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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL GRADUAÇÃO EM DIREITO THALES MARTINES CHANES ESTELIONATO JUDICIÁRIO SÃO CAETANO DO SUL 2015

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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

GRADUAÇÃO EM DIREITO

THALES MARTINES CHANES

ESTELIONATO JUDICIÁRIO

SÃO CAETANO DO SUL2015

UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

GRADUAÇÃO EM DIREITO

THALES MARTINES CHANES

ESTELIONATO JUDICIÁRIO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentadoà Banca Examinadora da UniversidadeMunicipal de São Caetano do Sul para aobtenção do grau de bacharel em Direito, soba orientação do Prof. Dr. Silvio Cesar AroukGemaque.

SÃO CAETANO DO SUL2015

À Deus, por me permitir chegar até aqui; Aosmeus amados pais, Carmen e Clóvis, peloamor, incentivo e apoio incondicional, e aminha irmã, Lívia, pela inspiração e peloexemplo.

“Há perguntas ingênuas, perguntas tediosas, perguntas mal formuladas,

perguntas colocadas após um inadequado autocriticismo. Mas toda pergunta é um

grito para entender o mundo. Não existe nada como uma pergunta idiota.”

(Carl Sagan – 1934 – 1996 – cientista estadunidense)

UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

GRADUAÇÃO EM DIREITO

THALES MARTINES CHANES

ESTELIONATO JUDICIÁRIO

A presente monografia intitulada “Estelionato Judiciário”, elaborada porThales Martines Chanes, matrícula 65.377-4, foi defendida em 28 deJunho de 2015, tendo sido:

( ) Reprovada ( ) Aprovada ( ) Aprovada com louvor

Banca Examinadora constituída pelos professores:

______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Resumo

O estelionato é provavelmente o crime mais dinâmico e imprevisível praticado

pelo homem. A genialidade humana aliada a sua capacidade de improviso e

adaptação o torna capaz de amoldar-se em qualquer relação da vida em sociedade,

tornando impossível prever todas as formas em que possa ocorrer. Esta flexibilidade

característica da conduta é objeto de intensas discussões nas mais diversas esferas

do direito, desafiando ainda mais aqueles que operam o Direito Penal, pois muitas

vezes os princípios norteadores desta gama conflitam com a essência do instituto,

que é a tutela dos bens jurídicos, deixando-os vulneráveis a este delito. Portanto, é

imprescindível um estudo aprofundado do estelionato em sua modalidade judiciária,

a qual até o momento não é vista como crime pela maior parte dos tribunais, porém

causando prejuízos inestimáveis à coletividade.

PALAVRAS-CHAVE: estelionato.judiciário.direito.ação.crime

Abstract

The embezzlement is probably the most dynamic and unpredictable crime

committed by man. The human genius combined with his ability to improvise and

adapt enables him to shape up in any kind of relationship in a social enviroment,

making it impossible to predict all the ways that might occur. This feature flexibility of

conduct is the subject of intense discussions in various spheres of law, challenging

even those who operate criminal law, since often the main principles of this range

conflict with the essence of the institute, which is the protection of legal interests,

leaving them vulnerable to this crime. Therefore, a thorough study of embezzlement

is essentialt in its legal mode, which so far is not seen as a crime by most courts, but

causing inestimable damage to the community.

KEYWORDS: embezzlement. justice. legal. sue. crime.

Sumário

1 Evolução histórica do estelionato........................................................................... 10

2 Algumas características do estelionato.................................................................. 18

2.1 Tipicidade Objetiva.............................................................................................. 18

2.2 Tipicidade Subjetiva............................................................................................ 24

2.3 Sujeitos do Delito e bem jurídico tutelado........................................................... 25

3 O Estelionato Judiciário e a jurisprudência nacional.............................................. 27

4 A necessidade de se tutelar penalmente o direito de ação.................................... 39

5 Outros casos em que se verifica o Estelionato Judiciário...................................... 44

5.1 O Estelionato Judiciário em Procedimento Falimentar ....................................... 44

5.2 O caso da indústria de liminares......................................................................... 47

6 Considerações finais.............................................................................................. 53

Referências Bibliográficas................................................................................ ........ 55

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Introdução

O estelionato é seguramente o crime contra o patrimônio de mais amplo

estudo pela doutrina penal, considerando suas várias faces e as possibilidades

quase que ilimitadas de sua ocorrência.

São comuns as notícias envolvendo pessoas ludibriadas de todas as formas

possíveis, sendo em caixas eletrônicos de bancos, em órgãos públicos e até mesmo

na rua ao serem abordadas por um estranho supostamente disposto a ajudar.

A prática do estelionato é comum na sociedade moderna, pois trata-se de um

modo não violento de enriquecer ilicitamente, consequentemente lesando o

patrimônio alheio.

Ocorre que a astúcia dos chamados estelionatários chegou a um ponto em

que sua conduta, até o momento, resta protegida por um direito fundamental,

segundo o entendimento majoritário sedimentado.

Esta modalidade, a qual ganhou força nos últimos anos, é conhecida entre os

operadores do direito como estelionato judiciário, onde os agentes utilizam-se de

meios para induzir o juiz a erro, obtendo assim uma vantagem ilícita através de uma

sentença favorável.

O grande problema é a carência de estudos doutrinários sobre o tema,

restando aos juízes julgar conforme sua experiência e interpretação pessoal dos

casos.

Esta obscuridade existente ao redor do tema gera certa insegurança jurídica,

de modo a serem aplicados conceitos jurídicos e tipos penais que não se amoldam

com exatidão ao caso apreciado.

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Os mais recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça defendem a

atipicidade da conduta, pois trata-se de livre atividade processual, a qual está

amparada pelo direito de ação, previsto em nossa Constituição da República.

Contudo, não se pode negar o prejuízo que estas condutas causam na

sociedade, gerando impactos consideráveis na economia e abalando as relações

econômicas entre particulares.

Existe uma corrente crescente que criminaliza estes atos, mérito de alguns

magistrados audaciosos e da insistência do Ministério Público em insistir na

penalização desses indivíduos.

Nesse sentido, este arrazoado, através de singelos argumentos, visa reforçar

a importância do reconhecimento da tipicidade penal do assim chamado estelionato

judiciário, contribuindo, mesmo que delicadamente, para a repressão destes abusos

processuais.

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1 Evolução histórica do estelionato

Dentre os mais diversos aspectos das relações sociais, a história da

humanidade envolveu, desde os primórdios, liames de cunho econômico entre as

pessoas, sendo estes determinantes para a prosperidade e o crescimento de um

povo.

Na Roma antiga, berço do direito brasileiro, a economia foi o principal aspecto

das proporções gigantescas tomadas pela república e posteriormente pelo império,

onde era necessário um enorme gasto para a manutenção das fronteiras, dos postos

avançados e principalmente do exército.

Nesse gizo, o estudo da civilização romana demonstra claramente a

ascensão do poder econômico, onde cidadãos mais ricos conquistavam lugares de

destaque na sociedade.

A disputa pela riqueza e a consequente ascensão social encorajava os menos

favorecidos a utilizar-se de meios ilícitos, em sua maioria com uso da violência, para

o aumento de seu patrimônio.

Contudo, havia aqueles mais astutos, que lesavam o patrimônio de terceiros

de forma sagaz, com o emprego dos mais diversos meios fraudulentos,

caracterizando o crime conhecido até hoje como estelionato.

O crime em tela era previsto no Direito Romano como a figura do stellionatus,

nomeado em homenagem a uma espécie de réptil de enorme destreza cuja pele era

dotada de diversas cores, as quais confundiam os predadores.

Este tipo penal surgiu na época de Antonino Pio, como uma modalidade de

crimen extraordinária, para reprimir casos de fraude, ocorridos fora dos delitos de

furto e falsidade.1

1 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol.2, p. 549

11

Ocorre que, por tratar-se de um acontecimento de grande incidência em

negócios particulares, a disciplina foi dada pelo Direito Privado Romano, o qual

admitia a ação penal de dolo para qualquer fato que, a crivo do magistrado,

pleiteava a imposição de uma pena, na ausência de outro meio punitivo.

Porém, tratando-se de matéria sujeita a discricionariedade do magistrado, a

actio doli podia não prosperar exclusivamente por vontade deste, situação a qual

não atendia à idéia aos princípios jurisdicionais do Estado Romano.

Em decorrência disto, surgiu uma tendência em se assegurar uma

correspondente ação penal pública para cada ação de Direito Privado, com o que

também as falsidades relativas ao estelionato tornaram-se merecedoras de uma

ação criminal pública.

Face disto, é possível concluir que a origem da atual noção de estelionato

está muito mais ligada à actio doli do Direito privado romano do que ao crime público

de falso.

A evolução da actio doli ensejou o surgimento no Direito público romano, em

meados do segundo século do império, a figura do stellionatus; a alusão a este réptil

surgiu pelo fato dos delitos desta espécie, eivados de possibilidades infinitas e

diversidade de comportamentos dificultavam a concentração em um único termo,

levando os romanos a uma incriminação genérica, a qual abrangia todos os tipos de

fraude que não eram expressamente previstos em lei.

Nesse sentido o Professor Luiz Regis Prado discorre:

“O delito de stellionatus era considerado, potanto, um crime extraordinário eabrangia todos os casos em que era cabível a actio doli e que não seamoldassem a qualquer outro crime contra o patrimônio. A noção de crimenstellionatus – reprimido extra ordinem – não abrangia apenas a fraudeexecutada com intuito de lucro, mas muitos outros fatos que pouco ouquase nada tinham a ver com o atual delito de estelionato (v.g., a vantagemobtida mediante falso juramento). A pena, embora arbitrária, tinha comolimite o trabalho nas minas para os humiliores e, para os honestiores,consistia na relegação. Pelo que se depreende da leitura do Digesto, osromanso consideravam como estelionato, dentre outras condutas, o fato dese alienar, vender, permutar ou dar em pagamento uma coisa já obrigada,

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dissimulando tal obrigação do credir, comprador ou permutante; o empregomalicioso de expressões obscuras nas negociações e contratos; asubstituição de mercadorias já vendidas por outras; a repetição do indébitoetc. 2”

Consoante a disposição do ilustre doutrinador citado acima, observa-se que,

apesar de afastar a apreciação da conduta da discricionariedade presente no Direito

romano privado, a insegurança jurídica não foi totalmente sanada, tendo em vista a

enorme proporção tomada pelo injusto.

Tais imprecisões não foram sanadas pelo Direito medieval, época a qual

manteve o delito de estelionato como um crime subsidiário, sem objetividade própria,

suprindo o hiato existente na legislação penal referente às condutas não

objetivamente tipificadas.

