com auxílio da história o escritor justifica suas antigas surpresas e prepara o

terreno para se posicionar a partir do presente da escrita, quando a realidade do interior

de Alagoas passa a servir como termo de comparação:

O relho, a palmatória, sibilando, estalando no silêncio da meia-noite, chumaço de pano sujo na boca de um infeliz, cortando-lhe a respiração. E nenhuma defesa: um infortúnio sucumbido, de músculos relaxados, a vontade suspensa, miserável trapo. Em seguida o aviltamento. É assim na minha terra, especialmente no sertão. Vivente espancado resiste: em falta de

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armas, utiliza unhas e dentes, abrevia o suplício e morre logo, pois, se sobreviver, estará perdido. Nunca mais o tomarão a sério... Quando estiver desprecatado, julgando-se normal e medíocre, um riso, um gesto, um olhar venenoso o chamarão à realidade, avivarão a lembrança do pelourinho, do rosto cuspido, das costas retalhadas. Afinal aquele tratamento não foi infligido senão para isso (RAMOS, G., 2008, p.122).

Aqui Graciliano já especifica um pouco mais o tipo de tortura imposta, visto

fazer parte da realidade com a qual convivera. Ainda assim, impede que a descrição se

torne mera exploração de recurso estilístico, pois vem acompanhada das implicações

sociais do suplício em região tão castigada e desumanizada pela exploração comandada

pelos donos do poder. Após a apresentação de quadro tão hostil, o escritor, enveredando

por uma investigação mais aprofundada, expõe as razões materiais para os

comportamentos sociais descritos:

Indispensável aniquilar um inimigo da sociedade. Quem é ele? O assassino? Evidentemente não. Na minha terra uma vida representa escasso valor. A população cresce demais, a agricultura definha na terra magra. Eliminar um cristão significa afastar um concorrente aos produtos minguados, em duros casos serve para restabelecer o equilíbrio necessário. Enfim, cedo ou tarde, a morte se daria; em última análise o matador foi instrumento da Providência. Por isso ele é tabu. Na cadeia da roça não o maltratam, e o júri sem dificuldade o absolve. O que passou passou, a condenação não ressuscita ninguém. O delito máximo é o que lesa a propriedade. Nesse ponto, o fatalismo caboclo desaparece: não foi certamente Deus que mandou furtar, o ladrão é responsável (RAMOS, G., 2008, p.122).

Após a exposição sobre a atitude dos homens em sua terra natal, chega

finalmente a explicar seu próprio comportamento:

Habituara-me de fato, desde a infância, a presenciar violências, mas invariavelmente elas recaíam em sujeitos de classe baixa. Não se concebia que negociantes e funcionários recebessem os tratos dispensados antigamente aos escravos e agora aos patifes miúdos. E estávamos ali, encurralados naquela imundície, tipos da pequena burguesia, operários, de mistura com vagabundos e escroques. E um dos chefes da sedição apanhara tanto que lá ficara em Natal, desconjuntado, urinando sangue (RAMOS, G., 2008, p.123).

Como se vê, a narrativa retoma o ponto de início (a referência aos chefes da

sedição de Natal) com uma espécie de conclusão do argumento, recuperando motivos

pessoais em contexto histórico. Nesse sentido, o argumento já mencionado de Antonio

Candido a propósito das injustiças com as quais Graciliano conviveu durante a infância

(ver item 1.2, p.25) é confirmado pelo escritor ao reconhecer o fato de seu preconceito

se originar em tão tenra idade (“Habituara-me de fato, desde a infância...”). Deve-se

ressaltar que logo em seguida o aspecto social (“mas invariavelmente elas recaíam em

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sujeitos da classe baixa.”) vem, complementarmente, introduzir nas razões de ordem

psicológica algo da consciência social já formada do narrador. Entre esses dois

extremos, aparece confuso o adulto personagem, então preso no porão do navio, ainda

sem compreender certas coisas senão do mesmo modo que a sociedade da qual provinha

(“Não se concebia que negociantes e funcionários...”).

A homossexualidade é outro tema marcante que o escritor põe em discussão

(capítulo XIX, segunda parte). Em narrativa dolorosa, Graciliano desenvolve o assunto

a partir de uma triste lembrança do Pavilhão dos Primários: o estupro de um garoto.

Tamanha é a impressão ainda causada pelo evento no momento da composição do relato

que o escritor não consegue narrar sem antes se dirigir ao leitor. Por não ter visto a cena,

mas ouvido gritos à distância e se informando posteriormente sobre o caso, demonstra

escrúpulos, fazendo ressalvas:

Houve um momento em que vieram narrá-los, comentá-los, ou são produtos de fantasia desvairada, vestígios de sonho? Vacilamos em transmiti-los: não nos darão crédito, e isto nos deixará perplexos. Estaremos a forjar mentiras, resvalaremos na credulidade antiga, a engrossar boatos, adorná-los, emprestar-lhes movimento e vida? Procuramos velhos companheiros, atiçamos as reminiscências deles, obtemos confirmação. Foi o que aconteceu... O essencial é verdadeiro, causou espanto no começo, depois foi observado e nos pareceu natural. Não examinamos, porém, as circunstâncias: temos conhecimento delas por indivíduos confusos, propensos à divagação. Verdades? Não sei. Narro com reservas o que me narraram, admito restrições e correções (RAMOS, G., 2008, p.295-296).

A noção de homossexualidade fica, a partir de então, atrelada sempre ao

universo prisional (“Perguntamos em seguida como poderia ser de outra forma num

meio onde só vivem machos.”, p.297) e/ou a condições degradadas de existência,

mostrando certa influência da visão de mundo do Naturalismo:

Depois nos vieram noções complementares. Meninos abandonados, vagabundos, pivetes, cedo se estragam, não experimentam surpresa ao ser metidos nas células de pederastas calejados. Mas há reações, incompatibilidades – e se os meios suasórios falham, o casamento se realiza com violência (RAMOS, G., 2008, p.297).

Em seguida, Graciliano reconhece a necessidade de mudar seu ponto de vista em

relação aos homossexuais. Primeiramente, a partir de uma visão prioritariamente

distanciada, analítica, propõe a si mesmo uma espécie de observação empírica dos fatos,

como faria um estudioso do comportamento à maneira da escola naturalista. Trata-se de

uma tentativa de reconhecimento das qualidades humanas que o aproximam daqueles

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homens em princípio tão diferentes dele (“invertidos”, segundo ele próprio).

Naturalmente, os postulados do escritor se chocam com seus mal expressos (porém

verdadeiros) sentimentos de igualdade, reproduzindo na forma do texto uma angústia

aparentemente sem saída. Insatisfeito com suas reflexões, ele argumenta:

As minhas conclusões eram na verdade incompletas e movediças. Faltava-me examinar aqueles homens, buscar transpor as barreiras que me separavam deles, vencer este nojo exagerado, sondar-lhes o íntimo, achar lá dentro coisa superior às combinações da inteligência. Provisoriamente, segurava-me a estas. Por que desprezá-los ou condená-los? Existem – e é o suficiente para serem aceitos... Estupidez pretender eliminar os fatos. A nossa obrigação é analisá-los, ver se são intrínsecos à natureza humana ou superfetações (RAMOS, G., 2008, p.298, grifos nossos).

Como vemos, Graciliano se utiliza de uma terminologia de base científica

(“examinar”, “sondar”, “superfetações”) para marcar sua posição, definindo, nesse

terreno em particular, o ponto de partida do escritor (“nossa obrigação”) por meio de

pretensões investigativas. Graciliano, contudo, não se dá por satisfeito e põe em

perspectiva seu próprio argumento:

Preliminarmente lançamos opróbrio àqueles indivíduos. Por quê? Porque somos diferentes deles. Seremos diferentes, ou tornamo-nos diferentes? Além de tudo ignoramos o que eles têm no interior. Divergimos nos hábitos, nas maneiras, e propendemos a valorizar isto em demasia. Não lhes percebemos as qualidades, ninguém nos diz até que ponto se distanciam ou se aproximam de nós. Quando muito, chegamos a divisá-los através de obras de arte. É pouco: seria bom vê-los de perto sem máscaras. Penso assim, tento compreendê-los – e não consigo reprimir o nojo que me inspiram, forte demais. Isto me deixa apreensivo. Será um nojo natural ou imposto? Quem sabe se ele não foi criado artificialmente, com o fim de preservar o homem social, obrigá-lo a fugir de si mesmo? (RAMOS, G., 2008, p.298).

Ao concluir o capítulo, o escritor procura entender as próprias limitações de

compreensão ao atentar mais nitidamente para o aspecto social do problema. Avaliando

seus preconceitos, Graciliano vê neles o resultado da pressão de toda a sociedade sobre

as crenças do indivíduo. Ademais, ao mencionar a ideia da obra de arte como

limitadamente esclarecedora sobre o tema, o autor questiona certas visões estereotipadas

(certamente as encontradas em obras naturalistas), criticando, assim, o modelo

cientificista que inconscientemente o influencia. A impossibilidade de solução das

contradições ajuda então a acentuar o caráter inconclusivo como uma das principais

marcas das Memórias.

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Olhando o modo como Graciliano se passa a limpo, compreende-se que a

sobriedade e o desapego do escritor visam direcionar a atenção do leitor para o processo

de evolução dos acontecimentos, cuja importância se torna tão grande quanto a dos fatos

em si mesmos, revelando um traço marcante do romancista presente em toda a

narrativa.

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3- A estrutura das Memórias do cárcere: da prisão ao porão

3.1- Graciliano e a comparação com Luís da Silva, de Angústia

O aspecto desigual das Memórias, apontado por Antonio Candido, pode também

ser avaliado em relação às diferentes situações vividas pelo personagem, as quais

comportam percepções variadas de sua realidade do cárcere, bem como do país e do

mundo vistos pelo prisma dessa experiência traumática, que o escritor tenta reproduzir

por meio de estruturas compatíveis com o estado de ânimo momentâneo do

personagem, mas sempre combinadas a uma visão racional, relativamente distanciada,

de modo a prevalecer ora um aspecto, ora outro.

Estas estruturas podem ter seu sentido reforçado por uma análise da tensão do

posicionamento político-intelectual de Graciliano (escritor e personagem) de modo que

o sentido da prosa é antes de tudo um amálgama capaz de repor na forma do texto as

contradições de seu pensamento de esquerda. Desse modo, o escritor revela a

compreensão de que “articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal

como ele propriamente foi”39. Apesar de promover ao longo do texto certa inversão da

lógica tradicional ao afirmar que os homens do cárcere frequentemente tinham uma

visão mais crítica que a dos homens supostamente livres – devido à aceitação da

propaganda varguista por parte destes – não deixava de ressaltar também certo

embrutecimento mesmo dos prisioneiros mais intelectualizados (como ele próprio), de

maneira que o fato de ter sofrido e presenciado iniquidades não o impediu de perceber o

sentido da história como eternamente em disputa, fato do qual sua narrativa dá notícia

consciente e inconscientemente, revelando sua intenção de fugir a qualquer

tradicionalismo historicista.

Na primeira parte da narrativa, aqui considerada do início até a transferência de

Graciliano para o Rio (capítulo XVI - p.100) – apesar de certos aspectos comuns a

narrativa como um todo (aproveitamento de ideias e trechos contidos em outras obras

suas, especialmente em Angústia, digressões, certas construções psicológicas etc.) –

percebe-se o intuito mais específico de situar o processo de lutas pelo poder nos anos 20

e 30. Partindo do “sonho” da Coluna Prestes, passando pela crítica severa aos “tenentes”

39 Michael Löwy. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura sobre as teses “Sobre o conceito de história”. Tese VI, Cf. p.65.

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e chegando ao prenúncio do Estado Novo, Graciliano avança até o momento da prisão

de Luís Carlos Prestes, articulando suas posições ao longo do processo e fazendo

autocrítica. Nesse percurso, se não podemos falar propriamente em partidarismo

político visto Graciliano não escrever em nome do partido – apesar de sua atuação direta

nele – não se pode deixar de entrever sua simpatia, em especial pela figura de Prestes

(seu referencial em termos políticos), através da qual o escritor vai sutilmente

articulando sua posição política contemporânea à escrita. O escritor buscou preservar

um ponto de vista independente da doutrina do PCB, à qual, no entanto, tentava se

adequar politicamente – daí manter nas Memórias o distanciamento do discurso

partidário mais aberto, tendente a prejudicar a qualidade estética de sua obra, a

simplificar a complexidade dos acontecimentos no período do cárcere (quando ainda

não pertencia ao partido) e a comprometer certa isenção para reexaminar, depois de

mais ou menos uma década, os diversos tipos humanos com os quais conviveu. Não

obstante esse esforço por uma suposta neutralidade, aqui e ali aparecem marcas mais

evidentes de sua posição política, às vezes coincidentes com as do partido mesmo antes

do ingresso do escritor em suas fileiras, como é o caso em certa passagem do final do

capítulo III da Parte II (Pavilhão dos Primários). A intervenção em um dos poemas do

Capitão Mata, seu companheiro de prisão, imediatamente antes que este o lesse para os

outros companheiros, mostra aspectos importantes do posicionamento político e estético

do escritor:

Concluído o trabalho passou-me a folha: – Veja se está bom. Apontei um dos versos:

A burguesia, a burguesia... – Esse ataque não fica direito. Os burgueses progressistas são nossos amigos. – O imperialismo então? –Exatamente, concordei rindo. O imperialismo serve. E não ofende a métrica. (RAMOS, G., 2008, p.208)

Nesse trecho aparecem a força da consciência literária e certa limitação da visão

política, dois aspectos comumente imbricados nas Memórias e reveladores talvez mais

que em qualquer outra obra do caráter contraditório do homem Graciliano. Se por um

lado o escritor critica a frágil poesia engajada do capitão de pretensões revolucionárias,

mostrando o quanto diverge da literatura panfletária, por outro recai no problema do

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compromisso político reformista (e, portanto, antirrevolucionário). A posição aqui, vale

lembrar, é de 1936, logo, anterior à entrada no PCB, de modo que não pretende ser uma

exposição de dogma do partido. Por outro lado, como apenas narra sem atribuir juízo

explícito ao ocorrido e à sua posição de então (o que acontece em diversas outras

passagens), fica subentendido que nos dois aspectos (o estético e o político) sua posição

anterior permanece.

O trecho reflete em boa medida uma tendência no comportamento político da

época. Se o autor não faz “pregação” política também não está totalmente isento das

novas concepções políticas que surgem nos meios oposicionistas depois do fracasso do

levante de 1935. Após esse evento e a consequente complicação das comunicações entre

a URSS e o Brasil, Moscou tratou de repassar aos dirigentes do PCB as novas diretrizes

da Internacional Comunista. Segundo elas, mudava-se o foco da luta nos chamados

“países semicoloniais” da revolução proletária para uma frente anti-imperialista e

antifascista. Nesse novo quadro, a burguesia nacional apresentava-se como força

autônoma, supostamente revolucionária, pronta a assumir um papel de destaque na

condução dos destinos do país, contrariando a linha original do PCB, que a caracterizara

desde a década de 20 como representante interna do imperialismo40.

Como se vê, o modo de veicular posições sem confirmá-las taxativamente,

especialmente no que respeita à política, é um procedimento construtivo das Memórias

e Graciliano o utilizou para evitar certas polêmicas, mas acima de tudo para impedir que

a qualidade literária de seu texto se deteriorasse, daí sua intenção de busca por uma

espécie de imparcialidade literária nem sempre conseguida.

Para discutir a construção da obra na relação com os pensamentos do escritor ou

com sua posição política é interessante termos também como parâmetro o mencionado

por Antonio Candido a propósito do primeiro capitulo das Memórias (ao qual temos

chamado de prefácio, já que é esta sua função) como um momento em que:

40 O processo das disputas políticas internas ao PCB encontra-se detalhadamente descrito em Luta Subterrânea: O PCB em 1937-1938, de Dainis Karepovs (Cf.). Sobre a referida mudança de diretriz pode-se ler o subitem “A burguesia nacional como força motriz da revolução brasileira” (cap. 2, p.122-132).

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...a verdade aparece despida de qualquer demagogia, preconceito ou autovalorização. Isto num homem de temperamento forte, vivendo de sentimentos e paixões, adepto de uma ideologia política absorvente, não raro deformadora da realidade na dura coerência de sua tática.41

Aqui Antonio Candido se refere ao aspecto humano que sobressai na proposta

de Graciliano, avaliação de acordo com sua análise de toda a obra do escritor, onde o

critico percebe uma espécie de comunismo natural como forma de oposição às normas

sociais (ver item 1.2, p.27). Entretanto, o simples fato de ter mencionado a “ideologia

política absorvente”, pode render um passo a mais no argumento se atentarmos para a

referência ao prefácio, ou seja, à proposta do autor, o que deve ser verificado na obra

como um todo. Nossa observação feita anteriormente a propósito do desprendimento

confessional do escritor pode, portanto, ser relacionada com a afirmação do crítico sem

prejuízo de outros aspectos contraditórios porventura revelados pela análise da obra.

Apesar de sua análise não ir por esse caminho – mesmo quando menciona o “comunista

militante e convicto”, visto o depoimento ser analisado preferencialmente como

“humanização no sentido mais nobre” (FC, p.81), algo também correto em nosso

entendimento – Antonio Candido acaba por dar a indicação de outro modo possível de

olhar para as Memórias. O prefácio é realmente valoroso em si como declaração de

princípios do autor, o que, entanto, não garante a priori a realização de suas intenções,

tendo o próprio escritor plena consciência disso. Não se trata de dizer que o autor tenha

propriamente deformado a realidade em seu relato – ao modo, por exemplo, de certos

ideólogos autointitulados defensores dos interesses das massas (coisa que Graciliano

nunca fez) – uma vez que a investigação de si mesmo em busca das razões de seus atos

não deixa dúvidas quanto à retidão de suas intenções.

Entretanto, parece lícito observar a recente posição política assumida por

Graciliano deixando traços na primeira parte do relato, que sabemos ter sido escrita em

1946, momento no qual o escritor recebe as primeiras influências da convivência

partidária (estas evidentemente não eliminarão a autonomia criativa, mas deixarão

marcas), as quais a sequência da narrativa – construída ao longo de alguns anos por um

Graciliano cada vez mais crítico em relação ao partido e à sorte do país – irá pôr em

perspectiva. Isso faz o caráter histórico do relato assumir certas peculiaridades a nosso

ver inconscientes por parte do escritor, mas que, no seu conjunto, refletem essas

41 Antonio Candido. Os Bichos do subterrâneo. Cf. p.125.

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influências no modo como ele é organizado. Com isso, uma questão a ser mencionada é

que, além de a narrativa prezar a memória do próprio escritor bem como a dos

companheiros de cárcere (“homens de várias classes, das profissões mais diversas,

muito altas e muito baixas”, MC, p.13), a autobiografia de Graciliano acaba sendo em

alguma medida também a obra de um homem que falava para uma coletividade, de

modo que ele então assumiu as contradições típicas de sua posição de classe para tentar

superá-las (nem sempre de modo bem-sucedido), resultando desse esforço de

autoconhecimento e autodescrição uma narrativa reveladora de riqueza precisamente na

mobilidade do pensamento. As Memórias são, portanto, em certa medida, a

representação de seus desejos de intervenção na realidade (ainda que considerasse frágil

sua posição), de busca de aproximação da literatura com a prática das coisas do mundo.

Sob esse aspecto, a própria mudança do romance para a autobiografia parece revelar sua

intenção.

Nesse sentido, podemos dizer que a primeira parte das Memórias constitui até

certo ponto uma constatação de Graciliano sobre a ausência em si mesmo de uma visão

prática, interventiva, o que aparece indiretamente expresso por meio da frágil intenção

“revolucionária” de seu personagem Luís da Silva. A prática partidária relativamente

ativa a partir de 1945 (considerando-se a personalidade pouco expansiva do escritor),

mesmo acreditando-se limitado como militante e vendo a dureza de certas decisões do

partido, faz parte de uma tentativa de sair da imobilidade. Não é por acaso que apesar

das divergências permaneceu ligado ao partido até sua morte.

Dentro dessa visão das circunstâncias o escritor reconstrói seus primeiros

momentos na prisão. A figura do “revolucionário chinfrim” aparece repetidas vezes e

evoca diferentes aspectos de autocrítica. Na primeira, critica sua passividade pelo modo

como se deixou prender, em casa e de malas prontas, esperando que o viessem buscar:

Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. Desculpava-me a idéia de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento. No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de direitos. (RAMOS, G., 2008, p.31)

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As vozes do passado e do presente da escrita claramente se entrelaçam,

prevalecendo a crítica ao passado e uma leve sugestão do presente. Se antes desculpava-

se por “não pertencer a nenhuma organização”, agora pertencendo, sente-se ao menos

impelido a tentar realizar “tarefas práticas” e a “trabalhar em conjunto”, ainda que lhe

seja custoso. Com isso, a importância de acreditar em suas “armas fracas e de papel”,

“manejadas no isolamento”, adquire um sentido mais claramente politizado. Graciliano

tenta, assim, se opor à sua própria visão pequeno-burguesa como modo de reconstruir

sua visão de intelectual.

Mais adiante, a autodenominação pejorativa ressurge com um traço de ironia.

Com a distância que lhe dá o novo ponto de vista, olha para seu comportamento ingênuo

com certa condescendência:

Decerto me guardariam, possivelmente me poriam em contato com alguns criminosos, pessoas que, interessando-me demais, até então me haviam aparecido em tratados ou de longe. Conhecimento imperfeito, sumário. E mostrar-me-iam os revolucionários de Natal, do 3º Regimento, da Escola de Aviação. Até certo ponto podia considerar-me uma espécie de revolucionário, teórico e chinfrim. Sorria-me a perspectiva de olhar de perto revolucionários de verdade, que ultimamente eram presos em magotes. (RAMOS, G., 2008, p.31)

Neste primeiro momento, o novo ponto de vista político tenta corrigir o antigo.

Graciliano procura atualizar uma visão contestatória sem o “sorriso” da perspectiva

considerada mais “ingênua” de romancista que, no contato com os “revolucionários de

verdade”, poderia satisfazer o desejo de conhecer figuras até então mais ou menos

idealizadas e teria grande assunto para uma nova narrativa. Com isso, afasta-se do

perigo representado pela crença numa visão culturalista, em que a literatura (assim

como a arte em geral) aparece como uma espécie de libertação. Já vai se anunciando

aqui, portanto – sendo ampliada como discussão ao longo das Memórias – a tentativa de

encontrar o lugar exato da literatura, ou seja, de reconhecer sua força e sua limitação

como instrumento de intervenção na sociedade.

A comparação consigo mesmo aparece mais claramente quando retomamos na

análise um dos critérios adotados para a confecção das Memórias: o aproveitamento de

certos aspectos do romance Angústia.

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Pode-se dizer que a primeira parte das Memórias tem algo de continuação

temática de Angústia se tomarmos o romance sob o aspecto da representação da

condição do intelectual. A comparação de si mesmo com Luís da Silva, referida ora

direta, ora indiretamente nas Memórias, torna-se perceptível na leitura do romance, com

o qual o diálogo é constante. Como ficcionalização em certa medida do próprio

Graciliano, Luís da Silva é dentre os personagens de seus romances o que com ele mais

guarda semelhanças: a condição de funcionário público (Graciliano fora funcionário da

Imprensa Oficial em 1930 e diretor da Instrução Pública de Alagoas em 1936, quando

foi preso), de escritor e articulista, bem como a origem de família econômica e

socialmente decaída (no caso, de proprietários de terras), aspectos comuns no retrato de

parte da intelectualidade brasileira da década de 30.

Dada sua visão crítica, Graciliano tinha consciência de que sendo originário de

uma classe elitizada corria sempre o risco de reproduzir sua ideologia, da qual ele se

acusa nas Memórias e à qual procurava se opor. Podemos dizer nesse sentido que as

Memórias são um relato com vistas à superação dos preconceitos de classe, uma

tentativa do escritor de formar uma visão de mundo condizente com sua proposta

política e, nesse sentido, o relato, sendo um resultado literário, deve ser entendido

também como parte de um processo de construção do ponto de vista, que vai se

aprofundando ao longo da narrativa. A luta de Graciliano contra Luís da Silva e o que

ele representa é, pois, como afirmou Sartre, a “luta do intelectual contra suas próprias

contradições, nele e fora dele”42.

Levando em conta o aspecto histórico, torna-se possível, retrospectivamente a

partir das Memórias, perceber como Angústia revela certo caráter quase divinatório da

prisão e, por isso, é recuperado no texto autobiográfico não só como o livro que

precisava ser corrigido (“Os consertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo,

suprimir as repetições excessivas”, MC, p.21), mas principalmente como um texto que

agrega sentido, esclarecendo as próprias Memórias e antecipando a necessidade de o

próprio Graciliano se passar a limpo. O momento em que Luís da Silva, após ter

assassinado Julião Tavares, aguarda ser preso é um exemplo interessante dessa relação

entre o criador e a criatura: 42 Jean-Paul Sartre. Em defesa dos intelectuais. Cf. p.52.

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Porque não me vinham buscar os miseráveis da polícia? Porque faziam comigo aquela brincadeira de gato com rato? Eu os acompanharia, mostraria a roupa rasgada, os fios da gravata no monturo, falaria do cigarro oferecido pelo vagabundo. Porque não vinham logo? Muitos anos nas redes sujas, nas esteiras de pipiri. Escreveria um livro. A idéia do livro aparecia com regularidade. Tentei afastá-la, porque realmente era absurdo escrever um livro numa rede, numa esteira, nas pedras cobertas de lama, pus, escarro e sangue. (RAMOS, G., 1986a, p.223)

Até a obsessão pela escrita é a mesma que Graciliano viria a relatar a propósito

de sua prisão, em comparação explícita com seu personagem:

O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das grades úmidas e pretas. Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários, riscando linhas, metendo entrelinhas nos papéis datilografados por d. Jeni. Deixar-me iam concluir a tarefa? Afinal a minha pretensão não era tão absurda quanto parece. Indivíduos tímidos, preguiçosos, inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. (RAMOS, G., 2008, p.24-25)

Portanto, esta vã tentativa de se convencer da facilidade de escrever na prisão

revela uma vontade talvez inconsciente de superar seu personagem, o que, no entanto,

não seria totalmente possível, dadas certas semelhanças profundas entre os dois e as

dificuldades reais que iria enfrentar na mudança de ambiente. Pouco após o momento

descrito na passagem acima, Graciliano é preso, o que não ocorre com o personagem de

Angústia. A morte de Julião Tavares, membro da burguesia, classe odiada, mas também

admirada por Luís da Silva (“Nenhum desejo de fugir às pessoas que iam ao teatro.

Sentia era vontade de ir também, sentar-me numa cadeira junto ao palco, bater palmas,

olhar os camarotes”, Angústia, p.123), não causa a punição de Luís. Entretanto, este

percebe a inutilidade de seu ato, mostrando a plena percepção de Graciliano de que a

consciência política só tem sentido quando se realiza enquanto ato coletivo. Junta-se a

isso o fato de o comportamento de Luís se caracterizar, de um modo geral, por “não

levantar a espinha” (idem), de modo a não incomodar os de cima.

Graciliano, por sua vez, muito incomodou o poder instituído com seus escritos e

suas atitudes nos cargos públicos pelos quais passou e já fora preso em 1930 por ocasião

da “Revolução”, de modo que a interessante relação entre o criador e a criatura em seu

aspecto antecipatório pode até ser vista como esperada pelo próprio escritor que, tendo

imaginado sua prisão em Angústia, finalmente seria encarcerado em março de 1936.

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Pensando retrospectivamente, olhando das Memórias em direção a Angústia,

podemos dizer que essa relação se estabelece com verdadeira força no romance a partir

mais ou menos da metade (p.123, aproximadamente), ponto em que a crise de Luís da

Silva começa a tomar uma proporção mais acentuada. É quando ele relata seu interesse

pela ideia de revolução. Trata-se da consciência mais aguda de sua condição subalterna

de “funcionário das superestruturas”, para falar com Gramsci. Até então, seu caso com

Marina, com quem decidira se casar, o mantinha em certo conformismo. No momento

em que a perde assume uma falsa posição revolucionária, com traços de idealização das

classes pobres. A obsessão com Marina – situada na camada mais aparente da obra – é,

na verdade, a mediação utilizada para tratar do tema principal, ou seja, a vida de um

intelectual de capital provinciana, cujo rebaixamento social e econômico o leva a uma

séria crise emocional, agravada com a perda da namorada.

Com essa crise, o personagem tenta avaliar sua situação considerando o contexto

histórico, mas apesar do desejo de ver a ruína do capitalismo consegue apenas um

aprisionamento da indignação nos limites de seu pequeno mundo; curiosamente o

mesmo (re)afirmado pelo escritor nas Memórias (“...ambicionara com fúria ver a

desgraça do capitalismo...”, p.25; “O que eu desejava era a morte do capitalismo, o fim

da exploração.”, p.99):

Uma pátria dominada por dr. Gouveia, Julião Tavares, o diretor da repartição, o amante de d. Mercedes, outros desta marca, era chinfrim. Tudo odioso e estúpido, mais odioso e estúpido que o sujeito cabeludo que despejava aguardente no copo sujo. (RAMOS, G., 1986a, p.174)

Graciliano busca, em movimento inverso nas Memórias, elevar sua vida à

história, passando esta em certos momentos para o primeiro plano, visando a uma

ampliação do alcance político do relato que, em última instância, sempre tem ao menos

implícita a referência a alguma coletividade.

A consciência política nas Memórias tenta se revelar de maneira mais coesa,

tendo o escritor efetivamente percorrido um caminho rumo a uma posição mais

esclarecida, porém não livre de contradições. Trata-se do trecho em que Graciliano vai

do Prestes lendário ao político. A notícia da prisão do líder comunista é o mote para

uma breve passagem pela história recente do país, de tal forma que Graciliano

encaminha o relato ligeiramente ao modo de um argumento político para seu ponto de

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vista daquele momento. Ao mencionar a notícia lida num jornal de Recife, vai logo

acrescentando:

Eu não tinha opinião firme a respeito desse homem. Acompanhara-o de longe em 1924, informara-me da viagem romântica pelo interior, daquele grande sonho, aparentemente frustrado. Um sonho, decerto: nenhum excesso de otimismo nos faria ver na marcha heróica finalidade imediata. Era como se percebêssemos na sombra um deslizar de fantasma ou sonâmbulo. (RAMOS, G., 2008, p.60)

Graciliano insere aqui o primeiro marco de sua posição atual, ao se opor à

condição antiga de desconhecimento daquela figura, dando a entender que “agora” já

possuía “opinião firme” com relação ao líder comunista. A lembrança do Prestes-mito

acaba, portanto, sendo o ponto de apoio para organizar uma breve explicação sobre seu

processo de conscientização política desde o passado interiorano até o presente

contemporâneo à escrita. Partindo da vivência no interior de Alagoas – apresentada

como geradora de uma visão de mundo limitada por ter sido influenciada pelo senso

comum, porém ao mesmo tempo capaz de engendrar um primeiro momento de vaga

consciência coletiva – e a propósito da Coluna, Graciliano observa:

Um protesto, nada mais. Se por um milagre a coluna alcançasse vitória, seria um desastre, pois nem ela própria sabia o que desejava. Já não era pouco essa rebeldia sem objetivo, numa terra de conformismo e usura, onde o funcionário se agarrava ao cargo como ostra, o comerciante e o industrial roíam sem pena o consumidor esbrugado, o operário se esfalfava à toa, o camponês agüentava todas as iniqüidades, fatalista, sereno. Com certeza essa gente arregalava os olhos espantada – e se nos de cima o espanto se mudava em ódio, nos de baixo começava a surgir uma indecisa esperança. Às portas das farmácias, nas vilas, discutia-se com entusiasmo o caso extraordinário. (RAMOS, G., 2008, p.61)

Como se vê, o trecho é um pequeno panorama delimitador das posições de

classe. Graciliano então recompõe o caminho da lenda, passando da vaga percepção

coletiva à sua própria consciência individual, quando a história se legitima a partir do

relato do tio que, por assim dizer, assume um traço aproximado do narrador

benjaminiano, pois o fato de ter convivido com a Coluna no interior de Pernambuco lhe

confere certa autoridade do viajante “que tem muito que contar”43:

43 Walter Benjamin. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Cf. p.198.

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Meu tio Abílio, matuto rude, proprietário de caminhões no alto sertão de Pernambuco estivera uns dias a serviço dos revoltosos... Assistira a combates, caíra numa emboscada, fugira precipitadamente, levando alguns defuntos no carro. Abílio me havia falado com ardor na disciplina, na ordem, no espírito de justiça que observara no bando foragido. O depoimento desse sertanejo bronco valia mais, para mim, que as tiradas ordeiras da imprensa livre, naturalmente interessada em conservar privilégios, fontes de chantagem, e pouco disposta a esclarecimentos perigosos. Bom que alguns repórteres tivessem rodado nos carros de meu tio. Como isto não sucedera, pouco valiam as informações das gazetas. Aceitávamos, pois, as notícias orais, e estas começavam a envolver o guerrilheiro teimoso em prestígio e lenda. (RAMOS, G., 2008, p.61)

O aspecto lendário da história do tio encontra paralelo nas ideias de Walter

Benjamin sobre a narrativa. Se Benjamin considerava o grau de exatidão dos relatos

antigos frequentemente maior que o da informação, o mesmo fez Graciliano aqui.

Apesar da suspeita sobre a veracidade de parte dos relatos do tio – visto que os homens

(inclusive ele) aceitavam “as notícias orais e estas começavam a envolver o guerrilheiro

teimoso em prestígio e lenda” – fica referida a possibilidade de o amálgama de ficção e

realidade ter contado mais na conformação de sua visão sobre o acontecimento histórico

que a notícia (frequentemente falsa) da imprensa escrita. Pesados todos os aspectos, o

tom preponderante no trecho é de aprovação ao depoimento do “sertanejo bronco”.

Como conhecedor da importância da narrativa, o escritor não a desqualifica já que a

lenda tem força verdadeira de ensinamento, especialmente numa realidade carente de

informação, na qual as razões para os acontecimentos politicamente relevantes quase

nunca se revelam plenamente pelos meios oficiais. Desse modo, Graciliano realça como

o mito de um homem se presta ao processo de desmitologização da visão política de

outros, ainda que de forma a apenas soprar levemente um pouco da névoa de suas

consciências.

Logo na sequência, após mencionar o fim da Coluna e o exílio, Graciliano

retoma a figura de Prestes sob um aspecto menos mítico (semimítico, por assim dizer),

correspondente ao homem que recusou o poder pela via não revolucionária, ficando,

assim, ainda revestido de certa aura:

Depois de marchas e contramarchas fatigantes, o exílio, anos de trabalho áspero. E quando, num golpe feliz, vários antigos companheiros assaltaram o poder e quiseram suborná-lo, o estranho homem recusara o poleiro declarara-se abertamente pela revolução. Lembrava-me dos manifestos em que o lutador fugia às divagações estéreis, largava os aproveitadores, se dizia comunista, pronto a seguir para a União Soviética. Bem. Agora essa criatura singular, incapaz do retrocesso ou hesitação, possuía um roteiro – e

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sem olhar atalhos e desvios, andaria seguro para a frente, insensível a estorvos e fadigas, sacrificando-se por inteiro e em conseqüência nenhum escrúpulo tendo em sacrificar os outros. A experiência obtida na marcha quixotesca muito lhe iria servir. Que desgosto causaria nos nossos governos apáticos e cegos quando se decidisse a entrar novamente em ação, dirigido por uma certeza? (RAMOS, G., 2008, p.61, grifos nossos)

Aqui, sem prejuízo do mito, uma visão mais realista de Prestes (os sacrifícios

mencionados) revela um momento mais evoluído da consciência política do escritor

que, então em 1930, imaginava no futuro um movimento com maiores possibilidades de

êxito político.

