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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO PÉTTRUS DE MEDEIROS LUCENA (IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE A ADI Nº 815-3/DF E A POSIÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA CAICÓ-RN 2016

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE … · hierarquia entre normas constitucionais, considerando tanto a ... destacando-se o contexto histórico ... compreendido entre a Primeira

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

PÉTTRUS DE MEDEIROS LUCENA

(IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

INCONSTITUCIONAIS NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE A ADI Nº 815-3/DF E A

POSIÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

CAICÓ-RN

2016

PÉTTRUS DE MEDEIROS LUCENA

(IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

INCONSTITUCIONAIS NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE A ADI Nº 815-3/DF E A

POSIÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – CERES – Campus de Caicó – como requisito para conclusão do curso de graduação em Direito.

Orientador: Prof. Esp. Saulo de Medeiros Torres.

CAICÓ-RN

2016

PÉTTRUS DE MEDEIROS LUCENA

(IN)APLICABILIDADE DA TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS

INCONSTITUCIONAIS NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE A ADI Nº 815-3/DF E A

POSIÇÃO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – CERES – Campus de Caicó – como requisito para conclusão do curso de graduação em Direito.

Orientador: Prof. Esp. Saulo de Medeiros Torres.

Data de aprovação: ____/____/_______

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof. Esp. Saulo de Medeiros Torres - Orientador

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

________________________________________

Prof. Esp. Ana Marília Dutra Ferreira da Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

________________________________________

Prof. Dr. Orione Dantas de Medeiros

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

A Deus, que rege;

A meus pais, que tentam;

A minha irmã, que tenta;

A meu amor, que tenta;

A todos os que tentam;

Aos heróis em anonimato, sejam eles

quem forem, estejam eles onde

estiverem;

Àqueles por quem a vida escolhe;

E a você, que gosta de ler dedicatórias!

RESUMO

O presente trabalho realiza um estudo crítico sobre os principais aspectos da Teoria das normas constitucionais inconstitucionais, desenvolvida pelo jurista alemão Otto Bachof na problemática da possível existência de uma hierarquia entre normas constitucionais, bem como analisa a posição adotada pela Suprema Corte brasileira, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 815-3/DF, acerca deste pensamento. Para tanto, contextualiza a época em que o pensamento de Bachof se desenvolveu, destacando os pressupostos elementares à teoria deste jurista alemão, bem como estuda a referida Ação de inconstitucionalidade, com enfoque no trâmite processual a ela aplicado e na argumentação exarada por aquele Tribunal para defender a inaplicabilidade do dito pensamento no Brasil, a qual se baseou na inexistência de uma hierarquia entre normas constitucionais oriundas do Poder Constituinte Originário, na impossibilidade de este ser controlado e na violação que esta Teoria ocasiona ao princípio da unidade da Constituição. Por fim, analisa as possíveis incongruências presentes nos argumentos utilizados para embasar a referida decisão, fundamentadas tanto na literatura jurídica pátria como na técnica jurisprudencial adotada pelo egrégio Tribunal mencionado.

Palavras-chave: Hierarquia entre normas constitucionais. Teoria das normas constitucionais

inconstitucionais. Suprema Corte brasileira. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº

815-3/DF.

ABSTRACT

The present study performs a critical study on the main aspects of the theory of constitutional rules unconstitutional, developed by German jurist Otto Bachof on the possible existence of a hierarchy of constitutional rules as well as analyzes the position adopted by the brazilian Supreme Court, in the judgment of the Direct Action of Unconstitutionality (DAU) nº 815-3/DF, about this thought. To do so, puts the time in which the thought of Bachof was developed, highlighting the basic assumptions of this theory German jurist, as well as studying the aforementioned Action of Unconstitutionality, with focus on the procedural process she had and on the recorded arguments by that Court to defend the irrelevance of that thought in Brazil, which was based on the absence of a hierarchy of constitutional norms from the Constituent Power Originating in, on the fact that this cannot be controlled and in violation that this theory leads to the principle of unity of the Constitution. Finally, analyses the possible inconsistencies present in the arguments used to support that decision, based both in legal literature homeland as in jurisprudence adopted by the egregious Court mentioned.

Keywords: Hierarchy of constitutional rules. Theory of constitutional rules unconstitutional.

Brazilian Supreme Court. Direct Action of Unconstitutionality (DAU) nº 815-3/DF.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................09

2 TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS, DE OTTO

BACHOF..................................................................................................................................10

2.1 CONTEXTO HISTÓRICO DO PENSAMENTO..............................................................11

2.2 CONSTITUIÇÃO MATERIAL VERSUS CONSTITUIÇÃO FORMAL...........................11

2.2.1 Constituição em sentido material.................................................................................12

2.2.2 Constituição em sentido formal....................................................................................13

2.3 A DIFERENÇA ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS..........................................................15

2.4 FORMAS DE INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS....16

3 O JULGAMENTO DA ADI 815-3/DF E OS ARGUMENTOS DA SUPREMA CORTE

BRASILEIRA..........................................................................................................................17

3.1 PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER CONSTITUINTE DERIVADO....18

3.2 O CAMINHO DA ADI 815-3/DF......................................................................................18

3.3 A ARGUMENTAÇÃO DO STF.........................................................................................19

3.3.1 Impossibilidade de hierarquia e controle no Poder Constituinte Originário...........20

3.3.2 Violação ao princípio da unidade da Constituição......................................................20

4 POSSÍVEIS INCONGRUÊNCIAS DENTRO DA ARGUMENTAÇÃO DO STF.........21

4.1 A DEFINIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL..........................................................22

4.2 O USO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO PARA DIRIMIR AS COLISÕES ENTRE

DIREITOS FUNDAMENTAIS................................................................................................23

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................24

REFERÊNCIAS......................................................................................................................27

9

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho desenvolve-se no intuito de abordar a Teoria das normas

constitucionais inconstitucionais, desenvolvida pelo jurista alemão Otto Bachof dentro da

problemática da possível existência de uma hierarquia entre normas constitucionais, bem

como analisar a posição adotada pela Suprema Corte brasileira no julgamento da Ação Direta

de Inconstitucionalidade (ADI) nº 815-3/DF, a qual determinou sua posição acerca deste

pensamento.

