68 a gerao que queria mudar o mundo: relatos
68 a gerao que queria mudar o mundo: relatos
realizao
Governo Federal Ministrio da Justia CoMisso de anistia Presidenta da repblica dilMa vana rousseFF Ministro da Justia Jos eduardo CardoZo Presidente da Comisso de anistia Paulo abro Vice-presidentes da Comissso de anistia eGMar Jos de oliveira sueli aPareCida bellato Secretrio-executivo da Comisso de anistia Muller luiZ borGes Coordenao-Geral de Memria Histrica da Comisso de anistia MarCelo d. torellY realizao CoMisso de anistia do Ministrio da Justia organizao eliete Ferrerobra 68 a Gerao que Queria Mudar o Mundo: relatos as opinies contidas nos textos desta edio so de responsabilidade de seus autores. o Ministrio da Justia publica a obra 68 a Gerao que Queria Mudar o Mundo: relatos como parte de sua poltica de divulgao da anistia poltica no brasil e como forma de dar cumprimento ampla a sua obrigao constitucional de promover a reparao material e moral a todos os perseguidos polticos entre 1946 e 1988, sem que qualquer das opinies expressas pelos autores traduza opinies oficiais do Governo Federal.
Capa inspirada no original de Jair de souZa reviso e edio eliete Ferrer Projeto leonCio de QueiroZ reviso Final Kelen MereGali Model Ferreira MarCelo d. torellY ruanna larissa nunes leMos Projeto Grfico ribaMar FonseCa diagramao Merson CsarS493g 68 a gerao que queria mudar o mundo: relatos / Organizao: Eliete Ferrer. Braslia: Ministrio da Justia, Comisso de Anistia, 2011. 690 p. ISBN 978-85-85820-06-0 1. Movimento social, Brasil. 2. Ditadura, histria, Brasil. 3. Golpe militar (1964), Brasil. 4. Oposio poltica. 5. Direitos e garantias individuais. I. Ferrer, Eliete, org. II. Ttulo. CDD 321.9 Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do Ministrio da Justia
distribuio Gratuita venda Proibida 1 edio 3.000 exemplares
Projeto Marcas da MemriaUm projeto de memria e reparao coletiva para o Brasil
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Criada h dez anos, em 2001, por meio de medida provisria, a Comisso de Anistia do Ministrio da Justia passou a integrar em definitivo a estrutura do Estado brasileiro no ano de 2002, com a aprovao de Lei n 10.559, que regulamentou o artigo 8 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias. Com o objetivo de promover a reparao de violaes a direitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, a Comisso configura-se como espao de reencontro do Brasil com seu passado e subverte o senso comum da anistia enquanto esquecimento. A Anistia no Brasil significa, a contrrio senso, memria. Em seus dez anos de atuao, o rgo reuniu milhares de pginas de documentao oficial sobre a represso no Brasil e, ainda, centenas de depoimentos, escritos e orais, das vtimas de tal represso. Desse grande reencontro com a Histria surgem no apenas os fundamentos para a reparao s violaes como, tambm, a necessria reflexo sobre a importncia da no repetio desses atos de arbtrio. Se a reparao individual meio de buscar reconciliar cidados violados que tm, ento, a oportunidade de ver o Estado reconhecer que errou para com eles devolvendo-lhes a cidadania e o patrimnio roubados, por sua vez, as reparaes coletivas, os projetos de memria e as aes para a no repetio tm a clara finalidade de permitir que toda a sociedade conhea, compreenda e, assim, repudie tais erros. A afronta aos direitos fundamentais de qualquer cidado igualmente ofende a toda a humanidade que temos em comum e, por isso, tais violaes jamais podem ser esquecidas. Esquecer a barbrie equivaleria a nos desumanizar. Valendo-se desses pressupostos e, ainda, buscando valorizar a luta daqueles que resistiram por todos os meios que entenderam cabveis , a Comisso de Anistia, a partir de 2008, realizou sesses pblicas em territrios onde se concentram os pedidos de anistia, de modo a tornar o passado recente acessvel a todos. So as chamadas Caravanas da Anistia. Ao faz-lo, transferiu seu trabalho cotidiano das quatro paredes de mrmore do Palcio da Justia para a praa pblica, para escolas e universidades, associaes profissionais e sindicatos, bem como para todo e qualquer local onde perseguies ocorreram. Dessa forma, contribuiu ativamente para conscientizar as novas geraes, nascidas na democracia, da importncia de hoje vivermos em um regime livre, que deve e precisa seguir sempre sendo aprimorado. Com a ampliao do acesso pblico aos trabalhos da Comisso, cresceu exponencialmente o nmero de relatos de arbitrariedades, prises, torturas... mas, tambm, pde-se romper o silncio para ouvir centenas de depoimentos sobre resistncia, coragem, bravura e luta. Nesse contexto surge o projeto Marcas da Memria, que expande ainda mais aProJeTo MarCaS Da MeMria
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reparao individual em um processo de reflexo e aprendizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacionais que permitam queles que viveram tal perodo sombrio, ou que a seu estudo se dedicaram, compartilhar leituras de mundo que permitam a reflexo crtica sobre um tempo que precisa ser lembrado e tratado sob auspcios democrticos. Para atender a esses amplos e inovadores propsitos, as aes do Marcas da Memria esto divididas em quatro campos:a) Audincias Pblicas: criao de eventos para promover processos de escuta pblica dos perseguidos polticos sobre o passado e suas relaes com o presente. So exemplos dessas audincias as sesses temticas, ocorridas desde 2008, direcionadas s diferentes categorias profissionais de trabalhadores e sindicalistas demitidos arbitrariamente na ditadura, bem como as audincias pblicas sobre os limites e possibilidades para a responsabilizao dos torturadores, em Braslia (2008), e sobre o regime jurdico do anistiado poltico militar, mais recentemente, no Rio de Janeiro (2010); b) Histria Oral: realizao de entrevistas com perseguidos polticos baseadas em critrios terico-metodolgicos prprios da Histria Oral. O primeiro projeto em andamento produziu 108 entrevistas gravadas, filmadas e transcritas de pessoas que vivenciaram episdios atrelados resistncia nos perodos de ditadura, que foram contempladas pela Lei n 10.559/2002. Esse trabalho efetivado em parceria com as Universidades Federais de Pernambuco (UFPE), Rio Grande do Sul (UFRGS), e Rio de Janeiro (UFRJ), com o financiamento do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos CFDD (2009-2010). Todas as entrevistas ficaro disponveis no Memorial da Anistia e podero ser consultadas pela juventude, por pesquisadores e pela sociedade em geral nas bibliotecas e centros de pesquisa das universidades participantes; c) Chamadas Pblicas de fomento a iniciativas da Sociedade Civil: convocao por meio da qual a Comisso avalia projetos de preservao, de memria, de divulgao e de difuso advindos de Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (OSCIP) e de Entidades Privadas sem Fins Lucrativos. No 1 Chamamento Pblico, em 2010, foram elaborados livros, documentrios, materiais didticos e informativos, exposies artsticas, peas teatrais, palestras e musicais. Entre os selecionados esto: Caravanas da Democracia, documentrio sobre a atuao da Comisso de Anistia; livro Caravanas da Anistia - O Brasil pede perdo; Repare Bem, documentrio sobre os filhos dos perseguidos polticos; documentrio sobre 24 ex-presas polticas da Colnia Penal do Bom Pastor de Recife; Para que no se
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esquea, para que nunca mais acontea, exposio de painis com fotos e textos sobre os 30 anos da Lei de Anistia; Filha da Anistia, pea teatral com 27 apresentaes gratuitas em seis estados da federao; Resistir Preciso, palestra musical sobre a luta pela anistia e democracia, oficinas de debates e criao de Centros Culturais de Direitos Humanos para a paz; Tempo de Resistncia, musical sobre marcos da ditadura; Sala Escura da Tortura, exposio da obra de quatro artistas plsticos renomados internacionalmente, sobre protestos violao de direitos humanos. J foi lanada a 2 Chamada Pblica de 2011. d) Publicaes: aes com o intuito de lanar uma coleo de livros de memrias1168 a geraao que queria mudar o mundo: relatosProJeTo MarCaS Da MeMria
dos perseguidos polticos; publicar dissertaes e teses de doutorado sobre o perodo da ditadura e a anistia no Brasil, alm de reimprimir ou republicar outras obras e textos histricos e relevantes e registrar anais de diferentes eventos sobre anistia poltica e justia de transio. Sem fins comerciais ou lucrativos, todas as publicaes so distribudas gratuitamente, especialmente para escolas e universidades. O primeiro desses livros foi publicado com os Anais do Seminrio Luso-Brasileiro sobre Represso e Memria Histrica (2009) e com os Anais do Seminrio Internacional sobre Anistias na Era da Responsabilizao em parceria com a Universidade de Oxford (2010). A Comisso mantm, ainda, a publicao peridica da Revista Anistia Poltica e Justia de Transio. E agora, esta obra originada nas atividades do grupo Os Amigos de 68, com escritos de 100 perseguidos polticos (2011).
O projeto Marcas da Memria rene depoimentos, sistematiza informaes e fomenta iniciativas culturais que ensejem a toda a sociedade conhecer o passado e dele extrair lies para o futuro. Reitera, portanto, a premissa de que apenas conhecendo o passado podemos evitar sua repetio no futuro, fazendo da Anistia um caminho para a reflexo crtica e o aprimoramento das instituies democrticas. Mais ainda: o projeto investe em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de edital pblico, garantindo igual possibilidade de acesso a todos e evitando que uma nica viso de mundo imponha-se como hegemnica. Este projeto permite que todos conheam um passado que temos em comum e que os olhares histricos anteriormente reprimidos adquiram espao junto ao pblico para que, assim, o respeito ao livre pensamento e o direito verdade disseminem-se como valores imprescindveis para um Estado plural e respeitador dos direitos humanos.
