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E/2008/50/Rev. 1 ST/ESA/317 Department of Economic and Social Affairs World Economic and Social Survey 2008 Vencer a Insegurança Económica Versão portuguesa United Nations Nova Iorque, 2008

World Economic and Social Survey 2008 - unric.org fileEditor: IED – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Execução Gráfica: Editorial do Ministério da Educação Estrada

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E/2008/50/Rev. 1ST/ESA/317

Department of Economic and Social Affairs

World Economic andSocial Survey 2008Vencer a InsegurançaEconómicaVersão portuguesa

United NationsNova Iorque, 2008

DESA

O Departamento de Assuntos Económicos e Sociais do Secretariado das NaçõesUnidas é um interface vital entre as políticas globais nas esferas económicas,sociais e ambientais e a acção nacional. O Departamento funciona com baseem três áreas principais que estão interligadas: (i) recolhe, cria e analisa umasérie de dados e informação de cariz económico, ambiental e social em que osEstados Membros das Nações Unidas se apoiam para tratar e discutir proble-mas comuns e fazer opções ao nível das várias políticas; (ii) facilita as nego-ciações dos Estados Membros com muitos corpos intergovernamentais a fim de delimitar linhas de acção para implementar desafios globais que se estão a desenvolver ou a emergir; (iii) aconselha os Governos interessados sobre oscaminhos a seguir para converter as políticas estratégicas desenvolvidas nas conferências das Nações Unidas em programas ao nível de cada país, através da assistência técnica, ajudando assim a construir capacidades nacionais.

Ficha Técnica

Título: World Economic and Social Survey 2008

Editor: IED – Instituto de Estudos para o Desenvolvimento

Execução Gráfica:

Editorial do Ministério da EducaçãoEstrada de Mem Martins, 4Apartado 1132726-901 Mem Martins

1.a Edição: Outubro 2008

Tiragem: 200 exemplares

Depósito Legal n.o 284 110/08

ISBN: 978-972-9219-75-7

Copyright @ United Nations, 2008Todos os direitos reservados

Prefácio

A segurança está sob ameaça, tanto nos países ricos como nos países pobres. Há sessenta anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirmou que todas as pessoas devem ter acesso a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde e bem-estar, “… principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e têm direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutroscasos de perda de meios de vida por circunstâncias independentes da sua vontade”(artigo 25.º). Contudo, apesar dos progressos consideráveis registados desde então, a quase todos os níveis, riscos exacerbados e novas ameaças estão a pôr em perigo umfuturo mais seguro e o objectivo de alcançar o desenvolvimento para todas as pessoas.

As alterações climáticas e os danos causados aos meios de vida pelas catástrofesnaturais, sejam secas na Austrália ou cheias no Bangladeche, são avisos inequívocos dasconsequências da complacência. No domínio da saúde, pandemias como a doVIH/SIDA estão a suscitar preocupações semelhantes. Além disso, são as comunidadesmais pobres e mais vulneráveis do mundo que estão na linha da frente da exposição aestas ameaças verdadeiramente globais. Em 2008, a subida dos preços dos alimentosdesencadeou graves tumultos políticos, numa série de países, e gerou um apoiorenovado à inclusão da segurança alimentar entre as grandes prioridades internacionais.A recente turbulência financeira na economia mundial continua a envolver o risco deum abrandamento acentuado do crescimento, que porá em perigo os meios de vida,tanto nos países ricos como nos países pobres.

O relatório World Economic and Social Survey 2008 sustenta que a desregula-mentação dos mercados contribuiu para uma maior insegurança económica, semproporcionar uma protecção social adequada. O relatório preconiza uma abordagemdiferente – uma abordagem assente em soluções políticas mais coerentes, destinadas a promover mudanças, tanto ao nível nacional como internacional, a fim de ajudar as comunidades a gerirem melhor os riscos, enfrentarem a insegurança económica e protegerem os seus meios de vida. O texto promete ser uma leitura estimulante paraos decisores políticos, os técnicos e os cidadãos interessados.

Ban-Ki-moonSecretário-Geral das Nações Unidas

iiiPrefácio

Síntese

A insegurança alastra

Quando o Muro de Berlim ruiu em 1989, falou-se de uma nova era – uma era de paz,prosperidade e estabilidade gerais que iria surgir graças à difusão dos valoresdemocráticos e das forças de mercado. As corridas aos bancos, a quebra acentuada dospreços da habitação, as oscilações constantes das moedas, os tumultos causados pelafalta de alimentos, a violência nos processos eleitorais, as limpezas étnicas – não faziamde modo algum parte do futuro.

Uma sondagem realizada para o World Service da BBC, no princípio deste ano,em 34 países, revelou que o ritmo descontrolado da globalização e a distribuição injustados seus benefícios e danos são preocupações bastante gerais. A Pew Foundation e o Fundo Marshall alemão, entre outros organismos, confirmam estes resultados. Os dados recolhidos através de inquéritos não substituem uma análise cuidadosa. No entanto, evidenciam uma sensação crescente de inquietação em relação ao rumo da economia mundial nos últimos anos.

Esta inquietação tem-se revelado mais claramente nos países avançados, onde a maior insegurança económica está associada a uma desigualdade crescente e a umacompressão das prestações sociais. Nos países de rendimento médio, os choqueseconómicos, a liberalização acelerada do comércio e a desindustrialização prematuraestão a comprometer a diversificação económica e a criação de emprego. Noutros paísesainda, a pobreza persistente tem alimentado um círculo vicioso de insegu-rança económica e instabilidade política, e, por vezes, um clima de violência feroz a nível local.

Estas preocupações têm sido agravadas por novas ameaças mundiais. Para aactual geração, as alterações climáticas tornaram-se o principal problema dacomunidade internacional. A ocorrência de várias catástrofes naturais cada vez maisdestrutivas constitui uma prova da ameaça que as alterações climáticas representam parao meio de vida das pessoas, tanto nos países ricos como nos países pobres. A insta-bilidade dos mercados financeiros e a volatilidade dos fluxos de capitais representam,actualmente, uma ameaça para o meio de vida das pessoas em toda a economiamundial, devido ao seu efeito adverso no investimento produtivo, no crescimentoeconómico e na criação de emprego. Desde princípios de 2008, o desfasamentocrescente entre a oferta e a procura de produtos agrícolas desencadeou tumultospolíticos graves em vários países, colocando de novo a questão da segurança alimentarentre as grandes prioridades da comunidade internacional.

A atenção dedicada à existência destes riscos económicos acrescidos e a estasameaças mais graves tem suscitado uma reacção que consiste, frequentemente, em dizerque as forças que estão na sua origem são autónomas e irresistíveis e escapam ao nossocontrolo político colectivo. Preconiza-se invariavelmente que se ponham de lado asvelhas instituições e lealdades e se adira às novas práticas, mais eficazes, do mercado,

vSíntese

num mundo sem fronteiras. O relatório World Economic and Social Survey 2008sustenta que esta não é a resposta certa a níveis crescentes de insegurança económica.Preconiza, em vez disso, respostas políticas mais activas que ajudem as comunidades a gerir melhor os novos riscos, um maior investimento com vista a prevenir o aparecimento de eventos ameaçadores e uma maior concertação dos esforçosdestinados a reforçar o contrato social subjacente que constituem, afinal, a verdadeirabase de um futuro mais seguro, estável e justo.

O mito da auto-regulação do mercado

O mercado auto-regulado foi a ideia fixa do final do século XX. A liberalização dosmercados prometia desencadear as forças geradoras de riqueza da concorrência semrestrições e da assunção de riscos, bem como garantir uma prosperidade a que todas aspessoas teriam acesso e a estabilidade. Uma mão-de-obra mais flexível, uma maiordispersão da propriedade dos bens e um acesso mais fácil aos mercados financeirosajudariam os agregados familiares a responder melhor aos sinais dos mercados e contribuiriam para uma maior homogeneidade do rendimento, bem como doconsumo, com o decorrer do tempo. Daí adviria, naturalmente, uma maior segurança.

Defender esta concepção sempre foi uma jogada arriscada. Pelo menos desdeAdam Smith, os observadores atentos compreendem que os mercados não se auto--regulam, antes dependendo de toda uma série de instituições, regras, regulamentos e normas que ajudam a moderar os seus impulsos mais destrutivos, atenuar as tensões e conflitos que normalmente surgem e facilitar a negociação pacífica da forma comodevem ser distribuídos os ganhos e perdas das actividades resultantes da assunção de riscos.

