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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DO TRAIRI
GRADUAÇÃO EM NUTRIÇÃO
MAYARA PRISCILLA DANTAS ARAÚJO
COMIDA DE FESTA: IDENTIDADE HISTÓRICO-CULTURAL NA CULINÁRIA DA FESTA DE SANTANA DE CURRAIS NOVOS, RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL
SANTA CRUZ – RN 2018
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MAYARA PRISCILLA DANTAS ARAÚJO
Comida de festa: identidade histórico-cultural na culinária da Festa de Santana de Currais Novos, Rio Grande do Norte, Brasil
Artigo Científico apresentado a Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Nutrição. Orientador: Profª Drª Larissa Grace Nogueira Serafim de Melo.
SANTA CRUZ – RN 2018
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MAYARA PRISCILLA DANTAS ARAÚJO
Comida de festa: identidade histórico-cultural na culinária da Festa de Santana de Currais Novos, Rio Grande do Norte, Brasil
Artigo Científico apresentado a Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Nutrição.
Aprovado em: _____ de _____________ de ___________.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Núbia Maria Freire Vieira Lima – Presidente da banca Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (FACISA/UFRN)
Profª Ms. Rebekka Fernandes Dantas – Membro da banca Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Profª Ms. Mariana Silva Bezerra – Membro da banca Faculdade de Ciências da Saúde do Trairi (FACISA/UFRN)
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À minha família, pоr acreditar е investir em mim, sem vocês eu nada seria.
5
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Larissa Grace por todo o ensinamento, paciência,
apoio e confiança dada ao longo da minha formação e na elaboração deste trabalho.
Aos meus pais e minha irmã por todo o amor, incentivo e apoio incondicional,
vocês fazem tudo valer a pena.
Aos amigos que conquistei durante a graduação, obrigado pelo apoio, amor e
carinho durante essa fase.
A todos os professores que contribuíram para a minha formação, meu muito
obrigado por partilharem seus conhecimentos.
Agradeço a todos que contribuíram direta e indiretamente para a minha formação,
sem vocês eu não chegaria até aqui.
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“O comer coletivo, coroamento de um trabalho coletivo não é um ato biológico, mas um
acontecimento social.”
Mikhail Bakhtin
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9
2 METODOLOGIA ................................................................................................................................... 12
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO ......................................................................................................... 13
4 CONCLUSÃO ....................................................................................................................................... 18
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 20
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Comida de festa: identidade histórico-cultural na culinária da Festa de Sant’Anna de Currais Novos, Rio Grande do Norte, Brasil
Mayara Priscilla Dantas Araújo1
Resumo: Este artigo buscou identificar e compreender quais as preparações culinárias
vendidas durante a festa de Sant’Anna como elemento histórico-cultural na festa da
padroeira de Currais Novos. Para isso foram realizadas entrevistas semiestruturadas com
culinaristas locais, sendo os dados das entrevistas analisados e identificadas as
preparações mais citadas. A partir das análises de conteúdo, constatou-se que as
principais preparações vendidas durante a festividade de Sant’Anna foram: creme de
galinha, cachorro quente e tortas doces, comidas não identificadas como regionais.
Apesar disso, foi identificado pratos à base de carne sol como sendo o mais
representativo da culinária local e a buchada como típica da região, sendo o prato
regional com maior procura pelos comensais. Pode-se observar a influência da
globalização alimentar, porém, ainda são encontradas preparações regionais dentro das
festividades locais, mantendo viva a culinária regional.
Palavras-chave: Cultura; Identidade Alimentar; Culinária.
1 Graduanda em Nutrição pela Faculdade de Ciências da Saúde do Trairí, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(FACISA/UFRN).
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1 INTRODUÇÃO
A cultura se configura como uma teia de significações, a qual caracteriza uma
sociedade ou grupo social, englobando aspectos morais, materiais, espirituais,
intelectuais, de sistemas, signos e afetivos. Além disso, faz parte de um contexto em que
os comportamentos sociais podem ser descritos e interpretados de forma complexa,
contribuindo para manutenção da ordem social (PORTO, 2011; SILVA, 2010).