Com efeito, as Ordenações Filipinas previam o crime em estudo pela

denominação de burla ou inliço, em seu Livro V, Título LXV, sendo descrito, in verbis:

“Bulrão ou inliçador he aquelle, que specialmente hypotteca, ou obbbrigaper fiança huma coisa a dous, não a tendo desobrigada do primeiro credor,não sendo a cousa bastante para satisfazer aos credores ambos. E bemassi, o que vende a diversas pessoas pão, vinho, azeite, mel, sal, e outrascousas dante mão, promettendo pagar logo no primeiro anno de suasherdades, Vinhas, Olivaes, Colméas, ou Marinhas, affirmando a cada humdelles, que tudo aquillo haverá nellas a dito anno, não tendo taespropriedades, de que arrazoadamente possa haver o que assi vende. Item,o que pede dinheiro emprestado de muitas partes, promettendo e fazendoseguranças per scriptura, ou palavra, que a breve tempo pagará, e depoisque tem o dinheiro em seu poder, diz que não tem per onde pagar, e que ocitem. E para que taes maleficios e outros semelhantes se não fação,mandamos, que quando for querelado com juramento e summario ásnossas Justiças de algum por bulrão e inliçador, que taes cousassemelhantes fez, declarando nas querelas as bulras, e as pessoas, a que asfez, sendo o summario obrigatorio, que baste para o querelado ser preso, oseja logo, e não será solto, até que pague da Cadêa tudo o que dever, e fôrobrigado pelos ditos modos; e mais perderá para nós a terça parte daquantia, ou estimação, que valerem as cousas, que inliçou, vendeo,empenhou, trocou, ou, per qualquer outro modo bulroso alheou, e outraterça parte para as pessoas danificadas. E além disto haja a penaa dedegredo, ou outra, segundo fôr o caso da bulra, que fizer, e o Julgadorentender, que merece, até morte exclusive,não sendo em nenhum dos ditoscasos menos a condenação de degredo, que de dous annos para Africa.

1. Toda a pessoa, que alguma propriedade, ou cousa, em que caibaarrendamento vender, ou arrendar por sua, não o sendo, nem tendo razão

2 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol.2, p. 550

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de a haver por sua, pagará em quatrodobro a valia della. E sendo de valiade dez mil réis para baixo, será degradado quatro annos para Africa. Esendo a cousa de valia de dez mil réis até vinte mil, será degradado parasempre para o Brazil; e sendo de valia de vinte mil réis para cima, morramorte natural. E estas mesmas penas haverão, segundo a distinção acimadita, os que venderem huma cousa duas vezes a differentes pessoas.

2. E a pessoa, que comprar, ou per qualquer título houver alguma cousa deoutrem, sabendo ou tendo razão de saber, segundo o arbítrio do Julgador,como não era do que lha vendeo, ou traspassou, e que ouve per mão título:haverá as penas assi pecuniarias, como corporaes, que acima pozemos aoque vende a cousa, que não he sua.

3. E se alguma pessoa tiver algum Casal, ou outra propriedade, e pagaralgum fôro, ou pensão della a outra pessoa, como seu Foreiro, ouPensionario, e a fôr tomar novamente de emprazamento da mão de outrosenhorio sem consentimento daquelle, a que paga o fôro, ou pensão, se fôrpeão seja açoutado: e se for Scudeiro, ou dahi para cima, será degradadodous annos para Africa. E além disso perderá todo o direito, que tiver nacousa aforada, e será devoluta, e applicada ao senhorio, se a elle quiser.”

Somente por volta do século XVIII que o estelionato foi reconhecido e previsto

como tipo penal autônomo, com aspectos que o afastavam dos outros crimes contra

o patrimônio, consolidando-se no século XIX, época em que os negócios mercantis e

o próprio Direito Penal encontravam-se em grande expansão, sendo reconhecido

pela doutrina esta época como sua origem moderna.

No Brasil, o Código Criminal de 1830 utilizou pela primeira vez o vocábulo

estelionato para a conduta em estudo, inspirando-se no Direito romano, e inserindo-

o em seu Título III, relativo aos crimes contra a propriedade, mencionando em um rol

exemplificativo casos de fraudes criminosas, seguidas de uma cláusula basilar:

“Art. 264. Julgar-se-ha crime de estellionato:

§1o A alheação de bens alheios como próprios, ou a troca das cousas, quese deverem entregar por outras diversas.

§2o A alheação, locação, aforamento ou arrendamento da cousa própria jáalheada, locada, aforada ou arrendada a outrem; ou a alheação da cousapropra especialmente hypothecada a terceiro.

§3o. A hypotheca especial da mesma cousa a diversas pessoas, nãochegando o seu valor para pagamento de todos credores hypothecarios.

§4o. Em geral, todo e qualquer artificio fraudulento, pelo qual se obtenha deoutrem toda a sua fortuna ou parte della, ou quaesquer titulos.

Penas – de prisão com trabalho por seis mezes a seis annos, e de multa decinco a vinte por cento do valor das cousas sobre que versar o estellionato.”

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A tipificação referente a conduta do estelionato supracitada foi a primeira, em

nosso ordenamento jurídico, a isolar a conduta, atribuindo-a protagonismo e

independência, não mais sendo vista como algo subsidiário aos demais crimes

contra o patrimônio.

Porém, o §4o do diploma legal supramencionado não foi capaz de pacificar a

questão, trazendo dúvidas e insegurança quanto ao seu alcance.

Face disto, foi editada a Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, que, em seu

artigo 21, aditou a norma, trazendo em seu bojo o texto destacada abaixo:

“Art. 21. Em geral o estellionato, de que trata o § 4º do art. 264 do CodigoCriminal, é o artificio fraudulento, pelo qual se obtenha de outrem a entregade dinheiro, fundos, titulos ou quaesquer bens, pelos seguintes meios:

§ 1º Usando-se de falso nome ou falsa qualidade;

§ 2º Usando-se de papel falso ou falsificado;

§ 3º Empregando-se fraude para persuadir a existencia de emprezas, bens,credito ou poder supposto ou para produzir a esperança de qualqueraccidente.”

Nessa mesma linha, o Código Penal Republicano de 1890 previu o

estelionato em onze modalidades, sendo uma delas consubstanciada em uma

cláusula genérica, consoante se observa em seu texto:

“Art. 338. Julgar-se-ha crime de estellionato:

1º Alhear a cousa alheia como propria, ou trocar por outras as cousas, quese deverem entregar;

2º Alhear, locar ou aforar a cousa propria já alheada, locada ou aforada;

3º Dar em caução, penhor, ou hypotheca, bens que não puderem seralienados, ou estiverem gravados de onus reaes e encargos legaes ejudiciaes, affirmando a isenção delles;

4º Alhear, ou desviar os objectos dados em penhor agricola, semconsentimento do credor, ou por qualquer modo defraudar a garantiapignoraticia;

5º Usar de artificios para surpehender a boa fé de outrem, illudir a suavigilancia, ou ganhar-lhe a confiança; e induzindo-o a erro ou engano poresses e outros meios astuciosos, procurar para si lucro ou proveito;

6º Abusar de papel com assignatura em branco, de que se tenha apossado,ou lhe haja sido confiado com obrigação de restituir, ou fazer delle usodeterminado, e nelle escrever ou fazer escrever um acto, que produzaeffeito juridico em prejuizo daquelle que o firmou;

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7º Abusar, em proprio ou alheio proveito, das paixões ou inexperiencia demenor, interdicto, ou incapaz, e fazel-o subscrever acto que importe effeitojuridico, em damno delle ou de outrem, não obstante a nullidade do actoemanada da incapacidade pessoal;

8º Usar de falso nome, falsa qualidade, falsos titulos, ou de qualquer ardilpara persuadir a existencia de emprezas, bens, credito, influencia esupposto poder, e por esses meios induzir alguem a entrar em negocios, ouespeculações, tirando para si qualquer proveito, ou locupletando-se dajactura alheia;

9º Usar de qualquer fraude para constituir outra pessoa em obrigação quenão tiver em vista, ou não puder satisfazer ou cumprir;

10. Fingir-se ministro de qualquer confissão religiosa e exercer as funcçõesrespectivas para obter de outrem dinheiro ou utilidade;

11. Alterar a qualidade e o peso dos metaes nas obras que lhe foremencommendadas; substituir pedras verdadeiras por falsas, ou por outras devalor inferior; vender pedras falsas por finas, ou vender como ouro, prata ouqualquer metal fino objectos de diversa qualidade:

Penas ? de prisão cellular por um a quatro annos e multa de 5 a 20 % dovalor do objecto sobre que recahir o crime.

Paragrapho unico. Si o crime do numero 6 deste artigo for commettido porpessoa a quem o papel houvesse sido confiado em razão do emprego ouprofissão, ás penas impostas se accrescentará a de privação do exercicioda profissão, ou suspensão do emprego, por tempo igual ao dacondemnação.”

Todavia, a sociedade encontrava-se nos primórdios da era moderna, com a

descoberta de novas tecnologias, havendo uma evolução meteórica sobretudo nas

relações econômicas.

Este cenário demonstrou que o crime de estelionato, nos termos de seu texto

inscrito no Código Penal de 1890, o qual utilizava-se ainda de um rol exemplificativo,

não abarcava todas as fraudes perpetradas no período, sendo, portanto, insuficiente

para a tutela do bem jurídico.

Os cheques, títulos de crédito que configuram uma ordem de pagamento a

vista, extremamente comuns nos dias atuais, tornava-se mais comum, e com isto,

uma enorme gama de fraudes sendo perpetradas sem o tipo penal adequado para a

criminalização de seu uso fraudulento.

Nesse prisma, a Consolidação das Leis Penais, com fulcro no artigo 7o do

Decreto 2.591, de 7 de agosto de 1912, o qual previa uma multa de 10% sobre o

valor do título a quem emitisse cheque sem provisão de fundos, insculpiu um §2o ao

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artigo 338 do Código Penal Republicano de 1890, o qual criminalizava a emissão

fraudulenta de cheques sem a devida provisão de fundos, incorrendo nas penas de

prisão de um a quatro anos, além da multa de 10% já prevista na antiga Lei do

Cheque.

Somente em 1940, com a elaboração do atual Código Penal, o legislador

pátrio afastou-se da tradição do direito penal pátrio, conservando uma descrição

genérica do injusto – esta mais precisa e abrangente – a qual ensejava a utilização

de uma interpretação extensiva para os diversos casos.

Esta previsão, elencada no artigo 171 do Código Penal atual, encontrou um

patamar tênue, em harmonia com o princípio da legalidade, corolário de nosso

ordenamento jurídico penal, evitando o engessamento e a insegurança jurídica

proporcionados pelos rols exemplificativos utilizados anteriormente.

A mais recente definição do crime de estelionato representou um sublime

aperfeiçoamento do tipo legal em relação ao codex anterior, preenchendo lacunas

essenciais para a criação de um tipo penal sólido referente a um crime tão complexo

como o de estelionato.

A Exposição de Motivos aperfeiçoou as bases do estelionato, previstas no

artigo 338 do Código de 1890, ao contemplar a captação de vantagem para terceiro,

ao frisar que a vantagem deve ser ilícita, e que a fraude principal do delito não se

resume em induzir alguém a erro, mas também envolve a manutenção de um erro

preexistente.

Por último, porém não menos importante, o legislador de 1940 inseriu outras

modalidades de estelionato, referentes a fraude relativa a seguro contra acidentes e

a emissão de cheques sem fundos.

Independente do período considerado, é indiscutível que o estelionato trata-

se de um crime patrimonial, o qual tem como característica principal a fraude

perpetrada para alcançar a vantagem.

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Dito isto, não se pode olvidar que a tutela jurídica deve-se ao patrimônio da

pessoa lesada, não incidindo a repressão penal sobre a fraude propriamente dita ou

induzimento em erro; a criminalização do estelionato tem como escopo a punição do

enriquecimento ilícito ou o injusto dano patrimonial.

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2 Algumas características do estelionato

Como todo tipo penal, o crime de estelionato depende de seu elemento

objetivo, sendo este a descrição da conduta na lei, e o elemento subjetivo, ou seja, o

dolo.

Não obstante os elementos necessários à sua caracterização, este tipo penal

pode ser praticado por qualquer pessoa, onde seu objetivo é inibir fraudes que

afetem o patrimônio de terceiros.

Neste capítulo, serão tecidas breves considerações acerca de suas principais

características.

