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I i I ! . it . ;! ~; II ,.: ,: ,., I' .1 XLI OAMORPURO " ROBERT MERRIHEW ADAMS Robert Merrihew Adams, "Pure Love", em Journal of Religious Ethics 8 (1980), pp, 88-99. Copyright © Journal of Religious Ethics, Inc., publicado por Blackwell Publishers, Oxford. Num manual tipico de ensinamentos da Igreja Cat6lica Romana encontramos a afu- Ha urn estado habitual de amor a Deus, que e pura caridade sem a mistura do motivo do interesse pessoal. Nem 0 medo de castigo nem 0 desejo de recompensas tern qualquer interven<;ao aqui. Deus ja nao e amado por causa do merito, nem por causa da perfei<;ao, nem por causa da felicidade que encontramos em ama-Io. (Denzinger, 1911: par. 1327) Nao e uma surpresa encontrar esta proposi<;ao nurn compendio de cren<;ascristas. 0 que e surpreendente e que isto nao esta aqui para ser endossado mas para ser condenado como «irresponsavel, escandaloso, mal sonante, ofensivo para ouvidos piedosos, pernicioso na , pratica», ou «mesmo ... errado». Trata-se de uma cita<;aobastante pertinente da Explanation of the Maxims of the Saints Concerning the Interior Life, de Fenelon!, e e a primeira das proposi<;oes daquele livro que foram condenadas pelo Papa Inocencio XII em 1699 no seguimento da famosa controversia entre Fenelon e Bossuet. Nao e minha inten<;ao contar aqui a hist6ria ou destrin<;ar entre 0 que esta certo ou en-ado nas consequencias daquela controversia dos contemplativos, Fenelon chama-me a aten<;ao porque fornece uma forma extrema de urn ideal de arnor desinteressado que tern atraido os cristaos ern muitos sitios e em muitos tempos. Os ideais, tal como os metais, revelam algumas das suas propriedades muito melhor quando esticados ou prensados; e acredito que meditar :. sobre as opinioes de Fenelon pode lan<;ar luz sobre as rela<;oes entre 0 arnor e as varias . especies de preocupa<;oes pessoais. Fenelon, 1697. Cito sempre esta primeira edi~ao. Aedi~ao critica (Fenelon, 1911)apresenta urn texto revisto feito mas nao publicado por Fenelon, apesar da 1.' edi~ao poder ser reconstruida a partir da documenta~ao de Cherel. A 1.' edi~ao parece-me ser 0 documento mais importante. Deixei que a minha tradu~ao fosse influenciada, em bastantes casos, pela linguagem de uma tradu~ao inglesa contemporanea bastante boa, que existe em duas edi~6es bastante diferentes (e paginadas de maneira diferente) (The Maxims of the Saints Explained, conceming the Interior Life.londres: H. Rhodes, 1698 e Londres: G. Thompson, R. Dampier, W.Manson e J. Bland, sem data). 681

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    XLI

    OAMORPURO"

    ROBERT MERRIHEW ADAMS

    Robert Merrihew Adams, "Pure Love", em Journal of Religious Ethics 8 (1980),pp, 88-99. Copyright Journal of Religious Ethics, Inc., publicado por BlackwellPublishers, Oxford.

    Num manual tipico de ensinamentos da Igreja Cat6lica Romana encontramos a afu-

    Ha urn estado habitual de amor a Deus, que e pura caridade sem a mistura domotivo do interesse pessoal. Nem 0medo de castigo nem 0 desejo de recompensas ternqualquer interven

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    " I',, ,

    SANTA INDIFERENC;A

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    que se cumpta 0 de Deus. A consequencia logica da tese tinha ja sido rigorosamentepor Sao Francisco de Sales (1~69: 770; Livro IX, cap. 4; parcial mente citado por

    Fenelon, 1697: 56).