Para tanto, realiza-se inicialmente uma análise sobre a Teoria de Bachof, enfocando-se

o conceito histórico em que tal raciocínio foi desenvolvido, destacando-se o período de

incerteza jurídico-política que a Alemanha vivia à época de sua elaboração.

Continuamente, analisa-se exaustivamente a divisão constitucional de Carl Schmitt,

que serviu de base ao pensamento de Bachof, na qual aquele autor separa as normas

materialmente constitucionais, compreendidas como as que regulam os temas de maior

importância à nação, das normas apenas formalmente constitucionais, entendidas como as que

somente são consideradas constitucionais em virtude do processo legislativo mais solene a

que foram submetidas.

Em sequência, estuda-se outro pressuposto da Teoria de Bachof, a saber a divisão das

normas constitucionais em princípios constitucionais e regras constitucionais, o que, embora

seja tomado como um ponto de partida por aquele jurista alemão, não representa um consenso

doutrinário, com posições1 que, inclusive, refutam tal dissociação.

Em continuidade, apresentam-se as diversas hipóteses, elencadas por Otto Bachof em

sua Teoria, em que uma norma constitucional seria tida como inconstitucional, as quais

variam desde o processo legislativo a que foram submetidas até as próprias mudanças

verificadas no seio da sociedade.

Num segundo momento, estuda-se a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal

(STF) no julgamento da ADI nº 815-3/DF, desenvolvida no âmbito do suposto conflito entre

normas constitucionais e dentro da dissociação do Poder Constituinte em Originário e

Derivado, sendo esta última explicada detalhadamente.

Com este intuito, apresenta-se o trâmite processual que foi aplicado à mencionada

Ação de Inconstitucionalidade, com destaque ao suposto conflito normativo constitucional

1 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004. pp. 305-322.

10

que nela foi discutido.

Em continuidade, analisa-se detalhadamente a argumentação adotada pela Suprema

Corte brasileira no julgamento da ADI nº 815-3/DF, enfocando-se os principais argumentos

elencados por aquele Tribunal para justificar a posição por ele adotada, quais foram a

inexistência de uma hierarquia entre normas constitucionais do Poder Constituinte Originário,

a impossibilidade de se controlar este e o princípio da unidade da Constituição.

Num terceiro momento, analisam-se as possíveis incongruências existentes na

argumentação utilizada pelo STF quando da desconsideração da suposta existência de uma

hierarquia entre normas constitucionais, considerando tanto a doutrina constitucional pátria

como a jurisprudência daquele Tribunal.

Para isto, por derradeiro, enfoca-se a definição doutrinária sobre o que seria um

preceito fundamental, objeto que autoriza a tutela constitucional por meio de uma Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), bem como se estuda o uso da técnica da

ponderação na existência de um conflito entre direitos fundamentais.

Com esta abordagem, espera-se realizar um estudo crítico e satisfatório acerca da

Teoria das normas constitucionais inconstitucionais, de Otto Bachof, bem como da posição

adotada pelo STF no julgamento da ADI 815-3/DF.

2 TEORIA DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS INCONSTITUCIONAIS, DE OTTO

BACHOF

Inicia-se este trabalho com uma análise sobre a Teoria das normas constitucionais

inconstitucionais, de Otto Bachof, destacando-se o contexto histórico em que foi elaborada, os

pressupostos teóricos que a norteiam e as espécies de inconstitucionalidade que aquele autor

identificou na aplicação de seu pensamento.

A Teoria abordada, ressalte-se, foi instaurada com base em duas ideias básicas, quais

sejam a existência de um direito supralegal (natural), que serviria como parâmetro inicial à

verificação de normas constitucionais inconstitucionais, pensamento este visto por Bonavides

apud Medeiros2 como um verdadeiro devaneio jusnaturalista, e a presença de uma hierarquia

entre normas constitucionais, segundo a qual seria possível aferir a validade destas.

2 MEDEIROS, Orione Dantas de. Normas Constitucionais Inconstitucionais? In: Noções de Teoria da Constituição. 4ª reimpressão. Caicó: Prelo, 2016. p. 170.

11

2.1 CONTEXTO HISTÓRICO DO PENSAMENTO

Inicialmente, é necessário destacar que a Teoria das normas constitucionais

inconstitucionais, de Otto Bachof, foi gerada na Alemanha no contexto do pós-Segunda

Guerra Mundial, momento histórico de grande fragilidade sociopolítica deste país, razão pela

qual a maior preocupação do autor ao desenvolvê-la foi preservar os ditames basilares da

justiça natural dentro da Lei Fundamental alemã,3 visto que sempre haveria uma ordem

fundamental de valores cujo respeito seria necessário.4

É de se ressaltar que este teórico desenvolveu sua Teoria num momento de extrema

instabilidade sociopolítica e dentro de um país que recebeu fortes sanções internacionais em

virtude de suas ações durante a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, num verdadeiro contexto

desesperador, conforme preleciona Bonavides apud Medeiros5

Ademais, a Teoria desenvolvida por Bachof tem como uma de suas bases a

classificação desenvolvida pelo teórico alemão Carl Schmitt, no período histórico

compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais6, em normas materialmente

constitucionais e normas apenas formalmente constitucionais.