Os pioneiros da economia mista que surgiu depois de 1945 haviam sido levadosa acreditar, devido à experiência do período entre as duas guerras, que os mercados nãoregulados tendiam mais a autodestruir-se do que a auto-regular-se. As ferramentasimprodutivas, a riqueza desperdiçada, o desespero e, por último, as lutas políticasprovaram ser um preço demasiado elevado a pagar pela estabilidade monetária e pelaflexibilidade dos mercados. O seu objectivo declarado era um “new deal” quesatisfizesse o “anseio de segurança” sem anular os impulsos criativos gerados pelaeconomia de mercado. O pleno emprego seria alcançado através da gestão activa dapolítica macroeconómica, os bens públicos seriam assegurados através de uma baseorçamental mais alargada e os mercados tornar-se-iam uma fonte mais fiável de criaçãode riqueza através de uma combinação apropriada de incentivos e regulamentos. Alémdisso, dados os estreitos laços económicos entre os países, o novo consenso teria umadimensão internacional, a fim de assegurar que as trocas comerciais e os fluxos decapitais complementassem aqueles objectivos.

O desmantelamento dos freios e contrapesos que surgiram com este consensotem avançado a um ritmo desigual entre os países avançados e, muitas vezes, tem sidoefectuado com mais entusiasmo no mundo em desenvolvimento e nas economias emtransição, onde as “terapias de choque” prometiam efeitos rápidos e positivos. Tem-se

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registado uma tendência mundial para muitas das tensões e encargos da desre-gulamentação dos mercados serem impostas aos indivíduos e aos agregados familiares,enquanto as medidas adoptadas pelos governos para compensar essa situação sãoreduzidas ou limitadas. Este fenómeno tem sido descrito, no que respeita aos EstadosUnidos, como o “grande deslocamento do risco”.

Assuntos de segurança

Não é fácil atribuir um significado preciso ao termo “insegurança económica”. Istodeve-se, em parte, ao facto de esse significado se basear em comparações com asexperiências e práticas do passado, que tendem a ser vistas através de lentes cor-de-rosa,e também porque a segurança tem uma grande componente subjectiva ou psicológicaque está associada a sentimentos de ansiedade e protecção, que depende muito dascircunstâncias pessoais. Mesmo assim, em termos gerais, a insegurança económicadecorre da exposição dos indivíduos, comunidades e países a acontecimentos adversos,da sua incapacidade de fazer face às consequências dispendiosas de tais acontecimentose de recuperar após os mesmos.

Há 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem1 afirmou o seguinte:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e àsua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, aovestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociaisnecessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez,na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência porcircunstâncias independentes da sua vontade.2

Ao tentarem avaliar os danos que eventualmente decorrem dessas fontes deinsegurança, os economistas estabeleceram uma distinção entre riscos idiossincráticos,gerados por acontecimentos individuais e isolados, tais como uma doença, um acidenteou um crime, e riscos covariantes, que estão associados a acontecimentos que atingemsimultaneamente um número elevado de pessoas, tais como um choque económico ouum perigo climático, e que envolvem frequentemente custos múltiplos e cumulativos.

Encontrar a combinação certa de medidas informais, sociais e aplicáveis aosmercados para ajudar os cidadãos a superar estes acontecimentos e retomar uma vidanormal constitui há muito um desafio político e tem consistido, fundamentalmente,em ponderar as vantagens da mutualização de riscos em relação aos custosadministrativos e comportamentais (risco moral) que isso pode acarretar. Umaabordagem deste tipo é mais fácil quando a ameaça é reduzida e relativamente

viiSíntese

1 Resolução 217 A (iii) da Assembleia Geral.2 Ibid., artigo 25.o, n.o 1.

previsível: a constituição de poupanças de precaução ou a repartição dos riscos atravésde contratos de seguro são por vezes suficientes, especialmente quando se trata deameaças idiossincráticas. O facto de os riscos covariantes, que comportam efeitosnegativos consideráveis, serem mais difíceis de gerir desta forma tem dado origem a vários tipos de seguro e de assistência social.

Nos países mais avançados, tem-se utilizado uma combinação de mecanismospúblicos e privados para assegurar o máximo de cobertura e protecção. Nos países maispobres, a combinação de opções é muito mais limitada, verificando-se uma maiordependência de mecanismos informais, como o apoio da família ou o recurso a prestamistas. Nos últimos anos, a necessidade de alargar o leque de opções emmatéria de gestão de riscos tem merecido mais atenção por parte dos decisores políticos.

No entanto, gerir os riscos não é suficiente para resolver o problema dainsegurança, já que, no caso de muitos dos acontecimentos susceptíveis de acarretarperdas, as causas são de natureza essencialmente sistémica e os resultados podem sercatastróficos. Estes acontecimentos são muito mais difíceis de prever e superar. Istoaplica-se, por exemplo, às crises económicas, mas pode dizer-se praticamente a mesmacoisa em relação às catástrofes naturais e aos conflitos políticos. Estas ameaças são o tema do estudo World Economic and Social Survey deste ano.

Compete principalmente aos governos nacionais tentar atenuar os riscos queestas ameaças representam eliminando as vulnerabilidades subjacentes, reduzindo a exposição dos agregados familiares e das comunidades e ajudando-as a recuperar, naeventualidade de uma catástrofe. Isto exige não só um investimento significativo emmedidas de prevenção, preparação e atenuação, mas também a criação, na esferapública, de uma densa rede de instituições – decorrentes de um contrato social –susceptíveis de assegurar a existência de um espaço em que os indivíduos, os agregadosfamiliares, as empresas e as comunidades possam prosseguir as suas actividades do dia-a-dia com um grau razoável de previsibilidade e estabilidade, no respeito pelosobjectivos e interesses dos outros. Isto é sobretudo indispensável nas sociedades em queexiste uma divisão do trabalho cada vez mais complexa, onde os níveis de confiança, o investimento a longo prazo em capital físico, social e humano e a abertura à inovaçãoe à mudança são ingredientes fundamentais da prosperidade e estabilidade a longoprazo. Neste contexto, garantir a segurança económica é uma componente comple-mentar de todo e qualquer círculo virtuoso que envolva mercados criativos e estruturaspolíticas inclusivas.

Nos últimos anos, parece ter-se tornado muito mais difícil estabelecer estasinteracções positivas e, em alguns casos, verificou-se até um retrocesso.

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Globalização e insegurança económica

Choques comerciais

Poucas pessoas contestam que o crescimento do comércio internacional pode ser ummeio de alcançar uma maior riqueza nacional. Contudo, para aqueles que têm de seadaptar a uma economia mais aberta, esse crescimento pode ser também uma fonte de insegurança. Os decisores políticos dos países avançados reconhecem, há muito, a ambivalência do crescimento do comércio, interrogando-se sobre o que é necessáriofazer, especialmente em termos de compensar os menos afortunados.

Ultimamente, o debate tem incidido na deslocalização das actividades fabris e de serviços para países com custos de produção mais baixos (offshoring), deixandoapenas as competências principais no país de origem. Este processo teve início noprincípio da década de 1970, mas a sua aceleração nos últimos anos tem coincididocom o aparecimento de novas fontes de grandes quantidades mão-de-obra no mundoem desenvolvimento, especialmente na China e na Índia, e com a proliferação dosacordos sobre comércio e investimento entre países desenvolvidos e países emdesenvolvimento.

Os factos parecem, efectivamente, sugerir que esta onda de globalizaçãoaumentou a vulnerabilidade dos trabalhadores nos países industrializados, acentuando a desigualdade entre os trabalhadores altamente especializados e pouco especializados,travando o crescimento do emprego e reduzindo a participação global dos salários no rendimento nacional. Contudo, estas tendências são anteriores ao recente aumentoda deslocalização da produção e apontam para outras causas mais significativas do aumento da insegurança do mercado de trabalho. Igualmente importante é o factode esta vulnerabilidade acrescida não se traduzir directamente numa maior insegurançaeconómica, que depende da existência ou não de apoios institucionais e políticasnacionais eficazes susceptíveis de reduzir e absorver o risco de uma perda súbita deemprego e assegurar fontes de rendimento alternativas.

A gestão das pressões do comércio internacional não é, porém, o únicoproblema dos decisores políticos nos países avançados. Com efeito, o lado negativo dadeslocalização do emprego por parte das empresas multinacionais é, frequentemente, acriação de empregos de reduzido valor acrescentado, instáveis e consistindo sobretudoem operações de montagem nos mercados emergentes. Muitos destes países têmconseguido desenvolver as suas trocas comerciais nos últimos anos, mas as receitasprovenientes das mesmas são menores, devido a um conjunto de factores,nomeadamente, a maior mobilidade do capital, o aumento da concorrência emactividades de trabalho intensivo e a flexibilidade dos mercados. O facto de, muitasvezes, esta produção continuar a ter lugar em enclaves praticamente desligados do restoda economia pode expor os países em causa a choques inesperados, se as empresasdecidirem reduzir ou deslocalizar a sua actividade.

