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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE GEOGRAFIA, HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
TESE DE DOUTORADO
A invenção da escola no Araguaia-Xingu
mato-grossense: memórias, narrativas e
lutas pela educação popular e
democrática (1960-2018).
EDEVAMILTON DE LIMA OLIVEIRA
CUIABÁ-MT Abril/2018
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EDEVAMILTON DE LIMA OLIVEIRA
A invenção da escola no Araguaia-Xingu
mato-grossense: memórias, narrativas e
lutas pela educação popular e
democrática (1960-2018).
Tese apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós-Graduação História, do
Instituto de Geografia, História e
Documentação – IGHD, da Universidade
Federal de Mato Grosso, como requisito
parcial à obtenção de título de Doutor em
História.
Orientador: Prof. Dr. Renilson Rosa Ribeiro
CUIABÁ-MT Abril/2018
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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA Avenida Fernando Correa da Costa, 2367 – Boa Esperança – Cep. 78060900 - Cuiabá/MT
Tel: 65-3615-8493 – Email: [email protected]
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO: A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense: memórias,
narrativas e lutas pela educação popular e democrática (anos 1960-2018).
AUTOR: Doutorando Edevamilton de Lima Oliveira
Tese de Doutorado defendida e aprovada em 19/04/2018.
Composição da Banca Examinadora:
Presidente Banca/Orientador Doutor Renilson Rosa Ribeiro Instituição: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Examinador Interno Doutora Jaqueline Aparecida Martins. Zarbato
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Examinador Interno Doutor Osvaldo Rodrigues Júnior
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Examinador Externo Doutor Luis César Castrillon Mendes
Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS Examinador Externo Doutora Márcia Elisa Tete Ramos
Instituição: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ Examinador Suplente Doutor Marcelo Fronza Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Examinador Suplente Doutora Glauce Viana de Souza Torres Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
CUIABÁ, 21/08/2018.
5
OLIVEIRA, E.L. A invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense:
memórias, narrativas e lutas pela educação popular e democrática (1960-2018).
469 pag. Tese de doutorado – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2018.
RESUMO
O presente trabalho versa sobre A invenção e as „artes de fazer‟ escola popular e
democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense (1960-2018). Lançar um olhar
sobre a invenção da escola para posseiros, indígenas, peões e sua relação com os
fazendeiros, políticos, comerciantes e polícia, possibilitou entender a constituição
do povo, origens, projetos de vida e resistência elegendo a escola como atalaia e
mecanismo de poder. Uma trama que revelou as principais lideranças e, entre elas,
os professores que ensinavam história subversiva. Também a narrativa dá conta de
emoldurar o projeto de escola popular e democrática, o „semear‟ e o „cuidar‟
como táticas para o enfrentamento nas disputas pela terra. Nessa trama da vida
real, cercada de especificidades, se encontravam as escolas semeadas entre os rios
Araguaia e Xingu, delineando o Brasil Central. Porém, muito distante do „vazio
demográfico‟, muitas „comunidades‟ em torno delas, mesmo que fisicamente
distante dos grandes centros, articuladas com outras „comunidades‟
compartilhando ideias, avaliando práticas e sugerindo novas ideias - a invenção da
escola local com dimensões global. Os escolares fez (faz) a História Humana dos
sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense. Pensar a escola de educação básica na
segunda metade do século XX em Mato Grosso, em especial no período da
ditadura militar faz-se importante na medida em que revelou discursos e práticas
do governo e dos populares, revelar esta última foi nosso propósito. Nesse
„banzeiro‟ colocamos nosso barco a navegar em busca de águas menos revolta,
porém, entre remansos e correntezas nos deparamos com as memórias, o ensino
de história, a formação de professores, o que projetou novas necessidades, visitar
o cotidiano da escola do século XXI, dialogar com professores e entender o papel
social da escola no tempo. Revisitar seu cotidiano fez emergir tática de guerrilha
bem como os „não ditos‟ sobre sua invenção, seu projeto popular e democrático
dando novos contornos ao INAJÁ, e, como fruto, as Parceladas. As narrativas e
luta pela memória foi o fio condutor da história que ora compartilhamos,
arregimentando argumentos para confrontar enunciados sobre a „falência
proclamada da educação‟ em voga no discurso dos opressores. Haveremos de
combatê-los no campo do conhecimento, da memória e do ensino de história, na
busca pela reinvenção de uma escola popular e democracia em tempos de
cibercultura, de dispositivos móveis, da sala de aula invertida, de realidade
aumentada em que se aprende em qualquer lugar e em qualquer tempo. Assim,
vivenciamos a ampliação das relações e da transformação da mediação da
aprendizagem e do conhecimento transformando a realidade dos escolares na
perspectiva da dialética. O reinventar a escola na expectativa de uma escola
sustentável, própria do século XXI.
Palavras chave: 1. Educação popular. 2. Invenção da escola. 3. Tecnologias
educacionais. 4. Ensino de história. 5. Araguaia - Xingu MT
6
OLIVEIRA, E.L. The invention of the school in the Araguaia-Xingu mato-
grossense: memories, narratives and struggles for popular and democratic
education (1960-2018). 469 p. Thesis - Post-Graduate Program in History, Federal
University of Mato Grosso, Cuiabá, 2018.
ABSTRACT
The present work deals with The invention of the Araguaia-Xingu school in Mato
Grosso: memories, narratives and struggles for popular and democratic education
(1960-2018). Taking a look at the invention of the school for squatters, natives,
pedestrians and their relationship with farmers, politicians, merchants and police,
made it possible to understand the people's constitution, origins, life and
resistance projects, choosing school as a watchtower and mechanism of power . A
plot that revealed the leading leaders and, among them, the teachers who taught
subversive history. The narrative also deals with framing the popular and
democratic school project, 'sowing' and 'caring' as tactics for confrontation in land
disputes. In this real-life plot, surrounded by specificities, were the schools sown
between the Araguaia and Xingu rivers, outlining Central Brazil. However, far
from the 'demographic void', many 'communities' around them, even though
physically distant from the great centers, articulated with other 'communities'
sharing ideas, evaluating practices and suggesting new ideas - the invention of the
local school with global dimensions. The schoolchildren made (does) the Human
History of the backlands of the Araguaia-Xingu Mato Grosso. Thinking about the
basic education school in the second half of the twentieth century in Mato Grosso,
especially during the period of military dictatorship, is important in that it
revealed discourses and practices of government and the popular, revealing the
latter was our purpose. In this 'bathtub' we put our boat to navigate in search of
less revolting waters, however, between backwaters and rapids we came across
memories, history teaching, teacher training, which projected new needs, visit the
daily school of the century, dialogue with teachers and understand the social role
of school in time. Revisiting his daily life gave rise to guerrilla tactics as well as
the 'not told' about his invention, his popular and democratic project giving new
contours to INAJÁ, and, as a result, Parceladas. Narratives and the fight for
memory were the guiding thread of the history we are now sharing, gathering
arguments to confront statements about the 'proclaimed bankruptcy of education'
in vogue in the discourse of the oppressors. We will have to fight them in the field
of knowledge, memory and history teaching, in the search for the reinvention of a
popular school and democracy in times of cyberculture, of mobile devices, of the
inverted classroom, of augmented reality in which one learns anywhere, anytime.
Thus, we experience the expansion of relationships and transformation of the
mediation of learning and knowledge transforming the reality of schoolchildren in
the perspective of dialectics. Reinventing school in the expectation of a
sustainable school, proper to the 21st century. Keywords: Popular education,
history teaching, teacher training, digital social technologies, technology in
education and sustainable school.
Keywords: Popular education. 2. Invention of the school. 3. Educational Technologies. 4.
History teaching. 5. Araguaia - Xingu MT.
7
AGRADECIMENTOS
Palavras são jogadas ao vento a todo instante, em múltiplos sentidos e
formas, porém, nenhuma sem que haja intencionalidade de quem a mobiliza. Essa
é a razão de nossa narrativa, perceber a escola enquanto redenção e resistência.
Em tempos de cibercultura, alguns semeiam, outros colhem, sorte daqueles que
semeiam, colhem, compartilham. Parece-nos desnecessário afirmar que não basta
curtir, comentar compartilhar, precisamos dialogar, pois o diálogo alimenta e nutri
razões para muitas coisas, nesse particular, desenho as poucas palavras para
agradecer, pois gratidão é lembrança, e, com lembrança também inventamos
memória‟.
Assim, sou grato aos meus pais, Ednaldo e Olímpia, à minha filha
Enarê, que me inspira pensar e agir na busca por uma sociedade mais justa, onde
ela e todas as crianças possam acessar o conhecimento por meio da instituição
escola, especialmente a pública, com justiça e esperança. À minha esposa Ronize,
por ter compartilhado de minhas angústias, crises e superação. Aos meus irmãos,
Edmilton (in memoriam), Ednilson, Edvanilson, Ednair, Ednacir, Ednacelia,
Edjane e Edlayne, pois me fazem lembrar sempre. Somos uma família que viveu
na pele o estar em Mato Grosso nas décadas de 1970, onde continuamos seguindo
e contribuindo com o curso da história.
Agradeço especialmente àqueles que lutaram por Universidade
Pública Brasileira, bem como aos educadores que lutaram e lutam para que
conquistássemos o direito à licença para qualificação, ao estado de Mato Grosso e
à Secretaria de Estado de Educação. Em nome da SEDUC, agradeço a todas as
escolas públicas onde aprendi a ser professor, aos CEFAPROS e ao MEC, em
especial à extinta Secretaria de Educação a Distância, à Diretoria de Tecnologia
DITEC e ao ex-diretor José Guilherme Ribeiro. Em particular, à Diretoria de
Criação de Material e Formação de Professores em EAD – DPCEAD e seu ex-
diretor, Demerval Guillardazo Bruzzi, por ter dado continuidade ao Programa
Nacional de Informática na Educação e pela criação do Maior Programa de
8
Formação Continuada em Tecnologia Educacional brasileira, quiçá mundial –
Proinfo Integrado, onde tive a bela experiência em coordená-lo em Mato Grosso,
por 7 anos.
Agradeço imensamente aos meus professores do Departamento de
História e respectivo Programa de Pós-graduação, onde pude fazer meu mestrado
sob orientação da professora Dra. Maria de Fátima Gomes Costa, oportunizando
reedificar Casal Vasco em palavras e revisitar a Fronteira Oeste do Brasil
Colonial, e especialmente ao meu orientador no doutorado, prof. Dr. Renilson
Rosa Ribeiro, por ter aceitado inventar a escola no Araguaia-Xingu mato-
grossense num lugar especial, que não se prende ao fato de ser o Brasil Central,
mas pelas lutas travadas pelo oprimido contra a sagacidade do opressor.
Agradeço-lhe também pelos incentivos e cobranças, pois, embora tenha sido
exigente a caminhada, foi possível visitar as searas da produção historiográfica, a
invenção da escola no Brasil Central, e, por conseguinte, a educação do século
XXI. Elogiável vossa atitude em entender o ritmo do trabalho de artesão que,
entre hesitações naturais de uma pesquisa, se depara com as exigências
socialmente impostas que, certamente, aparecerão na narrativa.
Aos meus colaboradores na leitura atenta e contribuições ao texto,
Prof. Ms. Célia F. Souza e a Profa. Dra. Elizabeth Madureira de Siqueira.
A todos aqueles que dedicaram e cultivam esforços pela educação no
Araguaia-Xingu mato-grossense, aos amigos e colegas da Universidade do Estado
de Mato Grosso, ao Programa Parceladas, núcleos pedagógicos do norte Araguaia,
em nome do Luis Antônio Soares (Tunico), Maria do Rosário Lima e aos
orientados (as) e orientandos (as), pela acolhida.
Por fim, agradecimento especial faço ao Dr. Honoris Causa da
UNEMAT e também da UFMT, Pedro Casaldáliga, pela edificação da escola no
Brasil Central em prol da libertação dos oprimidos, que, entre sonho e utopia,
revelou a fé, a esperança e a determinação, em palavração.
9
EPÍGRAFE
Sim, o povo precisa de escolas, de instrução. Um povo
educado, esclarecido é um povo consciente de si e de seu
papel na História.1
1 Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1970 A16.0.03
p 2-3.
10
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
ANATEL – Agencia Nacional de Telecomunicações
ANSA - Associação Nossa Senhora da Assunção
APE – Associação de Pais e Estudantes
APM – Associação de Pais e Mestres
ARENA - Aliança Renovadora Nacional
ATV - Associação Terra Viva
AXA - Articulação Araguaia Xingu
BASA – Banco da Amazônia S/A
CEFAPROS – Centro de Formação dos Profissionais da Educação
CFTE – Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional
CIMI - Conselho Indigenista Missionário
CISA - Centro de Informações da Aeronáutica
CNBB – Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil
CNLD - Comissão Nacional do Livro Didático
CODEARA – Companhia de Desenvolvimento do Araguaia
COLTED - Comissão do Livro Técnico e Livro Didático
CPT - Comissão Pastoral da Terra
EDH – Educação em Direitos Humanos
EF – Ensino Fundamental
EJA – Educação de Jovens e Adultos
EM – Ensino Médio
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
FAE - Fundação de Assistência ao Estudante
FENAME - Fundação Nacional do Material Escolar
FUNABEM – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNDEB – Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica
GEA - Ginásio Estadual Araguaia
GETAT – Grupo Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins
IBDF - Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
IDB – Índice do Desenvolvimento da Educação Básica
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
INCRA - Instituto Nacional e Reforma Agrária
INDA - Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário
INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
INL – Instituto Nacional do Livro
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ISA - Instituto Socioambiental
ISEB-Instituto Superior de Estudos Brasileiros
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MCCOM – Ministério das Comunicações
11
MEC – Ministério da Educação
MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização
MPOG – Ministério do Planejamento
OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONU – Organização das Nações Unidas
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais
PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação
PEA - Instituto Pesquisa e Estatística
PIB – Produto Interno Bruto
PIN – Programa de Integração Nacional
PISA – Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes
PLIDEF – Programa do Livro Didático do Ensino Fundamental
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
PNE – Plano Nacional da Educação
PNEDH – Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
PNLD - Programa Nacional do Livro Didático
PNUD - Programa das Nações Unidas
POLOAMAZÕNIA – Programa de criação de Polos Agropecuários e
Agrominerais da Amazônia
POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados
POLONOROESTE – Programa Integrado para o Noroeste do Brasil
PRODEAGRO – Programa de Desenvolvimento Agroambiental de Mato Grosso
PRODECER – Programa Nipo-Brasileiro de Cooperação para o Desenvolvimento
Agrícola do Cerrado
PROJED – Empresa de consultoria (sem definição no doc. Consultado).
PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulos à Agroindústria
do Norte e Nordeste
PROUNI – Programa Universidade para Todos
SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica
SEDUC – Secretaria de Estado de Educação
SPEVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia
SUDAM – Superintendência do
SUFP – Superintendência de Formação dos Profissionais da Educação
SUPRA - Superintendência da Reforma Agrária
UNEMAT – Universidade do Estado de Mato Grosso
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura.
UNESF – União Estudantil de São Félix
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
USAID - Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
12
FIGURAS
Seq. Descrição Pág.
1 Mapa da territorialidade da Prelazia de São Félix do Araguaia –
MT (Brasil Central) – 1970------------------------------------------------
48
2 Mapa dos 25 municípios que compõe o território do Araguaia
Xingu – MT neste ano de 2018-------------------------------------------
50
3 Carta de agradecimento escrita por Isaulina Rocha dos Santos ao
Bispo Pedro Casaldáliga – 1973------------------------------------------
108
4 Educação em greve para melhores salários: notícias de fora--------- 116
5 A união em torno do sindicato e os direitos defendidos
coletivamente pelos posseiros---------------------------------------------
130
6 Sala de aula da escola inventada nos „sertões‟ Araguaia Xingu
1970-1990--------------------------------------------------------------------
132
7 Professor Caçula, esposa e filho em frente à sua casa no „sertão‟. 133
8 Ginásio Estadual Araguaia – GEA – 1972------------------------------ 172
9 Guerrilheiro pela Paz e pela Justiça-------------------------------------- 185
10 Políticos „assalta‟ a escola para acabar com a organização do povo- 197
11 Adolfo Pérez Esquivel e o Araguaia Xingu----------------------------- 204
12 Carestia: mais uma forma de oprimir o trabalhador-------------------- 213
13 O vazio sentido pelos índios foi o mesmo sentido pelos posseiros
de Porto alegre, martirizados pelo direito e calados pela violência
praticada pelos tubarões----------------------------------------------------
.
215
14 O exemplo Canudos e seus 87 anos de história------------------------- 235
15 Escola opressora e ordeira x Escola democrática e libertadora------- 241
16 Em uma democracia, que fazer quando a educação vai mal?--------- 241
17 Êxodo sinônimo de fome e miséria nas cidades e sertões------------- 249
18 A escola: condição de permanência-------------------------------------- 260
19 A consciência negra „pelos‟ sonhos de Dona Mundica I-------------- 269
20 A consciência negra „pelos‟ sonhos de Dona Mundica I-------------- 270
21 Escola Tapirapé, símbolo de resistência--------------------------------- 272
22 Educação para a liberdade------------------------------------------------- 273
23 Autoridade sem legitimidade---------------------------------------------- 280
24 Na escola democrática, quem decide é o povo-------------------------- 282
25 Desigualdade e exclusão--------------------------------------------------- 288
26 Para ensinar história faz-se necessário falar do processo
„civilizador‟------------------------------------------------------------------
293
27 „Relembrar‟ o assassinato do Padre João Bosco P. Burnier: ato
contínuo à sua denúncia e o re-vivamento da memória----------------
297
28 Marcha pela independência: outro sentido parra o ato cívico--------- 301
29 Dona Mundica ensinando o significado de independência do
Brasil-------------------------------------------------------------------------
306
30 Independência ou recolonização?----------------------------------------- 306
31 Famílias ocupam a escola em defesa de uma gestão democrática---- 314
32 Professora: profissão coragem-------------------------------------------- 315
13
33 Mapa do Estado de Mato Grosso em destaque os municípios
atendidos pelo INAJÁ oferta 1987-1990--------------------------------
341
34 Mapa do município de São Félix do Araguaia e suas respectivas
escolas------------------------------------------------------------------------
342
35 Mapa do município de Porto Alegre com a localização de suas
escolas------------------------------------------------------------------------
342
36 Mapa de Santa Terezinha e suas respectivas escolas------------------- 341
37 Mapa de Ribeirão Cascalheira e suas respectivas escolas------------- 341
38 Alfabetização de Adultos pelo professor Antônio Carlos Moura---- 345
39 Capa do 2º Caderno (método de alfabetização de adultos segundo
Paulo Freire) 1985----------------------------------------------------------
350
40 Caderno de Alfabetização de adultos (1º e 2º passos)----------------- 351
41 Caderno de alfabetização de adultos (3º e 5º passos)------------------ 352
42 Caderno de alfabetização de adultos (4º e 6º passos)------------------ 353
43 Cartazes para alfabetização------------------------------------------------ 354
44 Cartazes para alfabetização------------------------------------------------ 355
45 Com o Pé no chão----------------------------------------------------------- 359
46 História da cartilha „...Estou Lendo!!!‟---------------------------------- 361
47 Método da Cartilha „...Estou Lendo!!!‟--------------------------------- 362
48 Capa, caderno de exercício da cartilha „...Estou Lendo!!!‟----------- 363
49 Educação--------------------------------------------------------------------- 385
50 Abaixo assinado pela permanência da professora na comunidade--- 446
51 Projeto arquitetônico da Escola do século XXI (sustentável) 469
52 Escola Sustentável II 469
Tabelas
Seq. Descrição Pág.
1 Expressões sintomáticas----------------------------------------------------- 85
2 Evolução da distribuição da população por nível de educação (%) –
Brasil 1960 – 1990. ----------------------------------------------------------
96
3 Recursos aplicados na edificação do GEA e seus respectivos
doadores------------------------------------------------------------------------
102
4 Escolas e respectivo número de alunos matriculados-------------------- 106
5 Projetos (Empresas) de pecuária aprovados pela SUDAM no
Araguaia mato-grossense. --------------------------------------------------
159
6 Quadro descritivo para que serve a Escola-------------------------------- 288
7 Quadro descritivo sobre o que a escola tem de bom. ------------------- 290
8 Quadro descritivo sobre o que a escola tem de ruim--------------------- 291
9 Perfil dos objetivos dos professores --------------------------------------- 325
10 Perfil dos conteúdos---------------------------------------------------------- 325
11 Metodologia------------------------------------------------------------------- 326
12 Avaliação---------------------------------------------------------------------- 327
13 Representação da escola----------------------------------------------------- 328
14 Concepção de educação popular--------------------------------------------
-
370
14
Gráficos
Seq. Descrição Pág.
1 Colaboradores da pesquisa por sexo----------------------------------- 392
2 Vínculo--------------------------------------------------------------------- 392
3 Tempo em que trabalha em educação---------------------------------- 393
4 Tempo em que trabalha com ensino de história---------------------- 393
5 Em relação às tecnologias móveis digitais, elas mudam a maneira
que nossos alunos pensam e aprendem história? --------------------
416
6 As tecnologias de informação e comunicação são consideradas
relevantes para o ensino de história------------------------------------
417
7 Nós, professores de história integramos as tecnologias
educacionais (computador, tablete, smarthpone, notebook e
recursos web-Internet) para ensinar história. -------------------------
417
8 Começamos recentemente a usar o computador e a Internet nas
práticas do currículo escolar---------------------------------------------
418
9 Ainda não sabemos quais ferramentas existem instaladas nos
computadores das escolas e na web, que podem ser utilizados em
nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina de
história---------------------------------------------------------------------
418
10 Em decorrência da chegada dos computadores conectados à
Internet e dos dispositivos digitais acessíveis aos professores e
alunos, destaque as respostas que avalia relevantes------------------
419
11 Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião: Os alunos da escola
onde você trabalha têm maior domínio das tecnologias digitais que
os professores-----------------------------------------------
421
12 Com a web (Internet) os alunos acabam perdendo o contato com a
realidade em que vivem------------------------------------------------
422
13 Distribuição numérica do número de cursistas atendidos pelos
cursos de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (IED,
TIC, EP e REDES) por CEFAPRO. Extraído do SIPI em 17 de
outubro de 2014. --------------------------------------------------
434
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 18
CAPÍTULO 1 ......................................................................................................... 32
A ESCOLA COMO ARTE DE INVENTAR DE UM „POVO‟ NOS „SERTÕES‟
NO ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE ................................................ 32
1 – A aurora da educação revelada pela Folha Alvorada ...................................... 51
1.2 – Os indígenas antes da organização social dos „brancos‟ ............................... 52
1.2.1 Karajá .................................................................................................... 54
1.2.2 Tapirapé ................................................................................................ 55
1.2.3 Xavante ................................................................................................. 57
1.3 - A escola entre lugares e espaços praticados e os banzeiros no Araguaia ...... 59
1.4 - Contextualizando a produção da Folha Alvorada: inventando fontes ........... 65
1.4.1 Os „tubarão‟ predadores infestam a Folha Alvorada, as águas e terras do
Araguaia-Xingu ............................................................................................. 71
1.4.2 Eu já li isso na ALVORADA: os posseiros „analfabetos‟ ...................... 74
1.4.3 – O contexto sob o viés crítico-reflexivo da fonte ................................ 80
1.5 - Perfil educacional das famílias: sinais do tempo e do lugar .......................... 81
1.5.1 - Em cena a síntese de uma invenção ................................................... 89
1.5.2 - O como e os porquês da invenção em marcha ................................... 96
1.5.3 - A Educação entre a cultura de resistência e a libertação do povo .... 101
1.6 - Os desafios do „ser‟ escolar no Araguaia-Xingu na década de 1970 ........... 104
1.7 - Entre a alegria de ler, escrever e a tristeza de contar: 200 cruzeiros por
cabeça de gado humano ....................................................................................... 107
1.8 - Em contextos „integração‟, „segurança‟ e „desenvolvimento‟ que ensina a
Escola senão a subversão? ................................................................................... 113
1.8.1 - Que os olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos ver:
formação política, greve, subversão e outros episódios............................... 117
1.9 - Escola: uma invenção em litígio .................................................................. 120
1.10 - A invenção da Escola democrática e as incertezas no Brasil Central ........ 129
CAPÍTULO 2 ....................................................................................................... 141
ESCOLA COMO PEDRA ANGULAR NA FORMAÇÃO SOCIAL CONTRA A
INUMANA „DESINTEGRAÇÃO‟ DE ÍNDIOS, POSSEIROS E PEÕES NO
BRASIL CENTRAL. ........................................................................................... 141
16
2.1 - A escola entre a obsessão do governo militar e a crescente desumanização do
povo 154
2.2 - A Escola e os „sentidos‟ de educação para quem trabalhava na terra.......... 163
2.3 - Na escola, para ensinar precisa saber: inaugurando a formação de professores
no Araguaia-Xingu ............................................................................................... 170
2.3.1 – A escola revela preconceitos ............................................................ 182
2.4 - Violências além e aquém das cercanias da escola ....................................... 184
2.5 - Uma professora de história entre a rebeldia e a punição ............................. 194
2.5.1 - A escola que pune aluno pune professor .......................................... 197
2.6 - Escola em cores: fardas e castigos para os fracos ........................................ 205
2.7 - Professores são árvores de idealidade: que fazer „oprimido‟? ..................... 209
2.8 - Caixa escolar: obstáculo a superar ............................................................... 211
2.8.1 – A dialética do ensino de história ...................................................... 217
2.9 - Escola sem meio termo: se não é democrática, é tirânica ............................ 219
CAPÍTULO 3 ....................................................................................................... 223
ENSINO DE HISTÓRIA E „SUBERSIVIDADE‟: ............................................. 223
NEM AMAR, NEM DEIXAR, UNIR, DENUNCIAR E RESISTIR ..................... 223
3.1 - Os dilemas de o professor ensinar história nas escolas o Araguaia-Xingu
mato-grossense ..................................................................................................... 230
3.2 - Aprendizados do professor Juraci: caluniador de „autoridades‟ pelo triste fim
de um peão do trecho „morto e pronto‟ ................................................................ 236
3.3 - Desafios ao professor de produzir uma educação escolar que ensinasse o
caminho da liberdade ........................................................................................... 240
3.4 - Aprender e ensinar história em linguagem poética ...................................... 243
3.4.1 Lugares e espaços de lutas entre campo e cidade no Araguaia-Xingu
mato-grossense............................................................................................. 251
3.5 Entre o livro e a poesia: o ensino de história ................................................. 255
3.6 – Descolonizar a escola e o fazer do professor requer educar os sentidos ..... 257
3.6.1 - Escola e ensino de história a descolonizar: um desafio coletivo ...... 262
3.6.2 - Inaugurando outros meios com os mesmos fins: o ensino de história
..................................................................................................................... 268
3.7 - Edificado o barracão-escola, só falta professor! Autoridade ....................... 279
3.8 - A Escola sob o olhar dos escolares: o que e para que – enigmas a decifrar 286
3.8.1 - A arte de ensinar „história mal contada‟ e suas consequências ........ 292
17
3.8.2 - Ameaças, expulsão e assassinato: a saga dos „subversivos‟:
professores e religiosos ................................................................................ 295
3.9 - Sete de Setembro revelando uma história pouco ensinada .......................... 298
3.9.1 - Independência ................................................................................... 304
3.10 - A escola onde a fome da cabeça é maior que a fome da barriga ............... 308
3.11 - A comunidade inventa a escola, a escola constrói a sociedade: a sociedade
revela sua contradição .......................................................................................... 312
3.12 - Fundamentos teóricos e metodológicos da invenção da escola no Araguaia-
Xingu: entre o projeto opressor e a educação popular ......................................... 316
3.13 - Avaliação da educação popular no Araguaia-Xingu mato-grossense ....... 321
CAPÍTULO 4 ....................................................................................................... 330
A RE-INVENÇÃO DA ESCOLA POPULAR E DEMOCRÁTICA NO
ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE: CONTRIBUIÇÕES À HISTÓRIA
E O „SABER FAZER‟ DO PROFESSOR NO SÉCULO XXI ........................... 330
4.1 – INAJÁ – a mais elaborada invenção da escola popular para a formação de
professores............................................................................................................ 337
4.2 – INAJÁ fruto cuja semente não germinou no cacho, mas em raízes profundas
em solo regado de conhecimento, de inovação, de resistência e esperança ......... 344
4.2.1. As ciências humanas na educação básica em torno de uma causa: a
sobrevivência humana no Brasil Central ..................................................... 349
4.2.2. Tia, Tia, Tia, Estou Lendo!!!: mais que aprender a palavra, aprender a
palavração. ................................................................................................... 358
4.2.3. Razões da educação popular X razões da „Carta de Curitiba‟ nutrindo
debates e disputas sobre a memória ............................................................. 364
4.3 - Educação popular x educação burguesa ...................................................... 369
4.3.1 Princípios da educação popular .......................................................... 372
4.4 – As disputas pela memória: a educação em semente sob as sombras do Inajá378
4.5 – O saber-fazer do professor de história no presente e no futuro................... 391
4.6. Escola 2030: Um novo perfil do professor de história - entre o ensinar e
mediar aprendizagens em tempos (self) ............................................................... 415
4.7 - Das práticas à teoria – da teoria às práticas: por uma reinvenção da escola no
Araguaia-Xingu no e para o século XXI, caminhos a seguir .............................. 432
Considerações finais............................................................................................. 437
18
INTRODUÇÃO
„Os contextos não são isolados, eles são resultados
de processos históricos‟.
Thompson (1981)
Narrar sobre a invenção e as artes de fazer a escola no Araguaia-
Xingu mato-grossense foi, e continuará sendo, ato continuo, uma aventura
inesquecível, um desafio a que poucos tiveram a oportunidade de enfrentar e de
reconhecer a instituição escola com endereço no tempo e espaço, um tempo
narrável, quantificável e em alguns momentos administrável, embora estivesse
quase sempre se rebelando, pois, mesmo que em forma de memória, os banzeiros
tornaram a navegação e o caminhar entre o Araguaia-Xingu uma viagem com
imprecisão de chegada em um porto seguro, porém, repleta de trajetórias e
riquezas merecedoras de ser reveladas.
Dimensionar o espaço, que de longe é aquele visto no mapa físico,
mas um espaço de confronto, próprio de fronteira, onde se efetivaram conquistas e
reconquistas no limite do humano, numa linha tênue entre vidas e mortes,
indefinidamente espaços sociais transformados e transformadores de um tempo
não quantificável, fluido, não manipulável, mas, como dito, passíveis de visitas –
cujo exercício proporcionou-nos o status de inventor. Assim, a narrativa que ora
apresentamos tem como temática central a invenção social de uma instituição
escolar, num espaço concebido e em tempos socialmente construídos, registrados
e narrados, chamamentos à revisitação, conferindo à escola uma memória
reificante.
Ao certo que, nem na dimensão do físico da existência humana sob o
solo, tampouco nas memórias daqueles que lá viveram (vivem), bem como entre
os pesquisadores dos processos constituintes da ocupação do Brasil Central
conseguem fazê-la com exatidão, mas, a somatória de esforços, a exemplo da
presente narrativa, contribui para termos uma ideia sobre o fazer humano, muito
embora, como as areias do tempo, mantem-se o imemorial, um tempo em que o
calendário cristão não consegue dominar, manancial de razões para novas
pesquisas.
19
Assim, ao tempo em que a busca permite avanços no tocante à
ampliação dos horizontes do conhecimento sobre o Brasil Central, reconhecemos
os limites espaço-temporais da pesquisa, razão pela qual delimitamos a reflexão
na segunda metade do século XX e início do século XXI, pois, bem distante de ser
vazio na concepção humana da ocupação das terras e águas do Araguaia-Xingu,
daremos visibilidade ao processo de expulsão e dizimação de dezenas de nações
indígenas, bem como ao silenciamento imposto aos primeiros chegantes,
caucheiros, sertanejos, posseiros, peões.
Diferente tratamento receberam os „tubarões‟2 que, com o apoio do
Estado, se assenhoraram das terras na „Amazônia Legal‟, tal ligação gestou os
grandes latifúndios, acirrando os conflitos pela terra, tornando-as privativas ao uso
coletivo de indígenas e não indígenas. Portanto, o „vazio demográfico‟ foi uma
invenção do Estado para justificar a decisão de privatizar a terra, abrindo
precedente para a especulação, a exploração, e, por conseguinte, a exclusão social
- a substituição do homem pela pata da vaca e as cifras delas advindas3.
Essa política de aniquilamento do humano se deu especialmente
durante o governo militar, cuja ascensão ocorreu a partir do golpe de 1964 e
terminou com a redemocratização do país em 19854, cujo marco não resultou
numa ruptura desse processo, cujas consequências são ainda percebidas nos dias
atuais. Nesse contexto é que buscamos entender a invenção da escola no
Araguaia-Xingu mato-grossense tomando as memórias registradas, anunciadas e
difundidas pelo periódico católico Folha Alvorada5, procurando entender que
2 O termo tubarão ou tubarões foi utilizado largamente pela Folha Alvorada para se referir aos
fazendeiros latifundiários. 3 Durante a narrativa, ao mencionarmos Brasil Central em substituição da expressão Araguaia –
Xingu, nos referimos à posição geográfica, pois, o Araguaia-Xingu, num traço norte-sul, Leste-
Oeste representa o centro do mapa desse país continental. 4 Ao expressar término nos referimos ao governo militar-civil, pois, o conflito nunca teve fim, e
em tempos de avanço da monocultura, primeira década do século XXI, testemunhamos as
violências, a ser dimensionadas nos próximos estudos. 5 O acervo da prelazia foi todo digitalizado por voluntários da Espanha, ligados à ONG
“Arquivistas sem fronteiras”, cujo trabalho contribuiu imensamente com nossa pesquisa, pois são
mais de 200 mil documentos digitalizados, nos quais podem ser encontradas mais de 50 mil cartas
de Dom Pedro. Para nosso trabalho nos valemos desse recurso, especialmente das publicações da
Folha Alvorada. Esse periódico tinha circulação bimestral reproduzido em mimeógrafo no formato
apostila, com distribuição gratuita, assinatura e contribuição espontânea, tendo sido elaborado por
equipe própria e contava com colaboradores fixos e voluntários, veiculando notícias de diversas
dioceses e da igreja em geral. Tinha uma tiragem aproximada de 1.600, com 6 páginas em média
com início no ano de 1970 e circula até a presente data.
20
importância haveria de se ter uma „escolinha‟ de educação básica nas cidades e
sertões do Brasil Central.
À medida que avançava a pesquisa, começamos a perceber quão rica e
generosa se tornava aquela fonte, seja pela metodologia de sua construção, pela
clareza com que apresentava o cotidiano, deixando-nos entrever e analisar sua
importância, com o olhar de historiador e professor de história, ao deparar com
aquele aparato de resistência e pedra angular da formação social no tempo.
Bem diferente da subestimada importância atribuída às „escolinhas‟
rurais ou urbanas, que, embora custassem para ganhar status de cidade,
considerando sua densidade populacional, mas um grandioso projeto embasado
nas táticas de guerrilha. Embora espalhadas a centenas de quilômetros umas da
outras, sem estradas, com dificuldades de locomoção, especialmente em tempos
de chuva, isoladas geograficamente, havia um viés que as ligada ponto a ponto,
tecendo uma rede: o ideário de libertação e resistência em rede, alimentado por
um importante meio de comunicação, a Folha Alvorada.
Esse foi um achado aos olhos deste pesquisador, especialmente por ser
a escola-educação assunto de primeira grandeza. Tamanha era sua relevância e
volume de dados que a Folha Alvorada não foi suficiente, em muitos momentos,
exigindo buscar outras fontes, suspeitas necessárias para maior segurança e
distanciamento do discurso ali praticado.
O fato de ser um periódico „independente‟ dos silenciamentos
impostos ou comprados por parte dos fomentadores da grande mídia oficial, fez
da Folha Alvorada instrumento subversivo aos olhos e interesses dos opressores –
Estado e latifúndio, porta-voz da causa dos oprimidos, meio pelo qual anunciava,
denunciava, compartilhava e ensinava como haveria de ser orquestrada a
resistência, e, nesse particular ocorreu o embricamento entre a escola, como
atalaia, e o conhecimento, enquanto arma contra as pedras de tropeços, aliados à
ignorância, desigualdade social e ao medo.
Nas páginas da Folha Alvorada habitaram homens, mulheres e
crianças integrantes de uma sociedade real, lutando por uma sociedade ideal, onde
a fome, a miséria, a prostituição, a vida e a morte se avizinhavam nas e pelas
palavras, porém, por traz das narrativas, escritas ou desenhadas, estava um escritor
21
revolucionário liderando outros subversivos, calçados ou descalços, lá estiveram
com os pés no chão, com caneta em punho e ou com estes sobre o teclado de uma
pequena máquina de datilografia, desenhando letras que a cabeça projetava sobre
aqueles e muitos outros cotidianos, entre sonho e realidade, o dia-a-dia vividos e
registrados, dentre os quais inventamos nossas fontes.
Além da Folha, também fizemos uso dos diários de Pedro
Casaldáliga, enviados especialmente aos amigos de além-mar e, por entender que
eles foram escritos por diferentes motivos, seja por representar o recolhimento de
fatos para um futuro livro, mas, naquele contexto, enquanto forma encontrada de
preparar-se para a defesa de possíveis acusações.
O diário constitui importante documento para a análise dos dramas
pessoais, no caso de nossa pesquisa, dos registros pessoais de Pedro Casaldáliga,
um líder religioso, que, ao consignar suas impressões logo após o ocorrido, ou
suas memórias, lembranças de processos resultantes de perseguições e perdas.
Assim, a Folha Alvorada, somada aos documentos pessoais de Pedro
Casaldáliga, os quais se tornaram públicos no Brasil ou fora deste, se confundem,
pois muitos dos registros ali publicados eram, anos posteriores, „relembrados‟,
como forma de reafirmar propósitos. Tais documentos não poderiam ser
descartados na pesquisa, mas tiveram inestimável valor, com vistas, sobretudo, a
estimular a compreensão do problema e também para complementar dados
obtidos mediante outros procedimentos.
Lançar um olhar sobre a invenção da escola para posseiros, indígenas,
peões e sua relação com fazendeiros, políticos, comerciantes e polícia – revelaria
„[...] as astúcias, o golpe e as artes de fazer‟6 a escola de educação básica
representada enquanto manancial para a compreensão sobre a constituição do
Povo: posseiros, religiosos, professores titulados e leigos, peões, jagunços, gatos e
demais categorias que fizeram (fazem) a história humana dos sertões entre o
Araguaia-Xingu, no estado de Mato Grosso.
Inicialmente, muitas eram as perguntas: considerando as distâncias e
os poucos recursos das famílias vítimas do êxodo rural durante décadas: como e o
que representavam as escolas para as famílias dos escolares? Como foram
6 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 101.
22
edificadas nas cidades e nos sertões, sem estradas, sem transportes? Como eram
praticadas, de que tecnologias se valiam os professores para exercer a função
docente? Quais eram as temáticas tratadas por eles ao ensinar história? Que
estratégias foram criadas para que as escolas se mantivessem de pé, frente às
dificuldades vividas pelo povo pobre, habitantes daqueles sertões? E para as
famílias dos posseiros, peões (sertanejos) e indígenas e demais legítimos
habitantes da região, naquele momento sob o julgo de projetos empresariais de
colonização incentivados pelos governos militar-civil?
Que esperar de uma instituição repleta de contradições, que tem sido
atacada por um discurso de que não é capaz de atender aos anseios estatísticos dos
detentores do poder? Uma instituição repleta de escolares insatisfeitos, rebeldes,
com um currículo „ultrapassado‟ e merecedor de constantes reformas? Uma escola
praticada nos e pelos interesses neoliberais7? Porém, tais respostas não teriam
sentido se não partissem de um lugar vivido, e, nesse particular, ancoramos no que
delineou Certeau, “[...] o lugar é uma configuração instantânea de posições.
Implica uma relação de estabilidade”.8
Assim, narrar à escola inventada no Araguaia-Xingu é abrir uma
janela para o pertencimento, o estranhamento e a interpretação das relações ali
estabelecidas. Dessa forma, reconstruir a trajetória daquele processo é reconhecer
o contexto, as famílias, os aprendentes e, principalmente, os profissionais que
nelas atuaram, muitos dos quais só se fizeram presentes nos registros por meio de
imagens ou escrituras deixadas, intencionalmente, ou não, como no caso, os
daqueles publicados na Folha Alvorada, nos diários do Bispo Pedro Casaldáliga e
também em formulários impressos e online, dentre outras fontes compulsadas na
construção da presente narrativa.9
A Folha Alvorada recebeu maior atenção por se tratar de uma
documentação bem conhecida dos pesquisadores sobre o Araguaia, é documento
7 Os interesses neoliberais na escola de educação básica são revelados pela relação maior resultado
com menor esforço, portanto, aproxima-se da relação capitalista de trabalho resultando na
fragilização e exploração do profissional da educação. Essa relação será apresentada ao longo da
narrativa em forma de denúncias feitas sobre o baixo salário do professor, a falta de investimento
para a edificação das escolas, cujas problemáticas serviram bandeira para sua superação, a
invenção de uma escola popular e democrática. 8 CERTEAU, Michel de. Op. cit., p. 101.
9 Ao longo da tese, adotaremos o termo aprendente enquanto sinônimo de aluno, desde que a
escrita não interfira no contexto.
23
público, porém, esta pesquisa se faz inédita, por não haver qualquer estudo que
tenha tomado à escola enquanto objeto de pesquisa, procurando entender o
contexto de sua invenção e seus paradigmas.
Algumas razões conduziram-nos ao diálogo com Frantz Fanon, o qual
nos capacitou para entender a relação entre opressores e oprimidos, pois, ambas as
expressões tornava evidentes tais categorias e, como a próprio discurso que
permeou as ações de resistência e confronto entre opressores e oprimidos nas
páginas da Folha Alvorada. Observando que seus pensamentos foram largamente
adotados pela esquerda brasileira, por intermédio de Jean-Paul Sartre, através de
seu extrato de Damnés de La Terre (1961), publicado em Lês Temps Modernes,
percebemos que a invenção da escola foi marcada pelo pensamento de Fanon.
Quanto à ação educativa, buscamos referência em Paulo Freire, não
somente por seu pensamento-ação ter influenciado o ideário existencialista
católico, revestido do nacionalismo anticolonialista, mas por este ter diretamente
relação com a linha de pensamento que norteou os educadores ligados à Prelazia
de São Félix do Araguaia. Outro aspecto relevante sobre o autor liga-se ao fato de
ter sido ele o primeiro brasileiro a buscar respostas que exigiram a
problematização do passado como forma de compreensão do presente, princípios
atotados pela liderança local-regional, os quais haveremos de revelar ao longo da
narrativa.
Todavia, a escola edificada no citado espaço continuará preservando
em si dimensões que não permitem ser tocadas, mas, como já mencionado,
apresentaremos algumas de suas faces passível de leitura. Nesse sentido,
ampliamos as lentes, apresentando uma extensão do primeiro objetivo, com o
propósito de interpretar os valores, as buscas, as recusas de seus protagonistas,
cuja dimensão pode ser percebida nos entremuros e para além dos muros da
escola do século XXI, portanto, a arte de ensinar e a história ensinada. Para
tanto, buscaremos vestígios da ação do professor de história, suas preferências e
recusas, bem como os silenciamentos sobre os momentos em que se plantou a
pedra fundamental da educação popular e democrática no Brasil Central.
Como forma de balizar os diálogos com as fontes, estruturamos os
diálogos seguindo uma sequência ou lógica de construção da narrativa Sobre a
24
escrita da história, Certeau (1994), Hobsbawn (1998) e Chartier (1999) serviram
de embasamento teórico. Para entender a ocupação das terras no Araguaia,
amparamos nossas leituras em Martins (1979), Esterci (1987), Valverde (1980),
Barrozo (2008), Oliveira (2016). Sobre educação, em Freire (1979, 1980, 1982,
1991, 2000), Gadotti (1995) e na educação popular em Nidelcoff (1994) e
Brandão (2006). Sobre o ensino de história, nos valemos dos escritos de Nadai
(1988), Bittencourt (2004), Ribeiro (2006), e, nessa mesma esteira, para abordar o
currículo dialogamos com Sacristán (2000), Ribeiro (2005), Santos (2009). Em
relação à tecnologia em tempos de sociedade em rede, em Castells (1999), Lévy
(1993), Kensky (2007), entre outros cujos diálogos que serão apresentados ao
longo da narrativa.
Como já mencionado, o estudo se pautou na seleção das matérias
contidas no jornal Folha Alvorada, aliada ao diálogo com a literatura sobre o
tema, no sentido de atender a proposta de estudo, no sentido de reconstruir,
pautado no cotidiano das escolas, a concepção de sua função social e sua
importância na edificação de um projeto de sociedade do século XXI.
O trabalho se inscreve na essência de uma preocupação: a de
contribuir para a reflexão sobre sua invenção pautada nos movimentos sociais que
coadunaram o projeto de uma escola popular e democrática e a memória histórica
referente à construção da escola no Brasil Central, na fronteira territorial e
econômica de Mato Grosso. Nesse sentido, busca-se explicar aspectos da
organização social, com recorte específico na escola enquanto instrumento de
poder, permeados de significados extraídos pela prática „artes de fazer‟, como
invenção e experiências do ensino de história na educação básica.
Apetecemos, ao apresentar a narrativa produzida sobre a invenção da
escola, revelar sua importância na construção social no tempo, motivo pelo qual a
transformou, regra geral, em marco fundante de um projeto político de sociedade,
seja voltado para a manutenção do poder, seja para sua des-territorialização. Ao
eleger a escola como objeto de pesquisa, buscamos entender sua dimensão plural,
sua diversidade e, especialmente, seu sentido social no tempo. Sua materialidade
requer pesquisa e, não a havendo, portanto, em hipótese alguma compreender uma
25
escola de educação básica sem considerar sua dimensão histórica, temporal e
territorial.
Pensamos ainda em contribuir para a compreensão da reinvenção da
escola revelando as táticas adotadas nesse processo por parte de seus inventores, o
jogo complexo das relações dicotômicas estabelecidas entre os atores ali
envolvidos. Por um lado, a comunidade em torno de um pensamento de rebeldia
(subversividade) e resistência, e, do outro, os representantes do Estado, portanto, a
escola no Araguaia-Xingu, por ter surgido no contexto da ditadura militar e em
um espaço de luta pela terra, entre seus condenados e os beneficiados
latifundiários, foi marcada pela história dessa mesma escola e seus escolares.
Pensar a escola no tempo requer entender a lógica social em sua
invenção, revelando, na aparente homogeneidade, a heterogeneidade, a
multiplicidade de sentidos presentes nas e pelas ações fundadoras. Perceber, na
instituição, muito mais que sua aparente fragilidade material, sobretudo enquanto
fortaleza pretendida pelas famílias, de um lado, e do „Estado‟ ordenador, de outro,
representado pelos assentados e pelos detentores do poder político-administrativo.
Para emoldurar alguns traços desse quadro em permanente construção,
não basta revelar a relevância da escola nos sertões Araguaia-Xingu, mas
apresentar como ela se tornou instrumento de poder na organização das
comunidades semeadas no Brasil Central, no contexto do governo militar, em
tempos de entreguismo das terras ao grande latifúndio, nacional e internacional,
elo fundamente da leitura e mundo à leitura da palavra.
Para operar com precisão o descortinar de um passado vivido, porém,
pouco compreendido no conjunto dos sujeitos históricos, foram importantes o
aclarar dos enigmas que quase sempre se fizeram indecifráveis por permanecerem
aprisionados em um tempo – o presente – e em um espaço, o lugar onde
ocorreram os fatos. Requereu, portanto, reunir fragmentos sobre os processos na
perspectiva de revelar os sujeitos na produção do cotidiano das escolas. Ao fazer
isso, a narrativa colabora no repensar de uma escola no tempo por meio de uma
fenda.
Abrir essa brecha temporal e extrair dos registros deixados como fonte
para as reflexões, fez da pesquisa ponto de partida para duvidar sobre a
26
naturalização dos processos. A invenção da escola de educação básica no estado
de Mato Grosso, mais especificamente no Brasil Central, nas décadas de 1970 e
1980, com alcance ao início do século XXI, foi marcada por um projeto de escola
que ia muito além de sua estrutura física, mas de um projeto cujo sentido abrigava
em um contexto histórico, sociopolítico e cultural próprio daquela espacialidade
composta por sertões, cidades e povoados do Araguaia-Xingu mato-grossense,
merecedor de novos olhares.
Mato Grosso vivenciava a expansão de interesse dos grandes
latifúndios, com ampliação dos projetos de colonização sobre extensas áreas de
terras habitadas milenar, e como resultado dos conflitos de terra, também
protagonizados pelos latifundiários no Nordeste e Sul do país, grande número de
famílias expropriadas buscaram um „pedaço de chão‟, para de ele tirar seu próprio
sustento. É nesse contexto que a escola, e em especial o professor, assediados pelo
poder político, se viam diante de uma função social que o qualificava de
enfrentantes do analfabetismo, como ponta de um iceberg, cujas funções serão
apresentadas no presente tópico.
Não bastava cumprir a Lei n. 5.692/71, em especial seus artigos 29 a
40, que regiam sobre a formação de professores e especialistas para atuar no
ensino de 1º e 2º graus, feita em níveis que se elevassem progressivamente,
ajustando-se às diferenças culturais de cada região do País. Os professores
buscavam, por conta própria, formação suficiente para atuar como docente no
Araguaia-Xingu.
Devo dizer que o uso farto das matérias publicadas na Folha Alvorada
se deu por conta de entendermos ter sido este o meio pelo qual se estruturaram os
pilares da escola na e pela comunidade, cujo sentido ganhava proporção à medida
que as matérias, ao tempo em que anunciava acontecimentos, revelavam, por meio
de expressões carregadas de „ensinamentos‟, de orientação às famílias ligadas à
terra e vivendo como posseiros à margem do sistema de propriedades
oficializadas pelo Estado brasileiro.
As imagens copiosamente apresentadas cumpriram uma função
similar, a que fez durante as primeiras décadas de edificação das escolas no
Araguaia-Xingu, pois todas, sem exceção, integravam uma forma de linguagem
27
didática, assim como o texto na literatura de cordel. Embora não tenha o propósito
fazer uma história da imagem, tampouco uma análise sobre as poesias, abre-se um
vasto campo de pesquisa, pois, em determinadas situações, especialmente por se
tratar de um período de governo onde a repressão aos movimentos sociais, à
produção de narrativas „alternativas‟ que fugissem à ordem imposta pelos órgãos
de controle do governo era uma tática „subversiva‟, um mecanismo de fugir aos
rigores impostos pelo governo opressor. Assim, as imagens-textos constituíram,
por si, um discurso, um projeto que revelaremos ao longo da tese.
Todavia, além de desnudar o projeto de educação popular e
democrática entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, acercamos de avalia-lo
quatro décadas e meia depois, buscando, por meio de pesquisa aplicada por
formulário (online e impresso) sobre como a história do processo de invenção da
escola foi ensinada em sala de aula pelos professores. Ainda, a partir das
respostas, traçamos um perfil mínimo dos colaboradores, na perspectiva de
entendê-los sujeitos das transformações vivenciadas pelos escolares em seu
cotidiano, neste primeiro quarto de século.
Nesse particular, entender a relação que eles estabeleceram com o uso
das tecnologias sociais digitais, no cotidiano, pois, contraditoriamente, temos
vivenciado, em outras espacialidades, a subutilização das tecnologias nos
processos de mediação e aprendizagens no contexto escolar. A contradição se
avoluma quando afirmamos que a escola é a instituição responsável por preparar o
cidadão do futuro.
Entendemos que as relações sociais, por si, se transformam à medida
do avanço dos processos comunicacionais (suportes tecnológicos), o que exigiu
igualmente atitudes mais comunicacionais, e também na educação, novos
processos de mediação, novas metodologias no fazer do professor de história no
século XXI. Para análise das respostas, utilizamos os princípios objetivos e
subjetivos da educação popular e democrática como pressuposto de que a prática
social constitui a fonte de todo o conhecimento, uma vez que os programas
educativos devem (deveria) partir de uma problemática concreta vivenciada (vida
cotidiana) e subjetiva (conhecimento e interpretações, formas de expressão,
linguagem, valores, manifestações culturais e artísticas) e suas necessidades.
28
Assim, a busca por respostas conduziram-nos a perguntar a esses
protagonistas: como o professor de história se coloca diante do desafio de ensinar
história para aprendentes do século XXI? Que estratégias utiliza para ensinar
história, já que em tempos de cibercultura se vê diante de uma ampliação sem
precedente de informações? Que tecnologias são utilizadas para esse fim? Como
o professor de história pensa a escola do futuro? Essas e outras questões
ampliaram as reflexões ao final da narrativa.
A escolha desse público foi, de certa forma, aleatória, digo isso em
função de inicialmente ter enviado o link do formulário online para os Centros de
Formação dos Profissionais da Educação. Igualmente fizemos uso de quatro
grupos formadores, via Whattsapp10
. Dessa feita, montamos uma base de dados a
partir das respostas dos 21 colaboradores espalhados por 4 cidades, em um raio de
300 km de distância, todas situadas na região pertencente à Prelazia de São Félix
do Araguaia e que atuavam em escolas urbanas e rurais. Para não fugir ao critério
metodológico, as cidades encontram-se inseridas no recorte espacial da pesquisa
que resultou na tese.
A investigação permitiu identificar e analisar as representações sociais
do grupo, por meio da utilização dos dados obtidos através de questionários de
associação livre e de um quadro contendo respostas espontâneas, sendo 34
palavras (expressão indutora) às quais deveriam, sob o olhar do professor de
história, acrescentar 3 palavras que lhe vinham à mente para cada uma delas. O
resultado foi interpretado por associação decrescente de análise temática e, em
seguida, transformado em uma frase, de forma tal que pudéssemos extrair um
sentido coletivo, gerado a partir da expressão indutora inicial. Já os resultados das
questões de múltipla escolha, dentre as quais havia aquelas em que o colaborador
tinha que justificar a resposta, e, por fim, uma descritiva, a qual provocava o
professor a descrever a escola de 2030, a escola do futuro.
10
Três grupos de professores e acadêmicos da Universidade do Estado de Mato Grosso – núcleo
pedagógico de Confresa – curso Ciências Sociais e Vila Rica Licenciatura em Computação,
Luciara- Pedagogia – todos já haviam concluído o curso, porém o grupo permanece ativo. Um
grupo de Ciências Humanas formado pelo CEFAPRO de Confresa, além de ter enviado por e-mail
aos gestores dos CEFAPROS pedindo-os que encaminhassem aos gestores das escolas que, por
sua vez, haveriam de passar aos professores de história. O link foi enviado no mês de novembro de
2017. Tivemos que adotar outras estratégias, as quais apresentaremos no Cap. 4.
29
Aproximar nossa análise com os pressupostos das representações
sociais liga-se à necessidade de entendê-la a partir dela, vislumbrando o quanto
ela influenciava nos comportamentos, especialmente os de sala-de-aula, em
decorrência da posição „privilegiada‟ do professor, em especial o de história, em
relação à posição social investida de poder frente aos seus aprendentes, uma vez
que muito daquilo que é lançado em sala, pela „fala do professor‟, tende a se
tornar „verdade‟, até que não seja possibilitado aos discípulos outras fontes de
acesso que sirvam de contraponto ao que fora dito, o que deveria ser algo comum
no tocante à organização social do conhecimento, numa escola de educação
popular e democrática, a dialética do conhecimento. Será que isso ocorre nas
escolas de educação básica do século XXI? Essa é uma questão cujas respostas
apresentaremos ao final da narrativa.
O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro traz por
título A escola como arte de inventar de um povo nos sertões do Araguaia-Xingu,
momento inaugural no qual são apresentadas as fontes, os lugares geográficos,
bem como o processo histórico que resultou no reordenamento dos espaços,
especialmente após a política de „ocupação dos espaços vazios‟, apresentando o
contraponto do discurso. Também desvelamos quais eram as categorias ali
presentes, apontando para a invenção da escola naquele processo litigante.
No segundo capítulo, Escola como pedra angular na formação social
contra a inumana „desintegração‟ de índios, posseiros e peões no Brasil Central,
procuramos apresentar o contexto e os significados da escola para as famílias de
posseiros e peões espalhados pelas cidades e sertões daquela territorialidade,
apresentando ainda como lidam seus inventores com a violência e as lutas do
cotidiano.
No terceiro capítulo, Ensino de história e „subversividade‟: nem amar,
nem deixar, unir, denunciar e resistir, apresentamos os dilemas do professor ao
ensinar a história em tempo de ditadura e diante de uma história oficial. Pautado
nas fontes, procuramos contextualizar os desafios do professor em educar para a
liberdade, produzindo um currículo de uma escola popular e democrática.
Segundo Roger Chartier, “[...] o historiador do tempo presente é contemporâneo
30
de seu objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas
categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais”.11
No quarto e último capítulo, que traz como título A reinvenção da
escola popular e democrática entre o Araguaia-Xingu mato-grossense:
contribuições à história e ao saber fazer do professor no século XXI no Brasil
Central, procuramos apresentar a base teórica que sustentou o projeto da escola
popular e democrática e a disputa pela memória em torno da invenção da escola-
educação no Brasil Central.
Em seguida revelamos os percalços e resultados de uma pesquisa
aplicada aos professores que atuam na disciplina de história sobre a representação
que os mesmos têm sobre o processo de „invasão‟ das tecnologias sociais digitais
no contexto escolar, bem como as expectativas sobre a escola em 2030 (a escola
do futuro). Concluindo o capítulo, apresentamos os desafios do professor em
mediar aprendizagens sobre o conhecimento histórico à luz da educação popular
frente à cibercultura, entendendo-a enquanto uma realidade no presente, fruto das
relações oriundas do desenvolvimento tecnológico neste primeiro quarto de
século.
Entendemos que o Araguaia-Xingu, assim como a educação escolar
brasileira vivem uma encruzilhada histórica, um momento singular que decidirá
seu futuro, que, de certa forma, carrega consigo o drama colocado aos povos que
se instalaram na parte central do Brasil, na segunda metade do século XX, em
plena ditadura militar, cujo drama se encontra presente, afirmando-se com certa
soberania, voltando-se para a solução dos problemas locais, ou continuará
sofrendo os revezes da marcha para o progresso de poucos.
A partir de agora, convido ao leitor a acompanhar a invenção e
reinvenção da escola de educação básica, considerando o cotidiano que
inventamos no passado e no presente, a partir do qual revelaremos a escola e seu
lugar social a partir de um roteiro desvelador do caminho trilhado pela pesquisa,
às vezes acompanhado, mas, na maior parte do caminho seguimos a passos lentos,
solitários e exigentes. Cabe dizer que nesta história da qual nos apresentamos
11
CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand,
1999, p. 216.
31
como narrador, e acabamos „fazendo‟ a história dos outros, sendo, parte de minha
própria história enquanto educador, cuja narrativa é a senha para abrir novas
janelas de significados, neste e em outros tempos banzeiros da história.
32
CAPÍTULO 1
A ESCOLA COMO ARTE DE INVENTAR DE UM ‘POVO’
NOS ‘SERTÕES’ NO ARAGUAIA-XINGU MATO-
GROSSENSE
Tem que dar o peixe, ensinar a pescar, às vezes tem de ensinar
onde está o rio e tem de ajudar a conquistar o rio também.
Pedro Casaldáliga12
Escola, essa generosa invenção, se fez edificada com e por inspiração
de um povo e, entre ele, um colonizador, sentindo, vivendo e registrando sob o
calor do sol desde o nascente ao poente, acompanhando a fluidez das águas e seus
banzeiros, alimentando sonhos e arquitetando utopias entre os colonizados, nas
cidades e nos sertões13
. Uma edificação recheada de pedras-de-tropeços
espalhadas pelo opressor, mas, como as águas de enxurradas, as contornou
inundando-as, de forma a não parar no meio do caminho, cavado para e pela
caminhada dos oprimidos.
12
Entrevista concedida por Pedro Casaldáliga ao jornal Diário de Cuiabá, Caderno 02, Sessão
Cidades, de 23 de fevereiro de 2003, p. A4, Cuiabá/MT. 13
Pensamos o sertão como o oposto à cidade, conferindo a ele o uso histórico originário do latim
sertones. Não temos a pretensão em reforçar, tampouco negar o sentido ideológico atribuído ao
termo, pois fora utilizado desde o período colonial. A referência ao sertão reforça a existência de
fronteiras entre o campo e a cidade, e, para o Araguaia-Xingu, seus usos auxiliaram na
alimentação de duplo ideário, a esperança do acesso a terra, por parte das famílias de baixo poder
aquisitivo, e, por outro, seguindo o projeto dos governos militares na divisão das terras às
empresas agropecuárias (latifúndio), escamoteou a existência de grande contingente populacional
indígenas e de famílias que habitavam as margens dos rios e as matas. Eni Orlandi enunciou um
dos melhores exemplos de análise de documentos históricos sobre o povoamento do sertão, e ou a
expressão ocupação do sertão, estudando-o a partir da análise do discurso no Brasil, em sua obra
Terra à vista, onde interpreta os sentidos existentes nos textos de capuchinhos e viajantes
franceses dos séculos XVI a XVIII, buscando entender como os argumentos que aparecem nesses
textos influenciaram a formação de certa forma de ver o Brasil. (ORLANDI, Eni Pulcinelli). Terra
à Vista: discurso do confronto – Velho e Novo Mundo. São Paulo; Campinas: Cortez; EdUnicamp,
1990.
33
Essas serão as águas que haveremos de navegar desde suas nascentes,
atentos aos movimentos e passagens pelas matas, cidades, sertões, córregos, lagos,
varjões, corixos, baias e rios, lugares onde os pescadores iniciantes haveriam, em
coragem e esperança, apropriar-se do conhecimento que os levasse ao peixe, ao
domínio da prática da pesca, aos segredos dos rios e terras banhadas pelo
Araguaia-Xingu mato-grossense. Igual desafio foi enfrentado pelo lavrador, que,
sem conhecer e dominar seus segredos, não os fazia capaz de ela tirar seu
sustento.
Identificar os primórdios em que se deu a invenção da escola no
Araguaia-Xingu não seria possível se não a concebêssemos conectada com a
invenção do povo, pelo povo e para o povo. Entender esse processo possibilitou
interpretar a escola no tempo, pois, embora a pesquisa e, consequente narrativa
apresentem suas singularidades, próprias das circunstâncias da produção,
antecipamos que essa invenção não se encontrava isolada, tampouco ilhada pelas
enchentes dos rios Araguaia-Xingu, mas ligada ao processo de produção de
saberes e práticas de uma guerrilha distinta daquela protagonizada e rechaçada
pelo Exército brasileiro, embora não tenha permanecido imune às brutalidades da
ditadura e dos governos opressores, resistindo e fomentando sua reinvenção14
.
Em Mato Grosso, a guerrilha se deu em outro campo, no da educação.
Nesta batalha pareia, as escolas se tornaram palco de combates permanentes, onde
os oprimidos duelaram com seus opressores – „tubarões‟ e governo – os primeiros
representando o capitalismo latifundiário, e, o segundo, o Estado Brasileiro15
.
Portanto, recuperar a memória de semelhantes duelos é escrever a história na
14
A Guerrilha do Araguaia teve lugar nas regiões sudeste do Pará e norte do então estado de Goiás
(atual Tocantins), abrangendo também terras do Maranhão, na área conhecida como „Bico do
Papagaio‟. Ocorreu entre meados da década de 1960, quando os primeiros militantes do Partido
Comunista do Brasil (PC do B) chegaram à região em 1974, quando os últimos guerrilheiros foram
caçados e abatidos por militares especialmente treinados para combater a guerrilha e determinados
a não fazer prisioneiros (PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz). Memória social da Guerrilha do
Araguaia e da guerra que veio depois. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências. Humanas. Belém,
v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011. 15
O termo tubarão foi largamente utilizado a partir do ano de 1977, nas matérias publicadas pelo
Jornal Alvorada, se referindo ao fazendeiro, e em algum momento à besta fera. Portanto, uma
categoria praticante das violências cometidas contra o povo.
34
Dimensão de Walter Benjamin, uma construção referenciada num „tempo
saturado de ágoras‟16
.
Nessa perspectiva, demarcamos o tempo, o lugar e o processo de uma
invenção. Iniciamos, assim, falando de um tempo preciso, aquele situado em
finais do segundo quarto do século XX, durante o governo de Getúlio Vargas,
quando o Brasil conheceu seu mais novo projeto integracionista, a „Marcha para
o Oeste‟, elegendo o centro do país enquanto nova fronteira expansionista, espaço
de ocupação e exploração da riqueza dos sertões. Para tanto, o governo brasileiro
consignou em seus projetos estratégias para a distribuição de grandes parcelas de
terra a serem entregues aos „novos desbravadores‟, empresários financiados pelo
poder público que se tornariam oficialmente os maiores latifundiários que o
estado de Mato Grosso conheceu no século XX. Demarcamos a temporalidade nos
anos 2018, em razão do avanço da „nova fronteira‟ agrícola no Araguaia-Xingu,
cujas dimensões superaram, em muito, o projeto dos governos militar-civil neste
século, quando o projeto capitalista seguiu a trilha do agronegócio, inaugurando
novas formas de expropriação da terra. Igualmente, a data está vinculada aos
desafios do professor de história em ensinar esta disciplina em tempos presentes.
Com o projeto da década de 1940, a parte central do vasto continente
brasileiro foi transformada em cenário de bonança e progresso para uma centena
de grandes empresas e seus latifúndios defendidos pelo aparato do Estado, e, de
outro lado, contraditoriamente, inúmeras nações indígenas, banidas de seus
territórios, e centenas de famílias sem-terra, vitimadas por um processo de
concentração fundiária no Norte e Nordeste do país, e ali se assentando e lutando
pelo direito à posse de chãos contíguos, entre os rios Araguaia e Xingu, cujo
processo se intensificou na segunda metade do século XX. Tornados invisíveis no
discurso do grande „vazio demográfico‟ brasileiro, nessa narrativa, foram
protagonistas de um processo e autores de uma invenção, pedra angular na
organização social no tempo, a escola.
Embora nossa pesquisa privilegie o espaço-tempo a partir da década
de 1970, voltaremos nossas lentes em rápidas visitas às décadas anteriores, como
16
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense,
1994.
35
forma de denunciar equívocos cometidos pelo governo militar, ao propor a
entrega das terras e riquezas naturais (madeira, minérios) ao capital estrangeiro,
em total desrespeito à soberania nacional e aos brasileiros habitantes das terras
mato-grossenses. Sigamos a rota do discurso.
Na década de 1940, Getúlio Vargas, imbuído do propósito de avançar
a „fronteira civilizatória‟ e incorporar seus territórios à unidade nacional,
encarregou o Ministro João Alberto Lins de Barros para dar cabo a seu projeto,
criando a Fundação Brasil Central, responsável pela Expedição Roncador-Xingu.
Iniciada em 1943, suas incursões percorreram o sul da Amazônia, mantendo
contato com diversas etnias indígenas até aquele momento „desconhecidas‟ pela
administração do governo brasileiro. Essa expedição derivou em farto acervo
documental, cuja história se funde com a dos irmãos Villas Boas: Leonardo,
Cláudio e Orlando.
Ainda que a expedição resultasse em farto conjunto etnográfico, tais
registros foram „usados‟ como discurso e estratégia para alimentar o „vazio
demográfico‟, desenhando outra história que não aquela vivida pelos povos do
Araguaia-Xingu, ignorando o processo histórico que resultou na busca de um
povo por um „lugar ao sol‟ e, para seu sustento, a coleta, a transformação da terra
pelo trabalho, em alguns casos em riqueza extraídas das minas diamantíferas do
Araguaia e seus afluentes, cuja temporalidade remonta finais do século XIX e
primeiras décadas do XX;17
Sobre as reconfigurações territoriais do Vale do Araguaia, Soares,
(2004), analisando a região a partir da primeira década do século XX, oferece
elementos para a compreensão da constituição do povoado Mato Verde, atual
cidade de Luciara. Em sua narrativa, apresenta diferentes práticas de domínio de
espaço territorial praticado pelos trabalhadores sertanejos não indígenas em terras
banhadas pelo rio Araguaia e seus afluentes, na busca itinerante pelo caucho –
17
Luís Antônio Soares, em entrevista à Dona Adalta, antiga moradora de Luciara, filha do Sr.
Lúcio da Luz, considerado homem rico da época, colheu informações sobre o patrimônio por ela
herdado. Afirmou Dona Adalta que tudo teve início nos garimpos do leste mato-grossense, onde
esteve no início da década de 1920. Esta entrevista compôs o escopo documental da sua
dissertação de mestrado, defendida em 2004. Estas e outras informações poderão ser encontradas
In SOARES. Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não indígena no Vale do
Araguaia – MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em História) –
UFMT/ICHS, 2004.
36
Castilloa elástica, e na procura pelos minerais, que, por conseguinte, resultaram
na necessária escolha de matas para o cultivo de suas roças de subsistência, o
domínio de técnicas de uso dos varjões, onde poderiam criar algumas cabeças de
gado18
. Tais empreendimentos constituíram razões de permanência na terra,
reunindo condições para a formação dos primeiros núcleos „urbanos‟ em meio ao
vazio de políticas públicas para a constância e prosperidade dos povos originários
e primeiros migrantes.
Sobre os indígenas, não há precisão em seu contingente populacional,
mas, sobre os não indígenas Soares19
aponta para importantes registros deixados
pelo missionário dominicano em relação a um fenômeno populacional. Em 1872,
havia nas regiões do Pará e Amazonas 329 mil habitantes e, em 1900, número que
saltou para 695 mil. O sul do Pará, mais precisamente no arraial da Conceição do
Araguaia, pode servir de exemplo, pois, no início “[...] não era mais que um
arraialzinho de outrora” 20
, mas, na passagem do século XIX para o XX, tinha se
tornado cidade e cabeça da comarca, com uma população de 6 mil almas, e seu
território contava com mais de 15 mil habitantes espalhados pelas beiras dos rios,
nos campos e nas matas que se estendiam em direitura ao Xingu.
Igualmente, além do crescimento populacional, a região percebeu uma
diversificação na produção econômica, que, de extrativista, passou a ser também
criatória, como consta nos relatórios do explorador francês Henri Condreau,
elaborados em 1897, que, ao passar pelo povoado de Sant‟ana da Barreira,
descreveu que os habitantes eram principalmente criadores, e o número total de
animais da espécie bovina ultrapassava 2.500 cabeças21
.
Segundo Otávio Guilherme Velho (1981) e José de Souza Martins
(1997), os grupos sociais que foram para aquele espaço geográfico constituíram a
denominada Frente de Expansão, cujo movimento resultou diretamente no
alargamento da fronteira e no contato interétnico no interior do Brasil.
18
Ibidem, p. 23. 19
Ibidem. 20
AUDRIM, 1946, 102 apud SOARES, Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não
indígena no Vale do Araguaia–MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em
História). UFMT/ICHS, 2004. 21
MARTINS, Dalísia Elizabeth. As comunicações fluviais pelo Tocantins e Araguaia no século
XIX. Goiânia: Oriente, 1973. p. 116 apud SOARES, op. cit. p. 35.
37
José de Souza Martins publicou importante reflexão, em livro
intitulado Fronteira, afirmando que a “[...] fronteira é a fronteira da humanidade”
e ela aparece frequentemente no limite do humano. Porém, “[...] além dela está o
não humano, o natural, o animal”, chamando atenção para a necessidade de “[...]
entendermos que a fronteira tem dois lados e não um lado só, e o suposto lado da
civilização [torna-se] mais fácil e mais abrangente estudar a fronteira como
concepção de fronteira do humano” 22
. Embora seja tentador ultrapassar essa raia
lindeira, nosso trabalho também traz como perspectiva a dimensão humana da
fronteira, procurando evidenciar especificidades de uma invenção em construção.
Ao lançar nossas lentes sobre as famílias não indígenas e sua relação
com a terra e a produção dela advinda, observamos que em meados do século XX
“[...] a terra ainda não tinha o sentido moderno de propriedade, cujo valor era
atribuído por hectare ou alqueire, pois, a existência de cerca era somente para que
o gado, criado de forma extensiva e que não prejudicasse a plantação”.23
A terra, embora não tivesse valor comercial naquele momento, ela
tinha valor de uso e, em muitos casos, coletivo, o que possibilitou a criação do
gado à solta no varjão, sem necessidade de cercas dividindo a criação. Conforme
Soares24
, no início deste século, havia em Luciara mais de 40 retiros em uma vasta
área de terra comum, na margem esquerda do rio Araguaia, e outros no rio
Xavantinho.
A inexistência da relação terra-capital alimentou a saga dos
capitalistas e governos militares, para quem os „espaços vazios‟ significavam, de
fato, dois vazios, um relacionado aos valores capitalistas sobre a exploração terra
e, o segundo, de programas e projetos por parte do governo, os quais fossem
capazes de minimizar as dificuldades encontradas pelas famílias ali residentes.
Convém acrescentar que a ausência do Estado se limitava ao atendimento das
demandas dos pobres residentes na região, não significando que estes ficassem
fora do grande projeto econômico, visto que peças fundamentais para atender tal
22
Ver VELHO, Otávio Guilherme. Frentes de Expansão e Estrutura Agrária. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981. MARTINS, José de Souza. Fronteira – a degradação do Outro nos confins do
humano. São Paulo: Hucitec, 1997. 23
SOARES. Luís Antônio Barbosa. Trilhas e caminhos: povoação não indígena no Vale do
Araguaia – MT, na primeira metade do séc. XX. Dissertação (Mestrado em História) –
UFMT/ICHS, 2004, p. 83. 24
Ibid.
38
empreendimento, pois seriam utilizados como „trabalhadores‟ dele, tendo por base
uma relação já conhecida e adotada na Amazônia brasileira25
.
O vazio esteve ocupado por uma sequência de deslocamentos e
ocupações passível cronologicamente de observação, a saber, „Mato Verde‟, que
anos depois da chegada de seu fundador, Lúcio da Luz, na primeira década do
século XX, alterou sua nomenclatura para Luciara; Furo de Pedra, no ano de
(1909); São Félix do Araguaia, em 1942, Lago Grande e Santa Terezinha, em
1943, e Porto Alegre do Norte, no ano de 1946, refutando, portanto, a tese de
vazio demográfico.26
Logo, semelhante vazio não se ligava a um conceito físico-geográfico,
mas era gerado pela intencionalidade de colocar em prática uma política de
aniquilamento do humano, pela voracidade do capital nacional-internacional o
qual objetivava construir uma representação enquanto forma de ruína histórica das
categorias índios e pobres, abrindo sendas para o projeto e, nele, a projeção da
figura dos novos desbravadores e semeadores do „progresso‟ empresarial,
representada pelo latifúndio.
Uma reconfiguração do espaço em marcha, a reterritorialização da
fronteira de expansão Araguaia-Xingu, por meio de medidas drásticas, com
abertura de picadas, derrubada de árvores e gente para plantar capim, formando
pastos e preenchendo „os vazios‟ por bois.
25
A exploração do trabalho já era conhecida e praticada naquele espaço geográfico desde finais do
século XIX e primeira metade do XX. Conforme Otavio Ianni, havia uma teia de relações em
torno da exploração do caucho e da produção da borracha, o exportador localizado em Belém e
ligado aos bancos financiava a casa aviadora, a qual explorava os seringalistas; estes, por sua vez,
exploravam os seringueiros. Igualmente em relação à criação de gado, o vaqueiro não recebia
remuneração em numerário, pois a divisão pela produção era uma prática na qual o trabalhador
recebia um percentual das crias do gado que cuidava (1/4), exemplo de divisão, mas isso variava
conforme o acerto. Com a queda da produção da borracha, restava-lhes, Portanto, ou trabalhar
como vaqueiro na construção de curral, casas, ou tocar roça. In Otavio Ianni. A luta pela terra:
história social da terra e da luta pela terra numa área da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 47. 26
Esta região aparece na literatura com várias denominações: Médio Araguaia, quando tem como
referência o rio Araguaia, desde sua nascente à sua jusante com o rio Tocantins; Baixo Araguaia,
quando se toma por referência o rio Araguaia no estado de Mato Grosso. Todavia, como
circunscrevemos nossa pesquisa à territorialidade da Prelazia, chamaremos de Araguaia-Xingu,
correspondendo aos municípios de Luciara, São Félix do Araguaia, Santa Terezinha, Confresa,
Porto Alegre do Norte, Canabrava do Norte, Alto Boa Vista, São José do Xingu, Santa Cruz do
Xingu, Novo Santo Antônio, Serra Nova Dourada e Bom Jesus do Araguaia, por serem estes os
municípios onde foram edificadas as primeiras escolas na região.
39
Sobre essa política díspar, adotada pelo governo em relação à
distribuição de terras, Barrozo27
argumenta:
Aos grandes empresários, o governo ofereceu crédito
subsidiado, incentivos fiscais e apoio logístico. Para os
agricultores pobres, ele acenou com a possibilidade de lotes em
projetos de colonização e assentamentos rurais, em geral
distantes das cidades, sem infraestrutura, sem apoio técnico e
financeiro.
Essa dinâmica teve por base uma política voltada à reterritorialização
da espacialidade pelos „novos‟ usufrutuários da terra, em sua maioria advindos do
Sudeste e Sul brasileiro, dividindo a terra em grandes latifúndios, somados, como
já dissemos, ao capital internacional, sob o discurso de desbravar o inferno verde,
como era chamada a Floresta Amazônica nos sertões do Araguaia-Xingu28
.
Segundo Guimarães Neto, o processo de reterritorialização dos
espaços por meio das políticas oficiais seguiram os interesses econômicos e
políticos (estratégicos), definindo a região do Araguaia-Xingu como polo
Agropecuário, onde a concentração fundiária deveria ser levada a cabo com a
implantação de uma lógica tecnocrática que incluía a organização de um Grupo
Executivo de Terras do Araguaia e Tocantins (GETAT), no Sul do estado do
Pará.29
Tal decisão, segundo Guimarães Neto, tomou forma de intervenção
política, a fim de exercer controle sobre os conflitos sociais30
. Afirmou ainda que
o projeto pode ser dividido em três fases diferentes, ainda que todas elas tivessem
27
BARROZO, J. C. (Org.) Mato Grosso: do sonho à utopia da terra. Cuiabá: EdUFMT; Carlini &
Caniato, 2008, p. 11. 28
Para efeito de entendimento geográfico, a narrativa da tese faz a cobertura sobre a mesorregião
nordeste mato-grossense, Araguaia-Xingu corresponde a uma extensão territorial de 177.345 km2,
assim definido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 29
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores
rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho.
Florianópolis, v. 6, n. 11, p. 129-146, janeiro-junho 2014. 30
Fruto de pesquisa sobre a “Memória e história plural: mundos do trabalho, territórios das
migrações e microcosmos da violência”, Regina Beatriz revela as políticas governamentais civil-
militar, instaladas no Brasil em 1964, procurando estudar os conflitos sociais na Amazônia
relacionados às políticas e dispositivos governamentais no controle da ocupação das terras pelos
trabalhadores procurando entender a problemática a partir dos testemunhos da violência contra
trabalhadores e conflitos no Araguaia na área de abrangência da Prelazia de São Félix do
Araguaia.
40
sido alimentadas pela ideia da Amazônia enquanto território vazio a ser ocupado,
carregando consigo algumas especificidades, a saber:
A primeira pautada pela mudança na política de incentivos
ficais [...] Na segunda, entre 1970 e 1974, durante o mandato na
Presidência da República do general Garrastazu Médici, foi
dada prioridade aos projetos de colonização na Transamazônica,
aos projetos energéticos e à ampliação da rede viária terrestre
[...] Na terceira fase, a partir de meados dos anos 70, o governo
federal, em substituição ao modelo capitalista que inspirou as
práticas SPVEA e parte das desenvolvidas nos primeiros anos
de existência da SUDAM, orientou sua intervenção econômica
com base nas vantagens comparativas de que dispunha a
Amazônia em relação a outras regiões do país, para contribuir
ao desenvolvimento econômico nacional.31
Essas ações por parte do Estado tiveram por incremento o controle de
acesso a terra e ao mercado de mão de obra, conforme registrou Guimarães
Neto32
, pois, ao tempo em que dificultava o acesso da terra às famílias pobres,
criava-se um contingente populacional potencialmente disponível para o trabalho
de derrubada da floresta, plantação de pastos e lida com o gado.
Do ponto de vista jurídico-cartorial, o projeto governamental não
sofreria resistência para sua execução, pois, no âmbito local-regional, a terra „não
tinha dono‟, visto serem reservadas à União.
Segundo Meirelles33
, no Brasil, todas as terras foram, originalmente,
públicas. Assim, sua transferência a particulares deu-se paulatinamente, por meio
de concessões, vendas, doações, permutas e legitimação de posses, daí a regra de
que toda terra sem título de propriedade é de domínio público.
A partir do golpe militar de 1964, o Estado ampliou a política de
exploração das riquezas naturais, direcionando a economia para atividades de
larga escala (extrativista, monocultora e pecuária), em nome do progresso e da
integração nacional, apoiando e „incentivando‟ a formação de grupos de
investidores com capital internacional para o desenvolvimento econômico do país,
31
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Op. cit., p. 132. 32
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil
contemporâneo. Cuiabá: UNICEM, 2002, p. 16. 33
MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 21 ed, São Paulo: Malheiros,
1996, p. 459.
41
muito embora os incentivos fiscais, certamente, representassem a maior parcela de
investimento financeiro.34
Nesse contexto é que buscamos entender a edificação da escola,
tomando os registros de memória registrados, anunciados e defendidos como
resistência dos povos do Araguaia-Xingu mato-grossense. Assim, a busca pela
fonte conduziu-nos à consulta do periódico católico Folha Alvorada, procurando
entender o viés da formação sócio histórica local, observadas as questões
relacionadas à escola, de onde vertia o ideário denunciador de estratégias e táticas,
arregimentando pessoas em torno de um projeto contrário ao que havia sido
orquestrado pelo governo conluiado com o capital.
Os arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia, atualmente
digitalizados, se mostrou generoso para com a pesquisa, a partir da qual
recolhemos pistas sobre um cenário de incontáveis contendas, dentre as quais
foram recortadas àquelas que estiveram diretamente ligadas à invenção da escola.
Analisa-la sob o olhar do historiador e professor de história tem por premissa
contribuir na construção de modelos explicativos de como aquela comunidade
concebeu a escola, quais fundamentos teóricos sustentaram seus pilares, que
dificuldades encontraram para sua edificação e, especialmente, que revezes essa
invenção sofreu adiante do quadro caótico de violência que amoldurou a luta pela
terra.
Pensar a formação da escola naquelas paragens fez-se duplamente
significativa, primeiro, por entender as características que marcaram sua origem e,
segundo, por se tratar de uma instituição em permanente construção, contribuindo
com reflexões pertinentes à sua transformação e reinvenção, já que ela compôs o
contraponto da práxis que materializou saberes e medidas no conjunto de ações,
intervindo nos conflitos sociais gestados em meio à violência política que
34
No mesmo ano em que se implantou o governo ditador no Brasil, 1964, foi construída a primeira
escola na região do Araguaia-Xingu, pelo Padre Francisco Jacques Jentel. O Padre Chico, como
era chamado pelas pessoas do lugar, nasceu em Meriel, na França. Ordenado sacerdote, foi para
África para ingressar na Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus. Em 1954, veio para o Brasil
trabalhar como missionário da prelazia de Conceição do Araguaia, a qual, naquela época, fazia
parte a Missão Tapirapé, com quem viveu dez anos de sua vida. Em 1964, mudou-se
definitivamente para Santa Terezinha, local onde construiu a escola que serviu e ainda serve de
marco da educação no Araguaia-Xingu (Alvorada, folha da prelazia de São Félix do Araguaia. São
Félix. 1979. A 16.0. 63 P1.17).
42
envolvia a questão fundiária instituída pelo Estado, visando não alterar a política
agrária no Brasil.35
Diante deste cenário, abre-se um grande leque de dúvidas: cumpriu a
escola sua função social de preparar as famílias para a resistência e enfrentamento
das mazelas sociais? Se o fez, como? Com quais recursos? Embora tenhamos
consciência de que, por maior vontade que houvesse, trata-se de um quadro de
respostas impossíveis de ser respondidas em sua completude, dado os limites
apresentados pelas fontes, assim como pelos contornos da própria pesquisa.
Muitos foram os „banzeiros‟ que passaram despercebidos pelos inventores da
Folha Alvorada, bem como pelos navegantes daquelas águas que inundavam o
cotidiano e a história do Araguaia-Xingu.
Além do mais, mesmo que, para nossa pesquisa, a Folha Alvorada
representasse fonte de primeira grandeza, deve-se considerar que sua produção e
divulgação passou por crivos escriturários de origem, seja na escolha do tema ou
fato a ser relatado-divulgado, ou até mesmo no momento de sua reprodução, tendo
passado pelo crivo de um conselho editorial.
Todavia, o periódico da Prelazia tornou-se relevante para a construção
da tese, uma vez que os „grandes‟ jornais em circulação no Brasil, nas décadas de
1970 e seguintes, jamais publicariam as matérias divulgadas pela Folha Alvorada,
por inúmeras razões: a primeira está ligada à questão econômica, uma vez que
escrever matérias para vender jornal para algumas famílias espalhadas pelo sertão
Araguaia-Xingu não se apresentava rentável; o segundo motivo atrela-se à questão
política, sendo prática de qualquer governo, especialmente os que estiveram no
comando durante o governo ditador, somente veicular matérias autorizadas.
35
A violência aparece em maior ou menor intensidade em todos os trabalhos publicados sobre o
Araguaia-Xingu, seja nas páginas dos livros de antropologia/etnologia, geografia, sociologia e
educação. Todavia, ela tinge de vermelho os trabalhos sobre a história da ocupação daqueles
sertões, uma espécie de ingrediente principal nessa trama da vida real. Assim, em nossa narrativa
haveremos de, igualmente, tocar nesse tendão de Aquiles da organização social, porém, haveremos
ao longo do texto de revelar quais significados foram dados à violência, e, em particular, aqueles
percebidos no quadro em que aparece a escola, procurando revela-la em seu conjunto, enquanto
um atentado à dignidade da pessoa humana, seja ela física ou psicológica.
Sobre a política agrária, segundo Guimarães Neto (op. cit., p. 133) essa política adotada esteve
voltada para manter o status quo da política agrária expressa pelas relações entre “militares” e
“civis” (grandes empresários e proprietários de terra na Amazônia, representantes do poder
judiciário e legislativo, entre outras categorias sociais).
43
Assim, a questão política se fez relevante, para nosso trabalho, pois,
contrariando a „lógica‟ adotada por outros meios de comunicação, quanto ao
silenciamentos intencional de alguns eventos, negligenciando a existência de
habitantes naquelas paragens. A Folha Alvorada, contrariamente, fez com que a
realidade vivida pelas famílias fosse conhecida por elas, bem como pelos mais
diversos órgãos oficiais no Brasil e fora dele, cujas matérias, como veremos ao
longo da tese, estabeleceram contraponto com as narrativas oficiais, ora
afirmando, ora negando, a exemplo de que as ações da prelazia estivessem ligada
à „Guerrilha do Araguaia‟, equivocadamente atribuída a Mato Grosso.
Essa era uma estratégia adotada pelos meios de comunicação oficial,
ou matérias pagas por estes, na tentativa de ganhar a opinião pública e, sobretudo,
justificar as inúmeras investidas militares-civis contra a prelazia, mais
especificamente contra os padres „comunistas, guerrilheiros e subversivos.
Contudo, a guerrilha armada não avançou os limites de Mato Grosso.36
Revelar os segmentos sociais que demandaram a edificação da escola
para dela se servir, bem como os processos, dificuldades e avanços decorrentes,
ilustrarão as páginas do capítulo inaugural da presente tese. Adotamos um olhar
de faroleiro, para perceber a escola enquanto instituição e em que circunstâncias
específicas ganhou relevo na formação da sociedade e do povo que coabitava as
cidades, povoados e sertões do Araguaia-Xingu, nas últimas cinco décadas.
Entender sua invenção mapeando suas características, como símbolo
de luta das famílias que dela necessitavam, é igualmente entender as táticas de
guerrilha na visão de Peixoto37
, uma história suspensa no tempo, porque tanto seu
desfecho, infamado por execuções e desaparecimentos, quanto seus ideais se
perderam nos meandros das lutas de apagamento da memória, mas também
perceber a existência de práticas de inclusão, por meio de um currículo que
abordava os problemas locais. Por fim, prospectar, em seu cotidiano, práticas de
36
Ao longo desta narrativa serão revelados os sentidos dados ao chamar os padres e os professores
de guerrilheiros. Adiantamos que essa foi uma estratégia discursiva do governo militar que, ao
usar os veículos de comunicação a seu favor, visou preparar a opinião pública, condenando por
antecipação àqueles que defendiam o direito do povo do lugar, e, assim, justificar o uso da força
contra aqueles que se opunham ao projeto arquitetado para o Brasil Central. 37
PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Memória social da Guerrilha do Araguaia e da guerra que
veio depois. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. Belém, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez.
2011.
44
resistência e liberdade enquanto irradiadoras de esperança para o homem à deriva
do Estado, uma vez deixado às margens das políticas públicas.
Como afiançamos anteriormente, lançar um olhar sobre a invenção da
escola para posseiros, indígenas, peões e sua relação com os fazendeiros,
políticos, comerciantes e polícia – revelando “[...] as astúcias, o golpe, artes de
fazer” 38
, possibilitará entender a constituição do Povo: posseiros, religiosos,
professores – leigos, peões, jagunços, gatos e demais categorias que fez (faz) a
História Humana dos sertões entre o Araguaia-Xingu, no estado de Mato Grosso.
Eis o motivo primeiro da presente narrativa, visto que a busca por respostas nos
moveu à pesquisa, a qual revelaremos ao longo da tese.
Visitar a seara do tempo e perceber os valores conceituais parece-nos
pertinente, à medida que os conceitos passam a qualificar certas categorias sociais,
alertando o leitor para que possa situar suas reflexões acerca do termo posseiro,
pois, em nosso trabalho eles são entendidos como agricultores que, juntamente
com a família, ocuparam (ocupam) pequenas áreas de terras devolutas ou
improdutivas que não estavam (estão) sendo utilizadas e que pertenciam
(pertencem) ao governo, ou trabalhadores rurais que tinham (têm) a posse, mas
não a documentação oficial que provasse que eles são seus donos e detentores da
propriedade da terra39
.
Embora existissem outros instrumentos para a „regularização‟ da
propriedade da terra, foi o Estatuto da Terra, criado pela Lei n. 4.504, de 30 de
novembro de 1964, e regulamentado pelo Decreto n. 55.889, de 31 de março de
1965, que inaugurou o Plano Nacional de Reforma Agrária, administrando
recursos por meio do Fundo Nacional de Reforma Agrária. Essa autarquia, dotada
de personalidade jurídica e autonomia financeira, diretamente subordinada à
presidência da República, teve por objetivo atuar paralelamente ao Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) e ao Instituto Brasileiro de
Reforma Agrária (IBRA), emergindo enquanto tentativa de aliviar as tensões
sociais que, no início da década de 1960, tinham como principal motor as
38
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 101. 39
Criado pelo Decreto n. 1.110, de 9 de julho de 1970, sob a ordem do Presidente Emílio
Garrastazu Médici. Sobre o termo posseiro ver FERREIRA, A. B. H. Novo dicionário da língua
portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 372.
45
questões vinculadas à propriedade da terra. No entanto, as primeiras medidas do
IBRA visaram revogar alguns atos de desapropriação decretados pela
Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), em Mato Grosso, Goiás,
Pernambuco, Rio de Janeiro e Maranhão.
