Upload
vuongbao
View
216
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,
FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA
PLURALIDADE.
NATAL/RN
2013
ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,
FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA
PLURALIDADE.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito – PPGD do Centro de
Ciências Sociais Aplicadas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Profº Doutor Leonardo Martins
NATAL/RN
2013
ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR
LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,
FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA
PLURALIDADE.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito – PPGD do Centro de
Ciências Sociais Aplicadas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Direito.
Orientador: Profº Doutor Leonardo Martins
Aprovado em ______/______/ 2013:
Profº Doutor Leonardo Martins – Orientador
UFRN
Profa.º Doutora Luciana Gross Siqueira Cunha – Externo
FGV
Profaº Doutora Yara Maria Pereira Gurgel - Interno
UFRN
DEDICATÓRIA
À João Batista e à Cândida, meus pais, por tornarem a vontade possível.
AGRADECIMENTOS
No início do ano passado me constataram a seguinte verdade: não sabemos
viver, ninguém nos ensina a viver, na vida nós improvisamos, enquanto que para
trabalhar ou produzir, todo estudo e dedicação podem ser pouco, somos criados para
fazer coisas. É isso. Quando nos ensinaram sobre a amizade? Descobrimos na escola a
distinguir sentimentos? Qual(is) o(os) significado(os) da nossa existência? Da justiça?
Do bem? Ou da beleza? Não nos orientaram sobre essas questões porque “isso se
aprende na vida, vivendo”.
Eu tenho esperança que um dia isso mude. Acredito, sem estremecer, que
seremos educados para o verdadeiro conhecimento que nos fará mais humanizados,
quando iremos cuidar mais do outro (seja ele quem for), confio e faz sentido, já que eu
convivo com essas pessoas, elas existem e elas me ajudam a aprender vivendo, todos os
dias, incansavelmente, são elas:
Adriana Aguiar e João Cláudio Aguiar, meus irmãos mais velhos, os admiro e
sinto um conforto seguro em saber que vocês sempre estarão por perto e, saibam que eu
sempre estarei por vocês; Lucas e Cecília, meus sobrinhos, os responsáveis pelos
sorrisos mais fáceis e pelo carinho mais gratuito. Muito obrigada.
Suzy Alves, Felipe Fonseca, Mônica Cabral, Stenio Aladim, Thiago César,
Lívia Rebelato, André Maia, Elaine Maciel, Rochester Araújo, Fernando Mosca,
Miqueias Platinni e Pedro Henrique Motta, meus amigos de amor incondicional, a
amizade que temos não está sujeita a nenhum princípio do tempo ou espaço. Tem valor
em si e para si. Muito obrigada.
Aos meus mestres, pessoas que em algum momento, cada um ao seu modo,
mudaram radicalmente minha posição perante a vida: Edeilson Matias, meu diretor de
dança, quem me ensinou muito sobre arte, mas sobre justiça, liderança e disciplina
também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou
olhe; e Leonardo Martins, meu orientador, por ter me apoiado durantes os anos de
graduação e pós-graduação com seu intelecto brilhante e com sua aguçada ética e moral.
Muito obrigada.
“Certifica-te que és um elemento de soma na
vida das pessoas de quem participa” (Cícero).
RESUMO
O direito à expressão artística, liberdade consagrada no constitucionalismo democrático
ocidental, é um direito fundamental que conjunturalmente, em relação aos outros
direitos conexos da expressão, vem sendo olvidado, disposto em posição de irrelevância
jurídico-dogmática. A primeira razão apontada para esse comportamento que desestima
a liberdade artística é a valorização do racionalismo e do cientificismo na sociedade
moderna, subordinando as pesquisas acadêmicas ao utilitarismo, relegando o papel dos
sentimentos e da espiritualidade na elocução do homem, portanto, investigamos,
amparados pela filosofia, a atribuição da arte na formação humana, devido a sua
capacidade em harmonizar razão e emoção. Em seguida, afirmamos a autonomia do
direito fundamental à expressão artística na ordem constitucional vigente de 1988, após
um quadro expositivo da liberdade tema nas Leis Fundamentais dos Estados Unidos,
Portugal, Espanha e Alemanha; e a construção histórico-constitucional do mesmo
direito nas Constituições brasileiras. Nesse desiderato, o marco teórico escolhido é a
Teoria Liberal dos direitos fundamentais, orientando o exame pelas dimensões
jusfundamentais jurídico-subjetiva e jurídico-objetiva. Enquanto a primeira, função
clássica de resistência, delimita a área de proteção do direito à expressão artística a
partir do seu conteúdo específico, sua titularidade e seus limites constitucionais e
infraconstitucionais, aquela lhe estabelece como bem cultural da Ordem Social,
definindo ao Estado deveres prestacionais na proteção, formação e promoção cultural. À
comunicação artística, prescrita sem reserva legal, não admitimos a transposição de
restrições que são próprias de outros direitos fundamentais e, quando o seu exercício
colide com outro direito fundamental ou bem jurídico constitucional, a justificação para
uma possível intervenção estatal que tangencie sua área de proteção passa,
necessariamente, pela perquirição do animus do artista, do meio utilizado, das várias
interpretações viáveis e, por fim, pela correta aplicação do critério da proporcionalidade.
A análise da política pública cultural, por sua vez, observa o princípio do pluralismo de
substrato democrático, fomentador do diálogo cultural e avesso aos padrões
determinados pela indústria cultural de massa. Todos os poderes estão vinculados, no
âmbito de suas atribuições típicas, a concretizarem políticas públicas que possuam
como fim o bem cultural artístico, devido ao mandamento constante no §1 do art. 5º,
CF. No entanto, o acesso e as leis de incentivo à cultura devem ser constantemente
fiscalizados pelo parâmetro constitucional do direito fundamental à igualdade.
Palavras-chave: Arte. Direito fundamental à expressão artística. Pluralismo cultural.
ABSTRACT
The right to artistic expression, freedom granted in the western democratic
constitutionalism, is a fundamental right that cyclically, compared to other cohesive
rights of expression, has been forgotten and put in an irrelevant juridical-dogmatic
position. The first reason for this behaviour that disesteems artistic freedom is the
valorisation of rationalism and scientificism in the modern society, subordinating
academic researches to utilitarianism, relegating the purpose of feelings and spirituality
on men’s elocution, therefore, we investigate, guided by philosophy, the attribution of
art on human formation, due to its capacity in harmonising reason and emotion. After
that, we affirm the fundamental right to artistic expression’s autonomy in the 1988 valid
constitutional order, after a comparative explanation of freedom in the Fundamental
Laws of United States, Portugal, Spain and Germany; and the construction historic-
constitutional of the same right in the Brazilian Constitutions. In this desiderate, the
theoric mark chosen is the Liberal Theory of the fundamental rights, guiding the exam
through jusfundamental dimensions: juridical-subjective and juridical-objective. Whilst
the first, classical function of resistance, delimitates the protection area of the artistic
expression right from its specific content, titularity and its constitutional and
subconstitutional limits, the other one establishes it as cultural good of the Social Order,
defining to the State its rendering duties of protection, formation and cultural
promotion. We do not admit artistic communication, granted without legal reserve, to be
transposed of restrictions that belong to other fundamental rights and, when its exercise
collides with another fundamental right or juridical-constitutional good, the justification
to a possible state intervention that tangentiates its protection area goes, necessarily,
through the perquisition of the artist’s animus, the used method, the many viable
interpretations and, at last, the correct application of the proportionality criteria. The
cultural public politics’ analysis, nevertheless, observes the pluralism principle of
democratic substratum, developer of the cultural dialogue and opposed to patterns
determined by the mass cultural industry. All powers are attached, on the scope of its
typical attributions, to materialise public politics that have the cultural artistic good as
its aim, due to the constant rule contained in §1, art. 5º of the Federal Constitution.
However, the access and the incentive laws to culture must be constantly supervised by
the constitutional parameter of fundamental right to equality.
Keywords: Art. Fundamental right to artistic expression. Cultural pluralism.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 CONCEPÇÕES DA ARTE 15
2.1 RACIONALIDADE E CIENTIFICISMO 15
2.2 A ARTE DO PONTO DE VISTA FILOSÓFICO 17
2.2.1 As ideias sobre a natureza da arte 17
2.2.2 O artista e a obra de arte 19
2.2.3 O objeto da arte e o interesse desinteressado 21
2.2.4 Crítica e o conhecimento dos especialistas 23
2.2.5 A finalidade da arte 26
2.2.5.1 A ação suavizante da arte 27
2.3 PAPEL DA PERSPECTIVA FILOSÓFICA 28
3 DIREITO CONSTITUCIONAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA 30
3.1 DIREITO ESTRANGEIRO 30
3.1.1 Estados Unidos, Constituição de 1787 30
3.1.2 Portugal, Constituição de 1976 (arte e cultura) 34
3.1.3 Espanha, Constituição de 1978 36
3.1.4 Alemanha, Constituição de 1949 39
3.1.4.1 Definição material e formal da arte 40
3.1.4.2 Conceito aberto 42
3.2 DIREITO FUNDAMENTAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA NA CF (art. 5º, IX) 44
3.2.1 Histórico constitucional 44
3.2.2 Da autonomia do direito à expressão artística na CF 49
3.2.3 Liberdade artística: conteúdo da área de proteção (objetiva e subjetiva) e
alcance
56
3.2.3.1 Área de proteção da liberdade artística (alcance e titularidade) 57
3.2.3.1.1 Conceito de arte aplicado 58
3.2.3.1.2 Proibição de definição do Estado e aspecto negativo da liberdade artística 59
3.2.3.1.3 Área de criação/produção e área de efeito/divulgação 61
3.2.3.1.4 Titularidade 67
4 INTERVENÇÕES ESTATAIS NA LIBERDADE ARTÍSTICA E
JUSTIFICAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
73
4.1 LIMITES AO DIREITO DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA 74
4.1.1 Comportamento que não se situa na área de proteção da liberdade artística 74
4.1.2 Concretização e reserva legal dos direitos fundamentais derivados 75
4.1.2.1 Diversões e espetáculos públicos 76
4.1.2.2 Faixas etárias (classificação indicativa) 78
4.1.3 Direito à expressão artística e direito constitucional de colisão 79
4.1.3.1 Vedação ao anonimato, direito de resposta e indenização por danos materiais
e morais
80
4.1.3.2 Direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem 84
4.1.4 Censura e licença (limite dos limites) 90
4.2 CONFLITOS ENTRE LIBERDADE ARTÍSTICA E OUTROS BENS
JURÍDICOS
93
4.2.1 Obras artísticas obscenas e pornográficas 94
4.2.2 Obras de arte em propriedade pública e privada (arte urbana) 99
4.2.3 O corpo como objeto da arte (body art) 105
4.2.4 Obras artísticas e o discurso do ódio 111
5 POLÍTICA PÚBLICA CONSTITUCIONAL DA ARTE 121
5.1 CULTURA, DEMOCRACIA E PLURALISMO 123
5.1.1 Uma política de proteção artística 126
5.1.2 Uma política de formação artística 130
5.1.3 Uma política de promoção artística 133
5.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL
ÀS POLÍTICAS CULTURAIS
136
6 CONCLUSÃO 142
REFERÊNCIAS 145
11
1 INTRODUÇÃO
Das formas de expressão que o ser humano tem a sua disposição para
compartilhar com os demais aquilo que o movimenta entre ideias, opiniões, crenças,
descobertas científicas, informações etc., só a arte, como disse Arthur Schopenhauer em
sua Metafísica do Belo, tem como fim supremo a manifestação da essência do que há de
mais belo: o homem.
“Há quem passe por uma floresta e só veja lenha para a sua fogueira”. Esta frase
atribuída ao escritor russo Leon Tolstói representa o sentido utilitarista que a nossa
sociedade elegeu, majoritariamente, para ser o protótipo de suas relações interpessoais e
intersociais, marcadas pelo egoísmo, por sujeitos do querer, pelo desconhecimento das
coisas como são em elevação a como elas podem nos servir.
A valorização do princípio da realidade alienou do mundo tudo aquilo que fala
sobre a emoção humana, a palavra “fantasia”, por exemplo, relacionada diretamente
com as expressões artísticas, é tida como qualificadora de algo inútil, irracional, indigno
de seriedade. O espaço da vivência artística individual e coletiva é irrisório, o que
necessariamente nos faz constatar que o conhecimento da essência do homem está se
perdendo.
Da mesma forma, se a ciência moderna vive dias de império do formalismo,
consequentemente, ela vem afugentando as convicções que envolvem o processo
criativo artístico, não sendo por acaso que encontramos diversos trabalhos acadêmicos
que falam sobre a liberdade de expressão em seu aspecto intelectual, científico,
comunicacional e opinativo, porém, poucas são as pesquisas jurídico-dogmáticas que
falam sobre o direito fundamental de expressão da arte.
Por reconhecermos às obras de arte uma função especial na formação humana, a
partir do pensamento de Hegel, pois a arte elimina arbitrariedades e harmoniza a vida
12
humana, transbordando-a de sentido, iniciamos o estudo, no 2° Capítulo, tratando das
concepções da arte, o lugar que ocupa entre os movimentos do racionalismo e do
cientificismo e as investigações sobre a filosofia da arte (estética), até o ponto em que
ela nos auxilie a compreender satisfatoriamente o lugar de sua existência na ordem
constitucional democrática como um direito fundamental.
Em um segundo momento (tópico 3.1), analisaremos o direito à expressão
artística nas Leis Fundamentais de quatro países estrangeiros, apontando alguns
conceitos importantes que serão desenvolvidos nas proposições do porvir, os Estados
nacionais utilizados como parâmetro comparativo são Estados Unidos, Portugal,
Espanha e Alemanha. Logo em seguida, no tópico 3.2.1, traçaremos uma retrospectiva
histórica sobre o mesmo direito no constitucionalismo brasileiro, que quantifica seis
Cartas Magnas até chegar à vigente Constituição Federal de1988.
Vencidas essas fases entraremos especificamente na CF (3.2.2), em primeiro
lugar, afirmando a autonomia do direito à expressão artística, para depois examiná-lo de
acordo com os fundamentos da Teoria Liberal dos direitos fundamentais, dividindo a
apreciação nos dois ramos de dimensão jusfundamental: a jurídico-subjetiva (função
clássica) e a jurídico-objetiva.
Na dimensão jurídico-subjetiva iremos delimitar a área de proteção da liberdade
artística, tornando preciso o alcance do seu conteúdo e sua titularidade, entretanto, como
essa averiguação só se torna plena pelo enfretamento dos limites constitucionais ao
exercício da liberdade tema, passaremos para os critérios que possibilitam intervenções
estatais na área de proteção do direito à expressão artística e as que constituem
violações, portanto, inconstitucionalidades em face do parâmetro.
Nessa fase, ainda, traremos casos conflituosos entre a liberdade artística e outros
bens jurídicos, destacando: obras artísticas obscenas e pornográficas; a arte que se
13
manifesta em propriedades privadas e públicas; o corpo como objeto da arte; e, por fim,
as obras artísticas depositárias de “discursos do ódio”. A resolução desses potenciais
conflitos se dará em consonância com uso do princípio da proporcionalidade, que afasta
construções ponderativas.
Na última fase da abordagem (tópico 4.), na dimensão jurídico-objetiva, a
análise segue o foco das políticas públicas que devem proteger, formar e incentivar a
arte, sendo esta entendida como um bem cultural da ordem constitucional. Os
argumentos enfatizam a necessidade de políticas que sejam eficazes em promover a
pluralidade na nossa sociedade, como um princípio que se associa naturalmente à
democracia.
Às políticas públicas artísticas, como deveres prestacionais do Estado e
concretizações da própria liberdade artística do inc. IX, do art. 5º, da CF, caberá uma
observação cuidadosa do direito fundamental à igualdade, que funcionará como
instrumento de controle dos indivíduos e dos órgãos competentes pela fiscalização
constitucional sobre qualquer ato normativo que enseje promover arte, mas que possa
estar fadado a violações a outros direitos de liberdade nesse intuito.
A metodologia utilizada será o método hipotético-dedutivo que se insere na
possibilidade de arguição a partir das premissas normativas constitucionais e filosóficas.
Faremos os exames necessários dos dispositivos legais infraconstitucionais que se
orientem por uma ingerência, em concreto, com a liberdade artística.
Ainda, por intermédio da bibliografia acadêmica nacional e internacional, assim
como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da Suprema Corte norte-
americana, do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e do Tribunal
Constitucional Espanhol, examinaremos e apresentaremos atributos por
14
posicionamentos que sejam alargadores da expressão artística em nossa ordem jurídico-
constitucional.
15
2 CONCEPÇÕES DA ARTE
2.1 RACIONALIDADE E CIENTIFICISMO
As bases do pensamento moderno ocidental foram forjadas pela valorização do
logos em detrimento ao eros1, e o desenvolvimento dessa razão vem servindo à
instrumentalidade, à técnica, ao método. O que não pode ser comprovado mediante
esquematizações formuladas pela modernidade está fadado à irracionalidade, despido de
seriedade, “[...] a fonte de todo o saber é sempre fundada na plataforma de pesquisa do
próprio racionalismo.”2.
A hipertrofia da cientificidade reduziu o homem a um de seus aspectos, negando
a possibilidade de outros elementos essenciais de sua existência serem reconhecidos
como determinações reais, ficando à margem da razão moderna ocidental o afeto, a
fantasia, a crença, a beleza, as sensações3. Estas, como potencialidades humanas,
menosprezadas pela autoridade do racionalismo, estão cada vez mais anestesiadas no
indivíduo e nos arranjos sociais.
Não se trata aqui da inversão de hierarquização, isto é, promover a emoção em
relação à razão, apenas o reconhecimento que ambas são indispensáveis na formação de
qualquer sociedade que cultive verdadeiramente valores como liberdade, justiça e
igualdade 4. A valorização do espírito e da sensibilidade tem a ver com a apreciação da
arte, da criação e expressão estética, das representações humanas e do onírico.
1 MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. São
Paulo: LTC, 1999, p. 196-197. 2 BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2009, p. 402. 3 Essa carência pode ser averiguada pelos diversos movimentos sociais como o “Free Hugs”, campanha
que nasceu na Austrália em 2004 e ganhou proporções mundiais; e, no Brasil, as performances
conhecidas como “Terrorismo Poético” (2007) são exemplos dessa necessidade em afastar a apatia e
alienação. 4 Sobre essa posição: “Quando razão e sensibilidade se encontram o direito opera justiça. As
oportunidades para uma sociedade mais justa deriva da possibilidade de aplicar-se uma nova forma de
enxergar as práticas do direito na base de um aumento de convergências entre a experiência que deriva da
16
O princípio da razão é dominado pelas variantes do tempo, espaço e
causalidade5, no entanto, isoladamente, não servirá para nos informar sobre a apreciação
da arte que aqui iremos considerar, uma vez que o conhecimento estético não é
concebido in abstracto, mas apenas intuitivamente, ou melhor, intuições sem conceitos
são cegas, e conceitos sem intuição são vazios6, a arte não é “[...] uma ciência
experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de
significações.”7.
No que tange à ciência estética, Nietzsche, na oposição entre o princípio do
apolíneo e do dionisíaco8, constata que o desenvolvimento da arte é uma certeza que
está ligada à duplicidade, à contraposição dos dois impulsos que são metaforicamente
representados pelos dois deuses gregos; a figura de Apolo que encarna o “sonho”, “a
ordem” e “as formas e os limites”, à medida que Dionísio revela a “embriaguez”, “a
desmedida” e “a ausência de formas ou limites”.
Na perpétua luta entre o apolíneo e o dionisíaco (entre razão e emoção) a arte se
lançará como uma ponte, visto que dessa aparente contrariedade nutre-se o saber que
tudo é uno, isto é, Apolo integra Dionísio, Dionísio integra Apolo e dessa relação surge
à criação estética, as novas produções, a partir da convergência entre o Apolíneo e o
Dionisíaco.
Uma vez assegurado à insuficiência do princípio da razão na criação artística, já
somos capazes de asseverar uma diferença importante para essa pesquisa, a arte separa-
se do ponto de vista teórico da inteligência científica por visar à existência individual do
objeto sem procurar transformá-lo em ideia universal e conceito.
razão sensível e a que deriva da sensibilidade racionada.” BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-
modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 426. 5 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 31.
6 Confira a respeito do tema “direito” em diversos tipos de obras de arte: RADBRUCH, Gustav.
Introdução à Filosofia do Direito. São Paulo: Armênio Armado, 1979, p. 73-82. 7 GEERTZ, Cliford. La Interpetación de las Culturas. Barcelona: Editorial Gedisa, 1990, p. 20-27.
8 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992, p. 27-32.
17
À arte, como captação do invisível, tornando-o visível e sensível, exigimos que
participe da vida, que não seja dominada por abstrações como a lei, o direito, a máxima,
que a generalidade que exprima não seja estranha ao coração e ao sentimento9. Às obras
de arte daremos essa missão hodierna: o reequilíbrio entre razão e emoção e, por
conseguinte, a harmonização do homem.
2.2 A ARTE DO PONTO DE VISTA FILOSÓFICO
Sem a pretensão de esgotarmos o que foi dito na literatura sobre o que é a arte,
nem cobiçando decorrer todos os pensadores da estética, iremos apreciar algumas
investigações sobre a sua natureza, o artista, a obra de arte, seu objeto, a crítica, os
especialistas e sua finalidade, até chegarmos a uma concepção adequada ao nosso
objetivo dentro dessa pesquisa, ou seja, uma que nos dê suporte para o estudo do direito
fundamental à expressão artística.
2.2.1 As ideias sobre a natureza da arte
Aristóteles10
e Hegel11
reconheceram cada um em seu tempo, que a arte é uma
necessidade primitiva do homem. Enquanto o primeiro diz que é por meio da imitação
da natureza (mimesis) que o homem desenvolve os seus primeiros conhecimentos, o
segundo faz essa correspondência da necessidade como exteriorização e concretização
das representações e das ideias nascidas no espírito.
Na percepção aristotélica o homem, o animal mais imitativo de todos, seria um
reprodutor de modelos externos, da natura naturata, e as distinções que servem de base
à imitação são os meios, os objetos e os modos, é igualmente também por intermédio
9 HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 19. 10
ARISTOTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011, p. 44. 11
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 29.
18
dessa imitação que todos os homens experimentam o prazer. “Os artistas imitam os
caracteres das pessoas, assim como do que elas sofrem e fazem.”12
.
Dialogaremos, todavia, com a perspectiva hegeliana13
, na qual a arte não se
limita à imitação daquilo que está na natureza, pois se assim nos posicionarmos
estaremos condenando a arte a permanecer inferior à natureza, como um verme que quer
se igualar a um elefante. A repetição de imagens sobre paisagens, animais, fenômenos
naturais e acontecimentos humanos serão sempre inúteis com relação aos resultados que
a própria natureza nos oferece.
No entanto, incontestável é a afirmação de que a arte utilizará as formas da
natureza, visto que a obra de arte só em formas sensíveis pode ser representada, porém,
o seu conteúdo é de caráter espiritual14
, mostrando o homem maior habilidade em
criações provenientes do espírito do que das imitadas da natureza. À vista disso, a arte
que só imita tem como base de criação artística a lembrança, esvaziando sua liberdade,
privando-lhe de exprimir sua intuição.
De tal modo, a obra de arte tem um conteúdo que é produto da representação
humana, o que significa, v.g., que uma pintura que deseje retratar uma paisagem natural,
como o mar, se considerarmos a forma, provavelmente não veremos muita diferença
entre o mar e a imagem que o está reproduzindo. Contudo, a obra de arte diz mais,
“mostra-nos que a forma existira antes de tudo na representação, que brotou do espírito
humano e da sua atividade produtiva, de sorte que temos diante de nós não mais a
12
ARISTOTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011, p. 40. 13
Para uma posição contrária cf. ADORNO, Theodor. W. Teoría Estética. Madrid: Ediciones Akal S.A.,
2004. 14
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 31.
19
representação de um objeto (mar), mas a representação de uma representação humana.”
15.
2.2.2 O artista e a obra de arte
Ao assentarmos que a arte é uma criação do espírito humano precisamos, ainda,
investigar como esse humano possui a qualidade de artista (a despeito de outras
características que iremos considerar sobre a titularidade do direto à expressão artística
em momento oportuno).
O artista poderia ser conceituado como um fornecedor de uma prestação
original16
, na medida em que ele é único e a sua interpretação importa na manifestação
artística ou em sua criação. Na criação, o artista é aquele que apreende a Ideia, “[...] nos
deixando olhar com seus olhos para a realidade, e assim tornamo-nos participantes, por
sua intermediação, do conhecimento das Ideias.”17
.
Sendo dotado de um espírito transbordante, o artista projeta-se para fora de si,
dando configuração na realidade àquilo que é transcendente; o que interpreta (como um
músico, um bailarino, um ator), por sua vez, projeta o seu espírito e comunica-se com a
obra de arte em execução, a sua operação significa, sendo diferente de outras execuções,
e, caso seja substituído por outro artista intérprete, à obra de arte podemos imprimir
outros sentidos.
O artista possui uma habilidade na execução artística que chamamos de dom,
este, por sua vez, é adquirido com o uso do instrumento técnica da arte18
, não devendo
haver confusão entre essa técnica e um suposto imperativo de regras à produção de
15
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 29. 16
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA.,
2001, p. 30. 17
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 85. 18
Ibid., p. 85.
20
obras de arte. Isso porque, os trabalhos subordinados às regras só alcançam resultados
formais; por seu turno, a obra de arte é uma atividade do espírito.
A técnica da arte, apesar de representar o caráter racional de qualquer artista,
porquanto, ao exteriorizar-se buscará sempre a melhor forma (a partir de
aprimoramentos, repetições, procedimentos e técnicas) de exprimir a consciência que
tem de si e de todo o saber, nem por isso, poderá se esquivar da importância do talento e
da inspiração na consecução da criação estética.
Quanto à obra de arte, seguindo as ideias até aqui construídas, podemos apontar
alguns truísmos, quais sejam: as obras de arte não são produtos naturais, mas humanos;
são as obras criadas para o homem, e, embora recorram ao mundo sensível (tátil),
dirigem-se à sensibilidade do homem19
; e, não há apreciação da obra de arte “de
segunda mão”, isto é, a obra de arte necessita de uma apreciação direta20
.
Ao ligar a realidade finita com a liberdade infinita do pensamento compreensivo,
a obra de arte atua como um medium facilitador21
, no qual repousa o prazer da
representação estética. Esse anel intermédio possui de um lado um conteúdo interno e
do outro deve representá-lo (pela forma).
Com relação à obra de arte, ainda, diz-se que ela é um nunca-acabar, estando
sempre inacabada. Quanto à forma, em verdade, dependendo da produção artística, a
obra poderá estar finalizada, mas no que tange a sua interpretação será uma experiência
que sempre se refaz, se recria, perene, na medida em que o espectador projeta-se, pelos
sentidos, a contemplá-la.
A obra de arte como criação do espírito só com ele se comunica, por isso, aquele
que admira a representação que ao espírito pertence com ela se harmoniza, restando
19
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo, Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 45. 20
Confira: SCRUTON, Roger. Beauty: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2011. 21
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 84.
21
impossibilitada uma compreensão artística indireta. A mais detalhada descrição sobre
uma expressão artística será fracassada no seu objeto de transmitir Ideias sobre as
representações humanas.
A atemporalidade de uma criação artística não responde a nenhum juízo de
utilidade22
, sua grandiosidade se impõe independentemente de sua aplicação prática. Em
si e por si está à consignação da Ideia, portanto, sua forma pode conhecer termo, mas
sua espiritualidade não. Estará, pois, isenta de perder valor pelo transcorrer do tempo.
2.2.3 O objeto da arte e o interesse desinteressado
Ao definirmos o caráter contínuo da obra de arte não investigamos a sua razão
de ser, isso porque, a perpetuidade está atrelada ao objeto da arte que é a apreensão de
Ideias23
. Schopenhauer, revisitando a teoria platônica do “Mundo das Ideias”, analisa o
mundo como mera representação e vontade24
, sendo o seu correspondente as Ideias,
como um modelo que possui suas cópias, como as coisas que possuem as sombras. O
que está manifestado seriam essas sombras e cópias, enquanto os modelos e as coisas
em-si estão em outra dimensão. As Ideias são formas imutáveis e imperecíveis, que
constituem o em-si do mundo25
.
Pela contemplação estética o olhar artístico será responsável por esse alcance das
Ideias. Aplicando a teoria, poderíamos dizer que a arquitetura, v.g., como expressão
22
“Toda arte é completamente inútil”, famosa e má compreendida frase do escritor Oscar Wilde que
corrobora com o que estamos a afirmar, a arte é inútil devido ao seu valor está desconectado ao princípio
do utilitarismo. Ainda sobre o utilitarismo, Rawls, citando a doutrina de Sidgwick afirma que no
utilitarismo “Uma pessoa age de um modo muito apropriado [...], com o intuito de conseguir a
maximização de seu bem-estar, ao promover seus objetivos racionais o máximo possível. [...] O
utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas”: RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São
Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 24-30. 23
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 23. 24
A vontade é corpo e sentimento, é ela que nos faz alcançar o sentido das coisas, a representação é a
objetivação da vontade: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São
Paulo: Contraponto Editora, 2001. 25
A posição majoritária dos filósofos reconhece em Platão um desestimulador da arte como caminho da
verdade, por ela representar a imitação da cópia, um simulacro, embora Schopenhauer discorde dessa
posição, entendendo que tanto a filosofia (esta com mais potencial) como a arte são trajetórias legítimas
no alcance das Ideias.
22
artística que é, apreende uma Ideia, que pode ser manifestada pela rigidez, coesão,
reação contra a luz, desafios à gravidade etc.. Da mesma forma, a poesia trágica, expõe
a Ideia da humanidade em seu lado cru, terrível e pavoroso; já a dança, por sua vez,
exibirá leveza, precisão, ritmicidade etc.. Identifica-se, de tal modo, no dizer dos
neoplatônicos, diversos arquétipos da Ideia, a partir de diferentes formas de expressões
artísticas, qualidades essas que causam o prazer que sentimos perante uma obra de arte.
Aqui, precisamos perquirir que prazer é esse que se origina da fruição artística.
Isso porque na nossa cultura entendemos como prazeroso aquilo que, não importando
em que se baseia o objeto, consiste nas satisfações da vontade do indivíduo. Um prazer
vivenciado a partir de conceitos como agradável e útil (Chaq’un a son goût)26
, pois o
objeto de prazer guarda relação direta com o sujeito, “gosto mais dessa cor, sabor,
melodia”, enquanto que para outra pessoa “aquilo é mais útil, aquilo lhe agrada mais”.
O regozijo com o artístico não possui ligação com o interesse pessoal, ele
repousa no mero entendimento, de tal modo, os objetos do saber (as obras de arte) não
possuem nenhuma vinculação com fins pessoais, o objeto possui um fim em si,
tornando o prazer desinteressado.
Essa cosmovisão aponta que as Ideias só são conhecidas pelo sujeito “graças à
supressão da individualidade no sujeito que conhece”27. Quando na consideração do
objeto belo (artístico) não estamos mais conscientes de nós mesmos como indivíduos,
“mas como puro sujeito do conhecer destituído de vontade, assim, conhecemos não a
coisa isolada, mas uma Ideia”28
. Schopenhauer chama esse sujeito de gênio, o que vê
através do véu de Maia, e que irá se reportar para os espectadores a fim de que esses
possam fruir dessa capacidade por intermédio das obras de arte, porém, estes o fazem
em um grau inferior ou diferenciado.
26
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 24. 27
Ibid., p. 30. 28
Ibid., p. 120.
23
O chamado “interesse desinteressado” foi esboçado por Kant29
, seu substrato nos
diz que o juízo do gosto que se ocupa de uma obra de arte, concedido por nós, terá mais
chances de ser um “veredito necessário” quanto maior for a capacidade desse sujeito em
penetrar no objeto, sem querer trazê-lo para si, sem nenhum egoísmo. O gosto para o
belo artístico será um julgamento de satisfação ou insatisfação, porém sem nenhum
interesse fundante na realização de desejos pessoais.