Como umas das expressões culturais mais significativas têm-se a comida, que
possui posição central no aprendizado social devido à sua natureza vital e essencial, além
de, ao ser escolhida pelas pessoas, indicar uma padronização revelando em que cultura
cada indivíduo está inserido (LEANDRO, 2009; MINTZ, 2001). Esse ponto também é
abordado por DaMatta (1986: 37), o qual expõe que “a comida não é apenas uma
substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se”, que
levam a representação e diversificação de culturas, ao modo em que o mesmo alimento
pode ser consumido de formas variadas por povos distintos, diversificando e
diferenciando-os.
A comida e o ato de comer possuem significados que vão além das necessidades
nutricionais humanas. O homem requer uma dieta quantitativa e qualitativa, ou seja, não
são necessários apenas nutrientes. A cultura alimentar brasileira é um bom exemplo
disso, já que a mesma é voltada muito mais para o prazer e gosto pelo comer do que para
o valor nutritivo que o alimento possui (LEONARDO, 2009).
Dentre os patrimônios de um povo está toda sua estrutura alimentar que, de acordo
com Mascarenhas e Gândara (2012), “é parte da organização social, das relações entre
indivíduos pertencentes a grupos da sociedade e da totalidade integrante da cultura e do
patrimônio dos povos”, é a comida que define as pessoas e grupos, assim como seu
modo de fazer, estar e viver.
O corpo humano conseguiu se adaptar ao consumo de alimentos distribuídos na
região onde o grupo se encontra, sendo esse o ponto de partida para a construção de sua
cultura alimentar. O desenvolvimento dessa cultura é também influenciado por fatores
socioeconômicos, variando de acordo com a distribuição da riqueza na sociedade, grupos
e classes de pertencimento, que são marcados por diferenças, hierarquias, estilos e
modos de comer, o que implica em maior atribuição de significados aos alimentos
(CONTRERAS, 2011; CANESQUI E GARCIA, 2005).
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A culinária é matéria cultural na qual estão envolvidas questões históricas,
geográficas, ecológicas, climáticas, sociais, econômicas, técnicas e culturais. Neste
contexto, são incorporados diversos valores, dentre eles os simbólicos, que caracterizam
traços culturais associados à alimentação. A cozinha regional resulta da miscigenação
das culturas alimentares, constituída pelos hábitos alimentares tradicionais (com raízes
históricas) e cotidianos (mescla do que é tradicional com os novos hábitos), sendo
composta por representações, crenças, conhecimentos e práticas passadas de geração
para geração ou compartilhadas no grupo social. A cultura alimentar de um povo reflete a
sua identidade social, conferindo sentido às escolhas e hábitos alimentares. No Brasil, a
mesa e a cozinha regional têm suas origens principalmente na mescla das influências
portuguesa, indígena e africana (BRAGA, 2004; CANESQUI, GARCIA, 2005; MOREIRA,
2010; TADDEI, 2011; CONTRERAS, 2011).
Cada povo que contribuiu para origem da culinária brasileira deixou sua marca no
modo de se alimentar. Os portugueses, por terem uma alimentação baseada no uso do
azeite de oliva, trouxe o uso de gorduras que, no Brasil, foi substituída inicialmente pela
gordura animal, assim como o consumo do açúcar. Os indígenas viviam exclusivamente
da caça, pesca e de raízes colhidas, possuindo uma alimentação baseada em amidos e
raízes, como a macaxeira, inhame e batata doce, assim como o hábito de assar as
comidas. Já os africanos trouxeram uma nova maneira de cozinhar os alimentos, os quais
tinham o hábito de cozer os alimentos misturados em uma mesma panela. Os africanos
faziam grande uso dos derivados da mandioca, como a farinha, goma e polvilho, assim
como da rapadura e fubá (LEONARDO, 2009).
O Seridó potiguar possui identidade territorial marcante, estruturada a partir da
valorização simbólica do território pelos indivíduos, principalmente devido a sua culinária
local que tem como base os hábitos alimentares dos povos indígenas que viveram nessa
região e dos negros que foram trazidos durante o ciclo do gado para trabalhar nas
grandes fazendas. Essa identidade territorial está fortemente relacionada ao valor
simbólico dos pratos típicos regionais, que são ligados aos rituais de comensalidade. Tais
hábitos alimentares ainda podem ser observados atualmente, especialmente os advindos
da pecuária, com o elevado consumo de carnes, além da macaxeira, milho e produtos
lácteos (AZEVEDO, 2011; CANESQUI, GARCIA, 2005; DANTAS, 2008).
