Upload
others
View
1
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HENRIQUE MASERA LOPES
O CULTIVO DA SAUDADE: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DE GILBERTO FREYRE ENTRE 1918 E 1926
NATAL-RN
2014
2
HENRIQUE MASERA LOPES
O CULTIVO DA SAUDADE: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DE GILBERTO FREYRE ENTRE 1918 E 1926
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr. Para avaliação da disciplina Pesquisa Histórica II.
NATAL-RN
2014
3
HENRIQUE MASERA LOPES
O CULTIVO DA SAUDADE: UMA ANÁLISE DOS ESCRITOS DE GILBERTO FREYRE ENTRE 1918 E 1926
Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr. Para avaliação da disciplina Pesquisa Histórica
II.
Aprovado em: ___/___/____.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr.
(Orientador / UFRN)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Raimundo Pereira de Alencar Arrais
Professor titular da UFRN
_____________________________________________________________
Prof. Diego José Fernandes Freire
Professor de história da UNP
4
UFRN. Biblioteca Central Zila Mamede.
Catalogação da Publicação na Fonte.
Lopes, Henrique Masera.
O cultivo da saudade : uma análise dos escritos de Gilberto Freyre entre 1918 e 1926 / Henrique Masera Lopes. – Natal, RN, 2014.
90 f.
Orientador: Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr. Monografia – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Curso de História.
1. Freyre, Gilberto, 1900-1987 – Crítica e interpretação – Monografia. 2. História - Monografia. 3.
Saudosismo – Monografia. 4. Saudade – Monografia.5. Modernidade – Monografia. 6. Sensibilidade – Monografia. I. Albuquerque Jr., Durval Muniz de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Titulo.
RN/UF/BCZM CDU 94:821.134.3(81).0
5
RESUMO
O cultivo da saudade: uma análise dos escritos de Gilberto Freyre entre 1918 e 1926 é
um ensaio monográfico no campo da história das sensibilidades que se ocupa em traçar
uma cartografia dos modos de pensar e sentir de Gilberto Freyre a partir de seus artigos
jornalísticos publicados no jornal Diário de Pernambuco durante o período estudado.
Partimos da consideração inicial de que os discursos do autor e suas práticas culturais à
época participavam de uma atmosfera social saudosista, sentida e pensada não apenas
por ele, mas também por outros sujeitos e grupos sociais que reagiam criticamente as
transformações da modernidade. Assim sendo, nos voltamos para as fontes com o
intuito de mapear impressões e expressões saudosistas sobre variados aspectos do
cotidiano, de sua vivência, percebendo como nesses acontecimentos brotavam maneiras
singulares de cultivar saudades e de ampliá-las ao campo da interpretação histórica,
filosófica, cultural, estética e política. Primeiramente nos deparamos com um jovem
Freyre estudante, vivendo nos Estados Unidos para concluir seus estudos e em seguida
viajando por algumas cidade da Europa, explorando paisagens e grafando suas
percepções sobre a modernidade e sua relação com o passado. Em seguida, iremos
abordar a ação cultural do jovem que retorna ao Brasil e participa ativamente do debate
da identidade nacional e regional a partir dos conceitos de regionalismo e
tradicionalismo, dando prioridade a reflexão em torno da escolha temática de seus
primeiros textos regionalistas, onde a questão da defesa das árvores e da culinária dos
antepassados emergia como temas centrais. Por fim, trataremos de trazer para a
discussão o fundo político do saudosismo de Gilberto Freyre à época, para compreender
as filiações que seu discurso traçava com os movimentos políticos conservadores do
período estudado e como isso influenciava na produção de suas imagens e discursos
tradicionalistas.
Palavras chave: Gilberto Freyre; Saudosismo; Saudade; Modernidade; História;
Sensibilidades.
6
ABSTRACT
The cultivation of nostalgia: an analysis of Gilberto Freyre’s writings between 1918 and
1926 is a monographic essay in the field of history of sensibilities that engages in
drawing a map of Gilberto Freyre’s ways of thinking and feeling from his journalistic
articles published in the newspaper Diario de Pernambuco during the period studied.
We start from the initial consideration that the discourses and cultural practices of the
author attended a nostalgic social atmosphere at the time, felt and thought not only by
him but also by other individuals and social groups who reacted critically to the
transformations of modernity in early twentieth century.Thus, we turn to the sources in
order to map feelings and nostalgic expressions on various aspects of daily life, from his
experience, realizing how these events sprang singular ways to cultivate nostalgia and
extend them to the field of historical, philosophical, cultural, aesthetic and political
interpretations. First we came across Freyre as a young student living in the United
States to finish his studies and then traveling through some cities in Europe, exploring
landscapes and writing his perceptions of modernity and his relationship with the past.
Then we will address the cultural action of the young man who returns to Brazil and
actively debates the national and regional identities from the concepts of regionalism
and traditionalism, giving priority to the reflection on the thematic choice of his first
regionalist texts, in which the defense of trees and culinary ancestry emerged as central
themes. Finally, we will bring to the discussion the political background of Gilberto
Freyre’s nostalgic discourse at the time, to understand the affiliations that his speech
drew with conservative political movements of the period studied and how that
influenced the production of their traditionalists images and speeches.
Keywords: Gilberto Freyre, Saudosism, Nostalgia, Modernity, History, Sensibility
7
AGRADECIMENTOS
Muitas pessoas atravessaram meu caminho e foram fundamentais para que eu estivesse
aqui agora as agradecendo pela passagem e pelas marcas que deixaram em mim. Sendo
o mais breve possível, gostaria de agradecer primeiramente aos meus familiares pelo
afeto e pela energia que emanam para que eu realize meus desejos, obrigado pelos
entendimentos e desentendimentos, através dos desvios e dos silêncios aprendi a amá-
los como são e eles a me amarem com sou. Marcos, Rafaela e Verônica.
No espaço acadêmico, quero deixar meus sinceros agradecimentos aos colegas de base
de pesquisa Diego José, Felipe Alves, Priscilla Farias pelas discussões que
enriqueceram o conteúdo desta pesquisa. Também dedico este trabalhos aos colegas de
universidade de fora das salas de aula, Álvaro, Jota, Isa, Geovanne, Lisandro, Lucas,
Leilane, pelos corredores, cultivando a insubmissão, a antidisciplina e a liberdade
criativa tivemos excelentes conversas francas. Agradeço enormemente ao professor
Durval Muniz pela relação de amizade no pensamento, por agir como um educador
libertário que soube respeitar meus momentos durante a graduação e por ter contribuído
sobremaneira na expansão de meus horizontes filosóficos e existenciais.
Por fim quero fazer agradecimentos mais genéricos, nem por isso menos importantes, às
pessoas com quem vivi momentos intensos de troca e experiência. Meu muito obrigado
ao Herbert pelos sorrisos, ao Walter pela amizade de tantos anos que não para de se
transformar, a Lara pelas descobertas, ao Pedras por ter me mostrado em atos o poder da
música, ao Igor pela sensibilidade aguçada para dizer-me sobre que o preciso saber, a
Clara pelos momentos transformadores e pela abertura de novos caminhos, ao Maurízio
pela amizade sincera e a todos os desvairados apaixonados pela vida que eu encontrei,
encontro e irei encontrar.
Este trabalho foi realizado com apoio financeiro do CNPQ, obrigado pela apoio
financeiro fundamental.
8
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................6
2 OLHARES DA OUTRA AMÉRICA: CIDADES, SUJEITOS E SAUDADES................................................................................................................13
2.1 CARTOGRAFANDO CIDADES..........................................................................13
2.2CARTOGRAFANDO SUJEITOS..........................................................................25
3 O RETORNO DO ESTRANEGEIRO: AÇÃO CULTURAL REGIONALISTA E TRADICIONALISTA...............................................................................................38
3.1ESTRANGEIRO NO RECIFE...............................................................................38
3.2 AMIGO DAS ÁRVORES.....................................................................................43
3.3SAUDOSISMO GULOSO.....................................................................................55
4 SAUDOSISMO, POLÍTICA E OUTROS POSSÍVEIS.......................................63
4.1SAUDOSISMO, CONSERVADORISMO E ORTODOXIA.................................63
4.2BREVIÁRIO DE UMA EGODICEIA SAUDOSA................................................78
5 CONCLUSÃO: UMA SÓ OU VÁRIAS SAUDADES?.......................................88
REFERÊNCIAS.........................................................................................................96
9
INTRODUÇÃO
O cultivo da saudade: uma análise dos escritos de Gilberto Freyre entre 1918 e 1926
diz respeito a uma tentativa de compreender as tramas sentimentais e intelectuais que
compunham o pensamento do jovem estudante pernambucano em relação a sua época e
como desta relação sensível com o mundo, com os outros e com si próprioemergiu uma
maneira saudosista de pensar, sentir, ver e dizer o presente e o passado, expressa nos
artigos jornalísticos que publicou durante este período.
Nosso interesse pela vida e pelos discursos de um Gilberto Freyre jovem, ainda
pouco conhecido no meio intelectual nacional, foi se construindo desde que passamos a
considerar a relevância deste momento de sua vida para a efetivação dos conceitos e
imagens que se tornariam fundamentais no seu universo sociológico, político e cultural
posterior. É nessa fase germinal de sua carreira de intelectual que se esboçam dadas
imagens e conceitos que se tornariam centrais em sua obra, mas que aqui se encontram
espalhados em vários artigos para o jornal Diário de Pernambuco.
Por estarmos diante de uma vasta documentação que gravita como um conjunto de
relatos sobre o cotidiano de Gilberto, ou melhor, escritos sempre em conexão com a
própria experiência e experimentação de vida do autor, trataremos de considerar essa
dimensão corpórea e visceral que a escrita solicita, que aparece em Gilberto Freyre
através do desenvolvimento de um estilo e de uma estética discursiva conectada a um
cultivo de si e do mundo onde escrever tem a ver com grafar no papel trajetórias de sua
própria experiência. Pois em Freyre, não há segredo em torno de sua presença no texto,
ao contrário, sua presença é condição de possibilidade para sua interpretação dos
acontecimentos. Logo, seus artigos são fonte riquíssima para uma história das
sensibilidades, dos afetos, das emoções, uma vez que essas nuances são pinceladas pelo
próprio escritor, tendo em vista que Freyre cultivava sua escrita numa relação direta
com as pulsões do corpo, com as vibrações do desejo, da intuição, dos sentidos. Desse
estilo narrativo praticado pelo autor em seus artigos, esboça-se também uma variedade
de interpretações sobre o cotidiano político, cultural, filosófico, estético, econômico e
social que a época atravessava. Portanto se trata de um conjunto documental rico em
demonstrações explicitas da amalgama entre pensamentos e sentimentos, entre razão e
emoção. E como se sabe, esta amalgama nunca existiu separada, por mais que a
racionalidade cientifica do mundo moderno tenha construído suas bases sobre um
10
território subjetivo que traçava um recorte entre formas de pensar e formas de sentir, ou
seja, entre consciências e sensibilidades, hierarquizando e delimitando as fronteiras de
cada uma destas duas instâncias, hoje o sabemos e damos ouvidos, aos que concebem
embrenhar-se numa interpretação que use as ferramentas teóricas e metodológicas não
para fragmentar os discursos, para tomar-lhe apenas o racional e lógico de seu conteúdo,
mas para captar as misturas e os pontos de fusão entre pensamentos e sentimentos.
É importante pontuar que existem três marcos essenciais na vida de Freyre nesse
período e que também acabam por dividir o próprio conjunto de textos que estamos
tomando como fonte para a pesquisa. O primeiro diz respeito a sua ida ao exterior para
iniciar sua formação intelectual de nível superior nas universidades de Baylor e
Columbia nos Estados Unidos. Em seguida, uma viagem de sete meses por algumas das
maiores cidades da Europa e por fim, seu retorno ao Brasil em 1923 que desencadeia a
ação cultural regionalista e tradicionalista. Destes três momentos, formam-se dois
grandes núcleos de textos. Os artigos Da Outra América e os Artigos Numerados.
As fontes que utilizamos para a realização desta pesquisa são a série de artigos
jornalísticos publicados por Gilberto Freyre durante o período de 1918 até o inicio de
1926 no jornal Diário de Pernambuco. No inicio os artigos eram publicados de maneira
esparsa, sobretudo durante o período que estava em Baylor e durante sua ida à Europa.
No entanto, de sua estadia de dois anos em Nova York e desde que retorna ao Brasil em
1923 os artigos passaram a ser publicados semanalmente. Essa documentação é de
extrema importância para a compreensão do universo intelectual e sentimental do autor,
ali estão colocadas impressões e expressões sobre uma diversidade de temas e é esse
conteúdo vasto e múltiplo que tornou possível o nascimento deste trabalho
monográfico. Em textos curtos e com uma escrita refinada, Freyre exercitava seu estilo
narrativo, mostrava seus posicionamentos políticos, exprimia suas preferências
estéticas, construía suas problematizações sobre o presente e acima de tudo elaborava
uma perspectiva singular sobre a relação que o mundo vivia com a intensificação
daquilo que se convencionou chamar por modernidade.
Todos os artigos se encontram no arquivo da Fundação Joaquim Nabuco, em
Recife-PE. Assim pude fotografar um por um, os 208 artigos que compunham o
universo no qual teria de mergulhar para realizar este trabalho. No entanto, para facilitar
a leitura da documentação, optei por trabalhar também com os dois tomos do livro
11
Tempo de Aprendiz1, publicado pelo próprio Freyre em 1978, contendo os textos de sua
primeira juventude. Porém, como se sabe, houveram algumas alterações em uns poucos
artigos, mudanças posteriores feitas pelo próprio autor, buscando apagar ou ressaltar
certos conteúdos contidos nos artigos. Nesse sentido, essa publicação de 1978 nos
serviu como suporte para facilitar a leitura e a coleta de citações, ao passo que sempre
que encontrávamos algo de interesse nos remetíamos para as fotos dos microfilmes
originais. Ao fazer isso, me certificava se no artigo selecionado havia alterações
posteriores ou se o texto estava na integra tal qual o original.
De sua vivência no exterior temos 52 artigos que compõem a série intitulada Da
Outra América, esse conjunto de textos serviu de base para a elaboração do primeiro
capítulo desta monografia. Ali encontramos passagens valiosas sobre a experiência
moderna que o Ocidente estava vivendo, tudo visto sob a perspectiva de um jovem
pernambucano que olhava com receio e desconfiança, mas também com encanto e
empolgação para a realidade moderna das cidades norte-americanas, ao mesmo tempo
que buscava na cultura estrangeira traços pitorescos que remetessem ao passado das
cidades e dos sujeitos que ali viviam. Dos outros 156 artigos foram extraídas passagens
elucidativas sobre a ação cultural e o pensamento político de Freyre, compondo assim
os outros dois capítulos deste trabalho.
A questão de problematizar osaudosismo contido nas imagens e discursos
elaborados pelo autor está conectada as atividades desenvolvidas no interior da base de
pesquisa do professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. Portanto, este trabalho participa
de uma operação historiográfica mais ampla, que é a de compreender a emergência
histórica de consciências e sensibilidades saudosistas no Brasil e em Portugal entre fins
do século XIX e início do século XX. Nesse sentido, a documentação também nos foi
generosa, pois em vários momentos Freyre explicita a questão do saudosismo de seu
pensamento e ação cultural e também dialoga com outros pensadores e movimentos
políticos que construíam suas bases a partir de uma necessidade de religação com o
passado. Como veremos, a atmosfera da época tornava possível que uma série de
sujeitos se vissem desemparados pela experiência da modernidade, o que os fazia buscar
nos elementos da vida social do passado os direcionamentos de suas ações no presente.
A figura do passado como mestre que guia os homens no presente aparecerá diversas
vezes nos escritos de Freyre e expressa seu modo particular de se relacionar com as 1 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Volume I e II. São Paulo. Ibrasa, 1978.
12
transformações do tempo. Mas essa dimensão particular, é na verdade social e coletiva e
diz respeito aos lugares sociais que ele e outros sujeitos ocupavam e a que
deslocamentos suas vidas e a vida social de seus espaços estavam sendo submetidas
pela experiência moderna.
O primeiro capítulo, Olhares da outra américa: Cidades, sujeitos e saudades,
representa uma tentativa de aproximação com o universo subjetivo do autor enquanto
vivia no exterior. A maioria dos artigos utilizados foram escritos enquanto ele vivia em
Nova York, cidade das mais modernas da época e esse encontro entre Freyre e a cidade
nos trouxe uma série de impressões singulares sobre o pensamento e a sensibilidade do
jovem estudante que via e dizia suas impressões sobre experiências que vivenciava,
sejam elas interpretações de filósofos e literatos ou relatos sobre seus passeios nos
parques urbanos, idas a museu e cafés, ou seja, por estarmos interessados em
compreender a subjetividade de Freyre, tudo nos foi de interesse. Mesmo todos os
outros artigos que não foram utilizados na escrita deste trabalho contribuíram
sobremaneira para nos situarmos diante dos traços de si que Freyre deixara em seus
escritos. Assim, este capítulo serve muito mais como uma apresentação de alguns de
seus pontos de vista sobre o que vivia no exterior, sobre sua relação com os fluxos
transformadores da modernidade e sobre como ele reagia a este processo. A questão da
reação é fundamental, pois é nesse impulso de reagir a tantas transformações e
inovações que iremos observar a existência de uma maneira especifica de cultivar a
saudade cultivando a si próprio na busca pelo estabelecimentos de contatos sensíveis
com o passado.
No segundo capítulo, O retorno do estrangeiro: ação cultural regionalista e
tradicionalista, buscamos compreender a emergência de sua ação cultural através de
seus escritos para o Diário de Pernambuco e de suas ações junto ao Centro Regionalista
e Tradicionalista do Nordeste, criado em 1924. Optamos por dar ênfase nas temáticas
que se tornaram centrais em seu pensamento à época, sobretudo no que diz respeito à
questão da defesa das árvores e da cozinha dos antepassados. Sabemos que outra
temática importante de sua ação logo ao retornar para o Brasil era a defesa da
linguagem arquitetônica do passado da cidade de Recife, num tempo em que a cidade
passava por inúmeras transformações urbanas. Contudo, consideramos ser mais
relevante para os objetivos deste trabalho tratar mais profundamente das árvores e da
questão da cozinha tradicional, pois estes conteúdos são pouco explorados pela maioria
13
dos estudos sobre o pensamento de Gilberto Freyre. Pensamos haver aí uma série de
metáforas e conexões importantes sobre a temática do saudosismo e do cultivo da
saudade que vemos brotar nos escritos de Freyre.
Por fim, o terceiro capítulo Saudosismo, política e outros possíveis se ocupa em
captar as conexões que Gilberto Freyre tecia com alguns movimentos políticos da
época, como o Integralismo Lusitano por exemplo. Neste capítulo iremos tratar de
relacionar o saudosismo do passado com a defesa de posicionamentos políticos
conservadores para o presente. Veremos um Freyre defensor da ortodoxia e da
intolerância ao mesmo tempo que segue seu projeto de construir as bases discursivas e
imagéticas do tradicionalismo nordestino. Pensamos ser de extrema importância captar
essas filiações políticas, pois em grande medida essa relação tende a se perder com o
tempo e o que sobrevive, parece estar desconectado dessas perspectivas. Assim, nosso
intuito foi trazer para a superfície o fundo político do saudosismo freyreano da década
de 20. Além disso, o capítulo também se propõe a analisar dimensões mais
indeterminadas da relação saudosa que Freyre tecia com o mundo, como a relação que
estabelecia com sua infância e com o tempo de seus avós. Veremos que a saudade de
Freyre é possível de ser situada justamente no tempo dos avós, em meados do século
XIX e desse saudosismo emergem uma série de questionamentos sobre a geração de
seus pais e acima de tudo sobre o papel que a juventude deveria desempenhar na década
de 20, momento fundamental na construção da identidade nacional e regional.
Além dos artigos publicados no Diário de Pernambuco entre 1918 e 1926, outro
conjunto documental foi fundamental para a realização desta pesquisa. Se trata da
correspondência entre Gilberto Freyre e seu amigo e conselheiro intelectual Oliveira
Lima. As cartas estão publicadas no livro organizado pela historiadora Ângela de Castro
Gomes e nos trouxeram importantes contribuições para a escrita e problematização da
pesquisa, sobretudo porque progressivamente Lima foi se tornando cada vez mais
intimo de Freyre e assim as cartas possuem um tom de bastante amizade entre ambos e
nos ajudaram a pensar o universo do autor.
Do ponto de vista teórico e metodológico, ou seja, do ponto de vista da rede
conceitual que perpassa a escrita e a análise das fontes neste trabalho, se trata de
umaoperação historiográfica que se situa na intersecção de uma história cultural que
procura investigar a dimensão histórica das sensibilidades, o que acabou nos lançando
numa tentativa de traçar uma cartografia histórica do pensamento e da sensibilidade de
14
Gilberto Freyre entre 1918 e 1926. E foi desse desejo cartográfico de investigação,
ocupado em compreender as trajetórias que os discursos produzem e as linhas de vida
que os originam, ou seja, interessados na relação tortuosa entre linguagem e vida fomos
progressivamente percebendo que nos escritos de Freyre se encontra latente a questão
de um cultivo da saudade. A ideia do título desta pesquisa nos veio a partir da leitura do
livro A capital da saudade, do historiador Raimundo Arrais, onde ele diz que
A saudade, assim, não era uma singularidade de temperamento de um ou outro
recifense. Tampouco foi um sentimento elaborado por Gilberto Freyre e irradiado
dentro de seu círculo de prestígio. Esse era um sentimento revelado por muitos e
em grande medida cultivado, tendo-se convertido em mote literário que nutriu
muitas páginas de poesia e prosa que tiveram o Recife como tema.2
Portanto, compreender a questão da saudade no pensamento e na vida do então jovem
Gilberto Freyre tem a ver com duas questões fundamentais. A primeira diz respeito a
tratar deste sentimento como parte constituinte de um movimento coletivo do qual o
próprio Freyre e os demais sujeitos eram antes efeito das relações de poder e dos
processos de subjetivação do que propriamente criadores. Contudo, a questão da criação
aparece logo em seguida, pois a saudade transformava-se em estilo de vida, em arte de
existência onde Freyre, ao seu modo, nutria-se de referências que alimentavam suas
saudades, ao passo que construía seu próprio estilo de ver e dizer o mundo a partir dessa
singular maneira de se relacionar com as transformações do tempo.
Acreditamos não ser preciso continuar a introduzir esta pesquisa, pois ela mesmo
já é por demais introdutória e apenas expressa uma tentativa de interpretação histórica
sobre os primeiros conteúdos e expressões do pensamento de Gilberto Freyre e os
saudosismos que o acompanham. Desejo uma boa travessia ao leitores desta monografia
e espero que este trabalho contribua de alguma maneira para aqueles que se interessam
pela vida e pelo pensamento de Freyre e também pela atmosfera social, política e
cultural da década de 20 do século passado.
2 ARRAIS, Raimundo. A capital da saudade. Recife. Edições Bagaço, 2006 p 15
15
OLHARES DA OUTRA AMÉRICA: CIDADES, SUJEITOS E SAUDADES
O homem morre deixando um pouco de si próprio em folhas de papel3
Gilberto Freyre
CARTOGRAFANDO CIDADES
É preciso começar. Mas de onde partir? A trama de relatos e impressões composta por
Gilberto Freyre em suas crônicas para o Diário de Pernambuco entre 1918 e 1926 se
apresentam ao primeiro olhar como um emaranhado de variações e perspectivas sobre
uma infinidade de temas suscitados a partir das experiências de um estudante brasileiro
imerso na cultura norte-americana por cerca de 5 anos. Culinária, Arquitetura, Política,
Decoração, Religião, Urbanismo, Filosofia, História, Teatro, Música, Literatura e uma
vasta composição de percepções sobre temas que aguçavam sua curiosidade intelectual,
estética, política, além de opiniões e explanações sobre situações da realidade social do
Brasil, de Pernambuco, EUA, Europa. Se não de tudo, o certo é que sobre muitas coisas
se dizia, em artigos destinados a sociedade pernambucana do início do século XX. O
fato é que os acontecimentos do cotidiano de Freyre foram o grande motor de seus
escritos jornalísticos durante esse período, sua presença no texto é marcante, sendo ele
mesmo sempre a testemunha ocular do próprio relato que engendra, muitas vezes fruto
de suas experiências cotidianas ou na defesa das ideias que norteavam seu modo de
pensar e sentir4. Daí a relevância de estudá-los a partir das problemáticas propostas. São
fonte rica para compreendermos parte da realidade histórica vivida por este sujeito e sua
relação com as transformações de sua época. Há um estilo em seus escritos, onde
predomina o olhar que valoriza as nuances dos acontecimentos. Cores, sabores, cheiros
e formas confluem em seus textos, formando um território onde pensamentos e
sentimentos são grafados. Na sua escrita jornalística prevaleceu a concepção inglesa de
Lead.
O principal questionamento que guia este primeiro capítulo é o de compreender em que
aspectos o pensamento e a sensibilidade deGilberto Freyreincitam concepções saudosas
3 FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Artigos publicados na adolescência e na primeira mocidade do autor(1918-1926). Ibrasa. São Paulo, 1978. p.193. 4 Sobre o estilo de escrita de Gilberto Freyre em sua juventude ver a terceira parte do livro: NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória, o ensaio. UNESP. São Paulo, 2011 p. 271-373.
16
da realidade social e a partir disso mapear tais expressões em seu discurso e ação
cultural, tomando o saudosismo como elemento fundamental para a construção de suas
maneiras de ver e dizer seu tempo e portanto, a força motriz para a produção de suas
representações espaciais5. Neste primeiro capítulo a ideia é trazer das crônicas escritas
para o Diário de Pernambuco enquanto vivia no exterior, ou seja, entre 1918 e 1923, um
pequeno conjunto de expressões, percepções e impressões que nos mostre traços
marcantes de uma visão de mundo saudosa e assim realizar uma microarqueologia de
suas práticas discursivas6. No entanto, é preciso conectar tais traços de seu discurso com
as relações sociais, políticas, econômicas e culturais de sua época, entendendo que
vivia-se em um período de considerável mutação das relações de poder existentes.7
Nos termos do teórico e urbanista Paul Virilio, até meados do século XIX a sociedade
estava fundada no freio, assentada em relações de força que prezavam pela permanência
e estagnação das estruturas de poder. Seria na segunda metade do mesmo século que
uma ruptura fundamental se estabeleceria, a saber, a produção de meios para favorecer a
velocidade. Segundo Virílio, arevolução da Revolução Industrial foi ter tornado
possível a emergência de máquinas capazes de acelerar o ritmo não só das produções
industrias mas também da produção social, da vida em sociedade. Passava-se a existir
no e para um mundo que progredia em velocidade, rompendo antigas fronteiras,
encurtando distâncias, transmitindo informações com mais rapidez, urbanizando-se e
modernizando-se. O motor a vapor e posteriormente, o motor a explosão, teriam
provocado transformações consideráveis na sociedade.O ritmo da vida cotidiana
ganhava novos impulsos. Para o urbanista francês o que se deu foi uma revolução
dromocrática8.É o advento do que se convencionou chamar em outros termos de
modernidade. Progresso se torna um conceito central desde meados do século XIX,
instaurando com muita intensidade as relações da experiência capitalista. Além disso,
politicamente as democracias ganhavam força no início de século XX e seus valores
correspondia a uma ruptura fundamental com as antigas tendências aristocráticas de
organização social. Dessa imersão do mundo Ocidental numa cultura que cada vez mais
5 Ver o capítulo ´´ Espaços da Saudade`` em: ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Editora Corez. 2009 p. 78-186. 6 Sobre o método arqueológico ver: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. 7 ed. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2008. 7 FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo. Graal, 1984. 8 Sobre o conceito de dromologia e o estudo dos efeitos da velocidade na sociedade moderna ver: VIRILIO, Paul. Guerra Pura. Militarização do cotidiano. Rio de Janeiro. Ed. Brasiliense, 1981.
