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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS Departamento de Estudos Portugueses Dissertação de Mestrado em Literatura e Cultura dos Países Africanos de Expressão Portuguesa O universo oral na obra de ilha Gouto Maria Teresa Damásio Bento dos Sanfos 1996

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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Departamento de Estudos Portugueses

Dissertação de Mestrado em Literatura e Cultura

dos Países Africanos de Expressão Portuguesa

O universo oral na obra de ilha Gouto

Maria Teresa Damásio Bento dos Sanfos

1996

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UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

FACULDADE DF. CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ESTUDOS PORTUGUESES

O UMVLRSO ORAL NA OBRA DE MIA COITO

Maria Teresa Damásio Bento dos Santos

■( -X, ■:■•-•*"*■'

Dissertação de Mestrado em Literatura

e Cultura dos Países Africanos de Expressão Portuguesa.

apresentada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas

da Universidade Nova de Lisboa, sob a orientação do

Professor Doutor Lourenço do Rosário

1996

45294

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índice Pg-

Introdução 4

I Enquadramento Sócio-cultural da Sociedade Moçambicana 8

1.Valores Culturais na sociedade moçambicana 8

1.1. A diversidade 8

1.1.1.Os substratos 9

1.2. A oralidade e aesctita 12

1.2.1. A cristianização -13

1.2.2. As línguas africanas e o português 16

1 .3. Emergência e breve Panorama do Fenómeno Literário Moçambicano 1 7

II Atradição oral na Literatura escrita 28

I.A tradição oral na narrativa escrita28

2. As formas literárias da tradição oral 40

2.1. O conto oral na narrativa escrita 42

2.2. O provérbio na narrativa escrita 46

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I»...

III A tradição oral nas obras de Mia Couto 53

1. Analise temática das obras 53

1.1. Ciclo iniciático 54

1.1.1 O nascimento de gémeos 54

1.1.2. O crescimento 56

1.1.3. A morte 57

1.1.3.1. \ morte-transfonnaçào 60

1.1.3.2. A velhice 61

1.1.3.3. Os antepassados-dcuscs, senhores da chuva 63

1.1.3.4. Animais mágicos 67

1.1.4. O togo 75

1.1.4.1. A árvore-suicida 78

1.2. Ciclo mítico 82

1.2.1. O simbólico 82

1.2.2. As lendas 85

1.3. Ciclo Etnográfico 87

1.3.1. Olobolo 91

1.4. Práticas tnágico-religiosas 92

1.4.1.As Cerimonias 92

1.4.1. ,-\s mulheres e o feitiço 96

2. O provérbio na obra de Mia Couto 103

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INTRODUÇÃO

i

Surgidas num contexto de fragmentação cultural, c ainda condicionadas por

sistemas éticos e estéticos alienígenos1, as literaturas africanas de expressão

portuguesa começaram por investir em elementos que sustentassem a sua

diferença, ou seja. se por um lado se afirmaram como nacionais, desempenhando

um papel messiânico e profético na construção da realidade nacional, por outro

lado. interessava- lhes realçar a identidade africana.

É no âmbito dessa procura de identidade cultural, em que a literatura desempenha

um papel fulcral, que surgem conceitos como africanidade e afins, no caso que

nos interessa o de moçambicanidade.

Na jovem literatura moçambicana, fruto de uma realidade sócio-cultural e socio

linguística complexa e que procura os caminhos da sua definição, existe, nas obras

de alguns escritores, a procura de «um efeito de moçambicanidade».

Nesse processo de «construção de uma imagem de moçambicanidade»(Gilberto

Matusse). vários são os modelos literários presentes. Contudo, existe . sobretudo.

a opção de contornar a tradição europeia e assumir ideias e valores da tradição

oral africana.

Neste contexto, o presente estudo tem como finalidade a pesquisa de elementos da

tradição oral africana na obra de Mia Couto. A escolha deste autor prende-se ao

facto de se tratar de um exemplo representativo dessa atitude presente na fiecção

de uma nova geração pós-independência, que procura a síntese criativa entre os

modelos africano e europeu (entre outros), refundindo formas tradicionais numa

escrita adaptada às novas condições de comunicação.

1

Trigo. Salvam, Enstiios. de Literatura Comparada Afro-Lu.cn-Urus/leira. F.d. Viraa. Lisboa, s d. p.7-4

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Embora saibamos da existência de outros modelos literários que subjazem às

estratégias textuais adoptadas por este autor, por razões metodológicas apenas nos

deteremos naquelas que se enquadram no contributo da tradição oral africana.

Restringiremos ainda o objecto deste trabalho ao âmbito temático-estilístico e

ideológico, na busca dos elementos que assim concorrem para a definição de um

nacionalismo literário.

Tentaremos demonstrar, através da análise do conteúdo temático das obras a

sedução que o imaginário do conto oral exerce sobre o autor textual e o seu

discurso latente, e como num discurso de superfície ele assume uma perspectiva

de distanciação, num compromisso de modernidade.

Assim é que o presente trabalho está estruturado em três capítulos principais.

A primeira parte dedicamo-la a um breve enquadramento sócio-cultural da

sociedade moçambicana; tentaremos abordar a diversidade dos seus elementos

componentes, demonstrando a variedade de origens culturais, e como a tradição

oral tem um peso decisivo constituindo-se como matriz cultural dessa mesma

sociedade.

Debateremos ainda a esse propósito, algumas questões relacionadas com a

oralidade e a escrita, e de como esta se constitui um veículo capaz de incorporar a

tradição oral, tornando-se um instrumento de marca da identidade nacional.

Ao longo dessa parte, faremos a análise de alguns conceitos que irão servir-nos

como instrumentos terminológicos no resto do nosso trabalho, tais como o de

africanidade e moçambicanidade .

No segundo capítulo, dedicado à tradição oral na literatura escrita, através de uma

abordagem geral do problema, procederemos fundamentalmente a uma descrição

bibliográfica.Tentaremos ainda uma abordagem mais específica sobre as formas

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6

literárias do oral, trabalhando dois géneros, o conto e o provérbio. Faremos

também a contextualização dc tal problemática na literatura moçambicana.

No terceiro capítulo, dedicado ao estudo das obras, ocupar-nos-emos

essencialmente da análise de conteúdo das obras, efectuando um levantamento de

elementos textuais das obras cm análise, que coincidam com temas da tradição

oral. Interessa r-nos-á saber o modo como foram transfigurados, ou não. pelo

trabalho criativo estético do escritor e quais as estratégias de

distanciação/harmonização que o autor textual assume no seu discurso de

superfície para obter um compromisso de modernidade.

Para ser possível a comparação entre os valores da tradição oral e os elementos

textuais que neles se inspiraram, foi nossa intenção estudar algumas das

características da tradição oral de povos de norte a sul de Moçambique. Esses

elementos, citados ao longo do trabalho referem-se sobretudo aos povos Maconde,

Tonga, Ronga e Sena.

Partindo assim da teorização de diversos aspectos da cultura tradicional

moçambicana, faremos sempre que possível a análise comparativa entre esses

valores e a abordagem ficcional que deles faz Mia Couto.

Casos há em que apenas apresentamos os excertos retirados das obras por

verificarmos que existe uma total coincidência entre o que nos surge como

documento etno-histórico e a transposição que o escritor faz para o seu discurso

ficcional.

Não ignoraremos, contudo, que o texto literário não está constrangido à figuração

realista, antes, retira o seu significado da relação com o referente literário e as

palavras remetem, sobretudo, para o contexto cultural.

A metodologia que adoptámos para o estudo destas obras procura ser pragmática e

a nossa tarefa, em determinados passos, aproximar-se-á mais de um comentário

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7

do que uma análise de texto.Faremos, assim, uma leitura predominantemente de

tipo sócio-cultural. Recorreremos, no entanto, aos processos, já clássicos, da

análise estrutural e da semiótica, sem os quais os métodos temáticos como a

sóciocrítica ou a psicanálise não teriam fundamento epistemológico.

Julgamos fundamental para o nosso trabalho a noção de transtextualidade(Genette)

na procura de marcas da oralidade, em que se cruzam dialogismos vários, quer a

relação texto escrito e tradição oral, quer em outro tipo de intertextualidade

aflorada, a relação texto- real idade.

Os textos que iremos analisar, são os dois primeiros livros de contos e o

romance publicados pelo autor, respectivamente, Vozes Anoitecidas (VA) que é

composto por doze estórias; Cada Homem é uma raça (CHR) que contém onze

estórias.

No caso do romance. Terra Sonâmbula (TS), estrutura-se em vinte capítulos.

nove dos quais possuem essa designação, sendo intercalados por onze a que o

autor chama de cadernos (Cadernos de KindzuL Possuindo uma certa autonomia.

e um fio discursivo diferente, aparecem no conjunto através de um artifício

engendrado pelo autor: são encontrados e lidos pelo personagem da história

principal.

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X

I ENQUADRAMENTO SÓCIO-C l LTURAL DA SOCIEDADE MOÇAMBICANA

1. Valores Culturais na Sociedade Moçambicana

1.1 A diversidade

A realidade sócio-cultural moçambicana é bastante complexa. Os seus elementos

componentes apresentam origens distintas, embora difíceis de localizar, dado o processo de

eimalgamento que sc foi produzindo ao longo do tempo, que lhe incutem a marca da

diversidade. Na origem desta diversidade, está o complexo de contactos gerado no percurso

histórico, desde a época pré-colonial . até ã independência.

Assim, interessa-nos analisar alguns dados históricos e sócio-culturais, para sabermos da

razão da diversidade acima apontada: quais as componentes que a constituem e. ainda, qual

a importância da colonização no processo evolutivo, deste modo delineado.

Na verdade, embora mais adiante nos situemos no plano literário, torna-se importante

analisar, nas suas componentes, essa diversidade que constitui a origem matricial da

sociedade moçambicana.

Existe em Moçambique uma dicotomia cultural que representa dois mundos diferentes.

sendo um deles o universo cultural dos vários grupos étnicos, e outro que representa o

estilo de vida na cidade, onde a presença portuguesa sc fez sentir."

Segundo a tipologia de Heimer/ trata-se da sociedade central, que inclui os sectores

modernos da sociedade e do mundo tradicional, representado pelos grupos étnicos a que

poderiamos chamar o sector das sociedades tributárias. Esta proposta que. segundo J.

Venâncio, desprezaria a especificidade do tipo de colonização portuguesa, não sc

aplicando ao caso de Angola . talvez se aplicasse ao caso dc Moçambique.

Ora. como diz Ana Mafalda I cite : «Anteriormente e durante a época de colonização

houve contactos demorados e permanência de várias culturas, para alem da europeia (de

"'

Venâncio, J.C.. «Tradição, criou lismo e lnoratura nacional. Repensando a modernidade em Angola» in

Literatura versus sociedade. Ed. Vega, Lisboa. 1992. p.831

lleimerap. Venâncio, op.cit. p. 83

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9

manifestação predominantemente portuguesa, mas também britânica): outros mundos

culturais como o islâmico, e o oriental introduziram rupturas na primitiva estrutura

tradicional e clânica de Moçambique. Houve, pois. desde muito cedo uma manifesta

diversidade e cruzamento, quase nunca resolvidos de maneira harmónica, de fenómenos

culturais de origem vária»'. Factos a ter em conta para uma compreensão dei

heterogeneidade que define a literatura moçambicana.

1.1.1. Os substratos

Conforme nos diz A. Rita- ferreira . na origem dos chamados «grupos étnicos » há a

considerar que parte deles «estiveram claramente relacionados com unidades politicas de

maior ou menor dimensão, directa ou indirectamente afectadas pelo secular comércio

ultramarino com os navegadores asiáticos e europeus (...) »'

Este comércio com os

Asiáticos vai intcnsificar-se. cerca do ano 1000 d.C'.. assim como vai aumentar a

mobilidade demográfica, outro dos lactores apontado por Ri ta-Ferre ira. na estruturação

cultural e linguística dos vários grupos étnicos. Até ao século XVI, destaca-se a presença

dos navegadores e comerciantes árabes, persas e indianos que vão exercer a sua influência

quer a nível político, quer a nível económico e social.

Até ao século XIX. marcado pelas invasões Angunes. vários são os reinos que se

desenvolvem, gerando-se guerras, fenómenos migratórios e transformações várias, a nível

económico e social. Produto de diferentes experiências históricas distinguem-se assim

vários povos com características culturais distintas.

4

Leite. Ana Mafalda. «Aproximação á Moçambicanidade» in. Tempo, 26-5-1985. p.45*

Rita-Ferreira. A.. «Grupos e História Pré-Colonial de Moçambique» in: MuçambOjuc. -/./vetos Ja cultura

material. Instituio de Antropologia. Universidade de Coimbra. 1986. pp. 15-16. Segundo este auior. « o

advento dos primeiros clãs falando linguas proto-bantas», no actual território moçambicano, dá-se no inicio

da era cristã. Segundo as escavações, no âmbito da moderna arqueologia, pode saber-se que as populações da

Idade Antiga do Ferro. c. de 770 d.C, «nomeadamente as que se dispersavam entre o Zambeze e o Savc (...)

dominando as rotas até -\ antiga Sotala, já mantinham contactos com navegadores provenientes da Pérsia,

Arábia e India»''Rita-Ferreira. op. cit . p 16 Foi durante esse periodo que surgiram três grandes Estados, dominantes no

plano económico e cultural que teriam ramificações periféricas: o listado do grande Zimbabué que atingiu o

auge entre 1300 e 1450. situado no planalto enlre o Alio Limpopo e o Zambeze: o Estado de Butua- [.irua, a

ocidente e o Estado dos Mu tapas. Todos eles podem considerar-se sucessores do Grande Zimbabué que em

1500 já se encontrava em pleno declinio.

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II)

A. Rita-Ferreira ao lazer a descrição da cultura tradicional das várias etnias, destaca a zona

do vale do Zambeze, habitada por Senas e Podzos, já que esta região, desde sempre, foi

frequentada por povos exóticos como os Indonésios . os Persas, os Árabes e os

Portugueses. Nesta região se estabeleceu o regime dos Prazos da Coroa que também teve

responsabilideide no surgimento de alguns grupos.

Desde cedo que sc estabeleceram rotas comerciais entre o Golfo Pérsico, ei Africa Oriental,

a índia . a Indonésia, e a China.1* Navegadores e comerciantes árabes, persas, indianos e

chineses mantiveram uma importante actividade comercial, em contacto com as

populações do litoral e também do interior. Rita-Perrei ra faz a distinção entre dois

movimentos politico-culturais. vindos do Médio Oriente, sendo que «com o decorrer do

tempo, o de origem persa \eio a ser assimilado pelo dc origem árabe». Embora sejam

muitos os vestígios deixados por esses povos, foram, contudo, osPersas e os Árabes que

deixaram marcas mais profundas, nomeadamente, a islamização dos povos do litoral

Norte.

Os primeiros navegantes portugueses a chegar a Moçambique encontraram a costa leste

africana ocupada por uma cadeia de estabelecimentos swahili-árabes. jáafricanizados, mas

bem orgulhosos da sua origem islâmica .

Os esforços dos portugueses para monopolizar o comércio local, expulsando os mercadores

svvahili, revelaram-se sempre ditkcis de conseguir, devido à secular implantação daqueles

na costa africana. Além da sua melhor integração, eram em grande número, o que

contrastava com os poucos efectivos portugueses. Tornavam-se. desde logo. perigosos

concorrentes comerciais, mantendo um intercâmbio secular com a Arábia, Golfo Pérsico e

Índia.

7

Rita-Ferreira, A.. Povos dc Moçambique História _• ( 'ultttra, \2d. Afrontamento. Porto. 1985. Considera-as

em grandes grupos: ao sul do Save. Tsonga. Chope e I.i- longa: a norte do Zambeze, o grupo Marave. o

grupo Makua-Lomwe, o grupo Ajaua e « grupo Maconde.

Idem. p. 25

Idem, p. .ro10Cf. Boxer. C, Relações Raciais na Império Colonial l>t>rtit£tu's, Ed. Afrontamento. Porto, 1988. pp. 45-

46. De acordo com este autor, as instruções do rei D Manuel para o vice-rei da índia, era que fossem

aprisionados todos os comerciantes maometanos de Sofala. Coniinuava-se assim a cruzada portuguesa

medieval, desia ve/ no Índico, maniendo-sc essa politica até mais tarde.

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] I

No que respeita às relações sociais entre as duas comunidades, a cristã e a muçulmana,

variaram de região para região, sendo mais ou menos amigáveis consoante as necessidades.

De referir que o clero católico sempre tentou impedir que os dois grupos se aproximassem

e quando detectava indícios dessa realidade, intervinha energicamente.

Por outro lado. a concorrência muçulmana intrometeu-se no espírito de missão inicial dos

portugueses. Basta lembrar que a morte do missionário único da primeira expedição

missionária se deu devido às insinuações dos muçulmanos de que ele seria um feiticeiro

com intenções malévolas.

No século XVII (1670). os Árabes chegaram a atacar Moçambique c anles do fim do século

expulsaram os Portugueses de Mombaça.

Desde cedo outra importante comunidade foi a indiana. Já no século XVII. os comerciantes

indianos se revelavam mais preocupantes do que os comerciantes swahilis. Embora fossem

criticados por alguns , outros afirmavam, entre os seus defensores encontravam-se os

jesuítas, serem eles o suporte económico da colónia e uma comunidade trabalhadora e

inofensiva.

A importância das comunidades referidas manteve-se ao longo do tempo, e no início do

século XX ( 1915-1918) os Asiáticos (incluindo os chineses) deviam somar 5000 a 6000

indivíduos, quando o número de brancos por essa altura era de 10 500.'

Assim, pode afirmar-se que o espaço cultural moçambicano é marcado por uma lorte

componente árabe e oriental, já que embora a actividade comercial fosse a dominante, a

presença, sobretudo no litoral ao longo de séculos, «nunca deixaria de influir nos aspectos

linguísticos, religiosos c civilizacionais em geral»11

11Dados retirados de Silva. A.. Mentalidade Mtssitilóf-ifti das Jesuitas em Moçambique, _.'-'. ol.. J.I

Lisboa. 1967. p. 293'"'Cf. Pélissier. R.. História dc- Moçambique, vol I. Ed Estampa. Lisboa. 1987. p. 195

"Gilberto Matusse.A construção da imagem de rritiçambiatiidade em José Craveirmha. Mia Ctsuit

Unvulani BA KaMara. Universidade Nova de Lisboa. 199.. (dissertação de mestrado), p. 40

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12

1.2 A oralidade e a escrita

Partindo da ideia de que é na oralidade que está a identidade matricial da cultura

moçambicana, importa verificar de que modo a introdução da escrita, com o colonialismo.

vem alterar ou não a autenticidade africana, ou seja. se. no confronto entre estes dois meios

de veiculação e/ou perpetuação da tradição, a escrita se substitui ao modo oral.

incorporando em si os valores que anteriormente circulavam . de uma forma intemporal.

Trata-se. no fundo, de saber se a língua de importação, no caso o português, poderá

constituir-se como veículo dos valores culturais acoplados às linguas tradicionais, já que.

consequentemente, aos sistemas linguísticos diferenciados correspondem, afinal, «dois

sistemas culturais e civilizacionais diferentes, duas cosmogonias distintas».

Coloca-se o problema da introdução da escrita, como «um golpe de força» numa sociedade

de tradição oral. em que o momento dessa introdução não é o produto de uma evolução

histórica e a sua necessidade é exógena, havendo assim uma «.aceleração da História»

Para além do facto de a escrita ser introduzida através de uma outra língua que não a local.

o aparecimento da escrita tem implicações sociais bastante profundas, reorganizando a

sociedade.

Apesar de não irmos dar demasiada incidência ao elemento linguístico, interessa neste

caso. tentar avaliar da realidade da implantação das línguas de que falamos . para assim

confirmar, ou não. a pertinência da nossa questão inicial. O advento da escrita nas línguas

nacionais, de origem bantu. é bastante recente, datando de há mais ou menos um século.

logo são línguas maioritariamente orais, cujo desenvolvimento foi travado pelo período

colonial.

O colonialismo português praticou uma politica culturalmente assimilacionista, mas apesar

desse projecto de nação multi-racial, e das consequências que eie trouxe a nível do

'''Calvet. Louis-Jean. La iradition Orale. PUF. Paris. 1984. p. 105

|lA escrita nào é um fenómeno anormal e extraordinário numa sociedade cujos principais meios de

comunicação podem ser orais e que se caracteriza pelo desenvolvimento do oral mais do que da escrita..No

caso de Moçambique verificamos que os Árabes já possuíam escrita). Cf. Ruth I •'innegan.C---./ Poeuy: its

nature,stgnifiance and social c.»«.t*.v_,University Press, Cambridge. 1979, p. 161 e também Calvet. J.ob.cit..

P 7

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universo tradicional, é evidente que as populações foram sempre guardiãs da sua própria

história e cultura.

Encarando a questão globalmente, sabemos que o meio tradicional de comunicação em

África foi sobretudo a oralidade, quer consideremos a questão sob o ponto de vista

funcional ou estético, lodo o saber veiculado, era-o através da palavra. lambem nas

sociedades ocidentais, que possuem uma longa tradição de escrita, houve a precedência de

uma longa tradição oral. No caso africano coloca-se outra questão, a de que se a cultura

oral c produzida essencialmente com base em línguas africanas, com o processo de

colonização, foi imposta uma segunda língua, o português, impedindo o natural

desenvolvimento das línguas nacionais. Ora. o problema é que se a cultura oral é

essencialmente produzida em línguas nacionais estas não possuem tradição de escrita e

verificamos então que a língua que se sobrepõe como língua de tradição escrita e de

dominação é o português.

1.2.1 A cristianização

Os missionários vão deparar com formas sociais diferentes e, desde logo. vão demonstrar

uma certa estranheza e incompreensão, perante certos usos e costumes, por isso os relatos

da época são bastante pessimistas, face ao objectivo principal de conversão religiosa.

Para eles. o estilo oral é sinal de barbarismo e liga-se com isso a falta de culto e

1 "*

reconhecimento de Deus.

Além disso, é de referir que tiveram de enfrentar a hostilidade dos muçulmanos, já

integrados. Os árabes possuíam um grau de cultura superior aos restantes habitantes, pois

já conheciam a escrita e possuíam mestres que ensinavam a ler e a escrever. Assim, muito

do trabalho missionário inicial constava em evitar que houvesse contacto, entre eles e as

povoações autóctones, por motivos religiosos. São duas comunidades religiosas que se

defrontam, e no final do século XVI. os portugueses tinham já diminuído o poder

muçulmano.

"'

Joflo dos Santos. Etiuopia Oriental, ap. Silva. A., op. cit.. l"vol.. p. 386

l?

Idem, p. 386

Idem. p. 337

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l-l

Embora tivesse havido leigos e outras congregações que desenvolveram a sua acção, é

sobre os dominicanos e os jesuítas que se possuem mais elementos. Para estes últimos, que

foram expulsos de Moçambique em 1759. como para os primeiros, a preocupação principal

era a evangelização, mas desde sempre a base da sua actividade é a escola.

A estratégia principal era a de praticar conversões de influência, começando pelos chefes e

parentes, para alcançar o resto da comunidade, mas também lhes interessava o início dc

formação.

Os objectivos imediatos dos jesuitas « centram-se na cristianização das estruturas sociais

existentes, partindo dos chefes naturais.» Prestavam também atenção à formação cristã da

juventude, «não só com doutrinação religiosa, mas com iniciação técnica e cultural, cm

colégios onde a par de elementos europeus se formassem elementos de todas as raças, mas

com preferenciei pelos filhos dos régulos.»

Outros missionários, como os dominicanos . nào tinham a seu encargo colégios ou escolas .

dedicavam-se sobretudo à educação dos príncipes, enviando alguns dos seus pupilos ao

convento de Goa. «onde vários se fizeram religiosos da ordem »"

Sobre a formação do clero, embora fosse demonstrada a necessidade de fundar um

seminário na região . essa decisão foi adiada por muito tempo. Pode pensar-se. no entanto.

que os colégios e escolas existentes nos principais povoados, tivessem também a função de

preparar o clero, como era aliás uso desse tempo."

Nos primeiros contactos a comunicação nào seria nada fácil, estabelecendo-sc por vezes

graves confiitos, dc que são prova as acusações contra missionáriostidos por feiticeiros.

19Idem, pp 224-225

Idem. p 239■''

Idem, p. 242"

Idem. p.240. t) escritor sul-africano MaCall Theal escreve que para o fim do séc.XM -os jesuítas

estabeleceram* ..) um seminário em Sena para a educação dos filhos dos ponuguesesw moradores e filhos

dos chefes nativos». Subsidiada pelo Estado e comerciantes e donos de prazos . só mais tarde Im admitido

na ordem considerável número de «africanos e asiáticos sob a ideia de que exerceriam maior influência nos

respectivos países-

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15

Pxiste a preocupação, por parte destes primeiros missionários, de aprender as línguas locais

e utilizá-las como linguas de ensino. Assim, traduziam a doutrina nessas línguas, e só

partia gente que as soubesse.

Neste contexto, seguem a prática da oralidade.""'1 Para fazer aceitar a religião cristã, aceitam

algumas expressões tradicionais africanas, como costumes comuns a todos na igreja. O

método de cantar a doutrina, estabelece-se como coisa natural e comum, o que faz os

■ ■ 24

missionários afirmarem ter «muito proveito em pouco tempo».

Regista-se deste modo que a entrada dos jesuítas no século XVI «aproveitou a linha de

contacto entre a influência portuguesa e as sociedades tradicionais africanas». A atitude

missionária é de simpatia e de estudo por um lado e de franco optimismo quanto as

possibilidades de evangelização por outro."' A apresentação do cristianismo, numa segunda

fase, após a simpatia inicial era colocada ao nível das crenças tradicionais da terra e cm

conflito com elas.

Do século XVIII. embora haja menos elementos, sabe-se que «cm todas as localidades

portuguesas de Ásia e África se prega em português, devido à dificuldade em aprender as

muitas línguas locais. As cartas ânuas são omissas sobre Moçambique durante todo o

século XVIII.

Houve, no século XVI. duas tentativas falhadas de missão, que não passaram de trabalhos

de informação. No século seguinte os jesuítas voltam e desta vez a sua acção transforma-

se de rural em urbana, apoiam-se em bases situadas em território português, ao contrário do

que se passara com o trabalho dos anteriores pioneiros . no sertão principalmente. Destes

centros, tentam a expansão, dai saindo em «excursões apostólicas » pelos distritos

limítrofes onde erguerão igrejas sucursais.

;iIdem, pp. 272-284. Houve variadas tentativas manuscritas de gramáticas que se não chegaram a

imprimir. Em 1623. um padre, por ordem superior, «trata de reduzir a lingua a forma de gramática, coisa mui

dificultosa assim por esta gente não ter letras nem escritura alguma, como por ser mui vária, e a cada canto

achar-se diversidades de línguas». As autoridades eclesiásticas locais procuram que o trabalho feito pelos

paderes mais antigos se não perca, e que os «vocábulos e cartilha de doutrina» escritas «na linguanatural dos

cafres» sejam impressas.

:j

Idem, p. 257"Idem, p. 284

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16

Contudo, desde o último quartel do século XVII. o contacto e fusão de culturas toi

comprometido por dificuldades especiais vindas do Norte (pressão dos árabes ) e do centro

do continente. Na fase final da acção dos jesuítas, há um desânimo crescente que pode ser

atribuído a várias causas, seja ao elemento leigo da região e aos governantes, como aos

próprios missionários e seus métodos de acção.

1.2.2 As linguas africanas c o português

Após esta breve resenha histórica, sobre os primórdios do contacto das duas culturas.Uca a

ideia tle que o português se constitui como língua de ensino, e a utilização das línguas

nacionais apenas serve de elemento de comunicação. No interior, a cultura é produzida

essencialmente em línguas africanas, havendo uma retirada progressiva do português para

o litoral e para as escolas dos principais centros.

No tempo da colonização, a situação não irá modificar-se grandemente, pelo contrário,

havendo a imposição do português.

A esse respeito. Fátima Mendonça afirma que « não é de subestimar a estratégia do

colonialismo português, através de uma política deliberada dc assimilação, ler travado o

processo natural de desenvolvimento das línguas africanas de Moçambique que- veículo

de uma diversificada cultura de oralidade - se poderiam ter transformado, num processo de

desenvolvimento comparado ao das nações europeias, no suporte inevitável de diversas

literaturas escritas. Tal não aconteceu e a língua portuguesa tornou-se o elemento

privilegiado dc acesso à escrita, ao saber, à cultura europeia, de uma camada social

produzida pelo Fstado colonial (...). Ie. dessa camada socialmente híbrida que emerge uma

produção literária que se demarca, em muitos eispectos. do conjunto de outra produção que

com ela coexiste»"" Nesta longa citação, estão contidas as principais linhas da problemática

que nos ocupa: a situação de privilégio da língua portuguesa face às línguas africanas.

De facto, a potência colonial portuguesa votou essas línguas ao ostracismo, o que faz com

que ainda actualmente, quanto à situaçào dc uso no domínio público, elas tenham uma

aplicação limitada, se excluirmos os falantes que eis possuem como língua materna ou

língua segunda, continuando assim a serem essencialmente de tradição oral.