Uma conclusão importante que aqui chegamos (retomaremos detalhadamente na
seção da “Titularidade”) é que o desejo artístico diferencia-se do desejo de outras
coisas, pois este se sacia com qualquer coisa, qualquer coisa serve, enquanto aquele é
específico e não se esgota. Dessa maneira, as obras de arte não se consomem do ponto
de vista de uma relação de consumo, “o interesse pela arte não é ditado pelo desejo, pois
não se fixa no sensível concreto”30
.
2.2.4 Crítica e o conhecimento dos especialistas
A filosofia se ocupa do conhecimento devido à necessidade e não pelo que ele
pode nos servir (utilitarismo)31
, todavia, o refinamento do “veredito necessário”
kantiano provoca-nos uma sensação de incongruência, por não estarmos convencidos
dessa capacidade (do interesse desinteressado) tanto em nós como no outro. De fato, a
realidade nos mostra que esse sentido não é inerente ao homem, “como qualquer coisa
29
KANT, Emmanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995,
p. 47-48; 55-56. 30
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 56. 31
A expressão mais eloquente do utilitarismo como movimento estético foi o “Construtivismo Russo”,
inserido historicamente na Revolução de 1919. A arte passa a ter uma função social de caráter político,
seus teóricos negavam a “arte pura” como fruto da criação humana, por considerá-la meramente
decorativa; a arte precisa organizar a vida. Sobre o movimento estético-político: ALBERA, François.
Eisenstein e o Construtivismo Russo. São Paulo: Cosac Naify, 2002
24
que lhe fosse inseparável por natureza adquirida com o nascimento, como, por exemplo,
os órgãos ou os olhos”32
.
Não se constitui como tarefa fácil abandonarmos os apegos de nossa
personalidade e nos lançarmos de forma desinteressada para realizar uma contemplação
artística. Por isso, parece-nos que esse sentido deve ser formado e, cada homem, dentro
de si, precisa burilá-lo e conservá-lo, não importando muito saber se o perdemos em
alguma etapa de nossa evolução ou se nunca o tivemos, o fato é que devemos trabalhar
para tê-lo, ou melhor, sê-lo.
Não obstante, como vivemos no tempo em que todos têm uma opinião e as
informações são repetidas com um invólucro de verdade irrefutável, tudo vai perdendo
autenticidade e as significações cada vez mais desconectadas de profundidade.
Formando-se o seguinte paradoxo: não cultivamos (nem aprendemos) um real
sentido/intuição para apreciar o belo artístico, mas somos estimulados a opinar sobre
tudo, a criticar33
.
E é assim que vamos fazendo leituras artísticas, a partir da referência de juízos
rasos, em sua maioria o que a obra de arte em nós suscita é, além do direto aprazimento,
“um juízo sobre o seu conteúdo e sobre os meios de expressão e ainda sobre o grau de
adequação da expressão ao conteúdo”34
. Esse tipo de gosto se atém ao detalhe, ao
acessório, ao secundário, e a profundidade das grandes paixões que os artistas
descrevem são repelidas.
32
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 53. 33
“Respeitamos, admiramos a arte; mas acontece que já não vemos nela qualquer coisa que não possa ser
ultrapassada, a manifestação íntima do Absoluto, e submetemo-la à análise do pensamento, não com o
intuito de provocar novas obras de arte, mas antes com o fim de reconhecer a função e o lugar da arte no
conjunto da nossa vida.” Ibid., p. 25. 34
Ibid., p. 25-26.
25
Nesse mundo das opiniões, o homem do gosto vem cedendo lugar para o
especialista35
. O especialismo supõe, ao menos, certos conhecimentos que abrangem o
conjunto da obra, além de trabalhar a reflexão sobre ela. O especialista domina com
mais precisão a obra de arte sobre os seguintes aspectos: o significado histórico; os
materiais de que foi feita; as múltiplas condições em que foi produzida; a personalidade
do artista etc..
A indústria cultural, geradora da cultura de massa36
, irá repercutir
inevitavelmente no diálogo artístico, fruto dos modos de produção que a nossa demanda
populacional traduz, nesse contexto, da mesma maneira como em outras áreas do
conhecimento, o especialista em artes será valorizado e convocado em seu mister para
diversas análises.
Teria o especialista certo grau de formação técnica e, pela dedicação que
emprega ao belo artístico, poderíamos dizer que ele está mais perto de ter um juízo
estético que se aproxime ao “veredito necessário”, contudo, na realidade, como ele não
está desconexo dos demais homens da sociedade que são de seu tempo, precisamos ficar
atentos à possibilidade de os especialistas formarem uma “ditadura da minoria” sobre o
que deve ser valorizado em matéria artística.
2.2.5 A finalidade da arte
Qual seria o fim último da arte? Teria a arte um objetivo a ser concretizado?
Uma função a realizar? O alcance desse escopo seria individual ou poderia, outrossim,
ser coletivo? Para responder a essas questões iremos partir do seguinte ponto, a arte
35
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 54. 36
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 175.
26
possui a faculdade de nos transportar para situações que normalmente a nossa existência
pessoal não proporcionaria, e mesmo quando a experiência representada já foi
vivenciada, a posição de espectador possibilita uma autorreflexão objetivada. São
efeitos poderosos.
A finalidade da arte, dizem-nos, seria o “despertar da alma”, pois ela tem o
efeito que consiste em revelar à alma tudo o que alma contém de essencial, ficamos
mais aptos a sentir, em pôr ao alcance da intuição, o que existe no espírito do homem, a
verdade que o homem guarda no seu espírito, o que revolve o peito e agita o espírito
humano37
.
2.2.5.1 A ação suavizante da arte
Conhecida pelos franceses como l’adoucissement de la barbárie38
, a ação de
suavização do homem pela arte, reconhece, aprioristicamente, que os homens são
dominados por suas paixões, permanecendo muitas vezes subjugados em suas ações
pela força selvagem de seus instintos, estes, por sua vez, são incontroláveis e
incompreensíveis por ele.
A arte vai mostrar para o homem as suas próprias paixões, podendo lisonjeá-las,
compará-las, identificá-las etc., sabemos que na representação artística não existe
imparcialidade, ao contrário, temos uma produção unilateral que se direciona aos nossos
sentidos, toda exposição artística (por todos os meios existentes e os que virão a existir),
consiste em um convite para que o homem conheça mais sobre o seu espírito.
Quando o homem/espectador admira uma obra de arte ele se coloca numa
posição de saber quem ele é, pois a arte lhe dá a consciência de o ser. A demonstração
desses instintos de uma perspectiva exterior, ou melhor, da expectativa daquele que
37
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2.ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 32. 38
Ibid., p. 35-36.
27
olha, propicia-lhe um afastamento razoável do sentimento em tema, esse distanciamento
confere ao sujeito certa liberdade.
A liberdade de que falamos é a de poder “manusear” o sentimento e, enfim,
entendê-lo melhor, nesse ponto, a ação de suavização do homem já começou a operar,
posto que, assim que identificou o sentimento objetivamente, essa primeira descoberta
possui um sentido aliviador, como as lágrimas que no pranto aliviam a dor pelo simples
chorar.
As paixões perdem a sua intensidade quando às assistimos como simples objetos
de representações artísticas, essa mitigação ocorre, precisamente, porque “os
sentimentos saem do estado de concentração em que se encontram dentro de nós e
entregam-se ao nosso livre-arbítrio”39
.
Destarte, munido do livre-arbítrio em relação às suas emoções, o homem possui
uma chance de desenvolver sua personalidade de forma única, as escolhas que irá tomar
no processo de autodeterminação deixarão de ser “tiros no escuro”, passando a traduzir
escolhas conscientes de um ser que não só se conhece, mas sobretudo conhece o
humano. Estamos esboçando, nesse momento da pesquisa, a perspectiva de uma
“educação pela arte”40
, pela faculdade que a arte tem em cultivar o humano no homem
e, nessa empreitada, usaremos a fundamentalidade do princípio Nihil humani a me
alienum puto41
, que do latim significa “nada do que é humano me é estranho”.
A educação pela arte (desenvolvida no tópico 4.1.2 em outros aspectos) tornaria
os homens mais preparados para todas as experiências da vida, fazendo com que as
39
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2.ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2009, p. 35-36. 40
Nesse sentido, cf.: SCHILLER, Friedrich. Cultura, Estética e Liberdade. São Paulo: Hedra, 2009. 41
HEGEL, op. cit., p. 33.
28
adversidades de uma vida comum não nos apanhem insensíveis e que nossa
sensibilidade permaneça aberta a tudo quanto ocorre fora de nós, tornando-nos cidadãos
cada vez mais tolerantes.
Em síntese, a arte tem como fim o despertar de nossas almas para aquilo que é
próprio do espírito humano, quando os homens abrem os olhos – tornam-se
espectadores - para o conteúdo artístico eles passam pela ação suavizante da arte,
responsável, no primeiro momento, em torná-lo mais estruturado com relação às suas
próprias paixões e, dessa forma, terem maior autonomia para escolherem livremente
seus destinos; no segundo momento, a educação artística é um beneplácito para toda a
sociedade, uma vez que prepara todos os homens para um convívio mais
condescendente.
2.3 PAPEL DA PERSPECTIVA FILOSÓFICA
Apesar de resumido, o exame que realizamos sobre a arte em considerações
filosóficas é o alicerce de diversas questões que serão enfrentadas nos capítulos a seguir,
ou seja, compreende em grande parte as nossas premissas maiores, típicas do método
dedutivo aplicado.
Estaremos desenvolvendo o mote da liberdade artística a partir das três
perspectivas que já estão fixadas no tema, no entanto, apesar de seguirmos as etapas que
na ordem fora estabelecida, os temas são conexos e referenciam-se, consequentemente,
teremos o tripé “concepções filosóficas, fundamentalidade constitucional e política da
pluralidade” presente em algum grau em todos os capítulos.
De fato, já inauguramos o estudo desse tripé na perspectiva filosófica, com uma
ênfase mais acentuada na elocução humana, ou seja, o estudo da arte (objeto) com
referência ao ser humano (sujeito), sendo delineados os primeiros substratos dessa
29
complexa relação, destacando a importância da arte na formação do ser humano
individualmente e coletivamente concebido.
A seguir, iremos investigar a fundamentalidade constitucional da expressão
artística. Primeiro, trazendo elucidações do direito constitucional estrangeiro. Depois,
delimitaremos o direito fundamental à expressão artística na Constituição Federal
Brasileira e as implicações provenientes da dimensão jurídico-subjetiva (função
clássica)42
, principalmente como parâmetro no controle de constitucionalidade.
Em seguida, enfrentaremos questões polêmicas que circundam as criações
artísticas em nosso tempo, como as questões violadoras a igualdade de gênero, o
racismo, o discurso do ódio, agressões à integridade física (automutilações ou contra
terceiros) no contexto de uma obra de arte, a pornografia, o desrespeito aos valores e
bons costumes, entre outras.
Por fim, iremos explorar o direito à expressão artística a partir da dimensão
jurídico-objetiva43
(status positivus), suas determinações aos poderes constituídos,
necessidade de proteção, fomento, formação, promoção e financiamento público das
atividades artísticas, à luz dos comandos axiológicos da Constituição, em especial ao
princípio da igualdade, como critério interpretativo e parâmetro constitucional em face
das políticas culturais.
42
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 110-111. 43
Ibid., p. 111-114.
30
3 DIREITO CONSTITUCIONAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA
3.1 DIREITO ESTRANGEIRO
O estudo do direito estrangeiro é substancial nas pesquisas desenvolvidas dentro
do ambiente acadêmico, pois, a partir dele, entendemos um fluxo material e histórico na
formação das Cartas constitucionais. No que diz respeito à materialidade podemos
traçar a semelhança entre os dispositivos normativos pelas prioridades nas agendas
políticas, assim como apontar o que se formatou como antípodas entre os Estados
nacionais.
Selecionamos quatro ordenamentos jurídicos alienígenas, o português, o
espanhol, o americano e o alemão, tendo como fundamento comum suas posições de
Estados Democráticos de Direito e, designadamente, no tocante aos dois primeiros, a
estreita relação histórica que naturalmente motivou o direito no Brasil; à medida que os
dois últimos, por obra da presença da Teoria Liberal (política e jurídico-dogmática)
tanto na doutrina como nas construções jurisprudenciais daqueles países.
Para tanto, investigaremos como as Constituições desses Estados protegem o
direito à expressão artística, para em seguida nos posicionarmos com relação ao
ordenamento jurídico brasileiro, aproveitando diversos conceitos a que chegaremos ou
por sínteses esclarecidas ou por termos simplesmente colhido-os da experiência
estrangeira delimitada.
3.1.1 Estados Unidos, Constituição de 1787
O direito fundamental à expressão artística não é um direito constitucional
autônomo no ordenamento jurídico norte-americano, ou seja, não existe previsão
explícita no rol das garantias fundamentais individuais. Historicamente, estes direitos
31
individuais, fruto do constitucionalismo44
(como movimento típico dos Estados
Modernos ocidentais), apresentaram, na maioria de suas experiências, sua inserção no
texto constitucional através de uma declaração de direitos do teor de status negativus45
.
Os direitos de status negativus são aqueles que permitem ao sujeito, titular do
direito constitucional, resistir a qualquer tipo de interferência do Estado na esfera de
liberdade negativa garantida pela Constituição. Correlatamente, teremos uma obrigação
de abstenção do Estado, um deixar de fazer algo, para que assim não incorra em
violação ao direito de resistência.
Os direitos fundamentais nos Estados Unidos foram sendo inseridos por
intermédio de emendas (amendments) ao texto de 1787, o conjunto delas – as dez
primeiras emendas – são conhecidas como a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos
Estados Unidos (Bill of Rights). Na primeira emenda reconhecemos o direito que seria o
gênero da liberdade artística, a liberdade de expressão (freedom of speech)46
.
A liberdade de expressão desempenha um papel de destaque nos Estados
Unidos, pois representa não somente a liberdade em exprimir ideias e opiniões, mas,
como tal, elemento estruturante da democracia. Nesse sistema, a expressão mostra-se
como uma “liberdade instrumental”47
, meio capaz de assegurar o regime democrático e
a pluralidade política.
Dessa forma, primeiro, a doutrina norte-americana negava a possibilidade das
manifestações artísticas estarem protegidas pela liberdade de expressão, pois esta era
44
Para o estudo de um recorte histórico onde se examina o constitucionalismo a partir das teorias
daqueles que pensaram as Constituições do Estado Moderno: GODOY, Miguel Gualano de.
Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella.
São Paulo: Saraiva, 2012, p. 31-66; e FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito
Constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 30-67. 45
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 49-51. 46
ESTADOS UNIDOS, Constituição (1787). Disponível em <http://constitutionus.com/>. Acesso em: 10
jan. 2013. 47
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 132.
32
uma liberdade política, isto é, a posição política estava em seu desiderato, todavia, esse
entendimento fora superado, tornando-se insuficiente o critério de que certas ideias
precisavam estar veiculadas nas manifestações para que essas pudessem gozar de arrimo
constitucional.
O novo e atual posicionamento é que a liberdade de expressão justifica qualquer
tipo de discurso, como a literatura, as artes ou a ciência, sendo essas outras
manifestações derivadas (espécie) da função principal, mas sem carregar esse ônus de
função política em seu conteúdo, que lhe denotaria uma posição preferencial48
.
A consequência dessa derivação, ou melhor, do englobamento da liberdade de
expressão artística ao freedom of speech, foi o acolhimento das prerrogativas que
orientam o direito de expressão em geral, como a existência de um “livre mercado de
ideias”49
responsável por garantir o máximo de liberdade possível e, destarte, todas as
ideias contrárias podem vir ao debate público na tentativa de convencer os demais
interlocutores, devendo o resultado desse livre debate ser o formador da opinião pública.
O que implica dizer que o Estado deve prescindir, como regra, na intervenção
ou na regulação de opiniões, visto que ao poder estatal é vigente o “princípio da
neutralidade de conteúdo”, não devendo tomar partido em discussões. Esse conjunto de
elementos abalizadores será de extrema importância para a resolução dos cases que
envolvem expressões artísticas carregadas, v.g., de racismo ou preconceito.
Ademais, a Carta norte-americana traz um mandamento positivo ao Congresso
que diz respeito “à promoção e ao progresso das ciências e das artes úteis”50
. O que
48
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 322. 49
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 132. 50
Seção 8: “Será da competência do Congresso: Promover o progresso da ciência e das artes úteis,
garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou
descobertas;”. ESTADOS UNIDOS, Constituição (1787). Disponível em <http://constitutionus.com/>.
Acesso em: 10 jan. 2013.
33
distingue esses direitos como de status positivus51
, deste modo, eles impõem ao Estado
um agir, uma prestação material que seja capaz de melhorar a condição de vida dos
titulares dos direitos por lhe suprir certos recursos, correspondentemente, os indivíduos
que têm o direito de receber algo podem exigir a prestação material ou imaterial do
Estado.
Reconheceu o constituinte norte-americano, na segunda parte do dispositivo, os
direitos de exclusividade, por tempo limitado, dos autores e inventores sobre os seus
escritos e descobertas, o que corresponderia, em nossa doutrina pátria, aos direitos de
autor, significando dizer que a liberdade de criação artística protege também o resultado
da criação, a obra de arte propriamente dita.
Não obstante, o dispositivo constitucional norte-americano é direcionado à
competência de legislar dos congressistas, deste modo, no que tange às matérias
patrimoniais do autor sua hierarquia nos Estados Unidos é de lei infraconstitucional, a
experiência brasileira, por sua vez, deu ao direito o status de direito fundamental
constitucional, no art. 5°, IX, da CF.
Quanto à qualificação das ciências e das artes sendo “úteis”, como objeto de leis
para promoção e progresso, fica estabelecido que deverão os legisladores
desenvolverem, ao turno de seu poder discricionário, qual critério de utilidade que
norteará as políticas públicas de fomento. Aqui não se trata em dar à manifestação
artística uma utilidade para que seja protegida constitucionalmente (já afastamos essa
possibilidade acima, no tópico 2.2.2), o utilitarismo aqui entendido será um método
procedimental para o incentivo artístico.
51
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 51-52.
34
3.1.2 Portugal, Constituição de 1976 (arte e cultura)
O constituinte lusitano trajou a liberdade de expressão artística como direito de
criação cultural, o que influenciou toda a doutrina desse país que utiliza a cultura e a
arte como se fossem termos unívocos. O artigo 42º, caput, intitula-se como “Liberdade
de criação cultural”, estipulando no nº 1 que participam da liberdade cultural, como
liberdade individual que é, “a livre criação intelectual, artística e científica”; e, o nº 2 do
artigo em comento assegura os direitos do autor 52
.
A liberdade de criação cultural portuguesa é considerada como uma
manifestação do próprio desenvolvimento da personalidade53
, desse modo, caberá a
cada pessoa, autonomamente, a escolha do objeto, da forma, do tempo e do modo de
qualquer obra, sem interposição do domínio público ou privado.
O artigo 43º, nº 2 versa que “o Estado não pode programar a educação e a
cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas”, isto é, ao que nos remete, ao Estado português fica proibido à oficialização
de uma corrente estética, o que em outro prisma representa o dever de neutralidade,
atribuindo o contraditório típico de uma sociedade livre.
Em que pese o entendimento dos doutrinadores portugueses, que inclusive
assentam no elemento cultural tudo aquilo que tem significado espiritual e adquire
relevância coletiva54
(o que representa a natureza da arte vista no tópico 2.2.1), a arte e a
cultura não se confundem, e, possivelmente, essa fusão das duas inteligências causará
uma proteção à liberdade artística aquém da ideal.
52
PORTUGAL, Constituição (1976). Disponível em
<http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx >. Acesso em: 10
jan. 2013. 53
MEDEIROS, Rui; MIRANDA, Jorge. Constituição Portuguesa Anotada - Tomo I. 2. ed. Coimbra:
Almedina, 2010, p. 452 et. seq. 54
MIRANDA, Jorge. Notas Sobre Cultura, Constituição e Direitos Culturais. Coimbra: Almedina,
2006, p. 764.
35
É comum encontrarmos a utilização da arte e da cultura como se uma fosse
sinônima da outra, embora, do ponto de vista sociológico a cultura é mais abrangente
que a arte55
. Essa ciência entende que a cultura corresponde à totalidade de padrões
apreendidos e desenvolvidos pelo ser humano como membro de uma sociedade e, esse
complexo de significações, é responsável pela identidade desse povo.
O conhecimento, as leis, os costumes, as artes, as línguas, as crenças, ou seja,
tudo aquilo que o homem imagina, pensa ou inventa pertencem à cultura. “A cultura é
uma ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira
determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder”56
. A cultura é uma
criação coletiva que reforça o seu modo de ser, assim, diz-se que a cultura “cuida do
outro”, pois traça os elementos que dão conformidade ao povo.
A arte, como já vimos, transcende todo e qualquer fim que se proponha a ela,
visto que guarda fim em si. Já a cultura segue o princípio da utilidade, isso porque ela
instrumentaliza os indivíduos a viver em sociedade, sendo útil para que estes possam
estabelecer a comunicação. Quando essa verdade sobre a cultura se revela ela irá se
perpetuar por dois atributos: a tradição e a repetição57
.
Enquanto a arte é um universo tendo como abordagem a interpretação, a cultura
narra aquilo que é construído pela agregação do conhecido, por existir e ser preservado,
importa para os indivíduos saber como é feito o que sempre foi feito, portanto, a cultura
estabelece normas, hábitos e técnicas, seu discurso é convergente.
E essa tendência de unificar diversos produtos do homem em sociedade,
afetando-os, isto é, tornando-os reflexo desse povo, estabelecendo esse laço de
assimilação que cada homem reconhece em si e nos outros que também dividem a
55
Nesse sentido: SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros
Editores LTDA., 2001, p. 60. 56
CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:
Cortez, 2006, p. 55. 57
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 308-345.
36
mesma cultura, faz surgir à identificação cultural, que deverá ser protegida pelos
ordenamentos jurídicos.
A cultura é resguardada em diversas Cartas constitucionais modernas58
, mas por
ela representar esse ponto de convergência entre distintas atividades humanas, suas
normas serão mais bem alocadas, dentro da técnica constitucional, entre os direitos de
status positivus, mais precisamente aqueles que prescrevem as políticas públicas ao
legislativo e ao executivo, pois esse é o regime do dever estatal com a cultura, o que
ordena a preservação, o incentivo, a valorização, a difusão etc.
Resta, isto posto, afastada a possibilidade de confundir arte e cultura, tanto no
sentido sociológico (visto que a arte pertence à cultura), como do ponto de vista
jurídico, pois a proteção da expressão artística livre só é plena quando autônoma,
quando compartilha toda a tutela jusfundamental, exaltando o seu caráter de resistência
com relação às violações dos poderes constituídos, por tudo que representa
individualmente (artista, obra de arte, espectador) e não somente por participar da
cultura de seu povo ou por ter relevância coletivamente (aspecto da dimensão jurídico-
objetiva).
3.1.3 Espanha, Constituição de 1978
A Constituição espanhola instituiu em seu art. 1º valores superiores do seu
ordenamento jurídico, que são a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo
político59
. A supremacia desses valores é verificada ao interpretar e aplicar qualquer
dispositivo constitucional ou infraconstitucional, pois sofrerão a influência que
58
É o caso da nossa Constituição Federal de 1988, que traz no Título VIII, Da Ordem Social, Seção II, Da
Cultura. BRASIL, Constituição (1988). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 10 jan. 2013. 59
ESPANHA, Constituição (1978). Disponível em
<http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articulos.jsp?ini=15&fin=29&tipo=2>. Acesso
em: 01 fev. 2013.
37
corresponde à irradiação do sentido axiológico desses valores60
. Isso denota que a
liberdade artística nesse país será determinada pelos valores superiores, igualmente a
todos os outros direitos fundamentais.
A despeito da liberdade artística, encontra-se ela no art. 20.1, b, que reconhece e
protege os direitos de criação e produção literária, artística, científica e técnica. Já o art.
20.4 reconhece que esses direitos fundamentais não são absolutos, sendo limitados tanto
por leis que os desenvolvam, como, e especialmente, pelo direito à honra, à intimidade,
à própria imagem e na proteção da juventude e da infância.
A Constituição autoriza, ainda, o sequestro (art. 20.5) de publicações, gravações
e outros meios de informação por decisão judicial, ficando vedada a possibilidade de
sequestro por decisão administrativa. A jurisprudência do Tribunal Constitucional
Espanhol reconhece que os tratados internacionais também irão participar na formação
de um “perfil exato” na abrangência material que delimita os direitos fundamentais61
.
Fenômeno curioso que vem ocorrendo nesse país, fruto da jurisprudência do
Tribunal Constitucional, é a penalização daquele que, ao manifestar-se, nega a
existência de um crime relacionado com a ordem política e social. Esse dispositivo
penal resulta da adesão da Espanha ao Convênio Internacional de Prevenção e Sanção
ao Genocídio de 1948, desta maneira, a negação do Holocausto, por exemplo, vem
sendo interpretada pela Corte constitucional como crime.
Em um caso emblemático62
, os donos de uma Editora, chamada Editorial
Makoki S.A, foram condenados pela publicação de um álbum chamado “Hitler SS” da
autoria de dois franceses. As decisões dos tribunais das instâncias inferiores afirmavam
60
FALLA, Fernando Garrido. Comentarios a la Constituición. Madrid: Civitas, 1985, p. 29. 61
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 160. 62
STC 176/1995 em: Ibid., p.167.
38
que o conteúdo do álbum era neonazista e revisionista dos comprovados fatos históricos
ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.
O Tribunal, em grau de recurso, confirmou as decisões, admitindo que a
finalidade da obra literária não “é outra senão a de humilhar e ofender o povo judeu,
cabendo aos editores o dever de analisar o conteúdo do texto que deverá ser publicado,
antes de sua publicação”. Assim, condena aquele que, ao expressar seu pensamento,
nega a existência do genocídio como também aquele que, mesmo não sendo autor,
difunde as ideias.
A decisão da Corte fundamenta-se nas Convenções Internacionais e no
dispositivo penal que criminaliza a discriminação, o ódio, ou a violência contra grupos
ou associações por motivos racistas, antissemitas etc. A norma penal63
fora questionada
sobre sua constitucionalidade, por supostamente representar uma violação ao direito
fundamental da liberdade de expressão, mas o Tribunal Constitucional afastou esse
entendimento64
.
Ainda, segundo os argumentos da Corte, as dissidências ideológicas podem
acontecer, mas precisam ocorrer de forma pacífica e sem ofender a dignidade humana,
de sorte que o ato de “revisionismo histórico” é desrespeitoso às vítimas do Holocausto
e a violência a qual foram submetidas. Hoje, o Holocausto é um tabu no sistema
espanhol. Toda manifestação que questione os fatos advindos à época ou tente dar
legitimidade ao regime responsável pelo genocídio é penalizada.
63
Código Penal Espanhol, 1995, art. 510, item 1 e 2, que dispõe, “1. Os que provocarem a discriminação,
o ódio ou a violência contra grupos ou associações por motivos racistas, antissemitas ou outros referentes
à ideologia, religião ou crença, situação familiar a vinculação se seus membros a uma etnia ou raça, sua
origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou deficiência, serão castigados com a pena de
prisão de um a três anos e multa de seis meses a doze meses; 2. Serão castigados com a mesma pena os
que, com conhecimento de sua falsidade ou temerário desprezo face a verdade, difundirem informações
injuriosas sobre grupos ou associações em relação a sua ideologia, religião ou crenças, a vinculação de
seus membros a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou
deficiência”. Em: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 161. 64
Nesse sentido: LAMBAS, Fernando Santamaría. El Processo de Secularización en la Protección
Penal de la Libertad de Consciência. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2001, p. 293.
39
Esse tipo de posicionamento, reiterado na jurisprudência, vem fulminando uma
possível neutralidade de conteúdo do Estado. Desse modo, não importa como se
manifesta (artisticamente ou com opiniões), se o conteúdo estiver relacionado ao
genocídio, por exemplo, essa manifestação tem a presunção de estar viciada pela
ilegalidade, esvaziando a definição da liberdade de expressão e desestimulando o
exercício desses direitos.
Ademais, o Estado entra em um contrassenso inquietante, pois, age no propósito
de proteger raças, etnias, grupos sociais etc., mas utiliza meios que são desmedidos,
quer afastar completamente a mácula dos governos fascistas e nazistas, respondendo a
uma manifestação literária com uma pena privativa de liberdade, dentro de um Estado
autointitulado como Democrático de Direito, deixando evidente que falta na
jurisprudência uma aplicação correta do critério da proporcionalidade65
.
3.1.4 Alemanha, Constituição de 1949
Coube à jurisprudência alemã protagonizar no âmbito da liberdade artística as
características estruturais que lhe concerne aplicação, limites e definições. No que diz
respeito à previsão constitucional, o art. 5 I da Grundgesetz trata de diferentes direitos
da liberdade de comunicação (individual e de massa), sendo todos autônomos. A
liberdade de expressão artística está prevista no art. 5 III 1 GG, afirmando o seu
dispositivo que “a arte e a ciência, o ensino e a pesquisa são livres”, após o art. 5 II GG
que trouxe os limites dos cinco direitos de comunicação previstos no suprarreferido art.
65
Critério que iremos trabalhar nessa exposição, em: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado
Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos
fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 120 et seq.
40
5 I GG66
. É desse dispositivo constitucional do art. 5 III 1 GG que o Tribunal
Constitucional Federal – TCF interpreta os conceitos de arte que iremos analisar.
O TCF respondeu o que é arte de um ponto de vista constitucional,
primeiramente com a paradigmática decisão “Mefisto” (Mephisto)67
de 1971 – definição
material – e, na década de 1980, completou o conceito de arte na decisão do “Comboio
Anacrônico” (Anachronistischer Zug)68
– conceito formal e aberto.
Na decisão “Mefisto” o Tribunal afirmou que a criação artística não é uma
comunicação, mas, antes uma expressão, portanto, a relação entre aquele que trabalha
no âmbito da arte e o Estado existe independentemente de haver recipientes às obras
artísticas, se estas foram ou não diretamente apreciadas por espectadores, subsistindo o
direito individual de liberdade.
Ainda, garantiu que liberdade de expressão artística abrange de igual modo todo
o âmbito da obra, assim como o âmbito do efeito da criação artística69
. O âmbito do
efeito seria aquele em que os recipientes têm acesso à obra, dessa forma, aqueles que
participam nas atividades que irão dar forma a esse âmbito também estarão protegidos
pelo direito fundamental, incluídos aí divulgadores, editores e quaisquer pessoas que
sejam intermediadoras entre os dois âmbitos. Outrossim, estabeleceu que os conflitos
entre a liberdade artística e os direitos da personalidade precisam ser resolvidos com a
consideração do princípio da dignidade humana.
3.1.4.1 Definição material e formal da arte
O TCF procurou investigar uma definição para arte no intuito de dar tratamento
jurídico à liberdade de expressão artística. No entanto, ficará vedada “a possibilidade de
66
MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional
Alemão. Berlin: Konrad-Adenauer-Stiftung E. V., 2005, p. 495. 67
BVerfGE 30, 173: Ibid., p. 495. 68
BVerfGE 67, 213: Ibid., p. 499. 69
Ibid., p. 498.
41
todo órgão estatal, inclusive os titulares da função jurisdicional-constitucional do
Estado, de ser um árbitro de assuntos artístico-estéticos”70
. Do mesmo modo, a acepção
da arte deve buscar um sentido que seja desprendido, ao máximo, de um juízo
valorativo, seu objetivo é tornar o direito judicializável.
A “definição material” é aquela que reconhece na essencialidade da expressão
artística às características pessoais do artista, aquilo que brota da sua personalidade e,
deste modo, mostra, por um meio específico, tudo que lhe é íntimo, como suas
experiências, seus posicionamentos e seus juízos de valor. Assim, os recipientes das
obras artísticas observam, pela via da linguagem particular, o individualismo do artista.
Essa definição vai sobrelevar o subjetivismo criativo71
, porquanto o artista,
impulsionador do procedimento de criação, é o grande personagem do complexo
artístico, que, além de executá-la, aloca nele todo o conteúdo que deverá ser impresso a
obra de arte. O que demonstra um exagero à autorreferência, pois apesar de sabermos
que o traço das obras de arte é o caráter humano e para o homem, reconhecemos que o
artista vai mais além do que reproduzir anseios de sua personalidade na obra de arte
(tópico 2.2.3).