17
destituía de relevância antigas estruturas sociais emergiram múltiplas formas de reagir
criticamente às rupturas e às acelerações suscitadas na modernidade. No caso do
contexto histórico do qual Gilberto Freyre advém, diríamos que tal situação se
expressou na substituição dos engenhos de cana de açúcar pelas usinas. Desse
deslocamento expressa-se o nascimento de uma nova rítmica para a sociedade
pernambucana, gerando consequentemente a flutuação econômica, política e cultural
das antigas elites. Lembremos que Freyre era neto de um antigo dono de engenho
ehomem de posses de Pernambuco e sua família destituiu-se de muitas bens a partir do
estabelecimento da indústria da cana no Recife. Pode-se dizer que amodernidade lançou
a família Freyre num cenário mais turbulento e incerto, muito diferente da vida antes
das usinas, onde a permanência numa condição social estável era muito mais segura
para as famílias envolvidas na economia açucareira.
Cultivar modos de pensar e sentir a realidade a partir da saudade do passado parece ter
sido um caminho que muitos sujeitos traçaram, dentre eles Gilberto Freyre. Mas as
coisas não são simples como parecem e exigem do historiador um exercício crítico que
procure não ancorar a reflexão em meras relações causais. Entender a complexa relação
que a subjetividade do autor traçava com sua época a partir de artigos semanais para o
Diário de Pernambuco não é das tarefas mais simples, pois a profusão de assuntos e
questões levantadas exigem que saibamos cartografar em suas pequenas percepções,
nuances de um modo de pensar, sentir e agir saudoso, muitas vezes dito através de
apreciações estéticas de paisagens, na defesa de práticas políticas do passado ou em
elaborações críticas sobre algum elemento aparentemente banal do cotidiano de sua
época, mas sobretudo através da defesa de um modo de pensar, sentir e agir no presente.
Sendo assim, cabe perguntar: de que se tratava essa saudade e como compreender seu
advento enquanto fenômeno coletivoe histórico? E de que maneira esse saudosismo
atravessa sua visão de mundo sobre dados temas, como as cidades e os novos hábitos
cotidianosda cultura ocidental? O fato é que para responder tais perguntas é preciso
escolher um ponto de partida, algum elemento que garanta uma primeira aproximação
entre nós e ele. E como mergulhar nesse ´´ pouco de si próprio`` deixado em folhas de
papel mais parece com um cair de paraquedas numa cidade desconhecida, numa terra
ainda não visitada, decidimos partir das reflexões do autor acerca das cidades que
conheceu enquanto morava nos EUA e em sua viagem pela Europa. Seus olhares e
dizeres sobre os caminhos que atravessou serão nosso ponto de partida. Dos olhares
18
sobre as cidades partiremos para as suas percepções sobre as pessoas que ali viviam e
seus hábitos e costumes.De uma cartografia)das cidades para uma cartografia das
subjetividades9.
Sua ida ao exterior tinha por finalidade sua formação intelectual, levando em
consideração tanto a vida acadêmica que experimentou nas Universidades de Baylor-
Texas e Columbia-New York quanto as viagens, as idas a museus, teatros, passeios, o
contato com pessoas de outras culturas e etc. A própria experiência da vida cotidiana no
exterior era entendida por Freyre, sua família e amigos como Oliveira Lima, como um
momento importantíssimo para sua formação. Nesse sentido, vemos em Freyre um
observador atento aos aspectos das cidades que conheceu. Sua leitura dos espaços
urbanos de cidades norte-americanas e europeias sugerem muitas reflexões sobre a
própria subjetividade do autor, pois na escrita está contido o seu próprio recorte
sensível, crítico e estético das paisagens que observava, muitas vezes influenciado por
autores que ele vinha estudando ou admirava10. As cidades, com seus parques, ruas,
museus, mercados, sujeitos, serão consideradas aqui as grandes paisagens, o território
primeiro onde mergulharemos para extrair relações entre a produção narrativa de
Gilberto Freyre e os acontecimentos que lhe afetaram, ao ponto de se tornarem texto e
portanto, inscrição subjetiva de si próprio ao falar do outro.
Dos quase cinco anos que morou nos EUA, de 1918 a 1923, somam-se uma série
de descrições e impressões das cidades que Freyre conheceu. Tanto na série de
artigosDa Outra América como nas correspondências entre ele e Oliveira Lima11.Em
Waco, onde estudou por 2 anos na Universidade de Baylor, Freyre constrói amizade
com seu então professor, Dr. Amstrong, que lhe falava sobre a importância cultural das
viagens. Conhecer lugares, paisagens, experimentar sabores, climas, conversar com as
pessoas da rua, observar, aprender com aspectos da vida comum, cotidiana. Para o 9 A ideia de uma prática analítica cartográfica é inspirada no livro da psicanalista e filósofa brasileira Suely Rolnik. ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre. Ed. Sulina, 2006. 10 Sobre as influências literárias e filosóficas de Gilberto Freyre durante o seu período de formação no exterior entre 1918 e 1923, sobretudo no que diz respeito aos autores do período vitoriano, ver: PALLARES BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre, um vitoriano nos trópicos. São Paulo. Unesp, 2005. 11Não se deve esquecer que para Freyre, Lima acabou se tornando uma espécie de conselheiro intelectual e com o tempo, amigo para assuntos mais íntimos, sobretudo durante o período em que morou em Nova York na década de 20. Nesse sentido, a compilação de grande parte da correspondência entre Gilberto Freyre e Oliveira Lima foi fundamental para a realização desta pesquisa. Sobre o livro, ver: CASTRO GOMES, Angela de. Em Família: A correspondência de Gilberto Freyre e Oliveira Lima. São Paulo. Mercado das letras, 2005.
19
professor viajar era uma experiência intensa de expansão dos horizontes e ferramenta
importante para apurar o senso crítico12. Podemos dizer, na esteira de Fernando
Nicollazi, que o jovem estudante se via enquanto um viajante cultural no seu modo de
atravessar e dizer os espaços que conhecia. Para o historiador, viajando se reeducaria o
olhar:
A viagem, assim, permite ao viajante a mensuração de espaços: ao mesmo tempo
que ela amplia em extensão e em substância, os limites do que até então era
conhecido, cria também as condições para que o olhar que viaja estabeleça relações
e compare as distâncias percorridas.13
Nos termos do próprio Gilberto Freyre, em carta escrita a Oliveira Lima em 1922, ele
nos fala sobre sua relação com as viagens e como se reconhece neste processo. Diz-nos
Freyre que:
Fiel ao meu plano de viajar como um ´´ gypsy`` procuro os contatos mais
diversos(...)e vou compreendendo, ou antes, procurando compreender, os pontos de
vista. Compreender, não é este o grande sport intelectual, o jogo de xadrez que nos
diverte e move as ideias durante esta noite de inverno que é a vida.14
Como se sabe, a influência recebida pelo ensaísmo inglês desde a mocidade, trouxe para
suas narrativas as experiências do cotidiano como substância fundamental para a
compreensão de uma dada cultura. As paisagens gestadas por Gilberto Freyre em sua
escrita, parecem ser elaboradas através duma linguagem afetiva e sensorial que
considera os elementos do dia a dia substância delineadora dos traços de uma dada
paisagem, dando-lhe características singulares, pitorescas.
Das cidades norte-americanas, a Nova York da década de 20 é a que mais possui
relatos. Lá, Freyre morou por 2 anos e meio, após ter vivido em Waco no Texas, onde
estudou na Universidade de Baylor. Em Nova Yorkestudava na Universidade de
Columbia, tornando-se Mestre em Artes com a tese ´´Social Life in Brazil in
themiddleofNineteenthCentury``, um estudo sobre a vida social do Brasil durante o
segundo reinado, num período que remete ao tempo de seus avós. Para o jovem
12 Segundo Freyre, a pátria do prof. Amstrong era a literatura. In: CASTRO GOMES, Angela de. Em Família: A correspondência de Gilberto Freyre e Oliveira Lima. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p. 54 13 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória, o ensaio: sobre casa grande e senzala e a representação do passado. São Paulo. Unesp, 2011 p. 290 14 Carta escrita em 30/08/1922, publicada em : CASTRO GOMES, Angela de. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p. 147
20
intelectual estudar a época de Dom Pedro II era se debruçar sobre uma das fases mais
gloriosas da história do Brasil, as fontes utilizadas para a sua pesquisa eram em grande
medida relatos de viajantes estrangeiros que conheceram e ao seu modo, escreveram
suas impressões sobre a vida social nos trópicos, como Fletcher, Kidder, Radiguet,
Scully, entre outros. Além disso, escrevia semanalmente para o Diário de Pernambuco e
também era redator do periódico pan-americano El Estudiante. Dessa fase de sua vida
no exterior a escrita de artigos para o Diário é bem mais intensa, muito diferente dos
textos esparsos que publicou durante os anos de Baylor ou enquanto viajava pela
Europa. Recebia 10 mil reis por publicação, o que contribua para suprir suas despesas
mensais na movimentada cidade em que vivia.Provinciano encontrado na maior das
cidades, minha situação é psicologicamente a mesma de um menino guloso diante de
enorme travessa de canjica de pudim: sem saber por onde começar15 .Impressões de um
recém chegado numa das cidades mais cosmopolitas da época. Por mais que já vivesse
nos EUA desde 1918, as diferenças entre o Texas e Nova York eram notórias. Indo
estudar em Columbia, ele ´´mergulha no tempo vertiginoso da modernidade, que
diariamente cria formas novas e apresenta novidades``16. Primeiramente chama-lhe
atenção as casas velhas e seu ar medieval, além das árvores, com seus ares acolhedores.
Bairros árabes, judeus, chineses, latinos, cada um com suas cores, sabores, dialetos.
Aquilo que possuísse as marcas do tempo era digno de exaltação. A duração era
entendida como propulsora de certa nobreza que só as coisas realmente velhas poderiam
oferecer ao espírito humano, muito diferente das construções novas que seriam
estruturas vazias, desprovidas de passado e portanto sem vida. Na moderna Nova York
bastava ´´parar numa esquina e observar(...)não falta aqui, ao curioso intelectual, algo
de novo que mirar``. Cidade como texto17, lida através de seus sinais e vista sob as
lentes da subjetividade, que traça sentidos para o que se vê e indica as cartografias
sensíveis de quem se diz ao escrever18.
A arquitetura moderna, urbana, é alvo de críticas. Numa passagem bastante
elucidativa Freyre nos fala das arrogâncias dos Skycrapers nova- iorquinos, prédios
gigantes, vistos como ´´monstros`` , ´´ feios``, ´´ arrogantes``. A insolência destas
15 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 90 16 LARRETA, Enrique Rodriguez; GIUCCI, Guillermo. Gilberto Freyre, uma biografia intelectual. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2007. p. 102. 17 Ver: BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo. Martins Fontes, 2007. 18 Para o historiador Michel de Certeau, ´´ fazer sentido`` é na verdade impulsionar movimentos. In: CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano, artes de fazer. Petrópolis. Vozes, 1996. p. 184
21
construções tornaria a paisagem artificial, uma espécie de engenharia postiça
desvinculada das construções do passado da cidade e da paisagem natural que a
compõe. Numa metáfora, o crítico dos prédios cinzas chega a dizer que olhando a
cidade do alto de um desses arranha céus, Nova York mais pareceria uma cidade de
brinquedo e não uma cidade de gigantes, como comumente se dizia na época. Deus é
convocado e segundo os seus olhos, toda aquela infinidade de prédios não passaria de
um pontinho negro. Nesse jogo de perspectivas, a sensação que fica é de que os
sucessos da engenharia afrontavam uma dada ideia de Divino, pois elevara o homem a
aturas nunca antes miradas, a não ser em escaladas nas obras da natureza, que seriam
para Freye, obras de Deus19. A modernidade abisma, encanta, ofende. Desse zigue-
zague de sensações brotam sarcasmos, elogios, críticas. Sua relação com o mundo é
paradoxal.
De fato, Freyre preferia as construções velhas. Em viagem para Washington, indo
ao encontro de Oliveira Lima e D. Flora , ele escreve sobre a novíssima cidade de
Washington:
Prefiro(...) às cidades novas as velhas. Isto pelo mesmo motivo porque prefiro a
tagarelice de uma mulher a Balzac(femme á 30 ans) ao de uma criaturinha a
Bernadim Ribeiro ( menina moça). O tempo poetiza as coisas e as pessoas.20
Isso não o impede de se encantar pela capital norte-americana, mas ressalta que por ser
esta, uma cidade muito nova, falta-lhe tradição em suas construções. O cheiro do verniz,
as casas recém pintadas com tinta fresca, tornam as cidades novas estúpidas, assim
como os jovens de 20 e poucos anos21.Falta nas casas e cidades novas o mal assombro
dos antigos moradores, ou seja, algum tipo de relação mnemônica que institua ligações
entre o indivíduo no presente e o passado dos lugares, das pessoas que por ali passaram.
A ausência de cicatrizes temporais nas espacialidades reflete o desencantamento do
mundo e Freyre denunciava essa possibilidade de inexistência das marcas de outros
tempos como um elemento perigoso para a saúde social de uma cultura. As novas 19 Da mesma Nova York, do alto de outro prédio, Michel de Certeau afirma que ´´ aquele que sobe até lá no alto foge à massa que carrega a tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. Ícaro, acima dessas águas, pode agora ignorar as astúcias de Dédalo em labirintos móveis e sem fim. Muda num texto que se tem diante de si, sob os olhos, o mundo que enfeitiçava e pelo qual se estava possuído. Ela permite lê-lo, ser um olhar solar, um olhar divino. Exaltação de uma pulsão escópica e gnóstica. Ser apenas este que vê, eis a ficção do saber``. Idem. p. 170 20 FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol. I. São Paulo. Ibrasa, 1978. P.140 21CASTRO GOMES, Angela de. Em Família: A correspondência de Gilberto Freyre e Oliveira Lima. São Paulo. Mercado das letras, 2005. p. 101. Carta escrita em 23/07/1921
22
construções seriam formas vazias, destituídas de passado para lhes preencher.
Perspectiva que nos remete ao desencantamento de um Walter Benjamim, também
atento as imposições paisagísticas da modernidade ao fazer críticas as ´´cidades vidro``
de Scheerart e aos designs desenvolvidos pela Bauhaus. O escritor alemão observa um
sintoma de decadência cultural na criação de espaços onde se torna difícil deixar rastros
temporais22. Voltando a Freyre, sua cartografia das cidades une-se a sensibilidade
paisagística para criticar todo tipo de forma vazia, mecânica e em contrapartida elogiar
as formas grafadas com as marcas de outros tempos.
Mas o que desperta o encanto do jovem estudante por Washington? Segundo ele, as
árvores. Sobre a importância das árvores para o pensamento e ação de Freyre trataremos
no segundo capítulo. Por hora gostaríamos de salientar sua apreensão sensível da
paisagem através da visão das árvores na capital americana. Lá os arvoredos ajudam a
envelhecer a nova cidade, amolecendo a rigidez de sua oficialidade governamental. O
verde na paisagem garante uma fisionomia tranquila ao espaço. Os salgueiros de
Speedway, as árvores do bairro comercial. A constatação da beleza arbórea
experimentada em Washington o faz tecer críticas ao Recife, onde os governantes não
demonstravam respeito para comessas verdadeiras testemunhas do passado23. Da
grande maioria das cidades que visitou há alguma reflexão em torno das árvores lá
encontradas. O bairro do Brooklin, por exemplo, o emociona devido a beleza que salta
aos olhos ao notar a unidade que se estabelece entre o arvoredo e a paisagem
arquitetônica dos palácios – florentinos, manuelinos, renascentistas24. Pelas suas
descrições é possível constatar que durante o período que viveu nos EUA, estar em
contato com a natureza o tranquilizava de suas crises nervosas, sobretudo no período
que estudava em Columbia. Saudades da família e do Recife seriamas causas de suas
ansiedades, além é claro, do próprio ritmo da cotidiano moderno experimentado em
Nova York, sentir-se ansioso era algo não apenas individual mas estava diretamente
relacionado com os novos estímulos à sensibilidade moderna, como bem salientou o
historiador Peter Gay25. Lhe interessava o estudo dos efeitos das cores na subjetividade
22BENJAMIM, Walter. Magia e técnica. Arte e política. Rio de Janeiro. Editora Brasiliense, 1985. p. 118 23FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol. I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 136. 24FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol. I. São Paulo. Ibrasa, 1978.p. 232 25 Segundo o historiador americano ´´Na altura de 1860, alguns psiquiatras estavam prontos a adotar a posição extrema de que a própria existência da civilização moderna produz o nervosismo``.In:GAY, Peter. O século deSchnitzler – A formação da cultura de classe média. São Paulo. Companhia das letras, 2002 p.151
23
e o verde das árvores atuaria na psicologia dos indivíduos acalmando-os. Nessa época,
suas idas ao Lake George geravam momentos de sossego, segundo ele, necessários para
o seu cotidiano citadino de homem de letras.
Em agosto de 1921 viajou para o Canadá e sobre suas impressões de Montreal,
escreveu artigo para o Diário: “Curiosa cidade. Montreal. Francesa, inglesa, americana.
Raramente ela mesma(...) E a mente tateia à procura de uma generalização que foge”.
A mistura de elementos oriundos de outras culturas causa a impressão de uma cidade
sem cara própria, sem aquilo que ele nomeia, por influência inglesa, de ´´cor local``. Faz
elogios aos belos parques públicos, bondes, prédios antigos. Apesar de não ser
riquíssima em matéria de arquitetura, Montreal não deixaria a desejar, isso porque suas
igrejas garantem a riqueza da paisagem. St. James, a gótica St. Patrick, NotreDame. Se
na modernidade os tons locais da paisagem são de difícil identificação, a evocação do
passado lhe serve como gatilho que dispara elogios ao tempo dos gentis senhores
canadenses. Olhando a estátua de Paul de Chomédy, figura emblemática dos tempos da
colonização do Canadá, Freyre se remete com saudade aos tempos do tilintar de
espadas, dos carros de boi e rebrilhar de ouros e pratas nessa cidade que no século XX
poucoconservarados elementos pitorescos de seu passado, lembrando que o conceito de
pitoresco é constantemente utilizado para identificar algo de local, de tradicional, de
próprio na paisagem e nos costumes das cidades e dos sujeitos. A evocação ao Canadá
do século XVII e ao charme senhorial de seu cotidiano finalizam o artigo para o Diário
e nos faz conhecer um pouco mais sobre as nuances do modo de pensar freyreano. Do
ponto de vista estético prevalece o gosto pela vida senhorial,do ponto de vista político
prevalece uma visão aristocrática do mundo, os hábitos que remetem a uma vida
arraigada nas estruturas anteriores ao capitalismo, sendo o colonizador figura elevada
em importância, destemido, ´´ lindo como um deus``. Os símbolos da história colonial o
deleitam muito mais que os símbolos da modernidade urbana.
Durante os sete meses em que viajou pela Europa, escreveu muitas cartas a
Oliveira Lima, diplomata brasileiro que também possuía formação intelectual no
exterior e que apreciava escrever sobre as cidades que visitava, publicando alguns livros
de viagens a países como Argentina e EUA, lidos e elogiados por Gilberto Freyre.
Segundo Lima, tanto ele como Freyre possuíam uma semelhança fundamental: a
formação intelectual no exterior. Assim ele diz:nossa educação se fez um pouco distante
24
dos meios espirituais brasileiros26. A arquitetura das metrópoles europeias permeava os
diálogos. Em agosto de 1921, em Paris, o jovem comenta sobre os encantos que as
coisas velhas lhe causavam: Saint-Chapele, NotreDame, Saint Severin, Saint Suplice, as
velhas ruas, o bom Paris medieval27. A parte moderna da capital francesa lhe soava
banal, horrorosa, apesar da cidade ser, segundo ele,a mais harmoniosa quando o assunto
é arquitetura. A Torre Eiffel, construída para a comemoração do centenário da
Revolução Francesa em 1889, símbolo da engenharia moderna, lembrava, aos olhos
críticos de Gilberto, apenas um esqueleto de bicho fóssil28. Os empreendimentos
modernos afetavam sua percepção sobre os rumos do presente de maneira negativa,
buscar nas cidades tudo que remetia a outras épocas acalentava suas ideias de intelectual
saudosista e crítico da modernidade. Apesar das banalidades modernas, Paris se
apresentava como grandioso museu a céu aberto, repleta de construções que mantinham
viva a presença do passado na realidade social do presente.Como veremos adiante,
preservar as antigas construções seria uma importante iniciativa tomada por Freyre após
seu retorno ao Brasil, muito inspirado pelo que viu acontecendo em cidades como Paris
e posteriormente em Nuremberg.
Do ponto de vista intelectual, a Alemanha lhe causou boas impressões, um
verdadeiro laboratório onde novas criações artísticas afloravam. Encanta-se pela
linguagem artística do teatro expressionista. Quanto a capital alemã, dizia ser horrorosa
a arquitetura de Berlim e nada mais. É importante ressaltar que sua impressão está
relacionada ao que essa cidade representava para a modernidade europeia. Ainda na
segunda metade do século XIX o escritor francês Victor Tissotobservava que o que
Berlim oferecia aos seus visitantes era completamente novo. Uma cidade que
expressava dinamismo e transitoriedade, onde seus habitantes pareciam fascinados com
a ideia de urbanismo e tecnologia. Cidade que não possuiria a magia de Paris, mas que
encanta pela sua dinâmica própria, singular. Segundo Tissot, nunca será uma capital
como Paris, Londres ou Viena29. Freyre visitou Berlim 48 anos depois da visita de
Tissot e no intermezzo desse período temos a Primeira Guerra Mundial, no entanto,
cabe ressaltar que sua impressão está alicerçada numa visão crítica as paisagens urbanas
26 Carta escrita em 21/10/1921 por lima. Publicada em: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p. 113 27 Publicado no Diário de Pernambuco em 18/08/1921. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz Vol. I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 145 28 Idem p. 153 29 EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera. Rio de Janeiro. Rocco, 1991 p.104-105
25
intensamente modernas em seus traços, tal qual a capital alemã. Andar por lá era se
defrontar com uma série de valores modernos, desde arquitetura até os hábitos sociais.
Suas poucas palavras sobre Berlim parecem ressaltar sua sensibilidade mais aguçada
para se deixar afetar pelas paisagens que remetem as culturas anteriores à intensa
urbanização do século XIX.
De seus dias em Nuremberg temos uma série de elogios ´´Encantou-me logo
Nuremberg com seu ar medieval e suas gordas torres``, ´´ Num instante me enamorei do
lugar``30. Cidade onde as indústrias fabricavam brinquedos e as caminhadas pelas ruas,
olhando as vitrines repletas de pequenas criaturas, ativavam a memória de um Freyre
criança que brincava com soldados de chumbo. A saudade da infância é tema recorrente
nos escritos de sua juventude, no terceiro capítulo deste trabalho nos ocuparemos de
compreender melhor essa relação.Predominava na paisagem da cidade alemã, as
construções medievais góticas. Castelos, arcos, torres. Cidade de passado glorioso, de
apogeu econômico e cultural, mas que com a Guerra dos Trinta Anos e a descoberta de
novas rotas marítimas declinou acentuadamente a partir do século XVII, se reerguendo
com a industrialização em meados do século XIX. Durantes aqueles dias, Nuremberg
corporificou os deslumbramentos dos livros de histórias da carochinha, apreciados por
Freyre na infância. Aguçou suas saudades de menino, quando vivia num modo de
existência que, agora jovem, seencontrava ameaçado pelo desenvolvimento das usinas e
pela consequente expansão da culturaburguesa e seus ´´newlyrich``.
Parece ter sido a Inglaterra, o país em que Gilberto Freyre melhor se aclimatou
culturalmente. Em Oxford foram mais de dois meses de estadia. A proximidade
intelectual que o jovem escritor possuía com literatos do período vitoriano já foi
bastante explorada pela historiadora Pallares-Burke. O pensamento decadentista, crítico
a modernização da vida social e declaradamente nostálgico em relação ao passado e em
vários sentidosantivitoriano,contribuiu enormemente para a sua formação intelectual.
Não só o pensamento mas os modos de existência cultivados na cultura inglesa o
fascinavam. A vida de estudante em Oxford tinha ares de nobreza, o dia a dia remetia a
uma espécie de aristocracia intelectual que amava o conhecimento e vivia em suas
próprias fronteiras existenciais. Em Londres, o tempo dos avós é novamente convocado,
não como reminiscência da vida de criança, mas para celebrar a literatura inglesa e
30 Carta escrita em 16/10/1922. Publicada em: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p.238
26
colocar muitos de seus nomes em sua árvore genealógica espiritual, seus avós eram
Oscar Wilde, William Morris, LafcadioHearn, Walter Pater, William ButlerYeats, entre
outros. A grandiosidade das Igrejas e seus vitrais, o cortejo do príncipe herdeiro, mas
sobretudo a temperança e equilíbrio do inglês traziam a sensação de uma profunda
familiaridade com a cultura britânica. A composição de uma vida social capaz de
manter em equilibro a tradição monárquica mesmo em tempos de expansão das
repúblicas democráticas, não pode ser esquecida. Crítico ferrenho dos valores
instaurados pelos ideais democráticos, em seus mais variados aspectos, Freyre sabia do
valor que a experiência britânica inspirava em seu modo de pensar e sentir. A
Monarquia remete às aristocracias e Freyre não negava sua simpatia pelas tendências
monárquicas tanto no Brasil como em Portugal. Daí sua admiração frente ao contexto
político da Inglaterra. Já em Lisboa, última das capitais europeias que visitou, escreveu
a Oliveira Lima falando sobre a tragicomédia política do momento ´´ A fraqueza da
República é evidente(...)Os melhores elementos parecem estar com os monárquicos e as
doutrinas de Charles Maurras estão encontrando eco entre as gerações novas. Ainda
bem!``31.
CARTOGRAFANDO SUJEITOS
Lendo o primeiro dos Artigos Numerados ( série de textos escritos por Freyre após
seu retorno ao Brasil) despertou-me a curiosidade sobre a análise do romance Palanquin
Dourado de Mário Sette32. No texto, Freyre comenta o descompasso do livro e portanto,
do estilo de seu autor. Haveria ali belas descrições da paisagem, das delicias da cor
local, a cidade e seus espaços todo o tempo muito bem caracterizados mas não ocorreria
o mesmo com o elemento humano. A psicologia dos homens aparece de modo anêmico
no romance de Sette, a linguagem dos homens soa artificial, pouco conectada a
realidade social que o autor se propôs a romancear. Muito bem, mas porque falo sobre
isso?
Seguiremos a sugestão dada por Gilberto Freyre para a continuação deste capítulo.
Não que aqui seja um romance, mas sua crítica a Sette inspira um recorte específico
para abordamos os artigos Da Outra América, pois nos mostra a própria visão do autor 31 Carta escrita em 26/01/1923. Publicada em: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p.166 32 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 245
27
acerca dos caminhos que a sua escrita parece percorrer durante esse período. Seus
olhares sobre as cidades, suas arquiteturas e paisagens é acompanhada de uma gama de
descrições sobre os hábitos e costumes dos sujeitos que ali viviam. O elemento humano
é parte integrante de sua escrita jornalística, há toda uma preocupação em mapear
pequenos comportamentos, amplas visões de mundo, hábitos que lhe incomodam ou
simplesmente práticas e costumes que por outros motivos merecem ser descritos ao
leitor de seus artigos, muitas vezes comparando hábitos do presente com outros do
passado. Dessa prática advém vasta reflexão em torno dos processos de
subjetivaçãoque a modernidade inspira, e o modo como Freyre adjetiva esses
movimentos do comportamento humano nos trazem para o centro de nossa problemática
neste capítulo: as impressões e expressões saudosistas que brotam em seu discurso
durante sua vivência no exterior. Aqui Freyre deixa de ser cartógrafo das cidades para
se tornar cartógrafo das subjetividades. A viagem em seus mapas continua.