A grande preocupação ocasionada por aquele período histórico, no qual vigorava uma

"paz armada" e onde a eclosão de uma guerra de proporções globais era iminente, gerou um

grande esforço para que o poder das nações fosse contido7, razão pela qual a presente

classificação das normas constitucionais, a seguir detalhada, foi inaugurada.

2.2 CONSTITUIÇÃO MATERIAL VERSUS CONSTITUIÇÃO FORMAL

O primeiro pressuposto utilizado por Bachof para elaborar sua Teoria foi a divisão,

preconizada por Carl Schmitt, entre normas componentes da Constituição material e da

Constituição formal.

3 ESTRELLA, André Luiz Carvalho. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Revista de Direito da PGE/RJ, Rio de Janeiro, volume 58, ano 2004, p. 40. Disponível em: <http://download.rj.gov.br/documentos/10112/762965/DLFE-46221.pdf/Revista_58_Doutrina_pg_39_a_65.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2016.

4 Ibidem, p. 51.5 MEDEIROS, 2016, p. 169.6 KAMPMANN, Fábio Roberto et al. A Teoria da Constituição na obra de Carl Schmitt. In: IX Simpósio

Nacional de Direito Constitucional, 2011, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDCONST, 2011. p. 292. Disponível em: <http://www.abdconst.com.br/revista3/anaiscompletos.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2016.

7 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 60-61.

12

O parâmetro utilizado por Carl Schmitt para definir esta divisão, ressalte-se, foi o

motivo pelo qual uma determinada norma constitucional veio a compor o texto da

Constituição, quer tenha sido por causa da matéria sobre a qual dispõe, quer seja pelo

processo legislativo a que foi submetida.

2.2.1 Constituição em sentido material

Consoante a classificação de Carl Schmitt, Constituição em sentido material refere-se

ao conjunto de normas constitucionais que dispõem sobre matéria tipicamente constitucional,

comportando tanto comandos normativos escritos como costumeiros8, os quais a representam

em sentido estrito.9

Doutrinariamente1011, formou-se um consenso no sentido de entender que as normas

materialmente constitucionais dispõem, basicamente, sobre três assuntos: a estrutura do

Estado, a organização dos Poderes e os direitos e garantias fundamentais. A doutrina

dominante identifica outros temas sobre os quais tais comandos normativos podem versar,

como sobre a distribuição das competências, as formas de exercício do poder12 e, no

entendimento de Jellinek apud Medeiros13, a posição do cidadão no Estado, destacando14 que

as normas da Constituição material englobam todo e qualquer aspecto relativo a como a

ordem política se compõe e organiza, sendo consenso doutrinário o fato de que tais normas

regulam, sobretudo, os temas de maior relevância à nação.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88), inclusive, é

possível encontrar inúmeras normas materialmente constitucionais, em especial nos Títulos

iniciais deste diploma legal.

Como norma materialmente constitucional por regular a estrutura do Estado, destaca-

se o caput do Art. 1º, que destaca ser o Brasil fruto de uma união indissolúvel entre Estados,

Distrito Federal e Municípios.15

8 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 117.9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros Editores,

2013. p. 42.10 NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:

MÉTODO, 2014. p. 112.11 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. Bahia: JusPODIVM, 2013. p. 115.12 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 80.13 MEDEIROS, 2016, p. 159.14 BONAVIDES, op. cit., idem.15 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo,

Brasília, DF, 05 out. 1998, Seção I, p. 01. Disponível em:

13

Já alguns exemplos de normas materialmente constitucionais por regularem a

organização dos Poderes encontram-se no Art. 2º da CR/88, que consagra a Separação entre

os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como no Título IV do documento

constitucional, responsável por regular cada um dos Poderes constituídos mencionados.16

Por sua vez, podem ser identificadas normas da Constituição material que regulam os

direitos e garantias fundamentais no Título II da Constituição de 1988, onde se destacam

comandos normativos sobre direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais,

nacionalidade e direitos e partidos políticos.17

Assim, nota-se que as normas materialmente constitucionais estão exaustivamente

exemplificadas no corpo da Constituição de 1988 e dispõem sobre os assuntos

doutrinariamente aceitos como de maior importância à nação.

2.2.2 Constituição em sentido formal

Por outro lado, ainda em conformidade com a classificação de Carl Schmitt,

Constituição em sentido formal representa o conjunto de normas elaboradas por um processo

legislativo constitucional caracterizado por ser mais solene do que o processo legislativo de

elaboração da legislação ordinária.18

De início, é válido ressaltar que as normas formalmente constitucionais podem versar,

em tese, sobre qualquer matéria, ainda que de diminuta relevância ao Estado e à nação, tendo

em vista que este conjunto de dispositivos engloba, unicamente, as normas que se

incorporaram ao texto constitucional apenas por se submeterem a um processo legislativo

mais solene definido na Constituição. Ou seja, são normas constitucionais apenas na sua

forma de elaboração.

Ocasionalmente, é possível que as normas incorporadas à Constituição também

versem sobre matéria de maior relevância à nação19, como é o caso de todas as normas

materialmente constitucionais consideradas lícitas por terem passado pelo processo legislativo

constitucional solene. Todavia, o que aqui se destacam são as normas consideradas

constitucionais unicamente pelo processo de elaboração a que foram sobmetidas, mas que,

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/DOUconstituicao88.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2016.16 BRASIL, 1988, p. 01.17 Ibidem, pp. 01-04.18 NOVELINO, 2014, p. 112.19 CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 115.

