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67 Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.3, p.67-81, 2008. Uso popular de plantas medicinais na comunidade rural da Vargem Grande, Município de Natividade da Serra, SP SANTOS, J.F.L. 1 * ; AMOROZO, M.C.M. 2 ; MING, L.C. 3 1 Doutoranda - Departamento de Psicobiologia – UNIFESP/EPM, SP - Residência: Rua Santa Rosa 458, Lins - SP, Brasil, CEP: 16.400-213; 2 Departamento de Ecologia – Instituto de Biociências, UNESP – Campus de Rio Claro – SP, Brasil, CEP: 13506-900; 3 Departamento de Produção Vegetal – Setor Horticultura, Faculdade de Ciências Agronômicas, UNESP – Campus de Botucatu – SP, Brasil, CEP: 18610-307. *[email protected] RESUMO: O objetivo deste trabalho foi verificar junto à comunidade rural da Vargem Grande, município de Natividade da Serra, São Paulo, o conhecimento a respeito das plantas medicinais utilizadas para as doenças de maior ocorrência na região. Os problemas de hipertensão, diabetes, má digestão e problemas urinários foram citados como sendo de maior ocorrência na região pelos profissionais do Sistema Oficial de Saúde. A categoria de lesões de pele foi incluída na pesquisa pela freqüência de citações dos colaboradores. A coleta de dados foi realizada no período de março de 2004 a janeiro de 2006. A metodologia utilizada foi baseada em entrevistas e coleta botânica. Foram entrevistados 17 colaboradores, selecionados por meio da amostragem “bola de neve” onde cada morador cadastrado identificava dentro da comunidade as pessoas que eram as mais entendidas sobre as plantas medicinais, até o momento que novos nomes não eram mais citados. Foram utilizados os termos “pressão alta”, “açúcar no sangue”, “má digestão” e “dor de urina e bexiga” que eram os mais utilizados no local para designar os problemas de saúde. Embora a pesquisa tenha se restringido a alguns grupos de doenças e tipos de lesão, foi indicado um alto número de plantas, totalizando 115 espécies. As famílias mais representativas foram Asteraceae, Solanaceae e Lamiaceae. As espécies mais populares entre os informantes foram Baccharis sp (carqueja) e Sechium edule (Jacq.) Sw (chuchu). Pelo alto índice de concordância para algumas espécies indicadas, sugerem-se estudos de ação farmacológica que avaliem a eficácia terapêutica dessas espécies, incentivando programas de fitoterapia dentro do Sistema Oficial de Saúde, adaptado ao sistema cultural das populações locais visando à otimização de seu uso. Palavras-chave: plantas medicinais, etnobotânica, Mata Atlântica, comunidade rural ABSTRACT: Folk use of medicinal plants in Vargem Grande rural community, Natividade da Serra County, São Paulo State, Brazil. The objective of this study was to verify in Vargem Grande rural community, Natividade da Serra County, São Paulo State, Brazil, the knowledge on medicinal plants used to treat the most common diseases in this region. Hypertension, diabetes, poor digestion, and urinary problems were cited by local health officials as the most common diseases in the region. Skin lesions were included in the study because they were frequently mentioned by informants. Data collection was carried out from March 2004 to January 2006. The used methodology was based on interviews and botanical collection. Seventeen collaborators were interviewed, selected using the snowball sampling method, in which each recorded inhabitant identified in the community experts on medicinal plants, until no new names were cited anymore. The used terms were “high blood pressure”, “blood sugar”, “poor digestion”, and “urinary and bladder pain”, which were the most used in the region to designate those health problems. Although the study was restricted to a few groups of diseases and types of lesions, a large number of plants were indicated, totalizing 115 species. The most representative families were Asteraceae, Solanaceae and Lamiaceae. The most popular species were Baccharis sp (“carqueja”) and Sechium edule (Jacq.) Sw (chayote). Considering the high agreement degree for some indicated species, pharmacological studies are recommended to evaluate the therapeutic effectiveness of these species, encouraging phytotherapy programs in the official health system, adapted to the local population cultural system and aimed at optimizing their use. Key words: medicinal plants, ethnobotany, Atlantic Rainforest, rural community Recebido para publicação em 14/08/2007 Aceito para publicação em 13/02/2008

Uso popular de plantas medicinais na comunidade rural da … · 2015-05-14 · estradas e os ciclos econômicos do café, cana de açúcar, carvão e pecuária intensiva contribuíram

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Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.3, p.67-81, 2008.

Uso popular de plantas medicinais na comunidade rural da Vargem Grande,Município de Natividade da Serra, SP

SANTOS, J.F.L.1 *

; AMOROZO, M.C.M.2; MING, L.C.