''

Mendonça. Fátima. *<l iteratura Moçambicana o que é?» in Tempo. 7-7-1985. pp. 34 -36

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I7

A política assimilacionista seguida pelas autoridade portuguesas apenas se modifica nos

finais da época de colonização, havendo de facto um esforço dc investigação linguistica.

no entanto, com o objectivo de facilitar o ensino do português.Porém, esses trabalhos estão

longe de serem rigorosos ou dc representarem qualquer esforço de padronização das

referidas línguas.

Irem suma. diríamos que houve «uma recusa de África, recusa que passa pelo apagamento

da tradição oral. por uma negação dos contributos culturais africanos»" .

Se os portugueses chegam a Moçambique no século XVI (Porto de Sotala. 150:.). esse

tacto nào significa, no entanto, que desde logo se tenha dado a difusão da língua e da

escrita. Apenas a partir da segunda metade do século XIX. sc pode falar de uma influência

europeia relevante.

No entanto, podemos pensar, como afirma Salvato Trigo"'' que a língua . ainda que pouco

expandida nesse tempo, se acaba por amoldar «à situação de língua veicular mestiçada e

permitindo mesmo, no séc. XIX a criação poética e literária bilingue», no caso

angolano.Vejamos o caso de Moçambique, ou seja. o caso daquela «literatura aculturada».

a que já nos referimos.

1.3 F.mergência e breve panorama do fenómeno literário moçambicano

(existem vários factores que contribuem «para que o idêntico se instale no seio de uma

comunidade» fazendo com que os povos concebam uma imagem de si próprios." Jacinto

do Prado Coelho aponta dois tipos de factores actuantes nessa individualização: os físicos

(solo. clima, situação geográfica, substrato étnico) e os históricos (estáticos e de

renovação), sendo estes os de principal interesse para o estudo da literatura."' E também a

;';«On y constate un refus d'Alrique, refus qui passe par le gommage de la tradilion orale, par une négation |

des apports culturels africams.» in: Bidault. M.-F., «La recherche de 1'identilé individuelle et de 1'identité

nacional dans les manuels scolaires. [.'exemple de Mozambique»in: Les Littiratures Afrieaines dc Langue (

portugai.se: A la recherche de lldentitè individuelle et nanonale (Actes du Colloque International Nov -Dec.

1984) Fondation Calouste Gulbenkian. Paris. 1989. p. 35 1*

A este propósilo Cf. Junod. i\.-.\..Canins e Contos dos Hongas. Instituio Investigação Cientifica de

Moçambique. 1975. p. 9■"'

Trigo. Salvato. Ensaias de Literatura l 'amparada -Ifro-Luso-Brasileira. Ed Vega. Lisboa .s d. p. 14 '

"

Venâncio. J. C. « A questão da identidade cultural angoiana: uma aproximação antropológica* in: op. cit..

pp.95-102

''

Prado Coelho. Jacinto. «Factores da personalidade nacional» in: Originalidade da l.iteratura_Portuguesa.

Biblioteca Breve. I.C.P.,Lisboa. I977.pass.

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IX

estes últimos que José Carlos Venâncio atribui maior importância .já que incluem o factor

cultural e é «no âmbito da cultura que se faz a leitura do passado e se apuram as grandes

linhas orientadoras do presente e do futuro»"

Existe uma relação necessária entre a cultura c a identidade de um povo. A este respeito.

José Cama considera, no entanto, que «a cultura humana não existe em abstracto, é sempre

observada e analisada em actos culturais concretos», ao mesmo tempo que. de algum

modo, é exteriorizada a capacidade de simbolização específica do ser humano. Para este

autor, « o homem dá-se a conhecer e conhece-sc a si mesmo na medida da sua própria

expressão cultural, pois o conhecimento que adquire de si mesmo só se efectiva através de

uma expressão cultural, seja qual for o modo dc expressefo utilizada, oral. escrita, plástica.

ritual...»''

Assim, abandonando a via tradicional da elaboração de uma filosofia nacional, esta

emergiria da investigação do conjunto de produção cultural própria de uma nação,

contendo as características que integram a personalidade dessa nação e determinam a sua

identidade. Segundo esta visão «a identidade nacional ou regional defme-se

prioritariamente pela cultura, pois é a cultura que veicula ideias e transmite modos de

comportamento com os seus valores e ideais e ao mesmo tempo é a cultura que assimila e

conserva novas ideias c novos comportamentos-). Resta assim a ideia de haver uma

correspondência quase absoluta entre a identidade cultural, reflectindo os principais

elementos de uma personalidade colecti.a. e uma filosofia da cultura nacional, ou seja, a

identidade nacional.

A literatura, enquanto produto cultural de um povo. apresenta-se como objecto preferencial

na investigação das características que contribuem para a definição da identidade cultural.

Embora não possamos esquecer, como lembra Prado Coelho, que a individualidade cultural

de uma nação é algo dinâmico, mutável e. resultante dela. a individualidade nacional é um

constante fei/er-se e não uma coisa inalterável.

'■

Venâncio, op. cit .p. 96!'Gama. Jose. «Cultura e identidade nacional» in: Brotcna. n° 5 6, vol. 138. Maio Junho. 1994. pp. 539-545

14

Idem. p. 54 1

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19

A este nivel. colocam-se sempre questões complexas a que é difícil responder, como a dc

saber até que ponto a literatura reflecte a realidade nacional ou será apenas seu produto.

Põe-se ainda a questão da originalidade e dos critérios a seguir para a definir, e se existem

já possibilidades de uma metodologia nâo-impressionista, fica o problema dos objectos a

seleccionar.

De qualquer modo. no campo da literatura desde sempre se tem colocado a problemática da

identidade individual e colectiva, o chamado «nacionalismo literário», fenómeno a que

chamaríamos também de «volição de construção de uma ficção da pátria». Esta expressão

é utilizada por Cclina da Silva que considera haver neste facto «uma crença no poder da

palavra e uma actuação efectiva através dela»

Decorrente do que temos vindo a afirmar, falar em identidade cultural de Moçambique é.

em grande medida, falar da identidade nacional de Moçambique. Nessa perspectiva hei a

salientar o esforço desenvolvido pelo poder político constituído, no sentido de alcançar

uma maior unificação ou harmonização cultural do país.'

No caso da literatura, pode desempenhar um papel importante na construção da

nacionalidade No caso específico das literaturas africanas dc língua portuguesa, é também

verdade que anteciparam as nações, tornando-se «verdadeiramente proféticas e

messiânicas»'7 Assim, em primeiro lugar, coloca-se geralmente o problema da

independência literária que precede a independência política: tal fenómeno passa-se em

Moçambique, segundo Pires Laranjeira.

A este propósito. Ana Mafalda Leite, referindo-se ao contexto de rasura cultural na

sociedade colonial, em que um dos lactores seria a inacessibilidade editorial indica, no

entanto, que existe uma «contínua demandei de alteridade (...) no tecido cultural

dominante». Essa seria uma das fases de busca de identidade, em que José Craveirinha é

um dos exemplos de quem reclama «ser moçambicano, e além disso ser escritor

moçambicano»*3Q tornando-se a sua escrita

,,um aclo <je legitimação e de conquista do

15

Silva. Celina. «O literário enquanto catalizador da construção da pátria» in: Revista da l-tisu/nrua. n"35-40.

Pontcvedra-Braga. p 41

'"

Venâncio. Jose C, op. cit.. p. 9611

Laranjeira. Pires. De letra em riste.Eô. Afrontamento. Porto. 1902. p. 24

Idem. p. 39''*

Leite. Ana M. .. poética de José Craveirinha. Ed. Vega. Lisboa, 199 Ep. 34

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20

poder simbólico, estélico-linguístico. na medida em que entra em desacordo com os valores

literários dominantes e consagrados da sociedade colonial em que se insere».

Mário de Andrade considera que no panorama da moderna poesia africana de língua

portuguesa se podem considerar várias fases nomeadamente a fase negritudiana. e uma

outra fase em que «a criação literária vai ritmando o desenvolvimento da consciência

nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos.'"'

Na poesia de Noémia

de Sousa é perceptível também «o processo de identificação, ou de filtragem por

similaridade. dos temas literários relacionados com a Negritude e com o Renascimento

Negro americano »■

Temos então que a componente profética da escrita, empenhada na construção da realidade

nacional se aplica aos poetas moçambicanos.

Ao conceito dc africanidade. afim do de moçambicanidade. foi Janheinz Jahn. quem

primeiro se referiu dc forma implícita. Procurava então individualizar conjuntos de

características, os topoi, que permitissem identificar aquilo que era africano. As literaturas

alirmaram-se, por um lado como nacionais (o caso do Mshao em Moçambique) c por outro

lado. na busca de uma mais fácil afirmação da identidade africana que interessava realçar

perante a negação levada a efeito pelo colonizador."

A moçambicanidade. conceito afim de angolanidade c cabo-verdianidade. exprime uma

realidade que tem muito a ver com a especificidade do colonialismo português. Segundo

José Carlos Venâncio, qualquer destes conceitos não deve ser confundido com a identidade

nacional desses paises, embora se revele um conceito abrangente a todas as manifestações

culturais da realidade moçamhicana.

Quanto a este autor, em Moçambique, a exemplo do caso de Angola, não existe uma

sociedade crioula que tenha servido de «fced-back» as primeiras manifestações de

moçambicanidade. às primeiras interpretações que visavam acentuar a diferença entre a

*"

Mário de Andrade ap. Ana M Leite, op. cit.. p. 35.

Idem. p 37J"

Venâncio. J. C , op cit. p. 22'

Venâncio, JoséC op. cit.. p. 2 1

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realidade moçambicana e a portugal idade.44 Assim o correspondente ao sentido extensivo

na angolanidade não existe praticamente em Moçambique, sendo disso prova a moderna

literatura moçambicana, nomeadamente a obra de Mia Couto.

A esse propósito o escritor rejeita o conceito, «que dá como consequência que a literatura

africana fique sempre separada na prateleira do lado. bicho raro para curiosos», parece-lhe

sobretudo importante avaliar da qualidade literária das obras, caminhando para uma

universalidade. É assim que se afirma um pouco «estrangeiro» cm muitos dos aspectos

culturais moçambicanos: «se estivesse por dentro de todos os códigos, de todos os mitos.

se calhar não conseguiria tratá-los literariamente.»"

Segundo ele o conceito de

moçambicanidade forjou-se na «mestiçagem»"

de que a utilização da língua do

colonizador não é factor de somenos importância.

Qualquer um dos conceitos de que temos vindo a falar, surgiram porque havia ;i

necessidade de acentuar a especificidade, da realidade e cultura dos países africanos, tendo

por isso um carácter operativo que têm perdido com o passar do tempo. Há quem considere

mesmo que se em relação ao passado, cumpriram o seu papel actualmente servem apenas

para a formação da nação e consolidação da sociedade civil. Nessa perspectiva Pires

Laranjeira vai mais longe achando que. no campo literário onde se verifica a maior

operacionalidade desses conceitos, já não é necessário afirmar qualquer moçambicanidade

(no caso que nos interessa) pois «os escritores africanos estão em vias de assumir a

nacionalidade literária por inteiro»'1'• sendo disso exemplo o caso de Mia Couto e as suas

obras em que «o fascínio nacional tende a substituir-se ao brasileiro, português ou pan-

africano. Ninguém tem dúvidas da sua independência literária" . havendo já ultrapassado a

fase da similitude e assumido de forma segura a alteridade.

"

A este propósito Manuel Ferreira sublinhava que esta expressão nunca existiu como existiu a

angolanidade. Cf. Literaturas Africanas de Expressar.- Portuguesa II. Biblioteca Breve. Í.C.P.. Lisboa. 1986,

p. 78

'•Entrevista ao Di. 10-5-119904,1

Entrevista ao Público. «Leituras». 17 de Julho de 1990

4?Idem. p 21"

Laranjeira. Pires. op. cit.. p. 48'''

Idem. ibidem. Pires Laranjeira considera que o recurso a tais conceitos apenas se tomaria necessário

quando no processo de delimitação do «corpo de cada literatura , restam dúvidas na inclusão ou não de

alguns escritores vindos do passado.

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1 1

Desse ponto de vista parece-nos útil analisar, ainda que de uma forma sumária o percurso

da literatura moçambicana e o seu papel nessa construção da identidade cultural. Rctêrimo-

nos à literatura escrita, sendo óbvio que a afirmação de aiferidade c individualização de tal

literatura terá que passar pela assunção de ideias e valores que são veiculados pela tradição

oral. A questão que fica subjacente é a de saber de que modo os escritores resolveram essa

dualidade cultural, mas a esse respeito referir-nos-emos noutra parte do nosso trabalho.

nomeadamente, ao analisar os contos de Mia Couto.

Breve Panorama ela Fenómeno Literária Muçeunbicano

Não tentaremos ser exaustivos, mas tão só relembrar que a emergência da literatura escrita

em português traz já em si o germe da resistência para de uma forma evolutiva reivindicar

o selo da autenticidade regional. A literatura teve um papel preponderante, na reclamação

dc um estatuto cultural e político diferente, como já referimos noutra parte do nosso

trabalho. Globalmente diríamos que a literatura regista, através das obras, o assumir de

uma diferença, que se transforma em resistência, até à revolta que culmina com as lutas de

libertação. É evidente que nesse processo evolutivo, a literatura adquire funções

diferenciadas, assim como o leitor visado se adequará ao periodo histórico.

Período pré -independência- O papel da literatura na identidade cultural e política, e

consequentemente da identidade nacional, é uma questão que não se pode desligar das

«origens da literatura moçambicana».

lim Moçambique não havia «nações» embora existissem grupos étnicos, raciais ou outros,

com uma língua c cultura reconhecíveis, anles do estabelecimento das colónias que se

transformaram nos actuais cstados-nação. Verifica-se assim que existem aspectos

históricos fundamentais para a génese da literatura moçambicana, nomeadamente aquelas

apontadas por Chabal. específicos à ex-colónia portuguesa: I ) integração colonial fraca; 2)

o impacto social e cultural do I.stado-Novo: 3) a dinâmica do nacionalismo; 4) a

proximidade com ;i África de língua inglesa (Africa do Sul) .

Chabal. Patrick. Onzes moçambicanas, Ed Vega. Lisboa. 1994. p. 16

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23

No contexto colonial, verificamos que as manifestações literárias reflectem o debate que

está na origem e evolução dos movimentos independentistas modernos. Assim, são de

realçar os anos 50 e 60. constituindo « a fase em que a literatura moçambicana viveu a sua

maior animação» e em que «se alarga o universo ledor» constituindo também uma tase de

...•

~ 51

«reatncanizaçao».

Em 1950. o poeta José Craveirinha fala «nas fronteiras de água do Rovuma ao Incomali»

tomando o espaço territorial como metáfora da nação a surgir, embrião, segundo Diogo

Aurélio, do primeiro esboço concreto dc unidade nacional, quando se iniciam as guerras de

libertação.

Na verdade, desde esses momentos que a literatura cumpriu um papel bastante importante.

Ii. esta realidade prende-se directamente com a segunda estratégia nacionalista que

apontámos acima : a maior parte dos intelectuais esteve ligada aos movimentos da

Independência, assumindo mais tarde um papel político importante.

Nas palavras de G. Hamilton, até à década de 60. em Moçambique, não existia um mesmo

grau de solidariedade ideológica entre «os segmentos da inteligentsia multi-racial» que

predominava na altura, o que não impediu que as forças do nacionalismo conseguissem

despertar nos inícios dessa década. Refere-se ao Núcleo de I studos Secundários sob a

responsabilidade do Dr. Eduardo Mondlanc que desempenhou um importante papel de

reivindicação cultural."

Quanto a Hamilton, faltava «um movimento mais ou menos coordenado na colónia

oriental» o que tem como consequência que « a cena na Ueira e Lourenço Marques

apresentava umas feições peculiares com respeito à questão duma literatura em e de

Moçambique (...). Devido a factores vários, as condições existentes «acabaram por

restringir o desenvolvimento livre de modos de expressão cultural autóctones »."" É assim

que a cena literária moçambicana dos anos 50 e 60 é caracterizado como «um meio cultural

amorfo», onde pontuavam alguns escritores curo-moçambicanos » que ajudaram a

estabelecer a base de uma literatura aculturada"■

M

llonvvana. Luis Bernardo. «Papel, lugare função do Escritor» in. Tempo. 22-1 1-1981

%1Hamilton, G.. Literatura Africana, literatura Xecessária.ildições 70. Lisboa. I'>84. p. 12

"'

Idem. p.14.Idem. p. 2...

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24

Neste contexto. Noémia de Sousa apresenta-se como uma voz poética em que «a temática e

a estilística convencionais da reivindicação cultural caracterizam quase a totalidade dos

(seus ) poemas. Rui Nogar. poeta declamador. apresenta-se como aquele que reintegrava a

oralidade africana, na expressão cultural reivindicatória e protestatória. bem como José

Craveirinha que no dizer dc Hamilton «sobrecarrega os seus poemas de

«moçambicanismos».

No que à narrativa diz respeito, o prof. Manuel Ferreira considera Joào Dias como ei que

escreveu a primeira página da história da ficção moçambicana, com Godiílo e outros

comos. Mas. quanto a ele. apenas em 1964 « se retoma a estrada real da narrativa

moçambicana dentro da proposta de João Dias ».''

Trata-se de AV..v matámos o cão

Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana que « faz do universo moçambicano o centro de

análise das suas narrativas ».'

Na época em que o livro foi divulgado, cm 1964. era uma obra subversiva que. após a

independência, ganhou o « status» de uma obra nacional e. por conseguinte, uma obra

padrão da literatura moçambicana. Parece não haver . logo nesses tempos iniciais, nenhum

outro livro que se lhe compare, ou que se constitua como sucessor. Para isso. parei retomar

a tal «estrada real da narrativa moçambicana » há que esperar pelos primeiros anos da

década de 80.

Período pess-indcpenclència- « As elites políticas e culturais africanas confrontadas com a

inautenticidade cultural que herdaram do colonialismo, procuram eliminai a diferença

cultural existente entre o mundo citadino, o mundo moderno, onde elas próprias gravitam.

e o mundo das sociedades tradicionais periféricas ». Citamos J. C. Venâncio que afirma

ainda que é no eimbito da cultura que se « apuram as grandes linhas orientadoras do

presente e do futuro » e isto é tanto mais verdade para países construídos a partir de um

mosaico de pequenas « nações culturais ». Essa opção remonta, como já vimos etos tempos

Idem. p. 37.''

Ferreira. Manuel Ferreira, op. cit..p. 10211

Idem, ibidem. Manuel Ferreira refere ainda Orlando Mendes como um dos três autores «que deram a

contribuição mais real e coerente para a narrativa moçambicana»

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25

antes da independência, com o nascimento dos movimentos políticos e das zonas

libertadas/*

Devido a factores, sobretudo de cariz político, as autoridades moçambicanas optaram por

situar o «surgimento» da moçambicanidade, nas zonas libertadas, durante o movimento de

libertação. As bases do nacionalismo situam-se assim numa época imediatamente anterior.

sem recuar ao mundo pré-colonial. muito mais difícil de organizar. Dadas as

circunstâncias, «o recurso a um passado longínquo e a uma comunidade de tradições e

costumes, instrumento privilegiado da construção nacional, torna-se além disso, uma arma

um tanto ou quanto ambígua ».LIma das prioridades do novo Estado era nâo ver

«questionadas as fronteiras e a coesão desejada»' do que se depreende que as línguas e.

consequentemente, as culturas regionais se tornem secundárias.

Diogo Pires Aurélio aponta, entre algumas das «linhas estratégicas» que se evidenciam no

passado mais recente , dc Angola e Moçambique, para a afirmação ác uma identidade

nacional - A divulgação da lingua portuguesa e o relevo dado à literatura como campo

privilegiado da elaboração da ideologia nacional.

Relativamente ao primeiro aspecto, tem sobretudo a ver com questões pragmáticas e que se

baseiam em decisões tomadas no âmbito do Movimento de Libertação. Quanto ao outro

aspecto, que se relaciona obviamente com o primeiro, a ideia subjacente é a de que a

literatura pode assumir uma função de coesão nacional, na relação concreta que se instaura

entre o escritor e seus leitores.

'8

«Nas zonas libertadas moçambicanos de várias regiões construíram em conjunto um novo tipo de vida,

criaram novos padrões de valores morais, normas de conduta e relacionamento, atitudes que os definiam

pouco a pouco como seres característicos, identificáveis numa nova qualidade nascida com a guerra, a

moçambicanidade. E eram homens que falavam línguas diferentes, que tinham hábitos alimentares díspares,

que tinham variadas manifestações culturais, mas que se irmanavam e sentiam realizados como cidadãos da

mesma pátria.*...) Da nova vida surgiu uma cullura nacional sentida e aceite como sua por todos os

militantes. Nas centenas de canções, esculturas, repassava o mesmo fervor patriótico, exaltavam-se as

mesmas qualidades, as mesmas virtudes, reigiam-se como heróicos os feitos da luta comum.» Comunicação

de Fernando Ganhão ao IV Congresso da Frelimo. Abril de 1983. sobre as origens da unidade nacional.''

Exactamente pelas mesmas ra/ões que haviam ditado as decisões da Acta de Berlim prevendo a

constituição dos estados modernos em Africa.""

Aurélio, Diogo Pires. «A questão nacional em Angola e Moçambique». IEEI, Univ. Nova de Lisboa. 1989.

p. 85."'

Outras estratégias apontadas são a «sohredeterminação da cullura pela política e a reavaliação da História)).

obviamente relacionados com os aspectos apontados.

""Ap. Laurent Monnier. Aurélio.D.P.. op. cit.. p. 97

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:.)

Após a independência, os escritores publicam, sobretudo aquilo que tinham escrito ainda

no período anterior, ou versando esse período. E a chamada fase de panflctarização, que se

alarga durante alguns anos.

Contudo, durante um certo período pós-idependência a literatura moçambicana «como

hibernou» porque devido a condicionalismos vários não se editou. O nascimento da

Charrua (ll>84) constitui um momento literário importante que veio quebrar um pouco ;i

letargia. Houve depois uma intensa actividade editorial no ano de 1986 - 87 em que

surgiram e fornias inéditas de abordagem temática"" e novos autores de quem sc pode

afirmar que contribuem para a definição de um nacionalismo literário.

Esses novos escritores (Luís Carlos Patraquim. Ungulani Ba Ka khosa. Mia Couto)

tentam levar o leitor a uma leitura «ginasticeida» dos textos, devido à sua elaboração

literária, o que na altura origina um debate, nomeadamente nas páginas da Tempe), e em

que se coloca o problema da comunicabilidade'

, dado o anterior panorama literário.

Essa nova vaga de literatura moçambicana começa a ganhar forma nos finais da década dc

70 e princípios da de 80. Até ai apenas a poesia é rainha, com poucas excepções. Eugénio

Lisboa lala «da gente nova para quem o acto de criação é efectivamente importante, (...)

que tem uma visão do mundo que(...) não lhes foi mandatada por ninguém» ".

São autores, dos quais destacamos Mia Couto, que incluem nas suas obras «enredos

preponderantemente com cenas da vida e mundi vidência das sociedades tradicionais». José

C. Venâncio considera-os como «os pioneiros da construção de uma sociedade crioula» .

realidade inexistente em Moçambique como já tivemos oportunidade de afirmar.

Para muitos desses escritores, o tacto de escreverem em língua portuguesa nào constitui

uma traição à tradição cultural africana, já que para eles «está-se a falar o moçambicano»e

os que encaram outra alternativa são poucos, dada a situaçào sócio-cultural que herdaram.

'"

Marcelo Panguana, in: Tempo de 16-4-1989

MCf. Tempo. (,- 12- 1987: 13- 12- 19X7 e 24-10-1982. respectivamente sobre «!■ rai;mentos de um diário» de

Khosa e sobre o conto « Isaura»Min: Tempo. 13-8-1989

""

Venâncio.. J Cop. cit.. . pp. 22-23"

Entrevista com Armando Artur e José Pastor m.Tempu. 1 1 -2-1990

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27

Para o caso, não nos interessa tanto aprofundarmos a tendência desviante do Português em

que se integra a prática linguística de Mia Couto, embora essa seja uma das vertentes do

seu processo criativo a que nos referiremos mais adiante, (cf.l.inguagem) Interessa-nos

analisar uma outra vertente que se integre no conjunto dc factores que fazem com que o

autor de ficção que mais se destaca no período pré-idependéneia , Luís Bernardo I lonwana.

não utilizando uma linguagem inspirada na oralidade africana, nâo deixe de ser

considerado como o modelo de um autor moçambicano. Venâncio, a propósito, afirma que

Mia Couto entronca a suei experiência na dc I lonwana.

Neste ponto queremos aqui introduzir duas questões pertinentes para o assunto de que

pretendemos ocupar-nos. A primeira tem a ver com a escolha do conto como género

preferencial nos escritores que assumem intluéncias da tradição oral: a segunda prende-se

com o tratamento que dão ao «material» assim utilizado.

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28

II A TRADIÇÃO ORAL NA LITERATURA ESCRITA

1. A tradição oral na narrativa escrita

Se numa perspectiva universal a obra de arte. enquanto objecto estético, «vive em relação

com o passado e com o futuro»"* e essa ligação com o passado pode implicar a aceitação

ou a rejeição dei tradição, no caso da literatura africana, a relação entre a narração literária

escrita e a tradição ganha uma importância fundamental, revestida dc contornos

específicos.

Conforme afirmei Jacques Chevrie/'" •< a inteligibilidade dos textos do domínio africano.

{...) passa pelo conhecimento antropológico, linguístico, histórico e até político do

contexto da emissão ». e segundo Salvato Trigo essa inteligibilidade passa também pelo

conhecimento dos principais vectores da estética africana que poderemos encontrar na

oratura. « É por isso importante que se conheça a oratura para se dominar melhor a

literatura. As relações estéticas entre esta e aquela esteio presentes nos textos literários

africanos modernos cuja descodificação não pode. portanto, dispensar o estudo de tais

relações » .

Em África, vários sào os escritores que se inspiraram no seu património oral e integram nas

suas obras técnicas de expressão da tradição oral. Tal como afirma Denisc Paulme . a

literatura oral. sob a forma do conto maravilhoso, do conto de vida quotidiana ou do conto

de animais é um património comum a todos os homens, tendo um papel educativo

,71incontestável.

Na verdade, diz-nos teimbém Akyea \ para muitos escritores africanos a tradiçêio oral é a

inspiração para muito do seu trabalho. Acha este autor que virando-se para as «tradições»

literárias dos seus antepassados, os escritores africanos, pelo menos os melhores.

"*

Silva. Luis de Oliveira e . «A presença do passado na obra literária» in: (h Esludos Literários tentrei

Ciência e Hermenêutica. (Actas do I Congresso da API.C). vol 1. Associação Portuguesa de 1 iteratura

comparada. Lisboa. 1990. p. 283''"

Jacques Chévner. «Afrique» in: La Recherche en Littérature (Jéncrulc el ( "omparée en France ap Salvato

Erigo. op. cit.. p.8"

Trigo. Salvato. ob cit p. 871

Paulme. Denisc, /./ mere devorante. Ilssai mr la morphologie ,/,-. comes africains, col lei. Gallimard.

Paris. 1976. p.912

E. Ofori Akyea. ■■• Iraditiimalism tn African literature. .1 P.Clark „ in Perspectives on African Littérature.

(ed. Christopher Hevvvood). Ed. lleinemann. 1975. pas

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29

mostraram que vale a pena e deram-lhe um papel que transcende a simples curiosidade

pelas coisas do passado.

Quanto a Akyea, é possível isolar «variadas formas tradicionais discernívcis na escrita

moderna africana». Este autor sublinha ainda, referindo-se às literaturas escritas em

inglês, que as formas tradicionais têm sido integradas «para produzir trabalhos poderosos

de arte que dão carácter e força à escrita africana.»'4

Ruth Finnegan. indo de encontro a esta opinião, diz-nos também que «na prática a

interacção entre as formas oral e escrita é muito comum e que a ideia de que a utilização da

escrita automaticamente leva à morte da literatura oral e suas formas não tem nadei a apoiá-

la»'5

Reforçando essa perspectiva, citaríamos o ponto de vista de Alberto de Carvalho, que

embora noutro contexto, acha que os materiais da tradição oral só podem continuar activos.

i

fugindo ã reserva folclórica, se forem textualizados pela escrita e pela poética ,*'

contemporâneas.'

Mohamadou Kane, que trata do tema das tradições no romance africano, tala-nos sobre o

interesse de um estudo orientado para salientar a continuidade relativa do discurso

tradicional oral ao discurso escrito, do conto ao romance. Segundo ele. englobam-se neste

problema, o da sobrevivência da tradição num contexto de modernização e o da

inteligência e da sensibilidade características da sociedade tradicional, assim como o da

«continuidade do discurso narrativo de uma literatura a outra e a importância da

sobrevivência das «formas tradicionais» no romance africano»

71

Há casos como o de Birago Diop. em que o escritor se afirma um discípulo do 'griot' Amadou Koumba e

que mais não leria feito do que traduzir para francês os seus ditos. Diop. Birago. Os contos de Amadou

Koumba.Co). Vo/es de África. Ed. 70. Lisboa. 1979

;" Akyea E.O., op. cn . p IIS

Ruth Finnegan. Oral Poetry..../. 160. A autora refuta aqui os argumentos de quem defende que a escrita é

incompatível ou mesmo destrutiva da literatura oral. nomeadamente Carpenter que é categórico nesse

aspecto.7"

Carvalho. Alberto de. «Da tradição oral na narrativa contemporânea» tn Os Estudos Literários (enlre)

Ciência e Hcrncncutica.iAcias do I Congresso de da APLC), ), vol.I. API.C. Lisboa. 1990, p.Ifi.7

Kane. Mohamadou. Roman africam el tradition. Les Nouvelles Éditions Africaines. Dakar, 1982. p. 19.