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O antigo povoado fundado pelo Coronel Cipriano Lopes Galvão que deu origem a
Currais Novos, situada na microrregião do Seridó Oriental, teve grande crescimento a
partir da vinda das fazendas de gado, da qual originou seu nome, devido à criação de
“currais novos” para a criação bovina, tornando-a símbolo do desenvolvimento pastoril da
região. Devido a essa atividade econômica ser marcante na região, as carnes e o leite e
seus derivados são alimentos com presença constate na mesa dos seridoenses (IDEMA,
2008; DANTAS, 2008; ARAÚJO, 2003).
No dia 26 de julho comemora-se o dia de Sant’Anna, padroeira da cidade de
Currais Novos, tendo início com a construção de uma capela no ano de 1808. Devido à
religiosidade do povo seridoense, as festas de padroeiro são um dos maiores e principais
eventos da sociedade local, na qual se celebra o santo(a) protetor(a) da cidade. Segundo
Carvalho (2015), é durante esse período que os filhos da cidade retornam para celebrar e
prestigiar o santo padroeiro além do desejo de resgatar as tradições locais e se
confraternizar com parentes e amigos.
A Festa de Sant’Anna aquece o turismo sócio-religioso local, principalmente pela
devoção do povo à Sant’Anna, pelas tradições religiosas, hospitalidade e acolhimento do
povo seridoense. É durante este período que as pessoas procuram praticar a
comensalidade e buscam àqueles alimentos festivos, que são consumidos em datas
comemorativas, como as festas de padroeiro (CARVALHO, 2015).
Dentro da programação das festividades de Sant’Anna, que duram 10 dias, ocorre
a Feirinha de Sant’Anna, que reúne diversas barracas destinadas à venda de artesanatos,
comidas e bebidas. A Feirinha, dentro de uma festa de padroeiro, pode ser traduzida,
segundo Morais e Dantas (2006: 16), como uma maneira de contentamento ”pelo
degustar de comidas típicas, cujo paladar transcende o gosto em si para situar-se no
prazer de saboreá-lo naquele ambiente, compartilhando com familiares e amigos”.
Dessa maneira, o presente estudo tem como objetivo identificar e compreender
quais as preparações culinárias vendidas durante a feirinha de Sant’Anna como elemento
histórico-cultural na festa da padroeira do município de Currais Novos, Rio Grande do
Norte, Brasil.
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2 METODOLOGIA
Este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, com coleta de dados realizada
pelo uso da técnica de entrevistas semiestruturadas com questões abertas, sendo os
dados analisados a partir da análise de conteúdo das entrevistas, a qual envolveu a
transcrição, identificação das preparações mais citadas e o contexto no qual elas estavam
inseridas.
A Feirinha de Sant’Anna reúne diversas barracas destinadas à venda de comidas e
bebidas. No ano de 2017 contou com a participação de 8 barracas de culinaristas locais
vinculadas à secretaria de turismo e à Câmara de Dirigentes Logísticas (CDL) da cidade,
que são responsáveis pela estruturação dos espaços e organização da Feirinha. Essas
culinaristas foram entrevistadas acerca das preparações vendidas durante o período da
Festa de Sant’Anna, em especial sobre esse evento, e quais as preparações que elas
consideraram típicas da região/cidade.
As entrevistas semiestruturadas permitem maior flexibilidade do rumo da entrevista,
uma vez que permite ao entrevistador acrescentar perguntas não previstas no roteiro para
melhor assimilação da perspectiva dos entrevistados. Foi elaborado um roteiro com
perguntas norteadoras, as quais se relacionavam com a significação da culinária,
preparações culinárias típicas e representativas da cidade de Currais Novos.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de
Ciências da Saúde do Trairi (FACISA/UFRN) parecer número 2.081.247.
A participação e a gravação das entrevistas só foram realizadas após autorização,
por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e Termo de Autorização de
Gravação de Voz, respectivamente, recomendado para pesquisas com seres humanos
pela Resolução Nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Foi garantido o anonimato
dos sujeitos que participaram do estudo.