3

1 Doutoranda - Departamento de Psicobiologia – UNIFESP/EPM, SP - Residência: Rua Santa Rosa 458, Lins - SP,

Brasil, CEP: 16.400-213; 2 Departamento de Ecologia – Instituto de Biociências, UNESP – Campus de Rio Claro

– SP, Brasil, CEP: 13506-900; 3 Departamento de Produção Vegetal – Setor Horticultura, Faculdade de Ciências

Agronômicas, UNESP – Campus de Botucatu – SP, Brasil, CEP: 18610-307. *[email protected]

RESUMO: O objetivo deste trabalho foi verificar junto à comunidade rural da Vargem Grande,município de Natividade da Serra, São Paulo, o conhecimento a respeito das plantas medicinaisutilizadas para as doenças de maior ocorrência na região. Os problemas de hipertensão, diabetes,má digestão e problemas urinários foram citados como sendo de maior ocorrência na regiãopelos profissionais do Sistema Oficial de Saúde. A categoria de lesões de pele foi incluída napesquisa pela freqüência de citações dos colaboradores. A coleta de dados foi realizada noperíodo de março de 2004 a janeiro de 2006. A metodologia utilizada foi baseada em entrevistase coleta botânica. Foram entrevistados 17 colaboradores, selecionados por meio da amostragem“bola de neve” onde cada morador cadastrado identificava dentro da comunidade as pessoas queeram as mais entendidas sobre as plantas medicinais, até o momento que novos nomes nãoeram mais citados. Foram utilizados os termos “pressão alta”, “açúcar no sangue”, “má digestão”e “dor de urina e bexiga” que eram os mais utilizados no local para designar os problemas desaúde. Embora a pesquisa tenha se restringido a alguns grupos de doenças e tipos de lesão, foiindicado um alto número de plantas, totalizando 115 espécies. As famílias mais representativasforam Asteraceae, Solanaceae e Lamiaceae. As espécies mais populares entre os informantesforam Baccharis sp (carqueja) e Sechium edule (Jacq.) Sw (chuchu). Pelo alto índice de concordânciapara algumas espécies indicadas, sugerem-se estudos de ação farmacológica que avaliem a eficáciaterapêutica dessas espécies, incentivando programas de fitoterapia dentro do Sistema Oficial deSaúde, adaptado ao sistema cultural das populações locais visando à otimização de seu uso.

Palavras-chave: plantas medicinais, etnobotânica, Mata Atlântica, comunidade rural

ABSTRACT: Folk use of medicinal plants in Vargem Grande rural community, Natividadeda Serra County, São Paulo State, Brazil. The objective of this study was to verify in VargemGrande rural community, Natividade da Serra County, São Paulo State, Brazil, the knowledge onmedicinal plants used to treat the most common diseases in this region. Hypertension, diabetes,poor digestion, and urinary problems were cited by local health officials as the most commondiseases in the region. Skin lesions were included in the study because they were frequentlymentioned by informants. Data collection was carried out from March 2004 to January 2006. Theused methodology was based on interviews and botanical collection. Seventeen collaboratorswere interviewed, selected using the snowball sampling method, in which each recorded inhabitantidentified in the community experts on medicinal plants, until no new names were cited anymore.The used terms were “high blood pressure”, “blood sugar”, “poor digestion”, and “urinary andbladder pain”, which were the most used in the region to designate those health problems. Althoughthe study was restricted to a few groups of diseases and types of lesions, a large number ofplants were indicated, totalizing 115 species. The most representative families were Asteraceae,Solanaceae and Lamiaceae. The most popular species were Baccharis sp (“carqueja”) and Sechiumedule (Jacq.) Sw (chayote). Considering the high agreement degree for some indicated species,pharmacological studies are recommended to evaluate the therapeutic effectiveness of thesespecies, encouraging phytotherapy programs in the official health system, adapted to the localpopulation cultural system and aimed at optimizing their use.

Key words: medicinal plants, ethnobotany, Atlantic Rainforest, rural community

Recebido para publicação em 14/08/2007Aceito para publicação em 13/02/2008

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Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.3, p.67-81, 2008.

INTRODUÇÃOO bioma Mata Atlântica é um dos mais

diversos e ricos do planeta. Chegou a cobrir a faixado litoral brasileiro de norte a sul, mas a abertura deestradas e os ciclos econômicos do café, cana deaçúcar, carvão e pecuária intensiva contribuíram paraa devastação de grande parte desta paisagem, quehoje é representada por 5% de remanescentes devegetação original. O desenvolvimento urbano na áreafoi um dos grandes devastadores. A abertura deestradas é decorrência disso e dos cicloseconômicos. O pouco que restou da Mata Atlânticano estado de São Paulo está em parte protegido emUnidades de Conservação (UC), administradas pelaSecretaria do Meio Ambiente (SMA), através doInstituto Florestal (IF).

Como no passado, populações rurais aindahabitam áreas de Mata Atlântica, em São Paulo eoutros estados, cercadas de insegurança e incertezasquanto a sua permanência atual e futura nas áreasde conservação e seu entorno.

Diante da falta de informações relacionadasao conhecimento destas pessoas vivendo emambientes de Serra do Mar, propõe-se este estudo,a fim de avaliar o saber tradicional relacionado àsplantas que são usadas para os casos de agravos àsaúde de maior ocorrência na região.