Na passagem seguinte, ocorre o salto para 1934, ano em que Prestes ingressa no

PCB (“De repente voltava”, p.62) e o ano de 1935 (“a Aliança Nacional Libertadora

surgia”, idem). Para descrever esse momento, com Prestes na clandestinidade,

Graciliano traz a ação da ANL para o primeiro plano, tentando caracterizar as

movimentações políticas de então, que se dividiam entre uma possível aliança de

classes, da qual ele então desconfiava (“Seria possível uma associação entre as duas

classes? Isso me parecia jogo perigoso. Os interesses da propriedade, grande ou

pequena, a lançariam com certeza no campo do fascismo...”, p.62), e a possibilidade de

uma insurreição bem sucedida, da qual também duvidava, dadas as limitações da

atuação da ANL (“Organização precária. Agitação apenas.”, “...me parecia que certas

palavras de ordem da Aliança Nacional Libertadora haviam sido lançadas

precipitadamente.”, idem). Toda a crítica aos “absurdos” que “pressupunham

desorientação” (p.62) vai, de um modo geral, acabar servindo a uma certa valorização

do líder político, cuja figura surge cada vez mais sóbria na passagem até o fechamento

do capítulo.

Com uma intervenção mais acentuada e mais extensa do que fizera até então na

narrativa, Graciliano representa a evolução de sua posição crítica diante dos

acontecimentos, apesar de, em última instância, se sentir impelido a acreditar na

revolução (“Esperava enfim um triunfo casual. Viera a derrota – e agora queria

persuadir-me de que findara um episódio e a luta ia continuar. Certamente haveria mais

precaução no desempenho do segundo ato.”, p.63). A voz aqui já é marcadamente a do

presente, em oposição à do passado. Pouco antes, as vozes haviam se mesclado em

concordância (“Muitos anos seriam precisos para despertar essas massas enganadas,

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sonolentas – e a propaganda feita em alguns meses naturalmente fora escassa.”, p.62).

Aqui retorna o motivo do “revolucionário chinfrim”, com o qual se desculpa ao leitor

por sua ingenuidade revolucionária, alegando o momento histórico como imposição às

suas crenças e a seus atos. Nesse sentido, sua antiga crença na continuidade da luta após

o fracasso da Intentona Comunista é ilustrativo:

Os ensinamentos adquiridos seriam úteis mais tarde. De qualquer modo era necessário que nos preparássemos. Incluindo-me nesse plural, intimamente me obrigava, embora me reconhecesse um soldado bem chinfrim, jogado à peleja em condições especiais. Realmente não me envolvera em nenhum barulho, limitara-me a conversas e escritas inofensivas, e imaginava ficar nisso. A convicção da própria insuficiência nos leva a essas abstenções; um mínimo de honestidade nos afasta de empresas que não podemos realizar direito. Mas as circunstâncias nos agarram, nos impõem deveres terríveis. Sem nenhuma preparação, ali me achava a embrenhar-me em dificuldades, prometendo mentalmente seguir o caminho que me parecia razoável. (RAMOS, G., 2008, p.63)

Aqui o discurso é mais moderado na autocrítica ao aspecto “chinfrim” de sua

atitude “revolucionária” se tomarmos por comparação a crítica ao caráter pequeno-

burguês de sua atitude no momento em que fora preso (“Essa vaidade tola devia basear-

se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de

direitos”, p.31). Isso ocorre porque Graciliano – ao contrário do que fez na passagem

relativa à sua prisão – sai em defesa do Graciliano-intelectual. Apesar de no trecho da

página 31 ele já mencionar a questão do trabalho no isolamento, próprio ao intelectual,

o que lá ocorre é um tanto a negação da força do produto do escritor (“minhas armas,

fracas e de papel”). Aqui, se não podemos dizer que ocorre exatamente o oposto, isto é,

uma valorização da atividade do escritor até o nível em que ela se revela imprescindível

à prática – dada “a convicção da própria insuficiência” – ao menos o papel do

intelectual fica ressaltado em suas “condições especiais”. Com isso, vemos que a

narrativa reproduziu aqui, num nível inconsciente por meio da modalização do discurso,

a contradição do intelectual de esquerda, acentuada nos momentos históricos decisivos,

entre preservar o isolamento característico de uma posição mais ou menos cômoda e

dedicar-se à práxis revolucionária, para a qual precisa se opor ao ponto de vista recebido

de sua formação burguesa. Além disso, serve como justificativa da escrita do relato

deixado ao leitor, pois esclarece que o intelectual, dentro da condição de luta real, ou

seja, como parte integrante de um momento de necessidade histórica deve se apresentar

em toda sua problemática.

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Finalizando o parêntese sobre a trajetória de Prestes, Graciliano conclui da

mesma forma como o abrira, ou seja, recuperando a ideia de que à época dos

acontecimentos narrados não conhecia bem aquele “estranho homem”. De volta à

realidade momentânea, conclui o capítulo com uma breve avaliação do cerco que se

fechava:

Aquela notícia de poucas linhas num jornal do Recife me abalava. Ainda não dispunha de meios para avaliar com segurança a inteligência de Prestes: dois ou três manifestos, repreensões amargas aos antigos companheiros, eram insuficientes. Admirava-lhe, porém, a firmeza, a coragem, a dignidade. E sentia que essa grande força estivesse paralisada. – Com os diabos! Certamente outros iriam cair, as prisões se encheriam, a ditadura mal disfarçada que humilhava um congresso poltrão grimparia. Anos perdidos. E se a agressão fascista continuasse lá fora, teríamos aqui medonhas injustiças e muita safadeza. (RAMOS, G., 2008, p.64)

A junção de história brasileira e trajetória pessoal (dele e de Prestes) tem como

ponto de chegada não o tempo dos últimos acontecimentos narrados, mas o presente da

escrita. Aquilo que o escritor não narra, mas deixa entrever é ao mesmo tempo o ponto

de partida para a construção do relato. Nesse sentido, podemos dizer que o presente

histórico para Graciliano ganha uma posição importante no relato ao se tornar causa da

visão do passado. Naturalmente, não se trata de uma visão triunfante, pois o trecho é

narrado prioritariamente num tom menor apesar da avaliação positiva da figura de

Prestes, de modo que a conhecida admiração do escritor pelo líder político fica

propositadamente amenizada em favor da tentativa de uma visão mais equilibrada da

história.

Considerando a força que o entrelaçamento de relato pessoal e histórico dá à

longa passagem, pode-se dizer que a narrativa caminha em sua primeira parte aliando

contradições crescentes entre a nova realidade do cárcere e antigas crenças. O apoio da

história acaba servindo nesse caso como contraponto à crise de consciência que já

começa a se estabelecer no Graciliano-personagem. Nesse sentido, o presente da escrita,

com o autor buscando estabelecer um posicionamento político mais consciente, ajuda a

compor literariamente o esfacelamento das ingênuas convicções.

A mudança dramática já anunciada na primeira parte do livro ainda não

representa a chegada ao ponto de a escrita vigorar propriamente como meio de

sobrevivência. O desarranjo interior está apenas se esboçando; a organização do diário e

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das notas relativas ao “ramerrão” da prisão militar revela certo controle do espírito, o

qual Graciliano não sofria tão desesperadamente para manter. Daí o texto não chegar ao

ponto de dramaticidade exigido mais adiante pela descrição do inimaginável.

A representação do desarranjo emocional irá efetivamente ocupar um lugar de

destaque num segundo momento – através de uma revisão de seus atos que visa

naturalmente recuperar a memória de um homem (e, com ele, de uma época) – mas,

subliminarmente, a construir a imagem de si próprio como um indivíduo bastante

abalado em suas certezas. Este choque entre velhas e novas posições não se percebe

inicialmente apenas pela avaliação do acima exposto sobre a prisão de Prestes, mas

também pela combinação da narrativa desses acontecimentos com afirmações esparsas

sobre a posição política do escritor.

Na ocasião da transferência de Graciliano para o quartel de Recife, onde ficaria

preso, o escritor é visto por pessoas conhecidas em diferentes estações da Great

Western. Primeiro, por Benon Maia Gomes (diretor do Serviço de Algodão de Alagoas);

depois, pelo deputado José da Rocha, tendo ambos feito repreensões às suas convicções

políticas. Quanto à atitude do deputado, Graciliano narra:

Outro conhecido, também visto de relance numa estação, foi o deputado José da Rocha. Ao ter conhecimento da infeliz notícia, recuou, temendo manchar-se, exclamou arregalado: – Comunista! Espanto, imenso desprezo, a convicção de achar-se na presença de um traidor. Absurdo: eu não podia considerar-me comunista, pois não pertencia ao Partido; nem era razoável agregar-me à classe em que o bacharel José da Rocha, usineiro, prosperava. (RAMOS, G., 2008, p.37, grifo nosso)

A análise do escritor quanto à atitude do deputado deixa transparecer a ideia de

que comunista é somente quem pertence ao partido, de modo que o “comunismo

natural” apontado por Antonio Candido, na visão do escritor não chega a ter o mesmo

peso do comunismo, por assim dizer, “político”.

Em outra passagem, relativa ao incidente com o general Newton Cavalcanti

(cujo nome não é mencionado), Graciliano reafirma sua posição. O general, integralista

ferrenho, dissera diretamente ao escritor: “– Comunista, hem?” (p.74), obtendo resposta

negativa. Logo em seguida, a propósito de sua conversa com Capitão Mata, que o

repreendera por ter se “comportado lastimosamente” perante o general (p.75), o escritor

retruca, mas endereçando-se ao leitor em parte por meio do discurso indireto:

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Ora essa? E por quê? Não era aquele o modo próprio de me dirigir a um general. De fato, eu ignorava tudo nessa matéria, mas convencia-me de não haver praticado nenhuma inconsideração. Afirmara não ser comunista – e dissera a verdade: estava fora do Partido. Se estivesse dentro, não iria confessar atividades ilegais, claro, mas não estava. (RAMOS, G., 2008, p.37, grifo nosso)

Aqui o discurso é até mais enfático quanto à questão. Se antes o escritor

modaliza um pouco a ideia (“eu não podia considerar-me comunista”), o que pode ser

lido como “era mais ou menos simpático pelo comunismo”, agora é mais afirmativo na

identidade entre o comunismo e o partido. Entretanto, não leva adiante qualquer tom

elogioso, procurando “neutralizar” a afirmação para deixar em primeiro plano apenas o

fato de pertencer ao PCB.

O aproveitamento da ligação mais forte entre a escrita e o posicionamento

político parece sofrer uma primeira redução no episódio que podemos considerar central

para a denominada primeira parte do livro, tornando-se uma espécie de contraponto ao

discurso mais diretamente historicizado. Trata-se do capítulo XV, que narra a

surpreendente atitude do “excelente Capitão Lobo”, oficial do quartel onde Graciliano

ficou preso. A oferta de um “empréstimo” ao escritor, prestes a ser transferido para o

Rio de Janeiro, abala profundamente algumas de suas convicções mais arraigadas. A

partir desse momento podemos dizer que a narrativa começa a se guiar por um maior

autoquestionamento de sua consciência e uma comparação constante e muitas vezes

dolorosa com o “outro”. Por essa razão, haverá implicações também no modo como a

narrativa será construída, naturalmente levando-se também em conta que as próprias

experiências inusitadas futuras, narradas na segunda parte do livro, dariam as condições

para o exercício de construção de um discurso cada vez mais autocrítico até quase o

ponto da total supressão da autopiedade.

Após a imprevista oferta de empréstimo (de “algumas economias que não me

fazem falta por enquanto”) ao escritor “demitido inesperadamente” (MC, p.88), Lobo

ainda surpreende Graciliano com a afirmação de que também já estivera preso e vivera

no exílio, tendo viajado num porão de navio de São Paulo à Europa. Pode-se dizer que é

a primeira ocasião em que a realidade se torna profundamente atordoante para o

personagem Graciliano. A sensação descrita mostra se tratar realmente de um momento

de transição, cuja ampla significação o escritor ainda iria levar algum tempo para

alcançar:

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Foi pouco mais ou menos o que me disse. Tornei a agradecer e a recusar, as orelhas em fogo, na tremenda confusão que me causava a enorme surpresa. Teria realmente ouvido bem aquelas palavras? Apesar de se haverem prolongado longos instantes, entre pausas e gestos enérgicos não me decidia a admiti-las; de fato eram bem claras, irrecusáveis, mas nos últimos dias ia-me habituando a perceber coisas aparentemente destituídas de senso. Achava-me atordoado, como se tivesse recebido um murro na cabeça, e só sabia repetir as mesmas frases curtas e insossas: –Estou bem, não me falta nada. Ora essa! Muito obrigado. Não é necessário. (RAMOS, G., 2008, p.89)

Essas “coisas aparentemente destituídas de senso” eram os aspectos relativos à

estranha lógica do regime de exceção, como prisões arbitrárias e manutenção em

cárcere sem processo (o caso do escritor) e transferências sem razão aparente, dando-lhe

a impressão de que em situações como aquela “apenas desejam esmagar-nos,

pulverizar-nos, suprimir o direito de nos sentarmos ou dormir se estamos cansados”

(MC, p.42-43). Nesse contexto, a impossibilidade de saber sequer o destino de uma

transferência aparece como mais um indicativo da nova realidade atordoante. O

momento em que é levado juntamente com outro preso (Capitão Mata) num carro

oficial da estação de trem em Recife ao quartel-prisão nos permite imaginar esse

sofrimento como um dos temas mais importantes a serem tratados nas Memórias:

A um lado, o meu companheiro dava-me palpites desprovidos de significação; no outro lado, o nosso guia, atento, digno, o busto ereto, quase se invisibilizava na penumbra do veículo. Começava a esboçar-se a terrível situação que ia perdurar: uma curiosidade louca a emaranhar-se em cordas, embrenhar-se em labirintos, marrar paredes, e ali perto o informe necessário, imperceptível nas linhas de uma cara fria e enigmática. (RAMOS, G., 2008, p.43)

Dado o acúmulo de incertezas de que Graciliano se tornou vítima, a reação

diante da oferta de Lobo aparece narrada como o ápice de um primeiro acúmulo de

sensações inesperadas e um ponto de virada na narrativa. Não por acaso a sensação de

atordoamento, narrada como um “murro na cabeça”, irá reaparecer em outros episódios

onde há surpresa e mudança de pensamento ou atitude por parte do Graciliano-

personagem.

A importância do episódio com o capitão leva o narrador a uma reflexão sobre a

condição dos homens. Na medida em que expande o significado daquele momento

inusitado a um contexto social maior podemos verificar uma das técnicas construtivas

do escritor em sua intenção de explorar, conforme a visão já mencionada de Antonio

Candido, a “prisão enquanto mundo”:

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Uma proposição insensata encaixada em diálogo curto. Apenas. Conseguiria, porém, desembaraçar-me dela, misturá-la às amofinações da cadeia, aos toques de corneta e à vigília da sentinela, recuperar, depois de solto, os pequenos tédios e as pequenas alegrias, completamente livre? Não. Decerto não me libertaria de todo. Já ali começava a sentir uma nova prisão, mais séria que a outra, a confundir-me terrivelmente as idéias. Não imaginara poder testemunhar semelhante ação. Pessimismo? De forma nenhuma. Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar. (RAMOS, G., 2008, p.90)

Aqui, como em geral nos momentos cruciais do relato, o narrador se passa a

limpo. A base de seu pensamento antigo é exposta e questionada em uma espécie de

gradação, indo da simples indagação momentânea (“Conseguiria, porém, desembaraçar-

me dela?”) até o conceito que fazia dos homens (“julgava-os sofríveis”). A limitada

visão de mundo de até então, segundo a qual os homens deveriam encaixar-se quase

inexoravelmente nos espaços sociais a eles destinados, abre espaço ao levantamento de

uma hipótese de pessimismo supostamente imaginada pelo leitor, logo descartada pela

afirmação da variedade de interesses e valores dos homens.

Esse mesmo movimento se repete em nível maior na estrutura do capítulo logo

após o trecho citado, de modo que a passagem figura como um tema nessa espécie de

esboço analítico em que o capítulo se constitui. Com exemplos apontando para o social

ou beirando o filosófico, a narrativa entrelaça argumentos novos e antigos de modo a

causar (não intencionalmente) certa confusão no leitor, estabelecendo em nosso

entendimento o limite da separação entre os dois Gracilianos ao passo que se revela a

impossibilidade de narrar com total clareza, em parte revalidando a impressão em

detrimento da avaliação racional, distanciada.

Pode-se dizer, então, que no capítulo XV (p.87-94) aparecem os primeiros traços

severos de crise na consciência pequeno-burguesa do personagem. Aqui se desarticula a

representação de uma figura autocentrada, a qual parecia se construir até aquele

momento. A narrativa, entretanto, ainda não está totalmente dotada da pungência que se

verá na segunda parte. Daqui em diante o que passará a guiar a narrativa é a consciência

cada vez mais clara da insuficiência do indivíduo e de sua condição fragmentada.

Dentro da realidade daquele mundo subterrâneo, Graciliano irá se lançar a uma

investigação mais profunda de si mesmo e terá seus companheiros de cárcere como

ponto de referência para avaliar sua própria posição de classe, o que possibilitará

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também as inversões analíticas na comparação entre as realidades do cárcere e do

mundo exterior.

Vemos na primeira parte, portanto, uma escrita não só movida pela pura

“necessidade de depor”, mas também refletindo a visão política presente do intelectual,

levando-o a se aproximar de uma linha mais argumentativa, com base na exploração

mais direta da História. Desse modo, o aspecto propriamente artístico de seu

depoimento literário – que Graciliano de modo consciente ou não sempre contempla –

cede um pouco de espaço a uma aproximação mais direta dos fatos. Não se deve

esquecer, entretanto, que a prisão ainda recente de Graciliano não lhe havia

proporcionado as experiências mais impactantes e sombrias do cárcere, de tal maneira

que o controle mais efetivo de suas emoções antes da viagem também fica patente na

menor profundidade investigativa da primeira parte.

De qualquer modo, a linha histórica compensa um pouco a representação do

indivíduo em crise, a ser assumida mais claramente na segunda parte, onde o escritor

dará aos aspectos políticos e humanos da narrativa uma tonalidade mais próxima do

ficcional, o que entenderemos como seu modo peculiar de representar uma consciência

aturdida e uma realidade frequentemente inverossímil.

3.2- A segunda parte: a intensificação do abalo nas crenças e a forma do

texto

3.2.1- Panorama da mudança

A partir da transferência de Graciliano para o Rio de Janeiro a narrativa assume

características mais próximas da ficção. Reduzindo a comparação mais evidente com

Luís da Silva – que apesar de tirada do romance se presta mais a uma fundamentação

histórica e política mais direta – o escritor passa a se concentrar na sua relação com os

companheiros de cárcere, dos mais socialmente rebaixados aos mais intelectualizados,

de modo que a relativização de suas próprias crenças pequeno-burguesas é feita de

modo mais rigoroso, interferindo diretamente na estrutura do relato, onde se configuram

mais profundamente suas contradições enquanto intelectual.

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Nesse segundo momento, tão importante quanto a narrativa dos próprios

acontecimentos e dos sintomas físicos e mentais sob o peso da nova e inverossímil

realidade é a representação de todo esse conteúdo em estruturas que reproduzem o

processo de descobertas e as consequentes modificações de toda sorte pelas quais

Graciliano passou. Consciente do fato de o conteúdo em si muitas vezes não exprimir

adequadamente a realidade dos fatos, o escritor se apoiou em alguma medida em

técnicas compositivas que afastaram seu relato de uma ortodoxia vista, por exemplo, em

Viagem (1952), onde as impressões sobre a Tchecoslováquia e a URSS ficaram

expostas mais ou menos sob o peso da condição de visitante oficial do Partido

Comunista. Por essa razão, apesar de não querer “fazer do livro uma espécie de

romance”, como anuncia no início do prefácio, sua narrativa não deixa de caminhar sob

a influência do gênero que o consagrou.

Não obstante, entremeando esses momentos em que os aspectos processuais se

revelam tão importantes quanto os fatos em si, surge a narrativa mais simples e direta,

sem qualquer recurso construtivo importante, com o intuito de dignificação mais

explícita da memória de certos homens como, por exemplo, através de listas de nomes,

mais ou menos construídas com base em traços particulares dos indivíduos (olhos,

cabelos, cicatrizes etc.) ou como meio de relatar os acontecimentos corriqueiros da

prisão (o “ramerrão”, nas palavras do escritor). Essa combinação de diferentes níveis de

complexidade da estrutura é provavelmente mais uma razão que teria levado Antonio

Candido a considerar o texto das Memórias “desigual”, afirmação que já relacionamos

com a provável comparação estabelecida pelo crítico com o romance, cuja base

ficcional, entretanto, cria pressupostos distintos dos da autobiografia. Ocorre ainda que

mesmo em meio à dura realidade, ironias não tão amargas e até certo humor (como na

figura de Apporelly, o jornalista e humorista Aparício Torelly) têm sua relevância na

narrativa e criam um contraponto à terrível realidade, funcionando, não

intencionalmente, como desafogo momentâneo na dureza do relato. Nessas condições,

podemos considerar as observações do crítico no seu caráter factual e – recolocando-as,

digamos, na proporção artística própria de um relato autobiográfico – entender a

“desigualdade” entre as passagens como um aspecto que termina por reproduzir, na

estrutura do texto, o próprio movimento complexo da vida na prisão, ou seja, tanto seus

aspectos de barbárie como também de trivialidade e mesmo de humanização, de

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maneira que a sugestão no conjunto é a de uma realidade, embora obrigada a se

desenvolver em isolamento e sob ameaça constante, capaz de ter sua relação com o

mundo exterior, podendo até mesmo servir como meio de reapresentá-lo segundo um

ponto de vista crítico ao que é supostamente civilizado e livre. Grosso modo, a primeira

parte do relato levanta alguns temas importantes para que na segunda recebam, no

momento de sua discussão, um tratamento visando reproduzir o movimento das ideias,

ou seja, a própria evolução no modo como o escritor encarou a realidade continuamente

surpreendente em sua permanência no cárcere.

O tema da escrita, já introduzido na sua comparação com José Lins do Rego na

primeira parte, é um dos que vai marcar definitivamente a narrativa e evoluir em

associações cada vez mais amplas. Inicialmente, Graciliano aborda a escrita dentro de

sua concepção estética do romance. Enquanto o colega paraibano conseguia narrar com

verossimilhança o que “provavelmente não conhecia” (MC, p.40), ele próprio só

conseguiria representar a realidade experimentada.

Graciliano irá estender o tema da escrita até vinculá-lo ao da própria condição do

escritor enquanto intelectual politicamente ativo, de modo que o aspecto coletivo ao

qual visa sua escrita ganhará força à medida que o relato for incluindo também os não

intelectuais. Entretanto, em momento algum Graciliano deseja se apresentar

abertamente como defensor dos interesses de outras classes. Antes prefere estabelecer

referências para aproximá-lo de indivíduos socialmente marginalizados, ou seja,

compreende sua condição de homem crítico da realidade social como sendo, guardadas

as devidas peculiaridades, de indivíduo também submetido à força do poder vigente.

Longe da literatura de louvação (que dá a certos escritores uma rebarba do poder) e da

classe com a qual simpatiza, a situação de Graciliano – após alguns contratempos e em

contato com outros homens de atitude mais claramente burguesa no Pavilhão dos

Primários (portanto, antes da ida à Colônia Penal) – é a de um indivíduo deslocado. Ao

mencionar uma partida de pôquer, na qual Adolfo Barbosa entrega seu dinheiro ao

adversário com a atitude de um gentleman, o escritor reflete sobre sua condição:

A delicadeza obsequiosa e o desinteresse ostensivo do homem rico marcavam-me a inferioridade social. Sentia-me deslocado na cela estreita, os modos corteses feriam-me, atenciosas manifestações de condescendência. Aliás não me sentiria à vontade em nenhum lugar, foi o pensamento que me ocorreu naqueles dias. Usava roupa e linguagem de burguês, à primeira vista não nos distinguíamos; o mais simples exame, porém, revelaria entre nós

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diferença enorme. Também me distanciava dos operários; se tentasse negar isto, cairia na parlapatice demagógica. Achava-me fora das classes, num grupo vacilante e sem caráter, sempre a subir e a descer degraus, a topar obstáculos. (RAMOS, G., 2008, p.346)

Essa condição diminui em Graciliano a vontade de se ocupar com a escrita.

Pouco depois, numa cela para presos em transição para a colônia, ouve de Medina

(recém-chegado de lá), que seria vantajoso para ele ter contato com aquela realidade

(“–Boa experiência, creia; material abundante. Seria magnífico você estudar aquilo.”,

p.379), ideia desagradável ao escritor (“...se resolvessem matar-me, a abundância de

material seria inútil... não tinha desejo nenhum de escrever.”, idem).

Na colônia, entretanto, as histórias ouvidas pelo escritor se tornam realidade e,

diante da nova situação, sente-se impelido a retomar sua narrativa, agora mais

importante que nunca como meio de resistência à morte, presença frequente naquele

ambiente.

Com relação aos novos tipos que conhece (os criminosos comuns), a atitude do

escritor chega, em alguns casos, a ser de simpatia, como no caso do ladrão Gaúcho, que

lhe narra sua vida. O contato com homens de vida marginal leva Graciliano a suspender

em parte o juízo de valor sobre as atitudes deles e a buscar razões profundas para seus

atos criminosos. Isso demonstra que há em seu relato uma mudança gradativa de

concepção e de atitude em relação aos homens.

A representação desse processo de mudança na consciência do escritor –

organizado mais cuidadosamente no texto desde as primeiras dúvidas sobre as próprias

forças físicas e mentais no porão do Manaus, bem como nos questionamentos sobre o

valor de suas próprias atitudes – revela no homem um caminho semelhante ao tomado

pelo personagem romanesco ao longo da obra. O “outro”, mais presente na relação com

o narrador-personagem a cada romance, agora retratado na experiência da proximidade

excessiva (centenas de homens apertados no porão, na colônia), aparece como forte o

suficiente para mudar definitivamente as opiniões do Graciliano-personagem.

Com isso, a presença do “outro”, à qual o narrador-personagem romanesco

procura opor resistência, aparece inversamente aproveitada pelo escritor na

autobiografia, não só para a reconstrução literária de suas vivências, mas principalmente

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em favor dos que merecem o desagravo e, num sentido político ainda mais amplo, como

tomada de consciência passível de ser estendida à sociedade como um todo.

3.2.2- A relação entre a representação da realidade e a ficção: o porão do

Manaus

Se nos capítulos iniciais o escritor organiza as Memórias em certa medida na

estrutura de diário, visando assentar os acontecimentos e o ritmo da nova realidade do

cárcere – a qual vai se tornando gradativamente mais complexa e, com isso, passível de

uma abordagem mais temática, de frequentes questionamentos sobre si mesmo e as

realidades interior e exterior ao cárcere –, a partir do momento em que desce ao porão

do navio Manaus, a narrativa assume com maior constância o tom ficcional e passa a

internalizar mais o tempo do Graciliano-personagem.

Se num primeiro momento ocorre uma maior exploração dos aspectos intelectual

e político por meio da comparação do escritor com Luís da Silva, o que ocorre na

narrativa do porão é um aproveitamento maior da psicologia do personagem romanesco

bem como da atmosfera noturna de Angústia. Certos traços que denotam incerteza,

inconstância passam, desse modo, a marcar mais intensamente a narrativa

memorialística do que a simples relação Graciliano-Luís da Silva.

Entretanto, essa mudança, como mencionamos anteriormente, já se anunciava no

capítulo XV, dedicado ao “excelente Capitão Lobo”, figura responsável pelos primeiros

choques na maneira do Graciliano-personagem encarar a realidade, por ocasião da

inusitada oferta de empréstimo.

Para se referir à confusão de sentimentos causada pela situação imprevista, o

escritor faz uso de imagens e comparações até então inexploradas. Há um princípio de

estado obsessivo que, no modo como é descrito, assemelha-se ao comportamento de

Luís da Silva. Ao descrever a realidade quase incrível temos uma construção pondo em

evidência a semelhança entre as visões perturbadas do preso e do personagem

romanesco, que está à espera de seu desafeto, Julião Tavares, para matá-lo:

Freqüentemente me surgiam na alma sulcos negros, hiatos, e as idéias se embaralhavam, a fala esmorecia, trôpega; havia agora, porém, espessa névoa e, através dela, muito longe, uma figura confusa a apertar-me a mão, a

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desaparecer no alpendre, com certeza julgando-me estúpido e ingrato. E achei-me só: a presença do meu companheiro [Capitão Mata] não diminuiu a solidão; algum comentário dele acaso feito sobre aquela visita passou despercebido. (RAMOS, G., 2008, p.89, grifos nossos)

Um sujeito que vinha de uma aventura noturna e tinha pressa de recolher-se. A mocinha ficara no fundo de quintal, em camisa, ao pé do morro. Julião Tavares estremeceria. Um concorrente. Não presumiria que o concorrente era um inimigo aperreado e cheio de veneno. A necessidade de fumar atrapalhava-me os movimentos. Julião Tavares flutuava para a cidade, no ar denso e leitoso. Estaria longe ou perto? Aparecia vagamente nos pontos iluminados, em seguida o nevoeiro engolia-o, e eu tinha a impressão de que ele ia voar, sumir-se. Um balão colorido em noite de São João, boiando no céu escuro. (RAMOS, G., 1986a, p.197, grifos nossos)

Naturalmente, a imagem da névoa (presente nos dois casos) está relacionada

com a perturbação dos sentidos. No romance, a escolha de noite chuvosa, na qual se

forma espessa névoa não é fortuita e está condicionada ao crescente estado de desespero

de Luís da Silva, cuja obsessão por eliminar Julião Tavares se torna quase um

pressuposto para sua liberdade de espírito. Assim, a dificuldade da percepção visual,

relacionada ao mau tempo (“Estaria longe ou perto?”), encontra-se num paralelo com a

progressiva redução do mundo à realidade imaginária do protagonista.

Nas Memórias, por sua vez, o aproveitamento de imagem assemelhada ocorre

como consequência do estado de transição emocional do personagem Graciliano. O

escritor relata a distorção na visão proveniente de um acúmulo de condições inusitadas,

disparada naquele incidente particular. De qualquer modo, trata-se da primeira vez que

emprega a ideia de “névoa” para referir-se a seu estado mental no cárcere e, desse

modo, a semelhança com a criação romanesca fica patente na comparação.

Podemos dizer, contudo, que o processo de inversão entre o real e o irreal ganha

um aspecto mais vivo na descrição da vida no porão do Manaus, no qual o escritor –

juntamente com diversos revoltosos da Intentona em Natal e alguns indivíduos sem

envolvimento político aparente – é transferido para o Rio de Janeiro. Nesse ponto da

narrativa surge a ideia de morte, contra a qual o escritor se viu confrontado até os

últimos dias de cárcere devido ao agravamento progressivo de sua saúde e à

transferência para locais em condições ainda mais degradantes, como a Colônia Penal

da Ilha Grande.

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Dadas as semelhanças iniciais apontadas entre romance e biografia, devemos

avançar mais a fim de relacionar a presença da morte na atmosfera sufocante do porão

com a descrição do momento em que Luís da Silva tenta içar o corpo de Julião Tavares

para que o crime tome aparência de suicídio por enforcamento:

Avançamos à toa, evitando corpos úmidos. No zunzum de feira nenhuma frase perceptível; os meus pés machucavam coisas moles, davam-me a impressão de pisar em lesmas. O terrível fedor sufocava-me, a quentura de fornalha punha-me brasas na pele, e a certeza de encontrar-me cercado de imundícies levava-me a proteger a valise, resguardá-la debaixo do braço. Agüentar-me-ia em semelhante lugar? Conseguiria resistir?...A alma fugia-me, na verdade, e inquietava-me adivinhar que a resistência física ia abandonar-me também, de um momento para outro: jogar-me-ia sobre as tábuas sujas, acabar-me-ia aos poucos, respirando amoníaco, envolto em pestilências. (RAMOS, G., 2008, p.105, grifos nossos)

Uma lentidão de lesma. Subitamente notei que o corpo subia e descia. Passei rápido a corda pelo galho. Outra volta, outras voltas, um nó que me levou o resto da energia, e fiquei ali arquejando, desmanchando-me em suor. Desejaria achatar-me, confundir-me com as coisas moles e úmidas que os meus dedos tinham esmagado sobre a casca da árvore. Agora os dedos seguravam mal aquele suporte incômodo e oscilante. Enorme preguiça e enorme sono prendiam-me ao galho. (RAMOS, G., 1986a, p.209, grifos nossos)

Apesar da presença da morte em ambas as narrativas, devemos compreender o

caráter diverso assumido em cada uma delas. Para Luís da Silva, ela representa o fim da

expectativa de ter sua angústia abreviada, ilusão revelada ao perceber que o rumo infeliz

de sua vida não havia sido responsabilidade de Julião Tavares, a figura burguesa tão

odiada por ele. Talvez, pudesse dizer, no máximo, que o cruzamento de seus caminhos

tivesse sido uma coincidência infeliz em sua vida marcada por uma infância oprimida,

geradora de um caráter profundamente antissocial, por sua vez responsável pelo

isolamento crescente. Assim, a equivocada atribuição de culpa é reconhecida logo após

o crime quando Luís da Silva – visivelmente abalado com sua própria atitude e com

medo de ser descoberto nas folhagens – imagina os passantes, à distância na estrada,

zombando dele e do morto:

Outras gargalhadas, longe. Seria a mulher que tinha rido? Ou viriam outras pessoas falar debaixo da árvore, bater no ombro de Julião Tavares, pedir-lhe desculpa? Não havia perigo, não havia perigo, entrei a repetir baixinho que não havia perigo. - Não há perigo, nenhum perigo. Não havia outra coisa. E pareceu-me falta de senso comum alguém rir naquele lugar amaldiçoado. Por que amaldiçoado? Tanta importância! Eu e

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Julião Tavares éramos umas excrescências miseráveis. As risadas zombeteiras extinguiam-se distantes - Luís da Silva, Julião Tavares, isso não vale nada. Sujeitos úteis morrem de morte violenta ou acabam-se nas prisões. Não faz mal que vocês desapareçam. Propriamente, vocês nunca viveram. (RAMOS, G., 1986a, p.209)

É curiosa a comparação que o protagonista faz com seu “rival”, pois a oposição

entre os dois finalmente se esvai, fruto da consciência tardia. Com efeito, no ódio de

Luís da Silva há um componente de desejo pelos traços do burguês, pois admira em

Julião Tavares a segurança e o desembaraço que ele próprio não possui.

Nas Memórias, por sua vez, podemos dizer que a perspectiva da morte gera uma

força oposta logo após o choque do primeiro contato com a dura realidade do porão do

navio. Dessa maneira, o que representa o fim para Luís da Silva, assume um caráter de

reinício para Graciliano. Se, como vimos anteriormente na comparação entre os dois

momentos de “morte”, os termos usados se assemelham (“lesmas”, “coisas moles e

úmidas”), a contradição vida/morte no narrador das Memórias é o sinal de seu desejo de

viver, desejo este já apagado no protagonista de Angústia.

Em trecho mais adiante, quando Graciliano deixa de lado a comparação com

Luís da Silva, vemos a estrutura narrativa desenvolver-se num tempo fragmentado, em

concordância com a situação psicológica do Graciliano-personagem. Trata-se do

momento em que o escritor se encontra no camarote cedido por um companheiro (“o

padeiro”), local onde poderia ter um pouco de isolamento a fim de retomar as notas

interrompidas no quartel de Recife. Novamente a referência é Angústia, mas prevalece

aqui uma junção de passado e presente, de modo que a construção do trecho com recuos

da memória e avanços da consciência aturdida pelo álcool reproduzem o movimento de

uma precária tentativa de organização das ideias por parte do personagem.