Comisso de Anistia do Ministrio da Justia
apresentaoPaUlo aBroPresidente da Comisso de anistia do Ministrio da Justia
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A Comisso de Anistia do Ministrio da Justia, desde o ano de 2007, por sua incumbncia constitucional, passou a empreender diversas aes inovadoras com fundamento no conceito global de reparao. A reparao devida aos perseguidos polticos extrapola a dimenso eminentemente econmica, nos termos da Lei n 10.559/2002 e compreende tambm fornecer um ressarcimento moral satisfatrio aos atingidos por atos de exceo. A retratao no se esgota na dinmica individual, sendo ampliada tambm socialmente, num processo de coletivizao de medidas reparatrias. Tudo isso fez com que passssemos a empreender aquilo que diversas diretivas internacionais definem como um programa de reparao, que se insere num marco mais amplo que a simples restituio de direitos ou compensao econmica s vtimas, contribuindo tambm para a revelao da verdade, a afirmao da memria social, a reabilitao moral dos prejudicados por atos de exceo e, especialmente, o fomento no-repetio do autoritarismo. neste contexto que se edita a presente obra, publicada pela Comisso de Anistia. O livro 68 a gerao que queria mudar o mundo composto por relatos de uma centena de ex-militantes polticos, organizados e sistematizados ao longo dos anos por Eliete Ferrer, do grupo Os Amigos de 68. Trata-se de contribuio mpar para a difuso da memria daqueles que combateram o regime militar por descrever, sob diversos matizes, as percepes e concepes de vida que eles sustentaram, o modo como lutaram contra a ditadura, bem como as interrupes que tiveram em suas vidas e os recomeos que puderam construir. Nesse sentido, a publicao da obra ato de reparao moral, suas lutas e memrias constituam efetivamente parte da identidade nacional brasileira. O livro que agora editamos no tem o objetivo de constituir-se em a verdade oficial sobre qualquer fato mas quer apenas viabilizar s novas geraes e aos estudiosos do tanto na histria dos arquivos oficiais, quanto em outros relatos indiretos, para que estes possam ser avaliados e compreendidos hoje, dentro de um novo contexto social e poltico. Divulgando estes textos, que so escritos em primeira pessoa dos perseguidos, a Comisso de Anistia contribui para pluralizar as fontes de pesquisa sobre a ditadura no Brasil, num exerccio que estimula a tolerncia e o respeito s diversas formas de ver e viver o mundo.68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosaPreSeNTao
pois contribui para a conexo da gerao de 1968 com a histria do pas, permitindo que
perodo a leitura de depoimentos pessoais sobre uma srie de fatos por demais narrados
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Trata-se de dar repercusso s vozes caladas no passado. Fazendo-o, cumpre sua funo legal de divulgar a memria poltica do perodo que se estende entre 1946 e 1988 e, ainda, fortalece valores necessrios democracia, como o fomento pluralidade e tolerncia. A Comisso de Anistia rene o arquivo dos que foram atingidos pela ditadura militar, pois nosso compromisso com a verdade das vtimas. Significativa parte do contedo deste livro est presente nos processos administrativos de anistia, constituindose em fatos j reconhecidos pelo Estado brasileiro. Assim sendo, o objetivo de publicar a obra no gerar consensos, justo o oposto! Pretende-se ampliar possibilidades de leitura e permitir a mais atores sociais que falem livremente sobre aquilo que viveram e sobre o que pensam dessas experincias. Com o mais sincero respeito e admirao a todos os resistentes brasileiros que contriburam para a escrita desta obra, tornamo-la pblica, para que tantos outros a possam ler e seguir interpretando a histria de nosso pas, sob o manto de um regime plural, democrtico e constitudo no respeito aos direitos humanos e fundamentais. Boa e proveitosa leitura a todos e todas. Braslia, maio de 2011.
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Brava gente brasileira! Longe v... temor servil: Ou ficar a ptria livre Ou morrer pelo Brasil.(Refro do Hino da Independncia do Brasil escrito por Evaristo da Veiga.)
reconhecimentoselieTe Ferrer
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Homenagens 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo homenageia a todos os que tombaram na luta por um Brasil livre, com justia social e com o povo mais feliz. 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo homenageia, ao mesmo tempo, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro - entidade ilibada, referncia importante no cenrio nacional, que continua denunciando antigos e novos casos de tortura e exigindo a responsabilizao daqueles que violam os Direitos Humanos.17
Dedicatria 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo dedicado a todos os participantes do Grupo Os Amigos de 68, inclusive e especialmente aos que j fizeram a grande viagem e j povoam os Verdes e Floridos Campos de Valhalla onde confraternizam com outros guerreiros, seus pares. So eles: Velso Ribas, Joo Batista de Andrade, Miguel Olmpio e Arnaldo Bertone, alm de Elmar de Oliveira e Almir Dutton, que sempre se esforaram pela nossa unio.
Agradecimentos Aos que acreditaram no projeto e o incentivaram de todas as formas. Agradecemos pela confiana depositada no projeto. A todos os que colaboraram e enviaram seus relatos muitas vezes escritos com o sofrimento e a angstia da recordao. Aos que batalharam para que esta publicao fosse concretizada. Agradeo, eu, Eli Eliete imensa colaborao do Lo, meu companheiro, amante e segurana, sem a qual no sei se seria possvel a concluso deste trabalho. Agradecemos ao Presidente da Comisso de Anistia, Paulo Abro, e ao ento Ministro da Justia, Tarso Genro, que aceitaram o desafio de editar este livro que conta, com nossas prprias palavras, a nossa Histria.68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosreCoNHeCiMeNToS
Sumrio
introduo Eliete Ferrer PanoraMa HistriCoGnero, militncia, tortura 32
Ceclia Coimbrao Golpe no comeou em 1964
39
Leoncio de Queiroz1968 a dcada do caos
48
Mario Japa, Chizuo Osavabrasil, 1968: o assalto ao cu, a descida ao inferno
53
Mrio Maestri relatos 1 - Ligas Camponesas / Marinheiros1.1 - o tribuno Francisco Julio
57
Marcelo Mrio de Melo1.2 - resistncia ao golpe
65
Antonio Duarte
68
18
2 - Gerao Rebelde2.1 - Gerao 1968 e avalanche cultural
Leoncio de Queiroz2.2 - Paissandu e oklahoma
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Eliete Ferrer2.3 - Meu amigo elmar
73
Affonso Henriques; Lucio Sattamini; Fernando Silva; Jean Marc von der Weid; Lavnia Borges; Amaro Bittencourt; Eliete Ferrer 3 - Cultura3.1 - o CPC da une 7919
Leoncio de Queiroz3.2 - Paulo Freire
86
Airton Queiroz 4 - O Golpe (1964)4.1 - aquele primeiro de abril
87
Ivan Cavalcanti Proena4.2 - sede da une
90
Luiz Alberto Sanz4.3 - incndio no prdio da une
96 99SUMrio
Eduardo Benevides; Luiz Alberto Sanz; Ronald Lobato4.4 - Quem eram os verdadeiros...
Jos Flamarion Pelcio Silva4.5 - Prova do crime
104
Milton Coelho da Graa4.6 - Perda de memria
10668 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Jos Flamarion Pelcio Silva4.7 - dois amigos
107
Mario Marcio Damasco4.8 - Primeiro de abril de 1964
108
Urariano Mota
110
4.9 - ramos mais do que sabamos...
Jos Flamarion Pelcio Silva4.10 - Gregrio bezerra: armas e chocolates
115
Marcelo Mrio de Melo4.11 - a luta continua
117
Tnia Marins Roque 5 - Movimento Estudantil depois do Golpe5.1 - Primeiro d.a. livre da FnFi
119
Tnia Marins Roque5.2 - ueG, hoje uerJ - sonhos
126
Susan Guggenheim 6 - A Opresso da Ditadura6.1 - o tigre
128
Leoncio de Queiroz6.2 - as marquises de niteri
131
Aluzio Palmar6.3 - o difcil caf com po
133 140
Cldice N. Diniz6.4 - 1964 - Motivo
Francisco Manuel Leite Pinheiro6.5 - Perseguio
147
Paulo de Tarso Carvalho6.6 - Febeap da ditadura
148
Emilio Mira y Lopez6.7 - otto Maria Carpeaux
150
Emilio Mira y Lopez; Arthur Poerner 7 - Invaso da Medicina (1966)7.1 -invaso da Medicina
153
Leoncio de Queiroz
154
20
8 - Morte do Che (9/10/1967)8.1 - Che - um homem sem fronteiras
Marilia Guimares8.2 - Che vive!
156
Marcos Arruda 9 - Morte do Edson Lus (28/3/1968)9.1 - a morte de edson lus
158
9.2 - sardinha no Calabouo
Adair Gonalves Reis 10 - Passeatas, Manifestaes, Aes10.1 - a culpa foi de Monteiro lobato
164
Alfredo Lopes10.2 - 1968 - dia de manifestao
165
Francisco Manuel Leite Pinheiro10.3 - 1968: Quarenta anos depois
170 170
Maria Clara Lucchetti Bingemer10.4 - Quimbanda contra opresso
Arthur Poerner10.5 - braslia, quinta-feira, 29 de agosto de 1968
172SUMrio
Memlia Moreira10.6 - Cad a massa
177
Renato Mayer10.7 - vemaguet revolucionria
17968 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Gil Vicente N. Simes10.8 - Passeata dos cem mil
180
Dalva Bonet
181
21
Airton Queiroz
161
11 - A Batalha da Maria Antnia (3/10/1968) e o Congresso de Ibina (12/10/1968)11.1 - eu tinha 20 anos...
Mrio Albuquerque11.2 - torturadores tambm tinham medo
184
Cldice N. Diniz11.3 - cido
188 190
Mrio Albuquerque11.4 - Maria antnia, 68
Risomar Fasanaro11.5 - uma viagem atribulada
191
Roberto Menkes11.6 - ibina
195
Jean Marc von der Weid 12 - O AI-5 (13/12/1968)12.1 - normal s a vitria da Mangueira
199
Arthur Poerner12.2 - Hino nacional
221
Adair Gonalves Reis12.3 - na faculdade de economia
223 225
Gil Vicente N. Simes12.4 - origem de algumas distores nas leituras de 1968
Alpio Freire12.5 - Clandestinidade na ilha de santa Catarina
227
Derlei Catarina de Luca12.6 - Meu pai benjamim
232
Velso Ribas 13 - Opes de Luta e Militncia13.1 - Jamais catuque a ona com vara curta
237
Joo Batista de Andrade
240
22
13.2 - tempos de opo
Gil Vicente N. Simes13.3 - o baile do esqueleto
248 249
Aluzio Palmar13.4 - nossa poltica externa
Mario Japa, Chizuo Osava13.5 - luta sindical
250
Delson Plcido13.6 - Hlio Pelegrino, um captulo mpar em 1968
25623
Emilio Mira y Lopez13.7 - Causos da resistncia ditadura
258
Ronald Lobato 14 - Clandestinidade e Solidariedade14.1 - nome falso: um adjetivo
261
Victria Grabois14.2 - seu andrade, o ibadiano
265
Jos Flamarion Pelcio Silva14.3 - raquel, a viva
268 269
Urariano Mota14.4 - a primeira noite na clandestinidade
14.5 - tudo comea onde termina
Arnaldo Agenor Bertone14.6 - Gerao 68
275
14.7 - exlio em so Paulo
Urariano Mota14.8 - at sempre, leda!
281
Pedro Viegas
282
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Maria Lucia Dahl
279
SUMrio
Julio Csar Senra Barros
273
14.9 - 1971
Marco Albertim14.10 - Casamento perigoso
283
Lao-Tsen de Arajo Dias14.11 - Macarro de molho
289
Tnia Marins Roque14.12 - encontro com apolnio
291
Umberto Trigueiros14.13 - trilhas
292 294
Pedro Albuquerque14.14 - spaghettilndia
Juarez Ferraz de Maia14.15 - operao salvamento
306
Pedro Viegas 15 - Luta Armada15.1 - resistncia
312
Neguinho, Antonio Geraldo Costa15.2 - Primeira ao
314
Leoncio de Queiroz15.3 - Guerrilheiro assassinado
316 321
Colombo Vieira de Sousa Jnior15.4 - incios da aln no rio
Jos Pereira da Silva15.5 - o carro pagador do iPeG
322
Sergio Granja15.6 - expropriaes e dinheiro
325
Marcelo Mrio de Melo; Jos Pereira da Silva; Zenaide M. de Oliveira15.7 - Finanas do M.a.r.
