15º. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia
A poesia dos Números Reais
Barros, Pessoa, Green, seus vazios e seus infinitos
Ana Paula Gonçalves – UFF
Sicleidi Valente dos Santos Britto - UFRJ
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo apresentar uma proposta da abordagem sobre
os números reais, permeada pela poesia de Manoel de Barros, Fernando Pessoa e John
Green, e seus desdobramentos na relação com História e Tecnologia.
Através da ideia abstrata de infinito e da percepção sobre o fascínio que esse
conceito exerce sobre os adolescentes em formação, a sala de aula de uma turma de
oitavo ano transformou-se em um espaço para se discutir Filosofia, Matemática,
Literatura e História, através da leitura de poemas e da utilização da Tecnologia aliada à
Robótica.
Dessa forma, os alunos puderam experimentar o conjunto dos Números Reais e
toda a poética existente entre seus infinitos através da metalinguagem e da
experimentação criativa da montagem de robôs medidores de infinitos.
Palavras chave: reais;infinito;poesia;Manoel de Barros
1 - Introdução
“Há várias maneiras sérias de não se dizer nada
mas só a poesia é a verdadeira.”
Manoel de Barros
O estudo dos números reais fascina os alunos da Educação Básica por ser
cercado de mistérios. A ideia de infinito, de “para sempre”, de “eterno” é presente no
discurso do jovem do Ensino Fundamental de forma cotidiana. Amizades “eternas”,
amores “infinitos”, decisões “definitivas” acontecem e “desacontecem” de forma muito
veloz no vida do jovem em formação.
BERTOLUCCI (2009) realizou uma pesquisa intitulada “Noções de infinito
matemático em adolescentes e adultos” onde destaca a teoria de Piaget na abordagem da
Epistemologia Genética. PIAGET (2005) nos destaca a “facilidade de elaborar teorias
abstratas. Existem alguns que escrevem, que criam uma filosofia, uma política, uma
estética ou outra coisa. Outros não escrevem, mas falam”. Portanto, é muito comum
nessa faixa etária o fascínio pelo infinito e, com ele, a elaboração de ideias sobre esse
conceito.
MARTINÉZ (2006) diz em “A ciência do infinito”:
“Essa onipresença do infinito na Matemática é bastante surpreendente pois o
homem é um ser finito, limitado, passageiro de uma nave - a Terra – também
limitada e finita. Ainda assim, esse ser finito contempla o infinito e se deleita,
a ponto de considerá-lo indispensável para a compreensão da finitude.”
Trazido pelos alunos do 8º. Ano da Escola Modelar Cambaúba (EMC), o
conceito de “infinitos” abordado no texto de John Green em “A culpa é das estrelas”,
dos poemas de amor de Álvaro de Campos / Fernando Pessoa e da arte de fazer o nada
de Manoel de Barros nortearam a abordagem do conteúdo “Números Reais”. “Alguns
infinitos são maiores que outros” foi o texto disparador e os desdobramentos foram as
questões: Infinitos? Não seria só um infinito? Maior? É possível mensurar? Como
comparar se não podemos medir?
2 - Infinito Potencial x Infinito Absoluto x Infinito Atual – O que são?
Aristóteles, em sua obra Física, distingue dois tipos de infinito: o infinito
potencial e o infinito atual. O infinito potencial não existe enquanto ato, mas enquanto
potência. Uma coleção é infinita (potencialmente), quando podemos acrescentar mais
um elemento à coleção dada, de modo que não exista um último elemento. Por exemplo,
o conjunto dos números naturais.
Por maior que seja um número natural, sempre podemos acrescentar mais uma
unidade, de modo que não existe o maior número natural. O infinito atual é o infinito
acabado, realizado, que pode ser tomado em sua totalidade. O infinito potencial se
realizará no futuro, o infinito atual se realiza no presente. Segundo Aristóteles, o único
infinito que existe é o potencial. O infinito, quando tomado em ato, é fonte de
problemas sem solução, como os paradoxos de Zenão. Zenão argumenta que o
movimento é impossível quando admitimos o infinito em ato.