A diversidade de populações que vêm sendoestudadas sob o enfoque etnobotânico no Brasildemonstra a importância dos trabalhos nesta áreapara futuros estudos que envolvam fitotecnia, manejo,extrativismo, cultivo de espécies tradicionais eanálises laboratoriais que visem a avaliação científicade plantas citadas com propriedades terapêuticas.Isto contribuirá para resgatar e valorizar o saberpopular intensificando sua disseminação entre osmembros das comunidades estudadas.

Este trabalho teve como objetivo verificar oconhecimento popular a respeito das plantasmedicinais utilizadas para as doenças de maiorocorrência na região da comunidade rural VargemGrande, um bairro rural de entorno do Parque Estadualda Serra do Mar, Núcleo Santa Virgínia.

MATERIAL E MÉTODO

Local de estudoO Município de Natividade da Serra, SP, está

situado na zona fisiográfica do Alto Paraíba e seencontra nas seguintes coordenadas geográficas:23º23’16”de latitude sul e 45º27’14" de longitudeW.Gr., distando 122 km, em linha reta, da capital doEstado (Figura 1). Esta região é denominada de

FIGURA 1. Mapa com a localização do município de Natividade da Serra, São Paulo (adaptado SMA, 1998).

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Floresta Pluvial Atlântica, e está localizada na Serra doMar fazendo parte do Domínio Florestal Tropical Atlântico.

O bairro rural da Vargem Grande começou ase formar em 1960 e está localizado no entorno doslimites do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM)- Núcleo Santa Virgínia (NSV).

O município possui a terceira maior extensãoterritorial do Estado de São Paulo com uma área de846 km2. Seus municípios limítrofes são: São Luizdo Paraitinga, Redenção da Serra, Paraibuna,Caraguatatuba e Ubatuba.

A população do município é de 7.195habitantes sendo 3.123 habitantes vivendo na zonaurbana e 4.072 habitantes na zona rural. Essarealidade é bem diferente de outras localidades noEstado de São Paulo, pois Natividade da Serra é umdos únicos municípios do estado onde a populaçãorural ultrapassa a população urbana (Seade, 2005).

METODOLOGIAA pesquisa foi realizada no período de Março de

2004 a Janeiro de 2006, totalizando 127 dias no campo.A metodologia de coleta das informações

sobre uso medicinal foi baseada em AntropologiaCultural (Bernard, 1988).

Para estabelecer as doenças ou grupos dedoenças de maiores ocorrências aplicaram-seentrevistas semi-estruturadas com dois médicos, umagente comunitário do Programa de Saúde da Famíliae um enfermeiro nos municípios de Natividade da Serrae São Luiz do Paraitinga. Foi incorporado à pesquisao grupo de problemas de lesão de pele indicadospelos próprios entrevistados como sendo de altafreqüência na comunidade estudada.

Para a escolha dos colaboradores, foiaplicada a técnica de amostragem do tipo “bola deneve”, que consistiu em conversar com o primeiromorador cadastrado e perguntar quais eram aspessoas que mais entendiam sobre plantasmedicinais, e a partir de um informante culturalmentedetectado, que recomendava outro, repetindo-se oprocesso a partir dos novos incluídos aplicando-se ocritério da exaustividade para a seleção. (Bailey,1994). Para esses, foi aplicada uma entrevista semi-estruturada para obter os dados etnobotânicos.

Foi realizada coleta botânica nos ambientesonde crescem as plantas, por indicação doscolaboradores. Os espécimes foram prensados esecos para herborização e identificação das espécies.As plantas foram identificadas pelo Prof. Dr. Lin ChauMing (Unesp – Botucatu) e por consultas a materialde herbário e com apoio da literatura (Lorenzi, 2000;Lorenzi & Souza, 1995 e 2005; Lorenzi & Matos, 2002e outros). As exsicatas (voucher de 25558 até 25602)das plantas coletadas foram depositadas no HerbárioIrina Delanova Gemtchújnicov - Botucatu - UNESP -

Botucatu, SP.Os dados foram analisados de forma

qualitativa e quantitativa. Para estimar a importânciarelativa das espécies quanto à proporção decolaboradores que as citaram e a concordância dosusos citados, foi calculada a concordância quantoaos usos principais (CUP), e a correção parafreqüência de citação das espécies (CUPc) (Amorozo& Gély, 1988).

Como retorno para os moradores ecolaboradores da comunidade estudada, foi apresentadauma palestra com os resultados da pesquisa, sendoelaborada e distribuída uma cartilha sobre o históricoda vila, resultados da pesquisa e eventuais cuidados naadministração de plantas medicinais.

Optou-se por apresentar em cada tabela dasdoenças e tipos de lesão apenas as plantas que jáforam mencionadas na literatura para tratar os malesestudados, sendo realizada pesquisa em livros,artigos, sites e veículos de informação que indicassemo uso dessas plantas para os casos estudados. Emrelação ao preparo dos “remédios caseiros”, e a parteutilizada mesma conduta foi seguida.