A cachaça atrai a repentina “amizade” de Mário Paiva, que invade o camarote e

inicia um quase-monólogo com Graciliano. O vocabulário reproduz a atmosfera

nebulosa da embriaguez de ambos:

Na cama do padeiro, arriado, Mário Paiva beijava o copo, bebericava chuchurreando, embrenhava-se numa parolagem vaga; pouco a pouco iam surgindo nela hiatos e repetições. Na cadeira, o cotovelo sobre a mesa, distraía-me a ouvi-lo sem perceber nada; via-lhe no rosto as nuvens da embriaguez a acentuar-se; os olhos iam ficando vítreos, as pálpebras cerravam-se, erguiam-se, tornavam a descer. Aparecia-me como um

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espelho: sentia-me também assim, os bugalhos duros e inexpressivos, gotas de suor a espalhar-se na testa, umedecendo a raiz dos cabelos. Mantinha-me em silêncio; comportar-me-ia daquele jeito se falasse, embrulharia assuntos, divagaria à toa. Não me inclinava a papaguear: a sombra interior obscurecia os fatos e os conhecidos próximos: Mário Paiva, inconsistente, perdia a significação. (RAMOS, G., 2008, p.165, grifos nossos)

Em seguida a narrativa se ficcionaliza ainda mais a partir da imagem do rótulo

da garrafa de cachaça, o qual serve de fator desencadeador de lembranças relativas à

escrita de Angústia. A combinação dos tempos passa então a dominar a sequência

narrativa:

O rótulo de tintas vivas, colado ao vidro, forçava-me a um lento recuo no tempo. A sala de jantar da minha casa em Pajuçara reconstituía-se. Era noite. Sentado à mesa, entranhava-me na composição de largo capítulo: vinte e sete dias de esforço para matar uma personagem, amarrar-lhe o pescoço, elevá-la a uma árvore, dar-lhe aparência de suicida. Esse crime extenso enjoava-me. Necessários os excitantes para concluí-lo. O maço de cigarros ao alcance da mão, o café e a aguardente em cima do aparador. Estirava-me às vezes pela madrugada, queria abandonar a tarefa e obstinava-me nela, as idéias a pingar mesquinhas, as mãos trêmulas. Rumor das ondas, do vento. Pela janela entravam folhas secas, um sopro salgado; a enorme folhagem de um sapotizeiro escurecia o quintal. (RAMOS, G., 2008, p.165-166)

No trecho percebe-se claramente o imbricamento de passado e presente no

vaivém entre o camarote e a casa de Pajuçara. Nele aparece um dos temas principais da

narrativa das Memórias: a relação com a escrita. Aqui ela é mostrada sob o aspecto da

necessidade, que já se revelava também no novo ambiente e incomodava o personagem

especialmente depois da possibilidade de isolamento no camarote.

No fechamento dessa espécie de “sonho” (assim o denomina o próprio

Graciliano), o choque com a realidade causa uma espécie de despertar, levando-o a

considerações futuras sobre a sorte do romance (“Que iriam pensar daquilo? Abrira-me

com o editor: afirmara-lhe, em carta, que ele não venderia cem exemplares da história”,

MC, p.167). Essa transição do “sonho” para a realidade, da escrita de Angústia para a

das notas marca um momento de transição também da consciência do personagem, cuja

necessidade da escrita deixará de ser apenas intelectual e se revelará um meio de

segurar-se à vida, de modo que a narrativa do cárcere irá cada vez mais se instituir como

o caminho da resistência do personagem à dura realidade, fator responsável pela

organização do texto sempre com a alternância do autobiográfico e do ficcional em

combinação muito peculiar.

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Vemos então que Graciliano exercita a técnica romanesca de modo plenamente

consciente e gradativamente mais apurado. A variação na estrutura textual entre graus

maiores de relato, digamos, a seco e trechos mais ou menos aos moldes ficcionais estará

relacionada a aspectos diversos como impressões marcantes, posicionamentos políticos

e/ou estéticos, visões desiludidas etc., formando uma narrativa que revelará as

contradições do homem cujo comportamento vai da incerteza quanto ao papel de sua

escrita à definição de posição enquanto intelectual.

A seguir analisaremos estes aspectos segundo eixos centrais de estruturação das

Memórias. Na interrupção frequente da sequência dos acontecimentos para a discussão

de aspectos julgados relevantes perceberemos a recorrência dos temas que sustentam

esse tipo de força organizadora do texto.

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4- O intelectual e os homens

4.1- Observações gerais

O lugar específico ocupado por Graciliano dentro da intelectualidade brasileira

de seu tempo aparece no modo como articula a escrita das Memórias. Esta reflete o

esforço pessoal de autoinvestigação e situa a difícil posição de equilíbrio na qual se

encontrava o escritor, cuja visão da realidade social e da arte foi responsável por uma

narrativa em que a alternância entre afastamento e aproximação dos demais presos –

independentemente da classe social ou nível cultural – resultou em certa medida na

confirmação de seu próprio isolamento.

Em muitos casos o isolamento é a própria posição de recuo do intelectual

brasileiro diante da realidade que não aceita e com a qual muitas vezes não consegue ou

mesmo não quer dialogar, seja pelo sentimento de inadequação a um meio considerado

culturalmente pobre ou pela própria dificuldade de compreensão efetiva da realidade na

qual está inserido – especialmente se levarmos em conta que frequentemente seu

interesse é maior pela realidade dos países cujas culturas lhe servem como referência.

No caso de Graciliano, podemos dizer que o isolamento ao qual aludimos não é

um a priori, marcando duramente um lugar de intransigência, mas resultado de um

processo de construção literária em que expõe uma tentativa de reformulação de crenças

e valores cujas frustrações estão muitas vezes ligadas ao contexto da intelectualidade

brasileira de seu tempo. Desse modo, aparecem na narrativa as insuficiências de uma

argumentação que atinge certo limite da visada política sem detrimento do valor estético

correspondente, o qual se deve, em boa parte, ao modo como perscruta a si mesmo e

cada indivíduo com quem estabelece contato, à maneira de quem constrói personagens

romanescos.

Essa investigação – ao se revelar uma forma profunda de consciência política – é

efetivamente o móvel e a grande força das Memórias. O modo como o escritor revela a

busca de alternativas para sua própria compreensão das coisas e o espaço concedido ao

“outro” – preocupação crescente em seus romances (ver item 1.1, p.17-22) – aparece,

assim, como o meio mais efetivo de argumentação política e estética dentro da obra.

Com isso, se por um lado podemos dizer que o escritor saiu do romance para dar vazão

à sua “necessidade de depor”, como disse Antonio Candido, por outro é através das

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qualidades do romancista que o depoimento adquiriu boa parte de sua força de

denúncia.

Dentro dessa perspectiva de luta contra o isolamento, uma das atitudes do

escritor ao retomar as notas no porão do Manaus, já no camarote cedido pelo padeiro –

local que lhe dava certa liberdade visto poder evitar quando quisesse “duas ou três

centenas de pessoas” em meio às quais ouvia “pragas, gemidos, roncos, vômitos” (MC,

p.151) – é questionar a possibilidade de retratar aquela realidade a partir da condição

“privilegiada”. Se por um lado não se incomodava em utilizar-se da cama do padeiro à

hora da comida, cujo cheiro o repugnava (“não me importava encostar-me em lençóis

alheios, umedecê-los de suor, manchá-los, manchar-me”, MC, p.152); por outro, quando

se tratava da relativa liberdade de que usufruía para sua atividade literária, sofria com a

culpa de ver outros indivíduos em condição degradante. Seu pensamento num desses

momentos de crise de consciência se dirige primeiro às duas únicas mulheres daquele

meio, Leonila e Maria Joana, para depois voltar-se à coletividade:

Penalizavam-me em excesso as pobres mulheres, atormentava-me ver Maria Joana, tão viva e tão fresca, estiolar-se no retiro e no mormaço. Comparado à furna delas, o camarote do padeiro significava luxo e ostentação. Afligia-me ocupá-lo, sentar-me em cadeira, firmar os cotovelos em mesa, quando a alguns passos homens acabrunhados vergavam sobre malotes e trouxas. Envergonhava-me. Talvez essa vergonha fosse um pretexto para esquivar-me, abandonar o lápis e o papel. (RAMOS, G., 2008, p.155)

Se não deixa de ser possível a hipótese de a “vergonha” impedir seu trabalho, a

necessidade da observação atenta com vistas à fidelidade do relato é o fator de maior

importância para o escritor, daí sua luta entre pensamento e ação, em que a

“promiscuidade” do convívio forçado é vista ao mesmo tempo como desagradável (e até

repugnante, como no caso da sempre mencionada “imundície”) e proveitosa:

A verdade é que não me trancava muitas horas. Ordinariamente deixava a porta aberta, em minutos o cubículo se enchia. Como prosseguir na tarefa diante daqueles indiscretos que me vinham examinar a escrita por cima do ombro? Além de tudo era-me indispensável observar as pessoas, exibi-las com relativa fidelidade. Outra razão para vadiagem. (RAMOS, G., 2008, p.155)

O modo como Graciliano trata a questão mostra que seu sentimento de culpa

aparece, em certa medida, ligado ao próprio privilégio do ato criador, ou seja, à

condição de escritor. A “tarefa” a ser cumprida – uma necessidade para se manter vivo

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e ao mesmo tempo uma obrigação para com os demais – carrega um peso ético

suficiente para levar o escritor a considerar sua esquiva como “vadiagem”, mesmo

reconhecendo a dificuldade da empresa de escrever.

Portanto, a luta contra o isolamento aparece aqui enquanto tema das Memórias

na medida em que faz a ligação entre o isolamento intelectual e o físico (espacial), de

modo que Graciliano reafirma uma de suas preocupações centrais ao ressaltar, por meio

de seu próprio exemplo, o trabalho de enfrentamento da realidade a ser realizado pelo

escritor.

4.2- A construção de um relato sobre a coletividade

Dentre as grandes dificuldades do trabalho autobiográfico das Memórias está a

busca por congregar diversos pontos de vista da realidade num discurso que revele em

última instância o desejo de equilíbrio e distanciamento analítico do próprio escritor,

constantemente influenciado pelas visões do “outro” e da coletividade tanto no que têm

de positivo como no perigo de apagamento da individualidade.

Esse tipo de trabalho em que forças contrárias (desequilíbrio x equilíbrio) se

manifestam a todo instante foi bem percebido por Antonio Candido a propósito dos

romances de Graciliano (ver item 1.2, p.27-28). No caso das Memórias – onde a

realidade impõe a primazia e a necessidade de contemplar o “outro” aparece sob um

viés político mais acentuado – o choque entre a visão do romancista e cada uma das

diferentes formas de apreensão da realidade é apresentada pelo escritor como um dos

temas de grande relevância.

A preocupação patente em pôr leitor a par do processo de construção da

memória que se pretende coletiva, além de indicar uma questão literária de importância,

revela o escritor em constante dificuldade (em certos momentos até crise) diante do

problema do reconhecimento de suas peculiaridades, visto a experiência no cárcere

tender constantemente a ofuscar os limites da separação entre o juízo crítico e a mera

credulidade, aspectos importantes tanto em seu sentido individual quanto coletivo. A

propósito dessa luta constante, um dos momentos exemplares é a chegada do escritor à

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Colônia Correcional. Ao relembrar as primeiras informações obtidas sobre a prisão

durante os procedimentos de praxe, indiretamente nos expõe a dimensão exata de sua

tarefa de escritor:

Nunca pude saber como, em tais situações, nos chegam notícias precisas. De que modo se transmitem? Parecem adivinhação. Estamos cercados, vigiados; alguém nos sussurra algumas palavras, e recebemos num instante esclarecimentos indispensáveis. Uma cadeia se forma, conjugam-se reminiscências, o aviso se amplia; quando nos referimos a ele, notamos apêndices, interpolações, acréscimos rápidos, anônimos. Nesse trabalho coletivo a memória e a imaginação cooperam de tal jeito que nos é impossível saber se o informe decisivo é falso ou verdadeiro: entrosam-se nele os pacientes exames rigorosos e a credulidade excessiva ordinária nas cadeias (RAMOS, G., 2008, p.155).

Numa ocasião anterior no Manaus, após o susto diante da novidade que

representa o porão, o texto vai gradativamente reproduzindo a tentativa de reencontro

do Graciliano-personagem com sua individualidade concomitantemente ao trabalho de

difícil compreensão e mesmo de simples reconhecimento dos indivíduos que com ele

dividem aquele exíguo espaço. A luta para se manter escrevendo e registrar o que vê

mostra o esforço do personagem no conturbado início desse processo construtivo,

quando a escrita ainda é quase somente uma forma compensatória para o

comprometimento da percepção como um todo:

Falavam-me a cada instante, perturbavam-me. A feição misteriosa e inquieta de Miguel, a pachorra, a frieza, os olhos agudos de Anastácio, a parolagem frívola do estudantezinho João Rocha afastavam-me do trabalho. Esses estavam perto de mim. Mas não era possível deixar de atentar noutros mais distantes. A cicatriz medonha de Gastão repuxava-lhe os músculos do rosto, estampava-lhe um sorriso sarcástico, invariável, e isto me dava a impressão de que o rapaz zombava dos meus desesperados esforços para agarrar-me a um assunto. Paulo Pinto, sifilítico, exibia umas canelas pretas finas demais. Era ele que tinha uma bala na perna?...Bem. Se não era ele, seria talvez o chauffeur Domício Fernandes. Um dos dois. A verdade é que não cheguei a distinguir Domício Fernandes de Paulo Pinto. Confusão desarrazoada: juntos, notava-se que diferiam bastante... (RAMOS, G., 2008, p.152-153).

Como se vê, a escrita nesse momento reproduz o esforço de reintroduzir aqueles

homens na humanidade, recuperando suas características individuais (principalmente

físicas), o que se casa com o instinto de autopreservação da racionalidade do próprio

personagem, agora dentro do possível bem acomodado no camarote do padeiro (“Tinha

licença para estirar-me na cama e não hesitava em servir-me dela.”, p.152), porém

buscando o encontro cada vez mais efetivo com aquela realidade, o único modo de

manter sua escrita e, com isso, sobreviver em meio à degradação sem se rebaixar

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(“Procuramos agüentar-nos de uma ou de outra maneira, adquirimos hábitos novos,

juízo diverso do que nos orientava lá fora.”, p.152).

A busca de uma nova perspectiva se mostra mais claramente na construção do

texto quando o escritor narra o primeiro momento em que os presos têm a permissão

para subir ao convés. A atitude de observar com certo assombro o movimento dos

homens na escuridão dá lugar a uma tentativa de igualar-se a eles, mostrando-os como

um grupo que, de um ponto de vista externo, mantinha sua homogeneidade. Revelando

a angústia de quem é obrigado a agir sem saber o porquê (trata-se de uma limpeza do

porão, a ser executada pelos soldados), o escritor narra a dolorosa especulação do

personagem:

Roubam-nos completamente a iniciativa... Perdemo-nos em conjecturas. Será que, trazendo-nos para aqui, tiveram a intenção de melhorar-nos a saúde, fazer-nos respirar um pouco de ar puro, mostrar-nos o sol? Por que não pensaram nisso antes? Não, com certeza estamos em erro: ninguém vai inquietar-se com os nossos miseráveis pulmões. Por que nos trouxeram, pois? Talvez tenham querido mostrar-nos aos passageiros virtuosos, expressar-lhes indiretamente que é possível coagi-los, equipará-los a réprobos como nós, se não se comportarem bem. As suposições falham todas; enxergamos enfim uma causa imprevisível ou permanecemos na ignorância (RAMOS, G., 2008, p.156).

A substituição do “pronomezinho irritante” pela primeira pessoa do plural revela

a intenção coletivizante do discurso, o que fica parcialmente adequado, pois se sempre é

possível que a ordem ditatorial tenha a intenção de humilhar opositores políticos e

intelectuais (a prisão de Graciliano é efetivamente o caso), nivelando-os com bandidos,

por outro lado nada garante que “conjecturas” como as do escritor causem a mesma

agonia em todos ou mesmo na maioria dos presos. De qualquer modo, naquele instante

todos se igualam aos olhos de possíveis observadores (“ficamos duas horas entre fardos

e caixas, meio encandeados à luz”), formando “um acervo de trastes” e valendo “tanto

como as bagagens trazidas lá de baixo e as mercadorias a que nos misturávamos”

(p.157). Desse modo, a subida à “claridade”, cujo objetivo ignorado agrava a

humilhação de ser exposto ao sol e a possíveis observadores, torna-se “obscuridade”

para o personagem, inversão bem acentuada pelo escritor na narrativa.

Ainda uma vez – como fica nitidamente marcado neste capítulo (Viagens-

cap.XXVII), talvez mais diretamente que em qualquer outro – o escritor insiste no

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aspecto coletivo com a reiteração do plural já mencionado, agora já por meio do tédio

que o aflige ao ver a monotonia do mar por tanto tempo:

O mar tinha-se tornado vermelho, um vermelho carregado tirante a negro. Longe surgia a coloração natural, perturbada por manchas escuras, indecisas; perto uma dessas nódoas se alargava e definia, viajávamos nela, curiosa esteira de algas cor de ferrugem. Durante algum tempo aquilo nos interessou e prendeu; como nada se alterava, depressa nos cansamos, ali permanecemos indiferentes, ao desabrigo, buscando em vão pelos arredores uma nesga de sombra... Em vão pesquisávamos o horizonte, buscando jangada de pescador ou asa de gaivota. Enervado, sentei-me num caixão, estúpido, em duro silêncio, os olhos e os ouvidos inúteis. Suponho que ninguém me dirigiu a palavra, e se isto sucedeu, mostrei-me surdo: o assunto mais interessante não dissiparia o longo marasmo (RAMOS, G., 2008, p.157).

Trata-se aqui de um daqueles momentos em que o relato seco, racional, abre

espaço para o toque especial do romancista. Não há dúvida de que entre o personagem e

aqueles homens há nesse momento uma parte de sentimento comum, entretanto borra-se

de maneira bela a fronteira entre o individual e o coletivo. Ao retratar o enfado daquela

situação o escritor projeta seus pensamentos na mente dos demais (“Em vão

pesquisávamos o horizonte, buscando jangada de pescador ou asa de gaivota.”),

permitindo, desse modo, o realce de uma condição verdadeira, empírica, a partir de uma

extrapolação, tornando o real, por assim dizer, artisticamente mais “verdadeiro”.

O resultado prático dessa experiência, segundo o autor, é o agravamento do

desassossego de todos, uma vez que a gente de primeira classe passeava

ininterruptamente pelo convés. Com isso, a figura de Manuel Leal (antigo caixeiro-

viajante que negociara com o pai do escritor) torna à sua mente:

Realmente infeliz era o pobre Manuel Leal, que resistia, se esforçava por estabelecer entre nós diferenças impossíveis. Em geral nos acomodávamos de qualquer jeito...O desespero de Manuel Leal por não se poder manifestar, declarar-se vítima, dizer aos passageiros bem vestidos que gostava deles e abominava revoluções devia ser tremendo (RAMOS, G., 2008, p.158).

A posição do “infeliz” Manuel Leal é, em alguma medida, a que o próprio

Graciliano-personagem tenta evitar, procurando estabelecer o contato possível com

aqueles homens apesar da distância sociocultural marcante (“Somos forçados a

reconhecer que os valores estabelecidos se modificam”, p.152). Nesse sentido as

Memórias são também o registro de um esforço enorme (muitas vezes malsucedido) de

interação entre o escritor e os companheiros de cárcere. Esta dificuldade atormentou o

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personagem e ainda causava mal-estar em Graciliano por ocasião da escrita. Prova disso

é que, mesmo no camarote do padeiro, onde gozava de certo “luxo” (como ele próprio

diz), não esquece o “malandro” de quem comprara uma rede, ficando sem receber o

troco:

Agora os meus trastes se arrumavam num canto: ali estavam resguardados, longe do sujeito que me furtara cinco mil réis. Não me fora possível reencontrar esse canalha: tinha um jeito de escapulir-se, agachar-se, mergulhar, por causa de uma insignificância. Fizera-me enorme favor – e esgueirava-se com medo. Eu pretendia dizer-lhe que estava muito agradecido; o miserável fugia e culpava-se. Tais desencontros amargam em demasia, enchem-nos de fel: queremos expressar agradecimento sincero – e verificamos que o nosso salvador é um patife (RAMOS, G., 2008, p.152).

É insuportável para o escritor o fato de que um indivíduo socialmente rebaixado

não perceba o pouco proveito a ser tirado do fato de “escapulir-se” com cinco mil réis.

Naturalmente, a partir de sua condição de homem crítico e politizado, ele esperava se

aproximar dessa outra classe e estabelecer com ela alguma troca de experiências, fosse

ela mínima. Entretanto, seu mal-estar parece originar-se da perspectiva de aquele

homem ainda não estar severamente degradado por uma vida de contínuas privações,

sendo obrigado a enxergar uma pequena quantia sempre como algo indispensável, em

especial numa condição extrema como a do porão do navio. Portanto, vê-se que no

discurso do escritor reside uma intenção política difícil de ser aproveitada em tais

circunstâncias. Se seus costumes antigos o impediam de se aviltar o mesmo não seria

possível com diversos homens com quem ainda viria a conviver. E essa realidade tem

efeito decisivo na composição de todo o texto das Memórias.

No episódio narrado logo no capítulo seguinte (cap. XXVIII), vemos novamente

um procedimento adotado pelo escritor no sentido de mostrar seu pertencimento ao

grupo de homens com os quais divide a mesma “furna”. O escritor parte da mesma

condição de aviltamento a fim de explicitar como refletira sobre a realidade coletiva do

porão, contudo aqui deixa mais clara sua visão política através da referência ao

momento histórico:

O mundo se tornava fascista. Num mundo assim, que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, velhos prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolher-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas

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idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas que me sentia inteiramente perdido. Afligia-me especialmente supor que não me seria possível nunca mais trabalhar; arrastando-me em ociosidade obrigatória, dependeria dos outros, indigno e servil (RAMOS, G., 2008, p.160-161).

Se inicialmente o escritor procura nivelar-se com os demais companheiros

(“éramos fantasmas”), em seguida não deixa de reafirmar sua condição de intelectual ao

relatar a sofrida ideia de uma vida sem a atividade da escrita (“Afligia-me

especialmente supor...”), o que determina a peculiaridade da construção textual

alternante. Com efeito, o capítulo inteiro é uma modalização do discurso no sentido de

aproximar-se dos “não intelectuais” sem, no entanto, cair no populismo, aspecto

sempre desagradável ao escritor, em especial quando percebido em meio aos pares da

intelectualidade literária.

A aproximação objetivada por Graciliano desta vez se dá quando relata um dos

poucos momentos em que se eleva o moral dos homens no porão. Paulo Pinto, homem

de saúde precária, canta um samba para espantar a tristeza. Primeiramente a atitude do

Graciliano-personagem é de confusão e, em seguida, de espanto, revelando sua

aprovação ao que considera uma tímida quebra da ordem:

De repente me feriu um som lento e queixoso, semelhante a um longo gemido... Estaria alguém a morrer?...O lamento chegou-me de novo. Que seria? Tentei discernir alguma palavra, inutilmente.... Esboçaram-se pouco a pouco as modulações de um canto, na verdade bem estranho... Apurei os olhos e os ouvidos, percebi lá embaixo Paulo Pinto a iniciar um samba. Estava de pé e gesticulava, fingindo mover um ganzá inexistente... Por mais que tentasse, não me era possível distinguir a letra da composição, e isto a valorizava. Sem dúvida versos insignificantes e errados... Algumas vozes se uniam à do sambista, formava-se um áspero conjunto... As espinhas curvas aprumavam-se... dezenas de trastes humanos se erguiam, marchavam, os braços para cima, florestas de membros nus, magros e sujos, e o canto ressoava como profunda ameaça (RAMOS, G., 2008, p.161-162).

Não sendo o samba (e muito menos o carnaval) uma forma de expressão

correspondente ao gosto de nosso escritor vê-se que há uma alternância entre a crítica ao

aspecto artístico (“Sem dúvida versos insignificantes e errados...”) e a força moral que

para o escritor o samba adquire num contexto onde ele represente algum meio de

resistência, ainda que mínima. Sob essa perspectiva justifica-se a não compreensão da

letra como mais um fator a valorizar a apresentação improvisada de Paulo Pinto. Esse

tipo de construção revela o posicionamento cauteloso de Graciliano diante do elogio,

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mostrando de que modo circunstâncias extremas podem interferir no viés político da

relação entre indivíduos de grupos sociais distintos.

Com efeito, vemos logo em seguida a narrativa alternar entre o pertencimento do

escritor ao grupo do porão e sua diferenciação daqueles homens, fator determinante para

uma escrita dialética cuja entonação mais emocional contrasta com o registro

relativamente contido:

Ergui-me, sentei-me na rede. Um frêmito nos sacudia; agitavam-se todos em redor do grupo, cada vez mais numeroso... Perguntava a mim mesmo as conseqüências da rebeldia. A polícia iria descer e restabelecer a ordem, sem dúvida; o preto volumoso encostaria a pistola ao débil arcabouço de Paulo Pinto; algum indivíduo resistente agüentaria safanões e logo se acomodaria. Dormiríamos em paz, como bichos. Evidentemente aqueles homens não pensavam nisso: a música os enfurecia e cegava; com certeza haviam esquecido o perigo e o lugar onde vivíamos (RAMOS, G., 2008, p.162, grifos nossos).

Note-se que o uso de “nós” e “eles” marca o processo de aproximação/distan-

ciamento a partir da menção ao caráter impulsivo dos demais, contrastando com a

atitude relativamente mais sóbria do escritor, apesar deste não se isentar de certa

influência do ambiente (“Um frêmito nos sacudia...”).

No auge do extravasamento das emoções os presos recebem os aplausos de

alguns passageiros que àquela altura já formam um público na abertura de acesso ao

convés. Esse momento corresponde ao máximo de identificação que o escritor procura

demonstrar em relação a seus companheiros:

De repente soaram palmas. Que se havia passado? Hesitava em persuadir-me, desconfiava dos ouvidos e dos olhos: os indivíduos suspeitosos e hostis vinham aplaudir a violência e o ódio que ferviam no porão. E o tumulto se desenrolava, sob uma chuva quente de louvores. Um sussurro a princípio, lamento quase inaudível, mudara-se em vociferação exaltada. No dia seguinte deslizaríamos, taciturnos e oblíquos, falaríamos baixo, alarmar-nos-íamos com o estouvamento infantil de Ramiro; naquela noite, porém, largávamos as cautelas, desabafávamos, livres de receios (RAMOS, G., 2008, p.163, grifo nosso).

Ao contrário da narrativa do convés, em que o escritor atribui a outros seus

pensamentos e suas atitudes, aqui Graciliano procura tomar como suas as características

do grupo. Permanecendo em atitude de observação e de interrogação constante, como

ele próprio já dissera (pensando na polícia, estranhando a atitude dos inesperados

espectadores etc.), seu envolvimento naturalmente não poderia ser mais que o de um

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tímido simpatizante do movimento ao seu redor. Sente-se, portanto, o intelectual

registrar um “desejo”, enquanto narra de fato, no vaivém das entrelinhas, a sua “adesão

possível”.

Outro aspecto possível de se depreender da situação narrada (talvez sem a

consciência do próprio narrador) é o quanto se revela da hipocrisia de nossa sociedade

na relação entre os “de cima” e os “de baixo” dentro do navio. O escritor se diz perplexo

diante da atitude da “gente da primeira classe” em aplaudir a animação improvisada.

Nesse sentido, fica para o leitor responder às perguntas que revelam a desconfiança do

narrador:

Em resposta, difundiam-se lá em cima sorrisos de aprovação. Aquilo era absurdo, incoerente. Como vinham pessoas medianas, razoáveis, tranqüilas, animar semelhante desconchavo? Tinham admitido a segregação, ninguém a considerava injusta: havia qualquer motivo para estarmos ali como bichos em toca. Pela manhã formáramos um rolo confuso, entre caixas, malotes, engradados; não nos podíamos afastar; espreitavam-nos e não se avizinhavam, temiam inficionar-se com a lepra moral que nos consumia (RAMOS, G., 2008, p.163).

A atitude aparentemente contraditória dos “de cima” se dá exatamente por um

sentido político apenas entrevisto na passagem. Protegidos por uma distância física e

política, a “aproximação” é, naturalmente, ilusória. Os aplausos não comprometem essa

distância uma vez que sua intenção disfarçada (de modo consciente ou não) é

primordialmente o elogio visando ao apaziguamento dos ânimos e ao conformismo dos

lá “de baixo”. Desse modo, a surpresa do escritor se justifica talvez pelo distanciamento

relativo mantido diante da espontaneidade dos homens do porão. Se por um lado ele

entende a atitude de seus companheiros como uma ameaça à ordem, parece não

perceber exatamente que as palmas tendem a funcionar como uma reação “sensível” ao

mal-estar generalizado.

O navio, portanto, reproduz em dimensão menor algo da situação real do país. A

inusitada condição de portar passageiros comuns e presos, forçando ambos os lados a

certa proximidade (com os “lugares sociais” bem demarcados, evidentemente), revela

aspectos políticos tão importantes quanto os da vida em uma realidade supostamente

democrática, que o escritor acaba por figurar, dentro de suas limitações perceptivas,

numa analogia não premeditada.

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Percebemos, então, a propósito dos episódios analisados, que Graciliano constrói

sua posição diante da coletividade de maneira cambiante, compondo uma narrativa

capaz de reproduzir a difícil tarefa de aproximação e conhecimento da “diferença”. Com

isso, a técnica compositiva da projeção em mão dupla revela um despojamento

investigativo profundo e problemático, porém, de qualquer modo, à altura dos

significados literários e históricos que pretende instituir.

4.3- Graciliano, os homens cultos e os “políticos”

Ao tratar de seu relacionamento com os homens cultos e os “políticos” no

cárcere, Graciliano abre importante discussão sobre a condição do intelectual brasileiro

de seu tempo. Na comparação com estrangeiros e nacionais, o escritor mostra a

instabilidade própria de suas crenças enquanto homem ligado à cultura, permitindo-nos

avaliar o modo como ele próprio se insere nessa problemática.

4.3.1- O russo Rafael Kamprad: sobre a razão positivista e a criação

literária

No Pavilhão dos Primários, seu primeiro contato com um desses homens se

estabelece com o russo Rafael Kamprad (chamado por todos ali de Sérgio). Em

conversa com Renato do Rego Barros e Adolfo Barbosa, Graciliano percebe a chegada

do russo, prestes a ministrar uma aula de matemática aos dois companheiros. O

contraste estabelecido já com as primeiras impressões revela um Graciliano-personagem

que se reduz, uma das marcas frequentes na comparação com Kamprad:

Encolhido e jovem, o visitante devia ser o aluno. Enganei-me: era o professor. Acomodou-se em frente de Adolfo Barbosa, pôs-se a falar vagaroso e abundante, a voz áspera, baixa, pronúncia exótica cheia de fortes aspirações. Usando língua estranha, não se detinha: deturpava as palavras, mas achava-as com singular facilidade. Aquilo não tinha jeito de lição: assistíamos a uma conferência inacessível a mim. Enquanto ela durou, Adolfo permaneceu mudo. Anulei-me, experimentei pouco mais ou menos o vexame dos analfabetos diante de papel escrito. Quem seria o monstro familiar à teoria da relatividade, aos horrores onde a minha escassa inteligência naufraga? (RAMOS, G., 2008, p.191)

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Diante de uma inteligência capaz de alto nível de abstração, o alagoano – sempre

mais preso à representação da realidade cotidiana, mais ou menos diretamente

observável, de onde captava em nível profundo a realidade brasileira – recua com

espanto. Termos como “monstro” e “horrores” ao se referir respectivamente a Sérgio e à

ciência estabelecem razoável distância, inclusive sendo atualizada para o presente da

escrita, momento em que, diante de tudo aquilo, sua inteligência ainda “naufraga”.

Após o “naufrágio” segue-se a tentativa de “fuga” do escritor, que acaba

vislumbrando conforto na “amenidade” nacional. Diante do susto inicial com a

inteligência europeia, a convivência com a sem-cerimônia do rústico João Romariz lhe

parece um refúgio possível:

Despedi-me, carregando a bagagem crescida: a maleta, a calça e o paletó, os livros; busquei refúgio noutro cubículo, onde um sujeito de pijama vermelho se ocupava em devorar uma penca de bananas, respirei com alívio nessa companhia. João Romariz. Bem. Conversando com ele, sentia-me à vontade. Era uma nacional de fala dormente, alheio às ideias abstratas. E decidi afastar-me cuidadoso de Sérgio, bruxo amigo de Einstein e do infinito: a presença dele seria um alfinete para minha ignorância. Firmava-me nesse propósito, divagava singelamente com Romariz, e ao cabo de minutos surgiu o perigo, inevitável. O matemático deslizou para nós como sombra, sentou-se junto a mim, envolveu-me na sua delicadeza fria. E entorpeceu-me a prevenção. Agora adotava linguagem natural e cristã, a aspereza gutural da prosódia ia-se pouco a pouco adoçando. (RAMOS, G., 2008, p.191)

É interessante aqui o significado assumido pelo termo “bagagem”. Ironizando

sua própria ignorância do que imagina excessivamente abstrato (o estudo do “infinito”),

o escritor se refere a uma ampliação da bagagem cultural (“bagagem crescida”), dando

ao termo também (e talvez não intencionalmente) um sentido de coisa difícil de carregar

como, por exemplo, o peso de uma derrota diante de um intelecto mais capaz.

Outro aspecto importante na passagem é a referência ao caráter “inevitável” do

reencontro “ao cabo de minutos”. A intenção aparente de Graciliano ao tratar o retorno

do russo como um suposto fatalismo parece ligar-se inadvertidamente num outro nível à

sua própria condição de homem ligado à cultura. Nesta condição, não poderia

certamente se isentar do convívio com o novo “perigo”, o qual acaba provavelmente

indo ao encontro do escritor para estabelecer um contato, hipótese que parece bastante

plausível se levarmos em conta que algumas páginas adiante veremos Sérgio lendo o

romance Caetés, em clara atitude de curiosidade intelectual sobre o trabalho do escritor.

O “fatalismo”, então, torna-se o modo utilizado pelo escritor para não se elevar em

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importância, deixando a circunstâncias incertas o que é dado por uma inclinação pela

cultura presente nos dois homens. Com efeito, a aproximação já se esboça a partir do

fim do trecho citado, quando o escritor descreve um Sérgio diferente do percebido

inicialmente. Na sequência, o escritor pede informações sobre os outros presos e Sérgio

se apresenta formalmente como Rafael Kamprad.

Em meio à lembrança do diálogo em que aparecem os nomes dos novos

companheiros de prisão, Graciliano faz uma breve observação capaz de dar a medida da

aproximação mais ou menos rápida, porém importante que ocorria entre os dois. Ao

mencionar o capitão Mata (companheiro de prisão desde o Recife) preparando-se para

lavar a roupa, o escritor observa:

Nunca deixamos de tratar-nos cerimoniosamente. Sérgio, apesar da circunspecção, da algidez, quase se familiarizara comigo em vinte minutos de conversa, e Mata, alegre e buliçoso, ainda era a mesma criatura distante que declamava poesia num carro da Great Western. (RAMOS, G., 2008, p.193)

Aqui o escritor estabelece uma comparação que no primeiro plano aparece

como sendo marcada pelo contraste entre algidez e alegria. Efetivamente, porém, o que

está em jogo (e fica subentendido) é a ligação intelectual com o russo em contraste com

uma mistura de afastamento intelectual devido à ingenuidade literária do capitão (ver

item 3.1, p.63-65) e desconfiança dos homens de farda, esta última aparecendo com

frequencia (direta ou indiretamente) ao longo das Memórias.

