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ZUMBIS (Gustavo Leal-Toledo) O conceito zumbi aparece pela primeira vez em um texto de Robert Kirk intitulado Zombies vs Materialist (1974). Neste texto, Kirk defende a possibilidade lógica de zumbis físicos para argumentar que o materialismo é falso. Muitas eram as críticas ao dualismo e o materialismo era, e ainda é, a teoria dominante. Neste ambiente Kirk tenta, com seu argumento do zumbi, atacar o materialismo. Seu argumento tem fortes relações com argumento anteriores de Kripke e Campbell. Segundo Kirk, o zumbi seria um ser idêntico ao ser humano comum, mas sem nenhum estado consciente. Ou seja, ele seria um autômato perfeito que em tudo imitaria um ser humano, mas sem qualia. Mas em que então um zumbi seria idêntico a um ser humano? Em seu comportamento, em seu funcionamento ou em sua estrutura física? Estão os defensores dos zumbis dizendo que tal ser poderia de fato existir em nosso mundo? Para organizar melhor toda esta discussão, Thomas Polger fez o que ele chamou de Zombie Scorecard (placar dos zumbis), a partir da definição de três tipos diferentes de zumbis, dada por Güven Güzeldere, e de três distinções modais, de Polger e de Flanagan. O Zombie Scorecard é justamente a combinação destas três distinções modais e dos três tipos de zumbis, o que acaba por nos dar nove perguntas diferentes sobre a possibilidade de existirem zumbis. Neste quadro os três tipos de zumbis foram colocados horizontalmente na parte de cima: são eles o

ZUMBIS

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Artigo introdutório escrito pelo Prof. Gustavo Leal Toledo, da Universidade de São João del-Rey, em Minas Gerais. Aborda um dos temas mais curiosos e, ao mesmo tempo, mais controversos da filosofia da mente.

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Mas foi em 1974, cem anos aps o texto de Huxley, que o argumento do zumbi aparece em um texto de Robert Kirk intitulado Zombi

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ZUMBIS

(Gustavo Leal-Toledo)

O conceito zumbi aparece pela primeira vez em um texto de Robert Kirk intitulado Zombies vs Materialist (1974). Neste texto, Kirk defende a possibilidade lgica de zumbis fsicos para argumentar que o materialismo falso. Muitas eram as crticas ao dualismo e o materialismo era, e ainda , a teoria dominante. Neste ambiente Kirk tenta, com seu argumento do zumbi, atacar o materialismo. Seu argumento tem fortes relaes com argumento anteriores de Kripke e Campbell. Segundo Kirk, o zumbi seria um ser idntico ao ser humano comum, mas sem nenhum estado consciente. Ou seja, ele seria um autmato perfeito que em tudo imitaria um ser humano, mas sem qualia.

Mas em que ento um zumbi seria idntico a um ser humano? Em seu comportamento, em seu funcionamento ou em sua estrutura fsica? Esto os defensores dos zumbis dizendo que tal ser poderia de fato existir em nosso mundo? Para organizar melhor toda esta discusso, Thomas Polger fez o que ele chamou de Zombie Scorecard (placar dos zumbis), a partir da definio de trs tipos diferentes de zumbis, dada por Gven Gzeldere, e de trs distines modais, de Polger e de Flanagan. O Zombie Scorecard justamente a combinao destas trs distines modais e dos trs tipos de zumbis, o que acaba por nos dar nove perguntas diferentes sobre a possibilidade de existirem zumbis. Neste quadro os trs tipos de zumbis foram colocados horizontalmente na parte de cima: so eles o comportamental, o funcional e o fsico. E os trs tipos de possibilidades foram colocados na vertical esquerda: so elas lgica, metafsica e natural. O Zombie Scorecard est exposto a seguir:

Zombie Scorecard

Todos os zumbis, bvio, no tm nenhuma experincia consciente, nenhuma qualia, pois isso que os diferencia dos seres humanos. Mas eles variam no que tm de igual a um ser humano normal. O zumbi comportamental tem somente o comportamento igual ao do ser humano. Ou seja, o seu movimento e as suas falas so iguais a de um ser humano comum, mas nada se diz a respeito da sua estrutura interna. Ele pode ser feito de qualquer coisa e pode funcionar internamente de qualquer maneira, desde que seja impossvel que, s atravs do comportamento, voc perceba que ele um zumbi. Um zumbi deste tipo poderia passar no teste de Turing, pois o que este teste avalia s uma forma simples de comportamento verbal. Alm disso, tal zumbi poderia viver entre as pessoas sem nunca ser notado a no ser, claro, que as pessoas resolvessem abrir tal zumbi para ver como ele funciona por dentro. A nica coisa que teramos que fazer para ter tal zumbi fazer um ser que se comportasse como se tivesse conscincia.

Um zumbi funcional no s se comporta como um ser consciente comum, mas tambm tem a mesma organizao funcional deste, ou seja, a organizao interna dele idntica a organizao interna de um ser consciente. Deve-se lembrar que a organizao interna se define pelas relaes causais que este tem dentro de si mesmo e com o meio ambiente, assim, o material daquilo que realiza esta organizao no precisa ser especificado. Do mesmo modo que um motor de um carro pode ser feito de vrios materiais diferentes e, se mantivermos a sua capacidade funcional, continuar a ser um motor de um carro, um zumbi funcional tambm pode ser feito de qualquer material que consiga suportar tal organizao. Hoje em dia, o mais provvel imaginar um zumbi feito de chips e circuitos. Mas o importante seria s configurar a programao deste hardware para que ela imitasse a programao de uma mente comum qualquer. Se isso for feito e se tal ser no tiver conscincia, temos um zumbi funcional.

O zumbi fsico idntico ao ser humano partcula por partcula. Ele idntico ao que os materialistas dizem que somos, mas sem experincias conscientes. No s copia o nosso comportamento e a nossa organizao funcional interna como tambm feito exatamente da mesma coisa que somos feitos. Ou seja, ele uma cpia idntica de um ser humano normal, mas no tem conscincia. Um zumbi fsico teria tambm um crebro com neurnios e com a mesma qumica e mesmo funcionamento que os nossos crebros tm. A nica coisa que ele no teria seriam as experincias conscientes subjetivas que julgamos ter. Ningum nunca conseguiria descobrir que tal ser um zumbi, de nada adiantaria abrir para ver como ele dentro, pois ele seria idntico a qualquer ser humano comum. De nada adiantaria estud-lo, porque seu funcionamento seria idntico ao nosso. E de nada adiantaria perguntar para ele se ele um zumbi porque, sendo seu comportamento idntico ao de um ser humano comum, ele responderia que no um zumbi e que tem estados qualitativos subjetivos como qualquer outro ser humano. Na verdade, nem mesmo ele poderia saber que um zumbi. Se tudo nele idntico ao ser humano e, se ns no nos julgamos zumbis, ele tambm no se julgaria um. Este tipo de zumbi poderia inclusive escrever um artigo sobre a infalibilidade da conscincia, ou seja, sobre o fato de que no podemos estar errados sobre os nossos estados conscientes. Mas ele simplesmente seria a prova de que ele est errado.

No difcil ver que esses trs tipos de zumbis esto em oposio radical s trs principais formas de materialismo, a saber, o Behaviorismo, que define tudo em termos de comportamento; o Funcionalismo, para quem a mente o que o crebro faz; e a Teoria da Identidade, que diz que a mente idntica ao crebro. Contra estes trs casos, o defensor dos zumbis argumenta que possvel ter tudo isso sem ter conscincia e, ento, a conscincia no pode ser isso.

Mas quando se pergunta se algum destes trs tipos de zumbis possvel, no se deve especificar somente sobre qual tipo de zumbi se est falando, mas tambm sobre que tipo de possibilidade se est perguntando. Os trs tipos de possibilidades que foram organizadas por Polger e Flanagan atraem um pouco mais de controvrsias at mesmo entre os prprios defensores dos zumbis. A primeira possibilidade a possibilidade lgica. Algo possvel logicamente se no contraditrio. De maneira mais intuitiva, possvel logicamente tudo o que um hipottico Deus poderia ter feito ou tudo o que concebvel. Isto , Deus no poderia ter criado um mundo onde existisse um quadrado redondo, porm, poderia ter criado um mundo onde cavalos tivessem asas. claro que a relao entre o que concebvel e o que logicamente possvel tem sido muito questionada principalmente pelos filsofos que tentam derrubar o argumento dos zumbis para defender alguma forma de materialismo. No momento, no entraremos em tal discusso. Devemos s lembrar que algo impossvel logicamente se for autocontraditrio ou impensvel.