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3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
As festas populares são compreendidas como um círculo de sociabilidades festivas,
nas quais são celebradas e festejadas diferentes tradições, tendo como base a comida,
que caracteriza tal celebração (FARIAS, 2005; LIMA FILHO et al, 2013). As festas são
momentos sociais nos quais os homens praticam a sociabilidade, se harmonizam e
constroem suas identidades sociais através de representações culturais. Tal cultura é
percebida não somente na alimentação diária, mas principalmente nas comidas de festa
(CRUZ; MENEZES; PINTO, 2008).
A partir das análises de conteúdo das entrevistas, foi possível constatar as
principais preparações vendidas durante a festividade de Sant’Anna, as quais foram:
creme de galinha, cachorro quente e tortas doces, que não são identificadas como
preparações regionais, porém tem grande aceitação dos comensais, como citado pelas
entrevistadas.
“A gente faz as tortas, creme de galinha, cachorro quente, tudo feito no dia, só as
tortas que ela faz num dia e ajeita porque também não dá tempo não. (...) Nunca
tivemos ninguém pra chegar e reclamar que a comida tava isso e isso. A gente só
recebe elogios.”
Esse ponto está relacionado ao espaço cada vez maior que os alimentos
globalizados têm ganhado na alimentação das pessoas em geral, em vista que o
consumo de alimentos típicos/regionais está perdendo espaço na mesa dos
consumidores, sendo unânime sua venda nesses festejos.
“Porque assim, no projeto são, no caso, oito barraqueiras ai tudo é, faz a mesma
coisa, ai às vezes é que elas botam coisas diferentes.”
Lima Filho et al (2013), em estudo acerca da venda de alimentos em uma festa de
padroeiro, buscou compreender esse fenômeno. O que foi observado é que, apesar das
diversas opções disponíveis, tanto os consumidores quanto os comerciantes preferiam os
alimentos globalizados pelo menor preço, rapidez no consumo e praticidade.
Apesar das entrevistadas enfatizarem pratos não regionais como sendo os mais
vendidos na Feirinha, também foi identificado pratos à base de carne sol como sendo o
mais representativo da culinária local; sendo citada a carne de sol na nata e a tapioca
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recheada com carne de sol na nata. Esse também foi um ponto observado por Lima Filho
et al (2013), o qual destacou algumas preparações regionais que obtiveram boa aceitação
pelos comensais, contribuindo para o fortalecimento da culinária local.
Quando questionada sobre qual prato típico representava a culinária local, a
culinarista relembrou um episódio no qual foi entrevistada por um programa local sobre o
assunto:
“(...) quando teve aquele... que veio de Natal, né? Pra fazer uma entrevista com a
gente. Era tapioca de carne de sol na nata. Que é que a gente foi entrevistada pra
passar na televisão, num foi? Ai pronto.”
A carne de sol, também conhecida como carne do sertão, é uma carne salgada e
seca, mais consumidas que as carnes frescas (CASCUDO, 2011: 810). O processo da
salga foi hábito herdado dos portugueses, conforme Cascudo (2011: 33), que já secavam
frutas e peixes ao sol, assim como o uso do sal nas preparações, uma vez que os
indígenas não tinham o hábito de salgar as carnes para conservá-las.
Segundo Dantas (2008), as festas são ocasiões propícias para o consumo de
carne, uma vez que a carne é um símbolo de prestígio e diferenciação social, porque, não
ter carne na mesa ou no prato é um sinal de pobreza, diante disso, a pessoa que não
pode comer um pedaço de carne é considerada em condição socioeconômica ou
nutricional precária. O elevado consumo de carne pelos seridoenses se dá, em parte, pelo
significado dado a esse alimento, o qual é considerado um alimento forte, que dá
sustância e é saudável, se tornando indispensável, principalmente nos dias festivos, pelo
seu prestígio.
Como herança dos indígenas que outrora habitaram as terras que hoje é Currais
Novos, ainda há uma grande procura pela tapioca, feita de “goma fresca”, produto do
processamento da mandioca, do qual também se origina a “goma seca”, utilizada no
preparo de beiju, e a farinha (LIMA et al, 2016).
A tapioca é geralmente consumida com recheios, que podem ser diversos, mas
destacam-se aqueles com ingredientes locais como o citado pelas culinaristas, que é o de
carne de sol na nata, preparação que também faz a junção de dois alimentos que fazem
parte da cultura e hábito alimentar do seridoense.
