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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE DIREITO Matheus Queiroz de Almeida Pereira O DIREITO DO ACUSADO DE MENTIR: POSSIBILIDADES E CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA NAS FASES PRÉ PROCESSUAL E PROCESSUAL Natal/RN 2018

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · sempre me apoiaram nas batalhas do dia-a-dia. 4 RESUMO A mentira é algo comum em todas as sociedades já existentes. Algumas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE DIREITO

Matheus Queiroz de Almeida Pereira

O DIREITO DO ACUSADO DE MENTIR: POSSIBILIDADES E CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA NAS FASES PRÉ PROCESSUAL E

PROCESSUAL

Natal/RN

2018

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MATHEUS QUEIROZ DE ALMEIDA PEREIRA

O DIREITO DO ACUSADO DE MENTIR: POSSIBILIDADES E CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA NAS FASES PRÉ PROCESSUAL E PROCESSUAL

Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Profº. Msc. Paulo Roberto Dantas de Souza Leão

NATAL/RN

2018

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Dedico esta monografia à minha família, que representa tudo o que sou e aos meus amigos, que sempre me apoiaram nas batalhas do dia-a-dia.

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RESUMO

A mentira é algo comum em todas as sociedades já existentes. Algumas vezes usada

para fins benéficos, muitas vezes usadas para fins maléficos. Muitos filósofos da

antiguidade, já qualificavam a mentira como uma prática ruim e corrompida, porém

alguns defendiam o seu uso como forma de se evitar catástrofes. Até mesmo a Bíblia

Sagradas dos cristão, em seus dez mandamentos condenou a mentira ao elucidar

como pecado o falso testemunho. É visto, no ordenamento jurídico brasileiro, que, no

processo penal, o ônus da prova é daquele que acusa, e que o acusado pode gozar

do direito ao silêncio como forma de evitar a mentira, e consequentemente, evitar uma

“contaminação” processual, afastando o processo de sua finalidade que é alcançar a

verdade e proteger os bens jurídicos protegidos pela lei. A mentira é criminalizada em

alguns casos no nosso ordenamento jurídico, porém, inexiste no Brasil, o crime de

perjúrio.

Palavras-chave: Mentira. Filosofia. Direito de mentir. Acusado.

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ABSTRACT

Lying is something common in all societies already exist. Sometimes used for

beneficial purposes, often used for evil purposes. Many philosophers of antiquity have

already qualified the lie as a bad and corrupt practice, but some defended its use as a

way to avoid catastrophes. Even the Christian Bible of the Ten Commandments

condemned the lie by elucidating the false witness as sin. It is seen in the Brazilian

legal system that, in criminal proceedings, the burden of proof is on the accused, and

that the accused can enjoy the right to silence as a way to avoid lying, and

consequently avoid procedural "contamination" removing the process from its purpose

which is to achieve the truth and protect the legal assets protected by law. The lie is

criminalized in some cases in our legal system, however, in Brazil, the crime of perjury

Key-words: Lie. Philosophy. Right to lie. Acused

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 7

1. A MENTIRA SOB UM VIÉS FILOSÓFICO ................................................................................. 9

1.1 A “MENTIRA” ANALISADA POR IMMANUEL KANT ....................................................... 9

1.2 A “MENTIRA” ANALISADA POR BENJAMIN CONSTANT .......................................... 10

1.3 DOS COMENTÁRIOS DE KANT A RESPEITO DA POSIÇÃO DE CONSTANT E

VICE-VERÇA .................................................................................................................................. 10

1.4 A “MENTIRA” ANALISADA POR SCHOPENHAUER ..................................................... 12

1.5 DAS OPINIÕES FILOSÓFICAS A RESPEITO DA MENTIRA E SUAS LIGAÇÕES

COM O DIREITO ............................................................................................................................ 14

2. O DIREITO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL AO SILÊNCIO E SUAS

APLICAÇÕES PARA EVITAR A MENTIRA ................................................................................. 16

2.1 O PRINCÍPIO “NEMO TENETUR SE DETEGERE”, SUA ABORDAGEM

INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO NACIONAL . 18

3. A MENTIRA, O DIREITO DE MENTIR E O SEU USO NO PROCESSO PENAL E NA

FASE PRÉ PROCESSUAL .............................................................................................................. 22

3.1 ABORDAGEM SOCIAL DA MENTIRA ............................................................................... 22

3.2 A AMPLA DEFESA COMO GARANTIDORA DO DIREITO DE MENTIR ..................... 23

3.3 O DIREITO DE MENTIR E SUAS LIMITAÇÕES ............................................................... 25

3.4 A BOA-FÉ PROCESSUAL, A MENTIRA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O

DEVIDO PROCESSO LEGAL ..................................................................................................... 26

3.5 A MENTIRA E O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ................................. 29

3.6 AS CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA NO INQUÉRITO POLICIAL .............................. 30

3.7 AS CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA EM JUÍZO ............................................................ 34

3.8 PROJETO DE LEI NO SENADO Nº 226/2006: O CRIME DE PERJÚRIO NO BRASIL

........................................................................................................................................................... 37

4. A NECESSIDADE DO ESTADO BRASILEIRO PUNIR O ACUSADO QUE MENTE ....... 41

4.1 DA NÃO ACEITAÇÃO DA MENTIRA SEGUNDO DOUTRINADORES

PORTUGUESES E A JURISPRUDÊNCIA PORTUGUESA ................................................... 44

CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 46

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................. 47

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INTRODUÇÃO

A mentira é algo presente no dia-a-dia da população. As pessoas sempre

mentem no intuito de tirar uma vantagem diante de alguma situação ou no intuito de

evitar que algum mal aconteça, mal esse que pode acontecer de forma muito danosa

caso a verdade seja dita. Isso é parte das relações sociais humanas.

A metodologia utilizada para a elaboração deste trabalho contou com livros

doutrinários, códigos da legislação brasileira e endereços eletrônicos do governo

brasileiro. Através dessas fontes, foi possível a elaboração de uma explicação objetiva

e da exposição do ponto de vista adotado.

De forma geral e objetiva, a mentira sempre representou um comportamento

ruim e combatido pela humanidade. Mentir é visto como um ato desonesto e que quem

o pratica repetidas vezes, de forma perceptível, possui pouca “credibilidade” social ao

contar como ocorreu determinada situação.

Mentir, e espalhar mentiras, é algo tão perturbador, que o Código Penal

tipificou algumas atitudes criminosas relacionadas à mentira, como a calúnia, a

difamação e o falso testemunho.

Muitas vezes, em diversas situações, não é recomendável nem mentir, nem

falar a verdade, mas sim, ficar calado. Manter o silêncio pode evitar contaminações,

propagações de histórias falsas, ou até evitar a atitude maléfica vinda de alguém, caso

este obtenha a verdade.

Foi nesse viés, que a Constituição Federal brasileira de 1988, estabeleceu,

como um direito fundamental, o direito ao silêncio para o acusado. De um ponto de

vista técnico, cabe ao acusador anexar em Juízo, provas que caracterizem o acusado

como autor de determinada conduta criminosa. O acusado, durante as fases pré-

processual e processual, mesmo tendo cometido determinado crime, pode ficar calado

como uma forma de se defender e de evitar com que as investigações policiais e o

andamento processual sigam caminhos contaminados pela mentira, afastados da

verdade, e longe da efetivação da justiça.

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No Brasil, mentir em Juízo, ou durante o inquérito policial, não é crime. Inexiste

o crime de perjúrio no Brasil. É livre, para qualquer acusado, mentir diante das

autoridades estatais, independente de seu objetivo ao constituir o ato de mentir. Isso

pode gerar uma ocupação desnecessária para os policiais, peritos, magistrados e

membros do ministério público, contribuindo, ainda mais, para a morosidade

processual.

Este trabalho visa apresentar, de forma clara e objetiva posições filosóficas

acerca da mentira, o direito constitucional ao silêncio como forma de evitar a mentira

em face do Estado Democrático de Direito e qual a alternativa necessária para evitar

com que as autoridades estatais, e o Estado, desgastem tempo e dinheiro com

investigações e estudos desnecessários sobre determinado (s) acontecimento (s).

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1. A MENTIRA SOB UM VIÉS FILOSÓFICO

A mentira é algo muito antigo na história da humanidade, talvez tão antiga

quanto o ser humano, sendo utilizada desde quando o homem passou a adotar sinais

e símbolos para constituir uma linguagem e conseguir se comunicar e transmitir

informações.1

Alterar a verdade dos fatos sempre beneficiará um indivíduo, ou um grupo,

em detrimento de outro. A falta da verdade prejudica o julgamento moral da situação

por aquele que foi ludibriado, fazendo com que, muitas vezes, ele haja diferente de

que agiria, caso tivesse obtido informações completamente verdadeiras. A mentira

pode trazer benefícios gerais, como pode trazer malefícios catastróficos. Isso sempre

nos faz refletir acerca do direito e da justiça, quando afetados pela mentira.