Segundo Rodrigues et al. (2005), essadecisão faz parte de uma tendência mundial deconduta que é utilizada por alguns pesquisadores quedesenvolvem pesquisas com plantas medicinais, porentenderem que pesquisas dessa ordem despertaminteresses múltiplos. Esses motivos distanciam apesquisa com plantas medicinais de uma essênciapuramente cientifica, na qual a publicação de taisdados deveria gerar o bem para a humanidade, demodo incondicional.

É interessante também ressaltar que o usodas informações advindas a partir dessa pesquisa comfinalidades de bioprospecção e/ou desenvolvimentotecnológico, necessita de autorização prévia deacesso específico do Conselho de Gestão doPatrimônio Genético (CGEN).

RESULTADO E DISCUSSÃOA aceitação da pesquisa no bairro foi

complicada, gerando alguns conflitos iniciais com osmoradores, pois estes temiam que os resultados dapesquisa contribuíssem para a desapropriação desuas terras pelo Governo do Estado a fim de incorporarnovas áreas para a proteção da Mata Atlântica. Umavez esclarecidas as dúvidas, obtivemos colaboraçãoirrestrita dos colaboradores.

Dados SocioeconômicosForam cadastradas 55 pessoas no censo

socioeconômico, caracterizando a população emgeral. 22% dos colaboradores encontram-se na faixaetária dos 40 aos 51 anos. Dados sobre a faixa etáriada população em geral da comunidade encontram-

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se na Figura 2. Cerca de 65% dos moradorescadastrados têm sua origem na Vargem Grande.

Foram identificados dentro da comunidade17 moradores, como os que mais conhecem sobre“as plantas de fazer remédio”, denominados decolaboradores nessa investigação.

Do total de pessoas entrevistadas, 12 (70%)são do sexo feminino e 5 (30%) do sexo masculino.

A faixa etária dos colaboradores está situadaentre 29 e 73 anos. A proporção de idosos érelativamente alta, com 40% acima de 60 anos.

Cerca de 95% dos colaboradores têm suaorigem na zona rural. Destes, 65% são nascidos nobairro rural da Vargem Grande, um morador é nascidona zona urbana do município de Natividade da Serrae 30% dos colaboradores entrevistados são nascidosnos sertões do Coxo e Guaricanga, ambos nomunicípio de Natividade da Serra.

Quanto à escolaridade, 47% nuncafreqüentaram a escola, 23% não chegaram a finalizaro primeiro grau e 30% concluíram o primeiro grau.

Atualmente, 15 (88%) dos colaboradores nãotrabalham fora, são donas de casa, aposentados elidam em sua própria lavoura e dois (12%) realizamatividades autônomas. Observa-se que mesmo osaposentados desempenham atividades diárias emsuas roças, duas moradoras donas de casadesenvolvem trabalhos de artesanato.

Todos os colaboradores afirmam ter adquiridoseu conhecimento sobre plantas com membros dafamília, geralmente as avós e mães que eram parteirase benzedeiras ou profissional tradicional comocurandeiros, raizeiros, benzedeiras e parteiras queali viviam.

Doenças do ponto de vista do SistemaOficial de Saúde

Apesar de o bairro Vargem Grande pertencera Natividade da Serra, todas as consultas médicassão realizadas no município de São Luiz doParaitinga, por ser o local mais próximo e de fácilacesso aos moradores. Duas vezes por semana

FIGURA 2. Distribuição dos moradores cadastrados por faixa etária.

existe um veiculo particular que faz a linha VargemGrande - São Luiz do Paraitinga.

Já o bairro estudado conta com um Postode Saúde, que tem a presença de um enfermeiro durantetoda a semana; neste local são marcadas consultas,feito encaminhamentos para os locais adequados econta-se com uma ambulância recebida pela PrefeituraMunicipal de Natividade da Serra em 2005.

Os problemas de saúde foram citados pelaprevalência de casos e também sugeridos para apesquisa, pelos profissionais de saúde. Entre elesestão: hipertensão, diabetes, má digestão eproblemas urinários.

Os profissionais relatam que a maioria dospacientes, quando procura o atendimento oficial desaúde, geralmente, já vem automedicada de suascasas, ora com o medicamento da farmácia, ora como uso da planta. E sobre a prescrição de uso dasplantas medicinais, todos os profissionais dizem termedo de indicar a planta, por falta de conhecimento.

A Organização Mundial de Saúde (OMS),desde a Declaração de Alma-Ata, em 1978, temexpressado a sua posição a respeito da necessidadede valorizar a utilização de plantas medicinais noâmbito sanitário, tendo em conta que 90% dapopulação mundial utilizam estas plantas oupreparações destas no que se refere à atençãoprimária de saúde. Ao lado disso, destaca-se aparticipação dos países em desenvolvimento nesseprocesso, já que possuem 67% das espécies vegetaisdo mundo. (Ministério da Saúde, 2006).