    Em resumo, 0 born prazer de Deus e 0 objectiv~ supremo da alma indiferente.Onde quer que.o veja,ela corre para a fragrancia dos seus perfumes e procura sem-pre 0 lugar onde mais houver, sem pensar em nada mais ... [A pessoa indiferente]preferiria ter 0 inferno com a vontade de Deus do que 0 paraiso sem a vontade deDeus - sim, ria verdade preferiria '0 inferno ao paraiso se soubesse que havia urn poucomais de prazer divino no primeiro do que no ultimo; de maneira que (para imaginarqualquer coisa de impossivel) se soubesse que a sua condena

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    ALGUMAS OBJECC::OES

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    teoria etica secular, incluindo a forma mais rigorosa do utilitarismo. Mas 0 meuprincipal neste trabalho e demonstrar que nao tern lugar numa teoria de Amor Cristao.

    sua gloria. (ibid.: 26f). Entao yOU querer aquilo que realmente existe e que eu sei queo maior de todos os meus intere.sses, sem que nenhum motivo interessado me decida

    a isso (ibid.: 46).A medida que a controversia prosseguia, Fenelon (1698: 12) acrescentou quena santa indiferen~a desejariamos ~ nos sa propria salva~ao precisamente pela razao de sero nosso bem, uma vez que e por essa razao que Deus 0 quer e para 0 qual nos ordena paratambem 0 querermos. Portanto ... precisamente pel a razao de ser 0 nosso bem, faz realmentemover e excitar a vontade do homem na esperan~a da vista intuitiva de Deus. Mas se, nesteassunto, a alma indiferente deseja a sua salva~ao por ser 0 seu proprio bem apenas porqueDeus 0 deseja - ela so 0 pretende de modo a que os seus desejos sejam satisfeitos.

    A alma indiferente pode querer, condicionalmente, ser salva se Deus 0 quiser. E, acredi-lando que Deus realmente 0 quer, consegue separar a consequencia e querer ser salva, umavez que Deus assim 0 quer. Mas e dificil ver como e que ela pode querer que Deus queira a sua

    " salva~ao, porque dificilmente quereria que Deus quisesse a sua salva~ao apenas para cumprira sua vontade. Nao descobri um unico lugar em que Fenelon explicitamente chegue a estaconclusao. Provavelmente pare ceria demolidora, uma vez que 0 desejo que iria excluir pareceser central para muito da pie dade crista e da ora~ao. Mas, apesar da estranheza desta conse-quencia da posi~ao de Fenelon, nao penso que ele exclua alguma coisa que seja importanteser mantida na etica crista.

    Dma das primeiras objec~oes as oplilloes de Fenelon que nos podeocorrer e que 0 estado da santa indiferen~a, tal como ele 0 des creve, e t'~"~V"Vh'~C1.lllenlimpossive!. Poderiamos realmente desejar nada, por si so, excepto que a vontade de Deusfeita? Talveznao; mas devern os ver que a exclusao de Fenelon dos desejos de interessedo estado de amor puro nao era tao completa como poderia parecer das airma~oes citadasagora. Porque, te~do dito que a alma indiferente ... deixa de ter qualquer desejo in .ele acrescenta, E verdade que the resta ainda alguma inclina~ao involuntaria e aversoessubmete [a vontade de Deus]; mas ja nao tem desejos voluntarios e deliberados no seuinteresse, excepto naquelas ocasioes em que nao coopera fielmente com todas as suas(Fenelon, 1697: 40f). Ha aqui uma enfase no voluntario como a unica un~aoimportante da alma que e congenial com a tradi~ao dentro da qual Fenelon esta aOs desejos voluntarios e deliberados, digo eu, sao escolhas condicionais e .inten~oes e resolu~oes. Estes podem existir na alma indiferente, segundo Fenelon,medida em que derivarn de uma decisao que, em qualquer possivel (ou mesmo 'mr,nN':"_situa~ao, ela escolheria aquilo que melhor correspondesse a vontade de Deus. Asinvoluntarias e as aversoes, por outro lado - bern como os desejos que sabemos quenao por decidirmos sobre eles mas porque os sentimos - sao encarados comoposto de comando da alma a partir do exterior, por assim dizer, e podem ser depessoal mesmo numa alma perfeitamente indiferente, desde que sejarn controlados e naosam influenciar qualquer escolha. A alma indiferente tera normalmente, por exemplo,uma aversao natural involuntaria, de interesse proprio, a doen~a fisica como umadeliberada para fazer, geralmente, tudo 0 que seja necessario para evitar ou curar afisica. Mas a inten~ao sera baseada na cren~a de que Deus nos daordem para tratarmos, .nossa saude e nao sera minimarnente influenciado pela aversao. Est,a separa~ao extremao impulso e a vontade choca-me como irrealista e, simultanearnente, indesejavel, mas naoagora discutir 0 assunto. Quando atribuo a Fenelon opinioes sobre desejos, devem serdid as como referentes a desejos voluntcirios, caso nao haja indica~ao em contrario.