A possibilidade natural o que poderamos chamar de possibilidade real ou nomolgica, ou seja, a possibilidade de realmente existir um zumbi em nosso mundo, com as nossas leis da natureza. Esta seria a possibilidade de que um de ns fosse de fato um zumbi. Todos aqueles filsofos da mente que defendem a inexistncia das qualia e da conscincia esto dizendo que no s zumbis fsicos so naturalmente possveis como tambm que todos somos zumbis.

A possibilidade metafsica mais complicada. Polger nos diz que no h um acordo geral sobre o que a possibilidade metafsica e decide deixar tal possibilidade de lado. Nas palavras de Chalmers:

(...) os mundos metafisicamente possveis so apenas os mundos logicamente possveis (e a possibilidade metafsica das declaraes a possibilidade lgica com uma virada semntica a posteriori).

Muitos so os que, como Chalmers, consideram a possibilidade lgica e a possibilidade metafsica a mesma coisa. Mas alguns defendem que o que possvel logicamente decidido a priori e o que possvel metafisicamente decidido a posteriori. Assim, para usar o exemplo comumente citado, o fato de que gua necessariamente H2O no decidido a priori e sim a posteriori, mas o fato de que o tringulo necessariamente uma figura de trs lados decidido a priori. Aplicando isso questo da conscincia, Mulhauser diz que s o conhecimento a posteriori sobre como a conscincia realmente (e que existe) que fixa o carter da experincia fenomenal naqueles mundos contrafticos. Isto quer dizer que, mesmo que parea logicamente possvel que exista um zumbi, pode ser que seja metafisicamente impossvel, ou seja, a conscincia pode ser futuramente identificada com algo em nosso mundo e, uma vez fixada o que ela neste mundo fica fixado o que ela em todos os mundos possveis. Mas isto tudo muito mais uma crtica possibilidade lgica do que propriamente um novo tipo de possibilidade. Como no h acordo sobre o que seria a possibilidade metafsica e nem mesmo sobre a sua importncia, e como me concentrarei na possibilidade lgica, tomarei o caminho de Polger e deixarei a possibilidade metafsica de lado.

A combinao entre os trs tipos de zumbis e os trs tipos de possibilidades nos d nove questes diferentes. No difcil perceber que a pergunta mais simples que surge em nosso Zombie Scorecard a se possvel logicamente existir um zumbi comportamental. Em outras palavras, se contraditrio pensar um ser que se comporte como um ser consciente, mas que no seja consciente. Muitos concordariam que possvel, at mesmo muitos materialistas. Mulhauser, criticando Dennett, chega a descrever como se deveria fazer para construir tal zumbi. Mesmo que se acredite que a conscincia causa o comportamento possvel acreditar neste tipo de zumbi. Como este zumbi no tem que ter o mesmo funcionamento que um ser humano, s defender, como fez Mulhauser, que este zumbi teria uma outra coisa que causasse o comportamento que, nos seres humanos, causado pela conscincia. Deste modo, ele poderia agir como um ser consciente sem ter conscincia. Mas claro que nem todos concordam com isso, Daniel Dennett acha isso impossvel porque um ser que se comportasse como se tivesse conscincia teria que ter conscincia. Ele chega a dizer inclusive que [zumbi no ] uma idia filosfica sria, mas uma absurda e ignbil relquia de antigos preconceitos. No s Dennett, mas os defensores do teste de Turing tambm costumam achar um zumbi comportamental logicamente impossvel, pois se tal zumbi pode existir e pode passar no teste de Turing, ento o teste de Turing no poderia nos dizer nada sobre a conscincia. Mas, dentre os crticos, Dennett o mais fervoroso, pois no s contra a possibilidade de existirem zumbis, mas tambm contra a prpria discusso sobre os zumbis, que ele considera intil e uma verdadeira vergonha para a filosofia. Se dependesse de Dennett, simplesmente no se discutiria tal questo. Comentrios como estes fizeram de Dennett o principal crtico dos zumbis.