78

Idem. p 19

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30

Ainda segundo o mesmo autor «o tema das tradições» ocupa um lugar central no contexto

do romance africano: «tudo parece determinar-se em relação a ele. tanto no plano da forma

fs. 79

como no da significação»

Sobre a tradição diz Kane que «a sua natureza nào é só pedagógica nem puramente

ideológica: aparece também como dialéctica e ontológica. A tradição faz ser ele novo o que

já foi, ela não está limitada ao saber fazer ele uma cullura. pois identifica-se à própriavida

i-

, . 80de uma comunidade.

A esse respeito. Andreas Muller81 afirma que «encontra-se em Africa. Moçambique, ainda

uma sociedade que está ligada ao mito no sentido original.! . ..) O povo moçambicano vive

uma realidade em que o mito faz parte do seu dia-a dia». Segundo este autor «aí sc pode

desembocar na questão da diferença: «o Mito como realidade e o Mito como algo

fictício.(...)Enquanto o Europeu segue o factual, o Africano acredita no mítico». Assim este

mesmo processo «dentro da dinâmica da produção literária necessita de ser estudado com

profundidade».

Muller defende que na literatura oral «poder-se-á encontrar elementos e formeis de

expressão do imaginário que suportam o contexto da literatura escrita» e assim é necessário

«ver onde é que que há uma herança, a continuidade dessa tradição oral». Pois existem

escritores que estando ligados à tradição têm uma influência nítida «que estudam e

constroem um tecido literário em que essa tradição entra por várias vias»

No global, esta problemática alarga-se ao facto demonstrado por Janheinz Jahn de que a

literatura africana recebe a herança de uma dupla tradição: a literatura africana oral e a

ocidental. Este estudioso chamou-lhe literatura neoafricana." por ser escrita em línguas

europeias e para diferenciá-la da literatura oral produzida em línguas africanas.'"'

Esta questão das línguas é um dos factores que vem complexi ficar o estudo das relações

entre a literatura escrita e a tradição oral. em determinados contextos) nomeadamente o

"'

Idem, p.29

Idem, p.24*'

Em entrevista dada à revista Tempo. _•.. importância da oralidade im discurso literário». 15-10-1989

s:Salvato Trigo nega fundamento histórico ao neologismo, que. segundo ele não linha razão em aparecer.

Cf. Luandinu Vieira, o Logote.ta. Brasília Ed.. Porto. 1981. pp. 31 e 37.

83

Laranjeira. Pires, Literatura Calihaiiesci. I d Afrontamento. Porio. 1985. p .9

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31

moçambicano). É que se pode falar de tradição oral nas línguas bantas mas apenas se pode

falar em oralidade em relação à língua europeia.

A esse respeito. David Brookshaw afirma que «o conceito de uma literatura escrita

incorporando aspectos de uma tradição oral pré-existente. nào deve parecer indevidamente

complexo, quanto mais sc se tratar de uma literatura africana, na qual as tradições orais e a

própria oralidade - isto é. a arte de «contar»- andam tão frescas na memória cultural de

muitos escritores»' . Ial como para literatura europeia a tradição oral foi e é importante.

Para o mesmo estudioso a razão que levou a incorporação de «material popular » e

«técnicas da narração oral» foi a mesma, «sendo esta razão o desejo de encontrar uma

expressão de autenticidade nacional».

Estabelecendo uma análise comparativei. o realismo no século XIX «nào passou de uma

fase na evolução da ficção em prosa», já que na literatura europeia uma tendência

oralizante na literatura representa uma tradição mais profunda, «de o autor participar na

trama da sua obra, como acontece na narrativa oral. interpretando os acontecimentos desde

o interior da acção e. quando necessário dirigindo-se directamente ao seu publico». Essa

tendência será representada tanto na literatura europeia . caso de um Guimarães Rosa no

Brasil, como em escritores africanos. E «a maior contribuição que a tradição oral.f...) tenha

feito à literatura escrita é a sua capacidade de sabotar princípios literários.

Sobre o ressurgimento da tradição na narrativa africana, Alberto de Carvalho traça

«assinaláveis diferenças (...) para as diferentes áreas africanas».' no que toca a questões .

ligadas ao modo particular da colonização portuguesa e «vem a marcar o sentido geral das

literaturas nos países africanos onde se fala a língua portuguesa», nomeadamente «no modo

de encararem os valores e as formeis da cultura tradicional»

SJBrookshaw. David. «Da oralidade à literatura e da literatura ã oralidadexluas tendências na moderna

narrativa angolana» (Comunicação apresentada ao I" Simpósio internacional Sobre Cultura Angolana) Porto.

17-20 de Maio de 1989.85

Carvalho. Alberto, «trinca e criação nas literaturas da Ainca Negra: tradição e modernidade».

(Comunicação ao I Colóquio I uso-Brasileiro de Professores Universitários de Literaturas de Expressão

Portuguesa, Actas. ..Cf Bibho..p.42280Idem. p. 418

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32

Fazendo uma retrospectiva sobre os vários desenvolvimentos desta questão. Alberto de

Carvalho fala sobre a «noção de 'arte total' que a moderna estética africana toma como um

dos seus princípios basilares

As teses sobre o romance que surgem no âmbito da «Negritude» tendem a idealizar o

passado, fazendo a defesa incondicional dos valores da tradição, de que é caso exemplar o

romance Les soleils des Indépendcnces. de Ahmadou Kourouma. «que pode ser

considerado como o resultado último da confrontação entre a tradição e a sociedade

moderna»

Segundo Mohamadou Kane. do Congresso dos Escritores Negro-Africanos de Paris( 1 ').".())

saíram «duas atitudes dos romancistas em relação às tradições» . Na primeira tratava-se de

promoverem a reabilitação dos seus valores ancestrais e dc afirmarem as suas diferenceis

específicas e. na seguinte, de executarem a 'palavra de ordem' daquele Congresso com a

adopção da atitude de comprometimento político anti-colonialista» . Na década de

sessenta «surge uma terceira 'atitude' que supõe o confronto das tradições com as novas

perspectivas sócio-polílicas».

Ora. sc a -Negritude» se projecta sobre os intelectuais das colónias portuguesas estes.

devido à sua situação de luta contra o colonialismo, terão de ajustar todas as influências à

i 91

complexa situação que vivem.

Desde logo. essa situação de guerra faz. que haja «um enorme desequilíbrio entre uma

relativamente grande produção criativa, no quadro de uma acção pedagógica essencial(...) e

uma escassa produção teórica poética e crítica». Conforme afirma A. Carvalho é «ao nível

dos textos programáticos que se formulam conteúdos críticos culturais, imediatamente

interessantes para a compreensão da problemática literária» ".

Idem. p. 412ssKane. M . Prefácio a Roniain Africam et tradititw.Les Nouvelle-. Éditions Afhcamcs. 1 .ikai. I982.p. 19

!V

Alberto de Carvalho, op. cit p.-t 1 4

90Idem. p 4 14

91idem, p. 417

9:Idem, p. 419

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33

Num desses textos, Aristides Pereira, numa postura crítica, reconhece« a difícil questão do

conciliar os modelos tradicionais africanos de pensamento e da acção com as exigências do

progresso moderno» ~\

Conclui-se. no entanto, que apesar da escassez, teórica e crítica nos países de língua

portuguesa «as intenções programáticas enunciam grandes linhas» que estão ausentes de

trabalhos para o projecto de uma estética africana.

Na VI Conferência dos Escritores Afro-Asiáticos, para os escritores angolanos «acultura

nas suas formas tradicionais(...) é pensada como um factor de riqueza e de identificação a

continuar no processo programado de todas as transformações» .

Também o grupo de escritores moçambicanos afirmaser sua preocupação que «a tradição

da literatura oral. além do seu valor intrínseco como forma cultural, se mantenha.

acompanhando a transformação política e social em curso, e as histórias continuem a ser

contadas, lá onde antigamente se contavam e ainda se contam».

Existe por parte dos teóricos e analistas dasliteraturas africanas modernas a preocupação

de definir uma estética africana.

Para Janhcinz Jahn. a classificação das literaturas em função das línguas da sua «escrita»

nâo tem cabimento na actualidade%

e exclui os critérios linguísticos (assim como os

raciais e geográficos), como elementos definidores de uma literatura, concluindo que «as

obras literárias não se deixam repartir senão pelo seu estilo.7

Segundo ele, é fácil traçar « a fronteira entre a literatura oral e a escrita (...) Teoricamente,

a distinção é simples, na prática, contudo, é difícil, pois supõe quese conheça as estruturas

de estilo e de pensamento da tradição «agisymbiana».»

Algumas dessas estruturas, esquematizadas no seu livro Muniu, consistem na «fixação de

uma imagem magicamente evocadora, preferência pela estrutura rítmica à estrutura

9>Idem, ibidem

idem, p. 42295

Thomas Melone ap. Carvalho. A., op.cit. p. 423

%Jahn ap. Salvato Trigo.op. cit., p. 14

Idem. p. 15

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34

dramática, tom imperativo, quer dizer alguns topoi (características)formais que, na poesia

9S

da Negritude saltam aos olhos».

Contudo, não só «é necessário separar os elementos deestilo e as formas de pensamento

que têm a sua origem na literatura oral»"° .mas também procurar saber em que contexto

são utilizados na tradição oral e a sua significação. Isto é. interessa verificar de que forma

se processa a intertextualidadecom a literatura oral. Se existem marcas da literatura oral.

desde os símbolos à própria estrutura textual, que concorrem para uma postura dialogica e

interactiva entre os dois tipos de literatura.

Bernard Mouralis10°

acha que as noções de cultura e literatura neo-africanas formuladas

por Jahn permanecem interessantes, «apesar do carácter demasiado geral de uma tese

segundo a qual os textos negro-africanos se definiriam essencialmente pela permanência dc

características especificamente africanas (critérios dc african idade) na medida em que

permitem ressaltar a unidade numa produção geograficamente dispersa c sobretudo tomar

consciência da realidade de que esta unidade assenta na oposição cultural e política perante

o mundo europeu.

Mouralis acha, no entanto, que «convém também tornar mais precisos, agora ao nível dos

próprios textos, os elementos que estruturamo universo ao qual se referem os escritores»

Das primeiras questões que se colocam uma é a de saber quais os critérios a utilizar no

estabelecimento desse quadro.

Salvato Trigo, na obra O logolela no capítulo que dedica à caracterização da «Estética

Africana» afirma que «ela resulta dum diálogo entre a oratura e a escrita, diálogo esse que

i- i■

•-.-I02

o texto resolve pelo recurso à tradução: retórica, mierlmgual e inter-semiotica». .

Conforme afirma, «o texto da africanidade literária não se constrói apenas com o auxílio

das figuras textuais características da oratura - provérbio, conto, adivinha. Ele reahza-se

também ao nível lexical e sintáctico»

98

Jahn, Janheinz. Manuel de Littérature Néo-Africaine: du I6e siècle à nosjours, de I'Afrique à PAmérique.

Ed. Resma, Paris, 1969, pp. 16-1799

Idem, p. 17-18m

Bernard Mouralis, As comru-Literaturas, Liv, Almedina, Coimbra, 1982. p.l85

,u

Idem. ibidem102

Idem, p. 201103

Trigo. Salvato, op. cit. p. 179

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35

Para a definição da estética africana, Salvato Trigo acha fundamental que sc tenha em

conta a especificidade «das formas de expressão verbal e de organização textual» da

literatura africana. Fazendo uma breve análise de alguns dos aspectos característicos da

Retórica tradicional ocidental aplicada aos textos africanos, ele chega à conclusão que «por

vezes, certas situações linguísticas, discursivas ou textuais, a que nós chamamos desvios,

são, num contexto africano, norma»10'. Isso seria a prova de que «as ferramentas teórico-

literárias ocidentais nem sempre servem para abordar e esclarecer factos literários

africanos.»

A inspiração animista é um elemento contribuinte da estética africana, ideia apoiada por

S.Trigo, em consonância com o grupo da revista nigeriana Okike: «Uma poética africana

deve estar baseada numa sensibilidade africana e é incontestável que o reservatório nâo

contaminado dessa sensibilidade é tradição oral africana. É daí. portanto, que nós devemos

extrair os elementos fundadores da poética africana moderna».

No mesmo sentido vai a afirmação de Pathé Diague ao afirmar que« a estética da oralidade

renovou a arte literária». Salvato Trigo a este propósito tem a opinião de que «é esta

subjaeência da oralidade e da oratura que transmite à superfície do texto literário africano

moderno a sua qualidade africana que aí se mistura com a .literariedade».1(16

Odun Balogun. citado por Salvato Trigo, sistematiza dez das mais importantes

i _- '■

* r .

I07

características da Estética africana, com particular referencia a literatura.

Das características expostas por Balogun. S. Trigo ressalva como «elemento mais distinto

e portanto mais diferencial, da Estéticaliterária Africana - a expressão verbal, isto é. a faia

literária. E. na perspectiva da literatura africana de expressão portuguesa Trigo propõe-se

dar resposta à questão seguinte: Que fala fala a literatura africana de expressão

o108

portuguesa/»

Salvato Trigo.op. cit., p. 141

105Idem, p. 147

m

Idem, p.l 48107

Idem, p. 14308

Idem, p. 158. Na perspectiva da literatura africana de expressão portuguesa. S. Trigo propõe-se dar

sposta à questão seguinte «Que fala fala a literatura africana de expressão portuguesa?»re

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36

Aponta ainda, uma constante do chamadoestilo africano - o ritmo. Segundo o mesmo autor

é compreensível que «numa civilização de oralidade em que a cultura tem de ser

transmitida de viva voz. o ritmo seja um elemento fundamental na memorização, que se

..

.

u , ,109

exige, para conservar e retransmitir o patrimóniocultural ua nação.

Nessa noção de ritmo característico africano, a repetição (marca do ritmo africano) tem

uma função distintiva, que está presente na música. . Existiria assim uma sintaxe

comandada pela música, com predominância do ritmo, por oposição «ao ideal dc frase

ocidental, onde se privilegia a harmonia, a melodia».

Investiga neste ponto, «se a escrita africana moderna opera uma simples transposição ou

imitação do ritmo característico da oratura ou se ao contrário,lhe impõe alterações, visando

uma sintaxe onde o ritmo e a melodia possam coexistir.

Analisa o ritmo, «mais como elemento estilístico, isto é. como componente e determinante

dos textos da oratura» para verificar «até que ponto a moderna escrita africana é daquela

subsidiaria».

A partir da caracterização que Senghor faz do ritmo da poesia c da prosa africana. Trigo

destaca duas importantes características da oratura: «o seu sentido participativo,

comunitário e a sua teatralidade»

A teatralização é indissociável da narrativa tradicional africana, desempenhando «uma

tripla função: metalinguística. fática e conativa». permitindo uma grande economia de

meios linguísticos, visto a oratura «na sua faceta não-iniciática. é comum a todo o clã, há

uma comunicação ritual que se estabelece entre destinador e destinatários que autoriza,

portanto, a eliminar da superfície do texto todos aqueles elementos gramaticais,necessários

para a elaboração lógica dum discurso que se desejasse legível »

""Idem. cf.p. 160110

Idem, p. 161 S. Trigo caracterizando a música «enquanto forma de linguagem inseparável da Jalu

africana acha nela «bastantes respostas para a escrita de alguns escritores africanos modernos,como por

exemplo José Luandino Vieira111

Idem.cf. pp. 161-162"?

Idem, p. 167113

Idem. p. 169 Daí a razão por que a escrita (Luandino Vieira , por exemplo) presta especial atenção à

encenação que ele verbaliza até ao pormenor mais inesperado. Esse tipo de escrita seria assim guiada por

«uma sintaxe emocional» mais implícita e intuitiva do que gramatical.114

Idem, p.l 7!

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37

Essa sintaxe canguruística."2' produtora de uma espécie de um estilo telegráfico, duma

estenografia esoterizante e. por isso mesmo selectiva da legibilidade, na medida em que,

com os vácuos relacionais causados pela ausência das palavras de ligação, o pensamento

evolui por saltos».

Na oratura,« não existe, propriamente diferença entre poesia e narrativa, sendo ambas as

formas textuais caracterizadas por um ritmo de base, e por uma tcatralização ou economia

linguística. O ritmo . intrínseco e extrínseco ao texto(...) é o suporte da oratura ao mesmo

tempo que «memoria» do povo negro e de sua civilização»

Sobre a linguagem Salvato Trigo, refutando Jahn. não acha «que as literaturas se

distingam somente pelas tradições culturais específicas que veiculam». Quantoa ele a fala

dessas literaturas «é também um elemento essencial essencial de caracterização e dc

individualização»."7 Assim, ocupa-se da linguagem das literaturas africanas modernas, que

podem ter uma língua comum e usarem uma linguagem diferente.

De entre as várias literaturas modernas africanas, Salvato Trigo individualiza as de

expressão portuguesa como possuindo «origens mais remotas e fundas do que as de

expressão francesa c inglesa, o que lhes permitiu desenvolver um discurso híbrido com

tradições históricas acentuadas...»

Refutando a posição de Jahn «quando ele afirma que não é a expressão linguística que

pode. ou não, fundamentar uma literatura»,"9 Salvato Trigo cumprea tarefa de demonstrar

«a fragilidade da argumentação de Jahn».

Baseando-se na análise de textos angolanos, S. Trigo conclui que o «mundo de mestiçagem

cultural» neles evocado é dado «não só por elementos textuais que a referenciam mas

r■ ■

1- J l2(l

também por extractos de um discurso perfeitamente crioulizado»

115Idem. ibidem. Christiane Seydou chama-lhe «sintaxe estilística e aponta alguns dos seus proce

paralelismos, repetições, oposições, quiasmos. redundâncias, jogosrítmicos e fónicos ele»

'"'Idem, p.172'"idem, p.l 18

""idem. p. 71m

Idem, p. 471211

Idem, p. 80

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38

Assim, «o drama linguístico» que as outras línguas de colonização provocaram» encontra-

se bastante diluído, se nào ausente, nas literaturas de expressão portuguesa, segundo

demonstra Salvato Trigo devido à extrema «ductibilidade da língua portuguesa que sc

j 121

deixa mestiçar com um certo a-vontade.-

Não sendo o objecto central do nosso trabalho, nâo podemos deixai" de nos referir à

linguagem presente nas obras de Mia Couto, já que ela se constitui num dos aspectos

marcantes do seu mundo literário.

Nos textos de Mia Couto, ganha particular relevo a grande riqueza linguística, em que se

conjuga a vivacidade das falas com a expressividade metafórica da narração. Baseando-se

no português falado em Moçambique. Mia Couto submete esse «material» popular a um

processo de criação literária, tentando a proposta de uma nova linguagem que se integra no

projecto da «moçambicanidade».

Linguagem inspirada na oralidade africana, e logo devedora da cultura oral, nela se

detectam «desde as inovações lexicais ate à adopção de mecanismos sintácticos do

discurso não normativo»1 . É o próprio escritor a considerar os possíveis «desvios»

linguísticos como «os sinais de emergência de uma cultura que sc apropriou de uma língua

. . . P3

e a vai moldando para que dela se possa servir inteiramente.»"

.

Pires Laranjeira faz da «criatividade e inventividade da linguagem» um dos componentes

fundamentais da criatividade textual presente nos textos do autor. Considera-a «típica de

escritores colonizados terceiro-mundistas que procuram afirmar uma diferença linguística e

literária no interior da língua do colonizador, na esteira de James Joyce (irlandês). João

Guimarães Rosa( brasileiro). Kateb Vacine (argelino) ou José Luandino Vieira

(angolano)"'

.

'"*'

Idem. cf. pp. 88-89 e p. 97 «lemos para nos que esse drama não chegiu a emergir em virtude da

ducnbilidade com que a língua portuguesa se deixa trabalhar e vialenlar.islo é. a facilidade com que é

possivel pidgimzii-Ia alé limites que as outras linguas não suportariam, sob pena de se tomarem totalmente

irreconhecíveis e esvaziadas da sua função primordial: a comunicação.»I::

Sobre a questão da língua cf. Perpetua Gonçalves. «Situação Linguistica em Moçambique-Opçòes de

escrita» in: Tempo 9-4-89 e Colóquio-Letras n° 110-111. Julho- Outubro I9S9'■"'

Entrevista à Tempo. 12-10-1986IM

Laranjeira. Pires. Literaturas Africana*, de E-.pre-ist.ti Portuguesa. Univ. Aberta. Lisboa.1995. p 314

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39

A exemplo do que acontece com Luandino Vieira, essa criatividade assenta « na

exploração das potencialidades estruturais do Português, como da pressão que as estruturas

e a fala das línguas africanas(...) exercem sobre a norma europeia, contribuindo para o

desenvolvimento de uma norma moçambicana »"

.

Sobre esta última questão, há que reflectir sobre o facto de que a linguagem de Mia Couto

revela um trabalho de reelaboração artística, sem preocupações de fidelidade a relatos

ouvidos. A esse propósito. Lourenço do Rosário realça o papel importante da literatura

«que tem procurado estabelecer uma ponte possivel entre o português oficial e o português

.- ,. l__ialado» .

No entanto, sc essa literatura deve funcionar «como ponto de referência essencial sobre o

estatuto da língua portuguesa nesse processo( o do Português como língua africana, no

sentido cultural), é necessário ter em conta que é «um discurso de fingimento» que não

I **7

deve ser confundido com a realidade.

Além disso, a linguagem é ainda factor dc uma deis outras componentes da criatividade

textual, o humor, quer no modo de contart «humor dc narração»), quer dos nomes próprios.

quer no «humor de personagem» que se define pelei linguagem ou ainda o humor da

enunciação, ou humor da linguagem, a nível sintáctico como lexical."

Dadas as suas características, é difícil precisetr onde são utilizados processos próprios da

criatividade do autor ou se trata de processos produtivos no Português de Moçambique.

Trata-se dc uma linguagem literária que não sc pode submeter a uma mera analise

linguística, embora haja uma sistematicidade dc fenómenos observados.

Por exemplo, do ponto de vista lexical, existem «processos de criação de palavras como a

amálgama lexical e processos morfológicos produtivos no Português como a composição e

a derivação por preltxaçao e sulixaçao

Idem. pp 3 14-3 15"'"Rosário. Lourenço. «Língua Portuguesa e expressão moçambicana», in: Discursos, n" 3. Fevereiro I

p 1 13,r

Idem.p 114

'

Laranjeira. Pires.op cit. pp. 316-318''"'

A este respeito cf. Ana Blaser . «.Inovação lexical nos texto- de Mia Couto» in: RILP n°l2. pp. 58-63

Mem. p. (>2

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■1(1

Os fenómenos de inovação lexical constituem-se como singularizadores de um estilo, mas

permitem um processo de interpretação por analogia com palavras mais familiares.

2. As formas literárias da tradição oral

O conceito de texto implica algo estável que existe independentemente de todos os que o

interpretam.10 Jan Vansina falando sobre mensagens da tradição afirma que nenhuma

mensagem existe totalmente sem fornia, se assim fosse a comunicação não ocorreria.

Todas essas mensagens se integram em géneros, numa combinação de forma e conteúdo

que se ligam a categorias literárias bem reconhecidas e praticadas nas sociedades em

estudo."v

Embora Vansina estude o caso da tradição sob um ponto de vista histórico, aborda, no

entanto, alguns pontos que nos interessam sobremaneira.

Cita M. Joussc que defendia que toda a literatura oral estava sujeita a regras formais.

sobretudo sintácticas, o que a fazia «destrinçável» da literatura escrita. Vansina não acha

esta teoria muito convincente, já que segundo ele. isso faria com que as únicas diferenças

marcadas entre a literatura oral e escrita era que a repetição ocorre mais frequentemente na

comunicação oral.

Quanto a cie uma análise das estruturas formais e informais não esgota a análise da forma e

do conteúdo"4 . é preciso ir mais longe e «determinar a que género pertence a mensagem»:

lt is necessary to go further and to determine to which genre the message belongs.

A message is expressai in a given genre when it is put in a gtven form and internai

structure. and when ils siihject malter corresponds to lhe rales prescrihcd. Genros are

recognized in everv culture and are named. Genres are thits conccpis that are culture

boundi ) The retptircments ofgenre mold the expression of the message

111

Idem. p. 58n:

«The concept . ie\t implies a stable something that exists independem ly of ali those who ínterpret it ll's a

written item.nin:Vansina J . Ora! tradition as histon: p.67"3

Idem. p 69

r'AIdem, p. 79.

'"idem.p XI

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4]

Segundo este autor, «especialistas na arte verbal» tentaram construir categorias literárias

universais, dada a necessidade que delas se fez sentir nos estudos comparativos e refere-se

à tentativa que para Africa foi feita por Ruth Finnegan.

Esta autora dividiu as mensagens em «Poesia» (poetry). que contém seis subgrupos; em

«Prosa» (prose), contendo quatro subgrupos: «tale», «riddle», «proverb», «oraíory»; em

«Formas especiais» (special forms) tais como a linguagem dos tambores e o teatro.

Vansina, numa visão crítica, afirma que este esquema universal podia ser válido se apenas

fossem usados critérios formais mas, de facto, o conteúdo tem de ser usado. Além disso.

observa que as subdivisões bastante elaboradas poderiam resolver a situação, mas em

determinados casos, isso não acontece .

Por sua vez considera as seguintes formas fundamentais das tradições orais:

Poema (de forma estabelecida e conteúdo fixo); Fórmu!a(dc fornia livre e conteúdo fixo);

Epopeia{ de fornia estabelecida e conteúdo livre(cscolha de palavras) e a Narrativa (dc

forma livre e conteúdo livre (escolha de palavras)

Na moderna narrativa africana há uma ligação às formas da tradição oral. visível tanto «ao

nível da forma de expressão» como «ao nível da forma do conteúdo»137

Conforme Salvato Trigo afirma1-" «A adesão do escritor à africanidade reside (...) na sua

capacidade de transpor para a escrita figuras textuais características da oratura a fim de

cerzi-las no corpo do texto escrilo(...)» e algumas dessas manifestações da oratura são o

provérbio, o conto ou a adivinha, visando um discurso de africanidade. constituindo-se

como «processos de africanizar a linguagem e os géneros literários».

No âmbito do nosso trabalho e nos pontos seguintes, iremos dedicar especial atenção ao

conto e ao provérbio.

I3"Idem. p. 82

"

trigo, S., Literatura Comparada.. ., p. 83, sobre a narrativa de W. Xitu

in: O logoteta, p. 177

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42

2.1. O conto oral na literatura escrita

«Contos africanos? Não é a mesma coisa, aforma é outra. Primeiro são imagens que para

mim estão um pouco esbalidas. O que eu quero não é a forma, a construção da narrativa.

Muitas vezes essas histórias eram fábulas de animais, com um fim moral muito marcado.

coisa que eu procuro sempre retirar das minhas histórias, o grã final com a moral bem

demarcada. Eu não posso dizer:«AU está uma forma africana de fazer contos».Sim. há

uma influência, cem certeza.» Mia Couto (entrevista)'

Por exemplo, abolir esta fronteira entre prosa e poesia. Porque ê que a coisa tem de estar

arrumada, porque é que é preciso haver esla categorização de géneros literários. ..(...)Nós

podemos talvez criar à margem disso(...)É lógico que tudo isso já está dito. no outro lado

do mundo, (entrevista)

Integrado na esfera romanesca, este subgénero em prosa, tem merecido longa atenção por

parte de inúmeros estudiosos que. a seu respeito, construíram longa bibliografia, e

ensaiaram diversas abordagens.Vários ramos das Ciências Humanas(Antropologia,

Etnologia, Literatura, Psicologia, sociologia, Linguística, Psicanálise) problematizam o

conto, sob diversos ângulos.

Na literatura oral tradicional, o conto apresenta-se como elemento de um género

narrativo-dramático. que engloba textos, quer em verso, quer em prosa, que assentam na

componente discursiva que é a narração e que têm como elemento diminuto ou principal o

diálogo. Este tipo de composições140 caracteriza-se por um conteúdo simples «na sua

estruturação e na própria representação do mundo», sendo que o conto apresenta uma

categoria dominante: o «maravilhoso». No entanto, têm como ponto dc partida o

aproveitamento de aspectos da «representação do mundo».

A definição dos géneros narrativos populares pode compreender distinções relacionadas

„. . -

.... 141

com as suas marcas formais, os seus registos temáticos e os seus usos sociais possíveis.

Universalmente, fazendo parte de uma cultura transmitida oralmente, muitos dos contos

são «anónimos, de origem longínqua e difícil de precisar».Considerado como uma «fornia

139Chabal. Patriek.op. cit., p.290

110João David Pinto Correia, na sua proposta de classificação por géneros da literatura tradicional oral.

designa-as de composições registadoras-elementares. Cf. «Os géneros da literatura Oral tradicional-

contributo para a sua classificação» in: RILP n°9. Julho de 1993

141

Idem, p.40

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43

simples »o conto provavelmente existe desde épocas remotas.""