14

materialmente, não possuem caráter constitucional.

Estas normas apenas formalmente constitucionais derivam da opção do Constituinte,

quer Originário quer Derivado, em dar a determinadas matérias, as quais não se inserem nas

normas da Constituição material, uma aparência constitucional, de modo a que todos os

efeitos jurídicos gerados pela constitucionalidade da norma sejam atingidos, algo que não

ocorreria com a mesma relevância caso a matéria em voga fosse destinada ao legislador

infraconstitucional.20

Assim como nas normas materialmente constitucionais, elencam-se doutrinariamente

vários exemplos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) de

normas que preenchem apenas os requisitos para serem consideradas formalmente

constitucionais, mas que não o conseguem ser também materialmente.

O primeiro exemplo destacado na doutrina21 é a regra contida no caput do Art. 54 do

Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), parte integrante da Constituição de

1988. Tal dispositivo constitucional é responsável por estender a um grupo restrito de

seringueiros carentes o direito de receber uma pensão vitalícia de valor mensal equivalente a

dois salários-mínimos22. Nota-se, de antemão, que tal regra não se compatibiliza com qualquer

dos assuntos tipicamente constitucionais, inclusive fazendo alusão expressa à legislação

infraconstitucional, tendo sido incorporada à Constituição apenas por opção do Constituinte.

Outro exemplo doutrinariamente destacado23 de norma apenas materialmente

constitucional é a regra contida no Art. 242, § 2º, da Constituição de 1988. Este comando

normativo determina que o Colégio Pedro II, situado na cidade do Rio de Janeiro, continuará

sendo federal24. Novamente, o Constituinte fez opção por regular um assunto que não possui

matéria tipicamente constitucional, inclusive citando o caso concreto da referida instituição de

ensino, o que evidencia o caráter eminentemente formal desta norma constitucional.

Todos os exemplos acima citados compreendem normas oriundas do Poder

Constituinte Originário. Todavia, tomando-se este trabalho como um parâmetro a futuros

pensamentos e conjecturas, é possível imaginar uma futura Emenda à Constituição de 1988

que seja responsável por incluir, no referido texto constitucional, um dispositivo que

igualmente não possuísse teor tipicamente constitucional, a exemplo de uma norma que

20 BONAVIDES, 2008, p. 81.21 MENDES; BRANCO, 2013, pp. 60-61.22 BRASIL, 1988, p. 31.23 NOVELINO, 2014, p. 112.24 BRASIL, op. cit., p. 26.

15

revogasse a regra do Art. 242, § 2º, da Constituição.

Desta feita, nota-se um considerável número de normas ínsitas à Constituição

brasileira, mas que, em sua essência, não possuem teor originalmente constitucional, apenas

localizadas nela por uma opção do Constituinte.

2.3 A DIFERENÇA ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS

O segundo pressuposto utilizado por Bachof para elaborar sua Teoria foi a

congregação, na expressão "normas constitucionais", tanto de princípios como de regras

constitucionais, ainda que, para alguns25, estes dois institutos sejam absolutamente

indissociáveis entre si.

Refutando este pensamento, Bachof elaborou sua Teoria congregando, na expressão

"normas constitucionais inconstitucionais", regras e princípios que são incompatíveis com a

Constituição, mesmo que alguns constem expressamente do texto constitucional ou, ainda,

demonstrem-se compatíveis, num primeiro momento, com a vontade do Poder Constituinte.

Assim, faz-se importante diferenciar os componentes desta expressão.

Princípios são comandos normativos de natureza jurídica anterior às normas e que

possuem superioridade em relação a estas. Sua função principal foge da realidade concreta,

pois eles buscam servir como base para o Direito, permitindo que este seja criado,

interpretado e aplicado.26

Regras, por sua vez, são comandos normativos juridicamente dependentes dos

princípios e a estes inferiores. Sua função principal é diretamente atrelada à realidade

concreta, posto que ela busca dar efeitos concretos àqueles comandos normativos, de modo

que possam ser vistos e seguidos na prática.27

Ressalte-se, ainda, que estas espécies normativas também se diferenciam quanto à

resolução de seus conflitos. Havendo conflito entre princípios, apenas há a mitigação do

princípio que não se deve aplicar ao caso concreto, ao passo que, se houver conflito entre

regras, uma delas necessariamente deve ser invalidada e retirada do ordenamento jurídico.28

25 GÜNTHER, 2004, pp. 305-322.26 BELMONT, Marcelo Novaes. A possibilidade de normas constitucionais originárias serem consideradas

inconstitucionais. Rio de Janeiro: EMERJ, 2013. p. 18. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2013/trabalhos_22013/MarceloNovaesBelmont.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2016.

27 Idem.28 BELMONT, 2013, pp. 19-20.

16

Um exemplo prático de como tais espécies normativas se encontram na Constituição

pode ser identificado em seu Art. 34. Ao passo que o inciso VII elenca inúmeros princípios

constitucionais, o caput do referido artigo representa uma regra, autorizando a União a

intervir em seus Estados e no Distrito Federal caso os mencionados princípios sejam

violados.29

2.4 FORMAS DE INCONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS

No contexto da divisão em regras e princípios, Bachof entende ser possível a

verificação da inconstitucionalidade de normas constitucionais de diversas maneiras, quer

relacionadas com a natureza do comando normativo, quer ligadas à relação deste para com

outras normas de cunho constitucional, quer geradas por mudanças no seio da sociedade.