A definição material, logo, peca em reduzir a expressão artística àquilo que
provem da individualidade do artista. Visto que, existem outros elementos que são
importantes para a consecução de uma obra de arte, como o momento histórico, os
materiais que foram necessários na produção, às condições em que foi produzida (tópico
2.2.4), sendo a personalidade do artista mais um componente na formação dessa
unidade. Ostentando-se insuficiente a definição material.
70
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 71
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 196.
42
A “definição formal” da arte, por sua vez, traduz a sua essencialidade na
possibilidade de se conseguir determinar qual tipo72
de arte se refere certa expressão
artística observada. Os tipos seriam a pintura, a escultura, o teatro, a dança, o cinema, a
música, a poesia, a prosa, as artes plásticas etc.73
. O interesse dessa definição está no
pragmatismo que ela oferece em razão das resoluções de casos concretos, dado que o
magistrado teria um critério objetivo para aplicar.
Mais uma vez, a definição parece-nos carente, justamente por estar ignorando o
desenvolvimento de outros meios de expressão artística, ou seja, a tentativa de
categorizar a arte fará que ela não acompanhe o progresso histórico de inúmeras
expressões que são concebidas a todo tempo, em todo o mundo, frutos de uma nova
necessidade de representação humana sobre os processos artísticos74
.
O rompimento com as formas mais tradicionais da arte é um comportamento
legítimo dentro da jusfundamentalidade do direito de expressão artística75
, destarte, o
critério falharia se por acaso ele fosse aplicado de forma excludente pela atividade
estatal, isto é, os poderes constituídos não reconheceriam como protegida pelo
ordenamento jurídico-constitucional uma manifestação artística inaugural,
completamente inédita. O que implica reconhecer que para o constante uso da definição
formal o rol de artes tradicionais constitui-se como exemplificativo e não taxativo.
3.1.4.2 Conceito aberto
72
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 196. 73
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 74
As artes urbanas são notórios exemplos de novas artes, caracterizam-se por utilizarem os espaços
públicos no seu desenvolvimento, são exemplos: grafite, performances, flash mob, stickers, instalações,
estátuas vivas etc.. 75
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
43
O “conceito aberto” de arte já corresponde à expressão artística o seu caráter
multifacetário, indicador de que a manifestação terá novos significados, passíveis de se
depreender por uma demanda interpretativa ininterrupta, que ocorre em diversos níveis,
ao proporcionar sempre uma narração sobre a pluralidade e a riqueza de significações
(analisamos essa questão no tópico 2.2.2)76
.
Esse conceito tenta definir a arte a partir da característica de seu conteúdo, que é
a possibilidade de releitura, de se refazer e de se recriar, tanto pelos diferentes
espectadores como pela própria passagem do tempo que arrasta conceitos e valores para
o esquecimento, enquanto elege novos que exaure os antigos, logo, mesmo a obra
artística que tenha o conteúdo mais claro possível, um sentido até mesmo declarado
pelo seu criador participa dessa versatilidade com relação aos significados, por ser o que
representaria a substância da arte.
O Tribunal Constitucional Federal, na decisão do “Comboio Anacrônico” ficou
mais próximo do conceito aberto de arte, passando a utilizá-lo em outras decisões
posteriormente, visto que o conceito aberto também justifica o fato da liberdade artística
não possuir nenhuma reserva legal, pois se a arte é suscetível de múltiplas
interpretações, então uma direção inequívoca de seu conteúdo só tenderia a lhe por em
conflito com outros direitos, bens e interesses77
.
Para que não haja dúvidas sobre a possibilidade das obras artísticas terem sua
natureza confundida com manifestações da opinião que possuem também certo caráter
ambíguo, importa destacar que a obra de arte tem um momento estético-sensorial78
, ou
76
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 77
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 78
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
44
seja, elas ocorrem pelo medium que a representa ao mundo sensível e pela ideia que
carrega e quer transmitir.
De tal modo, liga-se esse conceito à mesma crítica feita as outras duas definições
que é a limitação interpretativa do que vem a ser arte para o direito constitucional, de
sorte que, parecem-nos que uma primeira resolução seria aplicar as três definições
conjuntamente79
, pois teríamos uma potencialização de abrangência na delimitação do
direito fundamental, assim como não olvidar dos elementos filosóficos que aqui por ora
já foram entendidos, como os demais atributos que iremos destrinchar sobre a liberdade
de expressão artística a seguir.
3.2 DIREITO FUNDAMENTAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA NA CF (art. 5º, IX)
3.2.1 Histórico constitucional
A perspectiva constitucional que traçaremos, resumidamente logo adiante, tem
como fim apontar como a liberdade artística, do ponto de vista da proteção
constitucional, evoluiu da Constituição do Império até a autonomia plena do direito à
expressão artística como norma jusfundamental, em 1988, na vigente CF. Quando
ingressarmos na ordem jurídico-constitucional hodierna, passaremos à análise completa
do direito à expressão artística pelos aspectos da doutrina e da jurisprudência, brasileira
e estrangeira, assim como pelas questões potencialmente conflituosas.
A primeira Carta Magna de nosso país era denominada de “Constituição Política
do Império do Brazil”, outorgada em 25 de março de 1824. A Constituição incluía um
título dedicado à “Garantia dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, e,
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 79
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
45
especificamente o art. 179 afirmava a inviolabilidade desses direitos tendo por base “a
liberdade, a segurança individual e a propriedade”, dando início a um rol de direitos e
garantias80
.
A manifestação do pensamento era protegida no inc. IV do art. 179, versando
que “todos podem comunicar seus pensamentos”, independentemente de censura, no
entanto, o exercício desse direito, segundo o dispositivo, responsabiliza aquele que o
pratica a responder pelos abusos que porventura cometer de acordo (casos e formas)
com os termos que a lei fixar. O direito ao exercício de atividade artística não era
assegurado de forma expressa no texto, entretanto o inc. XXXIII, do mesmo artigo,
garantia a inviolabilidade dos colégios e universidades aonde são ensinadas as ciências,
as belas letras e as artes81
.
Em 1891, a Lei Maior inaugurou a forma de governo republicana e o regime
democrático no Brasil, promulgando em 24 de fevereiro, a partir do “Congresso
Constituinte” a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”. A seção II
foi nomeada como “Declaração de Direitos” e o caput do art. 72 declarava que, aos
“brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil” (titularidade repetida em todas as
Constituições até 1988) será assegurado a inviolabilidade dos direitos concernentes “à
liberdade, à segurança individual e à propriedade”, em consonância com os termos que
se seguem82
.
A Constituição também não anuncia o direito à expressão artística, mas no §12
do art. 72 proclama que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento”,
80
BRASIL, Constituição (1824). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013. 81
“XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras,
e Artes.” BRASIL, Constituição (1824). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013. 82
BRASIL, Constituição (1891). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013.
46
mantendo a proibição da censura da ordem constitucional de 1824, acrescentando,
porém, a exceção de proteção no caso da manifestação ocorrer de forma anônima. O
§26, por sua vez, trouxe a garantia da exclusividade dos direitos de autores de obras
literárias e artísticas. O art. 35 que enumera as competências não privativas do
Congresso Nacional traz no n. 2º que o Congresso está incumbido de “animar no País o
desenvolvimento das letras, artes e ciências”, conformando uma prestação positiva do
Estado83
.
A nova ordem constitucional de 1934 manteve a forma e o regime de governo da
Constituição de 1981, sendo promulgada por Assembleia Nacional Constituinte em 16
de julho. Outrossim, não delimitou a autonomia do direito de atividade artística, sendo
ele englobado pela manifestação do pensamento, constante no capítulo dos direitos e
garantias individuais, art. 113, n. 9. O caput do artigo em comento repete a redação do
anterior adicionando, apenas, que está garantida a inviolabilidade ao direito de
subsistência.
A garantia da livre manifestação do pensamento excetua uma possibilidade de
censura nos casos de “espetáculos e diversões públicas”, cabendo à lei determinar as
restrições, destaca-se, ainda, por introduzir o direito de resposta. No entanto, a Lei
Maior trazia um cerceamento expresso com relação ao conteúdo de qualquer
manifestação, advertindo que “não será tolerada propaganda de guerra ou de processos
violentos, para subverter a ordem política ou social”84
.
83
“2º) animar no Pais o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura,
a indústria e comércio, sem privilégios que tolham a ação dos Governos locais;”: BRASIL, Constituição
(1891). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>.
Acesso em: 17 mai. 2013. 84
“9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo
quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e
pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A
publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada
propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.”: BRASIL,
Constituição (1934). Disponível em
47
Os direitos de autor são preservados no n. 20 do art. 113, enquanto isso, a
Constituição inova com um capítulo referente à “Cultura e a Educação”, e, o art. 148
desse capítulo preconiza que a todos os entes federativos caberá “favorecer e animar o
desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral”.
A “Constituição dos Estados Unidos do Brasil”, outorgada pelo Presidente
Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 ficou conhecida como Constituição Polaca,
implantando a chamada ditadura do “Estado Novo”, realmente, o texto constitucional
era eminentemente autoritário, tal como depreciador de diversas garantias e direitos
individuais.
A liberdade artística, repetindo a práxis anterior, não fora fixada no tópico dos
direitos e garantias individuais, contudo, pela primeira vez na história constitucional do
Brasil, a arte fora mencionada e qualificada como livre no tema intitulado “Da
Educação e da Cultura”, art. 128. O dispositivo proclamou ainda que “é dever do Estado
contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro
(artes, ciências e ensino), favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e
de ensino”85
.
Todavia, o art. 122, que principia os direitos e garantias individuais, trouxe
diversas restrições à liberdade de arte. O n. 15, que estabelece a livre manifestação do
pensamento, decreta que a lei poderá prescrever, na alínea ‘a’ que: “com o fim de
garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro,
do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a
circulação, a difusão ou a representação”; e, na alínea ‘b’ que: “medidas para impedir as
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013. 85
BRASIL, Constituição (1937). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013.
48
manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons costumes, assim como as
especialmente destinadas à proteção da infância e da juventude”86
.
A Constituição de 1946 restabeleceu a ordem democrática no país, tendo sido
promulgada por uma Assembleia Constituinte em 18 de setembro de 1946 e chamando a
Carta Maior de “Constituição dos Estados Unidos do Brasil”. Os direitos e garantias
individuais eram protegidos a partir do art. 141, assegurando o §5º a livre manifestação
do pensamento nos moldes da Constituição de 1937, recebendo um adendo em sua parte
final, quando descreve conteúdos não tolerados, ou seja, não protegidos pelo dispositivo
constitucional, não sendo admitido também posicionamentos que sejam “preconceitos
de raça ou de classe”87
.
Os direitos de autor são resguardados no §19, do art. 141 e, o constituinte
decidiu manter a consignação da Constituição do Estado Novo, rotulando as artes como
livres em capítulo reservado para a “Educação e Cultura”, juntamente com as ciências e
as letras, no art. 173. O parágrafo único do art. 174 ordena que o Estado, responsável
pelo amparo da cultura, promoverá a criação de institutos de pesquisa,
preferencialmente no ensino superior, destinados ao fomento cultural.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, trinta anos depois do
golpe do Estado Novo, buscou institucionalizar e legalizar o regime militar, o seu
conteúdo sofreu uma significativa mudança pelo advento da Emenda Constitucional n.º
1 de 17 de outubro de 1969. Os direitos e garantias individuais estavam elencados a
partir do art. 153, cabendo ao §8º proferir que a manifestação é livre, seguindo o mesmo
tratamento da Constituição de 1946. Embora, no fim do dispositivo, fora adicionados
86
BRASIL, Constituição (1937). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 17 mai.
2013. 87
BRASIL, Constituição (1946). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em: 17 mai.
2012.
49
novos termos de exceções ao conteúdo que possa vir a ser exprimido, não sendo
tolerados também “as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons
costumes”88
.
Enquanto, o §25 do art. 152 garante os direitos do autor, o título IV, nomeado
“Da família, da Educação e da Cultura”, dispõe no art. 179 que “as ciências, as letras e
as artes são livres”, mas submete essas liberdades, expressamente, ao que foi disposto
no §8º do art. 153.
3.2.2 Da autonomia do direito à expressão artística na CF
A ordem constitucional instituída em 1988 foi precisa ao expressar no inc. IX,
art. 5º, no título II dos direitos e das garantias fundamentais, capítulo I sobre os direitos
e deveres individuais e coletivos que “a expressão da atividade artística (assim como a
intelectual, científica e de comunicação) é livre”. A escolha do constituinte é
inequívoca, pelos meios formais da literalidade, sobre a autonomia do direito em
comento, quiçá quando aferimos sua importância na formação do homem e de uma
sociedade pluralista sob o princípio democrático.
Os direitos de autor estão dispostos nos incs. XXVII e XXVIII do art. 5º, e, por
mais que compreendam um sistema protetivo utilizado pelos artistas, a escolha do
constituinte reflete a natureza autônoma e fundamental das normas autorais, devendo ser
estudadas apartadamente para que a profundidade temática seja apanhada, motivo pelo
qual não abordaremos seu mérito em nossa análise.
Apesar da exatidão do inc. IX, art. 5º da CF, encontramos na doutrina89
brasileira um descaso, ou melhor, uma falta de concisão técnica no que diz respeito à
88
BRASIL, Constituição (1967). Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 17 mai. 2013.
50
natureza jurídico-constitucional da matéria, comportamento identificado entre
doutrinadores mais tradicionais até os mais modernos. O primeiro engano90
seria
confundir a liberdade de manifestação do pensamento com a liberdade de expressão
artística. Nesse sentido, José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra
Martins, utilizam-se da mesma base teórica, Sampaio Dória, para afirmar que a
liberdade de manifestação do pensamento “é o direito de exprimir, por qualquer forma,
o que se pense sobre ciência, religião, arte, ou o que for”91
.
Ainda, assentam que a liberdade de manifestação artística é uma forma de
difusão da liberdade do pensamento, tomada esta como um conceito mais abrangente92
,
chegando também a afirmar que entre as liberdades protegidas no inc. IX, art. 5º, a
expressão intelectual é mais genérica só não atingindo uma “arte que seja primitiva e
ingênua por ser intuitiva e, certamente, não intelectual”93
.
Entendemos que a liberdade de manifestação do pensamento é, de fato, um juízo
de opinião sobre qualquer objeto94
, inclusive sobre a matéria artística, no entanto,
pensar sobre a arte de forma genérica e desejar exprimir ideias sobre a mesma, juízos
opinativos, nada têm a ver com o fazer arte, ser artista, criar artisticamente, e todas essas
nuances só podem ser concretizadas e tuteladas à luz do dispositivo constitucional que
possui autonomia jurídica.
89 Confira: GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direito na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012. Pela
ousadia de seu formato e, principalmente, pela inteligência propositiva em abordar temas do direito a
partir de canções do samba brasileiro. 90
Apesar de que existem autores que ao menos falam sobre a liberdade de expressão artística, como é o
caso de: FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 122-
123. 91
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. Editora Malheiros: São Paulo,
2003, p. 240; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43. 92
Curioso fato é que em obra do mesmo autor “SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da
Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA., 2001.” é admitido que o constitucionalismo brasileiro
evitou posicionar a liberdade de expressão cultural – aqui, de qualquer forma, uma confusão do autor que
usa os termos cultura e artes como sinônimos –, como simples forma da liberdade de manifestação do
pensamento, porém não atualizou esse pensamento no “Curso de Direito Constitucional”. 93
SILVA, op. cit., p. 252. 94
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 176.
51
Equivoca-se, da mesma maneira, uma reflexão que afirme que arte “primitiva” e
“ingênua”, por ser fruto da intuição, não é intelectual. Antes de tudo, taxar artes como
“primitivas” e/ou “ingênuas” é atentatório ao “dever de neutralidade estética” imposto a
todos os operadores do direito, tal como ao Estado em si95
; em seguida, alegar que a arte
não faz parte do intelecto humano é um erro que fora questionado nessa pesquisa no
tópico 2.1, fruto de um descompasso entre razão e emoção em nosso tempo, o processo
artístico é completamente racional, pois o artista possui consciência daquilo que
exprime, a sua ideia é canalizada pela intuição e comunicada pela sensibilidade (isto é,
como já mencionamos, o princípio da razão participa da arte, mas não lhe é suficiente),
porém, alocar a arte fora do intelecto humano é compreendê-la de forma parcial – o que
podemos chamar de heresia da separatividade.
Os doutrinadores mais modernos, sem embaraço de não ampliarem a
especificidade do sistema normativo da expressão artística, todavia, ingressam o direito
dentro das liberdades de expressão, sendo mais coerente com a lógica constitucional.
Destarte, reconhece-se que existem diversas formas de expressões, cabendo ao cidadão
à faculdade de escolhê-las de acordo com sua necessidade de manifestação, podendo
“comunicar pensamentos, ideias, informações e expressões não verbais (estas são
aquelas comportamentais, musicais ou por imagem etc.)”96
.
No que tange às expressões não verbais reforça-se a sua proteção pela liberdade
constitucionalmente protegida, devido ao caráter amplo do art. 5º, inc. IX97
. Embora,
logo após declare-se que a “expressão corporal, com intuito de arte engajada, abarca
vasta gama de situações”, entretanto, outras “expressões simbólicas”, que não engajadas
95
Nesse sentido, “A proteção à liberdade artística, por exemplo, implica proibição de o Estado vir a
impor na atividade de criação os seus padrões estéticos.” CARBONELL, Miguel. La Libertad de
Expressión en la Constitución Mexicana. Anuário de Derecho Constitucional Latinoamericano.
Montevideo: Konrad Adenauer-Stiftung, 2004, t. II, p. 476. 96
Conforme Paulo Gustavo Gonet Branco: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio
Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,
p. 450. 97
Ibid., p. 456.
52
– em sua maioria de veia artística -, quando confrontadas com distintos valores
constitucionais, recebem uma ponderação menor, propendendo por ceder a estes com
maior frequência do que a verificada nos casos da expressão direta do pensamento98
.
Uma presunção totalmente desalinhada com o qualificativo da expressão
artística dada pelo próprio constituinte como “livre” e, portanto, não há de se falar em
conjectura de cedência in abstracto. O ora citado autor, ainda, valida a presunção de
cedência devido à existência de um “grau de tolerância” para as expressões simbólicas
que varia de “cultura para cultura, de país para país, de tempos em tempos numa mesma
localidade”, ignorando de forma categórica que a fundamentalidade constitucional de
arrimo à livre expressão artística não está à mercê de transformações valorativas sociais,
pois, estas, influenciam o conteúdo da liberdade artística e sua hermenêutica, nunca em
sua paridade de status com os demais direitos individuais99
.
Este é o prognóstico da liberdade artística na doutrina constitucional brasileira,
falta uma literatura empenhada em posicioná-la como direito fundamental
constitucional autônomo100
, visto que, as formas de artes se desenvolveram sempre no
sentido da inutilidade ou da não-participação no mundo das coisas, e, tal fato não se
deve a uma alienação individual do artista, mas sim a uma alienação social, que a
sociedade impõe à arte101
, contribuindo para essa alienação o próprio direito (que
esquece de apresentar a atividade artística até mesmo em um rol exemplificativo das
formas de expressão).
98
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso
de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 456. 99
Que é, inclusive, cláusula pétrea por força do mandamento do art. 60, §4º, inc. IV da CF. 100
Outro autor que confere tratamento à liberdade de expressão como gênero que contempla diversas
formas de direitos conexos é André Ramos Tavares, que ao mencioná-las, olvida de incluir a
manifestação artística, citando a “liberdade de manifestação do pensamento, de comunicação, de
informação, de acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão.”
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 620-
621. 101
BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009, p. 405.
53
Destarte, precisamos tomar posições, e o faremos começando pelo entendimento
de que os direitos fundamentais costumam ser agrupados, histórica e materialmente,
segundo determinados âmbitos de proteção, como, v.g., afiançamentos de liberdade
política, social, econômica, espiritual102
(o direito de reunião, por exemplo,
eminentemente uma liberdade social e política) e, por mais que não possamos
sistematizá-los exatamente, porquanto consistiria em um risco à homogeneização dos
direitos fundamentais, reconhecemos que a expressão artística participa desse
afiançamento da liberdade espiritual, de âmbito da vida próprio e legalidade
autônoma103
.
Desse modo, a liberdade de manifestação do pensamento é primária e primeira,
respectivamente porque desponta cronologicamente e logicamente primeiro que as
outras liberdades de expressão, sendo estas um consectário104
. As liberdades de
expressão contidas no inc. IX são lex especialis em relação à manifestação de
pensamento, e, conquanto, todas elas são de natureza comunicativa, guardam entre si
outras peculiaridades que contornam suas temáticas de modo independente.
Deste modo, v.g., podemos afirmar que a liberdade de informação, contida na
comunicação social (prevista no art. 5º, inc. IX, c/c o art. 220, caput, §§1º e 2º), difere
da liberdade de expressão artística uma vez que aquela possui um atributo que a vincula,
pelo menos na parte relativa à afirmação de fatos, à veracidade, mas a criação artística
se desenvolve sem embaraços, a partir do dever de abstenção do Estado, mas devendo
respeitar os direitos de terceiros105
.
102
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio
Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 290. 103
Ibid., p. 310. 104
COLLIARD, Claude Albert apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à
Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 41. 105
Nesse sentido: CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti. Direito de Informação e Liberdade de
Expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
54
A independência que o direito à expressão artística goza possui outro mote
respaldado no estabelecimento da autonomia dos cidadãos. Isso porque, pensar, criar e
formar uma opinião artística, exteriorizando-a, conduz à autodeterminação do indivíduo
(seja ele o artista ou o espectador), que é um fenômeno de formação do homem, quando
ele dá sentido à vida, por possuir esse arcabouço de informações e experiências que
completa a máxima de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas.
Chamaremos essa nuance de “dimensão substancial”106
, que é típica em todos os
direitos de expressão.
Ao mesmo tempo, o homem ser social que é, não se contenta com o mero fato de
ter acesso a essas informações artísticas, sendo ele recipiente de uma obra de arte ou o
criador dela, certo é que os dois sujeitos, respeitando seus limites de atuação, procuram
convencer os demais, buscam compartilhar com seus semelhantes aquela mensagem à
qual atribuíram valor, fazem o proselitismo, como se fossem “escravos” de um princípio
de coerência, “se creem em certas ideias são levados a desejar o seu implemento”107
.
Essa é a “dimensão instrumental”108
, já que explana os diversos meios utilizados à
divulgação da expressão.
A inclusão das artes como parte das condições sociais decisivas nas instituições
democráticas e na liberdade pessoal, ainda encontra resistência mesmo naqueles que se
consideram bons democratas, pois recusam que a literatura, a música, a pintura, o teatro,
a arquitetura etc. são coisas cujo gozo todos devemos partilhar se a democracia é real,
considerando o fruto dessas artes como meros adornos da cultura109
. Ignoram que a
participação das artes na vivência de todos os cidadãos, como liberdade de expressão
106
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 621-
622. 107
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 40. 108
TAVARES, op. cit., p. 621-622. 109
Confira: DEWEY, John. Liberalismo, Liberdade e Cultura. São Paulo: Nacional, 1970.
55
que configura, contribui para o funcionamento e preservação do sistema democrático, já
que o pluralismo de opiniões contribui essencialmente para formação de uma vontade
livre110
.
A liberdade de expressão artística, como os demais direitos concretizadores da
expressão, possui o propósito, outrossim, de procurar a verdade, garantir um mercado
livre de ideias (como as diversas teorias estéticas), proteger a diversidade de opiniões
(ou criações artísticas), mantendo a estabilidade social, porque, as transformações da
sociedade que são contextualizadas na máxima liberdade de expressão individual
possível ocorrem de forma pacífica111
.
Alguns autores assinalam112
a existência do princípio da pluralidade de
expressão, influenciando na ontologia dos direitos à expressão, e, da mesma forma,
funcionando como direcionador nas tomadas de decisões do Estado; portanto, teremos
que as liberdades de expressões devem ser concretizadas em função de uma realização
de opiniões plurais, enquanto o Estado ao criar as possibilidades de desenvolvimento
comunicativo obedece, também, ao critério da pluralidade.
Isso porque, a escassez de diversidade quanto à difusão de ideias, informações e
criações, fatalmente empobrecerá ou dizimará uma cultura cívica113
, já a adoção do
princípio da pluralidade permite que o Estado oferte a real participação nos processos de
comunicação “que asseguram a circulação das opiniões, como emissores, transmissores
ou receptores”114
.
110
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso
de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 451. 111
MACHADO, Jonatas Eduardo Mendes. Liberdade de Expressão: dimensões constitucionais da
esfera pública do sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 237. 112
Como: Ibid., p. 368; e FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação. São Paulo:
Editora Revista do Tribunais, 2004, p. 70. 113
Ibid.., p. 70. 114
MACHADO, op. cit., p. 238.
56
3.2.3 Liberdade artística: conteúdo da área de proteção (objetiva e subjetiva) e
alcance
O direito à expressão artística, igualmente a múltiplos outros direitos do art. 5º
da CF, é fundamentador de status115
, os status designam a posição do particular (titular
do direito fundamental) perante o Estado. George Jellinek traçou distintos status que
correspondem às funções clássicas dos direitos fundamentais na relação entre o
particular e o Estado116
. Começamos por destacar o chamado status negativus, por ser
este consagrado pela dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, à qual pretendemos
desenvolver mais detidamente nesse momento.
No status negativus o particular tem a sua liberdade em face do Estado117
.
Denotando que, apesar da posição central que o Estado detém na formação da
sociedade, é assegurado, por via dos direitos fundamentais, certo âmbito de ação do
indivíduo, aonde ele resolve, regula e realiza sua convivência social sem o Estado118
. E
mais, por estabelecerem essa não interferência do poder estatal, esses direitos “protegem
contra violações ou fazem exigências sem as quais o Estado não pode limitar ou
restringir a posição jurídica do particular”119
.
Quando a nossa ordem liberal constitucional definiu a expressão da atividade
artística como “livre”, asseverou que qualquer atuação pelos poderes constituídos que
culmine em uma ingerência ou intervenção nessa liberdade, poderá suscitar uma defesa
do particular contra prejuízos não autorizados no seu status jurídico-constitucional,
sendo esse direito subjetivo de resistência (dimensão subjetiva) necessário à
democracia, já que essa é um “domínio de pessoas sobre pessoas, que está sujeito às
115
Nesse sentido: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 233. 116
JELLINEK, Georg apud PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito
estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 19-20. 117
Ibid., p. 20. 118
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 258. 119
PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 20.
57
tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no estado de direito,
podem fazer injustiça”120
.
A resistência oferecida pelo indivíduo à intervenção estatal possui um
referencial filosófico-teórico que é a teoria liberal dos direitos fundamentais121
, que
certifica à relação jurídica de direito público existente entre o particular e o Estado pelo
exercício da liberdade negativa122
, quanto mais o Estado deixar de regular a vida do
indivíduo mais livre este será, portanto, diretamente proporcional é, ao exercício da
liberdade negativa, a falta de restrições.
3.2.3.1 Área de proteção da liberdade artística (alcance e titularidade)
Sabemos que o constituinte precisou destacar na Lei Fundamental algumas
situações da vida social, também chamadas de âmbitos da vida/proteção123
,
regulamentando-as. Com relação à livre expressão artística, coube ao legislador
originário reconhecer que ela, como tipo especial de comunicação humana, forma de
manifestação peculiar do espírito humano se desenvolverá sem nenhum embaraço
“independentemente de censura ou autorização”.
Por conseguinte, temos que averiguar qual o conceito de arte será por nós
utilizado como desígnio; quais são as abstenções necessárias ao Estado para que este
não incorra em violação ao exercício regular do direito; quando e quem são as pessoas
que exercem o direito à expressão artística e em que momento o fazem; e, no fim,
identificarmos as condutas que não serão protegidas pela expressão artística,
120
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio
Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 235. 121
Nesse sentido: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 110. E para mais informações: MARTINS, Leonardo.
Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da
teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 28 et. Seq. 122
Confira: BERLIN, Isaiah. Com Toda a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996. 123
Opta por essa nomenclatura: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires;
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 375.
58
principalmente porque, a partir de uma visão sistemática em conjunto com outros
direitos fundamentais e demais disposições constitucionais, podemos determinar a sua
área de proteção124
.
3.2.3.1.1 Conceito de arte aplicado
Consideramos como arte a manifestação que “desperta as nossas almas para
aquilo que é próprio do espírito humano” (tópico 2.2.5.1), por isso não há que se falar
em arte feita por animais ou como criação da natureza, ela é produto do homem e para o
homem se dirige - obra do intelecto humano, nasce da voluntariedade, nunca de um
acaso acidental – em um processo de comunicação estético-sensorial (tópico 3.1.4.2).
Essa comunicação ocorre de forma aberta125
, isto é, sua marca distintiva reside no fato
de ser possível, a partir de uma manifestação artística, extrair-se do que foi expresso,
por via de uma interpretação continuada, significados diversos que variam em maior ou
menor alcance, consistindo a transmissão da mensagem em inesgotável.
A amplitude do conceito escolhido não é por acaso, ao contrário, segue a lógica
do próprio legislador constituinte, que previu o direito de manifestação artística sem
nenhuma reserva legal, de tal modo, por justificação interna, não falaremos de um
conceito de arte que aponte um direcionamento inequívoco e hermético, por não refletir
a mens legislatoris e, se por acaso fosse tomada, colocaria a liberdade artística no alvo
de diversos conflitos com os demais direitos e bens constitucionais126
.
A doutrina especializada aponta que à definição de arte deve prestar auxílio
outro atributo: o “reconhecimento por terceiros”127
, quando uma terceira pessoa
competente em questões de arte emite um parecer sobre a natureza artística ou não do
124
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 71. 125
Ibid., p. 196. 126
Ibid., p. 197. 127
Ibid., p. 197.
59
objeto em apreço. Estamos em acordo com essa assistência, principalmente diante da
complexidade social em que vivemos, orientada por uma indústria cultural de massa. Na
dúvida, tanto os órgãos administrativos quanto o judiciário deverão se socorrer da
opinião criteriosa do terceiro que é habilitado (pela academia ou pelo mercado
profissional) na área em destaque. Já promovemos, outrora, a defesa da consulta aos
especialistas, no tópico 2.2.4.
3.2.3.1.2 Proibição de definição do Estado e aspecto negativo da liberdade artística
Qualquer ato emanado da Administração, do Congresso ou do Judiciário que
tenha o condão de “impor ao processo comunicativo arte as suas concepções de arte,
como taxá-la de genuína, verdadeira e boa”128
, é entendido como uma violação em face
dos diversos conceitos de arte. É o que já repetimos posteriormente como “princípio da
neutralidade de conteúdo”, que retira dos órgãos estatais a possibilidade de oficializar
alguma corrente estética ou determinar que tal arte seja superior ou inferior a outra.
O princípio de neutralidade que prescreve um dever de omissão aos poderes
estatais está em sintonia com uma característica crucial da arte: a liberdade de
ofender129
. A essência da liberdade negativa está em assegurar expressões que possam
ser vistas pela maioria da sociedade e até mesmo pelo Estado como de mau gosto,
formas expressivas fora do comum e surpreendentes, até mesmo quando provocam uma
repulsa social, a priori, estão protegidas, não cabendo aos poderes constituídos,
mediante juízo do (bom/mau) gosto, as expulsar do alcance do amparo constitucional.
Como o titular da obra de arte está livre para escolher o conteúdo que irá abordar
em sua criação, pelo menos até o limite da legalidade (como iremos verificar), afasta-se
128
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p.197. 129
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 351.
60
o privilégio de uma suposta “arte engajada”130
, que seria aquela arte cunhada de sentido
ideológico, debatedora de questões atuais e sócio-políticas, algumas delas denunciativas
e verdadeiros protestos reivindicativos por melhorias coletivas, sendo esse tipo de arte
equiparada a qualquer outra forma de arte, inclusive em relação àquelas hostis aos “bons
costumes”, como, por exemplo, obras de arte pornográficas.
Ademais, a conduta admitida àquele que se manifesta artisticamente não se dá
somente na ordem do criar e se expressar, ou seja, o de utilizar positivamente a
liberdade do inc. IX, art. 5º, contudo a Lei Fundamental também consagra a sua
alternativa de aspecto negativo131
, o de não criar artisticamente o de não manifestar-se
no âmbito da comunicação artística, não podendo o Estado impor obrigações aos
titulares de direitos fundamentais nesse sentido.