Note-se que até então a comparação com o russo está de algum modo balizada

pela relação com o “outro”, de menor profundidade intelectual (João Romariz, capitão

Mata). No primeiro caso, reflete a visão de receio ante o intelecto de Kamprad; já no

segundo, Graciliano utiliza esse elemento exatamente para mostrar seu distanciamento

em relação a Mata.

Num terceiro momento, esse elemento desaparece e a comparação já não

depende mais de intermediário. Trata-se da aproximação física definitiva (convivência

na mesma cela), que Graciliano também se preocupa em recuperar no detalhe. Mais

uma vez o autorrebaixamento aparece como o aspecto que introduz a argumentação. A

passagem inicia com uma solicitação de Kamprad a Graciliano. O russo então desejava

se mudar para o cubículo 35, onde já se encontrava o escritor:

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- Acho que nos daremos bem, opinou o rapaz. - Sem dúvida. Essa anuência divergia do meu pensamento: inclinava-me a supor que não nos entenderíamos. A delicadeza fria do russo dificilmente se harmonizaria com os meus hábitos vulgares de sertanejo; a minha ignorância compacta iria experimentar dura humilhação junto ao saber forte daquele homem doutorado em Leipzig, íntimo de Einstein e Hegel. Enganei-me. As diferenças evidentes não nos afastaram, vivemos em concordância perfeita, nunca um palavrão esotérico, dos ouvidos no encontro inicial, nos separou. (RAMOS, G., 2008, p.210)

Novamente o escritor faz o contraponto à frieza do russo. Desta vez, porém,

ressalta a convivência satisfatória, que servirá de introdução para o relato das afinidades

e oposições entre os dois.

Após mencionar algumas de suas observações jocosas feitas à origem meio

caucasiana e à pronúncia do português de Kamprad, o que dá a medida de certa

proximidade permitida pelo russo, Graciliano introduz o assunto das letras nacionais,

onde sua posição vai assumindo um caráter mais centrado e o espanto inicial em relação

ao russo se reduz temporariamente:

O que entrava ali ficava, não repetia perguntas. Fez uma síntese da filosofia de Hegel, num caderno, a lápis, o começo em alemão, o fim em português. Leu-me esse trabalho, emperrando às vezes, buscando a expressão, convencendo-se de que o pensamento era intraduzível e usando circunlóquios. Esforçava-se por trasladar versos de Puchkine, desistia: - É inútil. Só podemos sentir e compreender esta balada em russo. Não simulava nenhuma espécie de consideração às nossas letras, pouco mais ou menos inexistentes. Falava-me com franqueza e isto não me susceptibilizava, é claro: o meu novo amigo vinha de grandes culturas, não iria fingir apreço às miudezas nacionais. Um dia, como ele desacatasse rijo os sonetos, nada mais enxergando na poesia brasileira, interrompi-o: Vou recitar-lhe um soneto, Sérgio. E atirei-lhe “O sorriso” de Manuel Bandeira. Sérgio ouviu-me atento, murmurou com espanto: - Oh! Vocês aqui têm disso? E noutro tom: - Ainda não conheço o Brasil. Leviandade manifestar-me sobre ele. (RAMOS, G., 2008, p.211)

O tom aqui já é outro. O elogio ao conhecimento filosófico de Kamprad é mais

comedido, o que não é de surpreender, pois em seguida vem a crítica à atitude do russo,

que se espraia sem conhecimento de causa pelo assunto caro ao escritor. Com isso,

estabelece-se um embate entre posicionamentos político-intelectuais. De um lado certo

orgulho por uma cultura literária internacionalmente consagrada, a qual dispensa

apresentações e permite a seu “representante” uma atitude de soberba; do outro, a

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posição de uma cultura literalmente desconhecida que precisa afirmar seu valor (seja ele

grande ou não) sob pena de ser mantida sempre em descrédito.

Naturalmente não há pieguice no relato, mas fica claro que o recurso à poesia de

Bandeira corresponde à defesa da posição de escritor nacional, conscientemente

ocupada por Graciliano. Mesmo quando o alagoano ataca sua própria literatura (aqui

não é o caso, mas ao longo das Memórias veremos tal procedimento se repetir)

evidentemente não significa a sua invalidação estética (e muito menos política), por

mais que ele insista na sua precariedade artística. Portanto, se Graciliano não chega a

pavonear-se na condição de defensor da literatura nacional, não deixa também de

ressaltar o que nela considera esteticamente importante.

Logo após a passagem acima, Graciliano recupera um episódio ocorrido fora da

sequência temporal imediata, estabelecendo objetivamente certo padrão de organização

textual em que se alternam a surpresa e a crítica, mostrando como seu comportamento

evoluía dentro de um posicionamento cada vez mais crítico perante o estrangeiro (sem,

contudo, deixar de lado traços do sentimento de inferioridade). No trecho o escritor

retoma o ar de surpresa com que presenciou certa vez o russo lendo São Bernardo:

A percepção, a compreensão e a memória do rapaz me assombravam. Uma vez encontrei-o agarrado ao meu segundo romance. Virou a folha, avizinhei-me, entrei a rever pedaços da minha terra. Ia chegando ao fim da página esquerda, e o moço voltou a folha de novo. - Não é possível que você tenha lido essas duas páginas, afirmei - Por quê? - O autor dessas drogas sou eu, e li apenas uma. É absurdo que você, estrangeiro, chegado há pouco, mal conhecendo a nossa fala e as nossas coisas, tenha conseguido pegar as duas... E reproduziu as duas páginas, com ligeiras alterações. - Incrível! Exclamei atordoado, largando o volume. Sou na verdade uma criatura bem estúpida. Ou então você é um monstro. (RAMOS, G., 2008, p.211-212)

Novamente o espanto retorna à atitude do personagem, inclusive com certa

admiração, mostrando o caráter oscilante de sua atitude frente ao russo. Em seguida,

diante da explicação de Kamprad sobre a facilidade de se captar o essencial de um texto

em detrimento do detalhe, Graciliano relata nova oposição ao russo, mais uma vez, a

partir da posição de escritor. Desta vez, baseia o argumento ainda com maior

intensidade no presente, partindo da própria experiência literária:

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Afirmava não ser difícil percorrermos o texto, apreendendo a essência e largando o pormenor. Isso me desagradava. São as minúcias que me prendem, fixo-me nelas, utilizo insignificâncias na demorada construção de minhas histórias. Aquele entendimento rápido, afeito a saltos vertiginosos e complicadas viagens, contrastava com as minhas pequeninas habilidades que pezunhavam longas horas na redação de um período. Julguei Sérgio isento de emoção, e isto me aterrou. Comovo-me em excesso, por natureza, e por ofício, acho medonho alguém viver sem paixões. Imaginei-me diante de um cérebro, cérebro enorme. O resto do corpo minguava, tinha fracas exigências, funcionava para levar um pouco de sangue à poderosa máquina (RAMOS, G., 2008, p.212).

Aqui a fragilidade diante do raciocínio veloz e eficaz se reverte em crítica ao

racionalismo excessivo. A partir da sensação de inferioridade do Graciliano-personagem

o escritor reafirma modestamente na atualidade da escrita o compromisso com a criação

literária como o ponto de resistência à frieza racional (“Comovo-me em excesso, por

natureza, e por ofício, acho medonho alguém viver sem paixões”.) sem se iludir quanto

ao raio de ação da literatura, naturalmente um frágil brilho em contraposição às

condições materiais de existência. Por essa razão, a força do retrato que o escritor

compõe do russo sempre se mantém de pé em contraposição ao seu autorretrato,

composto de minúcias apanhadas aqui e ali, as quais, somente em seu conjunto, podem

revelar a medida exata de seu vigor.

Após a crítica a partir da condição de escritor, o tema da tortura – que pela

constância revela a inquietude despertada no escritor no período do cárcere – traz

consigo algo das ideias do Graciliano-personagem sobre seu conceito de civilização, já

parcialmente revelado até aqui por meio da oposição intelectual ao russo. Agora, a

conversa finaliza com questionamentos políticos mais diretos do Graciliano-personagem

ao seu interlocutor, na tentativa de compreender uma visão considerada mais civilizada

que a sua. O entendimento do personagem sobre esse debate não chega a ser conclusivo,

daí não termos a representação de um posicionamento político mais contundente,

prevalecendo observações mais gerais sobre o caráter surpreendente do comportamento

do russo. Se compararmos com as críticas feitas quando fala da posição de escritor, há

um certo recuo crítico, revelando uma das dificuldades próprias não só a ele mesmo,

mas a boa parte da intelectualidade de esquerda de seu tempo, incapaz de ter uma visão

clara dos fatores condicionantes do processo histórico. Após ouvir a história da tortura

sofrida por Kamprad, o personagem procura entrar no mérito político da questão:

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Ouvindo isso, falei do ódio que ele devia experimentar. Olhou-me atônito: - Ódio? A quem? - Aos indivíduos que o supliciaram, já se vê. - Mas são instrumentos, sussurrou a criatura singular. - Aos que os dirigem. Aos responsáveis por isso. - Não há responsáveis, todos são instrumentos. Na verdade ele tinha razão. Contudo, se me houvessem atormentado, não me livraria da cólera, pediria todas as desgraças para os meus carrascos. (RAMOS, G., 2008, p.212-213, grifo nosso)

Curiosamente o Graciliano-escritor concorda com a ideia de que “todos” eram

“instrumentos” sem fazer qualquer ponderação adicional quanto à sua afirmação. Desse

modo, transfere a responsabilidade ao processo histórico (talvez à extensão do alcance

do sistema capitalista), que acaba por “diluir” a responsabilidade do sujeito histórico.

De qualquer modo sua observação no presente da escrita se afasta do posicionamento

crítico ao qual o Graciliano-personagem visava com o questionamento feito ao russo,

revelando certa persistência da dificuldade de distanciamento crítico.

Surpreso com a negativa do desejo de vingança por parte de Kamprad, o

personagem insiste, agora de maneira mais incisiva, em seu caráter bárbaro em

contraposição ao que considera o caráter civilizado do russo:

Guardei silêncio um instante, depois tornei: Sou um bárbaro Sérgio, vim das brenhas. Você é civilizado, civilizado até demais. Diga-me cá. Admitamos que o fascismo fosse pelos ares e rebentasse aí uma revolução dos diabos e nos convidassem para julgar sujeitos que nos tivessem flagelado ou mandado flagelar. Você estaria nesse júri? Teria serenidade para decidir? - Por que não? Que tem a justiça com os meus casos particulares? - Eu me daria por suspeito. Não esqueceria os açoites e a deformação dos pés. Se de nenhum modo pudesse esquivar-me, nem estudaria o processo: votaria talvez pela absolvição, com receio de ser imparcial. (RAMOS, G., 2008, p.213)

Aqui, a menção ao fato de vir “das brenhas” recupera implicitamente a

problemática da barbárie própria ao sertão, que leva o personagem a entender a tortura

como uma espécie de rebaixamento social (ver item 2.2, p.57-59). Não obstante, o tema

da tortura se abre para uma realidade maior, pois se relaciona com o fascismo e a

revolução. Nesse sentido, entende-se que para o personagem a compreensão do mundo

passa pela relação entre as realidades, de modo que a menor está presente na maior,

considerando-se, naturalmente, as condições específicas. Esta posição se reflete na visão

do escritor, por exemplo, em Vidas Secas, em que a partir da concentração da narrativa

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num espaço restrito pode-se perceber a representação da realidade local se estender

rumo à ideia mais ampla de exploração do trabalhador brasileiro.

Diante então da marca impressa pela dura realidade do sertão na visão de mundo

de Graciliano, o discurso do personagem, no qual diz preferir se isentar de um

julgamento de hipotéticos torturadores (ou mesmo absolvê-los), contrasta com a dureza

do pensamento do russo e sua pretensão de total imparcialidade:

O russo não agasalhava tais escrúpulos: absolveria ou condenaria, insensível, examinando os autos. - Se você acaso chegasse ao poder, conservaria os seus inimigos nos cargos, Sérgio? - Não tenho inimigos. Conservaria os que se revelassem úteis. - Bem. Essa impassibilidade me assusta. Apesar de sermos antípodas, fizemos boa camaradagem. Mas suponho que você não hesitasse em mandar-me para a forca se considerasse isto indispensável. - Efectivamente, respondeu Sérgio carregando com força no c. Boa noite. Vou dormir. (RAMOS, G., 2008, p.213)

Ocorre então, em relação à passagem anterior, um início de mal-estar com as

afirmações do russo (“Essa impassibilidade me assusta”, “Mas suponho que você...”).

Com isso, a afirmação anterior do personagem (“Você é civilizado, civilizado até

demais.”) termina parcialmente questionada, em meio ao estado de espanto e confusão,

cuja representação é bem realizada pelo escritor, tendo conseguido reproduzir sua

incapacidade de organizar um ponto de vista mais crítico em relação ao espírito racional

(e de traço positivista) do russo.

O contato com Sérgio Kamprad terá impressão duradoura, influenciando a

percepção do Graciliano-personagem com relação a outros indivíduos. Bem adiante, já

de retorno da Colônia Correcional, o escritor é mantido numa cela provisória até ser

transferido em definitivo para a Casa de Correção, seu último paradeiro nas prisões da

ditadura. Ali chama sua atenção uma figura silenciosa, um lituano que se dedicava ao

estudo da língua inglesa:

Entre os indivíduos existentes no salão, um não se mexera ao entrarmos: permanecia à distância, a cara inerte, a vista fixa num livro. Examinei-o, curioso, Em meia hora não virou a folha. Quem era? Um lituano, informaram-me. Vivia assim mudo, o volume nas garras, e ninguém sabia como se chamava. Um conspirador, imaginei propenso a justificar-lhe a prudência: isolava-se por necessário orgulho, receio de comprometer-se no meio estranho e míngua de assunto: os homens ocupados em cantigas não o entenderiam. Muitos anos atrás, um vendedor ambulante, da Ucrânia, me explicara a revolução de 1905 e deixara-me a idéia esquisita de que todos os

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eslavos eram inteligentes. A literatura russa e as conversas de Sérgio fortaleciam a generalização (RAMOS, G., 2008, p.543-544).

A posição problemática retratada pelo escritor a partir de um ponto de vista

crítico tem grande relevância para a compreensão do contexto político e intelectual

brasileiro da década de 30. Tanto a curiosidade que o Graciliano-personagem sente pelo

lituano como a influência persistente da fala do ucraniano em seu imaginário refletem

um comportamento típico de boa parte da esquerda brasileira de então. Tendo por

referência política uma concepção muito distorcida do “socialismo real” praticado na

União Soviética, cuja verdade ficava encoberta por uma falsa associação com os ideais

da revolução de 1917, parte considerável de nossa esquerda mantinha uma admiração

por pessoas (ou coisas) pelo simples fato de pertencerem à URSS, como se a simples

origem determinasse seu caráter revolucionário ou mesmo uma qualidade política e

intelectual qualquer.

Nosso escritor, nesse caso, passa o devido recibo assumindo a parte de

ingenuidade que lhe cabe (ou cabia), pois o trecho é principalmente uma autocrítica,

não deixando evidentemente de ser uma censura aos “revolucionários” interessados por

“cantigas”. Se fica patente a influência estrangeira sobre o aspecto intelectual na

referência a Sérgio e à literatura russa, por outro lado ele procura não lhes atribuir toda a

responsabilidade por sua própria “generalização”. Com isso, a menção ao vendedor

ambulante capaz de fazê-lo crer numa suposta superioridade eslava aparece como um

fator que o aproxima do pensamento acrítico mencionado.

A “estranheza” da “ideia”, porém, mostra o mal-estar com as crenças

preestabelecidas. Logo adiante, a necessidade de sondar aquele sujeito tido como tão

estranho (quase um personagem; estranho e atraente aos olhos de um intelectual como

Graciliano, assim como tudo que dizia respeito a uma terra intrigante como a Rússia do

século XIX e a URSS de então), leva o escritor a arriscar uma aproximação, como quem

inconscientemente busca resolver a “luta interna” de intelectual brasileiro que vive entre

a crença ingênua e a necessidade de observação:

Cheguei-me à criatura impassível, ensaiei camaradagem, impertinente. Ergueu os olhos baços, rosnou alguns monossílabos indistintos e mergulhou de novo na leitura, arrepiado. Grosseiro, pensei com azedume espiando, familiar e indiscreto, a cartonagem miúda. Era um método inglês, resumo bem vagabundo. A cara do gringo se imobilizava sobre um vocabulário de cinco ou seis palavras. Arredei-me, fui sentar-me a uma esteira. (RAMOS, G., 2008, p.544).

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Como vemos, o reconhecimento da má qualidade do material de estudos muda a

ideia que o escritor faz do lituano. Também o olhar fixo deste para o livro deixa de ser

interpretado como estranheza e passa claramente a ser visto como limitação intelectual.

Com isso, se for mesmo um conspirador, fica implícito que a ignorância o

desqualificará, mostrando a posição do escritor em defesa da associação de intelecto e

ação.

Ainda uma vez, pouco adiante, em meio ao reencontro com antigos conhecidos,

o personagem demonstra seu interesse pelo lituano, mostrando, curiosamente, a

persistência da questão não resolvida: “Nova curiosidade levou-me para junto do

lituano, observei o livro aberto. A criatura não volvera a página, continuava na mesma

lição, emperrado no vocabulário exíguo” (p.545). A passagem mostra um choque entre

a crença arraigada e a observação feita há pouco. A insatisfação com o resultado da

observação (a percepção de que o lituano não representava a “inteligência” esperada)

gera uma angústia e a necessidade de uma nova verificação. Essa atitude reflete a

instabilidade da consciência política que, às vezes, por crença arraigada, teima em não

acreditar na observação direta de um fato.

Como vemos, apesar de haver entre Sérgio e o lituano uma distinção que fica

clara na exposição da narrativa, sua análise deixa entrever a instabilidade apresentada

tanto na visão do Graciliano-personagem quanto do escritor, fato que revela ao mesmo

tempo a crítica e a permanência de valores assentes.

Com base na análise acima exposta, podemos perceber como a própria

organização do trecho que relata a convivência do escritor com o russo reproduz os altos

e baixos da consciência política do escritor sempre a partir do binômio atraso/

civilização, seja sob o aspecto intelectual ou político.

A organização numa estrutura alternante e reprodutora da relação

aproximação/afastamento espelha o próprio movimento da inteligência brasileira, ora se

encolhendo diante de culturas hegemônicas, ora buscando algum modo de revalorizar o

que nos é próprio (neste caso, a literatura nacional).

Sob o aspecto mais especificamente político, deve-se ressaltar que a visão

limitada do personagem (e mesmo do escritor em certas partes), não conseguindo

questionar satisfatoriamente os traços de racionalismo positivista em Kamprad,

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efetivamente é um traço histórico de grande parte da esquerda brasileira – cuja

concepção do marxismo sofreu sérias deturpações sob a influência do positivismo

estalinista – de modo que a representação da atitude de impasse do personagem

corresponde bem à lógica dessa limitação nacional.

4.3.2 - Rodolfo Ghioldi e os “citadinos”: sobre a fala e a escrita

Na relação com Rodolfo Ghioldi – secretário do Partido Comunista Argentino,

também preso pela ditadura Vargas – Graciliano questiona suas possibilidades

comunicativas (segundo ele próprio restritas ao papel), abrindo discussão relacionada à

fala e à escrita enquanto meios de intervenção política.

Assim como na relação com o russo Kamprad, o primeiro contato é relatado sob

a perspectiva do assombro devido ao fato de o escritor se sentir inferiorizado perante

uma capacidade considerada superior à sua. Coincidentemente, a primeira vez que vê

Ghioldi, este, assim como o russo (que ministrava uma aula de física), desenvolve uma

atividade dirigida ao público, no caso, uma conferência sobre a política sul-americana

no pavimento inferior do Pavilhão dos Primários (chamado de Praça Vermelha):

Rodolfo Ghioldi subiu alguns degraus. Tinha de pano em cima do corpo uma cueca e um lenço. Começou a falar em espanhol, de quando em quando lançando os olhos a um cartão de cinco centímetros, onde fizera o esquema da palestra. Referiu-se à política sul-americana, e logo no princípio tomei-me de verdadeiro espanto: nunca ouvira ninguém expressar-se com tanta facilidade. Enérgico e sereno, dominava perfeitamente o assunto, as palavras fluíam sem descontinuar, singelas e precisas. Admiravam-me a rapidez do pensamento e a elegância da frase. Curvado sobre o papel, a suar na composição, emendando, ampliando, não me seria possível construir aquilo (RAMOS, G., 2008, p.195).

Aqui – além do reconhecimento implícito da própria inferioridade na

comunicação oral – se destaca em última instância a busca de naturalidade na escrita. A

superioridade de Ghioldi na linguagem falada resvala também para uma interessante

comparação entre formas distintas de expressão. A menção à fluência e à precisão da

linguagem do argentino acaba por ressaltar certo grau de frustração do escritor no

perfeccionismo de sua própria atividade, reintroduzindo em alguma medida o sentido

negativo de “bagagem crescida”, exposto na relação com Kamprad.

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Avançando na argumentação o escritor revela seu deslocamento dentro da nova

realidade do Pavilhão dos Primários, onde lhe salta aos olhos a extensão que pode tomar

o aspecto coletivo da comunicação, até então pouco percebido por ele, dadas suas

experiências anteriores de sociabilidade, as quais ajudaram a reforçar seu caráter

ensimesmado:

Afeito à solidão no quartel, à promiscuidade animal na viagem, habituara-me com surpresa à vida nova. Homem rural, desconfiado e silencioso, propenso a estender-me em compridos monólogos, admirava-me do Coletivo, das lições, especialmente da perícia daqueles citadinos na exposição de idéias em conversas simples e claras. Não conseguiria manifestar-me assim. De ordinário a expressão me fugia, decompunha-se o pensamento, e era uma tortura vencer a estupidez, procurar dizer qualquer coisa gaguejando um vocabulário escasso, miserável. Na manhã luminosa, olhando postes e fios, prédios cinzentos, arvoredo e morro, ainda uma vez me aniquilei no pasmo que a palavra falada sempre me causa (RAMOS, G., 2008, p.202).

Aqui o escritor, ao mencionar sua condição de homem rural em contraste com os

“citadinos”, alude à oposição campo-cidade, com a desvantagem evidente para o lado

do campo, onde nascera e crescera e em cuja realidade limitadora dos horizontes

culturais fora obrigado a construir a duras penas sua formação de autodidata, sem

chegar a atingir a condição de sujeito comunicativo pleno, situação que o legou

“apenas” a possibilidade de estender-se “em compridos monólogos”, basicamente o

modo como os protagonistas de seus três primeiros romances se expressam,

aproximando-os de si mesmo. Desse modo, a realidade de um mundo arcaico se opõe a

uma outra, por assim dizer “moderna”, que permite aos homens lançarem-se a uma

experiência de maior alcance coletivo. Note-se que não há menção clara ao caráter

propriamente culto dos “citadinos”, alguns dos quais certamente não tinham o mesmo

nível cultural de Graciliano. Entretanto, a posição ocupada por eles aqui, munidos da

“perícia... na exposição de idéias”, os faz crescer em detrimento do escritor, que se

apequena na origem geograficamente humilde. Não obstante a problemática

desvalorização da própria escrita, reafirmada com frequência (mas também outras vezes

negada na medida em que corresponde a um determinado projeto de preservação da

memória de uma coletividade submetida ao arbítrio), o que prevalece é o valor

prospectivo da comunicação.

A semelhança maior, então, estabelece-se com a figura de Fabiano, cuja

experiência é sempre de perplexidade diante de um incompreensível mundo das

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palavras (de fato, veremos Graciliano relatar inúmeras vezes ao longo das Memórias a

sua incapacidade de compreensão das mensagens dirigidas a ele pelos companheiros do

cárcere). A posição assumida indiretamente é a da crítica a uma realidade atrasada,

precisando ser vencida, o que, por outro lado, não coloca o escritor como apologista do

progresso, pois seu argumento aqui não vai além da representação de um estado de

assombro e insatisfação. A perplexidade, nesse sentido, além de apontar para as

condições de desigualdade dentro do próprio atraso, pode ser considerada a analogia

mais precisa da indefinição política do autor que – não sendo propriamente um

revolucionário, mas antes um reformista – não consegue enxergar a transformação

política senão como um processo de transição, mais ou menos dentro da ordem, em

direção a uma “modernidade” da qual desconfia, porém considerada um passo

inevitável, representando a visão de grande parte da esquerda brasileira de seu tempo.

O reconhecido valor do aspecto comunicativo nas duas passagens se torna assim,

dentro da análise de sua dialética, a representação de um impasse ideológico da mais

alta relevância no contexto histórico de então. Com isso, o relato, mesmo sendo

construído a partir de uma visão de mundo problemática, consegue materializar com

grande força e pertinência literária um aspecto relativamente amplo da sociedade a

partir de características marcadamente individuais.

Podemos dizer também que se esboçam no trecho acima razões para a própria

mudança do romance para a autobiografia, numa espécie de metalinguagem

inconsciente do caminho pretendido pelo escritor. Nesse sentido, a tomada de uma

atitude mais “participativa” deveria se pautar pelo depoimento, onde supostamente se

estaria mais próximo de uma fala com aspectos efetivamente prospectivos. Isto se dá

parcialmente nas Memórias tanto por contribuírem para a melhor compreensão daquele

momento histórico – permitindo críticas e ações políticas mais conscientes no futuro –

como por aproveitarem do romance as possibilidades de representação dos impasses

duma determinada realidade.

Graciliano, porém, mesmo sob forte impressão da atitude de Ghioldi, não deixou

(já no cárcere) de abordar a questão da oralidade sob o aspecto inverso. Interessante

aqui é o fato de tê-lo feito exatamente em conversa com o argentino, cujo discurso

admirava e com quem teve de reparar um mal-entendido.

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Numa mesma sequência o escritor relata sua posição dupla frente ao discurso

oral. No primeiro momento, a propósito de uma fala de Ghioldi, basicamente reforça a

boa impressão da primeira vez que ouvira o argentino:

Entre um roque e um xeque fiz amizade com Rodolfo Ghioldi. Longamente lhe escutei a exposição clara, sem tentar aproximar-me dele. Mandaram-lhe a roupa tomada na polícia. No degrau de ferro, agora metido num pijama, discorria sobre a América do Sul, explicava os motivos da rebelião de 1935: muitos indivíduos que tinham figurado nela precisavam de esclarecimentos. Os guardas passavam, detinham-se. E a voz calma não se alterava, as idéias afluíam rápidas, o contexto me dava a impressão viva de prosa armada laboriosamente, no papel (RAMOS, G., 2008, p.224).

No segundo momento, quando há o primeiro contato efetivo entre os dois, a

posição de Graciliano sobre a oralidade se mostra mais ampla:

Rodolfo se dirigiu a mim pela primeira vez, meio descontente. Soubera que eu o considerava bom orador e aborrecia-se: - Não faço discursos. Apenas converso. - É o diabo. Certas palavras se acanalham imerecidamente, respondi. Gosto de dar a elas o sentido exato. Não julgo oradores os que declamam solecismos e lugares-comuns. Aqui no Brasil há uma birra como a sua: ninguém quer ser literato, não sei por quê. Eu me confesso literato, literato ordinário. Findo o equívoco, tornamo-nos amigos jogando xadrez. (RAMOS, G., 2008, p.225).

A crítica se dirige claramente aos herdeiros da cultura bacharelesca do país.

Nesse grupo tanto se incluem os oradores vazios e demagógicos como os escritores de

literatura dessa mesma natureza, ou seja, de apologia do status quo. Graciliano procurou

dar ao termo “literato” a mesma especificação positiva que ao termo “orador” com a

intenção de livrá-los de um ranço histórico. Efetivamente, trata-se de uma

“renomeação” que leva em conta um momento histórico distinto, no qual o romance de

30 se apresenta como força renovadora. Por essa razão, ao invés de desprezar o termo

“literato”, ele se apresenta como um “literato ordinário”, expressão cuja parte negativa

diz respeito somente à posição profundamente autocrítica sobre a própria obra.

Portanto, assim como na relação com o russo Kamprad, Graciliano narra de

forma semelhante um processo gradativo da surpresa ao posicionamento crítico diante

da nova realidade sem, com isso, deixar totalmente de lado o espanto inicial. No caso

específico da relação com a oralidade de Rodolfo Ghilodi, o escritor a retoma sempre

em seu caráter exemplar. Com isso, a ligação entre oralidade e escrita aparece

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mencionada no texto, podendo ser interpretada como um traço positivo da nova

literatura e valendo inclusive como explicação do projeto memorialístico de Graciliano

Ramos.

4.4 – Graciliano e os homens incultos

A narrativa da relação entre o escritor e os demais homens não pertencentes ao

grupo dos indivíduos cultos revela, em larga medida, uma tentativa de análise dos

acontecimentos e de autoexame visando pôr em perspectiva os conflitos ideológicos que

impossibilitavam uma aproximação efetiva entre os dois lados na dura convivência do

cárcere.

Nessa busca, Graciliano acaba expondo tanto consciente quanto

inconscientemente as muitas vezes insolúveis contradições do pensamento da

intelectualidade brasileira de esquerda em seu desejo de compreensão e de identificação

com as classes econômica e/ou culturalmente desfavorecidas.

Consciente da dificuldade que a tarefa impunha numa sociedade onde os grupos

socioeconômicos sempre estiveram profundamente segregados, a escrita de Graciliano

toma os contornos necessários à representação dessa dialética de

aproximação/afastamento ao evitar incorrer no populismo – aspecto frequentemente

criticado pelo escritor nos meios literários de sua época – ao mesmo tempo sem se

eximir das críticas aos socialmente rebaixados diante de sua imobilidade.

4.4.1 – Graciliano e o estivador Desidério: entre o preconceito e a crítica

No Pavilhão dos Primários, uma das primeiras participações do escritor no

Coletivo (organismo interno dos presos políticos visando melhorar as condições de vida

no cárcere) se dá numa votação em que se elegem propostas a serem adotadas pela

organização.

É bastante representativo que o escritor tenha escolhido exatamente o seu

“embate” com o estivador Desidério, deixando de parte as falas dos demais – alguns dos

quais certamente contribuíram com suas ideias na eleição – bem como o próprio

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conteúdo discutido, ao qual faz alusão com termos genéricos como “propostas”,

“projeto”, “proposições” etc. Esse recorte concentra toda a força na oposição homem

culto x sujeito “rombo”, ultrapassando o mero caso individual e abrindo espaço para

uma discussão que tende a jogar luz sobre a experiência brasileira.

Graciliano principia – com base na visão do momento da escrita – pela crítica ao

indivíduo “bilioso” incapaz de reconhecer quem está do seu lado. Com isso, marca sua

posição enquanto intelectual, sugerindo uma leve disponibilidade de estabelecer um

diálogo com a outra parte, aspecto que, entretanto, permanece, por assim dizer

“estacionado” no próprio nível da afirmação, mais acusatória do que propriamente

conciliatória:

O estivador exibiu sem disfarce ódio seguro aos burgueses, graúdos e miúdos. Todos nós que usávamos gravata, fôssemos embora uns pobres-diabos, éramos para ele inimigos. Houve eleição no Coletivo, e lá nos introduziram, a ele e a mim (RAMOS, G., 2008, p.233).

No momento em que o Graciliano-personagem lança sua primeira proposta

recebe imediatamente a recusa aberta do estivador: “ – Besteira”. Ao narrar o espanto e

a raiva com que se deparara com a situação inédita de ser contrariado por um indivíduo

de classe social inferior, o escritor põe em perspectiva seus preconceitos e avança no

argumento, chegando enfim a mencionar os locais frequentados por ele e por seus

companheiros de profissão:

Naquele dia a ira velha, recalcada nos subterrâneos do espírito, veio à luz e sacudiu-me: desejei torcer o pescoço do insolente. Na surpresa, recusei o testemunho dos olhos e dos ouvidos. Ter-me-iam dito a palavra rude? Estaria a censurar-me o bugalho torto e imóvel, a desviar-se de mim, zombeteiro, superiormente fixo na parede, num ponto acima da minha cabeça? O rombo sujeito, carregador de sacos, não seria tão grosseiro com uma pessoa habituada a manejar livros. Devo ter pensado nas conveniências amáveis e tolas, nas perfídias gentis comuns na livraria e no jornal (RAMOS, G., 2008, p.233-234).

A crítica à própria atitude elitista (“O rombo sujeito... não seria tão grosseiro

com uma pessoa habituada a manejar livros.”), que logo adiante nomeará de “escrúpulos

vaidosos” (p.234), se espraia em alguma medida para os de sua classe. “A livraria e o

jornal” – dois dos principais pontos de encontro da intelectualidade da década de 30 –

aparecem como lugares de “conveniências” e “perfídias” que o escritor frequentemente

presenciava e das quais não chega a se isentar. Graciliano, portanto, não se apresenta

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como sujeito imune a um possível contágio do comportamento de seu grupo (escritores

e articulistas) e inclusive o sugere como padrão inconsciente de referência para sua

própria atitude (“Devo ter pensado nas conveniências amáveis...”).

A autocrítica segue ao narrar a derrota definitiva, quando Graciliano teve a quase

totalidade de suas propostas rejeitadas tanto pelo estivador como pelos demais membros

do Coletivo. Essa condição no calor da hora provoca no personagem uma reflexão de

aspecto conservador – típica de quem julga a realidade tendenciosamente a partir de seu

resultado histórico – o que lhe permite a confirmação de suas crenças:

As duas proposições finais obtiveram recusa unânime. Essa deplorável estréia varreu-me nuvens importunas: sempre me excedera em afirmações categóricas, mais ou menos vãs; achava agora uma base para elas. Evidentemente as pessoas não diferiam por se arrumarem numa ou noutra classe; a posição é que lhes dava aparência de inferioridade ou superioridade. Evidentemente. Mas evidentemente por quê? A observação antiga me dizia o contrário. Homem das brenhas, afeito a ver caboclos sujos... quase bichos, era arrastado involuntariamente a supor uma diversidade essencial entre eles e os patrões. O fato material se opunha à idéia – e isto me descontentava. Uma exceção rara... quebrava a monotonia desgraçada: o enxadeiro largava o eito, arranjava empréstimo, economizava indecente, curtia fome, embrenhava-se em furtos legais, chegava a proprietário e adquiria o pensamento e os modos do explorador; a miserável trouxa humana... resistente ao governo e à seca, ao vilipêndio, resolvia tomar vergonha, amarrar a cartucheira à cinta, sair roubando... matando como besta-fera. Essas discrepâncias facilmente se diluíam no marasmo: era como se os dois ladrões, o aceito e o réprobo, houvessem trazido ao mundo a condição inelutável: pequenas saliências no povo imóvel, taciturno, resignado. Naquele instante a aspereza do estivador me confirmava o juízo (RAMOS, G., 2008, p.234-235).

A luta do Graciliano-personagem para definir sua posição, o que ocorre por meio

da conclusão obtida pela observação direta da fachada dos acontecimentos – ou seja, do

resultado da exploração dos homens em sua terra – tem um caráter exemplar na medida

em que reproduz o pensamento de boa parte da esquerda brasileira intelectualizada da

época.