A respeito de sua origem, não se pode ter certeza de quando surgiu, nem se

pode afirmar, de forma geral, que o homem nasce mentiroso ou se é o meio em que

ele vive que o transforma em um transmissor de falsas informações propositalmente.

O que se pode afirmar é que a mentira é tão velha quanto a filosofia moderna, e que

a sua utilização já foi alvo de discussões filosóficas.

Mentir talvez seja algo já praticado por todos os seres humanos em diversas

situações e em “dosagens” diferentes, porém, iremos analisar a seguir, as opiniões de

alguns filósofos a respeito da mentira e da gravidade do seu emprego em situações

peculiares.

1.1 A “MENTIRA” ANALISADA POR IMMANUEL KANT

Para Immanuel Kant (1724-1804), o ato de mentir representa um ato

controlador. Aquele que recebe a informação desprovida de verdade, age não

conforme a sua vontade, mas conforme a vontade daquele que lhe deu tal

informação.2

1 1 KANT. I. "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", Trad. Paulo Quintela, ed. Edições 70,

Lisboa-Portugal, 1986. P. 59. 2 KANT. I. "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", Trad. Paulo Quintela, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1986. P. 59.

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Segundo o filósofo, o indivíduo não pode mentir em hipótese alguma, pois ao

mentir, ele tira a liberdade do outro de agir. A aversão à mentira vinda de Kant, deriva

do imperativo categórico que diz:3 “Age apenas segundo uma máxima tal que possas

ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”4

Sendo esta a razão pela qual defende apenas o uso da verdade.

1.2 A “MENTIRA” ANALISADA POR BENJAMIN CONSTANT

De acordo com Benjamin Constant (1767-1830), a verdade só deve ser

expressa para aquele que tem direito à verdade e que nenhum homem tem o direito

a uma verdade que vai prejudicar outro. Em outras palavras, a verdade só deve ser

dita àquele que for usá-la para o bem.5

O filósofo cita um exemplo: Um assassino bate à sua porta com a intenção de

matar um amigo seu que está em sua casa. Você deve dizer a verdade quando o

assassino perguntar sobre o paradeiro do seu amigo, ou deve mentir e dizer que o

amigo não se encontra no local?6

Para ele, onde não há deveres, não há direitos. Ou seja, o assassino não tem

o direito de tirar a vida do seu amigo, portanto, você não tem nenhum dever de dizer

a verdade.7

1.3 DOS COMENTÁRIOS DE KANT A RESPEITO DA POSIÇÃO DE CONSTANT E

VICE-VERÇA

Kant afirma que Constant erra ao tratar a Verdade como algo psicológico e

subjetivo, sendo que, para Kant a Verdade é algo lógico e objetivo.8

3 KANT. I. "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", Trad. Paulo Quintela, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1986. P. 68 4 Idem 5 KANT. I. "Sobre um suposto direito de menti por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 174. 6 Idem 7 Idem 8 KANT. I. "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros

opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 175.

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Para responder a questão de Constant, Kant subdivide o exemplo do

assassino, explicado anteriormente, em duas questões: a primeira, se o dono da casa,

no caso de não poder deixar de responder com uma afirmação ou uma negação, tem

o direito de dizer uma mentira ou não; a segunda: se ele não é obrigado a mentir para

proteger o amigo e prevenir um crime que ameaça a ele próprio e ao amigo.9

Respondendo a primeira questão, Kant diz que não podemos praticar

inverdades com qualquer pessoa, pois ao ocultar a verdade, estamos cometendo uma

injustiça contra aquele que nos pressiona a dizê-la, mesmo que seja contra aquele

que deseja entrar em sua casa para matar o seu amigo. E mesmo não cometendo

uma injustiça com este, estamos cometendo uma injustiça com o Direito, pois

deixamos de fazer a nossa parte para que as declarações tenham crédito e para que

os contratos sejam válidos, o que considera uma injustiça em face da humanidade.

Aquele que mente, trata as pessoas como meio, sendo que elas devem ser tratadas

como fim, explica o filósofo.10

Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius]. Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral.11

Na resposta da segunda questão, Kant afirma que mesmo mentindo sobre a

presença do amigo em sua casa, isso poderia acarretar em o assassino encontrar o

seu amigo desprevenido na rua futuramente, pois, se ele o dono da casa tivesse dito

a verdade, o assassino teria entrado em sua casa, o que daria mais tempo para o seu

amigo fugir pela porta dos fundos e ir embora ou se refugiar em outro lugar. Para Kant,

mesmo aquele que mente com boas intenções, é sempre responsável pelos fatos que

ocorrem posteriormente, por isso a mentira não pode ser dita até com a intenção de

ajudar alguém. A verdade é um dever incondicionado e um dever é algo necessário

9 KANT. I. "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros

opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 175. 10 Idem 11 Idem

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para a ação, que deve valer para todos os homens, através da representação da lei,

segundo o filósofo.12

Constant rebate as ideias de Kant, afirmando que quando um princípio

aparenta ser inaplicável à sociedade, como no exemplo da opíniao de Kant, isso se

dá pois não observamos os princípios intermediários que ali estão camuflados, ou

seja, os princípios podem sofrer modificações, com a particularidade de cada situação.

Por exemplo: o princípio de “não mentir”, quando aplicado à sociedade notamos seus

princípios intermediários e concluímos que em certas situações, como a do caso em

que o assassino bate em sua porta em busca do seu amigo, podemos usar da não-

verdade, pois a mentira só se dá quando prejudica alguém. Princípios intermediários

são lacunas, dentro de um princípio, que permitem que o indivíduo, em certas

situações, possa agir em desacordo com o que indica o princípio moral.13

O princípio moral “é um dever dizer a verdade”, se se tomasse incondicionalmente e de um modo isolado, tornaria impossível qualquer sociedade. Temos disso a prova nas consequências muito directas que deste princípio tirou um filósofo alemão, o qual chega ao ponto de afirmar que seria um crime a mentira dita a um assassino que nos per-guntasse se um amigo nosso, e por ele perseguido, não se teria refugiado na nossa casa.14

Kant afirma que todos os princípios devem conter uma verdade rigorosa, pois

se considerarmos os princípios intermediários, não saberíamos em que situações ou

quais parâmetros poderíamos ou não utilizar de lacunas para ocultar a verdade, só

assim o dano ocorrerá por um acaso e não por responsabilidade daquele que mentiu,

ou seja, o dano ocorrerá apenas por parâmetros objetivos. O filósofo afirma não se

preocupar com o perigo de causar um dano, e sim com o de cometer injustiça.15

1.4 A “MENTIRA” ANALISADA POR SCHOPENHAUER

12 KANT. I. "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros

opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 175. 13 KANT. I. "Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros

opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 173. 14 Idem 15 KANT. I. "Sobre um suposto direito de menti por amor à humanidade" in "A paz perpétua e outros

opúsculos", Trad. Artur Morão, ed. Edições 70, Lisboa-Portugal, 1995. P. 178.

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Para o filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), o estudo do ato de mentir

é válido a depender da situação em que estará inserida o praticante do ato.16

Segundo Schopenhauer, injusto é aquele que provoca qualquer tipo de dano

a outrem, seja físico, verbal, em relação à sua liberdade, ou qualquer outro tipo de

dano. Também considera injusto aquele que se omite daquilo que é obrigado a fazer.17

A injustiça pode ser praticada por duas formas: pela força e pela astúcia. Pela

força obrigando alguém a fazer determinada coisa, e pela astúcia também o obrigando

a fazer determinada coisa, porém com o uso da mentira.18

Afirma ainda Schopenhauer, que em algumas determinadas situações,

podemos fazer uso da mentira sem praticar a injustiça, por exemplo, quando

precisarmos usar a força para nos defender de uma agressão, mas não podermos

contar com ela, daí será válido o uso da astúcia.19

Ele diz que no caso do assassino que chega em sua casa procurando seu

amigo lá, e querendo mata-lo, não seria injusto mentir sobre o paradeiro do seu amigo,

pois aquele que promete algo sob coação, através da força, ou acreditando em falsas

premissas, não é obrigado a cumprir a promessa, e no caso desse exemplo várias

vezes discutido, o dono da casa está sendo coagido pelo assassino.20

Podemos mentir para nos livrarmos da violência, para defender nossas vidas,

nossa liberdade, bens ou honra, contra perguntas intromissivas, indevidas, ou que

possa vir a causar alguma suspeita, ou para preservar a intimidade contra a

curiosidade alheia.