Na conhecida estória “Aquiles e a Tartaruga”, Zenão mostra que se houvesse
uma disputa de corrida entre o homem mais veloz da Grécia, Aquiles, e uma tartaruga, e
fosse dada uma vantagem à tartaruga, dela largar à frente, Aquiles jamais alcançaria a
tartaruga. Isso porque, para ele alcançar a tartaruga, ele deveria antes percorrer a metade
da distância. Mas, para percorrer essa metade, antes ele deveria percorrer um quarto da
distância. Para percorrer um quarto, antes deveria percorrer um oitavo dessa distância e
assim sucessivamente. Ou seja, ele jamais alcançaria a tartaruga. O que obviamente não
aconteceria, pois Aquiles ultrapassaria a tartaruga em tal caso. Aristóteles então
concluiu que o infinito só pode ser tratado enquanto potência, nunca enquanto ato.
Desde então, filósofos, matemáticos e teólogos só admitiam o infinito potencial.
Até que em meados do século XIX, o brilhante matemático Georg Cantor, fundador da
Teoria dos Conjuntos, define o infinito de forma atual e torna o infinito um objeto
matemático, que pode ser estudado na sua totalidade, uma vez que está realizado. O
infinito “é”, ele não está “por vir a ser”. Cantor distingue o infinito atual, objeto do seu
estudo, do infinito absoluto. Para ele, o infinito absoluto é Deus. Que é quem lhe
garante a certeza da sua teoria. Ele não se preocupou com os “resultados esquisitos” e
contraditórios à nossa intuição de sua teoria (como a descoberta de que o conjunto dos
números naturais tem o mesmo tamanho do conjunto dos números racionais, apesar de
saber que entre dois números naturais existem infinitos números racionais), uma vez
que haviam sido intuídos por Deus.
Foi essa crença no infinito absoluto que o fez buscar as demonstrações
necessárias para provar resultados tão contra-intuitivos. O que não aconteceu com
Galileu, que chegando à conclusão de que o conjunto dos números naturais era do
mesmo tamanho do conjunto dos quadrados perfeitos, isto é, que um conjunto era do
mesmo tamanho de uma própria dele mesmo, declarou que o infinito não poderia ser
estudado por seres finitos e que o melhor que tínhamos a fazer era abandonar o estudo
do infinito.
Dessa forma, podemos dizer que Galileu abandonou o infinito pela sua
grandiosidade. Em contrapartida, Cantor domou o infinito, nos apresentando infinitos de
tamanhos de diferentes. Na verdade, infinitos tamanhos de infinito.
3 - Sobre como John Green e a literatura invadiram a aula do oitavo ano
Durante a aula de Álgebra de uma das turmas do oitavo ano da Escola Modelar
Cambaúba, conversávamos sobre conjuntos numéricos e sobre a necessidade do homem
em representar as quantidades na forma não-racional. Como exemplo, foi mostrado que
representar 2/3 e √2 são números bem diferentes, embora representem quantidades
infinitas. O primeiro representa uma dízima periódica simples. O segundo, um número
irracional, a medida da diagonal de um quadrado cujo lado mede 1 unidade. Nesse
momento, a aluna Beatriz Evelbauer Simões, perguntou qual dos dois tinha mais casas
decimais. E falou a frase “Há infinitos maiores que outros.” Muitos da turma falaram o
final da frase ao mesmo tempo. Então perguntei de onde veio o texto.
Imagem I 1
1 Do livro “A culpa é das estrelas”, de John Green.
Essa literatura, muito apreciada pelos adolescente, nos despertou para uma
oportunidade de debater sobre o infinito. Como questionamento inicial, perguntamos
quem tinha algum objeto com símbolo de infinito ou quem, por vezes, se pegava
escrevendo o símbolo do infinito de forma involuntária em algum papel. Muitos
levantaram a mão. Por que esse fascínio pelo infinito? E por que não aproveitar esse
interesse e transformar em algo proveitoso e atrativo para as aulas? E, mais ainda, por
que não estabelecer parcerias com outras disciplinas para expandir esse conhecimento?