2.1 Tipicidade Objetiva

A conduta tipificadora do crime de estelionato consiste em auferir vantagem

indevida mediante o uso de fraude, levando a vítima a crer que celebrara um

negócio jurídico licito ou uma relação manifestamente cotidiana, ou seja, a vítima

coopera com o sujeito ativo na disposição de seus bens.

Nesse sentido, o artigo 171 do Código penal define a conduta genérica de

estelionato, bem como pré determina algumas situações que tipificam este crime:

“Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízoalheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ouqualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dezcontos de réis.

§ 1º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor o prejuízo, o juiz podeaplicar a pena conforme o disposto no art. 155, § 2º.

§ 2º - Nas mesmas penas incorre quem:

Disposição de coisa alheia como própria

I - vende, permuta, dá em pagamento, em locação ou em garantia coisaalheia como própria;

Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

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II - vende, permuta, dá em pagamento ou em garantia coisa própriainalienável, gravada de ônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender aterceiro, mediante pagamento em prestações, silenciando sobre qualquerdessas circunstâncias;

Defraudação de penhor

III - defrauda, mediante alienação não consentida pelo credor ou por outromodo, a garantia pignoratícia, quando tem a posse do objeto empenhado;

Fraude na entrega de coisa

IV - defrauda substância, qualidade ou quantidade de coisa que deveentregar a alguém;

Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

V - destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o própriocorpo ou a saúde, ou agrava as conseqüências da lesão ou doença, com ointuito de haver indenização ou valor de seguro;

Fraude no pagamento por meio de cheque

VI - emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado,ou lhe frustra o pagamento.

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimentode entidade de direito público ou de instituto de economia popular,assistência social ou beneficência.”

A respeito da conduta genérica prevista no caput do tipo penal em apreço,

Guilherme de Souza Nucci discorre com propriedade:

“Há várias formas de cometimento de estelionato, prevendo-se a genéricano caput. Obter vantagem (benefício, ganho ou lucro) indevida induzindo oumantendo alguém em erro. Significa conseguir um benefício ou um lucroilícito em razão do engano provocado na vítima. Esta colabora com o agentesem perceber que está se despojando de seus pertences. Induzir quer dizerincutir ou persuadir e manter significa fazer permanecer ou conservar.Portanto, a obtenção da vantagem indevida deve-se ao fato de o agenteconduzir o ofendido ao engano ou quando deixa que a vítima permaneça nasituação de erro na qual se envolveu sozinha. É possível, pois, que o autordo estelionato provoque a situação de engano ou apenas dela se aproveite.De qualquer modo, comete a conduta proibida.”4(NUcci, p. 796)

Nesse prisma, nota-se que o crime de estelionato é norteado pelo binômio

vantagem ilícita/ prejuízo alheio; caso a vantagem fosse lícita ou a conduta não

provocasse prejuízo alheio, não haveria o que se falar em estelionato.

Rogério Greco assevera que, para que se configure crime de estelionato, a

vantagem ilícita obtida pelo agente deve ser de cunho econômico. Caso contrário, o

fato será atípico ou se enquadrará em outros tipos penais em que a fraude faça

4 Guilherme de Souza Nucci, Manual de Direito Penal, p. 796

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parte, como nos crimes contra a dignidade sexual, com o delito de violação sexual

mediante fraude, previsto no artigo 215 do Código Penal.2

Não obstante a obtenção da vantagem ilícita, deve a vítima sofrer um

prejuízo, ou seja, a diminuição de seu patrimônio, devendo perder algo que já

possuía ou deixar de ganhar algo a que tinha direito.

Importante ressaltar que o artigo referente ao crime em apreço prevê a

possibilidade de auferição de vantagem por um terceiro, não sendo estritamente

necessário que a vantagem seja destinada ao fraudador.

Nesse caso, deve-se observar se o terceiro beneficiado pela fraude tinha

conhecimento sobre a origem ilícita do bem, podendo ser considerado participe e

responsabilizado penalmente em concurso de pessoas com o fraudador, consoante

o artigo 29 do Código Penal, o qual descreve o concurso de agentes.

A fraude é o elemento basilar do tipo penal em tela, sendo o meio pelo qual o

agente alcança a vantagem ilícita e induz a vítima a erro.

Ocorre que a fraude por si só não é suficiente para a caracterização do tipo

penal em apreço, devendo esta vinculada em uma relação de causalidade com o

erro da vítima e a disposição patrimonial prejudicial; todavia, sua existência é

indispensável, visto que o erro o prejuízo da vítima não são suficientes para

configurar o delito de estelionato.

O legislador ao prever qualquer outro meio fraudulento como capaz de

caracterizar o estelionato, preocupou-se com a impossibilidade em prever todas as

possibilidades de métodos usados pelos agentes, considerando que a evolução da

sociedade e da tecnologia proporciona novas maneiras de praticar este delito.

Com efeito, admitiu-se a interpretação extensiva do referido artigo, sendo

inúmeras as possibilidades de sua ocorrência e as peculiaridades do caso concreto.

2 Rogério Greco, Código Penal Comentado, p. 541

21

Nessa esteira, a doutrina majoritária entende que não basta a percepção de

um erro, sendo imprescindível a ocorrência do estelionato que o meio fraudulento

utilizado pelo agente seja idôneo.

Acerca do tema, Luiz Regis Prado discorre:

“Insta salientar que a apreciação da idoneidade dos meios adquire particularrelevo nos casos de tentativa, visto que é necessário distinguircuidadosamente os casos em que o estelionato não se consuma pelainidoneidade do meio daqueles em que o resultado não é obtido em razãode outras circunstâncias alheias à vontade do agente.

Contudo, tal idoneidade deve ser apreciada em relação à prudência dapessoa do iludido e não se levando em consideração a sagacidadeordinária. Aqueles que defendem a teoria de que deve ser observada aprudência do homus medius esquecem-se de que são justamente osingênuos e os simplórios as vítimas preferidas dos estelionatários, já quetêm eles maiores dificuldades com os argutos, de forma que são aquelesque merecem a tutela penal. Assim, apesar de a fraude ser por vezesaparentemente grosseira, deixa de sê-lo se é suficiente para iludir a vítima.”5

A digressão do autor a respeito do tema leva em consideração a subjetividade

transmitida pela figura do tipo penal, visto que as características pessoais e o grau

de instrução da vítima são determinantes para a ocorrência deste crime; mesmo que

a fraude tenha sido claramente grosseira, se esta serviu para enganar a vítima,

restará consumado o crime.

O bem tutelado pelo crime em tela é o patrimônio, secundariamente havendo

uma proteção a segurança, fidelidade e a veracidade das relações jurídicas que

gravitam em torno deste.

Nesse ínterim, não se pode olvidar que o direito penal pátrio é norteado pelo

princípio da intervenção mínima, havendo uma linha tênue entre fraude civil e fraude

penalmente relevante.

É comum entre as relações econômicas que o indivíduo se utiliza de certo

grau de argúcia maliciosa para obter vantagem; mas a indução ao erro resulta na

obtenção de uma vantagem ilícita, a qual deve ser repreendida tanto por vias penais

como cíveis.

5 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 2, p.561

22

Face disto deve a lei penal servir de ultima ratio, devendo incidir somente

quando imprescindível a manutenção da ordem social. Se a empreitada não causou

um impacto significativo ao bem jurídico tutelado pela norma penal, deve o Estado

aplicar sanções civis e administrativas.

Por sua vez, o vocábulo erro é definido pelo Dicionário Aurélio como o ato de

errar, inexatidão, engano, desacerto, incorreção, ilusão , ou seja, a sensação da

pessoa em divergência com a realidade.

Ressalta-se que a falsa impressão vivida pela pessoa deve ser diretamente

causada por atos do agente; caso seja por motivos alheios, não há o que se falar em

induzimento.

Contudo, o caput do artigo 171 do Código Penal prevê a simples manutenção

da pessoa em erro como determinante do estelionato, sendo o induzimento apenas

outra forma de obtenção da vantagem ilícita.

Há de se ressaltar que, em que pese o clamor público gerado pela divulgação

de grandes golpes perpetrados na sociedade, os quais causam grande prejuízo,

deve-se atentar ao sujeito passivo, se este tinha condições reais de ser ludibriado ou

se agiu com imperícia.

Destarte, deve-se considerar o grau de engenhosidade da artimanha utilizada

na dosimetria da pena, visto o fato ser ínsito ao grau de periculosidade da pessoa,

bem como seu potencial lesivo para com a coletividade.

Por fim, deve-se tecer breves considerações acerca da vantagem ilícita,

elemento característico da conduta em análise.

A obtenção da vantagem ilícita é fator determinante para a existência do

crime, visto que, sem ela, não há o que se falar em estelionato.

23

Um aspecto relevante a ser tratado neste arrazoado é a acerca da vantagem

lícita auferida pelo agente, após uso de fraude e o conseqüente erro; por mais

absurdo que pareça a primeira vista, é uma situação corriqueira que inclusive enseja

a propositura de ações penais pleiteando a condenação do indivíduo por estelionato.

A título de exemplo, consideremos o requerimento do benefício de auxílio-

doença perante o Instituto Nacional do Seguro Social, onde o indivíduo utiliza-se de

um atestado médico materialmente falso, mesmo realmente enquadrando-se no

quadro clínico ali descrito, o qual torna-se determinante para a opinião do médico

perito.

Ad argumentandum tantum, é deplorável o descaso dos médicos desta

autarquia previdenciária para com os periciandos, onde muitas vezes não os tratam

com as devidas cautelas, ratificando o teor de supostos atestados ora apresentados

ao invés de examiná-los minuciosamente.

Presente esta moldura, observa-se na situação apresentada acima que houve

uma fraude, exercida através de um documento falso, houve um erro, pois a opinião

médica se baseou em um laudo que nunca existiu, havendo, todavia, uma vantagem

lícita; a pessoa de fato sofria de uma doença que a deixava temporariamente

incapaz para o trabalho, fazendo jus ao benefício almejado.

Nesta situação hipotética, seria um absurdo tipificá-la como estelionato,

havendo, nada obstante, a ocorrência do crime de uso de documento falso, previsto

no artigo 304 do Código Penal; o simples prejuízo da vítima sem a vantagem ilícita

não é suficiente para a tipificação deste injusto penal.

Existe uma corrente ainda que sustenta perante os tribunais a tese de que

seria atípica a conduta de estelionato tentado, pois a vantagem ilícita não chegou a

ser percebida.

24

Tal entendimento é frágil e absurdo, pois a tentativa somente ocorreu por

fatos alheios a vontade do agente, o qual inicialmente objetivava o locupletamento

ilícito em detrimento do patrimônio alheio.

Conclui-se, portanto, ser inerente ao tipo penal o nexo causal entre a fraude,

o erro e a vantagem ilícita, devendo ocorrer obrigatoriamente nesta ordem para a

configuração do delito em estudo.

2.2 Tipicidade subjetiva

O elemento subjetivo do crime de estelionato é caracterizado pelo dolo, ou

seja, na vontade inequívoca de ludibriar a outrem e obter lucro indevido, não

havendo qualquer previsão legal de sua modalidade culposa.

Guilherme de Souza Nucci define dolo como a vontade consciente de praticar

a conduta típica.6 Se o comportamento do agente busca o preenchimento do tipo

penal incriminador, restará caracterizado o crime, mesmo que haja algum tipo de

erro quanto a proibição, questão esta inerente a culpabilidade.

Nesse sentido, tendo o agente plena consciência de que está obtendo uma

vantagem ilícita resultante do erro da vítima, causando-lhe prejuízo patrimonial,

restará caracterizada a conduta dolosa de estelionato.