    Estarei rna is preocupado com uma serie de objec~oes em que os adversarios deafirmam que as suas opinioes acabariam por excluir do ideal cristao algumas das maistantes virtudes cristas - principalmente a esperan~a, penitencia, gratidao e mesmo 0de amar a Deus. Rebentou uma das mais ferozes controversias acerca da virtude teologicaesperan~a. Porque ele defendeu que ate a salva~ao, ou felicidade eterna, nao e desejadadesejo pessoal num estado de amor puro, Fenelon foi acusado de nao deixar espa~oesta virtude no mais elevado estado da vida crista neste mundo; e sofreu para seda acusa~ao. A alma indiferente ou completamente desinteressada, insistia ele,esperan~ada nil sua propria salva~ao. Com esperan~a vai querer ser salva. Mas isto nao .fugir da perfei~ao do seu desinteresse, nem um regresso ao motivo do interessePorque 0 arnor mais puro nunca nos impede de querer e faz mesmo com quepositivamente todas as coisas que Deus quer que queiramos (Fenelon, 1697: 44). Quemque ama com amor puro sem qualquer mistura de interesse proprio ... quer a felicidadesi, apenas porque sabe que Deus assim 0 quer e que quer que cada um de nos 0 deve

    PREOCUPAc::Ao PROPRIA, INTERESSE PROPRIOEO DESEJO DE AMAR A DEUS

    Os adversarios de Fenelon acusaram-no de que ele nem sequer tinha a propria caridadecomo uma virtude a ser procurada (Noailles et al., 1698: 224). Eles debrw;aram-se muito

    . menos sobre esta objec~ao do que na outra sobre a esperan~a, mas nesta atingiram um pontomuilo mais sensivel na posi~ao de Fenelon - urn ponto em que acredito que ele proprio foilevado a inconsistencia. Fenelon herdou de sao Francisco de Sales uma forte suspeita contraas desejos, em que, em ultima analise, procuramos a nossa propria virtude ou perfei~ao oumesmo 0 nosso amor por Deus. Sao Francisco de Sales (1969: 785, Livro IX, cap. 9; d. p. 1549(l.~tiragem)) tinha falado do perigo de amarmos 0 nosso amor a Deus em vez de amarmosa Deus. E Fenelon (1697: 10f) declarava que na pura caridade Deus deixa de ser amado porcausa do merito, nao por causa da perfei~ao ... que se descobre ao ama-Io. Contudo, certa-mente que tambem pensararn que deviamos querer ser virtuosos e que 0 principal ponto da

    : virtude que devemos desejar e amar Deus com caridade.A uruca maneira de reconciliar estas preocupa~oes que e consistente com a tese geral de

    que a uruca coisa que e desejada em si mesma no arnor puro e que a vontade de Deus seja feila,e dizer que no amor puro a alma quer realmente arnar a Deus, mas apenas porque (tal comoacredita) Deus quer que 0 amemos. Contudo Fenelon nao estava realmente preparado paraaceitar qualquer consequencia desta opiniao, tal como se pode ver na maneira como tratou (a)o desejo de que seja feita a vontade de Deus e (b) 0 desejo que eu arne e obede~a a Deus. Pode-mos supor que estes desejos nunca poderiam opor-se urn ao outro. Mas esse conflilo parece,pelo menos, pensavel. Fenelon aceita a distin~ao entre a vontade mal1ifestada de Deus, que nosfoi inicialmente revelada nos seus mandarnentos e conselhos, que e frequentemente violada,eo seu bom prazer, contrario ao qual nada acontece. Nao e apenas a vontade manifesta de Deusmas 0 seu born prazer que a alma indiferente quer que seja cumprido. Imaginemos que era 0