Os choques ligados ao comércio internacional são um problema ainda maiornos países que dependem mais dos sectores tradicionais de exportação. O contraste

ixSíntese

entre o Leste Asiático e outras regiões é impressionante. A proporção dos produtosprimários e da actividade fabril de baixa tecnologia baseada em recursos naturais nototal das exportações do Leste Asiático diminuiu de 76%, em 1980, para 35%, em2005. Só na China, essa diminuição foi de 93%, em 1985, para 44%, em 2005.Outras regiões não têm tido tanto êxito em transformar a estrutura da sua produçãodestinada à exportação. A América do Sul e Central continuam a depender daexportação de produtos primários e de produtos fabris simples (aproximadamente 78%das exportações, em 2005, em comparação com cerca de 90%, em 1983). Em África, aconcentração das exportações em produtos de reduzido valor acrescentado é aindamaior (83%, em 2005).

Para muitos países da América Latina e de África, o impacto global dasflutuações das razões de troca no período de 1980-2005 foi negativo, tendo-se registadouma breve inversão desta tendência, na segunda metade da década de 1990, quandoalguns países beneficiaram de uma evolução favorável, e, mais uma vez, em 2003. Nestesentido, o comércio internacional continua a ser uma importante fonte de instabilidadenos países com economias pouco diversificadas. Além disso, em algumas destas regiões,principalmente na América Latina, a liberalização dos movimentos de capitais acentuougrandemente os choques comerciais, ao atrair fluxos de capitais pró-cíclicos. A vulnera-bilidade que isto pode gerar foi claramente demonstrada pela inversão brusca datransferência líquida de recursos, no seguimento da crise financeira do Leste Asiático,em finais da década de 1990.

Os decisores políticos procuram, há muito, formas de gerir o comérciointernacional de modo a maximizar os benefícios e limitar os custos. Os casos desucesso nunca dependeram exclusivamente da liberalização do comércio. A deslocali-zação da produção nos países avançados e os choques comerciais no mundo emdesenvolvimento apontam para uma alteração preocupante das condiçõesmacroeconómicas subjacentes que torna ainda mais difícil alcançar o êxito, emborauma melhoria recente das razões de troca esconda estes problemas.

A expansão das finanças mundiais

Nos últimos anos, têm-se registado mudanças profundas no funcionamento daseconomias de mercado em todos os países. Em especial, o peso e influência dosmercados financeiros, dos actores financeiros e das instituições financeiras aumentaramsubstancialmente. Esta tendência foi acompanhada por uma enorme acumulação deactivos financeiros e por uma série de inovações institucionais, que têm contribuídopara os níveis crescentes de endividamento das famílias, das empresas e do sectorpúblico. Em alguns países, a dívida financeira interna como proporção do produtointerno bruto (PIB) aumentou quatro ou cinco vezes, desde o princípio da década de 1980. Este processo de “financeirização” conduziu, por sua vez, à adopção de umaabordagem política macroeconómica orientada para a luta contra ameaças infla-cionistas.

World Economic and Social Survey 2008x

Nas décadas a seguir a 1945, o ciclo económico foi impulsionado principal-mente pelo investimento e pela procura de exportações e foi sustentado por um fortecrescimento salarial, que se traduziu em níveis elevados de gastos dos consumidores.Este processo nem sempre foi estável. A volatilidade era, frequentemente, elevada, e os salários, os lucros e as receitas fiscais ultrapassavam, por vezes, o crescimento daprodutividade, conduzindo a pressões inflacionistas, défices da balança de transacçõescorrentes e níveis de endividamento cada vez mais elevados. Estas tendências diziam aosdecisores políticos que era necessário tomar medidas, que se traduziam frequentementenum abrandamento do ciclo económico.

Este regime tem vindo a sofrer transformações, e os principais factores quedeterminam a evolução do ciclo económico passaram a ser o rácio de endividamento, o valor das garantias financeiras e os preços esperados dos activos. A tendência crescentedo sistema financeiro, incluindo os fluxos internacionais de capitais, para assumir umaposição fortemente pró-cíclica reflecte o facto de os preços dos activos seremdeterminados, não tanto pelas perspectivas de ganhos ou de perdas de rendimento, massobretudo pelas expectativas quanto à variação dos preços. Esta evolução deve-seprincipalmente às atitudes pró-cíclicas dos mutuantes e dos investidores em relação aorisco, que é subestimado em períodos de retoma da conjuntura e sobrestimado emperíodos de contracção – atitudes incentivadas por inovações financeiras que prometemprotecção contra os riscos de declínio da conjuntura.

Os surtos de expansão financeira dão, muitas vezes, origem a investimentosassimétricos, que frequentemente consistem em pouco mais do que uma reorganizaçãodos activos existentes através da aquisição de participações sociais com recurso a capitaisde empréstimo (leveraged buyouts), operações de recompra de títulos, e fusões eaquisições, ou investimentos efectuados em sectores muito especulativos, como osmercados imobiliários. Ao contrário de ciclos anteriores, estes surtos de expansão têmtrazido poucos benefícios em termos de aumentos dos salários e do emprego. Noentanto, o maior acesso ao crédito por parte dos agregados familiares significa que osgastos dos consumidores podem aumentar, mesmo quando os rendimentos estagnam,já que os níveis de endividamento crescentes substituem a quebra das poupanças dosagregados familiares. Mas, à medida que os balanços vão apresentando margens desegurança menores, o sistema vai-se tornando cada vez mais frágil.

A transição de uma economia limitada pelo factor rendimento para umaeconomia assente em activos financeiros tem sido instigada pela liberalização dosmercados de capitais internacionais. Efectivamente, as ligações entre os mercadosfinanceiros nacionais e os fluxos de capitais são mais fortes nos países emdesenvolvimento, muitos dos quais abriram prematuramente as suas balanças decapital, na década de 1990.

Estes fluxos de capitais têm sido fortemente pró-cíclicos. Os seus efeitostransmitem-se frequentemente através das contas do sector público, especialmenteatravés dos efeitos dos financiamentos disponíveis nos gastos públicos e das taxas de juro no serviço da dívida pública. Mas os efeitos mais fortes fazem-se normalmentesentir através dos gastos do sector privado e dos balanços. Durante os períodos de expansão, os défices e os empréstimos contraídos pelo sector privado tendem

xiSíntese

a aumentar e tendem a acumular-se balanços perigosos, suscitados por um “êxito”aparente, um êxito que normalmente se reflecte no baixo nível dos prémios de risco edos spreads. Quando estas percepções se alteram, o financiamento externo cessa e dão-seaumentos súbitos do custo do crédito, o que conduz a um ajustamento em baixa.

A transição para estratégias impulsionadas pelas exportações, no mundo emdesenvolvimento, tem efectivamente acentuado estas tendências, em muitos países. A influência crescente de considerações financeiras significa que a volatilidade dos preços dos produtos de base funciona de uma maneira ainda mais exageradamentepró-cíclica, o que é acentuado por políticas pró-cíclicas, entre outros factores,conduzindo a um aumento das despesas orçamentais, durante o período de expansão, e a uma redução dos gastos, quando os preços baixam. A redução das despesas duranteo período de abrandamento económico é reforçada pelos condicionalismos associados à ajuda financeira internacional durante situações de crise, que pressupõe um conjuntode políticas ortodoxas de estabilização macroeconómica.

Esta dinâmica financeira tem profundas implicações para a economia real. Osepisódios de expansão económica excepcionalmente rápida provocados por momentosde euforia financeira podem dar origem a períodos de aumento da prosperidade, maspodem terminar muito bruscamente, conduzindo a recessões profundas ou a períodosainda mais longos de estagnação. A vulnerabilidade a inversões acentuadas dos fluxosvaria, mas, em muitas economias emergentes, é frequentemente desencadeada porfactores que escapam ao controlo dos países beneficiários, nomeadamente, alteraçõesdas políticas monetárias e financeiras dos principais países industrializados.

Os factos levam-nos a pensar que, desde a década de 1990, a instabilidade do investimento tem aumentado em relação ao PIB tanto dos países desenvolvidoscomo dos países em desenvolvimento. Os ciclos do investimento têm-se tornado maispronunciados do que os ciclos do rendimento, uma tendência que se tem feito sentircom especial acuidade nos países de rendimento médio (ver Figura O.1). Com excepçãoda Ásia Meridional, e apesar da recuperação mundial registada recentemente, estavolatilidade acrescida tem dado origem a taxas médias de formação de capital bastanteinferiores às da década de 1970. O investimento em infra-estruturas e o reforço dacapacidade de transformação da indústria, dois elementos fundamentais para aumentara resistência dos países aos choques externos, parecem ser as áreas mais afectadas.

Além disso, as perdas de investimento, emprego e rendimento sofridas emperíodos de recessão não são inteiramente recuperadas quando se verifica uma retomada economia, fazendo baixar a média a longo prazo. Por outro lado, em muitos países,a ascensão do sector financeiro tem estado estreitamente associada a práticas de contratação mais flexíveis. Todos estes factores acarretam uma insegurançaconsiderável para os rendimentos e o emprego, mesmo em situações de expansãorelativamente forte, e um indício claro disso é o facto de, na maioria dos paísesindustrializados avançados, o aumento da remuneração do trabalho não conseguiracompanhar a produtividade do trabalho, uma tendência que também sido detectadanos mercados emergentes.

