Visita Intima

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Visita intima

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  • 96 DIREITOS FUNDAMENTAIS & JUSTIA - ANO 7, N 24, P. 96-112, JUL./SET. 2013

    Doutrina Nacional

    MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAO DE ADOLESCENTES: UMA REFLEXO SOBRE O

    DIREITO DE VISITA NTIMA

    SOCIAL-EDUCATIVE MEASURE OF CUSTODY OF ADOLESCENT: A REFLECTION ON THE

    RIGHT OF CONJUGAL VISIT WNIA CLUDIA GOMES DI LORENZO LIMA1 ANA LUZA FLIX SEVERO2 SILVANA CARNEIRO MACIEL3

    RESUMO: O presente artigo teve como objetivo analisar, de forma conceitual e crtica, o direito de visita ntima para adolescentes em conflito com a Lei, em sistema de internao, o qual foi institudo pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), no ano de 2012. Tal direito traz tona questes que abarcam as dimenses jurdica, psicolgica e social, vinculadas sexualidade multifria dos adolescentes, numa perspectiva intersecional do desenvolvimento. A questo foi investigada levantando as lacunas normativas na disposio do reconhecimento da unio estvel para aquisio do direito de visita ntima de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, bem como as incongruncias entre a legislao penal e a civil. As reflexes desenvolvidas enfocaram a possibilidade de se garantir a visita ntima frente institucionalizao, superlotao do sistema de internao e condies precrias do sistema penitencirio, para efetivar o que determina a lei no que se refere visita ntima dos adolescentes infratores. PALAVRAS-CHAVE: Visita ntima; Internao; Medida Socioeducativa; Adolescente. ABSTRACT: This article aims to analyze, from a conceptual and critical way, the right to conjugal visit for adolescent in conflict with the law, in the custody system, which was instituted by the National System of social-educative Service (SINASE) in 2012. Such right brings to the fore issues that span the legal dimension,

    Artigo recebido em 26.02.2013. Pareceres emitidos em 22.05.2013 e 26.07.2013. Artigo aceito para publicao em 17.09.2013. 1 Professora no Curso de Direito do Centro Universitrio de Joo Pessoa UNIP, Joo Pessoa/ PB/Brasil. [email protected] 2 Aluna do Curso de Direito do Centro Universitrio de Joo Pessoa UNIP. Funcionria do Centro Educacional do Adolescente de Joo Pessoa. Joo Pessoa/PB/Brasil. 3 Universidade Federal da Paraba UFPB. Professora do Departamento de Psicologia. Mestrado em Psicologia Social. Joo Pessoa/PB/Brasil.

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    psychological and social, linked to the multifarious sexuality of the adolescent, in an intersecant perspective of development. The matter was investigated by raising the normative gaps in the provision of recognition of the stable union for the acquiring the right to conjugal visits for adolescents fulfilling social-educative measures, as well as inconsistencies between civil and criminal law. The reflections developed focused on the possibility of securing conjugal visits across the institutionalization of the custody system overcrowding and poor conditions of the prison system to effect what the law requires with regard to conjugal visits of adolescent offenders. KEYWORDS: Conjugal Visit; Custody; Social-educative Measures; Adolescent. SUMRIO: Introduo; I. Reflexes sobre Adolescncia e Sexualidade; II. Direito de Visita ntima de Adolescentes em Privao de Liberdade: uma anlise baseada nos direitos fundamentais; III. O Direito de Visita ntima de Adolescentes: incongruncias jurdicas e sociais; Consideraes Finais; Referncias Bibliogrficas. SUMMARY: Introduction; I. Reflections on Adolescents and Sexuality; II. Right of Conjugal Visit of Adolescents Deprived of their Freedom: analysis based on fundamental rights; III. The Right to Conjugal Visits for Adolescents: legal and social incongruities; Final Thoughts; Bibliographical References.

    INTRODUO A visita ntima consiste no ato de algum ir e ver, de forma privativa e

    afetuosamente, uma pessoa com quem est estreitamente ligado por afeio, confiana e impacto mtuo. Rege-se pela intimidade e pela necessidade de um espao que priorize as condies adequadas para contatos particulares, de respeito e de cumplicidade e para o desempenho da vida sexual. Portanto, um momento individual que, vivido numa entidade com estrutura de internao coletiva, exposto publicamente. Configura-se pelos desejos e necessidades particulares que no podem ser compartilhados com os demais internos.

    A Organizao Mundial da Sade (OMS) delimita a adolescncia como a segunda dcada de vida (10 aos 19 anos) e a juventude como o perodo que vai dos 15 aos 24 anos. O Ministrio da Sade toma por base a definio da OMS, caracterizando o pblico beneficirio como o contingente da populao entre 10 e 24 anos de idade. As fronteiras cronolgicas so uma referncia para a delimitao de polticas, mas, na vida concreta e na experincia singular de adolescentes e jovens, tais fronteiras no esto dadas de um modo homogneo e fixo.

    Nesta direo, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA)4 incorpora taxativamente no contedo normativo jurdico brasileiro a distino cronolgica para definir crianas e adolescentes, considerando-os como sujeitos de direito. O Art. 2 define como adolescentes aqueles entre doze e dezoito anos de idade. O seu Pargrafo nico ainda estende alguns direitos s pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. Assim sendo, alm de considerar as peculiaridades e as necessidades da criana e do adolescente, a Lei reconhece a excepcionalidade da condio do jovem adulto. 4 BRASIL, Estatuto da Criana e do Adolescente. Lei Federal n 8.069/90. Braslia, DF, Senado, 1990.