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    born prazer de Deus qLle0 meu cora~ao fosse endurecido de modo a que eu 0 odiasse ebedecesse a sua vontade manifestada. Nesse caso pareceria que 0 meu odio e desosao aquilo que Deus realmente queria, em vez do amar e da obediencia que ordena.se 0meu cara~ao esta em santa indiferen~a, nao deveria eu desejar, condicionalmente, odiar.desobedecer a Deus se fosse esse 0 sell born prazer?

    A primeira resposta de Fenelon e que a suposi~ao de que Deus deseja activamentemeu pecado e impossive!. Pecados que acontecem, embora nao contrarios ao born prazer.Deus, nao sao queridos mas apenas perrnitidos par Deus, segundo a teologia de Fenelon'vontade permissiva de Deus nao e apresentada como uma regra nem mesmo para a Jindiferente (Fenelon, 1697: art. XVIII, True). Contudo Fenelon exige da alma indiferentedesejo condicional a respeito de outra suposi~ao impossivel - a suposi~ao, .de que Deus a atormentaria para sempre no inferno apesar de ela 0 amar com puroNao vejo qualquer boa razao (ou na verdade qualquer moralmente toleravel) paraque aquela suposi~ao e menos impossivel do que a de Deus querer que eu 0 odeiedesobede~a. Portanto, se vamos ter preferencias condicionais sobre suposi~6es .pareceria que a alma indiferente devia querer poder odiar e desobedecer a Deus se esseo seu born prazer.

    Mas Fenelon rejeita veementemente esse tipo de desejo. Isto e claramente explicitoforma como trata os ultimos julgamentos em que uma alma indiferente faz urnabsoluto ou incondicional do sell proprio interesse na eternidade. Mesmo nesse caso, ele

    A alma ama a Deus da maneira mais pura de sempre. Longe de consentirtivamente odia-Io, nao consente, nem mesmo indirectamente, deixar por urnmomenta de 0 amar nem diminuir, no minimo que seja, 0 seu amor, nem alguma .levan tar voluntariamente barreiras ao aumento desse amor, nem cometerfalta, nem mesmo uma falta venial. (ibid.: 91).

    Seria blasfemico dizer que uma alma em dificuldades pode consentir odiar DeusDeus quer que 0 fa~a; ou que possa consentir em nunca mais amar Deus porque ele jaquer ser amado por ela; ou que possa voluntariamente lirnitar 0 seu amor porque Deusque 0 fa~a; ou que possa violar a sua lei porque Deus quer que 0 fa~a (ibid.: 93f).

    Mesmo urn desejo condicional de odiar Deus se ele 0 quisesse, parece nao serao dizer que a alma indiferente nao consente, nem mesmo indirectamente acabar,ou limitar 0 seu amor a Deus. E, no decorrer desta controversia com Bossuet, Fenelon .mou explicitamente que 0 sacrificio condicional apresentado por Sao Francisco de Sales e Ul)lsacriHcio da felicidade supernatural (que consiste na eterna ruptura de uma visao intuitiva d~Deus; acompanhada por todas as dadivas de corpo e alma), mas nao e urn sacriHcio doque devemosnecessariamente a Deus em cada momento (Fenelon, 1838a: 89, Letter V,cf. 1838b: 134, Letter III, 5).