Isto conduz frequentemente a uma aparência de êxito dos países, mesmo que amaioria dos seus cidadãos não esteja a usufruir de uma subida do seu nível de vida.

World Economic and Social Survey 2008xii

Muitas vezes, o reverso desta situação é um agravamento das disparidades de rendi-mento. O aumento da insegurança, aliado a uma desigualdade crescente, é uma facetadaquilo que algumas pessoas denominam “a nova idade dourada”.

Figura O.1.Volatilidade do crescimento da produção e do investimento fixo nos países

desenvolvidos, América Latina e Caraíbas, África e Leste Asiático e Ásia Meri-

dional, 1971-2006 (desvio-padrão das taxas de crescimento)

Fonte: UN/DESA, de acordo com a base de dados sobre os principais agregados das contas nacionais da Divisão deEstatística das Nações Unidas.

Volatilidade do crescimento do PIB

0

1

2

3

4

5

6

Paísesdesenvolvidos

América Latinae Caraíbas

África Lestee Sul da Ásia

Paísesdesenvolvidos

América Latinae Caraíbas

África Lestee Sul da Ásia

1971-1980 1981-1990 1991-2000 2001-2006

0

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6

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12

14

16

181971-1980 1981-1990

1991-2000 2001-2006

Volatilidade do crescimento do investimento fixo

xiiiSíntese

Gestão do ciclo económico

Os choques externos adversos, transmitidos através da balança comercial e da balançade capital, têm repercussões directas na segurança económica e na luta contra apobreza, seja devido ao desperdício de recursos seja à perda de produção. Durante asdécadas de 1980 e 1990, muitos países em desenvolvimento tentaram atenuar asrepercussões desses choques adoptando políticas que visavam o controlo da inflação e orestabelecimento do equilíbrio orçamental. Isto não só atrasava a recuperação, como,em muitos casos, também a tornava menos vigorosa e mais vulnerável a choquesfuturos. É necessária uma abordagem diferente.

A necessidade de políticas económicas anticíclicas

Os governos podem aumentar as possibilidades de introduzir políticas anticíclicas,melhorando o quadro institucional da formulação de políticas macroeconómicas. O estabelecimento de objectivos orçamentais que sejam independentes das flutuações a curto prazo do crescimento económico (as chamadas normas do orçamentoestrutural) pode ser uma forma eficaz de conferir uma orientação anticíclica à políticaeconómica adoptada. Alguns países em desenvolvimento, como o Chile, por exemplo,conseguiram gerir com êxito este tipo de normas orçamentais.

A constituição de fundos de investimento em futuros e fundos de estabilizaçãoorçamental também pode ajudar a eliminar as variações das receitas públicas,nomeadamente as que provêm da exportação de produtos primários. Estes fundos nãoconstituem, porém, uma panaceia e há que geri-los cuidadosamente. Um problema é adificuldade em distinguir as variações cíclicas dos preços das tendências a longo prazo,em parte devido à maior influência de investimentos financeiros especulativos nosmercados de matérias-primas. Isto dificulta a tarefa dos governos ao procuraremdeterminar a dimensão adequada dos fundos de estabilização. Por conseguinte, é importante que os países em desenvolvimento também possam recorrer a um sistemamultilateral adequado de mecanismos de financiamento compensatório susceptível de os proteger contra choques mais fortes dos preços das matérias-primas (ver adiante).

Políticas macroeconómicas

e de desenvolvimento integradas

As políticas macroeconómicas devem sustentar o crescimento económico e a geração deemprego. Isto pressupõe que as políticas macroeconómicas sejam integradas numaestratégia mais alargada de desenvolvimento, tal como aconteceu nas economias derápido crescimento do Leste Asiático. A política orçamental deve, por sua vez, darprioridade às despesas de desenvolvimento, nomeadamente ao investimento naeducação, na saúde e em infra-estruturas, bem como às subvenções e garantias de

World Economic and Social Survey 2008xiv

crédito destinadas a indústrias nascentes. Tal como no caso do Leste Asiático, a políticamonetária deve ser coordenada com a política financeira e a política industrial, designa-damente através de regimes de crédito orientados e subsidiados e da gestão das taxas dejuro, de modo a influenciar directamente o investimento e a poupança. Considera-seque manter taxas de câmbio competitivas é essencial para incentivar o crescimento dasexportações e a diversificação. Pelo contrário, desde a década de 1980, as políticasmacroeconómicas de muitos países da América Latina e de África têm incidido emobjectivos mais restritos de estabilização dos preços a curto prazo, o que tem conduzidofrequentemente a uma sobrevalorização das taxas de câmbio e a um crescimentodesequilibrado.

Gestão de activos de reserva: reduzir a necessidade

de “auto-seguro”

Uma reacção frequente de muitos países em desenvolvimento à vulnerabilidadeassociada a paragens súbitas e inversões dos fluxos de capitais é a constituição rápida dereservas. As reservas em divisas detidas pelos países em desenvolvimento aumentaram,em média, para nada menos do que 30% do seu PIB (quer se inclua a China naamostra ou não). Mesmo os países de baixo rendimento, incluindo os países menosavançados, aumentaram as suas posições de reserva para reduzir a vulnerabilidaderesultante do seu endividamento. As reservas aumentaram de 2-3% do PIB na décadade 1980 para cerca de 5% na década de 1990, e 12% na década em curso. Para ospaíses em desenvolvimento, estas reservas produzem um efeito regulador, constituindouma espécie de “auto-seguro” destinado a fazer face a choques externos; depois da criseasiática e após os ataques especulativos a países com moedas vulneráveis, esta medidaparece ter sido uma estratégia anticíclica sensata.

Contudo, uma estratégia deste tipo tem um preço elevado, não só directamente,em termos dos elevados custos de detenção das reservas, que chegam a ascender a 100 mil milhões de dólares e representam uma transferência líquida para os países damoeda de reserva muito superior à ajuda pública ao desenvolvimento (APD) que estesprestam, mas também em termos do consumo ou do investimento interno a que foinecessário renunciar para constituir as reservas. Uma solução alternativa consiste emreforçar modalidades regionais e mundiais de cooperação financeira e de coordenaçãodas políticas macroeconómicas.

Além disso, países que acumularam grandes quantidades de recursos sob aforma de reservas oficiais e fundos soberanos podem reservar uma pequena parte dessesrecursos tendo em vista a concessão de empréstimos para fins de desenvolvimento. Os países em desenvolvimento possuem mais de 4,5 biliões de dólares em reservasoficiais e calcula-se que o valor dos activos de fundos soberanos existentes ascenda apelo menos 3 biliões de dólares. A afectação de apenas 1% destes activos (ou oequivalente ao seu rendimento) a actividades de desenvolvimento, por ano,corresponderia a aproximadamente 75 mil milhões de dólares, ou seja, o triplo do valor

xvSíntese

bruto dos empréstimos concedidos pelo Banco Mundial. Seria talvez possível criar o dobro dessa capacidade de crédito para fins de desenvolvimento se estes recursosfossem utilizados para realizar o capital de bancos de desenvolvimento.

Soluções multilaterais

Um dos grandes desafios das instituições financeiras multilaterais consiste em ajudar ospaíses em desenvolvimento a atenuarem os efeitos nocivos da volatilidade dos fluxos decapitais e dos preços dos produtos de base e em assegurar mecanismos de financia-mento anticíclicos destinados a compensar as variações essencialmente pró-cíclicas dosfluxos de capital privado. Existem várias opções para atenuar o carácter pró-cíclico dosfluxos de capitais e fornecer financiamentos anticíclicos, de modo a ajudar a criar umambiente mais favorável ao crescimento sustentável.

Um primeiro conjunto de medidas possíveis consiste em melhorar osregulamentos financeiros internacionais, com vista a restringir a volatilidade dos fluxosde capitais, e em prestar aconselhamento na concepção de controlos apropriados dosmovimentos de capitais, nomeadamente numa óptica anticíclica.

Por outro lado, é necessário reforçar os financiamentos de emergência pararesponder a choques externos infligidos às balanças de transacções correntes ou àsbalanças de capital, de modo a reduzir os encargos do ajustamento e os custos de manter volumes elevados de reservas. Os mecanismos actuais têm uma coberturalimitada e uma definição muito restrita ou estão sujeitos a condições excessivamenterigorosas. Os mecanismos do Fundo Monetário Internacional (FMI) devem serconsideravelmente simplificados e possibilitar pagamentos automáticos e mais rápidosque sejam proporcionais à dimensão dos choques externos. A concessão de emprés-timos em condições mais favoráveis é extremamente desejável, especialmente no caso depaíses de baixo rendimento muito endividados. Uma nova emissão de direitos de saqueespeciais (DSE) seria uma forma possível de financiar um aumento apreciável do finan-ciamento compensatório disponível.