329
Jlio Csar Senra Barros
330
24
15.8 - um carro em sampa
Jos Pereira da Silva15.9 - ribeira
331
Roberto Menkes15.10 - treinamento em Cuba
332
Jos Pereira da Silva15.11 - no dia em que o Marighella foi morto
337
Rose Nogueira15.12 - o coldre
33925
Z Gradel15.13 - Movimento estudantil e sequestro
341 342
Colombo Vieira de Sousa Jnior15.14 - nossa luta
Pedro Viegas 16 - Prises / Violncia Institucional / Terror de Estado16.1 - o terror de estado
344
Ceclia Coimbra16.2 - saquinho de mel - bacuri
347
Jlio Csar Senra Barros16.3 - o violo e o tapa
351 352
16.4 - a mala
Ferrer da Cunha16.5 - Me coragem
355
16.6 - Medo
Cldice N. Diniz16.7 - doce pssaro da juventude
365
Lilian Newlands
366
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Yara Falcon
363
SUMrio
Marco Albertim
16.8 - Mdicos e resistncia
Miguel Olmpio Cavalcanti16.9 - exlio dentro de seu prprio pas
369
Tnia Marins Roque16.10 - Memria, esquecimento e verdade
375
Victria Grabois16.11 - 1969
379
Dalva Bonet16.12 - o dia em que o Che foi encontrado em osasco
382
Risomar Fasanaro16.13 - tortura e eliminao fsica
384 391
Ana Muller16.14 - operrio, estudante, comunista
Roque Aparecido da Silva16.15 - dcada de 70 - confiana
392
Francisco Manuel Leite Pinheiro16.16 - Queimaram o filme do Joo Cndido
398
Silvio Tendler16.17 - demnios logrados
401
Inz Olud da Silva16.18 - 1970 - abril entrincheirado
403
Marilia Guimares16.19 - Final de Copa do Mundo
406
Urariano Mota16.20 - o pijama
409
Emilio Mira y Lopez16.21 - Mdico na tortura
415
Marcos Arruda16.22 - Fragmentos
418
Norma Bengell
419
26
16.23 - natal 1971
Memlia Moreira16.24 - deciso que marcou minha vida
421
Jos Pereira da Silva16.25 - desabafo
422
Marcelo Mrio de Melo16.26 - tinha uma pedra no meio da chuva
431
Risomar Fasanaro16.27 - agitao no salo de tortura
43227
Affonso Henriques Guimares Correa16.28 - baro de Mesquita
438
Colombo Vieira de Sousa Jnior16.29 - a morte de odijas Carvalho
440
Claudio Gurgel16.30 - Priso e tortura no ar
441
Jos Duarte dos Santos16.31 - Morte do Jango
443
Joo Otvio Goulart Brizola 17 - Solidariedade e Camaradagem no Crcere17.1 - o compartilhar do po
445
17.2 - verso & reverso
Jos Flamarion Pelcio Silva17.3 - Memrias da ilha das Flores
455 456
17.4 - Mrio alves presente
Affonso Henriques Guimares Correa17.5 - as mes dos presos
463
Marcelo Mrio de Melo
465
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Francisco R. Mendes
SUMrio
Pedro Alves
446
17.6 - resistir
Newton Leo Duarte 18 - Sequestros18.1 - onde foi que voc escondeu o embaixador?
466
Gregrio Banar18.2 - os que no foram trocados por embaixador
468
Affonso Henriques Guimares Correa18.3 - nome na lista
471 472
Adair Gonalves Reis 19 - Retiradas19.1 - Junho de 1970, a retirada
Antonio Duarte19.2 - a sada
474
Roberto Menkes19.3 - Mendiga contando a outros onde encontrar o po
477 480
Nria Mira Ruelis19.4 - brasil 4 x 1 tchecoslovquia
Srgio Valena19.5 - viagem ao exlio
482
Antonio Duarte 20 - Exlio20.1 - exlios
494
Jaime Wallwitz Cardoso20.2 - Passaporte para o mundo
501
Eliete Ferrer20.3 - vida no exlio
506 518
Velso Ribas; Eliete Ferrer; Eduardo Benevides; Aurlio Ferreira20.4 - Fui para o exlio com sete filhos
Thereza Rablo
521
28
20.5 - Claros sonmbulos da noite
Guilem Rodrigues da Silva 21 - Uruguai21.1 - na cama do Ch
527
Leoncio de Queiroz21.2 - Mr-8 no Chile ou Jango no uruguai?
528
Ivan Pinheiro 22 - Arglia22.1 - arglia
53029
Lia, Maria do Carmo Brito22.2 - arglia e Cuba
533
Marco Antonio Meyer 23 - Chile23.1 - na sombra da cordilheira
535
Jean Marc von der Weid23.2 - riihue
537
Wilson Barbosa23.3 - 45 dias prisioneiro da Junta Militar no Chile
540 565SUMrio
Luiz Carlos Guimares23.4 - eu estive presa no estdio nacional do Chile
Solange Bastos23.5 - Chile - algumas lembranas
573
Ubiratan Kertzscher23.6 - Me durante exlio
57768 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Tereza Cristina de Siqueira Cavalcanti23.7 - terremoto ou bombardeio
585
Eliete Ferrer23.8 - embaixada do Panam
590
Lia, Maria do Carmo Brito
592
24 - Argentina24.1 - eb em buenos aires
Inz Olud da Silva24.2 - salva pelo gongo
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Inz Olud da Silva 25 - Panam25.1 - salsa panamenha
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Dalva Bonet 26 - Inglaterra26.1 - viva o reino unido
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Dalva Bonet26.2 - Muammar al-Qadhafi
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Dalva Bonet 27 - Frana27.1 - lembranas de nova iorque
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Sergio Granja27.2 - revendo amigos na Frana
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Pedro Alves 28 - Sucia28.1 - asilo poltico na sucia
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Guilem Rodrigues da Silva28.2 - a sucia era sinnimo de fim do mundo
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Guilem Rodrigues da Silva28.3 - escolha - acolhida na sucia
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Juca, Jos Alves Neto28.4 - a dor da perda
Francisco R. Mendes
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28.5 - sobre o brasil minha pequena
Guilem Rodrigues da Silva28.6 - amo a sucia
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Eliete Ferrer28.7 - guisa de crnica de natal
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Guilem Rodrigues da Silva28.8 - saudades do olof Palme
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Eliete Ferrer28.9 - boal em estocolmo
63931
Francisco Alencar28.10 - volta e reviravolta
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Eliete Ferrer 29 - Sua29.1 - Flores para simonsen
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Guido Rocha29.2 - sua sem acar
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Nelson Serathiuk 30 - Angola30.1 - Meus golpes
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ePloGosem saudades68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Wilson Barbosa suPleMentossiglas Colaboradores
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673 675
SUMrio
Mario Japa, Chizuo Osava
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introduoelieTe Ferrer
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aPresentao 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo compe-se de histrias reais ocorridas desde 1964 at a abertura poltica - nas reunies, na militncia, nas manifestaes, nas discusses, na priso, nas aes armadas ou no, nos treinamentos, na clandestinidade, no Brasil ou no exterior, no exlio. Aqui, so descritos acontecimentos interessantes de que o colaborador tenha participado ou que tenha presenciado. Episdios, momentos ntimos; aquilo que se conta quando se singular que o autor vivenciou ou a que tenha assistido; recortes de memria; reminiscncias, fatos apresentados sob uma tica peculiar; partculas da realidade vivida por cada um; fragmentos relevantes da nossa vivncia na luta por um Brasil melhor. H todo tipo de relatos: srios, engraados, trgicos, pitorescos, dramticos, emocionantes ou no, simples. Com esse livro pretendemos preservar a memria de uma poca e transmitir seu clima, assim como as emoes e esperanas que eram ento compartilhadas, s novas geraes, aos nossos filhos e netos. O diferencial de 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo caracteriza-se pela revelao do lado humano e afetivo daqueles que no aceitaram a prepotncia do Golpe de 64, concebido e engendrado nos Estados Unidos. Os golpistas rasgaram a Constituio e depuseram o presidente legalmente eleito. O Terror de Estado implantado pela ditadura perseguiu, sequestrou, torturou, assassinou e ainda criou a figura do desaparecidoiNTroDUo
poltico. Considerando que nossa ideia criou razes no mbito do Grupo Os Amigos de 68, esclarecemos que alguns textos aqui publicados nasceram no calor da discusso, foram extrados da troca de mensagens entre seus integrantes e refletem nossa preocupao
68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo mostra a voz daqueles que, militantes ou no, reagiram e se rebelaram contra os usurpadores do poder, j que este trabalho constitudo de flagrantes de lembranas, de cenas vistas por um olhar individual. Seu foco so as experincias pessoais entremeadas de breves contextuaes histricas. De fato, a luta contra a ditadura foi o primeiro movimento social rebelde de abrangncia nacional.
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
com a Memria Nacional.
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est em uma roda de amigos; aquilo que ainda no foi narrado; aquela circunstncia
Somos 100 colaboradores. 100 personagens. Cada pgina um testemunho vivo de eventos autnticos, pequenos detalhes, retratos instantneos de um perodo que marcou nossa gerao, indignada com as arbitrariedades estabelecidas pelos golpistas. Aqui, focalizam-se e revelam-se ngulos da nossa disposio, da nossa esperana no futuro. Cada pessoa um exemplo real da histria de todos. Cada vivncia um retrato da humanidade. 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo destina-se a todos os que querem saber mais um pouco a respeito das nossas lutas por um mundo melhor, aos que querem conhecer mais aqueles que se revoltaram contra a ordem imposta pela tirania dos que se apropriaram da mquina estatal. Destina-se a leitores de todas as geraes, especialmente, aos mais jovens que somente ouviram falar que, certa vez, recentemente, muitos brasileiros estiveram unidos contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado. Esperamos que o conhecimento proporcionado pela publicao desta obra, junto com a abertura dos arquivos secretos da ditadura, contribua para que esses fatos nunca possam ocorrer novamente.
GruPo os aMiGos de 68 O Grupo Os Amigos de 68 um grupo virtual, criado em junho de 2006 que, sempre com bom humor, congrega, pela Internet e por meio de encontros polticos, amistosos, calorosos e recreativos, amigos ex-militantes que participaram da luta por uma sociedade mais justa e do enfrentamento e resistncia opresso dos que subverteram a ordem constitucional. O Grupo Os Amigos de 68 promove a unio de antigos combatentes de todas as frentes de luta contra a ditadura, em todas as suas fases, correntes e modalidades. Perseguidos pela represso, muitos de ns fomos presos e exilados, temos amigos ou familiares mortos e desaparecidos. O Grupo Os Amigos de 68 rene brasileiros que ousaram resistir ditadura e exerceram o legtimo direito universal, humano, de reagir contra a tirania instaurada no Brasil a partir de 1 de abril de 1964. O direito de rebeldia faz parte da histria da humanidade.