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    Com o estabelecimento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)5, surgiram novas bases para a execuo de medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que praticaram ato infracional. A execuo das medidas socioeducativas rege-se, entre outros, pelos princpios da excepcionalidade, da brevidade, da individualizao, da no discriminao e do fortalecimento dos vnculos familiares e comunitrios. Estes princpios constam no Artigo 227, inciso V da Constituio e tambm no caput do Artigo 121 do ECA. No que se refere internao, salienta-se que o respeito condio peculiar de pessoa em desenvolvimento, que norteia o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA), constitui-se com o objetivo de garantir o pleno desenvolvimento, abrangendo aspectos fsicos, psicossociais e cognitivos em sentido amplo, mesmo na condio de privao de liberdade, que configura uma situao adversa sade integral.

    A problemtica levantada por este artigo como garantir essa intimidade e individualidade, frente institucionalizao coletiva e superlotao do sistema de internao, tendo ainda que privilegiar alguns internos em detrimento de outros que porventura no se enquadrem no perfil estabelecido para a visita ntima. Ademais, no se pode esquecer a vinculao da visita ntima com a questo dos adolescentes infratores e suas controvrsias.

    O Estatuto da Criana e do Adolescente traz ainda, em seu Artigo 124, um rol de direitos fundamentais dos adolescentes privados de liberdade. O caput desse dispositivo legal adota a expresso dentre outros, indicativa de que o rol ali apresentado no taxativo, mas sim exemplificativo. Significa, portanto, que paralelamente a esses direitos, que so bsicos e fundamentais, podem e devem ser garantidos outros. A no especificao exaustiva desses direitos traz inmeras discusses sobre quais so, na totalidade, os direitos dos jovens privados de liberdade6.

    Uma questo a ser destacada consiste na ausncia de disposies mais especficas a respeito dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos dos jovens em geral, uma vez que o ECA nada dispe sobre sexualidade, paternidade ou maternidade. No entanto, no mbito internacional, os direitos sexuais foram reconhecidos como direitos humanos.

    Na tentativa de suprir esta carncia, no Brasil, a Lei n 12.594/12 modificou o Estatuto da Criana e do Adolescente, instituindo, atravs do seu Artigo 68, o direito de visita ntima queles que esto submetidos internao. Assim, surgiu uma concepo diferenciada acerca dos fatos que envolvem a vida destes atores.

    O ponto principal que merece ser abordado se refere s contradies que a nova Lei suscita no que se refere visita ntima tambm entre adolescentes 5 BRASIL, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Lei Federal n 12.594/12. Braslia, DF, Senado 2012. 6 MATTAR, Laura Davis. Exerccio da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes de Privao de Liberdade. Maranho: Cadernos de Pesquisa, v. 38, n 133, jan./abr. 2008.

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    de doze e quatorze anos, visto que o Artigo 68 no fixa idade, apenas limita a expresso do direito ao adolescente. A gravidade estaria na possibilidade de um adulto ter garantido esse direito ao provar que mantm um relacionamento com um adolescente que se encontra nessa idade. Alm da necessidade de se discutir o assunto do ponto de vista da maturao sexual em diversos ngulos da cincia do desenvolvimento, faz-se necessrio confrontar o posicionamento jurdico da garantia desse direito frente ao tipo penal de estupro de vulnervel, disposto na Lei n 12.015/09, que fixa a capacidade de consentimento para atos sexuais aos 14 anos.

    Qualquer anlise terica no pode se distanciar do contexto de sua aplicabilidade, observando as estruturas fsico-organizacionais das entidades vigentes. Sendo assim, discutir a nova proposta do SINASE, no que tange garantia de visita ntima de adolescentes em medidas socioeducativas de internao, sem analisar o conjunto prtico para a sua aplicabilidade, contribuir para uma teoria utpica, que se volta para um ideal longe do real.

    Neste contexto, a discusso aqui apresentada sobre os direitos fundamentais no mbito da populao infanto-juvenil centra-se em avaliar o direito visita ntima nos parmetros da essencialidade, necessariedade e indispensabilidade vida e dignidade dos adolescentes internos. A questo entender a aplicabilidade desse direito frente ao paradigma da punio versus privilgios, como mtodo socioeducativo que auxilie na reconstruo de sua identidade, bem como favorea o seu crescimento pessoal e a sua futura convivncia em sociedade. O impacto que tal medida pode trazer para o adolescente, alm do modo de garantir esse direito, so aspectos importantes a serem investigados.

    Embora no existam dvidas quanto importncia da manuteno destes vnculos, o direito ao exerccio da sexualidade no deveria estar atrelado necessariamente ao vnculo constitutivo familiar. A sexualidade deve ser exercitada porque um direito humano como qualquer outro. Assim, embora privado de seu direito de ir e vir, o jovem deve continuar a gozar plenamente todos os outros direitos humanos, inclusive o do exerccio da sexualidade. Resta saber como esses direitos sexuais devem ser exercitados dentro do ambiente de privao de liberdade e sob quais condies7.

    Diante destas questes, o presente artigo visa analisar o exerccio do direito de visita ntima de adolescentes internos tutelados pelo Estado, no cumprimento da medida socioeducativa privativa de liberdade. Para tanto, utiliza-se um delineamento metodolgico de cunho bibliogrfico, com anlise qualitativa, mtodo hipottico-dedutivo e natureza explicativa, a fim de confrontar o sistema normativo brasileiro com as doutrinas e os dados que a literatura dispe sobre a realidade de aplicabilidade das medidas

    7 MATTAR, Laura Davis. Exerccio da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes de Privao de Liberdade. Maranho: Cadernos de Pesquisa, v. 38, n 133, jan./abr. 2008.