Segundo Emília Traça os

contos «são narrativas facilmente reconhecíveis: trata-se dc histórias simples, curtas, que

apresentam personagens «tipo».(...)São a personificação das crenças de culturas

específicas». As «emoções retratadas» podem viajar, pelas diversas partes do mundo»,

«mas as manifestações individuais dessas manifestações reflectem os costumes e as crenças

do grupo que conta a historia» .

Segundo a definição de conto dc R. Ferriot. «porque procede do mundo mítico, porque

ainda nele participa, e em Africa mais estreitamente do que talvez noutras partes do

mundo, o conto é a narrativa de eventos que se encadeiam de uma maneira fatídica c

144

matemática»

Assim, segundo Michcle Simonsen, o conto é uma narrativa cm prosa de elementos

fictícios, tidos como tal, feita com uma intenção explícita de divertimento», ao contrário

do mito que «simboliza as crenças de uma comunidade, os acontecimentosfabulosos tidos

por verdadeiros, e está ligado a um ritual, a um conteúdo cosmogomeo»

Dcnise Paulme afirma, no entanto, que o conto oral não tem como objectivo «o puro

divertimento, transmite sempre em linguagem alusiva uma mensagem implícita ou várias

que o auditório decifra mais ou menos facilmente», para além disso esta forma de ficção.

pela sua aparente leveza «permite abordar as questões mais graves(...)à imagem ideal da

sociedade, tal como sc quereria, justapõe-se uma crítica que pode ser severa»

'

Assim,

pode servirpara ilustrar um ensinamento, criticar uma instituição ou simplesmente

preencher uma função lúdica.

Fazendo parte das tradições orais, o conto constitui-se como um dos «mecanismos que

asseguram a relativa unidade de valores»'

Embora os valores transmitidos se devam

manter inalteráveis, salvaguardando «a ligação entre as gerações de uma mesma

t4~Jolles. ap. fraca. M. Emília. Ofio da mcmóna-Do conto popular ao conto para crianças, Porto Ed.. Porto,

1992, p.311

Idem. ibidem'"

Ap. Pinto Bule, Benjamim O crioulo Ja Gtiiné-Bissau-Filosqfta e Sabedoria, ICALP, Lisboa. 1989.

p. 1 86.Den.se Paulme confirma que mito e conto não são géneros distintos do ponto de vista genético.

Ap.Traça M. E.. op cit.. p. 40'"'

Paulme, Denisc. ob cit..pp. 11-12

1-17

Traça. M. Fr.., op. cit. p. 48

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44

comunidade»"' .novos elementos podem ser acrescentados adequando íi versão

tradicional à realidade contemporânea.

Denise Paulme reforça o facto de que se trata de uma obra de arte «cm que a preocupação

de bem dizer se alia à da repetição, um conto não existe se não a partir do momento em que

um auditor tendo-o apreciado decide comunicá-lo a um novo auditório» . Esta autora

refere, ainda, como característica importante do conto que «o bom contador deixa ao seu

-

, i .fi

público o cuidado de retirar da narrativa uma moral que nem sempre e evidente» .

Todos os contadores insistem no facto de que eles transmitem aquilo que lhes

transmitiram, que eles nào inventam nadav

. Os fenómenos formais tais como rimas.

aliterações, pares semânticos não respondem apenas a necessidades estéticas, constituem

por sua vez uma resposta ao problema da memória (retém-se melhor um texto em verso

que um texto em prosa, uma certa procura semântica e uma procura estética ". Ainda

segundo Calvet o texto de tradição oral está na convergência dos princípios de

improvisação e memorização.

A esse propósito. Arnold Van Ciennep designa de «littérature mouvante» aquela que integra

o conto, por oposição à «littérature fixée»(provérbios. ditados) e isso porque tratando-se de

uma narrativa «mantida pela memória colectiva» permite ao contador actualizá-la de

acordo com o seu talento»

Em Africa, particularmente nos meios rurais, serve o conto de factor dc união e de prazer,

tal como diz Junod. «Narrar um conto (...) é considerado por toda a parte, o jogo mais

.- _• . i- i Ir1-*

distinto e agradável »

Junod conclui que «os contos bantos são muito antigos, pelo menos os materiais que os

formam. Mas são feitos de uma substância plástica, o que permite aos narradores operarem

nela. inconscientemente, importantes e incessantes modificações.»

148

Rosário, Lourenço, t Narrativa !/• .<<...<., p. 47149

Paulme, Denise, op. cit., p. 4-1

Idem, p. 45'"'

finnegan. ap. Calvei,L.-J..op. cit. p.40*

Idem. p.421 J

Traça. M. E.. op. cit.. p. 3l>lí4

Junod, H.-A.. Henri. Usas e Costumes dos Bantos. I II. Imp. Nac de Moçambique. I ourenço Marques.

1974. p. 209

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45

O que vai ao encontro da opinião de Viegas Guerreiro que, ao falar dos contos macondes.

aponta o facto de que os contos bantos «são força viva e realidade presente, enfim um

permanente documentário etnográfico»

Pinto Buli tem a opinião de que não há «critérios absolutamente objectivos para

estabelecer um escalonamento nos contos - escalonamento segundo os temas ou segundo

os motivos que são múltiplos e complexos-, adoptando uma classificação pessoal, nos

155

contos que trata, partindo dos relacionamentos entre as diferentes personagens.

Quanto a Denise Paulme. aponta um número limitado dc temas, baseando-se na

classificação d'Aaarne e Thompson que se refere ao folclore internacional e que é uma

divisão empírica constituída sobre o assunto da intriga, o que daria um «conto-tipo». Na

classificação destes autores, que não seria totalmente funcional para o caso de Africa, tendo

em conta o «corpus» trabalhado por eles. teríamos essencialmente quatro tipos de conto:

sobre os animais; propriamente ditos: as anedotas; e os contos maravilhosos.

Segundo D. Paulme em África esta chissificação torna-se arbitrária, já que os temas se

confundem e é difícil classificar um conto sob uma só rubrica.

De acordo com Brookshaw."'

o tema mais comum c universal é o amor em conlronto

com as convenções sociais. Cita ainda uma autora que considera como subtemas o amor. a

infidelidade, que correspondem ei isotopias do tipo de (ireimas, contudo esses temas

também estão na tradição literária ocidental. Na literatura oral o tema amoroso é muito

vulgar.

Roland Colin mostra na sua obra(cl. biblio) que há uma semelhança de espírito e de temas

nos contos africanos. O tema muito geral do pequeno que pela manha (ruse) ganha ao forte,

está espalhado em toda a Africa '.

A maioria dos contos têm animais como personagens principais, c é comum encontrar por

todo o território a temática do triunfo da sabedoria sobre a força, dos mais traços e

insignificantes sobre os mais lorles

155Idem. p.l 86

l4''

Brookshaw, D., cf. op. cil. pas.Ií0

Colardelle-Diarrasouba, M.. /.< lievn et Paraigncc dam les contes de Ttiuest a/hcam.Vmem Generale

dÉditions. Paris ,1975. p. 225

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46

Muitos contos são inspirados em factos reais, como acontece entre os 'longas que chamam

ao enredo determinada seca memorável; uma epidemia que grassou em determinada região

etc; ou entre os senas e de igual modo os macondes, que enquadram narrativas em espaços

geográficos identificáveis (Beira. Mocimboa...)ou fazem referência à emigração por

exemplo. Merece destaque entre a temática dos contos macondes a amizade e a

hospitalidade, sendo um espelho dos costumes sociais deste povo.

Relativamente à incorporação de características da tradição oral na escrita veritica-se que

em Africa o conto se apresenta como o modelo prelerencial dos escritores. Agora ê

evidente que têm de operar uma transposição, têm de entrar, citando Gaston Bachclard.

«no reino do psiquismo escrito», ou seja. os contadores de estórias não diriam aquilo que

eles escrevem. O escritor inspirado na tradição oral vai sobretudo «reinventar o material

para outro público, colocando num enquadramento etno-histórico relevante aos seus

leitores .

Nas literaturas africanas, essa problemática que engloba várias categorias da narrativa.

coloca-se também a nível temático, já que a essas narrativas «subjaz uma mitologia

tipicamente africana >».Nl-'ssa Perspectiva, o conteúdo temático, percepcionado a partir de

valores da tradição oral. pode ser um dado para julgar a africanidade de uma escrita

literária (Maria Aparecida Santili).

2.2 O provérbio na narrativa escrita

Descrição e características - O provérbio é um dos géneros mais importantes da tradição

oral.

Desde sempre fez parte do património dc todos os povos, havendo que lazer, no entanto, a

distinção entre aqueles que teriam origem literária, no caso deis línguas com tradição de

escrita, e os de origem popular, no caso deis línguas quase exclusivamente laladas. Ua a

acrescentar que. sendo uma das suas principais características a economia de palavras.

quase sempre eles vão dar à cultura erudita muitomais do que desta recebem.

5

Brookshaw. David, op. cit. pas

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47

No caso presente inleressa-nos sobremaneira debruçarmo-nos sobre o último caso. já que

nos situamos no contexto africano, de recuperação do património oral para a escrita.

Definição de provérbio- O provérbio é uma mensagem que se integra na «arte de saber

falar» apresentando «as palavras simbólicas e com o sentido às vezes escondido».

Segundo Pinto Buli. a definição de provérbio seria a seguinte: « fórmula nitidamente

concisa com estilo geralmente metafórico, pelo qual a sabedoria popular expressa a sua

experiência de videi»1"' No seu estudo, ele considera os adágios e as expressões proverbiais

que. embora possam possuir cambiantes, têm uma característica comum: provêm do povo e

pertencem ao povo. Citando E. Desselo. Buli considera serem os provérbios e as sentenças

«géneros maiores em Africa de que os homens são detentores» .

Os provérbios, também chamados dc prolóquios. « exprimem de forma lapidar, as emoções

mais íntimas do I lomem, perante tudo o que o rodeia, contendo assim verdades

axiomáticas comuns a lodos os povos e também na sua maioria, outros vinculados ao local

e à terra onde se forjaram »."' No contexto africano, os provérbios são, na opinião de

alguns estudiosos, o produto mais autêntico da suei literatura.

Ao contrário de outros géneros da tradição oral. como o conto, que se podem ir

ie:

modificando, a sua estrutura e valor permanecem, mesmo que surjam outros novos.

Assim, os adágios são ;i expressão da filosofia popular, um resumo das atitudes do homem

perante um código de procedimento, reflectindo uma atitude existencial.

Em Moçambique os provérbios sào de uso muito frequente e alguns estão bastante ligados

às lendas e contos, em que são protagonistas os animais, chegando mesmo a ser títulos de

lf>3contos tradicionais.

IS

Lukoki, Makenuo. «Iradição oral. veiculo do saber popular»(comunicação apresentada ao I Simpósio

Internacional de Cultura Angolana. Porto. I 7-2(1 Maio. 1989)

'•"Pinto Buli. R . op . cil., p 131

Idem. ibidem"''

in: Provérbios maeuas (coligidos pelo Pe A Valente de Matos). I. (.Cientifica tropical. Lisboa. 1 9S2. p. I I

lo;

in: «Introdução» a 601 provérbios (7i< tnganas (org. Pe Anilando Ribeiro). C M..2' ed.. Porto. 1989

Idem, p. 5

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48

Na recolha e classificação de provérbios macuas, feita pelo Pe Valente, este afirma que «

há apelos frequentes aos usos, costumes e tradições do povo. a factos históricos» e que «no

seu corpo se reflecte (...) vivamente toda a vida do povo. deixando descobrir as suas fontes

inspiradoras: crenças, acontecimentos, histórias reais, fábulas, ditos lacónicos e elegantes.

hábitos dos homens e dos animais e principalmente a observação atenta da Natureza

circundante.»

Na sua expressão, utiliza-se «uma linguagem de recorte difícil, tendo uma formulação

alegórica, fazendo-nos reportar do seu sentido literal para o metafórico»'

. no momento

da sua descodificação.

O provérbio e a sua utilização na tradição oral- Na sua recolha de provérbios changanas.

o Pe Armando Ribeiro dá-nos a ambiência do reconto oral c de que modo aí se integram os

provérbios.

Assim, « nas noites quentes de Verão »?

ou no Inverno, « ao calor da fogueira » se

juntariam crianças e adultos que « escutam atentamente da boca das velhas da aldeia a

história dos antepassados »: costume que ainda se conservaria nas regiões do interior. U.sta

«escola familiar» como lhe chama, não seria assim apenas um passatempo, mas uma

verdadeira «instituição clânica», obedecendo a uma ordem precisa: primeiro, surgiriam as

adivinhas; depois os contos e as lendas e terminaria pela narração dc factos verdadeirosda

história dos antepassados.

O provérbio encerra normas de moralidade e de guia, já que «do ponto de vista psicológico

a palavra é uma força e no plano ético a palavra, na medida que ela exprime claramente os

textos proverbiais, ou patrimoniais, é signo de conhecimento e sabedoria» .

Do ponto de vista do conteúdo, ele engloba os aspectos importantes que veiculam a

comunidade: sentença moral (conselho ou aprendizagem) e a conversa ( Makengo Lukoki).

Os provérbios, apresentam uma estrutura formal que os aparenta ao estilo oral. com ecos

fónicos e semânticos168 O uso da metáfora e da comparação são elementos importantes na

"'4Pe Valente de Matos, op. cit. p. 12

"'5«A literatura oral é essencialmente palavra da noite»Calamme- Ciriaule apud Traça, op. cil. p.

4 1

"*Pe Armando Ribeiro.op. cit.. pp. V-VII

167Houis. Maurice, Anthropologie Lingutstiquc de UAfrique Notre, PUE, 1971 , p.55

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composição do provérbio. Kstc possui um ritmo próprio que por vezes confina com a

poesia. As aliterações e o paralelismo dos membros da frase, assim como a repetição de

palavras, são elementos diferenciadores dos aforismos realçados por Jahn.

O recurso à parémia é entendido na moderna estética africana como uma marca dc

africanidade discursiva l7t'. Tal como sugere José Carlos Venâncio, essa opção, assim

como a temática e a forma como é tratada, com a inclusão do insólito, constitui, no global.

uma «afinidade estética» nào casual, aliás nada é casual em qualquer texto literário, entre

alguns dos novos escritores moçambicanos.

O contexto moçambicano

Alberto de Carvalho insurge-se contra a utilização de termos identificadores de «lusofonia

» e afins, pois acha que estes «reduzem as respectivas literaturas à sua referência escrita.

com evidente prejuízo das afinidades que mantêm com o seu mundo de manifestações

■ 172orais»

Quanto a ele. sc houve um tempo político de emancipações que justificou o emprego

quase exclusivo dos modelos europeus, «outro deverá seguir-se no desenvolvimento de

uma epistemologia africana, onde os géneros, as formas, as funções e os temas deverão

configurar a sua especificidade africana». Conclui, que «não é . por isso. improvável que as

suas poéticas procurem agora recuperar algumas diferenças essenciais (...)

Na verdade, uma das características da moderna literatura moçambicana é a abordagem da

oralidade. Perpassa nas obras dos escritores, o intuito de recorrer as raízes ancestrais e de.

Calvet. op. cit . p. 41' '

Jahn. Janhem/, Muniu . IZhomme africam et la culture néo-africame.V.d. du Seuil. Paris. s/d. p.7110Cf Trigo. Salvato. O iog»h-ia. p 75

171Venâncio. José Carlos. «Entrevistas com escritores» nv.Littratura e poder na Africa Lusófona. ICALP

Lisboa. I')92l7"

Alberto de Carvalho, op. cit p. 156

'"

Idem. p. 1 5(i

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50

adaptando-as às novas condições de comunicação, conferir à literatura africana, um cunho

individualizado, verdadeiro estandarte de moçambicanidade.

A este propósito, Lourenço do Rosário fala de «um verdadeiro desafio aos escritores: o de

serem capazes de alterar o seu ritmo, de forma a sintonizar com um mundo enorme capaz

de os submergir totalmente, porque transporta dentro de si uma força natural, a força da

oralidade»174. Quanto a ele existem «verdadeiras indicações de que pode haver uma escrita

peculiar, capaz de veicular a oralidade como verdadeira realização literária»

Lourenço do Rosário considera também que é «urgente começar a construir uma base

cientifica para uma teoria da literatura moçambicana que leve em linha de conta a forma

como se sedimentou o substrato sócio-cultural da sociedade moçambicana»

Ainda sobre a tradição, vários estudiosos da literatura moçambicana têm uma postura

critica; como a de Luís B. Honvvana que acha grande risco «a armadilha do nacionalismo

cultural» e impor «como limites da criatividade valores legados pela tradição»

Também Fátima Mendonça acha «apressada e arriscada a opção de estudo que envereda

pela «justaposição de literariedade e africanidade, se se entender por africanidade o

conjunto de códigos estéticos próprios da literatura oral africana»

Existem diferentes perspectivas de abordagem e a opinião destes autores integra-se numa

corrente tradicional (chamemos-lhe assim), da crítica moçambicana. No entanto, outros há

que defendem uma posição mis radical, propondo a elaboração de uma poética africana.

É o caso dc Ana Mafalda Leite que defende «que se deve priorizar a problematização.

elaboração e conhecimento de uma teoria poética africana, que deverá ser confrontada com

a tradição das poéticas ocidentais, também intervenientes no processo das literaturas em

causa». Propõe, tendo em conta as condicionantes específicas da literatura moçambicana.

l7Jin: «A oralidade através da escrita», in: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, E. C. Gulbenkian.

Lisboa, 1987. p. 181'

Refere-se às cartas inseridas no jornal «Voz Africana»""

Lourenço do Rosário, «Moçambique: uma literatura em busca dos seus autores»in: Tempo. 22-1 1-1990,

pp.41-42

1,7

Manjate, Teresa, «Um panorama sobre a crítica literária moçambicana», p.30-3 1

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51

«a reformulação e adequação dc um conceito de moçambicanidade e a criação de

apetrechos teóricos capazes de estudar a originalidade do caso moçambicano» .

Gilberto Matusse, trabalhando o conceito de identidade literária na literatura moçambicana,

refere que «as formas da tradição oral têm sido muitas vezes apontadas como um elemento

importante na reestruturação dos géneros literários dc tradição ocidental que ocorre na

literatura africana». Para ele a «ansiada formulação de uma poética africana que permitiria

a sistematização de uma teoria da da literatura moçambicana encontra no estudo das

relações entre a literatura escrita e a tradição oral um dos seus pontos fulcrais» . Chama a

atenção, no entanto, para a complexidade, com problemas específicos, do contexto

moçambicano em que as línguas em interacção aparecem como termos relevantes.

Para este autor, o contributo das línguas orais na configuração da «linguagem» da literatura

moçambicanam

«é ao nível da «oralização» das estruturas dos estratos fónico-linguísticos

e da incrustação no corpo semântico-pragmático de elementos provenientes das culturas de

que provêm».

Apontando a oralidade como um dos aspectos mais importantes da literatura moçambicana

sugere, como tarefa possível, numa perspectiva de trabalho comparatista. «estudar a

presença, ou formas de presença, da tradição oral. de um modo geral, e de modelos da

literatura, em particular, na literatura escrita, investigando as motivações e o impacto em

__- _.- 18!termos artísticos.»

Na verdade, é essa linha de trabalho que queremos seguir, no caso. estudar nos contos de

Mia Couto, a presença da tradição oral. em geral, e em particular os modelos da literatura

oral. o conto e o provérbio, e qual o seu efeito em termos estéticos. No trabalho de análise

textual que efectuaremos no capítulo seguinte, iremos tentar detectar as marcas de

africanidade. ou mais restritivamente, o que Gilberto Matusse chama «marcas de

moçambicanidade» .

"

In: «Aproximação à moçambicanidade» in: Tempo 26-5-85. p.45l?"

Matusse. Gilberto. A construção da imagem de Moçeimbicanidade em José Craveirinha. Mia Couto e

Ungulam Ba Ka Khosa.Univ. Nova de Lisboa. 1993, p. 43lsu

Idem, ibd. Está subjacente a afirmação antes citada de Salvato Trigo de que «o que autonomiza uma

literatura é a linguagem, entendida como realização particular de um sistema linguistico num determinado

contexto sócio-cultural».

Idem, p. 44

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52

No entanto, como de certa forma ficou visível nos pontos anteriores, delimitámos essa

preocupação apenas a um dos vários dominios dessa construção identitária. Conscientes de

que é impossível separar os diversos âmbitos a que pertencem as diferentes estratégias

textuais utilizadas, propomo-nos. contudo, dar maior ênfase e espaço às estratégias do

âmbito temático, e à incorporação do imaginário das tradições orais de origem africana.

Trata-se dc uma procura de valores que se identifiquem com o substrato cultural

moçambicano.1X~

Gu seja. tentaremos detectar as marcas resultantes da incorporação na

literatura escrita de elementos provenientes das tradições orais, especialmente os que dizem

respeito ao imaginário e à temática.

Será sob essa perspectiva que adiante faremos um levantamento de elementos textuais e.

embora limitada, a análise do modo como o autor fe/ a sua abordagem nas narrativas de

que nos ocupamos.

Idem. p. 63

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53

III A Tradição Oral nas Obras de Mia Couto

1. Análise Temática das obras

Sobre a absorção de modelos formais e a incorporação do imaginário das tradições orais de

origem africana, podemos dizer que na obra de Miei Couto há sobretudo uma lematizaçào

desses aspectos.

No primeiro caso observamos que. mais do que absorver o modelo formal da narrativa oral.

o autor lemati/a as crenças em que se baseia essa estrutura, ou seja. a crença de que as

transgressões resultam numa punição ao infractor.

No seuundo caso. verificamos que também não há uma completa incorporação do

imaginário tradicional, já que. se por vezes, há a interpretação de certos acontecimentos de

acordo com este imaginário, essa visão nào prevalece, sendo apenas partilhada por uma

personagem e deixada na ambiguidade, uma vez que o autor textual sugere uma

interpretação mais racionalizada .

No entanto, tal como primeiramente afirmámos, se nào há a total adopção de assim

conceber o mundo, a tradição oral aparece retratada nos textos do autor, no que se pode

chamar uma tentativa de chamar à sua obra valores representativos do substrato cultura da

moçambicanidade, embora se produza um jogo de aproximação/distanciamento. Assim, a

tradição oral aparece, por vezes, como assunto dos textos, e encontra-se ainda tematizada

de forma diluída noutros temas. l8vPois é certo também que existem outros temas tratados

que se ligam à tradição oral e ao imagineírio próprio dessa tradição no seu confronto com o

imaginário ocidental que tende a sobrepor-se-lhe na moderna sociedade africana.

Assim, nesta parte do nosso trabalho preocupar-nos-emos cm lazer o levantamento das

marcas resultantes da incorporação na literatura escrita de elementos provenientes deis

tradições orais, as que dizem respeito, principalmente, ao imaginário, embora também

tratemos da incorporação do modelo e da técnica do provérbio mais adiante.

Sobre essas incursões no imaginário colectivo e as matizes temáticas daí derivadas,

tentaremos ordenar os nossos excertos em quatro classes distintas. Consideraremos, pois.

as marcas referentes a um ciclo iniciático: a um ciclo mítico: a um ciclo etnográfico e as

práticas mágico- religiosas.

'"'

Confrontar a e -te respeito. Matusse, (i.. op cil p 119

184Idem. p 128

181Idem. p. 123

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5-1

Ainda sobre o levantamento dos excertos que faremos, queremos salientar que não

pretendemos ser exaustivos, até pelofacto de que as enumerações apenas ganham sentido

até ao ponto em que contribuem para alargar a gama dos significados. Referimostambém o

facto de que tivemos consciênciade que nem todos os grupos temáticos se constituem

com

a mesma importância na obra analisada. Daí que.em consonância com essa ideia, algumas

das marcas relevadas constituem-se apenas como alusões, restituindo um clima, uma

atmosfera que define a reacção geral e complexa face ao tema. constituindo-se como

indicadores indirectos, não havendo marca explícita da tradição oral. Noutros casos, há a

necessidade de destacar alguns temas-chave. em articulação com temáticas várias que

também afloram, (p. ex. morte, tema-chave em articulação com a temática da guerra).

1.1. Ciclo Iniciático

1.1.1 O nascimento de gémeas

A relação homem-natureza nos grupos sociais da tradição oral. assim como a leitura dos

fenómenos naturais obedecem a um sistema de valores com restrições e obrigações. Esses

valores da tradição são condições de sobrevivência e uma vez violados são afectados todos

os seres perturbando o equilíbrio cósmico, como também o equilíbrio social. Nos textos

dc Mia Couto existe essa ligação do ciclo da vida humana ao cicloda Natureza.

Sobre o nascimento, no romance TS vamos encontrar o caso dc Farida (4o Caderno de

Kindzu) que no seu relato se apresenta como «filha do céu».

(...) Estava condenada a não podernunca olhar o arco-íris. Não lhe apresentaram à lua

como fazem com todos os nascidos da sua lerra. Cumpria um castigo ditado pelos

milénios: erafilha-gémea, linha nascido de uma morte. TS, p.77

Na verdade, o nascimento de gémeos, considerado grande desgraça,18' é explicado no

discurso de Farida:

1811Cf. Matusse.G., «A restauração do equilíbrio perdido» in: RILP n°l, Julho 1989

187Por exemplo, os Toneas estabelecem relação directa entre a seca e certos fenómenos fisiológicos,

como o

nascimento de gémeos: este será um facto que impede a chuva de cair e necessita de ritos purificadores. Cf.

Junod, Usos e. costumes dos batitcis,vo\. II, p. 396

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55

Na crença da sua gente, nascimento de gémeos é sinal de grande desgraça. .No dia

seguinte a ela ter nascido, foi declaradoChimussi: a todos estava interdito lavrar o chão.

Caso uma enxada, nesse tempo ferisse a terra, as chuvas deixariam de cair para sempre.

TS, p.77

No relato pessoal de Farida estão intactos os preceitos que antigamente eram seguidos

nestes casos,188 a morte de um dos gémeos, a celebração de cerimómias «para aliviar a

maldição» e o afastamento da aldeia da mãe culpada. No caso da mãe de farida toma-se

duplamente culpada pois recusa-se a cumprir a inteira tradição.

A mãe de Farida nunca mais teve filhos. Dizem que ela não foi capaz de apagar a sua

impureza após o nascimento. Fizeram as cerimónias: não resultem Queimaram a palhota.

juntaram toeias suas coisas numa grande fogueira. A mãe ficou ali. sofrendo culpas por ter

subido ao céu, único lugar onde se pode encemtrar meninos gémeos. TS,p.78

Depois eias cerimónias, mandaram que a meie saísse da aldeia Junto com a filha foram

morar num maio próximo de verdes desleixados.jili viveram sem nunca receber visitas:

vinham os da família masficavam longe, escondielos. Receavam o contágio.?. 78

Afinal, a mãe tinha recusado cumprir a inteira tradição. Matara a irmã gémea só em

fingimento. Na verdade entregaram a criança a um viajante... p. 79

Os preceitos da tradição surgem assim, por conveniência da narrativa,situados no passado

e num cenário de ineficácia das cerimónias para afastar a maldição. A personagem que

provoca a desordem e a desgraça, neste caso, é a mãe de Farida. Devido à sua atitude, a

comunidade é atormentada por flagelos vários, o mais grave dos quais é a ausência de

chuva. Sobre as cerimónias «mágicas» para pedir chuva . em que é solicitada a participação

Farida (gémea) assim como da mãe (de gémeos) referir-nos-emos mais adiante.de ri

É também no romance TS que surge mencionado o nascimento de albinos. Mãe de um

mulato, Farida é aconselhada a dizer que ele é albino,mas esse é um facto de maldição que

acarreta o abandono da gente da aldeia.

Idem. ibd.

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56

Nascera assim porque, durante o ventre dela, fora atravessado por um relâmpago. Era

essa a crença que explivava os albinos.TS,p. 86

Ninguém mais poderia beber pelo seu copo. nenhuma mulherse deteria no caminho para

lhe trocar os bons-dias. Nascida gémea primeiro, agora mãe de um albino: ela era a pior

das leprosas, condenada para sempre à solidão.TS. p.86-87

1.1.2 Crescimento

Em certos contos, como veremos, cabe a uma criança o papel de narrador. Nesse caso. é

um observador atento, é curioso, exprime opiniões, mas toma sempre um posicionamento

discreto sem contrariar directamente os mais velhos. Curiosamente o caso mais explícitode

desobediência de um filho ao pai. diz respeito não a um africano mas ao rapazito branco,

filho de colonos em «O embondeiro que sonhava pássaros»(p. 62) Já no caso de 'ferra

Sonâmbula um dos narradores principais, o personagem Rindzu, contraria não só o pai mas

todos os seus antepassados. Resolve fugir-lhes. para isso empreende uma viagem, lema

c■ 189

que caracteriza o romance africano.

Sem que eu sembesse começm-a uma viagem que iria matar certezasda minha infância. Os

ensinamentos da escola, os conselhos elo pastor Afonso, os sonhos de Surendra:ludo isso

iria esvair na dúvida. Me olhei, e me vendo leve sem carga, lembrei as palavras de meu

pai...TS. p. 34

Kindzu nessa viagem, e instruído pelo adivinho, tenta libertar-se do poder dos seus

antepassados.