Para realizar a reforma agrária, o IBRA se propôs a elaborar, como
primeira tarefa, um cadastro dos imóveis rurais, preparado entre 1965 e 1966. Aos
poucos, porém, o órgão foi abandonando qualquer preocupação reformista. O
marco dessa alteração foi à promoção do Encontro de Ocupação do Território,
cuja principal proposta foi a de que não se multiplicassem as desapropriações de
latifúndios, a não ser quando amigáveis e realmente imprescindíveis. Por outro
lado, este encontro defendeu a aceleração não só da titulação na fronteira e nos
núcleos de colonização e povoamento, como também do contato com firmas
privadas que receberiam colonos, sobretudo nordestinos, selecionados pelo IBRA
e pelo INDA. Finalmente, em 1969, o artigo 7º do Decreto-Lei n. 582, de 15 de
maio, oficializou a transferência para o IBRA das atribuições referentes à
colonização.40
Todavia, em 1970 o INDA e o IBRA foram extintos, dando origem
ao Instituto Nacional e Reforma Agrária (INCRA).
Observa-se, portanto, que a questão da terra no Brasil continuou sendo
objeto de contenda e historicamente marcado por avanços e retrocessos, cujo
processo deixou desemparados aqueles com menor poder aquisitivo, pois o
próprio Estatuto da Terra não cumprira sua função, e o INCRA, intimamente
ligado ao projeto de colonizador do governo Médici, não conseguiu alterar a
estrutura fundiária do país, cumprindo, o Estatuto, a função principal para a qual
fora criado, qual seja, manter a política de concentração de terra. Esse foi o
contexto responsável pelo Brasil Central ganhar novos contornos, e,
descortinando um panorama de luta e resistência dos posseiros e indígenas para
sua permanência nas terras contíguas aos rios Araguaia-Xingu mato-grossenses.41
Nem os posseiros e tampouco os indígenas contavam com quaisquer
serviços do Estado, dentre outros destacamos a escola enquanto arte de inventar
40
Boletim IBRA informa; O Estado de S. Paulo; Folha de S. Paulo; Instituto da Reforma Agrária. 41
O Parque Nacional do Xingu foi criado pelo Decreto n. 50.455, de 14 de abril de 1961, assinado
pelo presidente Jânio Quadros e regulamentado pelo Decreto n. 50.084, de 6 de agosto de 1968, e
n. 68.909, de 13 de julho de 1971, mantendo um perímetro com inúmeras alterações, foi
finalmente demarcado em 1978.
46
de um „povo‟ nos „sertões‟ no Araguaia-Xingu mato-grossense, obedecendo, neste
capítulo, o recorte temporal 1970-1980.
Para um diálogo com as fontes, acrescentamos algumas questões
subsidiárias às já citadas anteriormente, considerando as distâncias e os poucos
recursos das famílias: o que eram as escolas? Como foram edificadas nas cidades
e nos sertões, sem estradas, sem transportes? De quais tecnologias se valiam os
professores para exercer a função docente? Quais eram as temáticas tratadas por
eles ao ensinar história? Que estratégias foram criadas para que as escolas se
mantivessem de pé, frente às dificuldades vividas pelo povo pobre habitantes
daqueles sertões?
É possível que a adoção do termo „sertões‟ faça parte do discurso
como prática de lugares por quem só conheceu a vida urbana. Assim, ao usá-lo
sem reserva, incluindo os adotados historicamente, a exemplo da expressão
„progresso‟, contribuíram favoravelmente na ocupação dos „vazios‟ demográficos,
cortando grandes áreas de terra para a criação das extensas fazendas. Assim,
sertão deixava uma brecha para a consolidação do projeto arquitetado pelo
governo e latifundiários.
Dessa feita, o silenciamento dos povos, já mencionado anteriormente,
cumpriria tripla função: a primeira, esconder as famílias de posseiros vivendo em
terras que foram passadas à „esmo‟ para os fazendeiros formarem seus latifúndios;
e, a segunda, no momento do uso da violência para a expulsão do contingente
indesejado, procurando minimizar as consequências do conflito; já a terceira está
ligada à tentativa de desviar a opinião pública pelas matérias (artigos, livros,
matérias jornalísticas, radiofônicas, televisivas), apresentando esse projeto como
sendo benéfico para o país, sob o velho e afamado discurso – integrar para não
entregar - porém, a Folha Alvorada cumpriu o contraponto dessa estratégia,
anunciando, inclusive, o entreguismo das riquezas existentes no Brasil Central
praticado pelo governo brasileiro ao capital estrangeiro, e por essa razão a Folha
Alvorada recebia a pecha de ser produto da ação de guerrilheiros comunistas.
A pesquisa possibilitou perceber que, para entender o processo
histórico que resultou na invenção da escola, seria necessário decifrar alguns
códigos que, ao longo da tese, haverão de ser revelados, pois, viver e conviver nas
47
últimas cinco décadas no Araguaia-Xingu foi e continua sendo um grande desafio,
afinal, se tinha como discurso o vazio demográfico, e hoje temos o vale dos
esquecidos. Tais afirmativas suscitam uma dúvida: quais são e serão os novos
discursos „colonizadores‟, quais serão as políticas adotadas para servir ao grande
produtor, em detrimento das famílias e suas pequenas propriedades?42
Portanto, requer averiguar: A terra era para quem dela precisava? Os
latifundiários necessitavam de tanta terra para viver? Como a escola contribuiu
para a produção-reprodução da cultura sobre a terra? No decorrer desse capítulo,
será possível identificar que a invenção da escola, desde seu princípio, foi
marcada por um problema que movia a todos: a luta pela terra, a luta pela vida.
Contrariando a máxima de uma descrição objetiva do passado,
servimo-nos desta para apresenta-lo no presente, por meio de algumas faces
reveladas no cotidiano das escolas, dentre outros o da violência, da organização
coletiva, da escola popular e democrática, da produção e mediação de
aprendizagens, mais especificamente por meio da história ensinada. Entendemos
ainda que, por se tratar de práticas e discursos, reificar o entendimento da
invenção da escola contribuirá para decifrarmos a sociedade que a alimentou e
continua nutrindo. Igualmente, isso só poderá ocorrer a partir da produção de
novas práticas, discurso e ações – a reinvenção da escola do século XXI.
Apresentados os contornos históricos iniciais, por onde projetamos o
foco da pesquisa – o território Araguaia-Xingu – delimitar as balizas cronológicas
e conceituais da pesquisa torna-se relevante. O marco temporal inicial remonta a
década de 1970, sendo que 2018 delimita o final. Porém, para o primeiro capítulo,
limitaremos nossa narrativa à década de 1980.
A invenção da escola, objeto de análise em que ancoramos o primeiro
capítulo, é caracterizada por vasta fonte documental produzida durante o processo
de reterritorialização do Araguaia-Xingu, por retirantes, posseiros, grileiros,
jagunços, fazendeiros, peões, padres, bispos, professores, pais e mães de famílias,
prostitutas, políticos, dentre outros viventes nos territórios imemoriais indígenas
42
Compete afirmar que, embora a região tenha sido marcada pela implantação, com o avanço da
agricultura de larga escala, dos projetos de assentamento, atendendo, assim, a uma pequena parte
das famílias de posseiros da região, ocasião em que as pequenas propriedades foram cedendo
espaço para a manutenção e alargamento do latifúndio monocultor.
48
existentes e registrados pela
Folha Alvorada, hoje disponível
nos arquivos da Prelazia de São
Félix do Araguaia. Já em sua
primeira edição, publicada no mês
de fevereiro de 1970, anuncia as
razões que cercavam sua
invenção: a) Correio de Amizade,
b) Programa de Renovação, e c)
Mensagem de Evangelho.
Anunciou em sua
primeira edição - Uma „folha‟ de
sol e de sereno, sustentada na
alegria de todos, nas comuns
necessidades dos trabalhos de
melhoramento a que estavam
sendo chamados. Noticiava ainda
que, a partir do mês de março, as viagens, acostumadas com pouso de uma noite
ou duas, pela estrada do Araguaia e pelo rio das Mortes, haveriam de se prolongar
com duração variável de semanas, ou até meses e que se revelavam, de forma
poética, na luta que haveria de travar cotidianamente – dia e noite, cuja
espacialidade apresentamos na (Figura 1) ao lado.
Contudo, é em sua edição de número três, publicada no mês de maio
1970, que a Folha Alvorada dedicou um longo editorial à educação, cuja matéria
iremos melhor apresentar no segundo capítulo da tese. Porém, para o momento,
faz-se importante apresentar o Hino do Ginásio Estadual Araguaia, cuja letra,
conforme revela a matéria, era de Adauta Luz Batista e do Padre J. Maria Gil:
Neste povo a esperança floresce,
Nova luz já começa raiar,
O Ginásio Estadual Araguaia
Nossas mentes vem iluminar.
Mocidade eia, avante eia, avante
Que o Brasil sobre nós ergue a fé
49
Esse imenso, colosso, gigante,
Vamos todos erguê-lo de pé.
O Brasil quer a luz da verdade,
Do esforço e da promoção,
Nós iremos marchando adiante,
Desfraldada a bandeira da união,
Sob o céu desta Pátria querida,
Como raios de um mesmo sol,
Empenhados na luta estaremos:
Construir um Brasil bem melhor. 43
Assim, o tema sobre educação ganhou ênfase, especialmente ao
anunciar os problemas e soluções alcançados pela comunidade, inaugurando um
campo de batalha em torno da invenção da escola. Tais dimensões haveremos de
revelar no decorrer da presente narrativa.
Para a construção do capítulo atual, estabelecemos diálogo com as
fontes, procurando uma aproximação com os sentidos, por um lado, „dados‟ pelos
detentores do poder, especialmente pelo governo militar-civil aos „subversivos‟
„comunistas‟, plantando o medo e a insegurança, objetivando fragilizar as ações
desenvolvidas pela Prelazia na construção de uma frente de oposição aos
interesses do Estado em aliança com os grandes fazendeiros, representando a
resistência em defesa pela manutenção das famílias na terra, pelo direito à vida, à
propriedade, à saúde, às condições básicas de trabalho e produção de alimentos
para sua subsistência, por meio daquilo que se chamaria, nas décadas seguintes,
de agricultura familiar, e em especial à educação.
Portanto, em meio a esse duelo travado no Araguaia-Xingu é que
procuraremos perceber como a escola foi inventada, se e como ela se tornou a
protagonista desse processo, que herança deixou aos atuais escolares e como
estes, passados cinco décadas de existência, constituíram espaço para sua
reinvenção.44
Igualmente, fizemos uma breve reflexão sobre a atuação do poder
público mato-grossense em relação à educação básica, à oferta de acesso à escola
43
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P3.3.
Sem grifos no original. Cabe aqui observar que a coautora do hino do GEA era filha do fundador
da cidade de Luciara. 44
A reinvenção da escola será tema central do quarto e último capítulo da tese.
50
pública, à edificação do espaço físico, à formação e remuneração do professor e, a
partir do qual serão apresentados os „sentidos‟ da escola de educação básica
delimitada na territorialidade do Araguaia mato-grossense, no contexto da
reterritorialização do espaço geográfico das terras contíguas entre as bacias
hidrográficas Xingu-Tapajós e Araguaia-Tocantins, contornos do Brasil Central.
Os limites da jurisdição da prelazia, conforme apresentados nos mapas
(Figura1), refere-se ao território
da Prelazia de São Félix do
Araguaia, criada no dia 13 de
março de 1970, pelo papa Paulo
VI, por meio do decreto Quo
commodius, definindo que a
mesma teria como confinantes:
ao norte, a Prelazia de Conceição
do Araguaia, que atualmente
delimitam os estados do Pará e
Mato Grosso; a leste, com a
Prelazia de Cristalândia, a Oeste,
com a Prelazia de Diamantino,
ou seja, os rios Araguaia e
Xingu, e, ao sul, a linha traçada
em direção noroeste, desde os
rios Curuá e das Mortes até o rio
Xingu45
.
A região desenhada
nos mapas (Figuras 1 e 2),
conforme observado, manteve os
mesmos contornos geográficos até contemporaneamente, comportando 25
45
O mapa 1 foi produzido e publicado na edição de número 4 da Folha Alvorada, no mês de julho
de em 1970, anunciando a criação da Prelazia de São Félix do Araguaia. Já o Mapa 2 (Imagem 2),
apresentado na Imagem (2) foi extraído de um sítio produzido pela Articulação Xingu Araguaia
(AXA), que segue com atuação militante iniciada na década de 1970, hoje formada pela Comissão
Pastoral da Terra (CPT), a Associação Nossa Senhora da Assunção (ANSA) e a Associação Terra
Viva (ATV). O terceiro mapa, Imagem (3) foi produzido pelo ISA – Instituto Socioambiental.
51
municípios entre os rios Araguaia-Xingu, que, em 2017, conforme dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, somam 276.901 km2.
Concluído o tópico onde apresentamos os contornos histórico e
geográficos da prelazia de São Félix do Araguaia, em seguida desenhamos os
caminhos trilhados na pesquisa.
1 – A aurora da educação revelada pela Folha Alvorada
As matérias publicadas pela Folha Alvorada, primeiro periódico
produzido na região, anunciou a aurora da educação escolar, uma robusta defesa
da organização dos pobres em torno da escola. Dessa massa documental
selecionamos aquelas que trataram de assuntos relacionados à educação,
considerando o contexto, bem como seus objetivos, e procurando analisar a
extensão dos desafios enfrentados pelas famílias que dependiam do acesso à
escola de educação básica, lançando alguns questionamentos, tais como: que
sentido teve a escola diante do Projeto Governamental de „desenvolvimento‟ do
Nordeste mato-grossense? Serviu ela de anteparo para as famílias dos posseiros,
peões (sertanejos) e indígenas e mais legítimos habitantes da região, naquele
momento sob o julgo de projetos empresariais de colonização incentivados pelos
governos militar-civil? Convém lembrar que a região privilegiada de estudo, na
década de 1970, correspondia à jurisdição de dois municípios, Barra do Garças e
Luciara.
A garimpagem na Folha Alvorada revelou dimensões de uma escola
pouco encontrada na grande imprensa, que, durante os governos militares-civis,
sofreu restrições pesadas por parte da censura oficial, especialmente no que se
refere às críticas sobre aqueles que serviram aos mandos do Estado, em nosso
caso, os policiais militares, os do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), a polícia federal, e mais diretamente as forças arregimentadas
pelos fazendeiros, grileiros e suas ações contra os marginalizados, posseiros,
indígenas, peões, revelando dimensões da escola pouco reconhecida pela grande
imprensa, dentre outros desassistidos pelo Estado brasileiro.
Outro fator importante, e também já mencionado, foi à preocupação
das matérias de tomar os problemas locais enquanto bandeira de luta, muito
52
embora aquilo que chamamos de problemas locais ocorressem, em maior ou
menor grau, em todo o território nacional. Assim, ao evidenciar os problemas
vivenciados pelas famílias, tornava-se meio de tomada de consciência dos grupos
periféricos às decisões governamentais, o que passaremos a tratar dos lugares,
espaços e sua relação com a invenção e reinvenção da escola.
1.2 – Os indígenas antes da organização social dos „brancos‟
Embora nosso objeto seja a invenção e a reinvenção da escola no
Araguaia-Xingu mato-grossense, e ter como circunscrição os limites da Prelazia
de São Félix do Araguaia, a escolha pela territorialidade requer entender três
razões estrategicamente sobrepostas, a primeira, perceber que, ao desenhar um
mapa jurisdicional para a atuação dos membros da Prelazia, a presença de
indígenas representava território a conquistar, mas também a colonizar com os
ensinamentos cristãos, lembrando que, antecipando a estes, existiu o território
imemorial indígena tracejado pelos Estados luso e brasileiro, resultando em vários
mapas político-administrativos que, igualmente, não consideraram quaisquer
divisões anteriormente estabelecidas pelas nações indígenas. Por fim, uma terceira
dimensão, a busca por „determinar‟ a formação escolar no viés da oficialidade.
Assim, a educação escolar e a própria instituição escola tratava-se de
uma invenção repleta de contradição, pelo fato de ser inventada pelos não
indígenas e válida „para todos‟, sendo caracterizada por um projeto que nem
sempre contribuiu para a superação de problemas vividos por seus escolares,
„brancos‟ pobres. Igualmente, essa escola inventada pelo „tori‟, branco na língua
Iny Karajá, não considerou, ao longo dos séculos, a necessidade de aprendizagem
dos povos indígenas.
Portanto, rastrear o conjunto de esforços dedicados à construção de
uma escola popular e democrática no Araguaia-Xingu é mais que revelar a
memória da luta, mas reconhecer passo a passo sua reinvenção, cujo processo
marcou em definitivo a vida, individual e coletiva, de inúmeras comunidades
formadas pelas famílias ao longo da raia lindeira aos rios Xingu Araguaia. Já em
53
relação aos indígenas, essa é uma história cujas páginas amargam um „vazio‟ e
estão aguardando muitos caracteres.
Assim, reconhecer a presença indígena antes dos não indígenas e do
consequente empreendimento do Estado em suas mais variadas formas de
demarcação de seus territórios, antes dos posseiros, da igreja, da escola, dos
tubarões, do latifúndio e da pata de vaca, símbolo do „capital‟ na região, trata-se
de um compromisso para com a existência e respeito à história desses povos.
Seguimos, em poucas frases, delinear sua existência.
A região nordeste de Mato Grosso, conforme Oliveira46
, até meados
do século XX, foram habitadas por dezenas de povos indígenas falantes de quatro
troncos linguísticos, Tupi, Aruaque, Carib e Gê, os quais estavam assim divididos:
a) Porção centro norte – Kaiapó, Juruna, Txukahamãe e Tapirapé;
b) Porção centro sul: Carajá, Xavante, Aweti, Matipuy, Txikão, Kuikure,
Kamaiurá, Nahkuá, Waurá, Iwalapiti, Kalapalo e Trumaí.
Esses grupos indígenas, após diferentes contatos e com a passagem
cruel do processo de „colonização‟, foram reunidos em reservas indígenas, alguns
no Parque Nacional do Xingu, existente desde início da década de 1950 e
oficializado em 1961. Os Tapirapé, em Santa Terezinha; os Carajá, em Luciara e
Ilha do Bananal; os Xavante, por se tratar de uma „grande‟ nação, foram
espalhados em várias reservas, e atualmente estão em Pimentel Barbosa, Areões,
Meruri, São Marcus e, mais recentemente, depois de quase meio século de luta,
voltaram ao território originário, sob o qual foi criada a maior fazenda do mundo,
Suiá-Missú – hoje, Marãiwatsede.
Por conta do processo histórico de reterritorialização, ocorrido no
Araguaia-Xingu mato-grossense, descreveremos de forma sucinta o procedimento
que regeu as sobreposições de territórios, agora governados por riscos em papéis
carimbados e regulados pela Lei do branco, desconsiderando, portanto, os arranjos
estabelecidos entre os Carajá, Tapirapé, Xavante e posseiros, caracterizando uma
ação opressora onde os interesses do capital especulativo encontrou anuência dos
46
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção
e violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 272-273.
54
governos militar-civil em detrimento dos oprimidos.47
Seguimos apresentando um
pouco dos povos diretamente atingidos pela demarcação das empresas
agropecuárias no nordeste mato-grossense.
1.2.1 Karajá
Os Karajá são povos indígenas do tronco linguístico Macro-Jê,
autodenominam-se Iny e são subdivididos em Karajá, Javaé e Xambioá, ocupando
o território nas margens do rio Araguaia, de Aruanã até Xambioá, numa extensão
de, aproximadamente, 2 mil km. Os primeiros contatos com o não indígena se
deram em meados do século XVIII, sendo que no seguinte foram obrigados a se
instalar na colônia militar D. Pedro II, junto aos Kayapó, seus inimigos
tradicionais. Essa foi, sem dúvida, uma estratégia para aniquilá-los, sob o discurso
de „amansá-los‟.
Em finais do século XIX, os Karajá ainda somavam 4 mil índios, mas,
no final do século XX eram apenas 1.78548
. Estavam divididos em Karajá, 1.225,
Javaé, 500, e Xambioá, 160. Por serem nações ribeirinhas, no tempo da seca
ocupam as praias do rio Araguaia, alimentando-se de peixes e tracajás. Já no
período das chuvas vivem nas terras mais altas, onde cultivam roças. Assim, a
cultura Karajá gira em torno do universo do rio Araguaia. Segundo eles, num
tempo imemorial místico vivia o povo abaixo do leito do rio e, de maneira casual,
o homem descobriu a superfície. Assim, foram descobrindo a luz, o mel e a morte.
Como ela se revelou, estampada num tronco ressequido de uma árvore, sua
principal entidade espiritual, Aruanã, que provem do rio e lagos adjacentes.
Com a criação do Parque Nacional do Araguaia, em 1959, e do Parque
Nacional Indígena Araguaia, em 1971, com 1.395.000 ha, pode-se perceber um
aumento populacional para 2.250 índios, em 1994. Em Mato Grosso existem três
47
O termo “Xavante” era utilizado no século XVIII para designar, indistintamente, os Xavante e
os Xerente, que naquele período viviam no norte de Goiás, entre os rios Tocantins e Araguaia, no
Planalto Central brasileiro. Essa região era majoritariamente ocupada por tribos da família
linguística Jê, tronco linguístico Macro-Jê, à qual pertencem os Xavante e os Xerente.
Posteriormente, Xavante passou a ter uma aplicação mais restrita, designando três grupos: os Oti
Xavante, Opayé Xavante e Akwén Xavante. MAYBURY-LEWIS D. A Sociedade Xavante. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1984. 48
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. op. cit., p. 273.
55
pequenas reservas Karajá demarcadas, AI São Domingos, com 5.705 há, em
Luciara; AI Tapirapé-Karajá, com 66.166 ha, em Santa Terezinha e Luciara; e AI
Aruanã II, no município de Cocalinho.
Todavia, não bastasse à demora da criação de reservas, mesmo após
ela, o território Karajá foi por inúmeras vezes invadido, até mesmo por parentes
do dono do cartório do 2º Ofício de São Félix, o que explica, segundo
reclamações do senhor Edson Beiriz, o silêncio e não resposta ao ofício enviado
pela FUNAI sobre a certidão de registro da Área S. Domingos49
. Assim, no
mosaico de terras e águas do Araguaia pertencentes ao povo Karajá, ocorreu uma
ampla reterritorialização, pois, deslocar um povo das terras onde a adaptabilidade
se fez ao longo dos séculos, e que para eles, a terra é garantia de vida, constituiu
problema. Assim, da mesma forma que a terra não tinha valor comercial, estava
repleta de outros que, para acultura do branco e do Estado por este criado, não
passavam de números a ser mensurados em hectares, alqueires ou quilômetros
quadrados.
1.2.2 Tapirapé
Os Tapirapé se autodenominam „Tap irãpe‟. Seu território tradicional
estendia desde a cabeceira do rio Tapirapé até a divisa do Pará. Mas, por conta de
seus inimigos tradicionais, os Kayapó e Karajá, ocorreram raptos de mulheres e
crianças. Segundo Oliveira50
, os poucos Tapirapé, que foram vistos pelos brancos,
na primeira década do século XX, eram na maior parte mulheres e crianças
raptadas pelos Karajá. Krause, explorador do Araguaia em 1908, contou que estes
índios praticavam o rapto quando os homens da tribo se afastavam da família para
ir comerciar com eles, num banco de areia estacionado no rio Tapirapé.
Dessa relação conflituosa ocorreram inúmeros casamentos entre
Tapirapé-Karajá, resultando em culturas híbridas entre os dois povos, o que
decerto contribuiu para que surgisse a necessidade de adaptações, assimilação e
acomodação, requerendo, portanto, a reconstrução de identidades diferentes das
49
Ibid., p. 275. 50
BALDUS, Herbert; WAGLEY, Charles. Tapirapé: Tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo:
Nacional/EdUSP, 1970, p. 45.
56
que tinham seus pais, e, por conseguinte, surgem um novo contexto, novas
relações de poder a ser estabelecidas, seja pela língua, pela organização familiar e
social.51
Os Tapirapé, em decorrência do contato, em meados do século XX
chegaram a apenas 51 pessoas. Em 2014, conforme Siasi/SESAI (2014),
totalizavam 760. Não bastasse sua quase dizimação, os projetos da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) e em especial a
Cia Tapiraguaia, „adquirente‟ da área de terra entregue pelo governo federal e
pertencente aos Tapirapé, somados ao avanço dos grileiros, tornou ainda mais
incerta sua sobrevivência.
Em 1983, o governo federal, através de Decreto, criou a AI Tapirapé-
Karajá, com área de 66.166 ha, porém, sua maior parte fica inundada no período
das chuvas, entre os meses de novembro a maio.
Em 1993, os Tapirapé iniciaram uma luta para recuperar sua terra
tradicional, pois sofreram um processo de desterritorialização da Urubu Branco,
com a formação das fazendas, passando naquele ano a viver novamente na área.
Um relato de Josimar Tapirapé, publicado pelo Instituto
Socioambiental (ISA) (1996), possibilita entender um pouco dessa história:
A comunidade TAPIRAPÉ tem vontade de ir no Urubu Branco,
essa área os mais velhos nunca esqueceram porque primeiro,
nossos antepassados habitavam lá; naquela aldeia tinha muita
gente e vivia sempre feliz. As aldeias também eram muitas.
Naquela região os Tapirapé conhecem quase tudo. Então os
velhos não querem se esquecer daquela terra e não querem
deixar as fazendas destruir os cemitérios dos avós, irmãos, pai,
mãe que estão enterrados lá. Então nós estamos lutando por
aquela terra, para voltar naquela terra de novo. Porque aquela
51
Em 2016, orientei monografia de final de curso de Maria Oldeíde Pereira Gomes, defendida no
curso de Ciências Sociais da UNEMAT, núcleo pedagógico de Confresa. O trabalho é fruto de
pesquisa etnográfica realizada entre as etnias Karajá e Tapirapé, na aldeia Hawalorá, localizada no
município de Santa Terezinha-MT, na Terra Indígena Tapirapé/Karajá, onde moram indígenas
dessas duas etnias. Na aldeia Hawalorá existem casais formados por membros das etnias Karajá e
Tapirapé A pretensão da monografia foi a de investigar como ocorreram os matrimônios
interétnicos e quais os critérios adotados para definir a identidade étnica dos filhos dos casais
Karajá com Tapirapé. Para tanto, foi apresentada a cultura Karajá, a cultura Tapirapé, assim como
a forma de organização social destas etnias. O trabalho se fez relevante no sentido de contribuir
para a compreensão das dinâmicas sociais pós-contato, bem como perceber como os povos
indígenas reordenam suas formas tradicionais de organização social. Para saber mais, ver Gomes,
Maria Oldeíde P. Culturas híbridas: Karajá e Tapirapé e a reconstrução de identidades. Confresa,
2016. Monografia (Licenciatura em Ciências Sociais) – UNEMAT, 2016.
57
terra não foi vendida pelos Tapirapé; eles vieram abandonando
aquela terra é só por causa da guerra do Kaiapó; se a guerra
passava o índio.
Tapirapé queria voltar de novo na aldeia Tapi‟itawa, mas como
só sobrou 40 pessoas não tinham coragem para voltar. Então o
governo aproveitou e vendeu para as fazendas e agora ele está
falando que os índios Tapirapé estão querendo invadir o Urubu
Branco. Estamos querendo é voltar naquela terra, onde primeiro
nossos antigos moravam. Nós índios precisamos da terra, não
para estragar as matas, não é para vender a terra depois de
conseguir as demarcações. Lutamos para conseguir a terra para
vivermos e produzir alimentos ali, para salvar as famílias.
Agora os fazer ficam invadindo a terra do índio e quando toma
a terra do índio fica um pouco de te depois vendem para outros
fazendeiros, vendem para outro e a terra vai sendo vendida para
todo mundo. Os índios nunca venderam uma terra para
fazendeiros, nunca invadiram a terra da fazenda. Só lutam por
causada terra quando querem voltar naquela terra que é deles.52
Assim, no mosaico de terras e águas do rio Tapirapé, afluente do
Araguaia, pertencente ao povo Tapirapé, a porção territorial, que, para esse povo
representa garantia de vida, com a chegada dos brancos tornou-se problemática.
1.2.3 Xavante
Os Xavante são membros da nação Jê. Sua autodenominação é A´úwe,
vivendo na porção leste do estado de Mato Grosso, região do Araguaia. Os
Xavante, originalmente, ocupavam territórios diferentes e eram subdivididos em
três grupos, e cada qual experimentou formas distintas de contato. Na década de
1950, conforme Oliveira53
, eram estimados em 2.000 indivíduos. O primeiro
grupo habita a AI Pimentel Barbosa e AI Areões. O segundo foi para a missão
Salesiana de Meruri e rio das Garças, já ocupada pelo povo Bororo, fugindo do
confronto com os fazendeiros e procurando fugir das epidemias. O terceiro grupo,
em 1956, abandonou o território da área do rio Couto Magalhães e foi para
Meruri. Todavia, existiu um quarto grupo que ocupava a região do rio Suyá
Missu, o qual foi expulso de seu território tradicional.
52
CARTA ESCRITA POR JOSIMAR TAPIRAPÉ em nome da comunidade Tapirapé. apud ISA,
1996, p. 664 citado por OLIVEIRA op. cit., p. 282-282. 53
LOPES DA SILVA, 1980 apud OLIVEIRA, 2016, p. 282.
58
Não poderíamos mensurar o quão difícil foi esse processo de
desterritorialização dos povos indígenas, porém, os registros apontam que o povo
Xavante foi o mais prejudicado pela invasão agropecuária na Amazônia, pois em
seu território se tencionou o maior número de projetos financiados e incentivados
pela SUDAM, causando, de imediato, uma expulsão sem precedente, timbrada por
genocídios anunciadores do “vazio demográfico”. O ponto de partida se deu com
a formação do extenso projeto Agropecuária Suiá-Missu, que viria a se tornar a
maior fazenda do mundo, tendo como primeiros proprietários o grupo OMETTO e
o empresário Ariosto da Riva. A invasão e desmate da área ocorreu em meados da
década de 1960, e em 1972 foi vendida ao grupo italiano Liquifarm.
O latifúndio da Agropecuária Suiá-Missu e posteriormente Liquifarm
foi integralmente instalado em território do povo Xavante. Tal fato não poderia
ficar incólume e, consequentemente, o conflito se tornou o mais bem registrado de
que se tem notícia. As narrativas, reportagens, manifestos, ordem judicial,
intervenção da polícia federal retratam a ação de desintrusão e retirada dos
„posseiros‟ e fazendeiros ali instalados. Porém, a ação conjunta das formas
militares e federal não representou o fim do conflito, pois ele continua ainda
latente na região, manancial de importantes estudos.54
Assim, no mosaico de terras e águas do Rio das Mortes, afluente do
Araguaia (bacia hidrográfica Araguaia-Tocantins) e Suiá-Missú, afluente do rio
Xingu (bacia hidrográfica Xingu-Tapajós), pertencentes ao povo Xavante, o
processo de desterritorialização e reterritorialização é, para essa nação indígena,
garantia de vida. Assim, a luta pela terra se tornou um problema.
Concluímos esse tópico com a sensação de não ter registrado nestas
poucas linhas o suficiente para informar ao leitor do quão doloroso foi o processo
de histórico pelo qual tais povos foram submetidos, especialmente em relação às
estratégias de dominação e resistência. Todavia, permanece na linha do horizonte
a possibilidade de retornar ao tema, procurando entender, do ponto de vista
54
Para saber mais, ver ROSA, Juliana Cristina da. A luta pela terra Marãiwatsede: povo Xavante,
agropecuária Suiá Missú, posseiros e grileiros do Posto da Mata em disputa (1960-2012).
Dissertação (Mestrado em História) – UFMT. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, PPGHis.
Cuiabá, 2015.
59
educacional escolar, como se deu a invenção da escola e que importância à mesma
teve entre esses povos, uma escola alienígena entre os indígenas.
Todavia, compartilho, em rápidas palavras, uma experiência como
coordenador de formação em tecnologia educacional da Secretaria de Estado de
Educação, pois, ao tempo em que contribuía para com o processo de formação do
povo A‟úwe Uptabi (povo verdadeiro), na TI Marãiwatsede, esse tentame
possibilitou-me entender um pouco da educação escolar indígena organizada
naquela comunidade.55
Seguimos com nosso propósito navegar em águas
turbulentas e procurando avaliar as paragens onde se deu a invenção da escola não
indígena.
1.3 - A escola entre lugares e espaços praticados e os banzeiros no Araguaia
O tópico que ora iniciamos tem por propósito entender, em seu
contexto, a dinâmica da escola edificada no Araguaia-Xingu, pois estudar a
invenção da escola em sua conjuntura requer, além da busca pelas fontes,
reconstituir seu passado, sua gênese, dando voz aos seus protagonistas, consciente
de que, mesmo que apetecesse, jamais haveria de reproduzi-la em sua completude,
pois, como uma maldição ao presente, o passado da instituição escolar guarda
características que sempre escaparão aos olhos do observador no presente.
Ao abordar a invenção da escola no passado, essa intenção resulta de
um exercício para reconhecê-la no presente, portanto, trata-se de um exercício que
opera a abstração, recompondo sua história, mas dando sentido e significado para
essa invenção, eis o propósito do presente tópico.
Ao lançar as lentes sobre a literatura, especialmente à delineada em
forma de poesia, identificamos com muito detalhe, o êxodo pelo qual as famílias
55
A atividade ocorreu no último trimestre de 2013, em parceria com o Ministério da Educação-TV
Escola, executada por meio da Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional-SEDUC e
CEFAPRO de São Félix do Araguaia, momento em que oferecemos oficinas de produção de vídeo
entre os povos Xavante da TI Marãiwatsede e Hadori, povo Karajá na TI São Domingos, às
margens do rio Araguaia, cujas ações resultaram em um documentário. Para essa atividade
contamos ainda com a presença do técnico formador do CEFAPRO de Juína, Maike Zaniollo, e
um convidado especial, o professor Caimi Waiassé, Xavante, cujo trabalho foi registrado e
publicado em
https://www.youtube.com/watch?v=6HpWxAKQsrM&index=1&list=PLZNX3jq4R_dCcu9pwW3
Mk8BqMyqsfVh4Y . Acesso em 03 de fevereiro de 2018.
60
foram obrigadas, em ritmo incerto, a buscar formas de sobrevivência. Esse
processo é anunciado por Santos (2015, p. 58) na poesia Suprefática:
Padin ciço anunciô
Terra boa nus gerias
Muié ajunta uns mininu
Qu‟eu vô pegar us animais
Num isqueça a farofa
A cabaça d‟agua i as rêdi
Vamu tê vida farta
Lá nais bandêra verdi
Nu sertão a vida tá fraca
A terra num dá mais ligumi
Tá fartanu di tudu
Só não u coroné e‟ uns pistume
A vida tá suprefática
Suprefática di mais
Antis tinha di tudu
Agora já num tem mais
Resorvemu intão partir
Arreunimu uns cumpaêru
Cum‟a matula na istrada
Viagemu treis mêis intêru
Na viagi cabô farofa
Quais caba disposição
A tropa toda cansada
Ai, ai meu Deus
Nunca vi tanta afrição
Febri, maleita i lastrina
Meninada passo mal
Us mais véi grantamu nu firmi
Já é Ia du Bananal (Ilha do Bananal)
Enfrentamu muitus bichu
Onça, porcão i tudu mais
Pra armá nossa chochinha
I amansá essis gerais
Dispois de tudo pronto
Qui num tem pirigu mais
Chega u fazendêru c‟uns papé
Querenu a terra pra trais
A vida tá suprefática
Suprefática de mais
A terra qui era nossa
Agora já num é mais
Muié ajunta uns minunu
Vô procura otrus gerais.56
O autor, filho da terra, ao escrever Embiras, o fez como num
emaranhado de lembranças e atualidades, de histórias contadas, rimas faladas, de
saberes de vidas, tendo, de forma poética, retratado as injustiças e descasos no
processo de inerência causada pelo êxodo rural, e a busca pela transformação das
gerais.
Assim, problematizar o passado é uma forma de entendê-lo, não no
pretérito, mas no presente. Assim, pensar a invenção da escola no Araguaia-Xingu
revelando seu cotidiano é lançar mão de uma estratégia de sentir, ouvir e enxergar
56
SANTOS, Edilson Pereira, Embiras. São Paulo. Ed. Giostri. 2015, p. 58.
61
seus dilemas, discursos e suas formas passadas no presente, esboçando novos
contornos ao projeto de uma escola popular e democrática.
Procuramos produzir uma narrativa sobre a escola em sua
complexidade, uma vez que ela é muito mais que uma distribuição arquitetônica
de paredes, carteiras, salas de aula, visto que ela foi e é produto e produtora de
imaginário, de libertação e de subordinação, dependendo dos interesses dos
detentores do poder e do coletivo, não obstante, em permanente contendas.
Igualmente contraditórios se revela o discurso sobre o conceito de
distância e de isolamento, na tentativa de eleger um espaço em detrimento do
outro, uma prática, em detrimento de outras, visto nos referir às investidas dos
discursos tentando imprimir e rotular as escolas periféricas aos grandes centros,
parecendo as do campo como inferiores. Como forma de contrapor essa esse
movimento perverso, haverá os educadores de se perguntar: sob quais aspectos o
emissor está se referindo, pois, a escola ali inventada, enquanto produto social no
Araguaia-Xingu, embora tenha sido edificada nas mais variadas localidades,
mesmo permanecendo em seu lugar (espacial e social) de origem, fez e continua
fazendo parte de uma relação dinâmica de troca, de emissão e recepção de
discursos, mas também de permanências e de passagens.
Assim, para afirmar se ela se fez forte ou fraca requer estudos em
relação ao papel social que desempenhou, o que certamente vai muito além do
domínio da leitura e da escrita, há que observar um conjunto de fatores presentes
naquele cotidiano, seus espaços de luta e resistência, como observaremos ao longo
da presente narrativa.
A realidade vivida pelos escolares será muito mais complexa daquela
que conseguirmos retratar-narrar, seja em relação ao tempo cronológico, seja em
relação às circunstâncias do lugar vivido. Como delineou Certeau, “[...] o lugar é
uma configuração instantânea de posições. Implica uma relação de estabilidade”.57
Assim como uma construção cultural e simbólica, ele não é algo palpável,
portanto, não se trata de uma matéria empírica, o espaço deve ser definido
57
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 201.
62
enquanto prática do lugar, formulada pelos sujeitos em seus itinerários cotidianos,
simbolizando o lugar a partir das interferências, tanto corporais quanto cognitivas.
Reside aí à dificuldade de lidar com alguns predicados subjetivos, as
emoções, reações, a paixão pelo lugar, mas igualmente o descontentamento, o
ódio, a repulsa, o que torna complexa a narrativa de um dado momento e a relação
de poder ali estabelecida. Cabe ainda observar que, uma vez subjetiva, uma
posição frente a determinadas decisões pode mudar, assim como pode alterar o
projeto de escola decorrente do espaço praticado.
Ainda sugere Certeau que o espaço é o lugar de ações e práticas.58
Assim, adiantamos que a escola inventada, por mais vestígios que tenha deixado,
ainda se mantem distante daquela vivida, seja em relação ao tempo, ou aos valores
que permeiam seu cotidiano no século XXI.
Dessa forma, reconstruir a escola inventada em seus primórdios, no
Araguaia-Xingu, requer um esforço de compreensão de seu contexto, das famílias,
dos aprendentes e profissionais que nelas atuaram, muitos dos quais só se fizeram
presentes nos registros, por meio de imagens ou escrituras deixadas,
intencionalmente ou não, como, no caso, os registros publicados na Folha
Alvorada ou nos diários do Bispo Pedro Casaldáliga e também em entrevistas,
dentre outras fontes compulsadas na construção da presente narrativa.
E nessa relação de significados e embricamento da memória com o
lugar, procuramos interpretar, do ponto de vista histórico, os comportamentos de
um coletivo presente naquele tempo edificado e historicizado, percebendo a escola
enquanto lugar que fez (faz) parte da vida das pessoas, pois nelas foram (são)
construídos sentimentos afetivos, relações de convívio, disputa de poder, lugar de
sonhos, esperanças, enfim, espaços de experiências merecedoras de serem
narradas. Dessa feita, narrar à escola inventada no Araguaia-Xingu é abrir uma
janela para o pertencimento, ao estranhamento e à interpretação das relações ali
estabelecidas.
Salientamos que os registros se tornaram fundamentais para que, com
olhares atentos, pudéssemos entender a ausência de falas, o não dito e o não
anunciado, bem como os usos do lugar e a transformação da escola em espaços
58
CERTEAU, Michel de. Op. cit.
63
praticados nas e pelas páginas de a Folha Alvorada, uma guerra proclamada pela
narrativa na defesa daquele empreendimento, com valores políticos entrelaçados
entre os anunciados no âmbito da igreja, da escola e das famílias.
O maior desafio talvez não seja o de identificar os valores que nos
aproximam da escola do último quarto do século XX, mas, principalmente,
encontrar uma distância segura deles, para, a partir da distância, poder interpretar
as diferenças existentes entre esta (presente) e aquela (passado) e vice-versa,
permitindo, assim, os distanciamentos do eu professor e do eu pesquisador e,
consequentemente, percorrer o necessário espaço para a construção da narrativa.
Nesse exercício de inventar, as imagens construídas sobre a escola no Araguaia-
Xingu ficam restritas a uma abordagem sobre o passado sustentado pela pesquisa,
sem a pretensão de desvelar, por completo, a complexidade da realidade vivida.
A escola edificada no citado espaço continuará preservando em si
dimensões que não permitem ser tocadas, todavia, há uma dimensão passível de
leitura. É justamente essa dimensão que havemos de manusear, de interpretar os
valores, as buscas, as recusas de seus protagonistas, cuja dimensão pode ser
percebida nos entremuros e fora dos muros da escola do século XXI, portanto, a
arte de ensinar e a história ensinada. Para tanto, buscaremos vestígios da ação do
professor de história, suas preferências e recusas.
Debruçar nossas lentes sobre os primórdios da escola edificada no
Araguaia-Xingu mato-grossense auxilia ampliar o ângulo de visão, à medida que
extrapolamos a quadrilátera sala de aula, bem como o próprio espaço escolar,
observando aspectos da sociedade envolvente que não pode aqui ser entendida
como periférica, pois parte-se da concepção da invenção da escola enquanto
produto de relações de forças capazes de interferir duplamente em seu
funcionamento interno, bem como nas relações com o meio social onde foi
edificada, cujas características, muitas vezes, poderão colocá-la fora do campo de
visão, requerendo, portanto, uma revisitação.
Desta forma, inúmeras serão as questões que fugirão à nossa seleção
do campo de análise, mas que, de posse de outras abordagens e metodologias,
poderão revelar formas até então desconhecidas. No alcance de nossas lentes,
procuramos entender o conjunto de categorias que interagiram com a escola, e, a
64
partir dela, delinear formas de reinventar seus papéis e os de seus protagonistas,
pois o peão tem seu contexto, o Bispo tem seu lugar, o índio também, assim como
o posseiro, o professor, o aluno, os pais, o jagunço, o tubarão e todos têm a 9 pop
possibilidade de reinventar o lugar e se reinventar.
Assim, a escola pode ser entendida como fruto da ação de identidades
plurais, pela justaposição de elementos, pois uma escola, enquanto unidade, por
mais forte que seja o discurso ou projeto, ela sempre manterá o espaço dos
desvios, em aparente unidade.
A aprendizagem, igualmente, será distinta entre os aprendentes, assim
como o conhecimento histórico formado em camadas distintas, considerando que
cada ação (arte de ensinar), em hipótese, muda de acordo com as especificidades
de cada sujeito histórico, seja por conta da formação do professor, pela realidade
social vivida pelo coletivo da escola, considerado o gênero e sua representação
social, pela particularidade ao abordar o assunto arranjado nas páginas dos
manuais, pela inventividade e usabilidade dos meios tecnológicos, das diretrizes
educacionais, sendo os próprios conceitos socialmente estabelecidos, portanto,
não estão imunes ao tempo, cuja temática será tratada no quarto e último capítulo
da presente narrativa.
Cada grupo social inventa uma escola a seu modo. Dessa forma,
abrimos recintos para a busca de mais uma dimensão do ver a escola, agora,
enquanto espaço de vivência dos filhos das famílias que, na época, eram rotuladas
como pobres.59
Essa abertura fará com que possamos ampliar o rol de questões
acerca do sentido dado ao pobre, como este se comportou diante das decisões dos
gestores escolares, que dificuldades encontrou e que alternativas buscou para que
seus filhos fossem à escola, como reagiu ao programa escolar, em relação ao
professor, ao ano, aos bimestres, às semanas, dias e horas previamente
programadas para acontecer o conjunto de ações pedagógicas, e, em especial,
quanto ao ensino de história.
Outro elemento importante que, de certa forma, marca a invenção da
escola, e de modo geral transcende à espacialidade geográfica Araguaia-Xingu, é
o de transformação, mudança, alteração, coexistência da permanência e auto
59
Ao longo da narrativa, o termo pobre aparecerá inúmeras vezes, portanto, para facilitar
adotaremos o conceito como categoria de excluídos sociais.
65
mutação, muito além da própria representação do espaço físico, mas sua dimensão
ética, estética e política, que rigorosamente a edifica, uma invenção histórica a ser
historicizada nas páginas da presente tese. Um navegar, um barco em movimento.
Esse elemento é o que garante a permanência e o sentido de existência, pois, do
contrário, deixaria de existir. Assim, concluímos o tópico na assertiva de que a
narrativa sobre a invenção da escola requer rigor no tratamento das fontes, cuja
projeção se fará presente no próximo tópico.
1.4 - Contextualizando a produção da Folha Alvorada: inventando fontes
Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar Eu venho lá
do sertão, Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão e posso
não lhe agradar. Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar E
a morte o destino tudo, a morte o destino tudo Estava fora de
lugar, eu vivo pra consertar.
[...]
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando. As
visões se clareando, até que um dia acordei.
[...]
E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca Tange,
ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente Se você não
concordar não posso me desculpar Não canto pra enganar, vou
pegar minha viola Vou deixar você de lado, vou cantar noutro
lugar.60
A busca por entender a fonte no tempo requer a necessária
compreensão do sentido, ou da intenção de sua produção. Ao longo dessa
narrativa, a Folha Alvorada será explorada em todas as suas dimensões. Todavia,
sem perder o foco, a invenção da escola será nossas lentes. Para o momento,
tomamos a música Disparada por ser lembrada logo na segunda página da
segunda edição do periódico, em março de 1970, a qual trazia como título do
tópico Desenvolvimento dos Povos, cuja redação assim foi escrita: “Você se
60
Disparada. Letra de Geraldo Vandré e música de Theo de Barros, foi vencedora do Festival da
TV Record, em 1965, dividindo o primeiro lugar com A Banda, de Chico Buarque de Holanda. Há
de lembrar que o autor da letra, Geraldo Vandré, nascido na Paraíba e educado no Rio de Janeiro,
vivenciou todo o período do golpe militar de 1964 e ainda muito moço esteve ligado aos
movimentos estudantis, numa época de nacionalismo exacerbado e, de outro lado, de
inconformidade com as injustiças sociais imperantes no Brasil. Dessa forma, os meios musicais e
literários, a exemplo da Folha Alvorada, era o canal por onde lideranças intelectuais do país
conseguiam tocar as camadas mais pobres e ainda permanecer „imunes‟ à perseguição militar.
66
lembra daquela música „Disparada‟? Dizia assim: „O tempo foi passando, as
visões se clareando até que um dia acordei‟. Continua o texto afirmando que:
Quem acorda pode: - ficar „acordado‟ para dormir de novo. - levantar para „agir‟ e
fazer alguma coisa”.61
As metáforas escolhidas para chamar atenção do leitor - o tempo foi
passando e as visões se clareando até que um dia acordei, seguido da advertência
- uma vez acordado, pode-se voltar a dormir ou agir, está diretamente relacionado
à necessidade de acordar, aprender a dizer não, deixar de ver a morte sem
chorar. Ao tempo em que lançava uma crítica à forma „pacífica‟ com que as
pessoas reagiam às imposições do opressor, abordava a falta de recursos, e,
principalmente, a carência de escola para que seus filhos pudessem estudar.
Ao tomar a instituição escolar como objeto e a partir dela ler a Folha
Alvorada se revelou um grande desafio, primeiro por a escola ter tido espaço
privilegiado no periódico, tanto quanto as matérias de cunho religioso, mas, em
especial, por elas serem carregadas de advertência, de orientação e
„ensinamentos‟. Portanto, percebia-se ali um manancial a ser visitado, por se tratar
de testemunho escrito dos atores sociais envolvidos diretamente naquela trama.
Nesse particular, “[...] conceder direito à memória daqueles que têm pouco ou
quase nenhum lugar na história, homens e mulheres desconhecidos”, conforme
Guimarães Neto.62
Longe da intenção de construir análise exaustiva dos movimentos
historiográficos sobre as fontes, o propósito aqui é apresentar de forma sintética as
razões da eleição do jornal Folha Alvorada como relevante fonte de pesquisa,
embora não seja a única de que lançamos mão, porém ela se destaca. Cabe
observar que, desde o advento dos Annales, ocorreram mudanças na concepção de
fonte documental, ocasião em que as mesmas ampliaram-se significativamente.
Com semelhante alargamento passaram a ser aceitos, enquanto campo empírico,
desde objetos de cultura material, obras literárias, séries de dados estatísticos,
imagens iconográficas, diários particulares, enfim, houve uma espécie de
61
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.02 P2.2. 62
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História, trabalho e memória política. Trabalhadores
rurais, conflito social e medo na Amazônia (1970-1980). Revista Mundos do Trabalho.
Florianópolis, vol. e, n. 11, janeiro-junho de 2014 p. 137.
67
revolução documental, naquilo que se chamou história-problema, com apelo à
interdisciplinaridade e à inovação.63
Antes de delinear metodológica e teoricamente, procuraremos
entender o periódico Folha Alvorada. Sentimos a necessidade de compreender sua
origem, o lugar sociointelectual de sua prática – o sentido de sua produção por
meio da escrita, campeando elementos histórico-culturais, o espaço-tempo e a que
corrente de pensamento-ação ele pertenceu, antes mesmo que tivesse sido
publicada sua primeira edição no Araguaia-Xingu mato-grossense, no ano de
1970. Feito isso, passaremos, então, a explorá-lo enquanto fonte histórica.
Embora não seja aqui nosso propósito delinear a história dos jornais,
faz-se importante destacar que estes, no Ocidente, tiveram como precursor o Acta
Diurna, surgido em Roma, no ano de 59 A.C, sendo o mais antigo jornal
conhecido naquele hemisfério, meio pelo qual Júlio César informava ao público
os mais importantes acontecimentos sociais e políticos, especialmente os
circunscritos às principais cidades.64
Portanto, o Acta Diurna, assim como todo
gênero de jornal, revela-nos três aspectos importantes, o primeiro sua razão de
existir – a divulgação de informações sobre os mais importantes acontecimentos
sociais e políticos; sendo o segundo de levar ao leitor-público – aquilo que era de
„interesse de Roma‟, portanto, o que o Imperador gostaria que fosse divulgado e,
por fim, devendo ser publicado nas principais cidades, e não em todas, inventando
o leitor, visto que destinado a um público privilegiado.
Seria essa a intenção da Folha Alvorada, considerando que não se
tratava de um jornal produzido pelo governo. Indagamos: em que cenário ela
surgiu e que razões fizeram com que, mesmo sendo presos e ameaçados de morte,
seus idealizadores e produtores continuaram escrevendo e publicando matérias
contrárias à força política e econômica brasileira da década de 1970 em diante?
Estas e outras respostas haveremos de apresentar ao longo da narrativa, porém,
63
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na História do Brasil. São Paulo:
Contexto/Edusp, 1988, p. 21. Sobre esse tema ainda pode-se encontrar rica análise em REIS, José
Carlos. Escola dos Analles: A inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000; BARROS. José
D‟Assunção. Teoria da História. Petrópolis: Vozes, 2012. 64
Outras importantes informações sobre a história dos jornais podem ser acessadas no sítio da
Associação Nacional dos Jornais, por meio do link http://www.anj.org.br/jornais-breve-historia-2/
Acessada em 27 de novembro de 2017. Embora o jornal impresso esteja cada vez mais sendo
substituídos pelos jornais digitais, disseminados na web, conforme dados da Associação acredita-
se que um bilhão de pessoas leem um jornal todos os dias.
68
para o momento, convido-os a visitar a gênese da Folha Alvorada, antes que ela
se apresentasse em formato impresso, materializando o conjunto de saberes
presentes em sua concepção, o que requer buscar o manancial do pensamento
revolucionário em outro continente.65
Convido-os, assim, a visitar seu berço no Velho Continente, mais
precisamente no tempo-espaço em que viveu e formou seu principal idealizador,
Pedro Casaldáliga Plá. Nascido em Pere Casaldàliga i Pla, no município de
Balsareny (província de Barcelona, Espanha), aos 16 de fevereiro de 1928, foi
ordenado padre pela Congregação Claretiana, em Barcelona, aos 24 anos. Depois
de ter passado pela missão da Guiné espanhola, veio para o Brasil em 1968, com o
intuito de fundar, na prelazia, os chamados „Cursilhos de Cristandade‟. Todavia,
seus feitos ultrapassaram as fronteiras desta instituição, atingindo diretamente as
dimensões materiais e sociais das famílias espalhadas entre o Araguaia-Xingu
mato-grossense. O contato com o povo do lugar onde foi ordenado Bispo, de
imediato, fez com que assumisse caminhos pelos quais não imaginaria trilhar, o
que o levou ao encontro de muitas outras pessoas, tanto religiosos quando leigos,
e, entre os dois grupos, os educadores. Assim, a rede de sociabilidade possibilitou
a invenção da escola.
Segundo Valério66
, foi durante as décadas de 1940 e início de 1950
que o sacerdote realizou sua formação. Fruto da geração do silêncio, estudou em
ambiente conservador, moralista e tradicional. Depois de aprender latim em casa,
com o vigário da cidade, entrou no seminário de Vic, onde o tio mártir havia
estudado, no prédio da Gleva, às margens do rio Ter.
Mairon Valério afirma ainda que as privações enfrentadas por Pedro
Casaldáliga nos tempos de seminário, como o frio, a fome e a proibição de
produzir seus escritos, aparecem como preparação para as futuras privações a
serem enfrentadas no Brasil, onde se depararia com o calor, a umidade, as doenças
tropicais, as distâncias naturais, perpassando, durante seus estudos, pela censura e
65
Embora a Folha Alvorada não fosse produzida pelo governo, serviu de instrumento deste para
desqualificar o trabalho da prelazia, conforme o Bispo denunciou em carta ao Papa João Paulo II,
em 22 de fevereiro de 1986. El boletín de la Prelatura fue editado de forma falsificada por los
órganos de represión del régimen y así fue divulgado por la gran prensa, para servir de cargo de
acusación contra la misma Prelatura. CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de
textos 1968-1988, Claves Latinoamericanas, México 1990, p. 169. 66
VALÉRIO, Marion Escorsi. Op. cit., p. 74.
69
a necessidade de superação, acumulando importante experiência intelectual,
quando assumiu a direção de várias revistas colegiais de exemplares únicos, como
afirma em sua autobiografia.67
Como observado anteriormente, a territorialidade entre as bacias
hidrográficas responsáveis por banhar o Brasil Central era ainda espaço pouco
atendido pela igreja católica, sendo a criação da prelazia de São Félix do Araguaia
uma necessidade, por um lado, e estratégia, por outro, ampliando assim o domínio
da igreja católica sobre os povos ali residentes e chegantes. Conforme publicou na
edição da Folha Alvorada, no mês de maio-junho de 1996, tão logo criada, foi a
Prelazia entregue aos cuidados dos padres claretianos, da província Claretiana de
Aragon, Espanha. Consta ainda nessa edição que Casaldáliga chegou ao Araguaia
em julho de 1968, “[...] o Padre Pedro Casaldáliga, o irmão Manoel Luzon,
ordenado padre em agosto de 1971 e, em seguida, também da Espanha vieram os
Padres Leopoldo Belmonte, Pedro Mari e José Maria”.68
É importante lembrar que, em tempos tenros do então padre Pedro
Casaldáliga, havia uma hegemonia católica sobre a sociedade espanhola, o que
contribuiu para a consolidação de uma cultura do consumo de massa, carente de
preocupações políticas e intelectuais, mas de grande popularidade e difusão
pública, as quais favoreceram o entretenimento, a produção e publicação de
jornais. Assim afirmou Escribano:
Na cidade de Sabadell, local de sua primeira missão sacerdotal,
teve a oportunidade de exercer a atividade jornalística que tanto
o atraia. Dirigiu a revista Euforia!, Publicação da juventude
católica que durou apenas oito números, pois as pequenas
dosagens de espírito crítico e reformista, somada a uma linha
editorial mais próxima dos setores mais renovadores da Igreja,
acabou precipitando seu desaparecimento.69
67
Ibidem, p. 75. 68
Alvorada (1996), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1996
A16.15.03 P.08.10. 69
ESCRIBANO, Francesc. Descalço sobre a terra vermelha. Campinas, SP, EdUNICAMP, 2000.
p 34. Obra biográfica lançada primeiramente na Espanha, numa edição catalã: Descalço sobre la
terra vermelha – Vida del bisbePere Casaldáliga. Barcelona: Adiciones 62, 1999, e
posteriormente traduzida por Antônio Carlos Moura para o português e publicada pela Editora da
Unicamp, em 2001
70
Ao analisar a Folha Alvorada, considerando o ano em que teve início
sua produção, assim como a forma com que as matérias foram escritas, ela se
tornou objeto a ser vigiado pelos opressores e cuidado por parte dos oprimidos. A
Folha Alvorada representou importante meio de denúncia das violências
cometidas pelos „tubarões‟ e seus comandados (incluindo as autoridades policiais,
componentes do executivo e demais agentes da ditatura militar) contra as famílias
de posseiros, peões e membros da Prelazia. Igualmente, por parte dos oprimidos, o
periódico se transformou em instrumento de poder comunicacional, de tal feita
que a cada edição fosse esperadas as notícias da Prelazia, uma vez que eram
devidamente informados sobre todo o Araguaia-Xingu, a luta pela terra, a
educação e uma variedade de informações relevantes e necessárias para que
continuassem sobrevivendo naqueles „sertões‟. Como o próprio jornal anunciou
em sua primeira edição em 1974:
Alvorada na terra e na vida da gente.
Sol quente e chuva brava sobre o Araguaia.
O Araguaia traz tudo em seu banzeiro,
Basta saber olhar.
O verão seco da perseguição
Machucou, doeu e ensinou.
Mas quem tem coragem e Esperança está de pé.
ALVORADA vem dizer que a vida continua.
ALVORADA é um momento de palestra para nós,
Que fazemos parte do Povo de Deus,
Que se arranchou neste sertão, entre o Araguaia e o Xingu.70
Como observa no texto que abriu a edição do ano de 1974, anunciava-
se a Alvorada na terra e na vida da gente do povo do Araguaia-Xingu, utilizando a
metáfora de que o Araguaia trazia de tudo em seu banzeiro, bastando saber olhar.
Anunciava o sol quente, a chuva brava, o verão seco da perseguição, momentos de
dificuldade que machucavam e doíam, mas que era momento de aprendizagem, de
esperança, anunciando que a vida continuava. Porém, mesmo denunciando a
perseguição, a vida continuava para o Povo de Deus, os pobres.
Portanto, a Folha Alvorada se transformou em palco de contendas,
onde os oprimidos prevaleciam frente às desordens cometidas pelo opressor.
70
Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, janeiro de 1974
A16.0.12. P.1.2. Destaque no original.
71
Nesse sentido, as características apontadas por Escribano se confirmaram em
relação à inclinação do bispo à atividade jornalística, porém, esta pesquisa,
tomando a Folha Alvorada como fonte, possibilitou perceber não só sua
habilidade com a escrita, mas, diante do contexto vivido pelas famílias no
Araguaia-Xingu, sobretudo sua criticidade e vontade de revolução, que certamente
inundava as páginas do periódico, alimentando e encorajando as famílias para a
resistência.
Concluímos o tópico com a afirmativa de que o periódico que
elegemos como fonte, com o propósito de, a partir dele, conhecer a escola de
educação básica do Araguaia-Xingu, ao tempo em que traduzia, no âmbito da
igreja, um sentido mais progressista, denunciava com intensidade as violências
praticadas pelos „mandados‟ dos tubarões e do governo, cujo tema será tratado no
tópico a seguir.
1.4.1 Os „tubarão‟ predadores infestam a Folha Alvorada, as águas e terras do
Araguaia-Xingu
Na edição de outubro de 1977, um ano depois do assassinato do Padre
João Bosco, em Ribeirão Bonito e Cascalheira, cujo episódio haveremos de
retomar no Capítulo 3, a edição a Folha Alvorada trouxe quatro importantes
matérias, a primeira se referiu a uma reunião ocorrida em Genebra, na Suíça, no
mês de julho, onde estiveram presentes 293 representantes das Igrejas Cristãs,
momento em que denunciaram a tortura, o regime Apartheid na África do Sul e a
situação econômica internacional. Em específico sobre a tortura, por ser praticada
em vários países (em particular no Brasil), ficou convencionado que deveriam
desmascarar as pessoas e os governos que usavam dela, pois se tratava de uma
gravíssima ofensa à pessoa humana71
.
A segunda anunciava a existência de uma carta aos brasileiros,
resultado de um encontro no dia 11 de agosto, em São Paulo, em alusão aos 150
anos da existência dos cursos de advogados no Brasil, ocasião em que os juristas
71
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.2.8.
72
defendiam a verdadeira democracia na qual as leis deveriam ser realmente
respeitadas e que o povo elegesse diretamente todos os seus representantes.
Denunciava ainda a ilegalidade do uso da força governamental para manter a
ordem e o poder, pois a primeira deveria ser mantida pela lei maior, a
Constituição.
Seguiu acusando a violência contra lavradores no Maranhão, no Pará e
em Mato Grosso. No Maranhão, quase 1.050 famílias estavam impedidas pelos
fazendeiros de fazer suas roças, sendo pressionadas a abandonar as terras que
ocupavam. No Pará, 150 lavradores tinham sido espancados, amarrados pelas
mãos, amontoados num caminhão e transportados até a sede da fazenda. Tal ação
tinha sido cometida por soldados levados por avião dos fazendeiros até o local, e
lá foram novamente espancados pelos capangas, exigindo a desocupação de 218
famílias de lavradores. Já em Mato Grosso, na cidade de Rondonópolis, 300
famílias de posseiros que ocupavam uma área de 10.000 hectares, há 18 anos,
estavam sendo ameaçadas de expulsão. Muitas de suas casas haviam sido
incendiadas enquanto as famílias estavam nas roças.72
A terceira matéria na mesma edição trouxe por título: Cercando o
povo: a interminável história das fazendas, denunciando o ataque da CODEARA
contra o povo de Santa Terezinha que, no mês de junho do ano de 1978, o prefeito
de Luciara, Sr. Sebastião Gomes da Silva, junto com o Coronel Clóvis Rodrigues
Barbosa, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, aceitaram a
doação da fazenda de 517 hectares de terra para a área urbana. Porém, ninguém de
Santa Terezinha foi consultado. Abandonando, portanto, o acordo feito no ano de
1972, entre a Prefeitura e a Companhia, cujos parâmetros tinha sido feito diante
de militares, representantes do INCRA e da Companhia de Desenvolvimento de
Mato Grosso, o qual garantia a doação de 2.446 hectares. Perguntava a matéria:
será que esses acordos valem alguma coisa? E a fiança dos militares? Por se tratar
de uma questão que resultou em grande contenda, será retomada posteriormente.
A quarta e última matéria, para nosso trabalho, se fez relevante por
revelar o primeiro momento em que se publicou, na Folha Alvorada, a metáfora
72
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.2 e 3.8.
73
tubarão. Trata-se de um texto contornado por um traço, como se representasse um
limite e fora dele alguns peixes menores ao redor, sendo perseguidos por um
tubarão. Fora do quadro a expressão: A ILHA, e dentro do quadro trouxe por
título QUEM ESTÁ POR TRÁS DA POLÍCIA, QUERENDO INTIMIDAR
NOSSOS MISSIONÁRIOS NA ILHA DO BANANAL?
Descreve a matéria que o Padre Falieiro e a Irmã Edna, missionários
na Ilha do Bananal, cuidando da missão indígena e das muitas famílias de
sertanejos que lá moravam, no dia 31 de agosto receberam a estranha visita de
„sete policiais da Polícia Militar com carabinas apontadas‟ para os presentes.
Segue a matéria afirmando que os policiais eram de Gurupi-Pará. A polícia,
armada e ameaçadora, sempre acompanhada do bate-pau Getúlio, levou os
missionários para o 4º posto fiscal da FUNAI, em São João do Javaé, e lá
exigiram documentos do padre e da irmã. Falaram muito mal do Bispo Pedro,
com as velhas falácias de sempre, prometendo voltar e fazer a „festa‟.73
Noticiava ainda que o Sr. Albertino tinha pedido autorização, por
escrito, para ir, com os índios da aldeia que ele comandava, tirar os missionários.
Porém, nem estes, nem o Povo se espantaram muito com essas perseguições,
muito pelo contrário, isso criou mais união no Povo e maior consciência, e a
Missão estava dando maior fruto, revelando, naquele momento, a importância de
se conhecer aquela história da Ilha do Bananal:
1 – Que os missionários da Ilha e toda a Prelazia de São Félix
somos os primeiros a defender os direitos dos índios, na Ilha do
Bananal e em qualquer outra parte;
2 - Que a Igreja tem o direito e o dever de missionar e que
defenderá esse direito e esse dever, na Ilha e em qualquer parte;
3 - Que, sendo a Ilha do Bananal área federal – Parque Indígena
ou Florestal -, são as Autoridades Federais as que devem tomar
providências urgentes e corretas para resolver a gravíssimo
problema da Ilha de um modo justo para todos;
4 - Que o Povo sertanejo da Ilha tem também os seus direitos,
num lugar certo e sossegado, e que o Governo do Brasil não
pode esquecer esse Povo sempre tocado, sempre retirante;
5 - Que as escusas de certos elementos da FUNAI somente são
interesse de lucro e exploração do patrimônio dos índios;
73
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.6.8. Destaque do original.
74
6 - Que os prejudicados nisso tudo serão os próprios índios e os
sertanejos, quer dizer, os pobres; não os turistas, nem os
grandes criadores que colocam seu gado na Ilha e que pagam à
FUNAI o imposto que lhes é descontado do imposto de renda.74
Concluímos o tópico destacando o fato de ser emblemática a
utilização da metáfora „tubarão‟, visto tratar-se de uma forma didática de
denunciar a perseguição feita aos indígenas e sertanejos residentes na Ilha do
Bananal, cuja expressão passou a ser utilizada, como já afirmado anteriormente,
pelo povo do lugar, ao se referir aos grandes proprietários de terra, especialmente
aquelas transformadas em grandes agropecuárias. No tópico a seguir serão
revelados aspectos que anunciam a importância da fonte Folha Alvorada para o
ensino.
1.4.2 Eu já li isso na ALVORADA: os posseiros „analfabetos‟
No dia 29 de agosto de 1977, o tenente Víctor Moreira Kewitz,
executor do Projeto Fundiário Vale do Araguaia, com sede em Barra do Garças, e
o Advogado Vanderlei, do INCRA de São Félix, estiveram em Porto Alegre do
Norte para uma reunião com os posseiros, momento em que os chamou de
„invasores‟. O tenente disse que o povo falava incentivado, momento em que um
ali presente disse que Deus deixou a terra para todos. Naquele momento, o tenente
disse que „Eu já li isso na ALVORADA‟.75
Ao relatar o episódio publicado na edição do mês de outubro, a
resposta dada pelo Bispo e seus colaboradores foi a de que seria bom que o
tenente Víctor soubesse que: a) ALVORADA aprendeu isso da consciência de
todos os homens honestos de todos os séculos e de todos os países; b) Não foi a
ALVORADA que inventou a justiça e a irmandade; c) é bom que soubesse também
que a ALVORADA não inventa os direitos e as necessidades do Povo: o Povo sabe
muito bem o que precisa. Seguindo a descrição do ocorrido, o advogado Vanderlei
chamou os posseiros de „analfabetos‟, que não sabiam nem ler para conhecer as
leis.
74
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.6.8. Destaque no original e grafia como no original. 75
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.7.8. Mantivemos no presente tópico a palavra ALVORADA em caixa alta, conforme
está escrita na matéria.
75
Da contenda, resta um fio para que possamos analisar o analfabetismo,
fruto da violência herdada historicamente pela concentração da renda e
dificuldade de acesso e fomento à exclusão, servindo também, em circunstâncias
públicas, enquanto mecanismo de inferiorização da pessoa analfabeta, portanto,
uma faca de dois gumes, ou dupla violência cometida pelo Estado, representado
no evento pelo tenente Víctor. Igualmente, quando em resposta, o Bispo afirmou
que não era a Alvorada (Folha Alvorada), pois não inventou a justiça e a
irmandade, não estava somente afirmando a posição de subversividade, mas a
prática dos jornais plantarem notícias falaciosas, as quais estaremos apresentando
ainda neste capítulo.
Percebia, portanto, a forma pela qual o governo atuava, por meio dos
órgãos oficiais, para oprimir os pobres, inclusive colocando pessoas infiltradas em
meio às famílias e usando o nome do Bispo Pedro Casaldáliga, como ocorreu no
mês de julho de 1977, em Canabrava, logo após a visita do tenente Víctor e do
advogado Vanderlei, como constava uma carta enviada ao Bispo, cujo excerto foi
publicado na Folha Alvorada:
[...] chegou um cara aqui um tanto quanto estranho. Diz vir de
Goiás. Chegou com um gravador e com ideias um pouco
„esquisitas‟. Diz que se animava a tirar uma posse até dentro da
Suiá. Disse para outro que tinha recebido autorização direta do
bispo Pedro para entrar em qualquer fazenda. Isso é uma grande
mentira, naturalmente, e talvez seja mais uma cilada para acusar
o bispo.76
O conflito se dava em todos os campos e lugares, porém, a
circularidade das informações se tornara vital para a resistência, seja no sentido de
denunciar os falsários, ou no sentido de enfrentar os „abusos‟ cometidos pelas
autoridades, que nem sempre ficavam sem resposta, como ocorreu em Canabrava
no dia do „interrogatório‟ feito pelo advogado Vanderlei e pelo tenente Víctor.
Anunciou a matéria da edição do mês de outubro de 1977 que todas as
suspeitas e acusações e o medo dos inquisidores foram bem respondidos por um
chegante de apenas 15 dias, que procurava em Canabrava um pedaço de chão para
alimentar seus filhos:
76
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, outubro de 1977
A16.0.49 P.7.8.
76
[...] se vem um „dono‟ e põe todo mundo pra fora e os posseiros
não podem morar, o jeito será se reunir grupos de 30 a 100 e
sair vadindo (sic), aonde acha uma coisa pra comer avança em
cima, pega, come mesmo, tenha dono ou não tenha. Se encontra
uma vaca alheia, já mata ela. Se não der tempo de comer ela
porque o dono já está em cima para matar, então bebe o sangue
dela e já mata a fome com aquilo.77
Um segundo participante disse também:
Pai de família com nove ou dez filhos, não vai tolerar ver seu
filho chorar de fome, de necessidade e sem poder trabalhar só
porque não tem onde, o chão estando aí. Deus não acabou com
a terra. A terra existe.78
O advogado Vanderlei indicou aos posseiros pegar a indenização e
começar a vida em outro lugar. Em resposta ao advogado, perguntou um posseiro:
Aonde começa a outra vida com a indenização? Aonde vai viver, de que?
O advogado não soube responder. Disse apenas que o governo,
infelizmente, não tinha condição de amparar a situação de todos os pobres do país.
Por se tratar de uma narrativa feita posteriormente à reunião, é
possível que tenha passado por edição, anunciando com certa seletividade o fato,
inserindo ou extraindo parte das falas. Todavia, haveremos de indagar: o discurso
inventava táticas de guerrilha em meio à guerra de narrativas entre as categorias
ali presentes? Seria a comunicação, tendo por meio a Folha Alvorada, e por
método ativo a rede, recurso fundamental para a resistência? Que fazer se a
maioria das pessoas não dominava a leitura e a escrita? Não objetivamos
responder tais questões antes que possamos perceber como a educação e a escola
foram inventadas nas páginas da Folha Alvorada.
Diante da necessidade de comunicação, em tempos em que o telefone
móvel não existia, a Folha Alvorada cumpriu o importante papel de informar e
instruir, em rede, os missionários que chegavam e iam para as comunidades,
disseminando, assim, informações importantes, como veremos adiante. Todavia,
atenção especial será dada à questão da educação, percebendo no líder religioso a
dimensão do profeta, mas, especialmente, arquiteto de uma invenção social, ao
tempo em que edificava a igreja e a escola, revelando, nessa medida, que todo
77
Ibidem. 78
Ibidem.
77
missionário haveria de ser educador, não somente na materialização de um
templo, mas na construção consciente de um espaço que possibilitasse a principal
arma aos oprimidos contra os opressores, o conhecimento.
Esse periódico, do qual extrairemos informações que deram suporte a
boa parte dos argumentos da tese, usa uma linguagem didática com dupla
dimensão, trazendo um manancial infinito de informações que, se analisadas em
conjunto, compõe verdadeira enciclopédia de ideias e ideais arranjados
pedagogicamente como forma de atingir a todos os públicos, pois, como já
mencionado, a maioria das matérias publicada na Folha Alvorada teve por
objetivo informar, formar e denunciar, porém, a última ganhou relevância, pois,
embora tivessem como alvo os latifundiários e seus aliados, não relutavam em
denunciar a falta de compromisso das famílias com a comunidade, com o bem
comum. Portanto, ao tempo em que inventava um veículo de comunicação
eficiente, inovava práticas sociais e institucionais, portanto, reinventava a
sociedade e as instituições.
Não era incomum narrar os feitos e seus feitores com nome, lugar e
contexto e, em alguns momentos, estampando memórias, para que o leitor que não
acessara as edições anteriores pudesse ter contato com o ocorrido e refletir,
especialmente em relação à escola. O periódico, igualmente, serviu de mecanismo
de mobilização, meio pelo qual, reiteradamente, convocava as famílias para união,
seja na organização do trabalho, por meio de mutirão pelos posseiros nos sertões
ou na cidade, na organização dos sindicatos, dos clubes de mães, das buchudas
(gestantes), das comadres e dos jovens. Enfim, para um maior envolvimento das
pessoas na busca por solução aos problemas comuns, a exemplo da educação,
saúde e luta pelo pedaço de chão. Em nossa narrativa, a escola ganha relevo.
Hora em diante, revelaremos algumas razões pelas quais a Folha
Alvorada se tornou rico manancial para nossa pesquisa, por publicar
abundantemente o tema da escola de educação básica. Por conta de a fonte ser
generosa em relação à invenção da escola e da educação, darei a primeira
pincelada em um quadro que se revelará ao longo de quase todos os capítulos.
O envolvimento direto da equipe editorial do periódico com os
problemas sociais fez com que a Folha Alvorada servisse de instrumento de
78
reflexões, denúncias, orientações, prestações de conta, de crítica aos assentados no
poder, fugindo, portanto, do campo da reprodução de matérias veiculadas por
outros jornais do país, observando que viviam a ditadura militar e, por
conseguinte, a censura. Requer ainda observar que, além dos jornalistas, muitas
matérias foram produzidas pelos locais e todas em formato de entrevistas,
sugestões e poesias voltadas para toda comunidade leitora (alfabetizada e não
alfabetizada), sendo que sua responsabilidade recaia sobre o Bispo Pedro
Casaldáliga.79
Nosso mapa, nossa gente, foi o imperativo pelo qual a Folha Alvorada
apresentou a primeira matéria sobre a criação da Prelazia de São Félix do
Araguaia, um veículo de comunicação eficiente que levava informações variadas,
numa troca dinâmica de mão dupla. Essa foi à forma hábil adotada pelo Bispo
Pedro Casaldáliga para informar a, aproximadamente, 50 ou 60 mil habitantes
espalhados pelos quase 150.000 km2 nas beiras do Araguaia, Mortes, Xingu,
Jaburu, Tapirapé, Cristalino e outros „rios e lugares‟. Observamos que, além de
comunicar os ocorridos na região e fora dela, dedicava narrativa no sentido de
orientar, estimular e formar opiniões sobre os acontecimentos, por meio de „ações
formativas‟ na escola de educação básica.
A Folha Alvorada, desde sua primeira edição até a de número 318, no
ano 48 de sua existência (2017), cumpriu o propósito de veicular informação,
conhecimento, denúncia e estímulo à vida e ao trabalho, numa troca de
experiência com e da comunidade. Sempre contemporâneo aos fatos, foi e
continua sendo produzido na fronteira mato-grossense.80
Esse veículo de comunicação sempre foi caracterizado pela
participação popular, todavia, em seus primeiros anos de existência sofreu duras
críticas, a ponto de, em 1973, por conta da repressão, ter suas edições apreendidas
pelos militares.81
Contudo, compete observar que, embora houvessem enormes
79
Nos primeiros anos da edição, o bispo Pedro Casaldáliga tinha como colaboradores a irmã Irene,
o padre Falieiro, Pontim e Moura, esses últimos eram jovens da pastoral. Todavia, ao longo dos
anos muitos outros vieram a compor a equipe de edição, mas, como será apresentado ao longo do
trabalho, havia muitos outros colaboradores em cada lugar para onde eram enviados os jornais e de
onde eram originárias as matérias. Mas, a maioria das edições era por ele assinadas. 80
Atualmente, o processo de impressão é feito em Goiânia. 81
Marluce Scaloppe (2013) afirma que, ao buscar informações no Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV),
79
distâncias entre as comunidades, as dificuldades não representaram obstáculo para
sua circulação, superando, inclusive, o mais relevante sobre os outros, o
analfabetismo, pois, em muitos lugares havia o hábito de as pessoas lerem para
aquelas que não sabiam ler.
Avaliando as consequências sobre a repressão contra a equipe do
periódico Folha Alvorada, Valério82
afirmou que a Rede Globo noticiou, em
horário nobre, no início de julho de 1975, sem mencionar a fonte da notícia, que
haviam sido apreendidos em São Felix do Araguaia exemplares do boletim
Alvorada, da própria Prelazia, contendo um texto da China comunista,
supostamente ilustrado com cruz e foice.
Prontamente, Casaldáliga repeliu a denúncia, afirmando que tais
panfletos datavam de 1973 e que haviam sido urdidos pela força de repressão que
ocupara São Félix em 19 de agosto daquele mesmo ano, e que foram espalhados
pelo próprio exército em outras áreas do país, inclusive dentro de outras igrejas.
Aproveitando-se da situação, acusou as difamações que a imprensa fazia de outros
bispos ligados à teologia da libertação, como Dom Paulo Evaristo Arns (arcebispo
de São Paulo) e Dom Ivo Lorscheider (secretário geral da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil - CNBB) 83
.
Assim, a produção do jornal, mesmo que não tivesse a pretensão de
circular com regularidade em outras cidades, que não jurisdição da Prelazia, seu
conteúdo crítico provocava a ira dos opressores. Igualmente serviu de fonte de
estudo comparativo por membros da própria igreja.
Perguntado pelo Frei Clarêncio Neotti, de Petrópolis-RJ, em 1977, –
em vias de desenvolver um trabalho de pesquisa comparativa entre os periódicos
da Igreja Católica no Brasil da época – se além dos objetivos anteriormente
mencionados o informativo exercia outro tipo de função na diocese, como de
formação, de subsídios litúrgicos, roteiros para reflexão, mostrando tendências
ideológicas formativas na notícia, a resposta foi a de que a folha atendia todos os
encontrou os documentos retirados da Prelazia de 1973, dentre eles as edições da Folha estavam
na pasta do General Antônio Carlos Muricy que, nos anos 1970, integrou uma comissão mista,
composta por autoridades do governo e da Igreja e tinha por objetivo discutir os atritos entre os
militares e a Igreja. 82
VALÉRIO, Mairon Escorsi. Op. cit., p. 48. 83
MOURA, Carlos ET al. A Igreja dos Oprimidos. São Paulo: Brasil Debates, 1981. P. 197.
80
propósitos por ele elencados e que, logicamente, tinha a ideologia da equipe
responsável, pois, “[...] cabeça sem ideologia não seria cabeça pensante”.84
Porém,
a equipe fazia questão da máxima precisão e objetividade nas notícias. Além
disso, servia como subsídio de reflexão para os grupos, clubes e sindicados já
mencionados e que, para que não perdesse a qualidade jornalística, a equipe
contava com profissional da área.
Em 1976, informaram aos seus leitores e colaboradores que, a partir
daquela data, a Folha seria distribuída nas casas e as inscrições poderiam ser feitas
depois das missas, nos clubes ou na casa dos padres, sendo que os inscritos, a
título de contribuição, pagariam R$ 1,00 (um cruzeiro) por número do periódico.
Portanto, a Folha Alvorada era paga e, depois do rádio, certamente se tornou a
maior fonte de informação da região do Araguaia-Xingu.
Para entender a escolha do nome da Folha Alvorada, usaremos o
termo para muito além de seu significado substantivo, o que vem antes do sol
nascer, ou, etimologicamente, do particípio do verbo alvorar, mas sim com o
sentido que tinha no momento de sua criação, motivos de anunciar festividades,
celebração a percorrer as cidades e os sertões, entoando cânticos e mensagens,
pronunciando e anunciando a necessidade de união entre as famílias de todos os
patrimônios e com cunho evangelizador, enfim, pedagogicamente anunciar e
defender a igualdade entre os povos e a libertação. Concluímos o tópico
afirmando que as matérias publicadas na Folha Alvorada, sem exceção, tinham
caráter crítico-reflexivo-formativo, cuja temática observamos a seguir.
1.4.3 – O contexto sob o viés crítico-reflexivo da fonte
Para entender esse veículo de comunicação/informação no Araguaia-
Xingu que, lançado na década de 1970 e que continuou cumprindo a função pela
qual foi criado, sendo interrompido por imposição da ditadura militar, requer uma
leitura com foco em mapear as bandeiras de luta de seu idealizador, a libertação,
a igualdade, a união e a fé. E, como dissemos, nenhuma dessas bandeiras seria
84
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1977
A16.0.45 P.1.2.
81
exitosa sem a educação. Tomando as quatro dimensões, convido retomar a
música lembrada em sua edição de 29 de março de 1970, contextualizando a
mensagem.
Para concluir o tópico, retomamos as razões pela escolha da música
Disparada para figurar na edição inaugural da Folha Alvorada: a letra se assentou
no fato de ela fazer comparação entre a exploração das classes sociais pobres
pelas mais ricas e a exploração das boiadas pelos boiadeiros, mas também entre a
maneira de se lidar com gado e de se lidar com gente.
Pelas razões já apresentadas e muitas outras a serem reveladas nessa
narrativa, elegemos a Folha Alvorada enquanto fonte privilegiada, por se tratar de
registro histórico, de biografia e de memória, manancial ímpar para essa e muitas
outras pesquisas sobre os povos do Araguaia-Xingu.
Porém, outras duas fontes se fizeram relevantes para a pesquisa. Trata-
se de observação participante e formulário online e impressos aplicados aos
professores atuantes na disciplina história, por amostragem em algumas cidades
que hoje compõem o mosaico entre cidades e sertões do Araguaia-Xingu mato-
grossense, cujas dimensões serão apresentadas no último capítulo da tese. Ditas as
razões da pesquisa, o período histórico, a espacialidade e as fontes, passamos a
apresentar o perfil educacional da população do Araguaia-Xingu, na década de
1970.
1.5 - Perfil educacional das famílias: sinais do tempo e do lugar
Neste tópico apresentamos o perfil socioantropológico e educacional
das famílias que habitavam o Araguaia-Xingu na década de 1970, traçado a partir
da primeira Carta Pastoral produzida pelo Bispo Pedro Casaldáliga, extraído de
uma pesquisa realizada por um dos professores pertencentes à equipe da Prelazia e
que atuava no Ginásio Estadual do Araguaia - GEA, em São Félix do Araguaia.85
O propósito é revelar em que circunstâncias e quais foram os desafios enfrentados
85
Por ser o primeiro ginásio oficialmente edificado em São Félix do Araguaia, e por ter sido o
único construído pela Prelazia com o apoio dos fazendeiros, dedicamos um tópico para revelar o
que foi o GEA.
82
para a construção das primeiras escolas de educação básica da região e, por
conseguinte, mapear as características sócio históricas e culturais dos aprendentes.
Segundo a Carta Pastoral, fruto de fecunda pesquisa sobre os sinais do
tempo e do lugar, redigida e publicada em 10 de outubro de 1971 pelo bispo da
Prelazia de São Félix do Araguaia, Pedro Casaldáliga e equipe, ao apresentar o
número de habitantes da região, com base no recenseamento do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística de 1970, Barra do Graças contava com
28.403 habitantes86
e chamava atenção para divergência dos números, pois,
segundo o líder religioso, esse número deveria ser bem maior, cuja comprovação
poderia ser encontrada nos dados de 1971 da Secretaria Municipal de Educação e
Saúde do Município, superando 52.000 (cinquenta e dois mil habitantes). Já
Luciara, o segundo município que completava a espacialidade aqui analisada,
contava com 5.332 habitantes.87
Confere avalizar que o fluxo migratório de pessoas, em decorrência da
natureza do trabalho, para „formar‟ fazendas na região resultava em uma migração
interna sem precedente. Eram „levas de peões‟, o que tornava esse número
populacional bastante flexível, sendo que a maioria era trazida de outras partes do
Brasil para abrir as matas e para a lida com o gado nas grandes fazendas,
conforme publicação do Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(CEDI):
O peão pode ser caracterizado como aquele trabalhador braçal,
que na atual situação trabalhista criada pelos latifundiários,
trabalhava (trabalha) no regime de empreitada, não tendo
nenhum vínculo empregatício com a fazenda, tal como os gatos
e os operários de moto serra. Os peões podem trabalhar sob dois
sistemas de remuneração básicos, com o gato (ou sob
subempreitada), ou em sociedade.88
86
CASALDÁLIGA, Pedro. Uma Igreja em conflito com o latifúndio e a marginalização social. S.
Félix, 10 de outubro de 1971, p. 3. Dito pelo próprio autor, “[...] não houve nenhuma editora que
quisesse publicar a carta pastoral. Tivemos que fazê-lo em duas gráficas clandestinas. Uma delas
era uma gráfica comunista. Por isso, o livro não traz referência de editora”. In: ESCRIBANO,
Francesc. Op. cit., , p. 48. Ver também Valério, Mairon Escorsi. Op. cit.. 87
CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o
latifúndio e a marginalização social. Prelazia de São Félix do Araguaia 1971.
http://www.prelaziasaofelixdoaraguaia.org.br/dompedro/01CartaPastoralDomPedro.pdf. Acesso
em 10 de junho de 2017. 88
CEDI, Centro Ecumênico de Documentação e Informação, “Povos Indígenas do Brasil 1983” In
Acontece. São Paulo, n. 14, 1984, p. 19.
83
Além dessa população flutuante, acrescida das centenas de famílias
habitantes no Araguaia, viviam „espremidos‟, ameaçados pelos opressores
proprietários das grandes fazendas de gado, somava-se outro grupo, composto
pelos pobres trabalhadores braçais.
Além desses dois, que acabaram por sofrer as mesmas consequências,
nas décadas de 1970 a 1980, a região ainda recebeu novos projetos de colonização
que resultaram nos núcleos de Canarana, Água Boa, Nova Xavantina e Vila
Rica.89
Com o surgimento dos projetos de colonização desenvolvidos ao
longo da década de 1970, esse quantitativo populacional cresceu em média 85% e
essa nova leva de migrantes, oriundos quase que em sua totalidade dos Estados do
Sul e Sudeste, ali chegaram, incentivados pelos projetos de colonização. O
resultado desse movimento redundou na ocupação das terras na Amazônia Legal.
Portanto, o Araguaia-Xingu representava, aproximadamente, 10% da população
do estado de Mato Grosso.90
Assim, a carta pastoral, ao tempo em que apresenta a origem do
elemento humano daquelas paragens, descrevia-os como sertanejo-camponeses
nordestinos, oriundos do Maranhão, Pará, Ceará e Piauí.91
Apontava a
89
Os projetos de colonização no Araguaia implantados por particulares com incentivo do Estado
foram: Canarana, colonizada pela Cooperativa 31 de Março Ltda., de Tenente Portela (RS), em
terras dos índios Xavante, hoje deslocados para a Reserva Indígena Pimenta Bueno; Água Boa foi
colonizada pela CONAGRO, do “pastor Norberto Schwantes” também em território Xavante,
cujos índios foram deslocados para a reserva Areões; e Nova Xavantina, igualmente colonizada
pela CONAGRO, em território Xavante, deslocados para a reserva Areões e São Marcos ou
Sangradouro e Vila Rica da Colonização Vila Rica, no extremo nordeste de Mato Grosso. PIAIA,
I. I. Geografia de Mato Grosso. 3. Ed. ver Camp. Cuiabá: EdUNIC, 2003. Universidade Federal
de Mato Grosso 40 anos: trajetória, personagens e/Organizadores, Elizabeth Madureira Siqueira,
Nileide Souza Dourado e Roberto Silva Ribeiro. – Dados eletrônicos. – (Cuiabá: EdUFMT, 2011,
2003, p. 31-32). 90
Estudos sobre a questão demográfica em Mato Grosso apontam que, no início da década de
1970, o Estado tinha cerca de 600 mil habitantes nos 34 municípios, e que a grande maioria estava
distribuída nas cidades localizadas no centro-sul do Estado, mais especificamente na baixada
cuiabana. A partir dos projetos de colonização até o final de 1970, esse quantitativo populacional
cresceu em média 85% comparado a 1960, consequência de nova leva de imigrantes oriundos
quase que em sua totalidade dos Estados do Sul e Sudeste do país incentivado pelos projetos de
colonização e ocupação das terras na Amazônia Legal In MORENO; HIGA, Geografia de Mato
Grosso: Territórios, Sociedade, Ambiente. Cuiabá: Entrelinhas. (2005b, p. 71-73). 91
A carta pastoral é, regra geral, uma carta aberta assinada por um bispo e dirigida aos clérigos e
leigos de sua diocese contendo conselhos, instruções ou consolações. Portanto, percebe-se que a
carta pastoral redigida por Pedro Casaldáliga tinha o princípio de disseminar uma análise
conjuntural das condições socioeconômica, política e educacional da nova Prelazia recém-criada.
A carta divide-se em oito partes, a saber: Introdução, Parte I – Situação geográfica, Parte II –
84
precariedade e o escasso recurso quando de sua chegada, uma vez que, “[...]
vinham quase sempre providos de rede de dormir, muitos filhos, algum cavalo
magro e os quatro trens de cozinha carregados numa sacola”.92
Além de leitura atenta sobre a conjuntura nacional, a carta apresentava
resultados de uma pesquisa local realizada pelo Prof. Hélio de Souza Reis, em São
Félix do Araguaia, durante o ano de 1970. Nota-se que, de forma enfática, o
estudo exibe a principal fragilidade da sociedade local, qual seja, o alto índice de
pessoas analfabetas e que, “[...] os poucos estudos os transformavam submissos às
situações de repressão, pois o „[...] sertanejo nunca conheceu a lei do protesto, das
greves, do direito ou do uso da razão. Todo seu cabedal histórico estava dentro
das quatro paredes de um mísero rancho e na prole que aparecia
descontroladamente”.93
Como era comum para o Brasil daquela época, ter elevado número de
filhos significava uma alternativa de se obter mão de obra para a lida na roça,
além de que o uso de contraceptivos, além de ser um tabu entre as famílias mais
abastadas, a igreja orientava para que não fossem utilizados. Porém, em relação à
Prelazia, embora houvesse a defesa para com o sacramento e o matrimônio, bem
como orientação para as „buchudas‟, a denúncia em relação aos cabarés não
percebi qualquer publicitação com o propósito de impedir uso do condon, a
camisinha de vênus, como era conhecido na época.