Se o particular não será compelido a manifestar-se artisticamente ou criar uma
obra de arte, também não poderá, no uso de seu aspecto positivo, o fazer mediante
conteúdos subliminares. As mensagens subliminares são aquelas que iludem a nossa
percepção, ou seja, a função cerebral não consegue atribuir significado aos estímulos
sensoriais, porém, elas são captadas de forma inconsciente nos influenciado em
pensamentos e atitudes132
.
130
Durante a Ditadura, mesmo com a censura, a cultura brasileira não deixou de criar e se espalhar pelo
país e a arte se tornou um instrumento de denúncia da situação da nação. Dos festivais de música
despontam compositores e intérpretes das chamadas canções de protesto, como Geraldo Vandré, Chico
Buarque de Holanda e Elis Regina. No cinema, os trabalhos de Cacá Diegues e Glauber Rocha levam
para as telas a história de um povo que perdeu seus direitos fundamentais. No teatro, grupos como o
“Oficina” e o “Arena” procuram dar ênfase aos autores nacionais e denunciar a situação do país naquele
período. 131
Nesse sentido: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 236. 132
“Essas mensagens que pouco a pouco levam à adesão, inconscientemente reforçando a cognição
consciente gerada pela mensagem (propaganda multimídia) cujos interesses velados são os explorar e
manipular o homem.” CALAZANS, Flávio. Propaganda Subliminar Multimídia. 7. ed. São Paulo:
Summus Editorial, 2006, p. 25.
61
Alguns doutrinadores afirmam que o pensamento em seu foro íntimo não
interessa ao direito133
, o que não representa a situação aqui exposta, pois não diz
respeito ao direito do pensamento do homem que foi por ele elaborado, e, mantido preso
nos mais velados rincões de sua mente, falamos daquele que decorre de manipulação
exterior, ganhando relevância jurídica134
, deverá o Estado proteger os indivíduos, com
fundamento no direito à expressão artística, contra conteúdos subliminares que se
exibam em obras de arte.
3.2.3.1.3 Área de criação/produção e área de efeito/divulgação
Iremos separar a manifestação artística em duas áreas, a primeira delas –
cronologicamente também, seria a área de produção ou criação135
, já identificada como
“dimensão substancial” no que se refere à repercussão da criação no processo de
concepção da autonomia do homem, nesta ocasião, essa área engloba todos os atos de
planejamento da obra artística, qual conteúdo será abordado (a Ideia), quais materiais
são indispensáveis na comunicação do conteúdo, o número de pessoas envolvidas, os
ensaios que deverão ser executados para que se chegue à lapidação completa da obra
etc., todos os atos preparatórios que antecedem o momento da execução artística ou da
contemplação pelos recipientes.
A área de efeito, mencionada anteriormente como “dimensão instrumental” por
explanar como o homem deseja compartilhar com os demais aquilo que acredita ou
gosta, sinaliza a divulgação da criação artística, os meios e formas que o artista poderá 133
Nesse sentido: SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. Editora
Malheiros: São Paulo, 2003, p. 240; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à
Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43, ambos
citando Pimenta Bueno e afirmando que “enquanto o homem não manifesta, não comunica, está fora de
todo poder social, até então é do domínio somente próprio, de sua inteligência e de Deus”. 134
Nesse sentido: TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 623. Relatando, que um exemplo clássico de influência externa no foro íntimo do
indivíduo encontra-se presente, por exemplo, no livro 1984 de George Orwell, em que se tortura o
personagem com vistas a obter sua adesão a certa ideologia dominante. 135
MÜLLER, Friedrich apud PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito
estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197.
62
se valer para que sua obra de arte tenha impacto e chegue ao seu espectador. Está
contida nessa área a reprodução da obra, os locais onde se realiza a sua exposição ou
que ocorre sua apresentação136
. A área de efeito não depende da quantidade de
recipientes que contemplam a obra de arte, se um artista expõe em uma galeria,
esculturas por ele produzidas, a área de efeito já alcançou sua integralidade, mesmo que
não haja nem uma pessoa137
como espectadora.
Ao apartamos essas duas áreas, chegando a afirmar que a criação/produção
ocorre cronologicamente primeiro que o efeito/divulgação da obra, não estamos
olvidando das expressões que se sucedem simultaneamente, ou seja, performances
tais138
em que o momento da criação (por ser basear no elemento da espontaneidade) é,
igualmente, o momento em que a obra está alcançando os seus efeitos públicos, mesmo
nesses exemplos, sempre existirá um momento anterior de preparação (quando o grupo
performático se comunica para decidir como se portarão, o que vão propor ou apenas o
local de execução da performance), até quando essa elaboração existe somente nas
intenções do artista, a área de criação já se fez presente nem que seja por segundos antes
da área de efeito.
Ainda com relação ao tempo em que se dá cada uma dessas áreas, notamos que
existem muitas áreas de efeito da obra que são “permanentes”139
, como a arquitetura, as
136
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 137
A necessidade de um polo passivo para que a comunicação seja perfeita é uma característica do âmbito
da vida do direito da comunicação social, mas, para os mais resistentes, poderíamos falar nesse caso
singular, em que ninguém foi prestigiar a exposição, que o próprio artista pode ser considerado o
recipiente. 138
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 139
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
63
composições musicais que são alvo da discografia140
, o livro que é publicado, a pintura
plástica em museus de exposição pública, o filme que foi gravado e reproduzido em
cópias etc., por mais que essas obras possam se perder, se extinguir ou se depreciar,
sabemos que elas surgem no intuito de durarem, em dissonância àquelas que são únicas,
vivem em um determinado momento (ou uma temporada), como a ópera, a apresentação
dramatúrgica ou o espetáculo de dança. A área de criação/produção não possui esse
elemento ad eternum.
As facetas nos âmbitos da criação e do efeito não podem gerar uma falsa noção
de que o processo artístico está esfacelado em duas partes, o exercício da liberdade
artística consiste em “unidade insolúvel”141
, isso pois, nas duas áreas nós encontraremos
o mesmo fim, o de realizar uma comunicação artística. A divisão proposta possui duas
funções: a de compreendermos a complexidade do direito em questão; e a de nos
fornecer, jurídico-dogmaticamente, uma estrutura para resolução de colisões entre a
liberdade artística e os outros direitos fundamentais e bens jurídico-constitucionais,
assumindo, já de agora, que as potenciais lesões (quantitativamente) se darão na área de
efeito.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF nos habilita com alusão a
afirmativa do excesso de violações na área do efeito. Das ações que estão em juízo, ou
que já foram julgadas pela Corte, entre recursos extraordinários, habeas corpus e ações
diretas de inconstitucionalidade - ADI, tendo como parâmetro, direta ou indiretamente,
140
Discografia é o alistamento das gravações sonoras. 141
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
64
o direito à expressão artística, todas142
elas demonstram que a zona de colisão entre a
liberdade “arte” e o outro direito ou bem relevante está no âmbito do efeito daquela.
No julgamento do habeas corpus - HC n.º 83.996/2004, Gerald Thomas Sievers,
diretor teatral, reagiu às vaias do público do Teatro Municipal do Rio que assistia a uma
montagem da ópera Tristão e Isolda, dirigida por ele, baixando as calças e mostrando as
nádegas para a plateia. No caso em tela, a colisão entre a liberdade de expressão
artística e a ofensa ao pudor público143
se desenrola justamente na área de efeito da obra
artística teatral, na ocasião de sua apresentação.
O STF decidiu, a nosso ver acertadamente, quando afastou o enquadramento
penal por reconhecer o contexto em que estava inserido a liberdade de expressão,
acrescentando que “a sociedade moderna possui mecanismos próprios e adequados,
como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando a tipificação de ato
obsceno”144
.
Na ADI n.º 4.815/2012145
a Associação Nacional de Editores de Livros – ANEL
propõe a declaração de inconstitucionalidade dos art. 20 e 21 do Código Civil de
2002146
. Esses dispositivos vêm sendo interpretados como legitimadores da necessidade
de autorização para fins de publicação ou divulgação de obras biográficas literárias ou
142
O recorte total de ações no STF, sendo algumas trabalhadas nos momentos oportunos, são oito:
RE 221.239/1997, RE 330.817/2002, HC 83.996/2004, RE 414.426/2004, ADI 3.758/2006,
ADI 3927/2007, ADI 4.451/2010, ADI 4.815/2012. 143
Art. 223 do Capítulo VI no Código Penal (Lei n.º 2.848/40): “Praticar ato obsceno em lugar público,
ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”. 144
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus n.º 83.996/2004-RJ, segunda turma, 17 de agosto
de 2004. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2201403>. Acesso em: 10
mai. 2013. 145
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI n.º 4.815/2012-DF. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4271057>. Acesso em: 10
mai. 2013. 146
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem
pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização
da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que
couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção
o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as
providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
65
audiovisuais, temos a colisão da liberdade artística versus os direitos da personalidade,
entrando em embate, mais uma vez, no aspecto da área de efeito da expressão artística.
O STF ainda não se manifestou sobre a questão, no entanto, ao nosso entender, a
declaração de inconstitucionalidade é cabível com relação ao objeto, visto que o
constituinte foi contundente ao especificar que nem a censura e nem a licença147
(sinônimo da autorização, já que materialmente a sua diferença só é pertinente no
Direito Administrativo) constituirão entraves à livre manifestação da expressão artística.
Logo, a intervenção estatal que restringe o âmbito de efeito está eivada de ilicitude no
propósito perseguido “decorrente da literalidade e sistemática do texto
constitucional”148
, devido ao cerceamento provocado no exercício da liberdade artística.
Em tal situação, mesmo com a aparente claridade de ilicitude do propósito,
sabemos que os artigos da codificação civilista são concretizações legislativas do direito
fundamental da personalidade (inc. X, art. 5º), guarnecendo a norma infraconstitucional
de suporte constitucional. Constatamos a inconstitucionalidade, então, pelo exame dos
demais requisitos da proporcionalidade, resolutamente, ao aportarmos na necessidade149
enxergamos que o meio utilizado é o mais oneroso do que alternativas igualmente
adequadas ao seu propósito para a liberdade daquele que compõe uma obra artística
respaldada em dados biográficos.
Outros meios deverão ser testados, outros que não condicionem a divulgação da
obra a uma autorização, se não houver outros meios, que se apliquem as indenizações
previstas no inc. X, art. 5º e não proíbam a execução da obra de arte em sua plenitude
(inteirando o âmbito de efeito), muito menos pela exigência de uma autorização quando
147
“A licença deve ser entendida pela desnecessidade de autorização para publicação de jornais ou
periódicos.” BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 59. 148
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 189. 149
Ibid., p. 190.
66
o inc. IX, art. 5º textualiza explicitamente o contrário, por consequência,
inconstitucional as normas do Código Civil por prescreverem meios desnecessários com
vistas ao parâmetro da liberdade artística.
As duas áreas (criação e efeito) formam um todo coeso resguardado pelo art. 5º,
inc. IX da CF, porém, o binômio guarda a seguinte inter-relação: só existe área de efeito
se existir área de criação, caso não haja área de efeito poderá haver área de criação. Isso
porque, o artista “não tem que publicar ou expor os seus produtos, nem tem de fazer
uma apresentação deles em público”150
, caso o particular queira fazer a exibição da obra
ao público espectador a área de efeito passa a ser protegida.
Dessa inter-relação não devemos constatar que a área de criação/produção
represente um limite dos limites151
, ou seja, que ingerências estatais em seu âmbito
sejam tão intensas que estejam ameaçando o próprio desaparecimento do direito por
constituir um “conteúdo essencial”152
, trata-se apenas de uma diferenciação estrutural, e
a doutrina alemã leciona que o “conteúdo essencial” somente para cada direito
fundamental em concreto pode ser determinado, pois, “se um particular já não pode
exercer os seus direitos fundamentais, não lhe aproveita que um outro possa ainda”153
.
Finalmente, acerca das áreas de efeito e criação, existem algumas atividades que
são executadas para que a comunicação artística esteja plenamente acabada,
denominadas pelo TCF alemão como “intermediações indispensáveis”, funções que são
desempenhadas entre o artista e o público154
. Parece-nos bastante delicado especificar
com precisão que funções serão protegidas pela liberdade artística e quais estarão de
150
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 151
MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma
complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 138. 152
PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 88-89. 153
Ibid., p. 89. 154
Ibid., p. 197.
67
fora, por mais que a jurisprudência do TCF alemão tenha nos dado o critério da
“indispensabilidade”.
A publicidade é indispensável para a divulgação de obra artística? E o
figurinista, o iluminador, o aderecista, o cenógrafo? O que dizer daquelas pessoas que
são funcionárias de teatros, museus, galerias? Tentaremos responder esses
questionamentos no tópico da titularidade da liberdade artística a seguir.
3.2.3.1.4 Titularidade
Titulares do direito à expressão artística são aqueles expostos no caput do art. 5º,
CF, isto posto: os brasileiros e os residentes estrangeiros no país155
. No que tange às
pessoas jurídicas, quando o exercício do direito é compatível com as particularidades da
artificial ficção jurídica, podemos estender a proteção e as equipararmos. Em regra
geral, os direitos de resistência são suscetíveis a esse nivelamento156
.
De fato, as pessoas jurídicas desenvolvem arte no nosso país. São inúmeras as
companhias, os grupos ou as trupes que se enveredam nos campos da dança, da música,
do teatro etc., ainda, produtoras de filmes, gravadoras, editoras de obras literárias,
museus, galerias e centros culturais, sendo algumas destas pessoas de natureza pública,
constituídas pela ficção da pessoa jurídica devido a uma tendência empresarial de
organização trabalhista e tributária. Até mesmo as leis que subvencionam a produção
das artes no Brasil, especificam em suas normas que as pessoas jurídicas são
proponentes na atuação artística157
.
155
Sobre a interpretação da titularidade dos direitos fundamentais, vide: DIMOULIS, Dimitri;
MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 68-
77. 156
Nesse sentido: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar
Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 349; e DIMOULIS;
MARTINS, op. cit., p. 83. 157
“Art. 4o Para os efeitos deste Decreto, entende-se por: I - proponente: as pessoas físicas e as pessoas
jurídicas, públicas ou privadas, com atuação na área cultural, que proponham programas, projetos e
68
Sem embargo, como deixamos assinalado no tópico anterior, há um designado
grupo de pessoas físicas e jurídicas, indicadas como “transmissores técnicos”158
, que
estariam desempenhando o seu mister numa área que permeia os dois âmbitos da
liberdade artística, fazendo uma ligação entre a criação e o efeito da obra, ou em tempo,
prestando serviços auxiliares específicos a cada uma das áreas.
Antes de enfrentarmos a polêmica é necessário que entendamos a seguinte
percepção: para ser artista, para criar artisticamente, “o particular não tem que ser
reconhecido como artista, não tem que exercer a arte como profissão”159
. O indivíduo
pode ser artista apenas em um único dia de sua vida. O direito à liberdade profissional,
de afiançamento jurídico-fundamental econômico, possui uma relação de lex
generalis160
à liberdade artística.
Ficou estabelecido no julgamento do Recurso Extraordinário – RE 414.426/SC,
em 01 de agosto de 2011161
, na ocasião em que o STF declarou em sessão plenária que
o exercício da profissão de músico não está condicionado ao prévio registro ou licença
em entidade de classe, o desprovimento do recurso de autoria do Conselho Regional da
Ordem dos Músicos do Brasil – OMB, o qual pleiteava o reconhecimento da
necessidade do registro nesta entidade como requisito para o desempenho profissional
na categoria.
ações culturais ao Ministério da Cultura;” Decreto n.º 5.761/2006 que regulamenta a Lei Rouanet – Lei
Federal de Incentivo à Cultura n.º 8.313/91. 158
ARNAULD, Andreas von apud MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística.
In: Mamede, Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da
Arte: Regime jurídico e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores,
galeristas, leioleiros, investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 159
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 160
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 161
Em decisão análoga ao RE 511.961, em que os ministros do STF decidiram que o diploma de
graduação em “Jornalismo” era uma exigência inconstitucional para o exercício profissional na categoria,
para uma análise completa sobre o assunto: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional:
leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais.
São Paulo: Atlas, 2012, p. 278-308.
69
As discussões que percorriam os ministros, no pronunciamento de seus votos,
enfatizavam que as restrições ao livre exercício profissional (art. 5º, XIII, CF) deveriam
ser regidas pelo “princípio da mínima intervenção”, justificadas, apenas, quando as
atividades representassem uma necessidade de proteção por interesse público, condigno
a um “conhecimento específico altamente técnico”, concluindo que no caso da música,
expressão artística que é, o que depende faticamente para atuação profissional é o
talento que se tem ou não162
.
No entanto, ao invés da Corte trabalhar com apenas um único parâmetro
constitucional (a liberdade artística), e satisfazer a questão da inconstitucionalidade por
intermédio da dogmática, afastando a liberdade profissional, uma vez que as duas
encenam um quadro de concorrência aparente163
, aonde a liberdade artística é lex
specialis, condicionando todo diagnóstico sobre a potencial inconstitucionalidade da
intervenção estatal em relação à sua área de proteção, limites, reservas legais, ordens
legislativas, até a aplicação correta do princípio da proporcionalidade; o STF prefere,
retoricamente, argumentar sobre o nexo de teor totalitário da medida que interfere na
“mais sublime de todas as artes”.
Perquirimos, desse modo, se profissionais de outras áreas consolidadas no
mercado de trabalho, possuindo nicho próprio e autônomo, poderão ser resguardados
pela liberdade artística quando prestam serviços ao fim de uma obra de arte. O TCF
alemão, em jurisprudência confusa, alarga essa proteção, por exemplo, à publicidade de
uma obra, e exclui, a contrario sensu, à realização de interesses comerciais por parte de
162
Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDeslocamento.asp?incidente=2194818>. Acesso em:
15 jun. 2013. 163
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 163-167.
70
uma empresa de suporte de áudio164
. Perguntamos: tanto as agências de publicidade
como as empresas de suporte de áudio não trabalham exclusivamente com fins
lucrativos? Com atuações próprias e serviços prestados a ramos diversos do mercado?
Qual o sentido da diferenciação?
A jurisprudência fala, no mais, em “função de intermediação indispensável”.
Existem algumas atividades em que claramente detectamos essa indispensabilidade, a
exemplo de um figurinista, que seu ofício é praticamente condicionado às expressões
artísticas, fabricando figurinos de época para uma personagem de um filme
renascentista, para o músico se apresentar em concertos, para uma trupe de teatro
mambembe, entre outros. Torna-se difícil imaginarmos situações em que o figurinista
ou aderecista cria fora do contorno artístico, o seu desempenho para o conjunto da obra
artística é essencial, a elaboração dos trajes compõe o personagem, responde quem ele
é, onde ele está e em que época, isto é, enxergamos a marca da indispensabilidade desse
profissional sem maiores dificuldades.
Contudo, retomando o entendimento do TCF alemão, tanto a publicidade de uma
obra de arte quanto a empresa que fornecerá o equipamento de áudio para a
apresentação, por exemplo, de peça teatral, podem ser consideradas indispensáveis
como atividades intermediárias entre o artista e o público. Parece-nos que o predicado
da indispensabilidade não é suficiente, as gradações intrínsecas ao conceito deixa uma
margem de dúvida extensa.
Essas funções intermediárias também não estarão fora do arrimo jurídico-
fundamental da liberdade artística devido ao seu caráter econômico, de fins lucrativos,
visto que não há empecilho para que as expressões artísticas sejam exploradas
economicamente, que o artista obtenha lucro, por conseguinte, sem cabimento exigir das
164
Discordando dessa opinião Friedrich Müller, em: PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos
Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198.
71
empresas que auxiliam a manifestação artística conduta adversa. Ao contrário, o simples
consumo de arte já não se encontra garantido165
, como já afirmado, filosoficamente, no
final do tópico 2.2.3. Como resolver, então?
A evolução histórica permite reconhecer que os direitos fundamentais são
direitos individuais, produzindo um compromisso no exercício do poder do Estado em
abster-se às ingerências na liberdade do particular166
, isto é, quando estamos diante de
um direito sem reserva legal, o caso da expressão artística, auferimos, mesmo em
abstrato, que o alcance da liberdade desse direito é maior que - para efeitos
comparativos – o da liberdade profissional que foi concebido pelo constituinte com uma
autorização expressa de restrição.
Portanto, pela lógica-sistemática de proteção dos direitos fundamentais, no caso
concreto dos “transmissores técnicos”, nunca afastando os preceitos da dogmática
jurídica para determinar com precisão as condutas factuais às normas jus-fundamentais,
devemos aplicar o direito que traga menos prejuízo à liberdade do particular167
, o que
não possui limites expressamente definidos, ou melhor, devemos estender a essas
funções, quando estão exercendo seus serviços em prol de uma obra de arte, a proteção
constitucional da liberdade artística.
Estamos afirmando que todas as atividades intermediárias entre o artista e o
público, aquelas que auxiliem os artistas em cada área da estrutura do direito à
expressão artística, quais sejam a criação e o efeito, quando estão servindo diretamente
ao propósito da comunicação artística estarão submetidas à proteção dessa liberdade,
165
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198. 166
Ibid., p. 15. 167
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
72
isso porque, entendido este direito como aquele “mais forte”168
, quer dizer, que se
coaduna com o maior interesse do particular. Portanto, a liberdade profissional deverá
ser aplicada apenas subsidiariamente.
168
“Mais forte” por não ter reserva legal, consoante o entendimento de: MARTINS, Leonardo. Direito
Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues
Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico e questões do interesse de artistas,
colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros, investidores e museus. São Paulo: Atlas,
2013 (no prelo).
73
4 INTERVENÇÕES ESTATAIS NA LIBERDADE ARTÍSTICA E
JUSTIFICAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL
As ingerências ou intervenções na liberdade artística podem ter lugar, por meio
de proibições, sanções e medidas materiais (limitativas da área de proteção). As
afetações podem atingir tanto a criação/produção como a apresentação (área do efeito)
da arte169
. Depois de constatada uma intervenção estatal170
na área de proteção da
liberdade artística é preciso distinguir se existe permissão ou não para a restrição, pois
esta poderá ser justificada por um limite constitucional ao direito fundamental171
.
Definiremos a intervenção estatal, quando, por qualquer atuação (ação ou
omissão) do Estado, o indivíduo esteja total ou parcialmente impedido de agir de acordo
com uma conduta que está na área de proteção da expressão artística,
independentemente de se saber se esse efeito ocorre como “efeito final ou involuntário,
direta ou indiretamente, jurídica ou materialmente, com ou sem ordem e coação. No
entanto, a conduta precisa partir de um comportamento imputável ao Poder Público”172
.
A intervenção estatal no exercício da liberdade artística que não possa se
justificar trata-se de uma violação, ilicitude e, deste modo, a consequência jurídica, em
face de um parâmetro constitucional por excelência, é a declaração da
inconstitucionalidade pelo órgão competente pela fiscalização. De resto, partiremos do
princípio de que não se pode falar de uma afetação no caso de “meras bagatelas, de
incômodos do dia-a-dia e de suscetibilidades subjetivas”173
.
169
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 201. 170
A intervenção poderá ainda ser efetuada por terceiros, iremos apreciar esse ponto a partir da análise de
casos paradigmáticos que envolvem o exercício da liberdade artística. 171 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 141. 172 PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 73. 173 Ibid., p. 69.
74
Quando o direito fundamental não possui nenhum tipo de reserva, como o direito
à expressão artística, toda ingerência é uma violação174
, exceto nos casos de: o
comportamento não se situar na área de proteção da liberdade artística; a intervenção
representar a concretização ou a conformação de um direito fundamental derivado e
colidente ou, da mesma forma, a reserva legal; e na colisão entre direitos fundamentais
ou um bem jurídico constitucional ou um princípio de interesse geral175
.
4.1 LIMITES AO DIREITO DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA
O direito à expressão artística, conforme perscrutado, não fora editado pelo
constituinte com ressalvas, ou melhor, com reserva legal176
. A Lei Fundamental por
intermédio das reservas legais permite ao legislador comum que introduza restrições na
área de proteção do direito fundamental, no caso de sua ausência estamos a admitir que:
por lei ou com base em lei o direito não sofrerá quaisquer limitações; e, deve ser
atribuído que os limites da garantia de liberdade artística só devem ser determinados
pela lógica-sistemática da própria Constituição177
.
Apesar dos esforços na delimitação de uma área de proteção material e subjetiva
com relação à liberdade artística, a falta de especificações limitativas faz com que o
comportamento individual e coletivo artístico seja impreciso previamente, à vista disso,
explorar os direitos, bens e princípios constitucionais que restringem a atuação artística
nos servirá de base para delineá-lo com maior apuro.
4.1.1 Comportamento que não se situa na área de proteção da liberdade artística
174 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 75. 175 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 142-143. 176 Poderão existir reservas ordinárias ou qualificadas: no primeiro caso a reserva de lei ordinária não faz
quaisquer exigências especiais à lei de ingerência, já no segundo é exigido que a lei se refira à
determinadas situações, sirva determinados fins ou utilize determinados meios. PIEROTH; SCHLINK,
op. cit., p. 76. 177 Ibid., p. 201.
75
Alguns comportamentos individuais estão fora da área de proteção, e,
considerando, a atuação estatal prima vista restritiva do direito não o será, não sendo
possível verificar sua inconstitucionalidade em face do parâmetro constitucional em
pauta. O particular não poderá exercer o direito à expressão artística quando a conduta
não é permita, ou melhor, quando ilícita. Da mesma forma que a liberdade profissional
não protege uma conduta tipicamente proibida por ser exercida profissionalmente, uma
conduta enraizada de ilicitude não deixa de assim o ser por estar em um contexto
(momento estético-sensorial) artístico178
.
Do mesmo modo, o comportamento do titular da liberdade artística que age
violando arbitrariamente bens jurídicos alheios, não poderá está contido na área de
proteção do direito, excluídas estão, pois, a priori, violações arbitrárias e dolosas a
direitos de terceiros179
.
Que essa baliza não se confunda com um esvaziamento da liberdade artística, a
proteção não passa a ser superficial ou complementar das condutas que já são
permitidas, a expressão artística pode afrontar, causar desconfortos, inconveniências,
provocar certos sentimentos até desmoralizantes, no entanto, a conduta ilícita não pode
estar abarcada na proteção do direito. Discutiremos mais uma vez essa questão nos
tópicos sobre a colisão de direitos.
4.1.2 Concretização e reserva legal dos direitos fundamentais derivados
As concretizações ou as conformações constitucionais e mediante lei sobre
direitos fundamentais não representam propriamente limites, mas potencial intervenção
178 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198. 179
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
76
estatal na área de proteção dos direitos180
. A conformação é técnica que possibilita
pretensões de condutas para que o particular possa fazer uso do direito fundamental,
pois há uma definição de conteúdo181
. Todavia, o legislador deve conformar o direito e
não dispor sobre ele, não devendo, em princípio, impor limites a sua área de proteção.
A relação entre as concretizações e as reservas legais (quando a Lei
Fundamental assente ao legislador comum a introdução de limitações na área de
proteção do direito) é muito complexa, não sendo possível traçar uma linha de
demarcação clara entre a concretização e a limitação mediante reserva legal182
,
principalmente quando se ocupa de um direito aberto, de descrição vaga sobre as
condutas imputadas aos titulares.
No caso da liberdade artística, como não existem concretizações que se associam
diretamente ao direito, precisamos investigar a conformação ou os casos de reservas que
ocorrem “como limite derivado do chamado direito constitucional de colisão”183
, desse
modo, quando conformações e reservas a outros direitos fundamentais acabem por
interferir na área de proteção da liberdade artística, limitando-a, a exemplo das reservas
explícitas no direito de comunicação social, como veremos a seguir.
4.1.2.1 Diversões e espetáculos públicos
O inc. I, §3º, art. 220, da CF, mediante uma reserva legal qualificada, versa que
competirá à lei federal regular “as ‘diversões e os espetáculos públicos’, cabendo ao
Poder Público informar sobre a sua ‘natureza’, as ‘faixas etárias’ a que não se
recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.” O
constituinte fixou o meio (lei federal) pelo qual o seu propósito de proteção à infância e
180 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 145. 181 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 65-66. 182 Ibid., p. 65-66. 183 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 143.
77
a juventude (bem jurídico-constitucional, art. 227, CF), deve abarcar as situações
delimitadas acima.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, lei n.º 8.069/90, concretizou os
mandamentos constitucionais de restrição especial. Destarte, diversos dispositivos do
ECA, em abstrato, devem passar pelo crivo da constitucionalidade em face do
parâmetro da liberdade artística. Analisaremos algumas dessas limitações que são, ao
mesmo tempo, definições da área de proteção da manifestação artística.
Diversões e espetáculos públicos têm conceitos distintos. Os parques de
diversões, algumas casas de brinquedos eletrônicos fazem parte do que os franceses
chamam de diversões públicas, espetáculos de curiosidade, distrações de conteúdo não-
intelectual184
, isto posto, não artísticos. Já os espetáculos envolvem criações artísticas,
trata-se de representação teatral, exibição cinematográfica, rádio, televisão ou qualquer
outra demonstração pública de pessoa ou conjunto de pessoas.
O art. 74, parágrafo único, do ECA, determina que os “espetáculos públicos
deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição,
informação destacada sobre a natureza do espetáculo”. Cuida-se de uma obrigação de
fazer para todos os artistas que, porventura, vão expor suas obras em espetáculos
públicos, qual seja, informar o conteúdo da sua manifestação, qual assunto será
abordado durante a apresentação.
A primeira vista, aparenta-nos que o dever é arbitrário, que não se conecta com a
qualidade de “livre” das expressões artísticas, e, em verdade, o dever se associa
diretamente à fixação da faixa etária do espetáculo (que veremos a seguir), contudo, o
próprio dispositivo constitucional também exige a fixação, em geral, da natureza do
184 SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 63.
78
espetáculo e, diante da unidade da Constituição185
, afastada a tese das normas
constitucionais inconstitucionais186
, a obrigação passa a fazer parte da área de proteção
da liberdade artística.
4.1.2.2 Faixas etárias (classificação indicativa)
A indicação por faixa etária foi mais uma cautela do legislador constitucional
que, conformada pelo legislativo, por intermédio do art. 75 e parágrafo único do ECA,
resguarda a infância e a juventude em face de conteúdos considerados impróprios ao
desenvolvimento de suas personalidades. O caput do art. 75 versa sobre a acessibilidade
de todas as crianças e os adolescentes as diversões e espetáculos públicos que sejam
“adequados à sua faixa etária”, mediante uma classificação. A classificação indicativa
está a cargo do Ministério da Justiça que a edita pelo ato normativo do tipo portaria187
.
A classificação indicativa consiste em um crivo prévio, uma análise feita pela
Administração “com base nos critérios de sexo e violência”188
. Não há margem para a
Administração intervir na programação como lhe cobrando cortes de conteúdo, os
órgãos administrativos não se imiscuem sobre se algo deve ou não vir a ser apresentado,
isto é, não se deve confundir o crivo prévio de legitimidade constitucional com a
censura prévia, proibida pelo ordenamento, a competência às autoridades
administrativas é somente na sugestão das idades adequadas189
.
185
“Por afastar a tese de hierarquia entre os dispositivos da Constituição, esse princípio impede a
declaração de inconstitucionalidade de uma norma constitucional originária.” NOVELINO,
Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 77. 186
Cf. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. 187
A portaria em análise já foi alvo de quatro ADIs, na ordem cronológica de ajuizamento: ADI 392,
ADI 2398, ADI 3907 e ADI 3927. Todas elas foram arquivadas de acordo com o entendimento de que
portaria não é instrumento processual cabível e adequado ao controle abstrato. Portaria nº 1.220, de 11 de
julho de 2007. 188
Art. 17 (...) I – livre; II – não recomendada para menores de 10 (dez) anos; III – não recomendada para
menores de 12 (doze) anos; IV – não recomendada para menores de 14 (quatorze) anos; V – não
recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos; e VI – não recomendada para menores de 18 (dezoito)
anos. Portaria nº 1.220, de 11 de julho de 2007. 189
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso
de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 458.
79
Os limites impostos à expressão artística, tanto o dever de informar a natureza
do espetáculo público, quanto a obrigação de comunicação da faixa etária adequada ao
conteúdo e forma, se desobedecidos, tipificam-se em infrações administrativas previstas
no ECA190
, as penas variam de três a cem salários mínimos, duplicadas em caso de
reincidência dos responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos.