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Nosso objetivo principal criar um processo permanente de encontros reais e virtuais, visando cultivar e desenvolver as razes comuns e os laos de amizade e solidariedade que nos unem, respeitando e admirando a diversidade e as diferenas que o tempo e a vida cultivaram em cada um de ns. Somos cerca de 300 integrantes oriundos de muitas partes do Brasil, residentes aqui e no mundo. Temos associados que moram na Sucia, na Frana, no Canad, nos Estados Unidos, na Blgica, em Portugal, na Sua, na Dinamarca e na Itlia. De dentro do Brasil temos companheiros nas seguintes cidades: Rio de Janeiro, Recife, Niteri, So Paulo, Goinia, Fortaleza, Vitria, Braslia, Belo Horizonte, Salvador, Joo Pessoa, Olinda, Porto Alegre, Aracaju, Macei, Osasco, Araatuba, Campinas, Uberlndia, Ribeiro das Neves, Foz do Iguau, Curitiba, Cricima, Ribeiro Preto, Itapu, Armao de Bzios, Maca, Guarapari, Juiz de Fora, Valena, Maric, Sorocaba, So Bernardo do Campo, etc. Costumamos dizer que somos um Grupo descontrado, alegre, afetivo e cheio de informao. realmente emocionante usufruir de um espao como o do Grupo Os Amigos de 68 e poder rever velhos companheiros e apia-los, trocar carinhos, notcias, planejar outros encontros, discutir assuntos atuais, promover eventos e sonhar com o futuro, pois ainda queremos mudar o mundo.iNTroDUo
HistriCo A ideia deste livro nasceu em fins de 2006, quando integrantes do Grupo Os Amigos de 68 homenagearam nosso companheiro Elmar de Oliveira na Taberninha da Glria. Era novembro e o Elmar tinha feito a grande viagem. O encontro foi muito afetivo, alguns discursaram e muito se falou do Elmar, da Cinemateca do MAM, das lutas contra a ditadura, do companheirismo, das reunies, da militncia, dos exlios, do exlio do Elmar em Mar de Espanha. Todos no se cansaram de afirmar
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
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que o Elmar era grande amigo e agregador - um exemplo de solidariedade. Ele sempre procurou aquilo que unia, sempre buscou a congregao de todos. Conclumos, naquele dia, mais uma vez, que tnhamos que dar incio a um Livro de Memrias, que deveria estar pronto at meados do ano seguinte para ser editado e lanado no incio de 2008, quando o pice do nosso movimento completasse 40 anos. A maneira como devemos passar nossas vivncias para os nossos filhos e netos sempre foi motivo de preocupao para ns, atentos ao que ensinado nas escolas, inquietos com a desinformao geral dos jovens. Pensamos em registrar, ns mesmos, nossas experincias em uma coletnea que contivesse parte da Histria do Brasil contada pelos prprios participantes, onde nosso lado humano e afetivo fosse sua caracterstica essencial e se mostrasse presente em cada vrgula, em cada palavra ou pargrafo. Formou-se um grupo interessado nos cuidados com a publicao, que participaria da seleo dos trabalhos que, depois de revisados, entrariam na composio do nosso livro: Beth Mller, Chiquinho Roberval Mendes, Colombo Vieira, Eliete Ferrer, Jaime Wallwitz Cardoso (Jaimo), Leoncio de Queiroz (Lo), Newton Leo Duarte e Z Gradel. O Lo elaborou o projeto. Eu, Eli, fiquei responsvel pelo recebimento, reviso e edio dos textos, alm de coordenar e organizar o livro. Meu grande desafio consistiu em convencer as pessoas a que escrevessem e enviassem seus relatos em tempo. Pela alta qualidade dos relatos recebidos por mim, todos foram aproveitados. Ressalto a inestimvel atuao de Julio Csar Senra Barros no intuito de publicar nosso livro, o esforo incansvel de Emilio Mira y Lopez e Marlia Guimares com esse mesmo objetivo, assim como a tentativa de Roberto Menkes e a ateno de Robson Achiam. Destaco o carinho do meu amigo Arthur Bosisio por seus preciosos conselhos. Nosso livro passou a chamar-se 68 A Gerao que Queria Mudar o Mundo.
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Panorama HistricoCeClia CoiMBra leoNCio De QUeiroz Mario JaPa, CHizUo oSaVa Mario MaeSTri
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Gnero, MilitnCia, tortura Ceclia Coimbra39
Lembra daquele tempo Que sentir era A forma mais sbia de saber E a gente nem sabia?(Alice Ruiz)PaNoraMa HiSTriCo - GNero, MiliTNCia, TorTUra
Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de forma um tanto frentica, pois tudo nos parecia urgente de ser realizado, sem cair em uma espcie de saudosismo conservador, um desafio. Desafio que aceitamos ao tentar trazer alguns fragmentos de uma histria que ser no somente minha, mas de uma gerao que generosamente sonhou, ousou, correu riscos e, como a peste, foi marcada, massacrada e exterminada: uma gerao que, apaixonadamente, nos anos 60 e 70, caracterizou-se no pela mesmice, pelo institudo, pelo conformismo, mas, ao contrrio, pela denncia, pela desmitificao, pela criao de novos espaos.
sobreviveram, dos que sucumbiram e por que no? dos que, muitas vezes, aterrorizados, assistiam e/ou passavam ao largo desses mesmos acontecimentos. Trazer esses tempos de militncia descritos aqui, inicialmente, como um tanto eufricos e mesmo despreocupados, pois, sem dvida, acreditvamos e pensvamos poder mudar o mundo e, posteriormente, como tempos sofridos e dolorosos, quando recrudesceu o
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
Este livro compe-se, portanto, de muitas outras seqncias de aes: dos que
massacre, o extermnio caminhar num fio de navalha, numa corda bamba. Esse equilibrismo auxiliado pelas palavras do poeta Paulinho da Viola quando do lanamento de um filme documentrio sobre sua obra. - uma coisa muito minha ter essa sensao de que todas as coisas que eu vivi, experimentei, senti ou vi esto agora aqui comigo. Contar essas memrias significa, sem dvida, tentar navegar por outras histrias, diferentes da oficial que nos tem sido apresentada e afirmada como nica e verdadeira. H relatos que atravessam e constituem todos ns, mesmo os que no tiveram com aqueles tempos implicaes to intensas ou que neles no viveram. O conhecimento do passado que nos tem sido imposto seleciona e ordena os fatos segundo alguns critrios e interesses e, com isso, constri zonas de sombras, silncios, esquecimentos, represses e negaes. A memria oficial tem evidenciado, portanto, seu lado perverso, pelas prticas dos vencedores com o intuito de apagar os vestgios que os tornados subalternos e os opositores, em geral, tm deixado ao longo de suas experincias de resistncia e luta. A verso oficial tem engendrado distores, estimulado a ignorncia a respeito dos embates ocorridos em nosso pas, como se os vencidos no estivessem presentes no cenrio poltico e, ainda, apaga, at mesmo, seus projetos e utopias. Entretanto, apesar desse poderio, no tem sido possvel ocultar ou eliminar a exposio cotidiana de outras realidades. No obstante essas estratgias de silenciamento e acobertamento, outros fatos vazam, escapam e, de vez em quando, reaparecem, invadindo muitos de ns. Por isso, falar deles afirmar/fortalecer experincias ignoradas, desqualificadas, negadas. Toda uma gerao de jovens estudantes, intelectuais e artistas e ali estava eu vivemos intensamente o alegre e descontrado incio da dcada de 60, continuao do que ficou conhecido como os famosos anos dourados os anos 50 da Bossa Nova, do bemhumorado e sorridente presidente JK, Juscelino Kubistcheck que governou o pas de 1956 a 1961. Aqueles tempos destacaram-se pela implementao de projetos das chamadas reformas de base e de desenvolvimento nacional, frente ao reordenamento monopolista do capitalismo internacional, o que gerou uma poltica populista dos governos de Jnio Quadros at 1961 e Joo Goulart de 1961 a 1964.
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Nesse quadro, fortaleceram-se diferentes movimentos sociais direcionados para a chamada conscientizao popular. Sem dvida, foram anos marcados pelos debates em torno do engajamento e da eficcia revolucionria, onde a tnica era a formao de uma vanguarda e seu trabalho de conscientizar as massas para que pudessem participar do processo revolucionrio. A efervescncia poltica, o intenso clima de mobilizao e os avanos na modernizao, industrializao e urbanizao que configuravam o perodo traziam, necessariamente, as preocupaes com a participao popular. Ressoavam muito prximos de ns os ecos da vitoriosa Revoluo Cubana, que passou a embalar toda uma juventude e grande parte da intelectualidade latino-americana, como o sonho que poderia tornar-se realidade. Aqui no Brasil, a despeito de toda uma poltica populista, os grupos dominantes, muitos aliados aos capitais estrangeiros, mostraram-se incapazes de formular uma poltica autnoma. Assim, surgiram presses em diferentes reas, apesar de muitos desses movimentos serem alimentados pelo prprio governo populista/desenvolvimentista de Joo Goulart. Foi a poca do Centro Popular de Cultura da UNE, dos Cadernos do Povo Brasileiro, de filmes como Cinco Vezes Favela e do, ento, inacabado Cabra Marcado para Morrer. A finalidade era educar o povo por meio da arte. No nordeste, Francisco Julio e as Ligas Camponesas incendiavam com sonhos de liberdade e de reforma agrria os pequenos camponeses da Zona da Mata. Diferentes experincias com alfabetizao de adultos eram realizadas, desde Com Ps Descalos Tambm se Aprende a Ler, no Rio Grande do Norte, passando pelo Movimento de Cultura Popular, em Pernambuco, at o Programa Nacional de Alfabetizao de Paulo Freire, em Pernambuco e Rio de Janeiro. Tratava-se, sem dvida, da produo de territrios singulares, ainda marcados, muitos pela gerao de 68. Provavam-se e aprovavam-se novos valores e padres de comportamento, especialmente entre a juventude e a intelectualidade militante. A participao das mulheres passava a ser, gradativamente, valorizada, no somente em sua profissionalizao, mas, principalmente, no seu engajamento poltico, a despeito de todos os limites que ainda eram impostos pelos companheiros de militncia. Por exemplo, as tarefas reservadas s mulheres na militncia, com rarssimas excees, eram as que sempre foram desempenhadas secularmente por elas. Em uma reunio poltica clandestina68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - GNero, MiliTNCia, TorTUra
deles, pela sisudez, rigidez e stalinismo vigentes no perodo e que foram radicalizados
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de que participei, minha funo era para disfarar cozinhar para os companheiros. Contudo, o casamento deixava, aos poucos, de ser para ns a nica perspectiva honrada de independncia familiar. Explorvamos novos caminhos onde se tornava fundamental a satisfao pessoal nos mais diferentes relacionamentos, desde a sexualidade at o trabalho, que deixava de ser mera ocupao, por vezes provisria, para tornar-se via legtima de realizao pessoal e afirmao da prpria independncia. A reproduo tornava-se uma opo nos debates travados em torno do direito ao aborto e ao uso da plula anticoncepcional. A sexualidade expandia-se para alm dos limites do casamento e a monogamia teve sua discusso iniciada. O tabu da virgindade caa por terra. As relaes entre homens e mulheres eram pensadas de forma um pouco mais igualitria. Luiz Carlos Maciel, no livro Anos 60, afirmou: - Queramos mudar o mundo, era a nossa questo bsica; mais: tnhamos a certeza de que isso ia acontecer (...) No nos passava pela cabea que o ser humano pudesse passar seu tempo de vida sobre a terra, alheio aos problemas sociais e polticos; esta era para ns a pior das alienaes. Foi assim que, nos anos 60, produziu-se uma arte poltica, uma cultura voltada para a questo social. Muitos da gerao comprometeram suas vidas com a poltica e seu modo especfico de encarar a realidade. O pacto populista entre o governo de Joo Goulart e os setores populares comeou a se tornar perigoso para a expanso monopolista do capital estrangeiro. Foi engendrado o golpe militar de 64, quando as foras armadas ocuparam o Estado para servir a tais interesses. Para isso, como preparao de terreno, uma intensa campanha se desenvolveu desde os anos 50, por meio da qual se construa a figura do comunista como o traidor da ptria. O fantasma do comunismo ameaava e rondava as famlias brasileiras; era necessrio esconjur-lo, estar sempre alerta para que a ptria, a famlia e a propriedade continuassem territrios sagrados e intocveis por tal peste. No foi por acaso que o golpe de 1 de abril de 1964 teve o apoio de significativas parcelas das classes mdias que denunciavam o avano do comunismo na sociedade brasileira e exigiam um governo forte. E, a despeito do golpe e da intensa propaganda anticomunista, das prises, das cassaes, dos primeiros desaparecimentos em especial, entre operrios, marinheiros e camponeses havia, ainda, grande difuso de toda aquela postura participante e conscientizadora, no perodo entre o golpe e o Ato Institucional n 5, de 1968.