    Ha assim uma importante diferen~a entre 0 tratamento que Fenelon faz de (b), 0de que eu arne e obede~a a Deus e 0 seutratamento de (c), 0 desejo de que eu seja felizvez de eternamente miseravel, se tiver caridade. E impossivel que Deus queira 0 contra rio(b) ou de (c), de acordo com Fenelon. Contudo, ele insiste que, se 0 meu amor for puro,poderia desejar, condicionalmente, ser eternamente miseravel, sem deixar de ter caridade,Deus 0 quisesse; mas nega que eu desejasse condicionalmente odiar ou desobedecer aou mesmo diminuir 0 meu amor por ele, se Deus 0 quisesse. Esta diferen~a nos desejosdicionais da alma em amor puro podem ser tidos em conta apenas partindo do principio

    alma tern desejos (b) independentemente de (a), 0 desejo que seja feita a vontade de Deus.se eu desejar amar e obedecer a peus apenas para que a sua vontade fosse feita, pare-

    ceriaque eu queria deixar de 0 amar e de lhe obedecer se ele 0 quisesse. Se eu nao devesse tereSsedesejo condicional, entao, presumivelmente, 0 meu am or e obediencia a Deus e qualquercoisa que eu desejaria, pelo menos em parte, por si mesma, se eu fosse urn cristao perfeito.

    Poderiamos tentar evitar esta conclusao supondo que 0 desejo (b) devia ser derivado de(d),0 desejo de que tantas pessoas quanta possivel amam e obedecem a Deus. Deste modo eu'nao devia desejar 0 meu proprio amor por Deus, em si mesmo, mas apenas como urn meiode satisfazer (d). Mas este passo nao e sugerido por Fenelon e teria de 0 levar a dizer que eutenho de ter urn desejo condicional para odiar Deus se isso tivesse como resultado que maispessoas 0 amariam e lhe obedeceriam. Mas seguramente que ele recusaria dizer isso e por-tanto man tern a conc1usao de que eu amar e obedecer a Deus e algo que eu devo querer, pelomenos parcialmente, por si mesmo.

    Mas se parte daquilo que you desejar por si mesmo nao e so que a vontade de Deus sejafeita mas tambem que eu arne e obede~a a Deus, entao parece-me que 0 meu amor por elenao pode ser completamente desinteressado; tern de haver nele urn elemento de preocupa~ao.pessoa!. Deste modo Fenelon parece obrigado a admitir urn elemento de preocupa~ao propria:mes~o num amor perfeito por Deus.

    E evidente que 0 facto de mesmo Fenelon nao ter conseguido resolver de forma consis-tente excluir todas as atitudes de preocupa~ao pessoal do estado da santa indiferen~a naoprova de que existe urn lugar certo para preocupa~ao propria no amor puro ou perfeito; mascreio que de facto existe. Nao importa, literalmente nao importa nada, se eu serei aquele queama ou odeia Deus, desde que a vontade de Deus seja feita, nao seria uma atitude de amorpara com Deus da minha parte, mas de alguma coisa muito mais impessoaP.

    Talvez Fenelon nao ficasse demasiado perturb ado com isto. Aquilo em que ele queriasobretudo insistir era no ideal de urn amor por Deus completamente livre de interesse pessoal.Desejar por desejar, estar relacionado de qualquer forma com outra pessoa e uma preocupa-~aopessoal, no sentido de que esta, em Ultima analise, a procura de uma situa~ao que essen-cialmente nos diz respeito. Suspeito que Fenelon diria que, enquanto 0 desejo de ser alguemque ama e obedece a Deus e pessoalmente empenhado, neste senti do lato, nao e pessoalmenteinteressado no sentido que lhe diz respeito.

    Esta resposta tern alguma plausibilidade. Ao querer amar ou servir a Deus, ou a outra.pessoa, nao estamos necessariamente a procura da nossa propria vantagem. Pode ser partedo nosso desejo querer desistir de alguma coisa, ou fazer algum sacrificio da nossa propriavantagem, pelo bern amado. Fenelon esta particularmente interessado num desejo de amare obedecer a Deus ainda que, para isso, seja para sempre miserave!' Esses desejos dizem, emparte, respeito aquele que deseja, mas seria estranho, em muitos casos, chamar-lhes pessoal-mente interessados. Isto sugere que nem todos os desejos pessoalmente empenhados sao deinteresse proprio; 0 interesse proprio e uma especie de empenhamento proprio.