Em setembro de 1919 uma primeira visão do povo americano: povo alegre, otimista,
tudo lhes parece bonito, sorridentes33. O americanismo, ou o modo de ser norte-
americano, se caracterizariam pela simpatia humana, tolerância mútua, otimismo e
bondade prática34. Visão um tanto quanto idealizada de um jovem viajante, que indica
uma tendência à produção de certas generalizações, hábito por ele mesmo criticado ao
falar dos mesmos americanos, que apesar de sorridentes desconheceriam a boa arte de
viajar. Pensam “que é inferior tudo que encontra diferente do que está acostumado a ver
na Broadway ou em Main Street``35.´´A terrível mania de generalizar! A terrível mania
de dar a um povo inteiro um rótulo ou um título!``36. No entanto, a vivência na cultura
americana ao longo de quase 5 anos despertou em Freyre uma série de olhares reticentes
e muitas vezes críticos em relação aos efeitos que os novos processos de subjetivação
geravam nas relações sociais.
Num artigo de tom bastante irônico, escrito na Nova York de 1921, Freyre tece
uma reflexão, em tom de médico social, sobre o hábito de falar ao telefone. Essa
doença, a ´´telefonite``, seria a mania dos americanos em querer resolver tudo através
do uso do telefone. ´´Execrável mania ou doença. Vem roendo como um rato a um
pedaço de queijo, o que resta ao cidadão dos EUA de fino, de amável, de século XVIII,
33 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 47 34 Idem p.117 35 Idem p.103 36 Idem p. 104
28
de gentleman-like e de lady-like37. As novas conexões que o uso do telefone passa
aestabelecer para a comunicação entre os sujeitos estaria contribuindo para a
progressiva desterritorialização de antigos modos de ser de uma cultura, afetando
diretamente a permanência de dados hábitos em vias de desaparecer. A arte gentil da
conversação em espaços públicos estaria ameaçada pelas novas vias tecnológicas da
modernidade. Em troca, Freyre via emergir na conversa pelo telefone uma fala
desencantada, sem relevo de expressão. E os moços de recados? Estariam se
extinguindo, pouco a pouco, enquanto isso indivíduos sem trabalho passavam a se
proliferar em Nova York...sem o telefone vários poderiam ser moços de recado. Sua
visão atesta certa visão nostálgica, saudosista e idealizadora da nobreza que o passado
inspira. Sob as lentes saudosistas de Gilberto Freyre este novo hábito, surgido em
meados do século XIX, teria estimulado a dissolução ou tornado irrelevantes antigas
maneiras comportamentais ou mesmo relações sociais do passado. E novamente surge a
questão do impacto da velocidade na vida social do século XX, tendo como efeito certa
sensação de que antigas formas de se relacionar estariam desaparecendo por completo.
Nesse período, tornou-se possível pensar e sentir uma espécie de fragmentação
irredutível entre o passado e o presente. Como afirma Gabriel Tarde, com a
modernidade a lágrima dos poetas e artistas passam a mostrar o valor do pitoresco local
sacrificado àsvantagens modernas:
Mas quando, sob os nossos olhos, a diversidade provincial dos usos, costumes, das
ideias, dos sotaques, dos tipos físicos, é substituída pelo nivelamento moderno,
pela unidade de peso e medida, de linguagem, de sotaque, de conversação
inclusive, condição necessária ao relacionamento, isto é, da ação de todos os
espíritos para o seu desenvolvimento mais livre e mais caracterizado, as lágrimas
dos poetas e dos artistas nos mostram o valor do pitoresco local sacrificado a essas
vantagens.38
As duas primeiras décadas do século XX são vistas aqui como momento de
intensas rupturas na cultura Ocidental. O advento da modernidade estabelece novos
centros de gravidade para a sociedade, deslocando antigos valores e costumes para
zonas periféricas do tecido social, o que implicou fissuras e rearranjos nas relações de
poder da época. As formas de vida oriundas da cultura burguesa e da intensificação das
relações capitalísticas estimularam novos delineamentos para as subjetividades, numa 37 Idem p.160 38 TARDE, Gabriel. Monodalogia e sociologia. E outros ensaios. São Paulo. Cosac Naiify, 2005 p.96
29
realidade cotidiana que parece ganhar velocidade para o progresso, desamarrando
antigos laços entre indivíduo e sociedade. Para o romancista e teórico literário inglês E.
M. Forster a velocidade era o fato mais importante da modernidade e seu efeito nas
subjetividades seria o desalojamento do sentimento de segurança39, a existência tornava-
se incerta e instável. O fato é que durante esse período parecer ter ganhado força uma
série de práticas e discursos que buscavam denunciar os perigos dessa aceleração
vertiginosa da civilização. A percepção de uma fratura com as conexões culturais do
passado promoveu a insurgência de diversas formas de reações críticas aos novos
paradigmas da sociedade, muitos promovendo a necessidade uma nova religação com o
passado, entendendo-o como alicerce para a existência psicológica e social dos
indivíduos. Basta lembrar que com o fim da Primeira Guerra Mundial, justamente no
ano que Gilberto Freyre partiu em viagem para estudar no Texas-USA, a reflexão
humana em torno dos limites e perigos de conceitos que vinham ganhando força desde o
século XIX é estimulada, como as noções de progresso e evolução, que davam as
potências ocidentais a garantia de uma superioridade diante das demais culturas. A
implosão interna gerada pela Guerra a partir de 1914 trouxe para o interior da própria
Europa o poder destruidor de sua cultura expansionista. Nesse sentido, nos encontramos
diante de crônicas jornalísticas escritas no pós Primeira Guerra, o que não quer dizer
que esse seja o centro dos relatos, mas sem dúvida parte integrante da atmosfera de um
período onde muitos intelectuais buscavam criar novos balizamentos entre as tradições
do passado e as demandas do presente. Tanto que no 8º Congresso Internacional de
Estudantes, realizado em setembro de 1919, no qual Freyre participa representando o
Brasil na cidade de Des Moine- Yowa, um panorama do mundo lhe é sugerido: Um
mundo meio nu, meio faminto, porém na sua hora de gloriosa dor e martírio, de
destruição e de reconstrução40.
Sobre as subjetividades femininas na modernidade Freyre é enfático. Em geral, lhe
desagrada o modo de ser da mulher moderna e acima de tudo, essas novas
subjetividades femininas que acabam por romper com antigos padrões, que para o
jovem, possuiriam muito mais charme que as recentes condutas da mulher. As rupturas
promovidas nas subjetividades femininas deveriam ser muito bem balanceadas para que
antigas condutas não perdessem sua relevância. Recém chegado, em 1919, Freyre
39 SENNETT, Richard. Carna e Pedra. O copo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro. Record, 2006 p.264 40 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 72
30
escreve a Oliveira Lima e diz que as ´´american girls`` são fáceis, acessíveis, o que
parece tirar-lhes a graça feminina. Sua perspectiva se apoia numa visão de que uma
certa distância, torna a relação homem e mulher mais sedutora41. Em outra carta, o
estudante pernambucano diz detestar as ´´ new woman``42. A mulher americana que
convém ao seu gosto saudosista é a do ´´ Old South``, como exemplo Mrs. Wilson,
mulher do então presidente americano Woodrow Wilson. A imagem da primeira dama é
usada como exemplo de feminilidade e respeito as tradições, nela não se encontra a
mulher irrequieta que quer destruir “as razões da biologia e da economia social” 43 .
Emerge nessa circunstância um relato histórico sobre a decadência da cultura sulista,
terra da aristocracia norte-americana que floresceu no passado mas que com a Guerra de
Secessão foi gradativamente perdendo os meios de permanecer ativa, sucumbindo ao
metodismo, à democracia e à onda de estupidez que se alastrou pelo sul44. Nesse artigo
que mais parece um elogio a vida política e pessoal do ex-presidente dos EUA, Freyre
finaliza o texto dizendo que tanto na Casa Branca como em casa, Wilson soube muito
bem governar, para o bem de todos e finaliza de maneira pontual ´´Não há delícia maior
para uma mulher do que ser governada pelo marido``45. Devemos levar em conta que na
década de 20 passava-se por uma expansão dos direitos das mulheres, que se tornava
cidadã e portanto sujeito ativo não só na vida familiar mas também na política. Freyre
não nega esse tipo de abertura, mas se coloca de maneira reticente em relação as
possíveis transformações culturais que esse tipo de ampliação pudessem provocar.
Ainda em 1919, ele deixa seu alerta ´´ Preocupar-se inteligentemente com os negócios
de seu país não fará a mulher menos carinhosa como mãe, menos terna como esposa,
menos diligente como dona de casa``46. Buscando compreender supostas diferenças
psicológicas entre os sexos, e para ele estas eram tão reais quanto as diferenças
fisiológicas, as mulheres seriam mais realistas, primitivas e selvagens que os homens,
sendo estes mais sofisticados e idealistas47. Diferenças que, segundo o autor, em nada
colocariam o homem num patamar superior. De todo modo, suas indagações sugerem a
busca peloestabelecimento de certas fronteiras entre os sexos e mais ainda, a tentativa
41 : CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p. 50 42 Idem p.119 43 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p.168 44 Idem p.168 45 Idem p.169 46 Idem p.57 47 Idem p.198
31
de distinguir comportamentos para melhor compreender os lugares sociais que tanto
homens quanto mulheres deveriam ocupar. A mulher moderna lhe inspirava dúvidas.
Suas críticas às novas tendências culturais parecem caminhar em vários sentidos,
sempre acompanhadas por certa defesa de maneiras mais aristocráticas, sob um ponto
de vista crítico a tudo aquilo que aproxime a sensibilidade do homem a práticas
consideradas por ele como esteticamente inferiores. No caso da dança e da música não é
diferente. A ausência de uma dada espiritualidade na moderna dança camelwalk e nos
compassos do Jazz não agradam seu aristocrático gosto. ´´Reparem o nome das danças
americanas. São nomes de animais desgraciosos, vulgares, proletários``48. A figura do
proletário emerge como alvo de sua crítica para adjetivar as danças modernas, este
sujeito que é fruto das relações de poder do capitalismo industrial aparece como
representante da deselegância e vulgaridade modernas. Este mesmo proletário que tanto
preocupava a Freyre pelas tendências revolucionárias que estavam sendo depositadas
sobre os trabalhadores, que desde Karl Marx passavam a ser vistos como elementos
fundamentais para construir rupturas com antigos padrões sociais. O proletário seria um
ser vulgar, tal qual as danças americanas, vulgares, são proletárias.O passo da camelo,
do pato, da raposa, do urso. Seria representação da busca do homem pela imitação de
seres inferiores na escala zoológica, embrutecendo-o. Incomoda a Freyre a ideia deEle
prefere os animais de posturas aristocráticas e movimentos nobres, como o cisne, o
pavão, a zebra. Nesse zoológico imaginário, as danças modernas não possuíram beleza
em seus movimentos, seria apenas um saracoteio corpóreo sem refinamento e sem
elasticidade de movimento. O corpo moderno que engendra essas danças tende a ser
flácido, gorduroso e portanto desprovido de um dado refinamento estético que remete às
danças clássicas, como o balé russo por exemplo. Segundo o historiador
ModrisEksteins, as índoles conservadoras do início do século XX não apreciaram as
novas danças americanas, pois lhes parecia algo lascivo, jornais e revistas comentavam
o assunto e criticavam os passos da TurkeyTrot49, também criticado por Freyre. E
quanto ao Jazz? Música descompassada, de longas experimentações, sincopada. Em
tudo distante da elegância das sonoridades clássicas de um maestro como Strauss, muito
elogiado por Freyre. Sua visão em relação a essas novas tendências, da dança e da
música, explicitam uma concepção crítica que atesta para a decadência da arte na
48 Idem p.155 49 EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera. Rio de Janeiro. Rocco, 1991 p. 61
32
modernidade. A ausência de espiritualidade pontuada por ele em muito se aproxima da
concepção de Walter Benjamim em torno da ausência da aura na arte de sua época.
Como podemos observar, os artigos escritos durante sua estadia no exterior, sobretudo
os textos produzidos em Nova York, desenham elementos da vida cotidiana da cultura
norte-americana. O texto de Gilberto Freyre, quando trata dos hábitos, costumes e
portanto, dos novos processos de subjetivação presentes na cultura moderna, tendem a
explicitar o problema da decadência das virtudes aristocráticas em nome da emergência
de novos territórios existenciais onde práticas por ele valorizadas já não possuem meios
para existir plenamente. Nesse sentido, cenas do cotidiano aparentemente banais, nos
servem como guia essencial para cartografarmos as motivações sensíveis e intelectuais
que regiam a produção de sentidos do jovem estudante, que no seu retorno ao Brasil
passaria a atuar como líder de um importante movimento cultural no Recife, o
Movimento Regionalista e Tradicionalista do Nordeste. De sua vivência fora do país,
gostaríamos de salientar mais alguns aspectos observados pelo intelectual para que
possamos compreender sua futura imersão naquilo que chamaremos de uma ação
cultural saudosista a partir de 1924. Desse modo, a crítica aos processos de subjetivação
modernos seguem dando a tônica da visão freyreana, que constantemente lamenta a
emergência de comportamentos desprovidos de antigos valores tão importantes para os
processos de subjetivação da cultura aristocrática. Mais que uma crítica a modernidade,
os artigos para o Diário de Pernambuco sugerem ao leitor que este se preocupe com um
processo vertiginoso de transformação que estaria instaurando modos de vida
culturalmente inferiores aos modos do passado, acobertados pelos novos valores
democráticos, que buscavam destituir antigas fronteiras em nome de uma cultura que se
diz igualitária mas que acaba por eliminar zonas de diferenciação aristocráticas que
seriam vitais para a sociedade e para a vida humana. Um bom exemplo disso se
encontra em sua percepção a respeito do sistema político democrático: ´´o sistema
democrático é desfavorável à leadership do homem de gênio, do herói providencial, do
Real Superior(..)``50. Continuaremos nossa reflexão sobre as implicações políticas de
suas concepções saudosistas da realidade social no terceiro capítulo deste trabalho. O
importante é que na perspectiva de Gilberto Freyre, que na época se debruçava na
leitura de literatos e filósofos críticos as transformações da cultura ocidental a partir da
segunda metade do século XIX e que tinha em sua própria família um breve histórico da 50 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 110
33
decadência gerada pela modernização da indústria do açúcar, fica evidente uma crítica
em tons notadamente saudosos. Sua educação tendia para uma visão saudosa da
realidade social.
Continuando nossa viagem, vamos aos subways nova-iorquinos, tráfego diário de
milhares de pessoas numa terra onde ´´ time is Money``.Atravessando os túneis a mais
de 100 quilômetros por hora, como que dentro de uma enorme lata de sardinha.
Expressão contundente da vida moderna e de seus vertiginosos deslocamentos. Os
metrôs se transformaram nas artérias e veias por onde pulsam a vida das cidades
modernas51. A Freyre o ritmo do metrô estimula o desaparecimento da cortesia,
entendida como virtude humana. Mas como ser um gentleman sendo acotovelado,
empurrado, esmagado nos horários de pico, indo para o trabalho ou voltando para casa?
A vida numa grande urbe o leva a refletir:´´Demais, com a igualdade dos sexos, a
democracia e outras bonitas coisas modernas, está a esfumar-se dos nossos hábitos o de
cavalheirismo``52. Noutro momento, o rodar suave dos carros de praça ao trote belos
cavalos rivaliza com o ronco estúpido dos automóveis53.
Em julho de1922 Freyre foi ao teatro assistir a comédia Whatthepublicwants de
Mr. Arnold Bennet, voltou para a casa e se pôs a escrever -inspirado pelo experimento
teatral - uma observação crítica em relação ao jornalismo americano e por conseguinte,
aos seus leitores e escritores. O público americano quer do jornal a sensação. Fatos
escandalosos e intrigas pessoais, crimes, denúncias políticas, mais escândalos, algum
humor e notas sobre arte. Para o jovem escritor, se o jornal busca satisfazer o gosto do
público cai em credibilidade, aceita a alcova de alimentar o gosto médio de leitores ´´
meio-educados``. Mas a questão principal de seu artigo é a seguinte: uma sociedade
que procura alfabetizar a todos acaba transformando os meios de comunicação, nesse
caso os jornais, em mera ilustração da baixa qualidade da educação que a todos é
concedida e assim ele nos diz:
De modo que os fatos parecem levar-nos à conclusão de que o analfabetismo de
grande parte dum povo – sessenta ou setenta por cento – é mais favorável que uma
51 SENNETT, Richard. Carne e pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro. Record, 2006 p. 273 52 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 96 53 Idem p.145
34
meia educação, à literatura e à arte. Naturalmente está subentendida a existência
duma elite ou inteligência vigorosa.54
Mas quem faz parte dessa elite? Freyre não nos deixa essa resposta, mas indica seu
ponto de vista sobre a igualdade de direitos, valor notadamente moderno e democrático.
Surge a imagem de um intelectual antidemocrático que lamenta a alfabetização, não
apenas sobre o que diz respeito a manutenção de uma certa ´´ alta cultura``, mas que se
preocupa com as possíveis transformações sociais que essa necessidade de alfabetizar
pode vir a gerar. Isso porque em Maio de 1923, estando de volta ao Brasil, ele esclarece
ainda mais sua visão sobre o tema, explicitando a dimensão política e social de suas
assertivas. Diz nos que o analfabeto é um sujeito interessante porque vive à margem da
crítica a dadas estruturas de poder, ´´ alheio às teorias anticlericais e antidinásticas e ao
falatório bolchevista``55. Na sua perspectiva uma sociedade composta de grande número
de analfabetos prioriza sua própria conservação, fazendo da cultura letrada um
privilégio para poucos. Dessa desigualdade se faria uma espécie de equilíbrio cultural
por ele desejado. Ele sabe e parece se preocupar com o fato de que em saber ler e
escrever há um potencial transformador, tanto individual quanto coletivo. E a
modernidade, como época que estimula essa transformação, se mostra como um perigo
para a manutenção das antigas relações de poder dinásticas, clericais e políticas.
Evidentemente que essa visão política está conectada a sua concepção tradicionalista e
regionalista que afirma valorizar a existência de sujeitos analfabetos transformando suas
práticas em verdadeiro patrimônio cultural de uma região, de um país. ´´ Em Portugal
foram os analfabetos e os quase analfabetos a gente que mais me encantou. Povo tão
bom e tão doce não creio que exista``56. É na defesa de visões de mundo como essas que
percebemos a conexão constante entre pensar e sentir. Assim como qualquer outra
forma de se posicionar na sociedade, o saudosismo em Freyre explicita referenciais
políticos e valores sociais que alicerçam sua sensibilidade e pensamento. Do ponto de
vista político e social, saudosismo reativo que denuncia a transformação em nome da
permanência, não só de paisagens, arquiteturas, hábitos...mas também da desigualdade
entre os sujeitos. Nesse sentido, veremos melhor no capítulo três como sua
subjetividade saudosa era antidemocrática.
54 Idem p.223 55 Idem p. 254 56 Idem p. 254
35
Segundo ele, Antes um grupo intelectualmente superior, que aborde com mais
sofisticação e requinte assuntos do dia a dia em seus jornais, que uma sociedade onde
todos possam ler masque não permita o mesmo ´´nível`` e abrangência de conteúdo. Seu
texto é escrito em nome dos que se pensam superiores e que consideram estar perdendo
seus espaços diante das inovações do século XX, dentre elas, a de que ler e escrever seja
um direito ofertado a todos. Esse movimento de alfabetização generalizada faria decair
o nível da literatura duma nação. Ele cita o caso da Rússia do início do século para
demonstrar que mesmo com a grande maioria da população sendo analfabeta,sua
literatura era de altíssimo nível e refinamento estético. O artigo versa sobre os perigos
da democratização num sentido intelectual e estético. A mensagem que vem do exterior
é de que a esperança de uma literatura de encanto e força, difícil de emergir numa
sociedade de ´´meio-educados``, começa a surgir nos EUA, num ato de reação estética
de autores como Amy Lowell, Henry Mencken, Robert Frost, entre outros. Seria preciso
lutar contra a tirania e a mecanização do gosto das massas em nome de uma criação
artística verdadeiramente superior, segundo Freyre. Texto curioso que traz à tona certa
visão elitista de seu autor. Saudades dos tempos em que a maioria não lia nem escrevia,
mas como os tempos mudaram, o momento seria o de reagir criticamente a essa onda de
massificação que os ideais democráticos traziam consigo. Dessa necessidade de
estagnação da vida social de uma maioria submetida às vontades duma minoria, se daria
um equilíbrio, para Freyre, suficientemente dinâmico para ambos os lados. Uns
trabalhando ingenuamente, alheios as tendências críticas de uma época e os outros,
estudando e trabalhando para que estruturas de poder que sustentam essa desigualdade
permaneça. Assim, a valorização cultural da vida social das camadas sociais pobres
economicamente se conectava com a necessidade política e social de mantê-los alheios
a uma certa dimensão crítica. No mais, sua apologia ao analfabetismo explicita a grande
importância que ele dava ao ato de ler. Como grande devorador de livros que era, Freyre
sentia em si próprio o potencial transformador e questionador que o contato com certos
livros poderia desenvolver para a transformação da vida. Não é à toa, que considera a
leitura como prioridade para os grupos sociais abastados, confortáveis em suas situações
econômicas e sociais e não para aqueles estão expostos aos mandos de outrem.
Passamos por alguns relatos de acontecimentos que Gilberto Freyre, durante seus
anos de vivência nos EUA e em sua viagem à Europa, entre 1918 e 1923. Através da
série de artigos Da Outra América e das correspondências trocadas com seu amigo e
36
conselheiro Oliveira Lima foi possível captar referências importantes sobre as maneiras
que o então estudante via e dizia a realidade a sua volta, em especial seus discursos
sobre as cidades que conheceu e sobre dados comportamentos ou processos de
subjetivação que a modernidade inspirava na segunda década do século XX. A partir
desse recorte cartografamos modos de expressão de seu pensamento e sensibilidade em
sua relação com uma maneira saudosa de conceber a realidade social. Suas observações
atestam para certa nostalgia em relação aos hábitos do passado e uma certa preocupação
com a emergência de um nova cultura que não procura filiar-se, mas sim, romper e
portanto promover uma transformação para com as antigas tendências políticas,
econômicas e sociais. Nesse sentido, os textos de Freyre nesse período se apresentaram
como fonte fundamental para a compreensão de sua futura ação cultural, mais
especificamente, nos três primeiros anos de seu retorno ao Brasil, entre 1923 e 1926 e
que parece ter se configurado num projeto eminentemente saudosista, como o segundo
capítulo deste trabalho procurará demonstrar.
A emergência de modos de pensar e sentir saudosistas teve, entre o final do século
XIX e o início do século XX,grandes impulsos. A rítmica da vida moderna em suas
transformações mais significativas, como a estabelecimento hegemônico da cultura
burguesa, trouxe para muitos grupos sociais a forte sensação de que o passado de suas
culturas estaria ameaçado. Isso porque o próprio presente engendrava a dissolução de
antigas relações de poder. Segundo o historiador Peter Gay durante esse período o
´´movimento era a norma, mas era também a promessa e ameaça , na ciência,
tecnologia, medicina, economia, política, governo, religião, gostos, costumes, expressão
sexual``57. Lembremos que com a Grande Guerra, entre 1914 e 1918, os valores que
moveram a modernização ocidental foram postos em dúvida, a guerra trouxe uma
experiência limite para o mundo e reconstruí-lo estava na ordem do dia na década de 20.
Não é à toa que em 1922 Gilberto Freyre escreve à Oliveira Lima dizendo que: é o
diabo ser moço numa época como a atual de crise, desastres, dificuldades, etc. Por outro
lado há a compensação de ser uma época excitante, aberta à aventura e a estudos
interessantes58. A situação se mostra paradoxal e parecer haver a consciência de que as
benesses da vida contemporânea trazem, em contrapartida, uma forte sensação de mal
estar diante das mazelas do mundo moderno. De certo modo, o saudosismo visto em
57 Idem p.162 58 Carta escrita em 03/04/1922. Publicada em: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p.135
37
Gilberto Freyre está atrelado a essa tentativa de criar uma alternativa local para lidar
com as intensidades da vida moderna, procurando conter suas forças expansionistas e ao
mesmo tempo empreendendo um movimento de revaloração de vários aspectos da
sociedade pré-industrial do Recife, sobretudo do tempo de seus avós, ou seja, meados
do século XIX. Após apreendermos alguns elementos da crítica freyreana à
modernidade, bastante inspirada nos intelectuais que experimentaram processo
semelhante na Europa do século XIX, e também percebendo a forte relação que o jovem
estudante estabelecia com os valores e costumes da vida aristocrática, cabe compreender
como se deu sua ação cultural saudosista no Brasil a partir de 1923.
38
O RETORNO DO ESTRANGEIRO: AÇÃO CULTURAL REGIONALISTA E
TRADICIONALISTA
É uma angústia para as criaturas sensíveis viver nessas épocas de aguda transição59
Gilberto Freyre (1924)
ESTRANGEIRO NO RECIFE
Em março de 1923 Gilberto Freyre embarcou no navio Flandria com destino a cidade do
Recife. Tendo concluído sua formação intelectual na Universidade de Columbia e em seguida
viajado por sete meses por algumas cidades da Europa, havia chegado o momento de retornar a
sua terra natal. Em cartas ao amigo Oliveira Lima é possível perceber que Freyre estava bastante
ansioso em relação a sua volta para o Brasil, as saudades dos familiares estimulava seu desejo
de logo chegar, além disso sentia muita vontade de se reencontrar com as paisagens de sua terra,
a praia de Boa Viagem, a cidade do Recife, os amigos, a vegetação tropical, os sabores da
culinária típica da região. Ao mesmo tempo, havia também a forte impressão de que
permanecer em Recife não seria bom para sua carreira de escritor com formação no exterior e
com tendências críticas aos rumos que a cidade tomava durante a década de 20, por isso também
estava incerto sobre os caminhos a seguir nessa nova fase de sua vida, apesar de possuir boas
relações com líderes políticos locais e pessoas influentes, como a família Lyra, proprietária do
jornal em que Gilberto publicava suas reflexões em crônicas semanais. Se sua vivência nos
Estados Unidos e Europa, entendida como uma extensa imersão cultural, lhe ofereceu
importantes ferramentas para a formação de seu modo de pensar e sentir o presente, o seu
regresso para o Brasil, por outro lado, o conduziu a uma necessidade de organizar-se
coletivamente para agir em nome de uma espécie de reação crítica às transformações
paisagísticas e culturais, que tanto a cidade como os sujeitos que nela viviam estavam
experimentando à época. Ao associar-se com um pequeno grupo de indivíduos que partilhavam
das mesmas angústias em relação ao presente, dentre eles José Lins do Rêgo e Mário Sette,
emerge todo um movimento de valorização cultural de dados elementos que integravam a
paisagem cotidiana da cidade do Recife, um movimento moderno, novo, onde seus membros,
impulsionados pela saudade da vida social do passado, passaram a construir seus próprios
delineamentos imagéticos e discursivos para expressar o que seria o Nordeste, sendo a cidade do
Recife o berço dessa experiência singular ocorrida nos trópicos a partir da conexão entre
59 Artigo publicado no Diário de Pernambuco em 20/4/1924. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 16
39
elementos culturais indígenas, africanos e ibero-portugueses. O movimento regionalista,
independente da proporção e da eficácia de suas ações, era resultado de um embate existencial
coletivo contra os efeitos da modernização que a cidade do Recife experimentava. Sua ideia era
tornar visível para a sociedade da época a necessidade de inserir a força plástica da tradição no
presente e para isso era necessário tramar a partir das perspectivas desses sujeitos e dos grupos
sociais que faziam parte, o que integraria esse acervo de imagens e discursos ditos tradicionais.