Na outra ponta do nosso Zombie Scorecard est a pergunta para a qual a maioria, talvez todos, os filsofos respondem com um no. a pergunta sobre a possibilidade natural de existirem zumbis fsicos, ou seja, sobre se possvel em nosso mundo, com nossas leis da fsica, existir um ser que seja molcula por molcula igual a um ser humano, mas que no seja consciente. Isto, claro, levando em considerao que pelo menos os seres humanos so conscientes, pois algum que defenda que a conscincia no existe se sentir livre para dizer que todos somos zumbis.

Mas a pergunta que realmente importante sobre os zumbis sobre a possibilidade lgica de existirem zumbis fsicos. David Chalmers o principal defensor deste tipo de zumbi. Ele nos chama a ateno para a fora e simplicidade deste argumento. Em seu livro The Conscious Mind, ele d aos zumbis um papel central partindo da possibilidade lgica deles existirem para fundamentar a sua teoria. O argumento aqui bem simples, se dito que um ser humano consciente e dito tambm que logicamente possvel pensar em um ser fisicamente idntico a um ser humano, mas que no tem conscincia, ento pode-se dizer que a conscincia no fsica. Se a conscincia fosse fsica seria impossvel pensar em um ser idntico ao ser humano em tudo o que fsico, mas que no teria conscincia, teria que estar faltando algo.

Para deixar este argumento mais intuitivo podemos pensar o seguinte: considere um carro qualquer que tenha pneus e considere que estes pneus so fsicos e fazem parte do carro. impossvel pensar e um carro fisicamente idntico partcula por partcula a este carro, mas que no tenha pneus. Qualquer carro que fosse fisicamente idntico a um carro com pneus teria que ter pneus, pois estes so partes fsicas do carro. Mas se pudermos pensar em um carro que fisicamente idntico a um carro com pneus, partcula por partcula, mas que no tem pneus, ento estes pneus no so fsicos. Se tais pneus fossem fsicos, um carro idntico fisicamente a ele teria que ter pneus. O mesmo acontece com os zumbis. S possvel pensar em um ser que, se comporta como um humano, funciona como um humano e tem exatamente a mesma estrutura fsica que um ser humano tem, mas no tem estados qualitativos, ento estes estados qualitativos no podem ser nem o comportamento, nem o funcionamento e nem a estrutura fsica. exatamente aqui que reside a fora dos zumbis. Para que o materialismo seja descartado no necessrio que um zumbi fsico realmente possa existir. S necessrio que seja possvel pensar em um, ou seja, que ele no seja autocontraditrio. Mas a idia de um zumbi fsico no parece ter nenhuma contradio interna como teria, por exemplo, a idia de crculo quadrado. A maioria dos crticos concordam que este argumento est correto, ou seja, concordam que a possibilidade lgica de um zumbi fsico prova que o materialismo falso, mas nem todos concordam que o conceito de um zumbi fsico coerente ou mesmo concebvel e alguns chegam a afirmar que o fato de um zumbi fsico ser concebvel no quer dizer que ele seja logicamente possvel.

Muitas crticas feitas ao argumento de Kirk e Chalmers tentam mostrar que tal argumento no procede, ou seja, que um zumbi fsico pode ser pensvel sem que o materialismo seja refutado. Normalmente tais crticas tm como alvo as turbulentas relaes entre o que possvel, o que imaginvel e o que concebvel. No entanto, tambm possvel fazer uma crtica interna quando percebemos que o prprio argumento dos zumbis nos faz duvidar de nossa prpria conscincia, pois se um zumbi fsico no sabe e no tem como descobrir que um zumbi, ento ns tambm poderamos ser um zumbi e no saber! Isto o que chamei de problema da minha mente. Tal problema parece ser grave para toda forma de dualismo de propriedades.

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