Estava preparaiio para essa batalha com as forças do aquém. < ..) O voo das eives que eu

semeava ia apagando meu rasto. Dessas artes, eu vencia o primeiro encostar de ombros

com os espíritos. Mas não imaginava o tanto que me faltava vencer.TS. p.41-42

E no decorrer da viagem vai sendo submetido a diversas provas, assim como lhe vão sendo

propiciados ensinamentos variadosi90

189Mohamadou Kane refere a evasão da tradição e as várias formas que pode assumir, assim como a

significação da viagem, in: op.cit., p.202

IMO tema da viagem .

característica do romance africano, pode assumir a tradição da pedagogia.(Kane,

p.2 16).No caso da orientação pedagógicado romance «o autor descreve a aventura exemplar de uma

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37

O «herói» esforça-se por lutar com armas iguais e segue todos os preceitos da tradição que

lhe foram aconselhados.

Mas sempre cumpri os comportamentos aconselhados pelosmais velhos. (...) O barco em

que seguia forafora abençoado com as devidas cerimónias...JS. p. 44

E ,em contacto com o além, é informado da razão das suas desventuras.

Tudo aquilo era castigo encomendado por ele. meu legitimo pai. Minhas desavenças, os

tropeços que sofria, provinham ele eu não ter cumprido a tradição. Agora sofria

casligos.TS, p. 45

Também Muidinga de certa forma sofre o processo de viagem ainda que sem sair do

mesmo lugar. Inicia-se nos segredos da floresta,e ao ler a história de Kindzu, identifica-se

com ele, revivendo a infância que nâo leve. Há assim também uma forma de evasão, sob a

forma de um regresso à tradição, com um efeito regenerador." Fsse processo é aludido

numa das falas dos personagens.

-Problema é deixar esle escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nemrir.

Então vamospara dentro dessescadernos. Lá peidemos cantar, divertir TS p, 136

O produtor desta fala é o velho Tuhair a quem o jovem Muidinga lê/conta a história de

Kindzu.

Significativamente, o adivinho que dá as instruções a Kindzu para ele poder empreender a

sua viagem diz-lhe:

Disse que havia eluas maneirasde partir uma era ir embora, outra era enlouquecer

I S. p.

-j-*»

1.1.3 A morte

A morte constitui-se como um tema recorrente nos vários textos analisados, quer no

sentido físico (literal) quer no sentido metafórico (ou translato-ruína e decadência). No

juventude muitas vezes inocente, quase sempre ignorantee que pela força das coisas se encontra presa «entre

as águasnef. tb.. p.202|r"

Idem, p. 200

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58

enianto, por questões óbvias não nos iremos referir exaustivamente a essa segunda

vertente deste núcleo temático.

No conto «Mulher de mim», monólogo interior do narrador, fica poetizada a ideia de que

os espíritos existem em três estádios diferenciados: os pré-nascidos. os nascidos e os

espíritos depois de mortos. Na verdade, na filosofia de mais de um povo moçambicano.

essa é uma crença que faz parte da sua tradição.

Afinal: os mortos, os viventes e os seres que ainda esperam por nascer formam uma única

tela. A fronteira entre seus territórios se resume frágil,movente, t.. ) Os vindouros, esses

que aguardam por corpo, são quem mais devíamos temer. (...)Dos mortos ainda vamos

recebendo recados, afeiçoame)-nos a suasfamiliares sombras.CHR. p.121

Vamos, aliás, encontrar este tema desenvolvido de uma forma mais alargada, no romance

TS, através do relato de Farida. a que nos referiremos maisadiante.

A « morte-definitiva » é uma ideia puramente ocidental, aos olhos do pensamento africano.

trata-se sobretudo de uma « morte-cstação ». utilizando a linguagem do autor que

estudamos, no conto citado acima. Nessa perspectiva, os defuntos não vivem mas «

existem », (viver e existir não são sinónimos), soba forma de forças espirituais c estão em

todo o lado.

Seguindo essa filosofia, os defuntos podem agir eficazmente sobre os seus descendentes

e não têm outro objectivo sc não consolidar as forças deles. Estabelece-se assim uma

ligação íntima entre vivos e mortos, assumindo-se estes como os «guardiões dos

1,2«As personagens têm na generalidade dos contos um nm trágico. Há como que uma volúpia de mone

estruturando os léus percursos sejam interiores ou exteriores». Sobre este aspecto cf. Francisco m. S Noa,

«A dimensão do escatológico da actual ficção moçambicana», in: Revistada Lusofoma. pp.109-1 13

193Jahn, J„ «Ntu» in: Muniu, p. 127. Este autor cita os versos

de Birago Diop, «Ceux qui sont morts ne sont

jamais partis»: Ils sont dans 1'arbre qui frémit/(...)Ils sontdans Peau qui coule/Ils sont dans l'eau qui dort/lls

sont dans la case, ils som dans la foule/I .es morts ne sont pas morts., p. 119. idem.

'"''

Segundo crêem os Macuas. a pessoa ao morrer transforma-se em espírito, conserva a sua identidade.

continuando a ser membro da comunidade e do grupo familiar a que pertencia, e passa a funcionar como

intermediário entre o ser supremo. Deus. e os humanos e pode intervir em assuntos problemáticos

relacionados com a comunidade. Ao intervir de forma indirecta, pode fazê-lo com a aparição de animais(p.

ex. serpentes que ninguém deve matar) in Martinez, F.L.. O povo Macua e a sua cultura. ME/ I.I.C.I..

Lisboa. 1989. pp. 246-247

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59

costumes»e desde logo com forte ligação ao poder. Ou. de outra forma, como diz Senghor,

.

, 19S

não há fronteira enlre a vida e a morte.

Essa «intimidade» é explorada no contexto das várias obras: em algumas situações

relatadas, de crise, em que existe a predominância da guerra e da morte dá-se uma

inversão da realidade.

A morte se tornara tão frequente que só a vida fazia espanto. Para não serem notados os

sobrevivos, imitavam os defunle)S.CY{R.p. 42

Sobre as causas da morte, segundo a tradição africana, ela pode resultar das interdições

mágicas e religiosas dos tabus.10,,

É o caso do português Romão Pinto que é infractor das regras da tradição e por isso

morre. Não respeita a crença «condenando aquele que ama uma mulher em estado de

impureza»(TS, p. 160)

Mas na maior parte dos contos, a morte apresenta-se como um fenómeno estranho.

excluindo talvez a morte do velho no conto «A fogueira». Um desses casos é a morte do

personagem Ernesto Timba («Os pássaros de Deus»), para a qual os habitantes da aldeia

não encontram explicação.Vejamos a descrição que o narrador faz das circunstâncias da

sua morte:

No dia seguinte, encontraram Ernesto, abraçado à corrente elo rio. arrefecido pela pelo

cacimbo madrugada. Quando o tentaram erguer, verificaram que estava pesado e que era

impossível separá-lo da água. Juntaram-se eis homens mais fortes mas foi esforço vão O

corpo estava colado à superfície do rio. Um receio estranho inslalou-se entre os presentes.

VA. p. (iz

Estranha é também a morte relatada no conto «Afinal Carlota Gentina não chegou de

voar'.'», que tratamos mais adiante noutro ponto do nosso trabalho. Segundo o ponto de

l9?Sobre a ruptura entre o real e o surreal, e citando Senghor, M. Colardelle-D iarrasouba afirma: «O real não

adquire a sua espessura, não se toma verdade, senão quebrando os quadros rígidos da razão lógica, se nào

alargando-se à dimensão extensível do surreal». cf. op.cit.. p.86.m

«As religiões tradicionais africanas e as organizações político-religiosas.. in. AAVV..... religiões tia

África (Tradicionais e sincréticas). I d. Progresso. Moscovo. 1987. p. 73

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61 1

vista da personagem-narrador trata-se de uma morte - transformação. Carlota (ientina

melamorfoseou-se em pássaro.

Uma coisa eu tenho máxima eerIeza: ela ficou, restante, por fora do caixão. i...)Ela fugira.

salva nas asast...).A final não era uma morta falecida que estava ali. Muito-muilo era um

silenciei na forma de bicho. VA, p. 92

Assim é que no universo textual de que nos ocupamos, as crenças ligadas à morte, as

interdições, os tabus ou ainda as cerimónias exigidas pela tradição, no sentido de a afastar.

vão surgir como tema principal. Tentaremos apresentar algumas das vertentes em que

aparece.

1.1.3.1. A morte-transformação

A morte pode ser apreendida como símbolo de perigo mas também como símbolo de

poder, jã que ao restabelecer o caos inicial, a desordem, a morte cria potencialidades de

nova ordenação das forças d;i vida. Neste contexto ;i morte nunca lerá uma carga

totalmente negali.a. iuveste-se como agente de transfiguração c renovação, estando ao

A■

1-l47

serviço da vida.

No conto <•() embondeiro que sonhava pássaros» temos a narração de uma morte-

transformação. O rapaz sofre a ira dos colonos que puxam fogo à árvore onde cie

está. Esta morte, consequência de uma amizade, (talvez por isso não seja descrita como

trágica), é contada num longo parágrafo onde a poesia toma fornia de prosa (CHR. p. 68) A

descrição da morte pelo fogo do menino, dâ-se pelo reconto de um sonho.

Seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se made iravam, os dedos.

lenhosos, minhocavum a terra O menino transitava ele reino arvore/eido. em estado de

consentida impossibilidade. (..Z).\s chamas.' De onde chegavam elas. excedendo a lonjura

elo sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução ila cinza. Enleio, o

menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízesX I IR p. 68

w'

Areia, M. I.. de. «Antropologia da Morte, uma perspectiva africana: a Morte e o exercicio do poder na

sociedade Cokwc de Annola»in: RI I A. Lisboa. 1984. pp 193-198

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61

Este trecho coloca ainda uma outra leitura que gostaríamos de explorar, ao estar presente

na poesia africana.148 Trata-se da possibilidade de que tudo sc pode metamorfosear pelo

poder do verbo.

Essa mesma ideia está presente em VA. no conto «Afinal Carlota (ientina nào chegou de

voar?» quando o personagem-narrador, na prisão, afirma:

Vale a pena ser planta, senhor doutor.Mesmo vou aprender a ser árvore Ou talvez

pequena erva porque árvore aqui dentro não e/áXLl IR.p. 93

1.1.3.2 A velhice

No conto que abre VA. «A fogueira-, o tema da morte eslá presente, ainda aliado à velhice

e à forma como se pode encarar a morte.

Os personagens, um casal de velhos, vivem num meio rural, isohidos e sós. A atitude do

i , . ...

velho caracteriza-se pela «frieza» com que ele prepara a morte. A propósito do

simulacro de realidade, não há aqui um « mere rellexo do real», embora os valores e a

mentalidade tradicionais estejam nos intervalos do texto.

Na maior parte dos povos dc Moçambique, a morte ê encarada como «o seu maior

inimigo>>, por isso são utilizados os meios ao seu alcance para a integrar na sua

cosmovisão. reinterpretando-a e dando-lhe um significado no seu contexto cultural."

Nesse contexto, a morte nào é considerada como o fim da vida, continuando a existência

sob outras formas e noutras circunstâncias.

Entre os bantos em geral, «uma boa morte» é a que chega «conforme o previsto pela

tradição»; lempo (idade avançada do morto); descendência (deixando muitos filhos); lugar

(morrer na própria aldeia e na própria casa); e algumas modalidades como seja, morrer sem

sofrimento, em presença tios familiares chegados, nào deixando questões pendentes de

"Vime Césaire ap Jahn. Janhein/. «Nommo.-p.155 -I a faiblesse de beaucoup dhommes est qu"ils ne

savent devenir ni une pierre ni un arbre »

mSobre esta questão, e a verosimilhança segundo os valores culturais da tradição estabeleceu-se um inicio

de polémica na imprensa moçambicana, em 198.) Cf lempo. 28.2.1988. Teresa Maniate. Sobre este assunto.

cf. Mendonça. Fátima «A literatura moçambicana em questão», in Discursos n"9, fevereiro 1995, p.49."""

Martinez. francisco l.erma. Op. cit.. p. 221

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62

solução e em paz com a família e com a sociedade. 'lemos depois os ritos desde o

, , , 201

momento da morte a sepultura.

No caso de «A fogueira», é-nos dado apenas assistir aos momentos antes e ao próprio

momento da morte, mas fica entendido que. dc modo algum, ela se institui como «o

momento mais importante de solidariedade entre os membros da sociedade». Assim como.

embora fique ao critério do leitor imaginá-lo. supomos que todos os ritos de passagem.

relativos à morte, estarão ausentes.

Segundo o estabelecido pela tradição, idade, descendência e lugar, o velho teve uma boa

morte, por isso a aceita, «a prepara-, com a maior serenidade e seriedade possíveis. Resta

*10'Y

que. o absurdo da morte, não pode ser absorvido pela ritualização adequada" \

Na verdade o ambiente em que os velhos estão inseridos é estranho e isolado: «Em volta

era o nada, mesmo o vento estava sozinho»(VA,p.23) e o estado de tristeza era devido a

essa solidão, consumada « desde que os filhos mais novos foram na estrada sem regresso»

(P- 23)

Daí que o velho ao pressentir a morte, se preocupe com a sepultura, mas fá-Io de um modo

inédito, propondo-se abrir a sepultura da mulher que nem estava doente(p. 25). Ele sim ,

«doente e sem as forças»(p. 24) resolve começar a abrir a eo.a da mulher. Cumplicidade

total, a mulher comove-se «Como és bom marido. Tive sorte no homem da minha vida»(/p.

24)

Ficamos a saber que vivem longe da povoação, longe da comunidade: «vais daqui na

cantina? É uma distância(p. 24). Como afirma o narrador:

Neste deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de asas. Não é um

rasgão violento como nos lugares onde a viela brilhaip. 27)

No sonho da velha está evocado o cenário impossível, remetido para um passado

longínquo:

"

Segundo os factores indicados por Martinez. ( Idem. p. 221)"

Idem, p.221

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63

Sonhou dali para muito longe vieram os filhos, os mortos- e os vivos, a maehamba eneheu-

se de produtos os olhos a escorregarem no verde O velho estava no centrei, gravaitido,

contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos c os

netos...Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos VA.p. 28

Assim, o cenário da tradição, apenas é adivinhado na evocação da mulher, como algo

inatingível.

1.1.3.3. Os antepassados- deuses, senhores da china

Ao longo dos textos de Mia Couto, varias são as referências à omnipresença dos espíritos

atentos aos comportamentos dos viventes, e ao poder e influenciei que exercem. Além disso,

é problematizado o cumprimento dos valores da tradição em que se baseiam certas crenças

em relação aos defuntos.

Os bantos acreditam que cada ser humano se transforma depois de morrer em chicucmho.

torna-se um antepassado- deus para os seus descendentes, numa palavra o chicucmho é o

espírito de um morto. Segundo esta noção animista, a este espirito pessoal devem-se preces-íj-.

e oferendas, e se for hostil pode provocar a doença da possessão.'

Fm VA. «As baleias de Quissico». a palavra ehicuembo surge na fala de um dos

personagens, mas com o sentido que ganha em outros contos do autor, ligado à fantasia, ao

nascimento de estórias. a feitiços. F com esse mesmo sentido que aparece em «Patanhoca.

o cobreiro apaixonado»! sendo a palavra alvo de uma nota explicativa feitiço)

_É a gente de lei que está com fome (...)Depois inventam esses aparecimentos, parecem

ehicuembo.Mus são miragens VA. p.l 1 1

As alegrias sairam-lhe da vida. esqueceram de voltar (.../Mesmo diziam era xieuembo dos

chinas e que a terra de longe, viajando em fumos lhe atacava a alma \ \. p. 1 5(.

Sobre a morada dos defuntos existe a crença que vão para uma grande aldeia, debaixo da

terra onde tudo é puro e vivem na abundância, e existem também os '-bosques sagrados»

onde vivem os deuses."' Segundo o conhecimento macua. «os espíritos num primeiro

Junod. ob.cit. p.7 1

"'"Idem. iba.

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64

momento, moram à volta dos cemitérios, na selva, nos montes e nos rios, esperando a

t- ,■ * '

1•

i 2us

conclusão dos ritos fúnebres que acompanham a sua passagem ate a ultima morada após

o que alcançam a «morada ancestral», só os espíritos do mal vagueiam por lugares incertos.

causando malefícios e desgraças.

Em TS. encontramos algumas dessas versões. Referimos a fala do xipoco que aparece ei

Kindzu:

-Fica saber: o cheio deste mundo é o tecto de um mundo mais por baixo. E sucessivamente.

até ao centro, onde mora ti primeiro dos mortos IS. p. 43

lambem Farida, que se diz «da família dos xipocos». apresenta a sua versão sobre a

morada dos espíritos.

Nôs somos sombras no teu mundo, lu jamais nos tinhas escutado. Tl porque vivemos do

outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de feira ela

ceisca.(...) Quando queremos que vocês, os ela luz, venham até nós, espetamos uma semente

no teclo do inundo I S. p.91

0 modo como esses entes se manifestam assume variadas formas, e pode reportar-se a

vários aspectos da realidade.No conto «O apocalipse privado do tio Ciuegué» ê dito:

O estranho então sucedeu, lançada no ar a bota ganhou competência volátil. O tio (lueguê

desafiara os espiritas du guerra0 CIIR. p.29

De entre essas formas de manifestação é de salientar o sonho, de olhos abertos ou não, às

vezes espécie de delírio provocado por causas físicas. Como é o caso do sonho relatado no

conto atrás citado, em que a mãe do personagem lhe aparece e ele fica dividido entre o

sonho e a realidade. Nessa perspectiva são reveladoras as suas palavras:

Sonhava de olhos libertos.Mais que abertos:acesos Sonhava com minha mãe, era ela. eu

sei. embora que nunca lhe vi (...) «Repente, um ruido me trouxe ao corpo, hei o tio

(lueguê ( . i - Tio. minha mãe, ela não estava aqui: (Cl IR. p.3 1 )

2Í"I.erma. op cit pp 2-17-248

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65

Mas. embora, o personagem classifique a situação como ilusória, logo de seguida fala « de

nova aparição».

Aquela ilusão me dera outra febre: eu carecia daquela presença, sofria fá a demora de

nova aparição .CJ IR. p.3 1

E. também através do sonho que esta figura, a do ehicuembo. surge no romance I S

Meu pai sofria de sonhos, saía pela noite de olhos transabertos.t.) Minha mãe. a manhã

seguinte, c que nos convocava Tenham: papá teve um sonho' /*.' nos /untávamos, todos

completos, para escutar as verdades que lhe tinham sido reveladas Taímo recebia noticia

do futuro por via dos antepassados.Dizia temias previsões que nem tempo havia de provar

nenhumu.YS, p. 16

Depois da morte do pai. Kindzu comunica com ele através do sonho.

Meu pai me surgiu em sonho, perguntando: Queres sair ela leira' t ) Sc tit saíres lerás

que me ver ti mim: hei-de-le perseguir, vais sofrer parei sempre eis minhas visões ( / IIu

eslava aterrorizado com a ameaça do espirito do meupaiZ\ S. p. 30

Outra das formeis de manifestação dos espíritos é também a ocorrência de factos que não

têm causalidade aparente e que só podem ser encarados como manifestações superiores.

avisos a que se deve dar o maior crédito. Salientamos um exemplo, de um dos contos.

Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências Porias e janelas se

abriram .sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas Cl IR. p.64

Ainda no mesmo conto:

Acordou num chilreio Os pássaros. Mais de infinitos cobriam Ioda a esquadra Ne/n o

mundo, em seu universal tamanho era suficiente poleiro t . )As paríeis estavam abertas . a

prisão deserta tn (Zi)

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66

Na verdade, embora os animais não se transformem em chicuembos. os antepassados-

deuses podem revelar-se aos seus descendentes sob a forma de animais e assim comunicar

, 206com eles.

.4s vezes enquanto seguia pelo escuro carregando a refeição do defunto, ouvia us hienas

gargalhando. (...le se fossem as quizumbas a aproveitar das panelas? Ou se ele. o falecido

usasse a forma ile bicho para se empancar7 1 S. p. 22

No conto « O último aviso do corvo falador»*VA) o espiritismo e a adivinhação são

abordados e a alma dos defuntos antepassados assume um papel importante. São ainda

citadas as cerimónias exigidas pela tradição no sentido de afastar a morte.(Ct. Práticas

mágico-religiosas)

Sobre o poder dos defuntos, as tarefas que lhe são atribuídas c os «castigos que podem

enviar», caso não seja respeitada a tradição. vamos encontrar vários passos dos textos a tal

alusivos.

Sobre o poder e força dos defuntos encontramos eis afirmações do narrador de -A princesa

Russa.»:

Eu já estava muito interno, não podia descer mais. Há momentos que ficamos muito

parecidos com os mortos e essa semelhança dá força aos defuntos. I: Isso que eles nâo

perdoam: é nós. os vivos, sermos tão parecidos eom eles CI IR. p.85

No entanto, também lhes é atribuída a tarefa de zelar pela paz dos vivos:

Ele que teimasse e .suscitaria a irritação dos espíritos, esses que vigiavam pelo sossego da

aldeia Cl IR. p. 135

Ainda segundo a tradição, a ideia mais espalhada é a de que sào os antepassados-deuses. os

espíritos dos antepassados, que fazem cair a chuva" e nesse caso são necessárias

cerimónias propiciatórias da chuva.(Cf. Práticas mágico-religiosas)

:""Junod. op. cit. p.337.( )utra das tormas de comunicação e através dos ossiculos divinatorios

:"7Idem. p. 279

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6 7

No romance TS várias são as vezes em que a tradição, no que respeita aos defuntos, não é

cumprida. Por isso, os antepassados enviam castigos e lamentam-se da «cansativa morte».

Vejamos a fornia curiosa como o autor textual nos apresenta tal lacto:

-Sou um morto desconsolado. Ninguém me presta cerimónias Ninguém me mala a

galinha, me oferece uma farinhinha. nem panos, nem bebidas(...)Sou eu que ando a

raiazanar teu juízo IS. p. 46

1.1.3.4. Animais mágicos

O uso da simbologia animal pode ser encarado como um processo deliberado na

recuperação de certos valores da literatura tradicional, já que aí o animal é presença

constante, reenviando assim para o domínio mítico e ancestral""

Nào é nosso propósito verificar se no contexto da obra de Mia Couto a simbologia animal é

particularmente enfatizada, ou de que forma se processa, mas sim verificar a presença de

animais e de que forma se ligam ao imaginário das tradições orais. Diremos para começar

que o autor não faz dos animais seus personagens principais, demarcando-se assim da

i- - i _<«

iradiçeio oral.

No conjunto dos textos estudados, várias são as alusões a animais. São. também

geralmente, personagens secundárias que. tendo embora papel preponderante na acção.

funcionam quase como fazendo pente de uma metalinguagem do conto: servem para

contextualizar os personagens principais." Muitos deles ainda servem para adensar o

mistério que paira em certas narrativas, tornando-se assim indícios de acontecimentos

sinistros e fantásticos e sinais de mau presságio: é o caso das aves nocturnas e do cão.

Algumas das alusões a animais surgem nas lalas das personagens, tal como são vistos no

quotidiano familiar. São discursos que reflectem ;i vivência comum, prosaica e nos situam

Leite. A M - -.miar o Amor» in. .//.. 14 -17 Abril 1981, n°4. Ano I

[n

Seria interessante fa/er. no entanto o confronto da caracterização dos personagens que apresenta, com as

características que ressaltam dos personagens tia tradição oral, para avaliar se lambem são valorizadas nos

seus contos, sublinhando assim o carácter moral destes contos. Ct IntrotluçZi" aos contos moçambicanos.

ED. INALD. Maputo, 1978: Cf th entrevista de Mia Couto in: Vozes Moçambicanas de I .itnck Chabal.pp.

274-291"'

Alguns constiiuem-sc também como símbolos, exemplo disso e o caso do «ndoe» ct. p. 41 de CIIR. «O

apocalipse privado do tio (-negue»

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68

numa paisagem c em determinados ambientes."

ou. servem ainda para tornar mais

marcante a caracterização de um personagem.

Você Estevão, é como a hiena: só tem espertezas para as. coisas mortas. 1 S. p.8 1

A boca, du maneira que nunca pestanejava, parecia inveja de. uma hicna.XA.p. I 58

Ainda no conto. «Patanhoca, cobreiro apaixonado», de que retirámos este último passo.

outros dos animais referidos sào as serpentes. 0 personagem principal, apelidado de

«mecânico dc serpentes» é dado como tendo «sabedorias do inferno» e estes animais

ligados à prálica de feitiçaria.

No destino ele apagava o pelromax e começava o serviço de espalhar feitiço ( lOs seus

poderes afastavam os ladrões da caulina. Todas as noites, dizem, soltava as cobras à volta

da casa. (..LlNão se precisava ser mordidoBastava um alguém pisar no pátio De manhã.

ninguém podia entrar ou sair sem o dono das serpentes dar ordem das suas rezas. VA.

pp. 158- 159

Por outro lado. segundo a filosofia banto há uma concepção mágica da natureza e não

separam o domínio do homem do domínio animal: as acções humanas têm imediato eleito

nos animais." No domínio da magia, existe a crença de que há a possibilidade da

metamorfose de animais em homens e vice-versa. Nas narrativas orais, existem

personagens com poderes mágicos, e objectos e/ou animais mágicos. Mia Couto faz

também o aproveitamento dessa característica da tradição e assim é que. vários sào os

textos em que surgem animais que se podem situar no domínio do conto mágico."

Existe ainda a crença de que os deitadores de sortes podem enviar animais para fazer mal.

entre eles a hiena que pode ser um animal encantado falante ou ainda tetl como é

sugerido numa lala do romance TS . a hiena «come nariz, de gente»

-Pensava era hiena Hiena é que gosta de comer nariz ele gente TS. p.37

A este respeito confrontar o ponto do nosso trabalho «Os provérbios na obra de Mia Couto.--

"

Cf. Junod. ob ■_ it p >i I

'

Apud Denise Paulme,op cit . p 9

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69

Os feiticeiros como veremos adiante, pretendem que são capazes de voar e transformar-se

em aves e que possuem o poder de transformar seres humanos em animais (bulóii-

deitadores de sortes \s curandeiros). A este propósito, o personagem Siqueleto. apresenta-

se com este animal ao lado. Tuahir e Muidinga assustam-se e atribuem uma interpretação a

esse facto.

Sentem um aperto Que vinha lazer aquele bicho sem aprumo, despromovido das

traseiras? Trazer má sorte, ao destino dos viventes, só podia ser esse o serviço desse

animal. A hiena permanece parada, em vistoria elos cheiros!...) O velho entretanto

desperta Vendo o espanto dos outros, esclarece a hiena: o bicho sentinelava sua vida

Ninguém me aproxima, sorri ei velho(..L)

Tuahir avisa em segredo

-Nâo confia miúdo. Aquilo nem hiena não é. TS. p. 74

ficam assim sugeridos os poderes ocultos do velho, assim como fica sugerida a crença de

uma possivel metamorfose não explicitada e a ligação de certos animais a uma outra

concepção do mundo.

No mesmo texto que vimos referindo, nos surge a alusão ao poder oculto de alguém.

indiciando que se tratam de animais rituais encantados, neste caso os gafanhotos.'

_/■ que esses nâo selo gafanhotos próprios. Selo gafanhotos de alguém. 1 S. p.l 1 1

Verificamos, no entanto, que se são vários os índices de interdições de cariz supersticioso.

nomeadamente no que diz respeito a certos animais, alguns deles já referenciados, são as

aves que ganham maior importância, como veremos a seguir.

O pássaro mágico- Na verdade, na tradição popular, nomeadamente entre os longa, certos

animais são considerados tabus e entre eles determinadas espécies de aves. entre eles o

corvo (também o falcão, o abutre e a cegonha). Estes animais são utilizados pelos

curandeiros para preparar feitiços poderosos.

'

Sobre estas cerimónias, cf Junod. op. cit. p.282

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70

Começando por VA, no conto «O último aviso do corvo falador. Sulemane, o marido

enganado, mata acidentalmente o corvo. As pessoas avisam-no do risco da maldição. Zuzé.

abusando de seus falsos poderes, chega a dizer-lhe que o corvo «vai-lhe tra/er desgraça».

Mataste o pássaro. Sulemane ll...) Há-des gatinhar como um porco] p. 43

Quando o incrível se dá. «o povo aterrado foge: ;t maldição do Zézé ficara verdade. E a

notícia espalha-se pela po.oação. o que la/ com que todos queiram consultar «o dono das

bruxezas».

E, no final, quando vêem «o sinal da maldição: um pássaro morto, desenterrado», aceitam

o aviso e todos abandonam a povoação. De realçar que o autor, na abordagem que faz.

utiliza a ironia e o humor, havendo um processo nítido de distanciamento em relação ao

que narra, vislumbrando-se desse modo uma intenção de crítica social." ^sse processo

torna-se mais visível, no confronto de pontos de vista . resultantes do diálogo das

personagens. Existe como que um conflito entre a visão segundo o imaginário tradicional

e uma visão racionalista do mundo, como tentaremos demonstrar a seguir. Sobre a morte

do pássaro, defrontam-se várias vozes.

Todos pararam à volta ela agonia da eive As vozes aflitas

-Sulemane se você mataste o corvo, estás mal com a sua vida.

-Estou mal, o caraças! Quem é que acredita num corvo a falar com espíritos? \ A,p.43

De salientar que. nos exemplos apresentados, ei voz do narrador, satírica, estabelece

cumplicidades com o leitor, não assumindo, porém, nenhum dos pontos de vista dos

216

personagens.

Em « Os pássaros de Deus», o personagem principal assusta-se com a aproximação do

pássaro que apenas é designado assim ao longo do texto. Neste conto, interessante é

verificar, também, que a par de crenças ancestrais existe a mistura com outras de caracter

mais recente.