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Ocorriam espetculos tudo em circuito fechado peas de teatro, filmes, at que, em incio de 68, as passeatas estudantis tomaram conta das ruas nas principais capitais do pas, culminando com a famosa Passeata dos Cem Mil, realizada no Rio de Janeiro, em junho do mesmo ano. Em outubro, aconteceu o clebre congresso clandestino da UNE, em Ibina, So Paulo, estourado pela polcia, quando cerca de 700 estudantes foram presos. As greves operrias em Contagem e Osasco, com a ocupao de algumas empresas pelos trabalhadores, apontavam segundo algumas leituras da poca para o enfrentamento com o regime. A represso agia de forma cada vez mais violenta e mostrou um de seus aspectos mais agressivos: os grupos paramilitares. Bombas foram colocadas em teatros do Rio e So Paulo, em editoras, jornais, espaos culturais e faculdades. Sucederam-se seqestros, espancamentos de artistas e estudantes. A pea Roda Viva foi proibida em todo o territrio nacional. Houve denncia do envolvimento e utilizao de uma tropa de elite da Aeronutica (o PARASAR) na prtica de aes criminosas e atos terroristas contra alguns dos opositores do regime. Estava sendo armada a cena para o grande amordaamento: o golpe dentro do golpe, o inaugurou os terrveis e dolorosos anos 70. A partir da, o regime militar consolidou a sua forma mais brutal de atuao por intermdio de uma srie de medidas como o fortalecimento do aparato repressivo, com base na Doutrina de Segurana Nacional. Dessa forma, estava garantido o desenvolvimento econmico com a crescente internacionalizao da economia brasileira e a devida eliminao das oposies internas. Silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado que se instalava; a ditadura sem disfarces.68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - GNero, MiliTNCia, TorTUra
Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968, que encerrou a dcada de 60 e
A censura tornava-se, a cada dia, mais feroz e violenta, pois dificultava e impedia qualquer circulao e manifestao de carter um pouco mais crtico. A televiso passou a ter um grau de eficincia e eficcia internacionais, fabricava e sedimentava valores e padres para um pas que vai pra frente. Muitos passaram a acreditar no Brasil Grande, no progresso, no crescimento, na modernizao, na grande potncia em que iria se transformar nosso pas. Havia, simultaneamente, um profundo conformismo poltico, em que a defesa da ordem, da
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hierarquia, da disciplina, da submisso eram enfatizados, e onde o medo s autoridades dominava a todos, medo que abrangia desde o tratamento de questes mais amplas at problemas triviais do cotidiano. Duas categorias passaram a ser construdas e muito disseminadas naqueles anos 70, no Brasil: a do subversivo ou terrorista e a do drogado, ligadas juventude da poca. A primeira era apresentada com conotaes de grande periculosidade e violncia, porque se revelava como uma ameaa poltica ordem vigente; deveria ser identificada, denunciada, controlada e, se necessrio, exterminada. Tal categoria vinha acompanhada de outros adjetivos como: criminoso, ateu, traidor e prostituta para as mulheres, pois carregava fortes implicaes morais. O subversivo ou terrorista no atuava somente contra o regime poltico, mas contra a religio, a famlia, a ptria, a moral, a civilizao, tornando-se, assim, um anti-social. Estava contaminado por ideologias exticas, por mandatrios de fora. No drogado, o aspecto de doena j estava dado, pois era um ser moralmente nocivo, com hbitos e costumes desviantes. Na poca, as drogas foram associadas a um plano externo para minar a juventude, tornando-a presa fcil das ideologias subversivas. Ento, juntavam-se drogado e subversivo, o que se tornava perigosssimo. Essa juventude que ia para o caminho da subverso e do terrorismo, onde alguns pegaram em armas para lutar contra o regime, advinha, em sua grande maioria, das camadas mdias urbanas, da pequena burguesia, da intelectualidade. Por que se tornavam terroristas, negando suas origens de classe? Esta era uma questo que alguns militares colocavam, em especial, aps o Congresso de Ibina, onde quase 90% dos jovens presos advinham daqueles segmentos. As causas no poderiam estar vinculadas crise da famlia moderna? No seriam esses terroristas jovens desajustados emocionalmente, originrios de famlias desestruturadas? Para provar essas hipteses h muito anunciadas pela mdia acerca dos jovens inocentes teis , em 1970, foi realizada uma pesquisa entre presos polticos, no Rio de Janeiro, com o apoio de psiclogos contratados para tal fim e que ficou conhecida como perfil psicolgico do terrorista brasileiro. Por meio de anamneses, testes objetivos de nvel mental e de interesses e testes projetivos de personalidade como o Rorschach e o Rosenzweig, levantou-se a situao familiar e psicolgica desses presos, suas militncias, o que pensavam fazer ao sair da priso e vrias outras questes.
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As brilhantes concluses dessa pesquisa apresentavam 73% de indivduos com dificuldades de relacionamento, escasso interesse humano e social e difcil comunicao; em suma, pessoas difceis. Alm disso, outras caractersticas lhes foram atribudas: imaturos, desajustados, inseguros, instveis. Portanto, aqueles que se lanavam na resistncia contra a ditadura militar apareciam desacreditados com a pecha de doentes, como casos patolgicos que deveriam ser submetidos a tratamento. Essa pesquisa mostrou no apenas uma necessidade por parte da represso de conhecer melhor os militantes polticos e traar um perfil psicolgico daqueles que estavam sendo combatidos, mas, fundamentalmente, difundir na sociedade, nas famlias de classe mdia e nas mes desses jovens, em especial, a crena de que seus filhos encontravam-se doentes. Elas, em suma, eram as principais responsveis pelos transtornos que esses jovens traziam para a nao. Ao lado dessas tticas repressivas mais sutis e to perversas quanto as utilizadas usualmente, os rgos diretamente vinculados represso sofisticavam-se dia a dia. Em 1964, foi criado o Servio Nacional de Informao, que cresceu a ponto de se transformar na quarta fora armada no uniformizada. De 1967 a 1970, foram estruturados os assim como foras unificadas antiguerrilhas que receberam financiamentos pblicos e privados: os DOI-CODIs (Destacamento de Operaes e Informaes/Centro de Operaes e Defesa Interna) que, em cada regio militar do pas, permaneciam sob a jurisdio do Comando Regional do Exrcito. Tais eram seus poderes que certa anlise poltica falava da existncia de um verdadeiro Estado dentro do Estado. A tortura foi institucionalizada. Os centros de tortura consolidaram-se como um fato real e horripilante. A tortura no quer fazer falar, ela pretende calar e justamente esta a terrvel situao: objeto. Resistir a tal violncia revela-se como enorme e gigantesco esforo para no perder a lucidez, para no permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso esprito, em nosso pensamento. Em especial, a tortura perpetrada mulher mostra-se brutalmente machista. Inicialmente, os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calo ditas agressiva e ferozmente68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - GNero, MiliTNCia, TorTUra
Centros de Informaes do Exrcito (CIE), da Aeronutica (CISA) e da Marinha (CENIMAR),
por meio da dor, da humilhao e da degradao tentam transformar-nos em coisa, em
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caracterizam-se como forma de anular a pessoa, o ser humano, a mulher, a companheira e a me. difcil calcular o nmero daqueles que se opuseram ditadura aps o golpe de 1964, em nosso pas. Mais difcil ainda apontar quantas mulheres participaram desse processo. No Projeto Brasil Nunca Mais, consta que 884 mulheres foram presas e denunciadas Justia Militar poca. Entretanto, acredito que esse nmero seja bem maior, tendo em vista que muitas presas como foi o meu caso no foram levadas Justia Militar e muitas que militaram no perodo no chegaram a ser presas. Alm disso, pelo levantamento feito por entidades de direitos humanos publicado no Dossi dos Mortos e Desaparecidos Polticos a partir de 1964 (1995) h 24 mulheres mortas e 20 desaparecidas, nmeros que consideramos bastante incompletos ainda. Podemos constatar, porm, que no foi pequeno o nmero de mulheres participantes da luta contra o regime militar. Contudo, trabalhos sobre tais experincias so muito escassos. H, sim, livros de terceiros sobre algumas dessas mulheres vivas ou mortas como Iara Iavelberg, Snia Maria de Moraes Angel Jones, Zuzu Angel, Carmela Pezzuti, algumas guerrilheiras do Araguaia, reportagens e trabalhos acadmicos sobre algumas delas. Relatos pessoais das experincias no h nenhum. Ao escrever este artigo, constatei que no existem livros feitos pelas prprias mulheres. Fica a certeza de que essas histrias precisam ser contadas. Entendo que, por mais perigoso, delicado e doloroso que seja o ato de denunciar, de falar sobre as violaes que sofremos, ele o incio de uma caminhada fundamental para que histrica e socialmente possamos conviver com os terrveis efeitos produzidos em ns por semelhantes prticas. A fala, a denncia, o tornar pblico, retiram-nos do territrio do segredo, do silncio, da clandestinidade. Com isso, podemos sair do lugar de vtima fragilizada, impotente e ocupar o da resistncia, da luta, daquele que passa a perceber que seu caso no um acontecimento isolado; ele toma forma, passa a ser parte de outros e sua denncia, esclarecimento, publicizao e responsabilizao abrem espaos e fortalecem novas denncias, novas investigaes. A dimenso coletiva desse caminho se afirma e, com isso, temos a possibilidade de comear a tocar na no responsabilizao, de mostrar que tal quadro pode ser mudado, pode ser revertido. Segundo a interpretao dominante da Lei da Anistia, sancionada em 1979, no governo Figueiredo, em funo dos chamados crimes conexos, todos aqueles que cometeram, em nome da segurana nacional, crimes de lesa humanidade estariam anistiados. Ou seja,
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em cima dessa interpretao, at hoje, nenhum torturador do perodo da ditadura militar foi responsabilizado. Ao contrrio, continuam sendo premiados e, em muitas ocasies, tm ocupado cargos de confiana em governos municipais, estaduais e no federal. Histrica e socialmente, a no publicizao e a no responsabilizao produzem uma dupla violao: alm da que foi sofrida se nenhuma atitude for tomada por parte do afetado e/ou autoridades a pessoa continua no dia a dia sendo violentada. O desrespeito pela falta de investigao e esclarecimento dos fatos e a falta de publicizao e responsabilizao significam uma nova brutalidade. No por acaso que alguns atendimentos clnicos a pessoas afetadas pela violncia institucionalizada articulam-se com a luta contra a impunidade e tm um carter pedaggico-social. A prpria concepo de superao dos efeitos produzidos por essas prticas de violao vinculam-se, portanto, s lutas poltico-sociais, como o combate contra a impunidade e por uma sociedade sem torturas. Trecho extrado de depoimento de um ex-preso poltico:PaNoraMa HiSTriCo - GNero, MiliTNCia, TorTUra
- Infelizmente, setores importantes da sociedade no tm a menor ideia de que significa tortura (...) Tortura uma das prticas mais perversas: a submisso do sujeito ao lhe ser imposta a certeza da morte. No uma morte qualquer: a morte com sofrimento, a morte com muita agonia, a morte que ocorre bem devagar, porque o desespero deve ser potencializado. O choque eltrico rasga, como golpes, as entranhas do indivduo e o corao parece que vai explodir. O afogamento, mescla de gua e ar, a conscincia da parada cardaca, a dor dos pulmes que vo encharcando. O pau de arara, o cigarro aceso queimando a pele e a carne. Vrias horas seguidas e em vrias horas do dia, da noite, da madrugada. Desde 1992, funciona no Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, seu projeto Clnico-Grupal: uma atingidas direta e/ou indiretamente pela violncia institucionalizada ontem e hoje. Este projeto, alm do atendimento, hoje no Rio de Janeiro a 95 pessoas, preocupa-se tambm com a questo da formao, e organiza cursos, oficinas, seminrios para se pensar a questo da violncia, da clnica e dos direitos humanos hoje em uma sociedade globalizada de controle neoliberal.