As catástrofes naturais

e a insegurança económica

As ameaças recentes à estabilidade financeira mundial têm dado azo a inúmerasanalogias com o impacto das catástrofes naturais. A natureza pode, sem dúvida, seruma força destrutiva. Desde 1970, registaram-se mais de 7000 catástrofes de grandesdimensões, que causaram danos de quase 2 biliões de dólares, mataram pelo menos 2,5 milhões de pessoas e tiveram repercussões adversas na vida de inúmeras outras.

World Economic and Social Survey 2008xvi

Menos vidas perdidas, mais meios de vida ameaçados

Acontecimentos como o tsunami de Dezembro de 2004, no Oceano Índico, recordam--nos o poder mortífero das forças naturais. No entanto, o número de mortesdecorrentes deste tipo de catástrofes tem vindo a diminuir, o que reflecte as melhoriasdos sistemas de alerta e da prestação de ajuda alimentar e de emergência. Existem,todavia, outros indícios menos animadores: as catástrofes tornaram-se quatro vezes maisfrequentes do que na década de 1970, obrigando à deslocação de um número muitomaior de pessoas, e os seus custos são, em média, quase sete vezes superiores (ver Figura O.2). Embora as catástrofes se tenham tornado menos mortíferas, passaram a representar uma ameaça muito maior para o bem-estar económico dos países e comunidades afectados.

É difícil saber em que medida, precisamente, as alterações climáticas têminfluenciado esta tendência, embora a comunidade científica não duvide da existênciade uma ligação. A comunidade empresarial está sem dúvida a prestar atenção. As com-panhias de seguros prevêem que, durante a próxima década, se verifiquem aumentossignificativos dos prejuízos relacionados com o clima que, num ano mau, poderãoultrapassar um bilião de dólares.

Figura O.2.As catástrofes naturais estão a causar menos mortes, mas estão a afectar

o meio de vida de um maior número de pessoas

Fonte: UN/DESA, com base em dados da Base de Dados Internacional sobre Catástrofes Naturais PFDA/CRED (EM-DAT)(disponível em www.emdat.net), Universidade Católica de Louvain, Bruxelas.

Fonte: UN/DESA, de acordo com a base de dados sobre os principais agregados das contas nacionais da Divisão deEstatística das Nações Unidas.

As taxas de mortalidade associadas a catástrofes naturais dos países em desenvolvimentosão 20 a 30 vezes superiores às dos países desenvolvidos, e a recuperação após umacatástrofe é muito mais lenta nos primeiros. Esta ameaça desigual à segurança econó-

Valores médios, 1974-2000

2,0

0,0

4,0

6,0

8,0

10,0

12,0

14,0

1974

1976

1978

1980

1982

1984

1986

1988

1990

1992

1994

1996

1998

2000

2002

2004

2006

Anos

N.o de mortes por catástrofe (centenas)

Pessoas afectadas por catástrofe(centenas de milhares)

xviiSíntese

mica decorrente dos perigos naturais reflecte as dificuldades sentidas pelos agregadosfamiliares, as comunidades e os governos ao prepararem-se para uma catástrofe, aoprocurarem atenuar o seu impacto e ao fazerem face às suas consequências.

As taxas de pobreza elevadas, os níveis elevados de endividamento, a inexistênciade infra-estruturas pública adequadas e a falta de diversificação económica são algumasdas características que definem o contexto estrutural dos países em desenvolvimentoperante a ameaça de uma catástrofe natural. Além disso, a falta de informação, o acessoinsuficiente a financiamentos, a ineficácia das instituições e as redes sociais inadequadasafectam negativamente a capacidade de resistência da população, acentuam o impacto ereduzem a qualidade e eficácia das respostas políticas. Em conjunto, estes factoresexpõem os países e as comunidades pobres não só a catástrofes em grande escala,potencialmente devastadoras, mas também a catástrofes menores mas frequentes queocorrem sazonalmente, como, por exemplo, as cheias do Bangladeche e as tempestadesde vento nas regiões das Caraíbas e do Pacífico.

Nestas condições, as famílias esgotam rapidamente os mecanismos de adaptação,tais como poupanças e crédito, venda de bens e migração, e podem ser obrigadas aadoptar estratégias de sobrevivência que comportam mais riscos, como, por exemplo, o recurso a empréstimos de custo elevado, que apenas perpetuam a sua vulnerabilidade.A nível colectivo, a resposta dos poderes públicos é comprometida por um volume deinvestimento público já de si baixo, que os programas de ajustamento em cursoreduzem ainda mais. A situação é agravada pela quebra dos rendimentos e peladeterioração do equilíbrio comercial e orçamental na sequência da catástrofe. O riscoreside no perigo de os países caírem num círculo vicioso, à medida que a insegurançaeconómica se vai acentuando devido à fragilidade da situação alimentar, de saúde e deemprego, o que contribui para o abrandamento da recuperação e aumenta a exposiçãoao perigo natural seguinte.

Fazer face às catástrofes naturais

Uma política nacional integrada

A fim de gerirem estes choques, os agregados familiares e os governos necessitam demelhores estratégias de adaptação. A comunidade de doadores, em especial, temdedicado muita atenção, nos últimos anos, a estratégias de repartição e transferência deriscos de catástrofes e de estabilização dos rendimentos, através de instrumentosfinanceiros baseados no mercado, tais como seguros de colheita e de actividade pecuáriae emissões de obrigações para fazer face à ocorrência de catástrofes. A nível regional,têm surgido algumas iniciativas inovadoras destinadas a explorar esta opção, tais comoo Mecanismo de Seguro contra Risco de Catástrofe, das Caraíbas.

Estas iniciativas merecem ser aprofundadas, mas não se deve sobrestimar o seuimpacto. As estratégias baseadas no mercado só são verdadeiramente uma opção aconsiderar seriamente a níveis de desenvolvimento mais elevados, em que possam

World Economic and Social Survey 2008xviii

complementar um conjunto alargado de instrumentos de atenuação. Os seguros sãomenos relevantes no caso de países com um sector financeiro pouco desenvolvido e quando a insegurança do rendimento é geral. Além disso, o facto de as catástrofes de grande dimensão produzirem prejuízos generalizados pode ameaçar até os mercadosde seguros bem capitalizados, tornando estas opções dispendiosas.

A principal prioridade da gestão de catástrofes deve ser um investimentoacrescido em medidas de preparação e adaptação, de modo a reduzir o risco de umperigo natural se transformar numa catástrofe. Os doadores bilaterais e multilateraisdespendem apenas 2% dos fundos para gestão de catástrofes na prevenção de riscos,apesar de o Serviço Geológico dos Estados Unidos calcular que teria sido possível umaredução da ordem dos 280 mil milhões de dólares das perdas económicas associadas acatástrofes registadas a nível mundial na década de 1990, investindo 40 mil milhões dedólares na redução dos riscos de catástrofes.

Dado que as catástrofes podem aumentar a insegurança alimentar, as medidaspreventivas destinadas a reduzir a vulnerabilidade alimentar devem fazer parte dapreparação para catástrofes nos países mais pobres. Para isso, são necessários sistemas dealerta rápido, principalmente a nível internacional, bem como levantamentos dosagregados familiares afectados pela insegurança alimentar, classificados por grau demalnutrição e deficiências alimentares, e a prestação activa de apoio aos pequenos emédios produtores de culturas alimentares (por exemplo, a subvenção de consumosintermédios), e ainda transferências de dinheiro.

Uma outra forma eficaz de reduzir a vulnerabilidade consiste em articular asestratégias de desenvolvimento a médio prazo com as actividades de ajuda humanitária.Uma constatação frequente da investigação empírica é que as catástrofes naturaiscausam menos perdas às economias mais diversificadas e que estas recuperam maisdepressa do que as economias pouco diversificadas. Para muitos países em desenvol-vimento, a diversificação da produção é grandemente dificultada por factoresgeográficos. Por conseguinte, as estratégias de desenvolvimento bem concebidas devemavançar nesta direcção A conjugação de investimento público e crédito barato éessencial para se fazerem progressos; mas é igualmente importante que haja margem demanobra suficiente para permitir que sejam implementadas políticas industriaissusceptíveis de conduzir à diversificação.

Mecanismos internacionais de seguro

e de adaptação

As catástrofes são, frequentemente, um fenómeno cuja dimensão ultrapassa ascapacidades de alguns países, especialmente, os países com economias rurais maispequenas e mais pobres. Embora a comunidade internacional responda muitas vezesbastante depressa aos apelos de socorro lançados na sequência de catástrofes de grandeescala, tem-se verificado que a ajuda efectivamente prestada tende a ficar aquém daspromessas feitas: os fundos obtidos pelas Nações Unidas para ajudar a remediar osefeitos das catástrofes são sistematicamente inferiores aos fundos necessários.

xixSíntese

Os mecanismos de crédito multilaterais como, por exemplo, o Mecanismo paraa Atenuação dos Efeitos de Choques Exógenos, que é gerido pelo FMI e se destina aospaíses de baixo rendimento, foram criados com o objectivo de ajudar a fazer face anecessidades temporárias da balança de pagamentos decorrentes de choques comocatástrofes naturais. A sua eficácia é, todavia, limitada, devido ao nível elevado decondicionalismos impostos. Uma medida susceptível de ser aplicada rapidamente a fimde ajudar melhor os países afectados por catástrofes consistiria em introduzir ummecanismo simples destinado a conceder uma moratória no que se refere ao serviço dadívida, por exemplo, mediante melhoramentos ao processo do Clube de Paris.