A primeira hipótese de norma constitucional inconstitucional seria aquela que se

encontra dentro do texto constitucional, mas que foi oriunda de um processo legislativo

errôneo, de modo que não preencheria os requisitos constitucionais para sua inclusão na

Constituição. Tal norma, entendida como inconstitucional, poderia ser isolada das demais e,

assim, perderia sua eficácia no ordenamento jurídico.30

Outra possibilidade de uma norma constitucional ser inconstitucional seria a

decorrente do Poder Constituinte Derivado, a saber a Emenda Constitucional que fosse

incompatível com a Constituição. Ressaltando que parte do documento constitucional é

imutável, Bachof defende que a referida norma seria inconstitucional.31

Um terceiro caso em que seria possível declarar a inconstitucionalidade de uma norma

constitucional seria quando houvesse o confronto direto entre normas contidas na

Constituição, mas de hierarquia distinta. No entendimento do jurista alemão, sendo

identificado um conflito entre uma norma materialmente constitucional e outra apenas

formalmente constitucional, esta última seria a norma preterida em tal confronto.32

Outra hipótese que autorizaria a declaração de inconstitucionalidade de uma norma

constitucional seria quando a emissão desta dependesse de uma condição ou atendesse a uma 29 BRASIL, 1988, p. 07.30 PASSOS, Thaís Bandeira Oliveira; PESSANHA, Vanessa Vieira. Normas constitucionais inconstitucionais?

A teoria de Otto Bachof. In: XVII Encontro Preparatório para o Congresso Nacional do CONPEDI, 2008, Salvador. Anais... Salvador: CONPEDI, 2008. pp. 3762-3763. Disponível em: <file:///C:/Documents%20and%20Settings/Administrador/Meus%20documentos/Downloads/NORMAS%20CONSTITUCIONAIS%20INCONSTITUCIONAIS%20-%20Otto%20Bachof.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2016.

31 Ibidem, pp. 3763-3764.32 Ibidem, pp. 3764-3765.

17

expectativa que não fosse posteriormente verificada. Neste caso, o autor da Teoria defende

que tal comando normativo seria inconstitucional por perda do objeto.33

Também seria possível averiguar a inconstitucionalidade de uma norma constitucional

que violasse direito que fosse, simultaneamente, supralegal e positivado na Constituição.

Nesta situação, a norma seria declarada inconstitucional por violar o texto constitucional.34

Outra situação em que se verificaria a inconstitucionalidade de uma norma

constitucional seria o princípio constitucional que, não positivado no texto da Constituição,

também dissoasse do sentido desta. Um exemplo desta situação seria um princípio exterior às

disposições constitucionais, mas que decorresse da opção do Constituinte Originário pela

forma Federativa35. Nesta hipótese, opondo-se tal princípio às demais normas constitucionais,

far-se-ia uma análise sobre qual norma deveria ser tida como inconstitucional.

Por derradeiro, destaca-se a possível inconstitucionalidade de uma norma

constitucional por infringir um direito supralegal que não estivesse positivado. Nesta situação,

só seria viável fazê-lo caso a Constituição reconhecesse a existência deste direito natural.36

Desta feita, percebe-se que Bachof tentou hipotetizar uma série de casos em que

normas inicialmente constitucionais seriam inconstitucionais visando a um único objetivo,

qual fosse a declaração da inconstitucionalidade destas.

3 O JULGAMENTO DA ADI 815-3/DF E OS ARGUMENTOS DA SUPREMA CORTE

BRASILEIRA

Já estabelecida a Teoria de Bachof, bem como as ideias nas quais se funda e os

reflexos que possui na identificação de diversas formas de inconstitucionalidade de uma

norma constitucional, procede-se à análise da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal

(STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 815-3/DF, acerca

deste pensamento.

Todavia, para ser possível a compreensão plena do posicionamento jurisprudencial

adotado pelo STF no julgamento da referida Ação, é necessário diferenciar, de forma objetiva,

Poder Constituinte Originário de Poder Constituinte Derivado, ainda que, doutrinariamente37,

33 PASSOS; PESSANHA, 2008, pp. 3765-3766.34 Ibidem, p. 3766.35 Ibidem, pp. 3767-3768. 36 Ibidem, pp. 3769-3770.37 CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 237.

18

preze-se pela unicidade do Poder Constituinte.

3.1 PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO E PODER CONSTITUINTE DERIVADO

Poder Constituinte Originário, ou de primeiro grau38, é o poder de criar uma nova

Constituição39. Ressalte-se que este pode ter natureza histórica, se elabora a primeira

Constituição de um Estado, ou revolucionária, caso origine um documento que substitua uma

Constituição já existente40, que suas principais características são ser inicial, ilimitado,

autônomo, incondicionado e soberano41, bem como que seu titular é o povo, conforme posição

adotada pela doutrina42 e pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

(CR/88), ao preconizar, em seu Art. 5º, parágrafo único, que o poder emana, por completo, do

povo.43

Poder Constituinte Derivado, ou de segundo grau44, é, em sentido estrito, o poder de

modificar uma Constituição já existente45, alterando apenas partes desta. Por ser oriundo do

Poder Constituinte Originário, é limitado e condicionado ao rito que este determina. Seu

titular também é o povo46, mas quem o exerce é o Congresso, consoante o Art. 60, § 2º, da

CR/88.47

3.2 O CAMINHO DA ADI 815-3/DF

Estabelecida a diferença entre Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte

Derivado, parte-se à análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 815-3/DF, a

qual foi julgada em definitivo no ano de 1996.

A referida Ação de Inconstitucionalidade foi proposta pelo Governador do Estado do

Rio Grande do Sul, o qual pugnava pela inconstitucionalidade do Art. 45, § 1º e § 2º, da

Constituição de 1988, dispositivo constitucional responsável por fixar a quantidade de 4

38 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 18.39 Idem.40 NOVELINO, 2014, p. 48.41 FERREIRA, op. cit., idem.42 BULOS, 2014, p. 403.43 BRASIL, 1988, p. 01.44 FERREIRA, op. cit., idem.45 NOVELINO, op. cit., p. 58.46 BULOS, op. cit., p. 410.47 BRASIL, op. cit., p. 10.