Diante da dificuldade de compreender a razão dos modos de pensar e de agir das

classes socialmente inferiorizadas (frequentemente refratárias às ideias correspondentes

a seus interesses fundamentais e, por isso, responsáveis por reforçar o próprio

imobilismo social), as elites intelectuais, ao negligenciarem uma compreensão

materialista do processo histórico nacional, se atiravam às “afirmações categóricas”

(inclusive as de fundo moralista, como a crítica à “indolência popular”), segundo as

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quais o indivíduo oriundo do “povo” não seria capaz de participação ativa no processo

histórico.

Essa “constatação” o Graciliano-personagem transfere dos de sua terra ao

estivador, que teria como única vantagem a circunstância de estarem ambos na prisão,

onde a “teoria” de nada vale. Com isso, o personagem pudera compreender seu fracasso

na discussão:

Lá fora sem dificuldade me reconheceria num degrau acima dele; sentado na cama estreita, rabiscando a lápis um pedaço de papel, cochichando normas, reduzia-me, despojava-me das vantagens, acidentais e externas. De nada me serviam molambos de conhecimentos apanhados nos livros, talvez até isso me impossibilitasse reparar na coisa próxima, visível e palpável. A voz acre me ofendera os ouvidos, arrancara-me exclamações de espanto, abafadas nas preocupações do Coletivo: ninguém ali estava disposto a lisonjear-me. Aceitei o revés como quem bebe remédio amargo. Afinal a minha opinião se confirmava (RAMOS, G., 2008, p. 235).

Sem prejuízo do acerto correspondente à constatação do “fato em si”, ou seja, de

que “lá fora” estaria claramente em posição social superior à do estivador, trata-se

evidentemente de um falso consolo imposto a si mesmo pelo personagem, uma vez que

a “confirmação” de sua opinião apenas reforçava o preconceito já anunciado.

Importante observar que o escritor complementa a autocrítica com a observação

sobre o caráter “literário” de sua atitude, aqui entendido em acepção pejorativa como

uma visão precária (“molambos de conhecimentos apanhados nos livros”) e distanciada

da realidade, incapaz de compreender a “coisa próxima, visível e palpável”. Desse

modo ataca novamente, agora de forma indireta, a cultura defensora do privilégio dos

que “cochicham normas” sem, contudo, concluir o argumento de modo enfático, pois,

ainda que critique suas antigas posições, retoma novamente a atitude de negação sem

completa superação do passado, refazendo na forma e no tom do discurso a

instabilidade de sua posição como intelectual.

Mais adiante, ao narrar a transferência das primeiras levas de presos para a

Colônia Correcional, o escritor retoma a crítica a Desidério com uma dialética mais

fina, fruto de uma posição mais equilibrada do próprio Graciliano-personagem, dessa

vez não envolvido diretamente em desentendimento com o estivador, o que certamente

lhe permitiu evitar o acentuado preconceito anterior. Após as palavras de esperança aos

que provavelmente seriam enviados à Ilha Grande – deixadas por Roberto Sisson (líder

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da ANL), acenando com a possibilidade de soltura dos presos, e por Mamede,

“trabalhador rude”, convertido em missionário, discursando profeticamente sobre a

união das classes – o estivador ataca duramente a visão otimista de ambos, segundo o

escritor, com “a mesma raiva fria e demolidora, o mesmo horror aos intrusos no seu

mundo” (p.309) com que havia se dirigido a ele na eleição do Coletivo:

-Eu sei para onde vou, sim senhores. Vou para a Colônia, que é meu lugar. Estive aqui por descuido, não é possível viver muito tempo com os senhores. E rematou, cheio de fel e veneno, um fulgor de ódio no olho que se ausentava de nós. -Estes braços estão cansados, estão magros de carregar farinha para burguês comer. A réplica brutal à harmonia fervorosa de Mamede produziu um silêncio de constrangimento. Depois de tal clareza, as tentativas de acomodação eram inúteis. Desidério nos julgava parasitas, os nossos trabalhos demorados e complexos não tinham para ele nenhuma significação. Arrepiei-me ante aquela antipatia agressiva, a desviar possíveis entendimentos, a excluir habilidades proveitosas. Jogava-nos a todos o labéu. Exploradores e inimigos. Na verdade a maioria não era burguesa. Pertencíamos a essa camada fronteiriça, incongruente e vacilante, a inclinar-se para um lado, para outro, sem raízes. Isso determinava opiniões inconsistentes... entusiasmos exagerados, e logo afrouxamentos, dúvidas, bocejos. Naquele momento a revolução monopolizava os espíritos, e alguns a desejavam com fervor religioso. Mais tarde iriam surgir numerosas apostasias, e é possível que homens ásperos como Desidério tenham influído nelas (RAMOS, G., 2008, p.309-310).

Aqui o escritor defende a condição dos que se dedicam aos “trabalhos

demorados e complexos”, deixando entrever a importância do serviço de

conscientização política que os “teóricos” podem e devem sempre representar, em

especial num processo revolucionário. Contudo, isso não os isenta da crítica ao seu

caráter “vacilante”, explicado pela condição social fronteiriça de quem cultiva valores

burgueses, porém economicamente está mais próximo das camadas trabalhadoras, como

seu personagem Luís da Silva.

O principal aqui, entretanto, fica por conta da crítica ao estivador, totalmente

indisposto ao diálogo. A referência à sua incapacidade de perceber a proximidade social

entre os que efetivamente devem trabalhar por um interesse comum mostra que o

escritor não incorre em um aspecto ideológico perigoso, próprio ao esquerdismo

brasileiro, segundo o qual, os social e economicamente excluídos estariam sempre do

lado da verdade. Em certo sentido, a visão do escritor se assemelha à posição de Karl

Marx na famosa polêmica contra o alemão Wilhelm Weitling, membro da Liga dos

Comunistas (grupo de exilados alemães sediado em Londres na década de 1840), na

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qual teria afirmado que “a ignorância jamais serviu a alguém”44. Além disso, ao

mencionar que os mais fervorosos são justamente os mais tendentes a mudar de crença

(“numerosas apostasias”), deixa entrever uma das forças do reacionarismo político, cuja

atuação bem-sucedida em momentos históricos decisivos sempre esteve ligada à

capacidade de cooptação das mentes mais encarniçadas.

No entanto, em seguida, de forma dialética, revela como buscou no discurso

enfurecido do estivador indícios que pudessem revelar alguma intuição proveitosa:

Pensei depois com freqüência naquele rompante, esforcei-me por explicá-lo. Quem sabe o estivador não tinha alguma razão? Opusera um dique ao otimismo torrencial de Mamede. Contivera as explosivas manifestações da coqueluche vermelha. Tarimbeiro antigo, desdenhava os recrutas. E talvez percebesse ali as falhas em consciências, perfídias, embustes e ciladas. Viviam a cochichar que estávamos cercados de espiões. Desidério se defendia, encaramujava-se no seu grupo social, retraía-se na desconfiança como numa carapuça. Farejava denúncias. E os denunciantes eram burgueses, provavelmente (RAMOS, G., 2008, p.310).

O argumento, num primeiro olhar aparentando contradição com o anterior, na

verdade o complementa, e tem o mérito de mostrar como o esquerdismo pode estar dos

dois lados. A explicação da desconfiança de Desidério, insuficiente para isentá-lo

totalmente da atitude grosseira, é baseada na insegurança generalizada, aspecto relatado

em diversas ocasiões e que chega a contaminar o próprio escritor (Pavilhão dos

Primários, caps. IX e X entre outros). Com isso, Graciliano procura mostrar que essa

força maior pairava acima das consciências individuais, obscurecendo, em certa medida,

os juízos críticos.

A narrativa dos episódios com o estivador Desidério, ao procurar estabelecer

uma posição de distanciamento crítico das partes contendedoras, aspecto parcialmente

bem realizado devido à inserção de Graciliano em um dos lados, deixa uma crítica à

esquerda brasileira da época, incitando-a à reflexão. A referência às “manifestações da

coqueluche vermelha” aponta para a dureza de posições que levaram ao

enfraquecimento interno do movimento revolucionário. Sendo assim, não é sem

44 Carlos Nelson Coutinho. O lugar do Manifesto na evolução da teoria política marxista. In: COUTINHO, Carlos N. et alii. O Manifesto Comunista 150 anos depois: Karl Marx, Friedrich Engels. Cf, p.43.

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propósito o escritor aproximar aqueles homens na lembrança do medo e da incerteza,

recurso propício a manter o leitor atento para a inclusão de todos em um drama comum.

4.4.2- Os “vagabundos e malandros”: o estatuto da ficção

Após os momentos cruciais que antecedem a transferência de Graciliano para a

colônia – dos quais narra as incertezas sobre a possibilidade de resistência de seu frágil

organismo bem como a necessidade intelectual de presenciar horrores a fim de poder

narrá-los devidamente (ver item 3.2.1, p.82) – o escritor se vê, como diz, na

“promiscuidade” forçada da Colônia Penal, em meio a aproximadamente mil homens, a

grande maioria composta de criminosos.

Por intermédio de Vanderlino, artesão que conhecera no Pavilhão dos Primários

e reencontrara na nova prisão, passa a ter contato com indivíduos cujas vidas se

desenvolveram sempre às margens da lei. A proximidade permite ao escritor novas

formas de relação, as quais, mantendo nitidamente o caráter investigativo de interesse

literário (“buscaria sondar os pensamentos e sentimentos de um ladrão”, p.439), levam-

no a tentar compreender os aspectos humanos que aproximam e distanciam figuras tão

distintas. A narrativa de seu primeiro encontro com Gaúcho, ladrão arrombador, traz

claramente uma tentativa de percepção de aspectos que suplantem visões preconcebidas,

sem, no entanto, se apressar em conclusões indevidas:

Tinha a aparência de uma ave de rapina. Estendeu-me a garra larga, acocorou-se junto à esteira, pôs-se a conversar naturalmente. Apertando-lhe a mão declarei ter muito prazer em conhecê-lo. Tinha. Não era apenas curiosidade. Finda a surpresa, confessei a mim mesmo que poderia tornar-me sem esforço amigo do ladrão. A firmeza, a ausência de hipocrisia, a coragem de afirmar, tudo revelava um caráter. Lembrava-me dos modos esquivos dos meus companheiros, da malícia estulta de João Rocha. Bem. Cortavam-me várias amarras, vidas estranhas iam patentear-se no formigueiro em rebuliço. Dos rápidos minutos desse encontro apenas resta o bom efeito causado pelo tipo anormal (RAMOS, G., 2008, p.425).

A descrição de Gaúcho, alternando aspectos animalescos e humanos, revela

talvez não exatamente o real aspecto físico do ladrão, provavelmente percebido desse

modo pelo impacto do primeiro encontro com um tipo que o autor afirmara ter

“conhecido” apenas em ficção. A atitude de classe então se mistura com certo

despojamento de quem não apenas se acondiciona à nova realidade (equivalente a uma

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descida social), mas também percebe, em sentido oposto, algo que dela se eleva,

aparecendo destacado da imaginação do senso comum. Não por acaso, as qualidades de

Gaúcho capazes de chamar a atenção do escritor são exatamente aquelas, segundo ele,

ausentes nos frequentadores da “livraria e do jornal” (“ausência de hipocrisia”,

“coragem de afirmar” etc.). A “firmeza” do homem que não se incomoda em ser

apresentado a Graciliano como “ladrão” se contrapõe também à própria instabilidade do

escritor, que ao longo das Memórias alterna entre acreditar e desacreditar no alcance

social de seu trabalho, diante da árdua tarefa de deixar uma obra minimamente capaz de

contribuição estética e política. Nesse sentido, a predisposição para o encontro com o

arrombador tem algo de “aproximação dos homens simples” (pois o escritor não verá

Gaúcho exatamente como os demais criminosos) não no sentido pejorativo, populista,

mas de reconhecimento de uma realidade que permitirá ao escritor contrapor “valores”

os quais, embora possam lhe parecer (e efetivamente parecerão) socialmente

distorcidos, poderão colocar sob uma nova luz algumas de suas antigas crenças.

A narrativa de Graciliano revela, a partir do “estudo” da individualidade alheia,

a sua busca de afastar na medida do possível os traços ficcionais que poderiam se

interpor a uma caracterização precisa – sem frágeis especulações baseadas em seus

próprios valores – de homens cuja vida estava ligada ao crime. Nesse sentido, a simpatia

mútua entre Graciliano e Gaúcho leva-os a manter conversas frequentes, permitindo que

o escritor consiga separar seu interlocutor dos demais criminosos:

Logo no segundo ou terceiro encontro o arrombador me fez esta observação curiosa: -Vossa mercê usa panos mornos comigo, parece que tem receio de me ofender. Não precisa ter receio, não; diga tudo: eu sou ladrão. -Sim, sim, retruquei vexado. Mas isso muda. Lá fora você pode achar ofício menos perigoso. -Não senhor, nunca tive intenção de arranjar outro ofício, que não sei nada. Só sei roubar, muito mal: sou um ladrão porco. Diversos indivíduos corroboravam esse juízo severo, ostentavam desprezo à modesta criatura. Eram em geral vaidosos em excesso, fingiam possuir qualidades extraordinárias e técnica superior. Tentavam enganar-nos, talvez enganar-se, mentiam, queriam dar a impressão de realizar trabalho perfeito. Não se misturavam com os indivíduos comuns, e o natural expansivo do escrunchante os exasperava. Obtive lápis, papel, comecei de novo a tomar notas, embora fosse quase certo jogá-las fora. -Ó Gaúcho, perguntei, você sabe que eu tenho interesse em ouvir suas histórias? -Sei. Vossa mercê vai me botar num livro. -Quer que mude seu nome? -Mudar? Por quê? Eu queria que saísse o meu retrato.

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Logo se esquivava, humilde, engrandecia os talentos de alguns companheiros... (RAMOS, G., 2008, p.451-452).

O depoimento algo triste do ladrão, devido à condição lamentável de quem não

sabe senão roubar, não deixa de despertar riso pela pequena vaidade de querer ver seu

retrato estampado. A construção do trecho (não se descarta a possibilidade de o escritor

haver conduzido a conversa com o intuito de captar contradições no discurso de

Gaúcho) reforça esse lado duplo de sofrimento e satisfação ingênua, mostrando a

intenção do autor em realçar no ladrão o que efetivamente considera seus traços de

cidadão humilde. Junta-se a isso o contraste com os demais criminosos, reforçando esse

aspecto de homem diminuído (“diversos indivíduos corroboravam esse juízo severo”).

Não por acaso, Graciliano sugere a Gaúcho procurar “ofício menos perigoso”.

Mais adiante, no capítulo XXV, a vaidade mencionada no trecho acima toma

corpo na figura de Paraíba, criminoso experimentado em golpes contra pessoas incautas.

O encontro de Graciliano com ele ajuda a aumentar o sentido que se pode extrair do

trecho acima, marcando as diferenças de caráter entre os bandidos. Os dois se conhecem

por intermédio de Cubano, outro criminoso também simpático ao escritor. Este fica

entediado com a linguagem e a atitude pretensiosa de Paraíba, preocupado em

demonstrar a importância do próprio “ofício”:

-Paraíba, disse o negro, aqui seu Fulano vai escrever uma história e vem pedir a você algumas informações... -Informações? Estanhou Paraíba interrompendo os cochichos. -Sim, coisas de vigarismo. Diga como é que você trabalha. O tipo formalizou-se: -Nós não devemos confessar a leigos os mistérios da nossa profissão. Essa frase pulha enjoou-me. Pensei na linguagem simples de Gaúcho e fiquei ali de pé, sem nenhum interesse. Cubano insistiu, e enfim o mulato acedeu, com um gesto de profissional que manda um consulente para a sala de espera: -Bem. Demore um pouco. Estou ocupado em negócios. E voltou à conversa. (RAMOS, G., 2008, p.486).

A descrição do comportamento do bandido, muito centrada no aspecto

linguístico, revela traços que o aproximam de uma figura burguesa, pois reforça certo ar

de profissional liberal confiante nas próprias capacidades. Após resolver seus

“negócios” o ladrão finalmente conversa com o escritor. Indignado, este decide testar o

criminoso:

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E Paraíba atendeu-me: - Às suas ordens. Referi-me à frase dele: não desejar confessar os mistérios da profissão. E resolvi metê-lo em brios dizendo não acreditar nos mistérios: -Tudo isso é velho e já foi contado milhares de vezes pelos jornais. Vocês não têm originalidade. -O senhor se engana, protestou o velhaco. Nós jogamos com armas psicológicas. O vigarista falava bonito e pretendia, julguei, não revelar as destrezas, mas fazer uma conferência literária (RAMOS, G., 2008, p.486).

De fato, o modo como o assunto é abordado pelo escritor remete à literatura. As

características negativas atribuídas a Paraíba em ambos os trechos (linguagem

empolada, presunção etc.) também dizem respeito aos que fazem “conferência literária”.

Desse modo, a alusão indireta (provavelmente não intencional) a literatos vaidosos

mostra sua posição de repúdio à grandiloquência, fazendo das passagens uma sutil

defesa da simplicidade na escrita (“Pensei na linguagem simples de Gaúcho...”), aspecto

marcante de seu próprio fazer literário.

Não obstante a distinção entre os caracteres dos criminosos, por meio da qual

Graciliano procura reconhecer diferentes capacidades de convivência social ortodoxa, o

aspecto crescente no interesse do escritor é o gosto dos bandidos da Colônia pela

ficcionalização da realidade. Antes mesmo de poder estabelecer o contraste entre presos

como Paraíba e Gaúcho, o autor já aproximava todos aqueles homens ao perceber neles

uma tendência para certa subjetividade despegada do real. A circulação de livros da

Biblioteca do Coletivo em meio aos presos leva o escritor às suas interrogações:

Descobri alguns romances de José Lins, de Jorge Amado, meus. E, tanto quanto posso julgar, o mais lido era Jorge: apareciam-me com freqüência, nas tábuas e nas esteiras, malandros, tipos das favelas, atentos no Suor e no Jubiabá. Por que estaria Jorge, só ele, a provocar o interesse dessa gente? Remexi a cabeça procurando uma resposta... O nosso público em geral afastava-se disso [das exposições vivas de José Lins do Rego], queria sonho e fuga. Aqueles homens de tatuagens, anfíbios, ora no morro, ora na cadeia, entregam-se, por serem primitivos ou para esquecer asperezas, a divagações complicadas, e não sabemos quando nos expõem casos verídicos nem quando mentem. A imaginação de Jorge os encantava, imaginação viva, tão forte que ele supõe falar a verdade ao narrar-nos existências românticas nos saveiros, nos cais, nas fazendas de cacau. A respeito de meus livros nada sei, pois nunca vi ninguém pegar um; lá ficaram intatos, suponho (RAMOS, G., 2008, p.470).

O trecho toca na questão do sentimentalismo diante da realidade não apenas no

plano da recepção, mas também no da própria criação literária. O tema é de ampla

importância não só para o caso em questão como diz respeito a toda uma concepção

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literária (e política), encontrada não apenas na década de 30, mas também no conjunto

da nossa experiência literária. O escritor não leva adiante a discussão em termos

estritamente analíticos (o que, aliás, evita em quase tudo nas Memórias, concentrando-

se mais nas perguntas do que nas respostas), pois evidentemente esse não é o propósito

das Memórias. Entretanto, a questão continua indiretamente a ser reposta na forma do

texto à medida que o escritor tenta reconstruir as falas de Gaúcho. O contato direto mais

prolongado com o arrombador, reproduzido nos diálogos, revela como o escritor evita

qualquer espécie de idealização do criminoso. Isso se dá, mesmo com a proximidade,

por um processo mediado pela literatura; nesse caso, a “literatura oral” do próprio

Gaúcho. Este é, portanto, “estudado” pelo modo como “representa” sua própria vida

(suas “aventuras”, no dizer sutilmente cômico de Graciliano), enquanto o escritor passa

à condição de ouvinte e interlocutor.

Para o escritor o assunto mais relevante do qual trata o criminoso são suas fugas,

pois são elas que contêm de modo mais marcante o elemento ficcional. Quando Gaúcho

narra, com extrema riqueza de detalhes, seu projeto de fugir da Colônia, o escritor

intervém, incomodado com a simplicidade do “plano-narrativa”:

-...A ilha é grande. Está no bolso a caixa de fósforos, porque à noite preciso uma fogueira para me defender das cobras. Tenho de viver nas brenhas muitos dias, até que a vigilância afrouxe. Na primeira semana há um corre-corre dos diabos, e não faço a doidice de me aproximar da costa. Fico na serra, entocado, como bicho... Agüento-me uns quinze dias, um mês, afinal se esquecem de mim, volta o sossego... Aproveito uma noite de escuro ou chuva, desço ao porto, desatraco uma canoa... e toco para Mangaratiba... Entro no Rio a pé, acompanhando a estrada de ferro. Calou-se, e apresentei-lhe esta objeção: -Você fala com uma certeza esquisita. Pode ser que as coisas não se passem como você imagina. -Ora essa! Falo porque tenho prática, não é a primeira vez que me desenrasco. É assim que se faz. (RAMOS, G., 2008, p.504).

Toda a narrativa de Gaúcho revela uma imaginação contendo um elemento de

teatralidade simplista. O tempo presente (construção própria? adaptação do escritor?)

ajuda o interlocutor a visualizar a “cena” como na rubrica do texto dramático. O ladrão,

sabendo que o escritor ouve suas histórias para recontá-las, procura impor um tom sério

ao seu discurso. Por sua vez, o escritor, como homem culto, na condição de quem

controla a conversação (e não tem ilusões numa suposta relação de igualdade), aceita o

pacto a fim de conhecer melhor seu “personagem”.

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Na sequência da conversa, o arrombador narra uma fuga que teria realizado em

Fernando de Noronha. Dessa vez, contudo, a “certeza esquisita” – de certo modo

aceitável por se tratar de um acontecimento prospectivo, sujeito a variações (como a

performance teatral), mas ainda assim realizável, dadas as condições mais ou menos

plausíveis de execução do plano (esperar a noite cair, apanhar um barco atracado etc.) –

dá lugar, na visão do escritor, a uma narrativa um tanto inverossímil do passado:

Em seguida referiu-se a evasão de Fernando de Noronha, mas havia nela sérias dificuldades, e não me seria possível hoje reproduzi-la. Esqueci quase tudo. Essa história não me despertou muita curiosidade, talvez por encerrar um lance romanesco, façanha incompatível, parece-me com a natureza do meu amigo. Supus que a fantasia dele houvesse forjado o caso, pelo menos grande parte do caso estranho. Em geral aqueles homens devaneavam, enxertavam pedaços de sonho na realidade. Afasto o juízo temerário, concebo alguma verdade na proeza de Gaúcho. Enfim as narrações dele articulavam-se com rigor (RAMOS, G., 2008, p.504).

A atitude do escritor com relação à narrativa um tanto ficcional de Gaúcho passa

da reprovação inicial à aceitação um tanto condescendente (“Incongruente. Mas quem

não é incongruente? Não havia em Gaúcho sinal de mentira..., p.505”). Ao

supostamente procurar a “resposta” na fala do criminoso por meio da introdução do

“literário”, o autor evita incorrer no erro do discurso sociologizante e mantém a tradição

da “investigação” aos moldes do seu romance. De certo modo, esse aspecto

inconclusivo se deve tanto à simpatia do escritor por Gaúcho como ao próprio papel

deste enquanto narrador uma vez que, não podendo naturalmente analisá-lo em ação, o

escritor teve que contentar-se com as histórias de seu “amigo”. Se o bandido enxerta

“pedaços de sonho na realidade”, mas, de um modo geral, consegue “articular” com

rigor suas narrações, o seu relato “romanesco” assume algum valor de verdade. Percebe-

se essa concepção quando o escritor avalia a narrativa do improvável salvamento dos

homens que teriam perseguido Gaúcho na fuga da ilha. A dúbia afirmação “Bem.

Aquela força visível podia ter realmente salvo os quatro soldados (p.505)” não parece

demonstrar crença no detalhe do relato, contudo a compleição física do ladrão poderia

autorizar o “exagero” como uma espécie de verossimilhança interna aos propósitos da

narrativa.

A dificuldade que o próprio Graciliano apresenta aqui para equacionar o

problema da legitimidade literária (verdade? verossimilhança?) pode ser remetida à sua

visão da literatura de Jorge Amado. Guardadas naturalmente as devidas proporções, o

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alagoano faz uma aproximação indireta entre o discurso de Gaúcho e a literatura do

escritor baiano, na qual contraditoriamente autoriza e desautoriza ambos. O “sonho”

aparece como a dose de imaginação permitida para a construção de uma narrativa que

tem pretensões de figurar uma realidade vivida ou observada, o que, ao menos em

princípio, não vale para ele próprio enquanto escritor. Enquanto leitor, entretanto,

admite essa margem criativa segundo ele capaz de inventar uma verdade própria, como

acontece também na literatura de José Lins do Rego, perante a qual tem a mesma atitude

dupla de aceitação e recusa.

Podemos então dizer que o esforço de construção da imagem dos “vagabundos e

malandros” se amplia com vistas a um questionamento do fazer literário, pondo em

perspectiva o modo como o próprio Graciliano atinge a verossimilhança em seu

trabalho, além de desafiar posições mais ou menos estabelecidas pelo senso comum ao

propor a comparação entre presos e homens livres.

4.4.3 - O discurso solicitado por Alfeu: o peso das palavras

Na Colônia Penal, Graciliano se vê constantemente às voltas com exigências da

escrita. Este fato é determinado não apenas por seu desejo de retratar a vida no cárcere –

duplamente motivado pela necessidade de registro dos acontecimentos inverossímeis e

pela capacidade de resistência proporcionada pela escrita – mas também pelos desejos e

necessidades de outros que o reconhecem como homem de grande domínio no uso da

palavra.

Diante desse reconhecimento, o soldado Alfeu, um dos responsáveis pela

opressão diária aos detentos, recorre ao escritor para a confecção de um elogio a ser lido

pelo próprio soldado na festa de aniversário do diretor da Colônia Penal. O fato

inusitado gera uma crise de consciência no escritor, reproduzida no relato nos termos do

peso político que a palavra pode assumir em tais circunstâncias. O medo de ser

espancado e a possibilidade de traição de princípios norteiam a narrativa da consciência

dividida:

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O diretor da prisão aniversariava no dia seguinte... e Alfeu tinha desejo de fazer um discurso, representando a polícia. Como não sabia trabalhar nessa matéria, pedia-me que redigisse uma saudação, curta, meia folha de papel somente. Um favor pequeno. Atravessou-me o espírito, com medonha nitidez, a conseqüência de uma recusa: lembrei a cena horrível e imaginei-me na situação do infeliz, a espojar-me na areia, contuso, amarfanhado, biqueiras de sapatos desarranjando-me as costelas... não me ocorria uma negativa, nem sequer a possibilidade vaga de eximir-me... Vinte e quatro horas depois o cafuzo gaguejaria essa miséria, e eu me conservaria agachado na esteira, um molambo, sem ânimo de encarar Nascimento, Aleixo e Claudino. (RAMOS, G., 2008, p.473-474).

Os três companheiros de prisão citados procuravam manter o funcionamento do

Coletivo apesar das condições ainda mais degradantes que as existentes no presídio,

tendo inclusive solicitado a Graciliano a correção de um documento para ser

encaminhado ao Congresso. Esse fato tornava ainda maior a contradição enfrentada pelo

escritor. A descrição da “tortura dupla”, ao expor a fragilidade de quem já se propunha a

aceitar a tarefa “infame”, leva o escritor a comparar-se aos traidores da própria

consciência:

Não estava nas minhas possibilidades furtar-me a ela, nem um momento pensei nisso; preocupava-me somente em achar um canto para cumpri-la, ausente de Aleixo. Depois me tornaria inimigo do excelente negro; não suportaria o brilho dos óculos redondos, a fala mansa, as histórias de greves. Acharia razões para simular desprezá-lo, desprezando-me; servem para isto as pequenas inteligências malandras. Não as censuro, pois estive a ponto de acanalhar-me e nenhuma resistência opus. Não refleti, não busquei vencer a dificuldade: um miserável traste. O desfecho desse caso foi imprevisto e ainda hoje me espanta: ignoro como veio (RAMOS, G., 2008, p.475-476).

A questão se põe de modo interessante nos termos da ligação entre teoria e

prática. Para o escritor sua crise de consciência não representa propriamente uma

oposição efetiva contra os instrumentos de opressão. Na expressão “inteligências

malandras” podemos reconhecer mais uma vez a referência à atitude dos que,

conscientemente ou não, oscilam de forma ideológica, jogando com a maré dos

acontecimentos. O fato de não censurar essa posição cambiante não só implica a

dificuldade vivida pelo personagem (o medo diante da possibilidade de levar uma surra)

como alude também à suposta incapacidade de controlar suas ações de um modo geral.

Não por acaso, a descrição do medo paralisante diante de Alfeu é associada a uma

afirmação de caráter geral, ao lembrar-se de um episódio em 1930:

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Já me havia sucedido coisa semelhante, anos atrás. Em geral me atordôo, perco a noção do perigo, não ouço tiros num conflito; vem-me custosa, em pedaços, a conveniência de resguardar-me atrás de uma árvore, num vão de porta (RAMOS, G., 2008, p.474).

Assim sendo, o que para nós leitores pode se revelar como uma grande força do

intelecto do escritor (a saída que encontra para a situação, algo inclusive ligado à sua

capacidade de grande romancista), para ele não passa de um acaso, daí seu relato

desligar-se de qualquer vaidade:

- E quem lhe disse que eu seu fazer discursos? Perguntei numa calma exterior de causar surpresa. - Sabe, afirmou o soldado. Pois eu não vejo o senhor mexendo em papel o dia inteiro? Demais o senhor foi importante em sua terra. - Nada disso. É engano. Fechavam-me aquela saída. Imprudência dedicar-me ao relatório e às notas perto da grade. Nova objeção caiu, lenta e incisiva: - Bem. Suponhamos que eu saiba fazer isso. Imagina que posso fazer? Não adivinho os seus sentimentos. Se eu escrevesse o discurso, toda a gente compreenderia logo que ele não era seu. Devo ter falado assim, com pouca alteração. Pelo menos estou certo de não exibir nestas linhas coragem falsa. O medo me envolvera um infindável minuto... A resposta ao cafuzo revelou que eu havia preferido os golpes e a humilhação: ignoro como se deu a mudança interna, falta-me a consciência disto. Provavelmente foi a certeza de me ser impossível a infame redação (RAMOS, G., 2008, p.476).

O argumento – reforçado com a afirmação de que o escritor não tinha “motivo

para ser amável com o diretor” (p.476) – convence o soldado a desistir do pedido de

ajuda, invertendo em certa medida as posições ao deixar Alfeu em “confusão e

desassossego” (p.477).

Nesses termos, a organização da narrativa inconscientemente valoriza uma

espécie de argúcia que, apesar de negada pelo escritor, não pode deixar de ser ressaltada

visto se apresentar como equilíbrio entre o aspecto racional e o intuitivo, fator que

também pode aparecer como força construtiva das obras ficcionais.

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4.5- Graciliano e a crítica aos revolucionários

4.5.1- Os rebeldes da Intentona

Nas Memórias a visão construída por Graciliano dos presos que se consideravam

revolucionários é perpassada por uma crítica que, salvo um ou outro caso, atinge a

quase totalidade dos indivíduos, deixando, direta ou indiretamente, prevalecer como

marcantes o despreparo e mesmo a incapacidade daqueles homens de levar adiante

qualquer processo de mudanças políticas efetivas.

Essa avaliação não dispensa boa parte das lideranças bem como a quase

totalidade dos adeptos ou simpatizantes das disputas encabeçadas pela esquerda

brasileira de então. Nesse sentido, as críticas aos rebeldes da Intentona são as primeiras

demonstrações de insatisfação do escritor com respeito aos grupos políticos de

oposição. Ao falar de sua relação com Macedo e Lauro Lago a bordo do Manaus, a

crítica vem por meio do aproveitamento da opinião dos diretamente envolvidos no

levante:

...os hábitos de classe me aproximaram do sujeito gordo e louro que fumava cachimbo, sentado na rede, a sorrir, do rapaz estrábico, de óculos. Importantes, um secretário da fazenda, outro secretário do interior, no governo revolucionário de Natal. Propriamente não fora governo, fora doidice: nisto, embrulhados, concordavam todos. Estavam ali dois figurões, dois responsáveis, dois criminosos, porque tinham sido pegados com o rabo na ratoeira (RAMOS, G., 2008, p. 121, grifo nosso).

Mais adiante a crítica vem de modo mais contundente ao mostrar a que ponto

chegara a irresponsabilidade na Intentona:

Ramiro Magalhães era uma criança estouvada e ruidosa, a quem tinham conferido insensatamente o cargo de prefeito de Natal. Esse disparate indicava bem que a sedição não representava de fato nenhum perigo. Vencida a força pública facilmente, conquistado o poder precário, os rebeldes se haviam julgado seguros: divertiam-se fazendo a tiros desenhos nas fachadas, queriam voar em aeroplanos, entregavam negócios públicos a meninos. Ao primeiro ataque rijo – fuga precipitada, rendição. E o prefeito de Natal se embrulhara também. Com desembaraço de colegial afoito, não se inteirava da situação, presumo, via nela uma espécie de brincadeira (RAMOS, G., 2008, p. 128).

A descrição da figura de Ramiro Magalhães, como vemos, traz maior demérito

não para o próprio personagem, mas para uma revolta considerada revolucionária,

porém tendo, de fato, apresentado sinais claros de imaturidade política. Desse modo, vê-

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se a infantilidade atribuída ao homem transferir-se a uma coletividade, em especial à

direção local do movimento, que o nomeara prefeito.

Já no Pavilhão dos Primários Graciliano sente na pele a segregação por parte de

certos esquerdistas, os quais não admitiam formas de pensar não doutrinárias, situação

exposta pela descrição de comportamentos autoritários e da pouca tolerância às

divergências:

Surpreendera-me, logo ao chegar, ver Sérgio, Adolfo Barbosa, alguns outros, fecharem-se: fugiam às discussões rumorosas e atrapalhadas que nos desgastavam a paciência, subiam raro ao banho de sol, desertavam a Praça Vermelha à hora dos discursos. Consideravam-nos trotskistas, ofensa máxima imputável a qualquer de nós. Sem se examinar idéia ou procedimento conferia-se o labéu a torto e a direito, apoiado em motivos frívolos ou sem nenhum apoio. Difamavam-se os caracteres arredios, infensos ao barulho, às cantigas, às aulas interrompidas, recomeçadas, ao jogo de xadrez; as índoles solitárias, propensas à leitura, à divagação, inspiravam desconfiança. As palavras tomavam sentidos novos; vagas imprecisas, tinham enorme extensão; aplicadas sem discernimento, produziam equívocos (RAMOS, G., 2008, p.238).

No trecho Graciliano menciona vários aspectos que revelam a inaceitabilidade

da dissensão e o apagamento da individualidade (barulho, cantigas, aulas), numa crítica

evidente a um coletivismo doutrinário sem restos. Contra isso, defende a

individualidade de seus companheiros e especialmente a sua enquanto escritor (o direito

à índole solitária, à leitura, à divagação), acusando a falta de “discernimento” das

atitudes dirigidas.

Na sequência narra como numa ocasião ficou desorientado ao lhe atribuírem

posições políticas distintas das suas:

Outro dia uma das nossas [dele e do russo Kamprad] cavaqueiras foi interrompida quando me embrenhava no internacionalismo. -Você é trotskista? inquiriu alguém. -Eu? Que lembrança! Afirmei que sou internacionalista. Por isso me embrulharam. Quem falou em trotskismo? Internacionalismo foi o que eu disse. -É a mesma coisa. -Está bem. Esses desacordos me deixavam perplexo. Imputavam-me convicções diferentes das minhas, e nem me restava meio de explicar-me na algaravia papagueada ali: quanto mais tentasse desembaraçar-me, dar às coisas nomes exatos, mais me complicaria. Quase todos se julgavam revolucionários, embora cantassem o hino nacional e alguns descambassem num patriotismo feroz. Ouvindo-os, lembrava-me de José Inácio, o beato desejava fuzilar ateus (RAMOS, G., 2008, p.238-239).