Pois como tenho o direito de previamente contrapor, quando há perigo de dano, à vontade malvada de outrem e, pois, à violência física presumida uma resistência física e, portanto, de guarnecer o muro de meu jardim com pontas aguçadas e de soltar cães bravos no meu quintal e, mesmo, sob certas circunstâncias, de pôr armadilhas e armas que disparam sozinhas, cujas más consequências o invasor tem de atribuir a si próprio, também

16 SCHOPENHAUER, A. "Sobre o Fundamento da Moral", Trad. Maria L. Cacciola, ed. Martins

Fontes, 1.ª edição, São Paulo, 1995. P. 147 17 SCHOPENHAUER, A. "Sobre o Fundamento da Moral", Trad. Maria L. Cacciola, ed. Martins

Fontes, 1.ª edição, São Paulo, 1995. P. 147 18 Idem 19 Idem 20 SCHOPENHAUER, A. "Sobre o Fundamento da Moral", Trad. Maria L. Cacciola, ed. Martins

Fontes, 1.ª edição, São Paulo, 1995. P. 147

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tenho o direito de manter de todo modo em segredo aquilo cujo conhecimento me poria a nu diante da agressão do outro e também tenho causa para isto, porque admito aqui como facilmente possível a vontade má do outro e tenho de encontrar antes as providências contrárias.21

Schopenhauer afirma que podemos praticar ato mentiroso como forma de

defesa contra a possibilidade de sofrer danos por meio de astúcias, e que caso isto

ocorra, o risco de nossa declaração levar alguém ao engano, é de total

responsabilidade dele mesmo, pois aquele que oferecia perigo não nos deixava

nenhuma alternativa para fugir de sua curiosidade.22

Segundo o filósofo, em algumas ocasiões temos o dever de mentir, porém

devemos nos atentar para o limite que devemos respeitar para não tornarmos a

mentira um instrumento perigoso e abusivo. A mentira somente deve ser usada nos

casos nobres e de autodefesa.23

1.5 DAS OPINIÕES FILOSÓFICAS A RESPEITO DA MENTIRA E SUAS

LIGAÇÕES COM O DIREITO

O Direito é um instrumento milenar utilizado pelos seres humanos como forma

de busca pela justiça, ou pela situação mais aproximada do que seria a justiça. Os

filósofos anteriormente citados e descritas as suas opiniões buscavam, como

finalidade, criar uma ideia de “dever ser” para que a humanidade seguisse uma linha

de pensamento na qual o ato de mentir fosse condenado.

Apesar de divergirem em alguns pontos, banalizando totalmente a mentira

(como fez Kant) ou abrindo exceções para o seu uso (como fizeram Constant e

Schopenhauer), o que suas ideias tem em comum é que a mentira é algo prejudicial

à segurança jurídica de um povo, e que a sua essência é má e pode prejudicar a vida

daqueles que nela acreditam.

21 SCHOPENHAUER, A. "Sobre o Fundamento da Moral", Trad. Maria L. Cacciola, ed. Martins

Fontes, 1.ª edição, São Paulo, 1995. P. 147 22 SCHOPENHAUER, A. "Sobre o Fundamento da Moral", Trad. Maria L. Cacciola, ed. Martins

Fontes, 1.ª edição, São Paulo, 1995. P. 148. 23 Idem

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Foi nesse viés que Constant e Schopenhauer elaboraram situações

peculiares para o uso da mentira, pois a mentira usada fora do parâmetro dessas

situações é má e apenas prejudicial.

Kant viu na verdade, como um todo, a forma única e exclusiva de se combater

o mal e as possíveis consequências geradas caso a verdade não fosse dita, enquanto

que Constant e Schopenhauer viram algumas situações em que a mentira evitasse

situações essencialmente maldosas.

Apesar de um discordar totalmente do uso da mentira e os outros

apresentarem apenas algumas condições para o uso da mentira, significa dizer, que

todos, em uma visão geral concordam que a mentira é algo prejudicial ao ser humano

e à sociedade. Já que Constant e Schopenhauer elaboraram condições para o uso da

mentira, isso significa que ela só pode ser usada apenas em algumas situações, pois

ela é, em sentido generalizado, algo ruim, senão os filósofos não teriam elaborado

condições para o seu uso, pregando que as pessoas a usassem de forma livre.

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2. O DIREITO CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL AO SILÊNCIO E

SUAS APLICAÇÕES PARA EVITAR A MENTIRA

A Constituição Federal brasileira de 1988, nossa Carta Magna, permite ao

preso, por qualquer crime ou acusação, o direito ao silêncio e de não produzir provas

contra si mesmo.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;24

Sendo assim, é o silêncio um direito fundamental de qualquer cidadão previsto

constitucionalmente. Este direito representa um grande avanço não só para a

constituição, como também para o processo penal, pois através dele o Estado fica

privado de invadir a esfera individual do cidadão, protegendo também, com isso, a

dignidade da pessoa humana, conforme preceitua o Artigo 1º, inciso III, da

Constituição Federal:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;25

Observado este ponto, notamos também que o legislador constituinte quis

evitar com que o preso mentisse ou alterasse a verdade dos fatos, lhe dando a

oportunidade de ficar calado. Por ser uma garantia fundamental, podemos afirmar que

esse direito não atinge somente o preso, mas também qualquer pessoa que participe

da instrução criminal, seja como testemunha, investigado, e etc., todos são atingidos

por esse direito.

24 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 10/04/2018 25 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 10/04/2018

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O direito ao silêncio vem como um instrumento normativo de coibir a mentira,

pois esta oculta a verdade dos fatos, convence julgadores e partes a agirem de formas

diferentes (diferentes daquelas que agiriam se tivessem acesso a um discurso

verdadeiro) e atrapalha, de forma perigosa, o andamento de qualquer investigação

que busca saber o que de fato aconteceu e que se está sendo discutido no mérito de

qualquer questão.

Esse direito representa uma oportunidade de qualquer pessoa que esteja

envolvida em uma instrução criminal de não mentir perante as autoridades estatais e

descumpra uma das principais funções do um estado democrático de direito que é

construir uma sociedade justa.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;26

Anteriormente ao ano de 2003, o Código de Processo Penal (CPP) brasileiro

entendia o silêncio do réu como prejudicial à sua própria defesa, conforme elucidava

a antiga redação do artigo 186:

Antes de começar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.27

Porém, a Lei nº 10.792, de 1 de dezembro de 2003, alterou a redação desse

artigo do CPP e conferiu segurança jurídica e garantia de autodefesa para o acusado

que preferir não responder a pergunta alguma durante o seu interrogatório. Portanto,

o silêncio do acusado, a partir do ano de 2003, não importa mais em prejuízos para

sua defesa nem poderá ser caracterizado como confissão.

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

26 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 10/04/2018 27 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm> Acesso em: 10/04/2018

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Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.28

O direito ao silêncio permite ao acusado poder colaborar ou não com as

investigações e com as autoridades judiciárias, por isso esse direito resguarda a

dignidade do acusado, tendo em vista que o ônus da prova cabe àquele que fez a

acusação.

O silêncio que anteriormente representava uma autoconfissão daquilo do que

tratavam as acusações, agora representa uma estratégia de defesa ao réu,

resguardada sua liberdade moral.

Vale ressaltar que o direito ao silêncio se dá apenas para as questões de

méritos feitas ao acusado, sendo ele obrigado a qualificar-se, ou seja, fornecer

elementos suficientes para a sua identificação, pois informações sobre a identificação

não representam o conhecimento de responsabilidade sobre o fato que está sendo

apurado.29

O autor doutrinador Guilherme de Souza Nucci afirma:

O direito de se manter calado não envolve o momento da qualificação, quando o réu deve identificar-se, corretamente, à autoridade que o ouve. Afinal, nesse caso, não está envolvida sua defesa, mas, ao contrário, está em jogo a segurança processual e do sistema judiciário, que não deseja levar ao cárcere pessoa errada.30

2.1 O PRINCÍPIO “NEMO TENETUR SE DETEGERE”, SUA ABORDAGEM

INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

NACIONAL

Para abordar de forma mais lúcida o direito ao silêncio, é necessário explicar

o significado do princípio constitucional “nemo tenetur se detegere” e sua aplicação

no nosso ordenamento jurídico.

28 BRASIL. LEI Nº 10.792, DE 1º DE DEZEMBRO DE 2003. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.792.htm> Acesso em: 10/04/2018 29 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 112 30 NUCCI, Guilherme de Souza, Código de Processo Penal Comentado, 10 ed. São Paulo:Revista dos Tribunais. 2011, p.461.

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O princípio “nemo tenetur se detegere”, ninguém é obrigado a se descobrir,

para muitos doutrinadores, está inserido entre as normas gerais do direito não sendo

possível identificar sua origem31. Ele surgiu como uma forma de combate ao juramento

imposto e à tortura praticados contra o acusado durante seu interrogatório, em

diversos ordenamentos jurídicos, como o Código de Hamurabi e nas Leis de Manu32,

onde a confissão era o elemento principal para que alguém fosse condenado, não

necessitando mais de prova alguma para que sua condenação ocorresse.

O Brasil, em 1992, ratificou através do Decreto de nº 678 de 6 de novembro

de 1992, a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto

de São José da Costa Rica. Ela aborda em seu texto, de forma expressa, a garantia

ao silêncio, em seu artigo 8º, inciso II, “g”:

Artigo 8º - Garantias judiciais:

(...)