O interesse popular e institucional vemcrescendo no sentido de fortalecer a fitoterapia noSistema Único de Saúde (SUS). A partir da décadade 80, diversos documentos foram elaboradosenfatizando a introdução de plantas medicinais efitoterápicos na atenção básica no sistema público.(Ministério da Saúde, 2006).

Percepção das doenças e/ou sintomas e ouso das plantas medicinais pela comunidade

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De acordo com Hellmam (1994), asdefinições de saúde e doença variam entre indivíduos,grupos culturais e classes sociais. Na maioria doscasos a saúde significa muito mais do que ausênciade sintomas desagradáveis. Segundo o autor, a OMSa define como “um estado de completo bem estarfísico, mental e social, e não simplesmente a ausênciade doença ou enfermidade”.

Para cada doença ou grupo de doença foiestabelecida, segundo os próprios colaboradores, umalistagem de sintomas e fatores que podem serdesencadeados.

Para facilitar o entendimento peloscolaboradores, empregou-se nas entrevistas adenominação que eles usam para cada doença. Osproblemas de hipertensão e diabetes foramdenominados respectivamente de “pressão alta”, e“açúcar no sangue”. Problemas de má digestão foramdefinidos como “problemas da barriga”. Em relaçãoaos problemas urinários, todos os moradores sereferem a esses males como “dor de urina e bexiga”.Os problemas de “lesões de pele” foram incluídos napesquisa, por ser entendida como sendo de altaprioridade para a comunidade estudada. Os primeiroscuidados de saúde são realizados na própriaresidência com remédios à base de plantasmedicinais, animais e minerais.

Pressão altaSegundo os colaboradores, a pessoa só vem

a saber que tem pressão alta após esta serdiagnosticada por um profissional de saúde.

Muitos relacionam a doença comodesencadeadora de outros males, como: infarto,depressão e derrame. As associações causais, paraos entrevistados, estão ligadas efetivamente com asemoções contidas no dia-dia.

O mesmo foi observado por Carvalho et al.(1998) realizando uma investigação antropológica compessoas na terceira idade sobre pressão alta, onde amaioria dos entrevistados relaciona a hipertensãoarterial como decorrente do estado emocionalcausado por fatores do dia-dia, traduzido como“passar muito nervoso”.

Foram citadas 21 plantas medicinais para otratamento de pressão alta; mas apenas 19 plantasestão demonstradas da Tabela 1, a fim de preservaro conhecimento da comunidade estudada. Chuchu(Sechium edule (Jacq.) Sw.) foi a planta mais citada.As folhas do chuchu são usadas na forma de infusão,embora ingerindo o fruto se possa ter resultadosemelhante.

Fuchs et al. (1986), investigaram o efeitoagudo do chá de chuchu sobre a pressão arterial,freqüência cardíaca, o volume urinário e as taxas desódio e potássio de 21 jovens normotensos, emensaio clínico cruzado, contra placebo, randomizado

e duplo-cego. Os resultados mostraram apenas umaumento significativo do volume urinário quando daingestão do chá, não se evidenciando, nas presentescondições experimentais, o propalado efeitohipotensor do chuchu.

Açúcar no sangueÉ muito comum para os colaboradores

relacionarem a quantidade de açúcar que a pessoaingere como desencadeadora desse mal.

Foram sugeridos, segundo os colaboradores,os seguintes sintomas e fatores relacionados: cincoafirmam que percebem quando o açúcar no sangue émuito elevado, quando ficam com a “boca muito seca”,a “vista começa a embaçar”, sentem muito sono e avontade de urinar aumenta. Má cicatrização dasferidas, zunido no ouvido, tontura e dor de cabeçatambém foram sugeridos. Como na pressão alta,açúcar no sangue é uma doença de difícil diagnósticocaseiro; os que têm ficaram sabendo através deexames ou visitas ao Sistema Oficial de Saúde.

Segundo Volpato et al. (2002), a utilizaçãode plantas é o tratamento mais antigo para Diabetesmellitus e datando do “Papirus de Ebers” de 1550a.C. o qual recomendava dieta com grande quantidadede fibras de grãos de algodão e ocre.

Para o tratamento de açúcar no sangueforam citadas 16 plantas, sendo incluídas 14 plantasna Tabela 2. A mais citada foi o jambolão (Syzygiumcumini (L.) Skeels). Três colaboradores indicam otratamento de açúcar no sangue com chá de jambolãodurante uma lua minguante inteira, segundo eles, alua faz o açúcar minguar.

Villaseñor et al. (2006) realizaram testes complantas medicinais que possuem efeito anti-hiperglicemiante, segundo o conhecimento popular. Dassete plantas testadas, apenas três, entre elas S. cumini,apresentaram uma diminuição significativa nos níveisBGL (beta-glicosidases que produzem os monômerosde glicose); nesta pesquisa foram empregadas somentecascas secas do tronco dessa planta.