Lembremos que havia na atmosfera dos anos 20, após os efeitos da Grande Guerra, a
necessidade de reconstruir a ideia de nacionalidade sobre outras bases. Repensar a nação
representava lançar novos olhares para o passado e construir novos projetos para o presente.
Freyre integrava parte dessa atmosfera, respirando-a de um modo bastante singular e seus textos
semanais para o Diário de Pernambuco se apresentam como grandes fragmentos de suas
perspectivas e iniciativas, agora não mais como estudante que vê e diz o Brasil de fora dele.
Estar novamente dentro do país, podendo observar como se desenvolvia a modernização do
espaço urbano de Recife e o que isso implicava para a cultura da região trouxe para Freyre a
necessidade de agir pela defesa do passado, pois sua viagem de volta funda uma nova maneira
de se posicionar que se expressa nos seus artigos jornalísticos. Sendo assim, seus escritos
jornalísticos integram àquilo que o historiador Durval Muniz nomeou por formação discursiva
nacional-popular60. Seus textos para o Diário de Pernambuco durante essa fase trazem
apontamentos importantes sobre a época e explicitam marcos fundamentais para a compreensão
da ação cultural do regionalismo e tradicionalismo, que nos anos 20 se queria como um
movimento cultural com tendências inovadoras para pensar e agir em nome de uma dada
concepção de cultura brasileira, onde uma visão amarrada ao saudosismo e à idealização do
passado impregnava os discursos sobre o presente, pois era a partir da insatisfação com o campo
de forças forjado na modernidade que se agia em nome de uma nova significação para as
práticas sociais de seus antepassados.
Seu reencontro com o Brasil, como veremos, potencializou a elaboração de toda uma
composição discursiva e imagética para a sua região de origem -que segundo suas lentes
saudosistas de crítico de aspectos da modernidade- estaria se transformando a partir do
abandono aos valores e costumes do passado. Sobre as transformações da época, o historiador
Raimundo Arrais escreveu que:
Os ventos sopravam com vigor suficiente para desenhar em poucos anos um novo
cenário em certas áreas da cidade, introduzindo modificações nas formas materiais,
nos modos de organização social, nas maneiras de pensar a realidade.61
60 Ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo. Ed. Cortez, 2009 p. 37 61ARRAIS, Raimundo. A capita da saudade. Edições Bagaço. Recife, 2006. p.8
40
Diríamos que a perspectiva de Freyre ao voltar para o Brasil é a de um sujeito que trouxe na
bagagem a impressão de que a cultura ocidental como um todo, vivia um intenso período de
mudanças que não se restringiam apenas a política ou a economia. Se o capitalismo industrial
desenvolvia-se na região nordeste com as usinas de cana de açúcar, se a antiga elite perdia
espaço de atuação para a nova elite burguesa que emergia, se a cultura democrática expandia-se
na política institucional e na vida social, se Pernambuco deixava de ter papel central na
economia e política nacional, para a perspectiva intelectual de Gilberto isso queria dizer que a
própria estética da vida cotidiana do passado estaria ameaçada de desconfigurar-se, já que no
ritmo social da época em poucos anos as paisagens e costumes mudariam completamente,
justamente por participarem da nova rítmica que a modernidade suscitava. Alterar a estética da
vida significava para Freyre, alterar a moral e os costumes de uma dada cultura. Daí emerge sua
singular abordagem sobre a cultura brasileira, se tratava de vasculhar o que de vivo ainda existia
do passado na paisagem e nos costumes do presente para ali refugiar os pensamentos e os
sentimentos que faziam ele e muitos outros sujeitos de seu tempo considerarem-se exilados ou
estrangeiros em sua própria época. O saudosismo regionalista não era apenas lamentação e
constatação decadentista, somava-se a isso um dado vitalismo que encontrava na escrita meios
para tornar-se criação e movimento, logo contemporâneos, modernos. Mas uma modernidade
reativa, que trazia tanto inovações no campo das abordagens históricas, literárias e sociológicas
quanto representava a defesa de concepções conservadoras e reacionárias em outros assuntos.
Parece-nos que os olhares de Gilberto Freyre, que seu modo de ver e dizer a vida nos seus
escritos continuou sendo, mesmo após seu retorno, o de um viajante que busca pelos elementos
pitorescos da vida cotidiana de uma cidade, de uma cultura, com todo o jogo de sensações que
esta pode oferecer aos sentidos, seja através dos experimentos do paladar, das construções locais
ou das cores das paisagens naturais. Pensando-se como um viajante que desembarcara em terra
desconhecida Freyre construía olhares e dizeres sobre sua cidade como alguém que deseja senti-
la a partir da perspectiva de um estrangeiro a procura de cores, sabores e cheiros locais, de
nuances próprias da cultura forjada naquele contexto especifico62. Para ele ´´ Nada mais justo
que pedir aos olhos uma síntese da vida``63 e suas lentes de viajante cultural enxergaram um
Recife que lhe soou estranho, diferente de suas memórias e acima de tudo comprometido com
um modelo de modernização trazido de fora, não levando em conta as singularidades locais.
62Durante esse mesmo período, o Diário de Pernambuco publicava periodicamente fotos da capital intituladas ´´ Recife Pitoresco``, o que expressa um desejo social em ver e dizer sobre as paisagens que não participavam da dinâmica da modernização urbana.Devemos compreender, a partir do texto de Arrais, que o conceito de pitoresco emerge no contexto das transformações urbanas, para expressar a busca, dentro de uma paisagem em modificação , daquilo que sobreviveu ao passado da cidade. Ver: ARRAIS, Raimundo. A capital da saudade. Edições Bagaço. Recife, 2006. p. 43 63 Artigo publicado em 17/8/1924 do Diário de Pernambuco. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 60
41
Esse desapontamento do viajante que desembarca na cidade, estudado por Arrais a partir da
leitura do Guia prático histórico e sentimental do Recife, livro publicado por Gilberto em 1934,
já encontrava meios de expressão em suas crônicas jornalísticas de 10 anos antes, quando, por
exemplo, em 1924 ele diz sentir-se um estrangeiro na própria cidade que nasceu. Essa
afirmação surge nos seus escritos jornalísticos um ano após seu retorno para o Brasil. Durante
esse período Freyre parece ter cultivado sua saudade do passado, andando e olhando a cidade,
atravessando-a ao seu modo a procura de algo que interessasse a um viajante sedento por ´´ cor
local``. Sentia não ser essa tarefa das mais fáceis, uma vez que o Recife ganhava ares cada vez
mais desterritorializados de suas experiências do passado. Pois a modernidade era entendida
como força que tendia para a padronização dos costumes e dos lugares, eliminando pouco a
pouco os elementos pitorescos das paisagens e dos comportamentos. Assim, mergulharemos
num Freyre a procura de expressões que atestem a permanência do passado, uma vez que a
modernidade lhe soava como força que desintegrava as amarras que deveriam ligar os sujeitos
ao passado. Seus escritos jornalísticos desse período, são em grande medida ação de
reminiscência saudosa mas de um saudosismo dinâmico que, além de constatar a ausência do
passado, procura construir no presente canais de atuação para lutar pelo não desaparecimento
de dados elementos históricos.
Havia muitas incertezas em sua cabeça durante esse período, sobretudo no que diz respeito
a sua vida profissional. Por algum tempo pensou em se mudar para as cidades de São Paulo ou
Rio de Janeiro, pois lá haveria mais abertura para seus anseios intelectuais e consequentemente
mais oportunidades de trabalho. Ainda na Europa chegou a pedir que Lima o indicasse, através
de cartas de apresentação, para jornais do Sul. Como amigo e conselheiro, fica evidente que o
desejo de Oliveira Lima era que Freyre deixasse de lado a ideia de viver no Recife, cidade que
segundo ele não possuiria horizontes amplos o suficiente para a carreira intelectual de seu jovem
amigo. De fato, 1923 parece ter sido um ano turbulento para o jovem escritor, o meio intelectual
parecia hostil as suas ideias e sentia que seria difícil trabalhar com crítica em contexto desse
tipo. Havia muito a que se adaptar, pois do Recife sua impressão era de que os novos ricos, a
burguesia emergente, estaria crescendo e consequentemente seus valores se alastrando na vida
social. Mesmo em dúvidas sobre se ficava ou partia, Freyre continuou escrevendo para o Diário,
sendo publicados semanalmente escritos a partir do ponto de vista de alguém que se reencontra
com seu local de origem após vários anos. Como dissemos a pouco, desses primeiros
reencontros com a vivência no Recife emerge em seu discurso a ideia que as transformações que
a cidade vinha passando haviam gerado uma estranha sensação em si próprio: a de ter se tornado
estrangeiro no local onde nasceu. Um ano após ter voltado ao Brasil ele escreve ´´ Eu por mim
já me sinto um tanto estrangeiro no Recife de agora. O meu Recife era outro. Tinha um ´´ sujo
de velhice`` que me impressionava, com um místico prestigio, a meninice. O tempo o
42
esverdeava todo de um verde que tinha o encanto de uma unção``64. Essa impressão de
estranhamento com os rumos do presente indica sua posição crítica à uniformização das cidades
modernas, que ao se transformarem, criam um cidade nova, estranha e hostil ao que esta foi no
passado, dissolvendo progressivamente as paisagens que evocam outros tempos, as memórias de
outros territórios existenciais. Em muitos momentos Freyre chega a dizer que o Brasil havia se
tornado um grande devastador do passado. Seu alerta sobre a possibilidade de desaparecimento
das nuances pitorescas da paisagem e da cultura são estimuladas pela sensação de vazio que a
subtração de traços do passado gerava em sua consciência. ´´ Há coisas assim: acabam
formando uma parte de nós mesmos. E ao desaparecerem deixam-nos um vazio na consciência ,
difícil de reparar``65. No entanto, a ação cultural promovida por Gilberto Freyre a partir de 1924,
na qual seus artigos para o Diário são um importante guia, parecem evidenciar a tentativa do
autor em dar movimento a sua saudade da vida social do passado de uma maneira dinâmica,
agindo pelo não desaparecimento de dados elementos da paisagem de sua cidade e também de
hábitos e costumes, tidos por ele, como fonte da própria identidade da região.
Neste segundo capítulo conduziremos nossa reflexão a partir dos artigos escritos por Freyre
de 1923 até o início de 1926. A variedade de assuntos tratados continua sendo imensa, mas a
ideia para este momento é compreender a emergência da ação cultural traçada por Gilberto
Freyre e amigos na cidade do Recife a partir da reflexão em torno dos conteúdos abordados no
discurso do autor em nome de uma ação cultural regionalista. A criação do Centro Regionalista
e Tradicionalista do Nordeste em 1924, a realização da Semana das Árvores no mesmo ano, a
publicação do Livro do Nordeste em comemoração ao centenário do Diário em 1925 e o
primeiro Congresso Regionalista do Nordeste no início de 1926 foram as grandes iniciativas
concretizadas pelo grupo de intelectuais do qual Freyre, sem sombra de dúvida, era um
elemento central pela sua efervescente erudição, indicando leituras, dando direcionamentos,
suscitando problemáticas e prioridades, visto por seus amigos como um jovem genial que
acabara de chegar de longa vivência nos maiores centros intelectuais do Ocidente, como Paris e
Nova York e além disso voltava sedento pelas vivências que só a sua região de origem poderia
lhe proporcionar, sejam os banhos de rio, os banquetes com preparos típicos ou os passeios pela
cidade. Neste capítulo gostaríamos de traçar alguns apontamentos sobre as escolhas de Gilberto
Freyre durante esse período, sobretudo no que diz respeito aos temas centrais de seu
pensamento e ação cultural e como estes temas se relacionam com uma concepção saudosista de
realidade. O que buscamos fazer é refletir sobre a escolha dos primeiros elementos que
encabeçaram a germinal ação cultural regionalista e tradicionalista desenvolvida na década de
20 no Brasil. A esta altura cabe perguntar: Quais os elementos que compuseram e participaram
64FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 16 65 Idem p. 17
43
do pensamento de Freyre para a elaboração de uma dada cultura regional ? Qual a importância
destes elementos para a elaboração de uma concepção saudosista para a cultura regional?
A defesa do passado elaborada por Freyre durante esse período, seja através das ações do
Centro Regionalista e Tradicionalista do Nordeste, seja em seus artigos jornalísticos semanais,
caminhavam em três direções, das quais iremos nos aproximar de maneira bastante introdutória
nesse momento. Por um lado há uma abordagem crítica sobre os novos padrões arquitetônicos
da cidade do Recife, o que desencadeia numa valorização da linguagem arquitetônica do
passado, buscando ressaltar a importância dessa conservação para o estabelecimento de um
senso de conexão do próprio espaço da cidade com as construções de outras épocas. Na esteira
de Gilbert Chesterton, o jovem Pernambuco concebia a cidade como espacialidade que articula
ideias, criando expressões e vida e por essa razão lhe causava mal-estar e estranhamento
perceber que em Recife ocorria uma transformação arquitetônica baseada em padrões que
estariam desconectados com as raízes históricas da região. Grande apreciador das construções
antigas, marcadas nas paredes pelo tempo e mal-assombradas pelas muitas almas que por ali
passaram, enquanto intelectual gostava de refletir sobres aquelas construções que estariam
ligadas com a experiência humana de outras épocas, como as Igrejas por onde tantas pessoas
falaram seus pecados e oraram, as casas-grandes com seu cotidiano de afazeres culinários e seu
território existencial singular, os engenhos, os prédios públicos antigos, os becos, os arcos
decorativos que remetem ao século XIX, aos tempos onde, segundo ele, o Brasil conhecera seu
ápice de desenvolvimento social. Na década de 20, Recife ganhava novos padrões
arquitetônicos onde ´´ a claridade , a amplitude e a fluidez desenhavam no velho bairro do
Recife uma cidade nova, erguida sob os princípios higiênicos e estéticos da belle
époque``66. Percorrendo a superfície de sua cidade à procura de sensações que remetiam a vida
do passado. Experimentar o mundo, através dos sentidos e da memória, se tornava uma
ferramenta para as elaborações de seu pensamento. Atravessando o espaço da cidade Freyre
desenvolvia suas próprias cartografias sentimentais e fazia da escrita seu movimento de
inscrição de trajetórias de pensamento. É sob esta ótica que analisaremos algumas dessas
trajetórias transformadas em verbo para compreender as expressões saudosistas de sua ação
cultural na década de 20.
Como nos mostra o historiador Fernando NIcolazzi, no que diz respeito ao conceito de
História, Freyre traz em seu pensamento a imagem de uma representação temporal orgânica,
onde o tempo é entendido enquanto substância viva indivisível, ou seja, o passado não se separa
do presente, nem tampouco se ausentará do futuro. Do ponto de vista epistemológico, sua ação
enquanto pensador caminhava para a tentativa de harmonização das forças opostas, a tradição e
o moderno. Daí sua concepção de regionalismo ser a de uma integração entre a força plástica do 66ARRAIS, Raimundo. A capital da saudade. Edições Bagaço. Recife, 2006. p. 122
44
que seria tradição para a construção de novos valores, de valores modernos. Mas isso é o que o
autor diz, intencionalmente, estrategicamente, sempre em nome de relações de poder que estão
para além dos discursos e que tem a ver com a infra-estrutura política e social do presente. Pois
o mesmo pensamento que procurou harmonizar as rupturas que a experiência moderna vinha
causando engendrava o desejo de harmonia sob uma determinada ordem, que é tanto política e
econômica quanto social. No terceiro capítulo veremos como seu saudosismo do passado se
filiava a uma visão política antidemocrática. É importante falar isso agora, para que não sejamos
posteriormente conectados aos próprios mecanismos que estamos criticando, uma vez que
estudar Gilberto Freyre implica entrar nos muitos labirintos que o seu discurso constrói. Um
jovem bastante paradoxal, que ora sugere visões de mundo inovadoras para época, expressas em
seu estilo de pensamento incomum para o período, mas já em outros momentos se mostra
reacionário e conservador, sobretudo quando o assunto é política.
Além da arquitetura, há toda uma defesa em torno das árvores e da vegetação local, não
apenas por questões ambientais, mas por uma série de implicações que falaremos em seguida. E
por último, seus textos abordam com frequência a questão da alimentação, da culinária dos
antepassados como importante elemento da cultura nacional e que portanto, deveria ser
conservado e melhor compreendido em seus aspectos sociais. Esses três temas são recorrentes
nos artigos para o Diário de Pernambuco. Optamos por problematizar as conexões traçadas por
Freyre em relação as árvores e a culinária, uma vez que foi a partir desses dois elementos que
ele inicia sua ação crítica, tanto nos textos que apresenta em encontros do Centro Regionalista
do Nordeste quanto em seus artigos jornalísticos e também no Livro do Nordeste em 1925.
Além disso, a escolha por uma defesa cultural das árvores e da culinária esboçam a
singularidade do pensamento freyreano em suas abordagens e representam sua importante
contribuição para a construção de novas maneiras de pensar a vida social, não se restringindo
apenas às temáticas tradicionais de pesquisa e reflexão da época, inserindo em seu discurso
histórico hábitos cotidianos, como a culinária, para a compreensão da formação de uma dada
cultura e para a espacialização imagético e discursiva do Nordeste.
Como podemos perceber, os seus textos à época traziam suas perspectivas a partir de um
certo olhar estrangeiro de um viajante, de alguém que sai a procura das particularidades locais,
buscando expressões culturais na natureza do território, na linguagem arquitetônica e na
culinária local. No entanto, suas lentes de viajante não foram criadas apenas por impulsos
individuais, essas lentes se formaram a partir da sensação de não pertencer a nova ordem social
que se desenvolvia na região. Por um lado sua experiência em viagens contribui para o
desenvolvimento de um modo de olhar, dizer e atravessar os espaços, tornando-o um viajante
cultural. Mas quando a viagem foi para terra natal o viajante se viu defrontado com um universo
estranho às suas memórias e às suas idealizações sobre a região.
45
AMIGO DAS ÁRVORES
Porque as árvores? A que se conecta o pensamento e a sensibilidade de Freyre ao evocar a
importância da preservação das gameleiras, palmeiras, cajueiros e coqueiros? De que maneira as
árvores participam da paisagem regional/tradicional elaborada pelo jovem escritor? E por fim,
qual a relação entre sua visão saudosa de mundo e as árvores?
Ele nos diz que é ´´um grande amigo das árvores``67. Essa relação afetiva com as árvores,
já a observamos brevemente no primeiro capítulo deste trabalho. Por onde passava em suas
viagens Freyre dizia um pouco a respeito da vegetação local, sempre se referindo a dimensão
acolhedora que as árvores lhe inspiram, em contraposição ao ritmo angustiante da vida social
moderna. Estar em contato com as árvores parece ter sido um tipo de experiência importante
para a sua subjetividade, ao menos durante o período que estamos pesquisando, pois se
expressava em sua escrita de maneira clara, participando inclusive da elaboração de seu estilo
enquanto escritor. Por motivações estéticas, sentimentais, intelectuais, políticas, econômicas e
culturais as árvores participavam ativamente das observações de Gilberto Freyre e
posteriormente vieram a participar das ações desenvolvidas pelo Centro Regionalista do
Nordeste, como é o caso da Semana das Árvores realizada em dezembro de 1924, primeira ação
cultural do movimento, tendo como objetivo construir uma defesa pública em torno das árvores
da região. Mas não se tratava de uma preservação em termos estritamente ecológicos ou
ambientalistas, como veremos. A questão das árvores para o pensamento de Gilberto Freyre está
associada a toda uma luta pela preservação da paisagem do local, com a vegetação que lhe é
própria ou que foi introduzida pela ação dos sujeitos no passado, dos coqueiros que se espalham
naturalmente pelo território às gameleiras plantadas ao longo do século XIX, se tratava de
introduzir nas árvores sentidos propriamente históricos e culturais, construídos a partir da
experiência do autor em relação a sua época. Em maio do mesmo ano, ele escreveu no Diário
de Pernambuco que ´´ É todo um mundo rico e plástico, o da simbologia das nossas árvores.
Incorporado, no Brasil, cada vez mais, à vida e à arquitetura, há-de dar grandes coisas``.
Percebam que sua conexão com as árvores não era simplesmente algo que se encontrava
encerrado em sua individualidade, não se tratava apenas de um gosto individual motivado por
sua experiência pessoal, para além disso as árvores participavam de sua análise social,
econômica e histórica da cultura brasileira, em especial da cultura pernambucana.
Os olhares lançados sobre as transformações na paisagem do Recife a partir do seu retorno
em 1923, observavam que a urbanização moderna que estava ocorrendo, baseada em conceitos
utilitários de otimização do espaço, desconsideravam a importância das árvores para a
cartografia não só urbana, mas também estética, histórica, cultural e sentimental da cidade do
67 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 26
46
Recife. A partir desses questionamentos, foi se construindo nos escritos do autor toda uma
simbologia para o universo das árvores. Consideramos que estas expressões traduzem, ou pelo
menos, apontam para uma compreensão da própria paisagem do pensamento de Freyre neste
momento de sua vida e nos ajudam a perceber de que maneira se elaboraram imagens e sentidos
que contribuíram para a criação imagética e discursiva do recorte espacial Nordeste, onde a
representação da árvore exerceu papel importante. Retornando de longa viagem ao exterior,
aproximando-se novamente dos caminhos que percorria até o seus 17 anos, parece ter ocorrido
um choque entre suas memórias e as novas paisagens que contemplava, daí sentir-se estrangeiro
em sua terra natal. E sob este estranhamento sentimental com seu lugar de origem se
desenvolveu uma busca pela criação de novas conexões com elementos que, estando vivos no
presente também participaram do passado da região. Nesse ponto as árvores se apresentam
como testemunhas do passado, e numa manifestação saudosista do modo de pensar e sentir de
Freyre, defende-las dos novos valores modernos que as cortavam para readequar o território da
cidade significava designar sentidos culturais para a natureza, incorporando as árvores às suas
perspectivas saudosistas, pois nela se refugiavam as memórias de um tempo que parecia estar se
perdendo. Com raízes bem fincadas ao solo, crescendo de maneira discreta ao longo de anos,
ganhando marcas do tempo em seus troncos, renovando suas folhagens e muitas vezes dando
frutos que saciam o paladar humano, as árvores se tornavam uma fonte de inspiração para
Gilberto Freyre e para os conceitos de regionalismo e tradicionalismo nordestino que estavam
sendo criados coletivamente. Ele que, segundo o historiador Fernando Nicolazzi, ´´ vê e revê
paisagens, mas também passados, tempos idos com certa saudade e a mesma emoção da vista do
engenho de sua meninice``68 .E essa saudade da paisagem pitoresca do Recife, dos hábitos e
costumes cotidianos desenvolvidas a partir da dinâmica social dos engenhos, das casas grandes,
das senzalas, da vida social dos tempos do segundo reinado, todas essas saudades, são
potencializadas pela constatação de se estar vivendo numa época em que a transformações das
relações de poder desestabilizam os territórios sociais e existenciais em que se constituíam essas
experiências. Vai se construindo, nos escritos de Gilberto, um estatuto simbólico para as
árvores onde a saudade da vida social do passado se insinuava através da defesa da vegetação
local, posto que as árvores ganhavam do regionalismo e tradicionalismo o sentido de serem
verdadeiras testemunhas vivas do passado.
As árvores diziam respeito ao coletivo, a sociedade, também faziam parte do território da
cultura. Segundo Freyre, do ponto de vista econômico, o Pau-Brasil, criou e deu nome à pátria.
Da agricultura à indústria, lá estavam as árvores nos cilindros das moendas, nas rodas d´água.
Com o motor a vapor, as árvores eram sacrificadas pela necessidade de energia das locomotivas.
68 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória e o ensaio: sobre Casa Grande e Senzala e a representação do passado. São Paulo. Unesp, 2011. p. 316
47
Já em 1924, o carvão alimentava as grandes usinas, alguns hectares da flora a serviço das
caldeiras. No entanto, não se trata de conceber a importância das árvores apenas por questões
utilitárias. Haveriam outros elementos, na simbologia que a vegetação inspira, relevantes tanto
para a arquitetura das cidades quanto para a vida dos indivíduos que nela vivem. No entanto,
para compreendermos quais são estas outras simbologias é preciso partir de sua crítica ao
processo de modernização que a região Nordeste vivia, assim conceberemos algumas relações
entre sua visão de mundo saudosa e a importância das árvores para a sociedade.
No Recife da década de 20 a modernidade dizia respeito à ascensão do estilo de vida
burguês tanto no território social quanto na paisagem subjetiva dos indivíduos. O declínio
político e econômico das antigas elites, das quais a família Freyre fazia parte, vinha ocorrendo
desde os fins do século XIX. Entre o tempo dos seus avós e a sua juventude, Freyre observava a
progressiva substituição de uma antiga formação social por outra e o desenvolvimento do
capitalismo acelerava essas transformações. O estilo de vida que a cultura burguesa suscitava e
que estava se tornando dominante no Recife, sempre foi alvo de críticas para o jovem estudante,
desde os tempos em Columbia, onde lia autores do século XIX que narravam suas histórias na
atmosfera da emergência da burguesia na Europa, como Wiliam Morris, Oscar Wilde e G.
Santayana. Como sabemos, as formações sociais que emergem com o capitalismo tem seus
alicerces muito mais fluídos e movediços do que sociedades anteriores, a transformação é muito
mais importante que a permanência para a vida do capitalismo. Essa prerrogativa básica diz
respeito não apenas ao movimento da economia que o capitalismo gera, mas também a várias
outras esferas da vida cotidiana. Desde mudanças na paisagem às transformações nos hábitos
sociais. Nos termos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o capitalismo se apresenta como força
social imanente que expande seus limites a partir da desterritorialização e descodificação dos
antigos territórios culturais existentes, criando assim um plano de imanência que não necessita
respeitar as antigas fronteiras e limites demarcados pelos territórios culturais das sociedades que
lhe precedem69. Com isso queremos dizer que pairava sob a atmosfera da época, a sensação de
se estar vivendo num novo tipo de formação social que, para expandir seus limites e suas
relações de poder, necessitava desterritorializar ou desenraizar as antigas estruturas sociais.
No caso de Gilberto Freyre, essa sensação se expressa de diversas maneiras. Uma delas
diz respeito ao fato de estar se sentindo um estrangeiro dentro de sua cidade de origem, uma vez
que a paisagem havia se transformado bastante desde 1918, algo como viver ´´ sem raízes na
69 Segundo os autores:O capitalismo é realmente o limite de toda a sociedade, enquanto opera a decodificação dos fluxos que as outras formações sociais codificavam e sobrecodificavam. Todavia, ele é seu limite ou corte relativos, porque substitui aos códigos uma axiomática extremamente rigorosa que mantem a energia dos fluxos num estado ligado sobre o corpo do capital como sociusdesterritorializado. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, Ed. Imago. Rio de Janeiro, 1976 p. 312
48
própria cidade natal``70Além disso, não lhe agradava a ideia de uma existência cosmopolita,
estilo de vida que encontrou no capitalismo condições plenas para a sua realização. O
cosmopolita seria um sujeito ´´ desdenhoso das raízes``71 .Apesar de ter passado grande parte de
sua juventude imerso em outros países, sempre negou ser alguém de tipo cosmopolita, tendo
aprendido a olhar sua cultura de origem sob outras perspectivas, não concebia uma existência
psicológica estável sem a existência de raízes culturais que a sustentem. Essa necessidade de
raízes não se restringe apenas a experiência pessoal de Gilberto Freyre, mais que isso, nos faz
refletir sobre um processo coletivo de desterritorialização que a sociedade brasileira vivia
durante esse período. Por essa e outras razões que as ideias de Freyre conseguem articular-se a
um pequeno grupo de intelectuais no Recife da época, como Júlio Bello, Mário Sette, José Lins
do Rêgo, Amaury Medeiros e outros. Seu modo de pensar e sentir fala em nome de partes da
sociedade brasileira que se viam prejudicadas pelos ventos do capitalismo emergente e pelas
transformações políticas da república. Diante dessa sensação de que as raízes entre passado e
presente estavam sendo cortadas pouco a pouco, advém a ideia da criação de um movimento
cultural que reaja a esse movimento. E uma das primeiras iniciativas do grupo foi justamente
sair em defesa das árvores, tomando como ponto de partida a crítica ao processo de urbanização
moderno que vinha ocorrendo no Recife, pois segundo Freyre a dinâmica de tal urbanização
estaria se baseando em modelos deslocados da experiência cultural do território e além disso
desconsiderando a importância das árvores para a paisagem local e para a memória dos
indivíduos.