Já em relação aos indígenas mais próximos às cidades e aos sertões, as
três etnias, já referenciadas no início deste capítulo, cederiam espaço para as
grandes fazendas agropecuárias, a carta considerou que “[...] estes constituíam
uma pequena parte dos moradores”.94
Os Xavante, na concepção da prelazia, eram “[...] caçadores, fortes,
bravos e há poucos anos ainda semeavam o terror naquelas paragens”. Os Carajá
“[...] bastante nobres, pescadores, comunicativos, fáceis à amizade, festeiros,
artesãos do barro, das penas dos pássaros e da palha das palmas”, já atingidos
Panorâmica sócio pastoral, Parte III – Latifúndio, Parte IV – Posseiros, Parte V – Índios, Parte VI
– Peões, Parte VII – Política local, Parte VIII – Nossa atuação. 92
CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit. 93
CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o
latifúndio e a marginalização social. 1971, p. 4. 94
CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit., p. 4.
85
diretamente pelo turismo, pelas doenças, pelo uso de drogas e prática da
prostituição, visto que agredidos e adoecidos pelo contato prematuro e desonesto
com a chamada civilização.95
Os Tapirapé, “[...] lavradores, mansos e sensíveis, mui comunitários e
de uma delicada hospitalidade”.96
Já os Xinguanos, embora habitassem quase 1/3
da jurisdição da Prelazia, tiveram pouco contato com os conflitos sociais da raia
lindeira ao Araguaia e seus tributários, conforme Casaldáliga (1971).
Como terceiro grupo, na classificação contida na carta, estavam “[...]
os estrangeiros de espírito, fazendeiros, gerentes e pessoal administrativo das
fazendas latifundiárias, quase sempre sulistas, um pouco „super-homens‟,
exploradores da terra, do homem, da política” 97
. Além destes, eram constituídos
também por funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e de outros
organismos oficiais, bem como por comerciantes e marreteiros, motoristas,
boiadeiros, pilotos, policiais, vagabundos, foragidos e prostitutas, mas,
principalmente, por peões: trabalhadores braçais contratados pelas fazendas em
regime de empreitada, vindos de todo o canto do país. Muitos deles, após se
libertar dos serviços das fazendas, acabavam se tornando moradores da região.
Para entender um pouco de como esse amálgama resultava em
desafios a serem superados por meio da educação escolar, fizemos uso da
pesquisa socioantropológica produzida pelo prof. Hélio, também publicada na
carta pastoral, para montar um quadro descritivo sobre o racismo (modo de
tratamento ao diferente de formas preconceituosas):
Tabela 1 – Expressões sintomáticas
Sulista Sertanejo (nordestino)
O sulista fala essa gente, esse povo, aqui
nunca viram (sic), não sabem nem se são
índios mesmo.
O índio não é considerado gente pelo
sertanejo. Ninguém confia em índio.
Cristão Índio
Branco Preto
Expressões sintomáticas: O governo nos trata como Carajá/Quando índio atua, reage,
se comporta „normalmente‟/Age que nem gente/Feito gente/Fulano tem cabelo bom,
sicrano tem cabelo ruim.
Fonte: Carta Pastoral Casaldáliga (1971).
95
Ibid. 96
Ibid. 97
Ibid., p. 5.
86
Observa-se na classificação feita pelo professor em seu relatório de
pesquisa, que as categorias sulista e sertanejo se referiam ao índio. O preconceito
se revelava nas expressões: essa gente, esse povo – significa o afastamento de
origem do não pertencer, revelando o outro, o diferente. Igualmente
apresentavam, no discurso a superioridade pelo outro não ter tido acesso às
informações que compunham seu cotidiano – não sabem nem.
Todavia, as expressões sintomáticas selecionadas pelo professor em
relação ao índio demonstram, de ambas as categorias, o desrespeito a esse
segmento, parecendo que quatro séculos e meio de ocupação das terras brasileiras
não foram suficientes para entender a racionalidade humana dos „índios‟. Pois, a
expressão „age feito gente, que nem gente‟, ou, o „governo nos trata como Carajá‟
apontava os conteúdos a serem tratados no contexto escolar. Portanto, o desafio da
escola, dos escolares e especialmente dos professores de história era o de
possibilitar acesso às informações e produzir reflexões sobre a história dos
diferentes povos e culturas ali presentes.
No campo moral, a citada Carta apontava que a cultura da vingança
era expressa como se fosse prática quase hereditária das leis primárias, ferindo de
morte a moral, “[...] pela justiça tomada pelas próprias mãos”, pela valentia,
embriaguez, infidelidade conjugal, fragilidade da família, sexualidade, “[...] entre
primitiva e mórbida, tropical e de compensação, a prostituição é praga”. O
exemplo era o „Pingo‟, cabaré local, que funcionava em plena cidade de São Félix
do Araguaia, para escândalo das famílias e dos menores, porém, “[...] a maioria
das raparigas já tinham sido casadas e largadas dos maridos e normalmente o
casamento (ajuntamento) se dava em idade prematura, antes dos 18 anos”.98
Competia à escola, não só tratar do analfabetismo, mas, em especial,
trazer à tona a problemática em relação à falta de perspectiva das mulheres, pois,
como observamos, as adolescentes, em tenra idade, viam na prostituição uma
forma de conseguir uma „vida melhor‟, acabando „amigadas‟ com peões e, quase
98
Ibid., p 6.
87
regra, abandonavam o companheiro pelos mesmos motivos que a levaram a ele se
unir: a falta de perspectiva.99
Ao analisar o conjunto característico da população em relação à
formação familiar, os valores e as condições de vida se apresentavam como
sinônimo da falta de conhecimento, de planejamento familiar e da inexistência de
perspectivas futuras. Assim, ampliamos o elenco de perguntas: Seria a escola
elemento importante para a superação dessa condição social das famílias da
região? Seria a educação escolar, em seu intramuros, capaz de dar resposta a essas
questões? Como as mesmas eram estampadas nos manuais didáticos utilizados no
ensino de história? As respostas nos motivaram a busca.
Continuando o delinear da carta, uma tensão maior surgiu quando o
bispo afirmou que a alienação política e social era extrema, dados revelados pela
pesquisa e publicada na carta, apontando que 42% dos entrevistados ignoravam o
nome do prefeito; 80%, o do governador; 79%, o do presidente da República. E,
perguntado o que achavam dos políticos: 33% respondeu que “[...] não conhecia
essa gente, não se preocupam com isto, não tinham opinião formada, não tinham
paixão por isto” 100
, não se falava, porque não se poderia falar por conta das
represálias – da política ou do comércio – o que eram quase automáticas, “[...]
pobre não tinha vez, peão não era gente, era fuá desse povo” conforme anunciava
a carta.101
As respostas obtidas em relação à representação política, a partir da
pesquisa do professor Hélio, possibilitaram-nos afirmar a existência de uma
„tecnologia do corpo‟, um investimento político localizado e usado por uma
instituição (comércio) ou aparelho do Estado (política), como define Foucault:
[...] analisar o investimento político do corpo e a microfísica do
poder supõe então que se renuncie – no que se refere ao poder –
à oposição violência – ideologia, à metáfora da propriedade, ao
modelo do contrato ou ao da conquista; no que se refere ao
99
Embora não seja o objeto de pesquisa, tampouco temos sistematizado material para coleta de
dados obtidos em viagens para as cidades que compõem o quadrilátero de terras e delimitados para
a pesquisa, é comum perceber adolescentes e jovens alimentando redes de prostituição,
normalmente se deslocando de uma cidade para outra, especialmente para aquelas onde impera o
agronegócio. 100
Ibid., p. 7. 101
Ibid.
88
saber, que se renuncie à oposição do que é interessado e do que
é desinteressado. Trata-se de recolocar as técnicas punitivas –
quer elas se apossem do corpo no ritual dos suplícios, que se
dirijam à alma – na história desse corpo político [...] de uma
maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e
corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os
colonizados.102
As réplicas dos populares sobre os políticos, se analisados a partir da
ótica foucaultiana, percebemos um não lugar, uma fuga produzida pela vigilância
dos ditos „detentores do poder‟, do mando, das decisões sobre a sociedade local.
Quanto à relação familiar, a situação da mulher, em geral, era
humilhante. Ela não decidia nada, sequer se apresentava e tampouco poderia
reclamar. Os casamentos no queimo, ou por imposição do noivo por parte dos
pais, ou por causa da notável diferença de idade entre homem e mulher, ou pelo
absoluto despreparo fisiológico, psicológico, sociológico, pedagógico e pastoral
dos cônjuges, a família passava por fácil quebra.
Não havia, portanto, uma planificação familiar, sendo a educação dos
filhos a base do cipó, do grito, do respeito e obediência inapeláveis e desprovidos
de diálogo. Já os filhos de criação constituíam figura habitual, pois as famílias se
desagregavam facilmente.
A partir desse desenho, pode-se afirmar que havia diferenças abissais
entre aqueles que tinham poder de mando (opressores) e aqueles que não o tinham
(oprimidos). Todavia, entre eles havia muitas semelhanças, especialmente em
relação à ignorância, ao machismo, ao preconceito com o diferente, à falta de
estrutura familiar, ao censo crítico, aos posicionamentos „ingênuos‟ ou
„cautelosos‟ em relação à política, pois, a leitura das matérias publicadas sob a
forma de denúncia, pela Folha Alvorada, afirmavam a existência de vários tipos
de morte, as por causas naturais, em menor número, e a morte matada,
encomendada, sendo esta última muito comum. Assim, concluímos o tópico com
uma afirmativa de que a falta de estudo, a ignorância e as poucas condições de
reagir à situação de miserabilidade configuravam o traço mais marcante da
102
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 30-31.
89
violência cotidiana sofrida e praticada por boa parte das famílias no Araguaia-
Xingu, o que dará sequência no tópico a seguir.
1.5.1 - Em cena a síntese de uma invenção
Esse tópico tem por objetivo continuar montando um imenso quadro
composto por informações extraídas da carta pastoral e da leitura das matérias da
Folha Alvorada. Diferindo da maioria das cartas pastorais que tomamos por fonte
de pesquisa, traduz em seu conjunto questões latentes do cotidiano das práticas
culturais reprováveis, sob o ponto de vista material e espiritual. Todavia, o
documento foi produzido com riqueza de detalhes, portanto, registro histórico
relevante para a presente pesquisa, revelando e denunciando as violências
praticadas pelo grande latifúndio contra os mais fracos. Mas, para o momento,
ficamos com a descrição da carta no tocante ao universo das pessoas que não
tinham acesso às aulas.
A educação apresentada na carta pastoral detalha que havia grande
porcentagem de crianças e rapazes da região que não tinha acesso à escola e que
existia apenas uma só professora, ou duas, estando os alunos, de diferentes idades
e graus, misturados (classes multisseriadas) 103
.
Uma questão embala nossas dúvidas e alimenta o desejo de saber
quem eram os professores na gênese das escolas no Araguaia-Xingu, e por que a
“[...] educação era importante tão quanto a Transamazônica”, como afirma o
Bispo na citada carta? O religioso não só oferece uma resposta, que, para nós, é
temporária, mas o faz com um sentido de denúncia: “[...] a prefeitura de Barra do
Garças nomeava várias professoras conhecidas publicamente como prostitutas”
104. Que sentido teria uma prática dessa? Será que os pais dos alunos assistiam
calados a tais decisões? Ou reagiam, exigindo seus direitos?
Não basta, portanto, analisar o perfil dos profissionais que atuavam
nas escolas como professores, se eram ou não qualificados, mas, em princípio,
103
Em alguns trechos da tese estaremos substituindo a categoria aluno por aprendente, por
entender que a o termo aluno nega sua dimensão proativa no processo de mediação e
aprendizagem. 104
Ibid., p. 22.
90
observar quais foram as „senhas‟ de ingresso no magistério público na região, ou
seria a escolha desses profissionais tomada pelos políticos assentados no poder?
Estariam os gestores públicos criando uma espécie de cabide de emprego,
simplesmente para acobertar mais uma face da violência, usando, mais uma vez, o
povo para, de alguma forma, se beneficiar com tal prática? Havia investimentos
suficientes para a edificação das escolas? Seriam as mesmas mantidas pelo poder
público?
Conforme registrado na Folha Alvorada, geralmente, era o povo ou a
Prelazia que enfrentava (era responsável) a construção do prédio escolar, pois,
além do Estado e do poder municipal não arcar com a edificação, igualmente não
investiam em infraestrutura, pois era comum a falta de carteiras, cadernos, livros,
quadro-negro, giz, dentre outros. Assim seguia aquele cotidiano de problemas
estruturais na educação básica dos finais do século XX.
O ordenado dos professores do curso primário era de Cr$ 100,00 (cem
cruzeiros) e Cr$ 125,00 (cem e cento e vinte e cinco cruzeiros), pagos com atraso
de seis meses e até de um ano inteiro. Os professores do Ginásio Estadual, cuja
construção fora realizada pela Prelazia, e que estaremos detalhando no tópico
(1.3.3), recebiam Cr$ 120,00 (cento e vinte cruzeiros) mensais, e com atraso
superior a 4 meses. A irmã, diretora do Grupo Escolar de São Félix do Araguaia
teve que desafiar, no ano de 1970, a política caprichosa do Secretário Municipal
de Ensino de Barra do Garças, para a própria sobrevivência da instituição.
Apraz antecipar que o quadro de profissionais das escolas,
especialmente o do sertão, nos primeiros anos de existência das instituições
escolares, constituía em problema a ser superado, primeiro por não haver interesse
por parte do poder público de contratar professores formados para atender a
demanda, e o salário, além de ser irrisório, era pago com muito atraso, o que
ampliava exponencialmente os problemas educacionais.
Outro desafio dos professores era o de encarar problemas em relação à
pela falta de higiene, pois, os parcos conhecimentos sobre as causas das doenças
contribuíam para o quadro caótico vivido por muitas famílias, seja pela
precariedade de recursos, ou por conta das crendices, portanto, por falta de
91
duvidar das explicações estapafúrdias em relação às formas de contrair doenças,
tendo sido a pior das causas, sem dúvida, a ignorância.
O conhecimento relativo à saúde era quase inexistente, como descreve
a carta, “[...] a higiene era precária, e se fazia grande o prejuízo com as crendices e
superstições”.105
O povo não tinha noção do valor da saúde, desconhecendo os
meios de evitar a contaminação, “[...] não conheciam a existência de germes e
vermes não temendo insetos que tinham abrigo comum à família”. As crianças
“[...] andavam nuas e descalças até os 6 anos de idade, depois adotavam uma
tanguinha”.106
Era comum, antes de aprender a andar, arrastarem-se pelo solo de
terra batida, contaminada pelas excreções dos animais e de pessoas, pisadas „no
mato‟ onde eram feitas as necessidades fisiológicas e trazidas no solado dos
calçados, ficando, assim, expostas a variadas infecções e infestações.
Embora a carta não tenha aludido para a questão da falta de recursos
para adquirir roupas adequadas para uso cotidiano, bem como a construção de
banheiros para uso cotidiano, o acesso à cidade tornavam os gastos ainda maiores,
tal que, em muitas matérias publicadas na Folha Alvorada, eram estampados, com
bastante regularidade, o preço dos alimentos básicos, sendo a carestia pauta
recorrente de denúncia.
Os alimentos, a exemplo da carne, mesmo a dos açougues, ficava
exposta a poeira, moscas e mosquitos, além de serem acondicionadas fora da
geladeira, chegando a casa já estava deteriorada e contaminada. Vale lembrar que
não havia energia elétrica na maioria dos povoados da região. Somente Luciara
contava com um motor gerador de energia, o qual era ligado por 3 horas durante a
noite. Continua ainda o relato de que a carne-seca ficava dias e dias ao sol,
suspensa nos quintais e sem qualquer proteção. Quando surgiam os problemas
intestinais, ninguém os relacionava aos alimentos ingeridos, a exemplo da carne
em início de putrefação e infeccionada por muitos tipos de germes.
A descrição das crianças – no referido documento – forma um quadro
horroroso da vida humana: “[...] as crianças se apresentavam com verminose e
anemias, sendo poucas vivas, com olhar parado e sem brilho, esclerótica amarela e
105
Ibid. 106
Ibid.
92
mucosa descoradas, abdome distendido, com intenso meteorismo. Os dentes ao
nascer já se estragavam e a segunda dentição tinha o mesmo destino”.107
Os recém-nascidos não tinham assistência de saúde, ocorrendo, na
época, alta taxa de mortalidade infantil nos quatro primeiros anos de vida, por
tétano umbilical e infecções gastrointestinais. Alertava ainda a carta que as
gestantes não tinham assistência médica, seja a parturiente ou a puérpera. Na
maioria das vezes elas davam a luz no seu próprio barraco, em condições
higiênicas precárias, não dispondo, portanto, de infraestrutura elementar e humana
para um atendimento condigno.108
Dava a luz rodeada dos demais filhos, de
vizinhas e, às vezes, assistida por uma „curiosa‟ que, em alguns casos, complicava
mais a situação, fazendo uso de crendices e superstições.
A água retirada do poço ou do rio era colocada em potes, sem
torneirinha ou qualquer tratamento. Embora ficasse fresquinha, era tirada com
vasilhas já usadas, levadas por mãos, muitas vezes sujas, ou mergulhando o copo
no recipiente, proliferando os germes nos potes.
Com certo espanto, observava que as pessoas enfrentavam a doença,
própria e alheia, com sangue frio e a suportavam como um mal contra o mal que
não valia a pena lutar. Igualmente se fazia em relação à morte, que eles „acolhem‟
como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro era comum, tamanho o
sofrimento, somente quem testemunhou poderia ter condição de relatar, fazendo-o
com grande angústia, uma vez que percebiam a vida infra-humana do povo do
lugar.
Assim, a invenção deveria dominar os problemas cotidianos como
forma de não esperar que viesse de fora a solução, mas que, com um sentimento
de pertença e emanados pelo espírito coletivo, haveriam de encontrar formas de
resistir, criando táticas para superar o quadro de vida infra-humana.
Destacou ainda que o povo não tinha consciência dos próprios direitos
enquanto pessoa humana. Em casos de acidente, com fratura de membros, o
paciente ficava em repouso até conseguir andar ou movimentar-se, sem ter noção
107
Ibid. 108
Não há como negar a memória quando ela se faz presente, nascido no interior do estado de
Mato Grosso, em 1972, as condições de nascituro “no sítio” eram similares às descritas na carta.
Como parteira, tive minha avó. Com pouco estudo, as circunstâncias a fizera prática.
93
sobre a possibilidade de uma redução e contenção provisória, até a mobilização
definitiva. Eram comuns pessoas coxas e com membros defeituosos serem aceitas
passivamente, visto que superados por sua impressionante coragem.
Conforme descrevia as doenças em nomes populares e científicos,
eram comuns entre os povos, como malária, hepatite infecciosa, úlcera de Bauru,
desidratação aguda (adultos e crianças), verminose de todos os tipos,
principalmente ascaridíase, teníase, ancilostomíase, acarretando profundas
anemias, afecções venéreas, blenorragia, cancro mole (cavalo), cancro duro,
linfogranulomatose inguinal (mula) e granuloma venéreo (cavalo de crista).
Anunciava ainda a carta pastoral que havia também alguns casos de
picadas de cobra, escorpião e aranha, tétano umbilical, geralmente letal, além de
afecção dentária e desnutrição. Tais constatações foram extraídas de um relatório
sobre a Prelazia, elaborado pela Irmã Maria de Fátima Gonçalves. Segundo o
Bispo, haveria de acrescentar a essa lista, o reumatismo, as afecções respiratórias,
a leishmaniose e a perda de visão, muito frequentes.
Em relação à habitação, afirmou que estas eram geralmente feitas de
barro cru, algumas de barro cozido, outras de pau-a-pique com cobertura de folhas
de coqueiro. Somente mais tarde surgiram algumas olarias e as casas de tijolo e
cimento, com cobertura de telha. Normalmente, as casas não tinham forro, as
instalações sanitárias eram bastante precárias, em geral localizadas no fundo do
quintal e com fossa rente ao chão, com base de madeira sem cobertura e em local
incômodo, sem porta, protegido apenas por uma „cortina‟ de saco de estopa, que
se agitava ao sopro do vento e onde à noite se abrigavam galinhas e muitos
insetos.
A essa „casinha‟ dava-se o nome de mictório, muito comum em todo o
interior mato-grossense. Embora com certa raridade, ainda são encontrados nos
sertões, não faltando relatos de haver aquelas crianças que, descuidadas, caem na
abertura das tábuas.
Em relação ao lixo, além de não haver coleta, os quintais e as ruas
recebiam o resíduo que pessoas menos cuidadosas não queimavam. Não havia
sequer cuidado de armazenar os descartes em latas. Inclusive, em algumas
pensões, jogava-se pela janela todo tipo de lixo, restos de alimentos eram
94
rapidamente procurados e devorados por cães, galinhas e porcos, os quais
frequentavam os mesmos aposentos, usando muitas vezes as mesmas vasilhas que
os moradores e visitantes. Os ambientes eram infectados de moscas, mosquitos,
baratas e ratos. As fossas, sobretudo, eram verdadeiros viveiros de baratas,
afugentadas à noite pela chama de uma vela ou lampião, dando um espetáculo às
vezes dramático, quando a pessoa não estava acostumada e era surpreendida pela
fuga das baratas que, aflitas, procuravam o interior da fossa.
Em relação à alimentação básica, afirmou o líder religioso que era
constituída por arroz, feijão, carne, farinha (de mandioca), peixe e banha. Notava-
se ausência de fruta, verduras e leite, embora este existisse no início do inverno
chuvoso, quando havia pastos em abundância. Mas, na seca desaparecia o pasto,
sendo que no inverno ficava tudo alagado e as estradas intransitáveis, dificultando
acesso aos recursos externos do lugar. Não se comia verduras, devido à
dificuldade de cultivo (pragas, época da seca, falta de adubo), mas também à
preguiça e ao preconceito, pois falavam que verdura era „comida de lagarta‟, e o
„capim era apenas para boi‟.
Afiançou o documento que muito dos alunos ginasianos, iam às aulas
sem fazer a refeição matutina, pois a merenda não era praticada pelos mais pobres.
Assim, um povo subalimentado era presa fácil das doenças. O resultado da
pesquisa publicada na carta pastoral concluiu que, se houvesse higiene e boa
alimentação, 80% das doenças desapareceriam nos sertões.
Em tempos de chuva não havia correio na Prelazia e que as estradas
de terra alagavam perigosamente, se tornando intransitáveis, não havendo também
esgotos, luz elétrica (exceto, como antecipamos, a cidade de Luciara, que contava
com energia elétrica por três horas por noite), tampouco água encanada, nem ruas
encascalhadas.
Quando necessitassem de sair do lugar, havia ônibus duas vezes por
semana, sendo que a partir de outubro de 1970 perfaziam três, fazendo a linha
Barra do Garças-São Félix, cujo trajeto era feito em um dia e meio de viagem.
Havia ainda um ônibus por semana, de Luciara a Barra do Garças. Os voos feitos
pela Viação Aérea São Paulo – VASP, além de operarem com aparelhos
primitivos e só duas vezes por semana, eram muito caros, acima de Cr$ 1.200,00,
95
para percorrer de São Félix à Goiânia. Normalmente se utilizava com maior
frequência a navegação dos rios da Morte e Araguaia, por meio de barcos e
lanchas (voadeira), além de canoas.
Se tomarmos por parâmetro o salário do professor e o custo de uma
viagem de avião, chegaremos à conclusão de que um ano de trabalho, sem
descontar nada do seu total, alcançaria o necessário para pagar apenas uma
passagem de avião. Assim, ao professor e à grande maioria das famílias ali
residentes não tinham o direito de ficar doentes, ao ponto de ter que viajar de
avião, pois, caso isso acontecesse eram fortes candidatos a sucumbir.
Os comerciantes se unia de tal forma aos fazendeiros que, juntos,
estabeleciam o poder dominante da política em interesses combinados. Usavam
do argumento de que o custo alto se dava por conta dos fretes, na tentativa de
„justificar‟ os preços abusivos e por não haver qualquer controle fiscal, chegando
a se pagar 50% a mais sobre o preço normal.
Essa distância também acarretava a ausência da administração
pública, causando o desequilíbrio social, o desinteresse e esquecimento por parte
das autoridades frente à impossibilidade de investimento de recursos públicos,
adicionado ao protesto por parte do povo, o que tornava, os 700 km de São Félix a
Barra do Garças, barreiras difíceis de serem superadas.
A escola foi um caminho seguro pelo qual se alcançava o interior das
famílias, entendendo seu cotidiano e suas dificuldades, cujo diagnóstico se tornou
possível a partir da análise de algumas expressões como: Merenda, só na época
das vacas gordas, uma fome crônica que, segundo a pesquisa sociológica feita
pelo professor Hélio de Sousa Reis, „comemos macarrão uma vez por ano‟, as
refeições normais do sertanejo eram três: café, almoço e janta. Os demais, de
maior poder aquisitivo, tomam café com pão, uma vez que a maioria degustava
café com „isca‟ (alguma mistura) ou „bolo de sopapo‟ (bolo de farinha), sendo que
muitos só tomavam café magro, sem „isca‟.109
Concluímos esse tópico entendendo que o desafio dos professores era
imenso, pois as fragilidades de formação, herdadas pelas famílias de meados do
século XX, eram de toda ordem, seja em relação aos aspectos familiares, de
109
Ibid., p. 23.
96
moralidade, de inexistência de condições dignas de saúde, de alimentação, de
higiene, enfim, careciam de conhecimentos sistematizados possíveis de serem
obtidos caso tivessem tido acesso à educação escolar. É sobre esses temas que
continuaremos abordando a seguir.
1.5.2 - O como e os porquês da invenção em marcha
A fome da instrução não é menos deprimente que a fome de
alimentação110
.
O Brasil da década de 1970 tinha mais de trinta milhões de
analfabetos e, por conseguinte, outros tantos milhões de não votantes, que não
contribuíam oficialmente enquanto cidadãos eleitores, para o destino da Pátria.
O governo brasileiro e a escola daquele contexto haveriam de assumir
esse compromisso social. Tamanho era o impasse para o desenvolvimento do país
que o Ministro da Educação, Sr. Jarbas Passarinho, consagrou aquela década
como sendo a „década da educação‟. A preocupação tinha razão de existir, pois,
conforme relatório sobre o desenvolvimento humano do Programa das Nações
Unidas - PNUD/Instituto Pesquisa e Estatística - IPEA (1996) 111
, a população
brasileira por nível percentuais de educação pode ser observada na tabela que se
segue:
Tabela 2 – Evolução da distribuição da população por nível de educação (%) –
Brasil 1960 – 1990.
Nível de educação 1960 1970 1980 1990
Analfabetos 46 43 33 22
Fundamental 1ª fase 41 40 40 40
Fundamental 2ª fase 10 12 14 19
Médio 2 4 7 13
Superior 1 2 5 8
Fonte: Relatório sobre o desenvolvimento humano, 1996. Brasília: PNUD/IPEA, 1996.
110
Palavras contidas na carta do Papa Paulo VI sobre o desenvolvimento dos povos, aludindo
sobre os grandes problemas do mundo. Extraídas de matéria publicada na Folha Alvorada com o
título Alfabetização. Assim, o GEA iniciou suas atividades no mês de agosto de 1970, atendendo,
assim, “[...] o povo esquecido, desesperançado” pois a “fome de cabeça é maior que a fome de
barriga”. Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03
P3.3 111
PNUD/IPEA. Relatório sobre o desenvolvimento humano. Brasília: PNUD/IPEA, 1996.
97
Como observado, 43% da população brasileira na década de 1970 era
composta de analfabetos, e, considerando que a maioria das famílias eram
composta de migrantes dos Estados do Nordeste brasileiro, esse índice poderia ser
ainda maior. Parece-nos que o quadro educacional da formação média e superior
no Brasil, durante a ditadura militar, era no mínimo vergonhoso.
Seguimos apontando as razões primeiras da edificação de uma escola,
pois, além do combate ao analfabetismo, ela se tornaria um instrumento de poder
da comunidade para manutenção da vida nos sertões e cidades do Araguaia-Xingu
mato-grossense. Assim, continuamos delineando a composição desse quadro da
vida real.
As dimensões do cotidiano tratadas nos tópicos anteriores
possibilitam-nos entender, com justeza, os porquês das notícias sobre a educação
encontrarem espaço privilegiado em quase toda edição da Folha Alvorada. A
escolarização ofertada pelas instituições de educação básica, semearia saberes
fundamentais para a necessária transformação da sociedade. Para tanto, as lições
escolares irradiariam noções de cidadania pautadas em problemas comuns à
região, e, em seu contexto, ganharia sentido a invenção de uma escola edificada
pelas famílias dos posseiros, e não aos „estrangeiros‟ de espírito, pois estes,
embrutecidos pela ganância, pela ignorância, adicionada à violência,
distanciavam-se cada vez mais do verdadeiro sentido da vida e sua ligação com a
terra.
Convém lembrar que a escola inventada no Araguaia-Xingu não era,
em definitivo, pensada para os filhos dos fazendeiros, não que eles fossem
proibidos de frequentá-la, mas, assim como seus pais, uma escola para indígenas,
posseiros e peões não atendia aos anseios dos filhos das elites, tampouco poderia
ser comparada às que eles tinham acesso nas grandes cidades. O deslocamento
dos detentores do capital para a região do Araguaia-Xingu somente ocorria com o
intuito de resolver algum problema que seus funcionários, gerentes, capatazes,
capangas e jagunços não conseguissem resolver, sendo que seus filhos só iam ao
sertão de avião, a passeio.
Para fins didáticos, sequenciaremos os fatos referentes à educação
narrados cronologicamente pelo periódico, objetivando entender o processo que
98
resultou na edificação da escola inventada naquelas paragens e, por conseguinte,
analisar como esta instituição contribuiu para a resolução dos problemas das
pessoas do lugar. Espaços de luta, de vida e de morte.
Em dezembro de 1970, afirmou a Folha Alvorada que, para o Brasil, a
educação era tão importante quanto a Transamazônica, sendo ainda muito mais
importante do que um campeonato de futebol, pois se falava naquele ano em
acabar com o analfabetismo dos adultos, cujo intento era merecedor de todo
apoio, mas isso não se tornaria realidade na medida em que se tentasse exterminar
com o analfabetismo dos maiores, deixando as crianças sem estudo, por causa do
salário de fome pago aos professores, além dos atrasos no seu pagamento. Pode-
se, a partir desse relato, afirmar que era „expressivo‟ o número de analfabetos
entre os maiores de idade.
Portanto, não há como negar a existência de um elo entre os
problemas sociais vividos pelas famílias em relação à falta de acesso à educação
escolar e aos programas empreendidos pela prelazia, como se pode observar em
um de seus empreendimentos no Araguaia, conforme registros do ano de 1970:
[...] a procura de uma vida digna para todos os sertanejos. Com
boas condições alimentares e higiênicas para crianças e adultos;
ensino; terra e moradia garantidas. [...] a construção e o
funcionamento do Ginásio – mesmo sendo estadual – significou
desde o início uma árdua dedicação dos Padres da Prelazia,
assistida economicamente por amigos católicos da Espanha e,
em exemplar colaboração leiga nacional, pelos professores
Eunice Dias, Elmo Malagodi, Luis Gouvêa de Paula e Hélio de
Sousa Reis.112
Ao abordar a questão do trabalho missionário realizado por
convidados do Bispo Pedro Casaldáliga, no ano de 1970, dentre os quais ex-
seminaristas, universitários e recém-formados contrários à repressão militar, a
exemplo do prof. Hélio conforme (OLIVEIRA, 2016, p. 152-153), o qual afirmou:
Eu, como a quase totalidade dos companheiros que viemos no
início para o Araguaia, éramos ex-seminaristas [...] Em nossa
adolescência e começo da juventude, presenciamos e vivemos
os agitados anos 60. [...] o Golpe Militar de 1964 com a
112
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970
A16.0.04 P.3. Sem destaque no original.
99
implantação da ditadura. Em 1968 a revolta dos estudantes na
França [...] neste ano já estudávamos filosofia na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas – (PUC-CAMP).
Participávamos intensamente do movimento estudantil:
passeatas contra a ditadura, contra o reitor muito autoritário [...]
acreditávamos no valor da vida religiosa, mas dentro do espírito
de pobreza, no compromisso com os pobres e a transformação
social.113
Outras razões afiançam a importância da Universidade de Campinas
na formação do corpo de professores atuantes no GEA e na própria Prelazia,
conforme noticiou a Folha Alvorada em dezembro de 1970:
Os professores do Ginásio de São Félix saem agora de férias
para São Paulo, de férias até certo ponto, porque eles durante as
férias cursam os seus estudos universitários, na „Anchieta‟
Paulistana. O Elmo e o Hélio voltarão para o ano próximo, com
mais outros 3 colegas. Porém o Luís e a Eunice ficarão lá.
Tchau, Luis e Eunice.114
Noticiava ainda a mesma edição que a prelazia recebeu visita do
querido colega Pe. Antonio Canuto, responsável pela turma dos professores do
Ginásio, lá em Campinas., que veio acompanhado do amigo Sr. Darcy Monassi.
Também chegaram os professores Luis Goya, que lecionava geografia e história
no ginásio115
. Seguimos mapeando o quadro docente do ponto de vista da
capacidade de desenvolver suas atividades, para em seguida pontuar sua
edificação.
O Ginásio Estadual Araguaia – GEA foi edificado em São Félix do
Araguaia, no ano de 1970, distrito de Luciara. Mas, o que nos arrebata a atenção é
o fato de os professores serem leigos, e a grande maioria ligada à Prelazia, que,
naquele ano de 1971, contava com sete sacerdotes. O bispo e quatro padres eram
espanhóis e claretianos. Os dois padres franceses de clero diocesano, pertencentes
à antiga Prelazia de Conceição do Araguaia, vinculavam-se à Prelazia de São
113
OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese
(Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, 2016, p. 152-153. 114
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970
A16.0.07 P.1.6. Sem destaque no original 115
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1970
A16.0.07 P.1.7.
100
Félix do Araguaia e residiam em Santa Terezinha, sendo um deles há dezesseis
anos, e outro há cinco.
Os registros da carta pastoral davam conta de que, em 16 de fevereiro
de 1971, chegaram a São Félix, para trabalhar na prelazia, cinco religiosas de São
José, e em 18 de junho foi incorporada mais uma irmã à comunidade. Elas se
dedicaram à catequese, à enfermagem e ao ensino e promoção humana em geral –
todas eram brasileiras. Tanto em São Félix como em Santa Terezinha havia leigos
brasileiros atuando no ensino ginasial, primário e na alfabetização. Em São Félix,
cinco leigos „universitários‟, e cinco em Santa Terezinha, um casal e três rapazes,
todos vinculados à prelazia.
A carta pastoral assinalou ainda que nos primeiros anos muitas foram
as visitas regulares, uma por mês, a toda a região, sertão, beira de rios e povoados,
com extraordinária despesa, mas em 1970 foram às mesmas interrompidas por
exigência do ginásio e pelo descontentamento de um serviço que se tornava
rotineiro, ineficaz e até alienante, mas com um ponto altamente positivo, o de
conhecer a região mais amiudadamente.
A ausência do Estado no cumprimento dos direitos constitucionais, em
especial no referente à educação pública, será mais bem abordada no segundo
capítulo da tese, momento em que traremos para o trabalho as políticas públicas
para a educação a partir da década de 1970. Percebe-se, nessa década, a
inexistência de investimentos em educação, problema crônico na região do
Araguaia-Xingu, ampliando o universo das gentes esquecidas no coração do
Brasil, cuja falta foi, no caso da obra do Ginásio Estadual Araguaia, suprida pela
prelazia.116
Assim, o conhecimento e experiência educacional da Igreja, e da
própria vivência pessoal do bispo e colaboradores serviram de fermento para a
decisão de enfrentamento do problema educacional, a construção do „Ginásio
Estadual Araguaia‟, de São Félix do Araguaia. Como afirma o bispo, “[...] uma
116
Segundo prestação de contas – do que é de todos – emitida pela Prelazia sobre a origem dos
bens e investimentos realizados, aponta que o antigo “Ginásio dos Padres” iniciou sua construção
em 3 de agosto de 1969, sendo inaugurado em 23 de maio de 1970. Afirmou ainda que o Ginásio
era estadual, mas o prédio e o professorado eram da Prelazia, sendo este dirigido por ela, até a
repressão que acabou com ele. O imóvel foi registrado no Cartório de Imóveis da Comarca sob o
n. 2.568, em 18 de maio de 1976.
101
aventura quixotesca, necessária [...]”.117
Até aquele momento, poucas eram as
famílias que pretendiam que seus filhos cursassem o segundo grau, pois, se o
desejassem, haveriam que mandá-los a Barra do Garças ou Goiás, o que faria com
que as forças novas da juventude se distanciassem da família e do lugar,
provavelmente para não voltar mais. Entendia ser necessária a permanência dos
jovens para cumprir a renovação humana-social dessa juventude mais maleável,
mais aberta e crítica.
Afirmou o bispo que não pretendia que o Ginásio fosse da Prelazia,
tampouco da Congregação, mas, por conta das muitas demoras e irregularidades
do estado de Mato Grosso, pagando os professores com exíguos salários,
funcionou no ginásio as três primeiras séries, tendo um padre como diretor e uma
irmã secretária, portanto, sob a direção da prelazia.
Depois de cooperar com pressões e suplências ao ensino primário de
toda a região, em 1971, uma irmã foi diretora do Grupo Escolar de São Félix, e a
equipe de Santa Terezinha manteve os custos com um primário particular e um
curso de madureza ginasial noturno, vencendo as manobras da prefeitura de
Luciara, que iremos descrever ainda no presente capítulo.
Assim, a pedra fundamental da Escola no Araguaia-Xingu foi plantada
em São Félix, uma escola edificada para ser mantida pelo Estado, o que ocorreu,
porém de maneira fragilizada, pela ausência de investimentos necessários da parte
do poder público. Isso foi uma prova de que Mato Grosso não tinha, naquele
momento, nenhum interesse em atender as demandas por educação, tão
necessárias para a vida nos sertões e cidades do Araguaia-Xingu.
1.5.3 - A Educação entre a cultura de resistência e a libertação do povo
Nós – Bispo, padres, irmãos, leigos engajados – estamos aqui,
entre o Araguaia e o Xingu, neste mundo, real e concreto,
marginalizado e acusador.
Pedro Casaldáliga118
117
CASALDÁLIGA. Pedro. Carta Pastoral – Uma igreja da Amazônia em conflito com o
latifúndio e a marginalização social. P. 26. 118
CASALDÁLIGA. Pedro. Op. cit., p. 28.
102
Neste tópico e de forma sintética apresentamos como a prelazia, por
iniciativa própria, inaugurou o caminho que seria percorrido, mesmo que
vagarosamente, pelo poder público, na edificação de ginásios no Araguaia-Xingu,
com o propósito de atender a formação escolar aos jovens que concluíam os anos
iniciais do ensino fundamental. Ainda sobre essa questão, discorreremos sobre a
origem do recurso aplicado na edificação do Ginásio Estadual Araguaia. Também
revelaremos a existência de uma ruptura entre a Prelazia e os „tubarões‟,
proprietários das grandes fazendas que se instalaram na região, cujo desiderato
custou um preço imensurável para os religiosos, bem como para os professores e
seus projetos socioeducacionais, a serem empreendidos por meio das escolas.
Essas duas dimensões serão retomadas nos tópicos a seguir desse capítulo.
A apresentação do registro de inauguração do Ginásio Estadual
Araguaia, no dia 23 de maio de 1970, anunciava que “[...] a educação é o grande
meio de libertação do povo”, proclamando ainda que essa unidade de ensino –
GEA veio abrir novos horizontes para São Félix e cidades circunvizinhas. As
despesas para sua construção importaram em CR$ 70.040,00 (setenta mil e
quarenta cruzeiros), fruto de doações. Dentre os doadores estavam às fazendas
vizinhas, até então sem atrito com a Prelazia, conforme a Tabela 3:
Tabela 3: Recursos aplicados na edificação do GEA e seus respectivos doadores
Doadores Valor em CR$
Doações de amigos da Espanha e do Brasil 42.365,00
Suiá-Missú (+ limpeza do terreno, serviços de caminhão e parte da
madeira do telhado)
5.000,00
Guanabara 500,00
3 Marias 500,00
Agropecuária Roncador 500,00
Francisco Vilela 500,00
Outras fontes (Leilões) donativos dos Padres Claretianos, CNBB, CRB – Confederação
dos Religiosos do Brasil, organização „Adveniat‟.
Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1979) A16.0.64 P.01.14.
Ao observar o quadro, percebe-se que o maior volume de recursos
aplicados na construção do Ginásio Estadual Araguaia veio de doações da
Espanha (quarenta e dois mil, trezentos e sessenta e cinco cruzeiros), seguidas
pelas contribuições da Agropecuária Suiá-Missú (cinco mil cruzeiros e mais parte
103
da madeira para o telhado e serviços diretos), das Fazendas Guanabara, Três
Marias, Roncador e Francisco Vilela (quinhentos cruzeiros cada). Os demais
recursos foram obtidos em leilões, donativos dos padres claretianos, da
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da Confederação dos
Religiosos do Brasil (CRB) e da organização Adveniat, além do apoio do povo da
cidade. As carteiras escolares foram doadas pelo Colégio Claretianos de Rio Claro
e também graças à doação do Colégio de Itu, das Irmãs de São José.
Em 1975, depois de ter sido alugado ao estado de Mato Grosso,
deixou de ser ginásio, passando a servir aos clubes de mães, jovens e meninos,
com aulas noturnas de alfabetização, complementação, reuniões, encontros e
assembleias. Em 1977 foi ampliado e passou a servir como centro comunitário,
atendendo à cultura, beneficência, promoção humana e serviços pastorais da
prelazia.
Foi nesse mundo marginalizado e acusador que o Ginásio Estadual do
Araguaia inaugurou a edificação da primeira escola vinculada ao estado de Mato
Grosso, embora, como percebemos, essa era uma forma de cobrar a
responsabilidade do Estado para com a educação das famílias da região, viventes à
margem dos programas e serviços públicos, mas também se revestiu de um tom
acusador, por conta de ser o ano de 1971 o da publicação da „declaração de
guerra‟ para com os opressores „tubarões‟.
Assim, concluímos o tópico afirmando que a construção do Ginásio
Estadual Araguaia trouxe importantes ganhos para toda a região, não só por
atender a educação escolar ginasial, aos filhos das famílias do lugar, mas
principalmente por inaugurar outras dimensões da educação até então inexistentes.
Trata-se do atendimento noturno à alfabetização de adultos, que, em 1975 atendeu
naquele espaço o Movimento Brasileiro de Alfabetização Mobral – MOBRAL.119
.
Ali também foi cedido espaço para o primeiro curso de férias para a
formação de professores, em 1978, inaugurando um projeto maior que resultou,
em finais da década de 1980, no INAJÁ e, em 1990, nos cursos de formação
superior „Parceladas‟ da UNEMAT – programa de formação de professores em
serviços, os quais, haveremos de retomar no quarto e último capítulo da narrativa.
119
O MOBRAL foi instituído pelo Decreto n. 62.445, de 22 de março de 1968.
104
Voltaremos nossas lentes para entender quem eram os escolares,
professores e alunos, e quais desafios cercavam os primeiros na arte de ensinar
nas escolas do Araguaia-Xingu.
1.6 - Os desafios do „ser‟ escolar no Araguaia-Xingu na década de 1970
Dedicamos esse tópico para compor o quadro de alunos por escola,
seguindo a publicação da Folha Alvorada e seus respectivos „lugares‟, mas
igualmente revelar quem eram seus professores. Embora esse quadro seja uma
constante ao longo da narrativa, pois a categoria professor habitou incontáveis
matérias no periódico, haveremos de saber quem foi o professor de história, como
e que história ensinava. Inicialmente lancemos nossas lentes sobre sua formação.
O cenário mato-grossense da década de 1970, no tocante à formação
de professores de nível superior, era bastante incipiente, como percebemos na
Tabela 2 (tópico 1.5.2), uma vez que só 8% da população eram formadas em nível
superior, lembrando que esse era a somatório dos habilitados em todos os cursos,
portanto, específico na área de educação e esse índice cairia drasticamente. Tal era
a ausência de políticas públicas para formação superior que o estado de Mato
Grosso só pôde contar com a Universidade Federal, criada em dezembro do
mesmo ano de 1970, pela Lei n. 5.647, a partir da fusão da Faculdade de Direito
de Cuiabá, criada em 1952, conforme Siqueira et al. (2011)120
, tornando-se
reconhecia pelo Decreto Federal n. 43.449, de 3 de dezembro de 1959.
Na mesma esteira foram incorporados o Curso de Filosofia, instituído
pela Lei n. 1.754, de 9 de novembro de 1962, estruturado em Filosofia, Ciências e
Letras, e implantado a partir do ano de 1966, com os cursos de Matemática,
História Natural, Geografia e Letras.
Não bastasse às dificuldades docentes nas escolas interioranas de
Mato Grosso, por conta da falta de infraestrutura, pela inexistência de oferta de
cursos de licenciatura, tampouco o magistério, somavam-se os atrasos constantes
no pagamento dos salários dos professores, conforme anunciou a Folha, em
120
Universidade Federal de Mato Grosso 40 anos: trajetória, personagens e/Organizadores,
Elizabeth Madureira Siqueira, Neide Souza Dourado e Roberto Silva Ribeiro. – Dados eletrônicos.
– Cuiabá: Delft, 2011.
105
outubro de 1970: “Várias professoras heroicas deste sertão ficam esperando o
pagamento durante meses e meses”.121
Ao tempo em que afirmava serem os professores do curso primário
peças fundamentais na formação e progresso de uma nação, acusavam ser
incompreensível o fato de o salário mínimo de Mato Grosso ser de apenas CR$
140,00 (cento e quarenta cruzeiros) e que, com esse recurso, os pobres professores
não chegavam a ganhar sequer um salário mínimo. Assim, não nos surpreende a
falta de profissionais para atuar em educação, posto que os incentivos
inexistissem.
Talvez o termo heroico não fosse tão descomedido, pois, conforme a
carta para o desenvolvimento dos povos, emitida pelo papa, acenava para o
desequilíbrio entre os que tinham e os que nada tinham, cuja diferença poderia ser
compreendida se colocasse a humanidade numa balança: um reduzido grupo de
pessoas privilegiadas – ricos, poderosos, exploradores, tendo estes o prato cheio; e
a turma infinita dos pobres – sem recursos, doentes, sem instrução, sem moradia
digna, sem-terra – incluindo o professor, todos de prato vazio.122
Faço uso desta citação para afirmar que, para transformar esse quadro,
dentre as alternativas estava à instrução, mas, seguindo a inquirição feita naquele
periódico: como fazer isso se, conforme dizia um sertanejo da Paraíba “Uma
cabeça num corpo com fome só pensa em comer!” 123
Alertava a 2ª edição da Folha Alvorada que, perante a situação de
injustiça do „nosso‟ próprio sertão, o indivíduo não pode ficar dormindo ou
acordado comodamente, sem movimentar, ou levantado, em pé, caminhando com
coragem e em união com os outros124
, isso porque existiam alguns latifundiários
de prato cheio e muitos pobres sertanejos retirantes de prato vazio.
Ao conclamar o povo para assumir uma postura proativa em relação
aos seus direitos frente às injustiças, por ser final de ano e encerramento do letivo,
o periódico aproveitava para parabenizar alunos e professores do ginásio, dos
grupos de Luciara, Pontinópolis, Lagoa e das escolinhas espalhadas por todo o
121
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1970.
A16.0.05 p. 4-4. 122
Ibid. 123
Ibid. 124
Ibid.
106
sertão. Dizia ainda que em Santa Terezinha não havia ginásio, mas, mesmo assim,
o povo poderia continuar seus estudos após terminar o primário, por ter
principiado um curso de madureza ginasial, dirigido pelos professores Francisco e
Rosa.
Em 1971, o ginásio de São Félix começou com quatro turmas: 3ª série,
2ª série, e duas salas de 1ª série. Já o primário funcionava em três períodos,
manhã, tarde e noite, além de um curso especial de educação de adultos
(MOBRAL). Em seguida, Pontinópolis, Santo Antônio e Lagoa conseguiram
finalmente ter escola. No ano seguinte, o número de alunos no grupo escolar São
Félix alcançava o montante de 610 alunos frequentes, funcionando em três
períodos, incluindo o noturno, com luz elétrica, por iniciativa dos senhores
Telesforo e Vitor. Para melhor entender como estavam organizadas as escolas e
seus respectivos alunos, montamos a tabela que se segue:
Tabela 4: Escolas e respectivo número de alunos matriculados
Local Número de alunos matriculados
Grupo de São Félix do Araguaia 610 (1971)
Pontinópolis 160 (1972), 280 (1978)
Serra Nova 230 (1972) 360 (1977)
Santa Terezinha (6 professores)
Porto Alegre (a escola foi derrubada em
1971 pela Frenova, mas o professor Altir
está ensinando na nova Escola que o povo
levantou).
252 alunos (1978), no meio do ano já
eram 342 com nove professores tendo 38
alunos cada professor (A16.0.56 p.6.14)
Cascalheira 320 (1978)
Canabrava – tinha em 1978 mais de 200
famílias de posseiros. Em 1979 já eram
300 famílias
Desde 1975 tem uma escolinha
construída pelo povo e dirigida pela
equipe pastoral da Prelazia e algumas
moças do povoado. (A16.0.57 p.6.12) Fonte: Elaboração do Autor, com base na Folha Alvorada (várias edições).
Os dados foram elaborados a partir de informações obtidas entre os
anos de 1970 a 1978. Ao observar os números extraídos a partir das matérias da
Folha Alvorada é possível evidenciar que nem todos os lugares alcançaram duas
ou três sequências, para que fosse possível comparar, mas, no caso de
Pontinópolis, de 160, em 1972, passou para 280 alunos, em 1978; Serra Nova, de
107
230, em 1972, passou a 360, em 1977; Porto Alegre do Norte, de 252, no início do
ano de 1978, em meados do mesmo ano já contava com 342.
Pautado nesse quadro é possível afirmar que, embora as condições
críticas de sobrevivência, por conta das dificuldades enfrentadas pelas famílias,
elas permaneciam e gradativamente matriculavam seus filhos nas escolas. Isso
está diretamente ligado ao fato de que a união dos núcleos familiares nas
comunidades, organizando-se em mutirão, possibilitou a realização de
estabelecimento de condições básicas para que seus filhos pudessem estudar.
Concluímos esse tópico na certeza de que, de posse dessas
informações, foi possível ter ideia sobre a invenção da escola em suas dimensões
humanas e física, muito embora essas questões estarão melhor tratadas a seguir.
1.7 - Entre a alegria de ler, escrever e a tristeza de contar: 200 cruzeiros por
cabeça de gado humano
Estamos condenados ao Latifúndio capitalista. Morra o homem, viva
o boi!
Casaldáliga, 1973125
Tomar a correspondência de autoria de Dona Isaulina, ao lado, serve-
nos de base para enaltecer aspectos importantes da invenção da escola edificada
no Brasil Central, no início da década de 1973. Trata-se de um documento
histórico, à medida que a consideramos fruto de uma ação transformadora, seja no
sentido de um simples agradecimento, seja por avaliar suas dimensões de poder
no complexo cenário vivenciado por Dona Isaulina.
Muito mais que uma simples correspondência, a carta representou sua
ruptura com uma herança nada agradável, não ser alfabetizada, além de não
dominar os códigos e linguagens escritos a impedia de deixar esse importante
registro para que pudéssemos, de forma singular, conhecer sua conquista e
perceber que, a partir dessa obtenção, poderia dialogar com seus contemporâneos,
utilizando da leitura e escrita na produção de uma carta, muito usual para a
circulação da mensagem à distância naqueles tempos.
125
CASALDÁLGIA, Pedro. Conflitos de terra e carrancismo em Campos Limpos, Mato Grosso.
1973 A19.2.06 P.6.6.
108
O mesmo significado deve ser dado à tarefa do historiador,
responsável por oferecer sentido, tendo em vista produzir mais que uma mera
descrição126
, mas construir narrativa que permita a existência do sujeito, não
somente enquanto unidade na diversidade, mas sua ação política,
independentemente da condição social, idade, sexo, origem, local de residência,
cidade ou sertão, é abrir um diálogo, construindo uma narrativa enquanto fruto de
sua invenção.
A complexidade da relação estabelecida naquelas paragens
contribuiria para um conhecimento histórico a reboque de narrativas altruístas, ou,
em contrário pessimista, e, se assim o fosse, se filiaria às intencionalidades
induzidas pela necessidade em defender este ou aquele segmento social. Não
sendo esse nosso propósito, mesmo que esta seja uma narrativa engajada, apesar
dos esforços aplicados para não incorrer em imprecisões.
Nesse sentido,
procuramos revelar a
riqueza do cotidiano
estabelecido por seus
agentes a partir de seus
registros, os mais singelos,
a exemplo da escritura de
uma carta, um quadro de
pesquisa, uma matriz
curricular, uma matéria
fazendo alusão às datas
cívicas, procurando revelar
uma sequência de dados
tecidos no „sentido‟ da
invenção da escola desde
seus primórdios, a
exemplo do Ginásio
Estadual Araguaia.
126
CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Traduzido por Maria
Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.
109
Igualmente, perceber algumas pedras de tropeços durante a repressão
militar ao caminhar dos escolares representa mais um importante tijolo da
invenção da escola. Para tanto, requereu ampliação do leque das fontes
documentais e, por conseguinte, sua análise.
Seguindo esse propósito, serviremos de uma carta-denúncia escrita
pelo Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia sobre o mesmo „lugar‟ e ano em
que Dona Isaulina redigia sua mensagem. Penso que, ao entender a rede de
sociabilidades traçada por meio da análise dos documentos, entendendo-o em seu
contexto, possibilita ampliar a lente sobre esse lugar - chamado vulgarmente de
„tirolândia‟ (nos campos limpos – Ribeirão Cascalheira).
A carta-denúncia foi escrita pelo Bispo Pedro Casaldáliga, sob o título
Conflitos de terra e carrancismo em campos limpos, município de Barra do
Garças-MT127
. A trama envolve trezentas e cinquenta famílias residentes naquelas
paragens, sendo 85% posseiros „tocados‟ do Norte e do Centro do país pelo
latifúndio, e que aqui viviam à espera da reforma agrária.
Seguia a carta: “O clima de far-west (sic) tomou aquele lugar,
iniciando pelas arbitrariedades policiais e pelos despejos de peões”. Ao tempo
em que denunciava o despejo dos peões, alertava para o tráfico de pessoas, cuja
prática alimentava a maquinaria de exploração:
[...] só no último mês foram mais de mil e quatrocentos que
passaram pela pequena „cidadezinha‟, grande parte deles foram
levados para a Fazenda Bordon S. A. traficados por um
marreteiro que, cobrava 200 cruzeiros por cada cabeça de gado
humano trazido de Santa Helena do Estado de Goiás.128
Denunciou o Bispo que a cada dia aumentava a insegurança pela falta
de punição aos indivíduos perigosos, a exemplo dos capangas e pistoleiros
trazidos pelos senhores Zacarias Guedes e Paulo Guasca e seus filhos. Eles,
mesmo não apresentando qualquer título da terra, vinham ameaçando e
expulsando os posseiros, até à bala.
127
CASALDÁLGIA, Op. cit. 128
Ibid.
110
Na mesma carta é possível perceber que a professora Ilda, citada na
missiva da senhora Isaulina e em passagens anteriores, contribuía para que as
famílias dos posseiros tivessem acesso a informações vitais para sua permanência
na terra, como fora anunciado pelo bispo sobre a viagem empreendida por
membros da equipe da prelazia ao povoado de Ribeirão Cascalheira, como bem
expõe o relato:
No dia 15, nós, Pe. Manuel e Ilda, fomos de tropa até a casa do
posseiro Bento – 6 léguas. Lá nos esperavam outros posseiros,
moradores da gleba do seu Z. (sic) os outros moradores do
Gengibre e São João. Todos esses posseiros nos colocaram a
par da problemática cada vez mais tensa que existe entre eles e
os que se dizem „donos‟ daquelas terras [...] nós tentamos
esclarecer-lhes o Decreto-Lei número 70.430, assinado pelo
Presidente da República no dia 17 de abril de 1972.129
A partir desse relatório produzido pela equipe da prelazia e reforçado
em carta circunstanciada pelo bispo, é possível afirmar a existência de uma ação
direta da escola enquanto instituição, representada pela professora Ilda e pelo
padre Manuel. O mesmo fato foi assim narrado pelo Bispo em seu diário: “E1
lugar está em clima de espanto. Zacarías, el 'carrancista', el cacique local, em
conflicto con unos posseiros y ofendido en sus intereses egoístas”.130
Observou o bispo que o carrancista e cacique local, querendo impor
sua verdade a qualquer custo, em desacordo com a orientação que os residentes
daquele sítio estariam recebendo, do Padre Manuel, instruções de como deveriam
agir diante daquele imbróglio.
Aludia aos direito dos posseiros em defesa de sua permanência na
terra, pois o Decreto-Lei, assinado pelo Presidente Emílio G. Médici, dentre
outras prerrogativas, em seu Artigo 2º assegurou às pessoas domiciliadas na área
dos empreendimentos “[...] formem elas ou não, coletividades urbanas, não
poderão ser deslocadas de suas moradias ou da posse de terras que por elas
cultivadas sem audiência prévia do Ministério da Agricultura”. O referido Decreto
reforçava o disposto no artigo 2º § 3º da Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964
129
Ibid. 130
Diário de Pedro Casaldáliga. Yo creo em La Justicia. Registro feito no dia 19 de março de
1972, p. 30.
111
(Lei de Terras), “A todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que
cultive, dentro dos termos e limitações desta Lei, observadas sempre que for o
caso, as normas dos contratos de trabalho”.131
Essa ação de esclarecimento cumpriu duplamente seu objetivo, seja na
orientação às famílias para não se tornarem vítimas dos „grileiros‟, seja no sentido
de afirmar sua posição frente às violências praticadas pelos malfeitores,
evidenciando a contradição do Estado frente à questão, que, requeria reagir aos
desmandos, como afirma a carta denúncia:
[...] após a visita, o seu Zacarias começou a criar problemas
conosco iniciando uma campanha de difamação, no Patrimônio,
contra o bispo Pedro, o Pe. Manuel, as irmãs Beatriz, a
Madalena e a professora Ilda: Seríamos comunistas e
subversivos, seríamos imorais, o Padre não seria Padre etc.132
Portanto, lutar pelo direito das famílias à luz da legislação, orientar e
formar o cidadão para que pudesse defender-se dos opressores, naquele caso o
senhor Zacarias, tornou-se razão suficiente para que estes fossem chamados de
subversivos, de não serem padres, mas sim comunistas.
Dessa feita, a situação tornou-se ainda mais tensa naquele povoado e
sertão, explodindo por ocasião da resolução do problema da escola e das
professoras. Sem consultar a ninguém, o senhor Zacarias foi até Barra do Garças,
sede do município, para apresentar quatro professoras, inclusive sua própria filha,
para substituir as que ali exerciam suas funções.
Os pais, desaprovando essa atitude, fizeram uma reunião, estando o
senhor Zacarias presente, com o objetivo de pedir ao Secretário de Educação a
nomeação da Ilda, como professora e coordenadora da escola local. Mesmo diante
do descontentamento do senhor Zacarias e de suas inúmeras ameaças, 77
moradores assinaram o documento e, posteriormente, enviaram-no ao secretário
em Barra do Garças, por intermédio de representante.
Descontente com a situação, no dia 13, por volta das 14 horas, o Sr.
Zacarias foi procurar o Pe. Manuel, que estava sentado no alpendre da casa e, de
131
CASALDÁLGIA, Pedro. Conflitos de terra e carrancismo em Campos Limpos, Mato Grosso.
1973 A19.2.06 P.2.6. 1973 A19.2.06 P.2.6. 132
Ibid.
112
forma grosseira, inquiriu-o sobre uma carta do bispo ao posseiro Bento. O padre,
por sua vez, tentou, com calma, explicar-lhe, mas de nada adiantou, o padre foi
empurrado e derrubado de costa para a rua, momento em que duas mulheres,
Beatriz e Madalena, ao ouvirem os gritos, colocaram-se entre a vítima e o
agressor, que já estava puxando seu revolver 38. Mas, diante da atitude corajosa
das mulheres, saiu murmurando palavras ininteligíveis, evento anunciado na
página 2 do citado relatório.133
Em uma incursão sobre o ocorrido e seus desdobramentos, é possível
perceber que a atuação da escola não só foi manifesta pelos movimentos de
resistência em prol da permanência das famílias na terra, como também, por outro
lado, seu domínio serviria estrategicamente para neutralizar a ação proativa dos
professores, nomeando outros em seu lugar. O conflito e a disputa foi o prato do
dia.
De certa forma, embora o Decreto-Lei ordenasse possíveis avanços
em relação ao direito à propriedade pelos posseiros, tornava-se impraticável sua
aplicação, pois o sistema sofisticado de opressão adotado no latifúndio capitalista
sobrepunha ao direito das famílias do lugar, tendo em vista que o problema dos
posseiros se tornou um pesadelo social, sob o discurso dos malfeitores, apoiados
pelo cabo Messias Martins dos Reis e do soldado João, da Polícia Militar, que
passaram a caminho de Luciara anunciando publicamente que iriam trazer o
capitão de Barra do Garças e o Exército, todos para apoiá-los, porque o povo
estava contra. Falava ainda “[...] que se tratava de um prodigioso complexo de
Segurança Nacional, e que acabara de descobrir „Guerra Civil‟ e „Guerrilha‟ e os
culpados eram os amigos do Padre, os verdadeiros ofensores”.134
E os amigos dos
padres eram os professores ou pessoas que se levantavam em sua defesa.
Em meio ao cenário de conflito aberto, entre grileiros, peões e a força
estatal, representada pela polícia a serviço dos fazendeiros, a escola de educação
básica se fazia presente, marcadamente responsável por contribuir no domínio da
leitura e da escrita, com o sentido de cotizar a resistência das famílias dos
posseiros ali residentes, cujas condições continuarão sendo apresentadas a seguir.
133
Ibid. 134
Ibid.
113
1.8 - Em contextos „integração‟, „segurança‟ e „desenvolvimento‟ que ensina a
Escola senão a subversão?
Nesse tópico abordaremos as estratégias discursivas dos opressores
para justificar as violências por eles praticadas, a exemplo do Sr. Zacarias contra o
padre Manuel.
Entre os anos de 1973 e 1974, por conta das denúncias publicadas
pelo Bispo, o que resultou em diligências à sede da Prelazia em São Félix, onde
ocorreu sequestro de documentos em 1974, mas, mesmo diante da repressão, a
Folha Alvorada continuava cumprindo a importante tarefa em anunciar as
mazelas vividas pelas comunidades, para que seus filhos pudessem estudar.
Em junho de 1974, o jornal anunciava o caos na escola e a cabra em
Serra Nova:
[...] a escola está caindo, paredes já não tem, no inverno se
chovia, não havia aula, no verão, não dava para suportar o sol‟.
Entretanto, „[...] uma cabra achou o lugar bem agasalhado para
aí parir seus cabritinhos, quem sabe se para aprenderem os
alunos, na própria escola, os mistérios da vida.135
Bem defronte às ruínas da Escola, fora colocado, por um grupo do
Projeto Rondon, um mastro de bandeira. Na base dele havia uma significativa
inscrição: Integração, Segurança e Desenvolvimento. Ao que parece, o slogan não
servia para todos, pois já estavam na segunda metade de junho e a Escola ainda
estava com suas atividades funcionando de forma precária. No início do ano, o
secretário de educação de Barra do Garças, Sr. Juracy, havia mostrado para a
diretora da Escola o recibo da verba destinada à construção da nova sede escolar,
onde seria construída e quando estaria pronta. Observava ainda que até o giz para
escola tinha que ser arrumado por particulares.136
A esperança fazia emergir, em tom de denúncia, as palavras de Pedro
Casaldáliga sobre a absolvição do Padre Francisco Jentel, de uma condenação
injusta cometida pela Auditoria Militar de Campo Grande, do crime de
„subversão‟, „comunismo‟ e „guerrilha‟ a que tivera sido acusado Jentel, em julho
135
Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974 A16.0.17 P.3.4. 136
Ibid.
114
de 1974, pelo Superior Tribunal Militar de Brasília. Porém, a causa do Padre era a
causa do povo, que assistia seus direitos sempre ser desrespeitados, tendo sido o
citado padre o espantalho da subversão, porém, sua absolvição não resolveu o
verdadeiro problema, afirmava Pedro Casaldáliga.137
Anunciava ainda que em toda a Ilha do Bananal, em Santo Antônio,
Barreira Amarela e beira do rio das Mortes; no Ribeirão Bonito e na Cascalheira,
no Barreiro, Piabanha e Matinha; em Porto Alegre; em Serra Nova e sertões
contíguos; na Chapadinha; e nas proximidades de Luciara e São Félix “[...] o povo
sertanejo ou posseiro não tem terra nem perspectiva de um futuro humano”.138
Em março de 1975 foi noticiada que a triste e velha história
continuava – os índios que não morreram no primeiro choque contraíram doenças
e vícios adquiridos das tais frentes pioneiras, ou foram tangidos como rebanhos
para áreas estranhas, precisando fazer alarde para conseguir sua reserva de terra.
Certamente, estava se dando o registro das ações de deslocamento dos povos
Xavante, cujas terras atravancavam a implantação dos projetos das colonizadoras,
já mencionados anteriormente.139
As ameaças feitas diretamente ao bispo e por boatos espalhados em
Cuiabá, Barra do Garças e São Félix sobre sua possível expulsão, segundo matéria
publicada em outubro de 1975, “[...] é para esmorecer os defensores dos direitos
pela terra, escola, saúde e melhora de vida”.140
E que, desta vez a repressão seria
pior do que fora em 1973, contando com a presença de vários búfalos que
carregariam todos os amigos dos padres. Os búfalos a que se refere o documento
trata-se da aeronave militar, utilizada na região pelas forças armadas.
Buscamos tais informações para afirmar que as escolas e a educação
básica, estruturadas para atender a população, que não era outra senão a dos filhos
das famílias ali residentes – posseiros, indígenas, peões –, igualmente as colocava
em suspeição, haja vista que boa parte dos professores comungavam com o
ideário da igreja católica ali defendidos sob a liderança do bispo Pedro
Casaldáliga.
137
Ibid. 138
Ibid. 139
Ibid. 140
Ibid.
115
Os boatos veiculavam informações maldosas, como a de que iriam
fechar a igreja, a escola e prender todos os que estivessem dentro, por serem todos
os amigos dos padres considerados igualmente comunistas.141
As incertezas e ameaças contra o povo e aos professores colocavam
em dúvida a continuidade dos trabalhos educacionais nas principais escolas do
Araguaia-Xingu, e essas ações tinham, em grande medida, o apoio do Estado, e
em muito ultrapassavam as fronteiras não indígenas. A exemplo, citamos uma
visita ameaçadora na aldeia Tapirapé, no dia 29 de setembro de 1975, momento
em que a Dra. Giselda, geóloga, o Dr. Alceu e o Sr. Quirino, agrimensor, todos da
Fundação Nacional do Índio, acompanhados do Dr. Eduardo, um dos diretores da
Companhia Tapiraguaia, e do chefe do Posto Indígena, Sr. Juraci Andrade, que,
de forma desrespeitosa e agressiva para com os índios, as irmãzinhas e o casal de
professores da aldeia, foram ali para impor arbitrariedades, criando confusão e
gerando medo. Tomaram por calúnia à proposta da demarcação da Reserva
Tapirapé, apresentada à FUNAI pela Assessoria para Terras Indígenas do
Conselho Indigenista Missionário (CIMI).142
Durante a visita, que parecia muito mais uma diligência policial, os
índios foram ameaçados de ser transferidos para o Parque Nacional do Xingu,
caso não aceitassem a demarcação imposta. Todavia, diferente do que se
pretendia, um membro da aldeia reagiu afirmando que eles “[...] não eram criação
da FUNAI para ser levados de um lado para outro e que os tapirapé iriam morrer
ali mesmo”.143
De forma contundente, os representantes do Estado afirmaram que a
missão, representada pelas irmãzinhas há mais de 20 anos, deveria se preocupar
com o trabalho espiritual, sem se envolver com os problemas da terra.
Aquele episódio foi marcado por duelos de titãs, tendo, de um lado, os
representantes do Estado, a serviço do poderio dos tubarões, e, de outro, os
defensores dos menos favorecidos. Em resposta à afirmação do representante da
Tapiraguaia sobre a existência do parque do Araguaia para os Tapirapé, na Ilha do
Bananal, e que ali tinha mato suficiente para eles. As irmãzinhas intervieram
141
Ibid. 142
Ibid. 143
Ibid.
116
dizendo que a terra de uma aldeia não era somente para o cultivo imediato, mas a
base para manter os valores da cultura de um povo, e que enquanto os
representantes do latifúndio olhavam para a produção, eles “[...] viam antes o
homem”.144
Dra. Giselda disse textualmente: “Vocês escutam o que vou dizer: Em
nome do Presidente da FUNAI, Dom Pedro está proibido de entrar aqui...”. De
pronto, os professores disseram que eram sustentados pelo bispo da prelazia no
trabalho na aldeia. A
Dra. Giselda
comentou com um
colega, segundo
relato: “Quando o
diabo não aparece,
manda um
secretário”.145
Mais uma
razão para afirmar
que a oferta da
educação básica para
os indígenas, naquele
momento, se dava com o apoio da prelazia, tendo à frente docentes leigos.
Percebe-se ainda que naquele tempo, embora os meios de
comunicação ainda encontrassem barreira da distância, por não terem redes de
telecomunicação e tampouco Internet, com os dispositivos digitais, a prelazia
exercia função disseminadora das informações, por meio do periódico Folha
Alvorada, compartilhando reflexões importantes com a população, fosse à das
144
Ibid. 145
Parece-nos que a esfera estatal não planejava atender à demanda da sociedade formada no
Araguaia-Xingu, pois, em junho de 1974 o Governo estadual, por meio do Secretário de
Administração, Lenine Campos Póvoas, e Secretário de Educação e Cultura, Prof. Antônio S.
Areias, publicaram um concurso público para educação com 1.800 vagas, todavia as cidades
contempladas seriam: Cuiabá, Campo Grande, Corumbá, Dourados, Três Lagoas, Rondonópolis,
portanto, nenhuma vaga foi direcionada para as cidades do Araguaia. Somadas às outras situações
já apresentadas, não fosse à ação direta da Prelazia na defesa das famílias de terem acesso à escola
no Araguaia-Xingu, certamente continuariam alimentando o batalhão de analfabetos espalhados
nos rincões do Brasil. (Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 4ª P.4.52.6).
117
cidades, povoados ou sertões, a exemplo da crítica feita à falta de proteção aos
lavradores, conforme noticiou no mês de outubro de 1975:
[...] o problema desta região é mesmo a terra. E este é o
problema do Brasil. Nunca devemos esquecer que 10 milhões
de famílias brasileiras ligadas à agricultura estão sem terras, ou
sem terra suficiente para sobreviver. A agricultura no Brasil
ocupa 13 milhões de pessoas, a indústria ocupa só 5 milhões.
Entretanto o número de lavradores protegidos pelas Leis
Trabalhistas é menor do que o número de operários, bem ou
mal amparados, por essas Leis.146
Observa-se que, além de conseguir manter uma rede de comunicação
regional, veiculava informações sobre a conjuntura nacional, possibilitando que
todos pudessem ter a dimensão da importância da agricultura no Brasil. Também
reivindicava atenção para o fato de os lavradores daquele espaço territorial não
serem protegidos pelas leis trabalhistas. A exemplo da Figura 4, tratava-se de uma
matéria sobre a greve nas escolas do Paraná e de São Paulo.
Finalizamos esse tópico sem a pretensão de exaurir a temática, pois, a
pecha de subversivos, guerrilheiros e comunistas pareceu-nos uma tática
discursiva para liquidar o direito de reivindicar „direitos‟, seja em defesa da terra
dos índios, ou de sua posse, e em defesa de melhores condições de trabalho.
Assim, seguimos o processo histórico que resultou no princípio da edificação da
escola no Araguaia-Xingu mato-grossense, na década de 1970, abordando
algumas tramas vividas em seu cotidiano.
1.8.1 - Que os olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos ver: formação
política, greve, subversão e outros episódios
Sobre o movimento reivindicando direitos, organizado pelos
professores, o periódico Alvorada, em setembro de 1978, noticiou a greve de
professores que assolava os estados do Paraná e São Paulo, afirmando que não
eram somente os trabalhadores das fábricas que reclamavam baixos salários, visto
146
Ibid.
118
que as péssimas condições não caracterizavam só na região do Araguaia, onde as
coisas andavam duras para os professores.
Compartilhava ainda que os docentes, quando entrassem em greve,
deveriam escrever às autoridades e aos pais de alunos explicando os motivos da
paralização: baixa qualidade do ensino, salário reduzido e más condições das
escolas. Pelas razões anunciadas, iam parar as aulas até que o governo, não só
aumentasse seus salários, mas que contemplassem as demais reivindicações.147
Fazendo isso, o orientativo afiançaria a tomada de consciência de que
havia um movimento nacional reivindicatório de melhores condições salariais.
Alertava ainda que o protesto grevista poderia resultar em acirramento, como o
vivenciado pelos professores paulistas que, naquele momento, estavam sofrendo
muitas pressões e ameaças, mas, ainda assim, não desistiram do movimento.
Na mesma edição da Folha Alvorada foi noticiado o mau exemplo do
secretário da escola Santa Terezinha, Cleoviton Nerys Costa, que, por raiva do
aluno e presidente do Centro Cívico, Jonas, certamente um contestador do direito
dos alunos e da comunidade, e por não ter coragem de enfrentá-lo, deferiu-lhe um
tiro à traição e que o ato criminoso foi acobertado pelo delegado Rui Milhomem,
pois, no dia seguinte ao ocorrido, deixou-o viajar na aeronave do Estado. Afirmou
ainda que a referida fuga não passava de algo combinado, pois o avião que ia
buscar e levar dinheiro em Cuiabá, não trazia nenhum remédio sequer, não
transportava doente, mas levava um fugitivo.
Em março de 1979, em episódio no qual o povo pedia a substituição
da Diretora da Escola de 1º Grau Santa Terezinha, o jornal anunciou que o aluno
Jonas permaneceu paralítico, devido ao tiro desferido pelo secretário da escola.148
Com propósito didático no tocante ao delineamento da tese, seguimos
fazendo paralelos entre a forma pela qual se organizava a escola e os grupos
residentes nos sertões e povoados do Araguaia-Xingu buscando confrontar as
ações desenvolvidas em torno da defesa da educação no Araguaia-Xingu, hora
adiante, revelando o movimento da Educação popular de Paulo Freire, por
entender que havia semelhanças, seja em relação à leitura do contexto e das ações
147
Ibid. 148
Ibid.
119
para sua transformação. Para tanto, tomamos as ações propostas pela comunidade
de base.
Nesse sentido, faremos elegemos os temas apresentados durante o III
Encontro Intereclesial das Comunidades de Base que, dentre outros relacionados
à Igreja, o quarto tópico teve por foco:
a) Procurar conhecer a realidade local, do nosso município e
dos municípios vizinhos, para fazer uma corrente que se
liga entre nós, descobrindo o que está por trás daquilo que
os poderosos procuram esconder de nós, a fim de que os
nossos olhos passem a ver aquilo que realmente precisamos
ver;
b) Fazer essa análise com boa participação de todos, de modo
que o nosso esforço cresça sem nunca voltar atrás;
c) Assumir a nossa condição de classe oprimida, pois temos de
fazer um trabalho acreditando uns nos outros, já que os
nossos interesses são iguais.149
Ao analisar os pontos acima relacionados, é possível afirmar que as
bandeiras levantadas e defendidas por meio da Folha Alvorada, da mesma forma
que tinha por leitores famílias de posseiros e peões, igualmente eram lidas pelos
fazendeiros, políticos, funcionários públicos, professores etc. De certo, tais
bandeiras poderiam facilmente ser interpretadas como sendo uma afronta aos
interesses dos detentores do poder e do capital, associando a origem dos
movimentos aos „comunistas‟ e „subversivos‟.
Seguia ainda orientação de como deveria o povo conhecer a realidade
e, a partir dela, organizar-se:
a) Sempre em pequenos grupos, onde o povo encontra o povo;
b) Através de uma ação avaliada, para que seja correta;
c) Procurando estudar a realidade, principalmente a história
das sociedades, segundo a nossa maneira de entender essa
história, pelos olhos de quem constrói e sustenta a base
social.150
Seguindo as orientações publicadas na Folha Alvorada, em finais da
primeira década de existência da escola, bem como do próprio periódico, é
possível perceber a dialética entre o contexto e as necessidades de transformá-lo.
149
Ibid. 150
Ibid.
120
Porém, inaugurava a prerrogativa de fomentar aprendizagens sobre a “[...] a
história das sociedades sob a nossa maneira de entender, pelos olhos de quem
constrói e sustenta a base social [...] 151
, portanto, o povo. Assim, seguimos
mapeando tal litígio.
1.9 - Escola: uma invenção em litígio
As massas devem poder reunir-se, discutir, propor, receber
instruções. Os cidadãos devem ter a possibilidade de falar, de
se expressarem, de inventar.152
A escola é uma instituição temporal marcada pelo conteúdo e forma
pela qual as pessoas a inventam. Assim, perceber o espaço escolar no tempo é um
desafio para o historiador, todavia, não basta conhecer seu projeto, mas, entende-
lo num processo de permanente transformação, ora em águas calmas, ora em
banzeiros.
Como criação social, a escola se inventa, competindo ao professor de
história perceber que, ao ensinar essa „disciplina‟, na escola de educação básica,
ele participa de um processo maior de configuração social, seja pela manutenção
do projeto opressor, ou pela libertação do oprimido. As duas escolhas o fará
partícipe de um processo político que, distante de ser neutro, suas escolhas
resultarão na manutenção do ideário colonizador ou na revolução para sua
descolonização, entendendo que, ao denunciar a opressão, contribuindo para o
esclarecimento do povo, o faz capaz de reivindicar seu lugar, seu direito, seu ser,
tornando visível à própria existência através da reinvenção da sua condição de
sujeito socialmente localizado.
Como observado, objetivamos neste capítulo, a partir da leitura dos
registros sobre a escola no Araguaia-Xingu, mapear os conflitos em seu cotidiano
e, partindo deles, percebê-la enquanto pedra angular esculpida nas e pelas
intenções de um jogo de poder estabelecido entre opressores e oprimidos, e, na
medida do possível, reconhecer como se deu esse processo, pois pensamos que, ao
151
Ibid. 152
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 128.
121
compreender a escola enquanto pedra angular, cabe aos educadores entender o
quão relevante é sua função social no tempo.
Observou-se ainda que, mesmo em momentos de aparente
neutralidade, opressores e oprimidos fermentam seus projetos de sociedade. E a
escola foi à primeira instituição a ser assediada, ora mantendo-se a serviço do
colonizador, ora em verdadeiro campo de batalha por movimentos de
transformação operados em favor do oprimido, numa disputa emoldurada por
argumentos, mas que se valia também da força, da violência.
Assim, entendemos que nossa jornada exploratória, até o momento,
possibilitou perceber que a violência, além de ser consequência de atos praticados,
uma vez revelada origem, emanou possibilidades de transformação, récita pela
qual foram arregimentadas as táticas das famílias pobres contra as estratégias do
fazendeiro, sustentado pelo braço forte do Estado opressor. Embora não seja
pretensão inventar um vencedor, há que reconhecer que em momentos
sobressaíram os fazendeiros (usando da força), ora as famílias dos posseiros
apoiados pela prelazia. Mas há que se perfilhar que, se os argumentos não se
faziam suficientes, os oprimidos também fizeram valer sua força.
Conforme Fanon (1965), toda a segurança nova e revolucionária do
colonizado dimana disso.153
Se, com efeito, a minha vida tem a mesma
importância que a do colono, o seu olhar já não me fulmina, já não me imobiliza,
e sua voz não me petrifica. Já não me perturbo na sua presença. Praticamente, eu
aborreço-o. A sua presença não me afeta, preparo-lhe tais emboscadas que em
breve não terão outra saída a não ser a fuga.
O contexto colonial caracteriza-se pela dicotomia que inflige ao
mundo. Segundo Fanon, a descolonização unifica esse mundo, arrebatando-o de
forma radical a sua heterogeneidade, unificando-o sobre a base da nação ou da
raça.154
Lançar olhares sobre a escola no tempo possibilita interpreta-la como
um ponto de partida na formação social, com regras historicamente praticadas,
que, além de repositório das convenções, constitui espaço onde tais valores se
desabrocham, revelando o ser de cada um dos escolares, professores, alunos e pais
153
Ibid. 154
Ibid.
122
e, em seu conjunto, os interesses dos grupos sociais por meio de uma política
repleta de regras e valores, a partir dos quais vão sendo lapidados por meio do
atrito, uma vez que só o homem historicamente construiu esse laboratório para
nele desencadear o processo de mediação e aprendizagem que, a seguir,
continuamos a apresentar.
Pinçamos alguns fatos ocorridos em uma escola do quadrilátero
Araguaia-Xingu, que, sem muito esforço do observador atento, poderá se
reproduzir em todas as escolas de educação básica do país, portanto, passível de
serem observados no tempo, para neles encontrar as razões da busca. Em nosso
caso, por conta de a escola ter sido inventada em um período histórico e numa
espacialidade onde o conflito foi marcado por atos de violência, assistidos a
„olhos nus‟, não havia preocupação por parte dos opressores de permanecer no
anonimato, revisitaremos alguns desses episódios.
Para esse retorno, apresentamos alguns „sentidos‟ atribuídos ao
conceito de violência, observando que, ao anunciar, o periódico o fazia na acepção
de denúncia. Todavia, nosso propósito não será o de analisar as dimensões
atribuídas à violência, tampouco produzir análise profunda sobre o tema, muito
embora apareça ao longo da narrativa, mas, para o momento, ponderar como os
professores se colocaram diante de tal „prática‟.
Conforme publicado na Folha Alvorada, “[...] violência é toda
violação dos direitos humanos, [...] é tirar o índio de sua terra, [de seu modo de
vida]. [Violência] é deixar sem-terra o lavrador, deixar tantas famílias sem
moradia, tantos trabalhadores sem serviço, [tantas] crianças sem escola, [tantos]
doentes sem atendimento”.155
Violência é a carestia da vida, o salário de miséria. Violência é a
guerra, a política suja, a política perseguidora, a fabricação de armamentos.
Violência é desprezar o negro, o velho, a mulher, a criança. Violência é a
vingança, a bebedeira, a prostituição, o desrespeito. Assim, contra a violência, a
fraternidade, contra a injustiça, a união, contra a perseguição, a coragem e contra a
malandragem, a sinceridade.156
155
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Março de 1983
A16.2.02 P.8.14. Sem grifo no original. 156
Ibid.
123
Ao dar „nome‟ à violência, percebe-se com clareza que seus
proponentes estão a denunciar a sociedade capitalista burguesa, colocando-se, de
um lado, os detentores do capital, e, de outro, os expropriados e explorados.
Igualmente como consequência dessa divisão social, as mazelas, como a falta de
acesso à escola, à saúde, a entrega aos vícios, à prostituição, à discriminação e aos
assassinatos.
Resta-nos entender como essas „des-ordem‟ poderiam alcançar o
progresso? Como elas se revelaram no interior da escola, na década de 1970, no
Araguaia-Xingu? Por se tratar de uma escola edificada pela comunidade, ficou
isenta das investidas dos agentes do governo, da política? Para o alcance das
respostas, revisitaremos o episódio ocorrido em Santa Terezinha, em 1978, e com
desfecho em 1979, com sua ocupação por, aproximadamente, 100 pais de família.
É possível que tenha sido o primeiro movimento dessa natureza no estado de
Mato Grosso.
Em 1978, o secretário da instituição escolar, Cleoviton, atirou no
aluno Jonas. Além de não ter sido preso, ele continuou recebendo o salário
normalmente. E, no início do ano de 1979, Cleomenes Neres, irmão do secretário,
com o apoio de políticos de Barra do Garças, foi nomeado vice-diretor. De posse
no cargo, chegou demitindo D. Alzira e, para espanto de todos, retirou Regina
Borela, considerada melhor professora da escola. Tais decisões fizeram com que a
comunidade se levantasse contra as decisões antidemocráticas, ocupando a escola.
Aquela comunidade, ao tempo em que tinha sofrido disputa com a
Companhia de Desenvolvimento do Araguaia – CODEARA, pela posse da terra, e
igualmente experimentado formas de resistência por meio da união, aprendendo
que retroceder não era a melhor solução na busca por seus direitos como o padre
Chico (Francisco Jentel). Sobre o episódio ocorrido em 1972, Pedro Casaldáliga
registrou em seu diário, aos 6 de março de 1981, nove anos depois:
Hemos celebrado, em Santa Terezinha, en espíritu de júbilo
popular, la victoria del pueblo. Aquel 3 de marzo de 1972,
cuando los posseiros enfrentaron a la Codeara y a la policía,
124
para defender la construcción del ambulatorio local, para
defender su derecho a la tierra.157
O confronto com a CODEARA continuou sendo, por muitos anos,
motivo de comemoração. Todavia, o problema ali posto não se limitava à defesa
do ambulatório, mas era muito mas amplo, tratava-se da defesa ao direito pela
terra onde havia sido edificado bem como os ideários daquele povo. Idêntica
situação pode ser observada em relação à escola, o problema não era somente o
fato ocorrido com a tentativa de homicídio do aluno Jonas, tampouco a demissão
da professora e da zeladora, mas sim o direito por uma escola onde as decisões
deveriam ser tomadas no coletivo e de forma democrática. Assim, esse era o
amálgama em que se destacava as instituições e em seu entorno uma trama repleta
de litígio própria daquele espaço de luta.
Como observado até o momento, à sociedade inventa sua escola em
meio a disputas pelo poder, que em nada considera a história de luta das pessoas
que a edificaram e do que nela se ensinou, não havendo tampouco preocupação na
definição do currículo que traduz sentido ao que a comunidade entende como
relevante para a formação e construção de conhecimento por parte do aprendente,
e possíveis conquistas das famílias.
Tomando o caso por parâmetro, é possível afirmar que no campo de
batalha o professor de história atuava procurando valorizar a memória, pois, ao
valorizar a memória poderia transformá-la em forma de resistência às investidas
por parte dos „agentes‟ representantes deste ou daquele partido político. Assim,
observemos o desdobramento do caso.
Não havendo acordo entre as partes, uma vez que os ditos
representantes do governo e as famílias não cederam, a questão acirrou, e as
pessoas disseram que não sairiam enquanto não viesse alguém para resolver o
empasse. Permaneceram a noite toda, e também o dia seguinte, afirmando estar
preparados para aguentar o tempo que fosse necessário. Quem estava do lado de
fora da escola ia mandando café, bolo, guaraná e farofa para que pudessem
alimentar os que permaneciam dentro.
157
En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983. Tercer libro del diario de Pedro Casaldáliga, publicado
originalmente por Desclée, Bilbao, 1983.
125
Para que todos soubessem a razão daquela ocupação, os que estavam à
frente do movimento, confeccionaram um boletim explicativo para que toda
população compreendesse o significado daquele movimento, e também
escolheram um professor para levar a questão perante as autoridades em Cuiabá.
Ainda, para reforçar a paralização, redigiram uma carta e enviaram-na para o
Presidente da República e outra para o Ministro da Educação.
Tal iniciativa possibilita-nos afirmar que, além das autoridades
atuantes na Secretaria de Estado de Educação, em Cuiabá, o Ministro da Educação
e o próprio Presidente da República tiveram conhecimento dos fatos ocorridos na
Escola de Santa Terezinha. Portanto, os acontecimentos que marcaram a invenção
da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense ficaram conhecidos nacionalmente,
especialmente em relação ao imbróglio decorrentes da luta pelo poder sob a
gestão dos processos políticos local a cerca da organização escolar.
Ao analisar os eventos ocorridos em Santa Terezinha, em finais da
década de 1970, torna-se mister reconhecer que a política esteve e continua ainda
sendo o meio pelo qual toda escola pública é pensada, organizada, e, em alguns
casos, devastada, conforme este ou aquele projeto engendrado pelas „forças
políticas‟, e, claro, implementada na defesa do interesse de grupos de interesses,
incluindo os dos partidos políticos.
Também há a formação de grupos que não, necessariamente, possuem
engajamento em torno de partido político, até porque, muitos cidadãos não têm
„filiação‟ declarada, entendemos, portanto que, no caso do Araguaia-Xingu, a
causa da educação é maior que as defendidas pelas agremiações.
Parece-nos emblemática as iniciativas em torno de ações partidárias a
tentativa de utilizar a educação como instrumento de „dominação‟. Nesse sentido,
falar de uma „escola sem partido‟ é, de um lado, uma farsa, mas também
estratégia, por se tratar de uma ação política procurando tirar da escola um
importante conteúdo que pode lhe conferir condições para a transformação da
sociedade, a politização do aprendente e da comunidade de entorno.
Tal episódio lembra-nos Fanon158
, quando afirmou que esse mundo
hostil, pesado, agressivo tem o objetivo de rejeitar com toda a sua força a massa
158
FANON, Frantz. Op. cit., p. 6.
126
colonizada, pois o poder de mando naquela escola se fez representar, não pelo
inferno, mas por um paraíso ao alcance da mão a ser protegido por terríveis cães
de guarda, os jagunços como veremos a seguir.
Como resposta imediata ao movimento, começou a se espalhar na rua
o boato de que iriam atacar o povo lá dentro e que deveriam sair, mesmo que
fosse à base de tiro: “Teve gente que assuntou a conversa deles, e diziam até que
ia pegar o padre, que não pisou na Escola naqueles dias”.159
Mas ninguém se
assustou, porque estavam lá só a fim de conversar.
Cabe-nos intuir que, embora não tivesse sido percebida a presença da
liderança „político-religiosa‟ do padre Canuto, os „boatos‟ conduziram para o
reconhecimento da existência de uma relação direta entre o comportamento da
comunidade escolar à „presença‟ do padre.160
Na noite da ocupação da escola pela comunidade, o Geraldo Dentista,
o Zulmiro, o Rogério e o Paraíba andaram pela rua, no carro do Geraldo, dando
tiro para todos os lados. Um deles atingiu o braço do Carlinhos, filho do Abdias,
de 12 anos. Outras pessoas armadas, integrantes da Aliança Renovadora Nacional
(ARENA), andaram lá perto. Tais eventos nos permite admitir que o limite da
democracia, vivenciado naquele movimento e organizado pela comunidade
escolar, era o da violência armada, orquestrada pela imposição político-partidária.