Trata-se portanto de crime de dolo específico, onde o indivíduo busca

enriquecer indevidamente causando prejuízo a terceiros.

3.3 Sujeitos do delito e bem jurídico tutelado

O texto legal que prevê o crime de estelionato não exige qualquer qualidade

específica do agente, sendo, portanto, um crime que pode ser cometido por qualquer

pessoa; é um crime comum.

6 Guilherme de Souza Nucci, Manual de Direito Penal, p. 240

25

Com exceção de crimes ambientais, onde a Lei 9.605/98 prevê

expressamente a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica pelo

cometimento destes crimes, não há a possibilidade de uma pessoa jurídica ser

responsabilizada pelo cometimento do crime de estelionato.

Contudo, na prática é perfeitamente possível que pessoas jurídicas o

pratiquem, recaindo, porém, a responsabilidade sobre seus sócios-gerentes e

administradores.

No que tange ao sujeito passivo deste tipo penal, também pode ser qualquer

pessoa, desde que esta seja determinada.

Não é razoável entendermos que uma fraude perpetrada contra um número

indefinido de pessoas (incertam personam) caracteriza o estelionato em uma das

modalidades de concurso de crimes.

Quanto ao tema, Rogério Greco assevera que:

“Há necessidade, entretanto, que o sujeito passivo seja pessoadeterminada, pois, caso contrário, se o delito for praticado contra umnúmero indefinido de pessoas, poderá ser desclassificado para uma dashipóteses previstas na Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951, quedispõe sobre os crimes contra a economia popular, ou mesmo uma dasinfrações penais contra as relações de consumo, previstas pelo Código deDefesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990).”7

Em que pese o sujeito passivo do crime em tela poder ser qualquer pessoa,

há de se considerar se esta dispõe de capacidade de discernimento para que se

possa verificar, na ocasião, a eficácia da fraude e o consequente erro que resultou

na vantagem percebida pelo agente.

Se falta essa capacidade mínima a pessoa, sendo esta considerada um

incapaz, o fato poderá ser enquadrado como o crime de Abuso de Incapazes,

previsto no artigo 173 do Código Penal.

7 Rogério Greco, Código Penal Comentado, p. 543

26

Porém, neste último, o simples induzimento da vítima já configura o crime,

não havendo a necessidade de ocorrência de um evento danoso posterior,

diferenciando-se ai do estelionato, o qual exige um prejuízo patrimonial desta.

Por fim, não se pode olvidar da causa de aumento de pena prevista no §3o do

tipo penal em tela, a qual prevê um aumento de 1/3 (um terço) caso o crime seja

praticado em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia

popular, assistência social ou beneficência.

Este trecho tem especial importância para o objeto deste trabalho, pois deve

incidir sempre em que se verificar o estelionato judiciário, visto a fraude é perpetrada

perante o Poder Judiciário.

27

3. O estelionato judiciário e a jurisprudência nacional

A figura do estelionato judiciário é algo relativamente novo no ordenamento

jurídico pátrio, sendo fruto de uma ginástica intelectual que visa inibir evetuais

abusos do direito de ação, garantia prevista no artigo 5º, inciso XXXV da

Constituição Federal.

Não se sabe ao certo a origem deste injusto, sendo seguro porém afirmar que

teve sua origem na doutrina estrangeira, consoante discorre o Professor Luiz Regis

Prado:

“Tem sido admitido pela doutrina estrangeira a possibilidade de estelionatoprocessual, sobretudo no processo civil, quando uma parte, com sua condutafraudulenta ou enganosa, realizada com ânimo de lucro, induz o juiz em erro e,este último, como consequência, profere sentença injusta que causa prejuízopatrimonial a parte contrária ou a terceiro.”8

Nesse caso, observa-se a presença do trinômio fraude, erro e vantagem

ilícita, elementar para a tipificação do crime de estelionato: a parte conscientemente

utiliza-se de uma fraude, a qual é apta a enganar o juiz, acarretando uma vantagem

ilícita e o consequente prejuízo de terceiro, sendo este a parte contrária.

Essa prática ganhou força, no âmbito nacional, na primeira década do século

XXI, onde os agentes ajuizavam diversas ações, frequentemente envolvendo

matéria tributária e previdenciária, instruindo-a com documentos materialmente e

ideologicamente falsos, ou propondo-a perante diversos juízos em diferentes

comarcas, muitas vezes recebendo mais de uma vez o mesmo pedido.

Daí surgiram diversas ações penais buscando a condenação destes

indivíduos, subsumindo a conduta ao tipo penal de estelionato pela possibilidade

em se aplicar a interpretação extensiva, sendo portanto possível, prima facie, a

tutela do direito penal.

8 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 2, p. 554

28

Consequentemente, os casos chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, que

inicialmente reconheceu o estelionato judiciário como conduta atípica face a

ausência de previsão de norma legal, em atenção ao princípio da legalidade,

entendendo tratar-se de litigância de má-fé.

Nesse prisma, o julgado mais comumente utilizado e lembrado quando

discutia-se a questão e frequentemente citado em sustentações orais perante o

Tribunal Regional Federal da 3a Região era o do Ministro Nilson Naves, hoje

aposentado:

“Estelionato/estelionato judicial. Processo/representação/provas em juízo.Responsabilidade dos procuradores. Ausência de fato típico.

1. Quanto aos acontecimentos do processo judicial (deveres eresponsabilidade), hão de vir a pelo, preferencialmente, os arts. 14 a 18 doCód. de Pr. Civil. 2. Os sucessivos atos processuais estão fora da lei penal;o processo, já de natureza dialética, gerado, pois, por oposições, estácontinuamente sujeito ao controle das partes, às quais se asseguram ocontraditório e a ampla defesa, bem como uma série de recursos. 3. Tal ocaso, falta-lhe a ilicitude da vantagem, também lhe falta o meio fraudulento(artifício, ardil, etc.). Enfim, o denominado estelionato judicial juridicamentenão é fato penal; falta-lhe, assim, tipicidade. 4. Não é penalmente punível aconduta de quem procura em juízo. 5. Habeas corpus deferido a fim de seextinguir a ação penal.

[…]

A mim se me apresenta exata a observação do relator naquele voto vencido:"As supostas manobras e inverdades no processo podem configurardeslealdade processual e infração disciplinar, mas não crime de falso ou deestelionato."(grifo nosso) Aliás, as coisas do Judiciário sempre se meafiguraram fora da lei penal, exatamente porque, já que de naturezadialética, o processo é gerado por oposições – arte da discussão –, e nele,pergunto, não se asseguram aos litigantes o contraditório e a ampla defesa?Asseguram-se sim, tanto que há recursos e mais recursos, e há instâncias,e há discussões, por isso recordaria, também, votos que escrevi para asAções Penais nºs 246, de 2004, e nº 425, de 2005.

É caso, o de que ora cuidamos, caso carente de tipicidade penal; estranha,aqui, a figura do estelionato, mais ainda a do denominado estelionatojudiciário, razão pela qual voto no sentido de conceder a ordem a fim deextinguir, no ponto, objeto deste habeas, a ação penal, com extensão daordem, na mesma medida, é óbvio, aos corréus Wolf, Betty, Sandro eGerson.”9

Objetivando demonstrar que não se trata de uma decisão isolada deste

Tribunal, segue outros julgados:

9 Habeas Corpus nº 136038/RS; STJ, 6a Turma, Relator Min. Nilson Naves; Julgado em 1/10/2009.

29

“PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIAJURISPRUDENCIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 171 DO CP. OCORRÊNCIA.ESTELIONATO JUDICIÁRIO. CONDUTA ATÍPICA. DESLEALDADEPROCESSUAL. PUNIÇÃO PELO CPC, ARTS. 14 A 18. RECURSOESPECIAL A QUE SE DÁ PROVIMENTO.

1. Não configura "estelionato judicial" a conduta de quem obtém olevantamento indevido de valores em ação judicial, porque a Constituição daRepública assegura à parte o acesso ao Poder Judiciário. O processo temnatureza dialética, possibilitando o exercício do contraditório e ainterposição dos recursos cabíveis, não se podendo falar, no caso, em"indução em erro" do magistrado. Eventual ilicitude de documentos queembasaram o pedido judicial poderia, em tese, constituir crime autônomo,que não se confunde com a imputação de "estelionato judicial" e não foidescrito na denúncia.

2. A deslealdade processual é combatida por meio do Código de ProcessoCivil, que prevê a condenação do litigante de má-fé ao pagamento de multa,e ainda passível de punição disciplinar no âmbito do Estatuto da Advocacia.

3. Recurso especial a que se dá provimento, para absolver as recorrentes,restabelecendo-se a sentença.” (REsp nº

[…]

Tenho que, no caso, a conduta das recorrentes é atípica, não se podendo,portanto, falar em estelionato, quanto mais em "estelionato judicial", figurade tipicidade questionável na doutrina e na jurisprudência, embora, em tese,possa a atitude das recorrentes configurar ilícito civil

[…]

Entretanto, não obstante as diversas manifestações relativas à tipicidade doestelionato praticado judicialmente, penso que a dificuldade para aadmissão de tal conduta como ilícita está na consideração de que aConstituição da República assegura a todos o acesso à justiça, nos termosdo que preceitua o inciso XXXV do artigo 5º, não se podendo punir aqueleque, a despeito de formular pedido descabido ou estapafúrdio, obtém atutela pleiteada.

Em decorrência do exercício do direito de ação, tem-se que o processo édialético, possibilitando o controle pela parte contrária, através do exercícioda defesa e do contraditório, bem como da interposição dos recursosprevistos na Constituição e na lei processual. E, mais, que o magistrado nãoestá obrigado a atender os pleitos formulados, não estando a elesvinculados. Tais circunstâncias são incompatíveis, penso, com a ideia deardil, ou de indução em erro do julgador em feito judicial

[…]

Destaque-se, por fim, que o Direito Penal é a ultima ratio, não devendo seocupar de questões que encontram resposta no âmbito extrapenal, nãosendo demais lembrar que o Código de Processo Civil prevê a punição paraa litigância de ma-fé nos artigos 14 a 18, sem se falar na possibilidade depunição disciplinar no âmbito do Estatuto da Ordem dos Advogados doBrasil.

[…]

30

Assim, tenho que o juiz de primeiro grau bem apreendeu a questão, aoabsolver as recorrentes por atipicidade da conduta, invocando a autonomiado direito de ação.”10

Em que pese este entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, a

questão estava longe de ser pacífica.

Muitos tribunais de 2a instância posicionavam-se favoravelmente à tipicidade

do chamado estelionato judiciário, sendo o principal argumento utilizado o de que o

tipo penal admitia a interpretação extensiva, caindo por terra qualquer tese que

viesse a pugnar por sua atipicidade.

Abaixo segue um importante Habeas Corpus julgado pelo Tribunal Regional

Federal da 3a Região, referente à ação penal lastreada pela Operação Bola de Fogo

da Polícia Federal, a qual visava desarticular um grupo de pessoas que falsificavam

e comercializavam cigarros, causando enorme prejuízo ao fisco. Vejamos:

“HABEAS CORPUS - "OPERAÇÃO BOLA DE FOGO" - PRETENDIDORECONHECIMENTO DA IMPOSSIBILIDADE LEGAL DA PRÁTICA DEESTELIONATO USANDO-SE COMO "MEIO" DA AÇÃO CAUSAL OEMPREGO DA VIA JURISDICIONAL -- REEXAME DE FATOS E PROVAS -INADMISSIBILIDADE - ORDEM DENEGADA.