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    socioeducativas de internao. Aborda-se, tambm, a responsabilidade do Estado sobre a questo, analisando-se o carter de sua atuao sob a tica do princpio da dignidade humana. Dessa maneira, pretende-se contribuir para as reflexes j existentes sobre a possibilidade da visita ntima no contexto da internao de adolescentes em conflito com a Lei, enfocando os fenmenos axiolgicos que envolvem o tema.

    I. REFLEXES SOBRE ADOLESCNCIA E SEXUALIDADE Do ponto de vista da cincia do desenvolvimento, a adolescncia um

    perodo psicossociolgico no universal, que se prolonga por vrios anos, compreendendo uma transio entre a infncia e a adultez. O seu significado incorpora padres e caractersticas representados culturalmente e com importantes variaes histricas. A juventude abrange um processo mais amplo, ligado maturao social e aos diferentes papis da vida adulta8.

    A Constituio Federal da Repblica de 1988, no seu Artigo 228, considera inimputveis os menores de 18 anos. O Cdigo Civil Brasileiro, no seu Artigo 5, pontua que a menoridade cessa aos dezoito anos, quando o indivduo fica habilitado para a prtica de todos os atos da vida civil, salvo as excees do Pargrafo nico. Portanto, o critrio adotado para definir objetivo e de ordem cronolgica.

    No presente estudo, o termo adolescente definido, do ponto de vista cronolgico, como aquele que se encontra na faixa etria dos 12 aos 21 anos de idade. A adoo deste critrio visa facilitar o entendimento e a abrangncia dos direitos do ECA, no que tange s medidas socioeducativas (MSE). Alm disso, foi institudo um olhar genrico palavra, incorporando-se os demais termos como caractersticos de sua nomenclatura.

    No se pode negar que a fase da adolescncia marcada por intensas mudanas. Alguns autores tentam simplificar as transformaes do desenvolvimento, distribuindo-o em trs grupos, o desenvolvimento fsico, o cognitivo e o psicossocial, que ocorrem em perodos de vida diferentes, mas entrelaados. Dessa forma, todas as mudanas do desenvolvimento esto interligadas, influenciando-se mutuamente, inclusive na sexualidade9.

    No campo do desenvolvimento sexual, no se pode abordar a questo sem fazer referncia aos aspectos cognitivos e psicossociais. Apesar de fundamentada na dimenso biolgica da espcie, a sexualidade humana no est vinculada apenas ao aspecto corporal. A sua formao compreende uma construo simblica, individual e coletiva, formada pela relao interna que a pessoa tem com o seu prprio corpo e da relao externa do seu corpo com o do outro, alm das questes culturais.

    8 COLL, Csar; PLACIOS, Jsus; MARCHESI, Alvaro. Desenvolvimento Psicolgico e Educao: psicologia evolutiva. vol. 1, Porto Alegre: Artmed, 2004. 9 PAPALIA, Diane; OLDS, Wendkos. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Ed. Armed, 2009.

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    A sexualidade uma dimenso fundamental de todas as etapas da vida de homens e mulheres, envolvendo prticas e desejos relacionados satisfao, afetividade, ao prazer, aos sentimentos, ao exerccio da liberdade e sade. A sexualidade humana uma construo histrica, cultural e social, e se transforma conforme mudam as relaes sociais. No entanto, na sociedade brasileira, a sexualidade foi histrica e culturalmente limitada em suas possibilidades de vivncia, devido a tabus, mitos, preconceitos, interdies e relaes de poder10.

    A sexualidade uma das dimenses do ser humano que envolve gnero, identidade e orientao sexual, erotismo, envolvimento emocional, amor e reproduo. De modo geral, existe uma clara tendncia, nas abordagens tericas, de que a sexualidade se refere no somente s capacidades reprodutivas do ser humano, como tambm ao prazer, envolvendo, alm do corpo, a histria, os costumes, as relaes afetivas e a cultura11.

    O processo maturacional da sexualidade pode ocorrer um pouco mais cedo ou mais tarde, pois existe uma heterogeneidade interindividual quanto s mudanas. A cultura cria expectativas para que o jovem seja capaz de realizar-se sexualmente, mas ao mesmo tempo estabelece exigncias e proibies contrrias; portanto, o confronto entre valores inevitvel. Na sociedade contempornea, as necessidades sexuais so estimuladas, mas os jovens nem sempre encontram condies favorveis para satisfaz-las12.

    No que se refere adolescncia e sexualidade, autores alertam que, nas ltimas duas dcadas, a adolescncia vem ocupando um lugar de significativa relevncia no contexto das grandes inquietaes que assolam a comunidade mundial. Essas inquietaes acontecem tanto no campo da educao quanto no da sade, destacando-se, em especial, a preocupao com os problemas que vm atingindo os jovens de todo o planeta, como a sade sexual e reprodutiva, a gravidez precoce, o aborto inseguro, as DST e a Aids13.