2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada;33

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia

Geral das Nações Unidas, não traz expressamente o direito ao silêncio, mas combate

a utilização da tortura como forma de se obter a confissão, assim como a presunção

de inocência.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, recebido pela

Assembléia Geral das Nações Unidas em 1966, que passou a vigorar somente em

1973, e ratificado pelo Brasil em 1992, estabeleceu em seu artigo 14, parágrafo 3º,

“g”, que:

ARTIGO 14

31 (QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5 ao se retratar ao autor Kohl, Procès civil et sincerité. Liège, 1971, p. 15, apud Grevi, Vittorio, Nemo tenetur se detegere. Milano: Giuffrè, 1972, p. 5.). 32 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 16 33 BRASIL. Convenção Americana de Direitos Humanos, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm,> acesso em: 12/06/2018.

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(...)

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias:

(...)

g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.34

A Constituição Federal brasileira recebe tratados internacionais, seguindo as

condições estabelecidas pelo seu artigo 5º, parágrafo 3º que diz:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.35

Porém, segundo o Supremo Tribunal Federal, esses tratados aqui

apresentados, possuem caráter especial por terem o “status” normativo supralegal,

estando abaixo da Constituição e acima da legislação interna.

Dessa forma decidiu o STF no julgamento do RE 466.343-SP, tendo em sua

conclusão o seguinte trecho:

Em conclusão, entendo que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, dessa forma, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n°

34 BRASIL. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm> acesso em: 12/06/2018. 35 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 13/06/2018

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911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002).36

36 Disponível em < http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf>

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3. A MENTIRA, O DIREITO DE MENTIR E O SEU USO NO PROCESSO PENAL E

NA FASE PRÉ PROCESSUAL

Estudaremos, agora, as possibilidades do uso da mentira durante o inquérito

policial e durante o curso do processo penal em Juízo.

3.1 ABORDAGEM SOCIAL DA MENTIRA

Como já foi abordado anteriormente neste trabalho, a mentira é um elemento

muito antigo que compõe a vida em sociedade há muito tempo. Não só os filósofos

trabalharam a mentira, como também a Bíblia Sagrada dos cristãos. Esta última,

abordando a mentira de forma negativa, estabeleceu mandamentos, éticos e morais,

e em um deles, combateu a prática do falso testemunho.37

Em consulta ao endereço eletrônico do dicionário MICHAELIS, encontramos

os seguintes significados para a palavra “mentira”:

1 Ato ou efeito de mentir; cantiga, fraude, pomada. 2 Afirmação que se opõe à verdade; informação enganosa ou controvertida; enredo, moca. 3 Costume ou hábito de contar mentiras. 4 Aquilo que dá falsa ideia. 5 O que ilude. 6 Opinião sem fundamento.38

Já no campo da psicologia, o ato de mentir é definido como “qualquer forma

de comportamento cuja função seja fornecer aos outros informações falsas ou privá-

los de informações verdadeiras.”39

Fora do campo da ciência, agora no campo cronológico, temos ainda uma

data no calendário, o dia 1 de abril, que é caracterizada por ser o dia da mentira.

Diante do exposto, é inegável que o ato de mentir é algo muito comum na

sociedade e que é abordado em diversas circunstâncias, seja ela linguística,

psicológica ou nas relações sociais.

37 BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. Tradução de Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin e José Luiz Gonzaga do Prado. 61ª impressão: junho de 2007. Editora Paulus. P. 88. 38 MICHAELIS, disponível em <http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/mentira/>, acesso em 14 de maio de 2018) 39 Smith, D. L. (2006). Por que mentimos: Os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira. Rio de Janeiro: Elsevier. P. 5.

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Mentir é vedar a verdade a um receptor, é fazer com o que o outro encare um

fato sob o ponto de vista daquele que mente.

3.2 A AMPLA DEFESA COMO GARANTIDORA DO DIREITO DE MENTIR

A ampla defesa é uma garantia constitucional garantida ao réu, na qual o

acusado só pode ser condenado mediante processo legal e dada a sua oportunidade

de defesa, ou seja, oportunidade de contra argumentar, juridicamente, da conduta, ou

omissão, que lhe foi imputada.40

Pode optar, o réu, positivamente, por responder, se utilizando da verdade, a

tudo aquilo de que lhe foi acusado, como também pode ficar em silêncio, se

meramente assim achar mais conveniente, ou por usar do silêncio como uma

estratégia processual, para se livrar das acusações.

Essas posições são positivas para o processo penal e para a preservação da

boa fé processual, pois elas não acarretam em dano algum para a construção

verdadeira dos fatos pelo judiciário e Ministério Público, podendo o réu se beneficiar

ao adotar essas posições, já que o ônus da prova é do acusador e que é como base

para o nosso direito penal o princípio da presunção da inocência (ou princípio da não

culpabilidade), no qual estabelece o “status” de inocente a todo acusado, até que o

processo transite em julgado e que haja sentença penal condenatória, conforme

elucida o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.41

Alexandre de Moraes, afirma que por ampla defesa, se entende ser uma

garantia dada ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo

elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de calar-se, se entender

necessário.42

40 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 20/04/2018 41 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 20/04/2018 42 MORAES, Alexandre de, Direitos Humanos Fundamentais. Coleção temas jurídicos. São Paulo. Atlas. 1998, p.39

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Diante disso, nota-se que a ampla defesa é uma garantia constitucional que

rege o direito do acusado de permitir que o estado não se intrometa em seus atos

processuais.

A ampla defesa não é um direito ilimitado, do qual se possa fazer o uso de

qualquer instrumento para que ele seja efetivado, sendo pautado no exercício da

defesa plena. Existem limitações, pois não é admissível no nosso ordenamento

jurídico o abuso de direito, para que a legalidade seja conservada. Um exemplo disso

é que a nossa constituição limita a produção de provas apenas pelo meio lícito (artigo

5º, inciso LVI da Constituição Federal de 1988).43

Mas, Alexandre de Moraes, ainda ilustra que:

(...)o direito de permanecer em silêncio, constitucionalmente consagrado, seguindo orientação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê em seu art. 8º, § 2º, g, o direito a toda pessoa acusada de delito não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada, apresenta-se como verdadeiro complemento aos princípios do due processo of law e da ampla defesa, garantindo-se dessa forma ao acusado não só o direito ao silêncio puro, mas também o direito a prestar declarações falsas e inverídicas, sem que por elas possa ser responsabilizado, uma vez que não se conhece em nosso ordenamento jurídico o crime de perjúrio.44

Edgar de Moura Bittencourt afirma que, na luta do réu por sua liberdade, a

mentira não é elogiável do ponto de vista moral, porém ela não é proibida. Dizer a

verdade é um risco que pode possibilitar enorme sofrimento para o réu.45

Também o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte deste país,

guardiã da constituição, concorda com esse tipo de pensamento, de que ninguém é

obrigado a confessar que cometeu determinado crime e que no direito de permanecer

calado, está inserida, implicitamente, a prerrogativa processual de o acusado negar,

ainda que mentindo, a prática de infração penal:

Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de

43 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 20/04/2018 44 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 3ª ed.. São Paulo: Atlas, 2000. p.285. 45 BITTENCOURT, Edgar de Moura. Crime. São Paulo: Editora Universitária de Direito, 1973. p. 218.

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permanecer calado. Nemo tenetur se detegere. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal.46

Desta forma, a não obrigação de falar ou de dizer a verdade do acusado é

entendida como uma garantia de não autoacusação, sendo uma das bases do direito

ao silêncio.

3.3 O DIREITO DE MENTIR E SUAS LIMITAÇÕES

Embora já sendo compreendido como possível o direito de mentir, como já foi

elucidado por doutrinadores e até pelo STF, esse direito apresenta algumas limitações

e se caracteriza como crime, caso desobedecida essas limitações.

A legislação penal ordinária tipifica como crime alguns comportamentos para

que seja garantida a harmonia do processo com as regras de lealdade processual,

como são os casos dos crimes de falsa identidade, autoacusação falsa, usar

documentos falsos na instrução, falsidade ideológica, entre outros.

Segundo Maria Elizabeth Queijo, o que se predomina é que o direito ao

silêncio se limita apenas as questões de mérito formuladas ao acusado. Por isso, o

acusado pode deixar de responder questões relevantes e que possam constituir a

verdade dos fatos, porém não pode deixar de responder questões relacionadas a sua

identidade, pois constitui crime de desobediência. O fato de o acusado se identificar,

além de tudo, não constitui crime de auto-incriminação, pois não representa

levantamento de responsabilidade quanto ao fato apurado. Ressalta-se que não estão

abrangidas na identificação as indagações referentes às condenações e acusações

anteriores.47

46 HC nº 68929-9/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j.em 22/10/1991, DJ de 28/08/1992, p. 13453). 47 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 200.