1.Habeas corpus destinado a viabilizar o trancamento parcial da ação penalcom fundamento na inépcia da denúncia ante a atipicidade do estelionatocometido pela via judiciária e outras teses derivadas, tais como a ausênciade dolo e licitude dos lucros obtidos pelo paciente com a empresa HussWillians Comércio & Importação de Bebidas e Cigarros Ltda.

2. O primeiro Código Penal republicano, o de 1890, em seu artigo 338,elencava onze modalidades de estelionato, mas em imprecisãotopograficamente questionável, no § 5° enunciava uma fórmula genérica decometimento do crime, assim enunciada: "usar de artifícios parasurprehender a boa fé de outrem, iludir a sua vigilância, ou ganhar-lhe aconfiança; induzindo-o a erro ou engano por esses e outros meiosastuciosos, procurar para si lucro ou proveito". Fugindo de seu modelofavorito, que foi o Código Penal italiano de 1930, o Código Penal de 1940conservou uma formulação genérica - a ser explorada por interpretaçãoextensiva - para a criminalização do estelionato. Com isso o Código Penalde 1940 em seu artigo 171, por conter na descrição típica comocomponentes da ação causal do estelionato o artifício, o ardil, "ou qualqueroutro meio fraudulento" (locução genérica), veiculou aquilo que a doutrinamoderna conhece como "crime de forma livre". Para bem elucidar o temanada melhor do que invocar a voz do autêntico mentor do Código Penal de1940, o sempre lembrado Nelson Hungria. A respeito da matéria afirmou omestre: "o legislador brasileiro de 1940, na esteira do projeto Sá Pereira,

10 Recurso Especial nº 1.101.914/RJ; STJ, 6a Turma, Relator Min. Maria Thereza de Assis Moura; Julgado em 6/3/2012.

31

preferiu, na espécie, o modelo alemão, já adotado, entre outros códigos,pelos da Áustria, Noruega, Polônia, Dinamarca e Suíça, não restringindo aqualidade do meio iludente e contemplando, de par com o induzimento, amanutenção em erro" (Comentários ao Código Penal, VII/203, Forense, 4ªedição - destaque)

3. A fórmula típica "qualquer outro meio fraudulento" autoriza a interpretaçãoextensiva capaz de identificar no acesso malicioso ao Poder Judiciário umaforma de praticar-se estelionato, sendo que neste modo de proceder oagente, com alegações e comportamentos fraudulentos e enganosos,buscando vantagem patrimonial a que não tem direito, induz o Juiz em erroque resulta em decisão judicial injusta que causa prejuízo patrimonial aoadverso ou a terceiro. Identificam-se aí - como muitas vezes ocorre em sedede estelionato - duas vítimas: o Poder Judiciário que é enganado e o lesadodireto na via patrimonial. Caso que na doutrina se identifica como de"autoria mediata".

4. Não se pode descartar de imediato o uso da instância judicial - condutaprestigiada pela Constituição Federal como direito fundamental - como meiopara prática do estelionato; aliás, o que não tem sentido é justamentedesprezar a priori e sem nenhum cuidado a possibilidade do empregocriminoso do acesso à Justiça, posto que isso redundaria em verdadeirodesprestígio ao Poder Judiciário, amesquinhado como reles instrumentocriminoso, sem falar na ofensa ao altar onde a Magna Carta deposita agarantia de que todos podem bater às portas do Judiciário.

5. Sinal seguro de que o direito constitucional de acesso ao Judiciário éfreqüentemente usado para fins nefastos, para enganar, iludir, falsificar averdade, tudo com vistas a obtenção de decisões favoráveis que inexistiriamse a boa-fé fosse sempre intangível, é a ancestral possibilidade de açãorescisória quando a sentença transitada em julgado "resultar de dolo daparte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre aspartes, a fim de fraudar a lei", como consta do inc. III do artigo 485 doCódigo de Processo Civil. Assim, não se pode trancar a ação penal sob oentendimento de que o artigo 171 do Código Penal não contempla oindevido uso da máquina judiciária como meio fraudulento para consecuçãode vantagem patrimonial indevida.

6. Ninguém pode ser ingênuo e ignorar que a via judicial cível e trabalhistatem sido persistentemente usada como meio de fraudar a lei para aobtenção de resultados indevidos e ilícitos. Basta recordar do sem-númerode ações previdenciárias em que o autor se vale de documentosfalsificados, do enorme número de ações trabalhistas em que testemunhosfalsos são empregados contra o direito do empregador, sem falar em açõescalcadas em leis tributárias onde contribuintes falseiam fatos e documentoscom vistas a conseguir decisões prejudiciais ao Fisco.(grifo nosso)

7. O habeas corpus não é o instrumento processual adequado para oexame da procedência ou improcedência da acusação, com incursões emaspectos que demandam dilação probatória e valoração do conjunto deprovas produzidas, o que só poderá ser feito após o encerramento dainstrução criminal, sob pena de violação ao princípio do devido processolegal.

8. Ordem denegada.”11

11 Habeas Corpus nº 0012776-95.2009.4.03.0000/SP; TRF3, 1a Turma, Relator Des. Fed. Johonsom Di Salvo; Julgado em 15/2/2011.

32

A decisão do Eminente Desembargador Federal Johonsom Di Salvo

colacionada acima é acertada, uma vez que não se pode desconsiderar a viabilidade

em se interpretar extensivamente o artigo 171 do Código Penal e a utilização da via

judicial para fins nefastos.

Nesse sentido, a tipicidade do crime em apreço é amparada por grande parte

da doutrina nacional

Além da tese relativa à interpretação extensiva do tipo penal de estelionato,

deve-se considerar que se trata de um crime de forma livre.

Damásio Evangelista de Jesus salienta que crimes de forma livre podem ser

cometidos por meio de qualquer comportamento que cause determinado resultado.

(Direito Penal, 1/212, Saraiva, 24ª edição).

Não havendo no tipo penal qualquer vínculo com o método, não é razoável

aceitar a alegação de que a conduta resta atípica por falta de previsão expressa.

Sendo possível observar os requisitos inerentes à prática do estelionato na

conduta do agente, deve-se reconhecer a incidência deste, pois a amplitude da

norma permite tal conclusão.

Destarte, Nilo Batista, em seu artigo de título "Estelionato Judiciário", defende

sua tipicidade e a consequente tutela do Direito Penal. Em suma, aduz inicialmente

que o juiz não dispõe de uma inidoneidade presuntiva, pois, sendo humano, é

passível de errar e ser induzido ao erro.12(Revista da Faculdade de Direito da

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, p. 209-217, 1997)

Discorrendo sobre o tema, o autor supracitado ainda sustenta que a limitada

incriminação da fraude processual significa vontade de não incriminar outras

possíveis fraudes, principalmente quando for possível a tipificação em tipo

concorrente principal, como por exemplo, o estelionato.

12 Nilo Batista, Estelionato Judiciário, Revista da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, p. 209/217.

33

Em suma, ao requerer a tipicidade expressa da conduta abre-se um hiato

para que outras fraudes passem a ser utilizadas impunemente, retornando a

situação vivida no final do século XIX, onde a tentativa de prever todas as

modalidades de fraudes restou ineficaz, fazendo com que o legislador de 1940

atribuísse um maior alcance ao tipo penal.

Face aos constantes abusos das partes, utilizando-se de documentos falsos

para instruir ações ou propondo-as perante diversos juízos distintos, aliada à

insistência do Ministério Público em continuar a denunciar estes atos, o Superior

Tribunal de Justiça relativizou seu entendimento.

A mera proposição de diversas ações perante juízos distintos caracterizaria o

simples uso do direito de ação, mesmo com a parte obtendo sucesso em mais de

uma delas e levantando a mesma quantia em diversos feitos:

“CRIMINAL. RHC. "ESTELIONATO JUDICIÁRIO". TRANCAMENTO DAAÇÃO PENAL. ATIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE PREVISÃOLEGAL DA CONDUTA REPUTADA DELITIVA. RECURSO PROVIDO.

I. A alegação de ausência de justa causa para o prosseguimento do feito sópode ser reconhecida quando, sem a necessidade de exame aprofundado evalorativo dos fatos, indícios e provas, restar inequivocamente demonstrada,pela impetração, a atipicidade flagrante do fato, a ausência de indícios paraa acusação ou aextinção da punibilidade.

II. Hipótese em que os réus ajuizaram diversas ações com pedidosidênticos, pretendendo a concessão de benefícios judiciários, tendo sido,por esta razão, denunciados pela prática do delito de estelionato

III. Não obstante a presença aparente dos elementos do tipo penal, oestelionato judiciário não tem previsão no ordenamento jurídicopátrio, razãopela qual a conduta pela qual foram denunciados os recorrentes é atípica.

IV. Reconhecida a atipicidade da conduta, deve o recurso ser provido paradeterminar o trancamento da ação penal n.º 5001215-62.2010.404.7004, emcurso na 2.ª Vara Federal de Umuarama/PR.

V. Recurso provido, nos termos do voto do relator.”

[…]

O tipo objetivo consiste no emprego de meio fraudulento para a obtenção devantagem econômica.

A doutrina exige que o meio fraudulento seja idôneo para enganar a vítima,o que se verifica em cada caso concreto, devendo ser consideradas ascondições pessoais do ofendido, sua prudência, sagacidade e experiência.

Na presente hipótese, foi apontado como meio fraudulento o ajuizamento deduas ações judiciais distintas, em tese, pretendendo a concessão do mesmobenefício previdenciário.

34

Não obstante a presença aparente de todos os elementos do tipo penal, oestelionato judiciário não tem previsão no ordenamento jurídico pátrio.Consultando a doutrina, grande parte dos autores sequer fazem referênciasà apontada modalidade delitiva.

Verificada a atipicidade da conduta dos réus, portanto, necessário se faz otrancamento da ação penal, por falta de justa causa.

Assim, inclusive, já decidiu esta Corte:

'Estelionato/estelionato judicial. Processo/representação/provas em juízo.Responsabilidade dos procuradores. Ausência de fato típico. 1. Quanto aosacontecimentos do processo judicial (deveres e responsabilidade), hão devir a pelo, preferencialmente, os arts. 14 a 18 do Cód. de Pr. Civil. 2. Ossucessivos atos processuais estão fora da lei penal; o processo, já denatureza dialética, gerado, pois, por oposições, está continuamente sujeitoao controle das partes, às quais se asseguram o contraditório e a ampladefesa, bem como uma série de recursos. 3. Tal o caso, falta-lhe a ilicitudeda vantagem, também lhe falta o meio fraudulento (artifício, ardil, etc.).Enfim, o denominado estelionato judicial juridicamente não é fato penal;falta-lhe, assim, tipicidade . 4. Não é penalmente punível a conduta de quemprocura em juízo (grifo nosso).5. Habeas corpus deferido a fim de seextinguir a ação penal.” (HC 136.038/RS, Rel. Ministro NILSON NAVES,SEXTA TURMA, julgado em 01/10/2009, DJe 30/11/2009) '

Ante o exposto, dou provimento ao recurso, para, nos termos dafundamentação acima, determinar o trancamento da ação penal n.º5001215-62.2010.404. 7004, em curso na 2.ª Vara Federal deUmuarama/PR.”13

Com todo respeito ao entendimento deste tribunal, não se pode aceitar que

tal vantagem recebida pela parte, que levanta várias vezes a mesma quantia devida,

seja lícita.

A discussão quanto a questão da atipicidade já resta superada face aos

argumentos de que o tipo penal do estelionato, além de ser um crime de forma livre,

admite a interpretação extensiva da norma.