    Em funo destas questes e no contexto da construo de novos saberes que singularizam o sculo XXI, assiste-se ao surgimento de teorias referentes ao campo da sexualidade e a ao de movimentos sociais por direitos humanos, destacando-se, entre tais direitos, os direitos reprodutivos e os sexuais. Contudo, os adolescentes e os jovens no so reconhecidos socialmente como pessoas sexuadas, livres e autnomas, o que acaba submetendo-os a situaes de vulnerabilidade, no plano pessoal, social e

    10 BRASIL. Marco Terico e Referencial: sade sexual e sade reprodutiva de adolescentes e jovens/Ministrio da Sade, Secretria de Ateno Sade, Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia: Editora do Ministrio da Sade, 2007. 56p. 11 CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam; SILVA, Lorena Bernadete. Juventude e Sexualidade. Braslia: UNESCO Brasil, 2004. 426p. 12 DANDREA, Flvio Fortes. Desenvolvimento da Personalidade: enfoque psicodinmico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. 13 CASTRO, Mary Garcia; ABRAMOVAY, Miriam; SILVA, Lorena Bernadete. Juventude e Sexualidade. Braslia: UNESCO Brasil, 2004. 426p.

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    institucional, e a diversas interdies pessoais. Nas ltimas dcadas, as transformaes da vida sociocultural tm acarretado, como uma de suas consequncias, o incio da vida sexual de adolescentes cada vez mais cedo, caracterizando uma mudana no padro de comportamento social e sexual14.

    Com base nestas consideraes, o presente artigo visa analisar o direito de visita ntima, no contexto da adolescncia, entendendo sua dimenso social e tomando como base os direitos fundamentais da pessoa humana. A pretenso fomentar uma reflexo sobre at que ponto essa medida pode contribuir para o desenvolvimento pessoal do adolescente, sem recair num tratamento desigual que supervalorize uma categorizao judicial para os afetos e para as relaes de intimidade.

    II. DIREITO DE VISITA NTIMA DE ADOLESCENTES EM PRIVAO DE LIBERDADE: UMA ANLISE BASEADA NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

    Diante das premissas da Declarao Universal dos Direitos da Criana, de 1959, a Conveno sobre Direitos da Criana, tambm das Naes Unidas, de 20.11.1989, foi ratificada no Brasil pelo Decreto n 99.710, de 21.11.1990. Essa Conveno acolheu a concepo do desenvolvimento integral da criana, reconhecendo-a como verdadeiro sujeito de direito, a exigir proteo especial e absoluta prioridade.

    No Brasil, a positivao dos direitos humanos em relao criana trouxe o seu reconhecimento como sujeito de direito15. Constitucionalmente, o Artigo 227 embasou o Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei n 8.069 (1990), modificado pela Lei n 12.594 de 2012, atualmente considerado como o smbolo do avano normativo para as polticas sociais e econmicas do pas no que se refere garantia de direitos da infncia e da adolescncia16. Sendo assim, tanto a Constituio Federal de 1988 como o Estatuto da Criana e do Adolescente (Lei 8.069/90) encamparam, por completo, as doutrinas que constituem as pilastras da Conveno sobre os Direitos da Criana17.

    A doutrina da proteo integral, incorporada na legislao brasileira, fornece um olhar de relevncia para os direitos fundamentais infanto-juvenis, com obrigao concorrente para o Estado, para a sociedade e para a famlia. O seu significado enfoca a dignidade da criana e do adolescente, enquanto pessoas portadoras de direitos e sua condio especial de ser

    14 BRASIL. Marco Terico e Referencial: sade sexual e sade reprodutiva de adolescentes e jovens/Ministrio da Sade, Secretria de Ateno Sade, Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia: Editora do Ministrio da Sade, 2007. 56p. 15 CUCCI, Gisele Paschoal. A Proteo Integral da Criana e do Adolescente com o meio adequado de Incluso Social. In: SIQUEIRA, D. P.; PICCIRILLO, M. B. (Coord.). Incluso Social e Direitos Fundamentais. So Paulo: Boreal Editora, 2009. p. 324-355. 16 DI LORENZO LIMA, Wnia C. Gomes; CARVALHO, Cynthia; LIMA, Cludio Baslio. Crianas e Adolescentes em Situao de Rua: desenvolvimento econmico, estratgias compulsrias e direitos fundamentais. Fortaleza: Revista Pensar, vol. 17, n 2, p. 646-671, jul./dez. 2012. 17 PIOVESAN, Flvia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 9. ed., So Paulo: Saraiva, 2008.

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    em desenvolvimento, vendo a dignidade da pessoa humana como requisito essencial e inafastvel da ordem jurdico-constitucional do Estado Democrtico de Direito. Portanto, a criana e o adolescente so detentores de todos os direitos que tm os adultos e mais direitos especiais, que decorrem do seu estado de desenvolvimento.

    Pode-se afirmar que a legislao brasileira reconhece a necessidade de desenvolvimento pleno de crianas e adolescentes, com base no trip fsico, cognitivo e psicossocial, e a sexualidade pode ser entendida pela interface desses trs escores. Portanto, o ponto a ser discutido origina-se pela anlise dogmtica-jurdica da normativa de visita ntima para adolescentes, acolhida pela Lei n 12.594/12, que, alm de instituir o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, ainda assegura no Art. 68 o direito de visita ntima ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em unio estvel. Tal dispositivo parte do olhar de garantia de sexualidade plena na perspectiva dos direitos fundamentais. Ingo Sarlet compreende que os direitos fundamentais constituem um conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, aqui tratado no texto geral da Constituio Federal18.