Mas essa paisagem local não deve ser entendida como um dado natural, desprovido de
historicidade. Ao contrário, os contornos que o regionalismo traça se apropriavam de elementos
naturais, como as árvores, para dar lhe sentidos propriamente históricos e culturais, integrando-
as ao território saudosista e tradicionalista criado por estes sujeitos através de suas práticas
discursivas. No interior deste território arborescente também estavam inseridas suas visões
políticas de mundo. Como sugere Simon Schama, ´´ as paisagens podem ser conscientemente
concebidas para expressar as virtudes de uma determinada comunidade política ou social``72,
assim, as árvores ganhavam pertencimento a geografia afetiva que Freyre e seus companheiros
construíram no início da década de 20 no Recife. Pois em tempos onde a vida social tornava-se
mais rarefeita, acelerada e desenraizada de antigos valores, nada mais legitimo para um
movimento que buscava criar um sentimento coletivo de ligação com certos aspectos do
passado que trazer para a paisagem da tradição a representação simbólica da árvore. No artigo
56, escrito para o Diário de Pernambuco em maio de 1924, ele traça uma cartografia
significativa de seu pensamento e sensibilidade expressando sua conexão afetiva com as 70 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p.386 71 Idem p.216 72SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. Companhia das letras. São Paulo, 1996 p. 26
49
palmeiras, dizendo que ´´ de todas as árvores a que eu mais amo e reverencio é a palmeira.
Diante de uma aldeia de palmeiras dá vontade de tirar o chapéu e seguir de ponta de pé como
por uma catedral ou por um templo. E a palmeira é de fato o símbolo da imortalidade73. Nesse
relato é possível captar sua apreensão sensível em relação ao tempo, pois se a palmeira sintetiza
em sua forma e movimentos tudo aquilo que não morre, uma aldeia delas se transforma em
lugar sagrado para Freyre. Ele que desde que voltou ao Brasil reagia pela sobrevivência das
criações do passado, conectava as palmeiras ao seu imaginário para expressar fragmentos de
uma visão de mundo saudosista, que literalmente saía a procura de elementos da paisagem do
Recife onde o passado estivesse contido, para ressaltá-los e inseri-los na construção de seus
conceitos regionalistas e tradicionalistas. Se ao olhar para a cidade e suas transformações
paisagísticas a sensação que se tinha era a de que o passado estava sendo destruído, pois
morreriam os símbolos da vida social de outrora, a sensação era oposta ao dirigir o olhar e o
pensamento para as árvores: As lentes saudosistas de Gilberto Freyre se filiavam as árvores para
evocar a vitalidade do passado, mesmo em tempos adversos de transformações e rupturas, como
era a década de 20 no Brasil.
O primeiro artigo do ano de 1925 traz um pensamento importante sobre a época, nele Freyre
nos diz que ´´ a devastação das matas fez-se, entre nós, neste século brasileiro de Independência,
Democracia e Direitos, com uma sem cerimônia espantosa74, o autor está buscando associar o
desmatamento com a situação política que se vivia na década de 20 e contrapor-se a essa mesma
ordem. A defesa das árvores se articulava a uma crítica ao contexto político do presente e ao
mesmo tempo conectava-se a um elogio ao modo como a política colonial lidava com a questão
das árvores, pois durante a era colonial haviam avisos régios que mandavam os governadores
´´vigiar as matas``, punir os devastadores, punir os incendiários. Assim, o texto continua
dizendo que ´´ o século de independência não manteve neste ponto, como em tantos outros, a
tradição dos séculos coloniais``75, nesse ponto é possível observar como a criação de uma dada
paisagem tipicamente regional e tradicional tem a ver com uma espécie de politização dessa
espacialidade. O regionalismo enquanto movimento cultural defensor das raízes tradicionais
afirmava sua defesa das árvores em contraposição ao desmatamento da era democrática e
liberal, inspirando-se no respeito às matas existente no período colonial para pontuar uma visão
crítica do sistema político vigente na época.
Pois o que as árvores sugerem senão a presença viva do passado na dinâmica do presente?
A presença das gameleiras e dos cajueiros pelas ruas do Recife, tem para o pensamento de
Freyre, uma valoração complexa. Além de serem agradáveis numa cidade tropical, oferecendo
73 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 27 74 Idem p. 115 75 Idem p. 116
50
sombra aos corpos suados do calor do sol, as árvores também representam a filiação do presente
com as raízes do passado. Nesse sentido, elas inspiram uma relação cultural dos sujeitos com os
territórios em que vivem. A perspectiva de Freyre sugere que o homem do Recife tem nas
árvores de sua cidade uma espécie de conexão com o passado da região, pois na árvore estaria
contida a própria historicidade do lugar. Daí a relevância de preservá-las. Nesse sentido,
problematizar a relação desse elemento da natureza com a dinâmica do modo de pensar e sentir
de Freyre, estendido ao Centro Regionalista e Tradicionalista do Nordeste, implica em observar
como se forjam os símbolos que se agregam ao pensamento para dar-lhe uma imagem. É toda
uma cartografia dos espaços e das práticas culturais de seu tempo que os textos de Freyre
sugerem, escolher alguns desses trajetos discursivos significa abrir-se para percorrer estes
horizontes com as ferramentas que possuímos, buscando entender como se elaboravam as ideias
do autor, não enquanto sujeito isolado, mas sim como parte constituinte de relações coletivas e
históricas. Cortá-las significaria cortar uma das muitas formas dos sujeitos ligaram-se ao
passado dos espaços que circulam diariamente. Se em Gilberto Freyre, o que torna possível a
saudade da vida social do passado é o desapontamento com os rumos do presente, suas
iniciativas se voltam para uma busca em preservar elementos que ainda expressem a nota viva
de outras épocas e sob esta perspectiva as árvores se tornam importantes símbolos para a
construção de um dado sentimento de ligação com o território.
´´ A árvore é uma força nacionalizadora. Atente-se no cajueiro: não há dólico-louro, por
mais aperfeiçoado à verticalidade do pinheiro, que lhe resista a doce influência abrasileirante. E
quando a folha do cajueiro tiver substituído a do acanto já se poderá falar numa arte
brasileira``76. Árvore enquanto representação da tradição, enquanto força nacionalizadora, pois
estando agregada ao solo ela funciona como elemento simbólico da ação cultural desenvolvida
pelo regionalismo e tradicionalismo nos anos 20, que se pensava como um movimento
moderno, novo, mas reativo a desterritorialização da modernidade. Reagir contra uma
modernização que desenraiza os sujeitos do passado da região tem a ver com empreender uma
ressignificação dos próprios elementos que compõem o território e nessa tentativa de
demonstrar a importância da experiência do passado para a formação da cultura nacional Freyre
encontrava nas árvores um importante mecanismo para a construção de suas ideias. Ao observar
que a modernização urbana da cidade acaba por promover o corte de muitas árvores para
otimizar o espaço, oferecendo condições para a edificação de novas construções, o autor toma
essa situação para expressar sua ideia de que os conceitos que regem o presente do país
devastam a paisagem local e assim estimulam o desenraizamento dos indivíduos, pois a
presença das árvores na paisagem seria fundamental para a manutenção da memória que o
espaço suscita. Ele nos diz que ´´ a devastação das matas fez-se, entre nós, neste século
76 Idem p. 26
51
brasileiro de independência, democracia e direitos do homem, com uma sem cerimônia
espantosa``77. Aí se encontra sua oposição ao processo político que o Brasil vinha vivendo, pois
como estar de acordo com esse presente que desmata as árvores? Elas que seriam as grandes
forças nacionalizadoras. Durante seus primeiros anos de retorno ao Brasil e principalmente a
partir das iniciativas do Centro Regionalista e Tradicionalista, suas ideias estão voltadas para
uma espécie de coleta de práticas e elementos do passado que devem ser incorporados e
valorizados como representantes da cultura nacional.
A defesa das árvores construídas tanto por Gilberto Freyre quanto pelo Centro Regionalista
e Tradicionalista do Nordeste trazem importantes contribuições para a compreensão das
imagens e discursos suscitadas pelo movimento, que no início da década de 20, buscava traçar
um território cultural para a região. Essa relação com as árvores atestam para uma experiência
especifica daquilo que o geógrafo Yi-fu Tuan nomeou por Topofilia78, ou seja, uma forma de
conexão afetiva com o lugar ou ambiente físico que se expressa nos recortes culturais que são
dados aos elementos da natureza, neste caso, as árvores. Associando sentimentos e afetos com o
lugar, a perspectiva do geógrafo chinês sugere que para compreendermos a elaboração histórica
e cultural de uma dada paisagem, devemos levar em conta a sensibilidade que guia as
percepções dos sujeitos ao traçarem suas cartografias espaciais. Assim, na ação cultural de
Freyre e na singular valorização do universo das árvores que se esboça em seus discursos,
observamos a emergência de uma espécie de topofilia saudosista que recorta dados elementos
da paisagem para compô-los como parte integrante do que seria a cultura da região Nordeste. É
essa topofilia que funda a própria região a partir dos discursos e imagens que suscita com Freyre
e o regionalismo tradicionalista. Com isso queremos dizer que o recorte espacial Nordeste dos
regionalistas e tradicionalistas, principalmente nos escritos de Gilberto, nasce afetivamente
conectado ao sentimento de saudade do passado cultivado por aqueles que estavam descontentes
com os deslocamentos no campo de forças político, econômico e cultural da época. Assim, a
própria emergência das imagens e significados para a paisagem local, são atravessados por essa
topofilia saudosista.
Sob outra perspectiva, o historiador Durval Muniz afirma que ´´ a própria invenção do
Nordeste nasce de uma mudança na relação entre olhar e espaço, da desnaturalização deste,
passando a ser pensando não mais como um simples recorte natural ou étnico, mas como um
recorte sociocultural``79.Se essa mudança na relação entre espaço e olhar é o que torna possível
o recorte imagético e discursivo do qual o regionalismo e tradicionalismo de Freyre é elemento
fundamental, diríamos que tal mudança se caracteriza pelas pulsações saudosistas que se 77 Idem p. 115 78Sobre o conceito de Topofilia ver: TUAN, Yi-fu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Difel. São Paulo, 1980 79ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Editora Cortez, 2009
52
espalhavam por dados grupos sociais avessos aos deslocamentos nas relações de poder da
época, e que apareciam na forma de escrita e ação cultural de autores como Gilberto Freyre.
Portanto, a partir das práticas discursivas e ações culturais do movimento regionalista começa as
ser traçada uma estética saudosista para a região através de práticas topofilicas de figuras como
Gilberto Freyre, que em sua maneira de pensar e sentir conectava elementos dispersos da vida
social e física do passado que sobreviviam ao presente para dar-lhes novos valores culturais e
históricos.
É esse o caso das árvores, que ganhavam na imagem do pensamento regionalista o caráter
de testemunhas vivas de um passado que deve não só ser lembrado, mas preservado e regado.
Pois a memória de outros tempos viveria naquelas árvores, expressando uma dada concepção de
tempo forjada a partir de um saudosismo que cultivava o passado, tal qual os cajueiros e
gameleiras, para dar sombra as saudades de sujeitos que, como Freyre, precisavam dos ares do
passado para respirar e viam nas árvores uma das fontes capazes de trazer os ventos de outrora.
Talvez no seu pensamento corresse a ideia de que a modernidade transformadora e
desterritorializadora da paisagem e dos hábitos de um passado não tão distante, se via
confrontada na presença de uma árvore, que estática e profundamente mergulhada com suas
raízes pelo solo, sustentava-se a si mesma diante de uma época que buscava cortá-la para encher
o chão de concreto armado e construir algum canteiro nas novas avenidas do Recife. Se a
preservação das árvores pelo movimento regionalista está associada à elaboração de uma
topofilia saudosista para o lugar, sobretudo na cidade do Recife, o que buscamos fazer neste
capítulo é refletir sobre a escolha dos primeiros elementos que encabeçaram a germinal ação
cultural regionalista e tradicionalista desenvolvida na década de 20 no Brasil. Entendendo os
escritos semanais de Gilberto como parte constituinte dessa ação cultural, tentamos
compreender os sentidos construídos para esses elementos que ganhariam o estatuto de
representantes da tradição regional, como é o caso das árvores.
Cabe agora prosseguir a reflexão em torno de outro elemento fundamental para a militância
cultural do regionalismo e também para as abordagens sociológicas inovadoras que Gilberto
Freyre esboçava em suas crônicas para o Diário de Pernambuco durante a década de 20. Pois
além de defensor das árvores, seus textos militavam por uma defesa da culinária e do estilo de
cozinha dos antepassados, como expressão da cultura singular desenvolvida nos trópicos e que
portanto integraria a própria tradição da cultura nacional que estava se formando. É do cultivo
da saudade por meios gastronômicos que falaremos no próximo item deste capítulo. Se no caso
das árvores se trata de preservar a emanação dos ventos e das sombras que as plantas ofereciam,
instituindo uma ideia de paisagem regional evocadora do passado, com o caso da culinária
iremos observar outra espécie de elaboração imagética e discursiva saudosista, onde não mais a
53
paisagem e a memória são o mais importante para a análise historiográfica, mas sim a relação
entre corpo e história, paladar e cultura.
SAUDOSISMO GULOSO
Que tipo de sentidos são elaborados por Gilberto Freyre quando o assunto é culinária? De
que maneira estilo culinário e paladar se tornam elementos importantes para o discurso
regionalista e tradicionalista na década de 20? Como a alimentação participa do cultivo da
saudade praticado por Freyre? Quais as implicações sociais e históricas de uma defesa da
preservação de dados hábitos culinários? Estas são algumas questões que inspiram nossa análise
a esta altura e através delas partiremos para uma compreensão especifica da questão alimentar
no modo de pensar e sentir de Freyre. Nesse sentido, se faz necessário lançar mão de algumas
reflexões historiográficas e filosóficas em torno da questão da alimentação para que possamos
continuar nossa cartografia dos discursos e ações culturais que emergiram em meados da década
de 20 no Recife e que se ocupavam em traçar, de um modo especifico, os delineamentos do que
seria a cultura nordestina. Assim sendo, o que teríamos a dizer sobre as artes culinárias a partir
de outros autores que também se ocuparam da questão?
Para a historiadora LuceGiard cada hábito alimentar instaura um entrecruzamento de
histórias. Segundo a autora:
o alimento é lugar do empilhamento silencioso de toda uma estratificação de
ordens e contraordens que dependem ao mesmo tempo de uma etno-história, de
uma biologia, de uma climatologia e de uma economia regional, de uma invenção
cultural e de uma experiência pessoal.80
Sendo assim, a multiplicidade de elementos que estão integrados no ato de cozinhar, que vai
desde a escolha dos alimentos, o tipo de corte de legumes e carnes, o modo de preparo, a arte de
temperar, o tempo de cozimento, a cena gastronômica, representam uma prática cultural onde
muitas influências se encontram e constroem um dado estilo de cozinha. Portanto, existe uma
historicidade da vida na cozinha que ao ser estudada faz emergir as singularidades e
regularidades que se desenvolvem em lugares diferentes e que estão inseridas não apenas na
sociabilidade da cozinha, mas sim no próprio alimento que será devorado por um corpo faminto.
Isso quer dizer que ao comermos ingerimos uma dada representação cultural, uma dada visão de
mundo que nos é apresentada pelas vias abertas do paladar, que pouco a pouco vai sendo
estruturado.
80GIARD, Luce. O prato do dia. In: CERTEAU, Michel; GIARDI, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2. Morar, cozinhar. Editora Vozes, 2003. p. 251/252
54
Já o filósofo francês Michel Onfray nos fala que
comer é acalmar um corpo que se faz saber quanto o atormenta a perda de energia
consubstancial à vida, no que ela tem de mais sumário. A partir dessa necessidade
natural os homens elaboraram uma possibilidade cultural: a arte de se alimentar.81
Arte que é fruto de todo um processo histórico que vai se moldando em hábitos praticamente
naturalizados e mecânicos, mas que na verdade atestam toda uma experiência prática de
indivíduos anônimos ao longo de muito tempo, que pouco a pouco foram construindo
coletivamente artifícios para o preparo das refeições. O modo como os sujeitos de uma dada
localidade constroem suas artes culinárias diz respeito a um processo histórico instalado na vida
cotidiana, que nos passa desapercebido diariamente e que expressa uma dada elaboração
cultural. Das artes de se alimentar nascem paladares específicos, moldados a partir das práticas
culinárias de onde um dado sujeito advém, sua cultura, sua família, sua história individual e
coletiva participam da formação do gosto culinário.
Assim a experiência do paladar é construída ao longo da vivência mas de uma maneira
geral, são os sabores da infância que evocam ao corpo uma certa familiaridade com os primeiros
temperos experimentados. As memórias que se ativam através do paladar são fundamentais para
a relação que os sujeitos desenvolvem com a alimentação, pois operam no sentido de desenhar
referências fundamentais para a formação do gosto alimentar. Isso não quer dizer que todos os
sujeitos estratificam seu gosto apenas pelos sabores que conheceram na infância, diferente disso
muitos buscam fazer do paladar um veículo de experimentação cultural, buscando por novos
gostos, criando novas misturas. No entanto, é possível observar em muitos sujeitos a forte
relação que os sabores da infância geram em suas memórias, ligando-os afetivamente as
experiências do passado de uma maneira singular. É assim que Onfray observou o conflito entre
reacionários e progressistas gastronômicos durante o século XVIII na França:
Os primeiros eram saudosistas do passado, choravam e anunciavam a decadência:
já não se estava nos bons e velhos tempos que permitiam os produtos frescos, as
preparações saudáveis, as receitas ancestrais e os pratos familiares da região. Eles
confundiam a saudade da infância com a da cozinha de então.82
Essa passagem nos faz pensar que a relação que desenvolvemos com o paladar insinua visões de
mundo e referências espaço-temporais variadas, o que nos estimula a prosseguir a reflexão em
torno da ação cultural de Gilberto Freyre a partir de seu retorno ao Brasil. Uma vez que a
questão da culinária dos antepassados se torna algo de fundamental em sua militância
regionalista e deixa entrever a insinuação de uma relação saudosista que se constrói com a 81ONFRAY, Michel. Razão Gulosa. Uma filosofia do gosto. Rocco. Rio de Janeiro, 1999 p.88 82 Idem p. 50-51
55
alimentação em seu modo de pensar. Pois na luta pela conservação da culinária historicamente
desenvolvida na região também se esboçava um embate contra as forças modernizadoras que se
infiltravam no paladar, com seus preparos em conserva à moda americana que estavam pouco a
pouco destituindo de lugar a alimentação antiga por uma nova ordem gastronômica
completamente desvinculada das práticas alimentares do passado, sobretudo àquelas construídas
no interior da sociabilidade da casa-grande. É todo um regime de códigos sociais que participam
da vivência em torno do fazer culinário e essas vivências estão submetidas às relações culturais
e históricas que integram a vida cotidiana das cozinhas. Ao surgirem novos regimes culinários
no interior da vida cotidiana dos indivíduos, progressivamente a sociabilidade que o ato de
cozinhar e comer suscita vai se modificando. A constatação dessa modificação e o modo como
Freyre se expressava em relação a ela indicam sua posição reativa aos novos costumes
culinários.
Em 1924 Freyre deixa claro sua perspectiva ao pontuar que ´´ é tempo de se agitar no
Brasil uma campanha pela arte de bem comer. Seria ao mesmo tempo uma campanha pela
nacionalização do paladar``83. Como se observa, a defesa de um estilo de cozinha estava
atrelada ao projeto de construção das fronteiras culturais da nação, considerava-se relevante
compreender a formação histórica dos hábitos alimentares desenvolvidos a partir da colonização
portuguesa, pois nessa amalgama se encontraria a essência do paladar nacional. Paladar que
estaria sendo destruído pela modernidade e suas novas técnicas de armazenamento e preparo
dos alimentos. ´´ Nosso paladar vai-se tristemente desnacionalizando. Das nossas mesas vão
desaparecendo os pratos mais característicos: as bacalhoadas de coco, as feijoadas, os pirões, os
mocotós, as buchadas``84. Percebam como os enunciados regionalistas são formulados a partir
de uma visão decadentista dos rumos da história, sempre alertando para o desaparecimento ou
destruição de dadas práticas. Aqui são os sabores e misturas culinárias que estariam em vias de
sumir do mapa, algo que acontecendo representaria grande perigo para a sociedade brasileira,
pois no paladar, nos termos de Gilberto, se encontraria o último reduto do espirito nacional. Sua
constatação sugere que o paladar é um suporte fisiológico para a memória da nação, pois
alimentando-se à moda tradicional, saboreando a culinária construída pela interação dos estilos
de preparo portugueses, africanos e indígenas os sujeitos estariam fazendo do seu próprio corpo
um reduto das experiências passadas. Na acepção freyreana uma refeição, seja ela uma
sobremesa ou um prato quente para o almoço, são construções culturais e históricas que através
das artes do fazer culinário mantém viva uma prática do passado. Comer à moda antiga seria o
mesmo que alimentar-se da inventividade dos antepassados e consequentemente perpetuar a
83 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 366 84 Idem p. 366
56
tradição pelas vias do paladar, uma espécie de união entre matéria e memória. É nestes termos
que LuceGiard tece sua reflexão, ao afirmar que:
O trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir matéria e
memória , vida e ternura, instante presente e passado que já se foi, invenção e
necessidade, imaginação e tradição- gostos, cheiros, cores, sabores, formas,
consistências, atos, gestos, movimentos, coisas e pessoas, calores, sabores,
especiarias e condimentos.85
Onde o regresso à culinária e à confeitaria do tempo dos avós representaria uma espécie de ação
nacionalista aplicada à arte de comer.
O estilo culinário do tempo dos avós, ou seja, de meados do século XIX, era pensado pelo
movimento regionalista e tradicionalista como expressão grandiosa de uma época em que o
Brasil vivera seu ápice de desenvolvimento. Como veremos no terceiro capítulo, o saudosismo
freyreano está substancialmente alicerçado em uma espécie de romantismo sobre o tempo dos
avós ou mais claramente ao período do segundo reinado. ´´ De modo que a idade de ouro de
nossa vida social e de nossa política coincide com a idade de ouro da nossa cozinha``86 e assim
aqueles que lamentavam as transformações políticas e sociais trazidas pelos fluxos da
modernidade viam na defesa da preservação da cozinha do passado uma maneira de manter viva
na vida cotidiana uma prática que está atrelada a outra vida social que já não encontra mais
meios de existir plenamente. Então emerge a invenção da cozinha tradicional como fragmento
de uma sociabilidade que estava sendo dissolvida pelos novos tempos, mas que conservada
manteria vivo os sabores da amalgama cultural que foi a colonização portuguesa nos trópicos,
que contribuiu para a construção de um paladar próprio à região. ´´ E nos fornos e fogões das
casas grandes dos engenhos pernambucanos, o patrimônio culinário dos portugueses, já
enriquecido pelos contatos com o Oriente e com a África, adquiriu novos sabores, aguçou-se de
adubos esquisitos``87.
Além disso, para Gilberto Freyre o laboratório da química social era antes a cozinha do que
a escola88 significa dizer que através de uma defesa da preservação do estilo de cozinha anterior
a expansão do estilo de vida burguês, também se estaria criticando o nova sociabilidade que
uma vida desconectada da cozinha dita tradicional inspirava. Como sabemos, a cultura burguesa
suscita uma vida cotidiana bastante diferente do que teria sido a vida da sociedade
pernambucana em meados do século XIX. Sobretudo no que diz respeito a vida familiar. A
85GIARD, Luce. O prato do dia. In: CERTEAU, Michel; GIARDI, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2. Morar, cozinhar. Editora Vozes, 2003. p.296 86 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p.367 87 Idem p. 144 88 Idem p. 74
57
cozinha dos antepassados, onde logo cedo começava-se a preparar o almoço, reunia a família
em torno do ato de cozinhar. Assim Freyre idealizava que a sociabilidade da cozinha tradicional,
onde empregados, donas de casa e crianças se aglomeravam todas as manhãs, era um espaço de
aprendizado para os mais novos. Principalmente para as meninas, que inseridas no espaço da
cozinha logo cedo aprenderiam sobre os fazeres culinários, seja observando a feitura dos
alimentos, seja consultando os livros de receitas. Como vimos no primeiro capítulo deste
trabalho, o estilo de vida da mulher moderna causava repúdio ao jovem pernambucano e numa
sociedade cada vez mais capitalista e urbana os hábitos femininos estavam se transformando e a
vida da mulher deixava de estar completamente arraigada ao território familiar. Esse tipo de
transformação alterou sobremaneira a vida em torno das cozinhas, tendo em vista que a partir do
momento em que participar do mercado de trabalho se torna algo corriqueiro para as mulheres
suas vidas deixam de estar integralmente ligadas ao lar e cozinha. Assim sendo, a luta pela
preservação do estilo de cozinha do passado empreendida pelo movimento regionalista e
tradicionalista, também representava uma luta pela preservação de uma dada subjetividade
feminina e de um dado ideário de família, onde um dos deveres sociais das mulheres seria o de
preparar e participar do preparo das refeições familiares e assim transmitir esse conhecimento
para suas filhas. Assim, é fundamental que saibamos distinguir a dimensão criativa do
saudosismo freyreano de suas implicações sociais reativas. Pois se por um lado, tratar o paladar
e o estilo de cozinha como objeto de reflexão sociológico representava uma inovação para
época, ao mesmo tempo emergia um comportamento reativo e reacionário às transformações
que a modernidade suscitava na estruturação do espaço do lar e das práticas que ali se
desenvolviam.
Seguindo os rastros deixados por Michel Onfray nos é sugerida uma visão em torno da
cena gastronômica que merece ser reproduzida para a compreensão dos enunciados produzidos
por Gilberto Freyre na década de 20. Segundo o filósofo francês:
cozinhar, escolher alimentos, elaborar um prato, ocupar uma cena gastronômica, celebrar a
polidez gulosa, querer um estilo para seus fogões é promover uma visão de mundo,
enunciar discursos de maneira plástica e nutritiva, estética e alimentar.89
E a ação cultural do regionalismo compreendia a importância da elaboração de um estilo
culinário para a definição do que seria a cultura da região, promover os sabores da cozinha das
casas grandes dizia respeito a afirmar o refinamento gustativo dos preparos antigos em
detrimentos dos sabores modernos. Comer à moda tradicional representava filiar-se aos prazeres
experimentados pelos sujeitos do passado e assim cercar o sentido do paladar, educa-lo a desejar 89ONFRAY, Michel. Razão Gulosa. Uma filosofia do gosto. Rocco. Rio de Janeiro, 1999 p.166/167
58
os sabores que os antepassados desejavam. A defesa da preservação da culinária tecida pelo
regionalismo envolvia uma educação dos sentidos especifica, onde a conexão com o passado
pelas vias do paladar desempenhava importante função nutritiva, estética e alimentar.