19

Deputados Federais para cada Território e, para cada Estado, um número variável entre 8 e 70

Deputados Federais, sendo esta quantia proporcional à população de cada um deles.48

O argumento central apresentado pelo Governador daquele Estado era que a

Constituição, ao estabelecer um valor fixo para Territórios, e números mínimo e máximo para

os Estados, de Deputados Federais que os representassem na Câmara dos Deputados estaria

dando um valor desigual e desproporcional ao voto dos cidadãos brasileiros, visto, por

exemplo, que a população do Sul e Sudeste brasileiros representavam 57,7% da população

nacional, participavam de 77,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e, em

contrapartida, detinha apenas 45% da representação no Congresso Nacional.49

Este argumento do proponente da ADI 815-3/DF encontra guarida em parcela da

doutrina50 que considera só ser atingida a real igualdade de votos caso haja uma

proporcionalidade entre o número de representantes eleitos e a população componente de cada

região.

Antes de ser encaminhada à apreciação do Plenário do STF, a referida Ação de

Inconstitucionalidade seguiu ao Presidente do Congresso Nacional para consulta, tendo este

apenas apresentado o processo legislativo gerados do dito dispositivo constitucional51, e, nesta

ordem, à Advocacia-Geral da União e à Procuradoria-Geral da República para o parecer dos

respectivos órgãos, sendo que ambos refutaram a argumentação exarada pelo Governador do

Rio Grande do Sul, pautando tal recusa na impossibilidade de se estabelecer uma hierarquia

entre normas constitucionais.52 Findo este percurso, a ADI 815-3/DF seguiu ao Plenário do

STF para julgamento.

3.3 A ARGUMENTAÇÃO DO STF

No julgamento da ADI nº 815-3/DF, o Relator, Ministro Moreira Alves, em voto

seguido pelo plenário do STF por unanimidade53, rejeitou a aludida ação, que se fundava na

Teoria de Bachof, por impossibilidade jurídica do pedido.54

48 BRASIL, 1988, p. 08.49 ESTRELLA, 2004, p. 60.50 SILVA, 2013, p. 356.51 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão de Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 815-3/DF.

Relator: ALVES, Moreira. Publicado no DJe de 10/05/1996. p. 05. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266547>. Acesso em: 17 fev. 2016.

52 Ibidem, pp. 5-9.53 Ibidem, p. 17.54 Ibidem, p. 16.

20

Ao estabelecer sua posição, que refutava a aplicação da Teoria de Bachof no Brasil, a

Suprema Corte Brasileira sustentou dois argumentos principais em suas conclusões jurídicas,

quais foram a impossibilidade de se identificar uma hierarquia entre as normas componentes

do Poder Constituinte Originário, bem como de se controlá-lo, e a violação o referido

pensamento ocasiona ao princípio da unidade da Constituição.

3.3.1 Impossibilidade de hierarquia e controle no Poder Constituinte Originário

O primeiro argumento utilizado pelo STF, no julgamento da ADI acima mencionada,

para afastar a incidência da Teoria das normas constitucionais inconstitucionais do

ordenamento jurídico brasileiro é a inexistência de hierarquia entre normas constitucionais

oriundas do Poder Constituinte Originário, visto que, no entendimento do Relator, tal

existência é incompatível com a rigidez da Constituição de 198855.

Aliada à tese acima descrita, o Ministro Moreira Alves destacou a impossibilidade de o

STF realizar controle de constitucionalidade sobre normas oriundas do Poder Constituinte

Originário56, posto que tal controle não poderia ser, em tese, exercido por um poder

constituído, a saber o Judiciário.

Uma análise sobre a possível inconstitucionalidade do dispositivo que foi objeto da

ADI 815-3/DF, inclusive, confrontaria este a outro dispositivo integrante da Constituição,

defendendo o STF que sua legitimidade restringir-se-ia, tão somente, a resolver o confronto

entre uma norma constitucional e um dispositivo que não a integrasse (e não entre 2 normas

constitucionais).57

3.3.2 Violação ao princípio da unidade da Constituição

O segundo argumento utilizado pelo STF, no julgamento da ADI acima mencionada58,

para afastar a incidência da Teoria das normas constitucionais inconstitucionais do

ordenamento jurídico brasileiro é a violação ao princípio da unidade da Constituição, fato este

que se verificaria caso fosse estabelecida uma hierarquia entre normas constitucionais.59

55 BRASIL, 1996, p. 11.56 Ibidem, p. 15.57 Ibidem, p. 12.58 Idem.59 NOVELINO, 2014, p. 178.

21

O princício da unidade da Constituição, conforme doutrinariamente prelecionado60,

significa que, classificando-se uma Constituição como formal, todas as normas que a integram

devem ser tratadas com o mesmo grau de dignidade, de modo que não seja estabelecida

preferência ou hierarquia entre elas.

Consoante entendimento doutrinário, tal princípio impõe ao intérprete constitucional a

obrigação de, em existindo um conflito aparente de normas constitucionais, harmonizá-las

entre si61, não permitindo a ideia de haver uma hierarquia entre estas62. A origem de tal

entendimento residiria no fato de a Constituição ser um documento oriundo de um diálogo

entre forças políticas63, de modo que seria o próprio diálogo entre normas o meio adequado de

dirimir o conflito.