    Para o autor supracitado, os direitos fundamentais, em um autntico Estado Democrtico e Social de Direito, regem-se pelo aspecto de concretizao do princpio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e respeito. Pelo princpio da igualdade, questiona-se aqui se tal dispositivo no leva em considerao a necessidade de desenvolvimento no aspecto universal da fase da adolescncia, restringindo apenas para aqueles que se enquadram no Artigo 68, cujo Pargrafo nico ainda limita a interpretao do estado e o reconhecimento da unio estvel atravs da formalizao dos afetos. Isto significa que a instituio de internao ter que registrar e emitir um documento de identificao especfico (pessoal e intransfervel) para quem, admitido nesta categoria, est apto para a realizao da visita ntima. Maria Helena Diniz aduz que os requisitos para o reconhecimento de uma unio estvel esto na: a) durabilidade, entendida como a continuidade das relaes sexuais, desde que presente, entre outros aspectos, a estabilidade, ligao permanente para fins essenciais vida social; b) ausncia de matrimnio civil vlido entre os parceiros; c) publicidade e notoriedade das afeies recprocas, afirmando no haver concubinato se os encontros forem furtivos ou secretos, embora haja prtica reiterada de relaes sexuais; d) fidelidade, que revela a inteno de vida em comum; e) coabitao, uma vez que o concubinato deve ter sempre a aparncia de casamento19. 18 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficcia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 31. 19 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Famlia. Vol. 5, So Paulo: Editora Saraiva, 2011.

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    Ressalte-se, ainda, que a Smula 382/STF reconhece a unio estvel em tetos diferentes20. O fato que os critrios para estabelecer a durabilidade, a publicidade e o desejo de casamento levam a uma ampla margem de categorizao, o que significa que os requisitos para interpretao so recheados de valores, que dependero de quem vai julgar. Na prtica, pode-se correr o risco de que adolescentes que mantm uma relao afetivo-emocional slida com parceiros sejam excludos dessas listas, enquanto outros, que no tenham tamanho compromisso afetivo, adquiriram o direito. A questo saber se existe espao para a anlise discricionria da instituio de internao, numa interpretao mais extensiva do artigo Artigo 68.

    No que tange liberdade, deve-se reforar a necessidade de discuti-la dentro de uma perspectiva de plenitude sexual. A capacidade de expresso neste sentido restringe-se pelos valores sociais, tabus e capacidade de cognio do indivduo frente s suas escolhas. Portanto, deve ser vista de forma relativa, quando se pensa numa condio peculiar de desenvolvimento, como o caso dos adolescentes. Por isso, o enfoque da questo da liberdade sexual desses sujeitos deve ser pautado na condio de uma participao progressiva frente ao seu desenvolvimento. Ser livre para a prtica sexual requer mudanas de valores, que sejam norteadas por um modelo socioeducativo presente na vivncia dos adolescentes. No resta dvida de que o sexo importante na constituio do sujeito, mas ele deve ser praticado com responsabilidade, conscincia e cumplicidade. Entender a possibilidade de visita ntima de adolescentes internos indagar sobre a sua essencialidade, benefcios e malefcios que pode acarretar.

    Quanto ao respeito, previsto no Art. 17 do ECA, consiste na inviolabilidade da integridade fsica, psquica e moral da criana e do adolescente, abrangendo a preservao da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenas, dos espaos e objetos pessoais. Pondera-se que o respeito vela pela integridade fsica e psquica da pessoa, abrangendo a sua vida privada e a sua intimidade. O Artigo ressalta ainda que o respeito ntimo traduzido pela manuteno, por parte de quem quer que seja, dos objetos pessoais, ideias, pensamentos e espaos privados, com o objetivo de permitir que a pessoa cresa e se desenvolva normalmente, resguardando a psique infanto-juvenil21. A questo que merece ser destacada que a Lei n 12.594/12 reza sobre a visita ntima, mas no se refere s condies ambientais para a preservao da intimidade. Portanto, pode-se indagar sobre o comprometimento, na estrutura psquica do indivduo, de uma experincia sexual traumtica acarretada pelo espao pblico inadequado para tal fim.

    Assim sendo, os direitos fundamentais s podem ser analisados nas condies de essencialidade, necessariedade e indispensabilidade vida e

    20 Ibidem 21 LAMENZA, Francismar. Os Direitos Fundamentais da Criana e do Adolescente e a Discricionariedade do Estado. Barueri: Minha Editora, 2011.

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    dignidade humana. Dentro desta perspectiva, apesar de se configurar na essencialidade de um completo desenvolvimento, a visita ntima pode ser questionada quanto ao seu carter de necessariedade vida, visto que a prpria psicanlise levanta a possibilidade de deslocamento da energia libidinal para outras fontes prazerosas.

    As necessidades que fundamentam a dignidade das pessoas e seus direitos correspondentes no se reduzem s condies para buscar sua prpria satisfao. Mas constituem os pressupostos a partir dos quais elas podem desenvolver as suas potencialidades como seres humanos. No caso especfico de adolescentes, essas necessidades esto relacionadas ao direito de construir a sua identidade sociocultural, como condio para o desenvolvimento pleno de sua personalidade22.

    Deve ser levado em conta, ainda, que a dignidade compartilha valores como solidariedade, justia social, honestidade, paz, responsabilidade e respeito diversidade cultural, religiosa, tnico-racial, de gnero e de orientao sexual, entre outros. O conceito de dignidade tambm est relacionado ao de respeito23, logo, as pessoas so convocadas para evitar que adolescentes sejam vtimas de tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatrio e constrangedor. Por conseguinte, quando se fala em visita ntima sem um procedimento mais bem elaborado para a preservao do desenvolvimento, no se est confrontando valores e desmerecendo o olhar de dignidade? No seria constrangedora uma exposio sexual?