Igualmente se percebeu que, quando não há mais argumentos, se usa a força. Eis a
face da ditadura em tempos de invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-
grossense, eis o ingrediente presente nas ações de um governo onde as decisões
são tomadas sem que haja consulta popular. 161
159
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70 P.7.15. 160
Conforme publicação da Folha Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São
Félix, a 16.15.03 P.08.10, apresentando retalhos de nossa história no ano de 1996, afirma que
vários padres diocesanos incorporaram ao trabalho da igreja, a exemplo dos padres franceses de
Santa Terezinha. Mas, em 1971, foi de Campinas, estado de São Paulo, entre outros missionários,
o Padre Antônio Canuto. Parte de sua experiência no Araguaia foi relatada em texto publicado na
Comissão Camponesa da Verdade. Relatório final. Brasília, dezembro de 2014. P. 112-126. 161
Sobre a politização da comunidade, Norberto Bobbio, propõe quatro modelos explicativos
sobre a filosófica política, tratando-a como determinação da categoria “política” e, filosofia
política enquanto procura do critério de legitimidade do poder quando a filosofia procura
responder à questão dos fundamentos da necessidade da obediência ao poder político. BOBBIO,
Norberto. Teoria geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de
Daniela Beccaccia Versiani. 11 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
127
Observar os ocorridos naquela localidade serve-nos para compreender
as origens do pensamento dos defensores de uma escola „sem partido‟, onde
reprime as pessoas para que não possa esboçar resistência, mecanismo pelo qual
se persevera na intenção de eliminar as „condições‟ de criticidade suficientes para
rebelar-se em favor de algumas causas justas, naquele caso, a garantia da
permanência de pessoas à frente dos processos educacionais, os quais atendiam
aos anseios das famílias da localidade.162
Ao avaliarem que aquele movimento estava abrindo espaço para se
transformar em caso de pistolagem, os participantes que lá estavam resolveram se
retirar, pois ninguém ali tinha uma arma. Como iriam se defender? Com o próprio
corpo? Talvez essa não fosse a melhor lição a ser ensinada e tampouco apreendida
pelos escolares.
Esse episódio contribui para que se possa compreender que a invenção
da escola no contexto da ocupação das terras no Araguaia-Xingu ocorreu em meio
à organização da comunidade para o enfrentamento das decisões arbitrárias por
parte de alguns políticos da região em relação à escola. Igualmente, esse episódio,
marcado pela ocupação-permanência-desistência, revela a transformação do lugar
– escola – em espaço inventado pela comunidade, que, certamente, saiu vitoriosa,
como veremos em seguida.
No dia seguinte à ocupação, chegaram três aviões de Barra do Garças,
tripulados por policiais, acompanhados do delegado de ensino, Arilson. Andaram
no carro do Geraldo e deram apoio e cobertura aos pistoleiros. O Arílson deu
razão a eles, dizendo: “Também, o que vocês queriam que eles fizessem?”.163
162
O movimento de Escola sem Partido ganhou espaço depois do golpe ao governo de Dilma
Rousseff. Conforme editorial do jornal El Pais, o afastamento definitivo de presidenta da
República é, sem dúvida, o capítulo mais vergonhoso da história política brasileira. Por trás dos
protestos “espontâneos” contra o governo havia entidades, como o Movimento Brasil Livre
(MBL), financiado pelo DEM, PSDB, SD e PMDB; Vem pra Rua, criado em 2014 por um grupo
de empresários para apoiar a candidatura do senador tucano Aécio Neves à Presidência da
República; e Revoltados On-Line, gerenciado pelo empresário Marcello Reis, que não esconde sua
simpatia pela ideia de intervenção militar e que possui ligações com o deputado federal Jair
Bolsonaro (PSC-RJ), pré-candidato à Presidência da República. In.<
HTTPS://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/31/opinion/1472650538_750062.html > acesso em 10
de dezembro de 2017. 163
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.70 P.7.15.
128
A polícia ficou circulando no carro do Geraldo e do Batista. No
começo, disseram que o caso dos tiros não era com eles, mas, por fim, fizeram um
inquérito ouvindo pessoas da Escola Municipal, a saber, a diretora, três pais, um
aluno e até os pistoleiros. Essa medida causou grande revolta, pois, segundo a
matéria, as autoridades pisavam e cuspiam no povo. Parece-nos emblemático o
aparelhamento utilizado pelos „representantes‟ do Estado, os quais objetivavam
fazer valer seu poderio – político-administrativo e de mando, utilizando da força
paraestatal de jagunços e pistoleiros.
Porém, havia no horizonte uma esperança, pois o representante
mandado a Cuiabá foi recebido pelo Secretário de Educação, todavia, segundo a
avaliação da maior autoridade da educação de Mato Grosso, o ocorrido em Santa
Terezinha não passava de agitação do padre Canuto e da Regina, diretora. Um
equívoco absurdo, o que comprovava a posição contrária à decisão do povo, pois,
no mês de fevereiro, quando começou o atrito, a professora Regina não estava em
Santa Terezinha e que durante esse tempo o padre Canuto permaneceu muito mais
fora do que em Santa Terezinha.
Parece-nos que o imbróglio não parou pela fala do Secretário, pois,
passados alguns dias chegaram dois funcionários da Secretaria de Educação e
foram conversar com os professores das duas escolas na presença dos pais, estes
últimos diziam insistentemente que queriam uma solução.
Conforme a matéria, na escola Estadual constataram muitas
irregularidades, mais do que se tinha notícia. Ao final, consultaram o povo para
saber se queriam que D. Hilda permanecesse diretora, tendo sido a resposta
positiva, mas, deveriam ainda contratar professores capacitados, prometendo uma
resposta para a semana seguinte.164
Concluímos esse tópico afirmando que, o fato de ter uma sociedade
unida em defesa dos direitos coletivos, não significava que a mesma estivesse
livre de desavenças, especialmente no tocante à escola pública, pois parece-nos
que, antecedendo a um projeto de escola, existia um conjunto de forças políticas,
em muitos casos partidárias, e que, por conta dos jogos de interesse, praticavam
apadrinhamentos e/ou conchavos que resultaram em decisões contrárias ao
164
Ibid.
129
desejado pela coletividade, como foi o caso das escolas em Santa Terezinha.
Portanto, a invenção de uma escola democrática depende de uma sociedade
igualmente democrática e vice-versa.
1.10 - A invenção da Escola democrática e as incertezas no Brasil Central
Além de plantar mandioca, a gente deve plantar sabedoria. Só
bicho não gosta de ler. Você não é bicho.165
Neste último tópico do capítulo procuro revelar a forma pela qual a
comunidade participava das decisões sobre a escola, seja na escolha dos
professores, ou na união em torno da resolução dos problemas e fragilidades
encontrados para que a mesma pudesse „funcionar‟. Aqui, toma-se por
empréstimo o conceito máquina e produzir um comparativo. Para que a escola
cumprisse sua função para a qual foi inventada, requereu uma sequência de
engrenagens, combustível, técnica, método, calibragem espaço-tempo, velocidade
e, principalmente, revisão periódica, para evitar sua inoperância, e, por
conseguinte, deixar de cumprir a função para qual foi criada.
Assim, a escola enquanto aparelho social é uma instituição
indispensável à informação, formação e transformação dos membros da
comunidade, prescindindo de um conjunto ordenado de práticas diversas, cuja
função é a de contribuir no preparo dos escolares para viver a diversidade
histórica, política e cultural.
Podemos inferir dois problemas a serem superados, um estrutural, a
exemplo do pensamento (representação) sobre a escola, herdado de longa data,
visto que estruturado na herança do não acesso pelas famílias menos providas de
capital, ao lado da superação de questões conjunturais, semeadas pela coragem e
determinação de algumas lideranças, a exemplo de Pedro Casaldáliga, sua equipe
e redes de sociabilidades.
165
As palavras de efeito na frase reforçam o sentido dado à escola inventada no Araguaia-Xingu, o
projeto de uma instituição engajada na busca pelo distanciamento à ignorância, por meio da
aprendizagem, que, além de plantar mandioca, haveria de plantar sabedoria. (Alvorada (1977),
Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 41 P2.5).
130
Igualmente, faz-se necessária a observação de que, a função social da
escola requer que seus tentáculos alcancem resultados dentro e fora do espaço sala
de aula, pois, por esta pertencer a um contexto social no tempo, suas premissas
são a de revelar os problemas e contribuir para sua superação, eis a tônica que
emanou a orientação e a formação das famílias residentes nas cidades e sertões do
Araguaia-Xingu, como observamos a seguir.
A leitura do cotidiano no Brasil Central encharca os olhos de projetos
de vida, sonhos e buscas, emoldurados por tempos de sofrimento e de luta pela
terra, interceptados pelos interesses capitalistas avalizados pelo Estado,
permeando de incertezas a vida de posseiros e indígenas. Nesse amálgama se
destacava a união das famílias, professores e lideranças religiosas em torno da
edificação da escola, como espaço de interação social, visto sua organização em
torno dos clubes, associações e sindicatos, tal que, não fosse à persistência e
vigilância, a qualquer momento poderia chegar um intruso, tubarão ou grileiro,
apoiado pelas forças policiais do Estado, e até mesmo seus representantes direto, a
exemplo do delegado de ensino, exigindo que desistissem de suas causas, de seus
direitos por meio de força opressora da fala, da ameaça, ou pela bala, vitimando os
oprimidos como já mencionados anteriormente.
O conflito pela terra, como podemos observar ao longo da tese, por ser
desigual, em algumas ocasiões não permitiu a prevalência das forças
131
arregimentadas pelos tubarões, mas sim a dos oprimidos lavradores, quando esses
se colocavam vigilantes e unidos em defesa de seus direitos, muitos dos quais,
eram proclamados pela prelazia, na Folha Alvorada, e por uma rede de
sociabilidade formada por lideranças locais. Em decorrência dessa pedagogia
histórico-social, a formação da Delegacia Sindical, como pode ser verificada na
Figura 5 acima.
Todavia, esse era um dos primeiros passos a ser dado na busca da
libertação e da opressão. A escola, e os processos advindos dela, haveriam de ser
um instrumento de poder, porém, como realizar esse intento, se o Estado não
cumpria com sua obrigação constitucional de edifica-la? A solução seria, portanto,
continuar construindo.
Uma vez erguida, não poderiam se iludir, mas se manter atentos para
que os professores fossem pagos. Já em relação aos tubarões, a comunidade
deveria continuar vigilante, pois era comum fazendeiros mandar seus jagunços
amedrontar as famílias, disparando contra alunos, pais e professores, ou colocar
fogo, impedindo as famílias de terem seus filhos frequentando a escola. É como
haveremos de tratar no terceiro capítulo da tese.
Partindo das razões acima elencadas, cabe a seguinte indagação: como
o Estado, principal responsável pela criação das leis, fazia vista grossa da Emenda
Constitucional n. 59, de 1969, artigo 176, a qual preconizava ser o ensino
primário (é) era obrigatório para todos, dos sete aos quatorze anos, e gratuito nos
estabelecimentos públicos. Igualmente requer indagação as competências dos
municípios, pois, conforme rege a constituição de 1988, este deveria aplicar 20%
do orçamento na educação, dentre outros custeios na construção de escolas.
Parece-nos que, se a partir da constituição cidadã os parâmetros orçamentários
ainda são poucos praticados pelos municípios, antes dela é que tais premissas não
passava de mero discurso.
Como observado, a Folha Alvorada publicou, em 1974, a inexistência
de condições físicas e humanas para atender aos seus filhos, o que responde as
questões iniciais, como veremos a seguir.
Em 1974, na época de recomeço das aulas em Cascalheira, as
professoras convidaram os pais dos alunos para reformar, mais uma vez, o edifício
132
da escola. Conscientes de seus direitos, os progenitores se recusaram a executar a
obra e comunicaram à prefeitura: “Esta casa que foi feita pelo povo não está mais
servindo. Há quatro anos que estamos concertando o rancho sempre esperando
pela prefeitura. Estamos esperando uma decisão. Enquanto isso nossos filhos não
vão à escola”.166
Ao falar da invenção da escola, para que não sejamos tomados por
uma representação anacrônica, descrevo como paira em nosso imaginário e logo
em seguida, em contraste, a sala de aula em que abrigava e muitos lugares, ainda
habitam os
escolares.
A sala
de aula que
convencionou o
modelo
arquitetônico
„moderno‟ carrega
consigo o sentido
da escola na
cidade,
especialmente no
que diz respeito ao modelo de salas sequenciais, construídas de alvenaria,
medindo cada sala 6 x 8 m, quase sempre pintadas de paredes brancas, com
barrados azul, cinza ou verde, com portas desembocando em longos corredores, o
que tornava mais fácil o policiamento dos corpos, com janelas altas impedindo
que os estudantes pudessem olhar para o horizonte, limitando-se a enxergar o
professor, e centrando foco na principal tecnologia de distribuição da informação,
o quadro verde-oliva. Ou, atualmente, brancos com vidros sobrepostos para uso de
caneta marcador.
Para romper com esse paradigma do tempo presente, cuja convenção
aprisionou as mentes inventivas dos pensadores da arquitetura da escola,
166
Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0. 15 P2.2.
133
apresentamos uma foto conforme Figura 6 acima, publicitada em finais da década
de 1980, pela revista Nova Escola.
Igualmente se faz importante asseverar que a expressão escola, do
ponto de vista da estrutura física, em sua primeira versão, por conta da
rusticidade, não passava de uma casa feita de pau-a-pique, com cobertura em
madeira roliça e palha de coqueiro trançada de forma tal que não molhasse quem
estava em baixo quando chovia, pisando em chão batido.
Tal característica estava presente na maioria das residências edificadas
entre o Araguaia-
Xingu, o que, de
certo, requer nossa
atenção por
expressar valores
culturais aos quais
fazemos vista
grossa. Nesse
sentido, o terreiro,
especialmente o da
frente da casa para
Cantuário, era o
„chão de morada‟
onde as famílias
estreitavam os laços de amizade e respeito, onde eram socializados os saberes, a
alimentação, a organização social (trabalho, religiosidade e lazer). Assim,
[...] eles [...] viviam toda uma vida numa intensa relação direta
com a terra, representada pelo terreiro [...] e do terreiro é que
pudemos perceber claramente a lógica da reciprocidade mútua
do dar, receber e retribuir, se estabelecendo as dimensões do
viver dessas pessoas.167
167
CANTUÁRIO. Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de Fora! Vamos chegando e
vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia mato-grossense (1950-1990). Dissertação
(Mestrado em História) – UFMT – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, ICHS, 2012, p. 38.
134
Este foi o espaço em que viveu o professor Antônio Soares da Silva, o
Caçula, conforme observamos na Figura 7.168
Por conta das distâncias, os professores deveriam residir próximos à
escola, visto não terem condições para se deslocar diariamente até a cidade, o que
exigia custos acima daquilo que poderiam dispor.
No sentido contrário, poucas eram as visitas feitas pelos secretários de
educação à comunidade. A Folha Alvorada anunciou a chegada do secretário
desta pasta, o Sr. Juraci que, ao aparecer na escola, manifestou surpresa por ela
não estar funcionando. Todavia, preocupado e abatido estava o povo, não só com
as péssimas condições do edifício da escola, base das aulas para seus filhos169
.
Publicou também a Folha Alvorada que, no mês de junho, em Serra Nova, a
escola estava caindo e as paredes já não se sustentavam de pé. No inverno e
quanto chovia, as aulas eram suspensas, e no verão não dava para suportar o calor.
O giz para escola tinha que ser doado por particulares.170
Santa Terezinha, que pertencia à cidade de Luciara, é que vinha
sofrendo mais gravemente o problema com o ensino, em decorrência da
desajustada política municipal, pois já estavam no mês de junho e ainda não havia
lugar para funcionamento da escola pública. Embora houvesse algumas iniciativas
particulares na organização de um supletivo para seus filhos maiores, elas não
eram suficientes para atender a demanda.171
Também no mês de março de 1974, quem leu o periódico se deparou
com a notícia de que a escola municipal de Porto Alegre estava funcionando
desde o dia 4 de março, mas a criançada iria antecipar suas férias a partir do dia
168
Sobre uma necessidade de reinventar a escola que atendesse as expectativas de uma escola
inovadora, do ponto de vista arquitetônico, retomaremos a sua possível reinvenção no último
capítulo da tese, onde apresentaremos um modelo de escola que possa dialogar com o espírito do
tempo e atender às demandas dos escolares do Século XXI. 169
Ao que parece, o professor Juraci, em 1978, por ocasião do sepultamento do corpo do “peão do
trecho”, foi obrigado a continuar abrindo a cova, seguida de prisão e serviços forçados na
delegacia, tornou-se secretário de educação, mas tal hipótese não foi possível confirmar por conta
de não haver pistas sobre o sobrenome. 170
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 17 p 3-
4. 171
Embora Santa Terezinha contasse, em 1975, com 1.443 pessoas e 238 casas, conforme pesquisa
realizada no mês de agosto Alvorada (1975), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São
Félix. 1974. A16.0.46 p 2-6, só passou a ser distrito de Luciara em 1976, por pelo Decreto-Lei n.
3.758. (Alvorada (1976), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1976. A 16.0. 27
p. 2-2).
135
20 de abril, por conta das exigências da colheita. Percebia-se, que, com a nova lei
de ensino, cada escola poderia, a partir daquela data, formatar seu próprio
calendário, adaptando-se às necessidades locais.172
Já no mês de abril de 1978, a citada Folha Alvorada recuperou
informação relativa a um abaixo-assinado subscrito pelos pais, no mês de
fevereiro daquele ano, o qual foi enviado ao prefeito, solicitando respostas sobre:
material escolar; contratação e pagamento dos professores e construção da escola,
esclarecendo no mesmo documento que tais ações não deveriam sofrer
interferência da fazenda Piraguassu, e que os trabalhadores do lugar é quem
deveriam trabalhar na obra da escola.
Parece-nos que a intenção não se limitou à edificação da escola pela
fazenda, mas o Diretor também deveria ser um professor que trabalhava na
fazenda, ordenando ao secretário municipal que a irmã Mercedes e os professores
de Porto Alegre do Norte matriculassem os alunos, que chegava a 252. Feito isso,
o prefeito e o Tokuriki (secretário) escolheram o prof. Márcio para dirigir o
estabelecimento de ensino, visto ser ele docente da Fazenda Piraguassu. Essa
posição foi rechaçada pelo povo, pois, além de não ter nenhum grupo escolar
próprio, mas apenas casas alugadas, eles não iriam aceitar um diretor
representante da citada fazenda.173
A sequência de fatos garimpados na Folha Alvorada e apresentados
até o momento torna possível afirmar uma crescente atuação das famílias em prol
da edificação e funcionamento das escolas, pois, além de participar das reuniões e
de reivindicar seus direitos, não mediam esforços para suprir a ausência do poder
público, seja na edificação, reforma e até mesmo na aquisição de materiais
necessários para que seus filhos pudessem estudar. Igualmente se opunham a
qualquer direcionamento externo à comunidade, especialmente os emanados das
fazendas, e exemplo da Piraguassu. Neste último caso, percebe-se a tentativa
orquestrada entre os interesses da citada propriedade de controlar a escola,
colocando pessoas da fazenda para edificar o imóvel, bem como nomeando um
diretor de „sua confiança‟. Não fosse a reação das famílias, possivelmente esse
intento teria se realizado.
172
Alvorada (1974), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1974. A 16.0. 14 p1-1. 173
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 54 P3.8.
136
Cabe salientar, mesmo que as incertezas colocassem em risco a
permanência no lugar, as famílias, envolvidas por um sentimento e atitudes
reivindicatórias por uma escola pública democrática, obtiveram êxito em suas
reivindicações, pois, em janeiro de janeiro de 1979, as escolas de São Félix e
Luciara tiveram convênios firmados com o Estado, a partir do qual seriam
beneficiadas com verba suficiente para edifica-las. São Félix firmou cinco
convênios no valor de 222 mil cruzeiros, conforme publicação no Diário Oficial,
de 4 de dezembro de 1978. E, seguindo o planejamento do secretário Salomão
Baruki, o recurso seria assim aplicado: 150 mil cruzeiros destinado à ampliação
da Escola Estadual José Fragelli; 41 mil cruzeiros para Escola Municipal de
Pontinópolis; 41 mil cruzeiros para escola Municipal Rio das Mortes e 60 mil para
a Escola Municipal de Serra Nova.
Já a cidade de Luciara firmou quatro convênios, somando um total de
210 mil cruzeiros, sendo: 150 mil para as Escolas Municipais de São José do
Xingu e Canabrava do Norte; 37 mil em serviços de reforma da Escola do Lago
Grande e 25 mil para obras da Escola Antônio Rosa.174
Ao tomar por base as informações contidas no periódico, é possível
intuir que a cobrança das famílias, pelo cumprimento aos preceitos constitucionais
junto ao poder público e ao atendimento às reivindicações, além de ter ocorrido
em prol de uma questão legal, o era também moral, pois tratava-se de atender as
famílias com menor poder aquisitivo, e os investimentos básicos não poderiam ser
empecilho para a construção de um projeto popular de escola que fizesse a
diferença na vida daquelas pessoas.
Parece-nos ser essa uma questão de fundo, afinal, a finalidade da
escola pública no Araguaia-Xingu foi a de atender as famílias pobres, visto que
desprovidas de poder econômico, e a possibilidade de romper com aquela herança
histórica vergonhosa, visto que os pais não tivessem frequentado escola e não
terem sido alfabetizados, não desejavam tal infortúnio para seus filhos.
Em Mato Grosso, no ano de 1980, conforme Oliveira175
, existiam
254.586 crianças em idade escolar, entre 7 e 15 anos, sendo que, destas, somente
174
Ibid. 175
OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese
(Doutorado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
137
80.103 estavam matriculadas. Portanto, a rede pública de ensino atendia, no
primeiro grau, somente 31% da população em idade escolar. Já no segundo grau
existiam 251.255 jovens no primeiro grau entre 15 e 19 anos, dos quais somente
22.334 se encontravam matriculados. Assim, uma parcela mínima do universo
potencialmente escolar tinha acesso ao ensino médio176
. Ainda conforme Oliveira,
as lutas pela educação em Mato Grosso estão diretamente ligadas àquelas relativas
aos direitos humanos, tão necessários à construção da cidadania, faceta que, no
Araguaia-Xingu, ganhou relevância.177
Para as demais, segundo as publicações do periódico, as causas
apontadas foram a falta de terra para plantar, a carência de trabalho garantido, de
salário justo, de assistência à saúde, de moradia apropriada e de comunicação.
Havia ainda uma questão que atingia a maioria da população, qual seja, o das
famílias separadas: mulheres sem maridos e maridos separados de suas mulheres,
deixando, por conseguinte, os filhos desamparados, sob cuidado de algum
membro da família e até mesmo de estranhos, uma das características das
sociedades oprimidas.
Asseveramos que a edificação da escola no Araguaia-Xingu,
independente do espaço-tempo vivido, das dificuldades e arbitrariedades
encontradas frente aos desmandos da administração pública e da iniciativa
privada, da perseguição da polícia e dos tubarões, compõem um quadro que
estampa uma situação que serviu de ingrediente para que as famílias tomassem
para si a edificação da escola, enquanto bandeira de luta de uma causa maior, uma
vida digna. Se o coletivo de pais se afastasse desse propósito, a escola passaria a
perder sua função socialmente pensada, ficando fragilizada diante dos interesses
sorrateiros dos detentores do poder opressor, com sua maquinaria capitalista de
exploração humana.
Portanto, a história não nos permite naturalizar a ideia de que todas as
escolas foram iguais, concebidas com o mesmo propósito, seguindo o mesmo
ritmo e produzindo os mesmos resultados, pois nos parece que esse modelo
de São Paulo. Departamento de Geografia. Área de concentração: Geografia Humana. USP. 2016,
p. 66 citando BARBOSA, 1992). 176
Ibid. apud GOHN, 2011, p. 346. 177
Ibid.
138
educativo jamais se tornaria igual para todos, no máximo, tal pensamento servia
apenas para acalentar o desejo daqueles que viviam no urbano. Se observados os
discursos dos operadores da educação entre o Araguaia-Xingu, havia uma recusa
em comparar sua realidade escolar a um único modelo de escola, pois, haveria de
ali se pensar a escola como ela deveria ser, diferente do ponto de vista
organizacional, em conteúdo e forma. Conforme Paulo Freire, educador
contemporâneo às décadas de invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-
grossense, pautado em sua longa trajetória de luta pela educação:
[...] é preciso que a educação esteja - em seu conteúdo, em seus
programas e em seus métodos - adaptada ao fim que se
persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se
como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros
homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história
[...] uma educação que liberte, que não adapte, domestique ou
subjugue.178
A forma pressupõe, sob o prisma histórico social, ser a escola pensada
sob pilares da democracia, todavia, os arranques servirão de sustentação para que
esta seja edificada, pois, não há „modelo‟ a ser seguido, assim como não há
democracia se essa não for praticada.
A pesquisa apontou que as qualidades de uma escola democrática não
podem ser transplantadas de um para outro estabelecimento, de uma comunidade
para outra. A construção de uma escola democrática requer alguns aspectos
fundamentais: a necessidade da existência da escola em sua materialidade, o
engajamento dos diversos sujeitos de seu entorno; um espaço-tempo para que seus
atores possam assumir um projeto de escola comprometido socialmente, e a
existência de instrumentos que possibilitem um diálogo permanente para que as
tomadas de decisões sobre os processos atendam, enquanto instituição, sua função
social.
Apraz afirmar a inexistência de um modelo ideal de escola
democrática que permanece intocável, pois ela, hoje, poderá se tornar uma escola
marcada amanhã, pela tirania. Não existem formas de pensar a construção de um
projeto de escola democrática se esta não for fruto do diálogo e do contraditório.
178
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança, 13 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006, p. 45.
139
Assim, as páginas onde serão narradas a história de uma escola democrática ideal
ainda estão em branco, aguardando novas narrativas. Para tanto, democracia
também se aprende, não no sentido dado, mas sim no praticado.
Portanto, é nas escolas que surge espaço para os diferentes saberes,
tanto aqueles produzidos pelas academias quanto os herdados pelas famílias e, nas
e pelas práticas, tais saberes se ampliam, se fundem e se confundem muito além
das palavras, dos gestos, textos e intertextos, na alfabetização e no letramento,
uma vez que é na escola que muitos dos saberes são desnudados, muitos dos quais
vão sendo largados à margem, assistindo o barco da humanidade navegar na
terceira margem do rio “[...] nessa água que não para, de longas beiras [...] rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio”, como provocou-nos a pensar Guimarães
Rosa.179
Concluímos que a escola é uma invenção e uma produção humana, e
não fruto da natureza, uma vez que não foi ela quem criou, se criou, mas sim os
homens e as mulheres, com ou sem a consciência sobre sua função no tempo,
talvez por essa razão, a fizeram tendo por base uma imagem, um desenho
arquitetônico, a distribuição das salas de aula, o uniforme, o material didático a
ser usado, o giz, o quadro negro, os livros, a organização do espaço-tempo, a
organização dos alunos para um atendimento simultâneo, as aulas expositivo-
explicativas, os trabalhos em grupo, o tomar a tabuada, o deixar de castigo,
aplicado quando os aprendentes não conseguiam atender as expectativas do
professor, as provas, os testes, os boletins, o dever de casa, a nota vermelha, a
recuperação e a reprovação, os mecanismos de controle, a disciplina do corpo, a
organização das carteiras em fila indiana, o ato cívico e a obediência ao professor.
Igualmente, os homens, especialmente as crianças e os adolescentes,
criaram a indisciplina e a rebeldia como ponto de fuga, o não querer assistir aulas,
o matar aulas para banhar no rio, o caçar passarinho, subir em árvores, provocar
os professores e os colegas no intervalo, ficar em silêncio como protesto, não
fazer a tarefa, não entregar o recado aos pais quando, por alguma razão, deixaram
de cumprir seus deveres, falar alto em sala de aula, manifestando seus desejos e
insatisfações.
179
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: ______. Ficção completa: vol. II. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.
140
Com esse propósito, lançamos algumas questões para o próximo
capítulo: Como os professores trabalhavam o conhecimento histórico, quais eram
as fontes de suas pesquisas, que temas eram escolhidos e qual era a história
ensinada? Por enquanto, orquestramos um fechamento temporário ao texto deste
capítulo inaugural, afirmando que, tanto a escola quanto os escolares têm e fazem
história, visto que pessoas que pensam, repensam, defendem ou negam
obstinadamente. Todavia, como cada uma tem seu „jeito‟, a invenção da escola do
Araguaia-Xingu será revelada nos próximos capítulos.
141
CAPÍTULO 2
ESCOLA COMO PEDRA ANGULAR NA FORMAÇÃO
SOCIAL CONTRA A INUMANA ‘DESINTEGRAÇÃO’ DE
ÍNDIOS, POSSEIROS E PEÕES NO BRASIL CENTRAL.
Lutar contra o analfabetismo, temos de explicar. É necessário
que o povo compreenda a importância do que está em jogo. A
causa pública deve ser a causa do público180
.
A incursão sobre terras e águas, povoados, cidades e sertões do
Araguaia-Xingu desde a década de 1970, tendo por base as fontes, se mostrou,
desde o início da pesquisa um desafio duplamente gratificante: primeiro, por ter
provocado, aos olhares do observador, um manancial por onde verteu e continua
jorrando motivos para dezenas de outras viagens exploratórias, segundo, e em
especial, por ter, num processo interagente, contribuído para a definição do objeto
de pesquisa, cuja circunstanciação da invenção da escola de educação básica
convidou-nos a observá-la em sua reinvenção.
À medida que visitava as veredas do tempo e dos espaços constituídos
pelos inventores da escola, emoldurava uma série de quadros cujas cenas
180
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 128.
Como observamos ao longo do capítulo, a invenção da escola, objeto primeiro da presente tese, foi
marcada pelo pensamento de Fanon, sendo possível afirmar a existência de uma relação direta com
o pensamento-ação de Pedro Casaldáliga, um leitor atendo aos escritos dos pensadores Fanon e
Paulo Freire. Nesse sentido, é possível afirmar a prática de resistência e luta contra o opressor e a
metodologia adotada nas escolas do Araguaia das décadas de 1970 e 1980. Observa-se ainda que
Paulo Freire influenciasse o ideário existencialista católico com adoção do nacionalismo
anticolonialista. Tal afirmativa baseia-se na leitura de uma de suas principais obras, Pedagogia do
Oprimido, sendo Paulo Freire o primeiro brasileiro a abraçar Os condenados da terra, cujas
leituras, possivelmente, tenham ocorrido entre os anos de 1965 e 1968, quando ainda se encontrava
no exílio. Para maior aprofundamento, indicamos os artigo GUIMARÃES. Antônio Sérgio de. A
recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra, publicado na revista Novos Estudos, CEBRAP.
SP. 2008, p. 99-114.
142
clamavam por ser observadas, interpretadas e narradas, pois, embora
objetivamente fosse descrita por imagens e textos que teoricamente anunciava um
lugar no tempo, seus descritores, preocupados em comunicar, deixaram vestígios
que, se observados com a devida atenção, possibilita-nos entender a invenção da
escola em alguns dos „sentidos‟ dessa trama, um conjunto de ações coletivas,
somatória de todas as individualidades e particularidades, muitas das quais
compuseram nossa narrativa, uma trama infinita de pontos e contrapontos do
saber-fazer a escola de educação básica.
Já que a missão hercúlea de re-construir e dar materialidade às cenas
eternizadas nos quadros do cotidiano dos escolares espalhados pelos „sertões‟ seja
improvável, deixamos, ao prazer das descobertas e escolhas, sobressair a
sensibilidade do pesquisador em perceber, nos fragmentos, formas de explicar o
projeto de escola ali pensado e praticado.
Produzir o mosaico resultante dessa tessitura possibilita-nos perceber
alguns motivos dessa invenção, pretextos pelos quais se formaram as
comunidades em torno da escola, bem como suas formas de resistência, o que
garantiu, na década de 1970, na permanência das famílias naqueles sertões.
Referimo-nos às razões que moveram pessoas engajadas às causas educacionais
muitas das quais ligadas à prelazia, e, em ação coordenada, contribuíram para
transformar a escola em atalaia, enquanto mobilizadores imbuídos de uma causa
maior, a defesa de uma sociedade mais justa e igualitária.
Falar desse modelo de sociedade a fim de que não se torne um
conjunto discursivo e meramente panfletário, partiu-se da necessidade de dotar as
pessoas de um poder advindo do uso das letras e, por conseguinte, do
entendimento sobre o direito à propriedade, para além dos demais direitos
constitucionais pouco conhecidos e praticados no Brasil Central. Assim,
alfabetizar significava dotar as famílias de um mecanismo de defesa materializado
por meio da denúncia, da reivindicação, do estranhamento às relações
estabelecidas entre um Estado sob o jugo do governo ditador e os detentores do
capital, ali representados pelos chamados „tubarões‟.
Na busca por apresentar as memórias sobre as relações de poder
impostas pelo opressor ao oprimido estabelecido no Brasil Central,
143
apresentaremos em seguida um texto publicado na Folha Alvorada, do mês de
outubro de 1977, que, em qualquer circunstância histórica, provoca reflexões que
podem ir desde a relação ao culto aos mortos, à exumação dos corpos, ao direito à
propriedade, às práticas de violência, além de outras inúmeras dimensões do
humano, e, para território de análise, o direito de acesso à informação e ao
conhecimento, por meio da escola de educação básica.
Embora não tenhamos como precisar a veracidade da estória descrita e
publicada, o que poderá ser ainda validada por outras pesquisas, a elegemos
relevante por entender que sua tessitura conferiu motivos de debates e reflexões
dentro e fora das salas de aulas do Araguaia-Xingu mato-grossense. O texto
extraído da Folha Alvorada e transcrito em seguida tem por título: Nem os sete
palmos:
Aqui no (Novo) Santo Antônio, todo mundo conhece bem o
Joaninha. Todos tem muita consideração por ele, bom folião,
trabalhador, alegre, amigo.
Hoje ele enfrenta toda dificuldade na Ilha do Bananal. Mas há
10 anos atrás, ele morava na Fazenda Tartaruga, que era
propriedade do Sr. Telécio. Lá nesse lugar há 10 anos, Joaninha
perdeu sua mulher e uma nenezinha de 7 dias que lá ficaram
enterradas.
Acontece que hoje, a Tartaruga, aquele lugar bonito na beira do
rio das Mortes e também na beira de uma estrada real, aquele
lugar onde tanta gente já parou cansada para passar uma noite,
onde cada viajante sabia que podia chegar arranchar e botar seu
animal no pasto. Acontece que a Tartaruga foi vendida a um
francês, por nome Michel, e passou a adotar o nome de Fazenda
Botafogo.
O que vamos contar agora aconteceu, portanto, na Fazenda
Botafogo. É um caso de horror, que por aqui nunca ninguém
tinha ouvido contar outro igual.
Michel colocou lá, como gerente, um homem tão mau quanto
ele. Desde que o gerente Jorge mudou para lá, os viajantes não
tem mais direito nem de beber água, avalia botar um animal no
pasto ou arranchar. Desse tipo de maldade, todo mundo já
conhecia, já tinha visto aqui e em outros lugares. Mas o que os
homens fizeram com o Joaninha foi um coisa impossível.
Arrancaram o cruzeiro e mandaram que ele arrancasse os ossos
da mulher, morta há 10 anos e da filha, e que levasse aquela
ossada embora, porque eles tinham precisão daquela terra para
plantar capim.
144
A mulher de Joaninha, todos recordam, era uma mulher
trabalhadeira. Viveu lá nesse lugar de muriçoca, enfrentando
toda dureza junto com seu marido para amansar o lugar. Ainda
que fosse uma mulher atormentada de filhos, sabia receber bem
as pessoas que lá passavam. Joaninha enterrou lá uma boa
mulher e companheira e entregou nas mãos de Deus todo o seu
sofrimento.
E nós sempre pensamos que, nossa matéria é para ficar no chão
e não para ser arrancada. Até agora, a gente só ouvia dizer que o
pobre só tinha direito mesmo era aos sete palmos de terra. Mas
agora estamos vendo que nem esse direito é mais respeitado.
Joaninha retirou aqueles ossos com muito respeito e até mandou
o padre celebrar uma missa lá, naquela hora. Na cova da mãe,
os filhos choravam de emoção. E para Joaninha, era como se
sua mulher tivesse morrido outra vez.
Quando soube do acontecido, o povo ficou horrorizado. Muitos
choraram, ficaram sem dormir, só encabulados com esse mal
feito. E o pensamento de muitos foi este: „Se fazem assim com
os que já morreram o que não farão com aqueles que estão
vivos? Deus não acha bom isso. Esses homens não têm
coração.‟
Com os ossos de sua mulher e sua filha, que tanto mereciam
sossego e descanso, Joaninha tirou a benção da terra. A benção
da companheira pobre e boa, também levou o cruzeiro. Deus
não queria mais ficar nessa terra.181
Com reprovação religiosa ao ato, afirmando que Deus não acha bom
isso e que não queria mais ficar nessa terra, projeta a materialização de uma
trama social marcada pela trajetória de vida da família do Joaninha e filhos, que,
outrora, haviam passado por aquele aperreio, mas que aquele episódio não haveria
de passar incólume à opinião pública, especialmente aos leitores da Folha
Alvorada, naqueles e noutros tempos.
Observa-se que em sua narrativa invoca a figura do casal, Joaninha e
sua esposa, bons, trabalhadores que, em vida e morte, passaram pelo processo de
expulsão extremada da terra. Ao exigir que Joaninha dali tirasse os restos mortais
181
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1977. A
16.0. 70, p. 5-15. O texto foi aqui descrito na íntegra, por entender que essa narrativa tinha o
propósito pedagógico de anunciar, às famílias, a necessidade de resistir às mais variadas formas de
violência a que poderiam ser submetidas pelos opressores.
145
de sua esposa e filha, foi a eles imputada a pena capital do não direito ao culto aos
mortos.
A exigência feita a ele, para extrair do chão os ossos, inaugurava nova
cláusula contratual para com a terra, não importando ser a fazenda Tartaruga do
senhor Telécio, ou seu novo nome - Fazenda Botafogo, adquirida pelo francês
Michel, mas consignava, em traços de barbárie, a fragilidade da família de
Joaninha que, além de não mais poder ficar naquele lugar, haveria de levar
consigo o cruzeiro, os restos mortais e a angústia de ser um „sem terra‟ a visitar
outras paragens. Porém, havia algo que a sagacidade dos tubarões não apagaria – a
memória, meio pelo qual alimentamos seu contínuo no tempo.
Ao ser publicado, o episódio revelou, em forma de denúncia, a
inexistência de limites por parte dos tubarões em relação à voracidade com que
tratavam a propriedade da terra, similar à exumação dos corpos, ali representada
pela retirada do direito de culto aos mortos enterrados a sete palmos de terra.
Certamente, semelhante temática é um convite para outras pesquisas,
porém, para o momento, ainda que não tenhamos como acompanhar os passos de
Joaninha e seus filhos, podemos afiançar que, ao publicar o ocorrido na fazenda
Botafogo abria-se uma senda à „sujeição‟ de Joaninha em retirar os restos mortais
de seus entes queridos e re-viver a morte de sua esposa e filha pela segunda vez,
transformado em ato de coragem, de resignação e, por conseguinte, de
instrumento de mobilização social por meio da comoção dos leitores da Folha
Alvorada.
Ao alertar para o fato de esses homens não terem coração, “Se fazem
assim com os que já morreram o que não farão com aqueles que estão vivos?”182
Essa é a esteira onde asseveramos nossa narrativa, no âmbito da escola da
educação básica, circulou a percepção do que fizeram com os que viveram o
contexto.
A tessitura do discurso publicada na Folha Alvorada, especialmente as
matérias sobre a escola, permite-nos afirmar uma intenção inaugural que superou
a dimensão de suas paredes, transbordando os limites das comunidades, numa
rede de tramas que, ao contrário de uma forma redutora e passiva, e ou isolada
182
Ibid.
146
geograficamente, era capaz de discernimento acerca dos processos sócio
históricos, econômicos, políticos e culturais pertencentes a uma construção social,
própria daquele contexto.
Assim, apresentamos o objetivo deste segundo capítulo: abordar a
questão da escola enquanto decisiva na formação social do tempo, cuja narrativa
divide-se em três partes: na primeira, retomaremos o contexto sócio histórico que
ensejou sua edificação, revelando fatos não apresentados no capítulo anterior; a
segunda é a de perceber se a mesma, enquanto instituição, contribuiu para a
modificação dicotômica opressor x oprimido, pelo fato de a escola ter sido
edificada nas comunidades, o que possibilitou aos oprimidos pensar e agir
diferentemente às práticas de violência adotadas pelos primeiros (latifundiários
com o apoio do Estado)?, ou prevaleceu a lei do mais forte, com a destruição das
formas de organização social indígena, e transformando os sistemas de referências
da economia, de organização para o trabalho e igualmente entre as famílias de
posseiros, peões, meeiros, já tratados anteriormente, cujas consequências
reservaram trágicas ocorrências naqueles sertões? Por fim, a terceira e última
parte foi dedicada aos esforços de desvelar as bases teóricas presentes nas
reflexões e ações que resultaram na edificação da escola enquanto pedra angular
social na formação das comunidades entre o Araguaia-Xingu mato-grossense.
Como escola e educação popular poderiam firmar-se na base da
organização social num contexto onde a educação ainda não era uma política
pública prioritária para o governo militar? Poderíamos conferir àquela escola uma
educação popular? Teria sido ela democrática? Se o foi, quais aspectos lhe podem
conferir tais prerrogativas? O fato de ter sido inventada pelo povo e para o povo
conferiu consciência às famílias onde foi edificada? Haveremos de tratar dessas
nuances a seguir.
Conforme relatório do analista do Centro de Informações da
Aeronáutica (CISA):
Suscitar uma maior dominância no processo pedagógico
brasileiro e sul-americano que pudesse contribuir para uma
„educação popular conscientizada‟, levando em conta os graus
147
de dominações impressos ao povo nos regimes tidos pela
esquerda clerical como ditatoriais.183
Pensar a escola como umas das mais elaboradas invenções sociais no
tempo, parece-nos um desafio bastante pertinente, porém, historicamente deixado
de lado, cujas razões carecem ser reveladas, pois entendemos que, a partir do
momento em que a escola for percebida com essa função, nos contextos
históricos, seja enquanto estratégia de permanência das estruturas sociais, ou por
sua superação, ao tempo em que a reconhece como atalaia, como domínio onde se
manifesta a resistência, igualmente poderá ser a ela atribuído o papel de
canalizadora de projeções para a transformação, pois é na escola de educação
básica onde se mobilizaram as táticas subversivas, em contraposição às estratégias
de dominação.
Mais uma pergunta nos move em direção às respostas, quem, para
quem e como foi inventada a escola no Araguaia-Xingu mato-grossense? Para
buscar tais respostas, visitaremos o contexto das famílias na década de 1970.
No dia 15 de setembro de 1971, ao escrever seu diário, Pedro
Casaldáliga afirmou que o índice de analfabetismo era predominante entre as
famílias, e via a educação das crianças enquanto saída para um futuro sonhado,
diferente do triste destino dos pais. Afirmava ainda que:
[...] interesaba más al pueblo que el propio derecho de tener
tierra y comer. Desde el primer momento de nuestra llegada,
nos llovieron las peticiones: íbamos a dar clase, construiríamos
colegio, organizaríamos internado, podíamos quedarnos con los
hijos ajenos, adoptarlos y educarlos... No se concebía la
presencia de unos Padres o de unas Hermanas que no abordasen
ese problema.184
Descrevia características do mundo colonizado, de sonhos pela
possessão, a que se referiu Fanon, especialmente no lado da fronteira habitada
183
GOMES. Paulo César. Os Bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da
espionagem. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2014. P. 52. 184
CASALDAGLIA, Pedro. Diário 1977-1983. En rebelde fidelidade. Tercer libro del diario de
Pedro Casaldáliga, Desclée, Bilbao, 1983.
148
pelo colonizado.185
Todavia, embora o excerto possa conduzir-nos a certo exagero
de expressão, ainda assim merece atenção, uma vez que seria o direito à terra e à
alimentação menos importantes que a educação dos filhos? Continuaria a prática
de as famílias, sem as condições necessárias para a criação dos filhos, deixando-os
sob a tutela da igreja para que pudessem ter uma vida menos sofrida no „sertão‟
entre o Araguaia-Xingu mato-grossense?
Estaria registrando las peticiones dos posseiros para que seus filhos
fossem assistidos de saberes que a eles não foram possíveis, pela falta de
conhecimento das letras, possibilitada pelas classes (aulas) em espaços não
oficiais ou no interior das escolas? Ou se tratava de mais um desejo de Pedro
Casaldáliga em atender, dentre as inúmeras carências daquele povo, reveladas por
meio de suas vivências durante as „campanhas missionárias?‟
Como representante da igreja católica, como iria contribuir para tal
„missão‟, já que se tratava de um estrangeiro catalão cumprindo suas funções
religiosas no Araguaia-Xingu em plena ditadura militar? Que razões teria para
buscar solução para problema tão aclamado durante as reuniões com a
comunidade? Parece-nos um ponto de partida importante a seguir.
Como assinalamos, suas incursões foram iniciadas com as campanhas
missionárias, mecanismo utilizado para conhecer, compartilhar e colaborar com a
formação das famílias. Tais ações eram vistas como avanço, pois não eram
possíveis de serem praticadas durante as desobrigas, há muito praticadas pela
igreja católica em todo o Brasil. Porém, observou-se que, estando em maior
contato com a realidade das famílias, fazia emergir uma problemática – o fim da
reprodução do catolicismo e a emergência de um campo religioso plural, cujo
185
Nessa divisão bipolar, a zona habitada pelos colonizados, conforme Frantz Fanon, não era
complementar à habitada pelos colonos. Essas duas zonas opõem-se, mas não ao serviço de uma
unidade superior, regidas por uma lógica puramente aristotélica e obedecendo ao princípio da
exclusão recíproca. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro, é uma cidade
iluminada e asfaltada. A cidade do colono é uma cidade farta, indolente e está sempre cheia de
coisas boas, sendo, por fim, uma cidade de brancos e de estrangeiros. A cidade do colonizado, a
cidade indígena, a cidade negra (a exemplo do Araguaia as cidade nos sertões) eram povoadas de
homens de má fama. Ali se nasce em qualquer lado, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer
parte e não se sabe nunca de que. A cidade do colonizado é a cidade esfomeada, por falta de pão,
de carne, de sapatos, de joelhos, a chafurdar. O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do
colono é um olhar de luxúria e desejo, revestido de sonhos de possessão. (FANON. Frantz. Op.
cit., p. 24).
149
movimento se consolidava na década de 1970, por meio de práticas de
destradicionalização.186
Estava o líder religioso, por meio de registro diário, reforçando para si
o que havia firmado a partir da reivindicação feita pelo povo? Envidaria esforços
para construir escolas, embora essa fosse uma responsabilidade do Estado? E,
para que pudesse atender aos filhos das famílias mais longínquas, seriam
organizados internatos, onde as crianças e adolescentes pudessem permanecer
durante o período letivo?
Resta-nos, portanto, por meio dos registros deixados sobre essas
práticas, indagar: como se deu o processo, quem eram as pessoas engajadas na
ação, de que se valiam para cumprir tal desiderato? Cabe-nos igualmente, avaliar
se a tática utilizada contribuiu para superar o quadro de analfabetismo vivido
pelas famílias que habitavam o quadrilátero da prelazia, sob a jurisdição do Bispo
Pedro Casaldáliga. Por fim, que recursos utilizavam para sua materialização e qual
sua origem e destinação? Quem foram os protagonistas dessa escola? Do ponto de
vista pedagógico, a escola adotou mesmo o método Paulo Freire, como afirmara o
próprio Casaldáliga?187
Seria essa uma forma de dar novo sentido ao mundo das
famílias, tomando a palavra como instrumento de poder?
Conforme consta no diário de Pedro Casaldáliga, em abril de 1971,
quando as chuvas terminaram, ao tempo em que se deu início de uma nova
186
Em artigo de Carlos Alberto Steil e Rodrigo Toniol, intitulado O catolicismo e a igreja católica
no Brasil à luz dos dados sobre a religião no senso de 2010 (Debates do NER, Porto Alegre, ano
14, n. 24, p. 223-243, jul./dez. 2013), abordam a problemática da diminuição de católicos na
sociedade brasileira, como problema de adequação às respostas da instituição aos desafios da
evangelização, causando um enfraquecimento da relação entre a instituição e o catolicismo popular
tradicional, como um aspecto fundamental que abre um debate sobre a importância do campo
religioso plural, pois, segundo eles, esse foi um processo cultural levado a cabo por agentes leigos,
organizados em irmandades, associações, folias, reisados, congadas, capelinhas de beira de
estrada, santuários presididos por monges e beatos, o catolicismo e que se reproduziu no Brasil
enquanto movimento detentor de certa autonomia em relação à igreja católica enquanto instituição
eclesiástica. 187
Brandão procurou lançar luzes ao conceito de educação proposto por Paulo Freire. O estudioso
entende que, sob a perspectiva freiriana, a educação não se caracteriza apenas por práticas de
ensino institucionalizadas, como aquelas existentes nas escolas, mas considera que a educação
abrange todos os processos de formação dos indivíduos, de modo que toda troca de saberes se
constitui enquanto práticas educativas e pode se desenvolver nos mais variados ambientes sociais.
Portanto, para nossa reflexão, entendemos que três dimensões se fizeram importantes: o diálogo, a
conscientização e a libertação. Assim, a busca por respostas possibilitará entender a relação entre a
educação popular e a educação não formal, sendo elas permeadas por uma perspectiva dialética
educação-conscientização gerando a prática para liberdade. (BRANDÃO. Carlos Rodrigues, O que
é educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 47).
150
experiência pastoral, as „Campanhas Missionárias‟ um tipo de „missão popular‟,
mas em âmbito do solo, para melhor atender as famílias do lugar, cujas ações
exigiam maior tempo de permanência que chegava à três meses de trabalho em
equipe, pois, concomitante às formações religiosas, ofereciam um curso de
alfabetização de acordo com o método Paulo Freire, adotando palavras do
cotidiano das pessoas e tomando-as de forma a facilitar a aprendizagem. Além
disso, afirmou o religioso que a permanência na comunidade possibilitava a
descoberta dos líderes locais, o cultivo do fermento das futuras comunidades.188
Conforme Oliveira, ao perguntar ao professor Hélio, sobre a
aproximação dele e seus contemporâneos de atividades docentes no Araguaia e
também com relação ao método Paulo Freire, respondeu que:
[...] o nosso primeiro contato com o chamado método Paulo
Freire foi em Campinas, em 1969, quando a fama do grande
mestre já corria o mundo. Já morávamos numa grande república
de estudantes. Ficamos sabendo do curso num colégio
particular. O Moura e eu nos inscrevemos. Era um negócio
muito sigiloso por causa da repressão. Foi muito bom, de alto
nível. O que mais me impressionava era a metodologia: o
debate, o diálogo, a dialética, as aulas práticas. Nessa época,
Paulo Freire já se encontrava exilado no Chile. O que
aprendemos, aplicamos no Araguaia.189
Inaugurava-se com essas ações não só a possibilidade de dotar as
pessoas de ferramentas para a leitura da palavra, mas seu alcance a uma educação
popular capaz de promover a integração e participação dos sujeitos na construção
da sociedade, por meio de uma educação comprometida com a politização do
educando e na qual o sujeito pudesse se tornar ativo, capaz de refletir e agir sobre
o meio, conforme Brandão:
Um novo paradigma de educação se volta contra a educação.
Depois ele se volta contra as condições sociais da sociedade
desigual. Mais adiante ele se afirma como a possibilidade de a
educação ser um instrumento que opera no domínio do
conhecimento a serviço do processo de passagem do povo, de
sujeito econômico a sujeito político, capaz de transformar as
188
O intelectual e líder religioso, ali, junto com sua equipe inaugurando o rompimento com os
silêncios insólitos, as reservas, o segredo, mergulhando no povo conforme Fanon (1965, p. 30). 189
OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. Op. cit., p. 153.
151
relações sociais de que as da educação são apenas símbolo, uma
artimanha e uma dimensão190
.
Assumir aquele compromisso representava uma aliança para com a
comunidade, portanto, consistiu numa estratégia utilizada pelo líder religioso que,
em curto espaço de tempo teria que pagar alto preço, desde sua perseguição,
prisão e tentativas de morte, cujos episódios apresentaremos ao final deste
capítulo.
Já em relação à comunidade, tal decisão significava esperança, pois,
além da possibilidade de aprender a ler, escrever e contar, inaugurava a formação
de uma rede fomentando maior proximidade entre as instituições – família-igreja-
escola, unidas para um duradouro conflito. Porém, a educação faria emergir como
proposta re-escrever a prática, como asseverou Brandão.191
A educação popular surgia para repensar o sentido político do lugar da
educação. Voltemos ao processo inaugural da caminhada, e da escola engajada à
luta pela terra, Pontinópolis, ano de 1971.
As campanhas, conforme o Pedro Casaldáliga, se deram em
Pontinópolis, uma „aldeia‟ a 125 quilômetros de São Félix. E nela fomos, afirmou
Casaldáliga:
[...] definitivamente reconhecidos como a favor dos „posseiros‟
ou dos colonos sem-terra, assediados pelo latifúndio que se
formava com a anuência do governo. Naquela comunidade se
iniciaram as campanhas missionárias e também o duplo
desencontro com o Sr. Ariosto da Riva, que prometeu ir ao
povoado para conversar com os posseiros e com o latifúndio,
que ele representava.192
Conforme anotações no diário de Pedro Casaldáliga, do dia 18 de
maio:
Esperamos el domingo, inútilmente (todos los habitantes de
Pontinópolis y decenas de familias venidas de las proximidades,
leguas y más leguas, a caballo, hombres, mujeres y niños) la
venida del Sr. Ariosto aquí, a Pontinópolis. Una vez más faltó a
su palabra. Estábamos preparados para recibirlo, y con
argumentos dentro del ámbito mismo de la ley. ¡Ni Dios se hace
esperar así!, le dije yo, irritado, al pueblo...‟
190
BRANDÃO. Carlos Rodrigues. Op. cit., p. 48. 191
Ibid. 192
CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado
sentido a mi vida, Desclée de Brower, Bilbao (España) 1976, p. 14.
152
Aquella ira solidaria me valió la confianza definitiva de los
líderes del lugar ¡después de dos años de ya aparente
confianza!193
O não comparecimento de Ariosto da Riva àquela reunião na
comunidade, ao tempo em que assinalava a falta de compromisso do capital para
com as famílias ali residentes, ampliava a insegurança em relação à permanência
das mesmas em suas terras. Todavia, ao afirmar “Estábamos preparados para
recibirlo, y con argumentos dentro del ámbito mismo de la ley”194
, inaugurava
uma possibilidade de contestar a legalidade do direcionamento das terras
ocupadas pelos posseiros pelo governo e sua entrega ao latifúndio. Para tanto,
haveria de „educar‟ o coletivo de famílias para que, em união, pudessem defender
seus direitos.
Registrou ainda o missionário que durante as campanhas foram
descobrindo, definitivamente, os problemas do nosso povo, o conflito social
básico de uma região oficialmente destinada a ser pecuária de gado, área da
Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), onde o esterco da
vaca equivalia a um selo reconhecido de „integração nacional‟ e de desintegração
desumana de índios, posseiros e peões.
A expressão nosso povo, traduz com clareza uma intencionalidade, a
tentativa de pertencimento, superando as barreiras do estrangeirismo, fazendo uso
do termo „nosso‟ de propriedade, somando-se ao „nosso‟ de nossas causas e
futuras batalhas, fazendo a importante distinção de dois extremos, de um lado o
povo e de outro o latifúndio, a empresa a serviço da política do governo militar
com o discurso da integração nacional.
Afirmou ainda o líder religioso que “[...] aquel día copié también este
consejo de CONFUCIO: „Si quieres coger por un día, da de comer a los hombres.
Si quieres coger por un año, planta el grano. Si quieres coger para siempre,
instruye al Pueblo”.195
Portanto, revelava-se, de um lado, uma problemática e indicação do
caminho a seguir, pois a questão dizia respeito às precariedades a que o povo
193
Ibid. 194
Ibid. 195
Ibid.
153
estava submetido frente ao imperialismo capitalista, pois, o não cumprimento do
combinado por parte do pretenso „dono‟ da terra apontava para a necessidade de
uma longa jornada de batalhas a serem travadas; a outra tinha como centralidade a
certeza de que só haveria sucesso se o povo se preparasse e agisse em união, pois
o desafio se avolumava no horizonte.
Duas são as hipóteses a serem lançadas àquele ato fundador, a
primeira ancora-se na seguinte interpretação: a ausência de Ariosto à reunião
representou o desprezo para com as famílias ali residentes, quais eram os
condenados a sair da terra. A outra, que pensamos um pouco mais plausível, era a
face bem conhecida da relação formal em que se manifestava o estado colonial,
estado latifundista196
, determinado a controlar a soberania política e a manter o
império controlador das terras que a eles (latifúndio) não pertencia, pois já eram
habitadas por outros - os posseiros e, antes deles, os indígenas. Assim, naquele
ato fundador, também inaugurou a resistência por meio de uma luta ideológica por
restaurar aquela comunidade estilhaçada pela dúvida.
Casaldáliga, ao sublevar-se, apelava para a consciência crítica, própria
daqueles que estavam fora de lugar, procurando desloca-los para outro campo, em
contexto, uma fuga de uma única versão de verdade, para que pudessem
arregimentar-se de argumentos e coragem em defesa de sua permanência na terra.
Todavia, para que tal intento fosse alcançado, necessitava preparar todos para que
pudessem compartilhar desse mesmo ponto de partida, crítico e revolucionário,
conforme Said:
A qual só pode ser alcançada com uma revisão das atitudes
perante a educação. Simplesmente insistir com os estudantes
para que se firmem em sua identidade, sua história e tradição,
em sua especificidade única, pode em princípio leva-los a
expressar suas exigências fundamentais de democracia e do
direito a uma vida assegurada e decentemente humana.197
Todavia, alerta-nos ainda o mesmo autor:
Precisamos ir além e situá-las numa geografia de outras
identidades, outros povos e culturas, e aí estudar como eles
sempre se sobrepuseram uns aos outros, apesar de suas
diferenças, seja por influência mútua, cruzamento,
196
Ibid. 197
SAID, Edward W. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 498.
154
incorporação, rememoração, esquecimento deliberado, seja
evidentemente, por conflito.198
Tomamos por empréstimo uma questão abordada pelo mesmo autor e
a readequamos ao contexto estudado, que conseguiu o movimento pela libertação
das famílias de posseiros e peões do cativeiro do analfabetismo, escapando aos
processos homogeneizadores do Estado e afastando-se da centralidade
educacional, aqui representada pela política de Estado, que, como já mencionado,
proclamava os interesses do latifúndio. Concluímos o tópico afirmando que, em
meio às incertezas surgia um movimento por uma escola popular e democrática no
Araguaia-Xingu mato-grossense, mesmo que a peso de subversão, conforme
analisaremos no tópico a seguir.
2.1 - A escola entre a obsessão do governo militar e a crescente desumanização do
povo
Entre as misteriosas subversões no Araguaia mato-grossense e de um
governo militar estruturado na obsessão da Segurança Nacional estava a escola e a
sociedade, formadas por uma única realidade, um contexto que só pode ser
revelado por meio da pesquisa histórica que contribui na tessitura daquele passado
no presente, cujos atores não poderiam ser outros, que não as famílias que
povoaram as terras e águas da Amazônica Legal mato-grossense, circunscritas
entre os rios Araguaia-Xingu.
Como bússola da justiça, a educação proclamada é uma realidade
compartilhada em tom poético de denúncia, como a que fez Pedro Casaldáliga em
defesa do oprimido, no ano de 1984, em Proclama Subversiva.
Voy a cambiaros el revólver chulo
por un bolígrafo de cuentas.
Para que no os engañen nunca
ni los fazendeiros, ni los comerciantes,
ni el ministerio de hacienda.
¡Disparad hojas de libros
entre las hojas de la floresta!
198
Ibid.
155
¡Bebed, en las noches claras,
la „pinga‟ de otra fiesta!
¡Emborrachaos de sabiduría
y de belleza,
sertanejos mozos,
hijos biennacidos
de los legítimos emperadores de América!
Muchachas, garzas torvas,
madres -niñas apenas-,
que guardáis en las arcas de vuestros ojos indios
todas las lunas de las abuelas:
¡aprended a lavar niños
y a conducir con ritmo vuestras piernas!
Hombres heroicos,
¡exigid la tierra!
Mujeres mártires,
¡exigid la diadema!
Viejos desollados por tantos caminos,
¡exigid la poltrona
y la libreta!
Dios se hace Pan de familia
sobre esta mesa.
Y en Brasilia y en Washington
ni lo sospechan.
¡Pero el sol y la lluvia
sellan
la única ley de Derechos Humanos
de validez cierta! 199
Observa-se que o autor chama a atenção, em linguagem poética, sobre
a necessidade de se substituir o revólver pela caneta, símbolo de estudo e domínio
das letras e dos números, registrada nas folhas dos livros em meio às folhas da
floresta, que a pinga de outra festa lhe deixasse bêbado de sabedoria. Homens
heróis que deveriam exigir sua terra; mulheres mártires exigiriam o diadema; já
velhos, a poltrona e os cadernos, e, ao fazê-lo, naquelas paragens, nem Brasília,
199
CASALDÁLIGA, Pedro. Cantares de la entera libertad. Antologia para a la Nueva
Nicarágua. Prólogo de José Coronel Urtecho. Manágua: IBCA – CAV – CEPA, 1984. 81 p.
Coedición de Instituto Histórico Centro Americano, Centro Ecumenico Antonio Valdivieso y
Centro de Educacíon y Promocíon Agraria. Col. Bibl. Antonio Miranda.
156
nem Washington suspeitaria, mas o sol e a chuva selariam a única lei válida, a dos
Direitos Humanos.200
Embora a poesia seja merecedora de análise mais profunda, o
propósito aqui foi o de sintetizar a mensagem central do autor, qual seja, evocar a
atenção para os direitos humanos, pois a ignorância que levava aos conflitos,
muitas vezes banais, resultavam em violências de toda ordem, tendo a ignorância
principal ingrediente. Vale lembrar que um dos problemas a serem solucionados
era a falta de acesso às escolas, tanto na tenra idade quanto na velhice, a falta de
terra e de respeito para com a mulher, constituíam uma das faces da violência e da
desumanização das pessoas.
Tudo isso ocorria em decorrência dos interesses do capital, conhecido
por expulsar as famílias da terra, sem nacionalidade, pois a maioria das fazendas
pertencia a empresas estrangeiras, o que, de certa forma, colocava por terra o
discurso nacionalista e ufanista do governo militar brasileiro. Tratava-se de um
projeto criminoso de venda de terras a baixíssimo custo ao capital estrangeiro,
conforme analisou Oliveira (2016, p. 70) ao se referir ao falso nacionalismo
existente no documento que deu origem às bases do desenvolvimento capitalista,
por meio da Declaração da Amazônica:
Governo e homens de empresas do Brasil, reunidos na
Amazônia sob a inspiração de Deus e norteados pelo firme
propósito de preservar a unidade nacional como patrimônio, que
receberam indiviso, conscientes da necessidade de promover o
crescimento econômico acelerado da Região, como processo
indispensável, para atingir esse objetivo e a própria valorização
do homem que a habita.201
Percebe-se que o homem a ser valorizado seria apenas o
empreendedor, o capitalista, visto que o posseiro, bem como a escola, as
200
Em diálogo imediatamente posterior à defesa da tese, e, antes que depositássemos junto ao
Programa de Pós Graduação em História, como professor de licenciandos em Educação Física com
a disciplina história da educação ministrada na cidade de Luciara por meio do Programa
Parceladas, um dos alunos ali presentes, por nome de Osvaldo Ribeiro da Silva afirmou a
existência de uma tal „caneta de sete bicos‟, se referindo à prática dos empreiteiros e comerciantes
em alterar o valor e a quantidade dos produtos e ou serviços favorecendo sempre o empreiteiro ou
comerciante em detrimento dos analfabetos pobres e dos peões sob o julgo do sistema de
exploração do trabalho. 201
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção
e violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 70.
157
associações, os clubes ou quaisquer iniciativas ali inventadas não passavam de
mais um estorvo aos interesses dos opressores, representados pelos empresários,
banqueiros e pelo governo brasileiro, pois, estes últimos pertenciam ao mesmo
„balaio‟, comungando do mesmo ideário. Estava, portanto, o representante do
governo com a Declaração da Amazônia a fazer valer o discurso do grande vazio,
para ocupa-lo com empresas agropecuárias.
Observamos que a década de 1970 foi marcada por inúmeros projetos
criados para a Região Amazônica, dentre eles o do Araguaia-Xingu. Só em Mato
Grosso podem ser destacadas as seguintes políticas territoriais e de fomento.202
:
- Criação da SUDAM – e para fomentar seus projetos a criação do
Banco BASA – Banco da Amazônia S/A financiador da instalação de grandes
grupos econômicos em projetos de agropecuária no Araguaia-Xingu;
- Criação do PIN – Programa de Integração Nacional, criado pelo
Decreto-Lei n. 1.106, de 16 de junho de 1970, com a construção das rodovias
Transamazônica, Cuiabá-Santarém e BR-080 (futura Brasília-Manaus), Cuiabá-
Porto Velho, Porto Velho Manaus, Manaus-Boa Vista e Perimetral Norte, sendo
que a faixa de 10 km de cada lado da rodovia serviria enquanto Programa de
„Colonização e Reforma Agrária‟. Já, 30% dos recursos financeiros dos incentivos
fiscais oriundos de abatimento dos impostos de renda seriam aplicados neste
programa.
Com o PIN, o governo do General Médici ficou conhecido com a
campanha ufanista „Integrar a Amazônia para não os entregar aos estrangeiros‟
que, como já afirmado, não passou de um engodo, pois a maioria dos projetos de
pecuária no Araguaia contava com capital estrangeiro;
- PROTERRA – Programa de Redistribuição de Terras e Estímulo à
Agroindústria no Norte e Nordeste, promulgado pelo Decreto Lei n. 1.179, de 6
202
As informações sobre os Programas de Desenvolvimento da Amazônica Mato-grossense foram
extraídas da obra de Oliveira. Ariovaldo Umbelino. A fronteira Amazônica Mato-Grossense:
Grilagem, Corrupção e Violência. São Paulo: Iandé, 2016, p. 95-169.
Ainda sobre esse tema, são encontradas excelentes narrativas produzidas por JOANONI NETO,
Vitale. Amazônia na década de 1970. A fronteira sob o olhar do migrante. Revista Eletrônica da
ANPHLAC, ISSN 1679-1061, n. 16, p. 186 -206, jan./jul. 2014. http://revista.anphlac.org.br.
Acesso em 12 de fevereiro de 2018. Igualmente sobre tais empreendimentos e consequências para
o Araguaia, encontramos ricas reflexões em BARROS. João Carlos (Org). Araguaia: o (des)
encontro de diferentes agentes sociais. Cuiabá: EdUFMT, 2016.
158
de julho de 1971, também pelo General Médici, tendo sido nomeado de „reforma
agrária‟ para os latifundiários;
- POLAMAZÔNIA – criado pelo Decreto n. 17.607, de 25 de
setembro de 1974: o planejamento do Programa de Polos Agropecuários e
Agrominerais da Amazônia consistiu na estratégia do governo militar em
„territorializar‟ os grandes monopólios na Amazônia. O programa criou 15 áreas
prioritárias, a primeira delas era o Araguaia Xingu.
- POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados,
instituído por meio do Decreto n. 75.320, de 29 de janeiro de 1975, do General
Geisel, teve por objetivo o desenvolvimento dos cerrados, visando a instalação de
obras de infraestrutura, sobretudo armazenagem, estradas, dentre outras.
- POLONOROESTE – Programa de desenvolvimento regional
integrado para ser implantado nas áreas cortadas pela BR-364 e financiado pelo
Banco Mundial. Em Mato Grosso esse programa foi utilizado para a regularização
fundiária;
- PRODECER – Programa Nipo-Brasileiro de Cooperação para o
Desenvolvimento Agrícola do Cerrado, com o plantio de arroz e soja, tendo por
objetivo a exportação para o Japão, em atendimento ao acordo JICA- Japan
International Coopetation Agency;
- PRODEAGRO – Projeto de Desenvolvimento Agroambiental de
Mato Grosso, voltado para realizar investimentos em diversos setores, com valor
aproximado a 270 milhões de dólares aplicados em 5 anos.
As informações arroladas de forma sintética objetivaram revelar os
inúmeros programas criados para fomentar o „desenvolvimento‟ da Amazônia,
todavia, como pode se observar, a maioria visava favorecer aos grandes
empresários. Portanto, para o governo militar, pouco importavam as mazelas pelas
quais passavam as famílias residentes no Araguaia-Xingu.
Para entender a consequência direta dessa política, a seguir,
apresentamos um quadro relacionando os projetos aprovados pelo governo federal
por meio da SUDAM, para a territorialidade demarcada pela presente pesquisa.
Embora os dados não estejam completos, é possível observar que a somatória da
área de terra em hectares alcançava 2.192.094 (dois milhões, cento e noventa e
159
dois mil e noventa e quatro ha), exceto 15 projetos, cujos dados não aparecem no
quadro-síntese das terras distribuídas aos grandes latifundiários.
Quanto ao valor, em dinheiro, recebido por meio de incentivos fiscais,
os 66 projetos somaram Cr$ 272.064.000 (duzentos e setenta e dois milhões e
sessenta e quatro mil cruzeiros). Essa é uma amostra inconteste de que o governo
federal, sob o poder dos militares, agiu de forma a garantir muita terra e muito
dinheiro para pouca gente, contrariando, portanto, o discurso de valorização do
homem que ali habitava, pois, esse homem – o sertanejo, o posseiro, o peão e o
indígena – não existia nesse naco generoso de benesses.
Pela tabela a seguir se pode conhecer nominalmente os
empreendimentos agropecuárias, a quantidade de hectares e os valores recebidos
da SUDAM, por meio dos incentivos fiscais. Em destaque, as fazendas que, de
forma direta ou indireta, fomentaram a violência e fizeram jorrar sangue em solo
mato-grossense.
Tabela 5 - Projetos (Empresas) de pecuária aprovados pela SUDAM no Araguaia
mato-grossense
Seq.
Projetos de pecuária
Área em
(há)
Incentivos
fiscais em
(Cr$)
1 Agro Pecuária „7 de Setembro Ltda.‟ 18.582 2.025.620
2 Agro Pecuária Duas Âncoras 23.005 4.191.575
3 Agro Pecuária Médio Araguaia (AGROPEMA) 11.370 1.487.426
4 Agropastoril Barra do Garças 9.998 4.784.430
5 Agropastoril Campo Verde 64.819 6.565.129
6 Agropastoril Nova Patrocínio („Fazenda Porta da
Amazônia‟)
26.817 3.083.467
7 Agropecuária „Santa Rosa‟ 19.360 3.968.033
8 Agropecuária „Três Marias‟ 20.000 3.505.768
9 Agropecuária Alvorada Mato-grossense
(APAME)
29.703 4.332.496
10 Agropecuária Bela Vista 36.125 4.390.924
11 Agropecuária Brasil Novo 27.905 6.010.081
12 Agropecuária Califórnia Comércio e Indústria
(AGROINSA)
29.831 3.142.165
13 Agropecuária Cocal ---- 4.235.909
14 Agropecuária Colorado 5.413 1.526.140
15 Agropecuária do Araguaia (AGROPASA) 48.165 7.122.208
16 Agropecuária Duas Pontes ---- 812.719
17 Agropecuária Foltran 13.741 3.319.720
18 Agropecuária Guanabara 25.800 4.398.889
19 Agropecuária Nova Amazônia (FRENOVA) ---- 4.872.318
20 Agropecuária Planalto (AGROPLASA) ---- 4.405.941
160
21 Agropecuária Remanso Açu ---- 2.989.015
22 Agropecuária Rio Manso ---- 2.307.809
23 Agropecuária Roncador 24.251 5.379.188
24 Agropecuária Santa Silvia 39.574 3.028.000
25 Agropecuária São Francisco do Xingu 21.000 3.921.364
26 Agropecuária São João da Liberdade ---- 6.213.140
27 Agropecuária São José 19.915 4.960.318
28 Agropecuária Suiá-Missú
Pertencente à multinacional Liquefarm, com
sede na Itália.
695.843 7.878.000
29 Agropecuária Tamakavy
Pertencente ao grupo Silvio Santos, proprietário
e estação de televisão.
24.999 5.144.623
30 Agropecuária Tapirapé („Fazenda Tapirapé‟) 27.614 3.109.694
31 Agropecuária Tatuibi 19.936 5.973.970
32 Buritizal Agropecuária 30.621 3.939.638
33 Cia. Agrícola e Pastoril S. Judas Tadeu ---- 5.955.380
34 Cia. Agro Pastoril Sul da Amazônia 24.200 4.288.877
35 Cia. de Desenvolvimento do Araguaia
(CODEARA)
Pertencente ao BCN – Banco de Crédito
nacional e a Noidore Agropecuária, cujo
proprietário ficou conhecido por ter
‘comprado’ prisioneiros na penitenciária de
Cuiabá-MT, para leva-los para trabalhar em
sua fazenda
196.497 16.066.900
36 Cia. Desenvolvimento Agropecuário de Mato
Grosso (CODEMA)
26.824 2.342.725
37 Colonização e Representação do Brasil
(COREBRASA)
52.272 3.130.000
38 Colonizadora e Representações Brasileiras
(COLBRASA)
24.969 6.774.833
39 Companhia Agropastoril Aruanã (CIAGRA) ---- 5.975.784
40 Companhia Agropecuária Sete Barras 19.360 6.320.477
41 Companhia de Desenvolvimento Garapu
(CODESGA)
9.000 3.207.265
42 Curuá Agropecuária 9.455 1.432.258
43 Elagro Pecuária 29.446 6.459.426
44 Empresa Agropecuária Ema 8.952 1.514.838
45 Fazenda Nova Kênia ---- 2.115.148
46 Fazenda Nova Viena 29.503 4.718.377
47 Fazenda Tanguro Agropecuária 33.562 2.149.072
48 Fazendas Associadas do Araguaia (FAASA) 10.000 1.413.288
49 Independência Agropecuária ---- 1.460.546
50 Joaçaba Agropecuária 9.744 1.417.255
51 Nativa Agropecuária ---- 1.593.654
52 Noidori Agropecuária ---- 2.663.771
53 Norte Pastoril Mato-grossense ---- 5.881.454
54 Pabreulândia Agropastoril do Brasil Central ---- 1.913.721
55 Pastoral Agro Pecuária Couto Magalhães 50.176 2.451.662
56 Porto Velho Agropecuária 49.994 6.193.496
161
57 Rancho Santo Antônio 21.780 4.788.884
58 Rio Fontoura Agropecuária 14.864 3.754.920
59 Santa Luzia Agropecuária 4.930 1.959.037
60 Sociedade Agropecuária Brasil Central 31.110 3.729.142
61 Sociedade Agropecuária do Vale do Araguaia
(SAPEVA)
72.567 6.208.686
62 Tabaju Agropecuária 19.931 3.019.474
63 Tapiraguaia Agrícola e Pecuária 21.923 2.519.404
64 Tracajá Agropecuária 29.880 3.798.133
65 União Gaúcha Colonizadora Agropecuária
(SOGUACHA)
26.300 5.247.075
66 Urupianga Agropecuária 50.468 6.573.321
Totais 2.192.094 272.064.000 Fonte: SUDAM (1990).
Dos 66 projetos relacionados, cinco ganham destaque por
recorrentemente citados por conta de conflitos com os posseiros, somando ainda a
Agropecuária da Amazônia – Bordon (empresa ligada ao setor frigorífico), com
instalações em Campo Grande e Aquidauana, no atual Mato Grosso do Sul. Essa
empresa também era a maior companhia de ônibus de São Paulo, tendo ainda por
sócio o Banco Nacional de Minas Gerais, a Eletroradiobrás e David Nasser, um
dos repórteres mais conhecidos do Brasil.
Sobre esta questão, Oliveira203
afirmou que, dos 85 projetos
financiados pela SUDAM no Araguaia, 13 não foram identificados pelo
imageamento e tampouco localizados na pesquisa de campo feita pelo Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Dentre as dificuldades de serem
identificados estava a falta de estradas, porém, afirma o autor que em suas
pesquisas foi possível confirmar que já haviam 760.390 (setecentos e sessenta mil,
trezentos e noventa hectares) desmatados, na primeira metade da década de
1970204
.
Assim, muitas pesquisas haverão de existir sobre a política de reforma
agrária adotada no Brasil da segunda metade do século XX e início do século
XXI, pois, há uma contradição entre o discurso e a prática. Talvez, a nível macro,
jamais teremos uma reforma agrária, pois, as leis, decretos e programas passam
pelo jugo dos detentores do poder de tomada de decisão, a exemplo a bancada
203
VALVERDE, O; FREITAS, T. L. O problema Florestal da Amazônia Brasileira. Petrópolis:
Vozes, 1980, p. 42. São Paulo: Iandé, 2016 apud OLIVEIRA. Ariovaldo Umbelino. Op. cit., p.
357. 204
Ibid.
162
ruralista que votam as leis e invariavelmente indicam o Ministro da agricultura, os
quais, não o fazem se não para beneficiar seus protegidos detentores de capital.
Nesse sentido, alertava Pedro Casaldáliga,
El profesor José Martins nos recordaba: «No siempre la historia
es insurreccional y nunca es mágica». Reforma agraria no es un
acto institucional, decía alguien. «La gran transformación social
acontece a nivel local o no acontece». Lo que no significa que
no se deba preparar, localmente, la gran transformación global.
Revolucinando se hace la Revolución.
El capitalismo nunca hará, sin suicidarse, una reforma agraria
que sea para el bien real de la mayoría. Hará reformismos
agrários.205
A história insurrecional nem sempre acontece num passe de mágica,
assim, para haver uma transformação em larga escala ela precisa acontecer
localmente, ou então não acontece, portanto, requeria preparar pontualmente a
revolução, demarcando seu ponto de partida, pois, assim, revolução se faz com
revolução. Advertia ainda o prelado que não esperava que o capitalismo fosse se
suicidar, assim, o que estava acontecendo era reformismo agrário, naquele
momento em benefício dos latifundiários.
Analisar o distanciamento das práticas institucionais será uma forma
de, com maior clareza a dialética, apresentar os interesses, bem como o sentido
dado à educação nos primeiros anos em que a escola começou a ser inventada
nessa imensa área de matos, terras e água do Araguaia-Xingu mato-grossense.
Todavia, merece destaque o fato de existir algumas condições para
que as empresas se instalassem nessa região, porém não passavam de acordos
descumpridos:
Somente 42% dos projetos cumpriram as cláusulas contratuais
com a SUDAM, no tocante às habitações: havia 4 a 7 casas de
alvenaria por projeto, em média. O grau de instrução dos
informantes era, em 56% dos casos, de nível escolar primário.
Em 77% dos projetos não havia sequer escola primária.206
Conclui-se o presente tópico com a afirmativa de que as empresas
beneficiadas com os incentivos da SUDAM não cumpriram com as obrigações
205
En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983. Tercer libro del diario de Pedro Casaldáliga, publicado
originalmente por Desclée, Bilbao, 1983. 206
OLIVEIRA. Ariovaldo Umbelino. Op. cit.
163
para com os trabalhadores e suas famílias, seja em relação aos ambulatórios ou
médicos visitantes, ou mesmo em relação às casas de alvenaria, às cercas, à luz
elétrica e, principalmente, às escolas, os quais não saíram do papel. O não
cumprimento por parte das empresas eram passível de punição, caso constatada
pela fiscalizações da SUDAM, todavia, elas também engrossaram o rol das
irresponsabilidades daquele projeto capital privado + interesses do governo.
Assim, seguimos apresentando o cenário em que a escola foi inventada.
2.2 - A Escola e os „sentidos‟ de educação para quem trabalhava na terra
O silêncio sobre as cláusulas contratuais não cumpridas pelas
empresas nos projetos das grandes fazendas foi irrompido pelas vozes dos atores
sociais que sofriam na pele as consequências desse trama. Igualmente ecoava no
Brasil Central denúncias pela ausência do Estado nas questões fundamentais à
vida e permanência das famílias naqueles sertões. Muitos eram os crimes
cometidos contra as unidades familiares, porém, um dos mais gritantes foram
aqueles cometidos pelo governo militar, com o „entreguismo‟ das terras da nação
para as mãos dos empresários, banqueiros e ao capital estrangeiro, pois, os
tubarões, diferentemente do que preconizavam os contratos com a SUDAM, ao
lado da especulação imobiliária das terras se tornou prática comum, como
observado nas palavras de Zé das Trovas:
Uma promessa de progresso que nunca se cumpriu
Os tubarões estão querendo
a terra para revender.
Eles querem fazer comércio
não plantam nem para comer. 207
Retomo aqui um aspecto tratado no primeiro capítulo, para afirmar
que, além dos projetos empresariais não respeitarem o direito das famílias,
também contribuíram para sua ampliação. Formado o pasto e implantadas as
benfeitorias julgadas necessárias, os peões trabalhadores eram despedidos em
massa, sem qualquer indenização, deixando as famílias, em Mato Grosso bem
como fora deste, à deriva, num processo crescente de desumanização do povo de
207
ZÉ DAS TROVAS, lavrador da Prelazia de São Félix do Araguaia MT.CEDI, 1983, p. 12.
164
um Brasil bastante conhecido porém, pouco atendido pelas políticas públicas tão
necessárias no país e em maior grandeza, entre o Araguaia-Xingu.
O êxodo pela concentração de terras em mãos de poucos, numa região
que, no discurso, deveria ser a redenção daqueles que da terra dependiam. Vida
extremada, morte anunciada, pois, com pouco ou quase nada, no limite da
penúria, sobrava razões para conflitos, embriaguez e disputas banais de
trabalhadores embrutecidos pelas circunstâncias, frente às poucas garantias de
sucesso pelo próprio trabalho.
A vida no campo foi marcada por formas distintas de trabalho, ou
produzindo na posse o suficiente para a subsistência, em suas roças e criação, ou
trabalhando nas fazendas. Havia três tipos diferentes de roça: a „misturada‟, onde
eram plantadas no mesmo espaço diferentes culturas, a „solteira‟, referindo-se às
roças maiores, a de quem possuía mais terra cultivável e onde o lavrador podia
plantar diferentes espécies de cultivares em espaços separados, ou dentro de uma
mesma roça, conforme a importância do „legume‟ no cardápio diário. E, por
último, a roça de monocultura eram típicas das fazendas que estavam sendo
abertas, cuja produção era destinada ao mercado.208
O primeiro tipo de roça aberta na mata exigia conhecimento, pois,
algumas famílias „novas‟, por não conhecerem as técnicas necessárias para o
cultivo, tiveram que aprender com os índios. Sobre essa questão, Maria Cantuário
registrou o depoimento do senhor Corino, um camponês natural de Goiás, de pais
maranhenses, morador da região desde a década de 1950:
Quando nós chegamos aqui, foi um sofrimento, muita gente
perdeu o plantio tudo passou fome. Derribava a roça, plantava
aquele mundo de semente e num dava nada, nem nascia, num é.
Era de encabular que diacho tinha, num é? Terra bonita,
aguada e os treim num nascia, roça perdia todo plantio e o
povo só perdendo os restim de semente que tinha trazido. Eu
encabulei e como tava sempre por ai no meio dos índios pela
aldeia, via eles colherem aquele monte de legume bonito, cada
mandioca que era de admirar. E aí fui suntar eles plantando,
num é. E vi aquele serviço, eles plantando as coisas na flor da
terra, ai preguntei pro cacique se aqueles treim iam nascer, ele
208
CANTUÁRIO. Maria Raimunda dos Santos. “Oh de casa! Oh de Fora! Vamos chegando e
vamos entrando”: lavradores às margens do Araguaia mato-grossense (1950-1990). Dissertação
(Mestrado em História) – UFMT – Instituto de Ciências Humanas e Sociais, ICHS, 2012, p. 38.
165
disse que sempre nascia, branco é que não sabia plantar. E
num é de ver minha fia que nois plantava os treim era fundo,
socava o enxadão era de conforça, fui prestar atenção
direitinho e vi que a terra de primeira era só uma camadinha,
ai depois que eu descobri cabou o tempo ruim, num é, logo todo
mundo aprendeu. Índio véio era o treim num é? Num são besta
não209
.
Assim, percebe-se que, ao falar de roça, torna-se necessário entender
que os fazendeiros opressores também fizeram uso do conhecimento dos índios,
brancos pobres, além de sua mão-de-obra, porém, numa escala de produção muito
maior, e, invariavelmente, além do uso de máquinas e equipamentos pesados.
Quanto ao aspecto da exploração da força de trabalho, ALMEIDA210
destacou:
A roça de monocultura, ou a roça do fazendeiro. Nesta roça
planta-se um único tipo de cultura, o arroz; ela se dá numa área
muito grande 10 a 50 alqueires e exige um grande investimento
em tecnologia avançada e capital, como o uso do trator, plantio
em curvas de nível, represa para irrigação, canais e pulverização
de agrotóxicos através de avião; e ela tem como única
preocupação, a produção para o mercado exterior. O posseiro,
por sua vez, a encara como uma roça fraca, pois prejudica a
terra, esgotando-a, e atrai pragas para região.211
Todavia, o trabalho no latifúndio, nas décadas entre 1970 a 2000, era,
em sua grande maioria, de peonagem, para a derrubada, formação e limpeza do
pasto, construção de cerca, acero e roçada de juquira. Também, após formada a
fazenda, a lida passava a ser com o gado.
Conforme Oliveira, nas fazendas, os trabalhadores tinham o que
oferecer, sua relação contratual, conforme relatório do Centro Ecumênico de
Documentação e Informação, era distinto em dois tipos.212
a) O contrato tipo cativo, aquele em que é tratado um preço por
hectare de serviço e os peões arcam com as despesas de alimentação, ferramentas
209
CORINO, Depoimento. In: CANTUÁRIO, 2012, p. 39. Maria Cantuário fez um inventário
etnográfico sobre o modo de vida de um grupo de lavradores descendentes de nordestinos que se
instalou à margem esquerda do rio Araguaia, hoje pertencente ao município de São Félix do
Araguaia, entre as décadas de 1950 a 1990. Os aspectos explorados são as relações dos lavradores
com a terra e água, bem como os laços de sociabilidade tecidos entre eles a partir das práticas de
produção de farinha e tecelagem de rede. Um belo trabalho de leitura fácil e rica em detalhes. 210
ALMEIDA, 1987, p. 37 apud CANTUÁRIO, 2012, p. 37. 211
Ibid. 212
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção
e violência apud CEDI, 1983, p. 19-20. São Paulo: Iandé, 2016, p, 344.
166
e extraordinárias. O grupo de peões tem que ter as „tralhas‟ (panelas, talheres etc.)
de cozinha, sendo um deles o cozinheiro. Mas, todas as mercadorias têm que ser
compradas do gato, que, por sua vez, é o único que tem autorização para comprar
no armazém da fazenda;
b) O outro tipo de contrato é chamado de livre: e no qual, como diz o
próprio nome, a remuneração do peão é livre de quaisquer despesas. O gato
providencia a alimentação e leva a comida no local do serviço. O valor do
contrato livre é quase sempre a metade do estabelecido pelo contrato cativo.
Em geral, o gato determina a quantidade de serviço para cada peão
realizar, por exemplo, 5 hectares, na derrubada. Estes poderiam trabalhar
individualmente, ou organizarem-se em grupos de 4 ou 6 homens, para atuar em
área comum. Esses pequenos grupos de trabalho, tanto no sistema cativo, livre ou
de sociedade são chamados de times, existindo um representante desse grupo, que
é chamado de chefe do time.
Neide Esterci, ao falar da relação com o trabalho, afirma que:
O que está em jogo é a perda, por parte do trabalhador, de sua
condição de livre possuidor de sua força de trabalho: ele passa,
através da dívida, de livre a escravo: de possuidor de uma
mercadoria, a mercadoria.213
Já em relação à forma de pagamento pelo serviço prestado, havia
mecanismos de „segurar‟ o trabalhador coercitivamente, até que este pagasse suas
dívidas, quase sempre maiores do que lhe seria pago ao final da empreita, o que
revela tratar-se de instrumento que sujeição do trabalhador a quem compra sua
força de trabalho, trata-se do abono:
O abono é crucial no estabelecimento da relação, pois cria a
dívida e, portanto, garante a imobilização do trabalhador no
momento em que outras formas de coerção não têm condições
de se exercer. Suponhamos, por exemplo, antes de se deslocar
para o local de trabalho, mas, já depois de ter-se comprometido
com um intermediário que outro lhe ofereça melhores
213
ESTERCI, Neide, Conflito no Araguaia: peões e posseiros contra a grande empresa. Petrópolis:
Vozes, 1987. P. 123. Faz-se importante apresentar o cotidiano, as relações de trabalho e formas de
exploração pois, as famílias exploradas eram as mesmas dos escolares.
167
condições. Nesta situação, só o abono pode restringir suas
possibilidades de desistir do compromisso.214
Murilo Carvalho, em seu livro Sangue da Terra, apresenta um
episódio de violência bastante emblemático, verdadeira tragédia e degradação
humana:
Em 1970, quando a Polícia Federal invadiu a Codeara para
soltar cerca de 1.200 trabalhadores que estavam escravizados,
sem poder sair da mata, morrendo de maleita, guardados por
pistoleiros comandados por Décio. Segundo a própria política,
dezenas de corpos foram encontrados, enterrados em covas
rasas, trabalhadores que morreram de doenças ou foram mortos
por pistoleiros durante as derrubadas.215
Esgotados fisicamente e muitas vezes sem dinheiro suficiente para
voltar para sua terra de origem, esse trabalhador se dirige para as pequenas
cidades da região ou embrenhava nas matas, onde se instalava com lavoura de
subsistência, como posseiros, ampliando igualmente a demanda por escolas e
demais direitos constitucionais.
Reunidas as informações sobre as formas de organização da vida e
sua relação com a exploração do trabalho, seja na produção de sua subsistência ou
para alimentar a voracidade do capital, descortina-se a possibilidade de entender o
contexto das denúncias feitas por Pedro Casaldáliga, bem como a própria
invenção da escola enquanto pedra angular na formação social no Araguaia-Xingu
mato-grossense.
De posse dessas leituras, delineamos os sentidos dados à educação
lançados pelo líder religioso e sua equipe no horizonte, anunciados por meio da
Folha Alvorada como evocado por meio de matéria publicada no mês de maio de
1970216
, a partir da qual conseguimos mapear a noção de educação publicada pelo
mesmo periódico:
[a] educação significava romper com o desânimo, a apatia, o
medo. Significa ainda tornar-se dono de seu destino,
participante das decisões nacionais. Participar do poder, das
riquezas e da cultura brasileira. Educação significava saber e
214
Op. cit., p. 125. 215
CARVALHO, Murilo, Sangue da terra. A luta armada no campo. São Paulo: Brasil Debates,
1980. P. 68. 216
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 p 2-3.
168
poder escolher melhor os representantes do povo. Pensar com
a própria cabeça e andar com os próprios pés.
Educação significa tomar consciência de sua dignidade, é saber
que a pessoa humana tem valor que nenhum dinheiro pode
pagar. Educação significa ser liberto da miséria, do
analfabetismo, da superstição. É encontrar com mais segurança
a subsistência, a saúde, o emprego.