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Na lembrança de José Inácio, um católico fervoroso conhecido a bordo do

Manaus, fica explícita a ideia de que boa parte daqueles homens encarava a revolução

de modo alienado, como uma espécie de fanatismo religioso, atitude conflitante com o

pensamento do escritor. A despeito disso, o alagoano reconhece o limite de sua visão

materialista assim como a vê nos demais:

Onde estaria José Inácio? Esconder-se-ia, mais ou menos selvagem, num subterrâneo social, enquanto expúnhamos sabedorias convencionais, desinteressantes. Necessário ouvir a opinião de José Inácio: provavelmente ele tinha razões para querer suprimir-nos: em momentos de aperto ficávamos contra ele, materialistas de meia-tigela, camada flutuante, sem nenhuma consistência; as nossas idéias não lhe melhoravam a situação desgraçada (RAMOS, G., 2008, p.238-239).

A inversão do raciocínio, em que o fanático aparece como alguém talvez capaz

de dizer algo esclarecedor enquanto o racional sucumbe à superficialidade de suas

posições revela o exercício de distanciamento do intelectual, mostrando-o cada vez mais

decepcionado com o pensamento supostamente revolucionário. Essa situação leva

Graciliano a comparar o arbítrio da esquerda com o da direita, mostrando como, afinal

de contas, ele próprio não podia senão recolher-se à sua posição diminuta enquanto

escritor paralisado pelas circunstâncias:

A minha situação não melhorava nem piorava. Ausência de processo, nenhuma testemunha; adiava-se, provavelmente não se realizaria o interrogatório longamente esperado... Não se descobriam sinais de crimes, mas pelo jeito eles deviam existir em qualquer parte; conservar-me-iam longe do mundo até que aparecessem. Essa reles inocência provisória de nenhum modo me satisfazia. No Pavilhão achava-me inútil, olhado com indiferença, talvez com algum desprezo. Recusara-me a fazer uma conferência, lançara no Coletivo propostas chochas facilmente arruinadas por Desidério; e ausente da massa, declarando-me artesão, incapaz de entusiasmos e amigo do internacionalismo, sentia fervilhar suspeitas em redor (RAMOS, G., 2008, p.274-275).

Cabe observar, no entanto, que ao tratar desses “revolucionários” intransigentes,

por mais que o escritor dê a entender se tratar de um comportamento coletivo, não

aponta diretamente para a influência de organização partidária, fazendo parecer, em

última instância, uma coincidência de todas as decisões individuais sem qualquer

recurso de condução política. Esse modo de construir a narrativa é fruto de uma posição

dividida. Se por um lado ele não abre mão da crítica a quem atentou contra sua

liberdade de pensamento e de expressão; por outro, sendo membro do Partido

Comunista à época da escrita das Memórias, provavelmente tenha sentido

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constrangimento em tratar do tema de modo mais detalhado. Com efeito, a maneira

como trata das questões políticas ao longo das Memórias evita na maior parte das vezes

a crítica ou a exposição direta de ideologias políticas (mesmo as suas) procurando ora

encerrar o assunto atendo-se aos eventos ali narrados, ora veiculando seus próprios

pontos de vistas de maneira mediada, sutilmente diluídos no relato dos acontecimentos,

o que tende a fazer o leitor crer numa suposta imparcialidade política do escritor.

Essa tentativa frequente de reduzir ou neutralizar o peso da discussão política

não impede o escritor de eventualmente avançar contra valores julgados distintos dos

seus. Nesse momento, porém, Graciliano evita emitir críticas ao trotskismo, dizendo

apenas divergir politicamente de Trotski. Sua opção pelo internacionalismo (“Afirmei

que sou internacionalista. Por isso me embrulharam.”), contudo, está mais próxima do

trotskismo que da doutrina oficial da esquerda brasileira (ou da do PC da URSS), daí

seu desentendimento com a grande maioria dos colegas de prisão, adeptos rígidos dessa

corrente oficial. Portanto, é curioso verificar no trecho o registro de uma contradição no

posicionamento do escritor que, negando certa proximidade de visão com Trotski, tenta

voltar-se ideologicamente para o grupo cujas atitudes ele censura.

Não obstante a preferência por esconder ou minimizar o viés político do relato,

em certos momentos o escritor deixa transparecer algo de suas concepções. Ao narrar o

curioso comportamento de Luís de Barros, Graciliano critica sua dissimulação constante

a fim de não ser percebido como opositor do regime de Vargas. O episódio o faz

lembrar Sérgio Kamprad, cujo isolamento o levaria a mudar constantemente de atitude:

-Para que finge? perguntei quase com raiva. Essa constante simulação deve fatigar. -Não é simulação, tornou baixinho o original personagem. Acredite, sou um imbecil. -Para o diabo. Afastei-me. Que precisão tinha o homem de induzir a gente em erro? Se tinha receio de comprometer-se, evitaria sem esforço os cochichos revolucionários isolando-se, como Sérgio, comunista a princípio, depois trotskista, indeciso afinal, propenso a confusos estudos sobre feitiços do Egito (RAMOS, G., 2008, p.563).

Aqui o escritor faz uma afirmação: desconsidera o trotskismo como parte efetiva

do comunismo. Por meio de uma gradação negativa, posiciona o trotskismo a meio

caminho entre um comunismo que podemos entender como algo, senão exatamente

identificado com a ortodoxia, ao menos próximo dela, e uma visão supostamente

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desligada da realidade material (“feitiços do Egito”). O escritor aqui se aproxima,

portanto, da crítica mais comum à dissidência comunista, negando-lhe a legitimidade

enquanto parte do movimento revolucionário.

Adiante, vemos essa indisposição contra o líder político se acentuar. Graciliano

recorda uma de suas conversas com o médico polonês Febus Gikovate a propósito de

um livro qualquer. Mencionando a atitude dos mais ortodoxos ao verificarem sua

proximidade com o colega trotskista, o escritor se defende:

Finda a exposição multilíngüe, o homem se estendia em comentários minuciosos. A palestra do judeu proporcionou-me censuras; notei em redor frieza e hostilidade, enfim percebi que me consideravam trotskista. Esse juízo era idiota e não lhe prestei nenhuma atenção. A vaidade imensa de Trotski me enjoava; o terceiro volume da autobiografia dele me deixara impressão lastimosa. Pimponice, egocentrismo, desonestidade. Mas isso não era razão para inimizar-me com pessoas que enxergavam qualidades boas no político malandro. A opinião delas, nesse ponto, não me interessava. Nunca tentei coagir-me, transigir. Desviava-me da personagem desagradável, impertinente, buscava matéria que não me irritasse (RAMOS, G., 2008, p.590).

Como vemos, diferentemente das sequências anteriores, Graciliano parte para o

ataque direto. Apesar de desqualificar o líder russo, o escritor não coloca suas próprias

crenças políticas como a opção desejável, além de não julgar razoável distanciar-se dos

seguidores das ideias de Trotski (“Mas isso não era razão para inimizar-me...”). Com

isso, o trecho revela uma atitude interessante, deixando o escritor numa posição

peculiar. Sua proximidade intelectual com os trotskistas presos mostra seu intuito de

preservar certos valores culturais acima das divergências políticas, aspecto que se

manteria firme até o fim de sua vida. Aqui a escrita reflete o choque entre uma visão

política buscando ligar-se a um enfrentamento prático da realidade (daí a tendência à

ortodoxia política) e a posição de defesa da cultura. Por essa razão, às vezes o relato

avança de forma impetuosa para ser refreado adiante pela voz mais equilibrada do

homem ligado às coisas do espírito. De fato, é essa voz que irá comandar a maior parte

da narrativa, evitando lançar-se em conclusões apressadas. Em geral, estas são tomadas

quando o escritor sente a necessidade urgente de definir-se politicamente, aspecto

sempre difícil na conjuntura histórica da qual fez parte.

Além das observações e críticas sobre os personagens acima mencionados, nas

quais o escritor procura restituir alguma individualidade moral e política aos colegas

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presos, destaca-se o comportamento dos homens em grupo, cuja descrição aprofunda a

censura do escritor a certos atos políticos, mostrando a desagregação no meio

revolucionário.

Um episódio bastante exemplar dessa visão crítica é o do processo eleitoral do

Coletivo. Graciliano desde o início ressalta o que considera uma desproporção no

interesse causado pelo pleito (“Ia-se renovar o Coletivo, e as opiniões se dividiram,

empenhadas em forte cabala. Uma intensa propaganda exaltava os espíritos como se se

tratasse de escolher o governo da república.”, p.630). A disputa acirrada, já

compreendida como algo desnecessário, logo aparece revestida de um caráter

amesquinhado, depondo severamente contra seus participantes, em especial os mais

entusiasmados:

No dia da eleição procurei Agildo, perguntei os nomes dos candidatos, e ele me respondeu que os dois grupos tinham chegado a um acordo. À hora do chá, Ivan me falou à porta do refeitório: - Você com certeza vota conosco. - Espere, homem, não estou compreendendo. Agildo me disse que já não há dissidência. Ivan ignorava o ajuste e insistia no pedido. - Pois sim. Que é da chapa? O moço não tinha chapas naquele momento. Lá em cima informei-me. Existia unanimidade, repetiram-me... A apuração revelou discrepância: três nomes alcançaram todos os sufrágios, mas para os dois cargos restantes eles se dispersaram entre quatro pessoas. - Oh, diabo! Exclamei. Há divergência. - Não sabia? chasqueou um sujeito à cabeça da mesa. - Não. Garantiram-me que tinham feito combinação. - Quanta ingenuidade! murmurou o tipo fechando a cara. Irritei-me - Eu não sou forçado a entusiasmar-me com insignificâncias (RAMOS, G., 2008, p.590).

A luta acirrada por “insignificâncias”, ou seja, por cargos de pouco significado

em termos de atividade oposicionista efetiva devido à liberdade cerceada, sugere o

rebaixamento da atitude dos “contendedores” também em termos de consciência

política. Desta feita, o quadro geral que daí surge é de total descrédito dessas forças

autointituladas “revolucionárias”, visto serem incapazes de mostrar uma organização

interna minimamente satisfatória.

Podemos dizer, seguindo a abordagem acima exposta, que os momentos finais

da narrativa coincidem com auge da crítica de Graciliano a seus companheiros de

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prisão. Para o escritor, o desentendimento na eleição do Coletivo prenunciara o tumulto

maior que estaria por vir:

Por que diabo me indispusera com algumas pessoas? Afligia-me não achar resposta, e talvez esses inimigos imprevistos fizessem debalde a mesma pergunta. Já na eleição do Coletivo aparecera no fim da sala, perto do altar, um princípio de bagunça, enquanto se apuravam as cédulas. Berros, palavrões, xingamentos, eleitores assanhados agarrando-se. E por esses votos insignificantes diversos militares me haviam torcido o focinho. Estupidez (RAMOS, G., 2008, p.672).

De fato a discórdia generalizada estava ligada a uma problemática crucial para a

esquerda brasileira de então. O nível rebaixado da discussão teórica travado nas frentes

de oposição ao regime – fruto de leituras escassas e deturpadas dos ensinamentos de

Marx e Engels (ou até do desconhecimento absoluto dessas bases teóricas) – foi um dos

fatores que levaram à fragmentação do movimento revolucionário a partir de suas

lideranças. Desse modo, estas não obtiveram sucesso em agrupar adequadamente as

forças populares em favor das lutas contra o regime, uma vez que essas classes eram ora

superestimadas, ora subestimadas, mas nunca realmente compreendidas em

profundidade. Nesse sentido, o agravamento da tensão no cárcere reproduz em certa

medida a desorganização e o despreparo transferido de fora para dentro dos muros da

prisão. Não por acaso, a abertura do capítulo final das Memórias, na qual é descrita uma

briga entre os presos, tem como ponto central o significado das palavras:

Houve uma luta física na sala da capela, e isto me alarmou, pois nunca me viera a suposição de que desavenças miúdas tomassem vulto, chegassem ao pugilato. Quais eram afinal os motivos dos rijos dissídios? Palavras. As discórdias começavam por elas, embrulhavam-se na significação delas, aprofundavam-se, alargavam-se. Por quê? Exatamente porque faltava razão para se alargarem, aprofundarem. Se houvesse razão, os adversários conseguiriam provavelmente superá-la julguei. Repeti a mim mesmo que a dificuldade estava em darem à mesma coisa nomes diversos, darem a várias coisas um nome só. Impossível entenderem-se (RAMOS, G., 2008, p.671).

Uma das motivações imediatas da confusão – a qual reflete no ambiente restrito

as limitações de ordem intelectual já mencionadas – se encontra, segundo o escritor, na

atitude da maioria diante de ensinamentos teóricos de alguma relevância. A descrição da

experiência desalentadora de Leônidas Resende deixa clara essa posição. Tendo

aceitado (apesar da enfermidade) um convite para dar “um curso de economia política”

aos colegas (p.671), o professor acabou vendo seus esforços serem inutilizados:

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Amável e paciente, Leônidas resignara-se às lições. À noite, no rumor das conversas e da vitrola, fazia pena vê-lo recostar-se ao travesseiro, ampliar a voz fraca, desenvolvendo a matéria, como se ainda se achasse na cátedra. Desatento à força do trabalho, ao mercado, à supervalia, o auditório bocejava. E ao cabo de alguns dias, os alunos pouco a pouco se dispersaram, iam estudar coisa menos chata, ensinando uns aos outros, com lápis e folhas de papel, em grupos animados, pelos cantos Não haviam entendido bem o professor claro e minucioso; acabariam não se entendendo (RAMOS, G., 2008, p.671-672, grifo nosso).

Apesar da menção ao fato de que iriam “estudar coisa menos chata”, fica

subentendido que o assunto tratado pelo professor acabaria se impondo de um modo ou

de outro às discussões entre os “alunos” despreparados, causando atritos em breve. Em

seguida o escritor procura uma justificativa para o comportamento daqueles homens.

Entretanto, consegue no máximo demonstrar certa condescendência ao se incluir no

grupo, já que declara em momento algum ter se envolvido em confronto verbal ou

físico:

Apareciam-me de longe divergências em esboço, e éramos forçados a reconhecer que ninguém tinha culpa. Estávamos feitos daquele jeito, cada um de nós estava feito de certo modo – e em vão tentávamos explicar uns aos outros que a leitura de um artigo não nos transformava (RAMOS, G., 2008, p.672).

Aqui Graciliano revela sua descrença na capacidade de transformação daqueles

indivíduos (e talvez mesmo de si próprio). A formação e a origem sobressaem a

qualquer tendência dinâmica, dando a entender que o conhecimento seria incapaz de

promover a quebra de velhos paradigmas. Essa posição, mesmo em seu caráter

conservador, preserva um sentido mais amplo de verdade ao declarar a revolução

perdida para aquela geração.

Apesar do caráter generalizado da crítica aos envolvidos na tentativa

revolucionária de 1935, Graciliano não deixa de dedicar momentos da narrativa a

figuras de destaque dentro do levante, como Sebastião Hora e Roberto Sisson, líderes da

ANL. Sua preeminência intelectual enquanto organizadores do movimento vai sendo

indiretamente questionada a partir da convivência estabelecida entre eles e o escritor na

prisão. O aspecto mais interessante dessa abordagem é o fato de Graciliano não

concentrar a escrita na descrição dos erros do passado, mas verificar no cotidiano do

cárcere atitudes reveladoras de consciências confusas e afastadas de uma visão

efetivamente crítica.

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No porão do Manaus Graciliano tem seu primeiro contato com Hora, presidente

da ANL em Alagoas. A surpresa com a atitude do dirigente em imaginar-se ainda

detentor de algum privilégio de classe dá o tema para o capítulo XXIII da primeira parte

(Viagens):

No dia seguinte descobri em Sebastião Hora uma extravagância: expôs, quando nos avizinhávamos da Bahia, o projeto de comunicar-se com o governador, que certamente iria visitá-lo a bordo. A princípio julguei que se tratasse de brincadeira e resolvi colaborar nela... Em seguida, alarmei-me. O homem falava sério. Conhecera anos atrás Juraci Magalhães, que certamente iria vê-lo, prestar-lhe auxílio. Lauro Lago sorriu e murmurou: - Ilusão pequeno-burguesa. Esse reparo foi insuficiente para chamar o nosso amigo à realidade: forjara uma convicção oposta aos fatos, queria firmar-se nela, cegar voluntariamente, confessar aos outros a cegueira e receber confirmação, pelo menos apoio tácito que lhe preservasse o engano (RAMOS, G., 2008, p.137).

Aqui o autor não desconsidera a inteligência do líder, mas sugere um elemento

que torna sua atitude ainda mais passível de crítica: a cegueira voluntária. Graciliano

não deixa de notar, por exemplo, que Hora mantinha intacta sua capacidade de

julgamento sobre os acontecimentos de 1935 (“Fora isso, revelava-se perfeitamente

lúcido, examinando, com José Macedo e Lauro Lago, as causas do insucesso do

movimento de Natal”, p.138). A incapacidade de autoexame do líder fica então

destacada na descrição de seu esforço por isolar-se dos demais presos e preservar uma

posição já perdida:

Refugiava-se no passado ou entretinha-se a adornar um futuro improvável; não queria ver o presente. Acomodara-se junto à escada, a mala ao alcance da mão, parecia aguardar um esclarecimento, o fim do equívoco, mudança para um camarote de primeira classe. Repugnando a triste bóia das marmitas, entendera-se com a despensa e recebia numa bandeja alimento de passageiro decente. Desfazia-se em prodigalidades, as gorjetas lhe minavam certamente os recursos...O nosso pobre amigo isolava-se deles, conservava-se arredio, e isto devia ser-lhe particularmente doloroso; a impossibilidade clara de amoldar-se à vida suja, admitir a convivência fortuita com pessoas humildes, infelizes e até ladrões, perturbava-o. Entendia-se com os dois chefes e acolhia a submissão do ex-contínuo Doutor, encalombado e retinto, que ali, de cócoras, recebia do presidente ordens e pedaços de carne (RAMOS, G., 2008, p.138).

O trecho revela o sentimento duplo do escritor em relação a Hora. A condição

de intelectual (e, portanto, de classe) leva-o a compreender a dificuldade da

conscientização de seu “pobre amigo” diante da nova situação. Não por acaso, o

capítulo recupera brevemente o tema da queda da posição familiar do escritor já tratado

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em Angústia como representação mais ampla do declínio social e econômico do

intelectual provinciano. Essa retomada do passado ocorre quando o escritor se lembra

do episódio em que seu conhecido Manuel Leal se aborrece por ele ter dado atenção a

outro preso, Benon, um negro de classe baixa:

Pobre Manuel Leal. Recordava-se de me haver conhecido menino, filho de proprietário da roça, proprietário na verdade bem chinfrim, e espantava-se daquela mudança. De algum modo se sentia alcançado pelo rebaixamento que me atribuía. Caixeiro-viajante, fizera muito negócio com meu pai, gabara-lhe provavelmente as virtudes: a exatidão rigorosa em pagar contas, vintém por vintém, e a avareza excessiva, a ambição de arrancar exorbitâncias do freguês. Considerando-se pouco mais ou menos igual a mim, afligia-se por me ver aceitar camaradagem da raça impura e classe inferior, temia ser induzido a nivelamentos perigosos (RAMOS, G., 2008, p.141).

O escritor entende o ponto de vista do “pobre Manuel Leal” ao mostrar a postura

deste. Criado dentro de uma única mentalidade, isto é, a do comerciante que só

compreende a realidade da mercadoria, a descrição da atitude de Leal anda em linha reta

até o preconceito explícito de classe e de cor, o que não acontece com a descrição de

Hora, de quem o escritor esperava uma atitude mais razoável, daí uma posição entre

compreensiva e crítica em relação ao líder da ANL.

Com efeito, juntando os fragmentos deixados aqui e ali nas Memórias, podemos

tomar as considerações do escritor como uma crítica mais ampla ao gesto soberbo de

muitos líderes da esquerda de então. Um dos momentos que nos permite essa

aproximação ocorre mais adiante, na parte III (Colônia Correcional). Não se trata de

referência a algum líder em particular, mas ao comportamento de um preso comum,

tornando a observação ainda mais interessante. Graciliano – tendo ficado com a cama de

Neves, um preso recém-falecido de tuberculose – viu-se acusado de egoísmo pelo

suposto “privilégio”, pois companheiros doentes estariam mais necessitados daquele

“conforto”:

Surgiu-me de repente uma contrariedade. França, o padeiro tuberculoso, meu vizinho no Pavilhão dos Primários, veio censurar-me, e com tanta arrogância que o supus logo dirigente de alguma coisa. Falava como se eu fosse uma criança, queria saber quem havia me dado licença para deitar-me na cama. Tinham preferência os companheiros doentes (RAMOS, G., 2008, p.480, grifo nosso).

Aqui, algo da superioridade da figura do líder – cuja atitude paternalista fica

marcada – contamina o sujeito comum, que numa situação qualquer pode ser um

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simpatizante ou correligionário e, por isso, a situação tem certa validade genérica.

Apesar das peculiaridades de cada contexto, pode-se dizer que a atitude de Hora

apresenta o traço comum da “arrogância do dirigente”.

Retornando ao capítulo XXIII, vemos que as lembranças de Hora não têm

apenas a finalidade crítica acima exposta. O escritor recupera as diversas figuras

também como meio de entender o lugar que lhe cabia naquela estranha “sociedade”.

Em contraste com seu conterrâneo, Graciliano sente-se logo imerso no novo grupo e sua

narrativa revela o interesse despertado pelas novas relações. A supressão da liberdade e

das convenções sociais surge, assim, como o fator que permite uma aproximação muito

improvável no mundo exterior:

Lá fora tínhamos ocupações diversas, usávamos linguagens diferentes e nos distinguíamos pela roupa; ali, no calor, mal vestidos, meio nus, usando vocabulário escasso, fundindo as gírias da caserna e da estiva, parolávamos na inércia forçada e nos íamos depressa nivelando. E nenhum esforço fazíamos para isso: era a autoridade que nos juntava, suprimia de golpe barreiras por ela própria conservadas e reforçadas. Operários e militares sediciosos, pequeno-burgueses detidos por suspeita, socialmente valíamos tanto como o ladrão que me vendera a rede... Enfim, pela primeira vez, pessoas de outra classe manifestavam-se com franqueza diante de mim (RAMOS, G., 2008, p.139).

A norma social, na condição de produto da ideologia da autoridade, aparece

claramente sob um viés negativo na medida em que força o indivíduo a muitas vezes

assumir uma postura hipócrita na convivência cotidiana. A quebra da norma é, com isso,

o elemento que joga luz na realidade, permitindo aos homens se enxergarem por um

ponto de vista menos influenciado por preconceitos.

Não obstante a percepção solidária da condição única, a postura sóbria impede o

escritor de apresentar uma falsa fraternidade, a qual serviria, em última instância, para

uma autoelevação humanitária. Desse modo, a ênfase na proximidade física no porão

quase inundado não mascara as distâncias que separam o homem culto dos demais:

Certas discrepâncias faziam-me pensar em nossas vidas anteriores: um vosmicê me chocava, me empurrava para lugar estreito, em demasia preenchido, onde não me era possível caber. Não havia à beira do lago nauseabundo espaço para nenhum senhor. Esquecíamos diferenças sem querer. Se quiséssemos esquecê-las, seríamos falsos, postiços, intrusos, não conseguiríamos entendimento: estaríamos de sobreaviso, aguardando a qualquer momento manifestações desagradáveis... Evidentemente a minha sintaxe divergia da de Miguel e João Anastácio, mas isto não constituía nenhum óbice: compreendemo-nos e fomos amigos alguns dias. Isso

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diminuiu o horror daquela infame travessia, enchemos tarde e manhã com palestras hoje perdidas. Estarão realmente perdidas? (RAMOS, G., 2008, p.139-140).

Como se vê a imagem do local estreito admite dois sentidos: um físico e um

social. E apesar de a união dos dois significar rebaixamento para Graciliano, a

consciência de sua intelectualidade é reafirmada (“Evidentemente a minha sintaxe

divergia da de Miguel e João Anastácio”) e se presta a manter um grau de

distanciamento do passado, aspecto necessário para evitar o tom de lamento

desagradável ao escritor. Nesse contexto, certas “palestras”, cujo conteúdo talvez não

retorne à memória (“Estarão realmente perdidas?”), ficam marcadas mais por seu valor

funcional de ajuda e amizade temporárias. Essa posição de equilíbrio

(aproximação/distanciamento), mantida a cada linha até a conclusão do assunto,

indiretamente ajuda a ressaltar o desequilíbrio de Hora, fazendo a temática das relações

sociais prevalecer numa percepção geral do capítulo.

No que respeita a Roberto Sisson, secretário-geral da ANL, vemos o tema da

percepção distorcida da realidade como um dos aspectos mais salientes na narrativa. A

propósito de uma conversa ocorrida entre os presos políticos na Casa de Correção,

último paradeiro de Graciliano antes de ser libertado, o escritor focaliza – a partir do

choque de visões entre os membros da esquerda – a credulidade nas ações e nos

julgamentos, revelando a amplitude do problema.

Narrando a interpretação exageradamente otimista do major Alcedo Cavalcante

sobre os eventos ocorridos na Guerra Civil espanhola (“O triunfo era certo; mouros,

italianos e alemães estavam sendo varridos da península; dentro em pouco os traidores

seriam fuzilados.”, p.602), o escritor expõe sua posição tensa diante do quadro

preocupante que se lhe apresentava:

O nosso interesse esfriou. Esperávamos ouvir o homem reduzir as vitórias de Franco, aumentar as da república, e a observação unilateral nos causava surpresa e desânimo. Provavelmente ele receava privar-se de uma certeza, ou antes de uma crença. Desenvolviam-se e fixavam-se ali convicções na verdade singulares. Ociosos e ausentes do mundo, precisávamos fazer esforço para não nos deixarmos vencer por doidos pensamentos. Causavam-me espanto os devaneios dos outros, às vezes me sentia resvalar numa credulidade quase infantil, e era doloroso notar os escorregos do espírito. Nise ficava uma hora a matutar nos programas de cinema, exigia a minha opinião, grave... Esse exercício estava sempre a repetir-se, e nem sei se era apenas brincadeira, se não chegávamos a admitir a possibilidade maluca de atravessar paredes e grades, sair à rua, tomar o ônibus, entrar nas lojas, nos cafés, nas livrarias e nos cinemas (RAMOS, G., 2008, p.602-603).

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Assim como na avaliação da atitude de Sebastião Hora, a interpretação dos

acontecimentos se presta a um autoexame. Não há nenhuma garantia de que os

“devaneios dos outros” não tenham relação com os do próprio escritor, sugerindo ainda

a possibilidade de um contágio coletivo. Nesse contexto, a ideia de um plano que

Roberto Sisson narra ao escritor aparece como o ápice dos pensamentos descabidos:

Sisson me comunicou um projeto de admirável insensatez... Não dormira, passara a noite a imaginar uma organização que se dedicaria a estudos sociológicos e se estenderia por todas as bibocas do Brasil, a esmerilhar cartórios e igrejas. Comissões distritais esmiuçariam a papelada antiga que lhes caísse nas unhas e enviariam o material selecionado a comissões municipais; estas se subordinariam a outras mais complexas, estaduais; e afinal, a dirigir tudo, o organismo central, com sede no Rio, ali na Casa de Correção (RAMOS, G., 2008, p.602-603).

No diálogo seguinte Sisson rebate todas as críticas de Graciliano a seus planos,

recusando a inviabilidade do projeto. Concluindo a escrita de seu “calhamaço cheio de

minúcias”, o líder político apresenta-o ao Coletivo para votação. A crítica agora se

estende ao grupo, também incapaz de avaliação ajuizada. Com um claro tom de

desânimo, o escritor narra o dispêndio de energia a propósito da escolha do nome da

organização:

...eu e Gikovate recebemos a incumbência de estudá-lo. Esquivei-me negligente, mas o judeu meticuloso embrenhou-se na leitura, rabiscando notas, arrazoando, como se tratasse de um caso muito importante. Logo embirrou com o título da sociedade, propôs a eliminação de um adjetivo: popular -No entender da polícia, comunista e popular têm a mesma significação Sisson emperrou, obstinou-se na defesa da palavra e, encontrando resistência do médico, tentou convencer-me. Indolente e vago, suponho que acabei por dar razão mais ou menos aos dois. Reunimo-nos à tarde, oito ou dez sujeitos, numa das celas próximas ao refeitório. A vasta composição foi desenvolvida com segura energia pelo autor... Pontos essenciais foram sapecados, minudências se estiraram e o nome da associação provocou intenso debate. O criador dela agarrou-se com vigor ao seu rótulo, como se o corte do infeliz apêndice lhe inutilizasse todos os pensamentos... a vantagem ou desvantagem de três miseráveis sílabas deixou na sombra a análise do projeto. Ninguém se lembrou de perguntar se era exeqüível (RAMOS, G., 2008, p.603-604).

No trecho, a teimosia de Sisson aparece como a razão do descaminho do debate,

no qual se lutou “por três miseráveis sílabas” enquanto a discussão do essencial foi

“sapecada”. Está claro que a coletividade é percebida como pouco questionadora

(“Ninguém se lembrou de perguntar...”), o que, aliás, depõe contra as “cabeças

pensantes” da esquerda, visto se encontrarem ali na Casa de Correção prioritariamente

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os presos políticos (intelectuais, militantes políticos etc.). Não obstante, a figura do líder

político sai mais arranhada que qualquer outra, pois o modo como o escritor descreve a

ambição política do projeto de Sisson, inclusive em contraste com seu próprio

desinteresse (“Indolente e vago, suponho que acabei por dar razão mais ou menos aos

dois.”), sugere a falta de senso crítico para uma análise mais realista da situação da

esquerda pós-levante – severamente desarticulada e sofrendo a oposição da opinião

pública (fato continuamente enfatizado na referência aos jornais da época) – bem como

das severas restrições impostas a todos no cárcere.

Traçando um paralelo entre Hora e Sisson percebe-se que Graciliano sublinhou

um ponto em comum na atitude de ambos os líderes: a incompreensão da mudança

representada pelo abafamento das intenções revolucionárias de 1935. A descrição da

ortodoxia com que cada um enfrentou o novo momento histórico tem um caráter

exemplar por mostrar a incapacidade das lideranças políticas da esquerda em perceber

que haviam sofrido um golpe suficientemente duro a ponto de destituí-las de suas

antigas posições, minando sua real capacidade de agregação e organização.

Por sua vez, os simpatizantes e correligionários da Intentona também saem

atingidos pela prosa de Graciliano, com destaque para a incapacidade de distanciamento

crítico. Com efeito, o escritor atenta nas individualidades pouco ou mal exercidas dos

companheiros para, desse modo, compor a imagem de um grupo sem a devida

consistência política.

4.5.2- Miranda x Ghioldi

Graciliano, além de sua crítica aos líderes da Intentona, dirige um ataque ainda

mais acerbo e específico a um indivíduo carregado de cores negras tanto pelo Partido

Comunista como pela direita. Ao se referir a Miranda – Secretário-Geral do PCB, essa

figura bastante controversa – o escritor procura desconstruir a imagem de líder que ele

possuía até o momento da prisão. Partindo exatamente da visão geral anterior aos

primeiros depoimentos de Miranda – em certa medida também a sua (“Achava-me

desejoso de conhecê-lo... com certeza nos apresentaria o Brasil, bem conhecido em

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lentas observações, nas viagens e fugas arriscadas”, p.266) – o escritor vai

gradativamente dando ao leitor a sua interpretação daquele “personagem”:

Pouco depois de nos haverem chegado os fugitivos do Pedro I, Sisson, Desidério, Ivan, presos ao cabo de horas de liberdade precária, uma estranha personagem surgiu no Pavilhão. Antecedera-a a grande fama. Organizador de mérito singular, altamente colocado no Partido Comunista, homem de saber e tato, viera do campo; notabilizara-se pela experiência conseguida no interior. Aliando a teoria à prática, subira rápido. Um dos mais notáveis influentes na sublevação de 1935 (RAMOS, G., 2008, p.266).

Segundo o escritor, suas expectativas foram rapidamente frustradas devido ao

exibicionismo de Miranda. Enquanto outros companheiros de cárcere haviam sido

torturados, fato que não lhes dava orgulho nem vergonha, o líder “revolucionário”

exibia vaidoso pequenas manchas na pele de origem facilmente questionável:

Aquela ninharia acanalhava os suplícios. Desidério também apresentara no busto nu lanhos vermelhos, vestígios do chicote, mas não afetava prazer nisto: descobria-se por não agüentar pano em cima dos ferimentos. O novo companheiro nos insinuava a idéia de singular exibicionismo. Convenci-me por fim de que isso não é raro: à míngua de títulos, revolucionários bisonhos chegam a converter as marcas afrontosas em honrarias, equiparam-se provavelmente a guerreiros feridos. A princípio essa confusão de valores nos atordoa, afinal nos habituamos. É possível, afirmaram-me, conseguir-se o estigma artificialmente. Comprime-se a pele, em continuados beliscões, e provoca-se a hemorragia superficial necessária às equimoses; prolongando-se o exercício, despontam linhas róseas, avivam-se, estendem-se, cruzam-se numa viva carta geográfica onde se estampam os vestígios de golpes inexistentes (RAMOS, G., 2008, p.267).

À acusação de forjar marcas de tortura alia-se o reconhecimento desmerecido,

que teria ajudado a criar o mito do herói:

Com o tempo deixei de espantar-me, julguei entrever o mecanismo que impulsiona esquisitas celebridades vazias. O louvor de várias formas, em vários tons, cargas sucessivas de elogios, impressionam a massa, levam-na a enxergar numa personagem a grandeza conveniente. Virtudes escassas aumentam, desenvolvem-se até o absurdo, os defeitos esmorecem, obliteram-se. Prepara-se desse modo uma personagem destinada a figurar como síntese de qualidades alheias, voluntariamente ocultas. É um cabide onde se penduram os trabalhos de um organismo completo; nele se refletem a coragem, a firmeza, o talento, a paciência de outros. As ações dispersas do conjunto agregam-se, tomam corpo, individualizam-se – e isto lhes empresta autoridade. Supondo enaltecer uma pessoa, estamos na verdade a exaltar o grupo (RAMOS, G., 2008, p.268).

Interessante observar como não só o “louvor”, mas a própria origem dele, toma

“várias formas”, “vários tons”, em sutil modalização discursiva. O modo de narrar aqui

segue o caso anterior (o dos “revolucionários” intransigentes). O leitor pode imaginar

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certa influência ideológica do pensamento partidário, uma vez que o partido é

claramente mencionado no primeiro parágrafo do capítulo XIV da Parte II (supracitado

na íntegra) mas, de qualquer modo, ela seria suavizada pela indefinição do sujeito

(“Prepara-se”), o que tende ao longo do parágrafo a dispersar a responsabilidade pelo

“mecanismo” de construção da “celebridade vazia”. Desse modo, o escritor acaba

figurando a ideia de um crescimento que foge da justa medida, indiretamente

responsabilizando em algum grau a organização partidária como um todo, mas sem se

referir de modo mais contundente à cúpula do partido, à qual Miranda pertencia. Desse

modo, fica justificada a afirmação com certo espanto (anterior ao trecho citado), de que

é “incrível haver ganho fama, inspirado confiança e admiração” (p.268), a qual destaca

uma suposta capacidade do dirigente para ludibriar mesmo os mais experimentados

membros do partido.