"I5Cf. entrevista de Mia Couto em literatura e Poder de José Carlos Venâncio

216Ksta estratégia, o confronto de várias versf.es sobre uma situação ou origem de um fenómeno é ainda

utilizada em muitos outros textos. Por exemplo no conto «As baleias de Quissico». assim como em ■•A

história dos aparecidos» .Contudo, sempre que seja pertinente, salientaremos esle aspecto

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71

Foi então que um pássaro enorme passou no céu, parecia um rei satisfeito com a sua

própria grandeza. O bicho, no alto, segurem-lhe os olhos e uma inquietação estranha

nasceu dentro de si.(...) o pássaro sacudiu as enormes asas e. bruscamente, tlesvoou,

desvoou. em direcção à canoa VA, p. 59

De acordo com os valores simbólicos o «pássaro é sempre um mensageiro dc longe.» O

personagem considera a ave como um mensageiro de Deus. símbolo antigo da relação entre

o Céu e a Terra. E a interdição que ele faz de tocarem no pássaro provoca espanto.

A mulher dimirava: o homem estava maluco. (...) Quem locasse no peissaro seria punido

por Deus. seria descontado na vida. VA.p. 60

Ernesto Timba arvora-se assim em guardador dos «pássaros divinos», defendendo-os da

cobiça da mulher que. faminta, sempre tem a panela pronta no fogo. apresentando-se aqui

com uma visão «profana» da realidade.

Ernesto Timba, no entanto, achava que «se os homens aceitassem despender a sua bondade

par com os mensageiros celestes, então, a seca terminaria e o tempo da chuva ia

começar»(p. 61).

Alguém queima a casa e os pássaros, violando assim os desígnios de Ernesto Timba.

considerado maluco. O personagem morre, mas de uma forma estranha, no rio. nào

conseguem erguê-lo: «juntaram-se os homens mais fortes mas foi esforço vão. O corpo

estava colado à superficie do rio. Um receio estranho espalhou-se entre os presentcs»(p.

63), reacção semelhante àquela tida pela população que surge no conto «O último aviso do

corvo falador».

'Ial como Ernesto Timba. também o pequeno pastor de «O dia em que explodiu Mabata-

bata» se arvora em guardador das crenças mais ancestrais do seu povo ao enlrentar a

«réstia maligna do ndlali» (p. 47). O «ndlati». que sc encontra entre as aves que são

objecto de ideias supersticiosas, é considerada a «ave mítica do raio»."

:i7Cf. Usos e costumes, p. 305. A crença de que o relâmpago é causado por uma ave é guardada por vários

povos.entre eles os Tonga. Os Ronga chamam-lhe «ncuco vá-tilo»-galo do céu ou galinha dos céus-«psele

djatilo» e os curandeiros pretendem saber-lhe o sexo quando essa ave cai. Para os wayao a trovoada não é

senão um enorme pássaro que tem o hábito de pôr ovos nos bananais in: Amaral. M.C.. Povo Vao, p. 39 1 .

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72

Vens pousar quem. ndlali' VA. p. 54

Sobre esta ave. outros pormenores nos são referidos, no nosso conto.

Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlali era ali. onde se juntam todos

os riosf...) O ndlali vive nas suas quatro cores escondidas."'

e so se destapa quando eis

nuvens rugem na rouquidão do céu. E então que o ndlali sobe aos céus. enlouquecido \as

alturas se veste de chamas, e lança seu voo incendiado sobre os seres da terra. .-Is vezes

alira-se ao chão. buracando-o. Fica na cova e ai deita a sua urina. VA. p.48

O narrador sugere ainda a existência de meios mágicos para impedir essa ave de causar

estragos.

lima vez foi preciso chamar as ciências do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e

retirar os ácidos depósitos. VA. p. 48

Interessante verificar que toda essa informação nos é dada pelo pequeno pastor. Essa

sabedoria ancestral é confirmada pelo lio Raul. quando o procura.

Raul. rasgando-se nas micaias. aceitou a ciência do miúdo Ninguém compelia com ele na

sabedoria da leria VA, p. 51

Outra ave que desperta forte superstição é o nianipfana" . Esta ave previne os viajantes

de que pode haver perigo de morte.

Em Terra Sonâmbula. Kindzu. o eterno viajante, depara-se com essa ave. em mais uma das

tentativas feitas pelos antepassados que o querem impedir de partir. Primeiro a ave surge

no discurso ameaçador de I aímo.

Depois avançou ameaças já que eu tanto queria a viagem, num dado entardecer, me

haveria de aparecer o niampfana. a ave que mata as viagens. Estará de asas abertas.

pousando sobre uma grandíssima árvore, disse ele. { ...)

;l*Verde, encarnado, preto e branco. Cf. Junod. I sus e costumes. T. II. p. 277

'''

Idem, p.305: «aquele que faz parar os viajantes» avisando-o.s «de que o caminho não está puro.» Cf.tb. p.

s27. l.ll

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73

-Quando encontrar o mampfana me chame, então. Talvez eu lhe escute, nesse momento.

Mas nâo esqueça eie fazer boa sura. Não vou fazer cerimónia sem ela. 1 S. p.46

Essa predição realiz.a-.se mais adiante, quando Kindzu está a repousar sobre uma árvore.

Me decidi, pronto, a sair dali. Quando me afastava, porém, das folhas se apurou um

maravilhoso canto, de arrastar o sono para o último leito Quase eu não conseguia um

passo, meu corpo pesava séculos. Olhei a árvore e vi o pássaro que. em sonho, meu pai

preditara. Era o mampfana. a ave matadora das viagens. fS. p.I *. 4.

O narrador apresenta a ave com certas características inovadoras, como por exemplo o

canto parali/eidor. e, inovador é também, o modo como cia deixa deconstituir um perigo.

Então de súbito, com um deflagrar de troveja, a ave se rasgou em duas. desmeiada

Caíram suas penas, se esfarelaram suas garras e seu corpo se desconjuntou como se fosse

feito só de brasas Fechei os olhos: uma tontura me percorria. IS, p. 1 94

Fste desaparecimento da ave. fica assim a dever-se ã intervenção do espirito de seu pai.

sem que haja qualquer cerimónia especial.

Os pássaros que surgem n'0 embondeiro que sonhava pássaros» assumem um papel

diferente. Não classificados, apenas pássaros, eles são. no entanto, logo á partida «de outro

mundo»

...aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém poelia resistir às suas cores.

seus chilreias. Sem aquilo parecia coisa deste mundo» CTIR, p. 63

E mais adiante: «Os portugueses se interrogavam: onde desencantavaele ião maravilhosas

criaturas?»

O chilreio dos pássaros revela-se inquietante.

Aquela música sc entranhava nos moreidores mostrando que aquele bairro não pertencia

àquela leria Afinal, ns pássaros desautenticavam os residentes, esirangeirando-lhes'

C1IR. p.6.3-64

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7-1

Estranhos também e ligados à morte são os pássaros referenciados pelo personagem Tuhair

de IS.

-A febre náo é derivada elos mosquitos, li o canto desses pássaros que me faz quenturas.

-Quais pássaros?

) oeê não lhes viu. esvoando por aí?

Muidinga não lembra de ler avistado nenhumas aves. fS. p. 1 88

O pássaro-cão O cão é personagem que aparece frequentemente nas fábulas e uma das

interrogações que a seu respeito se têm formulado é a de saber como se tornou doméstico

->". Universalmente, o cão está desde sempre associado à morte, aos infernos e aos mundos

subterrâneos. A principal função mítica que se lhe atribui é a de guiar o Homem na Morte.

depois de o acompanhar em vida.--1

Contudo, em todas as culturas a figura do cão aparece com variantes que se juntam ao

simbolismo primeiro. Em Africa, segundo as crenças de algumas das suas regiões, o cão,

familiar com o invisível, serve de intermediário enlre este mundo e o outro, de intérprete

aos vivos para questionar os mortos e as divindades subterrâneas a que se encontra ligado.

Assim, a relação tradicionalmente estabelecida do cão com a morte, as trevas e as torças

invisíveis podem torná-lo suspeito de feitiçaria. Pode ser ainda o guardião dos infernos ou

emprestar o rosto aos seus donos.-'--

Nos textos de Mia Couto, o cão está ausente . exceptuando «A lenda da Noiva e do

forasteiro >(CHR).

Neste texto, aparece descrito um animal com característiceis estranhas, nomeado como cao,

parte dos seus atributos reenviam, contudo, para outro animal. Além dc dominar a «lala»

dos pássaros, este cão também dominei a sua principal arte:

"'

Cf. Guerreiro,M.V .. .V.<v.».v ( 'untos Macondes. p.58"'

Chevaiier. Jean.-Gheerbrani. Alain, Dietioniiaire des symbole.s. p. 239■'-'■'

Idem. p. 240

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7s

E sobre elo cão?!...) Mas não ladrava: piava eom a fala dos mochos. (.00 cachorro

ladrepiava. (...) CHR.p.130

Todos condiziam: o cão voava. Assim se explicaveim as pieições. (p.131)

No decurso da narrativa este ser é qualificado como um monstro (cf.p. 1 34) e sào-lhe

atribuídas ainda outras proe/as bastante estranhas.

Saía-lhe dos beiçeis uma baba verde-espumosa. cie maldade consagrada. Tinham-lhe visto

morder um cabrilinho O /sobre bichei não demorou no mundo. Primeiro, desfizerum-se os

cornos!. ..jDesconsumiram-se. líquidos, entornados Depois a cor do cabrito esfriou e os

ppêlos deretm-se por war, penas eie cinza ao vento p. 1 3 1

A baba do cão além de possuir a capacidade de liquefizer os cornos do cabritinho. e va/á-

lo em poeira. « queimava folhas e ramagens».

O cuspa deitava fervura no chão. parindo fumos azulenteis. p. 1 3 1

1.14. O fogo

Segundo Gaston Bachclard. os arquétipos temáticos du imaginação criadora provém dos

quatro elementos primordiais da Natureza. Sobre este elemento, tal como ele afirmei.

pensou-se durante muito lempo que resolver o enigma do fogo equivaleria a resolver-se o

enigma do universo, sendo assim constante o fascínio exercido por tal realidade.""

Existem vários mitos sobre a origem do fogo e de uma maneira ou de outra , é do céu que o

fogo vem . em grande parte desses mitos." Na Africa . também o fogo foi ira/ido do céu |

por várias aves e outros animais, tal como vimos atrás.

Além disso, o fogo sempre desempenhou um papel eminentemente social."" Contar perto

do logo parece ser um costume universal, fazendo assim pente do cenário da tradição

i 72t>oral.

Bachclard. Gaston, A psicanálise do fogo. Col. Mega, l.studios < 'or, I isboa. 1972. p. 109

"

I -razer.James G., Mythes sur 1'origmc dufeu ap. Manuel Viegas Guerreiro. Xovos contos maemides. p.64

O respeito pelo fogo é ensinado, constituindo inicialmente o objecto de uma proibição geral, que a medida

que a criança cresce se vai espiritualizando.Cf. Bachelard. p 2o

Traça. E.. p. 42. cita Bachelard: ••(> fogo e a água servem de protecção, como o vidro da janela através do

qual os mundos se .êem mas não se penetram. O fogo sempre toi visto como um elemento protector -

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71*

Nos textos de Mia Couto, a fogueira é um dos elementos presentes na encenação deis

situações típicas do oral. é o lugar do eterno presente, transfigurado pelo passado que

aconteceu. Por exemplo, a leitura das histórias em TS íaz-se sempre junto à fogueira."

Essa ambiência do reconto oral vamos encontrá-la representada também no conto «A lenda

da noiva e do forasteiro».

O estranho abrigara-se em ilegível distância. .Aos poucos, ele se foi tornando assunto l.

nas noites, sob o estalar deis estrelas, as falas não variavam:o homem, o cão. conversa de

sombras só para afastar silêncio. Todos avançavam versões, atribuindo razões ao

intruso. Invmtavam. sabia-se. Mas toe/os escutavam, crédulos.CHR.p. 130

Eu vou dar morte a essa sombra.

Foi como anunciar tle cobra: elesfez-se a roda, a cascata de vozes se suspendeu.CHR, />..

132

Esta encenação do oral, que recobre muitos outros aspectos que não iremos desenvolver

aqui, só é perceptível, no entanto, a partir de marcas indirectas que nos permitem

reconstruir a simulação." tal como nos revela o exemplo apresenteido.

No primeiro conto de VA surge também referido o fogo.

A velha assustou-sc qual o fogo que o homem vira? Se nenhum nâo haviam acendido?(p.

26)

Para no final a voz do narrador se juntar à da mulher, concluindo que «Ele adormecera

longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera», (p. 29)

Segundo a tradição de alguns povos, nomeadamente os wayao. acredita-se que a sorte de

um homem é influenciada pelo seu fogo. isto é. pelo fogo que ele produziu no lupeceso.

parei seu uso, e a sua má sorte significa que esse fogo perdeu a sua virtude.

Para vários povos, sonhar com o fogo é tido como agoiro de guerra.''

Podemos ainda

verificar uma alusão á função de mediador, de intermediário entre o mundo ilos vivos e dos

"'A este aspecto. Gilberto Matusse ehama-lhe «dramatizaçõ do oral», em que exisie «um cenário da

tradição oral momtado para histórias escritas» in: .-) construção da moçambicanidade. p. 129

"*

Idem. p.l >l""'

Aparelho tradicional com que é produzido e que assim se designa in: Povo >«... p. ^XX

:'"'In: Povo Yao. \* ~-K<'

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77

mortos que o fogo teria, na mitologia e nos contos mágicos dos povos do mundo, segundo

V.Propp"

.

De acordo com a filosofia bantu existe uma relação entre o fogo e a vida da comunidade,

assim quando a morte atinge a aldeia o fogo deve ser destruído para que a vida normal seja

retomada.

Existem, então vários tabus relativos ao fogo entre eles a interdição dc usar os ramos de

uma árvore atingida por um raio ou a de conservar aceso o lume em casa de um defunto.

terminado o luto pesado.*

No conto «Os pássaros de Deus»(VA), surge o motivo do fogo. mas assumindo uma forma

destruidora, jeito de vingança da família do personagem principal. Assim como no conto

«O dia em que explodiu Mabata-bata», surge o mesmo motivo, através da ave do Jogo:

O pequeno pastor engoliu aquele lodo vermelho, era o grilo do fogo estourando..(p.54)

Por outro lado, o fogo e o calor sugerem associações com o sortilégio e a feitiçaria, não só

no continente africano233 Ainda em CHR. «O pescador cego», o fogo assume proporções

trágicas, servindo de elo de ligação entre os vivos e os mortos.

O pescador acaba por lançar fogo ao barco, embora a mulher dele tente impedi-lo, achando

que «Aquela loucura dele era um convite à desgraça (p.98)

Certa noite porém se confirmem o pressagie) de Salima: aquele fogo voara demasiado alio

incomodando os espíritos p.99

Assustada, parte, «sequer deixando que seus meninos figurassem seu velho pai. em estado

de feitiço, desabençoando suas vidas» p.98

"'

Citado por Bachelard. op. cit..p 81232

Junod. op. cit. Para produzir o fogo por fricção, os Tonga empregavam várias espécies de árvores Uma

delas é empregada para acender o lume sagrado e só os curandeiros ousam fazê-lo por possuírem «mezinhas

para se preservarem da doença contraída»"'""

Cf «As religiões tradicionais africanas», p. 81

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7S

1.1.41 A árvore (suicida) sagrada

Ligado ao motivo do fogo surge-nos a árvore. Junod afirma a propósito da tradição Tonga

que a árvore não é objecto de culto, e se houver uma árvore considerada sagrada sê-lo-á por

associações outras, e não «por si mesma ou porque se julgue que nela resida qualquer

espírito da natureza"."

No entanto, a árvore faria parte do conjunto de seres animados de

uma vida mágica, segundo a filosofia africana."'

No conjunto dos textos são referidas algumas árvores. Por exemplo, a mafurreira surge

em VA.( p. 58).E nessa perspectivei seria interessante fazer uma estatística aproximada das

alusões às plantas e aos animais e verificar qual a supremaciet e relacionar com os valores

dominantes da sociedade.

Sobre o papel desempenhado pela natureza, faríamos a distinção entre os contos e o

romance. Em TS, Muidinga. no início, apresenta-se pouco atento à floresta que o rodeia.

ele nào a vê e no decorrer da narrativa vai dando uma atenção cada \C7 maior à natureza.

"

Assim é que. à medida que a segunda narrativei (a de Kindzu) vai sendo lida. a floresta

ganhei vida e em certos passos há como que uma participação, deixando de constituir um

simples elemento de referência. Neste caso. diríamos que há uma contaminação da visão de

Kindzu. isto é. a floresta é vista por Muidinga ou Kindzu? Vejamos alguns exemplos:

Procura nas redondezas um ramo à altura ele receber um nó Enleio se admira- aquela

árvore, um djamhalaueiro. eslava ali no dia anterior? Não. não i síavtí Como podia ler-

Ihe escapeulo a presença de ião distinta árvore? E onde estava a palmeira pequena que. na

véspera, dava graça aos arredores do machimbombo? DesapareceraIA única árvore que

permanecia em seu lugar era o embondeiro/ / seria ele crer aquelas mudanças na

paisagem'.'Muidinga hesita em consultar Tuahir IS. p. 37

F precisamente o personagem mais velho. Tuahir, que se torna o transmissor dos segredos

da floresta de que o jovem se revela desconhecedor.

Junod, H.. Usos e Costumes dos Bantos. I . II. p.29.""

Jahn. J . «Ntu» in: Muniu. p. 109"""

Kane, M. op. cit., p IS*.

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79

Mas o mato selvagem não oferece alimente) para quem nâo conhece seus segredos.'] S. p.

53

Aquela era sua primeira incursão pelos maios TS. p., 54

Significativamente essa descoberta da floresta revela-se também como uma incursão pelo

mundo dos conhecimentos antigos, do sonho, das narrativas antigas, da videi dos animais,

da leitura dos caminhos.

Mais adiante na narrativa o jovem passa a lerda floresta uma visão mágica.

De facto, a única coisa que acontece é a consecutiva mudança de paisagem Mas só

Muidinga vê essas mudanças Tuahir diz que são miragens, frutos do desejo de seu

companheiro.1 S. p. 69

Essa visão vai culminar com o episódio de Siqueleto e a sua identificação com as

árvores. (Cf p. 72. )e ainda com o episodio do nascimento dos rios.(Cf. p. l»5 )

E a certa altura o jovem reflecte sobre a paisagem.

Muidinga olha a peiisagem e pensa. Morreu um homem que sonhava, a leira está triste

como uma viúva.!...) O rapaz confia no entendimento que o velho tem sobre as pedras em

seu atento ler nas folhagens. Tuhair é capaz ele saudar um carreiro onde ninguém mais

descobre caminhei O mato é a sua cidude.TS. p.98

Ainda em TS nos aparecem alusões individualizadas de árvores.

Fui ao centre) du aldeia.a grande sombra do canhoeiro. Tá sentavam os mais velhos, de

manha alé de noite. Eu queria ouvir suas antigas sabedorias I S. p. .3(1

São também várias as menções a árvores com características mágicas ou sagradas. No 10"

caderno de Kindzu. este personagem relata a proximickide de uma dessas árvores, abrigo

do mampfana.

Mas a árvore onde eu me frescava era uma terrível e ossuda planta a árvore do demónio

Era uma dessas plantas que chora como a serpente, um lamentochão que atrai gentes e

bichos. Só então reparei: o terreno todo em volta era branco, areia tão brilhusa que a

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80

noite ali nunea deveria repousar. Motivo daquela brancura: todos ossos que dormiam.

resteis dc bichos devorados, esqueletos dos /'assaras que caíam jei mortos dos ramos da

maldiçoada árvore. IS. p. 1 94

Também a árvore com que o personagem Siqueleto tem inusitadas ligações, se apresenta

muito estranha. A sua localização é vaga e fora da paisagem habitual.

São conduzidos pelo mato. para lá do longe Então, frente a uma grande árvore, Siqueleto

ordena algo que o jovem nele) entende.

-Eslá mandar que escrevas o nome dele.

Passa-lhe o punhal So tronco Muidinga grava letra por letra o nome elo velho. Ele queria

aquela árvore para parteira ele outros siqueletos. em fecundação ele si(..0) t ele diz.

-. Igora pode //.-se ir embora. A aldeia vai continuar, já meu nome está no sangue da árvore

IS. p. 75

íé-nos depois descrito o processo de metamorfose do velho: «ele se vai definhando, atê se

tornar do tamanho de uma semente», (p. 75, IS)

Ainda no romance TS. é relatada a metamorfose das palmeiras, ou melhor, o mar

transforma-se «numa planície coberta de palmeiras» (TS. p.20)

No conto «O embondeiro que sonhava pássaros» (CHR, pp.62-66) surge associada ao

motivo do fogo. a árvore sagrada, o embondeiro também conhecido por árvore das baixas

(Nnondje)" '.

Sobre os Macondes. Manuel V. Guerreiro afirma que eles concebem «o reino vegetal

animado de uma força viva que se pode transmitir às coisas e aos homens», tendo as

árvores «forças que podem matar e curar»-' lx. Apresenta este autor um ilos contos

etiológicos, onde surge o motivo dos homens dentro do embondeiro.23'' Como mais adiante

Guerreiro. O-, Macondes de Moçambique. Vol. IV. pas'*

Op. cit.. pp i66-."567. vol. III"

«O rato dn mato andava na floresta e ouviu barulho dentro de um embondeiro, eram palavras dc humens.

não cotisc!.iiiu abri-lo. Foi ter com um rato de .asa. I ste agarrou no machado e foram abri-lo.\o abri-lu

saíram homens. ». vol. III. p 28?

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SI

veremos este motivo, de uma forma poetizada, vai estar presente no conto » O embondeiro

que sonhava pássaros".-1"

Neste caso. o fogo surge com uma função purificadora, seguindo Bachclard. a morte peleis

chamas é a menos solitária das mortes, é uma morte cósmica, na qual todo o universo se

aniquila. O fogo pode tornar-se assim um símbolo de pureza Z

.Esta árvore é descrita com base na realidade: O embondeiro/...) aquela era uma árvore

muilo sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixofp. 62. CI IR)

Ainda segundo a mesma descrição «Aquela árvore é capa/ de grandes tristezas. jp.62 «Os

mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas: sem

ninguém pór fogo »pp. 62-63.

Está a ver a flori' -

perguntou o velho.

E lembrou a lenda .Aquela flor era moradia dos espíritos Quem que fizesse mal ao

embandeirei seriei perseguido eité ao fim da viela p.66 Cl IR

O ciclo natural do embondeiro é descrito, ganhando no entanto, um carácter repentino que

se constitui como um processo simbólico que assim funciona para a personagem-criança

espectadora.

.A criança se hesitava, passo alras. /nisso adiante enulo. foi enleio: as flores eles

embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No chão. suas brancas pétalas, uma a

uma. se avermelharam CI1R. p.66

O mesmo personagem se dá conta do que a seguir se transcreve:

Chegou Li residência do passarinheirolembondeiro) olhou o chão coberto de pétalas. Ja

vermelhas não estavam, regressadas ao branco originário (TIR. p. 68

Poder-se-a ver aqui uma alusão ao emboiídeuo-ouro. tradição oral na Guine-l.is ..m e que se integra ini

cie lo de comedores de homens em Moçambique Cf. Rosário I ourenço. pp __.» 1 -__W1 Ib final de IS-

metamorfose:"

Bachelard. G .O fugis. \* 17..

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s:

1.2 Ciclo Mítico

1.2.1 O simbólico

Honorat Aguessy situa o mito africano na «ordem do simbólico» e explicita com recurso á

linguagem da escola freudiana lacaniana que «o simbólico é o que dá sentido ao imaginário

e ao real e «representa a ordem ou a organização constitutiva, a cadeia que se apodera do

"•y

homem, «já antes do seu nascimento e para lá da sua morte»'

A categoria da narrativa de que provém o mito. caractcriza-o como sendo absurdo

considerar «as categorias do verdadeiro e do falso» e « a palavra manifesta-se como acto».

Por isso o « mito africano não c um discursei conscientemente enganador»"' e o

especialista (de carácter religioso) que o narra não o faz parei divertir, mas para que quem o

ouça tire a lição devida. O mito possui, assim, um «carácter fundador», «doador de sentido

às realidades quotidianas. Ou dito de outra maneira, através dele «o espírito transcende um

cosmos condicionado fragmentado e limitado para encontrar a unidade de antes da

_ M-icriação.

Nas sociedades organizadas, o indivíduo sacrificando-se ao social não pode praticar o mito.

que perdendo o seu valor funcional passa a ser narrado e assim os mitos «se tornam

contos»

Quanto a esta autora, «há ainda os ritos que subsistem em superstições, em magias». E o

conto popular, quadras, provérbios serieim reminiscências de mitos. «Alguns deles

perderam-se. outros uniram-se. basta saber como descodificá-los para encontrar o muito

que conservam da sua força v ilal»'

"

"Aieuessv. Honorat. 'Visões e percepções tradicionais'- in. Inirndiiçãn a cultura africana, p 1 >]:j'

Idem. p I?:

Almeida. Palmira Morais R .'-Análise semiológica de um conto popular africano: 'O humem-da-nande-

caian.f ». p 37f>. in: Adas do I Colóquio de Professores I 'n i v de Lil. de I xp. Port. Lisboa. 19X4. p. ..7..

Idem. p*~~

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83

Estamos, talvez a falar daquilo a que Denise Paulme designou como metalinguagem do

conto, em que ganha importância o lugar dos actores, homens, animais, plantas na

sociedade: o simbolismo dos gestos, o dos acessórios (jóias etc.)

Na maioria dos textos estudados uma das estratégias discursivas utilizadas resulta no facto

de o narrador se misturar com o íntimo dos personagens através do discurso ind irec lo- livre.

conseguindo assim por meio desta técnica formal a cumplicidade entre quem conta e quem

M.jvive.

No caso de Terra Sonâmbula, por exemplo, não há só uma voz mas várias, e temos o

narrador principal, que se torna interlocutor dos «outros» contadores de histórias. Neste

texto, para além do facto de todos os personagens serem potenciais narradores de uma

cstória. a sua ou a de alguém, chega a haver o confronto de várias versões de um mesmo

acontecimento. Diríamos que a fronteira «entre quem conta e quem vive» sc encontra

bastante complexificada.além de que tal aspecto nos pode remeter para as origens do conto

oral. e a simbologia do acto de contar.

Logo no inicio da eslória-encaixe de TS, Kindzu ao iniciar o seu relato da infância nos

remete para a origem e\o conto, como acto simbólico de metamorfose e viagem-evasão.

.-is estarias deles faziam o nosso lugarzinho ficar maior que o mundo. Nenhuma narração

linha fim. o sono lhe apagava a boca anles elo desfecho.']'S,p. 1 6

Debalendo-se com condições de sobrevivência difícil, as personagens empenham-se em

ignorá-la, fugindo para um tempo fictivo. mítico em última instância, ou pelo menos

«irreal», no sentido em que ao contar (-se) vivem: para viver precisam de narrar' escutar,

característica aliás das narrativas de tradição oral cuja matéria «se situa predominantemente

num tempo e espaço míticos.""

Esclarecedora desta atitude é a lala de I uhair depois de contar uma história.

Tuhair sofrera, a voz ainda lhe nuventa cum a lembrança

-/Igora vivo ele cor o salteado I S . p, 1 34

An» ius, Fernanda, in: Tempo. 9-8-1987

Rosário. 1... "A oralidade através da escrita», p 181

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84

lè todos os personagens se revelam ávidos de narrativas, seja para escutar ou contar, como

se precisassem delas para respirar.

Muidinga pede a Tuhair:

-( 'otite, tio Se é uma estaria me conte, nem importa se é verdade. I S. p. 166

Ainda em TS. realçamos um outro exemplo, paradigmático do que acabamos de afirmar.

em que a narrativa se assume como metáfora da vida. A velha Virgínia, ao encontrar um

menino moribundo no seu quintal, decide enterrá-lo mesmo assim.

Foi buscar uma pá e alirou-lhe eom terra, enquanto dizia:

-Morre, meu menino. E melhor morrer-se. enierradinho. que ficar aqui I: que esla vida

não dá acesso aos meninos. TS. p. 1 75

No entanto, outros meninos impedem os seus intentos.

-Vavó deixe ele viver! Só um bocadinho!

-feira o quê?

-Para ele nos contar a estónia dele. (...)

Os meninos e a velha se conluiaram: nós lhe curamos e alimentamos e depois matamos.

ninguém mais vai pór ouvidos nu narração dele. Fica estaria so nossa.

Idem. p. 1 75

farida é outra das personagens que sofre um estranho processo de transformação, eio ser

impedida de conlar(se) a sua hislória.

A mulher começou então a estremecer, parecia sofrer do iodos eis os frios e arrepios Os

olhos perderam o centro, as mãos procuravam gestos longe dei corpo. Tombou no cinto, se

enrodilhando nas cordas. Parecia que seres invisíveis lhe amarravam e ela resistia eum

desespero. (...)

-Pur lavor, mc escuta

Ela só unha um remédio para se melhorar era contar sua história hu disse que a

escutava, demorasse o lempo que demorasse. I S. pp. í>(.-67.