Educação significa não viver enganado ou dominado por
nenhuma força, significa não permanecer mais „deitado
eternamente em berço esplêndido‟, mas levantar-se e erguer a
cabeça, olhando confiante no futuro, ainda que nuvens negras
pairem sobre nossas cabeças. Um povo educado saberia
combater as raízes da violência, da injustiça e construiria
uma verdadeira democracia.217
Afirmava ainda a matéria que a educação ensina a agir com
inteligência, com liberdade e com responsabilidade. É viver uma maior união e
comunicação com todos, num ambiente alegre, de paz, de compreensão e de ajuda
mútua. A educação aumenta, nessa medida, a consciência da solidariedade e da
união entre o povo.218
A dimensão de educação descrita na matéria assinalava, portanto, as
bandeiras de luta e compromissos da escola para com a comunidade, bem como
da comunidade para com a escola. Tal desígnio esculpe na escola a pedra angular
da sociedade, um direito inalienável ao ser humano, naquele momento abatido
diante das injustiças, mazelas, sujeição ao capital, de aniquilamento e
invisibilidade, uma vez ignorados pelas decisões do governo e sem as condições
necessárias de ver e entender a realidade por falta de conhecimento. Pela
educação, deveriam estar preparados para alinhar-se ao coletivo, unir-se diante de
uma causa comum, preparando para viver a democracia, cujo passo primeiro seria
a permanência na terra.
Convém ainda salientar que toda a dimensão educacional foi tratada
enquanto desafio, pois, ao mesmo tempo em que era fruto de vivências históricas,
pertence ao espaço-tempo, à região do Brasil Central da década de 1970.
Pensamos que essa dimensão da educação precisa ser desejada, pois
emana questões de fundo para a formação social no tempo, cujas razões
prescindem de entender seus sentidos: para que construir projetos de alfabetização
217
Ibid. 218
Ibid. Em grifos no original.
169
numa sociedade alfabetizada, não teria sentido anunciar a necessidade de valorizar
o ser humano, se ele fosse respeitado, não teria sentido almejar a superação de um
quadro de miséria, se vivessem a bonança, não teria sentido lutar contra o
desemprego em uma sociedade governada por gestores que se preocupassem em
garantir acesso ao emprego, não teria sentido lutar contra a desigualdade, numa
sociedade em que a igualdade se fizesse hodierna.
Igualmente, não teria sentido combater as raízes da violência se ela
não estivesse presente nas atitudes dos governantes, dos fazendeiros (tubarões),
dos grileiros, dos posseiros, dos pais e mães de família, do professor, do peão.
Não teria sentido cobrar por justiça numa sociedade justa, não teria sentido cobrar
pelo direito a um pedaço de terra e à propriedade se os posseiros não vivessem
diuturnamente a insegurança, sob ameaça de expulsão, numa eterna busca por se
ver livre da opressão. Portanto, todas as dimensões pensadas para a escola
compunham um conjunto de soluções a serem alcançadas pela comunidade, e isso
só se daria por meio da luta, da mobilização e pela resistência.
Assim, podemos afirmar que uma educação escolar ganhou sentido na
medida em que estivesse vinculada a um projeto que visasse superar os problemas
vividos pela comunidade, cujo limite não se confinava na leitura e escrita, na
codificação e decodificação da palavra, mas num currículo que contribuísse para
que o aprendente desenvolvesse uma consciência sócio histórica, em ações
engajadas em torno de um bem comum. Eis mais um propósito do presente
capítulo, perceber a dimensão da invenção da escola vivida no Brasil Central.
Entendemos ainda que a mesma seria a única instituição capaz de,
transversalmente, tocar o interior das famílias com poder de transformar o
aprendente e, a partir dele, seu entorno, numa relação dialógica de construção do
conhecimento disseminado pela mediação e aprendizagem de um currículo capaz
de servir enquanto instrumento de poder, através de práticas para a liberdade. Do
contrário, perdia-se o principal sentido da educação.
O lançar luzes à formação das comunidades no Araguaia-Xingu, no
terceiro quarto do século XX, possibilita-nos entender as razões que moveram a
equipe da prelazia, sob a liderança de Pedro Casaldáliga, a envidar esforços para
que a população pudesse ter acesso à escola. Pois, os inimigos do povo eram
170
inimigos em comum ao pensamento humanista – o capitalismo, a ditadura e o
latifúndio, como expressou Casaldáliga:
Yo he pasado mucha rabia en este Mato Grosso y he meditado
mucho, con la boca llena de agua, como quien se ahoga, en la
violencia y no violencia y me ha tocado perdonar muchas veces
a los enemigos del pueblo que son, os lo digo con toda
sinceridad, mis únicos enemigos - mis adversarios, si queréis
que os hable como todo un obispo -. Eso, sin embargo, no me
impide - Dios sabe hasta qué punto acierto o yerro - continuar
detestando el capitalismo, la dictadura, el latifundio... Eso, por
el contrario, me obliga a hacer lo posible para que esos
enemigos „se acaben‟.219
Ali, os escolares, em meio à violência, esculpiam a escola. Um espaço
que deveria preparar as pessoas para combater o inimigo comum, os opressores
representantes do império capitalista. Que opção teriam as famílias senão
combater o inimigo? Afirmou o líder que Paulo Freire, “[…] el maestro de
América, ha dicho con lúcida precisión evangélica que el único modo de amar a
los opresores es hacer que nunca más puedan oprimir a nadie”.220
Conseguiriam erguer os pilares da escola, edificada sob o alicerce das
famílias pobres que habitavam o Araguaia-Xingu, porém, como resistir aos abalos
causados pela exploração? Seguimos refletindo sob essa edificação.
2.3 - Na escola, para ensinar precisa saber: inaugurando a formação de professores
no Araguaia-Xingu
Em janeiro de 1978, a Folha Alvorada anunciou um importante curso
de formação para professores, muitos dos quais, como já antecipamos, eram leigos
residentes da região, organizado pela Secretaria Estadual de Educação e
funcionando durante as férias, com duração de quatro anos, cujas etapas
ocorreriam nos meses de janeiro e fevereiro, coincidindo com as férias escolares,
para não atrapalhar o ano letivo.221
219
CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves
Latinoamericanas, México 1990, p. 245. 220
Ibid. 221
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 52 p 2-
10
171
A Secretaria Municipal de Educação de São Félix do Araguaia
conseguiu levar o curso para aquela cidade, o qual teve início no mês de janeiro,
contando com a participação de, aproximadamente, 60 professores. Afirmou a
matéria que com ele iria melhorar muito a preparação dos professores e, com isso,
também a escola da região.
Com o atraso no repasse do recurso prometido pela Secretaria de
Estado de Educação, ficou decidido que o curso iria acontecer do mesmo jeito.
Para tanto, tiveram que pedir a colaboração das famílias de São Félix para
fornecer refeições, almoço e jantar, para os professores que viessem dos
patrimônios.
Assim, pode-se perceber que a comunidade se fez presente, tanto na
edificação da escola quanto na questão da formação de professores. Mas, a
declaração de uma colaboradora para que o curso sucedesse anunciou o sentido
que o professor tinha diante da comunidade, afirmando que não importava se o ele
tivesse formação, fosse branco, meio escuro ou preto, pois o importante é que
fosse inicialmente escolhido por eles e que participasse da vida da comunidade no
seu dia-a-dia, para que pudesse se tornar amigo dos filhos, afinal, era essa a
profissão escolhida para estar a serviço do povo.
Essa afirmação reforça nossa defesa que a escola inventada no
Araguaia-Xingu, em sua gênese, trazia consigo uma relação extramuros escolares,
devendo, obrigatoriamente, haver uma integração entre escola e comunidade. Essa
relação de proximidade fez com que muitos dos profissionais conferissem tal
papel à escola, conforme relatou o Prof. Hélio, em entrevista a Oliveira (2016, p.
158): “[...] o GEA [Ginásio Estadual do Araguaia] não era uma escola cercada de
muros (no sentido físico e metafísico), isolada, alheia à realidade. Estava atenta e
participativa dos acontecimentos, principalmente quando os conflitos na Prelazia
começaram a se intensificar”.222
Observa-se que, por parte da escola, havia essa relação proximal com
os problemas da comunidade, sem distanciamentos ou muros. O projeto de escola
222
OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. A educação e a luta no Araguaia (Mato Grosso). Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. Departamento de Geografia. Área de concentração: Geografia Humana. USP. 2016,
p. 158.
172
ali inventado traduzia razões
suficientes para se afirmar um
projeto mais amplo de educação
popular, uma educação para o
povo, preparando-o para os
desafios do cotidiano, qual seja,
a construção da resistência.
Quanto à
inexistência de muros físicos,
pode-se perceber na Figura 8.
Outro aspecto relevante,
especialmente naquele
momento, foi a participação de
alunos na defesa dos
professores e da própria equipe da prelazia, quando denunciaram a existência de
um agente infiltrado no grupo, conforme relato:
Foram os alunos que nos alertaram e ajudaram a desmascarar
um falso seminarista que enganou o bispo e passou 20 dias
infiltrado em nossa casa. Não passava de um agente, um
jagunço especial, contratado por uma fazenda.223
A edificação do Ginásio Estadual do Araguaia – GEA pela Prelazia, e
enquanto estratégia de direcionamento visou torna-la uma escola oficial, obteve
êxito parcial, pelas razões já apresentadas anteriormente, porém, enquanto projeto
social cumpriu com êxito as funções para as quais havia sido planejado. A partir
dele se formou uma rede de pessoas, embora insuficientes para atender a toda
comunidade.
Todavia, o corpo de profissionais que atuava no ginásio, mesmo
existissem aqueles que não contassem com curso superior, no período de férias se
deslocavam para São Paulo, onde continuavam os estudos universitários, como
consta em matéria publicada na Folha Alvorada, em dezembro de 1970:
223
Ibid.
173
[...] os professores do Ginásio de São Félix saem agora de férias
para São Paulo, De férias até certo ponto, porque eles durante as
férias cursam os seus estudos universitários, na „Anchieta‟
Paulistana. O Elmo e o Hélio voltarão para o ano próximo, com
mais outros 3 colegas. Porém o Luís e a Eunice ficarão lá.
Tchau, Luis e Eunice.224
Essa fórmula, inaugurada em princípios de 1970 para a formação de
professores, serviu para dar continuidade à capacitação docente, voltada somente
para os professores leigos em cursos de férias, adotado na década seguinte pelo
Projeto Inajá e atualmente pelos cursos de Parceladas, da Universidade do Estado
de Mato Grosso, cujo tema haveremos de retomar no quarto e último capítulo da
tese. Entendemos que essa foi e continua sendo uma estratégia adotada para a
inclusão das famílias na formação escolar em todos os níveis, fundamental, médio
e superior. Assim, a invenção da escola de educação básica esteve ligada a uma
plataforma política popular, representando as outras faces dessa pedra angular.
Ao tempo em que a matéria revelava a estratégia para a preparação do
corpo de profissionais que atuava no GEA, o periódico regional divulgou dados
sobre o coordenador desse grandioso projeto para a educação no Araguaia mato-
grossense: “Recebemos visita do querido colega, Pe. Antonio Canuto, responsável
pela turma dos professores do nosso Ginásio, lá em Campina de S.P.”.225
Já no mês de abril de 1971 anunciou, a Folha Alvorada, a chegada de
novos professores: Luis Goya, para lecionar Geografia e História no Ginásio,
Vaime João Rocha, que orientaria uma turma de alfabetização de Adultos, o
Hélio, que também dava aulas no Grupo Escolar; e Antonio Carlos Moura
Ferreira, que iria trabalhar nas campanhas missionárias fora de São Félix.
Informava ainda que os professores Elmo e Hélio, como já era de conhecimento
de todos, voltaram para São Félix para mais um ano de trabalho.
Na mesma edição, anunciou que as cinco irmãs “[...] vieram para ficar
conosco e já estão em plena atividade”.226
As irmã Maria de Lourdes, enfermeira
formada e que estava coordenando a comunidade das Irmãs, era responsável pelo
224
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Dezembro de 1970. A
16.0. 06 p 2-4 225
Ibid. 226
Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A 16.0.07 p 1-
06
174
ambulatório; a irmã Lúcia se tornara a diretora do grupo escolar e orientadora do
clube de mães; a irmã Maria Noêmia, professora do grupo escolar e orientadora
do parque infantil aos sábados; a irmã Irene, responsável pela secretaria do ginásio
e também responsável pelas atividades musicais dos jovens, e a irmã Bernarda,
especialista em corte e costura, educação doméstica, a qual iria auxiliar no clube
de mães.
Observa-se, portanto, que o corpo de profissionais que deu início às
atividades docentes estava diretamente ligado à Prelazia de São Félix do
Araguaia, compondo a rede de sociabilidade do Bispo Pedro Casaldàliga.
Todavia, não eram eles suficientes para atender toda a demanda de professores
naqueles sertões, havendo necessidade de se preparar outros profissionais que
pudessem exercer tal desiderato, nos anos seguintes.
Dessa feita, passados mais de seis anos, com a crescente demanda por
preparar novos profissionais, foi organizado o já citado curso de formação para os
professores leigos, cuja maioria era „escolhida‟ pela comunidade, seguindo, assim,
o curso da história do Ginásio Estadual do Araguaia.
Com essa invenção, oito anos passados de sua edificação, pretendeu-
se melhorar a escola do sertão, conforme pode ser observado nas palavras do
poeta Dia, transcritas a seguir:
Novidade de 1978, do poeta Diá
Vou escrever um versinho
Que vai chamar atenção
De todos os moradores
Dessa grande região
Porém o que eu vou dizer
É que todos vão saber
O que é educação
Setenta e oito chegou
Trazendo uma novidade
Que é uma coisa importante
Pra nossa comunidade
Pois Deus tá nos ajudando
E estamos trabalhando
Para o bem da humanidade
É que o nosso secretário
Junto com o pessoal
Isto é: todas as pessoas
Da escola municipal
Foram lá em Cuiabá
E conseguiram para cá
Um curso sensacional
Esse curso realmente
Já está funcionando
Os professores são ótimos
Todos estão se esforçando
É nisso que a gente vê
O motivo e o porquê
Que o lugar vai aumentando
De Cuiabá também veio
Uma pessoa importante
A professora Dineva
Uma mulher elegante
Não é ela a diretora
Mas é a supervisora
175
Entre os participantes
Veio duas professoras
Lá do Rio de Janeiro
Uma se chama Tânia
E tinha um jeito faceiro
Théia, a outra se chamava
Morena que agradava
A qualquer brasileiro
Eram ótimas professoras
Ensinavam legalmente
Só a parte da didática
Que era mais suficiente
Ninguém achou um defeito
Festejava de contente
Tem os outros professores
Que eu ainda não falei
Porém não passou de tempos
Pois agora eu me lembrei
É o povo da Prelazia
A fonte da alegria
Que jamais esquecerei
Deixamos os professores
Para falar do pessoal
Que mora nos patrimónios
E é de igual para igual
É gente muito importante
E também participante
Deste cursinho legal
Veio gente de Santo Antônio
Pontinópolis e Cascalheira
Serra Nova e Porto Alegre,
Parece até brincadeira
Também lá da Chapadinha
E de Santa Terezinha,
Encheu a cidade inteira
Ficou então alojado
Todo esse pessoal
Lá no ginásio dos padres
Lugar sensacional
Pois era lá realmente
Que esse tanto de gente
Fazia o seu carnaval
Houve também um problema
Que é bom a gente lembrar
É que o dinheiro do curso
Demorou para chegar
Mas o povo da cidade
Com a sua lealdade
Resolveu nos ajudar
Essa ajuda foi assim:
Depois de se combinar
Pra quem veio dos patrimónios
Ir almoçar e jantar
Na cada do pessoal
Pois só dá gente legal
Nesse excelente lugar
Passando então oito dias
Naquela felicidade
Outras coisas melhoraram
Que pra falar a verdade
O que a gente conseguiu
Sei que todo mundo viu
Que foi por grande amizade
O pessoal da cidade
Com aquele contentamento
Logo nos ofereceram
Dinheiro e fornecimento
Pra quando o nosso sair
A gente se reunir
E fazer o pagamento
Então o próprio ginásio
Foi logo tudo arrumado
O Secretário depressa
Deixou tudo organizado
De cozinheira a fogão
E de lá ... o boião
[...]
Depois surgiu um problema
Que era um tanto complicado
O que todos nós ficamos
Um pouco preocupado
Todo mundo confundido
Mas depois foi resolvido
E ficou normalizado.
O caso foi o seguinte
Quem viu pode até lembrar
Uma firma muito rica
Como a gente ouviu falar
E que ninguém conhecia
Veio dizendo que requeria
Do curso participar
Projed é o nome da firma
Que veio nesta função
Prometendo melhorar
As escolas do sertão
176
Mas deu pra gente notar
Que eles queriam mudar
O ensino da região
Era um problema enrolado
Ninguém podia entender
Em duas reuniões
Não deu para resolver
Achamos que estava errado
Era tudo atrapalhado
Resolvemos não querer
Reuniu-se o pessoal
Para primeiro pensar
E vendo que as condições
Não davam para agradar
Então mandaram dizer
Que ninguém ia querer
Gente de outro lugar
Porque nosso curso estava
Se desenvolvendo bem
Professores excelentes
A gente tinha também
Pois não podia deixar
A nossa escola ficar
No domínio de ninguém227
.
227
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de
São Félix do Araguaia. São Félix. 1979.
A16.0.53 P7.8
177
A transcrição do relato poético de Diá foi privilegiada pelo seu valor
pedagógico. De forma clara e precisa, o colaborador sequenciou uma avaliação do
curso. Nesse sentido, observo a necessidade em se compreender a poesia enquanto
atividade política, por se tratar de um texto que apresenta a história do curso, mas
também como exemplar no relato de experiências.
O texto, rimado, em forma de cordel, revela de onde vieram as
professoras formadoras, além de Dineva, de Cuiabá, outras duas professoras, Thea
e Tânia, do Rio de Janeiro. Também foram lembrados os professores da
Prelazia.228
Entendo relevante observar que a literatura de cordel na região do
Araguaia e, em especial, as publicadas na Folha Alvorada representou um espaço
de anunciação política, com personagens reais e não fictícios, inventando um
gênero novo, por estar ligado à escola, onde o desafio oral, agora escrito,
inventava inovadora forma de compartilhar, de divulgar e enquanto registro, como
o próprio curso de formação dos professores. O cordel é um gênero pelo qual as
pessoas passavam a ter acesso às informações trovadas em linguagem poética.
Nessa medida, o cordel é dirigido para um determinado público,
normalmente conectado com sua sensibilidade, qual seja, anuncia a importância
de um determinado acontecimento sem perder o rigor da descrição, sem deixar de
lado os atores envolvidos, sem manifestar a satisfação com a atuação do coletivo,
do social e evidenciando as fragilidades do Estado. Embora a educação não fosse
um tema tratado ordinariamente pela literatura de cordel, ali assumiu importante
papel, ao relatar a importância e a riqueza do curso, mas também a união e a
solidariedade entre o povo, sem deixar de denunciar o descompromisso do Estado
em relação ao custeio da educação.
Todavia, ao tomarmos as descrições do Poeta Diá, é possível perceber
algumas dificuldades na execução do curso, que começou animado, visto ter
228
O cordel são folhetos contendo poemas populares e de autores locais, cuja venda era feitas em
cordas, varal ou cordéis, deu origem ao nome. Os poemas de cordel são escritos em forma de rima
e alguns são ilustrados. Trata de uma produção de inestimável importância para a manutenção das
identidades locais. O cordel é um dos mais fortes exemplos da corrente em que o popular adaptou
e reconstruiu um veículo erudito – a literatura escrita. Ver SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário
de conceitos Históricos. 2 ed., 2. Reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. P. 157.
178
comparecido mais de 50 professores dos patrimônios, os quais se alojaram no
antigo ginásio Araguaia. O problema das refeições foi resolvido pelos moradores
de São Félix, que, além de oferecer suas casas, forneceram alimentação aos
professores. Depois de alguns dias, a Secretaria de Educação conseguiu crédito
nas casas comerciais e as refeições passaram a ser realizadas no próprio
alojamento.
Com mais ou menos oito ou dez dias do início do curso, chegou
também um pessoal de uma firma por nome PROJED, que também trabalhava
com educação. Mas, conforme noticiou a Folha, os participantes do curso
disseram que já havia professores suficientes, inclusive duas professoras do Rio
de Janeiro. E o povo achou melhor continuar só com o curso que havia sido
iniciado, não permitindo a participação de outros.229
Os professores dos patrimônios deram sua opinião sobre o curso,
cujos registros foram publicados pela Folha Alvorada, os quais apresentamos
abaixo:
1) Com uma equipe de professores muito organizada e que
trabalha muito bem, para o melhor funcionamento do curso
e com a participação de cada aluno;
2) Este curso é necessário para toda a comunidade destes
lugares;
3) Este curso para nós tem sido uma realidade, pois temos
aprendido e conhecido a comunidade;
4) Foi uma belíssima oportunidade para aumentarmos o
número de amigos. Ficamos gostando muito do pessoal da
cidade, eles nos prestaram muita atenção;
5) O curso estava correndo otimamente, com dignos
professores e uma turma muito legal, vivendo como irmãos.
Sei que isto para nós é uma grande satisfação.230
Já a segunda etapa do curso ocorreu em janeiro, com término em 25
de fevereiro de 1979 e, por conta das chuvas, os professores que viviam além do
rio Xavantim (Xavantinho) tiveram que ser baldeados, numa canoa, por mais de 6
229
Por mais que dedicasse meu tempo à pesquisa, não foi possível descobrir que firma era o
PROJED e o que pretendiam na região. 230
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.62 p 7-8
e Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.63 p 12-
17. Também noticiou sobre o curso a edição Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do
Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.64 p 6-14.
179
horas, sem folga. Igualmente à primeira etapa, os professores falaram à equipe da
Folha Alvorada, deixando sua opinião, as quais foram publicadas conforme
verificamos a seguir:
1) O curso trouxe grande importância para toda essa região,
somos uma turma de 74 e em grupo vamos planejando
nossas atividades nas escolas, as brincadeiras, a música,
teatro, isso faz com que aumente nossa união, a nossa
coragem e segurança para essa luta contínua;
2) Trocamos muitas ideias, trabalhamos em grupo,
aprendendo que é bom ajudar os companheiros que têm
dificuldade;
3) Considero esse curso como um meio de desenvolvimento
dessa região, após a 1ª etapa, realizada no ano passado,
muitas coisas foram facilitadas dentro do ensino,
principalmente a organização e funcionamento das aulas. E
até mesmo no sentido de enfrentar as dificuldades que
aparecem nas escolas e na vida do povo;
4) O curso é importante porque dá mais segurança no ensino,
e o nível das escolas cresce e faz a gente sentir mais a
realidade e fazer os outros sentir também.231
Ao compararmos as avaliações sobre a primeira etapa com a da
segunda, percebe-se que o segundo encontro revelou aspectos que antes não
haviam aparecido, a exemplo da ampliação da metodologia, com brincadeiras,
música, teatro, trabalho em grupo, entre outros. Porém, a união do povo, o
trabalho colaborativo e o preparo para lidar com as dificuldades das escolas e da
vida se tornou, para nosso trabalho, relevantes, visto assinalar a função social da
escola na comunidade.
Em agosto de 1979, a professora Rosalina Francisca Gomes, de Santo
Antônio, compartilhou, com a equipe da Folha Alvorada, que, durante a segunda
etapa do curso, dessa vez executado por duas professoras de Santa Catarina, foi
proposto à diretora que mandasse uma delas para fazer estágio de alfabetização
nas escolas de lá. Naquele momento, ficou resolvido que iria a professora
Rosalina, que empreendeu viagem no mês de março para Santa Catarina, onde
permaneceu por três meses, em estágio numa classe de 1º ano. Segundo a mesma,
231
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.62 p 7-8,
A 16.0.63 p 12-17. Também noticiou sobre o curso a edição Alvorada (1979), Folha da Prelazia de
São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0.64 p 6-14.
180
ficou conhecendo na prática o uso de cartaz , que foi passado no curso.232
Para a
professora cursista, ela foi muito bem orientada, pois aprendeu muitas coisas que
poderiam ajudar o nosso lugar. Afirmou ainda que as técnicas que o método
utiliza são bem do nosso alcance.233
Em relação ao problema que a professora encontrava antes de fazer o
curso, era que a gente sempre tem dificuldade para encaminhar a alfabetização
das crianças, mas, depois do curso se sentiu mais segura, podendo ajudar os
companheiros nesse trabalho. Informou ainda que a viagem foi possível por conta
da colaboração do prefeito, que financiou muito alegre e satisfeito.234
Assim, concluímos esse tópico com o sentimento de que encontramos
o curso que serviu de motivador para a construção do Projeto Inajá, de formação
de professores leigos, para o qual dedicaremos parte do capítulo 4 da tese.
Algumas questões levantadas puderam ser respondidas, e as outras, parcialmente
objetadas, serão retomadas nos capítulos vindouros.
Da etapa do curso durante o terceiro ano, não foi possível obter
informações, porém, ao final do quarto ano de atividade nos meses de férias, em
1980, conforme noticiou a Folha Alvorada, 60 professores haviam se formado e, a
partir daquele momento, contavam com um diploma na mão, e um grande desafio
em construir uma escola que servisse para o “[...] filho do rico, do pobre, do índio,
do branco, do preto, da rapariga”.235
Havia, com tom imperativo, a esperança de
que os professores não se tornassem soberbos pelo diploma, pois “[...] estavam
sendo diplomados para fazer uma escola para o povo, para o povo da região”.236
Observa-se que, aproximadamente, dos 74 cursistas, 60 deles
concluíram. Considerando as dificuldades encontradas para o deslocamento e
permanência em São Félix, os limites orçamentários se deram por conta do baixo
salário, além do seu atraso e das dificuldades, no caso de pais de família, de deixar
de cuidar dos afazeres familiares, seja em relação à roça, seja em relação aos
232
No quarto e último capítulo apresentaremos os cartazes, trata-se do método de alfabetização
proposto por Paulo Freire. 233
Ibid. 234
Ibid. 235
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.14.p 1-
.19. 236
Ibid.
181
filhos. O resultado foi extremamente positivo, pois somente 14 não conseguiram
concluir o curso.
Como destacado anteriormente, a formação dos professores era de
extrema relevância, pois a invenção da escola passava pela qualidade no
atendimento aos filhos das famílias da região, e, por serem estes, em sua maioria,
professores leigos, deveriam estar preparados para os desafios que estavam por
vir, especialmente no tocante ao enfrentamento do assédio por parte do latifúndio
e igualmente por parte dos políticos, representantes do governo.
Sob os auspícios da comunicação engajada, a Folha Alvorada
publicou, no início de 1981, matéria exaltando a importância que foi o curso,
porém, alertava para que cada um deles voltasse para suas localidades, o fizessem
com o compromisso de contribuir com a disseminação de práticas ali aprendidas.
Há de se lembrar de que, para ser professor, normalmente estes eram
escolhidos pela comunidade, portanto, tinham o compromisso de liderar as ações
na comunidade enquanto enfrentantes.237
Observando que, conforme afirmou
Eliseu em entrevista à Oliveira238
:
As escolas com o acompanhamento dos agentes pastorais
tornaram-se uma segurança para a manutenção da posse de
terra. Pois as famílias se desestabilizavam com menor
frequência [...] Nas escolas acompanhadas pela Prelazia os
professores eram eleitos pela comunidade e recebiam
preparação por meio dos agentes pastorais. Para o
acompanhamento eram realizadas viagens de bicicleta com até
50 km de ida e na volta todos os dias.239
Portanto, havia uma cobrança em relação ao compromisso de cada um para
com as famílias e especialmente para com os filhos. Por ser um momento
inaugural no fortalecimento da escola, e entendendo-a enquanto pedra angular,
transcrevemos um excerto da matéria:
237
O termo enfrentantes foi adotado pelo bispo, em finais da década de 1970, para referir-se às
lideranças que, com o apoio da prelazia, haviam de alimentar a comunidade onde atuavam, através
de atitudes voltadas para amenizar os problemas por meio do trabalho em equipe, de luta, de
enfrentamento aos interesses dos tubarões representantes do latifúndio e também das
determinações dos políticos, o que só ocorreria se houvesse união, fé e esperança. 238
OLIVEIRA, Meire Rose dos Anjos. Op. cit., p. 164. 239
Ibid. A afirmativa de Eliseu permite-nos afirmar que a escola tinha papel fundamental no
processo de resistência aos desmandos praticados contra as famílias no Araguaia-Xingu mato-
grossense e como pedra angular da sociedade no tempo.
182
Durante quatro anos, janeiro e fevereiro foi um movimento
danado de professores de todos os patrimónios chegando a São
Félix. Era o curso de Professores, um curso da Secretaria de
Educação do Estado, para formar professores de 1º grau, com
maior segurança no trabalho de educar. Neste ano acabou o
curso, com muita animação, muito choro, muita despedida.
Sessenta professores se formaram e estão agora com bastante
ideia para levar o trabalho de suas escolas. Discutiram muito e
viram que não adiantava um diploma na mão, se não contarem
[com] a participação de pais e alunos. Viram que a escola é
escola se, juntos, forem construindo todo ano.240
Assim, concluímos o tópico afirmando que, do ponto de vista
histórico, não dá para afirmar a existência de uma escola se não a considerarmos
enquanto processo, até porque, se ela se manteve de pé ao longo dos tempos foi
por trazer em si o poder de se transformar de acordo com o tempo. Assim, pensar
a escola enquanto pedra angular da sociedade, a pensamos como uma instituição
capaz de se reinventar. Assim, abrimos o próximo tópico igualmente afirmando
que essa instituição também teve (tem) o poder de transformar a cultura, embora
seja essa uma tarefa complexa, como veremos a seguir.
2.3.1 – A escola revela preconceitos
Como já foi mencionado anteriormente, para que o curso fosse
executado, inúmeros foram os problemas, desde dificuldades financeiras até o
assédio de empresa privada (Projed) tentando, de certa forma, atrapalhar o
desenvolvimento do curso.
Mas, na mesma página em que anunciava a conclusão do curso, a
Folha Alvorada revelava uma problemática para a qual, durante toda a década de
1980, dedicaria inúmeras outras matérias. Uma em especial é merecedora de nossa
reflexão, pois não teria como mudar, independente das relações de poder
estabelecidas entre os locais, regionais e para além das fronteiras Araguaia –
Xingu. Trata-se do „problema‟ do professor negro que, conforme publicado ao
término do curso, os professores diplomados teriam como um dos maiores
desafios, convencer os pais de família de que o fato de ser negro não poderia
240
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14 p 15-
19.
183
servir de mote para sua condenação sumária, como pode ser observado em suas
observações publicadas na Folha Alvorada edição dos meses de fevereiro e março
de 1981:
- Alguns pais insistem para mudar o professor de seus
filhos, porque o professor é negro;
- Outros pais não acreditam no professor negro e vão
conversar diretamente com o diretor;
- Outros ainda ensinam respostas a seus filhos, falando da
cor da pele241
.
Ao tomar a matéria como ponto de partida para pensar o processo
histórico pelo qual passou e ainda passam as famílias que fixaram morada na
região Araguaia-Xingu, levando-se em conta sua origem e condição social, não
nos permite pensar o padrão de família burguesa e branca, a exceção das que,
naquele início de década chegavam da região Sul do Brasil com o mesmo
propósito, viver da terra. Assim, uma pergunta se faz importante: se a maioria das
famílias não era branca, que razões poderiam ter para alimentar preconceito racial,
que aqui se limita ao negro, porém, como já mencionado anteriormente, era
também estendido ao índio, a exemplo do trabalho realizado no Ginásio Estadual
do Araguaia, em 1971?
A resposta poderia ser dada sob o viés econômico, porém, penso que
as reflexões de Edward Said se ajustam suficientemente para entendermos esse
paradigma:
[...] o preconceito racial é fruto do imperialismo, pois ele
consolidou a mescla de culturas e identidades numa escala
global. Mas, seu pior e mais paradoxal legado foi permitir que
as pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo,
exclusivamente brancas, pretas, ocidentais e orientais. No
entanto, assim como os seres humanos fazem sua própria
história, eles também fazem suas culturas e identidades étnicas.
Não pode negar a continuidade duradoura de longas tradições,
de moradias constantes, idiomas nacionais e geográficas
culturais, mas parece não existir nenhuma razão, afora o medo e
o preconceito, para continuar insistindo na separação e distinção
entre eles, como se toda a existência humana se reduzisse a
isso.242
241
Ibid. 242
SAID, Edward W. Op. cit., p. 231.
184
Ao publicar a matéria naquele momento importante, quando os
professores estavam se formando, é possível afirmar que havia intenção clara de
fazer com que eles e os demais perdessem o medo e, por meio de sua ação nas
comunidades e em comunhão com as famílias, pudessem contribuir para a
transformação da cultura que os prendia a alimentar o preconceito.
Assim, a invenção da escola em finais do século XX no Araguaia-
Xingu exibe, com bastante vigor, desafios que emolduram sua longa e difícil
função, a de problematizar sua matriz sócio histórica, não bastando ter braços
fortes e saber lidar com a terra, mas prover condições para, numa busca constante,
dominar as letras e os valores, na vivência de um currículo que considerasse suas
práticas. Todavia, essas „inovações‟ de nada adiantariam se não desmontasse o
„modelo‟ idealizado por algumas famílias em relação ao professor – branco, culto,
cumpridor de seus „deveres‟ respeitando o mando dos governantes. Essa prática
era uma das faces da violência já esboçada anteriormente e que, adiante, será
melhor delineada.
2.4 - Violências além e aquém das cercanias da escola
Violência é toda violação dos direitos humanos, é tirar o índio
da sua terra, é deixar sem terra o lavrador, as famílias sem
moradia, os trabalhadores sem serviço, as crianças sem escolas,
os doentes sem atendimento, a carestia, o salário miséria,
desprezar o negro, o velho, a mulher, a criança. Violência é a
vingança, a prostituição, o desrespeito.243
Ao inaugurar esse tópico aludindo sobre a violência, o fazemos por
meio da dicotomia da Figura 9, a seguir, pois, ao tempo em que apresenta um
homem empunhando um fuzil elevando-o ao alto, como num gesto de exaltação,
em ato subversivo, revela o símbolo da paz. Portanto, assim enxergamos a
invenção da escola, enquanto guerra e paz, em movimento de lapidação
permanente, fazia-se presente na vida da comunidade entre o Araguaia-Xingu no
tempo.
243
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.02 p 08-
14 Adaptação do texto sobre Violência o que é?, publicado em alusão aos 20 anos da Campanha
da Fraternidade (1983), O inimigo da irmandade é a violência.
185
Entretanto,
haveremos de entender que,
assim como qualquer outra
instituição, a escola, seja
naquelas décadas quanto nas
seguintes, com alcance aos
dias atuais, está „sujeita‟ a
lidar diariamente com
incontáveis situações-
problema que envolve atos de
violência, oxalá se todos os
ocorridos resultassem em
aprendizagem, sem que
nenhum de seus atores,
tampouco seu patrimônio
físico, fosse prejudicado, bem
como um ato de violência
fosse revidado com seu
contraditório, neutralizando,
assim, uma possível tréplica.
Todavia, como, naquele
momento o cenário não era o
de não violência, a escola passou a ser palco de tramas, como observaremos no
episódio a seguir.
No mês de junho de 1983, noticiou a Folha Alvorada que Justino
Soares Nava244, aluno da 6ª série, em estado de embriaguez, começou a fazer
bagunça no corredor da escola e também em sala de aula, promovendo
quebradeiras. Mesmo que o professor Vilson Pereira o convidasse a se retirar,
244
Colaboraram com a ação depredando a escola as alunas Maria Helena Pereira Soares, Joselilda
Siqueira Carvalho, da 7ª série, e Justino Soares, da 6ª.
186
antes que o discente saísse, acabou brigando com os colegas e ofendendo a todos
que ali estavam.245
Do lado de fora da escola, juntou-se a outros alunos e alunas, dentre
eles o cabo Castro, e começaram a quebrar os vidros e as telhas da escola.
Embora houvessem outros alunos, os policiais militares não fizeram nada, já que o
cabo estava apoiando o ato de vandalismo. O diretor Hélio Fernando de Souza
tentou conversar, mas o grupo continuava agressivo e não queria dialogar.
Depois do ocorrido, o prefeito pediu a presença da polícia para
guardar a escola. No dia seguinte, foram chamados os pais dos alunos
baderneiros, como afirmou a matéria, e, dentre outros o Sr. Pedro Pereira da Silva,
que imediatamente começou a gritar e a ameaçar o diretor. Fora da escola havia
um grupo de alunos, incentivados por Geneci, que, para animar, levou um litro de
pinga, prometendo colocar fogo na secretaria.
Afirmou a matéria que os “[...] policiais estavam ali, viam tudo de
perto, mas nada faziam”.246
Mesmo que os professores tivessem pedido apoio,
nada podiam fazer, pois tinha ordem do Major Costa Neto de atuar na parte
externa da escola.
Mas, pelo visto, havia um combinado entre os mandantes e os
mandados, afinal, como havia um grupo bebendo e ameaçando atiçar fogo na
secretaria, fora da escola, não seria motivo para que os „guardiões‟ da ordem
interviessem? De acordo com a notícia, no interior da secretaria da escola
cometeram o maior quebra-quebra, derrubando armários, mesas, arquivos, entre
outros.247
Compete-nos perguntar: quais eram os motivos destes terem se
matriculado na escola? Que razões fizeram com que promovessem a confusão? O
que pretendiam ao se embriagar para iniciar o conflito? Por que envolveram
outros alunos (as) para promover a quebradeira na escola? Seria uma insatisfação
com os professores? Com a escola? O que justificava a participação de um cabo
da polícia incentivando a ação? Por que os demais policiais, mesmo sendo alunos
245
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.05 p 08-
14. 246
Ibid. 247
Ibid.
187
da escola, não tomaram partido no sentido de preservar a integridade dos
profissionais e do patrimônio público?
Nenhuma resposta às questões acima justificaria tal atitude, afinal, a
escola não deveria ser, em princípio, local a ser cuidado por todos? Havia passado
pouco mais de uma década de sua edificação, com o propósito de contribuir para a
„libertação do povo‟ da opressão. Estariam já superadas tais prerrogativas? Se
tomarmos a resposta oferecida pelo autor da matéria, percebemos que a escola
vivia plenamente seu desafio, pois, “[...] tratava-se de uma ação orquestrada por
um grupo pertencente ao partido político PDS que ainda não tinha aceitado a
derrota nas últimas eleições”.248
Confere arregimentar uma questão: teria sido a escola incapaz de
oferecer formação suficiente aos alunos para que pudessem discernir o certo do
errado? Seria a consciência sócio histórica capaz de afastá-los da vala comum dos
ignorantes, fazendo-os entender que a escola ali edificada não tinha sido fruto do
acaso mas desejada, pois muitos tiveram que lutar por ela? Essa questão será mais
bem elaborada e resultará em reflexões pertinentes no quarto capítulo da tese,
quando abordaremos os „limites‟ da história ensinada.
Voltando para o episódio, é possível afirmar que, quando a conquista
não se dá pelo argumento, a violência física impera. No dia 27 de agosto de 1983,
o presidente do PDS e o diretor da escola Estadual, Sr. Gaspar das Neves,
estiveram na churrascaria do senhor Raimundo Viana, fazendo provocações e
quebradeiras, e dizendo que não gostavam da gente da prelazia. Isso aconteceu
depois de poucos dias de a filha do senhor Raimundo, que era aluna da escola, ter
lido, perante a 1ª dama do Estado, um abaixo-assinado denunciando a
desorganização e arbitrariedade na escola249.
Por uma conclusão prévia, conferimos à violência qualquer ato
humano contra outro humano ou a qualquer ser vivo, quando resulta em
satisfação, sem mensurar os efeitos que causará a outrem. Embora não esteja
entre nos propósitos mapear a violência na escola inventada no Araguaia-Xingu
mato-grossense, durante e após a ditadura militar, penso que necessitamos ampliar
nosso olhar para mapear quais eram as práticas mais comuns de violência entre
248
Ibid. 249
Ibid.
188
professores e alunos, entre professores e pais e, acima de tudo, procurar desvelar a
causa.
Igualmente, uma narrativa sobre a escola brasileira da década de 1980
pode ignorar o quão violento foi o Estado, à época com, aproximadamente, sete
milhões de crianças entre 7 e 12 anos, as quais não tinham acesso à escola. Dentre
as causas podem ser destacadas: falta de instituições escolares, carência de
material didático, baixa remuneração dos professores, falta de condições
financeiras das famílias para manter seus filhos frequentando uma escola.
Como se não bastasse, a década de 1980 foi marcada pela crise
brasileira, pois o país tinha feito dívida de quase 90 bilhões de dólares com o
Fundo Monetário Internacional, pauta de importante matéria publicada pela Folha
Alvorada, no mês de abril de 1983, que anunciou ainda que o citado Fundo havia
concedido novo empréstimo ao Brasil, porém, exigiu medidas antipopulares,
como: a) cortes na ajuda à agricultura, com aumento dos preço dos alimentos:
arroz, milho, feijão, carne, leite, dentre outros; b) desvalorização do Cruzeiro,
aumentando, assim, o custo das indústrias que vendiam matéria-prima,
equipamentos e serviços, sobretaxando os produtos a serem vendidos aos
brasileiros; c) corte nos investimentos e gastos públicos e, com isso, as indústrias
estatais teriam sua produção diminuída, aumentando o desemprego, o que foi
agravado pelos reajustes menores do salário do funcionalismo público; d)
exigência de taxas mais elevadas para energia elétrica, água, passagens de
transportes coletivo, telefone, gasolina, gás, querosene e muitos outros serviços e
produtos.250
Nesse contexto de pobreza e impotência, vivido pelas famílias
desassistidas da terra, do trabalho e do dinheiro, restava-lhes procurar formas de
sobrevivência, como ocorreu quatro anos antes da publicação da matéria sobre as
medidas adotadas pelo governo, ao lançar mãos de empréstimos avultantes para
palear as mazelas inventadas para o Brasil.
Para desviar a atenção da opinião pública sobre a „falência‟ do sistema
de governo militar, a Folha Alvorada denunciou outra invenção em marcha, esta
bastante anunciada, porém, pouco conhecida, a invenção do Nordeste, lançada
250
Ibid.
189
pela TV. Globo, „Nordeste Urgente‟ contra a seca, campanha que teve a recusa de
Dom Aloísio Lorcheider, arcebispo de Fortaleza, de celebrar a Missa de sua
abertura. A matéria foi composta por um poema de autoria de Zé Vicente, de
Crateús, Ceará, aqui transcrita, por entender que ele auxilia a percepção da trama
pela qual passava o governo brasileiro, vitimando a maior parte da população
oprimida251
:
É com a alma sofrida
e o coração pesaroso
que vou gritar em poesia
o drama mais doloroso
do meu povo nordestino
retirante e peregrino
num país tão valoroso
É duro, meu companheiro
cantar a dor em poesia
Só faço porque eu creio
que ainda vai vir o dia
da justiça e da razão
quando o povo do sertão
levantar-se em valentia!
Sinto uma grande vergonha
e uma dor no meu peito
ao ver o nordeste inteiro
humilhado deste jeito
pobres estirando a mão
para o resto da nação
pedindo esmola e respeito
Meu Deus, veja esta miséria
abra os olha os do meu povo
Faça que a nossa esperança
não gore igualmente um ovo
Que a seca seja uma escola
pra gente ver que com esmola
ninguém faz nordeste novo.
Já cantou Luiz Gonzaga
num verdadeiro baião
que punhado de esmola
„para um homem que é são
ou lhe mata de vergonha‟
cria confusão medonha
Desculpem se falo assim
me perdoem por caridade
pois eu sei que muita gente
tem reta e boa vontade
Mas será que desta forma
com remendo e com reforma
vem mudança de verdade?
Todos foram avisados
pelos nossos cientistas
que cinco anos de seca
já estavam às nossas vistas
Por que é que só agora
vem esmola e gente chora?
Não é bom mudar de pista?
Muitos sabem o que fazer
Pra acabar com nossa fome
Mas os homens do poder
passando a eleição, se somem
e usam a nossa miséria
a seca e coisa mais séria
pra terem dinheiro e nome.
Se tem político inocente
que não sabe o que fazer
pergunte ao povo reunido
e ele vai responder:
Por que o doutro não escuta
a voz do povo que luta
só acredita em você?
Nem precisa se abalar
pra visitar o sertão
pois o gasto é tão grande
que consome um dinheirão!
Me lembro do presidente
veio com avião e gente
251
Sobre a invenção de o Nordeste ler ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do
Nordeste e outras artes. 4 ed. Recife; São Paulo: FJN; Massangana; Cortez, 2009.
190
„ou vicia o cidadão‟
Em cinco anos de seca
o silêncio foi total
Parece até que o nordeste
não é mesmo nacional
Foi preciso que uma enchente
no sul, mexesse com gente
em campanha sem igual
As notícias que se espanham
sobre o nordeste dá medo
retratos de gente pobre
que de manhazinha cedo
pega lagartixa e rato
e arranca raiz do mato
come sem pedir segredo.
Gente morrendo de fome
choro na televisão
abalam as damas mais ricas
dão um choque na nação
Parece até que é surpresa
séculos de fome e dureza
nas costas do meu sertão.
Cadê as promessas feitas
desde Dom Pedro Segundo?
o dinheiro sumido
aos olhos de todo mundo
Gente rica aproveitando
e aos pobres enganando
prometendo mudo e fundo
Vocês acham que estas coisas
não é para revoltar?
Campanhas e mais campanhas
e a propaganda no ar?
o estudante e o doutor
mulher de governador
todo mundo a se mostrar?
parecendo procissão.
Acredite em nossas cartas
nos abaixo-assinados
confie em nossa palavra
e no povo organizado
em grupo e no Sindicato
pobre na rua e no mato
que o Nordeste será mudado.
É o jeito, por enquanto
estender a nossa mão
e agradecer as ajudas
dadas de bom coração
Mas isto não nos consola
chega de promessa e esmola
queremos justiça e chão
Trabalho e salário justo
é solução verdadeira
barragem e cacimbão público
é saída de primeira
Dinheiro administrado
pelo povo organizado
é a mais correta maneira
e não venha me dizer
que esta ideia é avançada
e que a força do governo
possa ser ameaçada
faz tempo que diz isto
agora apensas eu insisto
que ela deve ser lembrada
Faço um pedido aos poetas
ao Jovem, ao trabalhador
às mulheres reunidas:
„Vamos gritar com fervor
por justiça e união
por terra, escola e feijão
O NORDESTE TEM SEU VALOR!‟
Ampliamos, assim, o campo de análise daquele contexto, somado ao
entreguismo das terras públicas a baixos preços, e incentivos fiscais aos grandes
empresários, favorecendo o latifúndio, a sujeição ao Fundo Monetário
Internacional e colocando em risco a soberania nacional. Como forma de desviar o
foco, atuou o governo por meio dos grandes meios de comunicação a construção
191
de um discurso – a invenção do Nordeste – na realidade, uma tentativa de
ludibriar a opinião pública com uma campanha forjada nos estúdios da TV
Globo.252
Parece-nos que a denúncia sobre a invenção do Nordeste na ótica da
Folha Alvorada pronunciava em alto e bom tom as revelações que faria, duas
décadas depois, Albuquerque Jr. sobre as mazelas para além e aquém dos limites
territoriais: “[...] o Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais,
políticos ou econômicos, apenas, mas principalmente, construções imagético-
discursivas, constelações de sentido”.253
Sobre a seca nordestina, a Folha Alvorada anunciou, em outubro de
1983, que o ministro Mário Andreazza afirmara que a seca atingira 24 milhões de
nordestinos e que seria necessário uma resposta eficaz, cortando o mal pela raiz,
tornando a economia nordestina resistente às secas e exigindo ainda uma resposta
de emergência.
Todavia, denunciam os redatores da matéria que a seca tornou-se, no
Nordeste, um excelente negócio para os políticos, que periodicamente se
revelavam como salvadores do povo, distribuindo comida para a massa faminta.
Afirmava ainda que os bispos do Nordeste, juntamente com lideranças da região,
técnicos e especialistas fizeram um estudo sobre a seca e demonstraram ser
possível combate-la através de soluções simples, fáceis e populares, dentre elas,
afirmou Dom Fragoso, bispo de Crateús: 1 – a solução para o problema passava
pelo atendimento básico aos trabalhadores rurais, oferecendo-lhes trabalho e
abastecendo a região com mercadorias, vendidas a preço reduzido, e água. Com
esse caminho se respeitaria a dignidade do homem do campo que queria ganhar o
pão com o suor do próprio rosto.254
252
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de 1983
A16.2.01 p 12-18 e P13.15. Parece-nos que essa fórmula continua sendo aplicada no tocante ao
governo brasileiro, fazer com que a opinião pública se coloque a serviço dos interesses do capital.
Refiro-me à atual conjuntura por que passou o país com o episodio das “pedaladas fiscais” que
resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Um ato violento contra o povo e à
democracia, cujos desdobramentos ainda serão sentido nas próximas décadas. 253
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Op. cit.. 254
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.2.09 p 15-
17. Parece-nos que parte dessa solução só se efetivou recentemente com as obras de transposição
do rio São Francisco com os governos progressistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e
Dilma Rousseff (2011-2016). Porém, o projeto foi lançado em 2007 como plataforma de gerar
emprego e renda ao nordeste do país com a construção de canais para o deslocamento de parte das
192
Que similaridades e diferenças podemos revelar entre a realidade
vivida pelas famílias de posseiros, retirantes e peões no Araguaia-Xingu mato-
grossense com a vivenciada pelas famílias espalhadas pelo Norte/Nordeste
brasileiro? Aquele que, a partir da década de 1980, tornou-se conhecido (vendido
como produto recheado de estereótipos) da maioria dos brasileiros, seria o
Nordeste da seca, da miséria, da falta de infraestrutura, de escolas, de atendimento
à saúde?
O quadro montado pelo texto poético de Zé Vicente permite entender
um pouco a resistência à propaganda acerca daquela invenção do governo militar,
apoiado pela grande mídia, em especial pela TV Globo. Acentua a crítica pedindo
ao povo para abrir os olhos, e que a seca deveria ser compreendida como uma
escola, cujos ensinamentos levariam a população a perceber que aquele
movimento aprisionaria o trabalhador aos grilhões da esmola e que as campanhas
não faria um Nordeste novo.
Alertava ainda que a imagem das pessoas que apareciam chorando na
televisão, morrendo, passando fome ou se valendo de lagartixas e ratos e
arrancando raiz do mato para comer sem pedir segredo, era uma farsa. Ao forjar a
trama na construção deste discurso imagético e político, que acionava a comoção
social, abria espaço para os ricos de se aproveitarem da miséria dos pobres,
prometendo o que não iriam cumprir. Esse também foi o argumento utilizado pelo
governo para justificar a contração de novos empréstimos junto ao Fundo
Monetário Internacional.
Essa estratégia não passava de um produto novo inventado nas costas
dos pobres do sertão. A fome, a má distribuição de renda, a seca nordestina, assim
como as enchentes e a violência Estatal (paraestatal) no Araguaia, não eram
novidade para ninguém, uma vez que a novidade da vez se prendia à intenção da
TV Globo de inventar o Brasil dos ricos e o Brasil dos pobres, porém, num
amálgama de falsa igualdade, pois, afinal, não seríamos todos brasileiros?
Seguiram-se as diferenças, as quais não se circunscreviam à questão
geográfica, econômica, cultural, mas avançava sobre todas as diferenças pelo
discurso, como afirma Albuquerque Jr. “O Nordeste está em toda parte desta
águas do rio atendendo aos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia,
Sergipe e Piauí.
193
região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos
que são subjetivados como características do ser nordestino e do Nordeste”.255
,
igualmente, em tempos presentes, forjados no discurso o vale dos esquecidos,
mais uma vez justificando a criação de mecanismos para fomentar investimentos à
monocultura256
.
Assim, as violências foram democratizadas antes mesmo que o povo
pudesse entender as regras do jogo, cobradas a alto preço. Contra essa banalização
da violência, a escola haveria de fazer as vezes de laboratório de aprendizagens,
como observado em São Félix do Araguaia, em finais da década de 1970. Não se
trata de um fato isolado, mas um dentre outros tantos ocorridos nas cercanias das
escolas do Brasil Central.
Em abril de 1979, a Folha Alvorada publicou um triste episódio que
aconteceu nas proximidades do Ginásio estadual, no dia 23 de março:
Um garoto que vendia bolo na rua, para comprar sua pasta
escolar, ia passando perto do ginásio do estado, quando uns
meninos o chamaram para comprar seus bolos. Como ele não
podia entrar no pátio encostou-se à cerca, para que os alunos,
que estavam dentro, pudessem comprar. Nisso chegou o senhor
Nelson, da cantina, e violentamente derrubou a bacia,
espalhando no chão os bolos que ele vendia. Todo mundo ficou
indignado com esse ato de egoísmo do sr. Nelson. Os alunos da
7ª série A trabalhavam na aula de português, fazendo frases
sobre várias palavras. A respeito da palavra „violência‟, um
aluno escreveu: „o homem usou da violência e derrubou a bacia
de bolo do menino‟.257
A matéria chamou atenção para o fato de ser, 1979, o ano
Internacional da Criança, “[...] um adulto, pai de família, faz isso com uma pobre
criança indefesa, que trabalha para ajudar sua família a comprar o pão de cada dia.
Está certo? Isso pode continuar, chamava a atenção dos leitores da Folha
Alvorada”258
255
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Op. cit., p. 307. 256
Haveremos de dedicar esforços para revelar as políticas públicas adotadas pelo governo como
desdobramento da presente tese. 257
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979 A16.0.65 p 06-
10. 258
Ibid.
194
Ao chamar atenção do leitor para o fato de a violência também ser
praticada por um pai de família contra um menino indefeso, o propósito era
utilizar o evento para sensibilizar as famílias, a fim de se evitar a reprodução de
mais atos de violência, que, pelo visto, não se restringiam aos filhos das famílias
vitimadas pelas atrocidades praticadas pelos tubarões e grileiros, com o apoio do
governo, contra posseiros, indígenas, peões, mas sob o jugo do opressor
mandatário, como foi o caso da depredação da escola em Ribeirão Cascalheira,
quando se praticou violência contra os de mesma condição social, alimentando as
mazelas sociais, acrescido da violência praticada pelo senhor Nelson contra o
menino que vendia bolo.
Lançamos aqui mais uma questão: até que ponto a escola de educação
básica se tornou vigilante o suficiente para que suas práticas, igualmente, não se
transformassem em instrumento de perpetuação da violência?
Tais circunstâncias nos permite refletir sobre os apontamentos de
Fanon: “O desclassificado, o esfomeado, é o explorado que depressa descobre
apenas importar a violência. Para ele, não há compromissos, não há possibilidade
de arranjos”.259
Ou os oculares daquele episódio assistiam mais um desfecho de,
ao usar da violência, os colonos reivindicassem, do colonizador, o seu lugar,
tomando a escola espaço para manifestar seu poder, mediocrizado pela banalidade
do propósito, afrontando aos professores sob o mando de grupo político. E ou
igualmente o Sr. Nelson, por um naco de lucro sob a venda, não aceitar um
concorrente para seus parcos negócios de venda de lanche escolar, estratégia
própria do opressor, não precisar estar presente na ação, mas, incentivar o
oprimido a se oprimir. Seguimos revelando outros episódios no tópico seguinte.
2.5 - Uma professora de história entre a rebeldia e a punição
O que o colonizado viu na sua terra é que podia ser preso,
espancado ou morrer de fome impunemente; e nunca nenhum
professor de moral, nenhum padre, recebeu tais golpes em seu
lugar ou repartiu com ele o seu pão.260
259
FANON, Frantz. Op. cit., p. 24. 260
Ibid., p. 27
195
Um episódio publicado pela Folha Alvorada nos chamou atenção,
talvez essa fosse a intenção da matéria, fazer com que os demais professores que
tivessem acesso ao periódico conhecessem o fato e, a partir de reflexão, pudessem
formar sua opinião acerca das „rebeldias‟ e „indisciplinas‟ dos alunos, quando
estes agiam distantes do olhar disciplinador dos professores. Igualmente, poderá
suscitar dúvida sobre o padrão formativo disciplinar adotado nas décadas que
antecederam a ditatura militar, bem como durante sua vigência. Existia outra
forma de „disciplinar‟ o aluno que não o uso de palmatória? De prostrá-los de
joelhos em tampas de garrafas ou caroços de milho? Vejamos o ocorrido.
A professora de história, Edivani, chegou à classe da 5ª série B no
momento em que os alunos estavam em outro local, trabalhando. Logo, ela viu
uns cadernos e umas vassouras dependurados na janela. De imediato, ela quis
saber quem era(m) o(s) autor (e)s daquela presepada, e ameaçou a todos de
suspenção das aulas, caso não revelassem. Os alunos, por sua vez, começaram a
fazer jogo de empurra-empurra, uns para com os outros, não apontando o autor
das ações. Demostrando ser esta uma boa tática para fugir à punição, sabiam que a
união era uma forma de resistência, pois vivenciavam, em seu meio, a necessidade
dela. Essas eram as orientações levadas pela Folha Alvorada ao povo que, para
conseguir êxito perante o opressor, deveria ser unido. Porém, o resultado não foi o
desejado.
A confusão resultou em uma portaria suspendendo, por cinco dias, o
aluno Urandi. Ao saber do fato, sua mãe foi à escola para obter esclarecimentos
sobre o caso. Porém, a mesma não encontrou o diretor, tampouco o vice-diretor ou
o secretário, por estarem fora, cuidando de seus negócios. A mãe do menino,
Dona Onésia, apelou para o Delegado de Ensino, que disse desconhecer o
ocorrido, continuando o menino suspenso.
Como forma de justificar a suspensão, alguns professores disseram
que o motivo principal fora o fato de a mãe do menino ter ido „discutir‟ com o
Delegado de Ensino. Diante dos ocorridos, Dona Onésia indagou: será que uma
mãe não tem o direito de ir à escola e saber o que está se passando com seu filho?
196
Onde está a comissão de Pais e Mestres e, por fim, que nada se podia esperar de
uma Comissão que não tinha sido eleita pelos pais e professores.261
Observa-se que a matéria apontava para questões relevantes ao
funcionamento da escola, a primeira delas diz respeito ao preparo dos professores
para lidar com as „travessuras‟ dos alunos, e a segunda está ligada ao fato de, se
uma escola se pautava por formas democráticas de organização em seu processo, a
mãe, ao procurar os gestores da escola, a quem cumpria, juntamente com a
professora, fazer e aplicar a portaria suspendendo o aluno de assistir aula, estava a
desempenhar seu papel diante da instituição, lançando mão do diálogo como
premissa para a solução de impasses. A terceira diz respeito à denúncia dos
gestores estarem fora da escola, cuidando de interesses particulares. Por fim, a
matéria denunciou que a Comissão de Pais e Mestres, por ter sido indicada e não
eleita pelos segmentos, não se revestia do caráter democrático.262
Percebe-se, portanto, uma prática comum na organização das
instituições escolares, ocasião em que os opressores usam do discurso e das
estruturas da democracia na prática de autoritarismo.
Igualmente, essas práticas autoritárias se revelavam em maior
grandeza quando não havia estabilidade nas relações contratuais para com os
professores e demais profissionais da educação, facilitando a dispensa, a exemplo
do que fez o prefeito de São Félix do Araguaia, Aldenor Milhomen, em outubro
de 1980, demitindo os professores Francisco de Assis Rodrigues, Maria Helena
Sousa Silva, Márcia Rosa Rodrigues, Argemiro Pereira Aquino, Iolete Rodrigues
de Menezes, David Gomes Barbosa e Salomé Neta Vasconcelos Luz.
O afastamento ocorreu por conta de os professores terem reivindicado
aumento de salário, pois, além de há tempos receberem somente $ 3.404,00 (três
mil, quatrocentos e quatro cruzeiros), havia constante atraso no seu pagamento.
Depois de muito reclamar, receberam, na escola, a visita do prefeito, porém a
resposta foi que só iria aumentar o salário se sobrasse dinheiro, e quem estivesse
achando ruim, era só sair.263
261
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983. A 16.2. 06 p 14-
15 262
Ibid. 263
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.10 p. 10-
11
197
Passados alguns meses, os mesmos docentes foram à prefeitura, e lá,
foram atendidos pelo filho do prefeito, senhor Sidney, que era o tesoureiro da
prefeitura, e também pelo Secretário de Educação, senhor Delfino, que,
imediatamente mandou aprontar a demissão desses professores. Depois de
despedidos, o secretário disse que iria pagá-los na escola, porém, ao chegarem lá,
receberam a notícia de que deveriam receber na prefeitura.
Estando na escola, o secretário viu que as crianças não estavam
gostando da demissão, pois estavam acostumados com os professores há muito
tempo, demonstrando o descontentamento pelo choro. Naquele instante, o
secretário passou a gritar brutalmente com as crianças, ordenando que se calassem
e dizendo que os professores estavam saindo porque não gostavam de seus alunos.
No lugar deles haviam sido contratados outros docentes que não tinham qualquer
experiência no magistério.264
Anos difíceis foram aqueles que, ao contrário de terem seus direitos
respeitados, os professores foram destituídos de suas funções, substituídos
igualmente como faziam com os peões das fazendas. Concluímos esse tópico com
uma frase emblemática escrita no prefácio de Os condenados da terra, de Jean-
Paul Sartre: “[...] atiremos este livro pela janela. Para que o havemos de ler, se não
está escrito para nós?” Acrescentamos que, se não fosse para atender às
necessidades da comunidade, para que a escola?
2.5.1 - A escola que pune aluno pune professor
A massa colonizada escarnece desses mesmos valores, insulta-
os, vomita-os com todas as suas forças.
Frantz Fanon265
No início do ano de 1981, Pedro Casaldáliga, em carta ao povo,
advertia para os acontecimentos ocorridos naquela escola devia se tornar
conhecido por todos, afirmando que as autoridades de Canarana, de Barra do
Garças e de Cuiabá expulsaram de vez os professores e funcionários das escolas
de Ribeirão Bonito, Cascalheira e do sertão, substituindo-os pelo pessoal da
264
Ibid. 265
FANON, Frantz. Op. cit., p. 27.
198
política do governo, e que, para esse desiderato, usaram da força policial armada,
como se existisse um clima de guerra, e que essas falsas autoridades tomaram as
chaves das escolas e impuseram novos professores e uma nova diretoria, sem
atentar ao direito e às reclamações dos pais, dos alunos e dos antigos professores e
funcionários.266
Denunciou ainda o Bispo que, durante a diligência utilizaram,
inclusive, de “[...] metralhadoras com o objetivo de disseminar o terror e o
medo”267
, chegando até mesmo a vasculhar duas casas no Ribeirão Cascalheira
em busca de armas ou qualquer objeto que lhes parecesse suspeito.
Em resposta às incursões, afirmou o bispo, enquanto profeta da
esperança, que “[...] o destino do povo não é a derrota e que o povo caminha para
a libertação, não sendo para a morte que caminhamos, mas sim para a vida‟ e que
„os políticos do governo, os grandes do dinheiro e do latifúndio, os donos das
fardas e das armas, podem achar que eles mandam e vencem”.268
Da certeza do douto poder suscita a dúvida e floresce sua contradição,
a expressão podem achar, e, que mandam e vencem coloca em questão o poder
impositivo dos latifundiários, da força policial ali arregimentado pelo Estado, que,
sem qualquer parcimônia, elegia a escola como instituição a ser mantida pelo
domínio dos opressores, como percebemos na narrativa poética de Maria Helena
Rocha de Andrade, moradora de Santo Antônio do Rio das Mortes:
Meus irmãos lá da roça
prestem-me bem atenção
que aqui está um poema
contando da chegada
do Secretário de Educação
Chegou-se em Santo Antônio
Dia 10 de fevereiro
As sete e meia da noite
Ouviram um barulho de voadeira
Era o Secretário chegando
Com mais uns companheiros
Quando foi no dia 11
266
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 2-19
Carta do Bispo ao povo 267
Ibid. 268
Ibid.
199
Apareceu a cara na escola
Par conversar com os professores.
Logo na mesma hora
Mandou avisar os pais
Que tinha reunião às dez horas.
Na hora da reunião
Era o que a gente só ouvia
O Secretário dizer
Que professor não podia
Participar da reunião
Do povo da prelazia.
Veja meus irmãos
As coisas como é que tá:
Agora por que é professor
Não pode participar.
Eu acho que eles querem
Que o PMDB perca
Pra o governo em nós montar.269
Distante da soberba de eleger a escola enquanto instituição
centralizadora da organização social e única protagonista das decisões nos
patrimônios e sertões do Brasil Central, da década de 1980, porém, apraz-nos
entender que ela traduziu em seu entorno lutas pelo poder, marcadas por
incontáveis acontecimentos, cuja grandeza sustenta a tese de que as mesmas se
tornaram centro nevrálgico das decisões políticas, seja no tocante à construção de
um anteparo e fortaleza para o propósito da permanência das nações indígenas e
famílias de posseiros ali residentes e aos chegantes, com o apoio da prelazia, e,
por outro lado, como mecanismo de disseminação dos interesses dos „tubarões‟,
voltada a reafirmar o poderio dos fazendeiros com apoio do Estado e da força
policial.
Como viemos tratando ao longo do primeiro capítulo, a escola
agregava todos os filhos das famílias residentes na região, independente de credo,
raça, idade ou gênero. Era nela que os interesses se conflitavam, a exemplo e
seguindo a esteira de acontecimentos, no mês de abril de 1981, após a escola do
Ribeirão e Cascalheira passar da gestão do administrador de Barra do Garças, para
o de Canarana, Luiz Canciano – representante político imposto pelo governo, que,
ao contrário de melhorar, piorou.
269
Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 15.1.25 p. 14-15
200
Relembrava o bispo que, após longos quatro anos de organização das
decisões, com a presença dos pais, professores e diretores, mesmo antes da criação da
Associação de Pais e Mestres (APM), em Cascalheira já existia uma APM ligada
diretamente à comunidade. Sem considerar quaisquer formas de organização da escola,
bem como dos profissionais que ali trabalhavam, o administrador Canciano,
inicialmente, se colocou favorável ao diálogo, todavia, deu cabo aos interesses externos
à comunidade, afirmando que os pais não tinham qualquer poder de decisão na escola e
que a função da APM era a de juntar dinheiro e se preocupar com a limpeza dela.270
Em reunião, os professores argumentaram que todos sabiam que na região o
estudo era difícil, e a maioria dos professores, mesmo não tendo formação adequada,
tinha grande prática de lecionar. Inclusive, na busca por se qualificar, muitos
participaram, durante quatro anos, do curso de férias ofertado pela Secretaria de Estado
de Educação. Não sendo justo, portanto, que ficassem fora da escola, por conta das
falsas exigências colocadas pela politicagem. E, em caso de um ser demitido, todos
sairiam. Essa decisão foi apoiada pelos pais.
Sobre o uso dos mecanismos básicos de controle político causadores de
resignação e medo, registrou Casaldáliga em seu Diário, de 21 de setembro de 1982:
La esperanza,
la utopía...
¿quién es la madre?
¿quién es la hija?
Mao sugería esta norma de guerra: „¿A quién destruyo? ¿A quién
neutralizo? ¿Con quién hago alianza? ¿En quién me apoyo?‟
Herbert, el „Betinho‟, nos recordaba que la dominación usa dos
mecanismos básicos de control político: resignación y miedo. La
negación de la resignación se hace através de la participación en la
lucha. La negación del miedo, a través del testimonio. Nos recordaba
también que la organización popular es un campo de batalla
sumamente estratégico en orden a la sociedad nueva que soñamos.
Porque organizar es hacer poder.271
Alimentava sua esperança diante da realidade vivida pelas famílias que
lidavam com a opressão e, pautado em seus contemporâneos, a exemplo do conceito
formulado pelo sociólogo brasileiro Herbert de Souza, a organização popular atuava em
um campo de batalha estratégico na construção de uma nova ordem social, e que
270
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 08-19. 271
En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983.
201
organizar era fazer poder. As reflexões de Mao se prestaram para enriquecer o texto,
cotejando a realidade
vivenciada no sertão com
a norma de guerra: saber
escolher a quem destruir,
a quem neutralizar, com
quem fazer aliança e em
quem se apoiar.
Assim
seguiram os feitos, e no
dia 15 de março havia
sido marcada reunião do
povo do Ribeirão,
Cascalheira e sertão com
o administrador de Canarana. Mas, para a surpresa de todos, dias antes as autoridades
estiveram reunidas numa fazenda perto do Ribeirão. Passados alguns dias, remarcaram a
reunião geral onde estiveram presentes, debaixo de forte chuva, 400 pessoas e,
representando o administrador estava o Dr. Ernesto, médico recém-chegado a
Cascalheira, junto com o senhor Nilvo e oito policiais fardados e armados que, de
imediato, cercaram o local da reunião.
De maneira autoritária, o senhor Nilvo apresentou as linhas da nova
administração e disse que a educação era uma das metas mais importantes da prefeitura
e, por isso, deveria haver entrosamento entre os funcionários da escola e a
administração.
Assim, leu a lista dos novos funcionários onde apareciam somente dois, dentre os
antigos. A Figura 10 retrata bem o ocorrido, pois 40 pessoas foram expulsas da escola,
tanto de Cascalheira quanto do Ribeirão Bonito, e suas chaves foram recuperadas a
força.
Embora houvesse reação do povo, incluindo uma viagem a Cuiabá, pois
defendiam uma escola do Povo e para o bem do povo, da qual todos participassem
202
comunitariamente em tudo, de nada adiantou.272
Segundo a matéria publicada na Folha
Alvorada, a „nova‟ escola não apresentou as melhorias prometidas, mas sim:
a) A maioria dos professores contratados não tinha sequer o 1º grau completo e
nunca haviam lecionado;
b) Outros professores, inclusive a diretora, parente do Dr. Ernesto, eram
desconhecidos do povo, tendo chegado um dia antes do início das aulas;
c) A polícia estava sempre na escola, se prestando até para o professor impor
disciplina;
d) As turmas ficaram misturadas, o que trouxe prejuízo para a aprendizagem dos
alunos.
Diante da situação, os familiares, sem entender as razões por traz do
„assalto‟ à escola, levantaram algumas hipóteses:
1 - A ação teria interesses particulares como motivadores;
2 - Essa treita tinha origem entre os gaúchos de Canarana, ou tinha por
trás a política oficial do governo, querendo acabar com a organização
do povo.273
Confirmar uma das hipóteses, naquele momento, não será possível. Por essa
razão, asseverava a necessidade de o povo reagir e não se sentir derrotado, pois era com
o golpe que ele deveria aprender a lutar, como preconizava a ilustração.
Embora os primeiros passos da escola tivessem revelado intencionalidades
de uma construção democrática, mesmo com o desejo e esforço das famílias,
preponderou o poder político sobre ela, cujas táticas revelaremos no tópico a seguir.
Ainda, para melhor entender aquele episódio, ocorrido em Ribeirão e
Cascalheira, Pedro Casaldáliga registrou em seu diário, no dia 30 de abril de 1981:
Y la escuela de estos lugares, en manos de la politiquería oficial, está
como destartalada. El pueblo, sin embargo, se mantiene bastante
sereno y hasta firme. Ha crecido en conciencia. El poder, la represión,
llegan a hacerse despreciables (...) quieren ser demasiado persistentes.
El pueblo sufrido tiene una larga tradición de resistencia, por lo menos
pasiva; que es muy activa, de hecho.274
Ao tempo em que demonstrava descontentamento com a tomada da escola
pelos políticos, dizendo que esse fato, além de descontentar a população, fazia com que
272
Ibid. 273
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A 16.1.15 p 08-19. 274
CASALDALIGA, P. En rebelde fidelidad. Diário 1977-1983.
203
a escola ficasse desestruturada, asseverou que o povo se manteve sereno e firme,
revelando a consciência de que, diante do poder da repressão, precisavam se manter
resistentes e ativos.
Enquanto isso, continuavam as perseguições, agora às margens do rio
Araguaia, na sede da prelazia, pois, ao contrário dos governos municipal e estadual dar
condições para funcionamento da unidade escolar, a questão não estava pacificada, pois,
ali, na Escola Estadual de São Félix, os professores também não estavam isentos das
decisões político-partidárias, pois, em novembro de 1981, anunciou a Folha Alvorada
que Paulo Afonso e Erotildes, foram transferidos para a cidade de Pontes e Lacerda, fato
que provocou reação por parte da comunidade escolar, demonstrada na reunião de mais
de 100 pessoas para decidir como o coletivo se colocaria diante de tal arbitrariedade.
Durante a assembleia, convencionou-se duas propostas: a) Distribuir nota à
população através de abaixo-assinado, dizendo que o povo não aceitaria ser prejudicado;
b) Indicar pessoas da comunidade para acompanhar os professores até Cuiabá para, em
audiência com o Secretário de Educação, apresentar o abaixo-assinado e os protestos do
povo pela violência cometida contra pais e alunos, assim como reivindicar o direito de
conhecer a justificativa do porquê da decisão.
Assim fizeram, seguiram a Capital, onde se depararam com dois
documentos, o primeiro, de autoria do diretor da Escola, Gaspar Neves, denunciando
que os professores incitavam seus colegas e alunos contra a direção, o Estado e a Nação,
e que eles pregavam „política contrária ao PDS‟. O segundo documento, de autoria do
deputado Ricardo Correia, solicitava a exoneração dos professores por se tratar de
„indesejáveis‟ à comunidade política da região. Por fim, o secretário de Estado agiu
conforme o costume, como afirmou a matéria – disse que não podia resolver nada.
A ausência do poder estadual era sentida em todas as localidades, cujas
consequências eram percebidas, especialmente, entre aqueles que dependiam do poder
público, a exemplo das famílias de Canabrava, pois, em 1984 já havia mais de 800
famílias no patrimônio, porém, devido à precariedade da escola, as crianças, ao invés de
se encontrar no interior da escola, ficavam brincando nas ruas.
Essa situação fez com que muitas famílias mandassem seus filhos para
estudar em São Félix e em Porto Alegre. Informavam os moradores, por meio da Folha
Alvorada, que o diretor da Escola, Sr. José Alves Pereira, e os dois vereadores apenas
204
prometiam, mas não faziam nada. Observava ainda que tinha sido feito um barracão de
madeira que, inclusive, já tinha sido usado para festa, mas nada de escola. Por fim,
reclamavam que os filhos repetiram o 4º ano todos os anos, pois não havia o 5º ano e
seguintes para que eles pudessem prosseguir nos estudos.275
Percebe-se,
portanto, que a
organização da escola
pautada nas decisões da
comunidade não surtiu
efeito diante dos
mandos dos políticos
em relação à demanda
por escola e
atendimento à
legislação276
. Assim
como as Leis tem
história, igualmente
denunciar seu
descumprimento
também requer seu
espaço na história.
Enquanto a vida nas escolas se agitava diante dos desmandos, a Folha
Alvorada anunciava a visita do Prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel, um
argentino a quem Pedro Casaldáliga se referiu: “[...] uma visita muito importante e
amiga” 277
que enfrentou as injustiças do governo militar da Argentina e lutou sem
medo pelos Direitos Humanos, em favor dos pobres e perseguidos.
275
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.3.04 p 09-15 276
O artigo 62 da 5692/71 assegurava que cada sistema de ensino compreendia, obrigatoriamente, além
de serviços de assistência educacional que assegurasse aos alunos necessitados condições de eficiência
escolar, entidades que congreguem professores e pais de alunos, com o objetivo de colaborar para o
eficiente funcionamento dos estabelecimentos de ensino. 277
Adolfo Perez Esquivel ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980. Ele veio a São Félix para apoiar a
Igreja e o povo. Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.14
P04.19. Em seu discurso durante o recebimento do prêmio, Esquivel considerou: “Recebo o Prêmio em
nome dos Índios, dos Operários, dos Povos Pobres da América Latina e de todos os que trabalham por sua
Libertação” Pelo observado, o Nobel da Paz continua se preocupando com as causas sociais em defesa da
205
Fez isso em razão de ele ter sido perseguido também, inclusive havia ficado
preso por 14 meses, ocasião em que foi maltratado e torturado, cuja visita mereceu
registro „fotográfico‟ na Folha Alvorada conforme Figura 11.
Observamos nesse tópico que o ato de punir, no contexto escolar, foi
democratizado, pois, em uma sociedade em que impera a injustiça, todos poderiam ser
vítimas ou algozes de práticas autoritárias. Porém, não faltavam exemplos de condutas
democráticas e libertárias, a exemplo do ilustre visitante Esquivel.
Seguimos revelando práticas em um cotidiano pouco sensato de uma escola
que, ao contrário de trabalhar com a inclusão, incentivando os filhos das famílias
humildes a estudar, adotava mecanismo de exclusão, sob o velho discurso da disciplina,
da segurança, da ordem e de uma identidade nada popular, mas elitista, semeando o
padrão burguês de ser.
2.6 - Escola em cores: fardas e castigos para os fracos
Em maio de 1980, ao tempo em que os pais cobravam a conclusão da obra
das salas de aula da escola em Porto Alegre do Norte, o diretor exigia a uniformização
das crianças que, até então, usavam uniforme azul e branco, e a partir daquele momento
deveriam usar conga, meia branca, calção ou saia verde e blusa amarela, e ainda manter
os cabelos cortados.278
Essa exigência foi imediatamente questionada pelos pais, pois afirmavam
que a escola não era quartel e de nada adiantaria exigir uniformes novos para a escola,
se há mais de três anos o povo cobrava a construção da sala de aula e o governo não
havia, até então, cumprido a promessa. Como o diretor se achava no direito de cobrar, a
mando do prefeito, que, num prazo de uma semana, todos deveriam estar „fardados‟,
travestidos com o novo uniforme.
A obrigatoriedade, por um lado, e a resistência, por outro, tomou conta da
cena, pois, passados alguns meses, no dia 15 de agosto o diretor ordenou que nenhum
aluno entrasse na escola sem farda, porém, os pais afirmaram que achavam bom ter
farda, mas que o prazo para que todos se organizassem tinha sido curto, além do que as
democracia, em março de 2018, coincidentemente no ano em que concluímos a tese, veio ao Brasil e
anunciou indicação do Prêmio Nobel ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 278
Ibid.
206
famílias, há 5 anos, cobravam um prédio para funcionamento da escola, e, em menos de
3 meses antes de terminar a construção, já iniciava a cobrança. Os pais propuseram
aceitar a farda, mas somente após o término da obra de construção da escola.
Irredutível, o diretor disse que quem não chegasse uniformizado à escola,
seria enviado de volta para casa, e assim foi feito. Mas, passados alguns dias, na ocasião
da visita do prefeito, ficou deliberado que quem tivesse farda deveria comparecer, e
quem não a tivesse poderia igualmente ir. Assim, os pais, entenderam que essa tinha
sido uma vitória, pois de nada adiantaria a escola ser pública se não fosse para todos!
No mês de setembro do mesmo ano, os pais reclamaram dos exagerados
castigos aplicados aos filhos, dentre outros: a) deixarem as crianças de joelhos no
cimento quente; b) obrigar as crianças, de um dia para o outro, levar cinquenta cópias de
lição como tarefa de casa, dentre outras arbitrariedades.
Diante desta situação, os pais, já conhecedores de seus direitos, afirmaram
que o diretor não conhecia a legislação que proibia a aplicação de castigos físicos aos
alunos, ao contrário, deveriam os gestores e professores incentivar as crianças, e não
fazer com que elas tivessem medo.
Esse descontentamento deixou os progenitores indecisos em relação à
permanência de seus filhos na escola, pois, retira-los poderia não ser a melhor solução,
porquanto, se assim o fizessem haveriam aqueles que, por não ter ainda aberto os olhos,
continuariam apoiando tais castigos, inclusive achando tal procedimento positivo.
Assim, se caso os tirasse, permanecia a dúvida: iriam modificar alguma coisa com os
pais dos alunos que perecessem? Se isso acontecesse, no ano seguinte voltariam seus
filhos para a mesma escola?
Na mesma matéria publicada sobre tal evento ocorrido na escola de Porto
Alegre, a expressão era de crítica em relação à metodologia, pois, aos alunos da 4ª série
eram obrigados a trazer a lição da história do Brasil decorada, até mesmo nas vírgulas.
A pergunta era: queria a escola formar papagaios? Pois decorar, fazendo o aluno repetir
tudo, não lhe possibilitaria entender nada, principalmente quando não havia tido
explicação na classe.
Parece-nos que essa prática bem ortodoxa tinha um objetivo claro por parte
de alguns professores de história, assentar no „medo‟ de retaliação pelo não
cumprimento das determinações do governo militar em sala de aula, em fazer com que a
207
história do Brasil fosse decorada, exaltados seus heróis e contada pela ótica dos
opressores, não deixando que houvesse contestação de semelhantes práticas. Assim,
continuavam as obrigações sob a égide da „ordem‟.
Conforme noticiado em outubro de 1980, na Folha Alvorada, a Diretora
Eva, da Escola Estadual de 1º Grau de Santa Terezinha, no dia 15 de setembro, após
uma semana de férias, os alunos voltaram à escola animados para aprender. A turma
noturna chegou, como era de costume, organizando-se em fila. Em seguida, chegou a
diretora e disse que os alunos que estivessem sem uniforme deveriam sair da fila e ir
embora para suas casas, pois, se não tinham condição de comprar uniforme, não
estudariam. Assim, alguns alunos sem a indumentária exigida deixaram a escola,
retornando para casa.
Além do uniforme, outras barreiras atrapalhavam a frequência do alunado
como ocorreu em Porto Alegre, conforme noticiou a Folha Alvorada, ocasião em que o
diretor proibiu os meninos de vender merenda, alugando um espaço para uma
professora comercializar seus quitutes279
. Com isso, esse gestor proibiu que os alunos
levassem lanche para escola, condicionando-os a comprar o ali comercializado, ou, do
contrário, iriam para casa lanchar.
Outras obrigatoriedades fizeram parte do contexto, as quais descrevemos a
seguir: a) uniforme verde amarelo completo; b) contribuição de uma taxa de Cr$ 10,00
para o pote de água a serem colocados nas classes; c) contribuição de Cr$ 5,00 para o
caixa escolar; d) uniforme de educação física; e) trocar os botões coloridos da camisa
pelo de cor branca; f) cota para o presente para aniversário do diretor. Por estudarem em
escola pública, seria isso correto?, interpelava a matéria, será que o ensino melhorou
após tais exigências? Os alunos estariam aprendendo mais e melhor?
Com relação ao uniforme exigido pela escola, estes não podem ser tomados
por alegóricos, pois, interpretando as circunstância vividas pelos escolares, estes devem
ser percebidos como sinônimo de poder que, ao contrário de contribuir para com o
acesso e permanência dos filhos dos trabalhadores no espaço escolar, o não ter era
motivo de vergonha, discriminação e, portanto, agressão social, uma vez que a
279
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A 16.1.110 p 04-11.
208
imposição só construiu barreiras intransponíveis para muitas das famílias que
almejavam manter seus filhos(as) estudando.280
Somando aos inúmeros casos já citados, um em especial é merecedor de
atenção, trata-se do ocorrido em junho de 1982, em Santa Terezinha, que redundou na
mudança das famílias do lugar, tamanha a vergonha a que foram expostas.
A mãe, com seus filhos na escola, e seu marido trabalhando, empregado em
uma fazenda da região, não tinha como comprar o uniforme. Sem alternativa, foi pedir
ajuda ao prefeito, para que ele comprasse a farda escolar. O prefeito, por sua vez, deu
ordem para que a mãe comprasse na loja do Manuel Quitandeiro, o que induziu a
família a pensar que a dívida correria por conta da prefeitura. Porém, quando este foi
cobrar a conta na prefeitura, o gestor máximo negou ter dado tal ordem. Esse impasse
resultou na prisão da mulher, e, como ela ainda não havia feito os uniformes, devolveu
o pano, condição para ser libertada.
Segundo a Folha Alvorada, a mulher ficou presa das 9 horas até as 15 horas,
e, mesmo estando grávida, foi obrigada a lavar e encerar a Delegacia.281
Conhecendo a realidade vivida pela maioria das famílias do Brasil, durante
as décadas de 1970 e 1980, não é difícil atender as condições impostas para enviar seus
filhos à escola, uso a expressão para afirmar que, ir à escola, antes de ser uma
obrigação, tratava-se de um direito, assim como o direito à saúde, à moradia, ao trabalho
e à posse da terra, não devendo a ausência do fardamento ser empecilho. A intenção de
homogeneização, tomando por base ilustrativa o uniforme, desvela a necessidade de se
padronizar os modelos de escola, de professor, de aluno, tornando esse espaço mais fácil
de ser manipulado. Igualmente o de desviar o foco e desperdício de energia para fins
meramente panfletários.
Nessa mesma esteira, e para concluir o tópico, elencamos um evento
ocorrido em Luciara, onde os pais exigiam respostas por parte do poder público, sem os
quais seria impossível atender aos estudantes e à comunidade, foi o que anunciou a
matéria na Folha Alvorada do mês de julho de 1981: a) falta de óleo para que o motor-
280
Agindo dessa forma, a escola, bem diferente do que preconizava a Constituição Federal de 1967 e a
Lei n. 5.692/71, dificultava a permanência das crianças, pois, conforme preconizava o Art. 41. A
educação constitui dever da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios, dos Municípios, das
empresas, da família e da comunidade em geral, que entrosarão recursos e esforços para promovê-la e
incentivá-la. 281
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16.1.27 p 09-18.
209
gerador pudesse iluminar as salas para as atividades noturnas; b) prisão de professor; c)
abaixo-assinado a favor e contra o diretor. Mas, nem tudo estava perdido, uma vez que
ações importantes estavam sendo organizadas para atender um grupo de alfabetização,
que, tanto comadres quanto compadres, depois da labuta diária, se reuniam no clube de
comadres para aprender a ler, escrever e discutir como vencer os aperreios da vida.282
A
seguir, apresentamos o professor como elemento simbólico na formação da sociedade,
„marco da rota pioneira‟.
2.7 - Professores são árvores de idealidade: que fazer „oprimido‟?
Iniciamos o tópico com uma poesia de Pedro Casaldáliga sobre o professor,
intitulada As árvores são professores, com o propósito de retomar a produção do líder
religioso no início de sua jornada na Prelazia de São Félix do Araguaia, buscando
entender como o seu pensamento e a sua ação estiveram ligados diretamente à escola, e
para que tal invenção pudesse sair do papel, assim como a figura do professor, que,
embora descrito em linguagem poética, o faz com propriedade metafórica:
As árvores são professores de idealidade.
Tão simples e cavalheiro no sol e na tempestade.
Eles apoiam com integridade.
Eles são entregues sem vaidade.
Atrás da velhice da casca eles levantam a seiva de hoje.
Sob as flores, os frutos crescem.
Folhas mortas caídas sustentar as novas vidas.
As árvores são procuradas; eles se protegem; gêmeo.
Eles dão lugar ao vento. Eles recebem a música.
Eles impedem a seca duradoura.
Eles riem, vivaz, na margem do rio.
E eles sofrem, sobriamente, no sertão.
Onde eles estão, eles são; e são, vivo ou morto, serviço: comida, sombra, madeira;
Parede no penhasco, e marco na rota pioneira. 283
Porém, parece-nos que a dialética do ser professor se fez real, pois, nas
primeiras décadas de existência da escola da cidade e dos sertões, percebeu-se ali um
282
Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.18 p 08-17. 283
Pedro Casaldáliga. Clamor elemental, Sígueme, Salamanca: Editora Nueva Utopia, ed. Endymion,
1971, 103 p.
210
projeto de instituição democrática e engajada, integrando fé, esperança e atitudes para a
transformação da realidade vivida pelas famílias.
Mas, com o passar dos anos, o professor que quisesse permanecer atuando
em sala de aula e manter seu emprego deveria se afastar da igreja, como noticiou a
Folha, em março de 1982. O secretário de educação, Delfino Alves de Souza, afirmou
que quem quisesse lecionar nas escolas, sob sua gestão, não poderia acompanhar a
prelazia e os trabalhos da comunidade.
Parece-nos que o problema não se limitava à presença da prelazia, mas sim,
da tomada de consciência e da organização na comunidade, a qual contribuía para
formar opinião sobre os fatos, dentre outros, da política, das formas de resistência que
superava as fronteiras do domínio das letras, seguia no horizonte da tomada de
consciência, passando pelos territórios do domínio das palavras arregimentados pela
atitude.
Inúmeros foram os casos de substituição de professores por decisões
externas à necessidade da comunidade e onde a escola estava inserida, uma vez que nem
todo o corpo de profissionais foi nomeado com propósito estritamente político-
partidário emanado pelos interesses do governo, como ocorreu em Serra Nova, em abril
de 1982, com a professora Maria Pereira.
Dizia a matéria: logo que iniciaram as aulas, o secretário de educação
Delfino chamou os professores para analisar o contrato. Chegando à Escola, convidou a
professora para se filiar ao partido PDS, e ela, por sua vez, se recusou, dizendo que não
era filiada a qualquer partido, nem ao PMDB ou ao PDS, pois não se imiscuía na
política, embora, não deixasse de participar das reuniões do povo, por ter um trabalho
com a comunidade, o qual não o haveria de abandonar.284
Enquanto conversavam, chegou uma terceira pessoa, dizendo ao secretário
que não tirasse aquela professora, pois isso poderia prejudicar seu próprio partido. Em
284
Convém observar que, a partir de 1974, o povo começou a votar na oposição representada pelo MDB.
O governo, percebendo o risco, estrategicamente acabou como a ARENA e o MDB e criou novos
partidos. Assim, pode dividir a oposição do MDB em PP, PMDB, PT e PDT. Já a ARENA, convergiu
para o PDS. Como se não bastasse, determinou a vinculação dos votos em todos os níveis onde o eleitor
tornava-se obrigado a votar em candidatos do mesmo partido, para Prefeito, Vereador, Deputado, Senador
e Governador. Dessa forma, o eleitor não poderia votar no Prefeito de um partido e governador de outro.
Nessa medida, todos os partidos seriam obrigados a lançar candidatos a todos os cargos. Portando, os
partidos de oposição sempre ficavam em desvantagem.
211
caso de tomar essa decisão, poderia acalorar a revolta do povo e com isso perder muitos
votos, por se tratar de um ano político.
Embora ele tivesse recuado do embate direto, arregimentou a diretora para,
na manhã seguinte, avisar a professora Maria que ela deveria dar aula na 4ª serie. Mas,
como ela nunca havia trabalhado com alunos mais adiantados, por sempre ter atuado na
alfabetização, a diretora, em tom esnobe, disse: “[...] você vai dar conta porque você é a
professora sabida do povo da comunidade. Todo mundo gosta de você e você tem
competência de dar essa aula, porque é sabida até mais do que eu mesma”. Como
resposta e de maneira educada, a professora disse: “Olha, você toma conta de sua classe,
eu não vou mais dar aula. Coloque um professor de seu agrado”.285
Observa-se que, o „ser sabida‟, naquela circunstância, ganhava teor
pejorativo, especialmente por não atender ao interesse do governo municipal. Dessa
feita, ficou a professora, e muito pior, os alunos, excluídos do processo. Em se tratando
de exclusão, ampliemos nossas lentes sobre as práticas autoritárias dos gestores para
com as famílias que precisavam colocar seus filhos na escola.
2.8 - Caixa escolar: obstáculo a superar
Não bastasse as questões políticas como impedimento para o alcance a uma
escola democrática, havia ainda obstáculos financeiros, tornando cada vez menos
provável o acesso e permanência dos filhos das famílias pobres matriculados e
frequentes nas escolas, tratava-se do caixa escolar. Em 1981, os alunos que estudavam
na escola Santa Terezinha pagavam dez cruzeiros de caixa escolar, mas, como as
dificuldades eram grandes para manter a família com o trabalho no campo e nas
cidades, muitas delas não tinham como pagar essa taxa escolar.