4 - John Green e o tamanho do infinito
GREEN(2012), em seu romance “A culpa é das estrelas” relata a relação que seu
personagem tem com o infinito, ao conviver com uma doença terminal. Do texto do seu
livro destacamos o fragmento
Não sou formada em matemática, mas sei de uma coisa: existe uma
quantidade infinita de números entre 0 e 1. Tem o 0,1 e o 0,12 e o 0,112 e
uma infinidade de outros. Obviamente, existe um conjunto ainda maior entre
o 0 e o 2, ou entre o 0 e o 1 milhão. Alguns infinitos são maiores que outros.
No XII Encontro de Educação Matemática (XII ENEM), AKIO (2016) ofereceu
a oficina “Há infinitos maiores que outros?”, onde, dentre outras atividades, pediu para
que os congressistas presentes respondessem a pergunta “O que é infinito para vocês?”
Dessas respostas saíram provocações para que fossem discutidos “os tipos de infinitos”
e não necessariamente os seus tamanhos, passando por Hilbert, Sócrates e Cantor.
A pergunta “Há infinitos maiores que outros?” que surgiu na aula com os alunos
do oitavo ano pode ser respondida com o fragmento a seguir, escrito por AKIO(2016),
nos anais do XII ENEM
Cantor consegue mostrar que existem infinitos maiores que outros! A
começar pelo infinito dos números irracionais. Cantor prova que os
irracionais não podem ser enumeráveis, portanto é um infinito estritamente
maior que o infinito dos naturais. Outros resultados mostram que o infinito
dos números reais é mais esquisito e contra- intuitivo que o infinito dos
números naturais, que já é esquisito.
1º fato impressionante: O intervalo (0,1) possui a mesma quantidade de
pontos que qualquer segmento na reta real.
2º fato impressionante: O intervalo (0,1) possui a mesma quantidade de
pontos que a reta real!
3º fato impressionante: O intervalo (0,1) possui a mesma quantidade de
pontos que o quadrado de lado 1.
4º fato impressionante: O intervalo (0,1) possui a mesma quantidade de
pontos que o cubo de lado 1.
5º fato impressionante: O intervalo (0,1) possui a mesma quantidade de
pontos que qualquer espaço de dimensão n!
6º fato impressionante: Existem infinitos tipos de infinitos!
Dessa forma, percebemos que há sim infinitos maiores que outros. E que, na
verdade, existe mais de um tipo de infinito, como já dissemos no texto acima. Mas, em
se tratando de conjuntos numéricos, saber se um conjunto é ou não enumerável nos faz
chegar à ideia intuitiva da diversidade desses infinitos.
Mesmo sem ter a consciência dessa enumerabilidade, alguns jovens conseguem,
intuitivamente, representar suas ideias sobre infinito. Vejam, nas ilustrações abaixo, as
respostas desses jovens sobre o que pensavam sobre a existência de um infinito maior
que outro:
Imagem 2
Embora muito abstratas, as representações oferecidas pelos alunos contém
elementos do conceito de infinito atual trazido por Cantor. A ideia de
5 - A confusão sobre o zero, o vazio e o conjunto unitário com elemento vazio
Além de conjecturar sobre a existência de infinitos maiores que outros, a
discussão sobre o nulo e o vazio também surgem na poética do estudo dos números
reais. A pesquisa sobre a História do Infinito, o surgimento do seu conceito, a ideia de
nada, de vazio e a necessidade de representá-los se fez presente. Porém, apresentou uma
enorme confusão entre o que representa o zero e o vazio. Para muitos, o conceito de
vazio e o zero representavam as mesmas ideias, sem contar com a simbologia do
conjunto unitário {∅} e as representações do vazio { } 𝑒 ∅ que, na concepção de boa
parte dos alunos, representam a mesma ideia matemática de vazio. Um aluno surge com
o seguinte questionamento: “Por que criaram símbolos diferentes para coisas que
representam o nada? Qual é a necessidade? O zero não representa a ausência de algo? O
vazio também. Ou estou errado?”
KUBRUSLY(2011), em “Livre de Vazios” nos diz que
De maneira análoga ao Zero numeral (neutro da adição) que espelha os
inteiros em duas realidades, a positiva e a negativa, olharemos o Zero de cada
coisa e de todas as coisas como espelho do mundo. Gerador de uma outra
2 Ilustrações de alunos na atividade “Alguns infinitos são maiores que outros?”
realidade especular onde também habitamos e somos e existimos iguais e
diferentes, o Zero como espelho do mundo se deixa perceber pelas versões
diferentes de topologia onde imersos acontecemos.