Houve colaboradores que não souberam citarquais plantas podem ser usadas para pressão alta eaçúcar no sangue.

Embora todos já tenham ouvido falar dadoença, mostram certa cautela em dizer quais ossintomas e fatores que possam estar relacionadosnesses dois casos.

Problemas de barrigaEsses problemas são conhecidos por todos

e cautela em comentar ou falar sobre eles não existiu.Estão fortemente associados ao tipo de alimentoingerido. Acometem todas as idades, não sãoconsiderados como um problema grave de saúde,sendo tratados em casa mesmo, com os “remédiosdo mato”.

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Rev. Bras. Pl. Med., Botucatu, v.10, n.3, p.67-81, 2008.

TABELA 1. Plantas usadas para o tratamento de pressão alta, no bairro rural da Vargem Grande, município deNatividade da Serra, SP.

TABELA 2. Plantas usadas no tratamento de açúcar no sangue, no bairro rural da Vargem Grande, município deNatividade da Serra, SP.

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TABELA 3. Plantas usadas no tratamento de má digestão, no bairro rural da Vargem Grande, município deNatividade da Serra, SP.

Basta uma pessoa comer algum alimentoque não lhe caiu bem para sentir-se “empanturrado”;este termo é amplamente utilizado na comunidade,e se refere ao estômago pesado e dolorido.

Para tal fim, relataram o uso de 25 plantas,sendo apresentadas 19 delas na Tabela 3. Algumasplantas são comuns nas pesquisas com plantasmedicinais, como o uso do boldo (Plectranthusgrandis (Cramer) R.H. Willemse), uma das plantasmais citadas, juntamente com a carqueja (Baccharissp). A maioria das plantas citadas é administrada emforma de chá e em temperatura ambiente, muitasvezes macerada; algumas cascas do tronco foramcitadas como excelentes remédios para“empanturração”, como a casca d’anta e a quina quesão raladas e misturadas na água.

Baggio et al. (2003) realizaram estudos paracomprovar a eficácia de Baccharis illinita DC. notratamento de desordens gastrointestinais em ratos.Foram realizados estudos com extratos hidroalcoólicosdas plantas e extratos aquosos. Os ensaiosfarmacológicos dos extratos aquosos de folhas, florese raízes apresentam ação protetora das lesõesgástricas da mucosa envolvendo a manutenção dosfatores protetores da mucosa.

Dor de urina e dor de bexigaOs colaboradores conhecem os problemas

urinários como “dor de urina e dor de bexiga”, nãohavendo diferenças entre essas dores. Cerca de cincocolaboradores relataram espontaneamente reconheceresse mal a partir de dores na hora de urinar ejuntamente com essas dores estão associadascólicas e sensação do canal da urina “queimar”.

Reconhecem com grande facilidade asplantas usadas para esse tratamento, sendointeressante o grande número de plantas citadas, 35no total, sendo demonstradas 31 plantas na Tabela 4.

Em nenhuma das citações foi indicado o usode apenas uma planta para o tratamento a associaçãode plantas nesses casos é muito comum. Todos ospreparados com mais de uma planta para estetratamento são denominados como “cordiá”, que vema ser o cozimento de três ou mais plantas ao mesmotempo. Esse tipo de preparação foi citado apenaspara os casos de “dor de urina e bexiga”, não relatadono caso de outras afecções porque para os outros asplantas são ingeridas individualmente.

As plantas mais citadas para o tratamentode problemas urinários foram o milho (Zea mays L.) equebra-pedra (Phyllantus tenellus Roxb). O tratamentoé feito até o momento em que não há mais sintomas,geralmente, em doses diárias.

Barros et al. (2003) realizaram estudo sobreo efeito do extrato aquoso de Phillanthus niruri, umaoutra espécie de quebra-pedra, sobre oxalato de cálcio

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cristalizado in vitro. Os resultados demonstraram umefeito inibidor do extrato no crescimento do cristal ena agregação de oxalato de cálcio na urina humanae de ratos.

As plantas conhecidas como quebra-pedratêm o uso difundido de norte a sul do país para tratarproblemas urinários, conforme encontraram em seustrabalhos Amorozo & Gély (1988) estudandocomunidades isoladas no Pará e Riter et al. (2002)

TABELA 4. Plantas utilizadas no tratamento de dor de urina e dor de bexiga, no bairro rural da Vargem Grande,município de Natividade da Serra, SP.

estudando uma população no Rio Grande do Sul.

Lesão de PeleÉ importante ressaltar que dentro deste

grupo estão incluídas algumas doenças e vários tiposde lesão, tanto aquelas causadas pelo próprioorganismo como por fatores externos e estilo de vida.

Por lesão de pele é entendido segundo oscolaboradores tudo aquilo que é ferida, furúnculo,

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TABELA 5. Plantas usadas no tratamento de lesões de pele, no bairro rural da Vargem Grande, município deNatividade da Serra, SP.