    Que especie, contudo, nao e facil de dizer. Ha talvez urn sentido lato em que e do inte-resse proprio desejar qualquer coisa em seu proprio prove ito. Mas em seu proprio proveito e

    2 Este argumento e uma objec~ao ao ideal da santa indiferen~a como nao se preocupando com coisa nenhumapor si mesma excepto que seja feita a vontade de Deus. Nao e tao claramente uma objec,ao aquilo a queFenelon chamou santa resigna,ao, em que se prefere a realiza,ao da vontade de Deus acima de todos osoutros fins, apesar de se desejar quaisquer outros fins por causa deles. Os sacriflcios condicionais sao umaconsequencia da santa resigna,ao bern como da santa indiferen~a e nao vou dar nenhuma opiniao sobreaquilo que Fenelon podera ter dito a respeito dos sacrificios condicionais.

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    ,menciona, Desejar a Giridade porque agrada a Deus nao e a unica alternativa a deseja-Ia paraprazer pessoal. 0 amor a Deus pode taIT\pem ser desejado, em si mesmo, como uma rela~aocom Deus; e acho que alguns aspectos da posic;ao de Sao francisco de Sales implicam quedevia ser desejado deste modo.

    (2) Outra caracterizac;ao da perv~rsao ternida por Sao Francisco de Sales e que em vez deamar este amor santo porque esta virado para Deus que e 0 amado, nos amamo-lo porque elevern de nos que somos quem arna (Sales, 1969: 785, Livro IX, cap. 9). De maneira mais viva,tal como escreveu nurn esboc;o anterior do seu Iratado:

    Quem nao ve que [nestaperversaol ja nao e Deus que encaro, mas de Deus virei--me para mim e que amo este amor porque e meu, nao porque e para Deus. (Sales,1969: 1550).

    uma expressao muito vaga e nenhuma referencia ou sentido lato de interesse proprio,me tenha ocorrido parece realrnente satisfatorio. Prefiro portanto utilizar interessenum sentido mais estrito. Historicamente, falar do interesse de l,lma pessoa e falarborn conjunto; uma situac;ao e do seu interesse se e apenas se for boa para ele, noque possa obter. Acho que isto esta bastante bern em concordancia com 0 uso quede interesse (interet). Podemos entao dizer que urn desejo e de interesse proprio emestrito ou ainda mais estreito, se e apenas se, for urn desejo em que, em ultima analise,mos como objectiyo 0 bern total. Butler (1970: 101, 104, sermao XI) adopta urn sentidosemelhante a este para interessado. (Quando falo de urn desejo ern que procuramos ell!am/lise urn fim ou urna condi~ao X, quero dizer urn desejo de X, parcialmente, pelo menos,,'seu beneficio). Mesmo este conceito mais estreito de interesse pessoal nao deixa de terblemas, uma vez que e duvidoso se alguem tern urn conceito satisfatorio do que e 0uma pessoa. Mas varnos ignorar esse problema naquilo que agora pretendemos. Falamosalguma confian~a ern algumas condi,,6es serem boas (ou mas) para uma pessoa no- quer estejamos ou nao com direito a essa confian"a.

    A posi"ao de Fenelon pode ser modificada, em termos desta distin~ao entrepropria e interesse proprio, corn 0 fun de a tornar consistente. Ele podia dizer que 0 arnortao devia ser completamente livre do desejo do interesse proprio, embora naolivre da preocupa~ao propria. Isto seria certamente uma modifica~ao das suas opini6esimedida em que envolve abandonar a tese de que quem tern caridade perfeita nada quer .si proprio excepto que seja feita a vontade de Deus. Mas acho que1a afirma"ao maismuito rna is plausivel do que a mais forte e e suficiente para explicar muito daquilo queIon queria dizer. ' ,

    Em particular, a suspeic;ao de sao Francisco de Sales e de Fenelon contra o,amor dode alguem por Deus pode ser interpretada como algo menos do que uma rejei~aodos desejos de preocupa~ao pessoal de arnar Deus. Isto pode ser feito, pelo menos, demaneiras.