É nítida essa relação que o jovem tem com o zero. Para eles essa representação
da fronteira entre o positivo e o negativo, daquilo que representa o nulo, muitas vezes se
confunde com a sua relação com o vazio, seus questionamentos existenciais, a
inquietação adolescente, o ato de “adolescer”. Desconstruir essa relação e fazê-lo
entender que representação de uma quantidade nula e a representação de um conjunto
sem elementos são distintas passa por uma situação filosófica e psicanalítica, e não
apenas conceitual e simbólica.
BARROS (2011) já diz na sua poesia:
“A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.”
Podemos observar nesse trecho do poema de Manoel de Barros a presença dos
termos “infinito”, “vazio” e “maiores. Barros fala que o vazio possui um tamanho,
podendo até ser infinito. O conceito de infinito envolvido no texto é o conceito de
infinito potencial, pois, ao dizer que os vazios são infinitos, Barros ilustra o vazio
relacionado à ideia mais intuitiva de infinito, aquela que pode ser enumerada, ou seja,
pode ser relacionada com uma sucessão infinitamente extensível. De fato, para um
adolescente, o vazio pode ser bem longo, bem grande, imenso, profundo e infinito. Para
o jovem, o vazio existencial é muitas vezes sem limites.
6 - Manoel de Barros, seus vazios-infinitos-cósmicos
BARROS( 2011) no seu poema "
“Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.”
Além do texto de Green, do Manoel de Barros e o seu gostar mais do
vazio do que do cheio e sua comparação como infinito, Fernando Pessoa (Álvaro de
Campos) sobre o amor ao infinito foram convidados para o debate.
7 - Fernando Pessoa e o infinito absoluto
“Qualquer caminho leva a toda a parte.
Qualquer ponto é o centro do infinito.
E por isso, qualquer que seja a arte
De ir ou ficar, do nosso corpo ou espírito,
Tudo é estático e morto. Só a ilusão
Tem passado e futuro, e nela erramos.
Não há estrada senão na sensação
É só através de nós que caminhamos.
Tenhamos pra nós mesmos a verdade
De aceitar a ilusão como real
Sem dar crédito à sua realidade.
E, eternos viajantes, sem ideal
Salvo nunca parar, dentro de nós,
Consigamos a viagem sempre nada
Outros eternamente, e sempre sós;
Nossa própria viagem é viajante e estrada.”
Percebemos no texto de Fernando Pessoa o conceito de infinito absoluto, de
certa forma, cético. Quando falamos de infinito matemático em sala de aula, por muitas
vezes alguns alunos trazem consigo esse conceito. O de infinito relacionado a Deus, ao
eterno, à juventude eterna.
Para GHISALBERTI (2013) o conceito de infinito é um abstrato, que se
chega através da noção de finito. O texto de Pessoa nos mostra bem construção, quando
diz “qualquer ponto é o centro do infinito”. De um ponto inicial parte-se para um
infinito absoluto. ”Qualquer caminho leva a toda parte”. “Tudo é estático e morto.” Ao
mesmo tempo que diz existir um ponto final em “Salvo nunca parar dentro de nós” e
“Outros eternamente, e sempre sós” nos dá a ideia de infinito absoluto. Ghisalberti
também nos diz que
Este tipo de abstração conduz o homem e uma noção que é máxima
em compreensão e mínima em extensão, tão mínima a poder ser aplicada
somente e exclusivamente a Deus. O homem atinge o ente e a infinitude e
chega a pensar um ente infinito em perfeição e potência, enquanto infinito é
aquilo que excede qualquer finito, não só porque excede qualquer tipo de
relação determinada, mas porque excede todos os tipos de relações
imagináveis. O infinito excede, portanto, todo finito mesmo em relação a
qualquer medida ou proporção definida ou definível: não obstante a sua
origem abstrata, a “infinitas” coincide com o constitutivo formal da essência
divina, mais que com um atributo seu.