4.1.3 Direito à expressão artística e direito constitucional de colisão
Da mesma forma que os homens são interdependentes e a atividade de nenhum
deles é completamente privada, que nunca venha a obstruir a vida dos outros191
, os
direitos fundamentais, ou melhor, o seu exercício, naturalmente fará nascer colisões
com outros direitos fundamentais ou com outros preceitos constitucionais (bens
jurídico-constitucionais)192
. Esses conflitos acontecem devido ao uso arbitrário das
liberdades de quem são titulares os indivíduos, desse modo, o legislador atenta em
conter os conflitos por intermédio das reservas legais incutidas nos direitos
fundamentais.
Não obstante, a liberdade artística por não estar sujeita à reserva legal, importa em
deduzir que falta ao legislador a liberdade para reduzir, in abstracto, as colisões que o
seu uso irá provocar, “mas com isto as colisões não desaparecem como perigos que
são”193
. Destarte, o direito sem reserva poderá ainda ser limitado “pelo chamado direito
constitucional de colisão ou colidente”194
.
Devemos recusar a seguinte proposição: na colisão com os direitos fundamentais
sem reserva, resolve-se o problema do conflito com a “transferência de limites de um
190
Art. 252-256, lei n.º 8.069/90. 191
BERLIN, Isaiah. Com Toda a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 137. 192
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 162. 193
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 92. 194
DIMOULIS; MARTINS, op. cit., 156.
80
direito fundamental para o outro”195
. A doutrina que se envereda pelo caminho da
transposição de limites desrespeita a escolha do legislador constituinte, o caráter
especial que ele quis imprimir à garantia fundamental sem reserva, agir de encontro é
abandonar o valor especial que a Lei Fundamental lhe reconhece.
Isto posto, quando o direito à expressão artística entrar em conflito com outro
direito fundamental, poderemos provar que a conduta artística não está inserida na área
de proteção, mostrando-se arbitrária, pela interpretação sistemática da Constituição196
.
Usando essa técnica, configuramos a área de proteção da liberdade artística, ou seja, a
área sofrerá restrições apenas até o ponto que permita, respectivamente, um equilíbrio
com outros direitos fundamentais colidentes e bens constitucionais197
.
Os conflitos, por fim, serão decididos pela interpretação conjunta de todas as
disposições relacionadas no caso concreto que nos faça entender os parâmetros que o
próprio constituinte estabeleceu e, nos casos em que as reservas legais dos direitos
constitucionais em colisão reduzem a área de proteção da liberdade artística, apesar de
formalmente autorizadas, é preciso, ainda, que passem pela correta aplicação do critério
da proporcionalidade198
.
4.1.3.1 Vedação ao anonimato, direito de resposta e indenização por danos materiais e
morais
A doutrina costuma justificar a vedação do anonimato como um instituto de
preservação da intimidade, da honra e da imagem das pessoas, uma vez que, as
violações aos direitos da personalidade precisam ser responsabilizadas a um indivíduo
(ou pessoa jurídica) que possa ser identificado. As obras apócrifas, como limite
195
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 92. 196
Ibid., p. 92. 197
Ibid., p. 93. 198
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 163.
81
expresso ao direito de manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CF), por conseguinte,
não estariam protegidas pela Constituição.
Ao manifestar suas opiniões, ideias e pensamentos os indivíduos poderão
insultar algo ou alguém, prejudicando a subjetividade de sua honra, da imagem e da
privacidade, causando danos a terceiros. Ao dano a outrem “é assegurado, o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem” (art. 5º, V, CF). A expressão “é assegurado”, utilizada pelo constituinte, não
deixa dúvida199
, instituiu-se por ela uma reserva legal tácita ao inc. IV, devendo ser
fixado por lei200
todos os ajustes à concretização dos limites à manifestação do
pensamento.
Entretanto, os limites expostos acima não são manifestos a tangenciarem a área
de proteção da liberdade artística, ao contrário do que a doutrina dominante vem
estabelecendo201
. No que concerne à área de criação, importante é a existência de uma
obra de arte, caso a autoria seja indeterminada isso não irá influenciar no arrimo
jusfundamental202
. A área de efeito da obra de arte que não traz a subscrição do seu
criador pode representar um problema, pode importar em um dano a outros bens ou
direitos constitucionais, como, v.g., uma pintura que retrata várias personalidades da
política nacional, caricaturadas, nadando em um “mar de notas de dinheiro”, exposta em
uma galeria de artes plásticas.
199
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 200
Com a declaração da não recepção da Lei de Imprensa n.º 5.250/67 à ordem democrática de 1988, a
matéria encontra-se em vacatio legis. 201
Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro; Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editor, 2002,
p. 333; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira.
Curso de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 457. 202
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
82
Apesar disso, como já ratificamos (tópico 3.2.2), a liberdade artística é lex
especialis, não há de se pronunciar o legislador ou o magistrado pela transposição de
limites, a obra de arte que não possui determinação do seu artista criador poderá ser
livremente exposta, terá a plenitude de sua área de efeito protegida, as pessoas físicas e
jurídicas que são partícipes da comunicação artística203
(como o curador de um museu,
diretor de um teatro etc.) também se valerão da garantia fundamental.
Não estamos com esse posicionamento isentando os titulares do direito à
expressão artística dos danos que causem a terceiros (analisaremos em seguida o direito
colidente do inc. X), muito menos anuindo à não tipificação das condutas dos artistas,
presente o comportamento imputável à calúnia, difamação ou injúria204
, a intervenção
estatal que aplica a sanção será justificada, responsabilizados serão os titulares da
liberdade artística (no exemplo supra, um dos políticos poderia propor queixa crime por
difamação contra o diretor da galeria).
Quanto aos limites expressos no inc. V, reserva legal tácita da manifestação do
pensamento, quais sejam, o direito de resposta e as indenizações por danos morais e
materiais à imagem, antes de nos embrenharmos nas minúcias do direito de resposta,
alegamos, preliminar e reiteradamente, pela proibição da transposição de limites.
Em primeiro lugar, a indenização que será cabível ao exercício desmedido da
liberdade artística está contida no inc. X da CF, que veremos a seguir, à medida que, a
indenização do inc. V se refere ao agravo que provocou o direito de resposta, pois os
limites não são alternativos, caso haja um dano provindo de uma manifestação do
pensamento tanto o direito de resposta quanto à indenização poderão ser admitidas.
203
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 204
Arts. 138, 139 e 140, do Código Penal, Lei 2.848/40).
83
Por segundo, não podemos falar em limites sobrepostos, as previsões de
indenizações materiais e morais à imagem são explícitas, repetidamente, em dois incisos
do art. 5º (V e X), logo, mais uma razão – efeito da interpretação sistemática –, para não
transferirmos os limites da manifestação do pensamento à aplicação da liberdade
artística.
O direito de resposta, assim como a vedação do anonimato, tem sido
compreendido pela doutrina como restrições estendíveis às liberdades de expressão205
,
já afastamos a possibilidade de forma jurídico-dogmática. Porém, restaria uma
indagação pertinente: ‘por que às formas de comunicação social, como a liberdade de
imprensa, a liberdade de informação e a liberdade jornalística admitem o direito de
resposta? Uma vez que a comunicação é uma forma de expressão constante no inc. IX,
no qual também encontramos a liberdade artística?’.
A liberdade de comunicação é garantida pela combinação de dois dispositivos
constitucionais o inc. IX, art. 5º e os §§1º e 2º, art. 220, da CF. O referido §1º versa que
as leis infraconstitucionais não poderão oferecer empecilhos “à plena liberdade de
informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observando o
disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, o legislador constitucional trouxe uma
limitação expressa à comunicação social, não falando nada sobre as expressões
intelectuais, artísticas e científicas, deixando fulgente que as restrições são aplicáveis
somente aos veículos da imprensa (analógica e digital).
205
“O direito de resposta e de retificação é um instrumento das pessoas contra qualquer opinião ou
imputação de caráter pessoal ofensiva e prejudicial.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA,
Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 236; “O
direito de resposta, na forma em que a Constituição o assegura, não está vinculado a lesões provenientes
apenas de determinados meios de comunicação. É inerente ao processo de informação e, portanto, deverá
ser assegurado em quaisquer das modalidades sob as quais esta se dá.” BASTOS, Celso Ribeiro;
MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
São Paulo: Saraiva, 1989, p. 46; e “É assegurado o direito de resposta em todas as modalidades sob as
quais o processo de difusão de ideias e opiniões possa ocorrer.” MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro.
Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 85.
84
Recai sobre a comunicação social, tanto a proibição do anonimato, quanto o
direito de resposta proporcional ao agravo, pois essa foi a vontade do constituinte
promulgada no art. 220, todavia, não serão cabíveis às outras forma de expressão os
limites do inc. IV e V, do art. 5º, pois, esses direitos guardam uma relação de lex
especialis ao direito de manifestação, e, primordialmente, não estão sujeitos a reservas,
assentir pela transferência de limites é uma clara subjugação da Lei Fundamental.
4.1.3.2 Direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem
O direito de personalidade em geral, assegurado no inc. X, art. 5º, CF
(igualmente certificado à indenização ao dano material ou moral), encena um quadro de
relevantes colisões com os direitos da expressão em geral. No entanto, não iremos
defini-los por um referencial único e próprio, dependente apenas da semântica e da
configuração dos seus termos jurídicos, mas, a partir de um diálogo com as condições
de comunicação206
é que se formará a área de proteção do direito à personalidade.
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, os direitos da
personalidade se incrementam a partir dos modos que o sujeito se desenvolve,
aplicando-se a: autodeterminação, autopreservação e autoapresentação207
, no geral, essa
esfera concreta indica que o indivíduo possui o direito de dispor sobre as informações
de sua vida privada, discernindo quais destas devem chegar à esfera pública das que não
deverão ser compartilhadas.
A autodeterminação é o processo no qual o particular elege sua identidade, qual
será sua profissão, qual sua orientação sexual, quais são os seus hobbies, suas
convicções filosóficas, religiosas, políticas etc., tudo aquilo que lhe singulariza está
206
BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra: uma nova abordagem
no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 306. 207
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer
sidade Lusíada Editora, 2008, p. 112.
85
associado à autodeterminação, logo, esse arcabouço de afirmações sobre si próprio não
deve ser onerado no processo de formação da identidade.
A autopreservação, que interage diretamente com o direito da personalidade ora
analisado, garante ao indivíduo o direito de se proteger, de manter informações de sua
personalidade nos recônditos do ponto de vista social (e até mesmo espacial), é o abrigo
de sua intimidade e privacidade (o inc. XII, art. 5º, CF consiste também em
concretização a autopreservação).
Por fim, a autoapresentação ou autoexposição assegura ao particular se defender
sobre o que publicamente lhe desprestigia. Aqui, cada um irá se expor da maneira que
lhe convier, destarte, nessa seara ocorre os desdobramentos do direito à imagem e o
direito à honra pessoal.
Os direitos da personalidade em um Estado Democrático de Direito implicam,
inevitavelmente, a necessidade de serem definidos, levando em consideração a
dogmática da liberdade de expressão208
, tamanha é a reciprocidade entre o exercício
desses direitos abalizadores da convivência e da formação humana. O primeiro passo da
análise da suposta obra artística lesiva aos direitos da personalidade é admitir que: os
direitos que se referem à autopreservação e à autoexposição não tenham o condão de
impor a terceiros que pensem ou que comentem ao nosso respeito apenas aquilo que
desejamos209
. Dessa maneira, o artista não está vinculado à honra subjetiva de cada um,
a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é mediata210
.
A seguir, uma possível colisão entre os dois direitos fundamentais não ensejará
uma intervenção estatal na manifestação artística, quando podemos objetivá-la como
208
FARIAS, Edilsom. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1996, p. 109. 209
BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra: uma nova abordagem
no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 335. 210
“[...] Apesar do caráter direto da aplicação da norma constitucional, as relações entre particulares só
ficam submetidas aos direitos fundamentais mediante atuação (decisão) do Estado. [...] O efeito
horizontal dos direitos fundamentais é indireto, necessita da intermediação das cláusulas gerais do direito
infraconstitucional.” DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 105.
86
não arbitrária aos direitos da personalidade ao examinar se o artista fere o bem jurídico
de outrem, dolosamente, logo, é preciso investigar o animus211
do artista no seu
processo comunicativo.
A expressão artística que se configure como uma (seja na área de produção ou
do efeito) lesão ao direito alheio da personalidade, intencionalmente, para fins de
“desenvolvimento artístico” não fará parte da área de proteção desse direito. Do
contrário, quando o animus é negativo e o caráter ofensivo não é direcionado a um
indivíduo determinado ou determinável, teríamos a expressão artística, quiçá, como fato
antijurídico, mas não culpável, devido ao exercício regular do direito constitucional212
.
Finalmente, é preciso aprofundar o estudo do contexto que envolve a expressão
artística potencialmente restringível pelos direitos da personalidade, quais sejam: a
análise do destinatário; o meio utilizado; os recursos/modos como foi expresso; e das
possibilidades de interpretações oferecidas213
. Sobre este último vale um maior
detalhamento, analisaremos a decisão do TCF alemão (já citada no presente trabalho
acima, tópico 3.1.4) conhecida por “Comboio Anacrônico” (Anachronistischer Zug) e
como a expressão artística sugere uma pluralidade de interpretações.
O caso “Comboio Anacrônico”214
aborda uma atuação dramatúrgica de um
grupo de teatro de rua, ambulante, que realizava apresentações ao ar livre em várias
cidades alemãs (a peça era uma adaptação de um texto de Bertold Brecht), em que o
então Deputado Federal Franz Josef Strauss, candidato a chanceler, é mostrado ao lado
de figuras conhecidas do nazismo.
211
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 212
Trata-se da teoria causalista da ação, não sendo aplicado os tipos penais que protegem a honra pessoal.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Tomo IV. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 270. 213
GRIMM, Dieter apud BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra:
uma nova abordagem no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 388. 214
Ibid., p. 386-389.
87
Em certo momento, entretanto, a peça mostrava uma luta entre Strauss e os
nazistas. De acordo com TCF, o intérprete da peça poderia tirar inúmeras conclusões
dessa cena: a de que Strauss era um nazista, como as demais figuras que lhe rodeavam;
outra conclusão diria que Strauss efetivamente combatia o nazismo, ainda que sem
sucesso, por combater de forma superficial e mentirosa; e uma última interpretação,
feita com base nas intenções de Brecht, poderia sugerir que essa luta de fato existia,
sendo conveniente para o parlamentar de direita, Strauss, e que ao cabo lutaria pelo
triunfo das velhas ideias nacional-socialistas.
O TCF se questiona se o comprometimento da honra pessoal de Strauss é tão
grave que a liberdade artística precise ser afastada, emendando que, ‘poderá existir
alguma interpretação possível em que a ofensa à honra não tenha lugar?’. Vale dizer, na
motivação de uma decisão, os juízes devem procurar diversas interpretações possíveis,
escolhendo aquela que não se constitui uma agressão à liberdade de expressão,
afastando as demais215
.
A partir dessa decisão paradigmática foi que o TCF desenvolveu esse critério
que em conjugação com o conceito aberto de arte, em uma síntese conclusiva, diz que
liberdade artística significa, no sentido assinalado, “que se tome por base da apreciação
jurídica, entre várias interpretações possíveis de uma obra de arte, aquela em que a obra
de arte não lesa direitos alheios”216
.
Outro tema que já foi alvo da apreciação do TCF e da Suprema Corte norte-
americana, cotejando os direitos da personalidade, especificamente o direito à imagem,
215
“Esta interpretação conforme aos direitos fundamentais é um caso particular da chamada interpretação
conforme à Constituição, segundo a qual, entre várias interpretações possíveis merece a preferência
aquela que melhor corresponder à Constituição.” PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos
Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 58. 216
Ibid., p. 199.
88
e a liberdade artística, foram às expressões em formas de caricatura e charge217
. São,
respectivamente, os julgados Strauß-Karikatur (BVerfGE 75, 369)218
e o case Falwell
vs. Hustler Magazine (1988)219
.
A jurisprudência do TCF alemão precisou avaliar se certa caricatura, envolvendo
desenho de agente político mantendo relações sexuais com animais, representava
violação ao direito à imagem do político, maculando também, e talvez com mais
precisão jurídica, a dignidade humana do caricaturado. O caricaturista trabalha com
elementos jocosos, que exageram, deformam e alienam o destinatário e o objeto
caricaturado220
. Todavia, até que ponto alguém pode ser instrumento do divertimento
alheio sem que isso desrespeite sua dignidade?
A estilística das expressões satíricas, imprescindivelmente, carrega essa forma
que é insultante aos direitos de terceiros, deste modo, o alicerce correto para que se
conjeture uma violação aos direitos da personalidade no caso das espécies satíricas, não
deve ser a roupagem da mensagem221
, mas o seu âmago, o núcleo da essência da
mensagem222
. O TCF decidiu pela interferência não justificada no núcleo da dignidade
217
A charge, a caricatura e a paródia são espécies do gênero artístico “sátira”. A técnica satírica é aquela
que ridiculariza determinado tema, tanto pelo humor como pelo trágico. A charge e a caricatura utilizam-
se do humor, mas o que as diferenciam é o elemento temporal, enquanto a charge é uma piada restringida
ao seu tempo, por exemplo, escândalos envolvendo os poderosos políticos são as vítimas, os assuntos
relacionados ao futebol ou a TV etc., a caricatura é o retrato distorcido e bem-humorado de um
personagem escolhido sem qualquer referência ao tempo. 218
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer
sidade Lusíada Editora, 2008, p. 199. 219
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso
de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 466. 220
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 221
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 222
Cf. pensamento diverso em: PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 199: “É errado distinguir, como fez o
TCF no julgado E 75, 369/377, no caso da sátira e da caricatura, entre o núcleo da mensagem e o núcleo
da sua expressão e submeter os dois aspectos a critérios diversos, o que quer que a arte possa ser, ela é,
em todo o caso, unidade de forma e conteúdo.”.
89
humana do agente político, considerando a caricatura – o seu conteúdo – não coberta
pela liberdade artística.
Diferenciar o exterior da expressão artística do sentido artístico que carrega,
segundo Pieroth e Schlink, posicionar-nos-ia a aceitar que “um escultor que furta
mármore ou um músico que furta um instrumento, fazem isto apenas em conjugação
com sua atividade artística”223
, entretanto, discordamos dessa percepção, pois, o uso do
instrumento artístico deliberadamente (investigação do animus) intencionado, para
macular algo ou alguém não fará parte da área de proteção do direito fundamental. A
consecução de uma expressão artística não informa fins ilícitos. Separar a roupagem de
uma obra de arte de seu conteúdo substancial é plausível, pois surge com as novas
formas de expressão artísticas, que vão eclodindo de acordo com os novos valores que a
sociedade indica como importantes, como o conteúdo humorístico224
.
O caso Falwell vs. Hustler Magazine225
tinha como cerne o litígio entre a revista
Hustler, conhecida pelo seu humor escrachado, reconhecidamente bruto, e o
parlamentarista protestante Jerry Falwell. A charge/paródia apresentou um quadro
fictício em que Falwell era entrevistado, descrevendo que a sua primeira relação sexual
ocorreu com sua mãe. O anúncio, na parte inferior, continha um aviso de que “a paródia
não deveria ser levada a sério”.
A Suprema Corte foi acionada para apaziguar a contenda, na fundamentação da
decisão, recordou o precedente New York Times Co. vs. Sullivan (1964)226
, na ocasião
os juízes firmaram posicionamento segundo o discurso crítico sobre figuras públicas,
ponderando que as constantes exposições das celebridades e as pessoas que estão
223
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer
sidade Lusíada Editora, 2008, p. 200. 224
Cf. o acórdão do TJ-SP de 06/11/2012 nos autos da Apelação Cível n. 0201838-05.2011.8.26.0100,
sobretudo o voto vencido do Rel. original, Des. Roberto Maia. O caso polêmico que ficou famoso por
envolver a cantora Wanessa Camargo e o humorista-jornalista Rafinha Bastos, quando esse último
pronunciou na TV que “comeria ela e o seu bebê”. 225
485 U.S. 46 de 1988. 226
376 U.S 254 de 1964
90
comprometidas com questões públicas importantes, as tornam mais tolerantes ao
assédio da imprensa e também há de se levar em consideração que existe um interesse
da sociedade em se obter informações sobre elas. Se as expressões não forem falsas ou
proferidas com ‘má-fé’ (actual malice), deve prevalecer o freedom of speach227
.
Na atualização, os magistrados concordaram que as charges ou caricaturas são
baseadas na exploração dos traços físicos infelizes ou eventos embaraçosos, não há
como a expressão não ferir os sentimentos do sujeito representado, e, caso essa seja a
interpretação fornecida, os artistas satíricos estariam submetidos a repetidas e vultosas
indenizações. Enveredou, dessa maneira, por desconsiderar que as expressões satíricas
pudessem ser ultrajantes ou desgastantes emocionalmente para as figuras públicas.
A demonstração nos faz inferir que: 1) Os titulares das expressões artísticas não
estão obrigados, diretamente, às subjetividades dos particulares no que concerne aos
direitos da personalidade; 2) É categórico investigar o animus do artista em sua
expressão, terminantemente será proibido utilizar a arte para fins que não sejam
estritamente artísticos (tópico 2.2.5) ou dispô-la como artifício para intencionalmente
lesar direitos de outrem; 3) Na análise de expressões artísticas com forma/roupagem
naturalmente ofensivas, devemos segregar sua forma de exteriorização do seu núcleo de
expressão; e 4) Algumas pessoas públicas (famosos ou agentes públicos) possuem uma
relação com os direitos da personalidade relativizada, já que é no espaço público que
exercem seus deveres ou profissões, cedendo, voluntariamente, a intimidade típica da
autoexposição e da autoapresentação.
4.1.4 Censura e licença (limite dos limites)
227
ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitucional Law Jurisprudence: a comparative analysis.
Working Papers Series 41/11, 2001. Disponível em
<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=265939>. Acesso em: 27 jun. 2013.
91
O inc. IX, art. 5º, da CF, quando afirma que é livre a expressão artística, reforça
o sentido da liberdade, ratificando sua independência relativamente a censura e a
licença. O que significa para a ciência do direito censura e licença? Jurídico-
dogmaticamente os dois representam limites dos limites, isto é, limitações a que o
legislador estará submetido quando estabelece restrições ao pleno e ilimitado exercício
de direitos fundamentais228
.
A proibição de censura igualmente está prevista no direito da comunicação
social, art. 220, §2º, vetando qualquer “censura de natureza política, ideológica e
artística”, figurando um rol exemplificativo229
de conteúdos, os quais o Estado, por
convicções próprias, deve se eximir em valorizar com intuito de impedir as ações do
exercício do direito da comunicação social.
A “licença” significa uma autorização para uma manifestação230
, o que
subjugaria a expressão artística do particular a uma homologação concedida por
autoridade estatal ou até mesmo por um terceiro. Deste modo, está terminantemente
defeso que o legislador, em geral, crie situações em que a atividade artística esteja
submetida a uma aquiescência.
A interdição de licença não deve ser confundida com “a licença” 231
prevista na
lei que regula as obrigações e os direitos relativos à propriedade intelectual, vistos que,
o texto infraconstitucional se fundamenta em concretização do direito fundamental do
autor, expresso no art. 5º, inc. XXVII e XXVIII, da CF, a partir de suas respectivas
reservas legais.
228
Os limites de limites estão contidos nos próprios direitos fundamentais. PIEROTH, Bodo; SCHLINK,
Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p.
81. 229
“Inclusive moral, não apenas da censura de natureza política, ideológica e artística” SILVA, José
Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA., 2001, p. 64. 230
Nesse sentido: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 80; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives
Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 59. 231 Lei n.º 9.279/96, Capítulo VIII – Das Licenças.
92
Ao seu modo, a “censura” guarda uma definição diferenciada. A origem da
palavra permeia o cargo político da Roma Antiga, quando os “censores” eram
responsáveis pela fiscalização da conduta moral dos cidadãos. Por isso, sua acepção
moderna indica que o Estado, por meio da censura, impede ou controla certas
informações, opiniões e expressões. Todo procedimento do Poder Público que tenta
obstruir a livre comunicação devido ao estabelecimento de certos valores que devem ser
seguidos pela sociedade, retrata a censura.
A doutrina, no intuito de evitar posições arbitrárias e unilaterais baseadas em
juízos de conteúdos, reconhece o Princípio da Incensurabilidade232
, de procedência
norte-americana (non interference or no censorship principle). O princípio respalda-se
na antinomia ontológica que existe entre democracia e censura, ganhando relevo pela
observância que imprime não só ao Estado, mas também a toda e qualquer entidade ou
poder233
que esteja em condições de fazer uso da censura, na manutenção do regime
democrático.
Alguns juristas separam a censura em dois momentos distintos: a prévia e a
posteriori. Enquanto a prévia esteia-se no impedimento de uma exposição fotográfica,
exibição de um filme ou coíbe a publicação de um livro ou a apresentação de peça
teatral em virtude da sua temática; a segunda, por sua vez, extingue o efeito da obra
artística, embora a comunicação já tenha alcançado certos recipientes, quando se retira
uma obra de circulação, um filme de cartaz ou se cancela a apresentação de um
espetáculo234
.
232 Nesse sentido: FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação. São Paulo: Editora
Revista do Tribunais, 2004, p. 77. 233
Igrejas, partidos, organizações profissionais etc.: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra.
Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989,
p. 60. 234 Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 59; e MEYER-PFLUG,
Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2009, p. 80.
93
No entanto, desconsideramos a censura como uma proibição a posteriori ou
repressiva, absoluta somente será o veto à censura prévia. A sistemática da Lei
Fundamental prevê diversas medidas de controle e de repressão, como aquelas previstas
nos inc. V e X do art. 5º, CF (direito de resposta e direitos da personalidade,
respectivamente), ou seja, mediante concretização dos citados direitos fundamentais
tanto a sentença judicial como a lei ordinária poderão impor, fundamentadamente, a
repressão a manifestações que sejam incompatíveis com os direitos fundamentais
protegidos pelos incisos V e X235
.
O limite dos limites que representa a censura, como ordem prévia, significa a
inibição de uma expressão que o titular do direito pretenda divulgar, “a proibição de
censura não obsta, porém, que o indivíduo assuma as consequências, não só cíveis, mas
penais, do que expressou”236
.
4.2 CONFLITOS ENTRE LIBERDADE ARTÍSTICA E OUTROS BENS JURÍDICOS
De acordo com a exposição, vimos que somente o direito constitucional
colidente é o legítimo limite ao exercício do direito à expressão artística. Inúmeras são
as contingências em que os conflitos poderão se dar na práxis, em todas elas,
precisamos partir de um referencial teórico forte sobre a área de proteção do direito
constitucional, isso porque, existem condutas não tuteladas que podem ser excluídas
desde o início da investigação sobre a inconstitucionalidade de uma norma abstrata ou
de uma interpretação feita por órgãos estatais.
Para delimitar com mais precisão a área de proteção normativa da liberdade
artística, vamos analisar certos bens jurídicos constitucionais que se embatem
(recorrentemente, como um atributo até histórico) em concreto com a manifestação da
235 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 192-193. 236 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso
de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 452.
94
liberdade artística. Nosso escopo é esgotar cada vez mais o exame da liberdade-
parâmetro, pela via do questionamento sobre a justificação da intervenção na área de
proteção do exercício artístico por um limite constitucional previsto para a liberdade,
que por sua vez deve ser contralimitado pelo critério da proporcionalidade, afastando-se
a ponderação.
A ponderação judicial precisa ser utilizada como exceção. O respeito à
dignidade da legislação não é nada mais do que o respeito ao próprio regime
democrático. “As ponderações já foram feitas, resultou delas a lei. Se há algum ator
principal desse Estado, ele se chama povo, por intermédio de seus representantes
eleitos”237
. Destarte, persistir na investigação jurídico-dogmática sobre as delimitações
da liberdade artística é necessário para que se possa obstar a inconstância e
inconsistência ponderativa238
.
4.2.1 Obras artísticas obscenas e pornográficas
Obsceno vem do vocábulo latino fora de cena (ob = fora, scena = cena), aquilo
que não deveria ser mencionado em público. Existem atos legítimos fora de cena, quer
dizer, em lugares privados, e que são proscritos em cena, vistos e ouvidos sem
hipocrisias, eufemismos ou pudores, são os atos obscenos. Quanto à pornografia,
expressão do grego pornographos, significa escrever sobre as rameiras, ou seja, a vida
237
TORRES, Ricardo Lobo apud SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição
Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 14. 238
Nesse sentido “Por isso, o controle da proporcionalidade em sentido restrito corre sempre o perigo de
fazer valer os juízos subjetivos e os pré-juízos daquele que controla, apesar de todos os esforços de
racionalidade. Não é justificável o fato de o Tribunal Constitucional Federal, que exerce o controle,
colocar os seus juízos subjetivos acima dos do legislador controlado. Pelo contrário, nos casos em que
apenas podem ser emitidos juízos meramente subjetivos, aí começam o âmbito e a legitimidade da
política. A proporcionalidade em sentido restrito tem um valor posicional totalmente diferente na
Administração e na jurisprudência que controla a Administração; o legislador é tão livre de autorizar a
Administração, apesar de todos os esforços de racionalidade, a uma pesagem e ponderação, em última
análise subjetiva, como a jurisprudência é livre para colocar o seu juízo subjetivo acima do da
Administração” PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II.
Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 110
95
de sexualidade luxuriosa das prostitutas sendo retratada239
. A relação entre obscenidade
e pornografia se traduz em: a primeira é gênero, donde a segunda é uma de suas
espécies240
.
Fica evidenciado, literalmente, que aquilo que é obsceno está fora do contexto
das “regras sociais”, refletindo a ideia de uma moral coletiva. Quando nos deparamos
com uma obra artística obscena a julgamos da perspectiva massificadora de uma suposta
moralidade pública, mas como não esbarrar em um fanatismo moral ou puritanismo,
que consistem na realidade em autoritarismo abstrato?241
.
A Constituição assegura a moralidade individual, por meio do art. 5º, inc. X, que
estatuiu o dano moral, em contrapartida não se fala em proteção constitucional a moral
coletiva ou aos bons costumes242
. Ao contrário, a Lei Fundamental assegura o
pluralismo, seja ele político (art. 1º, V), quanto o pluralismo de ideias e de cultura (art.
206, III). Mesmo ao certificarmos que a moralidade individual é um reflexo de uma
hipotética moralidade pública, os valores são solidários243
, de sorte que, se um deles é
posto à margem, todos serão indiretamente atingidos.
Os produtos artísticos obscenos, quando estão envolvidos pelo momento
estético-sensorial devido, não ferem, nem violam nenhum bem jurídico-constitucional,
não devendo prevalecer soluções pela restrição artística, predominante é a liberdade de
expressão que só é limitada pelo direito constitucional colidente e não por uma fictícia
239
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 68. 240
Outra espécie é o ‘erotismo’ que se destaca pelo fato de não se vincular diretamente ao sexo, enquanto
que a pornografia encontra no sexo e na sexualidade seu espaço privilegiado. Dessa forma, o erotismo
estaria mais próximo do sexo implícito (portanto aceitável) e a pornografia do sexo obsceno, direto,
explícito e comercializável. Porém, distinções desta natureza podem nos conduzir a práticas
preconceituosas! Afinal de contas, erótico ou pornográfico, depende dos contextos histórico, cultural ou
moral onde esses fenômenos estão inseridos. 241
Ibid., p. 70. 242
A moral e os bons costumes expressos nas “cláusulas abertas” da legislação civilista em diversos
dispositivos, a exemplo dos arts. 13, 122, 187, 1.336, IV e 1.638, III, lei. n.º 10.406/2002, precisam ser
determinadas por uma interpretação conforme os direitos fundamentais. 243
Ibid., p. 70.
96
moralidade pública. Além do mais, a interpretação sobre o que realmente é obsceno ou
pornográfico já sofreu, não raramente, mudanças substanciais na sociedade, vejamos
alguns exemplos.