A comunidade internacional tem vindo a avançar na direcção de uma estratégiamais integrada destinada a reforçar a capacidade de resistência de populações e paísesvulneráveis. Contudo, tem sido um processo lento. Isto é, em parte, um reflexo de umproblema mais vasto relacionado com a arquitectura da ajuda, nomeadamente, a influência de interesses económicos e geopolíticos.

Há que criar um mecanismo mundial para atenuar os efeitos das catástrofes,que mobilize os recursos necessários a uma gestão integrada dos riscos. De início, essemecanismo poderia ser utilizado como um meio melhor de prestar ajuda humanitáriaem caso de catástrofe, mas deverá evoluir rapidamente no sentido de assumir umconjunto mais alargado de responsabilidades associadas à gestão de catástrofes. Estemecanismo poderia, mais tarde, absorver vários mecanismos que já existem mas estãofragmentados, com o objectivo de se vir a tornar um instrumento dotado dos fundosnecessários, não só para prestar ajuda financeira rápida e automaticamente aos paísesatingidos por uma catástrofe, mas também para começar a executar a tarefa muito maisdifícil de investir na redução dos efeitos de catástrofes a longo prazo. Se tomarmoscomo orientação os números do Serviço Geológico dos Estados Unidos citado hápouco, um mecanismo dotado de 10 mil milhões de dólares parece ser o tipo deobjectivo que a comunidade internacional se deve propor, caso pretenda efectuarprogressos reais em matéria de redução de riscos.

Um mundo que se desmorona:

as guerras civis e a recuperação pós-conflito

Em alguns países, a insegurança económica crescente tornou-se parte de um processode exacerbação de divisões sociais cada vez mais profundas e de agravamento da insta-bilidade política. As suas sociedades frágeis são vulneráveis a uma multiplicidade deameaças, que vão desde catástrofes naturais à escassez de alimentos e aos choquesfinanceiros, a uma desigualdade crescente e a eleições mal geridas, ou seja,acontecimentos que os podem empurrar para níveis de violência generalizada oumesmo para o genocídio. Nestas condições, há o perigo de o Estado perder o controlo,não só da sua capacidade de prestar serviços básicos, mas também do seu monopóliotradicional das forças responsáveis pela manutenção da lei e da ordem, e, em últimaanálise, o perigo de perder a sua legitimidade política.

World Economic and Social Survey 2008xx

Esta possibilidade modificou a natureza da guerra contemporânea nas últimastrês décadas. Os conflitos armados entre Estados deram lugar a guerras civis travadas,principalmente, dentro das fronteiras nacionais. Estas guerras têm maior probabilidadede reforçar as divisões profundas e cumulativas que minam a coesão social, ameaçam as normas e as instituições do Estado e geram um sentimento profundo de medo e desconfiança entre os cidadãos.

Conflitos mais longos e mais destrutivos

Embora cada conflito tenha as suas características próprias, em termos globais, osconflitos tornaram-se cada vez mais prolongados e destrutivos, concentrando-se nospaíses com um rendimento per capita anual inferior a 3 000 dólares; em média, osconflitos podem durar actualmente entre sete e nove anos, em comparação com apenasdois ou três anos nas décadas de 1960 e 1970 (ver Figura O.3). Ao mesmo tempo (à semelhança das catástrofes naturais), o número de mortes registadas em confrontosarmados tem vindo a diminuir, registando-se um impacto maior em termos de pessoasdeslocadas e meios de subsistência económica destruídos. Os danos causados aoambiente são muitas vezes graves, enquanto as crises no sector da saúde pública e ascrises de fome se tornaram endémicas.

Figura O.3.Os conflitos tornaram-se mais prolongados no mundo inteiro, no período de

1946-2005

Fonte: UN/DESA, segundo informação da base de dados sobre conflitos armados UCDP/PRIO (2007). Fonte: Abreviaturas: UCDP = Uppsala Conflict Data Programme do Departamento de Investigação sobre Paz e Conflitos

da Universidade de Uppsala, na Suécia; PRIO = Instituto Internacional de Investigação sobre a Paz, de Oslo(Centro de Estudos de Guerras Civis).

Número de conflitos

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

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1949

1952

1955

1958

1961

1964

1967

1970

1973

1976

1979

1982

1985

1988

1991

1994

1997

2000

2003

2005

Anos

Conflitos em curso que duram há mais de cinco anos

Conflitos em curso que duram desde há um ano até há cinco anos

Deflagração de novos conflitos

xxiSíntese

Muitos destes custos são suportados directamente pelas famílias e pelas comunidadeslocais, e, juntamente com a destruição e roubo de bens de produção, tornam a recupe-ração de posições económicas e sociais tanto mais difícil depois de as hostilidadescessarem. Ao mesmo tempo, a quebra dos rendimentos, a informalização da actividadeeconómica, a diminuição acentuada dos níveis de investimento e das receitas fiscais,bem como a modificação da composição das despesas públicas a favor das actividadesmilitares significam que é cada vez mais difícil para o Estado (ou o que resta dele)compensar estes custos crescentes do conflito.

À medida que os custos vão aumentando, a insegurança, a fuga de capitais e aerosão do “capital social” podem comprometer o funcionamento das instituiçõespúblicas e lançar o país num conflito prolongado. As sociedades extremamente frágeisque subsistem depois de as hostilidades cessarem carecem das infra-estruturas institu-cionais necessárias para servir de base a um novo contrato social e assegurar umarecuperação rápida e duradoura. Não é de surpreender, portanto, que a ameaça de umanova eclosão de violência nunca esteja muito longe: um país com um passado deconflitos tem duas a quatro vezes mais probabilidades de vir a sofrer uma guerra do queum país sem esse tipo de antecedentes. Esta possibilidade confere uma dimensãodiferente à questão das opções políticas dos países em causa.

Insegurança económica

e reconstrução pós-conflito

Colmatar o défice institucional

Estas sociedades não possuem meios para garantir a consecução dos objectivos dasegurança, reconciliação e desenvolvimento de uma maneira equilibrada e gradual, poistêm de iniciar o processo de recuperação em todas as frentes, um processo que édificultado pelo enorme défice institucional que existe nos países após um conflito.Para colmatar este défice é necessário adoptar uma abordagem estratégica integrada quepermita restabelecer gradualmente a confiança nas instituições públicas e criar umacombinação de mecanismos políticos e económicos susceptíveis de ajudar a criar umaidentidade nacional unificadora, estabelecer uma autoridade central eficaz para gerir astransferências inter-regionais e os recursos, e começar a definir prioridades sociais e económicas, bem como criar o espaço político necessário para as realizar.

O Estado deve, logo desde o início, não só estabelecer as instituições e asnormas que irão permitir que os mercados funcionem, mas também escolher reformas eadoptar políticas que não contribuam para um agravamento da insegurança ou dasdisparidades socioeconómicas. Por conseguinte, a construção de uma paz duradouraexige políticas económicas activas, incluindo medidas macroeconómicas poucoconvencionais. Neste contexto, uma ideia fundamental a ter presente ao pensar nasligações entre a consolidação do Estado e a recuperação económica em países que seencontram numa situação pós-conflito é a da eficácia da adaptação – ou seja,

World Economic and Social Survey 2008xxii

a capacidade de criar instituições susceptíveis de proporcionar um quadro estável para aactividade económica e que, ao mesmo tempo, sejam suficientemente flexíveis paradeixar uma margem de manobra máxima aos decisores políticos, em todas as situações.

Uma abordagem diferente da ajuda pública

ao desenvolvimento

Será vital, desde o início do processo de recuperação, reforçar a capacidade do Estadono que se refere a mobilizar os recursos públicos e financiar de uma maneira sustentávelas actividades necessárias para colmatar o défice institucional. Em muitos casos, a dependência do apoio externo é inevitável e a gestão dos fluxos de ajuda inter-nacionais será uma das primeiras provas da política económica, tanto para asautoridades nacionais como para a comunidade de doadores. No entanto, é frequente aajuda a países em transição da guerra para a paz começar a diminuir prematuramente, o que acontece, muitas vezes, no preciso momento em que os países já reconstruíram assuas instituições e se encontram em melhor posição de absorver a ajuda e de adespender eficazmente. A comunidade internacional está a tomar medidas, no contextodo Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização de Cooperação e deDesenvolvimento Económicos (OCDE) e da Comissão de Consolidação da Paz, comvista a assegurar a manutenção de fluxos de ajuda estáveis e adequados, duranteperíodos de tempo suficientemente longos.