Mas a luta pela preservação dos sabores e das artes de bem comer do passado colocavam o
regionalismo e tradicionalismo como um movimento que tendia à produção de uma espécie de
aristocracia do gosto, onde sujeitos mergulhados em suas saudades construíam alternativas para
lidar com as mudanças trazidas pela vida moderna. O caso do primeiro congresso regionalista
expressa bem essa afirmação. Realizado em fevereiro de 1926, contando com a presença de uma
série de intelectuais e figuras públicas que viam no regionalismo uma alternativa de resistência à
modernização e a destruição de elementos culturais do passado, o congresso ao longo de cinco
dias de atividades, realizou conferências e exposições que tratavam da importância de um
projeto cultural em defesa dos valores e costumes tradicionais da região. Mas o que nos
interessa aqui não é propriamente o que aconteceu durante o evento, mas sim o seu desfecho.
No último dia do congresso um banquete à moda tradicional foi realizado no terraço do
Departamento de Saúde do Recife. No jantar foi servido sopa de verduras, peixe com coco,
fritada de camarão, capão gordo, abacaxi, doce de caju com queijo do sertão, água de coco, café
de Bonito e por fim, licor de laranja90. Nessa cena gastronômica se expressa a saudade de um
dado grupo de indivíduos não apenas pelos sabores que os preparos da cozinha antiga
constroem, mas principalmente pela estética existencial que o banquete inspira. Como
verdadeiros senhores de engenho arruinados, eles celebraram a polidez gulosa da casa grande
empanturrando-se de comidas típicas e celebraram os temperos e doces sabores que o paladar
lhes insinuava. E o próprio Gilberto Freyre diz de si e de seus companheiros que ´´ fidalgos
arruinados, se há joia de família que ainda nos resta, aos pernambucanos, é a tradição que se
refugiou no forno e no fogão de algumas casas``91. Nesse banquete regionalista eles puderam
evocar o passado através dos sentidos e ao modo de uma elite que se agarra ao que sobrou da
sociedade passada celebraram o saudosismo pela gula.
Mais uma vez o lamento saudosista dirige suas críticas à introdução das usinas na
sociedade pernambucana a partir do século XIX, dessa vez para compreender o declínio do
estilo culinário antigo, pois de acordo com Freyre ´´ os negros charutos das usinas,
insolentemente acesos, vitoriosamente a fumegar – são uma das minhas obsessões – reduziram
os bueiros de engenho a inúteis pontas de cigarro; e em geral, onde morreu um fogo de banguê,
morreu também um fogo de cozinha à antiga´´92.Portanto a culinária, vai ganhando
progressivamente espaço no discurso regionalista de Gilberto Freyre como componente
90 Diário de Pernambuco p. 3 de 11/02/1926. 91 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p.69 92 Idem p. 143
59
fundamental da imagem, dos discursos e dos sabores que integrariam a espacialidade do
Nordeste, do ponto de vista cultural. Era necessário criar um paladar para a região, definir seus
gostos, seus temperos mais tradicionais, suas sobremesas, seus licores. Essa operação gustativa
dizia respeito a produção de uma sensibilidade gustativa para o Nordeste e o pensamento de
Gilberto Freyre exerceu importante papel neste empreendimento. Como afirma Durval Muniz,o
regionalismo é muito mais do que uma ideologia de classe dominante de uma dada região. Ele
se apoia em práticas regionalistas, na produção de uma sensibilidade regionalista93 e é nesse
sentido que a culinária participa das ação cultural do regionalismo na década de 20.
O saudosismo de Gilberto Freyre em relação ao tempo de seus avós apresentava muitas
facetas e encontrava em suas leituras inovadoras da sociedade diferentes modos de expressão.
Saudosismo que não era apenas individual, mas sim um movimento experimentado por àqueles
que idealizavam a vida social, política e econômica do passado como alternativa crítica à
experiência moderna vivida no presente, que destituía as antigas relações de poder que
estruturavam a vida na região. Assim que retorna para o Recife, em 1923, Gilberto começou
uma articulação importante no Recife junto à amigos intelectuais, sendo criado em 1924 o
Centro Regionalista e Tradicionalista do Nordeste. Movimento cultural que esboçou os
primeiros delineamentos das fronteiras culturaIs da região, cartografias construídas a partir de
um dada visão de mundo saudosa e desconfiada das benesses da modernização da vida
cotidiana. Como vimos, os enunciados regionalistas de Freyre trafegaram por diferentes
elementos do que ele definia como região. Ora tecendo comentários sobre a arquitetura, ora
sobre as árvores e também sobre a culinária. Esses três conteúdos foram os de maior expressão
nos artigos escritos para o Diário de Pernambuco entre 1923 e 1926. Neste capítulo, buscamos
trazer algumas reflexões acerca dos sentidos construídos para expressar o que seria o passado e
a tradição da região Nordestesegundo os discursos de Freyre, privilegiando a questão das
árvores e da culinária. A esta altura, partindo para o terceiro capítulo do trabalho, cabe nos
aproximarmos novamente do conjunto de artigos escritos entre 1918 e 1926 para compreender
as implicações políticas do pensamento de Gilberto Freyre e assim conectar a questão do
saudosismo e sua relação com a defesa de posicionamentos políticos conservadores. Além
disso, nos ocuparemos em compreender as dimensões mais intimas dessa saudade do passado
expressa em seus discursos, sobretudo no que diz respeito a uma idealização sobre o tempo dos
avós e da infância.
93 ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo. Ed. Cortez, 2009 p. 39
60
SAUDOSISMO, POLÍTICA E OUTROS POSSÍVEIS
A nós, os mais novos, nada de mais romântico se oferece hoje, que a defesa
da ortodoxia94
Gilberto Freyre ( 1924 )
SAUDOSISMO, CONSERVADORISMO E ORTODOXIA
A emergência de consciências e sensibilidades saudosistas no Brasil do início do
século XX encontrou na construção de um ideário de tradição regional um importante
veículo de expressão de suas perspectivas políticas. As imagens e discursos
regionalistas/tradicionalistas que integram o pensamento do jovem Gilberto Freyre
durante o período estudado se mesclavam aos valores políticos que o autor sustentava e
seria um deslize grave não pontuar essa filiação entre seu saudosismo e dados
posicionamentos políticos. A ideia para este capítulo é que possamos averiguar, no
decorrer destes oito anos de textos publicados no Diário de Pernambuco (1918-1926),
expressões e impressões do autor onde se esboça a junção entre o saudosismo do
passado e a defesa de certos valores políticos para o seu presente. Convém situar
historicamente as perspectivas de Freyre e assim esboçar o fundo político de suas
iniciativas regionalistas e tradicionalistas e também captar as conexões que o autor
traçava com outros movimentos políticos e culturais que se desenvolviam em outros
países a partir de uma reação ao presente e por uma nova revalorização de dados
aspectos das relações de poder do passado, muitas vezes firmando uma perspectiva
conservadora e reacionária frente às transformações da época. Se por um lado é sabido
que a década de 20 fez confluir uma série de imagens e discursos saudosistas
responsáveis pelos primeiros delineamentos do recorte espacial Nordeste e nesse sentido
a experiência de Freyre é central nesse processo, cabe agora aprofundar nossa reflexão
para que compreendamos quais as perspectivas políticas que seu discurso engendrava e
quais as relações de poder seus dizeres reivindicava.
Estamos interessados em traçar uma cartografia das pulsações políticas95 que
reverberavam nos discursos de Gilberto Freyre na sua juventude para que possamos
94 Essa citação foi extraída do artigo de número 80, publicado no Diário de Pernambuco em 19/10/1924. in: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol. II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 86.
61
compreender a emergência das imagens e dizeres germinais de suas práticas
regionalistas e tradicionalistas atreladas a essas filiações ideológicas. Não que isso sirva
como uma ferramenta para definir o lugar de fala do autor, ao contrário, nosso intuito é
pontuar através de que territórios ou de que pensamentos e projetos políticos ele
percorria, pois acreditamos que ao traçarmos essa cartografia nos aproximaremos com
mais intimidade do universo sensível que movia suas reflexões. Se trata muito mais de
mapear trajetórias que se expressaram em dados artigos, colhidos pela necessidade de
uma melhor compreensão dessa relação entre pensamento e sensibilidade num
entrecruzamento com a política, do que propriamente a construção de uma imagem ou
de uma caricatura para sua subjetividade à época, definindo-o num dado território
político. Não queremos dizer quem era Gilberto Freyre, nem tampouco definir sua visão
de mundo, tarefa no mais das vezes inviável numa prática historiográfica lucida. O que
queremos é traçar uma análise, riscar um mapa em que possamos grafar e problematizar
a condição de possibilidade de dadas trajetórias que seu discurso, de caráter
eminentemente saudosista, expressava, instaurava e a que se conectava politicamente. É
sob esta necessidade de investigar as implicações de uma dada saudade do passado em
seus aspectos políticos que desejamos continuar.
Comecemos pelo artigo ´´ A democracia nos Estados Unidos``, texto que é de
suma importância para a compreensão das pulsações políticas que atravessavam o
pensamento e a sensibilidade de Gilberto Freyre. Escrito em 1923, esse artigo é o único
da série que estamos pesquisando que não se destinava diretamente a sociedade
pernambucana, apesar de ter sido publicado posteriormente no Diário de Pernambuco,
ainda dentro do conjunto de textos da série Da Outra América. Em abril deste ano,
Freyre se encontrava em viagem pela Europa, onde Portugal foi seu ultimo destino antes
do regresso ao Brasil. É a partir de sua vivência na capital lusitana que esse artigo foi
escrito, tendo sido publicado na coluna de honra do jornal Correio da Manhã de Lisboa.
A escolha do tema já indica a atmosfera política que vivia Portugal à época: um país que
se encontrava numa verdadeira crise política, onde forças opostas divergiam
95 O termo ´´ pulsação política`` foi trazido para o texto por influência dos conceitos construídos pelo filósofo e psicanalista francês Felix Guattari. Entendendo a política como força que faz pulsar e irrigar os territórios e as relações de força que nos constituem, ao mesmo tempo que pulsar politicamente implica dar vazão a novas possibilidades de organização individual e coletiva. Assim, ´´pulsações políticas`` podem ser entendidas como o movimento que se constrói entre o desejo e o campo social, numa esfera política. Ver: GUATTARI, Felix. Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo. Rio de janeiro. Brasiliense, 1981.
62
constantemente sobre os rumos da nação. O embate entre defensores dos ideais
democráticos e defensores dos ideais monárquicos encontrava-se a pleno vapor numa
república fragmentada pela efervescência de projetos distintos e é nesse contexto de
muita divergência política que Freyre insere suas perspectivas com um curioso relato
sobre as novas tendências críticas à democracia que se desenvolviam nos Estados
Unidos, país que representava o grande berço dos valores democráticos e onde se via
nascer uma espécie de reação intelectual antidemocrática que encantava a Freyre e lhe
estimulava sobremaneira na sua reflexão sobre o contexto brasileiro, especialmente
sobre a necessidade de reagir em defesa do passado ou mais especificamente reagir
contra as transformações do presente motivadas pela expansão da cultura burguesa e do
ideário democrático. Em carta enviada a Oliveira Lima, ele diz estar observando em
Portugal uma situação política interessante, porém carregada de tragicomédia no
conflito entre republicanos e monárquicos. Diz-nos Freyre:
A situação aqui é interessante, ainda que tenha um aspecto carregado de
tragicomédia. A fraqueza da República é evidente da atitude violenta dos
deputados republicanos e dos cartazes que se veem nas paredes prometendo
arrancar as orelhas aos monárquicos, no caso de traição. Os melhores elementos
parecem estar com os monárquicos e as doutrinas de Maurras estão encontrando
eco entre a geração nova. Ainda bem!96
Se a escolha do tema para o artigo encontrava justificativa pelo próprio momento
político que Portugal atravessava, é interessante salientar que a temática também
encontrava ressonância com a subsequente ação cultural que o jovem pernambucano
viria a encabeçar alguns meses após seu regresso ao Brasil, se organizando
coletivamente através do movimento regionalista e tradicionalista do Nordeste. Em
ambos os países a expansão dos valores democráticos e burgueses era experimentado
com relutância por setores da sociedade que vinham perdendo centralidade nas relações
de poder e assim os dois países também experimentavam formas distintas de
saudosismos que afloravam como modos de pensar e sentir o presente e reinventar o
passado, não só do ponto de vista de uma singular construção indentitária, mas
principalmente na defesa de dados posicionamentos políticos. Freyre estava atento a
esses movimentos, estando em contato com sujeitos importantes que integravam
movimentos saudosistas portugueses como o filósofo e historiador Fidelino de 96 Carta envidada para Lima em 26/1/1923. In: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Campinas, Mercado de letras, 2005. p. 166
63
Figueiredo e o cônsul F. de Souza que era diretor do jornal Época que segundo o
próprio Freyre representava o renascimento do sentimento religioso e do
tradicionalismo de Portugal.
Assim sendo, diante da infinidade de temas possíveis para a escrita de um artigo
para o jornal português, foi o tema da reação antidemocrática americana que prevaleceu
e esse acontecimento evidencia a atualidade e a relevância dessa discussão para certas
camadas da sociedade portuguesa que, tal qual Gilberto, reivindicavam uma nova
maneira de se relacionar com as relações de poder construídas no passado. Emergia em
Portugal desde o inicio do século uma nova sensibilidade política saudosista. Sobretudo
a partir do advento da república em 1910, república que entre trancos e barrancos se
manteve até 1926 quando instalou-se na administração política do país um regime
ditatorial. O que queremos dizer é que em 1923, Freyre se encontrava em meio a um
intenso contexto político e talvez por isso tenha escolhido um tema tão contundente para
o seu artigo. Mas o que exatamente ele tinha a dizer para a sociedade portuguesa?
O artigo inicia traçando um perfil do homem norte americano que apesar de sua
notória capacidade inventiva e espírito de aventura, sabia alimentar o culto pelo
passado, sabia cultivar uma forma especifica de tradicionalismo, criando assim uma
sensibilidade saudosista para com a vida muito diferente do saudosismo português,
segundo Freyre:
Porque o tradicionalismo americano, longe de ser um como saudosismo
coletivo, vago e passivo, é ativo, dinâmico, pragmático. Reconhecendo a
influência dos mortos sobre os vivos, o povo que, em tantos sentidos, é mais
contemporâneo da posteridade do que do nosso tempo, volta-se
constantemente para o passado, como para um velho mestre. Isto talvez é
paradoxal. Mas é pelo paradoxo que o bom senso muita vez se manifesta.97
Dinamizar o saudosismo do passado numa ação política dinâmica no presente é
uma necessidade a qual Freyre recorreu aos críticos americanos para informar aos
portugueses. Ele parece criticar um saudosismo coletivo que não se transforme em
substância psicopolítica para uma ação efetiva, deixando-se transformar em energia
passiva, desconectada de uma ação pragmática no presente. Pois o saudosismo seria
uma experiência moderna, não se restringindo a um simples culto aos elementos do
97FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol I. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 236
64
passado, ou seja, numa democracia como a americana ele salienta as possibilidades
levantadas por autores que considera antidemocráticos, como George Santayanna98,
Lawrence Lowell99, Henry Mencken100 e Franklin Giddings101. A própria saúde política
e social dos Estados Unidos, diz ele, resultaria deum dado equilíbrio entre modernidade
e tradição, que mais especificamente tem a ver com a participação política das antigas
elites nas esferas administrativas, segurando as rédeas da democracia para que ela não
se torne ´´ desvairada`` e assim ele usa o exemplo de Theodore Roosevelt, como alguém
que vindo das antigas elites soube se inserir na política e manter relações distintas,
segundo ele, de uma dada pregação democrática que ganhava força no inicio do século.
Se no passado a guerra civil norte americana acabou resultando no aniquilamento
político das aristocracias do sul, afastando essa gente dos negócios políticos, nos
Estados Unidos já havia chegado o momento de inserir novamente os sujeitos que
integram essa camada da sociedade no aparelho de Estado, pois de acordo com Freyre
as elites do passado trazem consigo uma real superioridade para a liderança e para o
encaminhamento dos assuntos políticos de uma Nação. Ele procura demonstrar com seu
artigo, que a democracia mais moderna que o Ocidente conhecera até então, sabia
vincular-se às antigas elites, aos reais superiores, ´´ de modo que, na suposta terra
clássica da democracia, assistimos, neste momento, à reação de forças nitidamente
antidemocráticas ao organizar-se duma aristocracia técnica``.
O texto indica que o tal equilíbrio entre modernidade e tradição tem a ver com a
participação na política moderna, burguesa e capitalista, das antigas elites aristocráticas
e em grande medida avessas aos valores democráticos, pelo simples fato delas
representarem o que seria a tradição e o passado da sociedade atual. Percebam como a
criação desses discursos tradicionalistas estava filiado a busca por novos espaços de
poder que garantissem a permanência de dados grupos sociais na política, no Estado,
pelo fato dessa elite, que estava se marginalizando com a expansão do liberalismo e dos
valores burgueses, representar um dado elo com o passado que necessitaria ser
preservado para a própria preservação de uma dada ´´ saúde social``. É sob este fundo
98 Ensaísta, poeta e filósofo espanhol que viveu a maior parte de sua vida nos Estados Unidos. ( 1863-1952) 99 Educador norte americano, foi presidente da universidade de Harvard entre 1909 e 1933. ( 1856- 1943) 100 Crítico social norte americano. Foi através dos livros de Mencken que Freyre entra em contato com o pensamento do filósofo alemão FriederichNiezstche. ( 1880- 1956) 101 Sociólogo e economista e renomado professor. Freyre fora seu aluno durante seu período de estudos na Universidade de Columbia, entre 1921 e 1923. ( 1855- 1931)
65
político que vai se construindo as bases do tradicionalismo freyreano, que como
sabemos, falava em nome das elites agrárias, dos tais ´´homens superiores``, dos
proprietários de terra e de toda a gente que no passado mandava e desmandava ao seu
bel prazer, dos privilegiados pela matriz de desigualdade de um conjunto de relações de
força que alicerçou a emergência dessa mesma elite. É para esta gente que o
tradicionalismo falava, do ponto de vista político, para defender lugares de poder que só
poderiam permanecer a partir do momento que se tornasse importante cultuar o passado
em seu mais variados aspectos. Ao que tudo indica, o discurso político de Gilberto
Freyre lutava pela permanência de dados privilégios por parte de uma pequena parcela
de sujeitos, de famílias, de redes de poder firmadas numa vida social anterior a cultura
industrial, liberal, capitalista e republicana que estava se firmando no Ocidente.
Lido por portugueses e brasileiros, o artigo pontua a visão aristocrática do autor
sobre a realidade política de sua época. Enquanto intelectual ele se situa como parte
uma rede que fala em favor das antigas elites, defendendo a inserção destes grupos na
política pelo fato delas representarem uma dada tradição, que na verdade está sendo
construída pela juventude de sua época, na qual ele faz parte. O esquecimento do
passado, que tanto preocupa seu pensamento e aflige sua sensibilidade deveria ser
combatido pelainteligência crítica das gerações mais novas. Assim, é com outro artigo
destinado a pensar o curioso caso da vida política em Portugal que Freyre deixa mais
rastros sobre seus inclinamentos políticos. No texto publicado em julho de 1923, já de
volta ao Brasil,ele discorre sobre o regime republicano português a partir de uma fala de
Oliveira Lima em que este afirma que o novo regime lusitano quer que o povo olvide
em absoluto o antigo regime. É contra esse esquecimento que estaria se insurgindo a
inteligência crítica das gerações mais novas. Segundo Freyre os integralistas
portugueses representariam essa juventude crítica e ocupada em transformar a política
promovendo uma nova ligação entre tradição e modernidade. Para o autor, os
integralistas seriam monárquicos de vanguarda, a melhor Inteligência e maior bravura
de ação portuguesas em contraposição aos homens da Seara Nova, que seriam a ´´ ala
dos namorados`` da democracia livre pensadora de Portugal. Assim sendo
O movimento antiliberal português, longe de ser puro espirit de minorité, é
um esforço consciente de reintegração nacional. A reintegração do país em
seu caráter e nas suas tradições, desfiguradas por uma como espessa camada
66
de cem anos de constitucionalismo acaciano e, ultimamente, de delírio
demagógico.102
Mas qual era a grande afirmação política e existencial que o integralismo oferecia?
O que excitava a subjetividade de Freyre no programa político integralista lusitano? Ele
nos dá a resposta ao fim do mesmo artigo citando os dizeres de algum militante do
movimento, abrindo as devidas aspas ele concluiu seu elogio a esta tal ``vanguarda
monárquica`` ao afirmar que ela não buscava pelo regresso do passado, ou seja, ela não
representava um saudosismo estagnado pelo sentimentalismo de uma ausência do
passado impossível de concretizar-se, faltoso e portanto engessado em sua própria
condição de existir. Ao contrário, o que os integralistas desejavam e solicitavam a
sociedade, segundo Freyre, era pedir a experiência do que foi as normas seguras do que
deve ser103. Ora, mas esse tipo de compreensão não seria a própria encarnação de um
desejo de imutabilidade das relações de poder? Esperar que o passado ministrasse a
continuidade da vida no presente não seria negar-se a experimentação de novos
horizontes políticos e existenciais? No fundo da acepção integralista, a qual Freyre
engendra em seu discurso, não estaria situada a negação do próprio movimento da
história em prol de uma concepção de realidade forjada numa dinâmica estagnadora?
Por mais dinâmico e ativo que se queira, saudosismo implica necessariamente uma luta,
um embate agônico contra o tempo, contra a história e contra a transmutação dos
espaços e das relações de poder e as fontes nos mostram que Freyre buscava atrelar-se a
movimentos que garantissem certezas, verdades, absolutos e leis transcendentais para a
sociedade, pois através dessas formas de se colocar politicamente haveria uma
possibilidade de adequação ou de normatização das contingências do presente pelas
experiências do passado. Pensamento germinado numa sensibilidade antirrevolucionária
por excelência que não acreditava em transformações pois não concebia e acima de tudo
reagia frente a desterritorialização dos antigos lugares sociais que as elites agrárias
ocupavam no conjunto da sociedade brasileira. Seu pensamento procurava denunciar e
tratar como perigoso e ameaçador o deslocamento, a nomadização, a possibilidade de
ruptura das amarras às estruturas antigas de uma vida social onde cada um tinha seu
lugar bem definido, um mundo que ele procurou idealizar em seu discurso regionalista
102FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 277 103 No artigo de número 11 da série Artigos Numerados a citação que Freyre supostamente colheu de um militante do movimento integralista lusitano diz ´´ Pedimos a experiência do que foi as normas seguras do que deve ser`` Idem. p. 278
67
como um mundo harmônico, onde se vivia em tranquilidade e equilíbrio, seja na casa
grande ou na senzala, no sobrado ou no mocambo, a experiência pré-capitalista e pré-
republicana que lhe interessava. Freyre fazia parte de uma dada subjetividade coletiva
que reagia atudo que a modernidade já havia realizado e continuava realizando
politicamente, pois o novo diagrama de forças que se expandia com a experiência
burguesa desterritorializava tudo quanto fosse possível e isto ameaçava a mente dos que
não sabiam o que fazer com o presente a não ser projetá-lo como continuidade do
passado, buscando criar meios para que dadas imagens e discursos sobrevivessem
através da construção de um conceito de tradição que abrigue as experiências que
estavam se perdendo com o advento da modernidade.
O que torna possível a conexão entre uma dada maneira saudosista de pensar e
sentir a realidade social com movimentos políticos conservadores é justamente a
necessidade de ordem, obediência e intolerância que estes movimentos suscitavam em
suas práticas e discursos no início do século XX. Nada mais sedutor para um sujeito que
teme a dissolução da vida social do passado e os símbolos que esta engendrava do que
filiar-se sentimentalmente as propostas de grupos políticos reativos, que reagem a
mudança, que a negam, que lutam pela permanência de uma ordem que garanta uma
relação de negação das alteridades e das transformações que a modernidade inspirava.
Não que estejamos fazendo um elogio às benesses da vida moderna, capitalista,
burguesa e liberal, não se trata de definir os vilões e mocinhos de uma época. Ao
contrário, o que buscamos nessa reflexão é compreender em relação a que o saudosismo
freyreano reagia e em que contextos políticos ele encontrava respaldo para legitimar
seus discursos. Ao fazer isso, observamos que é sempre do lado dos movimentos de
extrema direita que sua subjetividade encontrava conforto, pois o que permitia a
existência desses grupos era justamente a saudade do passado, travando uma luta pela
permanência de ordens, valores, costumes e mecanismos de poder que se encontravam
em vias de dissolução ou já dissolvidos pela experiência moderna.
Além de admirador e divulgador do ideário integralista lusitano, na década de vinte
Gilberto Freyre também flertava com a extrema direita francesa. A ActionFrançaise,
que tinha como líder e ideólogo o intelectual monarquista Charles Maurras104, era um
movimento contrarrevolucionário francês que construiu canais importantes de
divulgação de suas ideias nas primeiras décadas do século XX. Em setembro de 1923, 104 Dirigente e fundador do jornal e movimento monarquista ActionFrançaise. ( 1868- 1952)
68
alguns meses após retornar ao Brasil, Freyre afirma que por mais de um ano estivera em
contato com a literatura antirrevolucionária de Maurrase ´´ sabia-o mestre influente e
inquietante``.105 Ao falar do movimento, no artigo numerado 20, enviado dos EUA para
ser publicado no Diário de Pernambuco, ele usa como mote para sua a escrita as cartas
de dois amigos que vivem na França e lhe escreveram sobre a Action. O primeiro era
um rebelde que fala coisas absurdas demais para ser perigosas, tal qual Max Stirner106,
alguém que não buscava vínculos nem com os sistemas de poder do passado, nem com
as do presente. O segundo é um jovem de família tradicional parisiense que vai a missa
aos domingos, a carta enviada a Freyre chegara com o brasão e um anel d´armasde sua
família. Não é preciso dizer que o primeiro é bastante reticente sobre o pensamento de
Maurras, enquanto o segundo ´´ pertence pelo sangue e pelo espirito à
ActionFrançaise``, posto que é em nome das elites tradicionais, aristocráticas e
contrárias ao ideário republicano que 1789 inspirava que a Action encontrava adeptos,
seguidores e militantes. De acordo com Gilberto Freyre, o movimento opõe-se a
Darwin, a Quinton e aos filósofos da revolução, da liberdade e da igualdade. Em
oposição a isso defendem a manutenção da autoridade, da ordem e da hierarquia e por
fim, são simpáticos ao catolicismo.
Como se vê, a intolerância dos movimentos de extrema direita europeus dizia a
Freyre coisas importantes para sua empreitada de crítico ao processo de modernização
que o Ocidente vivia, em especial, a modernização que Pernambuco experimentava e os
subsequentes reagrupamentos da conjuntura política e econômica para uma região que
deixarade ser centro, para tornar-se periferia do novo diagrama de forças nacional.
Progressivamente os seus artigos para o Diário de Pernambuco vão apresentando, em
momentos diversos, posicionamentos políticos que insinuam a defesa de certa relação
de intolerância, nem sempre bem elucidada pelo seu discurso, para com influências que
poderiam ´´ desvirtuar`` o ´´caráter`` de uma cultura. É o caso desse fragmento
encontradono artigo 79, publicado em outubro de 1924 onde ele diz que
105 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 302 106 Ensaísta alemão que escreveu em 1844 o livro ´´ O único e sua propriedade`` contendo critica contundente aos pilares da sociedade à época: Igreja, Família e Estado. Defensor de um egoísmo radical, teve sua obra posteriormente conectada ao pensamento anarquista de dimensões individualistas. Antecipando importantes reflexões para a cultura ocidental, como a morte de Deus, o nascimento do homem e a importância da criação de modos de existência singulares acabou caindo no limbo e no esquecimento em vida. STIRNER, Max. O único e sua propriedade. São Paulo. Martins Fontes, 2009.