    (1) De maneira totalmente obvia, Fenelon pode ainda consistentemente objectar aosjos em que 0 amor por Deus e desejado, nao por si mesmo mas como urn meio do bernDa mesma mane ira, Sao Francisco de Sales estava particularmente preocupado que sec;asse a valorizar 0 amor por Deus em proveito do prazer que se achava nisso. Quererpara si proprio nao e necessariamente urn motivo de interesse proprio, no sentidoassinalado antes; porque podemos procurar 0 nosso prazer sem procurar 0 bern total,ao fumar urn cigarro, comer urn gelado, coisas que acharnos que serao agradaveisprejudiciais. Mas parece ser consistente manter que nurna caridade perfeita, 0 nossoDeus devia ser desejado por si mesmo, mas que 0 nosso prazer, bern como 0 nossobern nao deviarn.

    Nao pretendo sugerir que Sao Francisco de Sales insiste nesta atitude explicita.fala no perigo de amarmos 0 nosso amor a Deus,

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    Mas a penitencia certarnente que e pessoalmente empenhada. Uma vez que tern acom 0 remorso e 0 remorso nao.e apenas lamentar aquela coisa rna que aconteceu; e tetpena especialmente grande de term os feito alguma coisa de errado, nos proprios. 0tipo de penitencia tern a ver com querer, por si mesmo, nao fazer mal. Na penitencianos podemos encarar como uma pessoa mais. Na medida em que a enfase, naFenelon, recai na "purificac;ao, dando a entender que na penitencia a nossa pr6priaou melhoramento religioso devia ser procurado como urn fim em si mesmo, osparece terem uma opiniao correcta sobre a penitencia. E uma opiniao que 0 pr6prioIon parece compartilhar, ao propor a justeza que amamos.-por ela mesma comomotive certo da pcnitencia. E isso exige a admissao da preocupac;ao pr6pria, emboranecessariamente do interesse pessoal, em relac;ao ao ideal cristao.

    Ate agora nao encontnimos qualquer virtude crista que exija interesse pessoal. Mastemos que considerar a gratidiio. Os opositores de Fenelon acusam-no de omitir a menc;ao:gratidao como urn motivo do amor a Deus (Noailles et aI., 1698: 252). Ele deu como .que a gratidao e util nas primeiras fases da vida espiritual, ajudando-nos aver e aperfeic;6es de Deus e diminuindo a concupiscencia e aumentando a grac;a;estadio mais perfeito, os actos de ... agradecimento tomam-se cada vez mais frequentes,isso e porque sao ordenados pela caridade (Fenelon, 1838b: 132, carta III, 2). Estanao consegue eliminar 0 problema. Qi.lando actos de agradecimento tern de ser ~V''''''HU,a\pela caridade - uma caridade que nao e motivada por beneficios recebidos (ibid.) - naohaver muita verdadeira gratidao.

    A primeira pergunta que se deve fazer e se a ocasiao da gratidao tern de ser algumaque seja boa para a pessoa grata e que deseja, em Llltima analise porque e born para ela.tamente que nao se pode dizer correctamente a qualquer pessoa que seja grata aqualquer boa acc;ao que pratique. Imaginemos que urn desconhecido arrisca a vida para'var uma crianc;a que nos e igualmente desconhecida. Por mais que admiremos 0 her6i, oumais forte que seja 0 nosso sentimento para com a crianc;a, seria estranl10 dizer quegratos ao her6i. Nao estamos suficientemente comprometidos no caso. Mas nao nTl'rl.

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    e fortemente desejada por ambas as partes, embora nenhuma delas acredite que sejapara qualquer delas. Talvez que, se realmente se amam, prefiram terminar a relac;ao;masnao altera 0 facto de que tern urn desejo pela relac;ao - urn desejo que nao e nem egoistaaltruista no sentido presente.