8 - Infinito nas Artes – Número de Ouro
Os alunos pesquisaram sobre teorias relacionadas à Filosofia, à Física e
principalmente, à História, por estarem estudando o Renascimento. A descoberta dos
números irracionais foi contemplada com a apreciação das obras dos artistas
renascentistas e a preocupação com a beleza perfeita, representada através da proporção
áurea e do número de ouro.
A atividade consistiu em imprimir uma obra de algum pintor renascentista e
identificar, através de medidas e cálculos, a presença do número fi. Em caso afirmativo,
representar a espiral logarítmica e a sequencia de Fibonacci em um papel vegetal
apoiado sobre a obra de arte.
LÍVIO (2006), no seu livro “Razão Áurea – A História de Fi”, dá o seguinte
título ao capítulo 7 do seu livro: “Pintores e poetas têm a mesma licença.” Nesse
capítulo, para a decepção de alguns alunos e para a euforia de outros, Lívio fala que não
necessariamente os pintores renascentistas utilizaram a proporção áurea nas suas obras.
Em algumas obras é evidente o uso da razão áurea. Em outras não. Segundo LÍVIO
(2006)
a história documentada da Razão Áurea não é coerente com a ideia de que
essa proporção tenha sido particularmente reverenciada por artistas nos
séculos que antecedem a publicação do livro de Pacioli3. Além disso, todos
os estudos sérios sobre as obras dos três artistas feitos por especialistas em
arte (...) não dão qualquer indicação de que esses pintores possam ter usado a
Razão Áurea e se baseia apenas na dúbia evidência das dimensões medidas.
Embora essa constatação tenha acontecido após a atividade sobre Razão Áurea,
com base no número de ouro, ficou evidente para os alunos que em algumas obras o
tratamento dado a essas proporções era racional e outras de fato muito próximas a 1,6,
que é o valor de fi. Logo, a atividade atingiu o seu objetivo que era diferenciar número
racional de número irracional. Além disso, através de alguns cálculos, os alunos
puderam mostrar que 𝚽 =𝟏+√𝟓
𝟐, ≅ 1,6.
3 Do livro "De Divina Proportione", de Luca Pacioli (1509)
9 - A poesia na Robótica – um robô que mede Infinitos
“Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas
mais que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
É maior do que o mundo.”
Na Escola Modelar Cambaúba existe um projeto de robótica que, além de
acontecer em formato de clube no horário invertido, permeia as aulas de Matemática e
outras disciplinas da grade, com atividades contextualizadas, de acordo com o seu
planejamento.
Pelo fato dos alunos já estarem em contato com a Informática de forma natural,
cada um tem uma elaboração própria do conceito de tecnologia. A atividade proposta
para esses alunos veio justamente para descontruir esse conceito.
Com base no documentário “Só dez por cento é mentira” (2009), sobre a obra de
Manoel de Barros, foi discutido o conceito de tecnologia, a partir da apreciação das
invenções “uma fivela de prender silêncios”, “abridor de amanhecer” e “esticador de
horizontes.”
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
um abridor de amanhecer
um prego que farfalha
um encolhedor de rios – e
um esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada).
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)
No documentário Só dez por cento é mentira (2009), Paulo, que, segundo o
documentário, “é mais um sujeito que foi mordido pelo idioleto manuelês”, mostra
como constrói a poesia concreta de Manoel de Barros, transformando as palavras em
invenções nas invenções inusitadas citadas acima:
“Difícil fotografar o silêncio, né? Daí eu fiz essa fivela de prender silêncios.
Coloquei esse funil aqui para catar o silêncio. Ele vem pra cá, eu coloco esse
frasco transparente... Silêncio não dá pr’agente ver, né? E coloquei aqui pra...
ele tá aqui dentro. “
Nesse momento, os alunos foram desafiados a criar um “medidor de infinitos”,
através da construção de um robô feito em Lego. A Lego Zoom, que oferece suporte em
Informática Educacional para a EMC, também oferece o aparelho EV3, que é
responsável pela movimentação do robô. Essa movimentação acontece através da
programação em blocos.