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
equipe de psiclogos, psicanalistas, psiquiatras e fisioterapeutas que atende a pessoas
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Infelizmente a prtica hedionda da tortura continua, ainda hoje, ocorrendo em nosso pas de forma sistemtica e generalizada, principalmente para as camadas empobrecidas da populao.
o GolPe no CoMeou eM 1964 Leoncio de Queiroz
Na Repblica Velha, o voto no era universal nem secreto. Analfabetos e mulheres no votavam. No havia urnas onde o voto fosse depositado em um envelope fechado. O eleitor registrava seu voto em um livro, geralmente sob a superviso do cacique local. Alm disso, depois de eleitos, os candidatos tinham de passar por um crivo denominado, ento, de reconhecimento dos poderes, isto , podiam ser aceitos ou degolados conforme a convenincia da maioria da Assembleia Legislativa ou do Congresso eleito. O resultado era uma imbatvel oligarquia de latifundirios os coronis , dominada por Minas Gerais e So Paulo, que se revezavam no poder. No havia limite jornada de trabalho, nem proibio de trabalho infantil, nem estabilidade no trabalho, nem frias, nem 13 salrio, nem indenizao trabalhista, nem aposentadoria. A revoluo de 30 foi o principal marco na Histria do Brasil depois do descobrimento. Representou uma transformao sem precedentes, muito mais significativa do que a Independncia ou a Proclamao da Repblica. Com ela, o coronelismo rural perdeu sua hegemonia e pde esboar-se um incio de industrializao. Foi Getlio Vargas quem criou o Estado brasileiro como ele existe hoje e lanou as bases ainda vigentes da democracia burguesa. Embora o voto universal que inclui os analfabetos s tenha sido incorporado na Constituio de 1988, a eleio para a Assembleia Constituinte, em 1933, foi a primeira realizada com os votos femininos e por meio de voto secreto, assim como a primeira em que as mulheres puderam candidatar-se. O Governo do Getlio criou a Legislao Trabalhista e a Justia do Trabalho para garanti-la. Instituiu as frias, a estabilidade, a jornada de trabalho de oito horas, criou os institutos de previdncia e proibiu o trabalho infantil. Getlio nacionalizou o subsolo brasileiro (os recursos minerais) e fundou a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Siderrgica Nacional (CSN) e a Fbrica Nacional de Motores (FNM). A construo da CSN e da FNM foi negociada com o governo de Franklin Roosevelt, que se comprometeu a fornecer a tecnologia e os financiamentos necessrios em troca da adeso brasileira aos pases aliados na Segunda
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Guerra Mundial e a permisso para instalar uma base area dos Estados Unidos no Rio Grande do Norte. Nem tudo foram rosas, porm. esquerda dos revolucionrios de 30, organizados na Aliana Liberal, formou-se uma frente, em torno de um programa de contedo antifascista e antiimperialista, liderada pelos comunistas e pelos tenentes revoltosos da dcada de 20, chamada de Aliana Nacional Libertadora (ANL). Lus Carlos Prestes havia liderado a coluna de tenentes rebelados, que ficou conhecida como a Coluna Prestes e que, de 1925 a 1927, percorrera grande extenso do pas, pregando reformas polticas e sociais e dando combate a tropas dos governos de Artur Bernardes e de Washington Lus, para finalmente retirar-se, invicta, para o territrio boliviano. Prestes, que passou a ser chamado de Cavaleiro da Esperana, teve, no exlio, contato com comunistas brasileiros e argentinos e passou a estudar o Marxismo. Quando retornou ao Brasil, j membro do ento denominado Partido Comunista do Brasil (PCB), foi escolhido para a presidncia da ANL. O crescimento vertiginoso deste movimento assustou Getlio, que o colocou na ilegalidade. O PCB e parte do movimento tenentista passaram a planejar uma insurreio popular contra o Governo. Em 1935, ocorreu, prematuramente, em Natal, um levante de tropas do Exrcito que contou com o apoio do PCB local e teve grande adeso da eclodir a insurreio. Houve levantes em guarnies do Recife e do Rio de Janeiro, mas todas essas revoltas foram rapidamente sufocadas. Desencadeou-se, a seguir, uma grande caa aos comunistas, socialistas e membros da ANL. Os dirigentes do PCB foram todos presos. Prestes e sua mulher, a alem Olga Benrio, caram em maro de 1936. A ndoa que denigre o Governo de Vargas consiste na perseguio ANL e nos maustratos e nas torturas infligidas aos comunistas e tenentes aprisionados. Terrveis os relatos da tortura sofrida pelo alemo Harry Berger e sua mulher, Elisa, enviados pela Internacional Comunista para assessorar a direo do PCB. Preso embaixo de um vo de escada, Berger ficava dias sem poder dormir, sendo torturado por meio de um arame enfiado na uretra levou o famoso advogado Sobral Pinto a requerer, em sua defesa, a aplicao da Lei de Proteo aos Animais. Harry Berger enlouqueceu na priso. Prestes passou nove anos em priso solitria. O mais hediondo crime do Governo, entretanto, foi deportar a esposa grvida de Prestes, judia e comunista, entregando-a aos nazistas. Olga foi executada em um campo de concentrao. Leocdia, a me de Prestes conseguiu resgatar e criar a neta Anita Leocdia. O principal responsvel por todas essas atrocidades foi o chefe de68 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - o GolPe No CoMeoU eM 1964
populao. Os comunistas e os tenentes sediciosos, apanhados de surpresa, tentaram
cuja outra ponta era aquecida at ficar em brasa. Era tratado como um bicho, o que
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polcia Filinto Mller, egresso do movimento tenentista. Getlio, contudo, poderia ter-se empenhado em poupar a companheira e a filha do adversrio vencido, mas no o fez. Getlio, portanto, foi um protagonista controverso. Se por um lado perseguiu cruelmente os que estavam sua esquerda, por outro introduziu reformas profundas, iniciou a industrializao e criou instituies que se consolidaram na vida nacional. Tudo sem abalar a hegemonia do capital e do latifndio. Os Estados Unidos nunca lhe perdoariam a nacionalizao do subsolo, que antes era concesso da empresa estadunidense Farquhar, nem a criao da Cia. Siderrgica Nacional, que conferia relativa auto-suficincia industrial ao Brasil. Com o fim da Segunda Guerra, surgiram duas campanhas antagnicas, ambas pela convocao de uma Constituinte: uma por eleies sem Getlio e outra, fortssima, o Queremismo, por eleies com Getlio. Apesar de j haver convocado as eleies, Getlio foi deposto, em outubro de 1945, no auge de sua popularidade, pelos mesmos chefes militares que sempre lhe deram apoio e participaram de seu Governo: Ges Monteiro e Eurico Dutra. pura falcia a verso de que a ditadura de Vargas foi derrubada por um amplo movimento de retorno democracia. Getlio foi removido por seus ministros, que sempre participaram de suas decises e que continuaram dando as cartas. As eleies que se seguiram foram vencidas por Eurico Dutra, unicamente devido ao apoio que este recebeu de Vargas. So paradoxos da poltica brasileira: Getlio apoiou o general que o deps e, anos mais tarde, recebeu o apoio de Prestes, a quem havia perseguido to implacavelmente. Dutra teve um mandato marcado pelo entreguismo, pela subservincia aos interesses dos Estados Unidos, pelo desperdcio das divisas acumuladas durante a guerra com importao de Pirex e Cadilacs, pelo arrocho salarial, pela represso aos sindicatos e por uma feroz perseguio aos comunistas. Estes, que haviam sido anistiados no fim do Governo do Getlio e que puderam participar das eleies, conquistando uma representao significativa na Assembleia Constituinte e, inclusive, a maior bancada na Cmara Municipal do Distrito Federal, foram novamente postos na ilegalidade e tiveram seus mandatos cassados. Em 1950, Getlio candidatou-se reeleio. Carlos Lacerda, um ex-comunista recrutado pela direita, lanava-se como lder do mais histrico golpismo, ao escrever: O Sr. Getlio Vargas, senador, no deve ser candidato presidncia. Candidato, no deve ser eleito.