    III. O DIREITO DE VISITA NTIMA DE ADOLESCENTES: INCONGRUNCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    O ordenamento jurdico brasileiro estabelece o tratamento estatal para adolescentes em conflito com a Lei atravs das medidas socioeducativas (MSE), que vo desde a advertncia at a internao. Aqui o interesse discutir o cumprimento especfico da execuo da medida de privao de liberdade, considerada como a mais grave dessas medidas. A gravidade dessa medida advm do fato de que, para a sua execuo, so necessrios cuidados especiais, tendo em vista as condies peculiares de desenvolvimento dos adolescentes, com destaque especial para o direito de visita ntima.

    Quanto ao direito de visita ntima, garantida aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internao, o SINASE expressa taxativamente, no Art. 68, que assegurado ao adolescente casado ou que viva, comprovadamente, em unio estvel, o direito visita ntima. Uma questo a ser levantada quanto interpretao do termo comprovadamente, ou seja, sobre o que o legislador considera que comprova uma unio estvel, para ser aceito nas instituies de internao. 22 COSTA, Ana Paula Motta. Os Adolescentes e seus Direitos Fundamentais: da indivisibilidade a indiferena. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 109-111. 23 ELISAS, Roberto Joo. Direitos Fundamentais da Criana e do Adolescente. So Paulo: Saraiva, 2005, p. 19.

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    Quando se trata do casamento, a capacidade estipulada pelo Cdigo Civil (Art. 1517) de 16 anos de idade, com autorizao de ambos os pais, ou de seus representantes legais. Aos que ainda no atingiram esta idade, o Art. 1520 estende a possibilidade de casamento para situaes excepcionais, como no caso de gravidez. Portanto, em relao ao casamento no h que obstar, pois a certido comprovaria este ato de unio responsvel entre duas pessoas socialmente e psicologicamente formadas.

    Contudo, a nova Lei no definiu a idade mnima para o direito visita ntima, referindo-se apenas aos adolescentes casados ou comprovadamente em unio estvel. A lacuna est no fato de que podem receber medidas socioeducativas de internao os maiores de 12 anos e, excepcionalmente, at os 21 anos de idade. Na prtica, observa-se que as trs leis juntas (o SINASE, o Cdigo Civil e o Cdigo Penal), interpretadas conjuntamente, deixam uma lacuna com relao aos adolescentes maiores de doze anos e menores de dezesseis anos com o direito visita ntima. Se for levada em conta uma interpretao que seja extensiva ao Artigo 68 do SINASE, pode-se concluir que, em regra, s tero direito visita ntima pessoas casadas ou que comprovem unio estvel, e esses casos s se aplicam aos adolescentes com dezesseis anos completos.

    Mrio Luiz Ramidoff defende que o cnjuge, companheiro, convivente do adolescente, deva possuir idade de maioridade civil e penal, isto , ser maior de 18 (dezoito) anos, independentemente de possuir filho comum ou no24. Tal dispositivo restringiria o objetivo do direito de visita ntima, que consiste na manuteno do vnculo afetivo do casal e, por consequncia, da famlia. Se o parceiro j tem filho com o adolescente interno, possuindo uma relao estvel com ele, o cumprimento desse dispositivo constituiria uma punio por idade. Ademais, em sua grande maioria, os meninos adolescentes tm parceiras com idades iguais ou inferiores s suas, ou seja, elas so tambm menores de idade.

    Pode-se entender que a idade mnima para o reconhecimento da unio estvel seja de 14 anos, visto que no poder ser admitida idade inferior em confronto com os dispositivos penais. O Art. 217-A do Cdigo Penal (CP), inserido pela Lei n 12.015/09, trouxe a figura do estupro de vulnervel, configurada pela conjuno carnal ou ato libidinoso praticado contra menor de 14 anos. Tal lei mantm a condio de vulnerabilidade para aqueles que no podem exercer a sua vontade, por no entenderem ou por no terem meios para resistir, referindo-se capacidade de discernimento para atos sexuais, com interferncia direta na liberdade e moralidade sexual.

    O dispositivo trata da proteo objetiva, no podendo afastar a presuno de violncia aos menores de 14 anos, mesmo que tenham vida sexual ativa.

    24 RAMIDOFF, Mrio Luiz. SINASE. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Comentrios Lei n 12.594. So Paulo: Saraiva, 2012, p. 136.

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    O crime de ao pblica incondicionada se configura pela simples prtica da conjuno carnal ou ato libidinoso, independentemente de violncia ou grave ameaa pessoa. Considera-se que h uma presuno de violncia, no havendo assim, margem para discricionariedade do adolescente em aceitar ou no manter um relacionamento sexual com o parceiro maior de idade. Destaque-se que, no ordenamento jurdico brasileiro, o crime de estupro de vulnervel tipifica-se por conjuno carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos, independentemente de consentimento, como exposto pelo Cdigo Penal Brasileiro.

    Quando se trata de uma poltica pblica de visita ntima para adolescentes sob a tutela do Estado, o respeito autonomia da pessoa um dos pontos mais controversos. Isto porque implica decidir qual a idade em que os jovens passam a ter discernimento suficiente para optar por manter relaes sexuais de forma saudvel. Ou seja, quando eles passam a compreender a importncia, por um lado, do planejamento familiar e da preveno contra doenas sexualmente transmissveis e, por outro lado, de vivenciar com as parceiras (ou parceiros) uma sexualidade que atenda ao princpio da dignidade da pessoa humana e que respeite a integridade e a liberdade do outro25.