A crítica volta-se, então, mais claramente contra a linguagem de Miranda.

Revoltado com um dos discursos do “personagem”, Graciliano aproveita a ocasião para

estabelecer uma analogia com o que considera a atitude básica dos modernistas

brasileiros:

O seu primeiro discurso, fluxo desconexo, me surpreendeu e irritou. Depois das palestras sérias de Rodolfo, aquilo fazia vergonha, uma palavrice infindável, peca, de quando em quando interrompida por uma frase boba, transformada em bordão: “– Isto é muito importante.” Em vão buscávamos a importância, e o aviso tinha efeito burlesco. Ausência de pensamentos e fatos, erros numerosos de sintaxe e de prosódia. Essas incorreções não se deviam apenas à ignorância do orador, realmente muito grande. O singular dirigente achava que, para ser um bom revolucionário, lhe bastava conhecer o ABC de Bukharin. Solecismos e silabadas também se originavam de um preconceito infantil em voga naquele tempo; deformando períodos e sapecando verbos, alguns tipos imaginavam adular o operário, avizinhando-se dele. Sentiam-se à vontade usando a estúpida algaravia: isto lhes facilitava a arenga e encobria escorregos involuntários, impingidos por conta da linguagem convencional. Esnobismo de algum modo semelhante ao dos nossos modernistas, vários anos no galarim, a receber encômios deste gênero: “– Como eles sabem escrever mal!” (RAMOS, G., 2008, p.268-269).

O escritor efetivamente traz à tona um grave problema das lideranças das

esquerdas brasileiras: o populismo. Novamente há uma generalização da conduta

(“preconceito infantil em voga”), realmente existente na época e apoiado numa falsa

aproximação com o operariado. Contudo, na especificação da ideia de que o

conhecimento do “ABC do Bukharin” era suficiente para ser “um bom revolucionário”,

a culpa recai mais pesadamente em Miranda e em seu discurso triunfalista, esquecendo-

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se o autor de que a cartilha do russo era uma norma doutrinária do partido. Portanto, se

por um lado fica exposto o comportamento vaidoso e verborrágico do referido líder, há

que se lembrar da prática partidária comum na aproximação com as massas.

O escritor aproveita a crítica ao dirigente para também deixar claro seu

desacordo literário e político em relação ao Modernismo por meio de uma atribuição

generalizada de determinadas características. Assim Graciliano transfere todas as

características negativas de Miranda àqueles escritores. O “fluxo desconexo” da

linguagem do dirigente alude às práticas linguísticas e literárias de diversos

modernistas, consideradas uma apropriação distorcida da fala cotidiana, um arremedo

populista com intuito de encobrir a distância social entre o intelectual e o “operário”

(ver discussão em 1.2, p.29-31). Nesse sentido coloca todos no mesmo “saco de gatos”.

O “esnobismo” de Miranda se ligaria, então, a um caráter ideológico bastante

acentuado, paternalista e de classe, contrário à ideia de uma posição revolucionária

atribuída ao operariado, cuja força havia sido exaltada historicamente pela linha política

do PCB.

Em crescendo acusatório, Graciliano considera o líder político um delator. Para

o escritor o que se tratava inicialmente de dúvida, se transforma em certeza, segundo

afirma, após uma das programações da “Rádio Libertadora” (atividade noturna dos

presos, na qual se faziam releituras de notícias de jornais obtidos irregularmente,

cantavam-se sambas e hinos, fazia-se leitura de poesias etc.):

Era noite, haviam trancado os cubículos, a Rádio Libertadora funcionava. De repente, modificação no programa: uma rapariga entrava na sala 4. Dada a notícia, o locutor, segundo o costume, se animou e exigiu: -Uma salva de palmas à companheira fulana. De repente a voz de Miranda se elevou, oferecendo-nos a seguinte informação: -Essa novata é uma que na vida ilegal se chamava... E atirou-nos a alcunha da recém-chegada. Uma interjeição de pasmo ecoou. Com todos os diabos! Uma criatura cheia de responsabilidades largava tal denúncia a estranhos, aos faxinas e aos guardas. Sim senhor! Leviano apenas? Afastei essa fraca atenuante. As maneiras desagradáveis do homem, a desfaçatez, a exibição dos golpes, as arengas vazias e palavrosas, ligavam-se a coisa recente, convenciam-me de que não nos achávamos diante de um simples charlatão. Em quem deveríamos confiar? Felizmente aquele se revelava depressa. (RAMOS, G., 2008, p.271).

O caráter grave da acusação e da força argumentativa tendem a levar o leitor a

uma adesão imediata à conclusão do escritor. Entretanto, a condição de colaborador

voluntário da polícia jamais pôde ser devidamente comprovada. Inicialmente veiculada

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pelo próprio regime, interessado em desestruturar qualquer oposição, o líder teria

delatado diversos companheiros, gerando rumores muito prejudiciais não só ao próprio

Miranda, mas também ao trabalho da própria esquerda. Sem querermos definir aqui a

verdadeira atuação política do referido dirigente – fato ainda hoje não decifrado por

especialistas das mais diversas aréas (Sociologia, História, Jornalismo etc.)45 – devemos

observar que a construção de nosso escritor procura não deixar espaços para

contestações, havendo grande coincidência de posições entre o Graciliano-escritor e o

Graciliano-personagem, aspecto problemático não só devido às incertezas sobre a vida

do “personagem” em questão – envolvido em diversas polêmicas geradas pelas lutas

internas do partido no período imediatamente após a derrota de 1935 – mas também

levando-se em conta a dificuldade de distanciamento crítico de grande parte dos

membros ou simpatizantes do partido para analisar a evolução dos acontecimentos da

época.

Curiosamente o próprio escritor experimentou a desagradável sensação de ver-se

objeto da desconfiança alheia quando, já de volta da Colônia, encontrava-se preso na

Casa de Correção. Por ser avesso às discussões acaloradas, comuns na prisão, o escritor

sentia que alguns esquerdistas o mantinham sob certa desconfiança. Novamente se

referindo ao comportamento de Miranda, o escritor, no auge da fúria acusatória,

imagina um interlocutor diante de si:

A pimponice, a mentira, a exposição vaidosa de ferimentos leves deixavam-me com a pulga atrás da orelha. Uma ligeira conversa – e separação definitiva. Tempo depois o miserável andava a elogiar Hitler, a dizer que o verdadeiro comunismo se realizava em Berlim. Certas pessoas ali esperavam de mim comportamento igual, e isto me aborrecia, não por me considerar uma perfeita dignidade, mas por me faltar vocação para traidor. E se pudesse resolver-me a trair, que diabo iria contar? Encolhido, ignorava tudo (RAMOS, G., 2008, p.633, grifo nosso).

Aqui não sabemos se a afirmação do escritor é fruto de uma situação presenciada

por ele próprio ou se apenas ouvira o comentário circulando entre os presos. De

qualquer modo, a acusação é temerária por desconsiderar o estado mental em que

45 O tema continua a produzir infindável controvérsia, especialmente entre os especialistas em década de 30. Sobre o assunto deixamos como referência dois textos com importantes bibliografias: a) Sérgio Rodrigues. Elza, a Garota: a história da jovem comunista que o Partido matou. Cf.; b) Raimundo Moreira et al.. O célebre Miranda: aventuras e desventuras de um militante comunista entre a história e a memória. Cf.

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Miranda talvez já se encontrasse devido aos constantes “interrogatórios”. Certo é o fato

de o “desabafo” revelar de modo vigoroso a tensão e o mal-estar generalizado do

ambiente de incerteza em que Graciliano e seus companheiros de prisão viviam. A

necessidade de encontrar uma saída para a desagradável situação – ou ao menos a

oportunidade de obter algum alívio – leva então o escritor a procurar Aristóteles Moura,

bancário preso por ligar-se a questões sindicais:

-Uma peste! -Você não tem serenidade para julgar, respondeu Moura. Não temos serenidade. A segunda afirmação do homem tranqüilo, de juízo claro, quase me fazia rir. -O Partido não está aqui. Lá fora você acha coisa muito diversa, Há entre nós verdadeiros comunistas, e é preciso não confundi-los com simpatizantes cheios de intransigência. Essa opinião otimista de um homem que tinha, recentes, no corpo magro, vestígios da Colônia me restituía o sossego. O horror daquele inferno, daquela ignomínia, não o desviara da linha reta; impossíveis discrepâncias funestas. -Vivemos numa desgraçada fase de confusão, e é natural que todos se previnam. Concordei: havia asseverado isso com freqüência, e fortalecia-me a corroboração do meu pensamento. Indispensável um apoio exterior (RAMOS, G., 2008, p.633).

O trecho é bastante esclarecedor por trazer um aspecto importante da época à

reflexão: o problema da intransigência. Esse fator, certamente um dos determinantes

para o esfacelamento interno das esquerdas, é apresentado por Aristóteles Moura a

partir da crença, ainda que para um futuro indefinido (“Lá fora você acha coisa muito

diversa...”, “Vivemos numa desgraçada fase de confusão...”), na reversão do processo

histórico. O escritor, por sua vez, concorda de modo mais comedido ao aceitar um

“apoio exterior”. As eventuais intervenções na fala de seu companheiro não foram aqui

registradas na forma direta do diálogo, refletindo na forma a visão perplexa do

personagem diante do tema. Não tendo muito a dizer, a referência à simples

concordância reforça a afirmação anterior da condição de indivíduo “encolhido”.

A análise formal do argumento revela, portanto, as contradições próprias de

quem sente a necessidade de definir seu posicionamento político estando praticamente

às escuras e, por essa razão, a narrativa é calcada em grande medida numa linearidade

dura que, no entanto, não deixa de ter sua força exatamente nos momentos reveladores

do atordoamento da consciência do Graciliano-personagem.

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Em contraposição a essa forma argumentativa, obcecada pela definição dos

caracteres de um determinado indivíduo, vemos outro modo de construir o relato, cuja

análise comparativa nos parece útil e esclarecedora por tratar do mesmo tema (a

delação) a partir de uma perspectiva menos claramente comprometida com a distinção

de status político dos personagens. Trata-se dos capítulos IX e X da Parte II (Pavilhão

dos Primários), em que a incerteza faz a mediação necessária à reconstrução do aspecto

coletivo da experiência.

No capítulo IX Graciliano aproveita o caso de Pais Barreto, um preso recém-

chegado, para descrever a precariedade do juízo coletivo em circunstâncias

desfavoráveis ao conhecimento da verdade dos fatos. A imaginação surge, assim, como

substituta da racionalidade na consciência dos homens, facilmente influenciável por

afirmações levianas ou mal-intencionadas:

...quando Pais Barreto chegou, achei-me diante de uma realidade, caso concreto, insofismável. Era um rapaz alto, desempenado, falador, transbordante. Veio ocupar a célula fronteira à minha. Vi-o dias inteiros curvado sobre papéis, escrevendo. Escrevendo informações à polícia, cochicharam-me – e não disseram em que se baseavam, nenhum fato mencionaram. Às vezes nem se manifestavam claramente: jogavam a malícia de passagem, ofereciam-nos avisos sibilinos: - Cuidado, cuidado. Não se abra com certas pessoas. Um olhar de esguelha concluía o aviso, indicava o perigo. As insinuações venenosas produziam efeito: usávamos cautela, pouco a pouco nos desviávamos da criatura visada. As alusões a Pais Barreto não me fizeram mossa a princípio. Casos semelhantes tinham-me chegado aos ouvidos, era-me impossível examiná-los, só me restava guardar silêncio e suspender qualquer juízo (RAMOS, G., 2008, p.240).

Apesar da tentativa de distanciamento da “credulidade” e do “rebaixamento do

nível mental” (p.241), os escrúpulos não permitem o escritor se definir como isento da

influência do meio, optando, por isso, pela reconstrução do autoexame em face da

desagradável situação. Nem mesmo a possibilidade de enlouquecimento (já presenciado

em um dos companheiros de cela) estava descartada:

Receava deixar-me arrastar, afirmar leviandades, alucinar-me a ponto de confundir o barulho de um motor com descarga de metralhadora. Esse temor me roía constantemente, e o pior de tudo era não saber se já me havia contaminado, se também iria criar fantasmas, ver perigos inexistentes e revoltas absurdas, comportar-me ingênuo como criança. Possivelmente essa incerteza me aconselhou resistência às insinuações malévolas (RAMOS, G., 2008, p.241).

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Inseguro quanto a seu grau de inclusão/exclusão naquela sociedade o escritor vai

da posição pessoal a uma considerada coletiva, reproduzindo a impossibilidade de

separação rigorosa entre o “eu” e o “nós”:

Revoltavam-me as picuinhas, as frases incompletas e tendenciosas, o labéu jogado a ausentes indefesos. Pisávamos terreno movediço e cheio de emboscadas. E não conseguíamos discernir se as acusações tinham fundamento ou não, quais os divulgadores sinceramente convencidos e quais os provocadores de suspeita e balbúrdia. Em tal situação invade-nos um mal-estar desconhecido cá fora, vivemos à espera de ameaças indeterminadas e, reconhecendo ser impossível conjurá-las, não nos resignamos a capacitar-nos disto: buscamos isolar-nos na multidão, permanecemos de sobreaviso, reduzimos o vocabulário e estudamos as caras e os gestos. Por assim dizer adquirimos uma segunda natureza...Todos se espionam, divulga-se o constrangimento, o ar se envenena (RAMOS, G., 2008, p.241).

Aqui parte do considerado comportamento coletivo não é mais que a projeção da

própria individualidade no grupo, tratando-se, portanto, de uma precária forma de

inclusão. Com efeito, a resistência ao pertencimento aparece às vezes de maneira sutil,

mesclada ao nivelamento superficial, como pouco antes, ao se referir ao dia de visitas

aos presos:

Ouvidas as excelentes conferências de Rodolfo, limitar-me-ia a parolar com duas ou três pessoas, encaracolar-me-ia depois. Não alcançava desvencilhar-me dos pequenos aborrecimentos. Embora usando pijamas e cuecas, vivíamos em público, éramos obrigados a familiarizar-nos com indivíduos muito diferentes de nós. O desleixo na indumentária de algum modo nos nivelava. Quinta-feira, à hora das visitas, uma apressada civilização, de sapato e meia, colarinho e gravata, usava modos urbanos, do pátio à secretaria. No regresso anulavam-se as distinções, a meia nudez suprimia as conveniências, amortecia o respeito – e os homens se tratavam com sem-cerimônia pasmosa (RAMOS, G., 2008, p.239).

A descrição da atitude defensiva, ligada inicialmente ao medo da exposição

naquele meio cheio de “ameaças indeterminadas”, abre espaço para a distinção profunda

entre ele e os demais homens, na medida em que a semelhança na “indumentária” chega

apenas a nivelá-los “de algum modo”. Ademais, a “sem-cerimônia pasmosa” refere-se

mais aos “homens” que ao próprio Graciliano, pois o discurso sugere sua distância de

tal comportamento sem propriamente afirmá-la. Esse modo de se excluir ou incluir

sempre parcialmente é como o escritor marca sua posição única, peculiar, bem como o

desejo de um isolamento impossível, fosse ele físico ou emocional, que contrasta com

uma necessidade atual (no presente da escrita) de fixar as marcas da experiência em

comum. Nesse sentido, o discurso modalizado nada mais é que a representação das

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contradições insolúveis entre o homem de intelecto e a grande maioria dos

companheiros de prisão.

No capítulo X, por sua vez, a mediação do relato se dá a propósito da ida de

Rodolfo Ghioldi à Polícia Central para fins de interrogatório. Aqui o tema “delação” se

espraia além de sua direção original, com base na narrativa do sofrimento psicológico

do líder argentino, porém jamais recai sobre sua figura qualquer marca desonrosa. O

relato vai assumindo um leve tom ficcional à medida que os acontecimentos ligados ao

personagem são construídos por meio da generalização do tema, afastando-se, portanto,

das afirmações categóricas e convidando o leitor à reflexão.

O momento em que chamam Ghioldi fica marcado na memória do escritor pelo

grito de “ – Polícia!”, usado indiscriminadamente para qualquer situação e sempre

causando severa apreensão nos detentos:

Olhávamos pesarosos a vítima, imaginávamos compridos interrogatórios, indícios, provas, testemunhas, acareações, um pobre vivente a defender-se às cegas, buscando evitar ciladas imprevisíveis. Depoimentos longos partidos, recomeçados, pedaços de confissão arrancados sob tortura. Abracei Rodolfo, apreensivo, em silêncio, vi-o descer a escada, atravessar a Praça Vermelha, segurando a bagagem, vestido numa roupa leve cor de creme (RAMOS, G., 2008, p.242).

Em seguida, o escritor utiliza-se de sua conversa com o argentino para compor a

narrativa. O que se vê é uma construção na qual o foco permanece, ao menos num

primeiro plano, no aspecto coletivo, visto o caso de Ghioldi ser tratado com certa

generalização, pondo em relevo o arbítrio policial na condução dos interrogatórios bem

como suas consequências para os interrogados. Novamente uma frase curta (“–Papeles,

mais papeles.”) serve como introdução ao relato:

Bilhetes apócrifos, recados a lápis, documentos verdadeiros ou falhos em mistura, referências a fatos incompletos refutados aqui, aceitos ali, em trapalhada infernal. Ignorando até que ponto os carrascos estão seguros, os padecentes se desnorteiam nessa brincadeira de gato com rato, deixam escapar um gesto, uma imprudência necessária à clareza do processo... Depois de lançada a informação leviana, impossível recuar, e o pior é serem imprevisíveis as conseqüências dela... Agarrado, o infeliz volta-se para um lado e para o outro, inutilmente: a declaração estampou-se sem o emprego de violência física. Contudo as violências estão próximas, e talvez a frase inconveniente seja o reflexo de gritos e uivos... Não pensamos nisso. A palavra solta entre o suplício material e o suplício moral tem semelhança de voluntária, e se prejudicou alguém, podemos julgá-la delação. (RAMOS, G., 2008, p.243).

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Da generalização o argumento se reaproxima sutilmente do individual por meio

da figura do líder. A diferenciação entre esta e os demais se dá a partir do ponto de vista

da coletividade, cujas limitações no juízo crítico são ressaltadas, valendo observar

novamente a autocrítica por meio da segunda pessoa (“Não pensamos nisso.”,

“podemos julgá-la delação”). Agora a luta travada na consciência do líder em torno da

culpa é o centro da reflexão:

Teria dito realmente aquilo? Jura que não. Mas a frase foi composta, redigida com bastante veneno, alguns acusados a ouviram, patenteiam-se logo os penosos efeitos dela. É um passo definitivo na escarpa lisa onde o sujeito não se detém, nada encontre a que se agarre. Pisa ali, enrija os tendões, busca firmar os calcanhares no solo, mas é obrigado a marchar, a correr, até cheirar ao lodaçal, lá embaixo... Se, com desesperado esforço, em arrecuas violentas, dá alguns passos, consegue chegar-se ao ponto de partida, os antigos camaradas o empurram... Tinha obrigação de resistir. Antes de se arvorar em dirigente, devia balancear as suas forças, avaliar se eram suficientes para guardar um segredo em qualquer circunstância. Teve a desgraça de ser fraco e isto o inutiliza. É um desertor, tem de asilar-se no campo inimigo; aí lhe darão as tarefas mais repugnantes. Isto explica as vagarosas desconfianças e as injustiças profundas existentes na cadeia. Impossível reconhecer todos os que se deixam subornar e os que estão a caminho disto (RAMOS, G., 2008, p.243-244, grifos nossos).

A passagem reforça significativamente a ideia de fragilidade do juízo coletivo

por meio da exposição da dureza dos “camaradas”, os quais, por assim dizer, podem

empurrar um antigo companheiro para o outro lado. Não obstante o caso de Ghioldi ser

distinto, fica claro, contudo, o poder de persuasão da palavra forjada, pois se usada

contra o argentino talvez o tivesse arruinado. Feitas essas observações, o escritor

investiga o problema da delação a partir de si próprio. A narrativa da inversão de

atitudes após entrar na cadeia ressalta a passagem da visão romântica da revolução para

o medo de estar a par dos acontecimentos:

Em casa, na rua, no bonde, lendo o jornal, uma notícia nos enche de curiosidade, tentamos imaginar a vida estranha das organizações ilegais: pequenos grupos deslizando em caminhos desertos; casos discutidos, ruminados à luz da candeia mortiça, numa casa de subúrbio; vigias atentos sufocando receios, sondando a escuridão, no frio cortante da madrugada, o sono a custo vencido; trabalhos arriscados, terríveis coragens, ações heróicas e anônimas; justiça implacável, a necessidade a impor-se, recalcando sentimentos... As pessoas que se demoraram junto de nós cochichando expressões cabalísticas aparecem-nos grandes em excesso. De repente nos afastamos do mundo: esquecemos o serviço, o estudo, os negócios, e penetramos nos bastidores da revolução. Vamos informar-nos, será satisfeita a nossa longa curiosidade. Percebemos então, com assombro, que ela já não existe. Não é indiferença, é exatamente o contrário: a necessidade imperiosa de não saber; estamos de olhos e ouvidos muito bem abertos para fechá-los às mais simples inconveniências... O que antigamente nos seduzia agora é motivo de calafrios (RAMOS, G., 2008, p. 245).

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Para um indivíduo como ele as informações passadas ao pé do ouvido eram

“pesos demasiados” (p.245), os quais poderiam eventualmente levar a confissões

indevidas:

Se passamos três dias sentados, sem comer, sem dormir, sujeitos a um interrogatório cheio de circunlóquios, suspenso, recomeçado, não nos calaremos, sem dúvida. E nem é preciso usarem rigores de técnica: não ficaremos três dias pisando em cima de alçapões: em menos de uma hora largaremos diversas incongruências, esvaziar-nos-emos por inteiro, soltaremos a frase de relance ouvida, que não compreendemos bem e talvez vá causar a ruína de outras pessoas (RAMOS, G., 2008, p. 245).

Não por acaso, o período mencionado é de “três dias”. De fato, o líder comunista

voltou do interrogatório “no terceiro dia à noite”, sem ter incorrido no erro que outros

provavelmente teriam cometido. O escritor então conclui de forma mais aberta sua

argumentação favorável a Ghioldi, ressaltando o que considera sua tendência

revolucionária natural:

Resistência inconsciente, defesa instintiva, imensa teimosia a escorar a vontade inânime – depois a supressão da memória, nenhuma resposta à pergunta ansiosa: “-Terei praticado infâmia?”. Admiramos a coragem alheia, e nem pensamos que em difícil conjuntura ela própria se ignorou: viu-se numa encruzilhada, marchou, sem saber se andava para a direita ou para a esquerda. Ligeiras incongruências, um sobressalto, algumas sílabas teriam determinado caminho diverso. E as inevitáveis conseqüências... Num caso ou noutro, ausência de culpa, ausência de mérito. Pensamos assim. E não evitamos o desprezo ou o entusiasmo. Rodolfo cresceu muito aos meus olhos. A energia involuntária deu-lhe maior prestígio que a inteligência revelada nos discursos longos (RAMOS, G., 2008, p. 246).

Graciliano completa, assim, sua descrição de Ghioldi. Se já o via como

indivíduo de grande desenvoltura com as palavras, agora lhe elogia a capacidade de

resistência, aspecto determinante para o leitor fixar uma imagem do líder como homem

de teoria e ação, em contraste com a própria figura do escritor, reduzida e um tanto

diluída na coletividade.

Para concluirmos os termos da análise da descrição de ambos os líderes políticos

podemos dizer que os posicionamentos do escritor se refletem de modos distintos na

forma do texto, isto é, na maneira como organiza os diversos recursos argumentativos

em favor de seus pontos de vista. Por um lado, a afirmação cáustica e a acusação contra

Miranda reproduzem de modo mais ou menos linear uma visão política não dialética,

identificada com o senso comum esquerdista de então, resultando em trechos mais

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ortodoxos no relato. Por outro lado, na apresentação de Ghioldi o escritor se vale de

maior variedade de recursos de linguagem (a metáfora da “escarpa lisa”, por exemplo) e

de organização textual, explorando a temática da delação de modo menos restrito ao

atribuir a si mesmo parte das críticas feitas aos companheiros de prisão, deixando ao

leitor um espaço para refletir. Aqui seu texto se torna menos diretivo e apresenta uma

dialética semelhante à de seus romances, sendo mais bem construído e mais atraente ao

impedir que o dogmatismo político se sobreponha à qualidade literária.

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5 – Marcas da escrita, estigmas e o valor das palavras

5.1 – A escrita e a tatuagem

Graciliano, ao construir as Memórias narrando sua “descida” a subterrâneos cada

vez mais inóspitos, trata de estabelecer a relação entre fatos e indivíduos e sua condição

de escritor, a qual aparece frequentemente sob uma apreciação tensa, refletindo sua

posição social em falso bem como as implicações desse fato em seu trabalho simbólico.

Tão logo Graciliano chega ao Rio de Janeiro a bordo do navio Manaus é

encaminhado ao presídio da Rua Frei Caneca. Ao narrar o processo de triagem dos

presos percebemos uma das técnicas importantes de composição do relato, por meio da

qual o escritor busca nas figuras descritas características de sua própria personalidade e

de sua existência, compondo, em última análise, uma espécie de representação mediada

de sua condição de literato.

Na secretaria, após ser fichado, o escritor se dirige ao balcão da rouparia onde

fazem uma seleção dos objetos permitidos a entrar nas celas em posse dos presos.

Aparentemente sem razão, como muitas das coisas ocorridas no cárcere, inicia-se um

mal-estar no Graciliano-personagem que está inconscientemente relacionado com a

ameaça da perda de sua faculdade da escrita, uma das principais preocupações

exploradas pelo escritor, de um modo explícito ou não, ao longo das Memórias. Do

episódio fixou-se em sua mente a visão da tatuagem de um dos presos que ajudava no

serviço da rouparia:

Apesar do cansaço, não me era possível ficar imóvel. Uma coisa me chamava a atenção, era talvez ela que me fazia andar para aqui, para ali, a vista fixa, armando suposições. O empregado responsável por aquele serviço tinha como ajudante um moço franzino, risonho, amável, falador, metido em vestimenta clara, de listas verticais, meio invisíveis, a farpela dos encarcerados. Provavelmente a cor desmaiara à força de lavagens, de ácidos, e o fato ignominioso tinha aparência vulgar, escapar-me-ia se o antebraço do rapaz não viesse despertar-me o interesse. Aí se percebia, tatuado, um esqueleto, ruína de esqueleto: crânio, costelas, braços, espinha; medonha cicatriz, no pulso, havia comido a parte inferior da carcaça. Desejando livrar-se do estigma, o pobre causticara inutilmente a pele; sofrera dores horríveis e apenas eliminara pedaços da lúgubre figura. Não conseguiria iludir-se, voltar a ser pessoa comum. Os restos da infame tatuagem, a marca da ferida, iriam persegui-lo sempre; a fatiota desbotada conservava o sinal da tinta. Era-me impossível desviar os olhos da representação fúnebre (RAMOS, G., 2008, p.177).

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As marcas do preso guardam uma analogia com as do próprio escritor, que no

episódio com o Capitão Lobo (ver item 3.1, p.78-80) já prenuncia a impossibilidade da

narrativa daqueles eventos segundo suas crenças anteriores à prisão. Aqui o escritor

anuncia o futuro não só de sua condição enquanto vivente do cárcere, mas também de

sua atuação como literato (“Os restos da infame tatuagem, a marca da ferida, iriam

persegui-lo sempre; a fatiota desbotada conservava o sinal da tinta. Era-me impossível

desviar os olhos da representação fúnebre.”), que estará definitivamente marcada pela

dura experiência prisional. Esta, como Graciliano não se cansa de reiterar no relato, o

assombrava inclusive com a possibilidade de perda definitiva da capacidade de escrever,

de tornar-se inútil e dependente do apoio moral e financeiro de outras pessoas.

No dia seguinte, Graciliano volta ao mesmo local e reencontra o rapaz da

tatuagem, com o qual trava um diálogo interessante, cuja análise revela aspectos

importantes da condição estigmatizada do escritor alagoano. A capacidade de

observação que o roupeiro possui é o principal aspecto a impressionar o escritor:

- O senhor estava muito nervoso ontem. A afirmação e a data me surpreenderam. Ontem? Parecia-me reconhecer o moço risonho, mas achava absurdo havê-lo encontrado no dia anterior. Arrepiei-me vendo-lhe a cicatriz do pulso, a horrível tatuagem meio descomposta. Bem, estavam ali os pedaços do esqueleto, o homem delicado que surgira na véspera, sem dúvida. - Por que diz isso? estranhei. Fiz algum disparate? - Não. O senhor fingia calma, falava, ria, pilheriava com os seus amigos. Notei a agitação porque mexeu na valise mais de vinte vezes. Não achava lugar para ela. Admirado, felicitei o astuto observador. Nenhuma consciência daqueles movimentos houvera em mim. Julgava-me tranqüilo explicando-me ao funcionário a respeito do frasco de iodo. E o guarda me supusera à vontade, em casa, afeito à cadeia. Todos se enganavam, só a criatura estigmatizada me via por dentro; o hábito de examinar minúcias, em permanência longa na prisão, certamente lhe desenvolvera a sagacidade (RAMOS, G., 2008, p.186).

O escritor felicita o rapaz por possuir características que são também suas,

apesar de o choque com a nova realidade as comprometerem naquele momento: a

capacidade de observação e o apego às minúcias (“São as minúcias que me prendem,

fixo-me nelas, utilizo insignificâncias na demorada construção de minhas histórias”,

p.212). Portanto, em certa medida há um elogio indireto ao trabalho contínuo de

perscrutação próprio ao escritor, algo análogo ao que o jovem desenvolvera ao longo de

sua vida na prisão. Por outro lado esta capacidade está incondicionalmente ligada ao

estigma. Se o jovem tem sua tatuagem e sua blusa “infamante” com listas “quase

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invisíveis” (p.186), o escritor também carrega seus estigmas psicológicos (de infância) e

sociais (da condição socioeconômica instável, própria de um membro oriundo de uma

família de proprietários decadentes), dos quais se lamenta ora de modo indireto, ora de

forma mais aberta ao longo das Memórias. Estes são recuperados aqui, talvez até de

modo inconsciente, quando diz que “todos se enganavam, só a criatura estigmatizada” o

via por dentro, dando a entender que um homem estigmatizado é quem melhor

compreende outro na mesma condição. Com isso, o escritor mostra um posicionamento

artístico e político diante de sua atividade, pois ao mesmo que defende a atitude daquele

que cuida das minúcias, tomando-se em alguma medida como paradigma literário,

volta-se contra uma condição social bastante comum àquele que se dedica ao trabalho

simbólico.

Em outras passagens, contudo, esses aspectos tratados aqui de forma menos

evidente aparecem mais claramente quando Graciliano procura nos mostrar as

condições materiais que influenciam o ofício de escritor. Tendo vivido em dificuldade

financeira, sendo obrigado a escrever artigos e contos para jornais e revistas ao longo de

sua vida como ganha-pão, o escritor revela a exploração do trabalho intelectual,

geralmente visto pelo senso comum de forma amenizada, como elevação do espírito. O

trecho abaixo, ao tratar do comportamento do capitalista, se inscreve em analogia à

atitude do General Newton Cavalcanti, quando desejara fuzilar Graciliano, mas

naturalmente não pudera se comportar como um bruto, “animalmente, honestamente”

(p.92). De modo perspicaz, a propósito do texto das Memórias, o escritor diz o seguinte:

Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas. Esforço-me por alinhavar esta prosa lenta, sairá daí um lucro, embora escasso – e este lucro fortalecerá pessoas que tentam oprimir-me. É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema (RAMOS, G., 2008, p.92).

Fica claro aqui o desconforto do escritor diante de sua condição subalterna.

Precisa vender sua prosa suada e esta dará lucro a um capitalista. Não deixa também de

ser impiedoso consigo mesmo, pois ao mesmo tempo considera estar “alugando” sua

inteligência uma vez que, como sabemos, as Memórias foram escritas sob um contrato

com a Editora José Olympio. Embora saiba que o conteúdo de sua prosa tem grande

valor artístico e moral (aspecto a ser percebido também pelo leitor), não suporta fazer

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parte de uma engrenagem política e ideológica que tudo engloba e sai sempre

beneficiada com o esforço alheio.

Evidentemente, o aluguel das inteligências também aponta para o trabalho na

imprensa, visto ser o jornal uma das principais fontes de renda de escritores que, assim

como Graciliano, precisavam escrever artigos e crônicas sob encomenda, jamais

podendo viver exclusivamente dos rendimentos obtidos com a venda de suas obras.

Com isso, fica implícita a comunhão de fatores que forçam o escritor a reconhecer

principalmente um processo socioeconômico e não apenas seu caso individual (“a

opressão se erigiu em sistema”).

Devemos observar também o fato de o protesto não estar colocado nos termos

românticos de quem deseja a autonomia da arte proclamando uma suposta superioridade

das coisas do “espírito” em relação ao trabalho “mecânico”, pois o escritor não se

esquece de que há um esforço para “alinhavar” sua “prosa lenta”, revelando a

consciência, por assim dizer, do “artesanato” de seu trabalho intelectual. De fato,

Graciliano já tivera oportunidade de defender sua posição em breve artigo quando da

polêmica entre Mário de Andrade e Joel Silveira sobre a qualidade da literatura

brasileira praticada no fim da década de 30. A favor da exigência de Mário de Andrade

quanto à necessidade do escritor conhecer bem seu ofício, porém contra sua divisão

“espirituosa e monetária” dos escritores em duas classes, a dos “contos de réis” e a dos

“tostões” (respectivamente, escritores de maior e menor erudição)46 , o alagoano desfaz

– com as devidas ressalvas sobre suas especificidades – a hierarquização entre o

trabalho intelectual e o trabalho manual. Aproximados no aspecto artesanal, escritor e

sapateiro se igualam enquanto produtores de mercadoria:

Dificilmente podemos coser idéias e sentimentos, apresentá-los ao público, se nos falta a habilidade indispensável à tarefa, da mesma forma que não podemos juntar pedaços de couro e razoavelmente compor um par de sapatos se os nossos dedos bisonhos não conseguem manejar a faca, a sovela, o cordel e as ilhós. A comparação efetivamente é grosseira; cordel e ilhós diferem muito de verbos e pronomes. E expostos à venda romance e calçado, muita gente considera o primeiro um objeto nobre e encolhe os ombros diante do segundo, coisa de somenos importância. Essa distinção é o preconceito.47

46 Graciliano Ramos. Os tostões do Sr. Mario de Andrade. In: ____. Linhas tortas. Cf. p.189. 47 Graciliano Ramos. Os sapateiros da literatura. In: ____. Linhas tortas. Cf. p.187.

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Mais adiante, já no Pavilhão dos Primários, a notícia do renovado interesse de

José Olympio pela edição do romance Angústia (para a qual oferecia um adiantamento)

é recebida com um sentimento que vai da incerteza à vaga esperança. A necessidade de

obter dinheiro estando no cárcere, visto as economias trazidas de Maceió estarem se

esgotando, entra em choque com a impossibilidade de se produzir literatura de

qualidade naquele ambiente. O episódio dá ensejo ao retorno do tema do trabalho

intelectual com um viés que acentua seu caráter mercantil. Partindo sempre da

autocrítica que faz à própria literatura, Graciliano recorda a apreensão pela

impossibilidade de ter acesso aos originais do romance, passíveis de inúmeras

modificações:

Em vez de me alegrar, experimentei com essa proposta vivo embaraço... não me achava disposto a contrair dívidas. Não conseguiria desembaraçar-me delas, inerte, bambo, a invencível preguiça mental a dominar-me. Era o livro difícil, mais de um mês a capengar do quartel do Recife ao chiqueiro do Manaus, daí à Casa de Detenção, que deveria negociar, caso me fosse possível dedicar-me a ele. A publicação do romance me parecia leviandade. Havia nele muito defeito, eram precisos cortes e emendas sem conta. Sem falar em mutilações e enganos infalíveis, cometidos pela datilógrafa. Indispensável, examinar, rever tudo, comparar o original à cópia. Eu nem sabia onde paravam essas coisas enterradas em algum buraco de Alagoas; talvez já nem existissem: uma denúncia anônima as teria revelado, jogado ao fogo (RAMOS, G., 2008, p.247-248).