Em 1982, para uma criança menor de 14 anos, a contribuição da caixa
escolar passou para 34,00 (trinta e quatro cruzeiros) mensais, e as que tivessem mais de
14 anos deveriam pagar 176,00 (cento e setenta e seis cruzeiros), valor que deveria ser
pago no banco, até o dia 5 de cada mês. Tal exigência tornava o pagamento enquanto
condição sine quanon para que os pais tivessem acesso aos registros dos resultados dos
285
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16. 1.25 p 05-15.
212
estudos dos filhos, além de que, para que pudesse pegar a transferência para outra
escola, também deveria estar quites com aquela taxa.
Como forma de tornar conhecido e ao mesmo tempo questionar o governo
sobre a cobrança abusiva, a Folha Alvorada publicou matéria afirmando que: “[...] o
que mais precisam, como comida, caderno, lápis, coleção, régua, cola e outras coisas
para os trabalhos‟. Porém, elegia a necessidade de comprar o uniforme de educação
física que só a camiseta custa 600 cruzeiros, o short, meia e Kichute, além do uniforme
escolar”.286
Chamava ainda atenção para uma realidade comum entre as famílias do
lugar, a exemplo de Dona Sebastiana, que tinha 4 filhos com mais de 14 anos e 2 com
menos idade, significando que, para obter desconto de 10% nas mensalidades, deveria
desembolsar 3.088,00 (três mil e oitenta e oito cruzeiros) até dia 5 de abril.
Lançar mão dessa informação possibilita-nos entender o quanto a escola se
fazia excludente na década de 1980, pois, conforme mencionado, as famílias viviam do
pouco que produziam em suas terras, isso quando conseguiam nela permanecer, pois,
regra geral, se viam diante da insegurança e da violência287
.
A cobrança da taxa e a falta de recursos para pagá-la exauria a probabilidade
de continuar estudando, dilatando, assim, a distância das famílias às escolas, ampliando
as filas dos analfabetos. Tal circunstância histórica nos oferece condições para afirmar
que, embora houvesse o discurso e leis resguardando o direito à educação oficial
mantida pelo Estado, essas, de forma sorrateira, mantinham as cangas da exclusão.
Em Ribeirão Bonito e Cascalheira, também a queixa com relação aos custos
com a educação escolar dos filhos permeava o cotidiano das famílias, pois os gastos
para manter um filho estudando eram elevados, na medida em que necessário se fazia
adquirir dois livros para os meninos, e cada livro custava $ 310,00 (trezentos e dez
cruzeiros), além dos cadernos, a matrícula, a contribuição com o caixa escolar, uniforme
e sapato de couro. Quem é que dava conta? “Tem pais que tiraram os filhos da escola
porque não conseguem fazer as despesas”.288
286
Ibid. 287
Conforme noticiavam as famílias residentes em Canabrava, no mês de maio de 1982, estavam
colhendo as lavouras, mas, sem estrada para tirar os legumes e demais produtos, tinham que fazê-lo na
cacunda, e, ao sair lá fora, não encontravam preço justo, sendo estes obrigados a vender baratinho.
(Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix A 16..1.26 p12-17). 288
Alvorada (1980), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1980 A16. 1.25 p 05-15.
213
Reclamavam os pais que a escola estava desorganizada, mas que, no início,
todos tinham conhecimento de ser ela democrática, pois as decisões eram tomadas a
partir de
consulta aos
pais, e eles
haviam criado
a Associação
de Pais e
Mestres. A
diretora, Dona
Anete, em
uma reunião
que mais
parecia um
encontro
militar, disse:
“[...] para parir
os filhos ninguém quis saber do Governo, e agora vem procurar o Governo para a
educação”.289
Porém, o problema da escola se tornara mais agudo, pois a carestia e a
dificuldade das famílias por falta de terra e emprego, era comum trabalhar e ser
explorado. Restava às mulheres pouca alternativa, mas, quando ela surgia, abraçava de
„unhas e dentes‟.
Uma das atividades encontradas pelas mães para não deixar seus filhos sem
ir à escola era lavando roupa, como publicado pela Folha Alvorada, na edição dos
meses de julho e agosto de 1982.
Sem saber o que fazer, os pais de família eram obrigados a sair para
trabalhar nas fazendas, ganhando uma diária de 700,00 (setecentos cruzeiros), uma vez
que a grande maioria ainda não adquirira terra e ou, não extraía dela o suficiente para
garantir alimentação, moradia, vestimenta e o custo com os estudos, se um pão custava
C$ 40,00; o pacote de café C$ 150,00; 1 quilo de feijão C$ 180,00; 1 quilo de carne C$
289
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981 A16.1.26 p 13-17.
214
200,00, o pacote de açúcar C$ 80,00; o café cru C$ 500,00 e o sal, o sabão e o
querosene? Vale lembrar que a diária do trabalhador sequer era suficiente para custear
as despesas com alimentação da família. Restava às lavadeiras e donas de casa,
trabalhar para receber C$ 3.000,00 (três mil cruzeiros) por mês, lavando roupa: 4
trouxas por semana, como a dona Naíde;290
Ao observar a Figura 12 e comparar os preços dos gêneros alimentícios, nos
anos de 1981 e 1982, é possível perceber a elevação exorbitante dos produtos de cesta
básica, o que, de certa forma, foi o que concorreu, ampliando ainda mais a dificuldade
das famílias em manter seus filhos nas escolas. Afinal, como já bastante explorado, o
que passava pela cabeça de um menino com fome, senão a vontade de comer?
Entre deixar de comer e estudar, certamente centenas de famílias optaram
pelo abandono dos estudos. Embora tenham diminuído os casos de crianças que não
continuaram a frequentar a escola por falta de condições, fenômeno que, infelizmente,
ainda persiste na presente data. Contudo, há outro aspecto importante a ser tratado no
quarto e último capítulo. Muitos alunos que iam às escolas, especialmente os filhos de
famílias de baixo poder aquisitivo, cujos membros se encontravam desempregados e
possuíam baixa escolaridade, as crianças se dirigiam à escola com dois propósitos
distintos, o primeiro, para comer, pois as escolas públicas ofereciam merenda escolar, e,
o segundo, para estudar. Porém, em muitos casos prevalecia o primeiro.
Em outubro de 1982, noticiou a Folha Alvorada que, no mês de junho, a
metade dos alunos de Santa Terezinha ficou sem receber os boletins, porque ainda não
haviam pago a taxa escolar, no valor de quase C$ 200,00 (duzentos cruzeiros), e só
poderiam ter acesso ao seu desempenho escolar caso saldassem o citado pagamento.
Anunciava a matéria:
[...] os pais de família que são pobres e tem mais de 4 filhos
estudando, deixam de comprar o pão para seus filhos comerem antes
de saírem para o colégio, aquele dinheiro agora é para a caixa escolar
[...] a diretora fala que esse dinheiro é para pagar boletim, mas eles
mesmos já disseram aos alunos que esses boletins foram dados para o
colégio.291
290
Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.29 p 12-26. 291
Ibid.
215
Seguindo o conteúdo publicado no dia 29 de agosto, o presidente Figueiredo
respondeu uma pergunta sobre a taxa escolar avaliando que essa era uma forma de
aqueles que ganhassem bastante ajudassem aos que ganhavam menos. Disse ainda que
ninguém poderia ficar sem estudar, ou ser prejudicado por conta de não pagar a taxa.
Assim, percebe-se que, de optativa, a taxa escolar se tornou obrigatória em alguns
espaços e tudo isso ocorreu por falta de conhecimento sobre a questão, ou os gestores se
aproveitavam do ensejo para, sob o argumento da inadimplência, tirar proveito da
situação, expulsando os alunos indesejados da escola.
Embora não tenhamos como precisar o número e tampouco identificar como
surgiu a exigência do uso do uniforme escolar, essa prática abusiva e opressora
igualmente contribuiu para que muitas famílias deixassem seus filhos sem frequentar a
escola.
Na medida em que passamos as lentes sobre a escola inventada no
Araguaia-Xingu, percebemos uma instituição repleta de sentidos sócio histórico,
culturais e políticos, uma vez que, de um lado, era pensada e desejada pelo coletivo de
famílias, com o apoio da à prelazia, enquanto mecanismo de redenção social, pautado na
esperança que ela pudesse contribuir para a superação da fragilidade vivida pela maioria
das famílias de posseiros, peões e desassistidos de poder econômico, oferecendo a
esperança de uma vida melhor para seus filhos. Por outro, o espaço escolar tornou-se
instrumento de manutenção da relação de opressiva. Não bastava, portanto, a opressão
praticada pelos tubarões expulsando as pessoas para colocar bois, conforme
caracterizado na Figura 13:
216
Concluímos o tópico entendendo ser necessária a reflexão sobre as práticas,
pois o contexto da escola registrado neste segundo capítulo, mostrou-se distanciado
daquele desejado inicialmente, sendo perceptível que a escola revelada entre o Araguaia
Xingu, da década de 1980, fosse marcada pela opressão dos poderes públicos, confiados
a pessoas indicadas para cumprir determinadas ações e amparadas por um falso discurso
democrático.
Portanto, uma escola opressora que se faz vítima diante das cobranças por
parte das famílias, mas, de outro lado, revelava sua face nada oculta, apresentada ao
longo desse segundo capítulo. No tópico a seguir, conheceremos a escola pendular
entre a democracia e a tirania.
Assim, para entender a escola concebida pelas famílias sob a vigilância da
prelazia, especialmente pelos ideários de um colonizador em meio aos colonizados, o
bispo Pedro Casaldáliga utilizou da determinação pela organização das famílias em
torno da resistência contra os opressores, o que contribuiu para iluminar a perspectiva
de uma escola que tomasse o conhecimento histórico enquanto base para a tomada de
consciência e transformação social, num espaço-tempo histórico específico.
Tomamos por lição que o entendimento acerca do contexto histórico deve
prover as ações e projetos da escola no tempo, do contrário, tornaria o conteúdo (teoria)
estéril. Portanto, entendemos que o conhecimento histórico deve ser adotado como
condição sine qua non para a reelaboração dos sentidos „dados‟ ao conhecimento
„estudado‟, ao conhecimento vivido. Requerendo profissionais qualificados para operar
tais sentidos, sem os quais haveria de a escola sucumbir aos modelos impostos pelos
interesses da minoria detentora do poder econômico, em detrimento da maioria.
Como já antecipado, pouquíssimos eram os professores que tinham o ensino
médio (antigo 2º grau), e muito menos aqueles com formação superior, pois a grande
maioria era composta por professores leigos. Ao tomar esse perfil profissional como
ponto de partida, presumimos que a falta de formação não os faria nem melhores nem
piores professores, até porque, se quiséssemos analisar qualitativamente a atuação
desses profissionais tomando o viés do ensino da história, seria improvável alcançar tão
ambicioso propósito, pois as fontes não possibilitariam tal incursão, considerando as
especificidades de cada comunidade das cidades e sertões do Araguaia-Xingu mato-
grossense. Assim, apresentamos um recorte no tópico a seguir.
217
2.8.1 – A dialética do ensino de história
Mesmo que lançássemos mão da pesquisa oral e pudéssemos explorar esse
ou aquele profissional, pouca seria a mostra, considerando as inúmeras escolas que se
formaram nos sertões, assim como dificilmente teríamos como afirmar que os
estudantes pudessem afiançar, passados mais de quatro décadas, se aprenderam ou não
aquilo que os professores de história apresentaram como proposta que pudesse construir
conhecimentos históricos em sala de aula.
Embora tenhamos razões para asseverar a existência de dúvidas quanto ao
conteúdo e aprendizado, por estarem distantes do tempo em que construímos a
narrativa, torna-se pertinente afirmar que, como todo o sujeito histórico vive em meio a
um espaço-tempo repleto de acontecimentos, cujos fatos devem compor a tessitura de
análise, sob um conjunto de valores sobre as causas, o fato em si e as consequências,
possibilitaram tais dimensões ao professor de história, um laboratório para seu exercício
de saber-fazer docente ao ensinar a disciplina.
Assim, nos acercamos da importante pergunta: o que ensinava o professor
de história? A primeira hipótese é a de que o quadro de violência, marcado pela
expulsão das famílias para dar espaço à pecuária, conforme denunciou a figura 13,
conduziu boa parte dos temas geradores dos debates acerca da história tratada nas sala
de aula.
Sigamos o roteiro com mais uma indagação que, se respondida, pode
reforçar tais pressupostos: o uso dos fatos vividos no cotidiano foi utilizado enquanto
ponto de partida para mediar as aprendizagens? De que materiais se valiam os
professores para ensinar história, já que os suportes (livro didático, bibliotecas,
videotecas, computadores, Internet e portais educacionais) inexistiam no contexto da
escola de educação básica em finais do século XX, no Araguaia-Xingu mato-grossense?
Ora em diante, apresentamos algumas pistas sobre os materiais (conteúdos)
possivelmente utilizados pelo professor de história aos aprendentes da escola de
educação básica desse espaço específico, a exemplo das poesias, das memórias, das
informações e reflexões publicadas em a Folha Alvorada, cujas temáticas iam desde a
origem das cidades, abordada com o propósito de torná-los conhecedores do contexto,
218
bem como da história do índio, do negro, da violência da opressão às famílias de
posseiros, da fome, da falta de acesso e tratamento de saúde, e enfim, da morte.
Igualmente, e de forma densa, a Folha Alvorada publicava crítica ao poder
executivo (federal, estadual e municipal) pelo não cumprimento constitucional no
tocante à oferta de serviços públicos na região, pela defesa do cidadão, tendo por base a
Declaração dos Direitos Humanos, além da dimensão religiosa, sempre apresentando os
„ensinamentos‟ bíblicos aliados às condições e categorias familiares aos participantes da
trama da vida real, quase sempre marcadas por litígio estampado em um incompleto
mosaico.
Assim, para o alcance às respostas, buscamos de forma sistemática as
matérias da Folha Alvorada, tomando-as enquanto ponto de partida e enquanto fonte
imprescindível para compreender o que ensinava o professor de história aos estudantes
matriculados nas escolas nas cidades e sertões do Araguaia-Xingu.
Embora não tenhamos como precisar se as práticas em sala de aula eram
regidas pelos rigores das operações historiográficas, fazendo emergir conceitos já bem
conhecidos e praticados pela academia, é possível afirmar que as matérias produzidas e
publicadas na Folha Alvorada contrariavam o mito fundador, uma vez que estampavam
modelos explicativos sobre as desigualdades sociais, raciais, culturais e, em especial, a
dissolução das verdades „plantadas‟ sob a égide dos tubarões e do governo ditador, ali
representados pela força repressiva da polícia. Igualmente, é possível perceber uma
reinvenção e ressignificação dos atos cívicos, enfim, a abertura para a possibilidade de o
professor mediar conhecimentos de um ensino de história engajado à realidade.
A adoção dos materiais produzidos e disseminados pela prelazia como
principal fonte para a produção das reflexões nesse capítulo, corroborou para afirmar
que o professor aquilatava a história local, pois sua função social estava conectada aos
problemas comuns à comunidade, e, ao tratar os temas ali circunstanciados, permitia-lhe
a compreensão da história presente constatável ao aluno, pois, ao olhar para seu entorno,
pode reconhecer as categorias e os processos históricos que resultaram na
dessemelhança entre eles, seja em relação ao acesso aos bens de consumo, seja em
relação ao acesso à terra, ao trabalho, à saúde e segurança.
Certamente, elegeria essa como principal contribuição para o ensino de
história na formação do aprendente, especialmente em situação de crise, pois, a
219
desesperança, a dúvida, a falta de resposta quando a pessoa humana se vê diante de tais
circunstâncias, requer entender que elas provém de um processo histórico revelado no
tempo presente, mas que, igualmente, poderão ser passageiras, desde que haja busca
pela sua superação.
Em caso contrário, a tentativa de refutar a perspectiva de o professor, ao
ensinar história, se tornar agente da transformação da escola e da sociedade no tempo,
limitaria a análise e reduziria a perspectiva do conhecimento social a um exercício de
montar um quebra-cabeça, em que as peças não se encaixam. Portanto, somente a partir
de uma leitura da realidade com as lentes da história é que o estudante poderiam
alcançar a condição de compreensão do processo sócio histórico em permanente
construção, tornando-se capaz de transformar as realidades, individuais e coletivas.
Todavia, parece-nos que o alcance da formação de um sujeito
historicamente consciente permanece na linha do horizonte, de um futuro porvir, pois,
poucos sentidos históricos (partindo da história do tempo presente) têm encontrado
guarida no fazer docente em sala de aula da educação básica, especialmente se
tomarmos por referência as práticas do ensino de história, cuja temática será mais bem
trabalhada no quarto e último capítulo da tese.
2.9 - Escola sem meio termo: se não é democrática, é tirânica
Contrariando as funções sociais, muitos educadores, imbuídos de práticas de
poder, não reproduziam ações pouco republicanas, a exemplo do que aconteceu em
Santa Terezinha, em junho de 1982, resultado de uma divisão entre o partido do
governo, o PDS, “[...] o Reis da coletoria, brigou com o prefeito Batista e saiu da
presidência do partido, isso porque, segundo Reis, o Batista está ganhando dinheiro
sozinho [...]”.292
Como consequência direta da disputa pelo poder político local, ocorreu
o distanciamento entre as ações da direção da escola que, naquele momento, tinha dois
diretores, um de direito (impositivo) e o outro de fato, a Eva, mas quem mandava era o
Sabino.
Assim, percebe-se que a invenção da escola se fez num determinado
contexto político, reafirmando o antagonismo, o que diretamente interferiu nas decisões
292
Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1982 A16.1.27 p 09-18.
220
pedagógicas, marcando o próprio currículo, haja vista o conflito inaugurado com a
atitude da diretora Eva que, chamou a professora Divina mandando que seus alunos
falassem alguma coisa sobre a data alusiva ao dia do trabalho. Como as crianças se
recusaram a falar, a diretora „ridicularizou‟ a professora na frente dos alunos. O
resultado dessa discussão redundou no desmaio da professora Divina, que precisou ser
levada ao hospital. O médico conferiu a ela um atestado de sete dias de licença, mas,
inconformada, a diretora exigiu que a professora pagasse uma substituta, pois, do
contrário, haveria de repor as aulas durante as férias de julho.293
Não satisfeitas com o imbróglio, as irmãs da professora Divina foram até a
escola reclamar, e, chegando lá, foram desacatadas pela diretora e pelo Sabino. Sendo
uma delas funcionária da escola, acabou sendo suspensa por 15 dias. Afirmou ainda a
matéria da Alvorada que todos eles eram do partido do governo. Assim se fez, e assim
possivelmente se faz no cotidiano das escolas de educação básica, onde os conflitos,
independente das razões e partidos políticos ou organização de grupos, acabam
contribuindo para a fragilidade institucional e o distanciamento de sua função social.
Como observamos durante os primeiros anos da existência das escolas,
especialmente as do campo, entre os rios Araguaia e Xingu, sua edificação foi marcada
pela participação popular, uma vez que, sem ela, não haveria escola. Parece-nos que,
com o passar dos anos essa escola começou a distanciar-se das premissas sociais de seu
nascituro. Exemplo disso pode ser assistido pelas famílias da comunidade de
Chapadinha, município de São Félix do Araguaia. Como noticiou a edição da Folha
Alvorada, do mês de junho de 1982, as palavras da diretora da escola:
Aqui quem manda é a diretora e o secretário. A escola não é do povo.
Se o povo não gostar assim, vai procurar outro lugar. Porque nós
temos que fazer o gosto da prefeitura e não dos pais. O povo, que era
acostumado a jogar vôlei, futebol no campinho da escola, agora não
pode mais, porque é propriedade da prefeitura e não dos moradores.294
Tamanho era o distanciamento que, antes, havia um „engana-bode‟ na cerca
da escola, por onde as pessoas passavam para pegar água no poço, e isso também
tornou-se proibitivo por determinação do delegado de São Félix, senhor Rui Aparecido,
293
Ibid. 294
Ibid. Sem destaque no original.
221
que foi lá e fechou. Uma pergunta não poderia deixar de ser feita: por que, ao invés de
chamar o prefeito ou secretário de educação, a diretora teve de chamar o delegado de
polícia para resolver um assunto que não competia a ele? É possível que o real propósito
fosse o de desafiar os enfrentantess da comunidade, cujas pessoas haviam contribuído
para a edificação da escola e na construção da cisterna.
Observa-se, com mais esse fato, que não é possível separar a escola da
comunidade em que está inserida, pois, quaisquer acontecimentos em seu interior e
externamente a ela acabam interferindo em sua organização e funcionamento, seja em
defesa das famílias que dela necessitam, seja contrariando os desejos e necessidades do
coletivo.
A questão da Chapadinha não parou pela ação do delegado ao impedir que
a comunidade se utilizasse do espaço da escola, pois, no dia 2 de junho ocorreu uma
briga entre dois moradores, sendo que um deles tinha ingerido bebida alcóolica. Tal
confusão resultou na prisão do morador pelo delegado que, além dessa atitude, acabou
semeando medo na Chapadinha.
Na busca por ver o prisioneiro em liberdade, um grupo de pessoas se dirigiu
até São Félix, onde constataram que o companheiro tinha sido agredido pelos policiais e
trancado, só de calção, em um quarto cimentado cheirando mal, e ali permanecido
durante toda a noite. Embora conseguindo ver o prisioneiro solto, souberam que ele teve
que oferecer depoimento ao delegado Rui Aparecido, cujas perguntas nada tinham a ver
com a briga, visto que estas foram dirigidas para saber sobre a prelazia, sobre o
sindicato e de como a comunidade se organizava.
Ao que parece, os assédios à escola não se limitaram à perseguição, mas
abriram precedente para outras arbitrariedades, a exemplo do secretário do prefeito que,
deixando os professores sem salário por dois meses, ao pagá-los queria faze-lo pela
metade, exigindo que os mesmos assinassem um recibo com o valor total devido. De
pronto, os professores se recusaram a assinar. Também houve candidatos do PDS, que,
dias antes da eleição de 1982, saíram distribuindo alimentos que deveriam ser
fornecidos para a merenda escolar.295
No tópico 2.8 do presente capítulo, apresentamos, com bastante vagar, o
problema com o caixa escolar, que retomamos aqui, não mais com a intenção em
295
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1983 A16.1.32 p 13-19.
222
afirmar que essa prática fora usada em todas as escolas da região, mas, principalmente,
para reafirmar que, no ano de 1983, ela continuou alimentando práticas tirânicas no
contexto escolar, tal como em Porto Alegre, quando, para os alunos acima de 15 anos, a
família tinha que pagar C$ 4.814,00 (quatro mil oitocentos e quatorze cruzeiros) e,
abaixo de 15 anos, C$ 970,00 (novecentos e setenta). O pior é que essa notícia foi dada
faltando somente dois meses para o término do ano letivo, e como era prática
corriqueira, afirmou o diretor que, se não pagassem, não receberiam o boletim com as
notas. O fato é que, mesmo sendo ameaçados, muitos pais desinformados, e não tendo
como pagar, tiraram os filhos da escola.
Da mesma forma que narramos as arbitrariedades cometidas no contexto
escolar, a resistência também se fez presente, a exemplo da 1ª greve na Escola
Alexandre Quirino de Sousa, em decorrência do atraso no pagamento dos professores,
pois, somente em outubro foi lhes pago o salário de mês de março. Mesmo sendo
quitado um único salário mínimo, juntos, somariam 7 meses, seria esta uma forma de
aplicar o dinheiro dos trabalhadores da educação a juros, embora não seja objeto de
nossa pesquisa os desvios de finalidades cometidos pelos desgovernos no século XXI,
parece ser práticas corriqueiras em nossa gestão dos recursos para educação.296
Concluímos o capítulo com o sentimento de que, ao visitar o cotidiano da
escola por meio da fonte privilegiada possibilitou-nos perceber que a escola foi
anunciada, pelas páginas da Folha Alvorada, integrada ao discurso e como tática de
resistência, assim, ela se tornou pedra angular na organização social entre o Araguaia
Xingu mato-grossense. Igualmente podemos afirmar que, embora houvesse como
parâmetro a organização social local, portanto, popular, experimentada em tempos de
governo opressor, não ficou imune às arbitrariedades, externas e internas. Em tempos de
ditadura, ditadora se fez. Passaremos no capítulo 3, a fim de entender o que se ensinava,
quem ensina e o que se ensinava no âmbito da escola e, em especial, que história era
ensinada.
296
Ibid.
223
CAPÍTULO 3
ENSINO DE HISTÓRIA E ‘SUBERSIVIDADE’:
NEM AMAR, NEM DEIXAR, UNIR, DENUNCIAR E
RESISTIR
A escola apresentada no capítulo anterior fez-se edificada na esperança,
num projeto de sociedade concebida com e para o povo. Tal projeto não resultou de
uma ação isolada, mas foi fruto de um processo coletivo, marcado por avanços e
retrocessos, cujo percurso aguçou o desejo de conhecê-lo, assim como aos inventores e
à invenção.
Esse propósito conduziu-nos à Folha Alvorada, cuja garimpagem foram
avolumando os registros sobre os discursos, interpretados com devidos cuidados, os
quais se revelaram para além de um instrumento de poder informativo, mas, um espaço
de memória singular de uma luta coletiva. A pesquisa possibilitou-nos atribuir novos
sentidos à escola, na medida em que aproximávamos do espírito do tempo, marcado
intensamente pelas lutas e enfrentamentos em defesa de uma educação popular e
democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense, transformando a escola em
instrumento de poder e resistência contra os opressores, uma vez vocacionada pela
liberdade do oprimido.
Como verificado, no exterior-interior da escola se formou a resistência
arquitetada pelas lideranças locais e redes da sociabilidades de Pedro Casaldáliga,
ligadas à educação. E ignorar a presença da escola, sua estrutura administrativa, dos
docentes e seus escolares naquele processo de reterritorialização das terras contíguas
entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, seria, no mínimo, desprezar o centro
nevrálgico desse processo. A história da educação no Brasil Central passa pela
compreensão do processo edificação da escola.
Parece-nos que a historiografia, ao adotar os traços da violência e ou dar
relevo às questões agrárias, sem conceder espaço para o processo de informação da
224
sociedade, tomando as famílias e ou os estágios de formação como mera estatística,
contribui para o solapar das vivências, experiências e táticas de resistências, concebidas
com e para a permanência das famílias naquele palco de contendas, exaltando, por sua
vez, em via de mão única, a história do opressor.
Igualmente, privilegiar estudos sobre a política empreendida em torno da
formação das grandes fazendas agropecuárias, fomentadas pelo governo em detrimento
das nações indígenas e de milhares de famílias de posseiros e peões, e ou tomá-los
enquanto vítimas, sem conceder espaço dialógico na compreensão de suas práticas de
„guerrilha‟, cujo enfrentamento foi e continua latente naqueles sertões, antes florestas, o
„inferno verde‟ até a década de 1970, seguido pelos infinitos pastos nas décadas de 1980
e 1990, e hoje intermitentes „desertos verdes‟ com a agricultura de larga escala,
continuarão tais pesquisas, nas páginas dos livros e na história, relegando-os ao não
espaço.
Semelhantes imprecisões ocorrem quanto os estudos deixam de lado, por
razões pouco compreensíveis, os aspectos da cultura, mas com foco tão somente na
figura de um líder. Seria o mesmo que explorar aspectos da vida de Pedro Casaldáliga
enquanto religioso, sem perceber seu próprio processo de construção, como se, ao sair
da Espanha, já se fizesse pronto. Tratam-se, portanto, de equívocos a serem superados,
pois foi no calor da batalha que fez Pedro líder e educador, embora, por razões óbvias,
não haveria de deixar passar incólume sua atuação religiosa. Contudo, sua dimensão de
educador é que nos permite entender sua causa.
A escola inventada no Araguaia-Xingu possibilitou emergir um grandioso
projeto de formação de professores leigos, o INAJÁ, cujo tema será tratado no quarto
capítulo da tese, porém iniciado na década de 1970, como já mencionado. Ele só se fez
possível por meio da rede de sociabilidade estabelecidas com instituições educacionais,
e, antes delas, de pessoas que coadunavam do mesmo pensamento crítico e imbuídos de
vontade de mudar a situação excludente herdada dos séculos de dominação por uma
elite segregatícia e exploradora, que só poderia ser combatida, naquele espaço
privilegiado, por uma educação popular e democrática. Assim, fazia-se necessária
inventar uma escola que fosse tão fecunda e forte como a palmeira Inajá.
Nessa medida, como desdobramento da invenção da escola e na busca por
fortalecer seu principal esteio, os educadores, igualmente foram inventados os cursos de
225
férias, para formar os professores leigos, em 1978, o INAJÁ, em finais de 1980 e início
de 1990, e em seguida as Parceladas, com a oferta de cursos superiores, pela
Universidade do Estado de Mato Grosso, por meio de cursos gratuitos e voltados a
atender as especificidades dos educadores atuantes nas escolas públicas dos municípios
do Baixo Araguaia, que ainda não contavam formação de terceiro grau, projeto que será
mais bem apresentado no próximo capítulo.
Para o momento, voltamos a navegar naquelas águas e verificar sua
trajetória em meio às pedras de tropeços usados como barreiras para impedir que, tanto
a escola quanto as famílias continuassem de pé, unidas e resistindo às bordoadas do
opressor ao longo do tempo, desfechadas no Brasil Central.297
Na espacialidade entre os rios Araguaia-Xingu se edificaram os pilares de
uma escola popular e democrática, porém, assim como qualquer outra instituição, estava
em permanente construção. Nesse sentido, passadas as primeiras experiências da escola
construída em finais da década de 1950, pelo Padre Francisco Jentel, como afirmou a
Folha Alvorada: “Foi o padre Francisco quem trouxe os primeiros professores,
enfermeiros para o lugar, também foi quem construiu a escola‟.298
Foi ele quem
enfrentou a construção dos dois prédios, um para escola e outro para o ambulatório”.299
297
O próprio padre Francisco Jentel descreveu que “[...] essas pessoas analfabetas [...] não conseguiram
manter grandes discussões com os representantes da companhia, que tentava extorquir acordos por escrito
a respeito de textos que eles não compreendiam” (Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do
Araguaia. São Félix. Fevereiro de 1979 A16.0.63 p.2.17). Alertava, portanto, para a necessidade de
prepara-los a também dominar a leitura e a escrita. Para tanto, edificou a escola e para lá levou os
primeiros professores. 298
Ibid. A mesma edição, contou a história do padre Francisco Jacques Jentel, nascido em Merial, na
França, no dia 22 de agosto de 1922, ordenado sacerdote, foi para África onde ingressou na Fraternidade
dos Irmãozinhos de Jesus. Em 1954, veio ao Brasil como missionário na Prelazia de Conceição do
Araguaia, entre os Tapirapé. Chegou ao Furo de Pedras, berço de Santa Terezinha - MT, em dezembro, na
noite de Natal do mesmo ano. Passados 10 anos com os Tapirapé, mudou-se para Santa Terezinha, onde
fundou uma cooperativa, montou máquina de arroz e adquiriu o primeiro trator. Por conta de sua luta em
favor dos posseiros, contrariou interesses de autoridades federais, estaduais e municipais, pois conhecia as
leis e exigia que elas fossem respeitadas. Depois de muita luta e de ter sido condenado por atentado à
segurança nacional, no dia 28 de maio de 1973, foi condenado por um tribunal militar de Campo Grande
a 10 anos de prisão. Passado um ano da detenção, foi absorvido pelo superior Tribunal Militar, visto que
declarando inocente, viajando para a França, logo em seguida. Em dezembro de 1975, voltou ao Brasil,
porém, no dia 12 do mesmo mês foi sequestrado em Fortaleza, por quatro homens da Repressão Oficial e
entregue à Polícia Federal. No dia 15, o Presidente Geisel assinou o decreto de expulsão do Padre
Francisco do Brasil e, no dia 2 de janeiro de 1979, em decorrência de problemas no fígado, faleceu. 299
Os prédios que o padre Chico, como eram chamados pelas famílias que com ele conviveram, foram
aqueles que os posseiros defenderam quando os peões da CODEARA e policiais queriam derrubar, no dia
3 de março de 1972. (Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Fevereiro
de 1979 A16.0.63 p 02.-7).
226
Porém, embora as primeiras iniciativas se deram com o Padre Jentel,
entendemos que a década de 1970 foi o marco fundador da invenção da escola no
Araguaia-Xingu, pois, além da criação da prelazia, inaugurava a Folha Alvorada com o
anúncio de uma frase memorável: “[...] o povo precisa de escolas, de instrução. Um
povo educado, esclarecido é um povo consciente de si e de seu papel na História” a qual
tomamos por empréstimo como epígrafe e problemática do presente capítulo. Como
esclarecer o povo para que pudesse (possa) tornar-se consciente de si e de seu papel na
história, senão pelo ensino? Que ensino de história seria capaz de contestar a história
oficial ensinada, ufanista e nacionalista, proposta pelos manuais didáticos? Que
poderíamos entender por história libertadora? Onde os professores encontravam
subsídio para esse fim? Seguimos em busca de pistas que possibilitem tais respostas.
O editorial da Folha Alvorada, em sua edição de número 3, anunciava um
grande evento que iria acontecer em São Félix do Araguaia-MT, a inauguração do
Ginásio Estadual do Araguaia – GEA, representando “[...] o início de uma nova
alvorada, o despertar de um longo sono”. O ginásio representaria “[...] o centro
irradiador de uma nova luz, que se alastrará por este sertão afora, como fogo em
palha”.300
Naquela inauguração estiveram presentes o Secretário Estadual de Educação,
Dr. Gabriel Novis Neves, se tornando paraninfo daquela unidade escolar; o Prefeito de
Barra do Garças, Sr. Ladislau Cristino Côrtes, a Srta. Arlete Gonçalves, que, segundo a
matéria, muito lutou pela criação do estabelecimento de ensino.
Edificada a escola, dadas as informações de como eram organizadas,
buscaremos a seguir apresentar como o conhecimento histórico, na década de 1970, era
praticado nas escolas de educação básica entre o Araguaia-Xingu mato-grossense,
contudo, passamos a entender um pouco sobre a disciplina.
A disciplina história, como matéria escolar, teve origem na cultura clássica
das Humanidades e somadas a ela estão a Geografia, o Latim, o Grego, a Literatura, a
Filosofia e a Retórica, representando mais de 50% da carga horária das disciplinas dos
programas de ensino desde o século XIX, como afirmou Gasparello.301
300
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Maio de 1970 A16.0.03
P.1.3. 301
GASPARELLO, 2002, p. 68 apud SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. O currículo da disciplina
escolar História no Colégio Pedro II – a década de 70 – entre a tradição acadêmica e a tradição
pedagógica: a História e os Estudos Sociais. Tese (Doutorado em Educação – UFRJ). Instituto de
Educação/Programa de Pós-graduação, 2009, p. 16.
227
Mesmo tendo sido substituída pela de Estudos Sociais (Lei, n. 5.692/71), as
especificidades e objetivos da disciplina história a fizeram hodierna na manutenção do
currículo da escola de educação básica até os dias atuais.
Se tomasse a tradição dessa disciplina ministrada no âmbito das escolas de
educação básica, o ensino de humanidades não contribuiria para a transformação social,
pois, conforme Gasparello:
O ensino de humanidades fundamenta uma concepção de cultura
afastada de qualquer utilidade imediata representada pela ideia de
exercício profissional. O secundário deveria ser desinteressado, isento
de finalidades consideradas menores e particulares, em favor de uma
utilidade superior – a preservação da cultura humanística – que
significava a identificação da elite com essa cultura.302
Seria capaz o ensino de história de manter a tradição do „ensinar a ser‟, sob
o olhar e práticas do opressor? Uma tradição inventada pela elite brasileira em
„programar‟ aquilo que os professores deveriam ensinar em sala de aula das escolas de
educação básica voltadas, em sua grande maioria, para impingir na sociedade a visão de
cidadania, pelas lentes do opressor e vitrine do oprimido, como forma de homogeneizar
o ser e o agir na sociedade?
Para Bittencourt,
[...] a História desempenharia o papel civilizatório mas também
deveria se encarregar da constituição da identidade nacional e da
cidadania politica. Dentro destas perspectivas, a História Universal e a
História eram complementares e suficientes.303
Tomando as reflexões de Bittencourt, surge uma pergunta: que história
ensinada seria suficiente para os escolares espalhados pelo Araguaia-Xingu mato-
grossense, em finais do século XX? Seria a história prescrita capaz de romper com o
contexto, ignorando as categorias ali existentes e suas realidades, na perspectiva da
formação de uma identidade nacional? Só conseguimos entender a força dos banzeiros
vividos no contexto escolar calibrando nossas lentes sobre os fatos em redes locais,
regionais, nacional e internacional, nas décadas de 1970 e 1980.
302
GASPARELLO, op. cit. apud SANTOS, 2009, p. 64. 303
BITTENCOURT, 1992, p. 199 apud SANTOS 2006, p. 84.
228
A educação na América Latina naquele período foi marcada por governos
austeros e pouco preocupados com a educação escolar para o povo, pois estavam
interessados no „desenvolvimento econômico‟, seguindo a tradição dos governos
antecessores, para a „elite‟. Em Mato Grosso, os grandes latifundiários contribuíram
para esse caldeirão em ebulição. Porém, contrariando a todas as probabilidades, foi
naquele momento que a escola popular se revelou como forma de combater os
governos, resistindo frente às forças opressoras.
Pensadores em educação denunciavam as mazelas a que estava condenada a
sociedade no entorno da escola, assim como os mecanismos de controle político a serem
superados. Tais características foram largamente contestadas pelo educador brasileiro
Paulo Freire, em sintonia e em tons e realidades com nuances de similaridades com a
educadora argentina Maria Tereza Nidelcoff (1994)304
, com os quais estaremos
dialogando ao longo deste capítulo, tomando o cotidiano das escolas do Araguaia-Xingu
mato-grossense, território analítico.
A observação do cotidiano das escolas de educação básica, graças às lentes
das matérias publicadas pela Folha Alvorada, é possível perceber uma latência pela
formação política das famílias, transformando a escola em anteparo à resistência e
difusora de conhecimento sobre os processos históricos que desaguaram no conflito pela
terra, bem como na perspectiva das táticas que resultaram em ações imperiosas para a
organização social e, como bandeira de luta, a transformação da realidade vivida pelas
comunidades organizadas entre o Araguaia-Xingu mato-grossense.
Observar a escola e o ensino de história nesta perspectiva revela-nos uma
escola engajada e ensejada por uma educação popular, distanciando-se qualitativamente
dos estereótipos e preconceitos, presentes nas representações produzidas no próprio
meio acadêmico, escolar e na sociedade sobre o papel da escola e do ensino de
história.305
Tomando tais reflexões como base, ao explorar traços daquele cotidiano,
agora vistos não mais como ilustração ou idealização, mas sim como recurso analítico,
seja por meio das ações dos sujeitos, individual e coletivamente, no tempo e no espaço,
permitiu-nos entender um pouco sobre as aproximações e distanciamentos desse grande
304
NIDELCOFF, Maria Teresa. Uma escola para o povo. [tradução: João Silvério Trevisan] 37 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994 305
RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história, instituição escolar e formação
docente. História & Ensino. Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez. 2015, p. 153.
229
enigma aos pesquisadores que, tomados por uma tradição do pensamento, vestiram a
escola como um espaço incapaz de criar algum tipo de produção intelectual própria.
Lançar olhares sobre aquele momento histórico e o lugar é possível revelar
que a escola produziu narrativas por meio de práticas, superando a raia lindeira da
reprodução da récita de uma educação cívica, uma „pedagogia do cidadão‟, conforme
Laville306
, tendo por finalidade maior confirmar a nação no Estado em que se
encontrava no momento e criar nos membros dela o sentimento de pertencimento,
respeito e dedicação para servi-la. Seria possível afirmar a existência de uma escola
autora de práticas de liberdade? Teria o ensino de história contribuído para tal fim?
Seria possível analisar a história ensinada em sala de aula alheia aos processos
vivenciados em seu entorno? Tais respostas nos move a busca.307
Neste capítulo, haveremos de aprofundar a narrativa sobre o processo de
edificação da escola e perceber, em seu interior, a história ensinada a partir da qual,
traçaremos um paralelo entre o fazer do professor e as relações estabelecidas entre a
escola e a comunidade, revelando se esta conseguiu fugir aos princípios norteadores da
escola tradicional tratados por Ribeiro:
[...] ordenação mecânica de fatos em causas e consequências;
cronologia linear, eurocêntrica, privilegiando a curta duração;
destaque para os feitos de governantes, homens brancos, numa visão
heroicizada e idealizada da História; conteúdos apresentando aos
alunos como pacotes-verdades, desconsiderando e desvalorizando
suas experiências cotidianas e práticas sociais.308
A literatura referente às questões sobre a história ensinada ganhou espaço
nas publicações, em meados da década de 1980, onde emergiam propostas curriculares
de história, especialmente nos espaços onde os professores especialistas lideravam as
reflexões críticas sobre o modelo positivista e a busca por modelos alternativos.
306
LAVILLE, 1999, p. 126 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,
instituição escolar e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez.
2015 apud CAIMI, 2006, p. 156. 307
Neste trabalho pensamos o exterior-interior sala de aula em dois espaços-tempo distintos, o das duas
primeiras décadas, por entender que as práticas dos professores em sala de aula estiveram mais integradas
ao processo comunitário. Já nas duas últimas décadas, por conta dos processos advindos da Lei n.
9.395/96 e pela estruturação das escolas, infraestrutura física e humana, tecnologia e currículo estarem
mais próximas do projeto estatal, traduziu, por conseguinte, maior distanciamento entre o fazer do
professor e a comunidade, todavia, essa é uma hipótese a ser confirmada ou refutada no quarto e último
capítulo da tese. 308
RIBEIRO, Renilson Rosa. Op. cit.
230
Esse movimento passou aos debates sobre temas de estudos e publicação
referentes ao ensino de história, conforme registrou Fonseca: história do ensino de
história, livros didáticos e paradidáticos, produção do conhecimento, construção de
currículos, ensino temático, diferentes linguagens, novas tecnologias entre outras309
.
As reflexões resultaram em inúmeras publicações em coletâneas e dossiês
de periódicos científicos no país. Portanto, manancial por onde se pode entender a
história ensinada e as razões pelas quais as fizeram. Porém, essa produção oferecia
campos opostos e por onde os professores poderiam seguir, eis um dilema que
perseguiremos no tópico a seguir.
3.1 - Os dilemas de o professor ensinar história nas escolas o Araguaia-Xingu mato-
grossense
Na busca por entender um pouco sobre os dilemas do professor de história
na escola de educação básica no Araguaia-Xingu mato-grossense, já bem delineada do
ponto de vista de sua invenção e sua importância no contexto da reterritorialização dos
sertões, faremos um mergulho sobre os dilemas vividos pelo professor, ao se deparar
com o desafio em ensinar história. Como já antecipamos algumas questões, percebemos
que a grande maioria não tinha passado por uma formação acadêmica específica nesse
campo de conhecimento, até porque, na década de 1970, considerando a existência do
curso de História Natural, em atividade desde 1966, o número de professores formados
não atendia à demanda.
Embora as publicações sobre a história ensinada no Brasil tenham surgido a
partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980, culminando com o período da
derrocada dos governos militares, passadas quase cinco décadas o ensino de História
ainda vive seu dilema, próprio na construção do saber-fazer do professor de história,
pois, além de dominar o conhecimento histórico, a docência requer conhecimentos
amplos, para além dos manuais, para saber escolher que história ensinar, porque e a
quem ensinar e com que objetivos.
Conforme Ribeiro, nas últimas décadas a história e seu ensino tem passado
por um processo crescente de revisão dos esquemas globalizantes e homogeneizadores,
309
FONSECA, Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2004, p. 92.
231
os quais, por muito tempo, nortearam as teorias e as práticas historiográficas,
culminando na ampliação do campo de história com novos problemas, novas
abordagens e novos objetos, ampliando ainda mais os desafios.310
Assim recorremos às
questões de fundo, que ensinou o professor de história nas escolas entre o Araguaia-
Xingu e nordeste de Mato Grosso? Embora tenhamos apontado algumas alternativas
encontradas pelo professor ao ensinar história em meio ao conflito entre posseiros e
latifúndio, resta-nos saber como lidaram com seu ensino durante o período em que o
conflito pela terra era mais evidente, assim, ampliava o dilema, que currículo se tornou
possível naquele contexto?
Há de se lembrar que, no final da década de 1960 e início de 1970, a
legislação educacional brasileira proporcionou mudanças curriculares importantes para
as escolas de educação básica (1º e 2º graus, o que hoje corresponde ao ensino
fundamental e ensino médio), e, especificamente para o campo da história, foi criada a
disciplina Estudos Sociais, para o 1º grau, que deveria ser lecionado por professores
polivalentes nas classes de 1ª a 4ª séries, e por profissional diplomado em história ou
nos cursos de estudos sociais para as 5ª à 8ª séries (hoje equivale do sexto ao nono ano).
Com a Reforma do Ensino que efetivou os estudos sociais no currículo
nacional de 1º grau e incentivou a criação do curso superior de Estudos Sociais, essa
medida resultou na tentativa de restringir o campo de atuação do professor de história
no ano de 1976, quando somente os profissionais formados em licenciaturas curtas em
ciências sociais iriam atuar no ensino fundamental. Um projeto de escola imposto pela
ditadura não poderia ser outro, que não uma escola que atendesse ao projeto autoritário:
A escola do autoritarismo, da repressão e do controle sobre a
sociedade civil, aliada à implantação de um modelo econômico
concentrador de capital e de renda, destrói as escolas ou extrai delas
somente os seus suportes técnico-pedagógicos, colocando-os a serviço
de uma nova política educacional.311
Assim, percebemos que o campo do professor de história sofreu duplo
golpe, o primeiro, com a tentativa de supressão de seu espaço de atuação, segundo, com
a definição prescrita de um currículo dosado pela censura. Seria possível constatar
310
Ibid. 311
NADAI, Elza. O ensino de História na América Latina. In: Anais do Seminário Perspectivas do
Ensino de História. São Paulo: FeUSP, 1988, p. 10.
232
proximidades e ou distanciamentos entre o cotidiano da escola de educação básica no
Araguaia-Xingu, percebendo a atuação do professor nas décadas em que o Brasil vivia
um governo autoritário e em espaço de consolidação de um projeto iniciado na década
de 1940 e intensificado durante o governo militar? Seguimos explorando e
historicizando a escola e a educação escolar, tomando os projetos oficiais e sua
contestação enquanto forma de resistência no e pelo ensino de história.
Nessa busca, focamos o olhar na organização escolar, questionando se o
„disciplinar militarizado‟, proposto pela ditadura nas décadas de 1970 e 1980, conseguiu
„imprimir‟ o tão almejado „projeto civilizatório‟, inaugurado no Brasil Império com o
Colégio Pedro II? Como se deram os usos do currículo prescrito de história delineado
pelos manuais didáticos para esse ensino? Como se rivalizou a história estruturada
como matéria escolar naquele cotidiano em que se respirava, de um lado, o sonho pela
conquista da terra como sinônimo de liberdade e, de outro, o „progresso‟
desenvolvimentista no Brasil Central?
Quais aspectos da história ensinada podem ser percebidos como alinhados
ao projeto de sociedade defendido pelo governo ditador, e que aspectos destoavam de
seus propósitos? Seria possível afirmar a existência de uma „resistência‟ por parte dos
inventores da instituição escola? Em hipótese, poderíamos aventar a existência de uma
guerrilha orquestrada pelos subversivos professores que contribuíram para a
mobilização e arregimentação das comunidades, com o conhecimento disseminado por
meio dos processos educativos escolares, táticas de guerrilha na defesa dos direitos dos
oprimidos, em combate ao opressor? Se existiu, teria alcançado êxito diante dos „atos
falhos‟ do governo militar que, distante do que anunciavam os programas de governo
adotado, especialmente em relação à educação?
Importante destacar que, diante de seu inquiridor, querendo saber o que
Casaldáliga achava da guerrilha, o bispo disse: “Lamento la existência de las guerrillas,
admiro la ¿utópica? generosidad de muchos guerrilleros, pero, sobre todo, condeno
inexorablemente las causas que provocan las guerrillas. Y, en principio, me parece más
digno un guerrillero que un dictador”.312
As proposições acima tencionadas serão melhor apresentadas no decorrer da
narrativa, na medida em que serão apresentados fatos que marcaram o cotidiano da
312
CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Claves
Latinoamericanas, México 1990, s/p.
233
maioria das famílias que protagonizaram a presença da escola de educação básica no
Araguaia-Xingu mato-grossense, as quais, como já exibidas, tiveram suas vidas
marcadas pela ausência do Estado, no tocante ao atendimento à educação, saúde,
segurança, infraestrutura, entre outros, porém, contrariando sua função, o Estado se
fazia presente na concessão de terras e incentivos fiscais ao grande latifúndio nacional e
internacional, além de manter um efetivo aparato policial nas ações que resultaram na
expulsão, prisão e morte de centenas de pessoas, sob o pretexto de estarem combatendo
crimes cometidos pelas famílias de posseiros.
Resta-nos entender de que forma esse discurso oficial foi tratado em sala de
aula, assim como compreender como o mesmo era conceitualmente pedagogizado pelos
professores de história. Seria ela capaz de oferecer aos estudantes outro sentido que o
„imposto‟ pelo discurso da polícia?
Pensar uma escola que produzisse práticas de liberdade dependeria de uma
mudança radical no tocante a pensar seu currículo, o qual deveria estar voltado à
formação de „cidadãos críticos e participativos‟, como ponderou Ribeiro, mas também
permeado de práticas que deveriam estar para além dos discursos. Para tanto,
igualmente requeria profissionais que se identificassem como produtores de saberes, e
não meros aplicadores de fórmulas prontas, produzidas em outros lugares institucionais,
iguais às receitas de como aplicar o „ensino ideal‟, geralmente acompanhadas do verbo
conjugado no imperativo, „deve‟. Assim, o currículo de história haveria ter foco na
solução de problemas locais, potencializando a construção de um projeto de escola
inventada para a educação popular.
Na busca por confirmar tais dimensões de escola e de currículo, vale
acrescentar algumas perguntas iniciais: A escola estaria considerando todas as
dificuldades operacionais e se colocando próxima da comunidade o suficiente para
cumprir sua função social, qual seja, a de promover situações de aprendizagem partindo
das problemáticas emergidas de seu contexto? Estariam, com tais práticas, quebrando
paradigmas de gestão, por meio de decisões tomadas pelo coletivo de pais, professores e
comunidade? Alcançou ela práticas democráticas em tempos de um governo ditador?
Em que instituição ou linha de pensamento inspirava suas ações? Em caso dessa
experiência ter cumprido esses propósitos, como eram elas postas em prática por parte
da liderança local, dos gestores e professores? Praticou a escola um currículo onde o
234
aprendente pudesse se identificar a partir de sua realidade sócio histórica e, tomando-a
por ponto de partida, poderia ele almejar novos horizontes?
Igualmente se faz necessário entender como o currículo foi elaborado para a
escola ali inventada, uma invenção da tradição, conforme Goodson:
Mas, como acontece com toda tradição, não é algo pronto de uma vez
por todas; é antes, algo a ser defendido, onde, com o tempo, as
mistificações tendem a se construir e reconstruir sempre de novo.
Obviamente, se os especialistas em currículo ignoram completamente
a história e a construção social do currículo, mais fáceis se tornam esta
mistificação e reprodução de currículo „tradicional‟, tanto na forma
como no conteúdo.313
Essas questões balizarão o olhar que lançamos sobre os fragmentos do
cotidiano das famílias, dos professores, enfim, de todos aqueles que se organizaram em
torno da edificação da escola, a partir dos quais apresentaremos algumas reflexões,
iniciando por um episódio que, além do conhecimento e da intervenção do professor,
teve que pagar por sua „audácia‟, convertida em ato político em defesa da dignidade
humana ao peão de trecho no momento do seu enterro, já que em vida pouco valor tinha
para os opressores.314
As respostas às questões elencadas nesse primeiro tópico serão apresentadas
ao longo do capítulo, e, para conclusão desse tema inaugural, analisaremos uma matéria
publicada, no ano de 1984, pela Folha Alvorada, a qual consideramos fundante no
projeto que visava tornar o povo consciente de si e de seu papel na história. A matéria
fez alusão aos 87 anos da história de destruição de Canudos, conforme Figura 14.
313
GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 78. 314
Peão do trecho era uma expressão comum dirigida às pessoas que, distante da família e origem, viviam
de fazenda em fazenda vendendo sua mão de obra, e, por conta da falta de contrato que assegurasse seus
direitos, acabavam “rodados” no trecho, ou simplesmente peão do trecho, dependendo da ajuda das
famílias da região. Muitos acabavam constituindo família e ou vivendo agregado.
235
O texto está dividido em duas partes, a primeira conduz o leitor a refletir
sobre sua origem, cuja maioria veio do Nordeste, cotejando os aspectos políticos
vividos pelos sertanejos de Canudos com os das famílias sendo explorados nos sertões
do Araguaia-Xingu mato-grossense pelos ricos proprietários de terras e pelos políticos
e, como vimos anteriormente, pelos comerciantes, em especial, nos cabarés.
Outro destaque na primeira parte do texto é dado à reação e luta de homens
e mulheres organizados em comunidade igualitária, onde todos partilhavam do trabalho
e usufruíam de seus produtos, não havendo necessidade de cadeia, tampouco de polícia.
Em seu intertexto, uma imagem e expressão tornavam a matéria emblemática,
colocando a resistência em primeiro plano e, na segunda parte do texto, uma expressão
produzia efeito: a crítica ao governo por este, em todos os tempos se colocando em
defesa dos interesses dos poderosos. Por fim, chamou atenção para a história que os
livros didáticos distorcem:
Em nossa região, onde a maioria do povo descende de nordestinos,
todos já devem ter ouvido falar na história de Canudos e seu líder
Antônio Conselheiro, no dia 5 de outubro completam 87 anos que a
população de Canudos foi massacrada pelas tropas do governo. Como
acontece ainda hoje, naquele tempo o povo sertanejo era ignorado
pelas autoridades do país e só existia para ser explorado e perseguido
pelos ricos proprietários de terra e os políticos.
Um grupo de homens e mulheres, liderados por Antônio Conselheiro
lutou contra essa situação e organizou uma comunidade igualitária às
margens do Rio Vaza Barris no sertão da Bahia: era a cidade de
canudos. Todos participavam da comunidade, repartiam o tralho e
236
seus produtos e não havia nem cadeia e nem polícia. O governo, que
em todos os tempos sempre esteve defendendo os interesses dos
poderosos não podia admitir que houvesse no país uma sociedade
comunitária e enviou tropas do Exército Nacional para acabar com
Canudos.
Os moradores resistiram com muita coragem: homens, mulheres e
crianças. Foi uma luta difícil, desigual. Aquela gente simples, com
pouquíssimas armas não podia contra as armas do Exército. Mas o
povo não se rendeu, lutou até os últimos homens, um velho, dois
adultos e uma criança contra 5 mil soldados. Canudos caiu no dia 5 de
outubro de 1897.
Nos livros usados na escola essa história sempre foi distorcida,
contada do jeito que interessava as classes dominantes. Porém, o povo
precisa conhecer melhor a sua própria história.315
A matéria traduziu inúmeras informações importantes que vão desde a
necessidade de se estabelecer paralelos entre a realidade vivida pelas famílias que se
uniram em torno de uma causa coletiva (comunitária) e foram massacradas pelo
governo, que, ao longo dos tempos sempre estiveram na defesa do interesse dos
opressores, sobrelevando também a necessidade de se seguir o exemplo de coragem
daquele povo diante das atrocidades praticadas pelo governo aliado aos poderosos.
Chamava ainda atenção para a “[...] história distorcida, contada do jeito que
interessava a classe dominante”316
e que o povo precisava conhecer melhor sua própria
história. Por fim, a matéria alertava para a necessidade de distanciamento da história
oficial, pois esta em nada contribuiria para que os escolares deixassem de reproduzir
aquela „inventada‟ pela ideologia dominante. Clamava, portanto, para a dialética do
conflito. No próximo tópico voltaremos nosso foco para uma sequência de fatos,
objetivando entender um pouco mais dos desafios da escola e do professor em tempos
de tirania.
3.2 - Aprendizados do professor Juraci: caluniador de „autoridades‟ pelo triste fim de
um peão do trecho „morto e pronto‟
315
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A16.3.09 p 10-15. 316
Ibid.
237
Iniciamos o tópico com as perspectivas de Fanon, ao relacionar a dialética
do conflito: “O trabalho do colono é tornar impossível todos os sonhos de liberdade do
colonizado. O trabalho do colonizado é imaginar todas as combinações eventuais para
aniquilar o colono”.317
Abrimos a janela do tempo para visitar o cotidiano de 1978, quando o
professor da Escola do Crisóstomo, atual município de Santa Terezinha-MT, José
Juraci, ao passar em companhia do subprefeito defronte do cemitério, viu a polícia
enterrando os restos mortais de um homem que tinha sido encontrado, um daqueles
„peão do trecho‟, como tantos outros que morriam naquela região, sem ninguém por ele,
sem identidade, morto e pronto.
Percebendo aquela cena do corpo embrulhado em tecido, o professor
perguntou se não podiam dar um enterro de cristão ao homem, se o delegado não
poderia fazer, ao menos, um caixão para enterrar o defunto. Diante da queixa, a polícia
reagiu violentamente perguntando por que ele não comprava a urna funerária e, em
seguida, deferiu-lhe tapas e empurrão, exigindo que o professor abrisse a cova, e
ameaçando-o com um revólver.
Diante da recusa do professor em abrir a cova, o policial levou o professor
Juraci preso, e na delegacia foi revistado e solto em seguida. Mas, ao sair da cadeia, o
professor Juraci deu fé que tinha sumido 500,00 (quinhentos cruzeiros) de sua carteira,
quantia que tinha recebido do vereador Manuel Quitandeiro, como parte dos seus
vencimentos318
.
Logo após, foi à casa do vereador e queixou-se do ocorrido e este, por sua
vez, compareceu perante o delegado Rui Milhomem para reclamar o fato, mas, com
desfecho nada democrático e pacífico, a polícia imediatamente prendeu novamente o
professor, acusando-o de ter caluniado a autoridade. Sua prisão custou um dia e uma
noite de domingo, tendo sido solto só na segunda feira, após ter capinado todo o pátio
da cadeia, quando só depois foi solto319
.
317
FANON. Frantz. Op. cit., p. 59. 318
Percebe-se que o pagamento do vencimento dos professores poderia ser repassado por terceiros, nesse
caso, pelo vereador (vice-prefeito). Tal transação se dava por não haver qualquer agência bancária na
localidade, portanto, o pagamento era feito em espécie, ou cheque a ser “descontado” no comércio local.
O que, de certa forma, abria precedente para o desvio de salário para fins que não o pagamento dos
serviços prestados, ficando os servidores, dependentes dos líderes políticos. 319
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 55 p 4-9.
238
Ao avaliar o fato, é possível afirmar que o professor cumpriu dois papéis
importantes, o primeiro, como cidadão e humanitário, tomando partido requerendo
tratamento digno ao defunto, o segundo, e talvez para aquele momento o mais
importante, ao reclamar por seus direitos, ao ser-lhe subtraído o cheque. Sendo um
professor, certamente em sala de aula asseverasse igualdade de direitos para todos,
independente da origem, raça, fé, condição social. Portanto, no cemitério e ou na
delegacia, sua atitude em fazer valer o direito seu e deu outrem custou-lhe alto preço.
Por outro lado, pode-se igualmente mensurar as ações cometidas pelos
representantes da lei, naquele caso os policiais, ao enterrarem de qualquer modo os
restos mortais do peão, o que demonstra certa proximidade com aspectos anunciados
por Fanon320
, como consequência do processo de opressão, quando o povo colonizado
vê-se reduzido a um conjunto de indivíduos que não encontra a sua razão de ser, refiro-
me à ação de enterrar o indigente desconhecido sem os devidos cuidados cristãos. Tal
atitude fez dos representantes da força policial vítimas de sua própria condição,
perdendo-se enquanto ser humano, no ofício de sua profissão.
Porém, para entender esse processo, haveremos de indagar: que crime
cometeu o professor por reclamar um pouco de humanidade no trato com o morto? O
fato de ter seus vencimentos „subtraídos‟ e se queixar a uma autoridade teria sido
motivo para ser preso? Naqueles tempos de ditadura e lugar, essa era uma realidade,
uma vez que reclamar por seus direitos e tornar pública a insatisfação poderia resultar
em dupla condenação: primeiro, por não ser sido assistido; segundo, por ter reclamado
e, por consequência, ser tachado como subversivo, apenado com prisão e, em muitos
casos, espancamentos e ou submissão a serviços forçados, como ocorreu com o
professor José Juraci.
Parece-nos que os discursos do governo ditador lançava mão de conceitos
teoricamente conhecidos, como „progresso‟ e „desenvolvimento‟, o que exigia uma
sociedade ordeira. Porém, em nome da ordem praticavam „desordem‟. Assim, para que
as famílias não fossem tomadas pela „passividade‟ e „convencidas‟ de que não
adiantaria se levantar contra os opressores, criaram novos espaços de duelo além do
320
Ibidem.
239
Jornal Alvorada, a exemplo do livro de poesias publicado pelo poeta Zé Diluca321
, do
qual extraímos uma de suas poesias:
Havia até desmantelo
Entre índio e posseiro.
Índio com índio brigava
Porque índio é guerreiro,
Mas tudo se agasalhava
No rico chão brasileiro
E vem a revolução:
Desceu do céu um avião
Trazendo o fazendeiro.
O índio virou sorvete
Derreteu, sumiu de vista,
Posseiro caiu na estrada
Com o trabuco do paulista.
A mata virou juquira
E a roça virou pista
Na hora que nós reclama
Bate em nóis e ainda chama
De invasor e comunista.
Ao ler o texto poético, observa-se uma preocupação em traduzir o processo
histórico antecedente à chegada dos fazendeiros, afirmando a existência de conflitos
índios x índios, índios x posseiros, mas que tudo se agasalhava, pois, embora
resultassem em prejuízo de ambos os lados, alcançavam equilíbrio nas formas de
convivência. Porém, a implantação das fazendas significou uma transformação radical,
uma revolução, pois, tanto o índio quanto o posseiro se tornaram „sem terras‟ e sem
direito de reclamar. Do contrário, ganhariam um novo status social, o de persona non
grata, invasores e comunistas.
Concluímos este tópico afirmando que o professor Juraci, ao reivindicar um
sepultamento digno aos restos mortais de um peão do trecho, rebelava-se contra a
naturalização de práticas nada humanizadas em relação ao povo trabalhador. Igualmente
o Zé Diluca, ao produzir sua narrativa poética denunciadora de uma prática do governo
autoritário que, muito distante de contribuir para que as famílias de posseiros fossem
atendidas pelos poderes constituídos, acabavam por expulsa-los da terra. Assim,
retomamos a hipótese de que a escola e a educação escolar praticada entre o Araguaia-
Xingu trouxe consigo singularidades para seu tempo, cujas tensões veremos no tópico a
seguir.
321
DILUCA, Zé "Peleja das piabas do Araguaia com o tubarão Besta Fera: a história de um povo que se
liberta" 1981. Livro de literatura de cordel distribuído em São Félix do Araguaia-MT, In OLIVEIRA,
Ariovaldo Umbelino. A fronteira amazônica mato-grossense: grilagem, corrupção e violência apud
CEDI, 1983, p. 19-20. São Paulo: Iandé, 2016, p. 165. Sem grifos no original.
240
3.3 - Desafios ao professor de produzir uma educação escolar que ensinasse o caminho
da liberdade
Alfabetizar um homem é torna-lo capaz de escrever sua vida, como
autor e testemunha de sua história – biografar-se, existenciar-se,
historicizar-se. Isto não é possível em regime de dominação, porque
só se pode produzir e se desenvolver na dinâmica de uma pedagogia
do oprimido.322
Parece-nos que os desafios se avolumavam na medida em que aumentava a
pressão do latifúndio sobre as famílias de posseiros e indígenas, que, por sua vez, para
não sair de suas terras, arregimentaram forças para resistir, e, como já mencionamos, a
escola era um caminho, porém não bastava tê-las, visto que por meio delas dever-se-ia
oferecer conhecimentos suficientes para que as famílias pudessem fazer uso deles em
sua defesa. Igualmente haveria de serem preparados professores, pois, caso não o
fizessem, tornaria o projeto inexequível, por duas razões básicas: a primeira, a de que
ninguém ensina o que não sabe; a segunda está diretamente ligada ao fato de o professor
ter autonomia para escolher o que ensinar.
Em agosto de 1984, a Folha Alvorada publicou matéria anunciando o
Encontro dos Professores no Município de São Felix, ocorrido entre os dias 24 a 28 de
julho. Tratava-se do 1º encontro das escolas municipais, do qual participaram 95
educadores vindos de todos os patrimônios do município, e teve por tema central: O que
é Educação e como ela se realizava naquele ano. Procuraram divulgar as respostas dos
professores, dentre outras, mereceram destaque:
[...] a) estava longe de ser uma educação boa, pois era marcada por
graves falhas; b) uma educação que oprimia e limitava o aluno em sua
criatividade; c) não ajudava o aluno a compreender a realidade e não
formava consciência crítica; d) ensinava coisas que não tinha nada a
ver com a vida do aluno e sem aplicação no dia a dia.323
322
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, 43. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p.8. 323
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A 16.3.07 p 13-14.
241
Partindo dos pontos levantados, bem como das in-formação obtidas durante
o citado evento, a exemplo da pouca importância revelada pelo parco investimento, de
5% do orçamento destinado à educação, conforme publicou a matéria, os professores
decidiram por uma educação nova, democrática, que caminhasse em direção à liberdade
e não para o cativeiro, e que o mestre deveriam estar conscientes de seu papel na
construção de um mundo melhor, agindo sempre de forma a despertar na criança o
observado nas figuras 15 e 16, as quais reproduzimos traduzindo seus significados:
a) Liberdade, respeito, igualdade;
b) Importância da troca de experiências;
c) União, consciência crítica;
d) Conhecimento, solidariedade;
e) Participação de todos.
242
Os pilares elencados apontavam para uma aproximação com as reflexões de
Paulo Freire e, especialmente, em relação à educação popular. Todavia, haveremos de
problematizar a educação popular, embora tenha sido bastante estudada ao longo das
últimas décadas, por entender os seus significados no Araguaia-Xingu mato-grossense,
pois ela se tornou motivo de inquérito instaurado pelo governo autoritário contra o
contra o bispo Pedro Casaldáliga. O inquérito foi instaurado contra o líder religioso e
seus colaboradores, ao tempo em que o governo reconhecia um projeto de escola
popular e democrática entre o Araguaia-Xingu.
Uma vez inquirido sobre o significado de socialização por Dr. Francisco, a
serviço de o governo militar no início da década de 1980, D. Pedro respondeu:
Para mí, Dr. Francisco, socialización sería la mayor participación
posible de todos los ciudadanos, dentro de la mayor igualdad posible,
en todos los bienes „de la naturaleza y de la cultura‟. (La expresión
entrecomillada hacía referencia a la nomenclatura de Paulo Freire,
cuyas doctrinas y métodos de educación popular fueron también
cuerpo de delito en nuestro ‘inquérito’).324
O bispo e os membros da equipe pastoral estiveram, por longos anos, sob a
vigilância dos agentes federais e da polícia local, sempre a mando dos governos estadual
e federal, além da força (pistoleiros e jagunços) contratada particularmente pelos
fazendeiros. Todavia, a questão motivadora do interrogatório estava ligada à
problemática social da região, o que confirma nossos argumentos de que a escola e a
educação serviram, por um lado, como redenção e tática de resistência e, de outro,
objeto de cobiça para manutenção de poder. Uso o termo objeto de cobiça por razões já
mencionadas, muito embora a edificação das escolas entre o Araguaia-Xingu não tenha
sido custeada pelo Estado, como preconizava a legislação.
De posse dessas informações, somadas às contidas na Folha Alvorada,
competia-nos prosseguir, revelando as bases que deram sustentação à formação dos
professores e, em especial, os que atuavam no ensino de história, cujo propósito
possibilitará, conforme Ribeiro, “[...] entender se os professores desenvolvem, com seus
alunos, procedimentos básicos de pesquisa histórica na sala de aula e atitudes
324
CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado sentido a mi
vida, Desclée de Brower, Bilbao (España) 1976, p. 70. Sem destaque no original.
243
intelectuais de desmistificação de ideologias, das imagens de heróis nacionais, da
sociedade de consumo e dos meios de comunicação”.325
Estariam os professores, especialmente os de história, preparados para
refletir sobre os desafios de preparar seus alunos para viver a democracia? Como
contribuíram para romper com a „estrutura‟ mental imposta pela ditadura militar (1964-
1984)? Como a formação em serviço, por meio dos cursos de formação continuada, e
em serviço, a exemplo do Projeto Inajá, contribuiu para esse desiderato? Estas e outras
respostas serão prospectadas no quarto capítulo da tese. Para tanto, apresentamos as
páginas inaugurais no próximo tópico.
3.4 - Aprender e ensinar história em linguagem poética
A escola trabalha com conhecimentos sistematizados e validados por um
determinado grupo de cientistas e tornados públicos com a intenção de, num
ziguezaguear de antíteses, reformar o pensamento e, assim, ampliar o universo de
seguidores, desta ou daquela corrente de pensamento. Esse movimento resulta em novas
espacializações do saber, pela adoção ou imposição, ganhando, em cada contexto,
significados distintos.
Todavia, parece-nos que as respostas seguem os interstícios da ciência, o
que possibilita a construção de saberes, autorizando aos escolares conhecer e reconhecer
os limites das ciências nas e pelas práticas. Eis, portanto, o aspecto a ser tratado no
presente tópico, o de entender como os escolares construíram, nas circunstâncias já
largamente mencionadas, suas práticas de ensinar história.
Sobre a ciência, Paulo Freire afirmou que, em primeiro lugar, o rigor
científico, especialmente o acadêmico, distante de ser uma categoria metafísica, ele é
uma categoria histórica, da mesma forma que o saber tem sua própria historicidade.
Assim, a ciência que exige rigor não é nenhum a priori da história. Freire continua sua
reflexão afirmando que a ciência é uma criação humana, histórica e social. Assim, não
basta conhecer o saber, mas sua origem e importância na história, e que a escola:
[...] leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta,
possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história
325
RIBEIRO, R.R. op. cit., p. 92.
244
[...] tornando a escola um espaço de ensino-aprendizagem (...) centro
de debates de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular
vai sistematizando sua própria experiência.326
As reflexões freirianas auxiliam-nos a pensar a educação no Araguaia-
Xingu mato-grossense, contribuindo para que possamos entender como o saber histórico
permeou o universo da escola, possibilitando-nos refletir sobre como o professor de
história conseguia mediar conhecimento naquele contexto? Como poderia cumprir o
papel de professor de uma área do conhecimento na qual não tivera a devida formação?
Que estratégias adotou para superar os limites, ao ter que fazer uma escola sobre o que,
como, onde, por que e para quem ensinar história? Ao lançar tais indagações, ampliam-
se os desafios, já que poucas são as chances de respostas conclusivas. Porém,
caminhamos no sentido de encontra-las ao arremedo por „caçar‟ uma agulha no
palheiro, mas com chance de encontrá-la por meio do estudo histórico.
Para Hobsbawm, “[...] todo estudo histórico implica uma seleção minúscula,
de algumas coisas da infinidade de atividades humanas do passado, e aquilo que afetou
essas atividades. Mas não há nenhum critério geral aceito para se fazer tal seleção”.327
Pensar a escolha do assunto, o recorte e os propósitos do professor ao ensinar história
para os aprendentes, naquele momento histórico, passava pelo crivo de seu tempo, com
nuances de críticas ao sistema capitalista opressor, representado ali pelos emissários do
governo, mais precisamente pelos políticos da Aliança Renovadora Nacional (ARENA)
e a polícia voltada à defesa o interesse dos tubarões. Portanto, uma análise marxista,
tomando as estruturas presentes com a finalidade de orientar a práxis social, conforme
conhecimento útil para a atuação da realidade hodierna.328
Distante de pensar que o professor que ensinava história conformava-se à
condição de máquina de ensinar e o estudante das escolas do Araguaia-Xingu em
máquina de aprender, tampouco é possível afirmar que os processos eram padronizados
e automatizados, pois a maioria dos professores não tinha passado por formação
acadêmica, assim como nem todos tinham acesso a um livro didático, como em finais
da segunda década do século XXI.
326
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 16. 327
HOBSBAWN, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 71. 328
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandez. Ensinar História: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2004, p. 154.
245
Assim, o conhecimento histórico, bem como a mediação e aprendizagem
tinha por suportes materiais que circulavam entre as comunidades, dentre eles se
destacava a Folha Alvorada, com seus textos críticos reflexivos veiculados em vários
formatos, a exemplo as poesias, imagens, textos que corroboravam para outros jeitos de
fazer História na educação básica, contribuindo, assim, com a arte de inventar a
história ensinada em sala de aula como parte da invenção da escola.
Ao tomar aquele contexto, podemos afirmar que ensinar e aprender
compõem uma dimensão histórico-social do conhecimento, envolvendo valores éticos,
estéticos e políticos a serem revelados nas atitudes do professor e dos aprendentes.
Naquelas paragens, o fazer escolar foi beneficiado pelas ações emanadas do povo e para
o povo, seja pela distribuição da informação ou na utilização desta como forma de
disseminação de valores sobre as coisas, tornando, de fato, uma instituição popular para
uma educação popular.
Porém, não havia garantia de que o professor de história, assim como os das
demais áreas do conhecimento alcançassem a perceptibilidade do papel da escola na
formação da pessoa humana. Há de se observar que esse problema perpassa o governo
ditador e se estende até os dias atuais, pois as incertezas continuam pairando no ar.
Mesmo que a academia forme bons historiadores e futuros professores de história,
apenas o domínio do arsenal teórico, somado às reflexões sobre práticas de uma história
ensinada possibilitarão as condições para que este tome como ponto de partida a história
do aprendente, o contexto em que o mesmo se encontra inserido e as problemáticas
vivenciadas em seu cotidiano.
Por fim, os meios e métodos estranhos do espírito do tempo, a exemplo do
que havia, nas páginas da Folha Alvorada, pois, ainda que houvesse livro didático para
todos, suas páginas estampavam as intencionalidades do opressor. Eis mais um ponto de
fuga da escola popular e democrática.
Sem tais preocupações, a escola de educação básica no Araguaia-Xingu
continuaria ordeira e a serviço da minoria detentora de capital, permanecendo distante
de sua função social de difusora do conhecimento histórico emanado de saberes e
discernimentos sobre os sentidos dados aos conceitos históricos no tempo, a exemplo
das categorias pobre, índio, negro, peões, tubarões, jagunços, „gatos‟, policiais, políticos
e liberdade. No último capítulo, haveremos de retomar essa questão, apresentando
246
resultados de uma pesquisa aplicada aos professores atuantes na disciplina de história
do tempo presente, pois, precisamos mensurar os „dados‟ de tais categorias históricas
em pleno primeiro quarto do século XXI.
Assim, ser professor de história na década de 1970 e ser professor da mesma
área de conhecimento em 2018 mantém em comum o desafio de operar com o tempo
abstrato, mas, também simultaneamente, com as transformações pelas quais passaram as
categorias e, a partir desse conjunto de informações, contribuir para que o aprendente
possa perceber-se enquanto herdeiro e protagonista de uma história no tempo, a qual
sempre terá o presente enquanto ponto de partida.
Para Bittencourt, os problemas significativos da história do presente,
portanto, serviam de teoria vinculada a um lugar articulado e praticado, com as
necessidades de transformação, espacial e temporal.329
Assim, pinçamos a literatura de
cordel, publicada tanto pela Folha Alvorada e outros suportes como fonte, procurando
entende-los enquanto espaço de poder e de manancial utilizados pelos professores,
especialmente quando ensinavam história, pois é possível afirmar que muitos dos
profissionais que atuavam na escola, dentre eles os professores desta disciplina,
assentavam seus pensamentos e sentidos nas narrativas em forma de poesia e,
invariavelmente, mesmo que não os levasse para sala de aula, deles faziam uso por duas
razões, a primeira, já antecipamos, devido aos poucos recursos existentes, e, o segundo,
por carregarem consigo uma linguagem rimada em formato de poesia de cordel.
Essa modalidade de literatura era mais difundida por meio da cultura oral,
ocupando espaço privilegiado em inúmeras edições da Folha Alvorada, não por acaso,
visto ser uma região povoada, majoritariamente, por famílias originárias do Nordeste
brasileiro, e, segundo, por exigir pouco domínio da leitura, pois, era comum escrever
como se falava, guardando consigo o ritmo, a rima em versos e as estrofes para variados
fins, e, mais estritamente, por ser escritos com palavras conhecidas do cotidiano.
Normalmente, o cordel anunciava sentimento de tristeza, de contemplação,
de sonho, denunciando também os problemas da natureza, como a seca, ou, no caso do
Araguaia, as enchentes. Todavia, as críticas sociais à política, à polícia, à violência, à
religião, à organização social, aos movimentos sociais, se colocaram enquanto fatos
329
Ibid., p. 168.
247
relevantes para o Araguaia-Xingu que, transversal e ricamente, habitavam as edições da
Folha Alvorada.
Assim, entendemos o cordel publicado no citado periódico enquanto fonte
importante para se entender a história ensinada (meios e métodos), por duas razões, a
primeira, por ter produzido sentido nas redes de sociabilidade formadas pelas cidades,
povoados e sertões, e, em particular, servindo aos professores em suas atividades
docentes em sala de aula, por meio do qual, eram apresentadas memórias,
acontecimentos passados, temas do cotidiano, configurando, assim, uma história do
tempo presente, capaz de mobilizar sentimentos e ações pedagógicas na escola de
educação básica. Para fins de análise, descrevemos um exemplo publicado, em 1977,
por Maria Sandino.330
Eu tô aqui hoje, seu moço,
Prá conta uma triste história.
Igual à minha têm muitas
Por esse Brasil afora.
Eu já tive minha família,
Meus filhinho, minha muié.
Rosinha a minha filhinha
Dava gosto a gente vê,
Ajudava a mãe na casa,
Tecia, fazia croché.
De manhã cedo, bem cedo,
Eu caminhava prá roça
E que alegria que era
Na hora do de comê
Vê chega minha Rosinha
E cum belo sorriso dizê:
Papai olha a sua comida,
Sou eu que vim te trazê.
Mas naquele ano mardito
Num gosto nem de alembrá,
A chuva esperada num veio
Só seca de agoniá,
As plantações tudo morrendo
Dava pena a gente oiá,
De tanta dor que eu sentia
Nem podia mais chorá.
Um dia de tardezinha
Direito nóis tinha muito
De batê pé e fica
Mas o medo foi mais forte
E tocamo a retirá.
E do sertão nóis saimo
Prá vim na cidade mora
E tinha muita esperança
Das coisa amiorá.
Mas só foi tudo ilusão,
O dinheiro foi acabando,
Serviço num achava não.
Lá em casa não tinha nada
E nem jeito prá compra,
Fui ficando desquilibrado
Inté pinga dei prá toma,
E nóis antes tão unido
Inté começamo a briga.
A muié num resistiu
Tanto sofrimento e pesar,
Morreu a coitadinha
Sem condição de tratá.
E o maior sofrimento, meu Deus,
De quase enloquecê
Vê minha menina Rosinha
Perdida, muié da vida
Sem nem mais o pai conhece.
É por isso que eu digo
330
Alvorada (1977). Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix 1977. A 16.0.51. p 4-4.
248
Um recado eu recebi,
O patrão mandava dizê
Prá todos se arreuní.
Foi chegando e foi falando
Prá nóis tudo bem ouví:
„Ocêis tudo escute bem
Não quero mais agregado,
Vô deixa de tocá roça, os meus plano tá
mudado,
Lavoura não dá mais nada
Eu tô sacrificado.
Na lavoura eu ponho capim,
Vô forma pasto pro gado‟.
Meu Deus do céu que tristeza
Foi prá nóis aquele dia
Tê que saí da minha terra
Do meu cantinho querido
Que viu meus filho nascê.
Do fundo do coração:
„ Se falta terra, falta tudo,
Falta alimentação,
Faiz o sujeito fica
Na triste situação.
O povo doente e fraco
Prejudica a nação,
Faiz o homem cachaceiro,
Faiz outro virá ladrão,
Faiz a muié muda de vida
Prá podê ganha o pão,
Traiz a fome e a miséria
Na cidade e no sertão331
.
É possível observar que , além de descrever aspectos marcantes do processo
histórico da família detalhando o cotidiano do campo, as formas de organização do
trabalho familiar na roça e o sentimento de dor por não produzir os resultados
necessários para cumprir o contrato com o dono da terra. Externava também os
sentimentos para com seus filhos e companheiros (as), a falta de alimentação, a
substituição da roça pelo capim, do homem pelo gado, o medo ao cobrar seus direitos,
muito embora soubessem da existência de uma legislação a qual poderiam recorrer, o
desespero e desesperança do pai, a falta de condições de suprir a família com alimento e
remédio, a morte da esposa e a perda da filha, explorada em sua mais íntima existência.
Nesse particular, denuncia as mazelas sociais as quais eram submetidas as
mulheres (adolescentes, jovens e adultas) para sobreviver à sociedade a que pertencia,
machista, consumidora e onde o dinheiro imperava enquanto lei. Ali, nos cabarés era,
para muitas, o único local de trabalho servindo os „tubarões‟ e fazendeiros, assim como
pelos peões que, depois de muito tempo „embrenhado‟ nas derrubadas, roçadas e lida
com o gado, quando podiam ir à cidade, pagavam pelos „serviços‟ das prostitutas – a
grande maioria reprimida à profissão por falta de opção.
331
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Dezembro de 1977 A16.0.51
P.4.4. Sem grifo no original.
249
Eis o sentido da Figura 17, retratando o êxodo que marcou duplamente a
história das famílias ali viventes, razão pela qual procuravam terras amazônicas para
viver, com o sonho de
permanecer naquele
pedaço de chão, porém,
essa permanência era
efêmera, pois, o mesmo
fantasma da expulsão
das terras de origem,
das quais foram vítimas
no Norte, Nordeste, Sul
e Sudeste, este em
menor número, pairava
diuturnamente sobre
elas.
Assim, ao
tempo em que a matéria
anunciava a poesia de
cordel, desenhava o método da educação para a liberdade, procurando não ensinar
mecanicamente a escrever, nem limitar a desenvolver a capacidade de pensar as
palavras, segundo as exigências lógicas do discurso abstrato.
Colocava o leitor em condições de poder re-existencializar criticamente as
palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder dizer a sua palavra,
como propôs Paulo Freire.
O êxodo descrito na poesia revela uma dimensão dramática das famílias
quando expulsas da terra de origem, um processo de transformação do ser, de seus
valores morais em decadência, da fragilização da família e sua entrega aos vícios e à
miséria, ao submundo da sociedade, quando seus direitos não eram respeitados, pois, se
faltava terra, fonte de vida, faltava tudo. Não haveria de ser diferente, pois, a terra, a lida
na roça eram alimentadas pelo sonho e esperança de viver e prosperar, transformando a
floresta e os sertões em alimento, em formas de vida herdadas por um país onde terra
250
não era problema, pois havia (há) em abundancia, mas sim o acesso a ela, esse sim era e
continua sendo um problema.
A passagem narrada por Maria Sandino, autora da poesia, revela o êxodo,
suas causas e consequências, entendendo como causas a desigualdade da relação
proprietário-agregado, a diferença entre quem tinha poder de mando, personificado no
patrão „proprietário‟ da terra, e quem não o tinha, na figura do agregado, que,
independentemente do tempo dedicado a derrubar a mata, plantar roça, cuidar para que
as ervas daninhas não matassem as plantas e, assim, garantir a colheita, cujos resultados
haveriam de ser divididos com o proprietário, mas que ele representava garantia do
sustento da família e, em caso de sobra, poderia ser vendida para, de posse do dinheiro,
poder comprar insumos e ferramentas para o próximo roçado, além de remédios e
adquirir uniforme e material escolar para os filhos poderem frequentar a escola332
.
Pode-se igualmente afirmar que a poesia se filia à literatura de combate, por
traduzir crítica em relação à propriedade da terra, procurando revelar a necessidade de
formar uma consciência convocando o povo à resistir, dando-lhe formas e contornos
que se abrem a novas e ilimitadas perspectivas:
Noutro nível, a literatura oral, os contos, as epopeias, os cantos
populares antes transcritos e decorados, começam a transformar-se. Os
contistas que recitavam episódios sem vida, animam-se e introduzem
modificações cada vez mais fundamentais. Existe o propósito de
atualizar os conflitos, de modernizar as formas de luta evocadas.333
Assim, Maria Sandino evoca um caso hipotético (que certamente ocorreram
centenas deles naqueles tempos e possivelmente ocorre ainda hoje), o caso de uma
colheita não ter resultado no volume planejado, mas também denunciando a relação
contratual e sua lógica, na qual os trabalhadores, desassistidos do poder de compra, são
obrigados à „aceitar‟ as condições de exploração e, como consequência, ter que
continuar usando roupa surrada por longos anos, memória de usos contínuos do calçado
roto, da falta de recursos para cuidar da saúde, a incidência da anemia, por falta de uma
alimentação adequada, a perda dos dentes, a infestação por vermes, a falta de
mosquiteiro, do querosene para a lamparina, gás para o lampião, falta de dinheiro para a
332
Os versos são assinados por Maria Sandino e foram publicado na Folha Alvorada (1977), Folha da
Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 51 P4.4. 333
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 p. 160.
251
compra da vela, não ter o suficiente para cortar o cabelo ou para aquisição de um
brinquedo para o filho. E, por fim, a desesperança de assistirem seu esforço de sol a sol,
o suor no rosto, as lágrimas caindo no chão, por um projeto que não deu certo, de uma,
dentre dezenas de tentativas vãs, mesmo que tenham custado toda uma vida.
3.4.1 Lugares e espaços de lutas entre campo e cidade no Araguaia-Xingu mato-
grossense
Apraz considerar que o conceito de cidade adotado na poesia se refere aos
patrimônios e às cidades de São Félix do Araguaia e Luciara. Não se trata de localidades
com diversidade de produção de indústria, comércio o serviço, mas sim de municípios
cuja fonte estava assentada na pecuária extensiva e na agricultura „familiar‟ incipiente.
Portanto, o acesso aos bens de consumo se fazia requinte de luxo para poucos, pois as
duas cidades não passavam de pequenos aglomerados urbanos, com posto de saúde,
delegacia, pequenas farmácias, armazéns, posto de gasolina, escola, igreja, enfim,
aparato recorrente também a outras cidades, porém, detentoras de parcos recursos. A
única semelhança com as grandes cidades era seu status político.334
Para Pesavento335
, a cidade é objeto da produção de imagens e discursos que
se colocam no lugar da materialidade e do social, e os representa. Assim, a urbe é um
fenômeno que se revela pela percepção de emoções e sentimentos dados pelo viver
urbano e também pela expressão de utopias, esperanças, desejos e medos, individuais e
coletivos, que esse habitar em proximidade propícia. Entendemos ser esse o sentido de
cidade narrada por Maria Sandino, todavia, as cidades do Araguaia-Xingu e seus
equipamentos sociais, a exemplo da escola, não ficaram isentas do processo que as
reflexões da citada autora nos permite acompanhar:
Ora, no caso da cidade passada, por vezes esses rastros – para usar a
feliz expressão de Ricoeur – nem sempre estão aparentes, como
pegadas a guiar os passos e o olhar do historiador. Com frequência, a
transformação do espaço foi de tal ordem, a modernidade implantada
334
Conforme Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitos históricos/Kalina Vanderlei Silva, Maciel
Henrique Silva. 2. Ed., 2 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009. 335
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 27, n. 53, p. 14, 2007.
252
tão avassaladora que apagou do espaço materialidade e sociabilidades
do passado.336
Nas cidades do Araguaia-Xingu, fora da BR-158, a exemplo de Luciara, São
Félix do Araguaia e Santa Terezinha, margeadas pelo rio Araguaia, as pegadas ainda
podem ser acompanhadas, seja pelo nome das ruas, escolas, praças e famílias
„pioneiras‟, enfim, um conjunto de informações que possibilitam manter viva a
memória.
Já o tecido urbano de Confresa, hoje a maior cidade no baixo Araguaia,
segundo Araújo:
[...] é uma façanha ortografada na colonização endêmica que inventou
a modernidade para os sertões brasileiros, na segunda metade do
século XX. As nominações anteriores dos lugares demarcadas pelos
grupos étnicos que representavam as culturas locais foram ignoradas,
apagadas ou soterradas para abrigarem os recentes „heróis da
civilidade‟, a começar pela própria denominação da cidade.337
Aquilo que a autora nomina de tentativa de apagamento, dando lugar aos
„heróis da civilidade‟, eu observo enquanto disputa pela memória, pois, embora tenha
pertencido à cidade de Santa Terezinha, com o nome de Vila Tapiraguaia, tornado
distrito em 1990, e cidade em 1993, Confresa abriga maior número de famílias
assentadas dentre as cidades brasileiras, portanto, carrega consigo inúmeras lutas pela
posse da terra, e, por conseguinte, sujeita à ação contrária à ordem ora imposta pelo
„empreendimento‟ colonizador, cujo conflito continua latente, pois, a maioria dos lotes
urbanos não possui titularidade.
Faço esse parêntese para apresentar um pouco das cidades e sertões do
Araguaia-Xingu, não somente mais um nome no mapa, mas entende-las por meio de
uma releitura cuidadosa, pois, assim como a escola, os espaços urbanos também
representam territórios de luta pelo poder, seja na edificação da escola, a exemplo do
Ginásio Estadual do Araguaia, que compôs um lugar específico possibilitador da
existência de territórios de poder, assim como a igreja e seu átrio, a distribuição das
ruas, os nomes a elas atribuídos, enfim:
336
Ibid., p. 16. 337
ARAÚJO, Maria do Socorro de Sousa. Territórios amazônicos e Araguaia Mato-grossense:
configurações de modernidade, políticas de ocupação e civilidade para os sertões. Tese (Doutorado em
História) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia Ciências Humanas. Campinas. SP.
2013, p. 241.
253
São os passos que moldam os lugares e os transformam em espaços,
que inserem e inscrevem nestes, camadas simbólicas que se
sobrepõem e criam uma extensa rede de significados que,
compartilhados simbolicamente através da comunicação, modificam
os usos que os sujeitos fazem dos mesmos.338
As cidades sertanejas, ainda que rústicas, são produto humano datado, onde
se localiza a sede do município e onde as ações urbanísticas organizam os espaços de
convivência, estabelecendo hierarquia entre centro e periferia, instituindo os lugares da
política, da religião, do divertimento, da produção econômica, dentre outros. Após uma
ou duas décadas, as cidades do Araguaia- Xingu pouco se promoveram em relação
àquele imaginário do passado recente, mas continuam carregando consigo um sentido
particular de civilidade, abrigando disputas de poderes pessoais e institucionais.
Neste particular, embora a edificação das escolas nas comunidades, como
observado no capítulo 2, se deu por razões bem claras, inicialmente para servir de
atalaia de resistência e permanência, pois havendo escola nas comunidades a
probabilidade de manter as famílias alfabetizadas se tornaria maior, e a segunda razão
está ligada ao fato de não ter necessidade de enviar seus filhos para outras cidades para
estudar. Embora as escolas do campo sejam representadas por número expressivo, em
todas as cidades do Araguaia-Xingu, a exemplo de Santa Terezinha, que possui 9
unidades no campo e 2 na cidade, o discurso de que a escola „da cidade‟ é melhor
arrebata muitos jovens em direção a elas.