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Também, nesse viés, decidiu o Supremo Tribunal Federal ao analisar a

mentira de um acusado no momento de sua qualificação:

PENAL – PROCESSUAL PENAL. “HABEAS CORPUS”. CRIME DE ROUBO: CONSUMAÇÃO. FALSA IDENTIDADE. SEQUESTRO. I. – Crime de roubo: consuma-se quando o agente, mediante violência ou grave ameaça, consegue retirar a coisa da esfera de vigilância da vítima. II. – Tipifica o crime de falsa identidade o fato de o agente, ao ser preso, identificar-se com nome falso, com o objetivo de esconder seus maus antecedentes. III. – Crime de sequestro não caracterizado. IV. – Extensão ao co-réu dos efeitos do julgamento, no que toca ao crime de sequestro. V – H.C. deferido em parte48

O Estado tem por função social construir uma sociedade justa, democrática e

dotada de boa-fé. No momento em que o acusado se usa de um direito fundamental

(direito fundamental ao silêncio e direito de mentir como um pilar do direito ao silêncio),

este passa a afetar não só o Poder Judiciário, mas também a função social do Estado.

3.4 A BOA-FÉ PROCESSUAL, A MENTIRA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA O

DEVIDO PROCESSO LEGAL

A boa-fé processual, presente tanto no processo civil quanto no processo

penal, vem resguardar a segurança jurídica, assim como a verdade dos fatos e a

efetivação da justiça. O processo, seja de qual esfera pertencer, dotado de má fé é

corrompido, inverídico e foge da ideia de justiça que o Estado deve implantar na

sociedade.

O processo é instrumento no qual as pessoas se usam para atingir não só a

justiça, mas também para proteger bens jurídicos essenciais à vida em sociedade,

como a vida humana, o patrimônio (público e privado), a liberdade, entre outros. Com

isso, não poderá o processo, dotado de má fé e fatos incondizentes com a verdade,

ser instrumento para alcançar qualquer dos elementos citados anteriormente, pois

este agora passa a ser usado, única e exclusivamente, para o alcance de desejos

humanos egoístas e que estão ligados a um sentimento particular de quem o usa

dessa maneira, constituindo um elemento subjetivo do uso do processo.

48 HC nº 72377/SP – Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 23/05/1995. DJ de 30/06/1995.

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Para que o Estado cumpra seu papel, esse elemento subjetivo de quem

aciona a justiça pode até ser levado em conta para a composição de uma sentença

condenatória justa, porém é necessário também que nessa sentença, estejam contido

um elemento objetivo, que é aquele que delimita normas de conduta e que implica em

deveres de probidade e confiança no desenrolar do processo e esse elemento se

caracteriza por ser a boa-fé processual.

Diante disso, a boa-fé é o agir sem dolo de prejudicar outrem, o agir em busca

da justiça, sempre com honestidade e respeitando a legislação vigente.

O Novo Código de Processo Civil, traz em seus artigos 5º e 6º a literalidade

de que todo aquele que participa de qualquer forma do processo, deve agir de boa-fé,

cooperando para que a decisão de mérito seja justa e efetiva.

Art. 5o Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.49

A doutrinadora Maria Helena Diniz afirma que a boa fé é:

BOA-FÉ: 1. Direito Civil. a) estado de espírito em que uma pessoa, ao praticar ato comissivo ou omissivo, está convicta de que age de conformidade com a lei; b) convicção errônea da existência de um direito ou da validade de um ato ou negócio jurídico. Trata-se da ignorância desculpável de um vício do negócio ou da nulidade de um ato, o que vem atenuar o rigor da lei, acomodando-a à situação e fazendo com que se deem soluções diferentes conforme a pessoa esteja ou aja de boa ou má-fé, considerando a boa-fé do sujeito, acrescida de outros elementos, como produtora de efeitos jurídicos na seara das obrigações, das coisas, no direito de família e até mesmo no direito das sucessões; c) lealdade ou honestidade no comportamento, considerando-se os interesses alheios, e na celebração e execução dos negócios jurídicos; d) propósito de não prejudicar direitos alheios.50

Além de encontrar amparo em norma infraconstitucional, Código de Processo

Civil, podemos dizer que o princípio da boa-fé tem fundamento primário na

Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LIV, que diz:

49 BRASIL. Código de Processo Civil brasileiro de 2015. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em: 21/04/2018 50 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2ª ed. v. 1, São Paulo: Saraiva, 2005. p. 506 e 507

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“LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”51

Não há razão qualquer para limitar a aplicação do dever processual de as

partes agirem com a boa fé objetiva somente ao processo civil, e não expandir esta

aplicação ao processo penal, pois neste estão em jogo a liberdade do réu, por um

lado, e por outro lado a ofensa a bens jurídicos tutelados pelo Estado, como a vida, a

liberdade, a segurança, entre outros. Trata-se de um princípio com base

constitucional, portanto as normas processuais devem ser lidas à luz dos dispositivos

constitucionais.

Assim também já entendeu o Superior Tribunal de Justiça brasileiro:

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. 1. CRIME DE HOMICÍDIO. INTIMAÇÃO PARA AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO. RECORRENTE NÃO ENCONTRADO. APLICAÇÃO DA DISCIPLINA DO ART. 267 DO CPP. 2. NECESSIDADE DE INFORMAR A ALTERAÇÃO DO ENDEREÇO. VENIR CONTRA FACTUM PROPRIUM. PRECEDENTES. 3. RECURSO EM HABEAS CORPUS IMPROVIDO. 1. Embora o recorrente tivesse plena consciência de que contra ele havia um processo criminal em curso, mudou-se de endereço, sem comunicar à justiça, razão pela qual não foi encontrado para ser intimado da audiência de instrução, debates e julgamento. Dessarte, incide no caso dos autos a disciplina do art. 367 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que "o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo". 2. Não pode ser atribuído ao judiciário o não esgotamento dos meios para encontrá-lo, pois, sabendo do processo em curso contra si, tinha o dever de manter seu endereço atualizado. Ademais, é entendimento do Superior Tribunal de Justiça que a ninguém é lícito fazer valer um direito em contradição com sua anterior conduta. Portanto, reconhecer eventual nulidade no caso seria inadequado no plano da ética processual, por implicar violação do princípio da boa-fé objetiva, na dimensão venire contra factum proprium. 2. Recurso em habeas corpus improvido.52

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTIGO 183 DA LEI N. 9.472/97. OITIVA DE TESTEMUNHA DA DEFESA. INDEFERIMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. RÉU E DEFENSOR QUE SE

51 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 21/04/2018 52 STJ, RHC49159, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p. 28/03/16

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COMPROMETERAM A APRESENTAR TESTEMUNHAS INDEPENDENTEMENTE DE INTIMAÇÃO. ARTIGO 565 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. "Uma vez assumido pela defesa o compromisso de apresentação espontânea de suas testemunhas na audiência, eventual ausência configura verdadeira desídia defensiva, não podendo, portanto, o indeferimento dos pedidos de substituição do rol e de realização de nova audiência serem considerados como cerceamento de defesa" (HC 117.952/PB. Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 27/05/2010, DJe 28/06/2010). 2. A declaração de nulidade a que tenha dado causa ou para a qual tenha a parte contribuído, viola o princípio do nemo auditur propriam turpitudinem allegans e a disposição do artigo 565 do Código de Processo Penal. 3. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.53

De acordo com o já exposto, entende-se que o ordenamento jurídico brasileiro

recebe o princípio da boa-fé, quando valoriza condutas pautadas na lealdade.

Portanto, a má-fé caracteriza abuso do direito de defesa, sendo seu uso proibido

quando limitado apenas ao direito subjetivo, sem encontrar respaldo algum no direito

objetivo e nas leis.

A mentira, além de ferir a boa-fé processual, ainda traz consigo sério prejuízos

à parte enganada como também ao Estado, pois vai incumbir a ambos a

responsabilidade de desconstituí-la, impondo gastos materiais e de tempo para se

alcançar a verdade.

3.5 A MENTIRA E O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Ao acusar alguém da prática de determinado crime ou contravenção penal,

cabe a parte acusadora apresentar aos autos do processo as provas que comprovem

o que está sendo alegado no mérito. Ou seja, ao acusado não cabe responsabilidade

alguma, até que se prove sua culpa ou dolo.54

Segundo Guilherme de Souza Nucci, devemos compreender que:

Deve-se compreender o ônus da prova como a responsabilidade da parte, que possui o interesse em vencer a demanda, na

53 STJ, RHC40851, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, p.09/03/2016 54 NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal – o valor da confissão como meio de prova no processo penal, 2ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 26

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demonstração da verdade dos fatos alegados, de forma que, não o fazendo, sofre a ‘sanção processual’, consistente em não atingir a sentença favorável ao seu desiderato55

Tourinhos Filhos ainda afirma que:

(...)um imperativo que a lei estabelece em função do próprio interesse daquele a quem é imposto56

O acusado terá o “status” de inocente até sentença transitada em julgado de

sentença penal condenatório, como elucida o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição

Federal:

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;57

O acusado somente poderá ser culpado caso o Estado, por meio de sentença

penal condenatória, provar de forma indiscutível sua culpabilidade. Ele, o acusado,

amparado pelo princípio da ampla defesa, poderá mentir para se livrar de qualquer

acusação e manter a preservação da aplicação do princípio da presunção de

inocência sobre ele, já que a ele não cabe apresentar provas que desmintam as

acusações (apesar de que pode assim fazer). Apenas a sua inércia, mediante a

insuficiência de provas que sustentem as acusações é suficiente para afastar dele a

culpabilidade. Apesar de a mentira constituir um ato imoral, e que fere a dignidade da

justiça, ao acusado cabe o direito de usá-la.