    Laura Mattar26 salienta que, no que diz respeito poltica pblica de visita ntima para adolescentes privados de liberdade, o direito integridade corporal e o direito sade devem ser analisados sob o ponto de vista da educao sexual. Por essa perspectiva, deve haver um processo de interveno que favorea a reflexo sobre a sexualidade e a sade reprodutiva, contemplando no s a informao, mas tambm a considerao de sentimentos, valores, crenas e preconceitos. Quando os Estados no oferecem educao sexual aos jovens, que constituem o pblico-alvo da poltica pblica de visita ntima, deixam-nos vulnerveis s doenas sexualmente transmissveis, como HIV/ Aids e outras, e gravidez indesejada. Alm disso, perdem a oportunidade de discutir com eles sobre os significados do exerccio da sexualidade, que certamente envolvem outras questes, relativas ao exerccio da cidadania e ao respeito aos direitos humanos.

    No Brasil, a realidade das Casas de Internao, no que se refere ao cumprimento das medidas socioeducativas, de vulnerabilidade, tendo em vista a precariedade das instituies para poder por em prtica a efetivao da Lei. Em 2012, o Conselho Nacional de Justia (CNJ) realizou uma visita a 59 entidades de internao de adolescentes em conflito com a Lei, em 15 Unidades da Federao. A equipe encontrou um quadro de precariedade de instalaes nas edificaes onde funcionam as unidades. As estruturas arquitetnicas so obsoletas, muitos prdios so antigos presdios ou cadeias pblicas, com estruturas inadequadas para a proposta socioeducativa.

    25 MATTAR, Laura Davis. Exerccio da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes de Privao de Liberdade. Maranho: Cadernos de Pesquisa, v. 38, n 133, jan./abr. 2008. 26 Ibidem.

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    Ocorre a falta de atividades, encontrando-se um quadro de ociosidade dos adolescentes, privados do direito educao e assistncia jurdica. O CNJ observou tambm que raramente as entidades de internao possuem equipes tcnicas capacitadas para atuar no sistema socioeducativo27. Nesta mesma linha, uma pesquisa realizada com adolescentes em medidas de privao de liberdade e com direito visita ntima relatou a precariedade das instituies e as dificuldades de privacidade nas visitas ntimas28.

    No se pode negar que, no Brasil, a realidade das instituies de internao revela um perfil degradante e incoerente com a legislao vigente. A superlotao dos quartos, o espao fsico inapropriado e a precariedade de respeito s individualidades favorecem um ambiente insalubre e, muitas vezes, sem condies de pr em prtica a visita ntima de adolescentes internos. Essa falta de condies resulta do fato dessas instituies no possurem uma poltica satisfatria de educao sexual, com nfase na preveno de DST\Aids e gravidez precoce. Tal situao acontece a despeito da Constituio Federal (CF), em seu Artigo 196, prescrever que a sade direito de todos e dever do Estado, com o fim de promover maior qualidade de vida a toda populao brasileira. Da mesma forma, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) garantiu este direito para o adolescente autor de ato infracional (Art. 94, IX). No mesmo ano em que foi publicado o Estatuto, tambm foi promulgada a Lei n 8.080/90, que dispe sobre a promoo, proteo e recuperao da sade (Regulamenta o SUS), estendendo o direito fundamental sade, de forma genrica, para todo ser humano. No entanto, a referida Lei se mostrou omissa na especificao da sade para os indivduos privados de liberdade.

    Em 2003, foi publicada a Portaria Interministerial n 1.777, que instituiu o Plano Nacional de Sade no Sistema Penitencirio, com aes e servios de sade consoantes com os princpios e diretrizes do SUS. Este Plano tratou especificamente da sade para as pessoas privadas de liberdade, contudo muitas dificuldades na execuo da Lei so ainda observadas. A esse respeito, Papalia afirma que quanto mais jovem o adolescente, maior o risco de infeco (por DSTs) e que as maiores causas da disseminao so a atividade sexual precoce, que aumenta a probabilidade de ter mltiplos parceiros de alto risco, e a no utilizao de preservativos ou uso incorreto29.

    O grande desafio para uma poltica nacional de ateno integral sade de adolescentes e jovens justamente o de implementar aes de sade que atendam s especificidades desta populao, de modo integral, e respondendo

    27 MONTEIRO, Manuel Carlos. CNJ fiscalizou 59 unidades de internao de jovens em 2012. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/22985-cnj-percorreu-59-unidades-de-internacao-de-jovens-em-2012. Acesso em jan. 2013. 28 MATTAR, Laura Davis. Exerccio da Sexualidade por Adolescentes em Ambientes de Privao de Liberdade. Maranho: Cadernos de Pesquisa, v. 38, n 133, jan./abr. 2008. 29 PAPALIA, Diane; OLDS, Wendkos. Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Ed. Armed, 2009, p. 323.