Considerado o pai do simbolismo, Charles-Pierre Baudelaire em 1857 publicou
o poema ‘As flores do mal’244
, recolhido pouco tempo depois devido à acusação de ser
pernicioso e obsceno tendo em visto o parâmetro dos bons costumes. Baudelaire e seu
editor foram condenados a pagar multa por ofensa à moral pública, suprimindo seis
poemas de sua obra para que ela pudesse voltar a circular. ‘As flores do mal’, na sua
versão sem cortes, só fora restituída em 1868, numa edição póstuma.
Na década de 20, do século XX, o romance ‘Ulisses’ de James Joyce,
considerado contemporaneamente como um marco da literatura moderna, fora
censurado nos Estados Unidos (além de outros países de língua inglesa), e os seus
editores condenados por publicarem obscenidades. A lei de censura incidia, inclusive,
sobre a fiscalização de agências de correios que retinham os romances que entravam no
país, permanecendo na clandestinidade até 1933.
Naquele ano, o juiz distrital John M. Woolsey proferiu sentença que autorizava a
entrada de ‘Ulisses’ nos Estados Unidos, na sua fundamentação considerava o
magistrado que para se chegar a qualquer conclusão sobre uma obra literária é
necessário bastante tempo refletindo sobre o seu propósito e, depois de pontuar que
dedicara diversas semanas para refletir sobre ‘Ulisses’, após lê-lo na íntegra, chegava à
244
“Assim eu quisera uma noite, quando a hora da volúpia soa, às frondes de tua pessoa subir, tendo à
mão um açoite, punir-te a carne embevecida, magoar o teu peito perdoado e abrir em teu flanco assustado
uma larga e funda ferida, e, como êxtase supremo, por entre esses lábios frementes, mais deslumbrantes,
mais ridentes, infundir-te, irmã, meu veneno!” As três últimas estrofes de ‘A que está sempre alegre’,
poema censurado.
97
conclusão que: “[...] em ‘Ulisses’, apesar da sua invulgar fraqueza, não vejo em parte
alguma a malícia da sensualidade. Considero, portanto, que ele não é pornográfico.”245
.
Nelson Rodrigues, dramaturgo brasileiro mais representado, autor da peça
‘Vestido de noiva’ (1946)246
, considerada marco inicial do teatro moderno brasileiro,
apesar de seu sucesso na crítica e na sociedade até a atualidade, teve diversas peças
censuradas, destacando-se, ‘Álbum de família’, ‘Anjo negro’, ‘Senhora dos afogados’ e
‘Boca de ouro’. As peças afrontavam a moral pelos conteúdos incestuosos, cenas
demasiadamente insinuadas de sexo e de perversões sexuais, traições, prostíbulos etc.
Outros artistas, editores e produtores foram censurados ou reprimidos pela
obscenidade que imprimiram as suas obras247
, segundo um ponto de vista
exclusivamente moral. Nunca será suficiente recordar que os regimes tirânicos se
apoiaram por muitos anos “na proteção de uma ordem e moral pública”, impondo
constantemente seus valores autoritários248
, razão pela qual o constituinte outorgou a
liberdade artística sem reserva legal, em virtude de sua fragilidade e, por conseguinte, a
cautela que o operador do direito deve apresentar, evitando a estipulação de “falsos”
limites.
245
Disponível em <http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2013/06/a-sentenca-que-liberou-ulisses-de-
joyce.html>. Acesso em: 15 jun. 2013. 246
OMS, Carolina. Nelson Rodrigues e Censura Teatral. Revista Anagrama. São Paulo, ano 2, p. 1-14,
fev. 2008. Disponível em <http://www.usp.br/anagrama/Oms_Rodrigues.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2013. 247
Como Ney Matogrosso, que teve o álbum ‘Calabar’ censurado em 1973; Márcia X que em 2006 teve
sua obra ‘Desenhando com terços’ retirada da exposição ‘Erótica – Os sentidos da arte’, promovida pelo
Centro Cultural Banco do Brasil; Larry Flynt, nos EUA, que participou de diversas batalhas judiciais,
tendo sido processado várias vezes pelo conteúdo pornográfico de seus vídeos e revistas, sua vida foi
retratada no filme ‘O Povo Contra Larry Flynt’; o pintor espanhol Pablo Picasso que no final de sua
carreira se tornou mais ousado, sua obra mais colorida e expressiva, e de 1968 a 1971, ele produziu uma
torrente de centenas de pinturas e gravuras de cobre. Ao mesmo tempo, estas obras foram rejeitadas pela
maioria como fantasias pornográficas de um homem impotente. Só mais tarde, depois da morte de
Picasso, quando o resto do mundo da arte mudou-se do expressionismo abstrato, a comunidade fez
críticas ao trabalho de Picasso e percebeu que ele já tinha descoberto o neo-expressionismo e esteve,
como tantas vezes antes, à frente de seu tempo; etc.. 248
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
98
É certo que diante do bem jurídico-constitucional “proteção da infância e
juventude”, as obras artísticas de conteúdo pornográfico sofrerão algumas restrições,
tanto na área de criação como na do efeito, isso porque, a pornografia é expressão que
estimula pensamentos e desejos sexuais, sendo a criança e o adolescente imaturos para
refletir e reagir sobre esses tipos de provocações.
O ECA (Lei federal n.º 8.069/90), nesse desiderato, dispõe em seus artigos,
obrigações para editores de revistas pornográficas envolverem as capas de seus
periódicos com embalagem opaca (art. 78) e, ainda, penas distintas para aqueles que
transmitirem, publicarem, distribuírem, divulgarem, venderem, adquirerem,
armazenarem e, por qualquer outro meio, registros que contenham cena de sexo
explícita ou pornográfica envolvendo criança e adolescente (arts. 241, 241-A, 241-B).
O ECA, como concretização da reserva legal contida no art. 220, §3º, da CF,
demanda intervenções estatais na liberdade artística, vistas supra. No que concerne, a
justificação da ingerência poderá ser auferida pelo critério da proporcionalidade (limite
dos limites), mediante o exame sucessivo e eliminatório, respectivamente, da análise do
emprego do meio para alcançar o fim – adequação; e do emprego do meio para atingir
ao fim que seja indispensável porquanto, na comparação com meios alternativos
igualmente adequados, implique a menor onerosidade ao direito fundamental atingido –
necessidade249
.
A pornografia, principalmente aquela voltada à comercialização do sexo, vem
dividindo feministas do mundo inteiro sobre o traço ofensivo, que em termos de bens
jurídicos poderíamos apontar a liberdade sexual e a igualdade de gênero, presentes no
seu conteúdo. Essa indústria pornográfica seria incentivadora de um tratamento da
mulher objeto e subordinada ao homem, fomentando sua humilhação, silenciando-as e
249
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 82.
99
prejudicando a busca da igualdade entre os sexos (a própria origem etimológica da
palavra pornografia remete às prostitutas, como visto)250
.
Não negamos que os argumentos supra sejam procedentes, contributivos a
misoginia. No entanto, como acontece com todas as outras comodidades culturais que
desfrutamos, é preciso que reflitamos, incessantemente, sobre a pornografia que a
sociedade consome. Outras escritoras feministas251
vislumbraram na pornografia uma
forma de responder às imagens dominantes com imagens alternativas, criando sua
própria iconografia, rompendo com estereótipos de beleza e de classe sobre o sexo.
Por tudo isso, apesar da pornografia industrializada do sexo fazer uma leitura
ultrajante da mulher, não se vislumbra qualquer efeito para se levar a proibição da sua
divulgação, mesmo odiáveis e passíveis de repúdio por parte da sociedade as
manifestações têm tanto direito de proteção quanto qualquer outra forma de
expressão252
. Mesmo que as feministas conseguissem convencer certo número de
parlamentares a aprovarem um sistema político com leis restritivas à expressão artística,
incerta seria a passagem de tal norma limitadora pelo crivo constitucional
posteriormente.
4.2.2 Obras de arte em propriedade pública e privada (arte urbana)
A arte urbana surge a partir da cena underground253
, movimento que foge dos
modismos que se relacionam às produções culturais (ou à arte erudita). Como o nome
sugere, as manifestações artísticas são realizadas primordialmente no espaço público, o
250
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 251
Entre elas, Erika Lust, Tristan Taormino, Anais Nin, Hilda Hilst etc.. 252
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 351. 253
Cultura alternativa ou cultura marginal, focada principalmente nas transformações da consciência,
dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o
indivíduo nas pequenas realidades do cotidiano.
100
que não impede que sejam desenvolvidas em ambientes privados, todavia, como
movimento, a arte urbana é ensejadora da transformação da paisagem pública, tornando-
a mais interessante, verdadeiro canal para a comunicação artística gratuita e
desembaraçada de meios intermediários entre a obra de arte e o recipiente.
Existem várias manifestações de street art, muito comuns em metrópoles,
incluindo, entre outras, as estátuas vivas, os músicos de rua, artistas circenses
(malabarista, palhaços etc.), intervenções performáticas, flash mob, cartazes lambe-
lambe e o grafite (graffiti). Todas as manifestações se destacam pela acessibilidade de
seu conteúdo, pela democratização da arte que é levada a todos os cidadãos
cotidianamente, proporcionando, em sua rotina mais hermética, a chance de se deparar
com umas dessas expressões, já que elas estão no ambiente público e comum.
Em virtude da realização das artes urbanas podemos vislumbrar algumas
colisões a bens jurídico-constitucionais, em primeiro lugar, avaliemos às artes de caráter
performático, ou seja, aquelas que ocorrem mediante artistas na rua. A arte ao ar livre,
nos espaços comuns, está dentro da área de proteção do direito a liberdade artística, não
havendo restrições constitucionais à manifestação com o uso de coisas públicas254
(excetuando o meio ambiente como bem jurídico-constitucional, como veremos a
seguir).
Conquanto, de acordo com o declarado sobre comportamentos de titulares da
expressão artística que, a priori, estão excluídos da área de proteção do direito, quando
a performance estiver deliberadamente (dolosamente), atingindo direito ou bem de
terceiro alheio, a manifestação não estará amparada constitucionalmente, é o caso de
254
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).
101
alguns happenings que podem ter o condão de violar o direito de locomoção dos
indivíduos ou até mesmo inviabilizar por completo o trânsito das ruas.
Nesses casos, a liberdade artística geralmente sofre cerceamento pelo poder de
polícia, que tenta estabelecer a “ordem pública”, ou melhor, a normalidade para o
trânsito de pessoas. No intuito de evitar esses embates, acatamos o que explana
Leonardo Martins255
, na medida em que remediá-los consistiria, caso não seja
absolutamente necessário para área de criação e efeito da obra artística, em avisar à
autoridade competente sobre a performance.
Não estamos realizando com essa medida de solicitação uma transposição de
limites, no caso importado o aviso prévio da liberdade de reunião (art. 5º, XVI, CF),
pois, o aviso que estamos cuidando não condiciona a expressão artística, não a torna
ilegal caso seja olvidado pelo artista, apenas tem a faculdade de protegê-lo,
salvaguardando o transcorrer sem embaraços de sua manifestação artística.
Sem esgotar o tema, temos outras formas conhecidas da arte urbana na
modalidade de grafismos, englobando o estêncil256
, o sticker257
e o grafite, esta última a
mais famosa e polêmica das urbanografias. O grafite, muito confundido com
pichação258
, é a inscrição de desenhos ou palavras em paredes públicas feitas com o
spray de aerossol, expressão artística da cultura hip-hop – fundamenta-se, esta, no rap
(música), no breakdance (dança) e no grafite (artes plásticas).
255
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 256
Estêncil é considerado uma forma do grafite por utilizar o spray de aerossol na sua técnica também, a
ilustração é feita primeiramente em uma prancha perfurada, onde a tinta irá preencher o desenho vazado
que ficará ilustrado na parede. 257
Stickers são etiquetas adesivas afixadas nas paredes, elas se distinguem dos cartazes lambe-lambe, por
que este utiliza colas caseiras ou comerciais mais difíceis de sair. 258
A pichação é a inscrição de palavras e desenhos em paredes públicas sem o lastro de conteúdo
artístico, utilizada muitas vezes para manifestação de insultos, denúncias político-sociais e marcação de
territórios de gangues.
102
A cultura hip-hop, natural dos Estados Unidos, espalhou-se para todo o mundo, e
um de seus expoentes é a expressão artística refletida na realidade das ruas, há no Brasil
eminentes artistas do grafite259
. Mesmo com a identificação desse contexto, o graffiti já
foi considerado juntamente com a pichação, formas de conspurcação das edificações e
dos monumentos urbanos260
, sendo descriminalizado apenas no ano de 2011, com
advento da lei n.º 12.408/11.
O §2º, art. 65, da lei de crimes ambientais agora verseja que o grafite além de
não se constituir crime é uma manifestação artística que valoriza o patrimônio público
ou privado, desde que a inscrição do grafite seja consentida pelo proprietário do bem
privado e, no caso de bem público, mediante a autorização do órgão competente,
devendo ser observadas, ademais, os monumentos do patrimônio histórico e artístico
que não devem ser grafitados.
A lei de crimes ambientais possui lastro em bem jurídico-constitucional, qual
seja, o meio ambiente (art. 225, CF). O bem de uso comum do povo e essencial à
qualidade de vida abrange, necessariamente, o meio ambiente urbano, onde sabemos
que vive a maioria demográfica261
em nosso país. Portanto, a pichação é considerada
crime pelo dano que causa ao ordenamento urbano, diminuindo a qualidade de vida de
todos por conferir maior poluição visual aos centros urbanos.
No que tange, ao limite expresso à manifestação artística do tipo grafite,
prescrita no §2º, art. 65 da lei n.º 9.605/98, percebemos uma potencial
inconstitucionalidade do dispositivo: a norma infraconstitucional afirma que o grafite é
uma manifestação artística, de sorte que, contará com a proteção do direito fundamental
259
Entre eles, Marcelo Ment – pioneiro na cena carioca do grafite; Fabah Zadok – atua nas ruas de São
Paulo, resgatando a lembrança do trabalho e do sofrimento do povo africano; e Carlos Esquivel – ativista
da arte urbana, possui um traço mais comunitário e político-social. 260
Antiga redação do art. 65, da lei n.º 9.605/98, Lei dos crimes ambientais. 261
Fenômeno da urbanização que passa de 70% em todas as cinco regiões do Brasil, de acordo com o
Censo 2010. Disponível em <http://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/>. Acesso em: 18 jun. 2013.
103
inscrito no inc. IX, art. 5º da CF, este, conforme analisado, além de se desenvolver de
forma livre, será, independente de censura ou licença (autorização).
Ao contrário do que comanda a Lei Maior, a legislação ordinária condiciona o
grafite à autorização e ao consentimento. Este último deve ser dirigido ao particular,
nesse caso, proprietário de um bem privado que deve anuir, concordar, admitir que o
titular da liberdade artística possa produzir obra artística do tipo grafite na sua
propriedade. A aquiescência do proprietário vai se unir ao que expusemos,
anteriormente, sobre a impossibilidade de uma manifestação artística que lesa direito ou
bem jurídico alheio arbitrariamente262
.
Difícil se mostra a questão que concerne à autorização ao órgão competente, na
oportunidade da expressão grafite acontecer em bem público. Primeiro, o §2º tem o
fulcro de proteger os patrimônios históricos e culturais nacionais, bens de lastro
jurídico-constitucional, constantes em diversas normas da Constituição (art. 215 ss.
referentes à proteção da cultura em geral; art. 24 que fala da legislação concorrente
entre União e Estados para proteção do patrimônio cultural; e art. 30 que promove a
competência de legislação municipal no mesmo desiderato).
Apesar do lastro constitucional, intuitivamente263
o propósito do §2º, art. 65, lei
n.º 9.605/98, nos soa como ilícito, pois, a sua restrição é contrária ao direito
fundamental da liberdade artística, na literalidade, enquanto o inc. IX diz que não
haverá autorização para o exercício das artes, a contrario sensu o §2º afirma que o
grafite deverá ser autorizado para que possa se manifestar no espaço público.
262
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 263
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 190.
104
A função legislativa, de não promulgar leis que sejam incompatíveis com o
direito fundamental da expressão artística, resta comprometido, o ato normativo é
violador da liberdade em tema, além disso, violador da supremacia constitucional264
. É
certo que, diante de uma norma infralegal eivada de inconstitucionalidade, a função
executiva deverá interpretar tal norma à luz da liberdade-parâmetro, isto é, do direito
fundamental da expressão artística, optando pela não aplicação do dispositivo que é
incompatível com a norma suprema265
.
Tanto as medidas administrativas como os atos normativos podem ser revistos,
por sua vez, na função judiciária, que possui o dever de interpretar às leis conforme a
norma constitucional, ou melhor, a interpretação será orientada pelo direito
fundamental266
, afastando sua aplicabilidade devido ao seu caráter violador da liberdade
fundamental. Ao STF competirá a declaração da inconstitucionalidade da lei
supramencionada, por intermédio do controle abstrato ou pelo recurso extraordinário267
.
Como anteriormente assinalado, há uma contradição entre o §2º do art. 65 da lei
n.º 9.605/98 e o art. 5º, IX, CF, caso a incumbência de resolução da questão chegasse ao
STF, como guardião da Constituição (art. 102, caput), como deveria a Corte se
posicionar no tocante a constitucionalidade da norma objeto? Entrementes, assinalamos
que há amparo de dignidade constitucional no §2º do art. 65, por isso, seguimos no
exame dos limites dos limites.
264
“A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se
estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais
normas. Por força dessa supremacia, nenhuma lei ou ato normativo — na verdade, nenhum ato jurídico —
poderá subsistir validamente se estiver em desconformidade com a Constituição.” BARROSO, Luís
Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.
23-24. 265
“Os órgãos do Poder Executivo, como órgãos destinados a dar aplicação às leis, podem, no entanto,
ver-se diante da mesma situação que esteve na origem do surgimento do controle de constitucionalidade:
o dilema entre aplicar uma lei que considerem inconstitucional ou deixar de aplicá-la, em reverência à
supremacia da Constituição.” Ibid., p. 60. 266
“Essa decisão tem de fazer valer os direitos fundamentais e interpretar o direito ordinário de forma a
proteger os direitos fundamentais e a preservar e a promover a liberdade.” PIEROTH, Bodo; SCHLINK,
Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p.
58. 267
BARROSO, op. cit., p. 50-51.
105
Para uma decisão juridicamente correta a Corte deveria avançar no diagnóstico
da constitucionalidade, avaliando os subcritérios da proporcionalidade. A primeira
indagação é sobre a adequação do meio (a sanção), se ela se mostra eficaz na promoção
do fim (proteção do patrimônio artístico e cultural nacional), o que podemos responder
positivamente, de fato, a sanção é um instrumento que funcionar na coibição de
condutas indesejadas pelo Estado. Uma sanção que tem função de resguardar o
patrimônio artístico e cultural (bem constitucional) parece-nos plenamente eficaz.
Contudo, falta perquirir a necessidade do meio, será a sanção, prevista para as
expressões artísticas do tipo grafite que forem realizadas em bem público sem
autorização, o meio menos oneroso à liberdade artística? Nesse ponto sustentamos a
desnecessidade do meio, uma vez que, existem situações menos onerosas aos titulares
do direito fundamental à liberdade de expressão artística (o §2 poderia ter sido redigido,
por exemplo, apenas com a vedação do grafite ser praticado em patrimônio cultural,
mas ele acabou exigindo uma autorização em abstrato, para qualquer manifestação
artística em espaço público).
4.2.3 O corpo como objeto da arte (body art)
Quando o artista decide utilizar o seu corpo ou o de terceiros como suporte ativo
para a linguagem artística, na qual o corpo em si não é tão importante quanto aquilo que
é feito dele268
, algumas colisões podem aparecer com outros direitos fundamentais, tais
como: o direito fundamental à vida (art. 5º, caput, CF), à incolumidade física (derivado
do aspecto negativo do direito à saúde – arts. 6º e 196, CF) e ao princípio da dignidade
da pessoa humana (art. 1º, III, CF) 269
.
268
SANTANELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São
Paulo: Paulus, 2003, p. 261. 269
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
106
Potencialmente violadoras de direitos fundamentais serão as obras artísticas em
que há suicídio, mutilações (a prática conhecida contemporaneamente como lifting ou
suspensão de corpos e escarificação270
), estupro etc.. Entendida a automutilação e o
suicídio como exercício negativo dos direitos à incolumidade física e à vida, nesse
mesmo sentido, o Código Penal, mediante adoção do princípio da alteridade271
, não
criminaliza as condutas cujo fundamento seja a autolesão, o que torna inconstitucional
uma restrição perpetrada pelo Estado a qualquer apresentação artística que exiba tais
atitudes, v.g, uma peça teatral em que representando um personagem cuja fé religiosa
comete os suplícios da carne, o ator verdadeiramente (para aumentar a dramaticidade
real) se chicoteia em cena aberta.
Seguindo o mesmo exemplo, se, ao invés de provocar autoflagelações durante a
dramaturgia o autor agisse agressivamente com relação a um terceiro? Se estuprasse um
ator/atriz com quem contracena? Se agredisse fisicamente um espectador da plateia (nas
técnicas de interação com os recipientes no processo criativo)? Em primeiro lugar,
algumas condutas deixam de ser penalmente sancionáveis quando o consentimento está
vinculado à ação, isto é, não se pode falar em estupro quando a mulher ou o homem
estão de acordo. Consequentemente, mesmo que os atores decidam por reproduzir o
sexo (a cena de estupro) com plena veracidade, violentamente, se os intérpretes
consentiram, afastado estará o tipo penal (as ações que fugirem da intensidade admitida
pelas partes poderão ser questionadas).
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 270
Esta técnica é realizada pela marcação do corpo com um material cortante, retirando uma camada da
pele, para quando houver a cicatrização a marca permaneça no corpo. Já foi utilizada para marcar
escravos e prisioneiros. 271
“Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas em que não é
simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral [...] À conduta puramente interna, ou puramente
individual, falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal.” BATISTA, Nilo. Introdução
Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 91.
107
Apesar disso, agressões dirigidas a um recipiente da obra artística, na sucessão
de improvisações com a participação do público ou com o próprio elenco da peça,
quando ensejam uma agressão física ou qualquer forma penalmente punida, mesmo se
efetuando em momento sensorial-estético, predispõe uma intervenção estatal justificada
ao direito de expressão artística.
Complexas serão as apreciações das obras artísticas que motivam ofensas à
dignidade da pessoa humana, como alguns extremistas representantes da body art272
.
Esse movimento, cujo ápice foi na década de 70, chegava a apresentar as simples
funções fisiológicas da respiração ou de excrementos humanos como obras de arte.
Algumas das performances eram perturbadoras como a de Vito Acconci, Seedbed,
quando o artista permanecia três dias por semana sob uma rampa da Sonnabend Gallery,
Nova Iorque, se masturbando enquanto os visitantes entravam no local, embora não
pudesse ser visto em seu ato, seus gemidos e seus sussurros eram amplificados273
.
Destacam-se como representantes do body art, o francês, Yves Klein, que
utilizava modelos nuas cobertas de tintas, movendo-se em telas grandes para formar
imagens com a impressão do próprio corpo, como pincéis vivos; e o italiano Piero
Manzoni que defecou em 90 latas, etiquetando-as com o título “Merda de Artista” e saiu
distribuindo-as em diversas galerias e coleções de arte.
O princípio da dignidade da pessoa humana está inscrito em nossa ordem-
constitucional entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, o que já sustenta
a seguinte apreciação: a dignidade da pessoa humana não é um direito fundamental, mas
272
A exemplo dos “Ativistas de Viena” e o trabalho do austríaco Rudolf Schwarzkogler. 273
SANTANELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São
Paulo: Paulus, 2003, p. 261.
108
faz parte dos direitos fundamentais274
, como uma orientação jurídico-objetiva,
vinculando os poderes públicos a sua observação.
Basicamente, existem duas concepções sobre como poderíamos determinar a
área de proteção do princípio do art. 1º, inc. III, da CF275
: a que considera a dignidade
da pessoa humana um valor, intrínseco a natureza dos homens; e, a segunda, que deixa
claro que é por intermédio de suas realizações que o indivíduo determina o que constitui
a sua dignidade.
Immanuel Kant é o filósofo moderno que elaborou a acepção valorativa da
dignidade humana. De acordo com o seu pensamento, correspondia a uma imoralidade
tratar os homens como meios, ou seja, coisificar os seres humanos, visto que os
indivíduos, pela única razão (qualidade) de serem homens, não possuem preço, mas sim
dignidade, logo, devem ser sempre fins276
, nunca deverão ser meios para o uso arbitrário
desta ou daquela vontade277
.
Quanto ao aspecto das realizações, será decisivo para delimitar a dignidade da
pessoa humana sua conduta autônoma, em virtude daquilo que elege na formação da
identidade. Conquanto, insuficiente essa teoria se mostra ao tomarmos pessoas
incapazes de agir e querer em direção da realização e da formação de uma identidade,
nesses casos, a teoria valorativa pondera positivamente pelo respeito desses indivíduos
em particular278
.
A teoria kantiana foi aplicada diversas vezes pelo Tribunal Constitucional
Federal alemão, servindo-se da fórmula-objeto que apontava uma intervenção estatal na
274
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 104. 275
Ibid., p. 105. 276
Nesse mesmo sentido: “Tratar a humanidade como um fim em si implica do dever de favorecer, tanto
quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de
outrem sejam por mim considerados também como meus.” COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação
Histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 23. 277
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67-
68. 278
PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 105.
109
dignidade da pessoa humana todas as vezes que, determinado tratamento põe em dúvida
a qualidade de sujeito do homem, o cidadão seria transformado em simples objeto do
Estado, tamanho o desprezo arbitrário deferido279
.
O ensaio sobre a fórmula-objeto deixa uma questão pendente, visto que, somente
quando o Estado age arbitrariamente estará provocando violações à dignidade da pessoa
humana? E se ele não agir voluntariamente? A omissão do Estado também poderá
propiciar uma agressão à dignidade humana? É evidente que a atitude omissiva do
Estado também é nociva à dignidade. O poder estatal tem o dever de se abster em
possíveis ações e omissões violadoras da dignidade da pessoa humana e, ainda, proteger
a mesma dignidade perante agressões provenientes do exercício de direito fundamental,
destacando-se a liberdade artística.
Apesar da dificuldade de circunscrevermos quais são os comportamentos que
podem ser intitulados como “desprezíveis” ou “utilizadores do homem como meio”, a
garantia da dignidade da pessoa humana, possui uma função praticamente intuitiva que
é a de limite tabu, quando toda a sociedade sem saber como e os porquês exatos,
concorda com o fato de existir certas maneiras de lidar com os indivíduos que são
consideradas insuportáveis.
E no que tange a sua própria dignidade? Um artista poderá renunciá-la, a fim de
produzir uma expressão artística tal, que seja perceptivelmente violadora à dignidade? A
renúncia individual da dignidade inevitavelmente não compromete a dignidade de toda
espécie humana? Terá o Estado um papel de proteger o indivíduo contra si mesmo? Para
responder essas questões, primeiro, precisamos nos posicionar com relação à renúncia
de direitos fundamentais.
279
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 106.
110
Falamos de renúncia a direitos fundamentais quando admitimos, legitimamente,
que o particular dispõe sobre a sua titularidade de direitos fundamentais ou, outrossim, a
permissibilidade que o indivíduo possui em admitir uma atuação estatal no âmbito de
proteção de seu direito fundamental280
. O entendimento da função clássica dos direitos
fundamentais nos habilita a presumir que, se o direito fundamental estiver associado ao
desenvolvimento pessoal do cidadão, sua renúncia é admissível281
; adversamente, como
princípio jurídico-objetivo, se o direito fundamental é imperioso no processo de
formação da vontade282
do Estado à presunção é pela inadmissibilidade da renúncia.
A dignidade da pessoa humana está configurada nesse último caso, obrigando,
irrestritamente, o Estado, seus dirigentes e todos os atores da cena política
governamental a respeitá-la283
, portanto, inaceitável sua renúncia, “incluindo o conteúdo
da dignidade da pessoa humana de outros direitos fundamentais”284
.
O valor da dignidade não pode ser encarado como uma vontade de realizar-se
libertariamente, mas “como um valor a ser preservado também no respeito de si
mesmo”285. Dessa construção extraímos a seguinte conclusão, caso o artista, em seu
livre exercício de criação, produza obra artística violadora de sua própria dignidade o
Estado poderá intervir justificadamente na atividade abusiva à dignidade da pessoa
humana.
A apresentação artística que acaba por transformar o corpo humano como um
simples objeto a favor da satisfação e do deleite estético, possivelmente será uma
expressão violadora do princípio-fundamento. Da relação sistêmica entre a dignidade da
280
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 71. 281
Ibid., p. 72. 282
Ibid., p. 72. 283
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 429. 284
PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 72. 285
MORAES, Maria Celina Bodin de. Dignidade humana e dano moral: duas faces de uma moeda.
In:___. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 57-128.
111
pessoa humana e os direitos da igualdade e da liberdade e, como cada sociedade possui
diferentes concepções e concretizações da dignidade da pessoa humana, as suas
violações serão consideradas a partir dos casos concretos286
.
No entanto, mesmo diante da objetivação do ser humano, é preciso que os outros
atributos que estamos reunindo nessa pesquisa sejam também estimados na justificação
de uma intervenção estatal que considere qualquer expressão artística agressora à
dignidade humana287
, tais como, o animus do artista-criador; a forma estética que é dada
a obra que, por seu turno, possui uma mensagem que é a sua razão de ser; e as múltiplas
interpretações que são extraídas do processo comunicativo arte. Ao passo que, mesmo
quando inequívoca a agressão da expressão artística à dignidade da pessoa humana, a
intervenção do executivo, judiciário ou legislativo se ocorrer de forma desproporcional,
será considerada um ataque doloso ao art. 5º, inc. IX da CF.
4.2.4 Obras artísticas e o discurso do ódio
O discurso do ódio (hate speech288
) representa a expressão de ideias,
posicionamentos, juízos de valores que incitam à discriminação sobre determinados
grupos sociais, instigando à violência e ao ódio contra as minorias, rejeitando a sua
286
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 104. 287
“Uma exposição itinerante intitulada Körperwelten causou bastante polêmica por onde passou.
Vislumbrou-se na exposição dos cadáveres sem pele uma violação da dignidade humana
independentemente da não identificação das respectivas pessoas mortas e até de sua prévia anuência. A
exposição como costuma acontecer junto a obras polêmicas dividiu os espíritos, tanto no quesito estético,
quanto no quesito jurídico-constitucional que aqui solitariamente interessa [...] Mas aqui, novamente, a
busca do núcleo da expressão e a rígida separação da roupagem estilística revelam o que basta para não se
poder verificar uma violação da dignidade humana. Como o título de outra exposição do cientista artista
revela, está nesse núcleo uma ode à Vergänglichkeit (passagem, precariedade) do corpo humano, i.e., à
condição humana por excelência, o que é totalmente compatível com o princípio constitucional da
dignidade humana. Que na roupagem estilística, o artista se valha de experimentos científicos e da
técnica, isso não retira o caráter de obra artística que, nesse caso intensamente, tem o condão de levar os
recipientes às mais diversas interpretações, com uma comunicação quase infindável de sentidos.”
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca Filho,
Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico e questões do
interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros, investidores e museus.
São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 288
Como o termo foi alcunhado e disseminado pela doutrina norte-americana.
112
qualidade de sujeitos de direitos em uma sociedade na qual tais pessoas devem estar
subordinadas a um grupo dominante289
.
Para que possamos entender com detalhes o conceito enunciado supra, algumas
considerações são imperiosas. Discriminação é uma decorrência do preconceito de
grupo290
, preconceito per se é um juízo negativo que nasce da ignorância, da falta de
informação, da ideia equivocada e distorcida291
, percebendo, por assim dizer, que
determinado grupo social é inferior, rival e, consequentemente, deve se submeter a
outro grupo – o incitador das diferenças –, por este possuir as qualidades que as
minorias são desprovidas.
Apesar do termo “minorias” reportar-se a uma ordem numérica, as
discriminações poderão ocorrer a grupos quantitativamente mais expressivos, como no
caso do Brasil, em que a população negra e parda é maior292
que a branca, contudo,
quanto a distribuição de renda, educação e participação nos centros de poder aquela é
significativamente reduzida. Não há que se negar, outrossim, o fenômeno mundial do
“sexismo”293
, que vitimiza as mulheres até mesmo nos Estados em que são
numericamente superiores aos homens, posto que as questões históricas e culturais as
alijaram do processo decisório.