Os doadores têm preferido, habitualmente, financiar projectos específicos, mas,sobretudo devido ao défice de legitimidade dos Estados, os recursos devem, tantoquanto possível, ser canalizados através dos orçamentos nacionais e devem envidar-setodos os esforços para evitar que se gerem conflitos de atribuições. Relativamente a esteaspecto, os sistemas de dupla assinatura para aprovação de decisões sobre despesas têm--se revelado muito eficazes como meio de combater a corrupção e garantir o respeitopela obrigação de prestar contas. Um outro aspecto do problema consiste emrestabelecer os mercados de crédito e financeiro, nomeadamente, através de fontes definanciamento inovadoras.

Despesas públicas mais equitativas

Embora as prioridades devam ser estabelecidas pelas autoridades locais, tanto osdoadores como os governos nacionais devem prestar especial atenção às ligações queexistem entre as decisões em matéria de despesas públicas e os ressentimentos que estãona origem dos conflitos. Existem dois conjuntos de questões de repartição que sãoespecialmente pertinentes neste contexto: (a) a forma de assegurar que as preocupaçõescom a equidade sejam tidas em conta nas decisões sobre despesas; e (b) a forma deafectar as despesas de modo a abranger todos os sectores políticos e incentivar aaplicação dos acordos existentes e a consolidação da paz. A tributação dos consumos de

xxiiiSíntese

luxo é um aspecto que merece muito mais atenção por parte dos governos. Asavaliações do impacto de conflitos e os condicionalismos da paz, que visam orientar ofluxo de ajuda para medidas específicas no domínio da consolidação da paz, podem seruma forma útil de resolver ambas as questões do ponto de vista dos doadores.

Dado que a preservação da paz é um dos objectivos mais importantes para cujaconsecução a ajuda externa pode contribuir, é especialmente importante que, em vez deimporem os seus modelos institucionais e prioridades políticas aos países beneficiários,os doadores trabalhem de modo a mobilizar os conhecimentos e capacidades locais nosentido de ir ao encontro das necessidades das populações afectadas e restabelecer alegitimidade das instituições locais, que são essenciais para revitalizar o contrato social.

A pobreza, a insegurança

e o programa de desenvolvimento

A liberalização económica e a desregulamentação criaram novas causas de insegurançaeconómica, aumentando simultaneamente a exposição a vulnerabilidades antigas, semconseguirem gerar as respostas políticas adequadas, uma realidade que está patente nospaíses, independentemente do seu nível de desenvolvimento. No entanto, são ascomunidades mais pobres que mais sofrem os efeitos das crises financeiras, catástrofesnaturais e conflitos civis. Na verdade, na maioria dos casos, a pobreza apenas exacerbaestas ameaças e as pessoas mais pobres não beneficiam de mecanismos eficazes deatenuação, adaptação e recuperação. Os tumultos causados pela crise alimentar queeclodiram em vários países no princípio de 2008 puseram em evidência a fragilidadedos meios de vida daqueles que se encontram na base da escada do desenvolvimento.

Os países em desenvolvimento que obtiveram bons resultados ainda nãocomeçaram a procurar no mercado auto-regulado ideias para servir de base à concepçãodas suas políticas de desenvolvimento. Em vez disso, a fórmula que adoptaram parapromover um crescimento rápido consiste numa combinação de incentivos do mercadoe fortes intervenções públicas, o que muitas vezes é contrário à ortodoxia económica.Várias medidas económicas destinadas a socializar os riscos decorrentes da realização deinvestimentos em grande escala e da adopção de tecnologias pouco conhecidas têmajudado a sustentar uma classe empresarial nacional. Este tipo de apoio tem sidofrequentemente norteado por uma visão mais abrangente de desenvolvimento, que vêas intervenções políticas em função do seu contributo para a diversificação daactividade económica, a criação de empregos e a redução da pobreza.

Contudo, o crescimento é uma condição necessária mas não suficiente daeliminação da pobreza (ver Figura O.4). O que é necessário é um pacote de políticassociais universais e umas quantas políticas económicas bem orientadas, adaptadas àscondições específicas do país e baseadas num “contrato social” sólido, susceptível deassegurar aos indivíduos, às famílias e às comunidades a liberdade necessária parapoderem prosseguir os seus interesses e utilizar da forma mais eficaz possível osimpulsos criativos gerados pelas forças do mercado. Isto exige a adopção de uma

World Economic and Social Survey 2008xxiv

abordagem mais integrada das políticas económicas e sociais e um grau muito maior depragmatismo na sua concepção e execução.

Figura O.4.Aceleração do crescimento e redução da volatilidade ajudam a reduzir a

pobreza, mas são suficientes

Fonte. UN/DESA, de acordo com a base de dados sobre os principais agregados das contas nacionais da Divisão deEstatística das Nações Unidas, para o crescimento do PIB; e Banco Mundial, PovcalNet, disponível emhttp://iresearch.worldbank.org/PovcalNet/jsp/index.jsp.

Nota: A variação da pobreza é medida como variação em pontos percentuais da incidência da pobreza, considerando-se como limiar da pobreza 1 dólar por dia, no período de 1981-2004.

– 50

– 40

– 30

– 20

– 10

0

10

20

30

– 4 – 2 0 2 4 6Crescimento do PIB (percentagem)

Vari

ação

da

pobr

eza

– 60

– 40

– 20

0

20

40

60

13830– 2Volatilidade (desvio-padrão) do crescimento do PIB

Vari

ação

da

pobr

eza

xxvSíntese

Fazer face à insegurança económica

dos agregados familiares

Políticas macroeconómicas e de crescimento

favoráveis ao pobres

Para a maioria dos países em desenvolvimento, a pobreza e a insegurança dos meios devida que a mesma gera apenas podem ser superadas mediante um crescimento rápidopermanente e a expansão do emprego formal. Em muitos casos em que o crescimentorural tem mais probabilidade de reduzir a pobreza mais rapidamente do que ocrescimento urbano, a agricultura – muitas vezes esquecida, nas últimas décadas, aoprestar aconselhamento sobre políticas – deve receber um apoio acrescido, nomeada-mente a favor dos pequenos agricultores. No entanto, numa altura em que o ritmogeral de urbanização está a aumentar, também é necessário incentivar a indústriatransformadora de trabalho intensivo e o sector dos serviços, caso se pretenda, efectiva-mente, acabar com a pobreza. Tal como têm demonstrado os casos de ocorrência de catástrofes naturais e de conflitos civis, a diversificação económica continua a ser umdos meios mais eficazes de protecção contra a insegurança.

As políticas macroeconómicas favoráveis aos pobres devem certamente serincluídas no conjunto de medidas adoptadas para combater níveis de insegurançacrónicos. Em muitos países em desenvolvimento, onde a agricultura continua a ser a principal fonte de rendimento e de receitas de exportação, as políticas devem visar a gestão dos “ciclos dos produtos de base”, já que estes, quando em baixa, tendem a afectar principalmente os pobres. Os fundos de estabilização terão um papelimportante a desempenhar neste contexto.

As taxas de câmbio competitivas e estáveis, bem como taxas de juro reais baixase estáveis, devem igualmente fazer parte da panóplia de medidas, o que muitas vezesexige uma liberalização diferida das contas de capital e uma utilização ponderada doscontrolos de capitais. A existência de receitas fiscais estáveis também é essencial,especialmente para colmatar as lacunas de infra-estruturas que constituem umobstáculo importante ao crescimento na maioria dos países pobres.

Financiamentos e seguros para os pobres

As fontes de financiamento inovadoras têm um papel importante a desempenhar naluta contra o duplo problema da pobreza e da insegurança. Nos últimos anos, osmicrofinanciamentos tornaram-se a política preferida – especialmente entre a comu-nidade de doadores – para incentivar o espírito empresarial e combater a pobreza. O interesse inicial pelo microcrédito expandiu-se, passando a incluir as micropoupançase os micro-seguros. Isto tem tido alguns resultados sociais positivos, especialmente noque se refere a atenuar a pobreza entre as mulheres. Estas actividades continuam,

World Economic and Social Survey 2008xxvi

porém, a constituir uma parte muito pequena do sector financeiro na maioria dospaíses, não sendo suficientes, em muitos casos, para gerar uma quantidade significativade emprego produtivo. Por conseguinte, as comunidades mais pobres continuam a servulneráveis aos choques sistémicos. Os governos devem, portanto, examinar atenta-mente a situação, a fim de determinar se os subsídios utilizados para apoiar estesregimes serão a melhor forma de combater a pobreza ou se haverá outras estratégias deatenuação e adaptação susceptíveis de produzir resultados mais satisfatórios.