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    s demandas colocadas pelas condies decorrentes das distintas situaes de vida dos adolescentes e jovens do Pas30. Acerca desta questo, autores afirmam que a despeito da Constituio Brasileira priorizar o atendimento s necessidades da criana e do adolescente, o Estado ainda no consegue estabelecer polticas pblicas com a finalidade de garantir a proteo integral prevista no ECA. A fim de efetivar o sistema socioeducativo estipulado pela legislao, o Estado deve articular aes governamentais e no governamentais, de modo a realizar polticas pblicas integradas para o atendimento das demandas dos adolescentes31. Com base nestas consideraes, resta claro que a poltica pblica de visita ntima, apesar de necessria, se no for pensada com cuidado, enquanto um programa de ao que visa implementar e garantir direitos, no alcanar os objetivos a que se prope.

    CONSIDERAES FINAIS A visita ntima o ato de visitar uma pessoa com quem se est

    estreitamente ligado por sentimentos sexuais e de afeto. Justifica-se para os adolescentes em medida socioeducativa de internao como garantia de seus direitos, uma vez que, via de regra, eles so indivduos sexualmente ativos e tambm para no perderem o vnculo familiar durante o perodo de institucionalizao.

    No se questiona o valor do Art. 68 do SINASE, referente ao novo direito de visita ntima a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internao, mas a condio de sua aplicabilidade frente aos contrastes sociais existentes no Brasil. A distncia geralmente existente entre a teoria e a prtica e a ineficcia das normas diante das desigualdades de acesso aos direitos fundamentais, fazem com que diversas leis publicadas na legislao ptria representem uma mera expectativa de direitos, ou mesmo no alcancem os fins desejados. O que se deve indagar, em especial, sobre as condies vividas atualmente nas instituies de internao de adolescentes em conflito com a Lei no pas, bem como a possibilidade de institucionalizar os afetos, possibilitando prticas sexuais pblicas e precoces em locais inadequados. Na medida em que propiciam a exposio da intimidade, tais espaos inadequados favorecem a vulgarizao dos sentimentos, que previsivelmente tendem a aflorar em virtude da carncia e da fragilidade em que vivem os privados de liberdade.

    Ao instituir o Art. 68 do SINASE, o legislador pode ter tido as melhores intenes, reconhecendo os adolescentes como sujeitos de direito, fato este

    30 BRASIL. Marco Terico e Referencial: sade sexual e sade reprodutiva de adolescentes e jovens/Ministrio da Sade, Secretria de Ateno Sade, Departamento de Aes Programticas Estratgicas. Braslia: Editora do Ministrio da Sade, 2007. 56p. 31 CAMPOS, Giseli; FERREIRA, Maria; LINS, Theresa. A Fiscalizao das Medidas Socioeducativas na Viso Psicossocial. In: GALVO, I.; ROQUE, E. (Orgs). Aplicao da Lei em uma Perspectiva Interprofissional: direito, psicologia, psiquiatria, servio social e cincias sociais na prtica jurisdicional. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. p. 157-162.

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    preconizado pelo Estatuto da Criana e do Adolescente. Mas o texto em si deixa diversas lacunas, que vo desde a falta de condies mnimas para a execuo de um espao de intimidade para adolescentes, at as consequncias geradas pelas prticas sexuais precoces. Alm disso, tende a provocar uma enorme confuso normativa, com incongruncias entre o Cdigo Civil e o Cdigo Penal, no que se refere tanto capacidade para instituir famlia, quanto ao discernimento e liberdade de escolha da prtica sexual de pessoas muito jovens.

    Outro ponto que acarreta preocupao diz respeito dimenso que trar o dispositivo de garantia de visita ntima aos adolescentes internos que comprovem a unio estvel. Neste caso, o reconhecimento por via administrativa seria tambm um erro na interpretao sistmica de proteo jurdica criana e ao adolescente no Brasil. Portanto, defende-se que tal comprovao s seria possvel por deciso judicial, o que obrigaria, de certa forma, os casais a formalizar suas relaes, ou pelo casamento ou por ao judicial de reconhecimento da unio estvel, para poder garantir um direito preexistente. O dispositivo conduz indiretamente obrigatoriedade de oficializar as relaes, levando assim judicializao dos afetos. Ademais, sublinham-se, ainda, os diversos fatores que se interligam no cenrio de vulnerabilidade social em que vivem as instituies de internao de adolescentes no pas, sendo entraves para a aquisio do novo direito.

    Entende-se que a sexualidade do adolescente deve ser compreendida como um complexo processo maturacional biopsicossocial, porque interliga as dimenses biolgica, cognitiva e psicossocial do desenvolvimento humano. Alm de ser fundamental na construo da prpria identidade, atravs dela que se estabelecem as relaes com os outros. Um desenvolvimento malsucedido, com agresso emocional e em condies inadequadas para as prticas sexuais, alm de poder desencadear perturbaes psquicas na vida adulta, tambm pode comprometer o senso de responsabilidade gerado pelos prprios atos. Portanto, no se desmerece a necessidade sexual do adolescente interno, mas defende-se a garantia de condies adequadas para uma prtica sexual saudvel, com responsabilidade, que de fato favorea o desenvolvimento pessoal do adolescente.

    Sabe-se que a cobrana social frente ao estigma da criminalidade juvenil confronta representaes de impunidade, privilgios e punio com o novo direito de relaes sexuais aos adolescentes internos. No se sustenta aqui a abstinncia sexual como mtodo de punio, mas a observncia do direito diante da natureza pedaggica da medida socioeducativa, que vise incentivar o adolescente infrator a no voltar a reincidir na infrao. Por fim, espera-se que a poltica de visita ntima possa ser mais adequadamente implementada, respeitando os direitos sexuais dos jovens internados, contribuindo para a construo de uma noo de cidadania certamente necessria para uma vida adulta no convvio social.

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