Contudo, a análise deste julgado nos leva à discussão quanto à presença dos

três elementos indispensáveis a caracterização do crime em tela: fraude, erro,

vantagem ilícita.

Segundo o relator do acórdão colacionado acima, a mera distribuição de

diversas demandas, ainda que haja ocorrido o levantamento dos valores almejados

13 Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 31.344/PR; STJ, 5a Turma, Relator Min. Gilson Dipp; Julgado em 26/3/2012

35

em mais de uma delas, não configura a vantagem ilícita necessária a caracterização

do estelionato.

Rebatendo os argumentos utilizados para fundamentar a decisão guerreada,

primeiramente, deve-se considerar que o advogado deve atender à lealdade

processual, buscando defender os interesses de seu cliente dentro de limites.

Na medida em que requer o levantamento da quantia em mais de uma ação,

este falta com a lealdade processual, sendo que lhe cumpria o dever de informar

que os valores já haviam sido levantados em outra ocasião.

Esta omissão é penalmente relevante, visto que o advogado tem o dever

jurídico de conduzir o processo com zelo e cautela, além de ser vedado o uso do

processo para a consecução de objetivos ilícitos.

Observa-se ai a fraude, a qual gera um erro do judiciário em autorizar

diversos levantamentos, resultando em uma vantagem ilícita, pois os valores

oriundos dos processos adicionais não são devidos.

Ora, alguns dizem que tal conduta caracterizaria litigância de má-fé, estando

a questão plenamente tutelada pela lei processual civil.

Ocorre que a simples aplicação de multa e a apuração quanto às perdas e

danos ensejaria a proposição de uma nova ação, podendo levar anos para uma

ventual condenação, ainda assim havendo tremendo prejuízo às partes lesadas,

bem como à credibilidade do judiciário.

Por óbvio que uma ação penal levaria o mesmo tempo. Porém há de se

considerar a coação mental gerada pela existência de um tipo penal que puna a

conduta, servindo também como um modo de prevenção de eventuais abusos,

protegendo assim o pleno exercício do direito de ação garantido

constitucionalmente.

36

Diante desta situação, a jurisprudência tem evoluído e se adaptado,

reconhecendo como penalmente relevante a utilização de documentos falsos na

instrução de ações ordinárias:

“AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. 1. TRANCAMENTO DAAÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. 2. "ESTELIONATO JUDICIÁRIO". NÃOOCORRÊNCIA. 3. FRAUDE ANTERIOR À INSTAURAÇÃO DOPROCESSO. AÇÕES PARA RECEBIMENTO DO SEGURO DPVAT,FUNDADAS EM BOLETINS DE OCORRÊNCIA QUE NARRAVAM FATOSFALSOS. 4..AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1. Como é cediço, o trancamento de ação penal é medida excepcional, sóadmitida quando ficar provada, inequivocamente, sem a necessidade deexame valorativo do conjunto fático ou probatório, a atipicidade da conduta,a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, ou, ainda, a ausência deindícios de autoria ou de prova da materialidade do delito, circunstânciasnão evidenciadas na hipótese em exame.

2. Em casos anteriores, em que o Superior Tribunal de Justiça afastou afigura do estelionato pela prática da advocacia, o próprio feito foi utilizadocomo meio de fraude. Portanto, era possível ao Magistrado, durante o cursodo processo, ter acesso às informações que caracterizavam a fraude, comono caso de ajuizamento de mais de uma ação pelo advogado, à busca deuma Vara que lhe fosse favorável; ou a inclusão de nomes e de valores emprocessos de execução, que não estavam contemplados na sentençaproferida na fase de conhecimento.

3. Na espécie, não há que se falar em "estelionato judiciário", porquanto osregistros de boletins de ocorrência falsos aconteceram anteriormente àformação da relação processual. Diferentemente dos demais precedentesdesta Corte, aqui, os artifícios preparados previamente ao ajuizamento dasações eram medidas que escapavam ao alcance das averiguações noâmbito do processo judicial, de modo que nem o magistrado, nem a parteadversa teriam condições de detectá-los com diligências comuns. (grifonosso)

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

[…]

Em casos anteriores, em que este Tribunal afastou a figura do estelionatopela prática da advocacia, o próprio feito foi utilizado como meio de fraude.Portanto, era possível ao magistrado, durante o curso do processo, teracesso às informações que caracterizavam a fraude, como no caso deajuizamento de mais de uma ação pelo advogado, à busca de uma Vara quelhe fosse favorável; ou a inclusão de nomes e de valores em processos deexecução, que não estavam contemplados na sentença proferida na fase deconhecimento.

Aqui, não há que se falar em "estelionato judiciário", porquanto as fraudesaconteceram anteriormente à formação da relação processual, de modo acaracterizar um falso direito. Diferentemente dos demais precedentes doSuperior Tribunal de Justiça, no presente caso, os artifícios preparadospreviamente ao ajuizamento das ações eram medidas que escapavam aoalcance ordinário das averiguações no âmbito do processo judicial, de modoque nem o magistrado, nem a parte adversa teriam condições de detectá-los com diligências comuns.(grifo nosso)

[…]

37

Diante disso, não vejo presente o alegado constrangimento ilegal apto ajustificar o trancamento da ação penal. Ante o exposto, nego provimento aoagravo regimental.14

Uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nos leva à

conclusão de que, quando a conduta tratar-se de mera atividade processual, como a

distribuição da ação, dedução de pedido inicial, levantamento de valores, ocorre o

simples gozo do direito de ação.

Contudo, existe a criminalização de condutas iniciadas antes da proposição

da ação, como no caso de contrafação de documentos que venham posteriormente

a instruir estas, servindo inclusive como principal meio de convencer o juiz

responsável.

Não obstante retratar o início de um posicionamento que reconheça a

tipicidade do estelionato judiciário, deve-se considerar que o fim do agente, que ao

falsificar um documento que instrua a ação judicial, busca uma vantagem ilícita.

É o mesmo entendimento sedimentado no Enunciado da Súmula nº 17 do

Superior Tribunal de Justiça, a qual afirma que quando o falso se exaure no

estelionato, este o absorve.

É cristalino que ao instruir uma ação com documento falso, a parte busca

uma vantagem ilícita; após ter conseguido, ocorre o trânsito em julgado, exaurindo a

pretensão junto com o falso utilizado.

Como bem salientou o relator, o não é possível o juiz perceber o falso com o

uso de diligências simples, sendo necessária uma investigação aprofundada e

perícia técnica, as quais nem sempre são possíveis no curso de uma ação ordinária.

Nesse sentido, ao concluir que não se trata de estelionato nasce um

precedente que relativiza a absorção do falso pelo estelionato, sendo passíveis de

discussão todo o uso de documento falso que busque induzir alguém a erro.

14 Agravo Regimental em Habeas Corpus nº 248.211/RS; STJ, 5a Turma, Relator Min. Marco Aurélio Belizze; Publicado em 25/4/2013.

38

O falso é o meio de fraude mais comumente utilizado no crime de estelionato;

sendo este apto a induzir o juiz a erro, cai por terra qualquer argumento que pugne

pela atipicidade do assim chamado estelionato judiciário.

Em que pese o uso de documento falso ser crime, o tipo não retrata a

conduta do agente, sendo mais uma norma abstrata e emprestada, podendo gerar

uma sensação de insegurança jurídica.

Quando a conduta envolve um falso, é cristalina a vantagem ilícita almejada;

porém, o simples abuso do direito de ação aparentemente encontra dificuldade em

ser penalmente relevante por tratar-se de uma garantia constitucional, levando à

improcedência de ações penais que busquem punir estes abusos.

A não punição destes excessos podem causar danos patrimoniais

irreparáveis, além de encorajar a prática destes, visto que a sanção prevista na lei

processual não é suficiente para inibir estas práticas.

Sendo assim, nenhum direito ou garantia fundamental previsto na

Constituição da República é absoluto, sendo, atualmente, necessária uma

abrangência na interpretação do direito de ação, impondo como limite a prática do

estelionato judiciário.

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4 A necessidade de tutelar penalmente o direito de ação

O direito de ação é constitucionalmente previsto no artigo 5º, inciso XXXV,

implicando que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou

ameaça a direito.”

Esta garantia não se traduz apenas em garantir o ingresso em juízo ou de

julgamento da lide, mas da própria tutela jurisdicional a quem tiver razão.

Nesse sentido, Elpídio Donizetti aduz que “o órgão jurisdicional, uma vez

provocado, não pode recusar-se, tampouco delegar a função de dirimir os

litígios[...].”15

Este princípio visa principalmente garantir o acesso de todos as pessoas ao

judiciário, exigindo, para tal, que o Estado garanta os meios, não restringindo seu

uso aos cidadãos com um certo poder econômico.

Nesse diapasão, nos últimos anos observou-se inúmeros esforços por parte

do poder público para garantir o acesso ao judiciário, como a criação de Juizados

Especiais, os quais dispensam, até certo ponto, a necessidade de advogado, e a

expansão das defensorias públicas, órgãos destinados aos hipossuficientes.

Esta política de quebra da “barreira ao acesso ao Poder Judiciário”, assim

denominada pelo Ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau, teve como

episódio fatídico o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.074/ES:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 19, CAPUT, DALEI FEDERAL N. 8.870/94. DISCUSSÃO JUDICIAL DE DÉBITO PARACOM O INSS. DEPÓSITO PRÉVIO DO VALOR MONETARIAMENTECORRIGIDO E ACRESCIDO DE MULTA E JUROS. VIOLAÇÃO DODISPOSTO NO ARTIGO 5º, INCISOS XXXV E LV, DA CONSTITUIÇÃO DOBRASIL.

15 Elpídio Donizetti, Curso Didático de Direito Processual Civil, p. 15

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1. O artigo 19 da Lei n. 8.870/94 impõe condição à propositura das açõescujo objeto seja a discussão de créditos tributários. Consubstancia barreiraao acesso ao Poder Judiciário.

2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.

[…]

Conforme o requerente alegou, o alcance do preceito objeto da presenteação direta é muito mais amplo do que o do artigo 38 da Lei nº 6,380/80.Anteriormente à Constituição de 1988m este Tribunal, adotando oentendimento da Súmula n. 247 do extinto Tribunal Federal de Recursos,havia estabelecido que o depósito previsto no artigo 38 da Lei n. 6.380/80não constitui requisito para a propositura da ação anulatória de débito fiscal.Esse requisito somente se imporia caso o sujeito passivo da obrigaçãotributária pretendesse inibir o ajuizamento da execução fiscal (RE n.103.400, relator o Ministro Rafael Mayer, DJ de 10.12.1984).

Por outro lado, ao dispor de forma genérica que “as ações judiciais,inclusive cautelares, que tenham por objeto a discussão de débito para como INSS serão, obrigatoriamente, precedidas do depósito preparatório”, oartigo 19 da Lei n. 8.870/94 consubstancia barreira ao acesso ao PoderJudiciário. A mera leitura do texto normativo impugnado dá conta daimposição de condição à propositura das ações cujo objeto seja a discussãode créditos tributários, ainda que não estejam em fase de execução.

[…]

Julgo procedente o pedido para declarar inconstitucional o caput do artigo19 da Lei n. 8.870/95.”16

Face ao instituto em análise, pode-se concluir seguramente que toda a

violação ou abuso de um direito corresponde a uma ação relativa,

independentemente de lei ou norma que a outorgue.