Da forma como é compreendido, este princípio impõe a todos os aplicadores de leis e

princípios jurícos, sejam Juízes ou não, o dever de, em um aparente conflito entre normas

constitucionais, comparar os comandos que cada uma delas exprime e, desta comparação,

decidir qual delas deve prevalecer na situação concreta.64

Desta forma, não seria possível conceber no ordenamento jurídico brasileiro,

caracterizado pela incidência de uma Constituição formal, em conformidade com tal

princípio65, uma hierarquia entre normas ínsitas à Constituição, quer sejam frutos do Poder

Constituinte Derivado, quer oriundas do Poder Constituinte Originário, visto que se exije uma

coerência normativa66 da ordem jurídica pátria.

4 POSSÍVEIS INCONGRUÊNCIAS DENTRO DA ARGUMENTAÇÃO DO STF

Feita a exposição do caminho processual utilizado no julgamento da ADI 815-3/DF,

bem como dos argumentos elencados pela Suprema Corte brasileira para refutar a mencionada

Ação e, por consequência, a aplicabilidade da Teoria de Bachof no Brasil, é indispensável

ressaltar que dois consideráveis indícios da existência de uma hierarquia entre normas

constitucionais, distribuídos tanto nos entendimentos doutrinários brasileiros como na própria

60 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1183.

61 NOVELINO, 2014, p. 177.62 BULOS, 2014, p. 459.63 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e

a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 326.64 CANOTILHO, op. cit., p. 1184.65 Ibidem, p. 1183.66 Ibidem, p. 1184.

22

jurisprudência do STF, são responsáveis por apontar uma possível incongruência dentro da

argumentação utilizada por aquele Tribunal.

4.1 A DEFINIÇÃO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

O primeiro indício revelador da existência de uma hierarquia entre normas

constitucionais refere-se ao tipo de norma constitucional que, violada, autoriza o ajuizamento

de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), remédio

constitucional introduzido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

(CR/88) e regulado pela Lei nº 9.882/99.

A ADPF é um remédio constitucional inédito, não encontrando instituto a si

equivalente em qualquer outro ordenamento jurídico67, de apreciação e julgamento reservados

ao STF, nos termos do Art. 102, § 1º, da CR/8868, e destinado à tutela dos preceitos

constitucionais tidos como fundamentais.

Preceitos fundamentais, objetos tutelados pela ADPF, são normas constitucionais

indispensáveis à preservação da identidade ou regime constitucional, comportando, ainda, os

direitos elencados como fundamentais69. Doutrinariamente70, os preceitos fundamentais

englobam normas constitucionais que fundamentam e preservam a ordem jurídico-política do

Brasil, além dos já mencionados direitos fundamentais. Outra parcela da literatura jurídica71

defende que os preceitos fundamentais comportam as normas contidas nos Títulos I e II da

Constituição de 1988.

Inclusive, é perfeito entendimento doutrinário72 no sentido de que, caso o preceito

constitucional violado não seja fundamental, a ADPF não é cabível, sendo válida a tutela da

norma constitucional apenas por Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) ou por

Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), o que evidencia o caráter subsidiário73 daquela

Ação constitucional. Tal característica da ADPF, ressalte-se, pode ser verificada tanto no

julgamento do mérito desta quanto na realização do juízo de admissibilidade acerca de seu

cabimento.74

67 BULOS, 2014, p. 327.68 BRASIL, 1988, p. 14.69 NOVELINO, 2014, p. 312.70 CUNHA JÚNIOR, 2013, p. 437.71 DANTAS, Ivo. Constituição & Processo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p. 671.72 Ibidem, p. 673.73 Idem.74 Ibidem, p. 676.

23

Outro aspecto relevante, tanto à compreensão de quando se autorizaria o ajuizamento

de uma ADPF quanto à fixação do conceito de preceito fundamental, é que esta via de tutela

constitucional só é permitida se a violação ao referido preceito for gerada pelo Poder

Público75, sendo inadmitida caso envolva uma entidade privada.

Nesta conjectura, considerando que a ADPF é um instrumento de tutela constitucional

inédito e exclusivo do ordenamento jurídico brasileiro, bem como que as normas por si

protegidas devem atender à qualificação especial de preceito constitucional fundamental, é

uma decorrência lógica de tais premissas, conforme defendido doutrinariamente76, entender

que houve o estabelecimento de uma hierarquia entre o preceito tido como fundamental e as

demais normas constitucionais, existindo, desta forma, uma hierarquia entre normas

componentes da Constituição.

4.2 O USO DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO PARA DIRIMIR AS COLISÕES ENTRE

DIREITOS FUNDAMENTAIS

O segundo indício revelador da existência de uma hierarquia entre normas

constitucionais é o uso da técnica da ponderação, admitida na jurisprudência do STF77, como

meio subsidiário e final para a resolução de conflitos de alta complexidade que envolvem a

colisão entre direitos fundamentais.

Em termos gerais, tal técnica, iniciada por Robert Alexy78, preleciona que, diante de

um conflito entre bens constitucionalmente tutelados, o intérprete constitucional deve,

analisando o caso concreto, escolher qual deles deve prevalecer79. Note-se que esta técnica

ainda se dota de certo subjetivismo conferido ao magistrado, sendo o estabelecimento claro de

parâmetros a sua aplicação um considerável desafio à doutrina constitucionalista.80

Desta feita, tem-se que a aplicação da técnica da ponderação na resolução de conflitos

entre normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais define, ainda que de uma

forma diretamente atrelada ao caso concreto em análise, uma hierarquia entre as normas

constitucionais conflitantes, posto que gera a aplicação de uma, em detrimento da outra, no

75 DANTAS, 2008, p. 672.76 Ibidem, pp. 670-671.77 BARROSO, 2013, p. 361.78 NOVELINO, 2014, p. 135.79 BULOS, 2014, p. 463.80 NOVELINO, op. cit., idem.