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ferida-brava, feridas de chagas, ferida causada porcâncer, arranhão, “machucadura”, corte, picada, dorno joelho e reumatismo.

O estilo de vida desses moradores temgrande influência no número de ocorrência e nos tiposde lesão, pela exposição diária ao ambiente natural,na lida diária e nos trajetos cotidianos, tornando-sesusceptíveis a arranhões, cortes e picadas. Paraesses tipos de problema, o tratamento médico oficialraramente é procurado, os tratamentos são feitos emcasa ou com a ajuda de um profissional tradicional,como um curandeiro ou raizeiro.

Normalmente o tratamento é feito com o usotópico de plantas medicinais no local afetado ou entãose o problema for tratar o sangue eliminando suasimpurezas, o ideal é tomar uma garrafada com umamistura de plantas para “afinar o sangue” com o intuitode eliminar as impurezas do sangue econseqüentemente promover a cura de lesões.

Foram mencionadas 40 plantas medicinais,sendo listadas 35 na Tabela 5. Capichinguinha (Crotonfloribundus Spreng.) foi a mais utilizada e seu uso éamplamente difundido dentro da comunidade. É umaespécie de fácil acesso aos moradores e tem usotópico na forma de banho com o cozimento dascascas do tronco.

Características botânicas e ecológicas dasplantas utilizadas

Foram encontradas ao todo 118 espécies deplantas medicinais (Tabela 6) distribuídas em 49 famíliasbotânicas, sendo as principais Asteraceae (n=20;17,6%), Solanaceae (n=9; 7,9%), Lamiaceae (n=8; 7%),Poaceae (n=4; 3,5%) e Rubiaceae (n=4; 3,5%). Oitoespécies não puderam ser coletadas ou identificadas.

A maior parte apresenta hábito herbáceo (63%),seguido de cipó (14%), arbóreo (13%) e arbustivo (10%).Estes valores indicam que todos os estratos davegetação são utilizados com finalidades terapêuticas.

A maior predominância do hábito herbáceopode estar relacionada com a facilidade de coleta e omanuseio das plantas.

Na região há um mosaico de paisagens que

permite a coleta em diferentes ambientes. Os locaisde obtenção dessas plantas não se restringem àshortas e quintais. Ressaltando que a diferença entrehorta e quintal está na cerca que é construída aoredor das hortas como forma de proteger esseambiente dos animais domésticos (Figura 3).

Os quintais são os espaços ao redor daunidade familiar onde, além das plantas medicinais,encontram-se algumas plantas ornamentais eespécies frutíferas. Os moradores estão em contatodiário com esse ambiente e realizam adubaçãoorgânica com sobras de vegetais, casca de ovo e póde café. Foi observada a coleta das plantas somentequando existe a necessidade, apesar de existir umacoleta anual na “sexta-feira maior” (sexta-feira dapaixão) de três espécies de plantas que sãoarmazenadas e utilizadas durante o ano. Não foiobservado cultivo de plantas em latas ou vasos, anão ser ornamentais.

A maior parte das espécies é a espontânea(n=70; 60,8%), sendo o restante cultivado (n=45;39,13%). A diversidade significativa das espéciesespontâneas evidencia de alguma forma a diferençade locais de coleta (florestas primárias, secundárias,capoeiras, quintais e hortas) e o fato de que essesmoradores coletam algumas vezes nesses ambientesplantas com propriedades terapêuticas.

Modo de preparo dos remédios caseirosA folha é a parte vegetal mais utilizada (53%),

seguida de toda a planta (13%), raízes (11%), flores(7%), sementes (5%), cascas (5%), resinas (3%),frutos (2%) e outros (1%). Na categoria “outros”, estãoincluídos bulbos. Em todas as categorias de doençase tipos de lesão, a parte mais utilizada são as folhas,apenas nos casos de lesão a segunda parte maisutilizada nesses casos foram as cascas.

Normalmente na maior parte dos trabalhoscom plantas medicinais o principal modo de preparodos remédios caseiros é na forma de chá, conformeobservaram Silva-Almeida & Amorozo (1998), Costa(2002) e Pinto et al. (2006) estudando plantasmedicinais em comunidades rurais. O mesmo foiobservado nesta investigação, conforme Tabela 7.

FIGURA 3. Locais de obtenção das espécies medicinais.

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TABELA 6. Plantas com uso terapêutico na Vargem Grande: aspectos ecológicos. Ref=número de coletail=identificada no local; NI=número de informantes citando a planta; NC=não coletada; Hab=hábito; A=árvore;a=arbusto; E=erva; C=cipó; L.obt=local de obtenção; Aq=aquática; Q=quintal; Ho=horta; M=mata; R=ruderal;Me=mercado; C=cultivada; E=espontânea.

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A confiança na eficácia da aplicação por viatópica é muito grande entre os colaboradores quesofrem de lesões e os relatos de cura para estesmales foram os mais citados durante a pesquisa.