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Nas situações mais inusitadas, surge o apelo urgente da narrativa, como intervalo de vida.

como adiamento de decisões ou revelações que se sabem difíceis de suportar.

Salientamos o caso dc farida já antes referido em que se apresenta como narradora

compulsiva da sua história mas. noutro passo do texto, apresenta-se como uma ouvinte

ávida, querendo saber do paradeiro do seu filho, fica muda: é então que frente à religiosa

que a interpela farida suplica a Irmã Lúcia:

-Irmã. peço: me conte estórias!

Se o expediente se apresenta como uma maneira de embusle,(«I*alou mas ocultando a razão

da sua presença»), já é mais surpreendente que a freira aceda ao pedido.

A freira, então, se demorou em desfiadas eslorinhas. como se adivinhasse sua carência de

fantasia. Quando se calou, o sol se inclinava na varanda da tarde, a terra sofria a

inundação do poente, os campos sc cultivavam ele poeira-laranja Lúciaperdera a força de

mais encantarias, sua voz se desbotava vencida pela forcei das coisas reais, o adverso

presente f.o.l noite, de repente, se espalhou em toda a pane. I S. p. 88

1.2.2. As lendas

A referência explicita de lendas existe ao longo dos textos analisados. No conto «Sydney :

Poitier na barbearia de filipe l.eruburu». um dos personagens na sua fala menciona «o

n'uantché-cuta». e o narrador explica essa menção.

Referia-se a um passarinho que rouba cabelos de gente para fabricar o ninho Diz a lenda

que. na cabeça do proprietário lesado, já nâo volta tt crescer mais nem um /uio» Cl IR, p.

150

No caso de (TIR. ••<) embondeiro que sonhava pássaros» existe também esse apelo ã

memória colectiva.

/ lembrou a lenda .-lauda flor era moradia dos espíritos Oucm que fizesse mal ao

embondeiro seria perseguido ale au fim dei vida CHR.p. 66

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lambem no conto «Mulher de mim»o narrador-personagem se refere a esse género:«as

lendas antigas me avisavam virá uma que acenderá a lua»(CHR. p. 1 20).

Existe ainda a menção de personagens que nos reenviam para as fábulas tradicionais.

-Estamos onde Tuhair?

-Nem fale. Deve ser morada do sapo gigante, o ial comedor de escuro. 1 S. p.70

No caso de TS. algumas narrativas surgem que podem reminiscências de mitos sobre as

origens, explicação de uma situaçãotGuerreiro).

Tuhair em diálogo com Muidinga. num jogo de faz de conta :

-Estás a ver o monte. Kindzu? pergunta Tuhair

Estou. Quem sabe Gaspar anda por lá, neste momento?

\'Ziu anda. com certeza.Aquele monte é proibido, disse o velho.

li prosseguiu" aquele era o lugar onde Há muito enterraram o régulo marrete). Naquela

altura, nâo havia nenhuma elevação, tudo em volta era planície. O morto começou a

crescer debaixo da leira e as suas costas se encurvaram, empurrando o chão.

Foi assim que nasceu a montanha, concluiu Tuhair IS. p. 1 66- 1 67

A narrativa dc Nhamataca. «o fazedor de rios- é devedora da visão mítica do mundo, em

que o personagem acredita que vai criar um rio. (p'M-98) Significativamente os outros

interlocutores, «conduzidos pelo mato. para lá do longe»(p.76). não o contrariam.

Abandonado pelos seus que «retiraram em dúvida da sua sanidade-', vai < covando no dia a

noite». Tuhair a comprovar a «verdade» do comportamento de Nhamataca recorda a

história do pai dele. que aquele não contraria.

Nasci num barco, sou filho elas aguas, sorri Nhamataca a fechar a estaria

li adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventesI S. p.9_r>

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O jovem Muidinga representa neste episódio o contraponto da visão racionalista, enquanto

Tuhair não considera que o velho esteja maluco e quer aderir ao projecto, o rapaz acha que

«não se podiam desviar por irrealidades»(p.t>7).

No entanto, o desfecho deste episodio revela-se trágico e estranho.

A este propósito, a narrativa do pequeno pastor é também exemplar. Conta a sua história

como verdadeira, revelando-se triste e inconsolável pela perda de um boi «o maior de

todos» (TS. p. 189-190). O menino relata a paixão, a metamorfose do boi em yarça e a sua

morte mais uma vez bastante estranha.

O pastor assistira a sua lenia agonia e lura ler visto lágrimas deflagrando nus

redondíssimos olhos do bicho TS. p. 190

1.3 Ciclo Etnográfico

Como muitos autores africanos Mia Couto parece empenhado em guardar o maior número

possível de informação sobre os usos e costumes da tradição, aproveitando para introduzir

tais informações nos seus textos, assim é que o autor faz alusão expressa de costumes da

tradição oral.

Sobre a possível relação existente entre o universo literário e o real. há a salientar o facto

de que o escritor tenta sobretudo preservar a individualidetde dc uma cultura c a

singularidade de um imaginário."' Não há assim um caminho directo para o quotidiemo.

até pelo fado do «cenário» dos textos do autor se apresentar bastante eilargado. sendo

difícil de situar, algures no centro e no sul do pais. Alem de que sobre as narrativas paira

sempre estranheza e um «ar de mistério», produzidos por diversos lactores.'

Iinbora saibamos que os contos se podem inspirar em factos reais e podem veicular

valores, temos presente contudo que o escritor, aindei que inspirado na tradição oral. irá

Mia Couto em entrevista á Tempo. 17-10-1 98ò'"''

Segundo Gilberto Matusse a obra de Visa Couto nao procura produzir um efeito de real Isto verilit ai -se-

ia ate pelas peisonagens «cuja caraetci i/acão e contexto situacional da sua comunicação não vão com pai i\ eis

com o uso da hnsjua portuguesa»

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reinventar o o material para outro público, colocando-o num enquadramento etno-histórico

relevante aos seus leitores.'5 Aliás em última instância, essa será ainda uma prova de

fidelidade ao espírito da tradição oral. que não exige uma memorização rigorosa e exacta.

mas se equilibra entre a criatividade e a tradição (Ruth Finnegan).

Parece-nos haver da parte do autor uma preocupação de representar a diversidade que é

factor importante na sociedade moçambicana. Assim é que a par de personagens que fariam

parte da tradição: os velhos, caso dos velhos do primeiro conto dc VA. do velho Josias que

tenta ludibriar a morte, outros personagens nos surgem porém denunciando outras origens

e outras culturas.

São de vários tipos as personagens que se movimentam no universo criado pelo autor.Em

VA, surge-nos 1). Cândida, «mulata», casada com Sulemane. comerciante indiano. Surge-

nos ainda a personagem «china Mississe». •(mulher de segredos e mistérios» de quem

diziam que « a terra de longe, viajando em fumos, lhe atacava a alma».Outro é Ascolino do

Perpétuo Socorro que diz de si próprio ser «indo-português» de Goa. Em CHR surge uma

«princesa russa» e o personagem do «forasteiro». A figura c\o estrangeiro esta presente

ainda no conto "Os Mastros do Petralém». No romance as personagens são também de

diversas proveniências, o que aparece como assunto mim dos diálogos das personagens.

-Somos da igual raça. Kindzu: somos indicas! Ele se ria repetindo: não somos indianos

mas indicas TS. p. 26

Verificamos que também nas actividades desempenhadas pelos personagens, neste campo

o autor é influenciado pela realidade citadina, por isso as actividades tradicionais, a

agricultura, a caça. a pesca, não aparecem tomo exclusivas, mas é-nos apresentada uma

gama mais alargada de profissões.

São vários os processos utilizados para introduzir a temática da oposição campo 'cidade.

assim como o do confronto tradiçãomodernidade.

tírooksliaw, op. cit. pas.

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Por vezes, o escritor põe na boca dos seus personagens, alusões directas ao

desaparecimento da tradição oral, ou pelo menos, à voragem da modernidade, concretizada

na vida da cidade que assim sc distancia da tradição:

A cura desses males só encontra-se na tradição. Mas vocês da cidade, já começam a

negar. CAIR, p. 105

Essa oposição campo/cidade, tradiçãomiodcmidade. vamos encontrá-la expressa e

problematizada dc vários modos, seja surgindo episódica na fala de alguns personagens.

seja como motivo central de mais dc um conto, Ir o caso do conto da mulher feiticeira, o já

referido «Afinal Carlota Gemina nào chegou de voar», em que um personagem do campo.

enraizado nas tradições do seu povo. vai ser julgado segundo outras leis , que não aquelas

por que rege a sua conduta pessoal, desde sempre.

O personagem Kindzu questiona a tradição oral e os seus ensinamentos de uma forma

indirecta e outras directa. No início quando relata a sua infância, apresenta esse espeiço

como idílico c equilibrado

/*.' assim seguia nossa criancice, tempos afora \esses anos ainda titilo tinha sentido a

razão deste mundo eslava num outro mundo inexplicável Os mais velhos faziam a ponte

entre esses dois mundos.']TS. p. 16

Educado na tradição, revela no entanto outras influências.

Minha família receava que eu me afastasse elo meu mundo original Tinham seus motivos

Primeiro era a escalai. ... p. 25

Imerso num mundo «inexplicável» Kindzu procura «as antigas sabedorias» dos mais

velhos.(p. zO) Mas, após os seus conselhos, verifica-se que ele tem dificuldade em aceitar a

sua credibilidade. Confrontado com um universo que se desagrega lentamente sem que

nada seja posto no seu lugar."M

põe a tradição ern questão, já que a sua autoridade não

pode ser exercida com a mesma força que no tempo em que era operante.

Kane. M.. op. cit. p. 1-49

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Aquele grupo de idosos, de repente, me pareceu estar perdido também. Já não eram

sábios mas crianças desorientadas, p. 3 1

No romance TS, em que podemos que afirmar o escritor tenta resolver a dualidade cultural

tradição oral/escrita em português, está representada a problemática entre o contar e o

escrever, entre a escrita e a oralidade e veriíica-se uma postura de oralidade, embora cm

certos casos o autor faça «uma transcontextual ização paródica»,"" ou seja . a situação do

jovem que conta as histórias ao velho, quando normalmente aconteceria ao contrário.""

O personagem Muidinga lê conta, sendo assim um recriador da escrita, e momentos há em

que sendo um leitor solitário, passa de imediato a narrador/recriador do texto lido.

-Nào dorme tio?

-Não. Desconsigo de dormir.!...)

-. E que sinto falia das estarias.

-Quais estórias?

-Essas i/ue você lê nesses eaelerninhos. Esse fidamâe desse Kindzu já vive quase connosco.

-Deixei os cadernos lá no machimbombo. Mas eu já li outro caderno, mais à frente, lhe

posso contar o que diz. quase Sei tudo ele cabeça, palavra por palavra

-Fala devagarinho para eu compreender. Se adormecer, não pára Eu lhe ouço mesmo

dormindo. TS. p. -*9

Vamos encontrar variadas informações sobre os costumes mas essas informações nunca

são produzidas fora do discurso narrativo, isto é. o autor quase nunca faz o metadiscurso do

Maiu--e, Gilberto. «A construção da imagem de moçambicanidade em J Craveirinha. Mia Couto e

I. 'ngulam Ha Ka Khosa<-.p.l_!9Interessante verificar que muitas vezes a informação nos é dada pelos mai . novos. Assim como \ào suriiir

contadores de estórias bastante jovens e também mulheres. De acordo com os valores da tradição a narrativa

oral era exclusivamente do domínio ma.culmo(o griotic. segundo essa perspectiva ... palavra não deveria ser

concedida a uma mulher sem que esse tacto não deixa . .e de projectar uma <• imagem ndicula». Nào é esse o

caso em Mia Couto. Cf. a este respeito. Silva. Carlos Gomes da. «Mavombc, a ideologia e o-

mitos»! comunicação apresentada ao I Simpósio Internacional solue Cultura angolana. Porto. Maio. I°89|

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"I

que narra, antes essas informações, bastantes vezes breves, nos surgem no fio discursivo.

ou aparecem em falas dos personagens.

Em TS vamos encontrar alguns exemplos.

Se cumprimentam rodando as mãos sobre os polegares, à maneira ela terra. I S. p. (>4

Maldiçuava minha sina: os cornos da lua sempre apontavam para cima Meu pai me

ensinara a ler as luas.

Aquelas pontas viradas para o alto. eram o sinal que a desgraça continuava apostada em

mim.lS. p. 44

1.3.1 O lobolo

Alude-se ao costume do lobolo em vários contos. Em VA, no conto «No dia em que

explodiu Mabata-bata» é explicitamente afirmado que o boi «estava destinado como prenda

de lobolo do tio Raul » (p. 47 ) remontando assim à origem de tal costume já desetparecido

ou substancialmente alterado.

Também em Cl IR, no conto «O Apocalipse privado do tio Gueguê» se làz referência a

esse costume na sociedade moçambicana. Essa alusão vem por meio do conselho do tio

sobre as mulheres, e ao ser colocado em paralelo o velho lobolo e o casamento de tipo

europeu, o que o tio condena é a perda da liberdade que a constituição da família provoca.

Fosse pelo velho lobolo. fosse por modernas tradições eu me devia furtar aos anéisf...) O

lio Gueguê negava os valores da tradição, o laço da familia»C\ IR. p.36

lambem no conto «A lenda da noiva...» e levantado o problema do lobolo. mas aqui

encarado como um valor sagrado. A linda rapariga fora escolhida para salvar a aldeia.

quando se põe a hipótese de ela se entregar ao estrangeiro para desfa/er a maldição, tal

procedimento é posto cm causa.

Afinal, a menina não era noiva dc Nyamhi? São se unham eles consagrado eum selo de

lobolo? (p. 34)

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1.4 Práticas Mágico-religiosas

1.4.1 As cerimónias

Em quase lodos os textos do autor regista-se um fatalismo místico, ritualisia que tem tudo

a ver com os arquétipos mentais do povo que retrata. Estão presentes presságios, sinais de

bom augúrio e mau augúrio, assim como práticas de adivinhação e todo um

comportamento norteado por tabus de vária ordem. Paradigmática é a situação relatada em

«O último aviso do corvo falador» em que a povoação acredita, embora duvidando, do que

se possa passar. Digamos que esle respeito pelo «sobrenatural» representa um aspecto da

realidade moçambicana.

No texto referido o espiritismo e a adivinhação são abordados, e a alma dos defuntos

antepassados assume um papel importante. São ainda citadas as cerimónias exigidas pela

tradição no sentido de afastar a morte.

I). Cândida «mulata da sua pele» cumprira todas as cerimónias «para afastar a morte do

primeiro marido.

Ele era prelo " senhor sabe. Pedido foi eia família dele. eu segui VA p. 39

Sobre o decorrer das cerimónias, o narrador faz-nos uma breve descrição, bastante elíptica

e que se completa no diálogo entre dois personagens.

-Matou o cabrito?!...)

-O bicho gritou enquanto a senhora cantava'.'! i

li que mais D ( 'cindida'.'

-Fui au riu leivar-me da mone dele Levaram-me us viúvas, banharam comigo Tiraram um

vidro e curtaram-me aqui. nas virilhas Disseram que era ali que o meu nutrido

dormia < i VA. p.37

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Mais adiante D. Cândida, a viúva, junta mais alguns detalhes.

-Roupa dele'.' Já nâo tenho. Eu nâo disse que pratiquei essas vossas cerimónias? Rasguei.

esburaquei a roupa, quando ele morreu. VA. p. 39

No conto «De como o velho Josias foi salvo das agueis» são mencionadas as cerimónias

para pedir chuva e de como se rezava aos defuntos que têm a licença da chuva. Depois das

re/as dariam de beber aos mortos, deitando aguardente sobre as campas, «panelas de

ngovo» (VA. p. 122)

No entanto, o personagem tenta ludibriar os mortos c é castigado, [encarregado de levar as

panelas de «ngovo». a aguardente que faria parte das cerimónias para pedir chuva, nào

resiste e bebe -a toda. Consciente das possíveis sanções, não sabe como explicar aos mais

velhos a sua atitude violadora dos códigos ancestrais. Assim, pensa acrescentar água à

«bebida de milho», menos preocupado com os mortos do que com os vivos.

Os mortos não notariam a diferença, o paladar deles já está esquecido dos saborosos

pecados ./> 124i

Contudo, antes que consiga realizar o seu intento, fica soterrado no poço e, desesperado.

perde a vontade de sobreviver, de tal modo teme a punição que iria sofrer. Teria « de

escolher o longe, viver na distância, envelhecer sem nome nem história »(p. 1 24).

Vários sào os casos, tal como este. em que verificamos uma «desconstrução- do discurso

baseado na tradição. No final do conto «Os pássaros de Deus», a população, não festeja a

chegada da chuva, como seria de tradição.

Pela primeira vez. se uniram us . i\ nças suplicando que nâo chovesse.(p. 64)

Daríamos apenas outro exemplo retirado dos vários de IS e que se prende eom a relação e

rituais com os defuntos. A própria fuga de Kindzu pena se vei livre dos antepassados.

utilizando os preceitos dei tradição, e o seu dialogo com o espírito do pai. que lhe conta o

que se passa lá onde esta.

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l.amentavu-se da cansativa morte:

-Sou um morto desconsolado Ninguém me presta cerimónias. Ninguém me mala a

galinha, me oferece a farinhinha. nem panos, nem bebidas. Como posso te ajudar? TS. p46

Contudo, além da isotopia da desgraça e maldição que percorre a maioria dos textos, existe

a problemática dos valores simbólicos em que os personagens se constituem como

. .4

infractores, desencadeando processos de desordem.""

O caso da personagem Jotinha. «dona de poderes», é apresentado como exemplar.

Vivendo num campo de refugiados, rompe o equilíbrio da Natureza ao infringir os códigos

d;i tradição.

Jotinha namora com Kindzu e, de manha, «quando as crianças acenderam o fogo, as

panelas começaram logo a rachar» (p. 203). É o personagem Quintino que explica a

interdição.

Num lugar novo como aquele, ninguém pode namorar nos primeiros tempos Para os que

chegavam, aquele campo era recente, cheio ele interdições. Violar essa espera iria trazer

grande desgraça/] S. p. 203)

I tn TS, na estóna de farida. nascida irmã-gémea. a crença <l\ tradição é que tal

acontecimento c sinal de grande desgraça. Por isso. sào necessárias várias cerimónias de

purificação e também o sacrifício de uma das irmãs. Se tais procedimentos não lorein

cumpridos, entre outros males «as chuvas deixariam de cair para sempre»(p. 77)

A personagem infractora, neste caso. é a mãe das gémeas. Reeusa-se a cumprir na

totalidade os ensinamentos da tradição em tais circunstâncias, o que vai resultar em

desmandos na Natureza.

O lugarzinho, no enquanto, foi sendo alvo de desgraças. .X terra caiu em desordem.

sopraram ventos que arderam no sol. secaram fontes e lagos As nuvens medrosas.

fugiram ! fume c a morte instalaram residência. Tudo aquilo acontecia, dizem, por causa

du mãe não se ler purificado. De noite, ouviam as cerimónias Pcdia-se aos antepassados

Matusse, Gilberto. •<,\ restauração do equilíbrio perdido» in: Rll.l'.n I

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(/ favor ele alguma chuvinha. O escuro se enchia de tambores, moendo a tristeza como um

pilão. (p. 79)

E quando as cerimónias mágicas são executadas, sacrificando a personagem infractora.

restabelecc-se o equilíbrio da Natureza, antes perdido.

AV.s-.vc mesmo dia tombaram grossas chuvas. As sementes e a esperança se tinham

finalmente reconciliado, (p. 80)Na quintal dela entraram mulheres meio-nuas essas que

costumavam limpar os poços. Precisavam de uma mãe de gémeos para as cerimonias

mágicas. Mandaram que ela mostrasse o túmulo de sua filha (..)Ouando chegaram a

campa, us mulheres veneram água sobre o pote fúnebre. Dançaram, xiculunguelando.

Depois meteram a velha num buraco e foram-no enchendo eie água l...)A mãe eie Farida

visitara o < eu e se ela estivesse molhada, certamente as nuvens também se encharcariam

As chuvas viriam por fim/..) Alé que se afastaram. Juncando e cantando, deixando a mãe

no fundo da (erra ensopada/.. JNcssc mesmo elia, tombaram grossas chuvas As sementes

e a esperança se tinham finalmente reconciliado. TS. p. 79-80

Significativeimente, as mulheres protagonistas destas cerimónias da chuva,vão surgir mais

adiante, noutro passo da narrativa e noutras circunstâncias.

No 6o capítulo, Muidinga vê-se envolvido no meio de uma cerimónia, em que não podem

estar homens. As mulheres batem-lhe e insultam-no já que. nessas circunstâncias ficam

levantados todos os tabus de linguagem. Muidinga. não conhece a tradição, facto que é

apontado pelo narrador: «Gritam em língua que ele desconhece».

-Porquê me batem mães.'

Mus elus não entendem a sua lingua. E desse desencontro se enchameia mais a zanga

daquela gente TS. p. 109

i o personagem Tuahir que lhe explica o que aconteceu. Aquelas mulheres estavam em

• ..atirada cerimónia, afastando os gafanhotos que assaltaram as plantações».

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Elas estavam a enxotei-los. a esconjurar a maldição. A chegada de um intruso quebrou os

mandamentos da tradição. Nenhum homem pode assistir a esta cerimónia. Nenhum.

NuncaLTS. p. 1 1 1

Ao longo de outros textos surgem referidas praticas diversas.

Em CHR surge referido o «cushc-cushe» (feitiço). p. lll:

«mitombos»(rcmédios)VA.p.l60; «chissilei» (mau-olhado)CIIR, p. 109 .expressões

explicadas pelo autor e que nos remetem parei a prática de feitiçaria.

Várias são as alusões a esta prática e àqueles que a exercem no conjunto dos textos de

que nos ocupamos. Em TS o personagem-narrador Kindzu relata o seguinte:

( 'onsullámos o feiticeiro para conhecer o exacto da morte de meu pai. Quem sabe era um

falecimento sem validade, desses que pedem as mais devidas cerimónias? O feiticeiro

confirmou o estranho daquela morle.TS, p.2 1

No conto «O ex-futuro padre e ;i sua pré-viúva» é mencionada com bastante ironia ei

existência dc uma feiticeira.

Quem aplicaria a vacina seria uma velha feiticeira que ele conhecia, de artes ceipazes ele

inflamar de paixão um morro-ele-muchém Cl IR, p. 110

1.4.2. As mulheres e o feitiço

A beleza é um elemento presente na caracterização da generalidade das personagens

femininas criadas por Mia Couto, beleza perigosa que pode constituir-se como «feitiço»

em relação ao amado, a quem os pais aconselham:

Essa menina é bonita de mais (.. I Ele escolhesse uma sem aparência»C.HR. p. I _)_.

O mesmo conselho aparece em TS. dado por Tuahir a Muidinga.

-Sc um dia cusur-sc Muidinga. escolha mulher feiuna dessas que us outros nunca

invejam.'].'S. p. l|4

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A outro nível não é de deixar de salientar o facto de que as mulheres são tradicionalmente

ligadas à feitiçaria, estando ligadas a proibições várias, no tocante aos malefícios que

podem provocar ao seu redor.2" Entre os I ongas. as mulheres não devem cuidar do gado.

por ser tabu. Ir um trabalho masculino, em que as crianças colaboram. A caça e igualmente

feita pelos homens, e. colectiva ou individual, os homens ausentam-se de casa durante

muito tempo para as caçadas. Levam então feitiços para se protegerem dos animais e. em

casa. as mulheres devem cumprir diversas regras para evitar o perigo aos maridos. Mas a

«profissão de feiticeira, que é uma ocupação enraizada na sociedade tradicional, também

nos aparece nos textos de Mia Couto.

O feiticeiro . conjuntamente com o adivinho e o curandeiro é um dos «três especialistas

categorizados para manipular as loiças favoráveis ou adversas que envolvem o grupo»

O feiticeiro (nganga) é precisamente aquele que manipula as forças negativas, detendo

assim um poder temível, relacionado com a morte. Devido a essa ligação mais ou menos

secreta, o feiticeiro pode considerar-se como estando «fora da verdadeira ordem social

humana», constituindo-se assim como um elemento marginal."'

O «feiticeiro», tomando a palavra no seu sentido estreito e técnico, é um mágico que se

serve dos seus conhecimentos para fins pessoais maléficos, é um sedento (assoifle) de

poder2>x que faz tudo para diminuir, destruir e reduzir a nada a força vital dos seus

semelhantes, semeando o terror pelo simples prazer de aterrorizar»"

"'"José Feliciano, na análise que fa/. das práticas rituais e mágicas dos processos dc produção dos Ihonga.

refere-se ao lacto de que eis mulheres sáo '.rigorosamente proibidas de atravessarem um campo onde esteio os

bois» pois «são t'eiticeira.s e podem estragar o gado- No entanto, estas proibições tèm-se vindo a atenuar, in:

Antropologia Económica dos Thonga. p. 196"

Rodrigues Areia.op. cit. ,p 194;v:

Idem,p. 198. A morte c a forma última de mai finalidade: o morto tal conu> o feto em gestação são

semelhantes ao feiticeiro (estão fora da verdadeira ordem social humana: um porque não entrou nela e ouiro

porque já a deixou).'"'*

Areia. M I de. «Antropologia da MuMe. uma perspectiva africana: a Morte e o exercício do poder na

sociedade Cokwe de Angola» in: R.I.I..A, Lisboa, 19X4. pp. 193-198. Conforme afirma, num amplo contexto

etnográfico, o puder tem «uma ligação mais ou menor, secreta a .iclos de feitiçaria» e nasce da -transi.'] essão

de um tabu. e em particular de um tabu ligado a a morte de alguém». Assim, por exemplo, no grupo des

cokwe o poder que detém o teiticeiro «e fruto de uma transgressão concreta!... lesse poder veio-lhe da morte

de alguém «assim como acontece ao chefe cujo poder está ligado a acios de leinçaria.'"

<> Le sorcier. en premiam le mot dans son sens éimii el leclinique. est un magicien. qui se seri de ses

connaissances et de sa maitrise du Verbe. non dans 1'intérêt de la communauu-. mais a di-s fins persounelles

malefiques - in Jahn. Janhein/.. «Nommi.w in \!uniu. p. 146

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98

Os termos sortilégio e feitiçaria foram aceites como a designação de crenças e ritos

africanos relacionados com a magia maléfica.2f'"

Em TS essa diferença entre a magia maléfica e outra e a designação dos que a praticam é-

nos dada na fala de um dos personagens. No relato de Kindzu. é feita a distinção entre estes

dois elementos, o feiticeiro e o adivinho.

-.Sei o nganga me pode ajudar. Talvez ele sabe um lugar sossegadinho.

Sim eu deveria consultar o adivinho ( . ) Contudo eu nunca lhe poderia falar sobre os

naparumus Isso era competência dos feiticeiros do Sorte, fS. p.32

Naparama? Nunca eu tinha ouvido falar em geme dessa. Surendra me explicou vagamente.

Eram guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que lutavam contra os

fazedores da guerrei. (...) Nenhum tiro lhes incomodava, eles estavam blindados, protegidos

contra balas. IS, p.27

Na tradição africana, o -feiticeiro» é o único ao qual não é permitido sobreviver.

assimilam-no às feras e rejeitam-no ao nada. isto e, «ao espaço vazio das coisas, condenado

à morte dos animais (...) excluído da imortalidade, não se manifestará mais no universo das

forças, l.-lhc assim reservado o mais terrível «castigo metafísico», uma espécie de

•■maldição essencial»"

H crê-se ainda que é frequente utilizarem animais, como leões, leopardos ou serpentes,

criados por eles. os quais perseguem quem eles quiserem e que ninguém pode matar sem o

auxílio de nlela poderosa. Por ve/es transformam-se os próprios feiticeiros nesses

- :t'2animais

Seria alias uma particularidade característica dos sortílegos a sua ligação eom o mundo

animal. Assim, alguns animais são apontados como companheiros predilectos dos

"

Cl «As religiões tradicionais. ..•>. p 74 t.vans-1 'richard utili/ou os termos «sorcery»t feitiçaria) e

«v\itchcraft..( sortilégio) e a partii dní utiliAt-se esta designação O feiticeiro íiig.mge. s manipula loiças de

morte, as torças neganvasl wanga), em desfavor das vitimas escolhidas.

'"'

Jahn. _Nommo».p. 147''':

_'_ o caso dos macondes. que consideram o poder dns feiticeiros ilimitado (.1 Guerreiío, Os Macondes.

-ol lll. p 596

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. .

sorti leilegos. entre os quais os mochos, corvos, noitibós. sapos e ratazanas. Segundo a

s.263

tradição essa ligação mística pode chegar à própria incarnaçãonesses animais

A feitiçaria pode ser considerada grande crime, afecto aos tribunais. Trata-se de um crime

cometido durante a noite, muitas vezes inconscientemente.que é preciso investigar segundo

«métodos mágicos de investigação». São os nóii."" É uma crença colectiva dos 1 onga que

certos indivíduos se desdobram magicamente, e na sua actividade nocturna, os seus

espíritos saem para matar e devorar outras pessoas.

listes espíritos (deitadores de sortes) realizam só más acções, separando-se dos corpos em

t265

que habitam, mas os corpos permanecemvivos e os espíritos reentram neies.