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Mesmo no meio das vacas, o sertanejo não bebia seu leite puro, sempre sendo
servido acompanhado de algum alimento mastigável como arroz. Segundo Cascudo
(2011: 26), apenas os derivados do leite eram recomendados e bons. Devido à
preferência dos sertanejos pelos caldos, cozidos e alimentos com líquidos, houve a
criação da carne de sol na nata, de modo a melhorar a palatibilidade da carne seca ao
acrescentar-lhe a nata. A nata resulta de uma camada de gordura solidificada que é
formada sobre o leite e é retirada e armazenada com sal para conservá-la (LEMOS,
2008).
Outra preparação identificada como típica da região foi a buchada, sendo o prato
regional com maior procura pelos comensais que frequentam a Feirinha de Sant’Anna.
Esse prato, feito a partir do bode ou do carneiro, é uma iguaria muito apreciada pelos
seridoenses, caracterizando, segundo Cascudo (2011: 561), como um prato de domingos
festivos, uma preparação para dias especiais, como a Feirinha de Sant’Anna, dia
destinado a reencontros e festejos, principalmente por requerer muito tempo e mão de
obra para sua preparação.
“O que sai na Feirinha é... o povo procura muito buchada. Buchada de bode.”
Esse é um prato que exige cozimento regular, lento e longo, não sendo de fácil
reprodução na vida urbana. De acordo com Cascudo (2011: 562), a buchada, por ser uma
preparação cozida, foge ao modo de preparo dos indígenas que assavam todas as
entranhas das carnes. Essa preparação está relacionada ao modo de cozinhar dos
portugueses, que preferiam os alimentos cozidos. Porém, em nenhuma dessas culturas
há algum prato semelhante à buchada.
“Já tive de vender na feirinha buchada, picado, galinha, arroz, tudo eu levava. (...)
Mas é um negocio muito dependioso, precisa de muita gente para ajudar.”
Castro (2005, p. 180) ao abordar a matança do gado, carneiro e bode, deixa a
entender que isso era um momento festivo e especial para a preparação e consumo das
comidas feitas a partir desses animais, com as partes mais perecíveis como as vísceras
eram preparadas buchadas e paneladas, reservando para outros dias a carne dos
músculos, fresca ou seca, como a carne de sol.
16
Assim como a buchada, a feijoada servida todo terceiro domingo do mês na
tradicional roda de samba do Cacique de Ramos, agremiação de samba carioca, também
é um prato que requer maior tempo para seu preparo e o qual se tornou tradição. A
feijoada, considerado um prato típico brasileiro, se associa a cultura negra e é símbolo da
culinária brasileira, atraindo diversas pessoas para a quadra da agremiação, ao conciliar a
comida com o samba, dois símbolos culturais (GACHET; SANTOS; BAIÃO, 2016).
Apesar do consumo e procura por preparações regionais, os alimentos mais
vendidos durante a Feirinha de Sant’Anna foram aqueles não regionais frutos da
globalização da alimentação, levando a uma homogeneização da alimentação devido à
cultura de massa. Essa homogeneização se dá pela globalização e intercâmbio cultural
que provoca mudanças nos hábitos alimentares dos povos, introduzindo alimentos,
especialmente os industrializados, na culinária local.
Além disso, na cultura alimentar brasileira já se observa a preferência por alimentos
ricos em gorduras e açúcares, ponto corroborado por Leonardo (2009), no qual afirma que
o prazer alimentar do brasileiro está centrado na mistura de gorduras, doces, massas e
carnes, estando os hortifrútis marginalizados nessa cultura alimentar. Além da preferência
histórica por tais alimentos, o próprio contexto alimentar atual contribui para tais escolhas,
que levam a uma desvalorização do regional e uma valorização do globalizado.
Porém Azevedo (2011) traz que, à medida que a alimentação torna-se cada vez
mais globalizada, a culinária local reaparece no imaginário coletivo como forma de
identidade cultural, atrelando-a aos pratos regionais, consumidos por gerações, vinculada
à identidade territorial e as tradições.