Diante dessas questões de caráter mais literário sobressaem, entretanto, aquelas

ligadas ao valor comercial, onde novamente vemos o escritor às voltas com sua

condição subalterna de literato, diante da força econômica de quem trata seu trabalho

como mercadoria:

Se o livro se salvasse, ocupar-me-ia mais tarde em corrigi-lo, sobretudo amputar-lhe numerosas excrescências. Antes disso, consideravam-no objeto de comércio, desejavam transformá-lo em dinheiro. Recruta literário da província, acostumara-me a buscar nele algum valor artístico, embora fraco; economicamente seria um desastre, como os anteriores, dois naufrágios (RAMOS, G., 2008, p.248, grifos nossos).

A função que o literato (de província ou não) ocupa dentro do trabalho de

dominação fica exposta pela própria condição de quem muitas vezes não compreende

(ou não quer compreender) seu papel ideológico de colaborador do poder e fica apenas

procurando em seus escritos “algum valor artístico”. Evidentemente o escritor não

estava errado ao reconhecer a qualidade literária de Angústia (enorme, diga-se de

passagem). Entretanto, o importante na passagem é a visão crítica sobre a condição do

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literato de província que, no caso do romance, é representada pela figura dúbia do

personagem Luís da Silva. Como sabemos, este abomina o fato de ser explorado ao

escrever artigos sob encomenda, mas admira certas atitudes e convenções burguesas

(inclusive no seu “rival” Julião Tavares). Desse modo, o termo recruta literário traz

consigo uma clara notação pejorativa, aproximando em alguma medida o escritor de sua

criação, num instante de evidente autocrítica.

A narrativa do momento imediatamente seguinte já mostra o personagem imerso

em pensamentos sobre um suposto valor comercial dos papéis da prisão, fato revelador

da primazia afinal assumida pela questão mercantil em meio a outros aspectos, os quais,

no entanto, não são suprimidos:

Súbito me fortaleci um pouco, senti-me dono de uma possível mercadoria, descoberta pelo comprador. Meses atrás José Olympio me falara da edição, em cartas, e eu lhe respondera que ele não venderia cem exemplares. Admirava-me a insistência, em momento de perseguição, quando o aparecimento da história poderia causar prejuízos e aborrecimentos ao livreiro. No íntimo agradeci essas boas intenções, embora as julgasse irrealizáveis, pelo menos por enquanto, na dura incomunicabilidade. Entrei, porém, a verrumar o espírito curioso. Se os papéis escapassem à tormenta, quanto valeriam? Qual seria a tiragem? Uma ligeira brecha clara abria-se no horizonte nebuloso, as desgraças futuras, consideradas certas, diluíam-se um pouco. Embalava-me em frágeis e duvidosas esperanças... (RAMOS, G., 2008, p.248).

O escritor desmistifica a condição de literato ao mostrar-se atraído por uma

venda do livro das memórias alavancada por um suposto interesse “não artístico”, talvez

até do grande público. Vemos que Graciliano em nenhum momento procura colocar a

prisão como desculpa para seus pensamentos mercantis. Até porque seu interesse se

concentrava efetivamente num futuro incerto, para o qual temia o esvanecimento de

suas forças psíquicas e intelectuais, visto não saber até que ponto a experiência do

cárcere seria danosa à sua atividade profissional (“Quando nos abrirem as portas,

chegaremos à rua machucados, bambos, secos, acharemos a vida amarga, cansar-nos-

emos facilmente, qualquer esforço nos parecerá vão.”, p.249).

O modo como o escritor representa a questão do estigma aparece, portanto, em

toda sua amplitude. Ao se voltar tanto para o passado quanto para o futuro, Graciliano

traz a condição inelutável do intelectual sempre posto na corda bamba, entre a

necessidade de sobrevivência e a preservação da dignidade de sua atuação literária. Ao

revelar a própria fragilidade diante de circunstâncias sobre as quais não tem controle, o

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escritor mostra a limitação da força do trabalhador intelectual diante das instituições e

dos homens detentores do poder político e econômico.

5.2- Investigando as possibilidades da narrativa

Ao longo das Memórias, ao agravamento das condições de sobrevivência – tanto

do próprio personagem como dos demais companheiros – corresponde uma

preocupação crescente do escritor com a realização da narrativa, aspecto que o levará a

incluir uma discussão sobre o fazer literário, na qual as incertezas do personagem

encontrarão muitas das vezes analogia com a insegurança do escritor para levar a cabo

sua tarefa.

Das dificuldades iniciais já mencionadas a propósito da decisão de empreender a

escrita das Memórias (receio de cometer injustiças com os companheiros de prisão,

dúvidas quanto à própria capacidade de levar à frente tarefa tão difícil etc.) o escritor

passa à discussão sobre os recursos literários necessários à execução da autobiografia. A

realidade constantemente surpreendente do cárcere – sempre a dificultar as tentativas de

adaptação do personagem e capaz de intrigar o escritor mesmo após decorridos cerca de

dez anos – pôs Graciliano diante de um claro problema, visto não estar interessado em

transformar sua experiência em obra de ficção.

Essa problemática literária, vislumbrada ao longo de toda a obra, assume um

caráter mais crítico a partir da narrativa dos eventos que antecederam a ida de

Graciliano para a Colônia Correcional. O relato sobre as primeiras listas de

transferência mostra a preocupação do escritor em revelar suas expectativas pequeno-

burguesas, mais à frente desmentidas, o que abrirá caminho para a obsessão sobre o

modo justo de elaboração da matéria literária. O trecho a seguir narra o momento no

qual Francisco Chermont – estudante de direito e filho do senador Abel Chermont,

crítico dos desmandos da ditadura estadonovista que já se anunciava – aparece na

temida lista:

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-A lista, a lista. Por toda a parte essa palavra foi cochichada num momento, sem percebermos direito a significação dela. Não sabíamos donde tinha partido, víamos rostos apreensivos e ficávamos suspensos, sem buscar informar-nos [...] A princípio não atinei com o motivo daquela chamada improvisada; notei depois movimento nas células, homens atarantados a preparar bagagens. [...] -Vão mandá-los para a Colônia Correcional, segredou-me alguém [...] -Francisco Chermont, leu claramente o sujeito da lista Bem. A conjectura desgraçada esmoreceu e desvaneceu-se: não iriam meter entre vagabundos e malandros aquele moço inofensivo, alheio à política, membro da classe dominante (RAMOS, G., 2008, p.307).

A inocência do personagem ao supor que indivíduos de classe social mais

elevada não seriam gravemente maltratados ou transferidos para a Ilha Grande, ao ser

contrastada com a dureza das revelações posteriores, será um fator primordial para o

aprofundamento do sentido político da experiência literária. Em termos formais isto

corresponderá a uma tentativa de conduzir o leitor a um processo de descobertas

impactantes análogo ao do personagem. Contudo, essa tentativa de recriar literariamente

as surpresas não se esgota em si, ou seja, não tem o intuito de “paralisar” o leitor na

inconsciência, mas sim de deslocá-lo de sua mesmice cotidiana. Essa proposta, ao se

calcar nas questões de verossimilhança, inverte noções mais ou menos seguras sobre o

real, fazendo emergir o que está abaixo da superfície dos acontecimentos.

Ao recontar o relato de Francisco Chermont sobre o porão do Campos, navio

que o levara até a Colônia da Ilha Grande, Graciliano narra com o peso de quem parece

duvidar daquela realidade, de certo modo aproximando-se da condição do leitor, o qual

poderia também suspeitar de certos episódios narrados a partir da experiência direta do

escritor. A condenação de um suposto delator no Campos ilustra bem essa problemática

ao trazer para o primeiro plano a questão da escrita. Nesse sentido, a representação da

figura de Moleque Quatro, bandido que incorpora a lei naquela realidade subterrânea, é

o ponto central do relato:

No movimento e na balbúrdia realizou-se um processo. Moleque Quatro nomeara alguns assessores: mantinham, com ameaças e rasteiras, a ordem singular das cloacas humanas e, em caso de necessidade, incorporavam-se em tribunal... O descoberto aquela noite veio trêmulo e mudo, com duras contas a agravar-se... Ouvidas as culpas, Moleque Quatro refletiu, coçou a carapinha e decidiu: -Vai morrer. Causava assombro a idéia de que fosse possível realizar-se ali, perto de homens fardados e armados, uma execução... A gente da superfície [a minoria de presos políticos] via a máquina subterrânea a funcionar – e

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arrepiava-se. Imaginara a existência dela, uma existência vaga, apanhada em jornais e livros. A realidade não tinha verossimilhança. Estava, porém, a entrar pelos olhos e pelos ouvidos (RAMOS, G., 2008, p.314-315, grifo nosso).

Aqui o escritor traz à tona a ideia de quão distantes do conhecimento dos fatos

podem estar os “políticos livres” que, por intermédio dos meios escritos – teóricos e

limitados – imaginam uma realidade frequentemente discrepante da verdade dos

acontecimentos. Com isso, Graciliano alude, por inversão, ao trabalho do escritor: se a

verdade não tem verossimilhança, como representá-la de maneira adequada? A

sequência da narrativa parece ensaiar uma resposta para a pergunta:

Mãos a torcer-se no desespero e o rogo choroso: -Tenha pena de meus filhos, seu Quatro. Esboçou-se uma horrível piedade na cara do negro. E veio comutação da pena: -Está bem. Não vai morrer. Vai sofrer trinta enrabações. É medonho escrever isso, ofender pudicícias visuais, mas realmente não acho meio de transmitir com decência a terrível passagem do relatório de Chermont (RAMOS, G., 2008, p.315, grifo nosso).

Para o escritor não há como fugir à dureza do relato, sob pena de “trair” de

algum modo a narrativa original, aspecto que aponta para o compromisso

implicitamente assumido com quem, assim como ele, presenciou a terrível realidade.

Portanto, amenizar ou ficcionalizar a passagem seria considerado mais “indecente” que

“ofender pudicícias visuais”. A autobiografia nesse caso permite e obriga o escritor a

superar certas restrições, criando, por assim dizer, uma ética dolorosa e confirmando a

já mencionada definição de Antonio Candido de que para Graciliano “a verdade é a sua

verdade” (FC, p.91).

A impressão causada pelo relato de Francisco Chermont no escritor leva-o a

projetar seus sentimentos nos demais companheiros e, posteriormente, a questionar

certas conclusões. A ideia de desânimo generalizado acaba se tornando mais um motivo

para conduzir adiante o debate sobre o fazer literário:

O abafamento. Essa palavra circulou, batizando a morrinha coletiva – e pensei no banzo dos negros, no mal triste do gado. Era um nome apenas, mas com ele nos vinha um começo de explicação. A história desgraçada nos contaminava. Abafamento. Não me haviam falado nisso, a moléstia me pegava de surpresa. Conhecia-lhe os primeiros efeitos, via de longe viventes combalidos tentando livrar-se do singular enjôo. Lembrei-me do porão do Manaus, das trouxas vivas a arfar, a vomitar na porcaria extrema. Não me abatera: uma semana de jejum me deixara lúcido, a mover-me aos

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solavancos entre as redes oscilantes, a redigir notas a lápis no camarote do padeiro. Agora não me seria possível andar ou escrever (RAMOS, G., 2008, p.321).

O princípio de solução literária anteriormente sugerido, válido para o momento

da escrita, ainda não se esboçava, ficando apenas a representação de um início de crise

produtiva. O impacto causado pelo relato de Francisco Chermont chegará a fazê-lo

duvidar de sua capacidade de compreensão da vida nos subterrâneos do cárcere –

mesmo lá vivendo – evoluindo dramaticamente a uma autocrítica de suas habilidades

como romancista:

Torturavam-me aqueles fatos imprevistos e inverossímeis. Ou não seriam eles que me torturavam: era talvez o reconhecimento da minha insuficiência mental, da incapacidade manifesta de enxergar um pouco além da rotina. Acomodava-me a ambientes novos – e quando neles surgia uma brecha, alarmava-me. Articuladas as peças da narrativa, via-me forçado a achá-la natural. Por que não fizera isso antes, não admitira sem auxílio os casos vergonhosos e medonhos?...Notava a deficiência e perguntava como diabo me atrevia a fazer obra de ficção. Nada me interessava fora dos acontecimentos observados. Insignificâncias do ramerrão. Umas se reduziam, quase se anulavam, outras avultavam, miudezas ampliadas (RAMOS, G., 2008, p.322).

Nesse momento, a avaliação do escritor ignora o rebaixamento das condições

mentais imposto na prisão, aspecto ao qual faz alusão frequente, inclusive para justificar

o comportamento de alguns companheiros “políticos”. Com isso, impõe a si mesmo (e

ao ficcionista em geral) uma dura exigência de distanciamento crítico que, descontado o

excesso de racionalismo, ressalta a importância do escritor como elemento ativo no

processo político.

De fato, a exigência imposta ao escritor se torna ainda mais clara por meio da

comparação do trecho acima com a passagem imediatamente anterior, a qual deixa em

relevo a distinção entre o trabalho literário e o jornalístico, reiteradamente criticado ao

longo das Memórias como superficial e falsificador da realidade:

Na verdade a morte do vagabundo não me preocuparia. Com freqüência, eles por aí se acabam, em rolos sangrentos. Os jornais tentam comover-nos espichando brigas, e viramos a folha impassíveis. As facadas e os tiros não nos abalam. Mas o acessório brutal, as formalidades esquisitas, as frases absurdas e insubstituíveis desarrumavam-me conceitos mais ou menos estabelecidos. Isso e a troca infame de pena (RAMOS, G., 2008, p.322).

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Do contraste estabelecido surge a ideia da representação justa da realidade

“absurda” em narrativa como muito mais esclarecedora que a informação dado o modo

como ajuda a superar as limitadas visões impostas pela “rotina” e reforçadas pelo jornal.

Consciente dessa disputa pela interpretação da realidade (em especial devido à

percepção clara da corrupção da impressa de então), receoso da própria capacidade de

avaliação dos eventos e dos relatos, bem como de levar adiante o trabalho de construir

com eles a sua narrativa, Graciliano aprofunda sua resposta à pergunta sobre o melhor

modo de fazê-lo. Assim, diante dos fatos outrora inimagináveis o escritor reflete:

Restava saber se era exeqüível uma aparência de realidade isenta da matéria que nos cai debaixo dos sentidos. Essa questão me perseguia, muitas vezes me desviava do trabalho maçador, das conversas ociosas na Praça Vermelha. Conseguiria um sujeito livre, em casa, diante de uma folha de papel, adivinhar como nos comportávamos entre aquelas paredes escuras? Tipos iguais a mim seriam incapazes disso. Não se tratava, porém, da minha incapacidade; outros dispensariam exames e sondagens, criariam mentiras de vulto, superiores ao que me caía na pena, mentiras também, povoadas de minúcias rigorosas. -Seu Quatro, pelo amor de Deus, tenha pena de meus filhos. Meses atrás, se me houvessem repetido esse miserável rogo, exposto as conseqüências dele, afastar-me-ia incrédulo. A existência anormal obrigava-me a considerar verdadeiro o relato singular, a princípio com relutância, depois a dizer comigo mesmo que as coisas não se poderiam passar de maneira diferente (RAMOS, G., 2008, p.322-323).

O questionamento aponta para o problema do gênero narrativo. Vemos o escritor

tentando decidir, em última análise, se poderia ficcionalizar o próprio sofrimento e

também o alheio, talvez imaginando ser possível, no romance, tornar o inacreditável

dizível. Para ele, quem não conhece o cárcere poderia, em princípio, “povoar” suas

histórias de “mentiras” – criando com elas “uma aparência de realidade” – porém, quem

o experimentou, não. Com isso, reconhece momentaneamente (mesmo com restrição) a

legitimidade de uma estética bem distinta da sua. Anteriormente, ao tratar de temática

distinta à da prisão, já o havia feito ao narrar sua transferência de Maceió ao forte das

Cinco Pontas no Recife. O escritor recordava os pensamentos que o assaltaram ao olhar

para fora do vagão e ver certas habitações ao longo da ferrovia:

Passei o dia a mexer-me do vagão para o restaurante, bebi alguns cálices de conhaque, os últimos que me permitiriam durante longos meses. À noitinha percebi construções negras num terreno alagado. Que seria aquilo? -Mocambos, informou Tavares. Bem, os célebres mocambos que José Lins havia descrito em Moleque Ricardo. Conheceria José Lins aquela vida? Provavelmente não conhecia. Acusavam-no de ser apenas um memorialista, de não possuir imaginação, e o romance mostrava exatamente o contrário. Que entendia ele de meninos

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nascidos e criados na lama e na miséria, ele, filho de proprietários? Contudo a narração tinha verossimilhança. Eu seria incapaz de semelhante proeza; só me abalanço a expor a coisa observada e sentida. Tornaria esse amigo a compor outra história assim, desigual, desleixada, mas onde existem passagens admiráveis, duas pelo menos a atingir o ponto culminante da literatura brasileira? (RAMOS, G., 2008, p.40-41).

A avaliação do romance de José Lins – sem prejuízo da qualidade reconhecida

exatamente por seu poder de convencimento – aponta o fato de ser a obra “desigual,

desleixada”, ou seja, de nem sempre buscar a verossimilhança a partir do conhecimento

seguro da realidade a ser representada. Sabendo que esse é um modo construtivo

importante não só para o escritor paraibano, mas também para uma parte significativa

da literatura brasileira de seu tempo (ver item 1.1, p.22-24), Graciliano está sempre se

justificando nas Memórias com vistas a fazer o leitor atentar para outros modos de

escrita. Por meio da experiência vivida, sente a possibilidade de narrar com adequação o

relato de Chermont:

O jejum, a sede, a asfixia no porão do Manaus, e uma noite a julgar-me vizinho da loucura, davam-me perfeita idéia do meio estranho. As personagens mencionadas não diferiam muito dos faxinas, do rapaz amável que tinha uma lúgubre tatuagem no antebraço, do rufião da galeria, vaidoso e besta, a descobrir num sorriso fixo, o dente de ouro. Uma voz martelara-me os ouvidos. Se eu tivesse visto a cara do leitor, divisaria nela a sombra de passagens fugidias, inexistentes na exposição. Uma voz apenas – e era o bastante. A violação do garoto, o assassínio involuntário cometido por alguém que desejava permanecer na cadeia aproximavam-me daquele mundo. Os rumores enfraqueciam, em redor, numerosos indivíduos se alquebravam parafusando o relatório. Convencia-me disso, mas nada me provava que o abafamento fosse geral (RAMOS, G., 2008, p.323, grifo nosso).

Como vemos, o argumento do escritor alagoano vai defendendo cada vez mais

uma reconstrução, por assim dizer, “rigorosa”, comprometida com o factual, o que é

naturalmente um produto da sua relação com os eventos do cárcere. De qualquer modo,

Graciliano permanece receptivo a qualidades literárias capazes de redimensionar a

realidade na medida em que preservem traços marcantes, reveladores de uma vida

“pulsante” nos ambientes retratados.

A divergência se agrava, porém, quando o escritor, já de volta da Colônia Penal,

detido na Casa de Correção, lê Usina, recém-lançado por seu amigo paraibano:

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Estranhei ver José Lins afastar-se da bagaceira e do canavial, tratados com segurança e vigor em obras anteriores, discorrer agora sobre Fernando de Noronha, onde nunca esteve. Um crítico absurdo o julgara simples memorialista, e o homem se decidia a expor imaginação envolvendo-se em matéria desconhecida. Pessoa de tanta experiência, de tanto exame, largar fatos observados, aventurar-se a narrar coisas de uma prisão distante. O indivíduo livre não entende a nossa vida além das grades, as oscilações do caráter e da inteligência, desespero sem causa aparente, a covardia substituída por atos de coragem doida... Zanguei-me com José Lins. Por que se havia lançado àquilo?... A cadeia não é um brinquedo literário. Obtemos informações lá fora, lemos em excesso, mas os autores que nos guiam não jejuaram, não sufocaram numa tábua suja, meio doidos. Raciocinam bem, tudo certo. Impossível conceber o sofrimento alheio se não sofremos. O começo do livro de José Lins torturava-me. Quase desejei ver o meu amigo preso (RAMOS, G., 2008, p.574-575).

Aquilo que de certo modo valia para os mocambos não vale para a prisão. Isso

se dá provavelmente pelo fato de José Lins do Rego ter narrado a vida prisional de seu

personagem Ricardo (capítulo I, O Retorno) às vezes até com certos traços poéticos,

dando à vida na ilha um sentido maior de melancolia que de sofrimento por maus tratos,

revelando algum empréstimo de características da literatura sobre o engenho. Graciliano

ressalta, portanto, a condição única do cárcere, onde a possibilidade do comportamento

habitual escapa aos indivíduos postos em situação-limite. Desse modo, a prisão torna-se

tema permitido quase exclusivamente aos que lá estiveram, visão problemática se

levarmos em conta que outros sempre poderão narrá-la de modo diverso do de José

Lins, inclusive a partir de graus variados de concentração na mente do protagonista, não

necessariamente se importando de modo tão claro com a coletividade. Entretanto, ao

defender uma posição estética gradativamente mais austera, o escritor tenta de fato

mostrar-se à altura do trabalho assumido e, por esse motivo, o texto abre espaço para

tais posicionamentos sobre literatura, reproduzindo a cada passo a dúvida para ele

crucial, isto é, como representar uma realidade imprevisível, de modo a não fazer

injustiça a todos que com ele sofreram, independentemente de suas classes sociais,

credos religiosos ou convicções políticas.

Não obstante, o escritor retoma brevemente o tema logo em seguida com menos

contundência, fazendo inclusive uma autocrítica de suas posições. O sentido das

observações, contudo, não se esclarece apenas pelo texto das Memórias, pois nesse

momento Graciliano procura não alongar a discussão seja pela necessidade de continuar

o relato, seja por ter chegado a um “meio-termo” estético. Ainda a propósito da

mudança temática do escritor paraibano, Graciliano argumenta:

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Senhores de engenho, trabalhadores do eito, sinhás-moças, negras velhas mais ou menos escravas, mexiam-se à vontade na obra séria do romancista excelente. Bueiros, caminhos, árvores e rios, canaviais. E pessoas vivas. Tudo vivo. A tia medonha, as primas, estavam vivas. E os lugares também viviam. Agora, comprometido e célebre, dava-nos coisas mortas. Para quê, Deus do céu? A exigência do leitor ou do crítico não deveria levá-lo à desonestidade. Afastei a palavra dura. Não era bem isso. Ingenuidade, sim, ingenuidade. Esperávamos dele a experiência. Surpreendi-me a dizer coisas tolas: - Somos sapateiros. Devemos fazer sapatos, bons sapatos. Para que fabricar pulseiras e brincos? Sapateiros, bons sapatos (RAMOS, G., 2008, p.575-576).

Retomando a comparação entre o escritor e o sapateiro, devemos compreendê-la

agora sob um aspecto diverso, porém complementar ao da análise sobre a literatura

enquanto mercadoria. Aqui Graciliano vê sua posição anterior em perspectiva

(“Surpreendi-me a dizer coisas tolas”). A autocrítica, porém, se explica melhor pela

leitura do artigo já mencionado (Os sapateiros da literatura). Ali Graciliano procura

demonstrar o peso da condição social no comportamento literário do escritor,

especialmente o nordestino que migrou para o Rio de Janeiro. Devemos relembrar que o

texto aparece em meio à polêmica Mário de Andrade-Joel Silveira:

Evidentemente o Sr. Mario de Andrade, homem de cultura e gosto, não iria aproximar um escritor dum operário. Mas agora estou pensando nos rapazes do D. Casmurro48. E não atino com a razão por que eles torceram o nariz. Afinal, que são os rapazes do D. Casmurro? Os sapateiros da literatura. Não se zanguem, é isto. Somos sapateiros, apenas. Quando, há alguns anos, desconhecidos, encolhidos e magros, descemos das nossas terras miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, freqüentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando.49

O argumento a explicar a atitude dos “sapateiros” não se restringe, como no caso

de José Lins, à região geográfica, mas atenta principalmente para o aspecto econômico,

de modo que o próprio Graciliano menciona sua participação no grupo. Essa posição

menos “apaixonada” do debate (inclusive com a crítica aos colegas da revista) aponta

para o fato de a necessidade econômica exercer um condicionamento literário, não

determinando, entretanto, a qualquer um dos “flagelados” da literatura uma proibição

temática, cuja superação naturalmente dependeria da capacidade de cada um. Como

vemos, o ponto é controverso e Graciliano o aprimorou gradualmente em meio às suas

48 Importante revista literária semanal, dirigida por Álvaro Moreyra e Brício de Abreu, que circulou entre 1937 e 1944. 49 Graciliano Ramos. Os sapateiros da literatura. In: ____. Linhas tortas. Cf. p.188.

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reflexões carcerárias, mas principalmente em sua experiência social e literária no Rio de

Janeiro, a qual possibilitou o distanciamento necessário para a composição das próprias

Memórias.

A questão da verossimilhança se apresenta também como problema a ser

discutido em sua ligação com o aspecto político-ideológico mais patente. Ao ser

transferido da colônia para a Casa de Correção, o escritor é recebido no novo cárcere

pelo diretor da prisão, o Major Nunes. O relato de suas reações diante da atitude do

diretor, que procurava tranquilizá-lo, mantendo-o informado sobre parentes e amigos, é

uma demonstração da difícil busca pela imparcialidade na observação dos

acontecimentos:

-Sua mulher esteve aqui hoje. Vai bem. Eu o esperava desde ontem... Toda a família vai bem. José Leite e Amália vão bem. Sabe que Padre José Leite esteve aqui, procurando visitá-lo nos Primários? Não conseguiu a visita. Vai bem. -É. Percebi a letra dele num pacote de frutas. Mas como é que o senhor conhece essa gente? -Ah! Sou de Alagoas, nasci em Pilar. Vamos. Essa incrível familiaridade perturbava-me. Difícil admitir que um instrumento da polícia, só por ter nascido na minha terra e conhecer parentes de minha mulher, procedesse de tal jeito. Inclinava-me a descobrir na linguagem simples do homenzinho sinais de corrupção. Mas corrupção por que, Deus do céu? Estúpido imaginar terem posto ali uma pessoa do Nordeste para engabelar-me (RAMOS, G., 2008, p.550-551).

Adiante essas primeiras impressões serão cruciais para Graciliano explicitar sua

posição diante do leitor, imaginando o problema que a falta de verossimilhança poderia

acarretar para a aceitação da narrativa. Nesse sentido, mostra como o oferecimento da

sala de carpintaria pelo major a fim de o escritor poder trabalhar em silêncio serviu,

ainda no cárcere, como base para reflexões sobre as consequências da futura escrita

sobre esse personagem. Pensando na atitude de um jornalista que, segundo o diretor, o

atacara após sair da prisão, o escritor pesa os prós e contras de se respeitar os fatos nas

suas memórias:

Agradeci. Boa idéia. Mas despedi-me inquieto. E a inquietação muitas vezes reapareceu no futuro. Ser-me-ia possível, recebendo o favor e os sorrisos, ver com imparcialidade aquela personagem? Se tentasse descrevê-la, talvez propendesse a exagerar-lhe a benevolência. Parecia-me injusta a acusação do jornalista, embora não a tivesse lido. Isso me perturbava, levava-me a buscar refúgio em pensamento oposto, dizer a mim mesmo que um funcionário da polícia nenhum obséquio nos fazia em ser lhano e com certeza mostrava-se generoso para amolecer-nos, comprar-nos. Inclinava-me então a escusar a dureza do jornalista. Se exibíssemos ao público as amabilidades imprevistas,

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acabaríamos por tornar a cadeia um lugar desejável, mostraríamos conivência infeliz com os nossos opressores. Da vaga narrativa que me flutuava no espírito resolvia-me a afastar uma bondade suspeita. Reconsiderei: a falta de sinceridade estragaria sem dúvida a história (RAMOS, G., 2008, p.570).

Como se vê, a visão política de esquerda fez o escritor concordar a certa altura

com o jornalista, pois naquele instante prevalecia a crítica a todo um regime

policialesco, representado pela figura do major. No momento seguinte, entretanto, a

consciência de seu trabalho autobiográfico, baseada no compromisso com a

“sinceridade”, leva-o a se arriscar diante do público leitor, razão pela qual mais uma vez

justifica sua atitude literária.

O aspecto político nesse momento fica por conta da percepção do caso singular,

permitindo-o escapar a uma falsificação que incidiria em esquerdismo ao satisfazer o

gosto político de leitores com tendência a ver a obra de arte apenas como meio de

denúncia ou panfletarismo. Assim, a representação da crise vivida pelo escritor diante

do inesperado comportamento da autoridade, ao preservar o olhar de respeito ao

indivíduo, desarticula uma possível visão ortodoxa do leitor, levando-o a perceber

traços de dignidade humana onde inicialmente não poderia imaginá-los.

Como se vê, a diversidade das experiências vividas por Graciliano não aparece

apenas devido à importância dos acontecimentos em si mesmos. Na condição de escritor

sempre preocupado com seu trabalho, aproveita as dúvidas sobre sua capacidade de

literato para atualizar uma discussão teórica relevante para o contexto literário e político

nacional.

Nesse sentido, as contradições apresentadas em seu posicionamento estético, ora

tendente à ortodoxia, ora à busca de opções construtivas distintas das suas, têm um valor

intrínseco. Ao serem repostas na forma do texto, adquirem um caráter processual

importante, tornando-se uma espécie de metalinguagem do trabalho investigativo de um

escritor seriamente comprometido com o sentido de suas palavras, o que tem

importância na redefinição entre os limites da ficção e da autobiografia. Essa busca da

expressão mais adequada, contudo, ultrapassa o meramente estético na medida em que

cada uma das escolhas apresenta uma carga de sofrimento proporcional à consciência da

dimensão política de cada evento em particular.

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O resultado dessa preservação de argumentos em disputa é uma representação

que chega ao ponto de revelar o lado politicamente mais apurado do escritor, mostrando

mais uma vez como a literatura e a investigação literária são seus meios mais profícuos

de compreensão da realidade e de intervenção política.

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CONCLUSÃO

As Memórias do cárcere trabalham em grande medida na reconstrução do

sentido histórico da experiência coletiva. O silêncio de Graciliano por nove anos até se

pôr a escrever revela, mais do que o trauma da experiência-limite, a consciência do

cuidado necessário à difícil empreitada, na qual o sujeito precisa rever o significado de

suas atitudes e, principalmente, apresentar sem injustiça os companheiros de prisão.

Dos pequenos detalhes o escritor consegue tirar observações reveladoras capazes

de ultrapassar o significado aparente dos acontecimentos e dos atos, o qual muitas vezes

se impunha nas contingências da vida no subterrâneo. Despindo-se da vaidade de contar

suas agruras a partir do alto, de onde se recuperam qualidades hipotéticas de grande

coragem, retidão e autocontrole, coloca-as na forma do texto, reproduzindo a dialética

na qual as buscava com o simples intuito de se manter escrevendo para permanecer

vivo. Essa atitude lhe dá certa autoridade humilde para enveredar pela exploração dos

mais diferentes caracteres e colocá-los em relação a si próprio. Dessa conjunção surge

uma narrativa de profundo autoquestionamento, na qual se recupera o processo de

formação do sentido, que não se concentra apenas na figura individual, mas, partindo

dela, vai se ampliando até tomar a dimensão de verdadeiro testemunho da história de

uma época.

Nessa operação de escavar e exumar o passado, a perspectiva do presente

aparece ora na confirmação, ora na refutação de pontos de vista antigos. Aparece ainda

com um traço de perplexidade frequentemente a impedir o tom conclusivo sobre a

experiência vivida, de modo que boa parte da responsabilidade na criação de sentido

cabe ao leitor, aproximando o relato da narrativa romanesca. Como consequência dessa

tentativa dialética de recuperar e ao mesmo tempo não fechar o sentido da experiência e

da época, o autor elenca suas próprias contradições – que ele sabe em grande medida

serem persistentes ao momento da escrita – a fim de dar a devida dimensão humana ao

relato. O resultado formal dessa escolha é um texto frequentemente variável no tom,

passando da apreensão mais direta do cotidiano do cárcere aos angustiantes trechos em

que a construção textual reproduz a confusão mental e a agonia pela busca de

compreensão da realidade atordoante.

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Essa variedade de modos de representação do cárcere se enriquece na relação

estabelecida pelo escritor entre as realidades interna e externa aos muros da prisão, feita

sem apelos sentimentalistas ou reduções grosseiras. Num trânsito de mão dupla, o autor

por vezes inverte as posições, mostrando o cárcere como possibilidade de compreensão

da realidade mais ampla enquanto a existência na sociedade se apresenta como limite à

expressão e à ação livres do indivíduo.

Ainda nessa linha, pode-se dizer que Graciliano varia entre a tentativa de narrar

sua vivência prisional com a maior proximidade possível dos episódios em si – como se

tentasse descobrir para si mesmo um sentido maior por trás de cada situação, traço que

também liga o relato às técnicas romanescas – e certa condução política do argumento, a

qual varia do discurso mais ou menos modalizado ao posicionamento mais claro e

mesmo à diatribe. Essa alternância entre um viés mais “intelectual” e outro mais

“político” reflete um desequilíbrio entre sua maturidade artística – atingida num

romance tão bem realizado formalmente e com uma visão crítica tão profunda da

realidade brasileira como Vidas secas – e seu caráter político irregular, alternando entre

uma posição crítica diante do pensamento e das ações da esquerda e certa proximidade

com a ortodoxia política de oposição. Assim, o andamento por vezes “desigual” das

Memórias termina por mostrar as contradições de um intelectual que, em meio a

acontecimentos decisivos, sente-se impelido a opinar mais abertamente sem, contudo,

possuir um conhecimento profundo de certas nuanças do processo histórico. Com isso, o

distanciamento do narrador mesmo diante do passado não é completo, aspecto

responsável por muito do caráter inconclusivo da obra.

Ao tratar mais especificamente do papel do escritor diante da realidade social

podemos perceber como Graciliano recupera um equilíbrio por vezes perdido na

discussão mais ligada às questões políticas da época. Ao reconhecer a limitada força do

escritor diante da dureza do poder do Estado, Graciliano desde o início se afasta de

qualquer idealização da vida dos homens dedicados ao trabalho simbólico, chegando a

apresentar o escritor na condição de quem precisa vender sua força de trabalho, a

palavra, para sobreviver. Essa busca da consciência de seu papel na sociedade, ora

duvidando de suas “armas fracas e de papel”, ora reafirmando sua condição de literato,

ajuda o escritor a se passar a limpo, possibilitando-lhe avançar em críticas que

ultrapassam os aspectos puramente literários.

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Toda essa rica e problemática variedade expressiva do escritor – capaz de revelar

a história enquanto processo e de questionar tanto os próprios valores e preconceitos

como as supostas verdades veiculadas pelas ideologias dominantes – é responsável por

determinar o valor ético e artístico de sua escrita bem como por manter a força e a

atualidade do relato das Memórias.

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