Quanto ao tema, Alexandre de Morais discorre com propriedade, ao aduzir

que:

“O princípio da legalidade é basilar na existência do Estado de Direito,determinando a Constituição Federal sua garantia, sempre que houverviolação do direito, mediante lesão ou ameaça (art. 5o , XXXV). Dessaforma, será chamado a intervir o Poder Judiciário, que, no exercício dajurisdição, deverá aplicar o direito ao caso concreto.”17

Ocorre que, atualmente, os esforços do Estado em garantir a todos o acesso

ao judiciário acabou por trivializar o direito de ação, não havendo, até o momento,

qualquer mecanismo que o proteja de indivíduos mal intencionados.

16 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.074; STF, Pleno, Relator Min. Eros Grau; Publicado em 25/5/200717 Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, p. 86

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Consoante já demonstrado neste arrazoado, existe uma prática reiterada de

abuso deste direito, onde pessoas ajuízam diversas ações, com o mesmo pedido,

perante diversos juízos, muitas vezes tendo êxito em levantar a mesma quantia

diversas vezes.

Contudo, Superior Tribunal de Justiça, ao entender tratar-se de pleno gozo do

direito de ação, devendo a parte incorrer em sanções processuais, acaba por criar

uma verdadeira indústria de enriquecimento ilícito.

A litigância de má-fé, sanção prevista no Código de Processo Civil que visa

inibir eventuais abusos e deslealdades no curso do processo, não é suficiente para

proteger este direito, por uma questão de matemática simples.

O artigo 18 do Código de Processo Civil prevê a condenação do litigante de

má-fé em multa, no valor máximo de 1% do valor da causa, e a indenizar a parte

contrária, em montante não superior a 20% do valor da causa, os quais não são

suficientes para cobrir eventuais prejuízos decorrentes de levantamentos indevidos

de condenações em processos repetidos.

Ora, é claro que a parte lesada pode valer-se de seu direito de ação e ajuizar

um pedido de regresso; porém, dada a morosidade do judiciário, levaria anos para

retornar ao status quo ante, possibilitando ao litigante meios de blindar seu

patrimônio, frustrando eventuais execuções futuras.

A tutela penal, por extrapolar as vias da reparação de dano, se mostraria

muito mais eficaz por duas razões: (i) a pena de prisão prevista para o crime de

estelionato inibiria eventuais práticas, visto o poder de coação mental que qualquer

norma penal carrega; (ii) a possibilidade de decretação de prisão preventiva ao

litigante recorrente, remediando eventuais práticas em curso deste abuso.

Ao afastar a incidência do Direito Penal, o Superior Tribunal de Justiça, ao

decidir como atípicas as condutas relativas ao estelionato judiciário, por tratarem-se

42

de mero uso do direito de ação, acaba por criar um escudo para a prática de atos

ilícitos.

Sendo possível subsumir a conduta em tela ao crime de estelionato, pelas

razões já discorridas ao longo desta dissertação, não é justo considerar que seu

exercício caracterize o gozo do direito de ação.

Em um caso semelhante, ao julgar o caso Ellwanger, o Supremo Tribunal

Federal entendeu que não se pode justificar práticas racistas com o direito à

liberdade de expressão:

“HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIACONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEMDENEGADA.

1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéiaspreconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime deracismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF,artigo 5º, XLII).

[…]

13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem comoabsoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não podeabrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral queimplicam ilicitude penal.

14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem serexercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própriaConstituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceitofundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitaçãoao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se emsalvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra ahonra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e daigualdade jurídica.(grifo nosso)

15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídicoque se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado àdisposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". Noestado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados osprincípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podemse apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atosrepulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais pormotivos raciais de torpeza inominável.

16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alertagrave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça areinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciênciajurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.18

18 Habeas Corpus nº 82.424/RS; STF, Pleno, Relator Min. Maurício Corrêa; Publicado em 19/3/2004.

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No caso colacionado acima, o Pretório Excelso afirmou ser inaceitável a

publicação de texto de conteúdo racista sob a proteção do direito à liberdade de

expressão; estatuiu de forma clara que os direitos e garantias fundamentais

funcionam em um sistema harmônico de freio e contrapeso.

Face disto, o direito de ação encontra óbice no princípio da dignidade da

pessoa humana, visto que, ao distribuir a mesma ação perante juízos distintos, e

posteriormente recolher os valores referentes a condenação em todas elas, tornam a

prestação jurisdicional extremamente lesiva à parte vencida.

Por consequência, absurdo é o entendimento pacificado pela jurisprudência

majoritária ao enquadrar a prática do estelionato judiciário como inerente ao direito

de ação, sendo necessária e indispensável a sua tutela penal.

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5 Outros casos em que se verifica o estelionato judiciário

Consoante já exaustivamente demonstrado, o estelionato judiciário encontra

amparo no ordenamento jurídico brasileiro como norma penal, sendo teratológico

enquadrá-lo como simples uso do direito de ação.

É cediço que o legislador, ao permitir a interpretação extensiva a este tipo

penal, concluiu ser impossível prever todas as possibilidades em que se daria sua

prática, conceito este que deve ser observado em sua modalidade judiciária.

Além da distribuição de uma pluralidade de ações com o mesmo pedido e a

instrução de processos com documentos falsos, levando o judiciário a erro, verifica-

se outras variedades que causam efetivo prejuízo à coletividade, sendo estas

trabalhadas a seguir.

5.1 O estelionato judiciário em procedimento falimentar

Fábio Ulhôa Coelho define falência como o processo judicial de execução

concursal do patrimônio do devedor empresário, que, normalmente, é uma pessoa

jurídica revestida da forma de sociedade limitada ou anônima.

Depreende-se da definição do doutrinador supracitado que a falência visa o

tratamento paritário dos credores, onde o direito tutela o crédito de maneira que

desempenhe sua melhor função na economia e na sociedade.

Nesse sentido, a Lei nº 11.101/05 estabelece um rol que classifica e prioriza

os créditos de acordo com sua origem:

“Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento ecinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes detrabalho;

II - créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;

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III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo deconstituição, excetuadas as multas tributárias;

IV – créditos com privilégio especial, a saber:

a) os previstos no art. 964 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposiçãocontrária desta Lei;

c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisadada em garantia;”

d) aqueles em favor dos microempreendedores individuais e dasmicroempresas e empresas de pequeno porte de que trata a LeiComplementar no 123, de 14 de dezembro de 2006 (Incluído pela LeiComplementar nº 147, de 2014)

V – créditos com privilégio geral, a saber:

a) os previstos no art. 965 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;

c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposiçãocontrária desta Lei;

VI – créditos quirografários, a saber:

a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;

b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bensvinculados ao seu pagamento;

c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho queexcederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leispenais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;

VIII – créditos subordinados, a saber:

a) os assim previstos em lei ou em contrato;

b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.

§ 1o Para os fins do inciso II do caput deste artigo, será considerado comovalor do bem objeto de garantia real a importância efetivamente arrecadadacom sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação dobem individualmente considerado.

§ 2o Não são oponíveis à massa os valores decorrentes de direito de sócioao recebimento de sua parcela do capital social na liquidação da sociedade.

§ 3o As cláusulas penais dos contratos unilaterais não serão atendidas se asobrigações neles estipuladas se vencerem em virtude da falência.

§ 4o Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão consideradosquirografários.

Aproveitando-se da prioridade que a lei dá aos créditos trabalhistas, há casos

em que sócios da empresa falida, em conluio com um ex-empregado próximo, faz

com que este ajuíze reclamação trabalhista por supostas obrigações já prescritas,

sem documentação apta a embasar o pedido.

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A prescrição, consoante se extrai do artigo 11 da Consolidação das Leis do

Trabalho, não pode ser decretada de ofício nesta esfera, ao contrário do previsto no

Código de Processo Civil, devendo a questão ser levantada pela parte contrária.

Contudo, como há um conluio entre as partes, a suposta reclamada não

comparece à audiência preliminar, acarretando a revelia e o julgamento do processo

em favor do reclamante.

Munido da sentença, o reclamante ingressa na falência, requerendo o

levantamento de seu crédito trabalhista simulado; tendo prioridade sobre os demais

credores, este recebe e posteriormente compartilha com os sócios da empresa.

Em uma pesquisa de campo, não foi possível constatar sequer um caso onde

esta prática foi demonstrada pelas outras partes, quedando-se no campo de mera

suspeita.

Porém, a prática ocorre, e configura uma modalidade audaciosa de uso da

máquina judiciária, induzindo o juiz responsável pela falência a erro por apresentar-

lhe um suposto crédito, válido, mas que jamais existirá, muitas vezes frustrando o

recebimento dos demais credores.

Ao analisarmos a empreitada, observa-se a presença do trinômio

indispensável à configuração do estelionato: fraude, erro, vantagem ilícita.

A fraude consistiria na simulação em processo trabalhista, cujo crédito gerado

induziria a erro o juiz falimentar, consequentemente gerando uma vantagem ilícita

aos agentes envolvidos.

Estamos diante de um claro estelionato judiciário, o qual, até o momento, não

possibilita ao juiz verificá-lo prontamente, somente sendo possível sua apuração

através da instauração de minuciosa investigação policial.

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Em que pese o artigo 175 do referido diploma legal prever a hipótese de

apresentar crédito falso ou simulado, tal tipo penal não se amolda a estas práticas

de indução a erro do judiciário.

Como nos casos de ações tributárias que são instruídas com documentos

falsos, não se trata apenas de um mero uso, e sim de toda uma articulação que

resulta em uma realidade equivocada encarada pelo órgão julgador.

Não obstante, no caso descrito existe a participação do sócio da empresa

falida, sem a qual seria impossível a simulação do crédito trabalhista, sendo o crime

mencionado acima insuficiente para tipificar a conduta.

Enquanto o crime previsto no artigo 175 da Lei de Quebra é de mera conduta,

o estelionato judiciário em processo falimentar, caso fosse reconhecido pela

jurisprudência pátria, envolveria também a penalização pelo resultado danoso

causado pela parte.

Nesse gizo, não haveria um conflito entre as normas em tela, onde na

ocasião de um resultado lesivo para os demais credores, o estelionato absorveria o

tipo penal de habilitação ilegal de crédito, assim como absorve os demais crimes de

falso.

Ademais, estaria o instituto duplamente protegido, criminalizando a mera

conduta tida como ilegal, e aplicando uma norma penal mais grave caso resulte em

um evento posterior danoso.

6.2 O caso da indústria de liminares

No ano de 2013, a revista Valor Econômico publicou uma reportagem sobre

um esquema que havia se espalhado por todo o país e que gerava prejuízo

inestimável para as instituições financeiras.

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Tratava-se da venda de liminares que objetivavam a suspensão das parcelas

das dívidas adquiridas pela pessoa, bem como o desbloqueio da assim chamada

margem consignável.

Concedida a liminar, a pessoa dirigia-se a outro banco e tomava novo

empréstimo, desistindo da ação na sequência. As dívidas contraídas jamais seriam

pagas, sendo apenas uma manobra para sangrar ainda mais as instituições

financeiras.

Segue a reportagem na íntegra:

“Crédito consignado é alvo da indústria de liminares

'”A atendente em Porto Alegre oferece, por telefone, uma proposta que estádisparando a inadimplência do mercado de crédito consignado no Brasil. 'Sevocê ganha R$ 2 mil, consigo suspender o desconto do empréstimo atual nafolha de pagamento e depositar na sua conta R$ 12 mil líquidos.'

A promessa do dinheiro fácil envolve uma indústria de liminares que usa oJudiciário para dar um calote nos bancos, em um esquema que já seespalhou por pelo menos sete Estados, em diferentes regiões do país. Osalvos são convênios de empréstimo consignado entre bancos com órgãospagadores do setor público, como a Marinha, a Aeronáutica, o InstitutoNacional do Seguro Social (INSS), governos estaduais e prefeituras.