Tal discurso ganha relevância nas políticas públicas cuja intenção é a de
„limpar os campos‟, fazendo com que as famílias desistam de suas terras, abrindo
espaço para o latifúndio, mais recentemente fomentado pelos gestores do setor
educativo, ao deslocar diariamente centenas de milhares de alunos do campo para a
cidade, pois, manter os profissionais no campo para atender, de maneira eficiente os
estudantes, exigiria maior investimento, e agora, equivocadamente pautados em
„economicidade‟, lotam ônibus de aprendentes, mesmo que estes permaneçam mais
tempo durante o deslocamento diário do que em sala de aula.
A cidade constitui também espaço privilegiado onde se revelam as
contradições produzidas pela dinâmica das vivências comuns frente aos discursos e
338
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 176.
254
práticas políticas que procuram formalizar o todo urbanístico. No âmbito do discurso, é
na cidade modernizada que está o emprego, a melhor escola, o trabalho mais leve, o
conhecimento mais elaborado, uma vez que ali habitam pessoas letradas e onde existe
uma estética de vida coletiva dinâmica. Por isso ela exerce um fascínio sobre os
indivíduos que a desejam e a buscam, se empenhando para tê-la, sobretudo quando eles
se comportam como habitantes fundadores e pioneiros, podendo constar seus nomes nas
páginas escritas ou verbalizadas dos lugares.
Esse tipo de percepção produz a uma simbiose entre criador e criatura,
porque incorpora um sentido de pertencimento que se pretende eternizado, assim, a
cidade carrega consigo alguns mitos a serem superados. A vida no campo, sob muitos
aspectos, é bem melhor do que na cidade, porém, demanda políticas públicas eficientes.
Já nos patrimônios do Araguaia-Xingu, tamanha era sua precariedade, que
guardavam consigo muito das características das residências no campo, a exemplo das
escolas, pois, como já mencionado, funcionavam em barracões cobertos de palha, com
paredes de pau-a-pique, chão batido, bancos de madeira para as crianças se sentar, pote
de barro cozido, onde era armazenada a água para beber, e uma casinha ao fundo, onde
eram feitas as necessidades fisiológicas.
Com o passar dos anos, gradativamente, as edificações foram perdendo tais
características, passando a edificação da escola a ser coberta por telhas de amianto
(Eternit) e ou de barro cozido, trazidos de outros Estados, a exemplo de Monte Carmelo,
em Minas Gerais, de onde vinha maior quantidade. Igualmente se fez em relação aos
depósitos de água, pois os potes e filtros de barro foram sendo substituídos pela água
encanada, depositada em caixas de amianto, que, nos últimos anos, tem sido denunciado
uso por ser potencialmente maléfica à saúde humana.
Da mesma maneira, os bancos de madeira foram cedendo espaço para as
carteiras escolares padronizadas, já as paredes em alvenaria, e os quadros portáteis com
bordas de madeira foram substituídos por quadros fixos, pintados nas paredes. Portanto,
a própria sala de aula inventou seus recursos e métodos, cujas características não
escaparam à nossa reflexão, por entender importante perceber onde e como se
ambientou a invenção da escola no Araguaia-Xingu, nas décadas de 1970 e 1980, muita
das quais, embora passados quase meio século, ainda hoje aguardam por reforma e/ou
nova edificação.
255
3.5 Entre o livro e a poesia: o ensino de história
Composta a caracterização do espaço urbano e do campo, retomamos aqui
as reflexões que iniciamos sobre o ensino de história elegendo o uso da poesia, pois, ao
olhar do historiador, a poesia deve ser entendida enquanto documento histórico e, como
antecipamos no tópico 3.4, serviu de material „didático‟, rica fonte de pesquisa para o
ensino de história dos aprendentes da época, pois, além do acesso à Folha Alvorada,
esse estilo literário possibilitou reflexão sobre o processo de expulsão das famílias do
campo para a cidade, comum em todo o país, com consequências irreparáveis às
condições de vidas das famílias no campo.
A análise feita por Ribeiro sobre esse momento histórico no tocante a
história da educação no Brasil:
[...] o desafio de se pensar em práticas não tradicionais do ensino de
História bem como o de construir uma escola democrática foram
surgindo em decorrência e paralelamente à ampla participação que os
„excluídos do poder‟ – amplos setores da sociedade civil – promoviam
a respeito da própria sociedade brasileira com o objetivos de superar o
regime instaurado em 1964.339
.
A superação proposta para o Araguaia-Xingu não se limitava à luta por
melhores escolas, pois isso, se dependesse do poder público, não ocorreria. Igualmente
aconteceu com a luta por melhores salários e direitos trabalhistas no Brasil Central,
onde não existia emprego que se pudesse conferir direitos ao trabalhador, pois estes
eram explorados e, em muitos casos, em formas análogas à escravidão, ocasião em que
centenas de peões eram resgatados, da CODEARA, pela polícia federal, em condições
degradantes, no ano de 1970.
Além da questão da terra, largamente apresentada ao longo da narrativa,
podem ser adicionados a carestia, a falta de atendimento à saúde, ao transporte, à
moradia, adicionada à violência praticada pelos policiais, jagunços e pistoleiros, e
muitas vezes pelos próprios pais de família, embrutecidos e revoltados pelas parcas
339
NADAI, 1986, p. 11 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,
instituição escolar e formação docente. História & Ensino, Londrina, v. 21, n. 2, p. 151-179, jul./dez.
2015).
256
condições de sobrevivência. Numa trama da vida real, ao nascer sem perspectiva de
vida longa, mazelas bem conhecidas foram denunciadas por Pedro Casaldáliga:
[...] morrer sendo matado, matando, se matando, na bebedeira louca,
no desespero, nessa vida rodada dos peões largados pelo mundo ou
das raparigas exploradas ou na solidão das mocinhas amarguradas ou
dos casais desagasalhados, com muito filho e muita pobreza.340
Ao tempo em que chamava atenção para os mais variados meios para o
alcance da morte „prematura‟, o bispo também apresentava a morte em vida, dos
membros das famílias que frequentavam a escola de educação básica naquele novembro
de 1978.
O líder religioso tornava pública a reflexão de que, Deus, criador da vida é
ciumento dela, e, se Deus não quer a morte para nós, nós também não podemos querer.
Assim, no mês de novembro, mês dos mortos deveriam voltar o olhar para a vida. Para
Casaldáliga, “[...]não era a morte que espantava, mas sim a morte estúpida”.341
Afirmava ainda a carta:
Vale mais a vida de uma criança deste sertão ou de um bairro na
cidade que todas as fazendas e todas as fábricas e todos os negócios
do Brasil! [...] Cada morte à toa ou por injustiça deve nos acordar.
Ninguém pode calar a boca diante de um defunto, que morreu
abandonado das autoridades ou do médico ou do fazendeiro ou da
família.342
O retalho da carta aqui apresentado possibilita-nos perceber significativa
reflexão dos fatos observados naquele cotidiano, portanto, passíveis de aprendizado
pelos escolares. Conforme Schmidt, no aprendizado histórico a „história‟ é obtida
porque fatos objetivos, coisas, uma vez que aconteceram no tempo torna-se uma questão
de conhecimento consciente, ou seja, eles tornam-se subjetivos.343
A autora auxilia-nos a entender, que, do ponto de vista do ensino da história,
o professor, servindo de leituras temáticas, por meio da Folha Alvorada, que era
distribuída regularmente nas comunidades, e possivelmente em maior ou menor grau
nas escolas, por se tratar de um ambiente que reunia as condições necessárias para um
340
Alvorada (1978). Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A16.0.60 P01.12. 341
Ibid. 342
Ibid. 343
SCHIMIDT, M.A. Cognição histórica situada: que aprendizagem história é esta? In: BARCA, I.;
SCHMIDT, M. A. (Org.). Aprender História: perspectivas da educação Histórica. Ijuí-RS: EdUnijuí,
2009, p. p. 33.
257
grupo de pessoas com razoável domínio das letras fizesse a leitura e contribuísse na
interpretação das matérias., muitas das quais, delineadas em forma de poesia de cordel.
Assim, a literatura de cordel, em meio aos escolares, contribuiu com a
orientação e, de maneira transversal, com a educação das famílias, conferida pelo
diálogo com Roberta Alves:
[...] a literatura de cordel contribui para uma educação voltada para a
realidade social, na medida em que apresenta ao aluno uma visão de
mundo [...] suscitando variados questionamentos que podem
contribuir para que o aluno reflita sobre sua posição social, política,
econômica e cultural.344
Entender a produção da denúncia ou exaltação, publicada e veiculada pela
Folha Alvorada na região Araguaia-Xingu, remete a um espaço de anunciação política
com personagens reais, revelados por textos, cartas, anúncios e notícias, bem como por
meio da oralidade, que era recorrente nas comunidades iletradas, que agora se
apropriava dos caracteres da escrita, sem preocupação com a forma, mas com o
conteúdo.
Trata-se de uma invenção para um determinado espaço-tempo, que, com
requinte e riqueza de detalhes, era trovado em linguagem poética, cuja narrativa era
adotada cuidadosamente para atingir um determinado público, as famílias que
habitavam os sertões do Araguaia-Xingu, enquanto canal de difusão da escola.
Outrossim, cabe observar sua preocupação em atingir a sensibilidade de seus receptores,
podendo, nessa medida, ser entendida enquanto nova metodologia para se ensinar
história, por meio de histórias vividas.
Apresentadas as primeiras fontes que constituíram o cotidiano da
comunidade escolar, e, em particular do professor, passaremos a tratar do ensino de
história para educar os sentidos.
3.6 – Descolonizar a escola e o fazer do professor requer educar os sentidos
344
ALVES, Roberta Monteiro. Literatura de cordel: Por que e para que trabalhar em sala de aula. Revista
Fórum Identidades. Universidade Federal de Sergipe – UFS. Ano 2, Volume 4, p. 103-109, jul. Dez de
2008, p. 108.ISSN. 1982-3916.
258
A Folha Alvorada como fonte de pesquisa ampliou nosso olhar sobre aquela
conjuntura, possibilitou-nos conhecer não só suas categorias, mas, por meio dos
registros de fala, os seus sentimentos, projetos de vida, suas dificuldades e
potencialidades de resistência, cujas dimensões eram reveladas por meio de alertas,
anúncios e denúncias, razões pelas quais se estabeleceu uma rede de sociabilidade que
unia a maioria das famílias expostas à violência, às mazelas consequentes de uma
política estatal pouco preocupada com as centenas de famílias de indígenas, posseiros e
peões submetidos a condições desumanizadas pela opressão e pelo conflito causado
pelos interesses dos grandes latifundiários.
Durval Muniz de Albuquerque, em oficina ministrada em 2013, durante o
XVII Simpósio Nacional de História, alertou que os sentidos são educados, o nosso
olfato, o nosso paladar, nossa visão, nossa educação passam por processos culturais,
simbólicos e são trabalhados por distintas pedagogias, as pedagogias que circulam no
social.345
Seguindo as argumentações do autor, as crianças apanham para entender os
significados, sendo este um método convencional para que elas obtenham sentidos
„devidamente‟ educados. Igual método era praticado pelas forças policiais, pelos
fazendeiros, contratando jagunços e pistoleiros para atuar sob seu mando, disseminando
o terror e o medo, inculcando um sentimento de ojeriza pela terra, estampado pela
revolta, pela dor, constituindo-se, portanto, em processo educativo.
Porém, como forma de desmobilizar a estratégia e descredenciar semelhante
método, a Folha Alvorada contribuiu com táticas discursivas, apresentando a dialética
enquanto método na elaboração das matérias publicadas, as quais denunciaram a
violência, a necessidade de o povo se perseverar, na luta, sempre unido por uma causa.
A permanência na terra e, como meio aglutinador, a escola, por onde haveria de ser
construídas práticas, e onde os sentidos eram permanentemente educados, não só
apresentando as práticas violentas cometidas ao mando dos tubarões apoiados pelo
governo, mas também pela negligência deste, ao „abonar‟ as iniciativas dos
empreendimentos agropecuários, em detrimento dos pobres.
345
Minicurso foi ministrado durante o XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH-Brasil, realizado
em Natal-RN, no ano de 2013. Trata-se de 3 vídeos em que Durval Muniz desenvolve rica reflexão sobre
o tema e está disponível em HTTPS://www.youtube.com/watch?v=L9nFQv2CJbA&t=508s. Acesso em
10 out. 2017.
259
Assim, acompanhamos a dimensão proposta por Durval Muniz aos sentidos
enquanto qualidade que todas as coisas carregam, e, por conseguinte, sua historicidade,
sendo ela a qualidade que as coisas têm de ser afetadas pelo tempo, transformadas pelo
tempo, assim como o tempo é entendido enquanto categoria abstrata, e igualmente
abstrato se faz na história. Portanto, ao analisar a invenção da escola naquele contexto
requer mergulhar em suas singularidades, o que contribui para que se possa interpretar
aquele espaço específico, seus limites e possibilidades.
Ao tomar o anúncio de inauguração da Escola em Alto Bonito, município de
São Félix, no dia 15 de março de 1978, que, antes, funcionava em condições precárias,
em uma choupana que servira de abrigo à professora contratada e mais 45 alunos. Esse
dia festivo revelava uma face importante da ação coletiva do povo do lugar, o qual
implementou a edificação de uma casa, na qual iria funcionar a „escola do Silvano‟, com
mais comodidade.346
Esse fato foi marcado por uma peculiaridade merecedora de atenção, eram
22 pais que deveriam se unir para edificar a escola, porém, nem todos participaram,
inclusive alguns, „preguiçosos‟, fizeram feio, pois, além de não ajudar, queriam cobrar
as palhas tiradas de sua terra. Houve também aqueles que, para não ajudar, saíam a
passeio. Ao anunciar o fato, tangenciou a dimensão moral, revelando práticas que
poderiam desmobilizar a organização do povo, primeiro, a preguiça, por não dedicar
esforço na construção da escola, segundo, por cobrar as palhas utilizadas para cobri-la.
Mas, tendo à frente os professores enfrentantes, dentre outros o próprio
Silvano, ergueram a escola, graças à ajuda de algumas pessoas que nem tinham filhos
matriculados, como o Toinho, Zeca da Doca, Manuel, Vital, João Bento, José e Adriel,
que se empenharam bastante naquele projeto coletivo. Na ocasião da inauguração, com
a presença do Bispo Pedro Casaldáliga, que aproveitou o ensejo para mudar o nome do
lugar, que, a partir daquele momento passou a ser chamado emblematicamente de Santa
Cruz.
Afiançava, portanto, que, embora houvesse aqueles que se esquivaram do
trabalho coletivo, muitos outros colaboradores cumpriram papel importante na
comunidade, destacadamente os enfrentantes, os quais lideraram o processo. À medida
em que se anunciavam as nuances do cotidiano marcado pela dificuldade em „motivar‟
346
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 55 p. 6-9.
260
o coletivo para aquela causa comum, tal ação contribuía para a formação do sentido que
a escola haveria de ter enquanto irradiadora de causas a serem defendidas pelas famílias
ali assentadas.
Assim como já apresentamos em outras passagens nesta narrativa, a
invenção da escola, ao tempo em que habitou a dimensão educacional, contribuiu para a
demarcação de um
espaço de luta, de
manutenção das
relações políticas,
indicando que o povo
deveria seguir
caminhando com
perspectivas de um
futuro melhor para
todos, o que passava
pelo acesso à própria
escola, à terra, ao
trabalho, à saúde e à
alimentação, como
podemos observar na
Figura 18 abaixo, que
traz uma expressão
bastante efusiva das
condições em que viviam as famílias: Não há lugar para eles quando – não tem escola,
terra, remédio e comida.
Embora tenhamos experimentado algumas definições pedagógicas
existentes na Folha Alvorada, retomamos aqui para mais um mergulho nessa temática
em evidência na imagem da escola como principal elemento de transformação de uma
realidade conhecida de todos os escolares, tomando alguns signos historicamente
construídos com o propósito de „alfabetizar‟ seus leitores com representação concreta
para a escrita da palavra, uma linguagem icônica para facilitar a leitura da imagem.
261
Portanto, a escola historicamente negada à grande maioria das famílias
brasileiras, naquele último quarto do século XX, ganhou espaço privilegiado nas
páginas da Folha Alvorada carregando consigo significados latentes, numa rede
comunicacional direcionada a ampliar o sentido da escola, da terra, do remédio, da
alimentação e da organização social nos vários espaços de vivência e de luta nas cidades
e sertões do Araguaia -Xingu mato-grossense.
O exercício, por entender os significados das falas, seja escrita ou ilustrada,
possibilita compreender os sentidos dados à escola e sua importância na formação dos
sujeitos históricos daquele contexto, suas classificações, individualidades, necessidades
de reivindicações em torno de um direito não respeitado, bem como na própria invenção
de categorias sociais do Araguaia-Xingu, a exemplo do tubarão, já apresentado
anteriormente, e dos enfrentantes, cuja construção ainda permeia o imaginário das
pessoas que vivem naquela espacialidade.
Mas, a categoria professor se fez imprescindível naquele projeto de
sociedade, pois, além do exercício da docência, muitos deles foram incumbidos de
exercer um papel fundamental na organização das comunidades, como „enfrentantes‟,
ou seja, pessoas que assumiam a liderança de algum projeto social, a exemplo da
construção e defesa da escola. Adquiriram uma posição naquele contexto de luta pela
terra enfrentando as injustiças do cotidiano, engajando nas lutas populares, proferindo
denúncias, atuando nas escolas, na organização sindical, nos clubes, e animando o povo
a continuar lutando por seus direitos. Cumpria ao professor o tão cobiçado papel do
„formador de opinião‟.
Para tanto, a equipe da prelazia, liderada pelo Bispo Pedro Casaldáliga,
organizava cursos de formação. Logo, tratava-se de uma rede de pessoas articuladas
com representantes das comunidades.
Destarte, os sentidos „dados‟ aos enfrentantes347
tem um sentido histórico
que, com o passar das décadas, cedeu espaço aos animadores, atuantes dentro e fora de
suas respectivas comunidades e voltados à transformação da sociedade, combatendo as
347
Oliveira, Rodrigues e Menezes afirmam que, o termo enfrentante, em alguns lugares, foi sendo
substituído pelos animadores, expressão trazida pelo “pessoal gaúcho”. A documentação consultada
aponta que o termo animador era igualmente adotado aos próprios enfrentantes, portanto, não
encontramos qualquer ligação com a chegada dos sulistas. (OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de;
RODRIGUES, Solange dos Santos e MENEZES, Renata de Castro. Reforçando a rede de uma igreja
missionária: Avaliação pastoral da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997).
262
injustiças, com destaque na invenção da escola do Araguaia-Xingu mato-grossense
como asseverou Casaldáliga: “Quando se concentra uma amostra de educação da região,
como aconteceu recentemente em São Félix do Araguaia, você acaba vendo que
noventa por cento das pessoas presentes são lideranças de nossas comunidades,
professores e professoras”.348
Em se observando o ano que Casaldáliga concedeu essa entrevista em 2004,
possibilita-nos afirmar que, passados mais de 30 anos, as lideranças (professores e
professoras) continuaram cumprindo sua função em „animar‟ a organização e a
participação das pessoas em clubes, cooperativas, sindicatos, em defesa dos direitos
civis, e, como mencionado, exercendo papel de liderança na educação.
É certo que essa categoria poderia carregar somente o nome líder, e ou
representante das redes de sociabilidade criadas em torno das ações da prelazia, pois
muitos desses enfrentantes, antes leigos, se tornaram professores e vice-versa.349
Contudo, essa nominação, possivelmente, servira para fugir à perseguição
dos olhos vigilantes da repressão. Assim, o termo enfrentantes consignaria
representação religiosa, que de certo o colocava na „lista‟ dos opressores. Todavia,
podemos entende-lo no contexto da ditadura militar, enquanto tática para desviar o
sentido do vigilante e garantir a possibilidade de atuar no interior das escolas, sem os
quais, pereceria a organização da coletividade na busca da superação das dificuldades
ali existentes.
3.6.1 - Escola e ensino de história a descolonizar: um desafio coletivo
Em meio às dificuldades em prover as comunidades de escolas em
condições de atender à demanda apresentada pelas famílias, em fevereiro de 1977, a
Folha Alvorada fez público o início das aulas daquele ano, em matéria com o título
348
GONZAGA, Agnaldo Divino. Anel de tucum: a missão evangelizadora de Pedro Casaldáliga, bispo da
prelazia de São Félix do Araguaia. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de
Mestrado da UCG, Goiás. 2005. 349
Para Oliveira, Rodrigues e Menezes (Reforçando a rede de uma igreja missionária: Avaliação pastoral
da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Paulo: Paulinas, 1997), formar enfrentantes para trabalhar nos
movimentos sociais, nos sindicatos, nas várias lutas pela terra e pelos direitos civis tornou-se o principal
desafio para a evangelização na prelazia. Todavia, as fontes apontam para uma ação para muito além de
evangelizar, pois, participavam de todos os movimentos em torno da defesa das comunidades, em
especial, à escola. Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Abril de 1979.
A 16.0. 65 P7.10.
263
Outra vez as aulas e as reuniões350
. O propósito da matéria foi o de reafirmar a
importância não só do início das atividades escolares, mas de um despertar e recomeço
das inúmeras expectativas.
Somava-se, ao abrir os olhos para levar os filhos à escola, o imperativo das
reuniões da comunidade, numa clara intenção de afirmar o papel aglutinador da escola,
portanto, uma forma de aproximar as pessoas com propósito político em relação à
educação, em duplo significado: o primeiro, tendo a educação como direito, e, em
segundo, enquanto dever (obrigação).
Fora a questão da escola, representava também um chamamento à reflexão
sobre os problemas do cotidiano, afirmando, portanto, a invenção de uma escola
conectada com as questões sociais.351
A mesma matéria asseverava que a escola deveria ser das crianças, dos
rapazes ou dos adultos, tanto nas cidades como nos patrimônios, devendo ser bem
zelada por todos: pelos pais, alunos, professores e pelas autoridades. Nesse particular,
clama a responsabilidade das „autoridades‟, quase sempre ausentes, descompromissadas
com a educação das famílias pobres, pois, a “[...] escola era [uma] horta da casa que
precisava de muitos cuidados, de muito carinho”.352
Entendemos que a reunião das famílias no espaço escolar se constituía um
dos mecanismos com os quais a comunidade pudesse, de fato, participar da vida escolar,
elegendo-a enquanto bandeira de luta e caminho para o alcance de uma vida menos
sofrida. Restava, no entanto, encontrar os meios para que ela se tornasse realidade. Para
tanto, as reuniões e a união das famílias em torno de um mesmo propósito representava
seu maior trunfo, o poder do coletivo sobre as decisões arbitrárias impostas pelos
gestores às famílias desassistidas de poder econômico e desprovidas dos direitos de
cidadania.
350
A tônica sobre o início das aulas trazia anualmente preocupações inerentes ao planejamento a exemplo
da matéria publicada em abril de 1979, cujo desafio para aquele ano era o de a)diminuir o percentual de
evasão; b) aumentar o índice de aprovação; c) aproximar mais os pais da Escola e d) organizar o
Conselho de professores. 351
Em carta do Bispo Pedro Casaldáliga ao povo, em janeiro de 1982 ele afirma que a reunião só presta
quando serve para a união, precisa reunir para se conhecer melhor, para fazer juntos o balanço do
trabalho, para juntos programar o novo serviço. (Alvorada (1982), Folha da Prelazia de São Félix do
Araguaia. São Félix. 1982. A 16.1. 23 P2.13). 352
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 41 p 2-5.
264
Já em Santo Antônio, foram noticiadas duas importantes reuniões sobre o
início do ano letivo, quando se fizeram presentes 50 pais de família, ocasião em que
tomaram algumas decisões: a) escolhendo os professores para trabalhar com seus filhos;
b) apontando as qualidades que esperam dos professores, ficando também deliberado
que em uma próxima reunião seriam os professores que deveriam falar o que esperavam
dos pais.
A escolha de mestres pelos pais dos alunos constituiu em pauta principal nas
reuniões das comunidades, a exemplo de Santo Antônio, o mesmo acontecendo em
Pontinópolis e Serra Nova. Já em São Félix, nas escolas da Vila Nova e da Lagoa, os
pais elegeram uma comissão para gerir as questões da comunidade escolar, resultando
no levantamento de empréstimo para a compra de livros escolares.
Porém, no mês de março de 1978, a Folha Alvorada chamou atenção dos
pais e alunos do 1º grau do município de São Félix, de que estavam para chegar os
livros de 1ª a 4ª (primeiro ao quarto ano do primário), e que os mesmos seriam
distribuídos de graça pela secretaria municipal, e fornecidos pelo Programa do Livro
Didático do Ensino Fundamental (PLIDEF), para todas as escolas. Todavia, devido ao
problema das chuvas, essa entrega sofreu atrasado.353
Embora o Ministério da Educação tivesse criado o Instituto Nacional do
Livro (INL), pela portaria n. 35, de 11 de março de 1970, e, em 1976, por meio do
decreto n. 77.107, de 4 de fevereiro de 1976, tivesse assumido a compra de boa parcela
dos livros para distribuir às escolas, sua distribuição não alcançou todas as unidades
escolares brasileiras.354
Portanto, os registros possibilitam afirmar que a comunidade percebia a
importância dos livros para uso dos alunos, já que estes, até aquela data, não haviam
sido entregues com regularidade355
. Cabe-nos observar que, atualmente, o Programa
353
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A 16.0. 53 p 3-8. 354
Observamos que o livro didático ainda não era acessível à grande maioria da população escolar
brasileira. Somente em 1983, com a criação da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), e em 1985,
quando foi criado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o quadro sofreu mudanças
significativas. Com o PNLD surgiram as seguintes normativas: Indicação do livro didático pelos
professores; reutilização do livro, implicando a abolição do livro descartável e o aperfeiçoamento das
especificações técnicas para fins de participação financeira dos estados, passando o controle de processo
decisório para a FAE, e garantindo critério de escolha do livro pelos professores. 355
Em síntese, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) teve como principal objetivo subsidiar o
trabalho do professor de história e demais áreas do conhecimento, distribuindo coleções e livros didáticos
aos alunos da educação básica brasileira. Conforme http://portal.mec.gov.br/pnld/apresentacao, acesso em
16 fev. 2017.
265
Nacional de Livros Didáticos é um ação educativa de grande envergadura, mantido pelo
governo federal e fruto da arrecadação de tributos, impostos e taxas revertidos ao
contribuinte.356
Igualmente requer observar que a classe trabalhadora, a maior responsável
pelo provimento dos cofres públicos, realiza enfrentamentos contínuos para que o
Estado, os professores, e principalmente os alunos que deles fazem uso, se
conscientizem de que o Ministério da Educação, enquanto responsável pela política de
aquisição e distribuição de livros didáticos, segundo critérios previamente definidos, é
um bem público, e, em pouco tempo, se tornará uma tecnologia com uma memória
incrível, mas armazenada em museus, porém, até que possamos fazer uso, no espaço
escolar, de uma tecnologia mais dinâmica, resta o grande desafio de conscientizar a
população de que o livro didático não chega à escola gratuitamente, mas às custas da
própria população. Uma visita a qualquer escola pública pode-se verificar diversos
livros amontoados nas salas, entulhando bibliotecas, corredores, banheiros e depósitos,
sem quaisquer usos. Um desrespeito ao bem público e à tecnologia educacional, sinais
de uma obsolescência política educacional.
Assim, a reinvenção do conceito de gratuidade, especialmente no âmbito da
política, será visto no capítulo 4, porém, até o momento a pesquisa apontou para essa
fragilidade, possivelmente intencional, do significado de „gratuito‟, inclusive enquanto
forma de repassar a culpa ao usuário final, ao dizer que os livros são distribuídos
gratuitamente, trata-se de mais um imbróglio a ser superado, pois, da mesma forma que
o fazem pejorando o uso do livro, igualmente o fazem sobre a Escola pública. Portanto,
o professor de história, bem como os demais educadores têm o dever moral em agenciar
formas de construir uma consciência cidadã para além do discurso segundo o qual o
público e o gratuito não prestam, e por isso podem ser descartados aleatoriamente.
Igualmente em se preparar para o uso das tecnologias ao alcance dos escolares.
Como naquele final de década de 1970, o acesso ao livro „gratuito‟ não era
realidade para todas as crianças, uma vez que a decisão dos pais em se cotizar para
comprá-los revela a preocupação em oferecer acesso àquela tecnologia, para que os
356
Como consta no sítio do MEC, só em 2013, três décadas passadas da criação do PNLD, foi investido
mais de 1 bilhão de reais para a aquisição e distribuição do livro didático para atender, a
aproximadamente, 42 milhões de estudantes. (http://www.brasil.gov.br/educacao/2013/01/pais-investe-
bilhoes-para-garantir-material-escolar-gratuito-a-alunos-da-rede-publica. Acesso em 20 out. 2017).
266
professores e estudantes pudessem dela fazer uso, como suporte na organização dos
processos de mediação e aprendizagens escolares, pois, ao fazer uma leitura daquele
contexto, os professores dispunham de poucos recursos tecnológicos que pudessem
potencializar a distribuição da informação, como o fazem os livros didáticos.
Igualmente, a falta de acesso ao compêndio didático por parte dos
professores, em que pese o fato de que a grande maioria não tenha passado por uma
formação de nível médio, quiçá superior, o livro didático representava fonte de primeira
grandeza ao conhecimento histórico sistematizado, embora o „conteúdo‟ proposto por
aqueles de história, até o início da década de 1990, como já mencionamos, veiculava
informações gerais sobre as grandes civilizações, as grandes guerras, os presidentes, as
instituições, enfim, tudo o que um estudante burguês, aristocrata, filho de famílias
residentes nos grandes centros e detentores de uma cultura urbana, colonialista e tirana,
deveriam aprender e defender.
Porém, para os estudantes filhos de famílias negras, pobres, indígenas, nos
„sertões‟, ribeirinhos tais „conteúdos‟ e abordagens não os auxiliava a pensar os
problemas emergentes recorrentes em seu meio e, a partir de outras histórias vividas no
passado pudessem promover a transformação, motivo pelo qual, teoricamente,
constituía a razão dos mesmos frequentarem a escola.
Mas, seguindo um processo histórico não linear, porém passível de
mudanças, desde que formadas e gestadas socialmente com ingredientes de cidadania,
aos poucos, algumas categorias excluídas das páginas dos livros didáticos de história no
Brasil começaram a ganhar espaço em alguns pares de linhas de alguns raros livros. A
reboque da produção historiográfica, a produção originária da academia nem sempre
conseguia interferir nas deliberações sobre o currículo, pois dependia de decisões
políticas externas ao espaço acadêmico e escolar, pois, conforme Ribeiro, sua finalidade
maior era confirmar a nação no estado em que se encontrava no momento, justificando
sua ordem social e política. E o suporte didático desse ensino era uma narração de fatos
seletos, momentos fortes, etapas decisivas, grandes personagens, acontecimentos
simbólicos e, de vez em quando, alguns mitos gratificantes357
.
357
LAVILLE, 1999, p. 126 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Entre textos e práticas: ensino de história,
instituição escolar e formação docente. História & Ensino. Londrina, v. 21, n.2, p. 151-179, jul./dez.
2015, p. 156.
267
Especialmente na década de 1970, quando entrou em vigor o Decreto Lei n.
1.077, de autoria do então presidente Emílio Garrastazu Médici, que estabeleceu a
censura aos livros e a todos os demais conteúdos dos meios de comunicação que
contrariassem à „moral‟ e aos „bons costumes‟, pois, conforme seus considerandos, o
emprego deles obedecia um plano subversivo que colocava em risco a segurança
nacional.358
Possivelmente, naquela década, pouca ou nenhuma produção que
„destoasse‟ da história „oficial‟ chegou às salas de aulas da educação básica, até porque,
na década seguinte, o currículo de história ganhou maior relevo nos debates dos
historiadores, especialmente com o processo de redemocratização do país.
Assim, gradativamente, a maioria da população começou a ter visibilidade
nas páginas dos livros didáticos, especialmente a partir dos PCN de história,
incorporaram os argumentos apresentados pelo debate historiográfico e pedagógico
aberto desde os anos de 1980.359
Porém, essa mudança começou a ser percebida somente a partir de finais da
década de 1990, quando, até então, as páginas dos livros didáticos, regra geral, eram
habitadas por personagens ligados ao universo do colonizador, onde o indígena e
especialmente o negro eram exaltados apenas lembrados na sua condição simbólica:
negro, cuja palavra, açoitada pelo imaginário, era associado à escravidão, vistos, todos
os negros, como iguais, vestindo calção de algodão cru, dançando (jogando) capoeira,
fazedor de quitutes, trabalhador nas fazendas de cacau, café, algodão, nas lavras de
ouro, diamantes, amas de leite, serviçais da casa grande.
Para visitar outras dimensões do ser cidadão com maior intensidade de
melanina na pele seriam necessárias, para amparar o professor atuante entre o Araguaia
- Xingu, outras versões dessa história, o que obrigava os estudiosos ter acesso a outras
fontes de pesquisa, os quais, apresentamos a seguir.
358
Além da questão da “moral” e dos “bons costumes”, o Decreto-Lei remetia ao artigo 62 da Lei n.
5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que regulava a liberdade de manifestação do pensamento e da
informação, e rezava, em seu artigo 1º §1º “[...] não será tolerada a propaganda de guerra, de processos de
subversão da ordem política e social ou de preconceitos de raça ou classe”. Para saber mais
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1077.htm Acesso em 29 de dezembro de
2017. 359
RIBEIRO, Renilson Rosa. Op. cit., p. 8.
268
3.6.2 - Inaugurando outros meios com os mesmos fins: o ensino de história
Está chegando „o dia‟ dos negros. Será que acabou mesmo a
escravidão dos negros, no Brasil? Não existe ainda um tipo de
cativeiro, pesando sobre o povo negro, marcando sempre os negros
como se valessem menos, deixando os negros de lado?
Dizer que no Brasil não há „discriminação racial‟ é uma grande
mentira.360
Indo além das páginas de „branqueamento‟, estampadas nos livros didáticos,
no contexto do Araguaia-Xingu, sob a liderança de Pedro Casaldáliga, conforme
noticiou a Folha Alvorada em novembro de 1981361
, um texto era dirigido aos negros
conscientes e a todos os amigos da causa negra, alertando que o dia 13 de maio (data
alusiva à abolição da escravatura) já era, ou seja, haveria de ser superado, pois não
representava o verdadeiro dia da libertação desse segmento, uma vez que, muito antes
da canetada da Princesa Isabel, no ano de 1888, outro acontecimento deveria ser
aclamado, o assassinato de Zumbi dos Palmares, por Domingos Jorge Velho, no dia 20
de novembro de 1695.362
Lembrava a matéria que 80% da população brasileira eram composta de
negros, os quais viviam em regiões pobres, confinadas em barracos, alagados, favelas e
até mesmo em igrejas, e que durante séculos não se deu valor ao negro. Eram eles
trazidos da África como „peças‟ e, chegando aos portos brasileiros eram batizados e
marcados a ferro, tudo num tempo só. Afirmava que o Brasil e América Latina tinha
grande dívida histórica com os milhões de negros cativos, que, com seu suor, sua arte e
sua alma – forte como o fogo sob as cinzas – construíram a riqueza e o futuro dos
países. Ninguém trabalhou mais do que o negro e a negra, no Brasil, seja nos engenhos
de açúcar, nas plantações de café e de algodão, nas charqueadas, nos portos, nas
oficinas, nas fazendas, nas cozinhas, nas minas e nas estradas.363
E, pelas razões apresentadas, haveriam de comemorar durante a semana do
dia 16 a 22 de novembro, com grandes festejos e manifestações, para lembrar Zumbi e
360
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.21 p 02-21.
Destaque no original. 361
Como forma de alimentar as reflexões, anualmente a Folha Alvorada publicou, durante os meses de
abril e novembro, matérias alusivas ao Dia do Índio e à comemoração da Morte de Zumbi dos Palmares,
objetivando promover a consciência social sobre tais categorias sociais, enquanto forma inequívoca de
produzir “conteúdos” a serem explorados pelos escolares. 362
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.22 p 17-19. 363
Ibid.
269
para animar o povo negro na defesa de seus direitos. Sobre tal matéria foi publicada
história em quadrinhos de Dona Mundica, como observamos nas Figuras 19 e 20 a
seguir.
270
A alocução construída sobre o ato inaugurador da abolição, seguida de
outras estratégias discursivas fizeram com que, ao longo de décadas, a produção
271
historiográfica e especialmente aquela veiculada nos livros didáticos não apresentassem
a complexidade da organização social dos negros afrodescendentes, seja nos quilombos
formados em território luso-brasileiro, seja nas cidades grandes e pequenas, muitos dos
quais constituíram núcleos habitacionais, a exemplo das favelas, cuja diversidade é
passível de constatação, uma vez integradas por negros e brancos pobres. Esses espaços
serviram de foco de resistência para que pudessem sobreviver ao escárnio do
preconceito racial e social, representando, portanto, mais que um lugar, um espaço de
luta e resistência.
Neste sentido, ao „inventar‟ o personagem Dona Mundica, como sendo
mulher, negra e fazer habitar a inúmeras edições da Folha Alvorada, fazia daquela
estratégia uma forma de aproximar as pessoas simples que, além de ler as matérias,
aproximavam das reflexões necessárias sobre sua condição social, a partir da qual,
apresentava o direito de ser „sujeito‟ e ocupar seu lugar na história, não aquela contada
nos manuais „civilizatórios‟, mas um que possibilitasse refletir sobre seu contexto
histórico social. Igualmente chama a atenção para revitalizar a reflexão sobre a condição
de escravidão que não tinha ficado preso nos calabolsos do passado, mas estava muito
presente na vida das famílias residentes entre o Araguaia – Xingu mato-grossense,
relegados, silenciados no não lugar, a escravidão e o escravo.
O não lugar na história a que foram relegadas as categorias sociais mais
fragilizadas contribuiu para o aniquilamento dos espaços de reflexão sobre seus
problemas, sua diversidade cultural, as relações de poder estabelecidas entre as
comunidades, entre os quilombos, entre as famílias remanescentes de escravos e seu
entorno, com o espaço urbano, sobre uma escola que atendesse aos seus anseios,
imprimindo, com caracteres de opressão, sua condenação ao exílio dentro do país,
deixando-as no limbo da invisibilidade e do não pertencimento.
Entendemos que, ao elevar as reflexões nas comunidades escolares,
apontando as razões pelas quais os diversos segmentos, antes invisíveis na literatura
histórica, deveriam lutar, isso contribuiu para que os professores se encorajassem a
assumir posição frente à recusa do não lugar na história. Sobre essa questão, Reis
elaborou importante revitalização do conceito de não lugares:
[...] afirmando que, embora eles sejam caracterizados pela ausência de
identidade, significado e referência histórica, a sua existência está
272
diretamente relacionada com os modos como os sujeitos se apropriam
deles, sendo o uso o que faz o lugar ou o não lugar.364
Seguindo essa linha de pensamento, igualmente o fizeram, e ainda fazem,
com os indígenas,
uma vez que as
páginas dos livros
de história,
incluindo os do
século XXI,
teimam em excluir
a trajetória dos
índios no Brasil e,
em particular,
naquele extenso
quadrilátero de
terras banhado
pelas bacias do Araguaia-Xingu, onde poucas foram as pesquisas que se transformaram
em textos e colocadas nas páginas dos livros didáticos. Ao lado, a Figura 21 retrata o
primeiro casal de professores a trabalhar na escola indígena Tapirapé.
Portanto, precisamos que os livros didáticos, para cumprir sua função sócio
histórica e educacional, reconheçam a história dos povos em sua diversidade, passem
por um processo de descolonização, pois, caso contrário, continuaremos lendo a história
por meio das lentes do colonizador.
Nossa escola de educação básica tem uma dívida impagável pelo
silenciamento aniquilador da riqueza da língua indígena falada por nossos alunos
descendentes desse segmento, inclusive no interior de nossas escolas. Carecemos
entender suas formas de organização social, suas representações religiosas, formatos de
casamento entre clãs de mesma aldeia, entre povos distintos, sobre a transformação
social, quando passam pela puberdade, e também sobre a organização de suas escolas de
educação básica.
364
REIS, Breno Maciel Souza. Pensando o espaço, o lugar e o não lugar em Certeau e Augé: perspectivas
de análise a partir da interação simbólica no Foursquare. Contemporânea. N. 21, ano 11, v. 1, p. 136-148,
2014 apud Marc Augé, 2006, p. 11.
273
Essa ausência da história indígena dos livros didáticos continua alimentando
preconceitos, aniquilando o ser índio numa sociedade não indígena.365
O não lugar na história é a mesma forma perversa de desapropriação de suas
terras. E, se os professores continuarem reproduzindo a tuba, futuramente haverão de
reparar o dano causado à categorias importantes que habitam todo o país, e em especial
a região Araguaia-Xingu. Cabe, portanto observar que, por conta da ocupação das terras
contíguas ao Araguaia, as primeiras a serem ocupadas por conta da migração de famílias
do Nordeste e Sul do Pará, os povos que mais sofreram perseguição das grandes
fazendas foram os Karajá, Tapirapé e Xavante, em especial os de Marãiwatsede.366
Fora a questão
quantitativa e de imprecisão
quanto aos processos de
violência contra os indígenas,
digo imprecisão, pois, não
fossem os registros escritos
feitos pelo não indígena,
dificilmente teríamos tido acesso
às informações do quanto eles
foram vítimas. A Folha
Alvorada sistematicamente
serviu como denunciante das
violências físicas conforme a
Figura 22, porém, a violência
também se deu, talvez em maior
agressividade, no campo
365
Haveremos de realizar novas pesquisas para saber que frutos podem ser colhidos em relação à
experiência da Escola Tapirapé cujo registro na revista Nova Escola, de 1989, tinha por propósito
apresentar o curso INAJÁ, revelou a existência da escola conforme observamos na Figura 21. Neste ano
de 2018 oriento um trabalho desenvolvido por um professor Tapirapé, cuja pesquisa tem por foco a
história tradicional na propagação da cultura do povo Apyãwa (Tapirapé). 366
Conforme o Instituto Socioambiental, em 2011 havia, aproximadamente, 20.294 indígenas habitando a
região Araguaia Xingu, sendo eles Xavante-11.133, Xinguanos – 4.829 (Aweti, Yudja, Kalapalo,
Kamaiurá, Kaiabi, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Kisêdjê, Truai, Ikpeng, Wauja, Yawalapiti, Nahukuá,
Naruvou, Tapayuna), Bororo e Xavante – 858, Karajá – 653, Tapirapé – 573, Bororo – 524, Tapirapé e
Karajá - 512, Kinsêdjê e Tapayuna 375 e Narubotu 69. Todavia, naquele ano dois povos, os Krenak-
Maxacali e os Canela, ainda não tinham seus direitos territoriais reconhecidos. (http://axa.org.br/xingu-
araguaia/a-sociedade/ acesso em 17 nov. 2017).
274
cultural. Nas páginas do periódico tais conflitos não passavam incólumes, em defesa
dos posseiros, negros, sertanejos e mulheres, e igualmente o fazia em relação aos
indígenas, em particular, defendendo-os em relação à Fundação Nacional do Índio, que,
ao contrário de assistir às suas necessidades, serviu de instrumento oficial em favor dos
fazendeiros latifundiários.
Mas, dentre outros direitos, a educação escolar indígena foi uma importante
bandeira de luta, pela qual puderam dominar a língua escrita não indígena. Dentre o
trabalho de outros professores, merece destaque o desenvolvido por Luís de Paula
Gouvêa e Eunice, ambos foram responsáveis pela criação da primeira escola „oficial‟
entre os Tapirapé, cuja instituição, possivelmente, tenha acontecido no ano de 1974.367
Portanto, desde o início dos trabalhos da Prelazia em relação à educação na
região Araguaia-Xingu, Pedro Casaldáliga se colocou em defesa dos direitos indígenas,
especialmente o de terem acesso à educação escolar, como ocorreu com os Tapirapé.
Retomando a questão da escola enquanto tática de resistência contra a
opressão, conforme a Figura 22, a ilustração da matéria publicada na Folha Alvorada,
no mês de outubro do ano de 1981 torna-se emblemática para nosso trabalho.
Mesmo sob o julgo do poder militar, especialmente por se tratar de uma
matéria veiculada num periódico de cunho religioso, como já mencionado, estava a
Folha Alvorada propensa à censura do governo. Embora existisse o risco iminente de
ter suas edições incineradas e os responsáveis presos (o que aconteceu dois anos
depois), sua publicação se tornou fundamental, pois, como já mencionado, o periódico,
além de servir de fonte de pesquisa e material didático para os professores, convocava o
povo a reagir diante da pressão exercida pelo governo em consonância com os anseios
dos fazendeiros e, como linha de frente, com a polícia.
Tomamos por recorte a crítica apresentada ao longo deste trabalho para
revelar que a edificação (invenção) da escola no Araguaia-Xingu esteve imbuída de um
tempo de crise, porém, em que pesem às dificuldades, inventavam a escola procurando
açoitar seus pilares, colocando em cheque o mundo escolar vivenciado pelas gerações
que a antecedeu, apresentando-a (inventando-a) sob novas estruturas, uma escola capaz
367
Convém observar que o “irmãozinho de Jesus”, padre Francisco Jentel, viveu 10 anos entre os
Tapirapé (1954-1964), sendo possível que numa década de experiência entre aqueles indígenas tenha
vivenciado práticas de organização comunitária que, aprimoradas por sua experiência anterior, as tenha
colocado em prática entre as famílias de Santa Terezinha, sob a forma de cooperativas.
275
de transformar a sociedade para viver um Estado Democrático de Direito, contribuindo,
portanto, para gerar uma histórica crise.368
Se tomarmos o mundo vivido pelas famílias de posseiros, religiosos, peões e
indígenas, nas décadas de 1970 e 1980, onde prevalecia a violência e a falta de
perspectiva de vida, seria esta uma forma de resistir e transformar aquela realidade
vivida? Ao compartilhar publicamente dos atos de violência praticados pelos
representantes do governo (policiais civis e militares) e funcionários das fazendas
(pistoleiros e jagunços) e a total „ausência‟ do Estado, estaria o Bispo e os membros da
prelazia tencionando uma crise histórica, em pleno domínio dos militares?
Embora uma objetividade na resposta se torne arriscada, é possível afirmar
que uma crise histórica contribuiria para o rompimento do status quo, conforme
anunciou Ortega y Gasset ao final daquela década:
[...] a crise histórica quando a mudança de mundo que se produz
consiste em que ao mundo ou sistema de convicções da geração
anterior sucede um estado vital em que o homem fica sem aquelas
convicções, portanto, sem mundo. O homem volta a não saber o que
fazer porque volta de verdade a não saber o que pensar sobre o
mundo.369
Uma crise se fazia imperativa, pois décadas de um governo ditador e seus
mecanismos de controle não possibilitaram que a grande maioria das famílias saíssem
da pobreza, entendido aqui não somente pela falta de recurso financeiro, mas,
principalmente, por não dominarem as condições básicas de sobrevivência, silenciada
pela mídia e mantida colonizada pelo sistema opressor.
Tais condições exigiam que temas da vida real fossem estampados nas
páginas dos livros didáticos de história que, até então, eram elaborados sob o olhar do
colonizador, uma vez que, além de não possibilitar a descolonização do conhecimento
acerca da história, não proporcionava ações dialógicas no contexto escolar, uma janela
para que o professor pudesse, enfim, ensinar história em sua diversidade e
complexidade.
368
Ortega anunciou a crise histórica quando a mudança de mundo que se produz consiste em que, ao
mundo ou sistema de convicções da geração anterior, sucede um estado vital em que o homem fica sem
aquelas convicções, portanto, sem mundo. O homem volta a não saber o que fazer, porque volta de
verdade a não saber o que pensar sobre o mundo. (ORTEGA Y GASSET, 1989, p. 184-185). In: _____.
Em torno a Galileu: esquema das crises. Petrópolis: Vozes, 1989. 369
Ibid., p. 184-195.
276
Os „conteúdos‟ críticos „pedagogizados‟ para o ensino da história em sala de
aulas permaneceram sob os grilhões das preocupações pela transformação social, pois,
estando no subterrâneo, tal posição não permitia dar visibilidade às famílias pobres dos
trabalhadores, dos povos indígenas e dos afro-brasileiros. Assim, a criação do livro
didático, que deveria ser uma solução enquanto mecanismo que poderia revolucionar a
educação escolar, acabou se tornando um problema, por apresentar uma versão de mão
única, a do explorador colonizador.
Conforme Alfredo Bosi, essa é a forma pela qual o colonizar se faz presente,
mesmo ausente fisicamente, não deixando morrer sua memória e tampouco sua
linguagem:
[...] a colonização é um projeto totalizante cujas forças motrizes
poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão,
explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse
processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas;
são também crentes que trouxeram nas arcas da memória e da
linguagem aqueles mortos que não devem morrer.370
Observa ainda que são estes mortos bifrontes que servem de aguilhões ou de
escudos nas lutas ferozes do cotidiano, podendo, inclusive, intervir no teatro dos crimes,
com vozes dolorosas de censura e remorso. Estavam, portanto, os valores impositivos
do colonialismo presentes na condução dos processos de formação, ou, pelo menos,
martelando nesse mais novo horizonte da vida das famílias, por meio da formação
escolar no Araguaia-Xingu mato-grossense.
Ao conclamar por justiça, liberdade, direito à terra e à educação, estaria
Pedro Casaldáliga inventando subterfúgios de fuga por meio da escola ali inventada?
Seria essa uma batalha inglória, em que a luta não passava de um jogo combinado e
onde o opressor se fazia vencedor? Não há, por certo, qualquer afirmativa que possa ser
aventada sobre a última questão, porém, haveremos de refletir sobre o sistema simbólico
de propaganda, cujo sentido é a fruição de consumo. Estaria a escola, reafirmando,
pelos seus meios, a récita de uma cultura inventada para ser popular? Mais
especificamente, uma escola milimétricamente pensada enquanto cultura erudita ou
institucional? Cabe, nesse tocante, perceber que, conforme Bosi:
370
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 15.
277
Historicamente as camadas pobres da população brasileira (índios,
caboclos, negros escravos, e depois forros, mestiços suburbanos,
subproletários, em geral) foram colonizadas pela cultura rústica ou,,
eventualmente, urbana dos portugueses, e pelo catolicismo ritualizado
dos jesuítas: e agora, já em plena mestiçagem e em plena sociedade de
classes capitalistas, estão sendo recolonizados pelo Estado, pela
Escola Primária, pelo Exército, pela indústria cultura e por todas as
agencias de aculturação.371
Em tempos de comunicação online, necessário se faz tencionar a crise do
livro didático, pois ela não se prende ao limite do artefato, se comparado aos demais
dispositivos à disposição dos aprendentes e mediadores do século XXI, mas aos vazios
deixados e, em muitos casos, ampliados pela ausência da história local, em particular,
aos sentidos dados à memória, à identidade, aos objetos e problemas vividos pelos
escolares daquele contexto, os quais continuamos a revelar.
As questões por ele lançadas sobre as imagens, as ideias e os valores dessas
agências e sua penetração no imaginário e condicionamento de um determinado sistema
de valores são relevantes, pois, ao perscrutar sobre os meios, e antes destes, no projeto
de escola a ser edificada nesse sistema, é um fenômeno a ser questionado, estranhado
nas e pelas fontes.
Estaria, ao narrar os acontecimentos, as reuniões e os resultados alcançados,
servindo de duelo sobre a memória, reforçando a crítica e alertando para aquilo que a
escola não deveria se dobrar, ou seja, ao sistema opressor colonialista já há muito
reinante sobre os processos escolares „educacionais‟? Poderíamos pensar o
redireciomento da escola e dos escolares, das famílias de posseiros, indígenas e demais
categorias deslocadas para um não lugar na história, nessa construção oficialesca?
Se observado o tempo em que construímos a narrativa, essa característica se
faz igualmente presente, a invisibilidade de inúmeros segmentos e o seu não lugar na
história. Habitar o não lugar é permanecer à margem, é ter sua existência, seus direitos,
necessidades, angústias, sua dor, seu sonho e utopias esvaídos no tempo e negados, para
dar espaços ao do outro, o do pioneiro, do fazendeiro, do herói, do assassino, da
voracidade da mídia paga, da venda de discursos milimetricamente estudados com o
propósito de impor verdades pouco republicanas sobre o trabalhador e, entre outros,
371
Ibid.
278
sobre o professor de história. Produzir saberes nas e pelas escolas de educação básica é
ensejar seu reinventar, habitado, inicialmente, no âmbito do discurso.
Perceber, a escola enquanto discurso é, antes de qualquer circunstância,
reconhecer a existência de armadilhas dispostas em forma de narrativas „disciplinares‟
presentes em todos os espaços em que a instituição for pauta de reflexões e
planejamentos, e como já mencionado, os livros didáticos se prestam enquanto
mecanismos de vigilância e controle por parte do opressor. Portanto, esse jogo de
disputa pela memória, faz do livro didático de história objeto de desejo de muitos
pesquisadores, compreendido enquanto artefato e como instrumento de poder, cujos
interesses trouxeram à cena o capital internacional, por meio do convênio Ministério da
Educação e a Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
(MEC/USAID), cuja „parceria‟ é merecedora de atenção.
A falta de vagas nas escolas públicas de educação básica, na segunda
metade do século XX, serviu de pretexto para que, em 1966, fosse firmado acordo com
a Agência Norte-Americana. Dentre suas prerrogativas esteve a criação de uma
Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED), objetivando coordenar as
ações referentes à produção, edição e distribuição de 51 milhões de livros, no período de
três anos, cuja continuidade tornou-se possível com a garantia de financiamento público
do governo.
A crise servia de justificativa na intervenção do MEC-USAID, mas não
passava de um pretexto para assegurar, ao setor externo, oportunidade para propor uma
organização de ensino capaz de preparar caminhos para aquilo que se propagaria como
desenvolvimento econômico. O acordo selava um compromisso do país em garantir que
seus estudantes, antes de desejar um diploma, alcançassem conhecimentos que lhes
permitisse ser elemento útil ao progresso e à prosperidade da sociedade, impedindo o
fortalecimento das „ideologias‟, que em nossa narrativa chamamos de libertárias.
Porém, seguindo as receitas trazidas pelo „grande irmão‟, jamais alcançariam a
libertação, permanecendo, econômica e culturalmente à serviço do capital.
Observou-se, no contexto das ações de intervenção educacional brasileira,
que o modelo de desenvolvimento dos EUA “[...] servia de referência para os ideários
279
da ditadura” 372
, conforme denunciou Mariguella, em Chamamento ao Povo Brasileiro,
no mês de dezembro de 1968.
Assim, mensurar o grau de importância do livro ao longo da existência da
escola no Araguaia-Xingu requer entender a necessidade de inovação de seu conteúdo e
forma. Para o momento, reafirmar a necessidade de descolonizar a escola, o livro
didático, a formação do professor e o currículo escolar foi e continua sendo condição
sine qua non para o alcance da escola democrática.
Conclui-se o tópico afirmando que o livro didático, ao tempo em que
representou estratégia para o governo brasileiro, distribuindo informação sistematizada
que atendesse a sua forma de explicar a história, de outro lado representou para as
famílias uma forma para que seus filhos pudessem ter contato com a história contada
sobre o outro, o diferente e, como tinha a chancela do Estado, haveria de atender aos
professores leigos.
Compete, portanto, afirmar que a leitura da Folha Alvorada fazia com que
os professores e demais escolares pensassem e refletissem sobre as temáticas trazidas a
tona, uma inovação para o tempo, abordando uma história pouco contada e indesejada
pelos órgãos oficiais da educação.
No próximo tópico, abordaremos a forma democrática pela qual primava a
organização da gestão escolar pelas famílias dos estudantes, e em contraste o assalto
praticado pelos políticos, descrevendo a resistência escolar no cumprimento de sua
função social.
3.7 - Edificado o barracão-escola, só falta professor! Autoridade
Em maio de 1978, seguindo a natureza de suas publicações, a Folha
Alvorada aprofundou a crítica, apontando a ilegitimidade da autoridade praticada, e
tomando-a como autoridade negada, pois não tinha por origem uma convenção
democrática. Tal temática será abordada neste tópico, objetivando entender como a
autoridade era convencionada no âmbito da escola, em tempos de invenção e de
organização comunitária e democrática no Araguaia-Xingu, ou sua contradição, pois, se
372
O sítio de onde foi extraído esse trecho indica como fonte ao documento publicado na íntegra à Revista
Marcha, que teve sua primeira edição em 7 de fevereiro de 1968.
(HTTPS://www.marxists.org/portugues/marighella/1968/12/chamamento.htm. Acessado em 10/01/2017).
280
tratava de um território em litígio, uma vez que a legitimidade, muitas vezes, era
imposta a golpe de machado, açoite de cipó, coronhada de revólver, negação de direitos,
práticas já apresentadas.
Ao observar a
Figura 23, publicada na
Folha Alvorada em 1978,
convocou-nos ao desafio de
refletir sobre a crítica ali
rabiscada em forma de
denúncia. Começamos pela
definição do termo
autoridade, derivado do
latim Autoritate, sinônimo
de poder e base de qualquer
tipo de organização
hierarquizada no interior do
sistema político. Tal adjetivo
não derivou do mesmo significado no contexto da formação dos povoados erigidos nos
sertões de Mato Grosso, especialmente no âmbito da escola.
Por se tratar de um território em litígio, procuramos descrever as formas
distintas de autoridade delegadas pelo Estado e praticadas pela polícia. Além disso,
haveremos de traduzir o sentido do poder praticado pelos fazendeiros contra os
posseiros, peões, índios, e, em alguns casos, semelhante atitude foi também tomada por
pais de famílias aos filhos, por meio da disciplinarização à base de chicote.
Assim, lançamos algumas questões e possíveis respostas. O poder exercido
por quem „tinha‟ autoridade era aceito e legitimado pelo coletivo escolar? Esse coletivo
da escola fugia às situações adversas, isentando das questões políticas e visando
preservar o conjunto dos professores e estudantes? Que atitudes advindas dessa
convenção poderiam ser reveladas na invenção da escola? A autoridade praticada em
torno da organização escolar encontrava estabilidade naquele contexto, entendendo ser a
autoridade um termo histórico e variável no tempo?
281
Na perspectiva de responder às questões elencadas, confere-nos iniciar pela
apresentação de alguns sentidos de autoridade experimentados no âmbito da invenção
da escola popular democrática no Araguaia-Xingu. No mês de setembro de 1977, foi
noticiada uma contenda ocorrida na escola da Lagoa, em São Félix do Araguaia,
quando:
[...] algumas mães começaram a achar coisas erradas nas aulas do 2º e
3º ano da Escola que a Prefeitura tem na Lagoa. Elas pensaram que
seria bom mudar a professora e marcaram uma reunião de todas as
mães de alunos para resolver a questão. Na reunião, junto com a
professora e o diretor, acharam melhor estudar o caso por mais uma
semana. No fim, depois de muita troca de ideias, conselhos, com as
mães, os alunos e a professora juntos, umas colaborando com os
outros, acharam que as aulas estavam boas e que tinha só umas coisas
de desentendimento.373
Afirmava ainda a matéria que,
[...] nos assuntos de escola a maior autoridade deve sempre ser a
reunião dos pais. Depois é que vem a autoridade dos professores e, por
último, os diretores que fazem aquilo que os pais decidirem. E as mães
da Lagoa e da Vila Santo Antônio provaram isso com seu
movimento.374
Percebe-se que, ao hierarquizar poder na escola da Lagoa, em São Félix do
Araguaia, procurava o coletivo estabelecer uma rotina de gestão pautada em reuniões de
pais, cujas decisões deveriam ser soberanas às vontades individuais de professores e/ou
diretores. Assim, surgia naquela localidade a defesa por uma escola democrática.
Igualmente pode ser percebida em Ribeirão Cascalheira, no mesmo ano,
quando a Escola Municipal de 1º Grau estava funcionando muito bem, os pais vinham
acompanhando o desenvolvimento de seus filhos através de reuniões e palestras com o
diretor e com os professores. Mas, no mês de fevereiro, momento em que o diretor e os
professores estavam participando de um curso em São Félix, Dona Benedita, secretária
de educação de Barra do Garças, município a que pertencia Cascalheira, resolveu fazer
uma visita com o propósito de vistoriar a escola, acompanhada pelo vereador José
Casimiro de Alencar, morador do lugar, Dona Maria Reyes Palácio, diretora do grupo
373
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 55 p 4-8. 374
Ibid.
282
escolar de Ribeirão Bonito e mais o soldado Paterna. Ali chegando quiseram, por
própria conta, mudar o diretor e os professores.375
Diante dessa situação, o povo se reuniu para dizer que não estava de acordo
com a decisão da secretária, e que não iriam mais enviar seus filhos à escola.
Inicialmente, nada foi alterado, abriram a escola e, dos 341 alunos matriculados, só
apareceram, aproximadamente, 20.
Cinco dias depois, veio um avião estadual trazendo a secretária e os
representantes dos pais que tinham ido para Barra do Garças. No prazo de seis horas,
todos eles se reuniram para saber o
resultado. Dona Benedita explicou a
proposta do prefeito: os pais deviam
escolher, por votação, o diretor da
escola. Assim foi feito e o diretor que
já vinha trabalhando na escola obteve
100% dos votos, e o outro, que havia
sido contratado, não conseguiu
nenhum.
Esse imbróglio ainda teve
um saldo positivo, pois conseguiram
que, a partir daquele ano, poderiam
funcionar com a 5ª e 6ª séries. Assim,
prevaleceu a autoridade extraída do
desejo coletivo, portanto,
democrático, a Figura 24 expressa tal
episódio.
Mas, parece-nos que os desmandos não se limitavam a uma ação isolada da
secretária de educação do município de Barra do Garças, pois, o descumprimento à Lei
nº. 5.692/71, por parte do poder público, em particular em seu artigo 20, o qual
preceituava que o ensino de 1º grau seria obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo ao
município promover, o levantamento da população que alcançasse essa idade escolar, o
375
Ibid.
283
chamamento para matrícula e garantir os meios para que estes estudassem, não se
efetivou.
Porém, no tocante à participação da família e da comunidade, previstas na
mesma legislação, conforme consta nos documentos pesquisados, ela aconteceu e sua
ação resultou na edificação da primeira escola, mesmo que modesta, mas era a única
forma de seus filhos terem acesso ao estudo, pois, se dependessem do poder público,
esse feito seria tardio, ou nunca aconteceria, o que alimentaria o segundo maior
problema da região, o analfabetismo.
Analisando o contexto a partir das fontes, é possível afirmar que o
analfabetismo dos oprimidos era um instrumento bastante utilizado pelos opressores.
Seguia-se a prática de fazer os posseiros assinar documentos sem que percebessem que
estavam sendo ludibriados. Assim, alfabetizar as famílias seria uma forma de fugir ao
cativeiro, alcançar a liberdade.
A conjuntura da busca por condições mínimas de vida na terra, o
analfabetismo ganhou tom e cor intensos, pouco vistos em outras espacialidades, uma
vez que o não saber ler e escrever parecia igual em todos os lugares. Nos poucos
momentos que os posseiros necessitavam desse domínio, poderia ser crucial para a
história da família, seja quando da leitura e interpretação de um contrato de posse da
terra, no seu registro no cartório, no avaliar e quantificar o preço de suas criações para
venda, mas também ao pagar a conta no armazém, na venda da esquina (boteco) ou no
açougue, pois era comum o uso de cadernetas, porém o domínio da leitura e da escrita
se fazia extremamente importante no acerto financeiro pelo trabalho prestado às
fazendas.
Naqueles sertões havia uma prática abusiva do gato, chefe de empreitada e
ou gerente da fazenda, pois, muitas vezes, nas cidades de origem, ele antecipava
dinheiro, para que o trabalhador o deixasse para os familiares, na promessa de que o
contratado lhe renderia muito mais do que estava deixando para a família. Mas, ao
chegar à fazenda, o patrão fornecia alimentação, moradia (quase sempre em barracos de
lona ou palmeiras no interior das florestas), produtos de higiene, roupa, calçados e até
mesmo ferramentas a serem utilizadas no trabalho do eito e remédios, caso
necessitasse. Invariavelmente, para tais produtos eram cobrados valores exorbitantes, e,
ao final da tarefa, o peão aguardava dias para receber, enquanto isso, os custos de sua
284
permanência eram descontados daquilo que tinha para receber. Assim, quase sempre
não sobrava saldo ao peão, restando-lhe permanecer na fazenda trabalhando para saldar
sua „dívida‟, situação que engendrava fuga para as cidades próximas, alimentando o
exército de peões do trecho, visto não dispor de recursos para voltar à cidade de
origem.376
Era um verdadeiro regime de escravidão nas fazendas, a exemplo da Bridão
Brasileiro, conforme noticiou a Folha Alvorada, em agosto de 1976:
Todos os dias chegam em Santa Terezinha trabalhadores que, depois
de muitos meses de trabalho, nada recebem. Francisco Antônio da
Silva e Manoel Alves de Oliveira trabalharam lá durante quatro
meses. No momento do acerto de contas o „gato‟ Martinzão não quis
acertar. Fretaram um avião por Cr$ 1.500,00 (mil e quinhentos) a fim
de busca-lo para acertar diante do sargento. Martinzão simplesmente
afirmou que não acertaria e que tinha armas na fazenda. E justificou:
„Quem mexe com mais de trezentos homens, precisa de armas‟ Os
dois trabalhadores contam ainda que, no mês passado, Martinzão
atirou em um peão conhecido por Pedrão, no momento do acerto de
contas. Pedrão foi atendido no hospital de São Félix. Outros
trabalhadores, nestes últimos dias, saíram de lá fugidos a pé. Bridão
fica a quarenta e cinco minutos de voo de Santa Terezinha. Alguns já
estiveram em Brasília e Cuiabá. Mas não se tem notícia de solução.377
Não bastava saber ler e escrever, mas interpretar o contexto em que estava
inserido o sujeito histórico, que, para viver seu cotidiano era lhe exigido um conjunto de
saberes e a escola, possibilitando-lhe estar consciente de sua condição social. Entender-
se enquanto sujeito histórico herdeiro de um conjunto de valores e práticas de seus
antecessores, revelavam os „limites‟ e „possibilidades‟ dessa leitura de mundo,
adquirida por meio da escola, contribuindo para torna-lo autônomo e independente, livre
da ignorância.
Porém, cabe reconhecer que a escola não era o único caminho para se
conseguir tal intento, visto a necessária união entre escola, família e igreja, conferindo
ao coletivo condições suficientes para cumprir sua função social. Portanto, não
376
Nos pequenos povoados e cidades era comum o trabalhador ou membro da família comprar “fiado”,
ocasião em que os produtos eram marcados em cadernetas, sendo a dívida saldada no final do mês ou da
empreita. 377
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Agosto de 1977. A 16.0. 36 p
4-5.
285
adiantaria esperar, haveriam de unir forças e edificar um projeto de sociedade mais justa
e igualitária, o qual passava, necessariamente, pela escola.
Ao longo da narrativa, afirmamos que, edificar escola popular era, por um
lado, tática de resistência, e, por outro, a negação ao direito do povo e o não
cumprimento constitucional por parte do Estado. Não se tratou de um fato isolado, vez
que não se restringiu a Porto Alegre do Norte, como escreveu o Bispo Pedro
Casaldáliga, em carta ao povo da região, na edição da Folha Alvorada, de junho de
1980, denunciando que a prefeitura de Luciara não cumprira a obrigação de construir
uma escola em São José do Xingu, que já contava com 140 casas, embora,
aproximadamente 50% delas eram de botecos e armazéns. Com tal omissão, os filhos
das famílias ali residentes não teriam seus direitos atendidos, e, para que pudessem
estudar, contrataram um professor particular, insistindo que um povoado sem escola
garantida não teria futuro.378
Para não fugir à regra, o projeto social firmava-se na medida em que
conseguiam, supletivamente e de forma alternativa, edificar a escola, como aconteceu
em São José do Xingu, pois, segundo Roque João Biegger, agente pastoral da prelazia, a
comunidade construiu a primeira escola naquela localidade.379
A escola também inventava o povoado, como aconteceu no lugarejo às
margens direita do rio Araguaia, que levou o nome de um antigo morador do lugar,
Antônio Rosa. Após visita do Secretário de Estado de Educação no município de São
Félix do Araguaia, nos dias 28 e 29 de novembro, momento em que foi assinado um
convênio com a Prefeitura de Luciara, destinando 25 mil cruzeiros para obras na Escola,
sua publicação no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso só ocorreu no dia 4 de
dezembro de 1978, quando nada havia sido feito até então.
Assim, como se tratava de uma antiga reivindicação, os moradores, em 1980,
construíram um barracão de palha e taipa para servir de escola, faltando, no entanto,
arrumar o professor, pois o povo estava disposto a ajudar na despesa, contanto que a
prefeitura cumprisse com a parte do contrato do professor. Além da casa da escola,
construíram mais cinco barracões para colocar os filhos de famílias que moravam mais
378
Alvorada (1987), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1987 A 16.06 p 02-12. 379
GONZAGA, Agnaldo Divino. Anel de tucum: a missão evangelizadora de Pedro Casaldáliga, bispo da
prelazia de São Felix do Araguaia. Dissertação (Mestrado em Ciência da Religião) – Programa de
Mestrado da UCG. Goiás. 2005, p. 55.
286
distantes. A escola Antônio Rosa apresentou, para a época, algo peculiar, a construção
de espaço para hospedagem dos estudantes.
Outrossim, considerando a distância geográfica da escola até a cidade de
Santa Terezinha, naquela época um patrimônio pertencente ao município de Luciara,
perfazia 410 km por caminho de terra pela BR-158. Portanto, para a década de 1980, o
percurso era feito em voadeira, pelas águas do rio Araguaia, especialmente no período
de chuvas, pois as estradas ficavam intransitáveis.380
Assim, para superar as distâncias, as famílias não tinham alternativa não
fosse deixar seus filhos morando na escola durante os meses de aula. Ao apresentar esse
dado, revelamos unicamente a dimensão geográfica e, por conseguinte, as dificuldades
de deslocamento entre os dois pontos equidistantes.
Todavia, a questão de fundo ancorava-se nas dificuldades de permanência
naquelas paragens, pois, se por um lado havia abundância de recursos naturais, terra,
rios, peixe, frutos, madeira, de outro a falta de assistência do poder público na provisão
de condições às famílias de acesso à formação escolar na fronteira entre os estados do
Pará, Goiás (atual Tocantins) e Mato Grosso, em pleno Brasil Central aumentavam, na
medida em que se projetava uma escola democrática „ideal‟ para o povo, entrando em
conflito com a autoridade autori-tária. Para entender um pouco mais da dimensão do
conflito, visitaremos a escola pelo olhar dos escolares.
3.8 - A Escola sob o olhar dos escolares: o que e para que – enigmas a decifrar
Decifrar enigmas ao longo da história tornou-se recorrente, especialmente
quando a resposta continua prenhe de lacunas presentes na descrição de determinado
acontecimento, seja com relação a um determinado grupo de pessoas, sobre uma
determinada definição, sobre um determinado objeto de estudo, porém, para o
historiador é desejável que esteja municiado de todas as senhas e sentidos. De forma
comparativa, desenhar no passado a imagem perfeita do que deveria ter sido, os sentidos
ideais sobre as coisas, o processo, sobre as causas e formas ideais, sobre os escolares
ideais, parece-nos ser ainda um bom desafio.
380
Voadeira ainda é bastante utilizada e vista singrando o rio Araguaia, trata-se de um barco de zinco com
motor de poupa.
287
Assim, entender a escola no tempo continua e continuará sendo um enigma
a ser decifrado. Limitamo-nos a percebê-la em um determinado tempo cronológico e
lugar, pinçando passagens que possam servir de recurso analítico de prospecção sobre
os contornos e limites físicos e procedimentais na fronteira tênue estabelecida entre o
passado narrado e o presente vivido, fazendo da invenção da escola uma metáfora.
Resta-nos, porém, recortar falas no passado, entendê-las com o fascínio do
presente, conscientes de se tratar de recortes de um tempo e espaço pretérito, prenhe de
múltiplos significados, importando-nos o desafio histórico de reconstituir, na medida do
possível, a escola do passado atribuindo-lhe novas formas e sentidos. Lidar com os
enigmas da Modernidade-Mundo e entender o fragmento na totalidade:
[...] é a perspectiva teórica em que se coloca a análise que estabelece
as condições e as possibilidades da comparação, podendo dizer que
cada teoria da realidade social implica não só a eleição de evidências
como também a eleição de parâmetros lógicos de interpretação: dado
o significado, descrição e análise, explicação e compreensão, parte e
todo, sincronia e diacronia, quantidade e qualidade, passado e
presente, singular e universal.381
Como não há teoria que alcance um único sentido sobre a escola, dadas às
pistas no tempo, limitaremos nossa missão a oferecer inicialmente os registros deixados
pelos escolares sobre a escola no Araguaia-Xingu, sabendo que, ao perpassar
objetivamente por questões metodológicas, recortaram-se muitos ditos, mas como forma
de lançar os enigmas para diante, revelam-se pistas do não dito.
Assim, seguimos recolhendo indícios para entender uma escola que não
existiu na perspectiva de seus habitantes, mas, com o olhar de historiador e a habilidade
do garimpeiro, reunimos fragmentos capazes de revelar e produzir sentido à invenção da
escola, tendo por base a narrativa, de modo a contribuir para que ela possa ser
reinventada em seus múltiplos significados.
Em maio de 1977, foi elaborado um quadro, pelos dirigentes da escola,
dando a público uma pesquisa veiculada na Folha Alvorada com o título - O povo fala.
381
IANNI, Otavio. Enigmas da Modernidade-Mundo. 3. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
p. 18. Embora a abordagem de Otavio Ianni seja sobre Enigmas da Modernidade-Mundo, alerta para um
problema recorrente na produção do conhecimento, entender o fragmento na totalidade.
288
Três foram as perguntas referentes à escola: 1) Para que serve?; 2) O que tem de bom?
e; 3) O que tem de ruim?, e as respostas foram:
Tabela 6: Quadro descritivo para que serve a Escola
Para que a escola serve
Porto Alegre „A escola serve para aprender muita coisa, para aprender a
ler, escrever, contar. Serve para benefício de muita coisa, de
tudo, para educar pessoas‟.
Pontinópolis „Serve para aprender a viver, saber também tratar o pessoal e
compreender. Prá gente aprender ser educado, prá saber
receber os outros e prá ser sabido também‟.
São Félix do Araguaia „O valor que ela tem é que se não existisse a escola, o
movimento de melhora do país não existia. Muitas gentes não
podem nem tirar documentos, por falta de um pouco de saber.
E o saber está na escola‟.
Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1977). A16.0.44P5.7
Muito mais que tomar as respostas como fim, compete-nos inicialmente
entendê-las naquele contexto, aprender a ler, escrever e contar seguiria uma linha
bastante difundida sobre o papel da escola, todavia, para ser sabido, para aprender e
melhorar o país revela expectativa e otimismo em relação à ela.
Todavia, daremos um passo atrás para entender o porquê das perguntas,
embora possamos deixar escapar alguns de seus pressentidos, é certo de que
necessitavam chamar atenção
para o „inculcar sentido‟ à
importância da escola, por
meio da ironia da pergunta,
uma estratégia dos educadores
em fazer com que alunos e
familiares pudessem refletir
sobre a importância de terem
acesso à escola de educação
básica naquele espaço e
naquele tempo, observando
que, a grande maioria dos pais
era analfabeta, por não ter tido
a possibilidade em frequentar
289
a escola na „idade certa‟.
Se tomarmos os parâmetros publicados na Folha Alvorada, utilizados em
reunião promovida em São Félix do Araguaia, nos dias 19, 20 e 21 de outubro de 1979,
falar em frequentar a escola em „idade certa‟ pode soar, no mínimo, como uma afronta
aos pais e mães de família, pois, como observado na Figura 25, menos que 20% da
população tinham acesso à escola, à saúde e aos outros bens necessários para a vida.
Para entender os parâmetros adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), os analfabetos (não sabiam ler e escrever um bilhete) chegavam,
nos finais da década de 1970, ao número de 18 milhões. Como o enunciado na pirâmide
social, denunciava que apenas 2% da população concentrava a maior parte da riqueza do
país, constituídos, consequentemente, por aqueles que haviam tido acesso á instrução
(educação escolar) e à saúde. Já 15% tinham apenas o necessário para viver, sendo que
83% representavam os desassistidos.
A ironia da pergunta está amarrada na necessidade histórico-pedagógica de
construir e inventar a escola, de prover reflexões no seio da família, no sentido de
semear a cultura escolar na comunidade, pois pouco se conhecia sobre o papel social
que a escola representava, para que servia e como se organizava. Assim, como poderiam
os pais construir parâmetros que possibilitassem avaliar a dimensão do que ela tinha de
bom e o que tinha de ruim?
Tais significados dados às perguntas, considerando o contexto tornaram-se
fundamentais por conta do vazio de conhecimento sobre a função social da escola, que,
aliás, mesmo em pleno século XXI, passados meio século, ainda paira dúvida sobre a
função dessa instituição para a sociedade. Todavia, naquela década e naquele lugar, esse
vazio ganhava sentido, pois a grande maioria dos pais de família não frequentou
suficientemente uma escola para conhecer seus propósitos, processos de mediação e de
aprendizagem (ensino-aprendizagem). Mandar os filhos à escola significava jogá-los
num universo desejado, porém pouco conhecido.
Mas, a ironia não ficava no território do não acesso, mas também no interior
das famílias, pois, matricular os filhos na escola também representava „perder‟ valiosa
mão de obra, embora as famílias da década de setenta tivessem, em média, sete filhos,
sendo que os mais velhos, numa escala de probabilidade, eram os últimos a serem
listados para irem à escola, pois, por uma questão de sobrevivência, estes dedicavam
290
seus esforços na lida com a terra, na busca por produzir condições básicas aos demais
irmãos menores.
Essa foi uma realidade nos sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense,
similar à brasileira382
. Porém, ao fazer a pergunta o que a escola tem de bom era uma
forma de mobilizar reflexões acerca dessa instituição, conforme observado na Tabela
que se segue:
Tabela 7: Quadro descritivo sobre o que a escola tem de bom
O que ela tem de bom
Porto Alegre „Tudo é bom quando a criança se sente à vontade. Os pais ficam
despreocupados quando as crianças estão na escola‟.
Pontinópolis „O que tem de bom na escola é o saber. A gente tendo o saber tem
tudo na vida, tem emprego bom, tem educação pra ele e pros
outros. Menino fica educado, tudo é bom. O pessoal aprendendo,
tendo bom professor, tudo é bom‟.
São Félix do Araguaia „O que tem de bom é que as pessoas estudadas têm um poder de
fazer muitas indústrias, é mais gente. Quando a gente não saber
ler não enxerga nada, vive cego. O que seria de nós sem o pouco
de estudo que temos?‟
Santo Antônio „Os pais sendo tudo de acordo, a união do povo no patrimônio,
tudo colabora. A atual é boa, se o professor esforça‟. Fonte: Alvorada (1977) Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p 5-7.
As respostas revelam múltiplos significados, alguns se tornam relevantes e
corroboram com a hipótese de que a escola agregou espaços de organização social,
integrando família-escola-sociedade. Na escola, as crianças se sentem a vontade, por ser
um lugar seguro e, tendo um bom professor, os (as) meninos (as) ficariam educados.
Além do que, saber é poder, visto que se aprende a enxergar as „coisas‟ e sair da
cegueira. Além das qualidades da escola, percebe-se a união do povo do patrimônio
como significativo para a comunidade. Todavia, perguntar seu oposto, o que ela tinha de
ruim, também era uma forma de fazer com que as famílias avaliassem a partir de seu
ângulo de visão:
382
Conforme dados de uma coleta feita sobre os patrimônios de Ribeirão e Cascalheira, nos meses de
março e abril de 1973, afirmaram ter em Ribeirão 250 famílias e em Cascalheira 120, aproximadamente, e
a média de filhos por família era de 7. Também apontou algumas causas principais da migração interna:
a) falta de terra para trabalhar; b) expulsão de suas posses pelo latifúndio; c) busca de vida melhor (terra-
saúde-escola) e d) busca de lugar mais sadio. Outro dado importante foi o de apresentar o percentual de
ocupação das famílias: a) trabalho na roça 40%; b) nas fazendas como peões na época de derrubadas e
roçadas 40% e; c) em pequenos comércios 20%. (Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do
Araguaia. São Félix. 1977 A19.2.16 P. 1.4).
291
Tabela 8: Quadro descritivo sobre o que a escola tem de ruim
O que ela tem de ruim
Porto Alegre „Pode se tornar ruim se o professor não toma providência e
iniciativa, se ele não está interessado‟.
Pontinópolis „Bem, o que eu acho que ela tem de ruim é porque o mictório
fica muito perto da cisterna e, além disso, está do lado de cima
da cisterna e o grupo, em oportunidade de chuva, molha dentro
do salão de aula e também falta asseio na área do grupo‟.
São Félix do Araguaia „O que tem de ruim para min não foi identificado, mas muitos
dizem que é a matemática. O que tem de ruim é que eles não
ensinam a verdade para os estudantes crianças e adultos, só
ensinam história mal contada que eles inventam e não contam
a verdade, como é preciso ensinar’.
Santo Antônio „Quando ela não presta é quando num tem boa determinação,
quando os professores não combinam, quando o professor é
incompreensível com os alunos e as crianças são
desordenadas‟. Fonte: Folha Alvorada. Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 p5-7. Sem grifo no original.
Percebe-se que, quando a escola não contava com infraestrutura adequada,
seus usuários avaliaram que essa é uma coisa ruim, a exemplo de o mictório ficar
próximo à cisterna de onde tiravam água para uso na escola, o mesmo acontecendo
quando os professores não tinham iniciativa, todavia, a avaliação produtora de efeitos
em nossa pesquisa está relacionada à expressão: “eles não ensinam a verdade e só
contam história mal contada, deixando de lado o que é preciso ensinar”.
Embora o quadro apresente uma síntese das respostas dos colaboradores, há
de se considerar que os participantes viviam em espaços e realidades distintas, na cidade
e povoados do Araguaia-Xingu, e, por se tratar de respostas espontâneas, merece
destaque a opinião obtida sobre a pergunta - para que a escola serve? Destacamos
algumas expressões-chave: aprender a ler, escrever e contar; aprender a viver; não
houvesse a escola, o movimento de melhora do país não existia e as pessoas viveriam
cegas, conforme apontou o colaborador de São Félix do Araguaia.
Pode-se perceber que o sentido prático foi destaque para justificar a
existência da escola, uma vez que, além de ler, escrever e contar, era ali que se aprendia
a viver e contribuir para a melhoria do país, formando um quadro importante de
conhecimento sobre a realidade. Igualmente nos permite afirmar a busca pela função
prática daquilo que se aprendia, pois, ao elencar o que a escola tinha de ruim, o fato de
reprovarem quando o professor não tomava providência e quando ele não „combinava‟
292
quando não dava certo, deixando as crianças eram desordenadas, parecem-nos pontos
negativos importantes a serem tratados, pois, não ter domínio de sala certamente tornava
o trabalho contraproducente.
Todavia, requer problematizar a resposta, quando o professor não combina,
pois estava presente nesse imperativo um ordenamento de ideias apontando para
possíveis desajustes no tocante ao projeto de escola pensado e praticado pelos
escolares? Ao analisar o contexto em que as perguntas foram feitas e associando as
respostas às iniciativas de uma gestão democrática, é possível afirmar que sim. No
próximo tópico abordaremos a questão sobre o que ensinou o professor de história e
quando ensinou.
3.8.1 - A arte de ensinar „história mal contada‟ e suas consequências
À medida que nos distanciamos das certezas, da „história verdade‟,
anunciada como negação da prática, na Folha Alvorada, inaugurava-se um espaço onde
poderiam ser praticadas reflexões sobre as críticas anunciadas em relação ao ensino de
história. Alguns significados poderiam ser atribuídos ao – não ensinam a verdade, só
ensinam história mal contada. Que verdade anunciada seria, por um lado, o
esvaziamento da busca por novas formas de abordar o conhecimento histórico,
conferindo ao proclamado a perpetuação de uma versão sobre a história e, por outro, a
tentativa de neutralizar essa estratégia com táticas, de forma a dar outro significado aos
fatos.
Observando que a estratégia das elites, especialmente naquele momento
histórico, era a de reproduzir, como já mencionado, uma história que ensinasse os
grandes acontecimentos, destacando os heróis, portanto, a história verdade como
estratégia e, como anunciou Certeau383
ao enfatizar as atitudes de contestação da ordem,
ao que chamou de táticas, encontrando a fragilidade, atacando a estrutura, mesmo que
não resultasse na derrubada completa ou substituição delas por outras, mas a
possibilidade de atacar. Assim, percebemos que a matriz ordenadora da escola no
Araguaia-Xingu precedia de ações de contestação histórico-social, como afirmou Paulo
Freire:
383
CERTEAU, M.de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 100.
293
Não podemos alimentar a ilusão de que o fato de saber ler e escrever,
por si só, vá contribuir para alterar as condições de moradia, comida e
mesmo de trabalho [...] essas condições só vão ser alteradas pelas lutas
coletivas dos trabalhadores por mudanças estruturais da sociedade.384
Tais ações, embora fossem disseminadas pela Folha Alvorada, tinha um
público mobilizador: as famílias desprovidas de terra. Estava, portanto, trazendo à cena
a disseminação de reflexões cotidianas, como a proclamação da história do índio, dos
negros, dos pobres, das
mulheres, dos excluídos e
silenciados, ora
apresentados como
alegorias. Essas
revelações eram
reproduzidas nas escolas,
casas, praças, fazendas e
outros lugares onde o
periódico fosse lido.
Ao manter o
ensino de história
„oficial‟, produzia-se
intencionalmente um
deslocamento para um
não lugar, para uma arena
que nunca possibilitaria
defesa, mas luta, resistência, transformação, na reivindicação dos direitos universais,
mas também por uma república em que a democracia fosse praticada.
Ao observar a Figura 26, pode-se afirmar que, ao adotar essa tática
discursiva, era anunciada a possibilidade de crítica, de rebelião contra as relações
desproporcionalmente abissais estabelecidas entre os detentores do poder, ali
representados pelos fazendeiros tubarões, pelo Estado, representado pela polícia e, de
384
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 70.
294
algum modo, pelos governantes. Servia-se da crítica como arma contundente, quando
esta se tornasse popular.
Com o mesmo intuito questionador, percebemos tais reflexões na
publicação dos dez anos da prelazia, quando as comemorações tiveram início no dia 7
de agosto e se estenderam até dia 16 do mesmo mês. A matéria trouxe inúmeras
questões que alcançaram o interior da escola, quando informou que durante o festejo
estiveram presentes na festa negros de quase todos os patrimônios, o que oportunizou,
no dia 16, um encontro para conversar sobre a situação do negro no Brasil, cujo
propósito era o de conscientizar os participantes de que deveriam se fortalecer, pois o
negro havia, na realidade, sido duas vezes escravizado, por ser pobre e devido à sua
cor.385
Essas questões são potencializadas pela imagem do raio „civilizador‟
cravado no coração do índio, até aquele momento, enquanto categoria social, produtor
de saberes, demandante de programas sociais, porém invisível às estatísticas e à história
nacional. É possível afirmar que a figura metáfora produziu efeito e sentidos no leitor-
observador, qual seja, reflexão-aprendizagem.
Mas, ao fazer uso desta imagem para ilustrar a matéria, denunciava a
história contada e antecipava a necessidade de ser igualmente reinventada nas páginas
dos livros didáticos, cuja prática ainda se fazia presente nas décadas finais do século
XX. No cotidiano naquela região, muitas das ações praticada pela dita „civilização‟ não
passaram de práticas criminosas, cuja herança se faz presente com o longo processo de
expulsão dos povos indígenas, a exemplo os Xavante, em favor das terras ocupadas pela
Fazenda Suiá-Missú.
A ausência do Estado, que nada fez perante a expulsão da terra
Marãiwatsede, atingiu ambos os lados da disputa, assim como a deportação de seu
território sofrida pelos Xavante e posseiros da Suiá.386
Sobre essa questão, é possível
afirmar que, dentre as centenas de investidas da „civilização‟ em todo o Brasil, na
segunda metade do século XX, uma das mais violentas se deu contra os povos Xavante,
385
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1. 19 p 6-19.
Certamente estiveram presentes muitos brancos e índios, pois, embora se tratasse de um encontro com
viés conscientizador do povo afrodescendente, não havia sentido segregacionista com as demais famílias
de índios e brancos pobres da região. 386
ROSA. Juliana Cristina da. A luta pela terra Marãiwatsede: povo Xavante, agropecuária Suiá Missú,
posseiros e grileiros do Posto da Mata em disputa (1960-2012). Dissertação (Mestrado em História) –
UFMT. Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História. Cuiabá, 2015.
295
no Araguaia-Xingu, seja por conta das grandes fazendas, ou por ocasião da instalação
das colonizadoras, cujos processos foram denunciados desde o princípio, a exemplo do
ocorrido em 1976, quando o índio Xavante Tobias, em assembleia indígena no Rio
Grande do Sul, em meio a 26 chefes indígenas presentes declarou: “Os índios estão
sendo jogados com os pés. Mas nós somos brasileiros também”.387
Parece-nos que a
expressão usada por Tobias nos faz refletir sobre quem era considerado „brasileiro‟, no
Brasil da década de 1970? Que direitos poderiam ser alcançados? A escola ali inventada
contribuiu para minimizar o discurso Brasil ame-o ou deixe-o? Como os professores
eram tratados quando estes „representassem‟ empecilhos aos interesses dos políticos
locais? É o que veremos a seguir.
3.8.2 - Ameaças, expulsão e assassinato: a saga dos „subversivos‟: professores e
religiosos
Como visto ao longo da narrativa, foi em um contexto de desmando e
violência que surgiu a escola no Araguaia-Xingu, e, em seu interior, as mais variadas
intervenções dos mandantes políticos da região. Não bastava tomar de assalto e colocar
seus apadrinhados nos cargos, como foi o caso ocorrido na Escola Estadual de São Félix
do Araguaia, em 8 de outubro de 1981, quando foi notificada, via carta de um deputado
do Partido Democrático Social (PDS), a transferência de dois professores: Paulo Afonso
e Erotildes, já apresentado no tópico 2.5.1. Ilustramos aqui com outro caso emblemático
revelado pela pesquisa, trata-se do professor Juarez Daurell.
O professor Juarez era agente pastoral da prelazia, e, no dia da inauguração
da igreja, em memória ao padre João Bosco, cujo assassinato apresentaremos a seguir,
foi acusado de fazer subversão e guerrilha na escola, incitando os posseiros contra a
polícia. Também pesava sobre ele a pecha de receber dinheiro de Moscou, pois,
associava seus ensinamentos de Estudos Sociais ministrados na 5ª série, como se este
incentivasse o comunismo. No discurso de seus acusadores diziam que essa matéria era
387
A matéria foi publicada em maio de 1977. (Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do
Araguaia. São Félix. Maio de 1977. A 16.0. 44 p 3.7).
296
só para o 2º grau, e que ele e sua esposa faziam o que bem entendiam na escola, porque
a diretora era uma idiota.388
A Folha Alvorada denunciava que, zombando da fé do povo, naquele dia tão
solene, perguntaram ao Juarez se ele também queria ser mártir, que lhe levantariam uma
cruz. Daí o ameaçou: “Vamos te matar fazer picadinho, se aparecer o nome do Coronel
Silvério nos Jornais!”.389
O discurso proferido pelos representantes do Estado, que, naquele lugar, se
confundiam com os representantes do latifúndio e, em contexto de ditadura militar, a
violência e a morte eram praticadas em nome da „segurança nacional‟, tornando-se uma
prática na ordem do dia.