Os sertanejos tem uma preferência pelos alimentos cozidos, que contenham algum
líquido como se pode observar pelas preparações citadas nas entrevistas. A carne de sol
é um alimento seco, porém é geralmente consumido em sopas, feijões, de modo a
hidratá-la. Assim, vemos a grande aceitação da carne de sol na nata, uma junção de
ingredientes locais que une produtos da atividade agropecuária que tem grande
importância na história da cidade de Currais Novos.
A buchada, segundo as culinaristas, foi o prato regional com maior procura devido
à dificuldade de encontrá-lo, por preparação que requer o saber-fazer e pela feitura lenta,
sendo considerada uma comida de festa, destinada aos dias comemorativos. Essa
preparação é comumente preparada em grandes quantidades, com o intuito de haver a
17
partilha, em dias festivos nos quais há um maior número de pessoas presentes para
consumir essa preparação e praticar a comensalidade.
“(...) ai eu fui vender. Levei duas buchadas pra vender ai um homem veio comprar
todas.”
A comensalidade é um fator de integração e confraternização nos festejos de
padroeiro. Nas festividades do Divino Espírito Santo em Santa Cruz de Goiás, a
comensalidade tem um significado sagrado por serem distribuídos alimentos como um
gesto de caridade, representando a hospitalidade desse povo assim como ser uma forma
de alimentar e dar sustância àqueles que visitam e fazem parte da festa (REZENDE,
2015).
Comidas de festa enquanto bens são meios de diferenciar valores e acessórios
rituais, sendo considerada a parte visível da cultura (DOUGLAS, 2009). Na Festa de
Santa Barbara e Iansã, representação do sincretismo religioso na Bahia, tem-se a mistura
do candomblé com o catolicismo, o qual oferece bolinhos de acarajé e abarás misturado
ao pão e uvas como forma de simbolizar preparações típicas e sagradas para a religião
(MAIA; CHAO, 2016).
Apesar da Festa de Sant’Anna ser de cunho religioso, não foi relacionado nenhuma
preparação às crenças religiosas, de modo que a culinária festiva não tem relação alguma
com a religião, ficando a par desse contexto e ligando-se apenas a cultura alimentar local.
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4 CONCLUSÃO
A cultura alimentar vem sofrendo influência da globalização alimentar, afetando a
forma como as pessoas se alimentam e transformando essa cultura. Isso ocorre de forma
massiva e vem contribuindo para mudanças nas escolhas alimentares, tanto pela perda
do vínculo com a comida, o que faz com que não ocorra tão frequentemente a passagem
de receitas de geração para geração, perdendo um pouco da essência da cultura
alimentar.
Apesar da globalização, ainda podemos encontrar preparações regionais dentro
das festividades locais, o que demonstra que, apesar da homogeneização da cultura
alimentar, ainda há a valorização da culinária local, especialmente em momentos festivos,
os quais levam ao agrupamento de pessoas e, consequentemente, à comensalidade. Isso
contribui para manter viva a tradição e cultura alimentar local, fazendo com que as
pessoas retornem às cozinhas para o preparo dessas comidas, levando ao resgate da
culinária local.
Numa festividade como a Festa de Sant’Anna pode-se observar o presente e o
passado reunidos, principalmente devido ao reencontro de gerações e pelo resgate dos
hábitos de partilha e comensalidade, levando ao desejo do regional, que é da terra e que
traz memórias afetivas àqueles que consomem os alimentos típicos que fizeram parte de
momentos especiais de sua vida.
19
Feast food: historical-cultural identity in the cuisine of the Festa de Sant’Anna de Currais Novos, Rio Grande do Norte, Brazil
Abstract: This article sought to identify and understand the culinary preparations sold
during the feast of Sant'Anna as a historical-cultural element in the feast of the patroness
of Currais Novos. For this purpose, semi-structured interviews were conducted with local
culinarians, and the interview data were analyzed and identified to the most cited
preparations. From the analysis of content, it was verified that the main preparations sold
during the festival of Sant'Anna were: chicken cream, hot dogs and sweet pies, foods not
identified as regional. Despite this, meat dishes were identified as being the most
representative of the local cuisine and the buchada as typical of the region, being the
regional dish with the highest demand for diners. One can observe the influence of the
food globalization, however, regional preparations are still found within the local festivities,
keeping the regional cuisine alive.
Keywords: Culture; Food Identity; Culinary.
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REFERÊNCIAS
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