Ao balizarmos o discurso do ódio, tais as expressões que se dirigem as minorias,
estamos afirmando que esse é um insulto que não se confunde com a difamação
individual, o desprezo se conduz a sujeitos que são individualmente participantes de
grupos de pessoas com certas características, crenças ou qualidades, estão na mesma
289
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 97-98. 290
Existem os preconceitos individuais e os preconceitos de grupo, que seguem a natureza dos
individuais, mas são aplicados de um grupo social contra outro. Nesse sentido: BOBBIO, Norberto.
Elogio à Serenidade e Outros Escritos Morais. São Paulo: Unesp, 2002, p. 105. 291
Ibid., p. 105. 292
Dados do Censo 2010 do IBGE. Disponível em
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/caracteristi
cas_da_populacao_tab_pdf.shtm>. Acesso em: 02. jul. 2013. 293
BOBBIO, op. cit., p. 115.
113
condição social, econômica, como, por exemplo, os índios, ciganos, judeus, nordestinos,
mulçumanos, negros, mulheres, homossexuais e muitos outros294
.
A perversidade que está infundida no discurso do ódio é a de desqualificar o
indivíduo – membro de certo grupo social – naquilo que justamente o harmoniza como
pertencente daquele grupo, como se para fugir dessa ofensa o sujeito tivesse que abdicar
de sua opção religiosa, de sua própria origem, de sua opção sexual, enfim de sua própria
identidade, prescrições que sabemos não ser desvencilháveis, diminuindo,
necessariamente, a autoestima dessas pessoas, já que suas opiniões não são
significativas e suas ações na sociedade civil não são eficazes295
.
Essas consequências foram intituladas na doutrina norte-americana como “efeito
silenciador”296
, quando certas manifestações expressivas intimidam outras pessoas de
maneira tão violenta que elas não conseguem falar nem serem ouvidas, o grupo atingido
não consegue vir a participar do debate, principalmente ao serem alvejadas pelas
chamadas fighting words, marcadas por exprimirem caracteres determinadores de perigo
claro e iminente297
, de ação concreta que venha a violar seus direitos fundamentais.
Obras artísticas que estejam a promover deliberadamente formas apologéticas ao
racismo, crime inafiançável e imprescritível, tal qual definido pelo inc. XLII, art. 5º, da
CF, ainda, os crimes que são cumprimento do mandamento legislativo-penal298
constante no inc. XLI, art. 5º, da CF, segundo o qual a “lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, deverão ser
294
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 98. 295
Nesse sentido: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um retrato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.18. 296
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 356. 297
Ibid., p. 316. 298
Concretização a esse dispositivo constitucional é o art. 20 da Lei n.º 7.716/89: “Art. 20. Praticar,
induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa”.
114
sancionadas, por estarem, a priori, restringidas pelos dispositivos constitucionais
aludidos.
Cediço, não obstante, que o produto legislativo-penal do cumprimento de
mandamento constitucional não se furta do controle de constitucionalidade tanto
abstrato quanto concreto, da mesma forma que o judiciário e executivo possuem o dever
de interpretar e aplicar o direito infraconstitucional em conformidade com o comando
axiológico supremo, isto é, consoante à liberdade de expressão artística299
.
Copiosas, igualmente, são as agressões que o discurso do ódio provoca, em
particular, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF) – sendo compreendida
em seu aspecto social –, pois contrárias à promoção “da participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos”300
. Conquanto, apesar de não partirmos para a defesa do
discurso do ódio, não podemos nos esquivar de que a sua proibição em caráter geral traz
mais malefícios a uma democracia pluralista do que a sua permissão condicionada às
minúcias do caso concreto.
Uma expressão artística que esteja eivada de linguagem específica que pode ser
considerada odiosa a determinado grupo social, a exemplo de uma banda que traz em
diversas composições estereótipos da mulher como símbolo sexual, ainda assim, são
palavras que existem no mundo das ideias e nesse mesmo âmbito poderão ser
devidamente refutadas. O nosso sistema constitucional preza pela existência pacífica
entre ideologias – as mais repulsivas – e suas opiniões contrárias. Uma pretensa vontade
em eliminar certo componente de expressão é desafiar o sentido comum da liberdade de
299
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca
Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico
e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,
investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 300
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 60.
115
expressão301
, deixa em evidência tendências autoritárias que possuímos, a contragosto,
em cada um de nós.
Uma consequência direta das liberdades expressivas é o favorecimento à
tolerância e o incentivo ao pluralismo. Ao compelirmos certa opinião ao silêncio, é
possível que ela fosse verdadeira, se negamos isso, estamos negando nossa
infalibilidade, e, mesmo que a expressão posta em silêncio fosse um erro, ela poderia
conter, e muito comumente contem, uma parte de verdade302
. É certo dizer que, não
seria na existência de opiniões conflitantes o melhor caminho da busca da verdade? Ou
melhor, não seria esse o caminho mais acertado para desqualificar o discurso do ódio?
303.
É como se ficássemos presos no seguinte paradoxo: proibimos o discurso do
ódio por ser ele intolerante, entretanto, assim o fazemos com uma atitude
vocacionalmente intolerante, o que só pode gerar mais intolerância. Consideramos a
tolerância uma virtude que deve ser cultivada, desenvolvida pelos homens e fomentada
pelo Estado (expressamos essa ideia no tópico 2.2.5.1), apontamos que a educação pela
arte tem o potencial de aflorar esse mérito nos seres humanos. O que já demonstra que
considerar uma obra artística, em princípio, como um agravo ou uma difamação a
terceiros ou grupos sociais é um contrassenso.
Na jurisprudência do STF encontramos posicionamento sobre o assunto no HC
n.º 82.424/RS304
de 2003, conhecido como o “Caso Ellwanger”. O paciente, Siegried
Ellwanger foi denunciado pelo crime de racismo após ter publicado, como autor, a obra
literária “Holocausto, judeu ou alemão? – Nos bastidores da mentira do século”. O
301
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 140. 302
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98. 303
MEYER-PFLUG, op. cit., p. 100. 304
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e Antissemitismo: um julgamento histórico
no STF – habeas corpus n. 82.424RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 9.
116
Tribunal por maioria dos votos, restando vencidos três ministros, indeferiu o HC, com
base em três argumentações: 1) os judeus são uma raça; 2) o livro, a obra literária305
, é
um instrumento hábil a prática do racismo; e 3) como limite à liberdade de expressão
está à preservação da dignidade da pessoa humana, que não protege a intolerância racial
e a incitação à violência.
Asseverar os judeus como raça, parece-nos o único acerto do julgamento. O
conceito de raça contemporaneamente não segue, como outrora, atribuições biológicas,
o significado de raça é um conjunto de crenças e convicções sobre determinados
indivíduos em determinado grupo racial em particular306
. Raça é um conceito social,
cultural e ideológico 307
. A percepção da diferença entre os homens, apenas por atributos
fenótipos não é suficiente, a disparidade que leva ao racismo é um fato social,
econômico e cultural.
Após o julgamento do HC, no Brasil, a perseguição de qualquer grupo étnico,
religioso, cultural, social ou de gênero é considerada racista. O novo conteúdo de raça
que o precedente fixou é baseado na inteligência pela qual ao discernimos, no caso
concreto, um grupo social sofredor de preconceitos segregacionistas, então, ele irá
integrar o conceito de raça.
Adiante, pode um livro funcionar como meio para a incitação do racismo? Antes
de responder a esse questionamento, fica claro que o temor que é conferido às
expressões odiosas não é o seu simples poder de convencimento dos ouvintes, mas,
rigorosamente, a possibilidade dessas expressões virem a atingir ilicitamente as
minorias ou, como dito, que estas sejam rechaçadas a participar do debate público –
efeito silenciador.
305
Apesar do STF não fazer menção à liberdade artística, a literatura é umas das expressões simbólicas
inequívocas da arte. 306
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 114. 307
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 2006, p. 215.
117
Por esse motivo, na doutrina norte-americana é necessário provar se as
expressões do ódio podem produzir ações eminentemente ilegais naqueles que as
recepcionam, é preciso demonstrar que em razão da expressão possa se resultar uma
ação concreta violenta e ilegal308
(clear and present danger). À evidência dessa índole
da manifestação, o impacto do discurso do ódio dependerá essencialmente do meio de
comunicação utilizado.
Alguns meios de comunicação devido ao seu alcance de irradiação,
primordialmente pelo número de indivíduos que atinge, serão difusores mais eficazes
que outros, são eles os veículos de massa, tais quais, televisão, internet, rádio, outdoors,
panfletagem etc.. A peculiaridade desses meios compreende uma disseminação do
conteúdo que se quer propagar em alta velocidade e, especialmente, sem que o
destinatário possa se manifestar no sentido de não querer ter acesso àquele conteúdo309
.
Os ministros que foram votos vencidos na decisão do HC310
defenderam que as
publicações de livros, mesmo os de caráter antissemitas ou revisionistas, não
caracterizam por si só incitação ao crime de racismo. Expuseram que a ideologia
contida no livro é amplamente protegida pela ordem constitucional e, na mesma Lei
Fundamental, estão prescritos os dispositivos a indenizações por danos materiais ou
morais às violações à intimidade, à honra, à imagem e à vida privada311
.
Todavia, os outros ministros pontuaram que, no caso em tela, a ilicitude não
estava na criação/edição do livro, posto que esta conduta estaria protegida pela
liberdade de expressão, embora a sua divulgação (área de efeito) visou a atingir
diretamente os judeus. A liberdade artística, conforme visto (tópico 3.2.3.1.3), é
308
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 141. 309
Ibid., p. 208. 310
Min. Rel. Moreira Alves, Min. Carlos Ayres Britto e Min. Marco Aurélio. 311
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e Antissemitismo: um julgamento histórico
no STF – habeas corpus n. 82.424RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 195.
118
formada por duas facetas que conformam uma unidade indissolúvel, já que tanto na
produção como na divulgação o fim da comunicação artística é idêntico, precária e
dissonante seria o entendimento diverso que esfarela o direito fundamental de
resistência ao titular da expressão às respectivas áreas.
A publicação de livros (área de efeito/divulgação) é um ato que se encontra no
plano da reflexão, apresenta um pensamento, não sendo capaz de levar a efeito
agressões e práticas racistas, além do mais, não reúne o perfil dos meios de
comunicação em massa expostos acima, pois, não é transmitido independentemente da
vontade do recipiente, para se ter acesso a uma obra literária é necessário buscá-la,
presente se faz o ato voluntário do agente312
.
A obra literária e a maioria dos meios de comunicação artística313
proliferam-se
a partir do momento que uma comunidade possui um mínimo de tendência para aceitar
aquelas ideias, o pensamento é colocado em ampla liberdade para que o público tenha
tanto a escolha de ler o material como a possibilidade de tomada de uma posição que lhe
cabe ao término da leitura (pelos múltiplos processos interpretativos).
Se, no caso em comento, pudéssemos afirmar que a opinião do autor Ellwanger
não é apenas infundada, mas um equívoco completo, devendo ser afastada em razão da
afirmada incitação ao racismo que representa, a sociedade assimilaria essa proibição de
forma preconceituosa, “com pouca compreensão e com pouco sentimento das suas bases
racionais”314
, à medida que, mais profícuo para o declínio do discurso odioso seria a
desaprovação da ideia a partir de uma vigorosa e ardente contestação.
O livro em si não tem a aptidão de transformar toda uma sociedade, é legítimo
atestar que obras literárias mudaram a caminhada das sociedades em determinados
312
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 208. 313
Entre as exceções, destacam-se as urban arts, formas artísticas já esboçadas. 314
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98.
119
momentos históricos, por conterem ideologias que se julgavam apresentar soluções aos
enigmas do conhecimento, mas poucas delas granjearam suficiente proeminência para
perdurar à dura concorrência da persuasão racional315
.
O último passo da decisão da Corte fora a demarcação das restrições
constitucionais autênticas à liberdade de expressão, ocasião em que dois316
ministros
aplicaram o princípio da proporcionalidade para averiguar se a intervenção estatal
(decisão condenatória de reclusão do paciente) entre meios e propósitos é justificável,
tendo como parâmetro a área de proteção do direito fundamental.
As circunstâncias de exposição de ideias a respeito do holocausto, ao contrário
do que acontece em muitos países europeus como a Alemanha e a Espanha, não foram
criminalizadas em nosso país, a transmissão a terceiros de uma nova versão sobre o fato
histórico não significa que os leitores irão concordar e, ainda que concordem, não
denota que passarão a ser hostis com os judeus, passando a discriminá-los.
Ante a passagem do tempo, os envolvidos hoje são outras pessoas e, corolário do
conceito de raça hodierno o predicado histórico-cultural, sabemos que o Brasil muito
raramente317
tenha sido celeiro para práticas antissemitas, dessa maneira, o
comportamento do sujeito na criação de uma nova versão sobre fatos irrompidos à
Segunda Guerra Mundial encontra-se na área de proteção da liberdade de expressão.
Na análise do subprincípio da proporcionalidade chegamos à adequação, é dizer,
de acordo com o fim almejado pelo Estado, no combate a discriminação dos judeus
levada possivelmente a efeito caso a obra literária entrasse em circulação, a situação que
o Estado cria (condenação do autor) na intervenção é propícia, ou melhor, é eficaz para
315
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 2006, p. 189. 316
Min. Gilmar Mendes e Min. Marco Aurélio. 317
Não podemos esquecer da deportação de Olga Benário Prestes, judia, em 1936 para Alemanha, por
ordem do presidente Getúlio Vargas, após a Intentona Comunista (1935) encabeçada por ela e seu
cônjuge Luís Carlos Prestes. Olga fora exterminada em campo de concentração em 1942. Disponível em
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Olga_Ben%C3%A1rio_Prestes>. Acesso em: 20 jun. 2013.
120
promover esse fim? De acordo com nosso julgamento não318
. O meio não é favorável à
finalidade almejada porque ao invés de ser fomentador da tolerância lhe macula, ao
reverso de proporcionar um debate público, livre e plural que amadureça o convívio
pacífico inter-racial, sabota o diálogo.
O meio, utilizado pela autoridade judiciária, é ineficaz para o bem, pois estorva
o terreno para qualquer convicção efetiva e mais profunda319
, que são as que brotam da
razão e da experiência pessoal de cada um que se interessasse pela leitura da obra,
perde-se o efeito vital da liberdade de expressão como formador da autonomia dos
indivíduos pela instauração de um novo dogma: o de que as teses revisionistas são
banidas.
Em conclusão, o discurso do ódio como um fenômeno sociológico possui esse
espectro depreciador dos grupos sociais, entretanto, nos casos em que ele seja
consubstanciado no medium artístico é preciso esgotar todas as interpretações plausíveis
que não o designe aos tipos-penais, tanto porque a obra artística não é meio eficaz para
incitações violentas, como pela análise do caso em concreto que poderá evidenciar que
ao invés da proibição, as ideias repulsivas podem ser combatidas, até veementemente,
por uma política liberal permissiva de mais debates e, com isso, imprimindo mais
eficácia social às liberdades de expressão.
318
Essa análise simplificada do critério da proporcionalidade está sendo aplicada para o objeto constante
enfrentado pelo STF, no caso o writ, para que não haja prejuízo ao tema central da exposição, no entanto,
uma detalhada e profunda análise do dispositivo legislativo que configura o tipo penal responsável a
priori, pela decisão condenatória no tribunal a quo, consulte: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado
Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos
fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 211-238. 319
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98.
121
5 POLÍTICA PÚBLICA CONSTITUCIONAL DA ARTE
A despeito do título desse capítulo se reportar ao vocábulo “arte”, iremos
investigar o incentivo constitucional à arte como um “bem cultural”, partindo dos
dispositivos constitucionais que proclamam a arte como especialidade320
da cultura. O
que na dogmática jurídica descreve o direito fundamental de expressão artística em sua
dimensão jurídico-objetiva321
, constituidora das bases da ordem jurídica da coletividade,
formando uma relação de complemento e fortalecimento recíproco com a dimensão
jurídico-subjetiva322
.
Na dimensão jurídico-objetiva a percepção dos direitos fundamentais independe
de seus titulares323
, pois o constituinte cria tarefas que precisam ser concretizadas pela
Administração Pública e pelo legislador no intuito de proteger e fomentar o direito, são
elementos da ordem objetiva, determinante de status, limitadora de status e
asseguradora de status324
. Há, também, o aspecto da interpretação por irradiação
axiológica dos direitos fundamentais no exercício das atividades típicas do judiciário e
dos agentes da Administração.
Ao significado do direito à expressão artística como direito subjetivo é garantido
conjuntamente seu significado jurídico-objetivo, contendo diretrizes e critérios para que
os órgãos de formação da vontade política atuem na produção de alguns pressupostos
que devem ser atendidos, no escopo de configurar a liberdade artística na sua
320
WILLIAMS, Raymound. Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992, p. 10. 321
“Ao significado dos direitos fundamentais como direitos de defesa subjetivos do particular
corresponde seu significado jurídico-objetivo como determinações de competências para os poderes
estatais. Sem dúvida é sua função proteger os direitos fundamentais, podem eles ser obrigados a
concretizar direitos fundamentais, e podem eles ser autorizados a limitar direitos fundamentais (o
Estado).” HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.
Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 239. 322
Ibid., p. 239. 323
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 111-112. 324
HESSE, op. cit., p. 239.
122
completude em prol do particular325
. Por outro lado, essa planificação/pauta, como
dever estatal, fornece aos titulares de direitos fundamentais atributos para o controle da
mesma ação estatal (como pelo uso do parâmetro fundamental da igualdade, visto a
seguir).
A partir de que substrato se forma essa pauta? O que são políticas públicas? Os
direitos fundamentais (de status negativus e de status positivus) vinculam os “atos de
governo”326
, que são praticados pelo Executivo nas funções políticas e governamentais,
entendemos esses atos como políticas públicas, estas, são as ações voltadas à
concretização da Ordem Social327
, a partir de leis (lato sensu) desinentes dos
imperativos constitucionais.
Toda política pública será formada por uma questão valorativa328
, informando a
ação governamental de racionalidade, determinando os vetores que lhe animam,
enquanto a outra perspectiva está voltada a eficácia329
da ação governamental. A
questão valorativa não está à disposição da discricionariedade330
da Administração
Pública, por um motivo simples: a vinculação valorativa passa, necessariamente, pelos
direitos fundamentais, pela vontade do constituinte original.
A cultura é um valor da Ordem Social, fundamentador racional do quadro de
políticas públicas que devem ser concretizadas pelo Estado. Quando o constituinte lhe
instituiu prioridade – por intermédio do Título VIII, Capítulo III, Seção II, art. 215 da
325
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio
Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 240. 326
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2004, p. 444. 327
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A Responsabilidade do Administrador
e do Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 80. 328
PANSIERI, Flávio. Eficácia e Vinculação dos Direitos Sociais: reflexões a partir do direito à
moradia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 144. 329
A eficácia das políticas públicas representa um tema de grande complexidade, pois reúne conceitos
analíticos sobre mínimo existencial, reserva do possível, proibição do retrocesso, padrões de suficiência e
insuficiência etc., para um aprofundamento do tema: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos
Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 362 et seq. 330
PANSIERI, op. cit., p. 144.
123
CF –, o valor cultural precisa aparecer nos fins da ação governamental, em sua meta
pela coletividade. O valor cultural é formado por diversos bens, entre eles, destacamos o
bem cultural arte que tem amparo (conforme mencionamos) em direito fundamental
(art. 5º, IX, CF).
Por força do §1º do art. 5º, CF, que ordena aplicação imediata de todas as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, ficam vinculados à
concretização de políticas públicas os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. No
âmbito de suas funções típicas. Cada Poder obriga-se a cumprir os mandamentos
constitucionais que juntos dão forma às políticas públicas.
Ao judiciário, especialmente, além do poder-dever de não aplicar nenhum ato
normativo que esteja em desconformidade com os direitos fundamentais; e, de
interpretar às normas em consonância ao mesmo arcabouço axiológico (condizente com
o explorado no tópico 3.2.5.2), no tocante às políticas públicas, sua atividade vai além
da simples submissão destas aos direitos fundamentais, mas: 1) fazer o controle de
constitucionalidade de todos os atos provindos dos órgãos estatais – de modo especial,
os atos ofensivos aos direitos fundamentais; e 2) em sua atividade jurisprudencial
(Jurisdição Constitucional) definir o conteúdo e o sentido correto dos direitos
fundamentais331
.
5.1 CULTURA, DEMOCRACIA E PLURALISMO
A cultura é um elemento da política332
. E cultura será toda produção ou
manifestação voluntária, individual ou coletiva, que vise com sua comunicação à
ampliação do conhecimento racional ou sensível. Os bens de cultura interferem
331
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 360. 332
FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 10.
124
necessariamente na realidade dos homens que vivem em sociedade, que partilham desse
espaço comum.
Por partir de um ato da vontade, a produção cultural é sempre um momento de
liberdade, daí vem o reconhecimento histórico de que nenhum regime autoritário se
harmonizou com a cultura, posto que realizar cultura é, em si, um ato de libertação,
contrário às ditaduras que repousam seus temores na transformação social333
. Segundo a
relação política antagônica entre autoritarismo e regimes democráticos, conclui-se que,
nas democracias334
a cultura e seus inúmeros produtos (como o artístico) devem ser
incentivados, mais ainda: consistem em interesse político.
A política cultural é baseada em um tênue equilíbrio entre o papel do Poder
Público em favorecer a livre procura das manifestações culturais, criar condições de
acesso popular à cultura, prover meios para a difusão cultural e, ao mesmo tempo, não
impor uma cultura oficial335
. Democratização da cultura é o processo que faz convergir
o alargamento do público e a extensão do fenômeno de comunicação artística336
.
A opção de nosso constituinte por uma sociedade pluralista revela-se,
naturalmente, no pluralismo cultural. À primeira vista, pode parecer que os dois termos
possuem o mesmo significado, pois a própria noção de cultura é avessa à unificação,
mas a formação do binômio sociológico tem a função de enfatizar o significado de
cultura (como política pública) para uma democracia pluralista, que é aquela que sabe
administrar divisões irredutíveis e conciliar a sociabilidade com o particularismo337
.
Destarte, aspecto mais importante na prática da democratização da cultura é que
ela não parte do isolamento das culturas, mas exatamente do seu relacionamento. Mário
333
FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 8. 334
BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 118. 335
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 209 336
Ibid., p. 209. 337
CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:
Cortez, 2006, p. 76.
125
de Andrade338
valorizou um conceito que é entendido como a “cultura dos outros”, isto
é, minha identidade cultural não se anula na diferença, mas se fortalece, pois as coisas
não são estanques, acabadas, tudo está em evolução e em elaboração.
O pluralismo esclarece que o paradigma constitucional não se localiza na ideia
de uma unidade moral ou de valores entre os homens, mas na heterogeneidade cultural
que garante as condições para uma convivência pacífica, para tanto, exige-se
convenções legais sobre o que não é lícito e o que é necessário se fazer para proteger os
direitos de liberdade de todos339
.
Há quem diga – e com razão – que a democratização da cultura será uma
consequência lógica e natural da democratização social e econômica, a verdadeira
liberação dos criadores culturais é garantida desde que acompanhada por essa
concretização nas áreas acima advertidas340
, no entanto, o que vislumbramos é a política
cultural, juntamente com a política social, sendo empregadas pelo Estado
contemporâneo para garantir sua legitimação, isto é, para oferecer-se como um Estado
que vela por todos.
Os desafios que serão enfrentados na política pública da cultura precisam estar
em observância dos seguintes aspectos: não tolhimento da liberdade de criação,
expressão e acesso à cultura, por qualquer forma de constrangimento ou de restrição
oficial; contrariamente, criar condições para a efetivação dessa liberdade em um clima
de igualdade; e, por fim, favorecer o acesso à cultura e o gozo dos bens culturais à
massa da população excluída341
.
338
FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 71. 339
FERRAJOLI, Luigi. Universalismo de Los Derechos Fundamentales y Multiculturalismo. In:
INSTITUTO DE INVESTIGACIONES JURÍDICAS DE LA UNAM, 2007, Roma. Anais. Roma:
Universidad de Roma, 2007, p. 63. 340
FEIJÓ, op. cit., p. 59. 341
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 209.
126
As intervenções dos poderes estatais na cultura, obrigados por uma competência
constitucional (dimensão jurídico-objetiva), justificam-se por duas razões: seu valor
simbólico que representa uma identidade coletiva e sua dimensão interativa que se
manifesta no seu poder de transformação social. Para tanto, dividiremos a política
pública cultural aplicada ao bem cultural “arte” em três áreas: a. Uma política de
proteção artística; b. Uma política de formação artística; e c. Uma política de promoção
artística342
.
5.1.1 Uma política de proteção artística
O enfoque da política de proteção engloba todos os mandamentos
constitucionais que obrigam o Estado a legislar ou a funcionalizar, dentro de sua
perspectiva administrativa, estruturas, procedimentos e sistemas que estejam afinados
entre si para preservar toda produção artística existente (patrimônio cultural) e aquelas
que virão a ser produzidas.
O art. 23 da CF traz a repartição das matérias de competência comum a todos os
entes federativos, distribuindo as atividades administrativas que poderão ser
preenchidas sem nenhum tipo de preponderância entre a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios. A atuação dos entes ocorre paralelamente em consonância com
o cooperativismo estatal, de forma cumulativa.
À Administração pública, em todas as suas esferas de poder, nos incs. III, IV e V
do referido artigo, é atribuído que atuem, em igualdade, para proteger “os documentos,
os bens e as obras de valor artístico”, “impedir a evasão, a destruição e a
descaracterização de obras de arte e outros bens de valor artístico” e “proporcionar os
meios de acesso à cultura”.
342
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 210.
127
A proteção de documentos e outros bens de valor artístico são relativos aos
produtos de expressão da arte em todas as épocas, geralmente são resguardados em
bibliotecas, arquivos, museus e pinacotecas para que os particulares possam estudá-los,
conhecê-los e pesquisá-los. O impedimento da evasão, da destruição e da
descaracterização das obras de arte e outros bens, referem-se, respectivamente, a
repressão do empobrecimento da produção artístico-cultural que evade do nosso País,
causando grave violação à identidade do nosso povo; o decesso final das obras; e a
modificação ou degeneração dos traços que são originais das obras artísticas.
A atividade legislativa é prevista na ocasião de competência concorrente no art.
24 da CF, nessa oportunidade os atos normativos são editados pelos entes federais
respeitando um caráter suplementar, adota-se a predominância da União (art. 24, §2º)
para legislar sobre mesma matéria que os Estados e Distrito Federal (art. 24, §1º),
entretanto, estes, irão legiferar com perfil pormenorizado e detalhado.
A concorrência faz parte do modelo vertical de repartição de competências, que
realiza um condomínio legislativo343
, os incs. VII, VIII e IX ordenam que normas gerais
e normas que se afeiçoem às exigências estaduais deverão ser produzidas no intuito de
proteger “o patrimônio artístico, responsabilizar por danos os bens e direitos de valor
artístico”. Ainda, no art. 30, no modelo de competência autônoma, é instituído ao
Município, também em caráter suplementar à União e ao Estado (art. 24, inc. II),
“promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local” (art. 30, inc. IX).
O conceito de patrimônio cultural é oferecido pela sistemática constitucional do
art. 216, entendido pelos bens de natureza material e imaterial344
, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
343
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366. 344
O patrimônio imaterial é compreendido como conjunto das práticas, das representações, das
expressões, dos conhecimentos e das técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares
culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos
reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
128
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem
as expressões artísticas (inc. III)345
. A organização do patrimônio artístico está a cargo
do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan)346
.
O §1º do art. 216 determina que a proteção desse patrimônio cultural brasileiro é
uma tarefa que o Poder Público deve executar em colaboração com toda a comunidade,
mediante um regime de assistência mútua, descentralizado e participativo, segundo o
art. 216-A, caput, que estatui o Sistema Nacional de Cultura347
.
Incumbe-se o legislador ordinário em atuar na edição de normas que
concretizem (ordem legislativa do §4°, art. 216, da CF) a sustentação do patrimônio
cultural, exemplos são a Lei n.º 9.605/98, que na seção IV prescreve os crimes contra o
patrimônio cultural do art. 62 ao 65, apenando com reclusão, detenção e multa, condutas
que destruam, inutilizem ou deteriorem, alterem o aspecto ou estrutura do bem de valor
artístico, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida.
Outro mecanismo de proteção é constante na Lei n.º 10.257/01, o chamado Estatuto da
Cidade, registrando que a política urbana tem como objetivo (art. 2º) proteger, preservar
e recuperar o patrimônio cultural e artístico (inc. XII).
Outros marcos legais infraconstitucionais são: o Decreto-lei n.º 25 de 30 de
novembro de 1937, ainda vigente, organizando todo funcionamento do tombamento,
que é a forma mais utilizada de proteção ao patrimônio cultural brasileiro; o Decreto-lei
n.º 3.365 de 21 de junho de 1941, também vigorante, que dispõe sobre a desapropriação
para utilidade púbica, constante no rol do art. 5º entre os casos de utilidade pública, a
preservação e a conservação de monumentos, arquivos, documentos e outros bens
345
A CF estabeleceu o mecanismo da ação popular, no art. 5º, inc. LXXII, como garantia individual a
todos os cidadãos no desiderato de impedir ato lesivo ao patrimônio cultural. 346
Criado pela Lei n.º 378/37, organizado, posteriormente, pelo Decreto n.º 25/1937. 347
Artigo incluído pela Emenda Constitucional n.º 71 de 2012.
129
móveis de valor artístico (alíneas ‘k’, ‘l’ e ‘o’); e a Lei 11.904/09 que institui o Estatuto
do Museu348
.
No art. 215, que inicia a discussão da cultura na ordem constitucional, o §1º dita
que as manifestações das “culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e dos outros
grupos participantes do processo civilizatório nacional” serão protegidas. A disposição
deôntica procura reforçar que os bens culturais que sejam frutos desses grupos
especiais, possuem arrimo constitucional, mas, por que o constituinte teve a necessidade
de exacerbar as expressões, os bens e os valores desses grupos?
A resposta não poderia ser outra senão a que admite que o legislador inaugural
reconheceu que esses grupos, em especial, são colocados à margem no processo de
produção cultural, por, ao mesmo tempo, certificar que existe uma cultura de elite. Essa
cultura elitista se opõe a todas as outras culturas de minorias, por ela definir e ser
definida pelo campo social-econômico, isto é, se a elite é representante da hegemonia
econômica, no plano cultural também ratificará sua posição hegemônica349
.
Portanto, a cultura do povo350
é escamoteada pela elite, que posiciona a sua
cultura como superior à cultura produzida pelo povo. Para prescindir a cultura feita pelo
povo (indígenas, afro-brasileiros e outros) a elite se utiliza da cultura de massa que
aliena e que permite que a cultura elitista domine a cultura do povo. Por via desses
meios de comunicação de massa os homens – e as minorias – vão sendo domesticados
em um processo de massificação e generalização351
.
348
Esses marcos legais não foram alvo de nenhum análise constitucional pelo Supremo Tribunal Federal
até o fechamento dessa pesquisa. 349
CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:
Cortez, 2006, p. 49. 350
Apesar de o constituinte ter escolhido a nomenclatura “cultura popular” entendemos que ele quis
materialmente, segundo o conceito de Marilena Chauí dizer “cultura do povo”, a grande diferença,
segundo Chauí, é que quando se diz cultura popular, se quer dizer que tal cultura está no povo, mas não
foi necessariamente produzida pelo povo; e, quando se diz cultura do povo, se quer dizer que é do povo e
também foi produzida por ele. Ibid., p. 49. 351
FREIRE, Paulo. Projetos de Educação de Adultos: centros de cultura. Centro de Referência Paulo
Freire, 1990. Disponível em
130
A cultura de massa desespiritualiza o homem, tornando-o acrítico e ingênuo,
quando a ordem jurídico-constitucional diz que a cultura dessas minorias também são
protegidas, estimula a pluralidade dos meios de produção artística e cultural, tenta
diminuir o abismo existente entre a cultura dominante e a cultura do povo (que vem se
anulando pelas formas de comportamento estandardizados). Veremos no tópico seguinte
a importância das ações afirmativas como um instrumento que vem impedir o
alastramento da cultura de massa.