69
Um povo só se mantém pela intolerância no que diz respeito à sua tradição e ao seu
sentimento: nesta esfera de valores espirituais a tolerância significa desorientação,
suicídio nacional, renúncia da personalidade107
O autor sugere que para que exista uma ideia de povo efetivamente condensada à
experiência dos indivíduos, no interior mesmo de suas personalidades, é necessário que
nesta esfera específica de valores, haja um posicionamento intolerante para com as
tendências desterritorializadoras que por via dos acontecimentos atravessem esta esfera,
pois nesta dimensão específica o povo precisa da intolerância para se sustentar. Não
havendo isso, tanto a ideia de se sentir membro de uma coletividade, quanto a sensação
de se pensar no interior de uma história comum, de um enredo histórico partilhado
coletivamente, acaba por se estilhaçar, tendo como consequência a desagregação
subjetiva de um dado conjunto de relações que o autor nomeia por ´´povo``. Dizemos
isso pelo próprio momento histórico que se situam os discursos de Giberto Freyre, eles
fazem parte do dispositivo de formação discursiva nacional popular108 , portanto
pertencem a um momento onde se construíam variações e modulações distintas de
identidades nacionais e regionais. Como sabemos, as imagens e discursos desenvolvidos
através de Freyre e seus companheiros do centro regionalista e tradicionalista do
nordeste criaram um povo, com histórias, tradições, passados, toda uma genealogia
afetiva e subjetiva que se queria conectada ao presente dos indivíduos, que agia em
nome da corporificação dessas elaborações como sendo o próprio caráter do ser, sua
personalidade, integrando coletivamente a personalidade de um povo, de uma nação.
Sendo assim, a intolerância que o autor sustenta tem a ver com a aceitação de uma dada
elaboração, de um dado processo de subjetivação que garanta a permanência de
elementos do passado que seu saudosismo apreende como sendo a grande
representação, a imagem primeira do ser brasileiro e, portanto, do ser nordestino.
O sentimento e a tradição que deveria ser preservada não é uma instância
transcendental ahistórica, alheia a temporalidade e a uma demarcação espacial. Se trata
sim, de um sentimento e uma tradição que remetem as práticas sociais da sociedade de
engenho, da vida, dos afetos, dos sabores, das leis, das estigmatizações e dos
preconceitos, da estética e da paisagem da vida social construída pela cultura da cana de
107 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol. II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 83 108 Sobre os saberes, poderes e processos de subjetivação que integravam o dispositivo de formação nacional popular, ver: ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São Paulo. Ed. Cortez, 2009.
70
açúcar do norte do Brasil entre meados do século XVIII até meados do século XIX. A
mesma vida social que Freyre pesquisou em seu trabalho de mestrado na Universidade
de Columbia, tendo como fonte principal de suas pesquisas o relato de viajantes
europeus à época. São aspectos da cultura e também privilégios de poder das relações
políticas da época que deveriam permanecer estáticos nos valores espirituais dos
indivíduos, do povo. Nesse caso, quem eram os inimigos? Contra quem e contra o que
se deveria ser intolerante para evitar um suicídio nacional ou uma perda de
personalidade?
Continuando sua explicação sobre a necessidade de práticas intolerantes em nome
do espírito do povo, ele afirma que
quantos aos povos, tudo quanto lhes for hostil às tradições espirituais, ao
sentimento, à individualidade, deve merecer a intolerância(...)Nós,
brasileiros, já sem aqueles cacos de vidro que nos ouriçavam as fronteiras- a
febre amarela, cujo desaparecimento chegou a lamentar Mello Moraes
Filho- devemos nos endurecer mais numa natural e legítima intolerância,
contra as forças hostis ao nosso espírito.109
Assim, Freyre parece ter aprendido muito bem a lição do conservadorismo político
europeu da década de 20, sobretudo com o integralismo e monarquismo portugueses e
com a ação francesa também monárquica. Além de já sofrer forte influência de uma
série de intelectuais antidemocráticos norte americanos. A ação cultural do regionalismo
e tradicionalismo consistia justamente em empreender o arquivo de imagens e discursos
que representariam esse tal espírito nacional, sem dúvida acentuando a questão da
identidade regional, mas sempre inserindo-a no conjunto de um dado espírito nacional,
brasileiro. Percebam como a invenção das tradições nordestina encontrava-se em seu
estágio germinal e a importância de Gilberto Freyre é inegável na compreensão desse
processo histórico. As tradições espirituais eram construídas a partir e através do
sentimento e do desenvolvimento intelectual, ético e estético de uma relação saudosa,
reativa e em grande medida adepta do conservadorismo político. Saudosismo ao mesmo
tempo criador e reativo, inovador e reacionário.
É interessante observar quequestão da intolerância e da necessidade de ordem e
ortodoxia se manifestava no pensamento de Freyre de maneira contundente nos fins de
109 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 84
71
1924. O artigo seguinte110 a este que acabamos de analisar também abordava a questão
da ortodoxia, porém sob outra ótica, numa outra perspectiva. Agora, a questão do
envolvimento da mocidade na defesa das tradições era colocada como centro da
questão, tratava-se de agir em nome daquilo que os mais velhos abandonaram. Ao falar
de um artigo escrito por José Lins do Rêgo para a revista paraibana Era Nova, Freyre
pondera que o Brasil estaria vivendo um momento muito diferente dos demais, em
nenhum outro lugar ´´ a ortodoxia é mais romance que no Brasil``. Para ele, num país
onde a geração passada, a geração dos seus pais, não possuem nenhum espírito de
ordem. No exército, no clero e nas faculdades de direito nãoestavam cumprindo suas
tarefas de mantenedores da ordem. Na esteira de Zé Lins, ele afirma que é a mocidade
que vem reagindo a esse processo, no exército mesmo já estaria acontecendo uma
reação para colocar sua ação no foco correto, que seria, para o autor, ser um relógio fiel
que marca as horas da tradição e da ordem nacional. O final do texto reitera o papel da
juventude nesse movimento de ordenação, controle e intolerância para com as forças
que não representam a manutenção dos mesmo códigos que o tradicionalismo defendia.
A ´´ missão dos moços`` seria portanto agir e fazer aquilo que os mais velhos não
faziam, a saber, amarrar a experiência do presente aos códigos sociais do passado
inventando tradições e identidades que garantam a ligação e a corporificação desses
códigos no campo social. Não seria o mesmo intento suscitado pelo integralismo
lusitano, aquele que defendia que se pedisse a experiência do que foi as normas seguras
do que deve ser?
Continuando suas reflexões sobre as diversas formas de reações críticas à
modernidade que emergiam no contexto europeu, Freyre indaga em artigo escrito em
meados de 1925, qual seriam os movimentos políticos e autores mais indicados para que
a mocidade brasileira pensasse o caso particular de uma reação crítica nacional. No
artigo intitulado ´´ Sugestões a um livreiro``, ele afirma que no caso especifico do Brasil
caberia
A aproximação dos adolescentes brasileiros que já não creem na ´´ perfeição da
Democracia``- deve ser antes com o movimento não sei se diga ´ ́ reacionário``
português, ou hispânico, que com o francês. Tem razão o Sr. José Lins em falar de
Antônio Sardinha e do Sr. Fidelino de Figueiredo como melhores mestres para a
mocidade do Brasil que os divulgadores franceses. Isso sem subestimar Maurras.
110 Idem. p. 85-86
72
Ou Georges Sorel. Ao nosso esforço de retificação mental e de reorganização
social e política fora da ideologia simplesmente democrática, o que primeiramente
convém é o critério hispânico e na tradição sociologicamente católica; e que nos
libertes do vago ´´ panlatinismo`` dos ´´ toasts``do Sr. Sousa Dantas e dos lirismos
do Sr. Graça Aranha.111
Segundo Freyre, o modelo francês representava uma sistematização de ideias para a
aplicação num caso bastante especifico, posto que a França havia a muito sido
desorganizada pelo liberalismo e enfraquecida pela centralização, criar um sentimento
de pátria através da inteligência conservadora de Maurras e Sorel112 era um projeto
importante e interessante, porém o caso do Brasil pedia uma aproximação mais efetiva
com os movimentos e intelectuais portugueses e espanhóis. Ele nos fala que se tivesse
autoridade , indicaria aos adolescentes brasileiros desencantados com o liberalismo a
leitura de autores como: Menendez Y Pelaio113, Gama e Castro114, Angel Ganivet115, J.
Lúcio de Azevedo116, Fidelino de Figueiredo117 e Antônio Sardinha118. Além disso,
indica os livros: Aliança Peninsular, de Sardinha; O novo príncipe, de Gama e Castro;
O seiscentismo em Portugal e Cultura Peninsular, de Manuel Múrias119; O pensamento
integralista, de Fernão de Vide. Assim o jovem pernambucano nos esboça um
importante mapa de leituras, intelectuais e movimentos políticos que não só serviriam
para a juventude crítica brasileira, mas acima de tudo serviram para o próprio Gilberto
Freyre na formação de seu pensamento político e sensibilidade saudosista conservadora.
Como fica claro, sua ideia era despertar o interesse dos jovens para uma ação política de
retificação mental ereorganização social que ultrapassasse os limites do ideário
democrático, filiando-se a pulsações políticas de extrema direita pois estas se
conectavam muito bem ao seus anseios intelectuais, dentre os quais o pensamento
111 Idem. p. 175-176 112 Teórico francês controverso, participou do movimento sindicalista de extrema esquerda mas que no fim da vida passa a flertar com a extrema direita de Maurras. ( 1847 – 1922) 113 Intelectual hispânico, membro de partido conservador neocatólico espanhol. ( 1856- 1912) 114 Intelectual português que escreveu o livro ´´ O novo príncipe, ou o espirito dos governos monarchicos``. 115 Escrito e diplomata espanhol. ( 1865- 1898) 116 Renomado historiador português, que passou alguns anos de sua vida no Brasil, em Belém do Pará. Era amigos dos historiadores brasileiros, Olveira Lima e Capistrano de Abreu. ( 1865- 19330 117 Historiador, crítico literário, político e professor. Português, Freyre teve a oportunidade de conhece-lo enquanto esteve viajando pela Europa em 1923. ( 1889- 1967) 118 Principal referencia intelectual e política do Integralismo lusitano. ( 1887- 1925) 119 Político português, participou ativamente do movimento integralista lusitano e posteriormente se torna diretor do órgão oficial da União Nacional no regime salazarista, além de ter sido deputado durante o Estado Novo português. ( 1900 – 1960)
73
regionalista e tradicionalista fazia parte, tendo importância central nessa fase de sua
vida.
Interessante observar como Gilberto Freyre respirava a atmosfera de sua época e
quais os delineamentos políticos e existenciais a que sua subjetividade se conectava. Ele
encarnava em seus discursos os projeto políticos mais reacionários do período, que na
sua leitura eram vistos como movimentos críticos que reivindicavam uma ação política
e social não democrática. Deixando os eufemismos de lado, seria mais simples se
falássemos que as saudades do passado sentidas por Freyre e por vários outros
indivíduos à época representava um sintoma da própria experiência moderna a que
estavam submetidos, posto que a intensificação das relações capitalistas no Ocidente
fazia emergir novos territórios existenciais e políticos distintos daqueles que antecediam
o processo de modernização experimentado na Europa nos fins do século XVIII e no
Brasil em meados do século XIX. O capitalismo industrial, entendido como força
motriz de uma multiplicidade de movimentos desterritorializadores, estava abalando as
estruturas do mundo patriarcal, açucareiro e aristocrático do Recife há pelo menos70
anos. Portanto, Freyre era produto de uma geração de netos e bisnetos de antigas
famílias proprietárias de terra que haviam experimentado um intenso declínio do seu
modo de vida e consequentemente dos lugares sociais que ocupavam e das relações de
poder que os sustentavam. A emergência de uma sensibilidade saudosista na atmosfera
política e social da década de 20 no caso de Recife é resultado de um movimento de
negação e desencantamento coletivo com a experiência democrática, capitalista e liberal
que se desenvolvia no Ocidente e que já encontrava ampla produção literária , histórica,
filosófica e política em países como a Inglaterra, França, Portugal e Estados Unidos,
pois estes já haviam experimentado processo semelhante anteriormente. Logo, a
singularidade da experiência de Gillberto Freyre consiste no fato dele ter sido um dos
primeiros sujeitos no Brasil a aprofundar-se sob esta atmosfera sensível saudosista da
qual ele mesmo fazia parte, deixando nos seus artigos para o Diário de Pernambuco,
relatos históricos de muito interesse para quem pesquisa essa dimensão do período, pois
atento as suas saudades ele criava meios de expressão através de suas elaborações
regionalistas e tradicionalistas para falar sobre um processo que era experimentado
coletivamente. O saudosismo de sua geração chegava à constatação de que era preciso
dar um lugar digno para a experiência do passado, e é na invenção das tradições e de
uma identidade regional que elas estariam contempladas no discurso histórico. Mas
74
como não se tratava de algo meramente simbólico, esses saudosistas também
reivindicavam transformações políticase sociais, e aí seus desejos e crenças eram
representados pelos movimentos políticos de extrema direita da época. Integralistas e
monarquistas eram a expressão política de muitas consciências e sensibilidades
saudosistas, dentre elas a de Gilberto Freyre.
BREVIÁRIO DE UMA EGODICEIA120 SAUDOSA
Nas palavras do próprio Freyre encontramos combustível para seguir nossa
problematização em torno das modulações saudosistas empreendidas pelo autor durante
a década de 20 do século passado. Segundo ele, há um sentido, uma razão de ser para a
reação crítica que os de sua geração experimentavam. Assim, em fins de 1925 ele nos
diz que :
E de fato este é o grande sentido da reação que se acentua no Brasil, de maneira um
tanto semelhante a que há dez anos vem agitando os Estados Unidos: Uma geração
de brasileiros começa a ver e a viver velhas coisas brasileiras como se as visse e as
vivesse pela primeira vez.121
Mas esse olhar e esse viver eram uma expressão nova, moderna, historicamente
demarcável,tornada possível pelo sentimento de saudade do passado que brotava nessa
geração de jovens saudosistas. Seus olhares e suas experiências davam vazão a forças
que atualizavam as relações do passado em novas perspectivas, criando um novo lugar,
um novo habitat para estas ´´ velhas coisas brasileiras`. Essa geração de brasileiros que
começava a ver e viver as velhas coisas brasileiras como se as vive e vivesse pela
primeira vez faz parte de uma determinada subjetividade coletiva, um determinado
processo de subjetivação que a modernidade engendrou, que por conseguinte
engendrava uma maneira especifica de pensar, sentir e agir, uma forma singular de se
relacionar com o tempo e as com as transformações que se efetivavam através dele, em
suma, se formavam territórios existenciais saudosistas que expressavam uma
120 ´´ Sou por um inconsciente vitalista, energético, materialista, histórico. Por conseguinte, a apreensão de uma filosofia não pode ser efetuada no modo estruturalista e formal, platônico, como se o texto pairasse no éter, entre duas águas metafísicas, sem raízes, sem relações com o mundo real e concreto. É necessário portanto aperfeiçoar um método de leitura para trazer à luz as engrenagens desse mecanismo de egodiceia.`` in: ONFRAY, Michel. A potência de existir. São Paulo. Martins Fontes, 2010 p.18 121 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 226
75
necessidade de religação com um dado passado onde as coisas da vida não eram como
as do presente . É nesse sentido que o lugar da tradição emerge. E esta busca pelas
coisas do passado acaba por dar conteúdo e expressão para modos de existência
saudosistas no presente. Claramente a experiência de viagem de Gilberto Freyre ao
longo deste período foi fundamental para a elaboração dos conceitos de regionalismo e
tradicionalismo e para as ações culturais que o Centro Regionalista desenvolveu em
Recife durante a década de 20. Não é a toa que sua figura torna-se central para aqueles
sujeitos que também cultivavam suas saudades, sempre atreladas a um dado
desencantamento com o presente.
Essa geração lamentava o fim da vida aristocrática que remetia ao tempo dos seus
avós, eles cultivavam a saudade da infância, dos tempos de moleque onde a vida não
lhes soava tão ameaçadora e cheia de incertezas como lhes parecia ser o momento atual.
A oscilação e os movimentos da vida moderna, aprofundada a experiência capitalista,
eram muito mais intensos que à antiga sociedade patriarcal, que lhes soava muito mais
estável em seu ritmo. Os lugares sociais não se modificavam tanto quanto na vida
moderna e essa constatação gerava um profundo pesar no pensamento de Gilberto
Freyre, pois na modernidade estar no alto não garantia permanecer no topo, a
possibilidade de ascensão e queda no padrão de vida econômico, por exemplo,lançava
os indivíduos num estado de incerteza perpétuo sobre suas vidas no futuro, é um
processo de subjetivação comum ao ritmo do capitalismo que não cessava de
potencializar distintas formas de lidar com essa sensação. Uma espécie de estado de
espírito, em outros termos, a mescla de modos de pensar e sentir que emergiram no
início do século no Brasil pensando e sentindo o presente a partir de dimensões
saudosistas, mas também nostálgicas e decadentistas122. Um sujeito como o jovem
Freyre, que se pensava no interior de um território existencial recortado por uma
sensibilidade aristocrática lamentava o declínio do mundo onde um aristocrata poderia
viver sem tanta decadência como na década de vinte do século passado. Por essa razão
ele escreveu em 1921 uma passagem muito contundente sobre o declínio da sociedade
aristocrática pernambucana, relato inspirado na crítica social de Henry Mencken, pois
122 Em grande medida a pesquisa realizada pela historiadora Pallares Burke consiste em mapear a formação intelectual e sensível de Gilberto Freyre através de seu modo de ler os autores saxões do período vitoriano. Autores , em sua maioria, cultivadores de uma estética, de uma poética, de modos de expressão históricas e filosóficas atravessados por um sensibilidade comum nostálgica e decadentista. Que influenciaram profundamente a operação estética, histórica e sociológica que Freyre praticava em seus escritos.
76
seu artigo comentava o ultimo lançamento do autor americano, o livro ´´ Credo``. É em
tom de lamento e indignação que Freyre afirma que:
A antiga aristocracia dos engenhos não está descendo ( a maior parte já está no
chão, esparramada como uma jaca mole podre de madura) enquanto sobem
risonhamente os ´´ upstarts``? Encontram-se hoje por aí os rebentos de nossa
´´gentry``- e nós tivemos-la da melhor cepa aristocrática em estado execrável: tipos
sem dignidade, com empregos de 30$ por mês ou sem emprego nenhum,
magricelas amasiados com mulatas gordas de cabelo encarapinhado. O triste fim de
uma aristocracia!123
O estado execrável que fala Freyre é o de um assalariado burguês, com um modesto
salário como a grande maioria. O tom elitista do texto indica a insatisfação com a nova
configuração social que se instaurava. Declarado o triste fim da aristocracia
pernambucana era chegado o momento da juventude reagir criticamente a essas
mudanças, sair em defesa das aristocracias e dos seus privilégios garantidos pelo berço,
pelo nome de famílias, pelas alianças com outras famílias, formando uma rede de
privilegiados que se valiam de uma sociedade que hierarquizava o tecido social de uma
maneira onde grupelhos mandavam e desmandavam ao bel prazer de seus desígnios,
terra dos coronéis e dos homens de engenho estetizada por Freyre, transformada em
mundo harmônico onde a coexistência entre senhores e serviçais era harmônica e
afetiva, muito diferente do trabalhador burguês que se submeteria a um poder
despersonalizado, indiferente. A sua crítica a modernidade era acompanhada de elogios
ao passado e também de um senso político conservador e ortodoxo, que garantisse um
lugar digno para os ´´ Reais Superiores``, os tais ´´ homens de gênio`` que estavam
progressivamente se afastando da vida política, tal qual os aristocratas do sul norte
americano. Seus textos também estão carregados desse desejo por uma transformação
reativa que, segundo ele, retificasse, alinhasse, desse ordem as coisas da vida. Na sua
perspectiva, expressa e impressa nos artigos que publicou ao Diário de Pernambuco ente
1918 e 1926, havia uma preocupação em transformar as experiências do passado, da
vida social, política, estética e sentimental dos antepassados, na fonte onde deveriam ser
buscadas as instruções para o agir no presente. Portanto, esse mundo deveria ser
elogiado, pesado e medido em relação ao presente de uma maneira específica. Se havia
saudosismo é porque sua operação intelectual via, dizia, atualizava a experiência do
123 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.I. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 148
77
passado numa leitura que buscava torna-lo desejável. Na defesa do mundo aristocrático
que pressente declinado, morto, extinto, ele chega a afirmar que:
Os escravos, mais felizes que os trabalhadores de eito e os operários de fábrica de
hoje – tese fácil de provar – eram tão bem alimentados em engenhos, que o fato é
destacado por grande número de viajantes do século décimo nono, muitos deles
abolicionistas até.124
. Para um admirador da vida social aristocrática, como o era Freyre, era lamentável
observar essa transformação, ter que se relacionar com essa modificação que tornava os
descendentes de antigos donos de terra e senhores de engenho em simples assalariados
urbanos, desprovidos do antigo modo de vida que sua descendência os garantiria e que
talvez o próprio Freyre usufruiria caso as antigas relações de poder não tivessem sido
solapadas pelo capitalismo industrial. Ser um trabalhador no mundo burguês em sua
opinião era pior que ser um escravo do século XIX. Esse lamento é de alguém que se
via enquanto aristocrata destituído dos mecanismos sociais, políticos e econômicos que
garantiriam seu estado de ´´ real superior``, para usar o termo de Thomas Carlyle, tão
caro ao pensamento do jovem pernambucano. Sua saudade é também saudade do poder
que ele nunca possuiu, pois já nascera num contexto de decadência social da família
Freyre, já nasceu sem casa própria, morando de aluguel, uma verdadeira sensação de
decadência foi se construindo na vida do neto de um grande homem de posses como foi
seu avô. Talvez esse sentimento de decadência tenha desde muito cedo espreitado a
subjetividade do jovem Gilberto Freyre, talvezessa necessidade de buscar no passado a
sua própria genealogia de grandeza e aristocratismo tenha sido estimulada através do
aprofundamento de seus estudos sobre a vida social do tempo dos seus avós ou o
inverso disso. A questão é que as fontes de sua saudade se encontravam num tempo e
num espaço que ele nem mesmo conheceu ou experimentou diretamente. Mas este
tempo, já morto, declinado, finado, tornava-se novamente presente em sua evocação
saudosista da realidade social de meados do século XIX. O estudo do tempo em que
seus avós viveram dava substância, de alguma maneira, acabava por nutrir a sua
subjetividade saudosista. É por isso que seus escritos de juventude parecem oferecer um
breviário cartográfico da elaboração de um modo de existência saudosista para encarar
os tempos modernos, para lidar com a incontornável rachadura que a experiência
capitalista promoveu. É nesse mundo atravessado pela falta do passado que suas
124 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. Sâo Paulo. Ibrasa, 1978. p. 145
78
práticas regionalistas e tradicionalistas surgem como mecanismo capaz de assegurar
uma nova forma de se relacionar com o tempo morto dos avós, recortando-o e
inserindo-o no novo mundo da tradição criado pelos jovens netos, pela mocidade que se
pensava e se sentia vendo e vivendo as coisas velhas brasileiras pela primeira vez.
Nas palavras de Freyre ´´ isso de ter terra e ser dono dela; isso de ter propriedade e
conhecê-la; isso de saber mandar- foi bom para os nossos avós``, e continua: E havia o
sentimento de família, havia a aliança de parentelas em que acabou entrelaçado todo o
Pernambuco de sangue chamado limpo125. O mundo dos avós o fascinava há muito
tempo e passava, através de sua prática intelectual,a ser idealizado pelo seu saudosismo
sedento pelos privilégios e ´´ doces vagares`` que a vida social antiga garantia às elites,
às chamadas gentes de ´´ sangue chamado limpo``.
Havia uma espécie de fixação pelo mundo dos avós no pensamento de Freyre,
como já dissemos anteriormente. Ele considerava o segundo reinado como o momento
de grande apogeu da vida social brasileira. Nos planos que traçava para a sua
empreitada intelectual, enquanto escritor e pesquisador, estava a ideia de produzir uma
obra que desse conta de compreender a vida da família brasileira no século XIX. Em
carta enviada a Oliveira Lima, Freyre afirma que ´´ é possível que algum dia este seu
amigo apareça com dois volumes debaixo do braço – uma história social da família
brasileira( durante os dois impérios)126. Doze dias depois, numa outra carta escrita para
o mesmo amigo, ele continua expondo seus planos para o futuro, que lhe vem à cabeça
enquanto estava no meio das pesquisas para a seu trabalho de conclusão na
Universidade de Columbia:
Sei que meu estudo é apenas o esqueleto da obra com que sonho e que só com mais
dois anos de pesquisa e trabalho conseguirei terminar. Creio que, se conseguir dar
corpo ao meu plano ´ ́O Brasil dos nossos avós``, produzirei um livro digno de se
ler.127
Obra que aguardou não dois, mas onze anos para vir a tona. O livro Casa Grande e
Senzala, publicado em 1933 representa esse ´´livro digno de se ler`` que estava nos
planos do jovem estudante radicado em Nova York. Mas a principal questão que
125 Publicado em 31/8/1924 no Díario de Pernambuco. In: Idem p.66 126 Carta enviada por Gilberto Freyre em 03/04/1922, enquanto morava em Nova York. In: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: a correspondência de Giberto Freyre e Oliveira Lima. São Paulo. Mercado de Letras, 2005. p. 135 127 Idem. p. 136
79
desejamos extrair dessaafirmação é a relação afetiva que Freyre mantinha com o
contexto histórico do século XIX, com a vida social do tempo dos seus avós. Esse
projeto de aproximação com a vida da família brasileira à época condensava tanto
anseios intelectuais, políticos e sociais e portanto, conscientes, racionais, quanto
motivações sentimentais, afetivas e até mesmo inconscientes, de sua personalidade.