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Eleito, no deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer revoluo para impedi-lo de governar. Getlio elegeu-se e pde, mais uma vez, governar a favor do progresso. Criou a Petrobrs, instituiu a SUMOC (precursora do Banco Central), debelou o desequilbrio cambial atravs da Instruo 70, limitou a 10% as remessas de lucros das empresas estrangeiras, e aumentou em 100% o salrio mnimo. Tudo isso exaspera a direita, desatina as classes patronais, enfurece o imperialismo e enlouquece os militares golpistas. Estes soltam o hidrofbico Carlos Lacerda, que d continuidade a uma campanha difamatria contra o governo de Getlio. Ocorre, naquele torvelinho, o atentado contra Carlos Lacerda em que morre o major da aeronutica Rubens Vaz. Embora Getlio nada tenha tido a ver com esse fato e a polcia tenha rapidamente elucidado o crime e prendido os culpados, os ataque a ele e o clima golpista se acirram cada vez mais. Pressionado a renunciar, Getlio prefere o suicdio, em 24 de agosto de 1954, causando, assim, grande comoo nacional e profunda consternao no seio do povo. O movimento que articulava a deposio do presidente foi, de um dia para o outro, abafado por um sentimento geral antigolpista e getulista. O suicdio de Vargas atrasou em dez anos a tomada do poder tramada pela direita.PaNoraMa HiSTriCo - o GolPe No CoMeoU eM 1964
Novo golpe de Estado foi tentado contra a posse dos novos presidente e vice-presidente eleitos: Juscelino Kubitschek e Joo Goulart. O xito dessa conspirao foi evitado pela decisiva interveno do Ministro da Guerra, o general legalista Henrique Lott. Juscelino fez um governo de conciliao nacional e grande prosperidade. Estimulou o investimento estrangeiro, que resultou no desabrochar da indstria automobilstica brasileira, construiu Braslia e obteve um elevado ritmo de crescimento econmico. Realizou ou iniciou grandes obras, como as barragens e usinas hidreltricas de Furnas e de Trs Marias e a estrada Belm-Braslia. No entanto, foi tambm odiado pela direita furibunda que sentia falta da represso s lutas populares e sentia-se sufocada no clima de liberdade existente. Duas revoltas ocorreram durante esse perodo a de Jacareacanga, em 1956, e a de Aeronutica desertaram, roubaram um avio e tomaram a localidade de Jacareacanga, no sul do Par. A rebelio foi debelada em alguns dias, seu principal chefe foi preso e os demais fugiram para a Bolvia. Pouco depois, foram todos anistiados por Juscelino e reintegrados ao servio ativo, sem sofrerem nenhuma execrao raivosa por parte de seus colegas direitistas, bem ao contrrio do que ocorreu anos mais tarde com o capito Lamarca. Na segunda, Haroldo Veloso, o lder da primeira, j tenente-coronel, desertou juntamente com o tenente-coronel Joo Paulo Burnier e outros oficiais. Eles furtaram
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Aragaras, em 1959. Na primeira, dias depois da posse de Juscelino, dois majores da
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trs avies da aeronutica e tomaram fora um avio da Panair, que se constituiu no primeiro sequestro de avio ocorrido no Brasil. Depois ocuparam a localidade de Aragaras, em Gois. A revolta durou 36 horas. Seus lderes fugiram nos avies para o Paraguai, Bolvia e Argentina. Posteriormente, foram todos anistiados e reintegrados a suas carreiras. Findo o Governo de Juscelino, as foras populares e nacionalistas, juntamente com socialistas e comunistas, apresentaram as candidaturas de Lott, para presidncia, e de Joo Goulart o Jango , para a vice-presidncia. Lott, general legalista, cumpridor dos regulamentos, introdutor no Exrcito da promoo exclusivamente por mrito segundo a folha de servio, catlico praticante e nacionalista, era um homem honrado. Era incapaz de perseguir qualquer de seus inimigos, de direita ou de esquerda. Durante todo o tempo em que foi Ministro da Guerra, nunca promoveu nenhum de seus filhos ou genros que seguiam a carreira militar, mesmo que estes estivessem na vez. Como no fazia promessas, nem se comprometia a distribuir nem cargos nem verbas em troca de apoio, foi aos poucos sendo abandonado por aqueles polticos clientelistas que povoam os partidos brasileiros e controlam os currais eleitorais. Adstrito apenas ao eleitorado consciente, Lott foi derrotado pelo candidato da UDN, Jnio Quadros. Este era um poltico demagogo e histrinico que ganhou fama de varredor do servio pblico. Pode-se traar um paralelo entre ele e o Collor, muitos anos mais tarde o Caador de Marajs. incrvel como a Histria se repete. A direita, na impossibilidade de usar a submisso aos interesses do capitalismo e do imperialismo como argumento, levanta sempre o fantasma da corrupo, que tenta imputar aos governos que lhe caem em desgraa. J que, naquele tempo, as eleies para presidente e para vice-presidente eram desvinculadas, Jango, que tinha sido Ministro do Trabalho de Getlio e possua forte apoio no movimento sindical, foi eleito para vice. Da mesma forma que Collor, Jnio no conseguiu terminar o mandato. Logo no primeiro ano, tentou dar um golpe que lhe saiu pela culatra. Renunciou para tentar voltar mais forte, mas seu ato foi aceito sem maiores problemas. Ou com apenas um problema. O vice era o Jango, inaceitvel para a direita reacionria. Tentaram impedir a sua posse, aproveitaram-se de que ele estava em viagem pelo mundo e se encontrava na China quando se deu a renncia. Nesse momento, entrou em ao Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul. Brizola era o homem que havia tido a coragem de encampar a empresa de fora e luz de Porto Alegre, subsidiria da Bond & Share, dos Estados Unidos, pagando segundo seu valor histrico, como mais tarde fez com subsidiria da ITT que
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detinha o controle da telefonia. Depois do golpe militar de 1964, ambas as empresas foram milionariamente indenizadas pelo governo de Castelo Branco. Na crise da posse de Jango, Brizola, orientado por Lott, entrou em contato com o General Machado Lopes e ambos resolveram resistir e garantir o cumprimento da Constituio. Criou-se, no rdio, a Cadeia da Legalidade. Jango desembarcou em Porto Alegre. Constitudo o impasse e iminente a guerra civil, fez-se um acordo: Jango tomaria posse, mas o regime mudaria do presidencialismo para o parlamentarismo. O Brasil teve trs primeiros ministros, enquanto Jango foi presidente parlamentarista. Depois, realizou-se um plebiscito que decidiu o retorno ao presidencialismo. Jango caracterizou-se por preconizar as Reformas de Base: agrria, educacional, fiscal, administrativa, bancria e urbana. Instituiu o 13 salrio, nacionalizou as telecomunicaes e criou a Embratel e fundou a Eletrobrs. Autorizou a Petrobrs a entrar no mercado nacional de distribuio de derivados do petrleo, antes restrito s empresas estrangeiras. Lanou uma Campanha Nacional de Alfabetizao, baseada no mtodo criado por Paulo Freire, com o objetivo de erradicar o analfabetismo no Brasil. Esse Governo progressista, nacionalista e de elevada preocupao social, despertou a ira da direita raivosa e do capitalismo internacional. Essas foras retrgradas aproveitaram o clima de rebeldia existente no meio dos sargentos e marinheiros para acirrar a reao da oficialidade ao clima de indisciplina e conseguir a adeso de setores vacilantes das foras armadas. Com o apoio decisivo dos servios de inteligncia dos Estados Unidos, levaram a cabo o golpe de Estado que foi, ironicamente, apelidado, pelo inesquecvel humorista Srgio Porto, de Revoluo Redentora. Iniciou-se um trgico perodo da Histria do Brasil.5368 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - 1968 a DCaDa Do CaoS
1968, a dCada do Caos Mrio Japa, Chizuo Osava
1968 um ano smbolo, mas no necessariamente um ano sntese. Acontecimentos espetaculares, violentos e envolvendo multides lhe deram a marca de revolucionrio, mas definir a natureza dessa revoluo que so elas. Enigma e polmicas o tornaram interminvel.
Ampliar o foco para a dcada ajuda a entender o contexto em que 1968 entra para a Histria com a insurreio estudantil de maio na Frana, a invaso da Checoslovquia por tropas soviticas e a ofensiva do Tet que decretou a derrota da interveno estadunidense no Vietnam. Alguns autores franceses se referem a anos 1968. Na dcada de 1960, anos mais, anos menos, surgia na Itlia o movimento antimanicomial, havia o auge da luta dos negros por direitos civis nos Estados Unidos, nascia o movimento dos homossexuais e o feminismo se sofisticava, ampliando a luta pela simples igualdade rumo equidade de gnero e aos direitos reprodutivos. O ambientalismo dava seus primeiros passos, despertando para a importncia vital da biodiversidade. O reconhecimento da diversidade como valor e princpio vital, em contraposio a sculos de valorizao da homogeneidade - massificao era o termo da poca -, foi uma reviravolta que o mundo sofreu naquela dcada. Entrou na ordem do dia o respeito diversidade tnica, sexual, humana, biolgica, de pensamentos, religiosa, cultural. Nesse sentido, o tropicalismo estava mais de acordo com os novos tempos que outras escolas artsticas e os militantes revolucionrios. A industrializao das sociedades exacerbou a padronizao de quase tudo, em nome da produtividade. A famlia devia ter pai, me e dois filhos, a escola uma fbrica de profissionais qualificados. Casas, roupas, comidas, carreiras, tudo o mais idntico possvel, feito numa cadeia de produo. O ideal da uniformizao no tinha ideologia, ainda que o comunismo o levasse mais a fundo, com o partido nico tentando extirpar ideias dissidentes. Essa tendncia fica mais evidente na alimentao, por exemplo. A humanidade, em sua histria, consumiu umas dez mil espcies vegetais, hoje reduzidas a cerca de 150, com arroz, batata, milho e trigo representando mais da metade do volume consumido. um dos fatores da atual crise alimentar. Ainda restam umas sete mil lnguas no mundo e hoje h preocupao em conserv-las. Antes o ideal era, no mximo, uma lngua por pas, suprimindo todo o resto. Reconhecer que o Brasil tem 180 lnguas coisa recente. As novas perspectivas de sobrevivncia de indgenas, com sua lngua e cultura, como povos de identidade prpria, tambm produto da revoluo da diversidade que se localiza nos anos 1960. Assim como as da livre opo sexual, a cidadania das pessoas com
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deficincia, a ideia de incluso em geral. Indgena no mais um estgio pr-histrico que se supera por extino ou assimilao, como se pensava antes. No se trata s de valores ou direitos reconhecidos, mas tambm de enriquecimento da humanidade, de mais criatividade e muitas vezes da nossa sobrevivncia. Mas so ideias que demoram a vingar. S agora Bolvia e Equador se definem como estados plurinacionais e no Brasil ainda temos generais que vem reservas indgenas na fronteira como ameaa soberania e segurana nacional. Naquela dcada, tambm chegou ao mercado a plula anticoncepcional, nasceu a contracultura que teve seu momento de glria no festival de Woodstock, em 1969. A Amrica Latina ganhou um potencializador da agitao poltica, com a revoluo cubana e Che Guevara assumindo a misso de disseminar guerrilhas at ser morto em 1967, na Bolvia. Grupos guerrilheiros se tornaram comuns, at mesmo na prspera Europa. A rebelio de 1968 se tornou pandmica principalmente pelo movimento estudantil. No Brasil, desafiou a ditadura com a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, e outros embates de rua com a polcia, at a priso de toda a sua liderana em outubro. No Mxico, os estudantes tiveram como resposta o massacre de Tlatelolco, com dezenas ou centenas de mortes, nunca se soube ao certo. Alemanha, Estados Unidos, Itlia, Japo e outros pases ricos e democrticos tambm reprimiram violentamente estudantes. O maio francs foi emblemtico pela amplitude da sublevao e dos questionamentos. As barricadas de Paris contagiaram milhes de trabalhadores que paralisaram o pas, ocupando umas 300 fbricas. Proibido proibir, abaixo o Estado, a imaginao ao poder, seja realista, pea o impossvel e no confie em ningum de mais de 30 anos foram pichaes e palavras de ordem dos manifestantes. A fria da rejeio a tudo foi o grito de liberdade de uma juventude emergente que j no podia suportar as camisas-de-fora herdadas. A plula j existia desde 1960, mas a moral vigente ainda reprimia o sexo. Nada de sexo antes do casamento. As religies eram onipresentes, castradoras, por quase toda parte. Ser ateu era praticamente um crime. Cabelos compridos um sinal de delinquncia. A hierarquia era absoluta, militar, nas relaes familiares, laborais, escolares, entre Estado e sociedade. A Europa prosperava com um sistema de proteo social sem precedentes. Mas era uma euforia de reprimidos, pelo menos para estudantes.