A mentira pode trazer sérias consequências às fases pré-processual e

processual. Estudaremos a seguir essas consequências.

3.6 AS CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA NO INQUÉRITO POLICIAL

O inquérito policial, no Brasil, tem natureza administrativa e é através dele que

se dá a investigação criminal. É um procedimento administrativo que antecede a ação

55 NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal – o valor da confissão como meio de prova no processo penal, 2ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 26 56 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal – volume III, São Paulo: Editora Saraiva, 2011, p. 267 57 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 23/04/2018

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penal. É presidido por delegados de polícia de carreira, da policial civil ou da polícia

federal.58 Ele está normatiza na Carta Magna, em seu artigo 144, parágrafo 4º:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

(,..)

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.59 (grifos do autor)

O inquérito, fase preliminar do processo judicial, é uma fase pré-processual

onde são colhidos depoimentos, exames de corpo e delito (este com a utilização de

perícia), e a realização de atos necessários à verificação dos fatos, dos autores e

cúmplices, devendo ser reduzido a termo e, após concluso, remetido ao Ministério

Público para a promoção da ação penal.60

Apesar de sua importância, o inquérito policial pode ser dispensável, não

necessitando de investigação preliminar, nos casos em que o Parquet possuir

elementos suficientes para a interposição de ação penal, conforme preceitua o artigo

39, parágrafo 5º, do Código de Processo Penal pátrio.

Art. 39. O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial.

(...)

58 CRISTINA, Flávia; PAVIONE, Lucas; FRANCESCHET, Júlio Cesar . EXAME DA OAB - Doutrina. 9ª. ed. [S.l.]: JusPODIVM, 2018. Pgs. 1252,1253. v. Único. 59 BRASIL. Constituição de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em: 24/04/2018 60 CRISTINA, Flávia; PAVIONE, Lucas; FRANCESCHET, Júlio Cesar . EXAME DA OAB - Doutrina.

9ª. ed. [S.l.]: JusPODIVM, 2018. P. 1254. v. Único.

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§ 5o O órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias.61

O inquérito, por não contar com a presença de todas as partes, apenas de

uma, é um procedimento limitado, pois não leva em consideração o princípio do

contraditório e ampla defesa, mas pode servir de base para a ação penal pública ou

da queixa (nos casos de ação penal de natureza privada), e é sob essa perspectiva

que este trabalho abordará as consequências da mentira na fase pré-processual.

É possível, durante o inquérito, mentir a respeito da narração dos fatos

contados à autoridade policial.

Neste estudo, iremos abordar o ato de mentir acerca dos fatos narrados, na

tentativa de alterar a sua versão verdadeira e enganar a autoridade policial, prejudicar

o exame pericial no local do crime e esconder o cometimento do fato, na tentativa

desonesta de preservar o seu status de inocente e as consequências previstas Código

Penal e Código de Processo Penal.

É muito comum encontrarmos casos em que os autores dos crimes alteraram

o local do crime para dificultar as investigações, e resguardarem sua inocência.

Um caso emblemático e conhecimento nacionalmente, por tomar por

semanas a audiências das redes de televisão, é o caso da menina Isabella Nardoni.

A menina, no ano de 2008, quando possuía 5 anos de idade, foi arremessada da

janela do sexto andar do prédio onde morava com seu pai e sua madrasta. Nesse

caso, para esconder as provas que evidenciavam a autoria do crime, o casal, o pai de

Isabela e sua madrasta, adulterou a cena do crime, lavando as fraldas que serviram

para limpar o sangue de Isabela. O casal alterou o corpo do delito, criando obstáculos

para o trabalho dos peritos.62

Nesse caso, cometeram o crime de fraude processual, previsto no artigo 347

do Código Penal, que diz:

Fraude processual

61 BRASIL. Código de Processo penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso em: 24/04/2018 62 Disponível em < https://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2008/06/10/ult4733u17793.jhtm>

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Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:

Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.

Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.63

Outro caso onde se enquadrou este crime para os seus agentes foi o Caso

Richthofen, onde Suzane Von Richthofen, filha mais velha do casal Manfred e Marísia

von Richthofen, planejou, junto com os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos, o

assassinato dos seus pais. No decorrer das investigações, Suzane afirmou que

aconteceu um roubo na residência da família, seguido de morte. Ela revirou objetos

da casa para que a cena do crime se assemelhasse às condições de estado de um

local após um grande roubo.64

Os casos citados anteriormente são para exemplificar situações nas quais a

mentira foi usada para ocultar a verdadeira autoria do crime, na tentativa de enganar

os peritos e prejudicar o procedimento investigatório. Como já foi explicado, essas

mentiras foram descobertas, mas é necessário refletir o quão danosas elas poderiam

ser, caso a verdade não fosse constatada pela perícia. Outra reflexão a se fazer é a

de que talvez possam existir casos em que perícia foi ludibriada acerca da autoria de

crime já praticado, fazendo com que a impunidade tenha prevalecido até os dias de

hoje.

Não havendo o descobrimento da autoria de determinado crime, é impossível

a instauração de processo judicial. Mesmo que ocorra, posteriormente, a descoberta

da verdade dos fatos e como consequência disso, a constatação da mentira, inexiste,

em nosso ordenamento jurídico, lei que puna aquele que prejudicou as investigações

por mentir sobre a verdade dos fatos. Até porque o inquérito policial é um

procedimento administrativo e não oferece oportunidade de ampla defesa, diante

disso, resguardando o que preceitua a constituição em seu artigo 5º, inciso LV.

Portanto, ninguém pode ser condenado por mentir durante as investigações criminais.

63 BRASIL. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 26/04/2018 64 Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u124232.shtml> Acesso em: 26/04/2018

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Após conclusão das investigações e apurada a verdade dos fatos, é iniciada

a fase judicial, esta com garantia do direito à ampla defesa e do contraditório.

3.7 AS CONSEQUÊNCIAS DA MENTIRA EM JUÍZO

Já iniciado o processo criminal e com o seu decorrer, a sua parte mais

importante é aquela na qual ocorre o interrogatório do réu, onde o magistrado, além

das alegações e das provas já acostadas aos autos, irá formar o seu juízo de valor a

respeito do caso. Essa parte é caracterizada por ter um alto teor subjetivo, pois é nela

que ocorre o convencimento do magistrado acerca dos fatos, também é observada a

reação dos envolvidos e as impressões deixadas para o convencimento.

Durante o interrogatório, é conferida ao réu a oportunidade de ampla defesa.

Inicialmente, o réu será qualificado (identificado) e, como já foi explicado neste

trabalho, é proibido o seu silêncio no que tange as perguntas que o identifiquem.

Assim trata o Código de Processo Penal, em seu artigo 187:

Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do acusado e sobre os fatos.

§ 1o Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais.65

Em seguida, o réu tomará ciência de todas as acusações a ele feitas, e iniciará

o interrogatório, este com perguntar acerca das acusações. A partir daí, o réu poderá

exercer seu direito de ampla defesa e contraditório, podendo optar por responder as

perguntas ou ficar em silêncio.

O magistrado perguntará se é verdadeira a acusação que é feita ao acusado,

e caso ele negue, se existe algum motivo pelo qual está sendo atribuída a ele, se ele

conhece o verdadeiro autor do crime e se ele estava com o verdadeiro autor do crime

65 BRASIL. Código de Processo penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso em: 29/04/2018

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antes ou depois da prática da infração. Também será questionado onde ele estava no

momento da prática da infração, se ele conhece a vítima e testemunhas presentes, se

conhece o instrumento com o qual a infração foi praticada, todos os demais fatos e

pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da

infração e se ele tem mais alguma coisa a acrescentar.