Pois o que emerge dessa defesa do tempo dos avós também se relacionava a uma
constatação de uma outra infância possível num contexto anterior a intensificação das
relações burguesas que desestruturaram as configurações dessa tal ´´família brasileira ``
a partir de meados do século XIX. Parece haver um saudosismo de uma infância que
não lhe foi possível viver, que poderia ter sido mais feliz que a infância que
experimentou. Ele mesmo considerava a criança brasileira, uma criança triste,
transformada logo cedo em pequeno homem, posta diante da realidade incerta do
mundo ainda muito cedo. Há portanto, um saudosismo do passado atravessado por uma
relação nostálgica com uma infância potencialmente possível de ter sido experimentada,
mas que por contingências históricas foi-lhe impossibilitada. Essa sensação de que
potencialmente a vida poderia ter sido outra que vemos se expressar no discurso de
Freyre é vista aqui através das considerações trazidas por Gabriel Tarde. O autor sugere
que a realidade social das subjetividades está inundada de outros possíveis que não se
realizaram e de que esses possíveis devem ser considerados numa análise histórica,
pedimos licença para esta passagem não tão curta do ensaio ´´ Os possíveis`` escrito por
Tarde no início nos fins do século XIX:
É igualmente ilusório ver no tempo e no espaço, como o fazem alguns filósofos,
apenas as relações das formas reais e das mudanças reais, sem levar em conta
mudanças e formas simplesmente concebíveis, ou ver no eu(..)apenas um grupo e
uma série de estados de consciência. Como se a alma não sentisse o que há de
arbitrário e fortuito na necessidade das circunstâncias que a força a se desenvolver
nesse ou naquele sentido! O que ela exprime é nada, comparado ao que arrasta de
não expresso na morte. A cadeia de lembranças mais ou menos distintas e
vaporosas que se chama nosso passado é nossa, mas não énós, pois poderia ter sido
outra; com efeito, as leis da natureza humana nos obrigam a afirmar que, se as
circunstâncias de nossa vida tivessem sido diferentes, nossos estados de
consciência teriam variado. Poderíamos ter tido outros passados que não tivemos;
80
e a afirmação destes passados hipotéticos, necessários sob condição, faz parte
integrante de nossa verdadeira definição128
Para Tarde, na relação que estabelecemos com o tempo se expressam as tensões de
nosso desejo. No seu pensamento, espaço torna-se sinônimo de campo de ação. Assim,
o ponto de vista que expressamos não é exterior aos fluxos históricos que passam por
nós. É o próprio ponto de vista no qual as subjetividades se instalam que encontram
suas origens na história129. Se trata de perceber e procurar empreender aquilo que seria
uma geografia histórica das singularidades através da compreensão da relação que as
possibilidades de outros reais mantém com a realidade que lhes encerra como potência,
como aquele outro passado que poderíamos ter tido. É uma experiência desse tipo que
vemos condensada no discurso de Gilberto Freyre em sua relação saudosista com o
mundo dos avós e a correlativa insatisfação com o universo social destinado a vida das
crianças no mundo moderno. O seu saudosismo parece estar carregado de uma saudade
de um outro passado possível para si próprio, um passado que teria se tornado possível
e real sob outras condições históricas, um passado que não se realizou em decorrência
das fraturas que o mundo moderno criou para romper a antiga ordem das coisas. Seu
saudosismo encarnava um movimento coletivo de muitos sujeitos que o sabiam vivendo
as incertezas da vida moderna, mas que também refletiam que se não fosse a abertura
concedida pela geração de seus pais, as coisas poderiam ter sido diferentes. Essa
potência de uma vida outra, de uma outra possibilidade de existência caso o passado
também tivesse sido outro não pode deixar de ser levada em conta. Ela também se
expressará, o veremos, num ressentimento para com a geração passada, a dos seus pais,
em detrimento de uma busca por conexão com o tempo dos avós. Outro ponto
fundamental, tanto do saudosismo que emerge no Brasil quanto em Portugal. A
compreensão de Freyre o leva a afirmar que a modernidade tornou a ele e os aos de sua
geração, fidalgos arruinados130, sujeitos que por uma experiência ainda recente como a
do capitalismo industrial e do advento da república, perderam a oportunidade de terem
sido outros e agora suas ´´tradições`` se encontravam refugiadas, escondidas, silenciadas
dentro dos fogões, nas árvores, nas construções antigas, nas assombrações, na sombra
128 TARDE, Gabriel. Monodalogia e sociologia. E outros ensaios. São Paulo. Cosac Naiify, 2005. p.201 129 THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde. Sociologia e Subjetividade. Rio de Janeiro. Relume, 2002. p. 58 130 A citação completa é essa, publicada 07/9/1924: Fidalgos arruinados, se há joia de família que ainda nos resta, aos pernambucanos, é a tradição que se refugiou no forno e no fogão de algumas casas. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol. II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p. 69
81
dos becos.. O fato é que havia um modo saudosista de pensar e sentir que desejava
tornar possível outros futuros, daí a dimensão política da saudade regionalista, se tratava
da defesa de um ponto de vista político, que como vimos, encontrava substância para
nutrir-se nos projeto conservadores, reativos e ortodoxos que emergiam na Europa,
sobretudo na França e em Portugal.
É no artigo intitulado ´´ Traição ao Passado```, publicado no Diário de Pernambuco
em agosto de 1925 que encontramos uma passagem que complementa e sintetiza o que
estamos problematizando neste capítulo. À época, Freyre comentava sobre um romance
escrito pelo intelectual português Hipólito Raposo131, o seu livro tratava do caso de uma
antiga família portuguesa que havia se desenraizado da tradição de vida rural para viver
num mundo urbano, capitalista e liberal. Segundo Freyre, um fenômeno deste tipo era
bastante característico do século XIX e começo do século XX, não apenas em Portugal,
mas também no Brasil. Então é numa atmosfera semelhante a experiência que a
sociedade pernambucana vinha vivendo que ele prossegue sua análise da obra, trazendo-
nos um tema fundamental para a compreensão da emergência do saudosismo enquanto
fenômeno coletivo e histórico nos dois países. Pois o que se sucedera ao
desenraizamento de uma geração, foi justamente o esforço da geração subsequente para
´´ reintegrar-se e reabilitar-se no velho espirito`132, esforço doloroso segundo Freyre,
embora ele não nos diga um sentido mais preciso para essa sensação. O fato é que no
romance escrito por Raposo, Freyre encontra um componente comum entre o
saudosismo português e o saudosismo regionalista e tradicionalista do qual ele fazia
parte e era um dos criadores. Em ambos os contextos, eram jovens que olhavam para a
geração dos seus pais como aquela que ´´traiu o passado``, uma geração que não
resistiu, que se acovardou frente as transformações e adequou-se ao novo estilo de vida
que a modernidade trazia, urbanizando-se e se desenraizando da vida social dos seus
antepassados e portanto, dando as margens necessárias para que a vida social, política e
econômica do tempo dos avós se decompusesse progressivamente. O personagem
principal do livro é o jovem Vasco, rapaz que depois de longos anos de estudo em
Lisboa e Paris retorna a terra natal ansioso por reintegrar-se, ´´ volta sob o desencanto
do mundo novo de Progresso e Ciência e Democracia, que empolgara a geração de seu 131 José Hipólito Vaz Raposo. Intelectual português e destacado líder do Integralismo Lusitano. Publicou alguns livros que teorizavam os princípios não só do movimento político português, mas também da ação francesa monarquista. ( 1885-1953) 132 Publicado em 16/8/1925. In:FREYRE, Gilberto. Tempo de Aprendiz. Vol. II. São Paulo. Ibrasa, 1978. p.195
82
pai``133. Caso muito semelhante à própria experiência pessoal de Gilberto Freyre, que
após quase cinco anos longe do Brasil, entre os Estados Unidose a Europa, retorna à
Recife, voltando a sua terra natal sedento pela cor local da paisagem, pelas coisas do
passado e assim que retorna logoorganiza-se coletivamente, integrando o movimento
regionalista e tradicionalista do nordeste, arquitetando imagens e dizeres que atestavam
um desejo profundo de religação individual e social do presente com traços do passado,
mas de um passado que remeteria ao tempo dos seus avós, lá por meados do século
XIX, num momento histórico que antecederia a suposta ´´traição`` promovida pela
geração de seus pais.
O artigo nos ajuda a compreender o saudosismo como um acontecimento histórico
de extrema relevância para a sociedade brasileira e portuguesa de fins do século XIX e
início do século XX. Foram modos de pensar e sentir que se configuraram e ganharam
conteúdo e expressão através dessa necessidade de religação com o passado, que na
verdade solicitava a esses indivíduos a construção de maneiras de ver e dizer as
experiências do passado sob uma ótica nova e filha da modernidade como era o caso do
saudosismo. Gilberto Freyre compunha um quadro coletivo, uma subjetividade coletiva
composta por indivíduos reticentes com as transformações trazidas pela modernidade.
Sua reação crítica direcionava-o para um elogio da sociedade brasileira de meados do
século XIX, aquela em que vivera seus avós e que segundo ele, na esteira de Raposo,
tinha como uma das causas de sua dissolução a própria impotência da geração dos seus
pais, que havia se encantado com a modernidade e tornado possível uma rachadura
difícil de fechar entre o passado e o presente. De acordo com o pensamento de Freyre,
cabia as novas gerações reagir pelas ´´ coisas velhas da vida brasileira`` e assim seu
projeto intelectual da juventude era germinar um ideário saudosista de reação crítica a
modernidade que paradoxalmente era do ponto de vista sociológico inovador e criativo,
mas politicamente conservador e reacionário.
133 Idem. p. 196
83
CONCLUSÃO
UMA SÓ OU VÁRIAS SAUDADES?
E o ´´mundo`` assim se renovou por muito tempo. Mundo criado à
minha semelhança e para reproduzir minhas experiências, minhas
observações, minhas impressões de leitura e meus caprichos de
imaginação. Quem o poderia compreender?134
Gilberto Freyre
Foi sob a inspiração do Natal de 1924 que Gilberto Freyre escreveu essa curiosa
passagem sobre seu tempo de criança. Passeando pela Recife da época, olhando as lojas
de brinquedos com suas vitrines abarrotadas, caminhando por entre as ruas enfeitadas
para a tradicional celebração cristã, o jovem escritor ativou memórias de sua infância e
se pôs a escrever um artigo onde contava como eram suas brincadeiras de menino. O
´´mundo`` que se renovava ao longo do tempo era aquele universo imaginário
construído por ele próprio, montando e desmontando cidades em miniaturas feitas no
quintal de sua casa nos tempos de criança, quintal que era dividido com outro universo
imaginário, o de seu irmão mais velho Ulisses Freyre, que recém chegado de um
passeio num engenho velho construía um mini engenho com tijolos e latas. Enquanto
isso, Gilberto direcionava infantarias de soldadinhos de chumbo ao prazer de seus
desejos, transformando caixas de charuto em moradias para os pequenos homenzinhos,
que passeavam em carros feitos de caixas de fósforos.
Reparem que é todo um espaço, o quintal de sua casa na infância, que se
transformava em território de experimentação por onde as subjetividades dessas
crianças cartografavam regiões, histórias, pessoas, culturas, lendas, guerras. Os irmãos
Freyre deliravam mundos imaginários nas suas brincadeiras, como o fazem as crianças,
inventavam mundos. Assim eles ficcionavam universos, mesclando a espontaneidade de
suas ideias com noções que lhes eram transmitidas pela experiência no mundo, pela
cultura, pelas impressões e observações que postas em prática faziam do quintal um
verdadeiro infinito através do qual Gilberto e Ulisses punham para funcionar seus
desejos, maquinando-os às peças que estavam disponíveis, um coco partido virava um
134 Extraído de um artigo publicado no Diário de Pernambuco em 28/12/1924. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978 p. 106
84
tacho de ferver rapadura, gentes eram feitas de chumbo , ruas e avenidas riscadas com a
ponta dos dedos na areia e etc. Sua reconstrução narrativa desses momentos lúdicos de
sua infância se mostram essenciais na compreensão de seu estilo de ver e dizer a si
próprio no presente de sua juventude. Pois a criança que aparece no seu relato, é
umaperspectiva sua de si através do tempo, traçando uma escrita de memórias onde o
que vemos não é necessariamente o mundo de sua infância, mas sim a evocação de
fragmentos desse mundo num outro universo. Suas experiências eram transferidas e
recriadas no campo da linguagem, na experimentação que mantinha com a escrita,
fundamentais para elaboração de seu estilo narrativo.
Esse outro microcosmo, esse novo quintal onde ele experimentava criar e recriar
regiões, legiões, enredos, muitas vezes se colocando de corpo presente nas situações que
narrava, é o próprio espaço que se desenvolvia através de sua escrita,lugar onde se
esboçavam seus modos de pensar e sentir e sua relação existencial com a vida. Escrita
como campo de experimentação através da qual suas cartografias sentimentais eram
expressas. A lembrança de suas brincadeiras de menino novo, grafadas por ele no artigo
de 1924, nos faz pensar na dimensão plural da construção dos territórios, nas múltiplas
conexões, muitas vezes esquisitas e mal formuladas, que dão origem a um microcosmo
fabulativo, condensado por uma história, por um enredo que alinhe a brincadeira, mas
também repleto de pequenos artifícios que só os devires do acaso podem conceber.
Estaríamos indo longe demais ao afirmar que há uma profunda relação entre a fabulação
de um menino no quintal e o ato de escrever? Somos tentados a continuar essa reflexão,
pois ao que parece, participava da escrita de Freyre à época um desejo de fabulação, que
empreendia uma criação discursiva mesclada pela história coletiva e por suas
experiências pessoais intimas, sentimentais e afetivas. Não é a toa que seus discursos
são valiosos documentos para uma história das sensibilidades e das formas de
pensamento, uma vez que, nas cartografias elaboradas em seus pequenos artigos não
havia constrangimento algum em marcar sua presença no texto. Para Freyre, não havia
empecilho epistemológico em situar-se nas narrativas que elaborava, estejam elas
falando do quintal de sua infância ou da casa de uma família tradicional do século XIX.
De um modo ou de outro, ele se inseria no corpo do texto, estando ´´descaradamente``
lá! E a afirmação dessa presença verdadeira é o ponto de partida para qualquer análise
historiográfica que não se queira segmentada entre razão e emoção e que por
85
conseguinte, busque compreender a emergência de maneiras de pensar e sentir como
acontecimentos históricos integrados.
A leitura de mais de 200 artigos de Gilberto, escritos entre 1918 e 1926, nos
deixou a impressão de que aqueles pequenos textos, de no máximo três páginas cada
um, funcionavam como pequenos microcosmos através dos quais ele fabulava suas
perspectivas, não mais como uma criança, mas sim como jovem intelectual que
expressava sua necessidade de interpretar o mundo à sua maneira, fazendo da página em
branco seu novo quintal de fabulação, atravessado por motivações políticas, estéticas,
filosóficas, afetivas e existenciais encarnadas por dadas camadas sociais do início do
século XX. Como ele nos diz, numa carta escrita a Oliveira Lima em 1922: ´´Sinto-me
ainda a tatear – o que creio natural, a uma mocidade que procura ser investigadora e
achar uma interpretação do espetáculo confuso da vida``135. Através da escrita, ele tecia
seu enredo histórico e deixava vestígios de sua relação existencial com o mundo que
interpretava, pois o modo como ele compunha suas narrativas permite que acessemos as
trajetórias de desejos coletivosque firmavam a paisagem que se delineava para a
sociedade de sua época, inventando formas de ver e dizer o passado compostas pela
presença de um saudosismo da vida social de outrora. O historiador Fernando Nicolazzi,
que pesquisou a importância da viagem, da memória e do ensaio para a formação do
estilo de interpretação histórica que se esboça no livro Casa Grande e Senzala,
publicado em 1933, afirma na conclusão de sua análise que:
Em outras palavras, o sentimento dirigido ao passado não é menos importante do
que o conhecimento que se produz a partir dele, e ele não pode simplesmente ser
inserido no plano do verdadeiro ou falso. Seu estatuto é de outra ordem.136
Em outra passagem, o historiador pontua que ´´ Gilberto Freyre vê e revê paisagens,
mas também passados, tempos idos, com certa saudade e a mesma emoção da vista do
engenho dessa meninice``137, ele brinca com a escrita para transformá-la em ferramenta
para evocar o passado, seu desejo é reativar uma dada atmosfera sensível que só o
passado poderia oferecer, não só para ele, mas para a sociedade brasileira do período,
uma vez que seus escritos se inserem na tentativa de construção de uma nova 135 Carta enviada em 20/11/1922 a Oliveira Lima. Escrita enquanto passava pequena temporada em Oxford. In: CASTRO GOMES, Angela de. Em família: A correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005 p. 159 136 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa Grande e Senzala e a representação do passado. São Paulo. Unesp, 2011 p. 455 137 Idem. p. 316
86
interpretação para a formação da cultura brasileira, que se concretizara em Casa Grande
e Senzala já estando presente em seus artigos para o Diário de Pernambuco, só que de
maneira germinal. Devido ao seu estilo, quando escrevia deixava as marcas de sua
imaginação, de seus sentimentos saudosistas, de sua maneira de pensar e sentir guiadas
por essa emoção que, segundo Nicolazzi, traçava uma linha de duração com a infância,
com a meninice, com a época em que ele brincava no seu quintal ao lado do irmão
pondo para funcionar os ´´caprichos`` de sua imaginação.
De volta a esse universo ficcionado na infância pelo futuro escritor, nos fundos da
casa dos pais, ele diz em seu artigo que uma condição fundamental fazia parte da suas
brincadeiras: a desproporção era inadmissível138. Tudo deveria estar sempre no lugar
que ele considerava correto, na forma e na medida que sua subjetividade dizia-lhe ser a
mais adequada. Nas suas brincadeiras ele assumia um lugar para si próprio, se
posicionava e demarcava as fronteiras de seus enredos, assim, em outro artigo ele
continua dizendo que:
Neste meu mundo, à maneira dum quase deus, eu fazia acontecer, conforme o
humor do dia, banquetes, passeios em automóveis de caixa de fósforos, revoluções(
nas quais, seja dito de passagem, meu prestígio de quase-deus estava sempre ao
lado do princípio de autoridade e disciplina), paradas, terremotos, enterros,
batizados, casamentos. Era- eu vos asseguro – um mundo muito mais humano que
o de certos romances e fitas de cinema.139
Nesse ponto somos tentados a sugerir que as potencialidades de fabulação rememoradas
por Freyre sobre seus tempos de criança encontravam na sua escrita uma outra condição
de possibilidade e nesse espaço literário que constituía em seus artigos semanais, quase
à moda de um diário, ele enraizava seu movimento de escrever no tempo. Tomando seus
artigos para o jornal pernambucano como um grande conjunto, diríamos, na esteira de
Maurice Blanchot, que esse todo representa uma sequênciade pontos de referência,
fixados e estabelecidos por ele para reconhecer-se, para pensar-se no interior das
relações de força que o constituíam. Nos seus artigos se apresenta um dado estilo
narrativo, uma dada arte dizer que estava sendo elaborada pelo autor e praticada
semanalmente em pequenos textos. Era a sua maneira de ´´renovar o mundo``.
138 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol.II. São Paulo. Ibrasa, 1978p. 105 139 Publicado em15/4/1923 no Diário de Pernambuco. In: FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Vol. I. São Paulo. Ibrasa, 1978 p.240
87
No seu ´´quintal de pensamentos e sentimentos``, procuramos ao longo de três
capítulos extrair as expressões e impressões saudosistas que o autor engendrava,
entendendo-as como parte constituinte dos processos de transformação que a cultura
ocidental estava atravessando com a intensificação das mudanças oriundas da
modernidade. Colhendo relatos desde seus tempos de estudante em Baylor até seu
tempo de militante cultural do movimento regionalista e tradicionalista no Recife,
fomos observando a presença de uma relação existencial saudosista expressa de
variadas formas. Posto que não havia uma saudade única que lhe afligia, na realidade
uma multiplicidade de saudades ganhavam expressão em seus artigos e o que
procuramos fazer foi ressaltar, nesse grande conjunto de escritos, os traços saudosistas
de seu modo de pensar e sentir e a que isso estava conectado do ponto de vista de sua
interpretação social e de seus posicionamentos políticos.
E esse rizoma de saudades que o constituía, conectava-se com posicionamentos
políticos conservadores, ortodoxos, da extrema direita portuguesa e francesa por
exemplo, como é o caso do integralismo e da ActionFrançaisede Charles Maurras. Se
conectava também com um espírito de ação baseada na necessidade de definir uma
imagem para o tradicional, em contraposição ao que seria o moderno, posto que essa
definição de um lugar de tradição se mostrava uma possibilidade de inserir no presente a
importância das relações constituídas no passado brasileiro, sobretudo aquele do século
XIX, do tempo dos avós, de aspectos da vida social dessa época. Se conectava com uma
série de outros intelectuais que pensavam e sentiam com pesar as transformações que a
modernidade gerava e a consequente fratura que esta experiência causou na relação dos
sujeitos com o passado, como bem salientou Pallares Burke. Também se conectava na
criação de uma ação cultural inovadora como o foi o movimento regionalista e
tradicionalista do nordeste, onde, por exemplo, a defesa das árvores, da culinária e da
arquitetura do passado ganhava força no Recife, posto que esses elementos eram vistos
como testemunhas vivas do passado, renovando-se sem sair do lugar, elas
representavam a força da permanência em detrimento da transformação, funcionavam
como elemento conservador importante para os conceitos regionalistas tecidos pelo
autor. Ademais, também podemos falar de uma filiação com um sentimento de
pertencimento a um mundo subjetivo aristocrático, crítico da democracia e defensor de
uma sociedade de privilégios e apadrinhamentos. Saudosismo que durante a morada nos
Estados Unidos o fez detestar e criticar as novas subjetividades femininas que
88
emergiam, que o fez buscar nas paisagens das cidades que visitava tudo que tivesse
marcas do tempo, tudo que não cheirasse a tinta fresca. Seus olhares de viajante cultural
buscavam pelas experiências do passado que sobreviviam no presente e por fim, seu
senso saudosista o transformava num escritor empenhado em trazer para seus textos
uma visão idealizada do passado que pudesse servir de antídoto as suas saudades e ao
mesmo tempo em ferramentas para uma ação possível no presente.
Por fim, buscamos compreender ao longo dessa pesquisa as distintas formas em
que Gilberto Freyre cultivava suas saudades e quais as implicações desse saudosismo na
elaboração de seus discursos em relação ao momento que vivia. De suas várias
saudades, muitas delas eram partilhadas coletivamente, pois o saudosismo à época
constituiu-se num fenômeno coletivo que englobava uma série de sujeitos que
concebiam uma genealogia da história em que a modernidade representava uma quebra,
uma ruptura com mundo anterior, pré-capitalista e pré-industrial. A impossibilidade
desse mundo ter-se prolongado ao presente da década de 20, devido ao intenso
expansionismo do capitalismo industrial, da urbanização, dos valores democráticos e do
estilo de vida burguês, estimulou a construção de uma perspectiva saudosista que
acreditava que a vida social do passado era mais agradável, mais segura, mais estável e
menos desproporcional que a sociedade da época. É toda uma geração de sujeitos que
considerava a geração de seus pais a responsável por ter permitido essa transformação
na sociedade e Freyre integrava esse quadro de maneira singular, tendo construído em
seus artigos para o Diário de Pernambuco um grande mapa sentimental de sua época
que expressam muitas saudades, dentre elas, a saudade de um outro presente possível
transformado em modo de existência. Por um lado, saudades de um presente para si que
não se realizou pela intensidade do processo de modernização que a geração de seus
pais corporificou, fraturando a continuidade da uma vida social nos padrões da vida no
tempo de seus avós que lhe escapou, devido às rupturas da modernidade. Assim, seu
saudosismo se pensava plástico e dinâmico, pois filiava-se a uma concepção de tempo
homogêneo, onde o tempo é pensado e sentido como substância indivisível, portanto se
tratava de recolher aspectos do passado que ainda sobreviviam no presente e
transformá-los em substância para a sedimentação de um território existencial
saudosista coletivo, uma espécie de mapa sentimental de imagens e discursos saudosos.
A questão é que nesse mapa, as imagens e discursos ali empreendidos ganharam
força no contexto da formação da identidade nordestina e da identidade nacional, e
89
muitas concepções criadas naquele contexto se estenderam para outras épocas,
subjetivadas através das artes, da literatura, do cinema, da mídia, firmando um senso
comum em torno do Nordeste impregnado de dizeres e imagens que começavam a ser
gestadas na década de 20 do século passado, pelo pequeno grupo de intelectuais do
centro regionalista do nordeste. Portanto, consideramos que o fato de termos nos
debruçado sob os textos da época escritos por Freyre em artigos semanais para o Diário,
foi fundamental para a nossa compreensão acerca das conexões que são silenciadas ou
marginalizadas ao longo do tempo, sobretudo no que diz respeito às filiações
conservadoras e reativas que ele traçava com a época e que de alguma maneira
participaram de suas elaborações discursivas regionalistas.
Diante da vontade de finalizar este trabalho e colocar um ponto final que se adeque
ao que vínhamos problematizando, diríamos que a nossa conclusão é a de que o os
artigos escritos por Freyre durante este período são importantes monumentos que
expressam fragmentos de um modo de existência saudosista relativo ao período
estudado. Um modo de existência que atravessava muitos sujeitos, mas que encontrou
nas formulações de Freyre uma maneira especifica de se expressar. Nele, há um
saudosismo expresso como principio que orienta a elaboração de um dado modo de
vida. É sob este aspecto, o saudosismo entendido como modo de existência, que
gostaríamos de finalizar nossas problematizações. Todo este tempo estivemos ocupados
em tecer uma história que primasse pelas artes da existência sugeridas nos escritos de
Gilberto e não propriamente em investigar a formação de um dado sistema de
pensamento Freyrano, uma doutrina, ou algo do tipo.
Repetindo a pergunta que o jovem escritor nos lançou no início desta conclusão:
Quem o poderia compreender? E de fato, não é uma tarefa fácil compreender um sujeito
tão paradoxal quanto era Gilberto Freyre, ainda mais em sua juventude, num momento
onde sua mente estava aberta a muitos horizontes de reflexão, não estando tão
engessada numa imagem de si que veio a se firmar com o tempo. De todo modo,
esperamos ter contribuído para uma reflexão em torno do modo de pensar e sentir do
autor e de suas muitas formas de cultivar suas várias saudades.
90
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. São
Paulo. Ed. Cortez, 2009.
_______________________________. A feira dos mitos. A fabricação do folclore e da
cultural popular ( nordeste 1920-1950). São Paulo. Intermeios, 2013.
ARRAIS, Raimundo. A capital da saudade. Recife. Ed. Bagaço, 2006.
BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo. Martins Fontes, 2007.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica. Arte e política. Rio de Janeiro. Editora
Brasiliense, 1985.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro. Rocco, 1987.
BORGES, Jorge Luís. Ficciones Madrid. Alianza Editorial, 1999.
CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano, artes de fazer. Petrópolis. Vozes, 1996
_______________. A escrita da história. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1982.
CASTRO GOMES, Angela de. Em família: a correspondência de Oliveira Lima e
Gilberto Freyre. São Paulo. Mercado das letras, 2005.
CORBIN, Alain. Saberes e odores. O olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e
dezenove. São Paulo. Companhia das letras, 1989.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo. Editora 34, 1999.
______________. Conversações. 1972-1990. São Paulo. Editora 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. A anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Rio
de Janeiro. Imago, 1976.
____________________________. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume I.
São Paulo. Editora 34. 1997
EKSTEINS, Modris. A sagração da primavera. Rio de Janeiro. Rocco, 1991.
FERNANDES, Marcionila; MOTTA, Roberto. Gilberto Freyre. Coleção memória do
saber. Zit Editora, 2013.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Graal, 1981.
91
________________. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro. Forense Universitária,
2012.
________________. O governo de si e dos outros. Curso no college de France (1982-
1983). São Paulo. Martins Fontes, 2010.
________________. A coragem da verdade. O governo de si e dos outros II. Curso no
college deFrance (1983-1984). São Paulo. Martins Fontes, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. São Paulo. Penguin& Companhia das
letras, 2011.
FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. Volume I e II. São Paulo. Ibrasa, 1978.
GUATTARI, Felix. Revolução molecular. Pulsações políticas do desejo. Rio de janeiro. Brasiliense, 1981. GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Petrópolis.
Vozes, 2005.
LARRETA, Enrique Rodriguez; GIUCCI, Guillermo. Gilberto Freyre, uma biografia
intelectual. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2007.
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história. A viagem, a memória, o ensaio: sobre
casa grande e senzala e a representação do passado. São Paulo. Unesp, 2011.
ONFRAY, Michel. Razão Gulosa. Uma filosofia do gosto. Rocco. Rio de Janeiro, 1999.
_______________. A potência de existir: manifesto hedonista. São Paulo. Martins
Fontes, 2010.
PALLARES BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: Um vitoriano nos trópicos.
São Paulo. Unesp, 2005.
ROLNIK, Suely. Cartografias sentimentais. Transformações contemporâneas do desejo.
Porto Alegre. Sulina, 2006.
SENNETT, Richard. Carna e Pedra. O copo e a cidade na civilização ocidental. Rio de
Janeiro. Record, 2006
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. Companhia das letras. São Paulo, 1996.
STIRNER, Max. O único e sua propriedade. São Paulo. Martins Fontes, 2005.
92
TARDE, Gabriel. Monodalogia e sociologia. E outros ensaios. São Paulo. Cosac Naiify,
2005.
THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde. Sociologia e Subjetividade. Rio de Janeiro.
Relume, 2002.
TUAN, Yi-fu. Topofilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Difel. São Paulo, 1980. VIRILIO, Paul. Guerra Pura. Militarização do cotidiano. Rio de Janeiro. Ed.
Brasiliense, 1981.