Protecção social

As estratégias de protecção social assumem formas diversas. Vão desde programas deprestações sociais condicionais (workfare), que já existem em muitos países há bastantetempo, até programas de transferências de dinheiro, que se tornaram popularesrecentemente. Embora, em grande medida, estes programas tenham sido inicialmentelançados e utilizados como medidas ex post para ajudar as pessoas afectadas pelos efeitosde períodos de abrandamento económico, nos últimos anos têm vindo a ser utilizadoscada vez mais como medidas ex ante destinadas a reduzir a exposição dos pobres à insegurança. Por exemplo, a Índia adoptou recentemente um regime de prestaçõessociais condicionais que garante 100 dias de emprego por ano a todas as pessoas quedesejem participar – um exemplo de um caso em que este tipo de regime deixa de seruma medida temporária após um choque económico, para se tornar um regime de emprego permanente semi-formal.

Um outro exemplo da transformação de medidas ex post em medidas ex ante sãoos programas de transferências de dinheiro utilizados para promover objectivos dedesenvolvimento específicos, tais como fazer as crianças frequentar a escola oupromover a utilização de serviços de saúde. Tal como o apoio orçamental se tornouuma forma corrente de conceder ajuda ao nível macroeconómico, as prestações emdinheiro também se tornaram uma forma mais comum de conceder protecção social ao nível do agregado familiar.

Uma velha questão no que se refere à concepção e execução deste tipo demedidas é se estas deverão ser adoptadas como políticas universais ou como políticasorientadas especificamente para os pobres. Embora a tendência dos últimos anos vá nosentido desta última abordagem, ainda não se conseguiu alcançar o equilíbrio certo. De um modo geral, os sistemas universais produzem melhores resultados em termos de eliminação da pobreza, pois implicam uma melhor distribuição do rendimento(potencialmente favorável ao crescimento), são uma solução politicamente maisatraente – sobretudo se contarem com o apoio da classe média –, e trazem claramentealgumas vantagens administrativas e económicas.

xxviiSíntese

De volta a uma óptica multilateral

A mensagem simples que o relatório deste ano transmite é que os mercados não podemficar entregues a si mesmos, caso se pretenda garantir os níveis adequados e desejadosde segurança económica. Isto não deve, porém, ser entendido como um desejo depromover o abandono das forças do mercado, pois aquilo que se pretende é,efectivamente, fazer com que a segurança e a coesão sejam o motor da criatividadegerada por essas forças. A combinação de regulamentação, atenuação, protecção e ajudahumanitária que é necessária dependerá do tipo de ameaças a superar e das capacidadese recursos locais que se poderão mobilizar, bem como das preferências e escolhas locais.No entanto, ao procurar-se fazer face ao tipo de choques sistémicos em análise, é provável que a comunidade internacional tenha um papel especialmente importante a desempenhar.

Para reforçar esse papel, o que é necessário não é tanto inventar novasmodalidades, mas sim voltar aos princípios do multilateralismo, que foram prematu-ramente abandonados devido a um fé injustificada nas forças de auto-regulação domercado. Esses princípios foram definidos numa altura em que os decisores políticoscompreendiam melhor do que hoje as ameaças à segurança decorrentes de umaeconomia mundial caracterizada pela interdependência. A comunidade internacionaldeve considerar:

• Uma renovação das instituições de Bretton Woods. Tal como aconteceu nos anosentre as duas guerras, deixar a gestão dos ciclos entregue à flexibilidade dosmercados de trabalho e à independência dos bancos centrais não está a produzirbons resultados. Visar exclusivamente a estabilidade dos preços não tem permitidoimpedir a ocorrência de ciclos de expansão/colapso económico centrados no valordos activos, e, simultaneamente, retirou da esfera da política económica os objec-tivos do emprego e de um equilíbrio salutar entre o crescimento dos salários e daprodutividade. É necessário reabilitar as medidas macroeconómicas anticíclicas e aregulamentação financeira. Isto significa que a arquitectura financeira internacionalnão pode continuar a estruturar-se em torno do princípio da não intervenção, queestendeu ao mundo inteiro o império dos mercados financeiros, sem que fossemcriadas normas, recursos e regulamentos de âmbito igualmente mundial. Há quecolmatar urgentemente esta lacuna.

• O processo deve iniciar-se com uma revisão do nível e das condições de acesso dospaíses em desenvolvimento aos recursos do FMI, e, especialmente aos mecanismos definanciamento compensatório destinados a ajudá-los a fazer face a choques externos.É igualmente importante eliminar a tendência para impor à política macroeconómicacondicionalismos pró-cíclicos cada vez mais rigorosos Será necessário também exerceruma vigilância multilateral reforçada, de modo a tomar em consideração os efeitossecundários internacionais das políticas económicas nacionais.

• Um reexame dos princípios do Plano Marshall. É necessária uma organizaçãomais eficaz da ajuda, especialmente a destinada aos países vulneráveis aos efeitos das

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catástrofes naturais e para os países que estão a recuperar de conflitos. Alcançar ameta há muito estabelecida de elevar a APD para 0,7% do produto interno brutodos membros do CAD é importante, mas não será suficiente. As modalidadesactuais carecem de um quadro adequado de princípios organizadores, susceptível deincentivar e complementar os esforços nacionais de mobilização de recursos, umquadro compatível com as prioridades e capacidades locais e que apoie asprioridades e estratégia de desenvolvimento do governo do país beneficiário.

• Os critérios de aferição da eficácia da ajuda foram estabelecidos há mais de 60 anospelo Plano Marshall e, embora os tempos tenham mudado e os problemas sejamoutros, os princípios então utilizados para coordenar os planos de desenvolvimentonacional com a ajuda internacional continuam a ser válidos. Entre estes inclui-se,em especial, a concessão de apoio antecipado e generoso às prioridades do desenvol-vimento nacional, um apoio desligado de condicionalismos excessivos e deexigências impostos pelos doadores e que tenha devidamente em conta as limitaçõese sensibilidades nacionais.

• Um New Deal mundial. À semelhança da atenção que se tem vindo a prestar aoPlano Marshall, a ideia de um “new deal” também passou a fazer parte do debateactual sobre as políticas de desenvolvimento. A recente crise alimentar levou o Banco Mundial a pedir um novo acordo sobre a política alimentar mundial. A acção das forças do mercado deve, portanto, ser alargada mediante uma maiorliberalização do comércio agrícola e, ao mesmo tempo, devem ser concebidosmecanismos de financiamento compensatório e redes de segurança social paraajudar os importadores de produtos alimentares. No entanto, estas recomendaçõesnão dão destaque suficiente a alguns dos elementos principais do New Dealconcebido pelo Presidente Roosevelt para responder à Grande Depressão, especial-mente, os mecanismos que foram criados tendo em vista a expansão e uma gestãomelhor dos mercados, e as medidas de redistribuição destinadas a promover umamelhor repartição dos encargos decorrentes de choques económicos. Até que pontoesta estratégia de redistribuição pode ser levada com vista a reequilibrar aglobalização e impedir consequências potencialmente adversas é uma questão quepermanece em aberto. Uma hipótese consiste em garantir um rendimento de basemínimo sob a forma de subsídio a todos os agregados familiares, o que retoma umaideia já apresentada no World Economic and Social Survey 2007, onde se propunhauma pensão de base. Este tipo de medidas envolve toda a espécie de complicações e dificuldades. E perguntar a que nível e com que recursos poderiam ser concre-tizadas no quadro de uma estratégia de segurança mais vasta é uma questãopuramente teórica. Mesmo assim, há precedentes interessantes: o estado do Alascatem vindo a aplicar uma medida deste tipo, desde o princípio da década de 1980, e tem havido iniciativas semelhantes noutros locais. Mais recentemente, organismosdas Nações Unidas começaram a examinar o conceito de um conjunto de condiçõessociais mínimas aplicável a nível mundial (“global social floor”), destinado a assegurar um nível de segurança mínimo, em conformidade com os princípios da

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Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isto serve para lembrar que, nummundo interdependente, a coesão social não é um luxo, mas antes umacomponente necessária de um sistema saudável e vibrante.

• No contexto de insegurança económica e política crescente que caracterizou aEuropa no período entre as duas guerras, John Maynard Keynes apelou a “novaspolíticas e novos instrumentos destinados a adaptar e controlar o funcionamentodas forças económicas, de modo a não interferirem de uma forma intolerável comas ideias contemporâneas sobre aquilo que é apropriado fazer para bem daestabilidade social e da justiça social”. Estas palavras continuam a ser actuais hoje. A responsabilidade pela escolha e combinação de políticas necessárias para garantira prosperidade, estabilidade e justiça continua, evidentemente, a recair sobre asinstituições e os públicos nacionais, mas, num mundo cada vez mais interdepen-dente e num planeta frágil, construir uma casa mais segura é uma empresaverdadeiramente internacional.

Sha ZukangSecretário-Geral Adjunto das Nações Unidas

para os Assuntos Económicos e Sociais

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