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PaNoraMa HiSTriCo - 1968, a DCaDa Do CaoS
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difcil imaginar hoje que a segregao racial era lei em muitos estados norte-americanos at 1964, quando a Lei dos Direitos Civis foi aprovada, reivindicao do movimento negro cujos protestos se tornaram de massa e abertos a partir de 1955. Naquele ano, Rosa Parks se recusou a ceder o assento no nibus a um branco, insurgindo-se contra a lei do Alabama. Em 1968, foi assassinado Martin Luther King, principal lder do movimento. A intolerncia reinante era agravada pela Guerra Fria, que aterrorizava o mundo com a iminncia da guerra nuclear e cerceava atividades polticas e ideias com as fronteiras ideolgicas. No Brasil ou se era pela civilizao ocidental, crist e democrtica ou comunista, sujeito priso e tortura a partir de 1964. No era diferente do outro lado do muro. A invaso da Checoslovquia em agosto de 1968 sufocou uma tentativa de flexibilizar o regime para um socialismo de rosto humano. Muitas guerrilhas de ento foram tentativas de criar um socialismo diferente do sovitico e nisso a revoluo cubana foi uma esperana. Mas foi tambm uma poca extremamente criativa. No s deu origem aos movimentos mais diversos, como a uma grande variedade de novas ideias e criaes artsticas. Nossos grandes compositores populares surgiram naqueles anos, assim como Paulo Freire, a igreja progressista, a Teologia da Libertao. Era um perodo de muitas utopias, esperanas e entregas generosas. Na frica nasciam novos pases independentes, alguns aps guerras anticoloniais sangrentas, como a da Arglia (um milho de mortos estimados), e com promessas revolucionrias. Tambm se tentavam revolues pacficas, como a eleio de Salvador Allende no Chile, em 1970. Eram iluses, na maioria dos casos. Allende morreu sob o golpe de Pinochet em 1973, os governos auto-proclamados marxistas na frica eram uma impossibilidade que terminou em guerras internas e corrupo. Muitos manifestantes do maio francs saudaram a Revoluo Cultural, ignorando que se tratava da negao do esprito libertrio dos estudantes. No por casualidade se desenvolveu tambm nos anos 1960 a teoria do caos ou dos sistemas dinmicos no-lineares. Seus estudos constataram que pequenas alteraes num sistema, antes consideradas desprezveis, podem alterar totalmente o resultado. o chamado efeito borboleta, cujo vo poderia provocar tempestades do outro lado do planeta, um grau de incerteza incorporado s cincias.
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Somos todos sujeitos um dos gritos de 1968. Estudante no um pr-cidado, pendente de formao. As minorias, as mulheres, todos so atores relevantes e com causa prpria. Romperam-se tambm amarras esquerda. A revoluo e a luta por conquistas sociais deixaram de ser privativas dos operrios e sindicatos, como supunham os marxistas. Os movimentos sociais se multiplicaram e ganharam as ruas, desembocando na fragmentao atual. O mundo sempre foi um mosaico no-linear, mas no era at ento reconhecido como tal.
brasil, 1968: o assalto ao Cu, a desCida ao inFerno Mrio Maestri, 4 e 6 de maro de 2008
A dcada iniciara-se tambm sob signos auspiciosos. Nas barbas do gigante imperialista, em 1959, a partir da Sierra Maestra, um grupo de jovens revolucionrios galvanizara a populao da pequena ilha e vergara a ditadura odiada. Dois anos mais tarde, a revoluo cubana assumia carter claramente socialista. Em abril de 1961, o fiasco da invaso imperialista da baa dos Porcos aumentara a humilhao estadunidense. Sobretudo na Indochina, avanava incessantemente a luta armada das foras populares vietnamitas, apesar dos ingentes recursos militares empregados pelos EUA. a derrota brasileira A derrota no Brasil pesara fortemente sobre a conjuntura mundial. No incio da dcada de 1960, amplos setores populares e mdios haviam aderido s propostas de difusas reformas de base que, prometia-se, resgatariam os marginais das cidades e dos campos e relanariam o industrialismo, que modernizara relativamente nas trs dcadas
68 a geraao que queria mudar o mundo: relatos
PaNoraMa HiSTriCo - BraSil, 1968: o aSSalTo ao CU, a DeSCiDa ao iNFerNo
Os incios dos anos 1960 haviam sido contraditrios para as lutas sociais no mundo. Em 1964, sob a orientao colaboracionista do Partido Comunista, o movimento popular brasileiro fora derrotado sem lutar. Em 1965-66, a mesma poltica facilitara o massacre de um milho e meio de comunistas e a consolidao da ditadura na Indonsia. O assassinato do lder marroquino socialista Ben Barka, na Frana, em outubro de 1965, e a deposio de Ben Bella, por Boumedienne, na Arglia, em junho do mesmo ano, registravam tambm os limites da luta pela emancipao social, sob a direo de classes burguesas nacionais tidas como progressistas.
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anteriores a anacrnica estrutura rural da nao. Em 1964, o projeto nacional-reformista fora abortado violentamente. Em nome das classes proprietrias do pas, os militares impuseram a ditadura, reprimindo duramente o movimento popular. A derrota fora ainda mais frustrante porque ocorrera sem qualquer resistncia, precisamente quando muitos se julgavam a um passo da vitria. Os grandes lderes populistas Jango, Brizola e Arraes abandonaram o pas sem resistirem. Brizola propusera, inutilmente, oposio de ltima hora, rejeitada terminantemente pelo presidente Joo Goulart, seu cunhado. O Partido Comunista Brasileiro, a grande organizao da esquerda, de orientao pr-sovitica, mantivera at o triste fim do governo constitucional seu atrelamento ao populismo nacionalista, emperrando a organizao autnoma dos trabalhadores. Aps o golpe de 1964, o Partido reafirmou sem qualquer autocrtica sua poltica colaboracionista. Porm, no Brasil, a euforia dos vencedores seria curta. Atravs do mundo, a crise capitalista mundial, que se insinuaria nas principais economias mundiais em 1967, pela primeira vez aps longos anos de crescimento ininterrupto, exigia que trabalhadores e assalariados apertassem os cintos, para que o grande capital tirasse suas castanhas do fogo. Desde abril de 1964, os militares brasileiros intervieram nos sindicatos; parlamentares populares tiveram os direitos polticos cassados; militares democratas foram reformados; conquistas sociais foram confiscadas; a renda da classe mdia e dos trabalhadores despencou devido violenta poltica recessiva ditada pelo grande capital ao governo subserviente do ditador Castelo Branco (1964-67). O desemprego aumentava. A inflao crescia. As classes mdias passavam desiludidas para a oposio, aps haverem marchado em maro de 1964 com Deus, pela ptria e pela famlia, convocadas pelo imperialismo, pela Igreja e pelos partidos de direita, preparando a interveno militar que salvaria o pas da ditadura sindicalista. Polticos anti-populares, ou que haviam apoiado o golpe, como Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, marginalizados do poder, uniram-se a Joo Goulart em uma efmera Frente Ampla, em fins de 1966, ao compreender que os militares pretendiam eternizar-se no poder. Poder neGro A situao internacional era tensa e dinmica. Aps o fiasco dos regimes rabes conservadores, com destaque para o Egito, a Sria e a Jordnia, na Guerra dos Seis Dias
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contra Israel, de incios de junho 1967, a guerrilha palestina assumia a luta antissionista em lugar das direes conservadoras desmoralizadas. Com a crise econmica chegando aos EUA, em boa parte devido aos gastos de guerra, que antes haviam apenas garantido lucros ao grande capital, o movimento pacifista estadunidense questionava duramente a interveno no Vietn e os valores do american way of life. O imperialismo yankee era golpeado no prprio ventre. Malcolm X fora assassinado em fevereiro de 1965, em Nova York, mas o black power fortalecia-se e os bairros negros ardiam sob o fogo do dio da populao humilhada. Os hispano-estadunidenses e as prprias populaes amerndias levantavam tambm a cabea. No Vietn, em 30 de janeiro 1968, morreriam os sonhos de vitria militar, com a ofensiva do Ano Ted, durante a qual os vietcongs atacaram mais de trinta cidades sul-vietnamitas e a prpria embaixada norte-americana, em Saigon. Entretanto, a classe operria estadunidense mantinha-se imvel sob a hegemonia do grande capital. De 31 de julho a 10 de agosto de 1967, produzia-se em Havana, Cuba, o primeiro encontro internacional da Organizao Latino-Americana de Solidariedade (OLAS). Aps teorizar sumria e superficialmente a experincia vivida na ilha, a direo cubana propunha claramente a generalizao incondicional da luta guerrilheira rural. Criar um, dois, mil Vietns. Ainda que de forma confusa e voluntarista, a OLAS rompia o monoplio poltico sovitico, que defendia, na Amrica Latina e atravs do mundo, a colaborao e subordinao do movimento popular s burguesias nacionais, apresentadas como progressistas. A presena de Carlos Marighella no encontro da OLAS, noticiada amplamente, ao ser conhecida no Brasil levou expulso do conhecido militante comunista do PCB. A captura e morte de Guevara, em 8 de outubro de 1967, na selva boliviana, foi vista com um duro percalo no longo caminho a ser trilhado, e no como resultado das inconsequncias da proposta de incio da luta armada por pequenos grupos margem das lutas e da conscincia reais dos trabalhadores. No Brasil, como na Frana, na Itlia, na Alemanha Federal, no Japo, no Mxico e em tantas outras regies do mundo, 1968 abrir-se-ia sob o signo da resistncia j explcita. A crise econmica de 1967 levara a que o movimento operrio brasileiro, lutando contra o arrocho salarial, se recuperasse, minimamente, dos golpes sofridos. Em 16 de abril, mil e duzentos operrios da siderrgica Belgo-Mineira cruzavam os braos em Contagem, Minas Gerais. Logo, dezesseis mil trabalhadores encontravam-se em greve. O movimento encerrou-se no incio do ms seguinte, com um abono salarial de 10%. No 1 de maio de 1968, outra importante vitria. O governador Abreu Sodr e sua comitiva, convidados por sindicalistas pelegos e do PCB para subir ao palanque da Praa da S, foram vaiados,5968 a geraao que queria mudar o mundo: relatosPaNoraMa HiSTriCo - BraSil, 1968: o aSSalTo ao CU, a DeSCiDa ao iNFerNo
escorraados e obrigados a refugiar-se na catedral paulistana. Os participantes do comcio queimaram o palanque e partiram em passeata. No ms seguinte, eclodiram breves paralisaes nas montadoras de So Bernardo. Paris brle-t-il? Em maio, fortssimos ventos europeus avivavam o braseiro nacional. A cidade de Paris, e a seguir a Frana, foi convulsionada pelo estudantado universitrio enrag. Muito logo, o movimento operrio iniciou dura e longa greve geral. O governo De Gaulle recuou, a ordem burguesa tremeu, falou-se em governo popular, antes que o Partido Comunista Francs canalizasse a mobilizao da rua e as ocupaes de fbrica para a luta institucional, enterrando-as sob um estrondoso fracasso eleitoral. O maio francs galvanizou o mundo, colocando quase nas sombras as lutas estudantis e operrias igualmente muito duras na Itlia e na prpria Alemanha Federal, avivada neste ltimo pas pelo atentado ao lder estudantil Rudi Dutschke, em 11 de abril de 1968. No mesmo ms era assassinado Martin Luther King, em Memphis, Tennessee. Na Frana, lutara-se contra o autoritarismo, contra a discriminao, contra os privilgios, pelo socialismo operrio e democrtico. Uma gerao de lderes de vinte anos conquistava a juventude do mundo com seu radicalismo, inconformismo, desprendimento, coerncia. Daniel Cohn-Bendit, Alain Krivine, Jacques Sauvageot, etc. A vitria cubana impusera o princpio de que a revoluo se iniciaria pela ao exemplar de alguns guerrilheiros. Em 1967, o foquismo seria teorizado em Revoluo na revoluo?, pelo jovem francs Regis Debrey, intelectual de rpida vocao guerrilheira de pouco sucesso. Se o foco no pudesse ser lanado no campo, seria iniciado na cidade. Desde janeiro de 1967, o ativismo dos Guardas Vermelhas contra a restaurao capitalista, hoje plenamente vitoriosa, prestigiava o maosmo, sobretudo entre os jovens catlicos radicalizados. A ao das organizaes trotskistas na Frana propagandeou o marxismorevolucionrio, o anti-stalinismo, o anti-burocrtico, tornando a seguir Ernest Mandel figura pblica mundial. Fragilizado pela derrota de 1964, o PCB explodia em uma constelao de grupos radic