Para as formas de preparo “cordiá” egarrafadas foram observadas a mistura de plantas paraas formulações dos remédios. O “cordiá” normalmenteé feito com a mistura de duas ou mais plantas ondetodas as espécies são maceradas numa panela sendolevadas simultaneamente ao fogo para cozinhar edepois se toma como água e em temperaturaambiente, para dor de urina e dor de bexiga, até ossintomas desaparecerem.

A garrafada pode ser usada em dois casos:um deles para tratar as dores de urina e bexiga sendopreparadas da mesma forma que o “cordiá”, mas asfolhas não são maceradas e depois da mistura pronta,esta é colocada em garrafas para tomar de duas atrês vezes ao dia. Já as garrafadas usadas para aslesões de pele são misturadas com vinho tinto parauma melhor eficácia das propriedades terapêuticas,seu uso nesse caso é tópico. Essas garrafadas, noentanto, são preparadas somente por aqueles quedominam essa técnica e junto a esse preparo érealizado também o benzimento.

No caso de outros, estão cascas secas quesão raladas e misturadas a água, sementes que sãoamassadas e misturadas a água e também resinade algumas plantas que são aplicadas sobre o localafetado no caso de algum ferimento, dor oureumatismo.

Importância relativa das espéciesAs plantas mencionadas na Tabela 8 foram

aquelas citadas por quatro ou mais colaboradores.Para o fator de correção foi utilizada a carqueja, quefoi citada por todos os colaboradores.

Uma planta com índice de concordânciarelativamente alto pode sugerir uma real efetividadeno tratamento da doença (Friedman et al. 1986). Em

estudos de etnobotânica, este índice pode facilitar aseleção de espécies para testes farmacológicos quepossam vir a provar uma eficácia de seus princípiosativos.

Pode-se observar índice de concordância deuso (CUP) alto (de 80% ou mais) principalmente paraas espécies usadas para dores de urina e dor debexiga, o que confirma o consenso entre oscolaboradores em falar sobre os problemas econcordar com os usos de algumas espécies, comoo milho, a quebra-pedra, o abacate, o chápeu-de-couro, a caninha-do-brejo, o cipó-peludo, a setesangria, a camomila, a cana, o carrapichinho, astansagens da horta e do mato, a vassourinha e avassoura-rainha. Nota-se que essas plantas foramtambém as mais indicadas para o preparo do “cordiá”.

Para os problemas de má digestão, 80% oumais dos colaboradores concordam que a carqueja,o boldo, a marcelinha, a quina, o cipó-milhomem e alosna são eficazes nesse caso.

Durante a pesquisa, a maioria doscolaboradores demonstrou cautela em comentarsobre pressão alta e açúcar no sangue, porém 80%ou mais dos entrevistados concordam que o chuchu,a erva-cidreira, a cana e a erva-cidreira-de-capim sãousados no tratamento da pressão alta. E a únicaplanta que obteve coerência de uso acima de 80%para o tratamento de açúcar no sangue foi o jambolão.

Embora o problema de lesões de pele tenhasido a categoria com maior número de plantas citadas,apenas capichinguinha, cedro e rueira foram asespécies de maior importância para 100% dosentrevistados.

O valor de CUPc é, em geral, mais baixoque o CUP, pois é relativo à planta com maior númerode colaboradores citando-a – no caso a carqueja e ochuchu. Esses valores indicam que essas plantassão as mais populares entre os moradores estudadossendo utilizadas para o tratamento da má digestão epressão alta, respectivamente.

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TABELA 7. Formas de preparo dos remédios caseiros

TABELA 8. Plantas citadas por quatro ou mais colaboradores quanto as usos principais. ICUE=número de informantesque citaram o uso da espécie; ICUP= número de informantes que citaram os usos principais; CUP= porcentagemde concordância quantos aos usos principais; FC= fator de correção; CUPc= CUP corrigida.

CONCLUSÃOOs colaboradores entrevistados indicaram os

hábitos e fatores que são prejudiciais à sua saúde.Sabem reconhecer e fazer um diagnóstico caseiropara problemas de má digestão, dor de urina e dorde bexiga, no entanto não o fazem para pressão altae açúcar no sangue demonstrando pouca familiaridadea respeito dessas duas doenças.

Pela alta porcentagem de concordância paraalgumas espécies indicadas, sugerem-se estudos deação farmacológica que comprovem a eficáciaterapêutica dessas espécies, incentivando programasde fitoterapia dentro do Sistema Oficial de Saúdeadaptado ao sistema cultural das populações locaispara a otimização de seu uso.

O saber e a transmissão do conhecimentode populações em áreas de entorno de unidade deconservação pode ser comprometido, pelo fato dessasáreas estarem sujeitas a desapropriações, cortandoseus vínculos com os locais de origem e prejudicandosuas relações comunitárias.

AGRADECIMENTOAos moradores da Vargem Grande, pelo

aprendizado, amizade e colaboração para arealização desse trabalho. Ao CNPq (processo131895/2004-4), pelo auxílio financeiro por meio dabolsa de mestrado.

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