    Felizmente e mais usual nas relac;oes humanas que 0 amante acredite que a relac;aodeseja seria boa para ambos. Mas nao e normal que 0 amante deseje a relac;ao apenasacredita que seria boa para urn deles ou para ambos. Na verda de, se deseja a relac;aomaneira que nao teria qualquer interesse nela, se nao pensasse que seria benefica,duvidar que realmente arne. Eros nao esta baseado em ca1culos ou juizos de utilidade oubeneficio e precisa, portanto, pelo menos em parte, de escapar a classificac;ao de egoistade altruista. 0 erro, ao ten tar forc;ar 0 amor nurna dicotomia de egoismo e de altruismo eincapacidade em reconhecer urn desejo por uma re1ac;aoem si mesma como urn terceiro tipode desejo que nao e,apenas urna combinaC;ao ou consequencia do desejo pelo bern proprio .e'pelo bern do outro. E realmente este terceiro tipo de desejo - que e egoista mas nao noanteriormente explicado - que e 0 mais caraeteristico do Eros.

    Assim, a identificac;a;:>de Eros com desejo egoista para relac;oes pessoais esta errada;como a identificac;ao de Agape com a benevolencia. 0 ideal do amor cristao inclui naoa benevolencia mas tambem 0 desejo por determinados tipos de relac;ao pessoal, por elasmas. Se nao fosse assim, seria estranho chamar-lhe arnon>. E urn abuso da palavra arnOT:dizer que amamos uma pessoa ou qualquer outro objeeto, se nao nos importarmos, except6instrumentalmente, com a nossa relaC;ao com esse objeeto. Mesmo Sao Francisco de(1969:843, Livro X, cap. 10) dizia que se... houvesse uma bondade infinita ... com a qualpudessemos ter qualquer uniao ou comunicac;ao, certamente que a estimariarnos mais do quea nos proprios ... e ... poderiamos ter meros desejos de ser capazes de a amar; mas, em term(js.estritos, nao a amariamos, porque 0 amor tern a ver com a uniao. .

    Ao dizer que 0 amor tern a ver com preocupar-nos com a nossa relac;ao com 0 seu objecto,:.de uma maneira que a benevolencia nao 0 faz, penso numa vasta variedade de relac;oese nao .apenas nas relac;oes sociais intimas em que pens amos, em primeiro lugar, em relac;ao com. 'amor. Tomando urn exemplo, estreitarnente relacionado com as ideias de Fenelon: 0vai usualmente querer servir a pessoa amada - para satisfazer os seus desejos ou promover Q.'seu bem-estar. Pode pensar-se que a pessoa benevolente tambem quer servir, promovendo.a ."..felicidade do objecto da sua benevolencia. Mas isso nao e bern assim. A pessoa benevolent~;:.',:'"nao precisa de se preocupar com quem promove 0 bem-estar daquele a quem desejadesde que seja promovido. Mas para 0 amante ja nao e indiferente quem promove 0 bernpessoa arnada. Ele quer ser quem serve a pessoa amada - ou, pelo menos, uma dasque ofazem.

    Da mesma maneira, 0 arnante nao so deseja que a pessoa amada esteja livre de uet'~lOUAgape para urna atitude que incluiambos, pelo menos em casos ~picos. Porque fazemos isto? Acho uma hipotese tentadora 0facto do elemento central de Agape, 0 elemento que mantem 0 conceito unido, seja urn tipoagapico de Eros, Nurn caso exemplar de Agape 0 amante pretende urn determinado tipo derelac;ao com a pessoa amada. Essa relac;ao inclui benevolencia mutua. Assim, a benevolenciae desejada no agapico Eros. Desejar a benevolencia nao e a mesma coisa do que tHa, masexiste, de qualquer modo, uma afinidade entre a benevolencia e 0 Eros agapico que resulta danatureza deste.

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  • REFERENCIAS

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    XLII

    A POSSIBILIDADE DE INCARNA