'Primeiro, a gente entra na Justiça questionando a validade do contrato [deconsignado] ou juros abusivos', explica a atendente na capital gaúcha. 'Nomomento em que o juiz dá a assinatura dele, a margem é aberta e odinheiro fica disponível. A ação acaba indo para juízes melhores, que agente sabe que vão liberar. A chance de ganhar a causa é de 95%. Se nãoganhar, a gente não desconta nada, fica tudo por nossa conta.'

A fraude começa com uma ação judicial, apresentada com a supostaintenção de questionar os juros cobrados pelo banco ou a validade dopróprio contrato. Alguns clientes alegam que nunca tomaram nenhumempréstimo, ou que não receberam do banco uma cópia dos documentos.

Nessa ação, os advogados pedem uma liminar com duas determinações:suspender o desconto das parcelas da dívida na folha de pagamento e,além disso, desbloquear a chamada 'margem consignável' - o percentualmáximo do salário ou benefício, em geral de 30%, que pode ser destinadoao pagamento do empréstimo.

Com a liminar concedida, o desconto é suspenso e o contracheque fica'limpo' para fazer novas dívidas. 'A liminar funciona como um cheque embranco para tomar novos empréstimos, diz o advogado Djalma Silva Júnior,que representa diversas instituições financeiras em processos envolvendofraudes com empréstimo consignado.

Imediatamente, um novo empréstimo é tomado em outro banco, no que jáse tornou conhecido como 'ciranda do consignado'. Silva Júnior identificou

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um caso em que a artimanha foi reproduzida nove vezes em nome de ummesmo cliente, contra pelo menos oito bancos.

'Eles tomam um novo empréstimo, mas sequer aparecem na audiência deconciliação', conta o advogado. As liminares são concedidas antes mesmoda audiência e sem ouvir as instituições financeiras envolvidas. 'Quando obanco toma ciência do processo, os descontos já saíram da folha depagamento.'

'Com o novo empréstimo formalizado e o dinheiro em conta, o clientedesiste da ação judicial. O objetivo da ação, na verdade, não era questionaros juros ou a validade do contrato, mas sim conseguir a liminar e liberar afolha para novos empréstimos.'

O esquema só é possível graças à certeza de que o débito anterior nuncaserá pago, ou pelo menos cairá pela metade ao longo do tempo, já que obanco se vê forçado a renegociar os valores. Com 30% do contrachequetomados pelo novo contrato, a instituição que concedeu o primeiroempréstimo não consegue mais cobrar a dívida, pois se vê impedida defazer as deduções na folha.

O Valor apurou que cerca de 20 instituições financeiras grandes, médias epequenas já sofreram prejuízos milionários com liminares concedidas empelo menos sete Estados: Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro,Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. As decisões beneficiammoradores de outras regiões, como São Paulo.

A atendente de Porto Alegre explica que trabalha "com todos os bancos":'Panamericano, Bradesco, Banrisul... Nós vemos o que está pagandomelhor na semana. O cliente não precisa nem ir, a gente só precisa daassinatura.'

Questionada se a primeira dívida será perdoada, ela admite que haverácobrança, mas aconselha o interessado a 'enrolar' o banco: 'O que tem quefazer é negar, negar, negar [o pagamento], e quando passarem cinco anos,renegociar, porque o banco vai dizer que é melhor receber menos dinheiroque o cliente não pagar mais. Mas eles não podem entrar na folha duasvezes, isso seria um crime, algo fora da lei.'

Algumas vezes, porém, o cliente é ludibriado com uma oferta enganosa de'cancelamento do consignado', 'exclusão' ou 'compra de dívida'. No Rio deJaneiro, um militar da aeronáutica aposentado, de 50 anos, conta querecorreu ao serviço por indicação de um amigo, pois tinha débito em trêsinstituições financeiras.

De acordo com ele, a operação foi feita em um pequeno escritório no centrodo Rio de Janeiro, como se fosse um serviço de 'compra de dívida'. 'O quemais tem no centro do Rio são lojas oferecendo isso. Todo mundo estáfazendo, para baixar o valor da prestação descontada em folha.' Ele diz,porém, que não sabia que seu nome foi parar em um processo judicial no 6ºJuizado Especial de Fortaleza, no bairro de Messejana, onde a juíza titularconcedeu uma liminar para suspender os descontos de empréstimosantigos e liberar a folha para novos empréstimos.

Procurada pelo Valor, a Associação Brasileira de Bancos (ABBC) confirmoua fraude e identificou mais de 28 mil processos desse tipo em diferentescomarcas do país. 'Há uma quadrilha por trás disso, uma ou várias', diz opresidente da ABBC, Renato Oliva, que comanda o banco Cacique, um dosafetados pelo problema.

A ABBC não soube estimar o tamanho do prejuízo. Mas somente em duascomarcas da Paraíba, liminares envolvendo um convênio da Marinhasignificaram R$ 18 milhões em contratos suspensos. 'Por causa de

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situações como essa, algumas instituições financeiras reduziram a oferta ouresolveram não mais oferecer a modalidade de empréstimo no país', afirmaOliva.

De acordo com ele, nos convênios da Aeronáutica e da Marinha, a fraudepode estar comprometendo cerca de 15% da inadimplência do consignado.A margem geral de inadimplência desse tipo de empréstimo no país é baixaem relação a outras modalidades de crédito e gira em torno de 4 a 5%.Segundo Oliva, cerca de 0,8% está vinculado a esse tipo de fraude.”19

À primeira vista, pode-se dizer que os escritórios de advocacia adeptos a esta

prática estão dentro de seu direito de ação, aproveitando-se das benesses

processuais existentes em uma relação de consumo, o que facilita na obtenção de

uma liminar.

Porém, ao analisarmos a intenção do agente, o dolo, verifica-se que a

proposição da ação jamais foi destinada a obter um provimento jurisdicional,

tratando-se de uma artimanha para que a parte possa tomar novos empréstimos

junto ao banco.

In casu, verifica-se outro caso de abuso do direito de ação, aproveitando-se

do Poder Judiciário para enriquecer ilicitamente.

Em que pese restar configurado um verdadeiro caso de litigância de má-fé,

este instituto não é suficiente para inibir tais práticas, pois mesmo aplicando as

sanções previstas ao litigante, ainda sim é vantajoso financeiramente.

Noutro giro, observa-se que o caso trazido amolda-se ao chamado estelionato

judiciário, visto que a parte induz o juízo a erro, que defere a liminar pleiteada,

oportunizando a vantagem ilícita em prejuízo das instituições financeiras.

Em sede de análise sumária, na qual é apreciado o pedido liminar, o juiz não

dispõe de meios para analisar a suposta intenção da parte, atendo-se ao caso

abordado e a experência na matéria.

19 Maíra Magro, Crédito consignado é alvo de indústria de liminares, Disponível em http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=14075.

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Este cenário de constantes abusos de instituições financeiras, aliado à

hipossuficiência do consumidor na relação contribuem para uma decisão favorável,

sepultando a probabilidade de um maior controle judicial prévio sobre a matéria.

Destarte, há uma certa dificuldade em detectar o suposto meio fraudulento

utilizado para ocasionar o erro do juiz, resultando na vantagem indevida; este

verifica-se na simples proposição da ação com a reserva mental de que não haverá

continuidade após a decisão liminar, pois o objetivo é simplesmente a realização de

novos empréstimos, os quais jamais serão pagos.

O Direito Penal pátrio é norteado pela teoria finalista, sendo a reserva mental

do agente imprescindível para a caracterização do injusto; o agente, ao praticar um

ato, almeja um fim específico, sendo este o elemento subjetivo da norma penal.

Nesse sentido, Luiz Regis Prado preceitua que:

“Com o finalismo se opera um giro copernicano na sistemática jurídica dodelito: o atuar humano é uma atividade ordenada finalisticamente, o queexige o exame de seu conteúdo subjetivo (vontade), não se tratando desimples processo de natureza causal, objetivo e 'cego'; a tipicidade incluielementos objetivos (tipo objetivo) e elementos subjetivos (tipo subjetivo); ailicitude tem conteúdo objetivo e subjetivo, sendo o injusto pessoal (desvalorda ação e desvalor do resultado); e a culpabilidade entendida comonormativa pura (imputabilidade, exibilidade de conduta diversa e potencialconsciência da ilicitude).”20

O que se tenta demonstrar é que não bastasse a conduta dos supostos

prestadores deste serviço amoldar-se no tipo penal de estelionato, cristalina é

intenção em lesar os bancos, restando preenchidos os tipos subjetivos e objetivos.

Não obstante, observa-se que a atividade em tela ocorre em âmbito nacional,

sendo inestimável o prejuízo ao sistema financeiro, não se tratando de casos

isolados.

Depreende-se da reportagem que, somente em 2 (duas) comarcas do Estado

da Paraíba, o valor estima dos contratos suspensos alcançaram R$ 18.000.000,00

20 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileir, vol.1, p. 107.

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(dezoito milhões de reais), resultando na diminuição da oferta de crédito consignado,

e até mesmo o não oferecimento do serviço por parte de algumas entidades.

A limitação de crédito disponível impacta diretamente na economia, causando

uma diminuição nas vendas em diversos setores, redução de empregos, e uma

queda da qualidade de vida da população.

O dano causado pela despenalização do estelionato judiciário é imensurável,

pois a indução de um magistrado ao erro gera possibilidades intermináveis ao

agente, sendo necessária uma imediata repressão penal, visando inibir eventuais

práticas danosas à coletividade.

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6 Considerações finais

O estelionato judiciário, ao contrário do que a jurisprudência majoritária

afirma, encontra amparo legal para sua tipificação, na medida que o próprio tipo

penal do estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal, admite interpretação

extensiva.

Apesar do conflito existente entre o reconhecimento deste crime e o direito de

ação, garantia constitucional à disposição de todas as pessoas, a experiência dos

últimos anos demonstrou que a defesa ilimitada deste direito resultou em abusos, os

quais vem sendo constantemente, gerando prejuízos incalculáveis.

É cediço que, por obedecer o princípio da intervenção mínima, o Direito Penal

não deve tutelar bens jurídicos protegidos por outras esferas, como, no caso em

tela, a condenação em litigância de má-fé nos casos de eventuais deslealdades

processuais.

Ocorre que a sanção processual cabível mostra-se ineficaz, na medida que a

conduta torna-se vantajosa mesmo diante de sua aplicação; deduzindo a multa e a

indenização prevista ao litigante, ainda assim ao agente aufere lucro em sua

empreitada.

Face disto, deve-se recorrer a ultima ratio do Direito Penal como medida

assecuratória do uso correto do direito de ação, visto que a persecução penal, ao

dispor de institutos como o da perda dos bens objetos do crime, prisão preventiva e

pena de reclusão, faz com que a conduta se torne muito menos atraente aos olhos

alheios.

Não obstante a necessidade jurídica de penalização da conduta, esta

extrapolou a esfera estritamente jurídica ao causar pesados impactos econômicos,

resultando na frustração de credores, fechamento de empresas, redução na oferta

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de trabalho, encolhimento da oferta de crédito, podendo, a longo prazo, acarretar

verdadeiro retrocesso ao desenvolvimento sustentável do país.

Diante de todas as razões articuladas neste arrazoado, é imprescindível que

os tribunais superiores reconsiderem seus conceitos acerca do estelionato judiciário,

sob pena de uma insegurança jurídica generalizada e um possível descrédito da

população para com o Poder Judiciário.

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Referências Bibliográficas

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