5.1.2 Uma política de formação artística
A formação artística é o viés das políticas públicas culturais que se dedica a
transformação pessoal de um público espectador (e dos artistas também) que não pode
ser entendido como “passivo”, mas envolvido no fazer artístico. Essa alteração nada
mais é do que a educação pela arte ou cultura que contribui decisivamente na instrução
consciente de um homem crítico352
. Essas políticas dizem respeito aos meios de acesso
aos bens culturais.
O art. 215, da CF, garante a todos o acesso às “fontes de cultura nacional”. O
§3º do mencionado artigo, estabelece que a lei do Plano Nacional de Cultura (Lei n.º
12.343/10) deve conduzir a “democratização do acesso aos bens culturais” (inc. IV, §3º,
art. 215); e, no art. 216-A, §1º, sobre o Sistema Nacional de Cultura, inc. II, que o
acesso aos bens e serviços culturais devem ser universalizados.
Como a própria educação, bem jurídico-constitucional (art. 205, CF), por força
dos mandamentos da Lei Fundamental ordena que sua prestação seja um dever do
Estado e da família, o art. 227 da CF introduz, por intermédio da concepção de dever
<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/25/FPF_OPF_01_0014.pdf>. Acesso
em: 22 de jun. 2013. 352
FREIRE, Paulo. Projetos de Educação de Adultos: centros de cultura. Centro de Referência Paulo
Freire, 1990. Disponível em
<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/25/FPF_OPF_01_0014.pdf>. Acesso
em: 22 de jun. 2013.
131
fundamental autônomo de natureza difusa353
, obrigações ao Estado, à sociedade e à
família na tutela das crianças e dos adolescentes, assegurando com absoluta prioridade o
direito que elas têm à cultura (entre outros bens jurídicos).
Enquanto, o art. 221, da CF, comanda aos produtores de emissoras de rádio e de
televisão (públicas e privadas) que deem preferência a fins artísticos e culturais na
composição de suas programações, promovendo a cultura e as artes nacionais e
regionais, essa norma é entendida como limite, prevista por diversas leis, como a Lei n.º
9.612/98 (radiodifusão comunitária) e a Lei 12.485/11 (audiovisual de acesso
condicionado).
Essas leis ratificam a indispensabilidade da educação pela arte, uma educação
que advirta para o seguinte perigo: a de que os meios modernos de comunicação mais
contribuem para a massificação do homem (provocando sua desumanização) do que
para sua evolução consciente.
O desenvolvimento das formas que promovem o acesso à cultura e aos seus bens
seguem as qualificações de democratizantes e universalizantes. Na democracia cultural,
pelo princípio da igualdade, todos precisam ter acesso ao gozo da cultura, é defeso a
política pública cultural perpetuar populações excluídas do ingresso artístico e, nesse
ponto nevrálgico, mais uma vez, ocorre uma imprecisão na direção de considerar cultura
de massa como acesso da massa do povo às fontes culturais354
.
A cultura de massa é um fenômeno que impõe uma mercantilização do
homem355
, que em oposição da convergência humana – característica das expressões
culturais – atomiza-o, colocando-lhe em uma posição individual, sempre desagregado
353
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 63-64. 354
BOSI, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular, Leituras de Operários. 10. ed. Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 53. 355
BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009, p. 403.
132
da totalidade, como se o homem não tivesse o que aprender com o outro, o que saber
sobre a natureza humana e sua complexidade existencial.
Essa ação de antidiálogo cultural356
possui um sustentáculo essencial “os
produtos culturais de massa” impostos, de cima para baixo, dos produtores para os
consumidores, infligindo uma visão de mundo unilateral por meio de uma indústria de
massa. Esse processo que segue o interesse de um dominador é inversamente
proporcional à promoção da igualdade entre os homens, maculando também a expansão
de sua criatividade e originalidade357
.
Como há ligação clara entre a massificação da cultural, o sistema capitalista e o
fenômeno da globalização, a maioria das Cartas Constitucionais do mundo ocidental
trazem normas que elegem ações culturais afirmativas, com o objetivo de tentar
converter a comunicação cultural em um diálogo, tão imprescindível à democratização e
a formação do homem358
, que tem sido alvo de uma produção artística cada vez mais
reducionista por se inspirar em um denominador médio, de nível e tipo de vida
médios359
.
A solução para mudar esse prognóstico de depreciação com a cultura do povo
passa, forçosamente, pela mencionada ação afirmativa. As ações afirmativas são
políticas de inclusão concebidas por entidades públicas e/ou privadas com vistas a
concretizar um objetivo constitucional360
, seu mecanismo se desenvolve a partir de uma
prescrição de combate a discriminação e efetivação da igualdade de oportunidades.
356
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 175. 357
CALABRE, Lia. Política Cultural no Brasil: um histórico. In: CALABRE, Lia (org.) Políticas
Culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005, p.9-21. 358
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores
LTDA., 2001, p. 71. 359
OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.
São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 57. 360
GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa (affirmative action) no Direito Norte-americano. São
Paulo: RT, 2001, p. 92.
133
Toda ação afirmativa compele uma transformação cultural, pedagógica e
psicológica361
, enraizando a diversidade e a representatividade de grupos minoritários,
por isso, verdadeira ferramenta de auxilio para atenuar, ao menos, a degeneração dos
efeitos da cultura de massa. Ao sustentarmos políticas públicas focadas, estamos
admitindo que as políticas públicas universalistas não vêm logrando o êxito de reduzir
desigualdades e permitir o maior acesso possível aos bens culturais362
. E esse aceso não
se restringe apenas ao binômio inclusão/exclusão, mas a riqueza decorrente da
diversidade363
que ela provoca.
As medidas positivas não possuem formas predeterminadas, podendo ser
realizadas de diversas maneiras, portanto, por representarem decisões tipicamente
políticas, ao judiciário será permitida uma análise reduzida sobre os critérios eleitos
para dar forma às ações afirmativas.
5.1.3 Uma política de promoção artística
A política de incentivo artístico surge do reconhecimento de um projeto pós-
moderno que aceita tanto o discurso pluralista como as diversas manifestações culturais
existentes, simultaneamente, no interior da mesma sociedade. O Estado, nessa
reavaliação da importância ética do estar-em-comunidade364
, valoriza e apoia a cultura
sob o aspecto da igualdade, por intermédio de uma política pública que entende que
somente pelas leis do mercado a demanda de produções artísticas não é contemplada
suficientemente365
.
361
BAPTISTA, Lia Raquel Ventura. Ações afirmativas: ensino superior aos povo indígenas. In: NETO,
Antonio José de Mattos; NETO, Homero Lamarão; SANTANA, Raimundo Rodrigues (Orgs.). Direitos
Humanos e Democracia Inclusiva. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 322. 362
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 278. 363
Ibid., p. 279. 364
BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009, p. 437. 365
Cf. posição diversa, consoante ao neoliberalismo e ao Estado mínimo em: COWEN, Tyler. In Praise
of Commercial Culture. Harvad: University Press, 2000, p. 36-40.
134
As inúmeras expressões artísticas não são absorvidas pelo mercado como deseja
nos fazer crer o neoliberalismo, as empresas quando investem em projetos culturais
agem de acordo com uma estratégia empresarial, cuja regra se resume a produção do
lucro. Por tudo que já construímos filosoficamente sobre a arte, mostra-se integralmente
equivocada qualquer arte que não seja produzida tendo ela mesma como fim, do
contrário, estamos escolhendo um caminho que sufoca a estética e a inovação da arte366
.
A necessidade de cultura compeliu uma interferência estatal na regulamentação
das relações de cultura, na fundação de oportunidades culturais, quer como prestadora
de serviços culturais, quer como produtora das artes, com a construção dos espaços
culturais367
. Alguns teóricos advogam pela maior corrupção da arte desenvolvida
politicamente pelo Estado, do que pela facilitação em concreto que ela representa, por
observarem que governos, ainda que democráticos, tendem a manter o status quo, não
sendo verdadeiramente impulsionadores da construção e da difusão de um “novo”.
Embora a atuação do Estado tenha sempre uma correlação política, de orientação
político-partidária368
, a gestão da política cultural de característica invasiva é
estabelecida pelo uso de modelos de controle, realizado tanto pela sociedade civil, como
pelos órgãos oficiais de fiscalização, já as desigualdades provindas pelo livre mercado
não são suscetíveis de controle, ou melhor, quando o mercado sofre ingerências estatais,
as intervenções se dirigem a estimular os setores não financiados artisticamente.
O Estado deverá alternar três papéis para atingir os objetivos específicos da
política cultural que almeja alcançar, cumulativamente: o facilitador, o mecenas e o
366
OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.
São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 59. 367
Teatros públicos, a oferta de ensino oficial das artes, como os conservatórios musicais, as escolas de
balé, faculdades de comunicação e arte, manutenção de museus, disciplina da proteção do patrimônio
cultural. 368
Sem mencionar as ações de corrupção e de desvio de verbas na práxis da política brasileira.
135
arquiteto369
. A atribuição do facilitador é o que permite aos governos, estaduais e
municipais, criarem leis de incentivos fiscais, pela política fiscal de benefícios no
recolhimento de impostos; a função do mecenas, a princípio, cria fundos de cultura que
devem ser utilizados nas produções artísticas (criação/divulgação); enquanto isso, o
arquiteto possui uma missão de apoio gerencial, controla diretamente as instituições
culturais.
Como os papéis de mecenas e arquitetos não se preocupam com o produto final
que estão incentivando370
, isso porque, diferentemente da função do facilitador que
envolve a participação de pessoas físicas ou jurídicas que estampam suas marcas nas
produções culturais, podendo ditar elementos da comunicação estética da qual suas
marcas estarão associadas, as criações artísticas que são viabilizadas somente pela
atuação do Estado tendem a ser mais diversificadas e originais, ensejam maior
resistência à ideologia do mercado de cultura de massa.
Os dispositivos constitucionais que falam sobre a promoção artística, são muitos,
diversas também são as ordens de fazer direcionadas ao legislador ordinário, o caput do
art. 215, da CF, condiciona o pleno exercício dos direitos culturais a garantia estatal de
apoio, incentivo, valorização e difusão das manifestações culturais. No art. 216, §3º, da
CF, encontramos a ordem de fazer qualificada em meios e propósitos, decretando que
“lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais”.
Entre as ordens de fazer podemos citar a Lei de Audiovisual n.º 8.685/93 e seu
Decreto regulamentar n.º 6.304 de 2007 e, mais famosa das concretizações legislativa
de lei de incentivo à cultura, a Lei Rouanet, lei n.º 8.313/91, regulamentada pelo
Decreto n.º 5.761 de 2006. A sua política, apesar de não ser exclusivamente do tipo
369
OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.
São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 58. 370
Ibid., p. 62.
136
“facilitadora” (há a categoria mecenato pela disposição do Fundo Nacional de Cultura),
se destaca pelos incentivos fiscais capturados de pessoas físicas e jurídicas que, por sua
vez, recebem benefícios fiscais sobre o valor do incentivo.
As produções culturais beneficiadas com a Lei Rouanet precisam garantir a
circulação dos bem culturais resultantes. Ao mencionarmos a “circulação”, estamos
asseverando que ela precisa ser de exibição pública, não podendo estar restrita a
coleções particulares ou à fruição em circuitos exclusivos, para uso privativo de
determinado grupo social ou pelo proponente patrocinador371
.
O acesso aos bens culturais segue a lógica democratizante e universalizante,
quanto maior o número da população que seja recipiente da expressão artística
contemplada pela lei, maior será o significado de ser da própria política cultural, para
tanto, os ingressos poderão ser cobrados (ao contrário do que alguns podem pensar), o
acesso de aquisição do bem cultural envolve muito mais variantes do que apenas o valor
de sua comercialização (ao mesmo tempo, factualmente, seu valor geralmente ou é
módico ou as apresentações são gratuitas).
5.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL ÀS
POLÍTICAS CULTURAIS
O poder-dever do Estado na realização de políticas públicas fomentadoras dos
bens culturais possui explícita normatização na CF, igualmente, como visto, pela
aplicação da dimensão jurídico-objetiva do direito fundamental à expressão artística
(art. 5º, inc. IX c/c os dispositivos que aparecem na Ordem Social) as políticas restam
justificadas. Todavia, conforme a teoria liberal e sua jusfundamentação, ao particular
não há o desaparecimento de seu direito de resistência frente às ingerências dos órgãos
371
OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.
São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 91.
137
de poder estatal (políticas culturais), mas uma mudança de parâmetro, quer dizer, às
interpretações e aplicações de leis incentivadoras da arte, caberá o dever de abstenção
do Estado com base no direito fundamental à igualdade.
A igualdade do art. 5º, caput da CF, estabelece duas acepções, a igualdade
perante a lei (igualdade formal) e a igualdade da lei (material)372
ou igualdade na
aplicação do direito e igualdade na criação do direito373
. Com fundamento na igualdade
formal prescreve-se que o direito, sem exceção, seja realizado sem nenhum tipo de
consideração pessoal, cada um é obrigado pelas normas que a todos são impostas, sendo
defeso ao Estado não aplicar o direito por favorecimentos pessoais; distintamente, a
igualdade material é a proibição de uma regulação desigual para fatos iguais374
.
A igualdade material revela dificuldades em precisar quais fatos são iguais e,
deste modo, não devem ser regulados desigualmente. A comprovação de fatos em iguais
ou desiguais dependerá do quanto essencial será a “característica” que se procura
comparar entre os fatos para admitir um tratamento desigual ou igual375
, por exemplo,
uma política fomentadora das artes cênicas (propósito essencial), em determinado
município, poderá deixar de fora as artes visuais (cinema, fotografia, pintura etc.), mas
não poderá olvidar do gênero circense, há tratamento desigual às artes visuais, mas não
poderá haver com relação ao circo, que participa do gênero das artes performáticas.
Para comparar pessoas, grupos de pessoas e situações utilizaremos um ponto de
referência (tertium comparationis)376
, sob a sua conceituação investigaremos se existe
alguma marca distintiva entre as pessoas, grupos e situações que sejam abalizadoras do
372
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 10. 373
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 132. 374
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio
Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 330. 375
Ibid., p. 331. 376
PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 133.
138
tratamento desigual, o mandamento do princípio da igualdade é a proibição de tratar o
essencialmente igual desigualmente e o essencialmente desigual igualmente377
.
O que difere crucialmente os direitos da liberdade do direito à igualdade é que,
enquanto no primeiro, iremos destrinchar um comportamento no domínio da vida que
será resguardado pela área de proteção da liberdade considerada; o segundo é
caracterizado pela ausência de uma área de proteção, mas pela constatação de um
tratamento desigual e, em seguida, a justificação-constitucional para o tratamento
desigual378
.
Quais seriam as justificações-constitucionais do Estado, nomeadamente ao
legislador, para impor um tratamento desigual? Primeiro, verifica-se se o ponto de
referência utilizado pelo Estado passa por um controle de intensidade. No caso da
Constituição do Brasil (em analogia a doutrina e a Lei Fundamental Alemã379
), por
força do art. 3º, inc. IV, da CF, que fala da promoção dos objetivos fundamentais da
República, “o bem de todos” deverá ser perseguido “sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, os tratamentos desiguais
que se aproximem dos cinco critérios elencados constitucionalmente terão elevadas
intensidades, discriminações que se baseiam em origem, raça, sexo, cor e idade serão
aparentemente arbitrárias, devendo passar posteriormente pelo critério da
proporcionalidade.
Depois, a busca de um critério justo380
, que é a busca de um fim que equipare ou
diferencie no sentido clássico de justiça381
, por isso, legítimo. É válido ao legislador
377
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio
Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 335. 378
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 133. 379
Ibid., p. 136. 380
HESSE, op. cit., p. 335. 381
“A igualdade guarda uma relação de parte contida no todo que é a legitimidade. A justiça como virtude
humana perfeita recebe uma qualificação que é, a saber, ser manifestada para com os outros, isto é,
139
criar desigualdades, só não poderá fazê-lo de forma arbitrária, sem nenhum fundamento
racional. É o caso, v.g, de uma ação afirmativa cultural em nosso país que almeje
financiar projetos de criação e circulação artística de grupos de dança afro-brasileira, há
uma desvantagem positiva para aquelas companhias que exercem as danças de matizes
africanas, no mesmo passo que a desvantagem seria negativa para os grupos que
praticam, por exemplo, a dança irlandesa; poderíamos citar os critérios de origem, cor e
raça na tomada de decisão do legislador, a discriminação é intensa!
Não obstante, o critério seria justo382
, possuiria fundamento racional, quando
pensamos na importância dos africanos no processo de civilização-histórica do Brasil,
população numericamente maior383
e desprivilegiada socialmente, como, outrossim, a
proteção especial que recebeu do constituinte, exposta no art. 215, §1º, da CF, sobre
todas as manifestações culturais afro-brasileiras.
Ao final, constatar-se-á se a medida discriminatória passa pelo critério da
proporcionalidade. No aferimento da adequação seguiremos os mesmos passos da
demonstração dos demais direitos fundamentais de liberdade, adequado será o meio que
ao infligir determinado tratamento desigual esteja granjeando eficazmente o fim
legítimo que se propõe.
Porém, a exigência da necessidade é vista de forma particular. Para fomentar
certa situação ou intervir em especificado grupo de pessoas, o legislador,
primordialmente, não precisará esgotar todas as possibilidades comprovadas pela
realidade sobre o meio ser o menos oneroso a outros cidadãos que se encontrem na
mesma relação. Isso porque, qualquer discriminação feita pelo Estado, sendo negativa
virtude social, conceder a cada um o seu.” KELSEN, Hans. O Que é a Justiça? A Justiça, o Direito e a
Política no Espelho da Ciência. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 125. 382
“E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua
universalidade”: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1979, p. 27-28. 383
Dados do Censo 2010 do IBGE. Disponível em
<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/caracteristi
cas_da_populacao_tab_pdf.shtm>. Acesso em: 02. jul. 2013.
140
ou positiva, sempre dará margem a muitos outros meios alternativos, desabonando a
prova que opta por medidas mais suaves e brandas384
.
O legislador, no curso de sua função típica, possui a liberdade ideal para
experimentar e fazer os prognósticos ponderativos para a escolha de suas políticas
públicas, suficiente há de ser uma tomada de decisão por meios que promovam o
tratamento desigual e, que não seja manifesta385
nenhuma alternativa claramente menos
onerosa ao Estado e aos direitos dos outros cidadãos – tanto o direito de igualdade
daqueles que não foram privilegiados, como os outros direitos de liberdade dos cidadãos
que geralmente são atingidos por força das políticas de discriminação –, prosseguindo
melhor o fim do fomento.
Hipoteticamente, consideremos a seguinte lei, no intuito de transpor barreiras
elitistas da cultura, incentivando o acesso da população desprovida financeiramente das
fontes de cultura nacional de certo Estado da Federação, um Deputado Estadual elabora
um projeto de lei que é aprovado por toda a Assembleia Legislativa, reservando certa
porcentagem de ingressos nos teatros e casas de espetáculos, públicas e privadas,
daquele Estado-membro, a serem distribuídos em pontos fixados por decreto
regulamentar.
Diversos conflitos sócio-políticos surgiriam devido ao ato normativo
fomentador. Além do tratamento desigual que desprestigia certo público espectador que
não é considerado “desprovido financeiramente”, há ingerência na liberdade empresarial
e profissional dos proprietários das casas de espetáculos privadas e, igualmente,
intervenção na área de proteção da liberdade artística, pois, o artista que paga a pauta de
um teatro para poder se apresentar e auferir o lucro da sua atividade artística, não
contará com todo o numérico da bilheteria da casa.
384
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 137. 385
Ibid., p. 137.
141
Os argumentos para tentar anular tal ato normativo seriam vultosos, poderiam
conter análises detalhadas e diagnósticos elaborados com alternativas mais moderadas,
mesmo assim, com relação à atividade legislativa, como visto, a discricionariedade para
prossecução dos fins de fomento se faz presente. No que tange ao Judiciário, poderá este
Poder decretar que houve uma violação ao direito de igualdade dos demais cidadãos não
privilegiados pela quota de ingressos? Com a consequente declaração da
inconstitucionalidade do ato legislativo?
O Judiciário poderá cassar os efeitos da lei quando estiver comprovado, com a
aplicação do critério da proporcionalidade, que o ato legislativo não é adequado ou
necessário no que concerne aos direitos fundamentais de afiançamentos da liberdade,
como a livre iniciativa ou liberdade profissional; para efeitos do direito à igualdade, a
declaração de inconstitucionalidade será devida quando não houver perseguição de
propósitos legítimos ou sem lastros em bens constitucionais, nesses casos, o grupo
privilegiado poderá perder o tratamento exclusivo, passando a ser tratado como o grupo
excluído ou ambos podem ser tratados de uma terceira situação diversa386
.
Entretanto, quando se pensa em alargar o benefício dado pelo legislativo aos
outros cidadãos excetuados do privilégio, optamos pela impossibilidade, pois o
Judiciário não pode agir de forma conformadora em face do legislador387
, como se
tivesse preenchendo uma “lacuna da lei”.
386
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:
Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 151. 387
Ibid., p. 152.
142
6 CONCLUSÃO
Ao epílogo dessa exposição sistematizaremos as ideias que formam o eixo do
tripé anunciado no tema da pesquisa, as contribuições filosóficas, a aplicação da Teoria
Liberal dos direitos fundamentais e o fomento da política artística orientada pelo
princípio da pluralidade, todos funcionando pelo ideal da concretização jurídico-
dogmática do direito à expressão artística.
No prólogo da pesquisa apuramos que o desenvolvimento da razão moderna
apartou razão e emoção, conferindo a esta última um lugar de desprestígio acadêmico-
científico. No entanto, a negação da influência de eros gera uma prática reducionista da
essência do homem, e, quando o homem não está harmonizado as suas produções
perdem a profundidade de seus significados, os valores sociais (justiça, ética, liberdade,
igualdade etc.) não são vivenciados pela sociedade.
À arte atribuímos essa missão, a de reequilibrar o homem entre logos e eros,
primeiro porque o seu processo criativo funde os dois momentos, captações racionais de
Ideias, sendo transmitidas por intuição e pelas formas sensíveis; e pelo “efeito de
suavização do homem”, quando o despertar da alma (finalidade da arte) revela aos
espectadores de uma obra artística, tudo aquilo que existe de essencial nele e que lhe
aproxima de qualquer outro homem, pois nada que é humano a nós deve/pode ser
estranho.
Um dos passos necessários para que a arte possa participar de nossas vidas
ativamente, exercendo as funções que lhes são próprias, principalmente na elocução do
espírito do homem e na tolerância social, é preciso que a ciência do direito desenvolva o
direito fundamental à expressão artística com a autonomia que lhe foi dada pelo
constituinte originário, tirando-o da posição frágil que ocupa hoje, para catapultá-lo ao
direito fundamental sem reserva legal, portanto forte, que realmente é.
143
Nesse desiderato, delimitamos a área de proteção do direito, identificando a
união indissolúvel de uma área de criação/produção e outra área de efeito/divulgação,
ambas protegidas pelo dispositivo constitucional, devido ao fato de que as duas
trabalham pelo mesmo fim da comunicação artística. A respeito dessa última,
caracterizamo-la como processo interpretativo multifacetário e continuado, donde
podemos extrair diversas mensagens em difusão inexaurível.
Quanto à titularidade do direito a expressão artística, assentamos, dentro dos
objetivos ontológicos da existência dos direitos fundamentais na proteção dos
indivíduos em face do Poder estatal, que todas as pessoas, físicas e jurídicas, que
participem do processo artístico contribuindo de forma decisiva na formação da obra de
arte, estarão protegidas pela liberdade, não cabendo aos órgãos do Judiciário ou da
Administração julgarem o que é dispensável ou não para formação do momento
estético-sensorial.
Ao enfrentarmos os limites constitucionais justificadores de intervenções estatais
na área de proteção da liberdade artística, partimos do pressuposto que pela ausência de
reserva legal o direito só poderá ser restringindo pela lógica-sistemática da própria
Constituição, não podendo haver transferência dos limites expressos de outros direitos
fundamentais para aquele, nesses casos, os limites previstos expressamente ao direito do
inc. IV, art. 5º, da CF, ao contrário do que afirma a doutrina majoritária, não devem ser
aplicados ao direito de expressão artística.
No que concerne aos casos difíceis, entre a liberdade artística e outros bens e
direitos constitucionais, construímos alguns atributos sobre a comunicação artística que
devem ser levados em consideração na tomada de resolução desses conflitos: (a) deve-
se investigar o animus do artista criador sobre a intencionalidade de qualquer ofensa que
lhe imputem; (b) sobre o meio utilizado, algumas expressões, a exemplo da caricatura,
144
possuem roupagem essencialmente ofensiva, mas se o âmago da mensagem não
representa nenhum insulto, não existirá ultraje; (c) toda apreciação jurídica de obra
artística deverá, entre várias interpretações possíveis, escolher aquela em que a obra de
arte não lesa direitos alheios; e (d) a correta aplicação do princípio da
proporcionalidade, que se inicia pela averiguação da licitude dos meios e dos propósitos
e, posteriormente, se detém nos subcritérios da adequação e necessidade.
Finalmente, chegamos ao estudo das políticas públicas de proteção, formação e
promoção cultural e o seu papel na concretização qualificada do direito à expressão
artística. Identificamos que por força do §1º, art. 5º da CF, a aplicação imediata de todas
as normas definidoras de direitos fundamentais obrigam todos os poderes a atuarem,
dentro de suas atribuições próprias, no fito das políticas públicas culturais, uma vez que
essas guardam fundamento no próprio direito fundamental à expressão artística.
Analisamos que a influência de uma indústria cultural de massa, representa um
óbice ao acesso à cultura. A cultura do povo perde espaço para a cultura de elite e, para
tentar mudar o quadro perverso, o Estado precisa atuar em ações afirmativa, aquelas que
colocam pessoas ou grupos culturais marginalizados de volta aos centros de tomada do
poder, aumentando dentro da sociedade o diálogo cultural.
As leis de incentivo a produção e criação artísticas devem seguir o princípio do
pluralismo, posto que o próprio significado de cultura é avesso à unificação. No mais,
como as políticas são baseadas no agir positivamente do Estado é preciso que sejam
constantemente fiscalizadas pelo parâmetro constitucional do direito à igualdade.
145
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. W. Teoría Estética. Madrid: Ediciones Akal S.A., 2004.
ALBERA, François. Eisenstein e o Construtivismo Russo. São Paulo: Cosac Naify,
2002.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores,
2006.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um retrato sobre a banalidade do
mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 2006.
ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1979.
ARISTOTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011.
BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais?. Coimbra: Almedina,
1994.
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro.
6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.
BASTOS, Celso Ribeiro; Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editor, 2002.
BAPTISTA, Lia Raquel Ventura. Ações afirmativas: ensino superior aos povos
indígenas. In: NETO, Antonio José de Mattos; NETO, Homero Lamarão; SANTANA,
Raimundo Rodrigues (Orgs.). Direitos Humanos e Democracia Inclusiva. São Paulo:
Saraiva, 2012.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2007.
146
BERLIN, Isaiah. Com Toda a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.
BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia Constitucional. São Paulo: Saraiva,
2013.
BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009.
BOBBIO, Norberto. Elogio à Serenidade e Outros Escritos Morais. São Paulo:
Unesp, 2002.
BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra: uma
nova abordagem no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010.
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BOSI, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular, Leituras de Operários. 10. ed.
Petrópolis: Vozes, 2003.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar
Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e Antissemitismo: um
julgamento histórico no STF – habeas corpus n. 82.424RS. Brasília: Brasília Jurídica,
2004.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Tomo IV. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972.
CALABRE, Lia. Política cultural no Brasil: um histórico. In: CALABRE, Lia (org.)
Políticas culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui
Barbosa, 2005.
CALAZANS, Flávio. Propaganda Subliminar Multimídia. 7. ed. São Paulo: Summus
Editorial, 2006.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República
Portuguesa Anotada. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
147
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2004.
CARBONELL, Miguel. La Libertad de Expressión en la Constitución Mexicana.
Anuário de Derecho Constitucional latinoamericano. Montevideo: Konrad
Adenauer-Stiftung, 2004.
CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti. Direito de Informação e Liberdade de
Expressão. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.
CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11.
ed. São Paulo: Cortez, 2006.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003.
COWEN, Tyler. In Praise of Commercial Culture. Harvad: University Press, 2000.
DEWEY, John. Liberalismo, Liberdade e Cultura. São Paulo: Nacional, 1970.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição
Norteamericana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
FALLA, Fernando Garrido. Comentarios a la Constituición. Madrid: Civitas, 1985.
FARIAS, Edilsom. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1996.
FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação. São Paulo: Editora
Revista do Tribunais, 2004.
FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A,
1983.
148
FERRAJOLI, Luigi. Universalismo de Los Derechos Fundamentales y
Multiculturalismo. In: INSTITUTO DE INVESTIGACIONES JURÍDICAS DE LA
UNAM, 2007, Roma. Anais. Roma: Universidad de Roma, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. São
Paulo: Saraiva: 2012.
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Invasão Cultural e Síntese Cultural. 10.
ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975.
FREIRE, Paulo. Projetos de Educação de Adultos: centros de cultura. Centro de
Referência Paulo Freire, 1990. Disponível em
<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/25/FPF_OPF_01_001
4.pdf>. Acesso em 22 de jun. 2013.
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A responsabilidade do
administrador e do Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000.
GEERTZ, Cliford. La Interpetación de las Culturas. Barcelona: Editorial Gedisa,
1990.
GODOY, Miguel Gualano de. Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir
de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella. São Paulo: Saraiva. 2012.
GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa (affirmative action) no Direito Norte-
americano. São Paulo: RT, 2001.
GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direito na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012.
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009.
HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o sistema das artes. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
149
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998.
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey,
1995.
KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70,
2007.
KELSEN, Hans. O que é a Justiça? A Justiça, o Direito e a Política no Espelho da
Ciência. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
LAMBAS, Fernando Santamaría. El Processo de Secularización en la Protección
Penal de la Libertad de Consciência. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2001.
MACHADO, Jonatas Eduardo Mendes. Liberdade de Expressão: Dimensões
Constitucionais da Esfera Pública do Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento
de Freud. São Paulo: LTC, 1999.
MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática
de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo:
Atlas, 2012.
MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão. Berlin: Konrad-Adenauer-Stiftung E. V., 2005.
MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede,
Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.).
Direito da Arte: Regime jurídico e questões do interesse de artistas, colecionadores,
150
marchantes, curadores, galeristas, leioleiros, investidores e museus. São Paulo: Atlas,
2013 (no prelo).
MEDEIROS, Rui; MIRANDA, Jorge. Constituição Portuguesa Anotada - Tomo I. 2.
ed. Coimbra: Almedina 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da
Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros. 2002
MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
MIRANDA, Jorge. Notas Sobre Cultura, Constituição e Direitos Culturais.
Coimbra: Almedina, 2006.
MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010.
MORAES, Maria Celina Bodin de. Dignidade humana e dano moral: duas faces de uma
moeda. In:___. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Método,
2009.
OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política
pública de cultura. São Paulo: Escrituras Editora, 2004.
OMS, Carolina. Nelson Rodrigues e Censura Teatral. Revista Anagrama. São Paulo,
ano 2, p. 1-14, fev. 2008. Disponível em
<http://www.usp.br/anagrama/Oms_Rodrigues.pdf> Acesso em: 15 jun. 2013.
PANSIERI, Flávio. Eficácia e Vinculação dos Direitos Sociais: reflexões a partir do
direito à moradia. São Paulo: Saraiva, 2012.
151
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II.
Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008.
PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. São Paulo: Armênio
Armado, 1979.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitucional Law Jurisprudence: a
comparative analysis. Working Papers Series 41/11, 2001. Disponível em
<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=265939> . Acesso em: 27 jun.
2013.
SANTANELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais.
9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2000.
SCHILLER, Friedrich. Cultura, Estética e Liberdade. São Paulo: Hedra, 2009.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São Paulo:
Contraponto Editora, 2001.
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
SCRUTON, Roger. Beauty: a very short introduction. 1.ed. Oxford: Oxford University
Press, 2011.
152
SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros
Editores LTDA., 2001.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. Editora
Malheiros: São Paulo, 2003.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8.ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
WILLIAMS, Raymound. Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.