Assim, a atividade foi construída nas seguintes etapas:
- Construção de um robô segue-linha com leitor de cor;
- Programação do robô (parte 1) – O robô foi programado para andar em
círculos, ou seja, uma das suas rodas deveria andar mais rápido que a outra. Em
princípio, para ser um medidor de infinitos, não deveria acontecer pausa.
- Programação do robô (parte 2) – Ampliando a programação para uma etapa
mais elaborada, os alunos adicionaram um leitor de cor. Toda vez que o robô “lesse”
determinada cor, deveria parar. Essa leitura foi feita a cada meia volta. Dessa forma, um
contador mediu a trajetória do robô, mostrando aos alunos o comprimento de uma
circunferência.
- Foram anotados em uma tabela o comprimento da circunferência da trajetória e
o seu diâmetro.
Utilizando a razão entre o comprimento e o diâmetro e uma volta da trajetória,
foram encontrados valores próximos ao de 𝜋.
Imagem 4
No final de tudo, ficou a pergunta: será que essa representação é adequada? 𝜋
não é um número com infinitas casas? Por que está representado na forma racional?
10 - Conclusão
O conceito de infinito presente no cotidiano do jovem em formação é bastante
intuitivo e se aproxima, na maioria das vezes, da ideia de infinito potencial e de infinito
absoluto.
Trabalhar o conceito de infinito à luz da filosofia, da literatura e da arte nos
proporciona um ambiente de aprendizagem muito rico, onde o adolescente pode se
cercar de materiais menos abstratos que os dos conceitos matemáticos e aliar-se às
múltiplas formas de expressão do seu intelecto, utilizando múltiplas linguagens e
percebendo que a Matemática não é uma disciplina estanque.
O conceito de números irracionais é extremamente abstrato para um aluno de
oitavo ano. Porém, com o amparo da tecnologia, tudo se transforma em um momento de
experimentação e de pesquisa. Atrelar o ensino à tecnologia, trazendo a poesia como
costura para o estudo dos números reais faz os alunos observarem que a poética dos
números é mais próxima do que eles poderiam imaginar.
4 Tabela para ilustrar as medidas do comprimento das trajetórias dos robôs e a razão entre o diâmetro das mesmas – Calculo do valor de 𝜋.
A maior incógnita de todas foi como discutir a relação entre a representação
racional ou irracional do número 𝜋. Muitos pensaram estar errados, já que tinham sido
apresentados ao número em questão e sabiam que ele era infinito e não periódico. As
representações da tabela eram racionais. E, afinal, o 𝜋 foi mesmo experimentado na
construção do robô “medidor de infinitos”.
Foi quando um aluno disse: “É fácil responder. Essa representação está incluída
naqueles dez por cento de mentira.”
Eu acho que ele está certo. Afinal de contas, como já dizia Manoel de Barros:
“Tudo o que invento é falso.”
REFERÊNCIAS:
AKIO, L. “Há infinitos maiores que outros” – Anais do II ENEM – Encontro Nacional
de Educação Matemática – São Paulo, 2016.
BOYER, C. B. História da Matemática. Tradução Elza Gomide. São Paulo: Edusp,
1974.
BERTOLUTTI, C.C. Noções de infinito matemático em adolescentes e adultos – estudo
exploratório. -Porto Alegre: Novas Edições Acadêmicas, 2009
BARROS, M. Manoel de Barros – Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2013
GHISALBERTI, A. Percursos do infinito no pensamento filosófico e teológido de Duns Scotus
- Thaumazein, Ano V, Número 11, Santa Maria (Julho de 2013), pp. 181-194
GREEN, J. A culpa é das estrelas. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2012
KUBRUSLY, Ricardo S. Distância são caçadoras do nada. In: Livre de Vazios. Rio de
Janeiro: Editora Seis, 2011.
LÍVIO, M. Razão Áurea – A História de Fi, um número surpreendente. 7ª. Edição. Rio
de Janeiro: Record, 2015
MARTINÉZ, J. L. A ciência do Infinito - As diversas faces do Infinito – in Scientific
American Brasil. São Paulo: Duetto Editorial, 2006
PESSOA, F. Obra Poética. São Paulo: Nova Aguilar, 2000.
PIAGET, J. Tomada de Consciência – São Paulo: EDUSP, 1975.