24

caso em análise, ainda que a doutrina81 insista na tese de que não há uma exclusão entre as

disposições em voga, mas sim a sobreposição de uma delas à outra.

Todavia, a forma como tal conflito é dirimido acarreta a inaplicabilidade de uma das

normas à situação analisada, e não a aplicação de ambas em graus distintos de incidência. Por

esta razão, defende-se a existência de uma verdadeira hierarquia entre as normas

constitucionais conflitantes, bem como a exclusão de uma delas à luz do caso concreto que

gera a colisão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho apresentou as ideias e as bases da Teoria das normas

constitucionais inconstitucionais, de Otto Bachof, bem como analisou a posição adotada pelo

Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº

815-3/DF.

Para tal fim, apresentou o conturbado contexto histórico em que o pensamento de

Bachof foi desenvolvido e destacou as bases de sua ideia, a saber a dicotomia entre

Constituição material e Constituição formal, herdada de Carl Schmitt, e a contestável

diferença entre princípios constitucionais e regras constitucionais, enquanto espécies

normativas.

Em sequência, analisou o julgamento da ADI nº 815-3/DF, realizado no contexto da

divisão entre Poder Constituinte Originário e Poder Constituinte Derivado, destacando o

trâmite processual da citada Ação de Inconstitucionalidade e a argumentação adotada pela

Suprema Corte brasileira, fundada na inexistência de uma hierarquia entre normas

constitucionais decorrentes do Poder Constituinte Originário, na impossibilidade de controle

deste e na afronta ao princípio da unidade da Constituição, para rechaçar a Teoria do jurista

alemão.

Finalmente, estudou as possíveis incongruências que podem ser identificadas na

argumentação tecida pelo STF, se comparadas à doutrina pátria e à técnica jurisprudencial

deste tribunal, a saber quanto à definição do que seria um preceito fundamental e quanto ao

uso da técnica da ponderação na resolução de colisões entre direitos fundamentais, de modo

que identificou verdadeiros indícios da existência de uma hierarquia entre as normas

81 BARROSO, 2013, p. 361.

25

constitucionais brasileiras.

Ainda é um pequeno passo, mas as análises feitas neste estudo podem representar um

ponto de partida para uma futura aceitação da Teoria de Bachof no Brasil, visto que o

primeiro pressuposto apresentado pelo STF para fundamentar sua posição resta, agora,

questionado.

Futuramente, caso os indícios de uma hierarquia entre normas constitucionais

convertam-se em provas aceitas da existência desta, o único argumento subsistente da

Suprema Corte brasileira seria a impossibilidade de serem controladas as normas oriundas do

Poder Constituinte Originário.

Tal argumento, todavia, também encontra a possibilidade de ser questionado, visto

que, como já foi anteriormente destacado, o Poder Constituinte Originário já foi responsável

por criar normas desprovidas de matéria tipicamente constitucional, a exemplo do Art. 242, §

2º, da Constituição de 1988 e do Art. 54, caput, do Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias (ADCT).

Caso se chegue a um ponto em que seja convocada uma nova Assembleia Constituinte

e, por consequência, se gere uma nova Constituição, se esta trouxer em seu texto duas normas

em evidente conflito, sendo uma norma materialmente constitucional e outra apenas

formalmente constitucional, o que fazer?

Parece razoável pensar que, num conflito direto entre uma norma apenas da

Constituição formal e outra integrante da Constituição material, deve esta última prevalecer,

visto que regula um tema de relevância maior à nação. Caso o suposto conflito seja realmente

direto, é de se imaginar que gere uma enorme necessidade de ser sanado, posto que a

persistência da validade de uma norma constitucional conflitante com outra que a si é

superior, pelo argumento único de que nenhuma norma constitucional pode ser revogada por

outra, é capaz de gerar um prejuízo político, jurídico e social de consequências imensuráveis,

já que traria à sociedade a obrigação de cumprir uma norma constitucional claramente

conflitante com outra norma de maior relevância. Ou seja, obrigaria a observância de uma

norma constitucional, em tese, inconstitucional.

O ordenamento jurídico brasileiro nunca enfrentou um conflito normativo de tal

proporção, razão pela qual a doutrina dominante e a jurisprudência do STF aparentam não ter

uma resposta definitiva sobre qual seria a medida a ser adotada neste hipotético conflito

normativo. Diante da omissão doutrinária e jurisprudencial, a Teoria das normas

26

constitucionais inconstitucionais, de Otto Bachof, pode surgir como uma alternativa viável à

referida pacificação normativo-constitucional.

Por atualmente se incluir mais no campo teórico do que no universo prático, a

resolução deste conflito hipotético não foi, naturalmente, abordada neste estudo. Por sua vez,

os objetivos centrais deste trabalho, que foram a análise da Teoria das normas constitucionais

e da posição adotada pelo STF no julgamento da ADI 815-3/DF, restaram mais precisamente

analisados.

Este trabalho se encerra com a sensação de ter alcançado os objetivos centrais e

específicos a que se destinou, bem como com o sentimento de que contribuiu com uma

pequena parcela para uma melhor compreensão acerca do conflito entre normas

constitucionais. Em contrapartida, também impera a percepção de que ainda há muito a ser

estudado, pensado e desenvolvido sobre este tema, visto que a mutabilidade social, jurídica e

política é bastante capaz de apresentar conflitos e situações constitucionais para as quais o

Direito Constitucional, por mais bem refletido que atualmente seja, ainda não possua uma

solução concreta e consolidada.

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