O artigo 187, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal é muito claro ao

normatizar aquilo que deve ser perguntado ao acusado:

§ 2o Na segunda parte será perguntado sobre:

I - ser verdadeira a acusação que lhe é feita;

II - não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela;

III - onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta;

IV - as provas já apuradas;

V - se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas;

VI - se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido;

VII - todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração;

VIII - se tem algo mais a alegar em sua defesa.66

A verdade que o processo penal tanto busca, apesar de ser denominada

verdade real, é uma verdade relativa, pois é a verdade que pode ser alcançada, pois

o convencimento do juiz se apresenta como a consciência e o estado de ânimo que

foi atingida a verdade no seu mais alto grau de probabilidade.67

O magistrado sentencia o processo de acordo com o que está nos autos,

juntamente com o convencimento que lhe foi formado através da audiência de

instrução e julgamento, obedecendo ao brocardo quo non est in actis no est in hoc

66 BRASIL. Código de Processo penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso em: 29/04/2018 67 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, P. 31

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mundo (o que não está nos autos não está no mundo). A verdade contida nos autos

pode ser diferente da verdade real, diante disso, ocorre um antagonismo, já que a

mentira inserida nos autos passa a ser uma “verdade” formal, afastando do julgador a

justiça buscada pelo princípio da verdade real.68

O processo sentenciado, crendo o juiz nas mentiras contadas pelo réu, pode,

após o trânsito em julgado, ser reaberto, caso haja o surgimento de novas provas, que

possam vir a esclarecer a verdade.

O processo julgado através de falsas alegações, sem o descobrimento da

verdade, acaba corrompido, assim como também corrompido acaba o seu viés de

justiça democrático.

Para o processo criminal, como consequência da mentira do acusado, temos

apenas o atraso do curso do processo, conforme entendeu o Tribunal Regional

Federal da 3º Região por tratar que o acusado, que procura obter vantagem

processual pode ter esta atitude usada em seu desfavor, conforme relatou o

desembargador federal José Lunardelli, no ano de 2010:

HABEAS CORPUS. TRAFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. EXCESSO DE PRAZO.1 - Não há o excesso de prazo alegado, já que não há nos autos indicação de falhas na atuação do Juízo, ou que se possa imputar a ele a responsabilidade pelo transcorrer da lide, analisando eventuais excessos à luz do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. 2 - Paciente que revela no interrogatório o uso de nome falso. Atraso decorrente da necessidade de averiguar a verdadeira identidade do acusado. 3 - Ordem denegada.69

No Brasil, inexiste o crime de perjúrio, que é o crime de prestar falso

juramento, portanto não há no que se falar em punição para o acusado que mente

durante a fase pré-processual e durante a fase processual, pois este ato não está

tipificado no nosso código penal pátrio.

68 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo

tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, P. 31 69 MS 2010.03.00.010040-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI, Data de Julgamento: 14/09/2010, PRIMEIRA TURMA

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3.8 PROJETO DE LEI NO SENADO Nº 226/2006: O CRIME DE PERJÚRIO NO

BRASIL

Como já foi explicado anteriormente, no Brasil não está tipificado o crime de

prestar falso juramento, crime de perjúrio. No ano de 2006, esse crime foi objeto de

PL (projeto de lei) por iniciativa da Comissão Parlamentar de Inquérito. Esse projeto

foi instaurado para apuração de fraudes na Empresa de Correios e Telégrafos, mais

conhecida popularmente pelo nome de Correios, através de requerimento da então

senadora, da época, Ideli Salvati.

O projeto dispõe da ementa:

Ementa:

Acrescenta dispositivos ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e à Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952, que dispõe sobre as Comissãos Parlamentares de Inquérito. (Tipifica as condutas de fazer afirmação falsa ou negar a verdade, na condição de indiciado ou acusado, em inquéritos, processos ou Comissões Parlamentares de Inquérito).70

E da seguinte explicação da ementa:

Explicação da Ementa:

Alteração do Código Penal e da Lei das CPIs para tipificar como crime de falso testemunho a declaração falsa, na condição de testemunha, perito, tradutor ou intérprete, depoente, indiciado ou acusado, feita em inquérito civil ou administrativo e em comissões parlamentares de inquérito.71

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) do Senado Federal,

apresentou que, apesar de, atualmente, o acusado ter o direito de mentir, decorrido

do direito ao silêncio, acrescentando que não faz parte da natureza humana se auto

incriminar, ela, a CCJC, foi favorável à aprovação desse PL, pois acreditou que as

mudanças contribuiriam para o aperfeiçoamento da legislação processual.

Segue parecer completo:

PARECER Nº 1.064, DE 2008

70 BRASIL. Projeto de Lei no 226/2006 em tramitação no Senado federal. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=78481#DIV_TEXTOS>. Acesso em: 20/05/2018 71 Idem

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Da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 226, de 2006, de iniciativa da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, que acrescenta dispositivos ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal –, e à Lei nº 1.579, de 18 de março de 1952, que dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito. (Em audiência, nos termos do Requerimento nº 29, de 2007.)

Relator: Senador Álvaro Dias

I – Relatório O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 226, de 2006, de autoria da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, foi remetido a esta Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania em virtude da aprovação do Requerimento nº 29, de 2007, apresentado pela Senadora Ideli Salvatti.

O projeto incrimina o acusado ou indiciado que mentir ou negar a verdade, em processo judicial ou administrativo, inquérito policial, civil ou administrativo, ou em juízo arbitral (mediante modificação no Código Penal), ou, ainda, perante Comissão Parlamentar de Inquérito (por alteração da Lei nº 1.579, de 1952). Além disso, estende as hipóteses dos crimes de falso testemunho e falsa perícia ao processo administrativo e aos inquéritos civil e administrativo.

Na justificação, argumenta-se que a Constituição Federal assegura o direito ao silêncio, que não importará em confissão, nem poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, não significando, contudo, que o acusado ou indiciado possa mentir ou negar a verdade. Defende-se, portanto, uma interpretação restrita do princípio segundo o qual ninguém é obrigado a produzir prova contra si. O objetivo é impedir que o acusado ou indiciado, ao fazer afirmações falsas, comprometa a busca da verdade real.

No Requerimento nº 29, de 2007, a Senadora Ideli Salvatti externa sua preocupação com a matéria e ressalta que a mentira nada mais é do que um expediente de autodefesa do acusado, que não pode, por isso, ser censurado.

Não foram oferecidas emendas ao Projeto.

II – Análise

Preliminarmente, cabe mencionar que a matéria está adstrita ao campo da competência privativa da União para legislar sobre direito penal, conforme dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal.

O ponto controvertido do PLS nº 226, de 2006, é, sem dúvida, a incriminação do acusado ou indiciado que mentir ou negar a verdade.

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Inegavelmente, a Lei Maior inspirou-se em ideais democráticos, nos quais as liberdades públicas imperam e constituem limitações impostas ao próprio Poder Estatal. A Constituição assegura o direito ao silêncio, e, como direito que é, o acusado não pode ser prejudicado pelo seu exercício. Alguns doutrinadores entendem que o acusado ou indiciado pode até mentir. Assim, é lícito que negue a autoria do delito, que negue sua culpabilidade.

Certo é que muitos acusados adotam a mentira como estratégia de defesa, até porque isso não constitui crime. Ou seja, na lei, essa conduta não está tipificada.

A questão é saber se a Constituição lhe garante o direito de mentir, inserindo essa manobra no conceito de ampla defesa, de forma que eventual lei incriminadora seria inconstitucional.

Do nosso ponto de vista, o direito de o acusado mentir é muito restrito. Não lhe é dado criar versões falsas com o intuito de dificultar as investigações. Se assim o faz é porque, na lei, nada o impede, mas não seria inconstitucional a incriminação dessa conduta.

A garantia concedida ao acusado de não dizer a verdade, corolário do direito de calar-se, não representa um salvo-conduto para que possa mentir indiscriminadamente.

Não se admite, por exemplo, que, falsamente, atribua a terceiros a prática do delito. Com efeito, nos casos de crimes contra a honra, o Código Penal (CP) exclui a ilicitude da conduta quando a difamação ou a injúria são irrogadas na discussão da causa (art. 142, I); tal não se aplica, entretanto, ao crime de calúnia. Ou seja, o acusado que, a pretexto de defender-se, atribui falsamente a outrem fato definido como crime incorre no tipo do art. 138 do CP. Vê-se, portanto, que a lei ordinária já estabelece limitações razoáveis ao que se poderia entender como “direito de mentir”.

O direito de o acusado faltar à verdade restringese a não revelar elementos que facilitem a obtenção de provas que levem a sua condenação, até porque a auto-incriminação contraria a natureza humana. A título de exemplo, não se pode exigir que responda verdadeiramente se foi ou não o autor do delito.

No mais, temos que as modificações legislativas propostas pelo PLS nº 226, de 2006 são oportunas e contribuirão para o aperfeiçoamento da legislação processual.

III – Voto

Por todo o exposto, manifestamo-nos pela aprovação do PLS nº 226, de 2006.