Sendo encarado como uni poder hereditário transmitido pela mãe. são objecto de grande

medo e constitui preocupação para o homem que casa integrar-se numa iamília de báloii

266

Na crença de que há desdobramento de personalidade, segundo os Tongu. o nóii quando

parte, «a sua sombra fica deitada n;i esteira», «mas o que restei não é o seu verdadeiro

corpo, mas sim «um animal selvagem escolhido pelo nóii que sc identificou com ele.

faz parte ainda da crença original que o nóii não toma consciência da sua actividade

nocturna. Sào os curandeiros que são chamados a achar uma provada culpabilidade de um

nóii. servindo-se de meios vários entre os quais, a utilização do ordálio venenoso que era

considerada a provei suprema.

Sendo considerados criminosos, entre os Tonga. eram punidos com a pena de morte, ou

castigos violentos, alé que se passaram a aplieetr multeis.

PÕe-se a questão, precisamente qual será a pena a aplicar por juizes europeus, ao caso de

.- • "*f_7

alguém que assassina um non."

'''"

Cf. «As icligiões tradicionais .». p. 77

:'':Junod. ob. cil.. p. 420. Conforme nos dl/ este

autoi . era o que se passava eom os I onga: «a justiça bania

serve-se de dois ou três métodos mágicos de investigação, para a descobrir, nomeadamente a adivinhação

pelos ossos

Idem . p 330'"

Idem. pp 40 *-IM'T

Junod conclui que «é em todo o caso erróneo comparar •• acto daquele homem, que e a seus olhos uni

acto de iustiça. a um homicídio vulgar e puni-lo como um assassinou . Idem. ibd.

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100

É precisamente neste contexto que se situa a problemática desenvolvida no conto «Afinal

Carlota Gemina nâo chegou de voar?»(VA).

O personagem principal mala a sua própria mulher, ao suspeitar que esta fosse feiticeira.

Tudo começou quando o cunhado lhe deu conta das suas próprias suspeitas quanto ao tacto

de sua mulher ser feiticeira.

«Bartolomeu saltou no susto: estou casado com quem afinal' Uma nóii? Essas mulheres

que à noite se transformam em animais e circulam no serviço da feitiçaria? » VA. p. X /

.Este, sabendo que esse «mal é de irmãs» fica de imediato preocupeado.

Eu ouvia aquilo e pensava: e se a minha mulher teunbém c uma igual'.' Se é uniu nóii.

lambem? VA. p. 88

Queimando-a por descuido parece-lhe estranha a forma como ela manifesta a sua dor.

O grilo que ela deu. nunca ninguém ouviu. Selo era som de gente, era grilo de animal l oz

de hiena, com certeza VA. p. 87

Acha então que ela na sua aflição se comporta como um animal e resolve compartilhar o

seu problema com o cunhado. Suspeitando da mulher resolve pô-la à prova.

E se eu sem saber, vivia eum uma mulher animal? { .) Só havia uma maneira de provar se

Carlota Gentina. minha mulher, era ou não uma nóii. Era surpreender-lhe eum um

sofrimento, uma dor funda VA. p. 88

A forma que escolheu de ;i testar foi vazando-lhe água quente em cima, mas a mulher náo

reace da forma que esperava e acabei por morrer. No entanto, tal era ;i convicção do

personagem de que Carlota era uma mulher-animal que tira da situaçãouma só ilacçào:

Conclusão que tini dos pensamentos Carlota Gentina era um pássaro, desses que

perdem voz nus cunlravenlus. VA. p. '")

lembora pudesse ter algumas duvideis devido a morte tão estranha, durante o funeral

eonipraz-se em acreditar que todos estavam enganeidos só ele não.

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101

Eu ria. Fa verdaele ria. Porque dentro do caixão que choravam não havia nada. Ela fugira

salva nas aseis. (...) Afinei!, não era uma morta falecida que eslava ali. Muilo-muito era um

silêncio na forma de bicho VA. p.92

E. já na prisão, para sofrer a justiça a que sc entregara, ainda duvida:

Carlota voou? Daquela vez que lhe entornei água foi na mulher ou no pássaro? Quem

pode saber? O senhorpode? VA. p.91

Só mais tarde se dá conta do seu engano, o seu cunhado provara finalmente «o estado de

pessoa da sua esposa», ela não «gatinhava, nem passarinhava», ficando assim provado que

nenhuma das irmãs era feiticeira: «o feitiço é mal de irmãs, doença das nascenças» (p. 94)

Interessante verificar a conclusão a que chega o marido da ex-futura feiticeira:

Vale a pena ser planta, senhor doutor Mesmo vou aprender a ser árvore. Ou talvez

pequena erva porque árvore aqui não dá Porquê os balóii não leniam ele ser plantas,

verde sossegadas? .Assim cu não precisava malar Carlota. Só lhe desplantava, sem crime.

sem culpa.» (p. 93)

]• reafirmando ;is suas crenças, reafirma também a relação de pertença ao seu

mundo:«quero ser julgado por outras leis. devidas da minha tradição. O meu erro nào toi

malar Carlota, foi entregar a minha vida a este seu mundo que nâo encosta com o meu (...)

Só eles sabem que. afinal, eu não conhecia que Carlota Gentina não tinha asas para voar»

Ligadas a estas actividades de feitiçaria, surgem ainda outras crenças, como a da existência

de chipocos (pl. psicoco). Estes entes são fantasmas que os feiticeiros têm o poder de

sujeitar, colocando-os ao seu serviço, durante a noite. Segundo a tradição seriam espíritos

2(jS

de dei untos e pareeem-se com crianças.

Em lerra Sonâmbula também estes espíritos fazem o seu aparecimento

Levantei us olhos: eie ali eslava' Nem •. u /hissu trazer o recordo dessa figura. Suas formas

nâu figuravam um desenha de descrever, semelhando um maufeitur vindo tios infernos.

Idem p44S

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102

Sempre eu só ouvira falar eieles. os psipocos. os fantasmas que se contentam com nossos

sofrimentos. Ali esteiva um deles, inteiro ele sombra e fumo. TS, p.42-43

O narrador fala de uma «aparição» fazendo uma breve caracterização de tal ente:

O xipoeo rodou a pá sobre a cabeça, se algazarrando em berraria:

-Entra na cova!

( 'orno eu nâo comparecesse ao chamamento, ele me segurou pelos braços e me puxou.

Usava as violências Nâo. Essa é a eslranheira. ele me manejava com delicadeza, vice-

versátil. quase me fiis.se cinturar para uma dança Enteio me senti tombar em seus braços.

sucumbente E o mundo se apagou cm toda ex volta TS.p. 43

Surge também a referência a um ente «sobrenatural», um tchóti, que acaba por ser

interveniente num dos episódios satíricos do texto, queixa-se dc que<■ também no céu há as

faltas»(p.65) descendo à terra para procurar roupas.

De repente, caiu dentro elo meu concho um tchóti. um desses anões que descem ilos

céus.!. lOlhei o anão e desacreditei, duvidoso. Meu pai sempre me contava estórias desia

gente que desce os infinitos, de vez em onde. TS. p.65

Ainda no romance, no 4o caderno de Kindzu. Farida conta a sua história finalizando de uma

forma singular.

Esta c a minha estónia, nem sei pur que te conto Agora estou cansada de falar 1

perigoso continuar Quem sabe eu perderei o pensamento, as minhas lembranças se

misturarão com as luas Pensas que estou delirando'

Escuta Kindzu sabes quem le guiou

até aqui? Não acreditas nos xipocos? Pui* eu sou tia família elos xipocos Me ensinaram a

apagar essa parte de mim. crenças que alimentaram nossas antigas raças Agora, não e

que acredite neles, nos espiritas Sei que sou um deles, um espírito que vagueia cm

desordem por nâo saber a exacta fronteira que nos separa de vocês, ns viventes I S, p. 90-

Sobre práticas de feitiçaria trata lambem outro conto. «O cx- futuro padre. ..»(CI IR),em que

de uma forma mareada o narrador trata o lema de uma forma irónieei e divertida.

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103

Por fim o enfermeiro indicou:

-Quer dizer ele maridou-lhe mas não exerce a soberania -ip. 108} e prometeu interceder

junto do rapaz para se ir tratar segundo a tradição elo mau-olhado (ehissila) - banho em

água de raízes, vacina de cinzas de osso de leão. e aprendizagem em casa dc uma velha

feiticeira »-Um curso ele capacitação como dizem por ah>( p. 110)

Benjamim aceitou o tratamento, e estamos perante o dualismo da feitiçaria e da religião

católica, experiências teoricamente opostas, mas em conjunto, revelando a

impermeabilidade entre as duas formas de encarar a vida. Em Africa, como em qualquer

outro local, tem-se mostrado difícil ao catolicismo manter-se completamente inócuo à

influência de certas práticas de feitiçaria, assim como esta não recusa conceitos e costumes

da doutrina católica.

No conto do pescador cego. que retirou os olhos, para servirem de isca na pesca, dá inicio a

um processo de auto-destruição que culmina no abandono da família. Verificamos que.

neste caso a loucura é encarada como um feitiço, comportamento que entra no campo do

sobrenatural.Tradicionalmente as perturbações psíquicas e físicas eram atribuídas a

espíritos maus e mesmo às forças da Natureza como a lua c os ventos.

Ti a mulher foi-se. sequer e/eixanelei que seus meninos figurassem seu velho pai. em eslado

de feitiço, desabençoetndo suas vielas. CHR, p. 98

2. O provérbio na obra de Mia Couto

Como referimos anteriormente, os provérbios eslào. na sua origem, bastante ligados aos

contos tradicionais, sendo normal a referência de certos personagens e situações relatadas

em contos.

Fazendo parte dos géneros da tradição oral que os intelectuais moçambicanos se

preocuparam cm valorizar, o provérbio vai também surgir na obra dos escritores que se

«preocupam com «a mareei da autenticidade africana».Nos contos de Mia Couto esset

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104

preocupação é perceptível no seu discurso literário, ou seja, há uma procura de

regionalização que se constitui como o caminho para a universalidade."

Tal como nos diz Gilberto Matusse a narrativa de Mia Couto tem como elemento marcante

a exploração do modelo e a técnica do provérbio nas passagens de carácter reflexivo. Nos

contos e]o escritor, sào frequentes as sentenças proverbiais, ora sendo traduções de

provérbio de sabedoria africana, ora parecendo as reflexões, questões do narrador, ele

próprio contador de histórias, retomando assim uma tradição gnómical relativa a

provérbios, máximas, ditados) ancestral.

Várias sào as formas de utilização dessas estruturas que surgem nos seus textos, sob a

forma de conceitos lapidares ou afirmações genéricas à maneira de provérbios. Algumas

delas consistem em dims proposições das quais a segunda é explanatória ou ainda as que

consistem numa interrogação retórica.

A guerra é uma cobra que usa os nossos próprias dentes para nos morder I S p. 17

ou: .-! inveja é a pior cobra morde com os dentes da própria vítima CI IR.p. 78

Alguém ensina um fruto a ficar maduro'.''CHR. p. 50

O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego? 1 S. p. 2 1 7

O provérbio, como já afirmámos acima, tanto surge integrado no discurso do narrador.

como na fala ilos personagens. Hm qualquer dos casos, pelo que pudemos analisar, o

discurso proverbial não surge sempre precedido de nenhuma fórmula introdutória como é

usual acontecer, ou quando surge é de uma forma pouco habitual, como disso são exemplo

as seguintes frases:

Proverbiava duas árvores só atrapalham o caminho Cl IR. p. 36

:""'

Comunicação ao 1 Congresso de Escritores de Língua Portuguesa Nesse aspecto são elucidativas as

pala. ras de Eduardo White e Lngulam Ba Ka Khosa que põem em evidencia a "herança cultural" que lhes

cabe .«num pais onde a educação dos homens se ministrava oralmente e pelo ouvido». Consideram-se

«epígonos dos *_mioi.s em que outra tareia não lhe* resta que ••percorrer os labinnio. da sua cultura secular

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105

Conforme dizem os mais velhos, não corras atrás da galinha já eom o sal na mão. CHR.

p. 74

Como eu sempre digo: carreiro de formiga nunca termina perlo CI IR, p. 73

Eu sempre disse: lume pedido nunca acende.Cl IR. p. 54

Contudo, surgem mais frequentemente integrados no fluxo discursivo, de modo a que só

um leitor atento e conhecedor desse texto proverbial se dá conta da sua utilização. Pelo

menos é necessária o que chamaríamos de «transferência cultural», utilizandoa noçào de

Margret Amann270 . isto é. na descodificação desse texto é necessário conhecer o lundo

hislórico-social. não sendo suficiente o conhecimento da língua para compreender um texto

de uma determinada cultura que se desconhece. Revelando-se assim necessário, em termos

gerais, um conhecimento cultural.

Constituem excepções a essa situaçào. os vários provérbios, no caso traduzidos para

português, que \li.i Couto coloca como introdução a alguns contos, com a menção

expressei das suas origens.

Estão nesse caso os seguintes exemplos. Em ( 'ueia homem é uma raça. Mia Couto coloca

um provérbio macua na abertura do conto «O pescador cego»:

O barco de cada um está em seu próprio peito (CHR.p. 52)

A preceder o texto de «Mulher de mim», coloca o autor a tradução de outro provérbio

macua, mas que diferentemente apelida de provérbio moçambicano.

O homem é o machado: a mulher ê a enxada (Cl IR. p. 119)

Encontramos então, elementos desse discurso proverbial que possuem a capacidade

evocadora de uma realidade ligada à tradição.

I ida bua. aconselhava ele. é chupar manga sem descascar u fruiu 1 S. p. 1 6

''"'Amann. Margretu.O encontro de culturas. A comunicação intercultural através da obra literária .- de sua

tradução -'-Comunicação ao 1 Simpósio lnleni.it i.mal 'obre cultura Angolana. I 7-20 de Maio de 1 084-

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Afinal eu estava como dizia o cantador da aldeia: no sossego, sou cego: na timaca não

vejo TS, p. 30

É ainda o caso dc este outro exemplo, retirado do romance.

Você miúdo faça como o galo que mostra eis penas elo rabo. Quanto mais belas as peneis.

menos vaca cai na panela TS. p. E'3

A propósito destes exemplos, em que será mais perceptível a referência a situeições

relatadas cm contos tradicionais, salientaríamos que a maior parte dos elementos surgidos

nos ditos sentenciosos são ou animais ou objectos. Ao contrário do que acontece nas

fábulas africanas, nenhum personagem dos contos analisados tem essa origem, no entanto,

o carácter moral e didáctico que o escritor recusa às suas histórias, está representado de

outras formas, entre eis quais a presença de sentenças pronunciadas pelos mais velhos, para

servir de exemplo.

1 o caso do tio que aconselha o sobrinho:

Veja você. meu sobrinho um boi. Dentro da água. um boi será que nada' Nâo. ele

apenas preguiça nu corrente. A esperteza do boi é levar a eigua a trabalhai na viagem

dele.C ]]R.pp. 37-38

Ou ainda mais adiante, o personagem insiste na sua visão do mundo:

-Não há bons nesse mundo Há são maldosos com preguiça. CHR, p. 39.

O velho de TS aconselha o mais jovem:

Te dou um conselho não confies em homem ue nâo sabe mentir I S, p. 7-1

Ainda no mesmo livro, o adivinho, que é consultado por Kindzu, faz a reflexão seguinte:

Por isso eu digo. não ê o destino que conta mus o caminho. 1 S. p. 32

No conto "A lenda da noiva e do forasteiro», o narrador apresenta um breve diálogo entre

um jovem e um velho

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107

O velho Nvalombe lhe prescrevia o ensinamento

-Vingança é habilidade dos fracos.

-Quem puxa vingança é a traição. Nvalombe Fique o senhor contra a traição se quer

evitar vingança. » Cl IR. p. 138

É ainda o tio que. noutro conto, «A Rosa Caramela». brinca sobre a aparência de uma

corcunda, paia animar os mais novos:

Ela é como o escorpião, leva o veneno nas costas CHR.p. 18

Sobre a referência ou a analogia com animais . que surge cm bastantes frases, destacamos

alguns dos exemplos.

( omenlava o jeito, u escaravelho dá duas volteis antes de entrar no buraco CHR.p.33

_ 1 formiga incomoda é dentro das roupagens I S, p. 86

O velho proverbiou o homem é como o pato que. no próprio bico. experimenta a dureza

das coisas CHR.p. 136

.-\ inveja é a pior cobra: morde eom os dentes daprópria vitima, t HR, p. 78

( 'orno eu sempre digo. carreiro ele formiga nunca termina perto. CHR. p. 73

No caso moçambicano é preciso lembrar que ao substrato africano, se juntam elementos

europeus, com incidência na componente regional portuguesa. Assim é que também vamos ,

encontrar adaptações de provérbios portugueses, ou «ecos» deles, quer dizer, na

formulação das frases proverbiais apresentadas, está implícito o conhecimento dos adágios

portugueses que muitas vezes estão modificados ouironizados.

I Im dos processos utilizados é a «deseonstruçào» do provérbio original, resultando numa

formulação adaptada da versão conhecida. Assim para a expressão •• As paredes tem

ouvidos», encontrámos estas duas versões:

Desculpa senhor enfermeiro Mus ainda não encontrei parede surda. ( I IR. p. 108

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108

Ii falemos baixinho que as paredes têm mais orelhas que o elefante fS p. 1 80

Encontramos também a fórmula linguística utilizada, começando por «Mais vale...», tão

comum nos provérbios portugueses, mas cujo conteúdo não conseguimos confirmar como

sendo semelhante.

Mais vale pobre que viúva CIIR p. 96

Há ainda a utilização de expressões feitas, de certo modo proverbiais, que são reutilizadas,

de uma maneira diferente da habitual, representando uma «violeniação de expressões

cristalizadas»"

«...ao preço da chuva» (popular)

Recriação - .Afinal boa e de graça, só mesmo a chuva CHR, p. 1 06

« um homem não é de ferro» (popular).

Recriação - As gentes sussurravam t ) Não aguenta .Algum homem é inoxidável? ( IIR.

p. 106

Outro processo utilizado pelo narrador é a utilização de trocadilhos, alguns dos quais tem

por base expressões portuguesas.

Eslava numa dessas situações em que nem a água é mole nem a pedra é dura I S,p. 1 5 1

Alguns são feitos por associação paronomásica27- ^ 91"-' apresentamos alguns exemplos.

Não há mais nada para ninguém, o diabo seja bruto e cego. 1 S. p. 1 80

-No papar c que está o ganho TS. p. 1 39

-(...) Do menos a mal: afinal grão a grão o papa se enche ele galinhas. I S. p. I ">*-)

"

Cf Covi/vi l).M . O insólito em (luimarães Rosa e Borges. Ed. Ática.S.Paulo. Il.78. p. 79.r:

Santa Cru/. Mai ia de. "Luandino e a Mrika de UabcL in Literaturas Africanas de Lingua

Portuguesa. (Compilação das comunicações apresentadas durante o Colóquio sobre I iteraturas Africanas.

Julho ll>8.s|.p. 208. Ha O deslize do significante logo que unia palavra evoca outra de significante

semelhante mas de significado antnético ou distanciado.

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109

Nestes dois últimos exemplos pode-se ainda verificar que há uma aproximação do

processo de « recriação paródica» de expressões proverbiais,"'"' técnica que se integra no

jogo de linguagem e de «desconstrução» da língua, que Mia Couto utiliza na maioria dos

seus contos. Reparemos num exemplo desse outro tipo de trocadilho cm que são

substituídas uma ou duas palavras da expressão corrente portuguesa pelo seu antónimo.

Você sabe: em terra de cego quem tem um olhofica sem ele. TS, p. 140

Como podemos verificar, em muitos dos contos, o discurso directo das personagens

apresenta-se com características proverbiais, entre as quais destacamos grande economia de

palavras, frases curtas, a contrastai* com o restante discurso narrativo.

-Amor certo é mais que único CHR. p. 52

Nos diálogos são ainda utilizadas ditos anónimos que representam a vo/. popular.e são

apresentados de uma forma sentenciosa. E o caso do conto «O ex-futuro padre e a sua pré-

viúva» de que deimos alguns exemplos:

-Mulheres.' Quanto mais gingam o corpo mais fecham o coração CHR. p. 106

.Mas sempre é assim: quando há u trecho falia o apetrecho. I: puru mulher atiradiça.

homem reeatadiço CHR. p. 1 06

Existem depois os casos de provérbios que são nitidamente traduções ou adaptações de

provérbios moçambicanos.

Eu sempre disse: lume pedido nunca acende CHR . p. 34

Confrontemo-lo eom ;i seguinte versão de um provérbio changana: O lume que se manda

buscar não aquece.""

O caso desie outro, também relativo ao lume:

'7'

Gilberto Matusse aponta «a recriação paródica de expressões idiomáticas ou clichés, por inversão ou

pseudo-inversao do seu sentido através da substituição de um dos seus elementos por um antónimo» in op.

cit. p. 8(>

"A

Provérbio n° r-ors inr f>UI Provérbios Chang.iiias. p 72. Sempre que mencionarmos pio.érhios com esla

origem estamos a basearmos nesta antologia.

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110

Sempre eu vos aviso o lume acende de ser soprado CHR, p. 167

O provérbio changana diz o seguinte: O lume arde sendo acirrado"'

O Pe Valente dc Matos, no seu livro Provérbios Macuas. traduz o seguinte provérbio:

A abelhinha mpai ou opai respeita (ou cuida do) o tubozinho de barro que dá acesso ao seu

, 276buraco.

Ainda em CHR. surge-nos a seguinte versão:

Sabe ( biquinho- quem proíbe o mei é a própria abelha p. 1 67

Comparemo-lo ainda com os seguintes provérbios changanas:

Quando as abelhas estão bravas escondem o mel"' : ou Abelhas mansas não têm mel"

( 'arolinda lhe avisa: ele eslava a subir a árvore pelos ramos A bronca que viesse era pura

valer21'1 TS. p. 181

Concluímos assim que existem ditos em que se aliam as falas de origem popular, os bantos

traduzidos e os que sào puramente inventados. Acrescentaríamos uma lista de mais alguns

exemplos retirados das obras do autor.

Mais vale pobre que viúva. CHR, p. 96

Não esqueças patrão a riqueza é como o sal. só serve para temperar IS, p.l 19

Quem não tem amigo é que viajei sem bagagem TS p.32

Afinal u luz dt) cego está na sua própria mão IS. p. 43

Quem não tem nada não chama a inveja ele ninguém Melhor sentinela e nau ter portas

TS. p.18

Idem .p.72. Provérbio nc'3.6''

Trata-se do livro em que nos baseamos paia confrontar os nossos exemplos Neste caso. e o provérbio n'

280. p. 50

""idem. p. 42. pmv n" DS

Idem. p. 97. pmv. n" -lí 1v

Prtnérhii:* Macuas. p. 102. - *-;_o subas à árvore pelos ramos-, pro. n" 47S

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110

Sempre eu vos aviso: o lume acende de ser soprado CI IR. p. 167

O provérbio changana diz o seguinte: O lume arde sendo acirrado""

O Pe Valente de Matos, no seu livro Provérbios Macuas. traduz o seguinte provérbio:

A abelhinha mpai ou opai respeita (ou cuida do) o tubozinho de betrro que dá acesso ao seu

buraco.""

Ainda em Cl IR, surge-nos a seguinte versão:

Sabe ( 'biquinho'

quem proíbe o mel é a própria abelha p. 1 67

Comparemo-lo ainda com os seguintes provérbios changanas:

Quando as abelhas cstào bravas escondem o mel" : ou Abelhas mansas não têm mel"

( 'arolinda lhe avisa e/e eslava a subir a árvore pelos ramos .1 bronca que viesse era pura

valer2'" IS. p. 181

Concluímos assim que existem ditos cm que se aliam as falas de origem popular, os bantos

traduzidos e os que são puramente inventados. Acrescentaríamos uma lista de mais alguns

exemplos retirados das obras do autor.

Mais vale pobre que viúva. CHR, p. 96

.Yc7o esqueças patrão: a riqueza é como o sal. só serve para temperar I S. p. 1 1 ')

Quem não lem amigo é que viaja sem bagagem I S p.32

.Afinal a luz do cega está na sua própria mão IS. p. 43

Ouem não tem nada não chama a inveja de ninguém Melhor sentinela é nâo ler porias

IS.p..l8

Idem , p.7 ?. Provérbio iC.ijó'r'

Trata-se do livro em que nos baseamos para confrontar os nossos exemplos Nesic caso é o provérbio n"

280. p. só.

"'Idem. p. 4_..prov n" 198*

Idem. p <i'r. pro. ir -45 I

Provérbios Macuas. p. 102, <■ Ni. lo subas á arvore pelos ramos», prov n1' 17s

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1 i [

Conclusão

Na complexa postura dialogica que os textos do autor analisado estabelecem com a

tradição oral. colocam-sc vários tipos de intertextualidade. A relação texto escrito e

tradição oral «corporiza-se» em diversas marcas que vão desde os símbolos à própria

estrutura textual. Essa interactividade, no entanto. também nos remete para uma relação

texto- realidade. O autor, apesar da sua atracção pelas origens arcaicas nunca sc esquece de

estabelecer a ponte com a realidade relevante aos seus leitores Assim é que o próprio

apelo à memória colectiva, se constitui em si como um tema que percorre todos os seus

textos.

A incorporação do provérbio no texto escrito acaba também por servir essa função

evocativa a que nos referimos. O texto da parémia reenvia para o sistema de valores

culturais da tradição e propicia verosimilhança. A sua utilização, sobretudo, indicia a

harmonização que pode existir entre as formas tradicionais e modernas.

Verificamos que apesar da utilização desse fundo ancestral .o universo que o autor nos

recria nunca é «sentido do lado de dentro», isto e. se os seus textos apresentam

características da narrativa oral ( como seja a sua participação na obra. interpretando os

acontecimentos desde o interior da acção, caso das personagens que se tornam contadores

de episódios), ele mantém um esforço de recriação, reinvenção desse material para fins

literários que resulte numa síntese criativa entre as «heranças» várias que atravessam a

moderna literatura moçambicana. Na sua obra. procura ele próprio resolver o conflito, o

compromisso entre a tradição e a modernidade que é tematizado nos seus textos, para assim

alcançeir uma escrita contemporânea que não seja exemplo de insularidade literária.

Assim e que se o modelo da tradição oral está presente, se os lemas principais da tradição

oral também o estão, quase sempre eles se apresentam transfigurados pelei abordagem

ficcional que deles la/. Digamos que há um trabalho de "desconstrução» que se materializa

em varieis das estratégias utilizadas pelo autor para assim se distanciar do material em que

se inspirou. Embora o autor nunca faça o metadiscurso do que narra, utiliza determinados

artifícios que lhe permitem gerir esse distanciamento A palavra autoral constitui-se assim

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112

como espécie de filtro distanciador. não sendo dada a primazia à palavra do outro, ou

melhor, às várias vozes que se ouvem nos seus textos.

Tal como os contadores de estórias que surgem nos seus textos nunca se transformam em

personagens tradicionais, o autor assume para com a memória colectiva uma postura de

oralidade mas que pressupõe sempre a hislória escrita e a possibilidade que assim lhe é

dada de subversão de princípios literários.

Embora muitos dos temas que nós vamos encontrar nos contos estejam representados no

romance de uma forma mais desenvolvida faríamos a diferença enlre estes dois tipos de

narrativa.

Se nos contos é feita a temalizaçâo das crenças e do imaginário próprios da tradição

africana e o seu confronto com o imaginário ocidental que tende a sobrepor-se-lhe na

sociedade moderna africana: no romance esse compromisso, esse dialogo, vai processar-se

a outros níveis não constituídos nos outros textos. Antes de mais pela contaminação das

diferentes posturas que se apresentam nas duas histórias que constituem o livro.

Interessante verificar que a realidade para que remetem não está distanciada no tempo,

nem sequer no espeiço. que para o final se revela coincidente, le o tema que as une é o da

viagem. Só que os personagens da primeira história momentaneamente privados da

possibilidade de viajar fisicamente, não possuem, além disso, a capacidade que não

permite ao outro personagem evadir-se: o sonho. Essa é. aliás, uma rica vertente temática

que fica por explorar, de que modo o sonho circula pelo texto e quais as suas implicações

simbólicas no complexo do romance. Significativamente, esse personagem acossado.

dividido proporciona aos outros a possibilidade de viajarem pelo passado de que ele foge.

e permitindo-lhe o diálogo com o outro lado do presente que vivem.

Nesse aspecto, também a vertente didáctica característica das formas da tradição oral esta

presente, não so nos textos proverbiais referidos, como também na orientaçào pedagógica

que o autor dá ao seu romance.

No nosso trabalho propusemo-nos detectar as marcas da tradição oral. na sua vertente

ideológica e temática. Muitas delas se apresentam apenas indiciárias desse imaginário.

outras sob ;i fornia de alusão breve. O relacionamento do homem, na concepção

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11.1

tradicional, com a natureza, com a morte, com os defuntos, os valores sociais c humanos

estão presentes, mas esse diálogo é descontínuo.

Muito embora as «informações», por vezes dispersas, correspondam ao texto original e

nos permitam apontar as semelhanças: outras ve/es elas apenas permitem apontar

diferenças já que sào elementos que forneceram ao autor a liberdade de exprimir o seu

próprio imaginário. O desafio é levar o leitor por caminhos familiares mas que. contudo.

dão acesso a caminhos labirínticos e intemporais, abertos pela elaboração ficcional.

portanto, universal.

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