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Sala da Comissão, 15 de outubro de 2008.72

Porém, a matéria não foi objeto de análise nas sessões deliberativas, tendo

seu arquivamento, de acordo com o artigo 332 do Regimento Interno do Senado, que

afirma que ao final da legislatura, serão arquivadas todas as propostas em tramitação

no Senado Federal.73

72Disponível em <http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=18/10/2008&paginaDireta=40752>, acesso em 23/05/2018 73 Disponível em <http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=23/12/2010&paginaDireta=00020&indSuplemento=Sim&codSuplemento=C>, acesso em 23/05/2018>

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4. A NECESSIDADE DO ESTADO BRASILEIRO PUNIR O ACUSADO QUE

MENTE

O rol dos direitos fundamentais, descritos no artigo 5º da Constituição Federal,

abordam a liberdade e o patrimônio. Este último é tratado infraconstitucionalmente

pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil. No Código de Processo Civil, é tido

como dever de todas as partes e de qualquer um que participe do processo a boa-fé

e a exposição da verdade, conforme o artigos artigos 5º e 77, incisco I, deste Código:

Art. 5o Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

(...)

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:

I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;74

Ainda, no Processo Civil, temos a punição com pagamento de multa para

aquele que age, dentro do processo, de má fé, é a litigância de má-fé, estabelecida

no seu artigo 81. O valor da condenação por litigância de má-fé varia de acordo com

o valor da causa, e mesmo este sendo um valor baixo, poderá o juiz fixar multa no

valor de até dez salários mínimos. Assim é prescrito:

Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.

§ 1o Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.

§ 2o Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.

74 BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em: 26/05/2018

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§ 3o O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos.75

Ou seja, já vemos na esfera cível, no Código de Processo Civil, uma

preocupação em punir aquele que atrapalha o andamento do processo civil e o desvia

da verdade, como também é notada uma preocupação em buscar e preservar a boa-

fé processual.

Na seara penal, temos apenas previsto em lei, como forma de combate à

mentira, os crimes de calúnia, difamação e falso testemunho.

Os crimes de calúnia e difamação visam evitar a mentira na vida das pessoas,

em sociedade, condenando aquele que atribui atitude inverídica, criminosa ou não, a

uma pessoa e espalha tal boato, inventando uma mentira na tentativa de prejudicar a

imagem da pessoa a quem foram atribuídas falsas acusações.

Calúnia

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

§ 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

§ 2º - É punível a calúnia contra os mortos.

(..)

Difamação

Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.76

Acontece que, esses artigos apesar de combaterem a mentira, não o fazem

processualmente, de modo a combater que o acusado atribua a si atitude inverídica

(no caso de negar a prática de um crime quando na verdade cometeu).

Durante o processo, a testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete que

mente acerca de determinado fato ou alegação é que pode sair prejudicada, pois está

75 BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm> Acesso em: 26/05/2018 76 BRASIL. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 29/05/2018

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tipificado no nosso Código Penal o crime de falso testemunho, que não inclui o

acusado nesse rol:

Falso testemunho ou falsa perícia

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.77

Para Vladimir Aras, a mentira deve ser punida no processo penal, devidos as

suas consequências:

Pior, da mentira pode advir o malbaratamento dos direitos da vítima ou de seus sucessores, que se verão privados da verdade no processo e de eventual direito à reparação pelo dano ex delicto. Da mentira pode vir o descrédito do Poder Judiciário, o desapreço público pelo sistema de justiça, em função de um julgamento equivocado no qual se tenha dado a condenação de um inocente acusado por um réu mendaz, ou, ainda, no qual tenha ocorrido uma absolvição injusta baseada no erro ou no engodo. Como não se admite a revisão criminal pro societate, para rescindir sentença que absolve um culpado, a mentira, a falha de ética, a burla terá valido a pena78

A mentira, dentro do processo penal e na fase pré-processual, deve ser

combatida em face as consequências que ela provoca na investigação criminal e no

andamento pelo processo. A punição deveria ser proporcional ao prejuízos causados

ao Estado, tendo em vista que uma mentira, que constitua um mínimo detalhe e que

não cause prejuízos para o Estado e para a construção da verdade de uma forma

geral não seja punida (podendo até ser enquadrada no princípio da insignificância),

mas que a mentira que mude consideravelmente o curso do processo e das

investigações sejam punida de acordo com os prejuízos de tempo e dinheiro que

foram causados.

77 BRASIL. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 29/05/2018 78 ARAS, Vladimir. A Mentira do réu e o artigo 59 do CP. In: Garantismo Penal Integral, organização CALABRICH, Bruno, FISCHER, Douglas e PELELLA, Eduardo. Editora JusPodium, Salvador, 2010.

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4.1 DA NÃO ACEITAÇÃO DA MENTIRA SEGUNDO DOUTRINADORES

PORTUGUESES E A JURISPRUDÊNCIA PORTUGUESA

No ponto de vista de António Pedro Barbas Homem, “o problema da verdade

antecede o da justiça”, concluindo que “uma decisão não pode ser justa se não for

verdadeira”.79Segundo o autor, “a verdade brilha e guia a nossa liberdade e a nossa

vontade, à medida em que a mentira “conduz-nos à escuridão e ao vazio”80. Diante

disso, concluiu o autor que uma pessoa acusada de cometer um crime, não pode

mentir para um juiz, pode apenas ficar calada, “pois tal significava aceitarmos a

mentira como critério de organização da sociedade”81.

Jorge de Figueiredo Dias e Germano Marques, ainda na doutrina portuguesa,

entendem que o direito à mentira é inexistente. Apenas é inexigível dizer a verdade,

na medida em que não há sanção para a mentira82.

Jorge de Figueiredo Dias, juntamente com Castanheira Neves e Cavaleiro de

Ferreira, afirma que o reconhecimento do direito ao silêncio, não garante “ao arguido

um verdadeiro direito de mentir83. Segundo o autor, “Nada existe na lei, com efeito,

que possa fazer supor o reconhecimento de um tal “direito””84, pois “Não existe, por

certo, um direito a mentir que sirva como causa justificativa da falsidade; o que sucede

simplesmente é ter a lei entendido ser inexigível dos argüidos o cumprimento do dever

de verdade, razão porque renunciou nestes casos a impo-lo”85.

O Superior Tribunal de Justiça português, embora reconhecer a inexistência

do crime de perjúrio no país, afirma ser inadmissível num Estado de Direito, o direito

de mentir do acusado:

VI – O direito ao silêncio não pode ser valorado contra o arguido. Porém, a proibição de valoração incide apenas sobre o silêncio

79 HOMEM, António Pedro Barbas. O que é o direito ? Lisboa: Principia Editora. Reimpressão, Janeiro de 2007, p. 67 80 HOMEM, António Pedro Barbas. O que é o direito ? Lisboa: Principia Editora. Reimpressão, Janeiro de 2007, p. 66 81 32 HOMEM, António Pedro Barbas. O que é o direito ? Lisboa: Principia Editora. Reimpressão, Janeiro de 2007, p. 67 82 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 233 83 DIAS, Jorge de Figueiredo. Clássicos jurídicos – Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1ª Ed. 1974 – Reimpressão 2004, p. 450. 84 Idem 85 DIAS, Jorge de Figueiredo. Clássicos jurídicos – Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1ª Ed. 1974 – Reimpressão 2004, p. 451.

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que o arguido adoptou como estratégia processual, não podendo repercutir-se na prova produzida por qualquer meio legal, designadamente a que venha a precisar e demonstrar a responsabilidade criminal do arguido, revelando a falência daquela estratégia;VII – Inexiste no nosso ordenamento jurídico um direito a mentir; a lei admite, simplesmente, ser inexigível dos arguidos o cumprimento do dever de verdade. Contudo, uma coisa é a inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade e outra é a inscrição de um direito do arguido a mentir, inadmissível num Estado de Direito; VIII a XVIII - (…). (Ac. do STJ, de 12.03.2008, in www.dgsi.pt (Proc. nº 08P694)86

86 Apud CARVALHO, Paula Marques. Manual prático de processo penal. Lisboa: Almedina Editora, 4ª edição, Junho, 2008, p. 365.

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CONCLUSÃO

A filosofia já traz, de forma geral, a “mentira” como algo ruim. Foi por isso que

alguns filósofos estabeleceram algumas condições para o seu uso, pois se ela fosse

algo bom, eles a tratariam como uma coisa boa, de forma geral.

O direito ao silêncio é uma alternativa, para o acusado, de não mentir,

caracterizando um comportamento ético e moral que não vem a prejudicar a busca

pela verdade processo, e não produz provas contra ele mesmo.

A ampla defesa e a possibilidade de ser considerado culpado apenas por via

processual, prerrogativas garantidas na Constituição Federal de 1988, permitem com

que o acusa minta, sobre os fatos narrados e sobre a autoria do crime, durante as

fases pré-processual e processual, o que vem a gerar gastos financeiros e temporais

para o Estado, assim como afastar o Poder Judiciário da verdade.

Esperar das pessoas atitudes éticas e morais não é algo que Estado deve

sempre contar. Por isso, é necessária a instituição do crime de Perjúrio no Brasil, e foi

uma irresponsabilidade as autoridades legislativas não darem a devida atenção que o

projeto de lei que criminalizava a mentira em Juízo teve.

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