Observamos que a escola, e especialmente aquilo que era ensinado aos
filhos das famílias em sala de aula, servia de insulto aos interesses dos opressores, pois
o fato de ensina-la a partir do contexto vivido, tornando os aprendentes capazes de
criticar a realidade vivenciada, foi interpretado como uma afronta ao poder constituído.
Para anunciar o assassinato do Padre João Bosco, um ano antes das ameaças
ao Professor Juarez, apresentamos um excerto da carta redigida pelo Bispo D. Pedro
Casaldáliga ao Papa João Paulo II, no dia 22 de fevereiro de 1986:
Yo personalmente tuve que presenciar muertes violentas, como la del
padre jesuita Joao Bosco Penido Burnier, asesinado junto a mí por la
policía, cuando los dos nos presentamos en la Comisaría-Prisión de
Riberâo Bonito para protestar oficialmente contra las torturas a que
estaban siendo sometidas dos mujeres, labradoras, madres de familia,
injustamente detenidas.390
O episódio da morte do Padre João Bosco anualmente habitou as páginas da
Folha Alvorada, porém, a mais emblemática foi desenhada com intensidade, conforme
observamos na Figura 27. Há de se lembrar que a inauguração do templo católico foi
marcada por conflitos abertos, quando o povo se reuniu em Ribeirão Bonito, hoje,
388
É possível que o professor jamais estivesse ensinando sobre a Revolução Russa de 1917, mas sim
procurando exercer a arte de ensinar, de forma que os alunos pudessem entender a relação de opressão em
que vivia o povo. E, ao chamar assim a manifestação popular, estaria, sob o olhar da polícia local,
incitava o povo à guerrilha. 389
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 50 p 15-16. 390
CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, Editorial Nueva
Utopía. Magalhanes, 1989 p. 169.
297
cidade de Ribeirão
Cascalheira.391
. Contudo, tal
manifestação não se fez pacífica,
pois, talvez os opressores não
tenham alcançado êxito naquele
fatídico confronto, a que
descrevemos a seguir.
Na tarde de 11 de
outubro de do ano de 1976, o
Padre João Bosco, foi atirado à
queima-roupa e de forma
covarde, falecendo no dia
seguinte em Goiânia-GO. Há
quem diga que o propósito era
matar o Bispo Pedro
Casaldáliga. Mas, como não
bastasse o assassinato do padre,
o professor Juarez por pouco
acabou sentenciado à pena de
morte, acusado de subversão e
prática de guerrilha, e, na escola,
por „incitar‟, receber dinheiro de
Moscou. Percebe-se claramente a tentativa de reprovar as ações do professor diante da
opinião pública, com argumentos convencionados no meio policial-militar, próprio do
governo ditatorial brasileiro.
O episódio, de triste lembrança, revelou ainda o lado mais perverso da
ditadura, bem conhecida daquela comunidade e das escolas edificadas no Araguaia-
Xingu mato-grossense.
Concluímos o tópico afirmando que aquela manifestação do povo teve por
base não somente os fatos pretéritos, mas pontualmente, naquele momento, a ameaça à
391
No dia 19 de abril de 2010 foi publicado no Diário Oficial da União o reconhecimento, por parte da
Comissão Especial da Secretaria de Direitos Humanos, que o padre João Bosco morrera vítima do regime
militar.
298
vida, referindo-se ao assassinato do Padre João Bosco, motivo pelo qual ali se
encontravam e duelavam, posicionando-se, de um lado, representantes da escola, e do
outro o poder arregimentado e armado da política militar. É possível perceber a gênese
do pensamento sobre a „escola sem partido‟, bem diferente de uma escola portadora de
um currículo voltado a práticas de liberdade. Em seguida, continuamos revelando táticas
de um discurso questionador a ser adotado para o ensino de história.
3.9 - Sete de Setembro revelando uma história pouco ensinada
Ensinar história na escola de educação básica brasileira, nas décadas de
1970 e 1980, como percebido nos tópicos anteriores, não foi tarefa fácil, pois, entre o
saber e o fazer havia um abismo profundo de insegurança, cujo preço poderia ser a
própria vida. Assim, difícil e perigosa fora a missão de prover as famílias de
conhecimentos vitais, por meio da arte de ensina-los a ler, escrever, contar e também de
refletir sobre o cotidiano. Tal desafio requeria do professor uma escolha, ou assumir
posição firme frente aos problemas historicamente conhecidos e ali praticados, a relação
opressor-oprimido, no sentido de oferecer ao oprimido condições de superar o abismo
entre um e outro, ou aquietar-se frente às violências, contribuindo para sua
naturalização.
Imagine o desafio do professor ao ensinar história, ter que explicar aos
alunos as causas, sem muita cerimônia, da violência que vitimou índios, posseiros,
peões, a exemplo do que ocorreu no mês de abril de 1979, em Porto Alegre do Norte, na
fazenda Piraguassu, onde o posseiro mais velho do rio Sabino, por nome Isidoro, que
sob a promessa de lhe entregar 30 alqueires de terra e empregá-lo na fazenda, com um
ganho de 200 cruzeiros por mês, o fez assinar um documento, porém, o problema é que
ele não sabia ler e o documento tinha por prerrogativa a entregava as terras para o dono
da fazenda.392
Ao tomar como parâmetro os crimes contra as pessoas analfabetas,
cotejando-os com a função social da escola, não constitui tarefa difícil, pois, ao
apoderar-se da leitura e da escrita era o mesmo que vestir um escudo protetor contra as
intenções dos grileiros e fazendeiros, contribuindo, assim, para evitar que a população,
392
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0. 65 p 04-10.
299
majoritariamente pobre, continuasse vítima da voracidade dos fazendeiros pela
concentração de terras. Igualmente relevante se tornou a Folha Alvorada ao registrar e
divulgar para que outras famílias o ocorrido com o senhor Isidoro, para que os demais
não caíssem na mesma armadilha.
Observamos que os referidos registros se deram em várias escalas, desde um
fato ocorrido com um agricultor, seja em grandes eventos, como o ato público de 15 de
outubro de 1979, o qual reuniu 8 mil lavradores exigindo justiça contra o despejo de
400 famílias de posseiros, no município de Conceição do Araguaia, na fronteira de
Mato Grosso. Cabe observar que, embora em grandezas distintas, a violência e a
perseguição aos trabalhadores não se tratava de fatos isolados, portanto, podem-se
afirmar inúmeras razões de intervenção da escola e dos professores de história no
Araguaia-Xingu mato-grossense, pois essa instituição, erguida pela própria comunidade,
brotou em meio ao emaranhado de problemas, mas com uma missão clara, a redenção
de uma população iletrada em busca por seu pedaço de chão para plantar, ou seja, em
busca de sua cidadania brasileira.
Quando se conseguia um pedaço de terra para trabalhar, logo chegavam os
grileiros, usando de documentos frios (falsificados) e querendo fazer do lavrador um
peão, sempre acompanhado de ordens judiciais absurdas e ilegais, acompanhados de
força policial.393
Outra matéria publicada pela Folha Alvorada denunciou abusos de toda
ordem contra membros da comunidade, como aquele ato de criança de sete anos ser
obrigada a acompanhar a polícia e de oficial de justiça dentro da casa de seu pai, para
dizer onde o mesmo tinha se escondido, a fim de não leva-lo preso; tinham acontecido
coisas que nos dá vergonha de dizer, como o caso de um posseiro que foi obrigado a
beber xixi na cuia, teve posseiro que serviu para soldado se satisfazer sexualmente; ou
posseiro obrigado a servir de mulher para outro posseiro, tudo a mando dos soldados,
sob ameaça do cano de fuzil. Não se pode olvidar de que a Folha Alvorada era enviada
para as comunidades e, dentre os muitos locais onde ela ganhava espaço de leitura e
compartilhamento, a escola constituía um espaço privilegiado.
Assim, não é difícil afirmar que, sendo os alunos que frequentavam as
escolas os mesmos que assistiam às mais grotescas situações de violência, se torna
393
Ibid.
300
impossível negar que esses assuntos não permeavam o cotidiano da sala de aula.
Igualmente, não há como negar que, de alguma forma, a invenção da escola no
Araguaia-Xingu serviu de instrumento de poder, ora por parte dos professores na luta
pela melhor formação de seus alunos, ora pela tentativa de forças externas buscando
neutralizar, atrapalhar e ou impedir que as instituições escolares cumprissem sua função
social.
Por maior que tenha sido o exercício da pesquisa, seria impossível encontrar
fragmentos suficientes do cotidiano da sala de aula de um professor de história para
entender como se deu e que resultados práticos obteve com a arte de ensinar história, e
que história fora ensinada. Todavia, pensando com as reflexões propostas por Certeau, o
qual considera que passado, presente e futuro só existem em função de um agora, que é
presença no mundo,394
procuramos instituir um antes (passado), um depois (futuro) e a
sensação de pertença a um tempo (o presente). Assim, assumimos a história que
acontece no interior da historicidade.
Mas, ampliando a lente para espaços maiores, nos deparamos com pistas
que nos levam a entender um pouco das práticas dos professores, colocando-os no
centro dos debates e entendendo-os enquanto protagonistas em meio a inúmeros outros
constituintes de um coletivo escolar, trazendo para si a atenção de toda a população,
alunos, pais, autoridades, despertando a atenção dos olheiros, jagunços e pistoleiros, sob
mando dos tubarões.
Neste sentido, entender a invenção da escola no Araguaia-Xingu,
desconsiderando a dinâmica comunicacional estabelecida entre aquilo que se „estudava‟
em sala de aula em perfeita sintonia com o que se vivia fora de seus muros, seria um
equívoco, pois o conhecimento é fruto dos processos de mediação e aprendizagens
produzidos em sala de aula, estando estritamente ligados à vida das pessoas, portanto,
contribuindo para a invenção do ser, desde o âmbito individual ao coletivo,
especialmente o familiar que, conforme os códigos estabelecidos ao longo dos tempos,
o de indagar o que o filho aprendeu na escola, quando do retorno para casa, é fato
corriqueiro, especialmente quando se duvida da capacidade de mediação do professor.
Além das conexões estabelecidas entre o espaço da sala de aula, a pesquisa
revelou que muitas histórias ensinadas naquele quadrilátero inspiraram a inauguração de
394
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 48.
301
outros recintos de comunicação-mediação-aprendizagens, tornando pública a tentativa
de desconstruir a representação do opressor ao rebelar o coletivo do oprimido.
Quatrocentos foi o número dos alunos que participaram do desfile de 7 de
Setembro de 1979, desde estudantes do ginásio até alunos das escolas dos patrimônios
e sertões do Araguaia-Xingu mato-grossense.
Entre as dezenas
de apresentações, a da
Escola Municipal São João
Batista da Cascalheira,
desvelou o „verdadeiro‟
sentido da palavra
independência do Brasil,
conforme observa-se na
Figura 28 que ilustrou a
matéria, o texto anunciava
que os alunos apresentaram
durante o desfile os
trabalhadores da região em
suas mais variadas
profissões: posseiros, peões,
pedreiros, carpinteiros, oleiros, vaqueiros, lavadeiras, costureiras, mecânicos,
cozinheiras e fazendeiros, além dos blocos de índios e alunos simbolizando os
estudantes.
Conforme matéria, o desfile causou muito entusiasmo aos alunos, por verem
seus pais trabalhadores representados no desfile, e também por estarem seus
progenitores assistindo à apresentação feita por eles. Os pais igualmente ficaram
orgulhosos por saberem que a educação de seus filhos estava sendo verdadeira e tinha
sentido dentro da realidade em que viviam.
Incontáveis são as aberturas para análise do ocorrido, mas, atenção especial
será dada a duas expressões que exigem reflexão, a primeira a educação verdadeira e a
segunda a uma educação com sentido. Problematizá-las é necessário: existia uma
educação que não fosse verdadeira? Existia uma educação sem sentido? Certamente
302
não, mas, se reportarmos às dimensões da escola, já narrada até o presente momento, é
possível afirmar que os professores, em especial os atuantes na disciplina de história,
sabiam da importância da prática de um currículo que considerasse o contexto sócio
histórico, econômico e político dos aprendentes, revestindo a educação de sentido. Por
outro lado, ao trabalhar as questões locais, abordando problemas do cotidiano das
famílias, afirmavam sentidos às práticas cotidianas.
No mesmo evento, no período noturno, foi apresentado um drama contando
a história do Brasil, desde o descobrimento até os dias atuais: a exploração dos
portugueses sobre os índios, dos senhores de engenho sobre os escravos que fugiam e
formavam quilombos; da exploração dos patrões sobre os trabalhadores e também a
forma como os trabalhadores estavam se organizando para defender seus direitos e
conquistar sua verdadeira independência.395
Ao desenvolverem tais atividades, estavam contribuindo para a construção-
reconstrução da memória coletiva sobre o processo histórico que, segundo Le Goff,
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta
das forças pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do
esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desse mecanismo de manipulação da memória coletiva.396
Mais que uma aula de história não contada pelos livros didáticos da época,
pois em nenhum livro didático, mesmo os produzidos nos anos que antecederam a
presente narrativa, contemplaram uma produção de história de Mato Grosso, e em
particular, do Araguaia-Xingu a ser trabalhada em sala de aula pelos professores de
história. Portanto, o mesmo silêncio que resultou no anonimato do Brasil Central, ainda
persiste enquanto política nacional para a produção dos livros didáticos.
Assim, ao analisar aquela „aula de história‟ a céu aberto, enquanto projeto
de aprendizagem coletiva, conseguiu agregar inúmeras dimensões da invenção da escola
e da arte de ensinar, integrando memória, relato, denúncia, audácia, reconhecimento,
trabalho em equipe, aproximação de uma escola com a sua criação, por meio de
temáticas entre o que se via fora dos muros da escola e parte daquilo vivido no cotidiano
395
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A 16.0. 50 p 15-16. 396
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3 ed. Campinas, SP: EdUNICAMP, 1994, p. 426.
303
das salas de aulas e da fala de alguns professores. A reserva se dá para que não
incorramos em juízo de valor para um coletivo, sem considerar sua diversidade, pois tão
diversa é a sociedade quão diversos são os profissionais e suas práticas.
Não é difícil afirmar que aquele 7 de Setembro tenha sido fruto de processo
de leituras atentas às distintas realidades históricas vividas no Brasil, desde seu
descobrimento até aquele 1979, que, mesmo passados alguns séculos de independência,
quase um século de república, algumas categorias ainda persistiam, como a
concentração de terras nas mãos de poucos, a exploração da forma de trabalho
(escravo), tráfico de pessoas para trabalhar nas fazendas, falta de acesso aos serviços
públicos de saúde, educação e segurança, enfim, barreiras intransponíveis para o alcance
pleno da independência e da liberdade.
A pesquisa feita pelos professores com a finalidade de se produzir aquele 7
de Setembro passou pela história ensinada por eles, no sentido de apresentar uma versão
da história pouco contada nas páginas dos livros didáticos, e que tenha custado horas e
horas de trabalho. Um ato de coragem, irreverência e inovação, pois, como já bastante
conhecido, os atos cívicos, especialmente durante os governos militares, tinham por
ideário eternizar os símbolos nacionais, os heróis, os governantes, os desbravadores
(pioneiros), as profissões „elitizadas‟ ou, por outro lado, as categorias sociais alegóricas,
os índios vestidos de penacho e os negros homens nus de cintura para cima e dançando
capoeira, munidos do berimbau, ou um facão ou foice como instrumento de trabalho,
perpetuando a escravidão enquanto representação de trabalho, além de outros artefatos,
como grilhões.
Todavia, a escola, ali, cumpria o contraditório, apresentando outra versão
sobre a história das diferentes categorias sociais, azeitadas com criticidade e
despertando novos olhares, novas teses. Nessa medida, escola e os escolares revelaram
uma leitura sócio histórica, vivenciando aprendizagem ímpar na vida da comunidade.
Naquele projeto de aprendizagem, tendo como momento sublime a
interação entre os alunos e comunidade, possibilitou romper com os muros invisíveis
entre a sala de aula e o contexto sócio histórico no qual a unidade escolar estava
inserida. Também é possível afirmar que essa representação teve por propósito provocar
dúvida sobre conhecimento até então veiculado nos livros didáticos, com expectativa de
uma conscientização com alcance da prática libertadora, difundida e defendida por um
304
educador contemporâneo que, por meio de seus escritos, dava visibilidade ao ideário de
práticas pedagógicas libertadoras.
Assim, ao lançar luz ao evento, se pode perceber que a memória ali
evidenciada sobre as questões, especialmente em relação às desigualdades sociais, a fez,
objeto de disputa política, cuja independência haveria de ganhar novos contornos, os
quais serão apresentados a seguir.
3.9.1 - Independência
Para ampliar nossa topografia sobre o tema, acrescentamos uma segunda
matéria publicada no mês de setembro de 1984, fazendo alusão ao 7 de Setembro:
Independência ou Morte???. Esse foi o título publicado seguido por uma narrativa
lançando críticas à forma usual que as instituições promoviam os desfiles cívicos “[...]
costume fazer aquele reboliço cívico: desfiles de escolas, de militares, discursos verdes-
amarelos, autoridade emplumadas, palanques, bandeiras hasteadas, muitas continências
e falação nos jornais”.397
Asseverava ainda que muita gente achava tudo isso bonito e ficava
entusiasmada, acreditando que o nosso país era totalmente independente. Porém, a
matéria colocava em dúvida tais certezas, indagando as razões que „induziam‟ o povo a
acreditar no discurso ordenador. Sequenciavam as desconfianças apontadas na matéria.
Será que podemos considerar como independência a situação em que vivemos? Só botar
os pés no chão, vamos lembrar de algumas coisas:
a) No dia 7 de Setembro de 1822, o Brasil apenas se desligou do governo de Portugal,
transferindo a sua dependência econômica para a Inglaterra. Os portugueses
exploravam o povo brasileiro e a Inglaterra forçou a independência política, para
explorar sozinha o nosso país, sem intermediários.
b) Desde aquele tempo, o Brasil está amarrado ao capital estrangeiro, e nossos
dirigentes sempre estiveram defendendo semelhantes interesses em detrimento da
pobreza e exploração da maior parcela dos brasileiros.398
397
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3. 08 p 11.16. 398
Ibid.
305
Continua a matéria afirmando que os governos brasileiros, especialmente os
militares:
a) Facilitaram aos estrangeiros a instalação de indústrias, compraram tecnologia dos
países ricos e foram entregando as nossas riquezas. E o Brasil sempre devendo,
aumentando mais as suas dívidas, piorando, consequentemente, as condições de
vida dos segmentos mais pobres.
b) Infelizmente, não temos aqui espaço para contar muitas coisas importantes da nossa
história, mas vamos ver um pouco do que tem acontecido desde 1964 (golpe
militar), a fim de a gente ver como é que não temos muito motivos para comemorar
a chamada „Independência‟ do Brasil.
c) A dívida externa foi crescendo tanto que o Brasil não conseguiu pagar nem os
juros! Então, teve que pedir dinheiro emprestado ao Fundo Monetário Internacional
(FMI), e este emprestou dinheiro impondo determinadas condições:
1 - Rebaixamento do nível dos salários e aumento do custo de vida;
2 - Desemprego cada vez maior em todos os lugares;
3 –Diminuição dos benefícios da Previdência Social (por exemplo: atendimento à
saúde, aposentadoria) à população;
4 - Campanha para esterilizar as mulheres e;
5 - Nossa dívida externa, atualmente, está em mais de cem bilhões de dólares!!!399
Como forma de ilustrar a narrativa tornando a matéria didática, o artigo
estampou uma charge, conforme pode ser observada na Figura 29 a seguir, de fácil
interpretação às crianças em idade escolar e ou pessoas com baixa escolaridade
apresenta um diálogo entre D. Mundica e seu filho sobre o significado da independência
do Brasil. Todavia, em forma de ironia, a mãe lança uma crítica contundente à forma
pela qual as decisões eram tomadas no país naquele momento histórico.
Com mesmo propósito, a matéria apresentou uma segunda ilustração
bastante rica do ponto de vista histórico, pois, ao apresentar D. Pedro montado a cavalo,
fez menção ao ato às margens do riacho Ipiranga, que, sem luta, declarou o Brasil
independente de Portugal, porém, o que nos chama atenção é o fato de o mapa do Brasil
estar sendo espetado pela espada do Infante.
399
Ibid.
306
Portanto, colocava em
questão a
intencionalidade do ato,
procurando exaltar
aspectos que a história
que os livros didáticos
não contavam. Ao
declarar a
independência,
inventava novos laços
coloniais, pois, o Reino
do Brasil, Portugal e
Algarve continuou
sendo espólio da família
real portuguesa e de seus assentes.
Porém, a figura ainda fazia alusão ao „Tio San‟, iconografias passíveis de
inúmeras interpretações em trabalhos vindouros. Para o momento, nos limitamos a
destacar o „galo‟, símbolo da Folha Alvorada, sugerindo, ironicamente quais das
situações seria escolhida pelo peão: a Independência de Portugal ou morte, ou a
Dependência dos Estados Unidos da América ou morte.
Observamos que a(s) pessoa (s) autor(es) da matéria estava(m) munido(s) de
conhecimento sobre o processo histórico revelados de maneira sutil. Porém, com a
307
complexidade que merecia tais questionamentos, tangenciando aos campos da história,
da política, do direito, da economia, e, da educação, mais especificamente da didática,
pois sequenciou fatos da história dando novos contornos aos conteúdos pedagogizados.
Reforçando, portanto, a resistência, aqui arregimentada pelo discurso de uma educação
(escola) libertadora, além de reafirmar o fato de que os professores de história
participavam diretamente dos embates cotidianos, das táticas de guerrilha.
Muitos docentes atuantes nas escolas, além de ministrar o ensino em sala de
aula, eram referência na comunidade, por colaborarem com a produção de textos
críticos sobre o contexto nacional e também aquele vivenciado pelas pessoas da região,
a exemplo da situação do país, publicada na Folha Alvorada em 1981, afirmando que os
professores José Martins, Maria Nilde e Paulo Schilling comunicaram as notícias mais
recentes sobre a política, a carestia, o desemprego, dentre inúmeros outros temas que
diziam respeito diretamente à condição de vida do povo brasileiro e, em particular,
daqueles que viviam no Araguaia-Xingu.400
Assim, reconhecemos nessa atividade, sinônimos de uma invenção, a escola
viva, constituinte de um amálgama, no qual o vigiado e o vigilante comungavam de um
mesmo lugar, mas em espaços distintos de atuação. Igualmente, a teoria e a prática, a
história e a memória eram potencializadas enquanto ingredientes para a conscientização.
É possível afirmar que, como sugeriu Paulo Freire401
: “[...] a conscientização implica,
pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos
a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível na qual o homem
assume uma posição epistemológica”.402
Nesse sentido, imbuídos de uma realidade histórica e tomando o desfile
cívico do 7 de Setembro apresentado anteriormente, os escolares agiram de forma a
revelar e denunciar as estruturas antagônicas, representados em campos ou bandejas
opostas de uma balança, de um lado, os trabalhadores nas mais variadas profissões, e,
400
Mais uma vez reforça o argumento de que a rede de sociabilidade de Pedro Casaldáliga o preparava
para os debates e encaminhamentos junto à equipe de professores ligados á prelazia sobre educação. 401
FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da liberação: uma introdução ao pensamento de Paulo
Freire. 3. Ed. São Paulo: Moraes, 1980, p. 26. 402
As fontes indicam a possibilidade de que os professores, especialmente os leigos ligados à prelazia,
tivessem lido Paulo Freire, pois, entre a bibliografia existentes no acervo da instituição apresenta uma
sequência de documentos de forma cronológica III. 4 – Edital sobre concurso público para o Magistério;
III.5 Novo conceito de desenvolvimento na literatura atual e no Pensamento de Paulo Freire (sem data);
III. 6 Education, Libertation et Eglise – Paulo Freire (sem data); III. 7 – Educação, Libertação e Igreja –
Paulo Freire (sem data); III. 8 Educacion – Boletin – Com. Evangélica – 1976. DIII. 0-Indice. P1.2 –
Arquivo da Prelazia.
308
de outro, os tubarões. Assim, se fizeram ilustrar o dominante e os dominados, ou, como
propôs Paulo Freire, o opressor e o oprimido, revelados em todas as dimensões
histórica, sociais e antropológicas.
Estaria a escola, num movimento envolvente, caminhando em direção a uma
práxis libertadora? Conseguiu a mesma romper com a maquinaria dos organismos
opressores? O pesquisador desatento, ou por falta de „madureza‟, diria que sim, todavia,
seria prematuro afirmar e, igualmente, porém, seria equivocado negar.
Pode ser constatado que, ao produzir aquela matéria jornalística, entendendo
seu contexto de produção, a equipe tinha um propósito de contribuir para a mudança de
perspectiva em relação à heterogeneidade da sociedade em que viviam as famílias, cujos
filhos frequentavam a escola de educação básica, chamando atenção para os
personagens ali presentes.
Para cumprir essa função educativa, como nossa pesquisa não se limitou ao
tempo cronológico da década de 1970, faz-se necessário adiar tais respostas para o
próximo capítulo da tese. Mas, é possível antecipar que a invenção da escola no
Araguaia-Xingu teve, em seu DNA, um conjunto de práticas formativas que integraram
uma função social, um currículo dedicado à produção de ciências, nas e para práticas
democráticas, com perspectiva de uma escola libertária.
Conclui-se esse tópico afirmando que, do ponto de vista do ensino de
história, a escola, por meio de um currículo contextualizado, contribuiu para que o
aprendente imprimisse passos seguros em busca de uma consciência do „ser‟ e do „agir‟,
tornando-o apto a transformar a si e a seus pares.
3.10 - A escola onde a fome da cabeça é maior que a fome da barriga
O povo esquecido, desamparado, não pode mais esperar. Já dizia um
sertanejo: „A fome da cabeça é maior que a fome da barriga‟.403
Como apresentadas anteriormente, as condições sócio históricas e culturais
das famílias atendidas pelas escolas de educação básica na região Araguaia-Xingu
mato-grossense foram marcadas pela precariedade de moradia, higiene, alimentar,
403
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A16.0.03 p 01-3.
309
saúde, econômicas, adicionada à falta de conhecimento das letras. Tais condições
permaneceriam inalteradas, à medida em que estas permanecessem sem acesso à escola.
Em seu entorno, algumas iniciativas sociais, por parte da prelazia,
contribuíram para a superação de fragilidades não praticadas pelo currículo escolar, a
exemplo das questões de saúde das buchudas, do conjunto de conhecimentos sobre a
produção e o consumo de alimentos necessários para a boa saúde, até porque algumas
questões não poderiam ser tratadas na infância, tampouco na adolescência. Embora tais
conhecimentos permeassem o contexto educacional, não eram tratados suficientemente,
o que ensejou a criação do clube de buchudas e o clube de mães, por meio dos quais
ampliavam-se esforços na busca pela superação da falta de conhecimentos, tão
importantes à preservação da vida.
Com esse propósito eram trabalhados projetos coletivos, a exemplo das
hortas comunitárias, organizadas por um grupo de mulheres vinculadas ao clube de
mães de São Félix, onde cada uma cuidava diariamente de uma horta, mas a produção
era dividida entre todas, seja na cata ao estrume, na chácara de Dona Noêmia, ou na
praia, mas também eram compartilhadas as dificuldades que, quando apareciam, eram
discutidas no coletivo, durante as reuniões.
Naquele ano de 1977, existiam nove hortas onde se produziam tomate,
alface, berinjela, cebola, pimenta, chuchu, cenoura, entre outros. Dessa maneira, “[...] as
famílias resolviam juntas uma parte do problema da alimentação”.404
Também, em
Porto Alegre, por meio de mutirão, foi montada uma horta comunitária, conforme
publicou a Folha, em julho de 1978, o que nos possibilita afirmar a existência de uma
iniciativa comum nas comunidades onde se estabeleceram as escolas.405
A participação das mulheres foi fundamental na organização dos processos
no entorno da vida das famílias e, principalmente, no que diz respeito à educação dos
filhos, pois, ao tempo em que participavam de todas as decisões tomadas em torno da
escola, também assumiam posição nas questões que interferiam na formação dos filhos,
a exemplo do que fizeram ao convidar dez jovens para que aceitassem fazer as vezes da
polícia-mirim, o que teve pronta anuência. Porém, as mães se posicionaram contrárias à
404
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1978. A16.0.57 p 08-12. 405
Ibid.
310
iniciativa dos policiais, para que seus filhos fizessem esse papel, conforme noticiou a
Folha Alvorada, em agosto de 1978.406
Havia, portanto, um ingrediente importante nessa ação que, certamente,
contribuía com a escola, a organização social na busca da solução de problemas, a
exemplo do mutirão feito em São Félix, que contou com 82 pais de alunos para
construção de um barraco de palha, junto da escola, para abrigar os alunos que não
tinham onde estudar por falta de espaço edificado, falta de um lugar onde as “[...]
crianças pudessem trabalhar mais à vontade”.407
Tal atitude, conforme publicado na
Folha Alvorada, alimentava o sentimento de responsabilidade de todos em zelar pela
escola, esclarecendo o sentido atribuído à expressão zelar pela escola, o qual incluía
participar das reuniões de pais e mestres e exigir das autoridades tudo o que fosse
preciso para as escolas funcionarem bem.
O problema dos estabelecimentos escolares, como descreveu a matéria, era
muito sério, sempre (em todas as circunstâncias e lugares), e os pais deveriam ser os
primeiros a se preocupar em resolvê-lo. Já as autoridades deveriam se preocupar
verdadeiramente com a causa da educação, agindo com retidão, sem qualquer
favorecimento, escutando, em primeiro lugar, a opinião do povo, e o interesse da
maioria dos pais e alunos.
Indicava ainda às famílias para matricular seus filhos na escola, tratava-se
de um direito e ao mesmo tempo de um dever, por isso os pais não poderiam „dormir‟,
independentemente de estarem nas cidades ou nos patrimônios.
Retomando a questão da organização coletiva existente no entorno da escola
e da comunidade envolvente, havia em São Félix um clube de jovens, formado por 40
membros, que, além de participar de outras atividades, organizaram um teatro,
presenteando as mães, visto terem sido eles os autores da escrita e da apresentação. O
nome da peça era: Os caminhos de mãe Otaciana, o drama contava a história de uma
mãe sertaneja e seus sacrifícios para educar uma filha.
Observamos, ao longo da pesquisa, que os jovens eram estimulados a
desenvolver inúmeras atividades, as quais oportunizam refletir sobre as questões sócio
históricas e culturais que atingiam diretamente a vida das famílias entre o Araguaia-
Xingu, a exemplo da apresentada por eles em São Félix, no dia 2 de junho de 1979, de
406
Ibid.U 407
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1977. A16.0.46 p 2-6.
311
autoria de um membro do clube, a qual era intitulada Enquanto o mundo não
melhora.408
O drama fala de problemas mais comuns do povo da região e de muitas
outros que estavam nas mesmas condições: falta de emprego, subempregos e os salários
de fome e falta de garantira nos contratos de serviço. As moças, por outro lado, eram
jogadas nos serviços domésticos, fazendo tudo e, no fim do mês, não chegam a ganhar
C$ 500,00. Muitas delas, desempregadas, se atiravam na vida, empregando-se em
cabarés, para não morrer de fome. Muitas deixavam o lugar pensando que a vida seria
melhor na capital, e se enganavam, voltando em pior situação do que quando saíram.
Já os pais, na cidade, precisavam arranjar trabalho, como os de servente de
pedreiro, descarregador de barcos, oleiros, lixeiros etc., e quando não achavam nem
esses serviços tinham que ir trabalhar nas fazendas, como peão, vaqueiro, em regime de
empreitadas etc., e, seguindo para esses lugares, só voltando após 3 ou 4 meses.
O ganho nas fazendas também não era suficiente para garantir a
sobrevivência das famílias, no que toca a comer, morar, vestir e calçar. Por isso, quando
achavam um serviço para os filhos ficavam satisfeitos, uma vez que estes poderiam
ajudar nas despesas.
Com a apresentação teatral, os jovens estavam mostrando para a sociedade
que também eles existiam e queriam empregos, salários justos, garantia de serviço,
escola e muitas coisas mais. Por outro lado, a teatralização chamava a atenção para o
fato de que os jovens e adultos não poderiam deixar o mundo seguir como estava, e que
sozinhos ninguém conseguiria consertá-lo. Mas, juntando forças e se unindo com
outros, que também almejavam melhorias, logo, logo todos gritariam triunfantes:
Enquanto o mundo não melhora...., façamos a nossa parte.409
Já em relação ao jovem migrante da região, atenção especial a ele era
recorrente, pois, conforme noticiou a Folha Alvorada em maio de 1975:
[...] a partir de 1973, muitos jovens estudantes da região tem que sair
buscando fora um jeito de continuar os estudos e enfrentar a vida.
Longe da família, com todos os problemas de trabalho e sobrevivência
e no meio da ilusão da cidade grande. Hoje eles nos escrevem e dizem
um pouco daquilo que estão vivendo. Ausentes, continuam voltados
408
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A16.0.66 p 10-15. 409
Ibid.
312
para a nossa região que é a sua e querem manter vivos os laços de
união conosco que somos o seu povo.410
Ao fazer uma leitura dos contornos da escola, podemos afirmar sua conexão
com a dimensão maior da sociedade que, embora afetada pelos mais grotescos
desrespeitos humanos, pela má distribuição da terra e de renda, falta de emprego e
salários dignos e carência de acesso à escola. A organização em prol da qualificação das
famílias se deu por meio da formação coletiva dos clubes, como observamos em matéria
publicada pela Folha Alvorada, em 1975, com o título Clubes, aulas de
complementação, reuniões.411
Em Serra Nova, a população estava animada com as aulas de
complementação de corte e costura, com as reuniões dos homens, dos grupos de
juventude e das buchudas. Já em São Félix, reiniciaram os seis clubes de mães e os oito
de meninas e moças. Na Vila Santo Antônio, por iniciativa das comadres, também iriam
abrir um clube de mães, e também ali as aulas de complementação teriam início com
uma primeira turma.
Assim, concluímos o tópico afirmando que havia um conjunto de ações
transversais àquelas tratadas no contexto da escola de educação básica, fomentado pela
Folha Alvorada, pois a escola isolada jamais haveria de conseguir atender toda
demanda apresentada por aquela sociedade no coração do Brasil Central, onde a fome
da cabeça devia ser maior que a fome da barriga.
3.11 - A comunidade inventa a escola, a escola constrói a sociedade: a sociedade revela
sua contradição
Neste tópico, abordaremos uma questão surgida em Santa Terezinha, e que
possibilitou mapear como Mato Grosso tratava as questões relacionadas à escola de
educação básica na sua porção nordeste.
Em decorrência do descontentamento dos pais com a diretoria da escola e
com o delegado de ensino de Barra do Garças, Sr. Arilson, fizeram um abaixo-assinado
410
Alvorada (1975), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1975. A16.0.23 p 2-3.
Embora existisse a preocupação em relação à necessidade do jovem que concluiu o ensino médio sair da
região, essa foi uma prática comum aos filhos das famílias da região, que, em muitos casos, deixavam a
cidade em busca de melhor estudo e nunca mais voltavam. 411
Ibid.
313
exigindo a saída dos gestores da escola estadual, assim como resposta pelas mudanças e,
em tom de desagravo, diziam que “[...] esses senhores chegaram e saíram
vergonhosamente, com medo de conversar com o povo, de escutar as verdades do
povo”412
, pois a Escola Estadual virou um problema político da Aliança Renovadora
Nacional (ARENA), pois uma das condições impostas para a admissão dos docentes era
a de que eles estivessem inscritos no partido.
A Escola Santa Terezinha pertencia à rede Estadual, portanto, dependia das
decisões da Delegacia Regional de Educação de Barra do Garças que, por sua vez, era
subordinada às decisões da Secretaria de Estado de Educação e Cultura, em Cuiabá. Tal
sequência hierárquica distanciava a solução dos problemas vividos pela comunidade,
ficando ela vulnerável às decisões alheias à realidade local.
O imbróglio teve início por conta de a direção não acatar as decisões
coletivas da comunidade, e, para melhor entender aquele conflito, retomaremos a fatos
ocorridos no ano anterior, de 1978, acompanhando as publicações da Folha de 1979.413
Embora o fato já tenha sido apresentado no tópico 1.9. convém retomá-lo,
agora no sentido de revelar como os profissionais da educação, igualmente ao „povo‟
desfavorecido, era penalizado sob o julgo do opressor. Após a tentativa de homicídio
praticada por Cleoviton Neres, seu irmão Cleomenes assumiu a gestão da escola e
demitiu D. Alzira, justificando que ela não servia para o trabalho, por conta de uma
queda sofrida com uma lata d´água na cabeça, quando foi, junto com a zeladora, D.
Norberta, buscar água a uma distância de mais de 300 metros, para usar na escola. Tal
episódio, somado à não contratação da Regina Borela, fizeram um abaixo-assinado, com
mais de 182 assinaturas, juntaram recursos (vaquinha), para que a Sra. Aparecida
Freitas fosse a Cuiabá. Quando voltou de Cuiabá, levando consigo os funcionários da
secretaria, em avião fretado por 27 mil cruzeiros, anunciaram não ter ocorrido qualquer
reunião. Mais uma vez, o povo fora enganado, o que complicou ainda mais a situação.
412
A Aliança Renovadora Nacional foi um partido político criado em 1966 e dissolvido em 1979, e
carregava consigo a defesa do militarismo, sendo um partido populista de direita e anticomunista. 413
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. Março. A 16.0. 64 p
09-14.
314
Em abril de
1979, os pais, passado
um mês de greve,
disseram que
continuariam
mobilizados, exigindo a
saída da diretora Luiza
Damasceno e do vice-
diretor Cleômenes Neres
da Costa. No dia 20,
chegaram de Cuiabá D.
Aparecida, representante
dos pais, o prefeito de
Luciara e o vereador
Manoel Gonçalves Cunha, os quais conversaram em Cuiabá com o Secretário de
Educação. Foi prometido na capital que, até o dia 30, mandariam uma comissão para
resolver o problema. Os pais, aproximadamente 350 pessoas, se reuniram e resolveram
esperar a vinda da comissão e que continuariam mantendo os filhos em casa.414
Contudo, no dia 1º de setembro ficou agendada uma reunião com todos os
representantes das duas escolas, visando solução para o caso. Já tinha muita gente
convidada, de modo que os professores da escola estadual não quiseram saber da
reunião. Diante dos impasses, no dia 4, um grupo de quase 100 pessoas – pais,
professores e alunos – foram à escola para conversar. Chegaram todos tranquilos,
pediram licença e entraram, conforme desenhou a Folha Alvorada em sua capa do mês
de outubro de 1979, com a Figura 31.
A finalidade era estabelecer um diálogo para se chegar à solução,
apimentando ainda mais a situação, logo no início da reunião o secretário Sabino disse
que a escola era do governo e que ninguém tinha o direito de ali se meter, enxotando-os
para fora. Cumpria, assim, um papel bastante conhecido pelas ações da ditadura militar,
onde o silenciamentos à democracia, considerando o sentido clássico da palavra, que é
regra.
414
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A 16.0. 65 p 03-10.
315
Todavia, conflitos em
torno da gestão da escola não se
limitavam nos contornos de Santa
Terezinha, pois em Porto Alegre,
igualmente, o Prefeito de Luciara, além
de não atender às reivindicações das
famílias no compromisso assumido da
construção de um prédio para
funcionamento da escola, pois, a
edificação onde eram ministradas as
aulas se encontrava em estado
precário, a ponto de a comunidade
optar pelas aulas ministradas debaixo
dos pés de manga, pois, assim, além de
terem melhores acomodações,
poderiam tirar fotos e espalhar para as
autoridades. Igualmente decidiu que
uma comissão de pais iria a Luciara exigir respostas, chegando a pensar na possibilidade
de alugar um barracão para servir de escola.
Entretanto, nenhuma das alternativas, naquele ano, surtiu efeito positivo, ao
contrário, o Prefeito, em visita a Porto Alegre, em agosto de 1979, além de ignorar um
abaixo-assinado com 190 assinaturas, demitiu duas professoras e a diretora, mandou que
esta enviasse o [...] macho dela para acertar as contas. Além disso, segundo
testemunhos, anunciou que iria bater nela, ameaça que resultou em maior insatisfação
da comunidade, pois uma das professoras tinham cinco filhos. Tal episódio foi
registrado pelo povo em matéria e desenho publicados pela Folha Alvorada conforme
Figura 32.415
Inúmeras são as possibilidades de análise do contexto da invenção da escola
no Araguaia-Xingu mato-grossense, porém uma delas requer atenção especial, a
primeira é afirmar que, já na década de 1970, a educação escolar era realizada por
pessoas do gênero feminino, pois, como observado, a grande maioria do corpo docente
415
Ibid.
316
era composto por mulheres, incluindo a diretora. Tal característica fez da educação
escolar, uma educação na diversidade, de gênero, partidos políticos, famílias com
origem distintas, pais engajados na defesa do coletivo e outros orgulhosos por serem
individualistas
Contudo, muitas outras perguntas haveriam de ser feitas sobre essa questão:
quais as razões que levaram as mulheres a assumir tais compromissos sociais? Para o
alcance a essas respostas e muitas outras, a temática está a merecer novas pesquisas.
Com o propósito de concluir o tópico, elegemos a fala de uma mãe sobre a
nova escola que havia sido construída e inaugurada na Lagoa, um aglomerado de casas
um pouco distante da beira do rio Araguaia, em São Félix do Araguaia, onde reafirma o
compromisso social dos professores para com a comunidade, bem como sua
importância na invenção da escola:
Ótimo, agora finalmente temos uma escola decente aqui, bem na
portinha de casa. Mas os nossos meninos e nós pais também
precisamos de uma coisa ainda mais importante: precisamos que quem
for dar aula aqui conosco, participe da nossa vida, no dia a dia. Não
importa quem seja, não importa que seja formado ou não, não importa
que seja branco ou meio escuro ou preto. O importante é que o
professor nos dê todo seu tempo, pois só assim pode se tornar amigo
nosso e dos nossos filhos. Afinal de contas, acrescentou outra pessoa,
o professor ou a professora tem escolhido uma profissão do serviço ao
Povo.416
No tópico a seguir, apresentaremos as bases teóricas que deram sustentação
às atividades desenvolvidas em torno da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense nas
primeiras décadas de existência.
3.12 - Fundamentos teóricos e metodológicos da invenção da escola no Araguaia-
Xingu: entre o projeto opressor e a educação popular
Conforme Fanon417
, o colono faz a história e sabe que a faz, pois, ao fazê-la,
o faz enquanto um prolongamento de sua realidade, e não da realidade local, da história
dos locais, concebendo, portanto, a história do país, da região que ele explora, portanto,
416
Alvorada (1978), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Janeiro de 1978. A 16.0. 52 p
05-10. 417
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 32.
317
a partir do seu ponto de vista, seguindo, assim, a trilha da história que dá sentido à sua
existência, e não à existência do oprimido.
A formação de consciência da escola inventada procurou distanciar da
atomização da cultura opressora, esse intelectual colonizado e atomizado pela cultura
colonialista, pois, ao longo da narrativa observou-se a resistência marcada pelas
reuniões, pelas decisões, pela organização dos sindicatos, enfim, pela união das famílias
em torno da escola.
Ao organizar os assuntos de cada um dos membros da comunidade, afirma
Fanon, não deixarão jamais de ser temática de todos, porque, concretamente, todos
serão descobertos pelos legionários e assassinados, ou todos se salvarão. Assim ocorreu
em relação ao episódio da derrubada da cadeia, a participação foi conjunta, e, quando
foram inquiridos pela polícia e solicitado para que subissem na carroceria do caminhão,
todos foram subindo, não deixando que encontrassem um bode expiatório.418
Ao que percebemos, ao longo do terceiro capítulo referente ao ensino de
história, pela atuação da Folha Alvorada, e alimentado por ela, a ação integrada escola x
comunidade, cujo objetivo, dentre outros, foi o de não deixar que o caminhar das
famílias de posseiros, peões e indígenas fosse realizado para que não imiscuíssem ou se
deixassem enredar pela maquinaria colonialista, tornando-se vítimas silenciosas de suas
redes, conforme alertou Fanon:
[...] o colonialismo não se contenta em apertar nas suas redes o povo,
em esvaziar o cérebro colonizado de qualquer forma e conteúdo. Por
uma espécie de perversão da lógica, orienta-se para o passado do povo
oprimido, distorce-o, desfigura-o, aniquila-o. Essa empresa de
desvalorização da história anterior à colonização adquire hoje a sua
significação dialética.419
Seguindo esse insight e a interpretação das fontes, procuramos apresentar a
ordenação das ações em torno da avaliação do corpo de profissionais que protagonizou
a invenção da escola no Araguaia-Xingu nas décadas de 1970 e 1980. No dia 17 de
janeiro de 1983, o bispo Pedro Casaldáliga registrou que haviam terminado as reuniões
de estudo “[...] com Beozzo, de evaluación y redistribución del personal, con todo el
equipo. Y la reunión representativa, con animadores del pueblo y algunos miembros del
418
Ibid., p. 26. 419
Ibid., p. 139.
318
equipo pastora”.420
Naquele momento, a equipe se reduzia a 32 membros: os 11
atuavam na pastoral indigenista, alguns dos dez a longos anos de caminho e passaram a
trabalhar na administração e na educação nas novas gestões populares das cidades. Mas
que, no princípio daquele ano, a Igreja de São Félix do Araguaia não seria mais “[...] um
organismo de última instancia pastoral. El Pueblo, por los animadores de las
comunidades, asume de hecho El mando”.421
Na avaliação e na programação Pastoral global, “La asamblea del pueblo
seguirá siendo - y con mayor fuerza - un momento de encuentro mayoritario y hora de
legislación”. Já nas reuniões representativas, os animadores das comunidades e alguns
membros da equipe “[...] todos ellos elegidos - será la hora del balance y de la
programación táctica para la ejecución”.422
Ficou ainda decidido que haveria uma regionalização da prelazia, operada
de forma mais urgente e viável, assim dividida: Ribeirão/Cascalheira, Porto Alegre,
Santa Terezinha e São Félix, “[...] con los poblados y El sertão anexo, forman las 4
grandes regiones pastorales de nuestra pequeña Iglesia”.423
Ao ler seu diário, reforçou nossos argumentos de que havia uma ligação
direta entre a forma pela qual o líder religioso desenvolveu suas atividades por meio da
prelazia, um movimento dialético e integrado ao das escolas. Em 2010, em um rápido
diálogo com o bispo, em visita à sua residência, momento em que ainda não havia
decidido por fazer doutorado, tampouco pesquisar sobre a invenção-reinvenção da
escola no Araguaia-Xingu, disse-me ele que, no mesmo barracão onde era celebrada a
missa se realizavam aulas para crianças e adultos. Essa afirmação suscitou curiosidade,
que, com a pesquisa, serviu para completar o quebra-cabeças, cujas peças continuamos
a descobrir.
Portanto, ao observar suas anotações, percebemos que a integração não se
limitou à organização dos processos que, de forma democrática, seguiam seu ritmo,
mas, especialmente atento à realidade e necessidade de cada comunidade na construção
420
Trata-se do Padre José Oscar Beozzo, que, segundo Leonardo Boff, é um dos padres mais bem
preparados e inteligentes que a Igreja do Brasil possui. É teólogo, historiador, sociólogo, assessor de
Comunidades Eclesiais de Base. (HTTPS://leonardoboff.wordpress.com/2013/07/26/que-igreja-catolica-
temos-no-brasil-vista-pelo-historiador-j-o-beozzo/). Como observamos, esteve em janeiro de 1983
colaborando com os estudos da equipe da Prelazia de São Félix do Araguaia. 421
CASALDÁLIGA, Pedro. Em rebeld fidelidade. Diário de Pedro Casaldáliga. 1977-1983 Desclée de
Brower, Bilbao (España) s/d., p. 112. 422
Ibid. 423
Ibid.
319
de uma igreja popular, de uma escola popular, de um governo popular, desvelando sua
visão de um mundo sonhado, diferente daquele vivido, sentido e sofrido, mas que, com
a metodologia da união com esperança e coragem, seria certamente transformado,
aproximando-se cada vez mais do sonhado.
O registro em seu diário apontou também para importantes tessituras
norteadoras do pensamento-ação de seus colaboradores. Para esse fim, veremos os
escritos de Pedro Casaldáliga:
Entre os dia 16 a 20 En Cuiabá, la capital de nuestro Mato Grosso,
celebramos, del 16 al 20 la asamblea del Cimi regional. Paulo Freire,
el maestro internacional de la educación popular, coordinó, sabio e
incisivo, nuestras discusiones sobre educación indígena versus
educación occidental.
Fue una ocasión propicia para rumiar conceptos y actitudes de una
educación liberadora. Daniel, el indio parecí, nos había entregado,
como introducción, un magnífico texto suyo: amarga experiencia,
afirmación de la propia prohibida identidad. Ni la sociedad ni la
Iglesia educaron al indio como índio.424
Para o Bispo, Paulo Freire foi importante orientador durante o encontro:
[...] el coraje de ser humildes reconociendo que siempre pisamos el
suelo indígena con pies de dominadores. Y otro consejo aún: nadie
estando aquí llega allí a no ser partiendo de aquí. El lugar social y
cultural -la voluntad de inculturación y de encarnación- marcan la
sinceridad de todo educador y de todo missioneiro.425
Encontrar registros anunciando a presença de Paulo Freire em Cuiabá,
especialmente para um diálogo em torno da educação indígena, em evento organizado
pelo Conselho Missionário Indigenista, não nos parece algo espetacular, não fosse o
momento em que se propunha, com muita ênfase, a tomada de decisão coletiva naquele
momento em que me parecia bastante forte o ideário de uma educação popular e
democrática naquele quadrilátero Araguaia-Xingu.
Assim, aventuramos afirmar que Pedro Casaldáliga se tornou, ao longo do
processo de resistência e luta pelo direito do povo, o intelectual colonizado, conforme
propôs Fanon, “[...] que situa a sua luta no plano da legitimidade, que quer apresentar
424
Ibid., p. 86 425
Ibid., p. 186
320
provas, que aceita despir-se para exibir melhor a história do seu corpo, está condenado a
essa submersão nas entranhas do seu povo”.426
A subversão era revelada cotidianamente nas matérias e especialmente na
literatura poética produzida pelo povo que, ao ser publicada na Folha Alvorada,
contribuía para sua disseminação e, como já verificado, permeava o „ser‟ e o „fazer‟ do
ensino da história. Exemplo dessa luta pela memória pode ser percebida nas palavras do
poeta Ricardo Goulart:
Para o povo do Araguaia
Mesmo que haja
outras mil metralhas
serão migalhas
a nos oprimir
Mesmo que se imponha
toda mordaça
o dia da caça
haverá de vir
Ainda que de sangue
se suje a terra
teus filhos vivos
irão surgir
Mesmo que nos prendam
Ainda que nos matem
ainda assim voltaremos
e seremos milhões
e o sangue dos mortos
fertilizará o solo
para que todos o cultivem.
Ricardo Goulart (Porto Alegre-MT).427
No quarto e último capítulo da tese haveremos de elencar outras fontes
teóricas que serviram de base para a invenção da escola de educação básica e o fazer do
professor de história no Araguaia-Xingu. No presente tópico esquadrinhamos um pouco
do projeto de educação popular ali experimentado. No próximo, será explorado um
documento avaliativo dos dez anos do trabalho em educação naquela territorialidade.
426
FANON, Frantz. Op. cit., p. 140. 427
Alvorada (1983), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Novembro de 1983. A 16.2.
01 p 16-18.
321
3.13 - Avaliação da educação popular no Araguaia-Xingu mato-grossense
Recuperar a memória sobre o movimento de educação popular no Brasil se
faz importante, pois, a década de 1960 foi marcante por razões já bem conhecidas, ao
tempo em que acirrava o governo sob a sombria ditadura militar, arregimentando a luta
pela politização e conscientização da necessidade de superação do quadro de
analfabetismo, com as Campanhas de Alfabetização de Jovens e Adultos, aliadas à
expansão das escolas primárias. Surgem também os Movimentos de Cultura Popular,
apoiados ideologicamente pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
Ideologicamente, esse instituto atuou na massa popular, mobilizada através da arte,
literatura, cinema, dentre outros.428
Porém, no campo da educação é que surge o educador pernambucano Paulo
Freire, propondo a teoria da Educação Libertadora no interior de uma inovadora
concepção de educação para o Brasil. Seus livros apresentam uma constatação da
realidade brasileira, sugerindo a conscientização do povo enquanto mecanismo de
libertação da opressão.
Seria uma educação para retirar do homem as explicações nuas e nítidas do
seu mundo. Para ele, o povo, ingênuo, despreparado e analfabeto passava a ser joguete
do irracionalismo. Constatou ainda o mesmo educador que o povo tem consciência
ingênua ou mágica, sendo necessário criar um processo educativo e problematizador, a
fim de fazer com que ele tenha uma consciência crítica. Portanto, a educação deve ser
um instrumento fundamental para o avanço da consciência, o qual levaria
posteriormente a uma ação transformadora.
A expressão educação popular surgiu no contexto da primeira República,
associada à instrução elementar que se buscava generalizar para toda a população,
mediante a implantação de escolas primárias, mas ganhou maior evidência quando este
foi retomado e disseminado pelo método freiriano:
[...] a expressão „educação popular‟ assume, então, o sentido de uma
educação do povo, pelo povo e para o povo, pretendendo-se superar o
sentido anterior, criticado como sendo uma educação das elites, dos
428
O ISEB, com a tomada do poder pelos militares através do golpe de 1964, foi fechado por ser acusado
de subversivo, assim como suas lideranças políticas, dentre outros Álvaro Vieira Pinto, Nelson Werneck
Sodré, Roland Corbusier, Cândido Mendes e Celso Furtado (ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História
da Educação. São Paulo: Moderna, 1996).
322
grupos dirigentes e dominantes, para o povo, visando controla-lo,
manipulá-lo, ajustá-lo à ordem existente.429
Como toda transformação, especialmente a que propõe alterar a estrutura
social, seja na década de 1970, seja nas seguintes, a educação popular recebeu críticas
no sentido de colocar em cheque sua fundamentação, tendo por alvo as lideranças que
parametrizavam suas ações à orientação filosófica marxista e cristã. Apresentamos mais
um ponto de luta pela memória, qual seja, a tentativa de „vender‟ a imagem das
lideranças como populistas, paternalistas e, portanto, autoritárias.
A crítica desconsiderou que o movimento ganhou reconhecimento após a
„Campanha de pé no chão também se aprende a ler‟, desenvolvida no Rio Grande do
Norte, mais especificamente em Angicos, a qual resultou na alfabetização de 300
trabalhadores em 40 horas. Uma ação transformadora da realidade do povo pela
educação. Esse „modelo‟ ganhou respaldo nacional, pelo então Presidente da República
João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. A proposta entrava em rota de colisão
com os interesses do Programa MEC/USAID.430
Apresentadas as raias que delinearam a educação popular no Brasil e as
bases e os duelos travados contra a cultura opressora e, por conseguinte, contra os
opressores e seus mandatários, voltamos nossas lentes para as ações edificantes da
educação popular e democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense. No início da
década de 1980, a equipe da prelazia foi instigada a avaliar o trabalho de dez anos de
educação. Por entender ser um documento importante, apresentamos na íntegra os
tópicos da avaliação:
Devemos nos perguntar seriamente:
a) Como temos encarado o trabalho de Educação Popular?
b) Esse trabalho tem levado a transformações? Em que nível? (Citar
situações concretas, responder com fatos)
c) Quais atitudes (atividades, trabalho) que tem mais provocado
verdadeiras transformações?
d) Quais os que não têm quase levado a isso? (*essa questão continua no
final, veja).
e) Nosso trabalho de educação corresponde às expectativas do povo? As
necessidades deles?
f) Como encarar daqui pra frente?
429
SAVIANI, Demerval. História das Ideias Pedagógicas. Campinas: Autores Associados, 2008, p. 317. 430
MEC USAID, já mencionado no tópico 3.6.2, trata-se da fusão das siglas Ministério da Educação
(MEC) e United States Agency for Internacional Development, cujo objetivo era aperfeiçoar o modelo
educacional brasileiro. (BEISIEGEL, Celso Rui. Política e Educação popular: teoria e prática de Paulo
Freire no Brasil. São Paulo: Ática, 1992).
323
g) Avaliar também a metodologia de trabalho e o aspecto pedagógico.
h) Temos explorado bastante os recursos que temos?
i) Nosso trabalho não estará sendo segundo o modelo de uma sociedade
letrada? Baseada muito na leitura, nas longas discussões teóricas?
j) Analisar a real participação do pessoal em nossas atividades, inclusive
no planejamento, nos diferentes momentos:
1) Campanhas missionárias;
2) Educação oficial, sobretudo o ginásio;
3) Corte da educação oficial – fechamento do ginásio;
4) Educação oficial e outras formas de alfabetização, clubes, diretórios, grupos
de evangelho, conselhos, sindicatos, estudo de cartilha, assembleia do povo,
escolas alternativas.431
Observa-se que, ao tempo em que se construiu um roteiro a ser seguido para
que fosse possível avaliar o trabalho desenvolvido na educação escolar no Araguaia-
Xingu, seus idealizadores tinham um propósito pautado na memória das práticas
daquela invenção, mensurar o poder de transformação efetivado em torno da escola e
seus reflexos na vida da comunidade a que a escola pertencia. Porém, aquela avaliação
tinha um propósito de maior envergadura, o de observar se o coletivo não estava
reproduzindo as práticas de uma escola hegemônica burguesa. Além disso, focava ainda
em outras táticas a serem utilizadas para neutralizar a estratégia dos órgãos oficiais
alimentados pelo Estado, naquele momento ditador-opressor.432
Apresentamos o roteiro enquanto mecanismo de abertura de uma janela,
para o que possamos inaugurar novos olhares sobre a escola e o ensino de história na
escola de educação básica no Araguaia-Xingu, oferecendo lentes polidas e calibradas
para que, em se havendo o desejo de sua reinvenção, que seja na defesa da esperança,
tendo por alicerce de suas ações uma escola popular e democrática, dialogando com o
espírito do tempo e tomando a memória histórica como tática de resistência e
instrumento de luta.
De posse das informações e reflexões feitas ao longo do terceiro capítulo,
pode se afirmar que a invenção da escola no Araguaia-Xingu seguiu as pegadas e
marcou o solo fecundo da formação política, por meio da educação inventada pelo
431
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. s/d. DIII. 0. P. 1.2. Possivelmente o documento tenha
sido elaborado e utilizado no início da década de 1980. 432
Não se pode afirmar que o Estado opressor se limitou ao período de vigência do governo militar 1964-
1985, pois, mesmo em período de governo civil brasileiro, a educação no Brasil continuou sofrendo
interferências direta nas decisões sobre a educação básica, especialmente na condução acerca do
currículo, da formação dos professores, do regime salarial e oferta do ensino público às famílias de menor
poder aquisitivo no país - os pobres, pois, os filhos das famílias mais abastadas não eram matriculados na
escola pública. Contrariando a essa lógica, as Universidades Públicas continuam sendo privilegio dos
filhos das famílias abastadas, não por simples escolha, mas, por conta dos meios (controlados) do capital.
324
povo, para o povo e com o povo liderado por grandes educadores, como Paulo Freire, a
quem os professores do Araguaia adotaram como líder e, ao alcance dos olhos, um dos
maiores educadores daquela região, tido como grande líder religioso, poeta e defensor
dos pobres – Pedro Casaldáliga.
Seguimos revelando as bases construídas para servir de sustentáculo para a
defesa do projeto de escola no Araguaia-Xingu, qual seja, a causa dos oprimidos, tendo
enquanto base e fortaleza, inegavelmente, a educação, passando pelos preceitos
conceituais do Projeto Inajá, pois, conforme apresentado ao longo da narrativa, o
projeto de escola ali concebido e praticado partiu de uma concepção de educação
enquanto resistência e luta pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária,
pautada numa educação popular, passando pelo INAJÁ e resultando nas Parceladas.433
Todavia, para entender esse processo haveremos de ampliar o raio da nossa
lupa, uma vez que a escola inventada no Araguaia-Xingu integrou um movimento
internacional, com códigos compartilhados por muitos educadores da América Latina, a
exemplo da historiadora argentina Maria Tereza Nidelcoff que, pautada em reflexões
pertinentes à educação libertária de Paulo Freire, produziu importante trabalho sobre a
escola em seu país.
Em sua obra Uma Escola para o povo, Nidelcoff inaugurou suas reflexões
perguntando o que somos e o que podemos ser dentro da sociedade? Deixamos que os
outros decidam por nós ou agimos criando a escola na qual acreditamos? Embora sua
análise tenha sido feita sobre a Argentina, sua mensagem alerta e serve de base para
todos os povos, visto cada qual enquanto parte de um país e onde se cumpre uma função
dentro dele. A mesma educadora chama atenção para o significado social e político de
nossas atitudes, as quais deverão sempre oferecer novos caminhos (métodos) e
conteúdos daquilo que ensinamos, pois estes nunca são neutros e expressam sempre
uma ideologia e uma cultura, em geral a da classe dominante.434
Para fins didáticos, sintetizamos a obra de Tereza Nidelcoff, apresentando
seus objetivos, conteúdos, metodologias e avaliação. Objetivamos, para o presente
433
No quarto e último capítulo apresentaremos o Projeto Inajá, as Parceladas e os resultados de uma
pesquisa aplicada aos professores atuantes na disciplina de história, objetivando entender sua visão sobre
a invenção da escola no Araguaia Xingu, bem como as práticas e desafios em ensinar história no século
XXI. 434
NIDELCOFF, Maria Teresa. Uma escola para o povo. [tradução: João Silvério Trevisan] 37. Ed. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
325
tópico abrir uma janela por meio da qual construiremos os debates do capítulo 4 da
presente tese.
A autora explora o fazer docente com o objetivo central de promover uma
visão crítica da realidade, auxiliando o professor-cidadão a desenvolver mecanismos
capazes de liberta-lo das estruturas opressivas da sociedade em que vive.
Tabela 9: Perfil dos objetivos dos professores
Professor-policial Professor-povo
Manter a disciplina do grupo e os alunos
obedecem sem questionar (repressão-
passividade)
Priorização do fator intelectual (bom
aluno é sinônimo de boas notas)
Cumprir sempre o ordenado (condena a
rebeldia e o espírito de luta, formando
seres dóceis)
Ajuda os alunos a enxergar a realidade com
lucidez e espírito crítico (interpretar os sentidos
dos fatos)
Ajudá-los a ser livres (dos preconceitos, dos
temores, das superstições, da ignorância, do
egoísmo, da timidez, da opressão, da miséria);
ser livre significa ser capaz de expressar-se e de
expressar seu mundo, significando também ser
capaz se agir e modificar esse mundo)
Ajuda-los a aprender e se organizar em união
(para conseguir um objetivo é importante que
aqueles que estão na mesma situação se unam e
se organizem)
Ajudar o aluno a ver a realidade de maneira
crítica Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.
As descrições do quadro comparativo, permite uma reflexão de fundo no
tocante às decisões a serem tomadas pelos professores e, em especial, pelos professores
de história, pois, conforme suas escolhas, este poderá, de maneira consciente ou não,
reproduzir práticas autoritárias, celetistas e reprodutivista, ao contrário de defender uma
educação escolar libertária e que provoque reflexões que despertem a si, mas também
aos seus aprendentes, o senso crítico, a consciência de seu papel na escola, na sociedade
e na história.
Tabela 10: Perfil dos conteúdos
Professor-policial Professor-povo
Universaliza a cultura burguesa (o
professor repreende a criança que usa
espontaneamente certos termos típicos de
seu meio)
Valoriza a cultura popular – a experiência –
(está aberto para captar as manifestações da
cultura popular e incentivar aquelas que sejam
mais ricas e libertadoras; valoriza as expressões
populares, a linguagem própria dos alunos;
desmitifica a cultura burguesa enquanto a única
correta, revelando a existência de diversas
326
manifestações culturais)
Revisa os conteúdos ideológicos dos livros e
textos (dá um novo enfoque)
Preocupa-se com a funcionalidade dos
conteúdos (busca aquilo que é útil para a vida,
deixando de lado o que é inútil, ainda que seja
tradicional estuda-lo) Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.
Conforme observado acima, as escolhas feitas pelo professor de história
exigirá a seleção dos meios, e conteúdos a serem adotados como mecanismo de
condução do processo de acesso às informações e à produção e ou reprodução do
conhecimento, ao selecionar os materiais a serem apresentados pelo professor aos
aprendentes. Observamos que tais escolhas serão fundamentais na formação da pessoa
que aprende, possibilitando à mesma ampliar seus horizontes ou mantê-lo confinado a
uma visão medíocre da história, tornando-o subserviente e disciplinado pela cultura
opressora.
Tabela 11: Metodologia
Professor-policial Professor-povo
Autoritarismo (apenas o professor sabe e
ensina)
Sentido único de cima para baixo
Memorização
Dependência do professor (Exemplo: a
professora só tinha trabalhado algumas
letras com sua turma e em uma atividade
os alunos teriam que escrever algumas
palavras com as iniciais das letras
estudadas, um aluno já conhecia outras
letras e usou palavras com elas). A
professora disse que “não deveria usar as
palavras, porque ela ainda não tinha
ensinado”.
Disciplina (o aluno tem que acatar ordens)
Individualismo (o trabalho em grupo,
quando existe, não passa de mais uma
formalidade. As crianças não descobrem
porque trabalhar em grupo)
Não explorar as capacidades (não se exige
do aluno o máximo de suas possibilidades
e quando o aluno entrega um trabalho
regular ou mau não se pede que seja
refeito, para que os erros sejam superados)
Não existe auto avaliação (não existe
nenhum esforço de auto avaliação, de
modo que as crianças comecem a tomar
Partir sempre da observação e análise das
situações reais e concretas (captar bagagem que
os alunos trazem)
Valorizar o verdadeiro trabalho em grupo
(ensinar ao aluno que o grupo é uma unidade e
que nele todos devem participar de forma ativa
e organizada)
Disciplina não é um conjunto de normas que o
aluno deve obedecer (disciplina é aquela vivida
pela comunidade educativa, e se expressa nas
atitudes de seus membros, disciplina é sinônimo
de trabalho, diálogo e respeito mútuos)
Responsabiliza pela aprendizagem de cada
criança (sabe-se que cada aluno tem seu ritmo
de aprendizagem e o professor precisa respeitar
este andamento)
Explorar as capacidades de cada um (exigir o
máximo de rendimento, segundo a capacidade
de cada um, ensinar a fazer as coisas da melhor
maneira possível).
327
consciência de seus progressos e das suas
dificuldades, as quais precisam vencer).
Forçam o ritmo (o importante é cumprir o
programa, avança-se de assunto em
assunto não sendo retomados quando
necessário for). Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.
A síntese da Tabela 11 permite refletir sobre uma problemática
historicamente presente no contexto da sala de aula das escolas públicas de educação
básica, a „indisciplina‟, como se doença fosse. Antes de ser tomada enquanto problema,
deve ser vista como sintoma de uma doença anterior, uma escola, um currículo e
práticas incapazes de abrir espaço para o diálogo.
Portanto, o alcance de respostas à inquietude do aprendente passa pelo
repensar o „modelo‟ de escola que alimentamos, dependendo da escolha dos meios, dos
conteúdos e estratégias de mediação e aprendizagem. Equivocadamente, apontam para a
necessidade de manter os corpos dóceis, e, quando isso não é suficiente, procuram
igualmente manter as mentes dóceis. A inquietude da mente é a dimensão primeira para
se construir comportamentos individuais e coletivos capazes de transformar a realidade
da vida das famílias brasileiras, mantidas no cativeiro social. Esta escola opressora não
serve para alimentar outros agentes sociais, senão a elite opressora.
Tabela 12: Avaliação
Professor-policial Professor-povo
Valoriza apenas os conhecimentos (leva
em conta o que o aluno conseguiu
memorizar)
Avaliação é considerada como um fim
em si mesma (no momento que a nota é
dada, tem-se impressão de que tudo
acabou).
Avalia enquanto educar, não como um
transmissor de informações (valoriza as atitudes
do aluno, sua dedicação, seu esmero, sua
responsabilidade, e não apenas a quantidade de
perguntas acertadas numa prova), pois a
avaliação não é fim, mas meio para alicerçar a
próxima etapa da aprendizagem, se determinada
dificuldade não for superada, é necessário
retomar o assunto.
Conduz o aluno e o grupo a uma perspectiva de
auto avaliação (em provas, colocar o valor de
cada questão para que o aluno possa calcular sua
própria nota).
Discutir com a turma os critérios a serem
considerados na avaliação das exposições orais
ou dos trabalhos escritos
Respeita o ritmo de cada um (respeitar o tempo
de aprendizado do aluno). Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.
328
Quanto à relação estabelecida entre pais dos alunos, conforme observamos
na Tabela 12 sobre avaliação, cumpre a mesma importante papel no que se propôs no
projeto de uma escola popular, bem como para o campo das reflexões sobre a escola do
presente, a ser apresentada no próximo capítulo da tese, porém antecipamos algumas
pinceladas. Fala-se muito sobre a necessidade de cooperação entre pais e mestres na
prática, no entanto, tais relações estão, frequentemente, longe de serem coletivas, muito
menos harmônicas. Isso não significa que uma escola democrática não seja marcada por
conflitos, pois, como vimos no decorrer da narrativa, inúmeros foram os momentos de
discordância, porém, quando elas ocorreram de forma democrática, prevalece o
entendimento, e o alcance de respostas deve sempre ser obtida no coletivo, todavia, em
muitos casos prevaleceu a violência, característica de uma cultura opressora. Requer,
portanto, ao professor de história interpretar a realidade social e histórica.
Tabela 13: Representação sobre a escola
Professor-policial Professor-povo
Considera a escola apolítica (não se
percebe ou não se quer perceber as
ideologias opressoras embutidas em muitas
tarefas e „ritos escolares‟, na medida em
que o professor não trabalha para mudar,
ajudando os que querem conservar)
Não vê os pais como companheiros de
trabalho (mas como um inimigos que
atrapalham)
Sente que seu trabalho é um sacrifício e
não é reconhecido
Se sente injustiçado pela responsabilidade
do trabalho.
Tem ideias claras sobre a realidade.
Posiciona-se frente ao papel político da escola.
Sente-se integrante da realidade dos alunos
Têm definidos os valores morais, pessoais e
coletivos que aspira para a nova sociedade.
Fonte: Elaboração do autor, com base em NIDELCOFF, 1994.
Concluímos o presente capítulo da tese com o sentimento de que muito
ficou a ser apresentado sobre a escola e o desafio do professor de história em seu fazer
docente, pois, dentre os campos de atuação-mediação-produção está seu papel político e
politizador. Igualmente permanecem por serem exploradas as dimensões do ensino de
história naquela escola, onde o litígio pela legitimidade do projeto militar e a busca pela
superação por meio de uma escola resistência, que, em certa medida, ganhou contornos
de uma invenção por meio de táticas de guerrilha, onde o conhecimento contribuiu para
329
transformação da vida das famílias de posseiros, peões e indígenas vitimados pelo
projeto opressor empreendido pela neocolonização do Brasil pelo capital.
Também foi possível perceber, por meio do ensino de história na escola e
fora dela, uma ação engajada e ensejada por uma educação popular, conferindo
dimensões para se pensar uma fuga aos estereótipos e preconceitos nas representações
produzidas sobre a escola, sobre a disciplina história e seu papel na sociedade, cujas
dimensões servirão de picadas a serem abertas sobre a reinvenção da escola no século
XXI, a partir de cenas do próximo capítulo.
330
CAPÍTULO 4
A RE-INVENÇÃO DA ESCOLA POPULAR E DEMOCRÁTICA NO
ARAGUAIA-XINGU MATO-GROSSENSE: CONTRIBUIÇÕES À
HISTÓRIA E O ‘SABER FAZER’ DO PROFESSOR NO SÉCULO
XXI
A educação popular tem-se constituído num paradigma teórico que
trata de codificar e descodificar os temas geradores das lutas
populares (....) trata de diminuir o impacto da crise social na pobreza,
e de dar voz à indignação (..) do pobre, do oprimido, do indígena, do
camponês, da mulher, do negro, do analfabeto e do trabalhador.435
Pensar a escola de educação básica popular e democrática requer entende-la
enquanto um mosaico de teorias e práticas concebidas na segunda metade do século XX
e espalhadas por todo o mundo, tendo como compromisso a emancipação humana. Ao
tomarmos a escola inventada no Araguaia-Xingu, nas primeiras décadas analisadas nos
capítulos anteriores, possibilitou-nos revelar as duas dimensões que apresenta a
epígrafe: a primeira, por ter servido a escola, e em especial o processo educacional,
como meio de empoderamento das famílias de posseiros, indígenas, peões e demais
categorias sociais na construção de uma plataforma de luta em busca por emancipação
individual e formação de consciência coletiva contra a opressão.
Porém, como apresentado no capítulo 3, a invenção da escola passou
igualmente pela revisão do currículo, meios e métodos, de forma a possibilitar e colocar
em questão a história oficial, dando novo alento à história ensinada, tencionando a luta
pela memória, descodificando e codificando novos modelos explicativos sobre os fatos
„contados‟ sobre o passado, tomando-os enquanto parâmetro para questionar as relações
historicamente construídas nas e pelas elites, cujo processo marcou profundamente a
435
GADOTTI, Moacir. Paulo Freire e educação popular. Revista trimestral de debate da FASE. Porto
Alegre, n, 113 s/d., p 21- 21. Possivelmente o artigo tenha sido publicado em 2007, pois, conforme o
autor, naquele ano eram lembrados os dez anos da morte de Paulo Freire. In.
http://formacaocontinuada.net.br/wp-content/uploads/2015/06/paulo-freire-por-moacir-gadotti.pdf Acesso
em 20 de fevereiro de 2018.
331
vida humana entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, seja em relação à insegurança
quanto à permanência dos „posseiros‟ na terra, seja em relação à falta de acesso às
escolas, à saúde e aos demais direitos e garantias preconizados pela constituição, porém,
negados à maioria da população brasileira e em particular aquela espalhada no Brasil
Central.
Retomar o contexto revelando-o pelas „memórias‟ é ampliar a possibilidade
em transformar a sociedade por meio da educação. Portanto, entender esse projeto em
construção é reinventar a escola de educação básica do século XXI.
Como observado nos capítulos anteriores, a escola de educação básica no
Araguaia-Xingu não apresentou qualquer excentricidade que a desconectasse de seu
tempo, tampouco alcançou um „gran finale‟ que se esperava de um projeto concluso,
mas, inacabado, um projeto de escola popular e democrática que, mesmo sofrendo os
revezes do governo ditador, o qual procurou inviabilizar sua inclusão cidadã, por meio
da alfabetização.
Lembrando que, ao analfabeto, até 1985, era proibido o direito de votar, o
que alcançou relevância entre os escolares, na organização das comunidades e sua
permanência na terra, alimentados pelo sonho de uma sociedade mais justa e igualitária.
Igual perspectiva há de manter-se também presente na escola de educação básica neste
primeiro quinto do século XXI, pois, em tempos de comunicação nas nuvens, da
cibercultura, as hordas de excluídos são uma realidade.436
Assim, não é demasiado reafirmar que o movimento organizado pelas
lideranças locais, na perspectiva de assegurar acesso das famílias à escola localizadas
entre o Araguaia-Xingu, além de servir de atalaia de resistência, tornou a instituição
escolar em espaço de aprendizagens para a vida, estabelecendo uma rede de pessoas e
instituições organizadas em torno das escolas, dos clubes de mães, das lavadeiras, das
buchudas e dos sindicatos, preparando lideranças e orientando a participação popular
unida em torno de uma causa coletiva.
436
A cibercultura é um termo utilizado na definição dos agenciamentos sociais das comunidades no
espaço eletrônico virtual. Para Lévy (1999, p. 243-260), a cibercultura possui um regime social e cultural
próprio, caracterizado pelo fim dos monopólios públicos de expressão científica do conhecimento; pela
crescente variedade dos modos de expressão; pela massificação dos instrumentos de filtragem e
relativização de informações; pela multiplicação das comunidades virtuais e sua pressão sobre a
classificação do conhecimento.
332
Retomadas algumas questões apresentadas nos capítulos anteriores e
revelada a dimensão cidadã do „ser alfabetizado‟ nas décadas de 1970 e 1980, ampliava-
se a quase 60% o número de pessoas com direito ao voto, assim como de votar se ser
votado. Buscaremos nos próximos tópicos desta narrativa continuar tecendo diálogo
com a literatura existente sobre educação e escola, possibilitadas pela pesquisa.437
Concluímos a apresentação do capítulo retomando a questão-chave da tese:
a construção de uma escola que servisse de anteparo aos pobres e arma contra as mais
variadas formas de violência praticadas pelo opressor cujo processo fomentou disputas
em campos opostos, entre opressores e oprimidos, sem ganhadores ou perdedores em
definitivo, pois, as peças do tabuleiro estavam, e ainda estão, diuturnamente sendo
mexidas.
Mas, no campo da educação escolar, as táticas se apresentaram exequíveis
pelas ações dos escolares no Araguaia-Xingu nas primeiras décadas de invenção de uma
escola popular e democrática. Nos tópicos a seguir, apresentaremos novos espaços de
luta inaugurados em defesa de uma educação „escolar pé no chão‟, cuja terminologia
está ligada diretamente ao projeto de escola de educação básica da década de 1960,
portanto, antecedendo ao governo militar pós-golpe de 1964.
Antes de discernir sobre tais questões, apresentamos outro campo de análise
que será abordado no presente capítulo, trata-se do resultado de uma pesquisa aplicada
aos professores atuantes na disciplina de história nas escolas dos municípios que
compõem o Norte Araguaia mato-grossense, espaço territorial delimitado e menor ao
inicialmente recortado, pois, atualmente, os municípios do Araguaia-Xingu, do ponto de
vista da educação, dividido em três jurisdições denominadas pela Secretaria de Estado
de Educação como polos educacionais.
Um primeiro polo é capitaneado pelo Centro de Formação dos Profissionais
de Educação – CEFAPRO de Barra do Garças, o segundo é o polo de São Félix do
Araguaia e o terceiro de Confresa438
. Tal recorte serviu de parâmetro para aplicação do
437
No Brasil, segundo estatísticas, havia quase 16 milhões de pessoas impedidas de ser eleitor por não
serem alfabetizadas. Segundo o IBGE, senso de 1970, o percentual de analfabetos estava assim
distribuído: 15 anos ou mais - 33,6%; 15 a 19 - 24,3%; 20 a 24 - 26,5%; 25 a 29 - 29,9%; 30 a 39 -
32,9%; 40 a 49 - 38,5%; 50 anos ou mais 48,4%. Portanto, a metade daqueles em idade superior a 50 anos
não tinham qualquer experiência de votar e tampouco ser votado. 438
Os Centros de Formação criados totalizavam 13 unidades, pela Lei n. 8.405, de 27 de dezembro de
2005, e ampliados para 15, através da Lei n. 9.072, de 24 de dezembro de 2008, sendo que as ações de
333
questionário que, por razões já explicitadas durante os primeiros capítulos da tese,
quando as fontes, especialmente a Folha Alvorada, nos oportunizou ricamente visitar a
invenção da escola, porém, limitados aos municípios do baixo Araguaia-Xingu439
.
Elaboramos o questionário buscando entender os dilemas do professor de história
atuante nas escolas de educação básica desse espaço do Brasil Central. Assim,
apresentaremos o resultado de uma pesquisa aplicada a 18 professores, na perspectiva
de entender seus dilemas, o tipo e natureza da história ensinada e como foi sua
expectativa sobre a escola 2030, a escola do futuro.
Inicialmente, o formulário foi enviado via web, cujo link possibilitou acesso
às 20 questões, sendo 17 abertas e 3 de múltipla escolha. O objetivo era atingir, no
mínimo, 50 (cinquenta) profissionais. Todavia, com o passar dos meses, mesmo
ocorrendo várias tentativas de mobilização de gestores dos CEFAPROS e não obtenção
de respostas, visitamos pessoalmente algumas das escolas. Igualmente, nos valemos de
uma rede de pessoas com as quais havíamos compartilhado experiência em Santa
Terezinha, forma pela qual conseguimos que 18 colaboradores contribuíssem com nosso
trabalho.
formação em tecnologia foram normatizadas pela portaria n. 112/08, com a criação da Coordenadoria de
Formação em Tecnologia Educacional. 439
Embora tivéssemos maior volume de dados referente aos municípios que hoje compõem os polos de
São Félix do Araguaia e Confresa, enviamos o link do formulário para os gestores do CEFAPRO de Barra
do Garças, para que eles, igualmente, enviassem às escolas, pedindo aos professores que os
respondessem. Todavia, assim como nos CEFAPROS de São Félix e Confresa, não foram obtidas
respostas. Embora não seja nosso propósito na presente tese, mensurar a eficiência comunicacional e
„credibilidade‟ organizacional das Agências Formadoras, nesses últimos cinco anos, foi possível observar
certo distanciamento entre elas e a escola. Digo nos últimos cinco anos, pois, atuamos como Coordenador
de Formação em Tecnologia Educacional da SEDUC, organizamos a gestão da formação dos
profissionais em todo o estado de Mato Grosso, entre 2008 a 2015. Como coordenador, não tive
dificuldade em fazer chegar comunicação às escolas, tampouco havia dificuldade de se obter respostas,
embora elas pudessem demorar. Outra hipótese é a de que nos últimos anos foi vivenciado certo
descontentamento no interior da escola, fazendo com que os profissionais da educação deixassem de
acreditar numa escola em que o diálogo, a cooperação e a ajuda mútua fossem capazes de alimentar uma
educação para a liberdade. Assim, os profissionais se limitaram a „cumprir‟ o contrato no quadrilátero
„sala de aula‟, enquanto único espaço de „poder‟ onde tinham autonomia incondicional, embora esta seja
uma tentativa do poder „opressor‟, em querer patrulhar o fazer do professor de história com a tal „escola
sem partido‟, ou „ideologia de gênero‟. Uso o termo limite se deveu ao fato de que o tempo „horas
atividades‟ do professor foi liberado para que este participasse do projeto de formação continuada da sala
do educador, porém, durante os anos em que permanecemos à frente da Coordenadoria na
Superintendência de Formação dos Profissionais da Educação, nenhum curso foi construído pensando na
formação continuada do professor de história, distanciando-o, assim, do contexto e da possibilidade de
construir um projeto de escola integrada à comunidade, sem os „sentidos históricos‟ pautados na
memória, na formação da identidade e nas tão esperadas práticas de liberdade da escola de educação
básica.
334
Assim, ao tempo em que descrevo as estratégias adotadas para a consecução
das respostas, revelo que o acesso à rede mundial de pessoas interligadas por meio dos
computadores e dispositivo móvel, na região do Araguaia-Xingu ainda é limitado pela
qualidade do sinal de Internet, permanecendo, portanto, excluídas do acesso aos
infinitos recursos Web.
Não podendo contar com as respostas via formulário online, tivemos de nos
valer dos formulários impressos, visto que muitos desistiram de responder após algumas
tentativas, uma vez que, antes de concluir, o sinal caia, exigindo recomeçar o processo,
prejudicando, assim, o plano inicialmente traçado.440
No campo da hipótese, aventuramos pensar que, em virtude do vasto acesso
à tecnologia livro didático, aos computadores conectados à web, e à existência dos 15
(quinze) Centros de Formação dos Profissionais da Educação existentes em Mato
Grosso, dos quais 3 (três) estão no Araguaia-Xingu, e já que a função das agências
formadoras era o de melhor qualificar o profissional para responder às demandas
apresentadas pelo cotidiano escolar, e por fim, considerando a experiência dos
profissionais no tocante à formação continuada experimentada no âmbito da educação
básica no Brasil Central mato-grossense, o cenário nos parecida bastante promissor,
pois, embora a formação inicial ainda não consiga dar conta de respostas a essa
problemática, qual seja, preparar o profissional para uso dos recursos tecnológicos nas
práticas docentes, a formação continuada seria (e é) importante alternativa:
A formação inicial, por melhor que seja, não dá conta de colocar o
professor à altura de responder, através de seu trabalho, às novas
necessidades que lhes são exigidas para melhorar a qualidade social da
escolarização [...] pesquisas têm apontado para a importância do
investimento no desenvolvimento profissional dos professores [...]441
Ainda sobre a criação dos Centros de Formação dos Profissionais da
Educação, enquanto política pública, requer observar que essa agência é formada por
profissionais de carreira, dentre eles se destacam especialistas, mestres e doutores que,
440
Para aplicação e recolhimento tive apoio fundamental de Neusivania S. Luz, que não mediu esforços
para contribuir com a obtenção das formulários preenchidos, a quem agradeço. 441
LIBÂNEO, José Carlos. Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento
pedagógico brasileiro? In: PIMENTA, Selma Garrido e GHEDIN, Evandro. (Orgs.) Professor reflexivo
no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.
335
para atuar como gestores ou formadores passam por um teste seletivo, momento em que
é avaliado por meio de prova teórica e aula prática.
Em cada uma das quinze agências, até 2014, os professores formadores
eram distribuídos por área de conhecimento (Ciências Humanas e Sociais, Ciências da
Natureza e Matemática, Linguagens e Diversidades – campo, quilombola, indígena e
tecnologias educacionais). Cabe afirmar que os antigos Núcleos de Tecnologias
Estaduais (NTE) cederam espaço para os CEFAPROS, portanto, havia professores
formadores em tecnologia educacional e técnicos formadores antes dos demais
profissionais. Porém, por razões que fogem ao nosso conhecimento, foram eliminados
os cargos destinados às diversidades educacionais, incluindo os professores formadores
em tecnologia educacional.
Igualmente, requer observar que a Superintendência de Formação dos
Profissionais da Educação e suas respectivas coordenadorias de Formação e Avaliação,
de Gestão e de Tecnologia Educacional, até 2014, construíam, junto com os gestores
dos CEFAPROS, os orientativos de formação. Os de 2007, assim como outros que se
sucederam, a definição de sala do educador, que até aquele momento era denominada de
sala de Professor, ganhou nova dimensão, espaço que pudemos contribuir pessoal e
diretamente, cuja definição apresentamos a seguir:
A formação continuada via Projeto Sala de Professor se coloca no
contexto das novas tendências do pensamento em Educação, isso
porque os professores estarão sendo mobilizados para refletir sobre
sua ação pedagógica, tornando-se protagonista do processo de
mudança da pratica educativa.442
442
MATO GROSSO, SEDUC\SUFP, 2007, p. 5. O Projeto Sala de Professor tem como objetivo
promover a formação continuada dos profissionais da educação no lócus da escola. Todas as unidades da
rede pública estadual escrevem o seu projeto de formação continuada fundamentado nas necessidades
formativas de seu corpo docente. A carga horária mínima é de oitenta (80) horas anuais. O cronograma
dos encontros é estabelecido pela escola em conjunto com o professor formador do CEFAPRO, o qual
acompanha o projeto de formação da escola. Cabe observar que, mesmo tardio, a escola e a própria
Secretaria de Estado de Educação reconheceram que a Escola não deveria deixar os demais profissionais
da educação na invisibilidade, pois, desde 1998, a legislação já alertava para essa questão. Referimo-nos à
Lei Complementar n. 50/1998 (Art. 2º), a qual define os Profissionais da Educação Básica enquanto
o conjunto de professores que exercem atividades de docência ou oferecem suporte pedagógico direto a
tais atividades, incluídas as de coordenação, assessoramento pedagógico e de direção escolar
e funcionários Técnico-Administrativo Educacional e Apoio Administrativo Educacional,
desempenhando atividade nas unidades escolares e na administração central do Sistema Público
de Educação Básica.
336
Uma vez criado para garantir a formação continuada aos profissionais da
educação em serviço, por meio do Projeto Sala do Educador, conforme orientativos da
SEDUC de 2010, o projeto tem por finalidade:
[...] criar espaço de formação, de reflexão, de inovações, de
colaboração, de afetividade etc., para que os profissionais docentes e
funcionários possam de modo coletivo, tecer redes de informações,
conhecimentos valores e saberes apoiados por um diálogo
permanente, tornando-se protagonista do processo de mudanças da sua
prática educativa.443
Esperava-se que os professores de história pudessem, em sua área específica
de conhecimento, atentar para a necessidade de adotar por prática a história de Mato
Grosso, de forma a inovar o currículo, partindo da realidade e contribuindo, assim, para
que a escola de educação básica se tornasse cada vez mais popular e democrática.
Somado a isso as emergentes tecnologias de comunicação se tornaram neste
início de século recurso em potencial, capaz de dinamizar a informação em múltiplas
plataformas transformando em recursividade ao professor inovar suas práticas, e, com
acesso a web, ampliaria seus horizonte em relação à história ensinada, pois, por meio
dessa ferramenta, a falta de informação jamais impossibilitaria o professor de exercer
uma boa mediação de pesquisa, bem como projetar a escola do futuro (2030).
Todo esse processo contribuiria para que o professor desvelasse as
memórias silenciadas nas páginas dos livros didáticos e os discursos de mão única
anunciados sobre os fatos. Eis o propósito dos dois últimos tópicos do presente capítulo,
momento em que apresentaremos as respostas obtidas por meio da pesquisa. Por hora,
seguimos revelando nuances da escola popular e democrática.
Antecipamos que, por se tratar de uma região composta por pesquisadores e
seus projetos, inventaram eles, à sua maneira, formas de explicar a escola, todavia,
nenhum trabalho a que tivemos acesso preocupou-se em revelar a escola popular e
democrática projetada e edificada no Brasil Central. O maior número de publicações
443
MATO GROSSO, Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, Secretaria adjunta de políticas
Educacionais, superintendência de Formação dos Profissionais da educação básica, Orientativo. 2010.
Cuiabá: SEDUC, p. 23-24. 2015. Usamos o orientativo de 2015 pois, com a mudança de governo os
procedimentos de orientação da formação continuada nos CEFAPROS passou por mudanças radicais,
especialmente no sentido de acabar com as funções dos formadores para a diversidade e tecnologias
educacionais.
337
sobre a educação é decorrente do Projeto INAJÁ, uma espécie de invenção da invenção,
que haveremos de tratar nos tópicos a seguir.
4.1 – INAJÁ – a mais elaborada invenção da escola popular para a formação de
professores.
Ao usar a expressão invenção da invenção, aponto para uma questão em
especial, a forma pela qual algumas pesquisas, ao tratar do INAJÁ, tomaram-no como
ponto de partida e de chegada, cujos trabalhos, por conta da baliza temporal e do recorte
do objeto, revelaram feitios importantes sobre os aspectos sócio antropológicos e
culturais do grupo, bem como a produção de uma metodologia inovadora para o país, no
tocante à formação de professores, incluindo também o arrolamento das dificuldades e
especialmente das conquistas, tanto dos alunos matriculados no curso quanto dos
professores da UNICAMP. Todavia, no campo do não dito, sepultaram algumas
reflexões, as quais elencamos a seguir.444
Dentre os trabalhos que tiveram por tema o INAJÁ, o mais importante deles
foi o que resultou na tese de doutoramento, defendida em 1992, por Dulce Pompeu de
Camargo, por se tratar de riquíssima pesquisa, e que servirá de parâmetro para nossos
diálogos.
A narrativa de Dulce Pompeu possibilita-nos entender, com profundidade, o
que foi, do ponto de vista da proposta, o perfil dos cursistas e as metodologias adotadas
no INAJÁ, porém, alguns aspectos fugiram aos olhos da pesquisadora: o primeiro se
deve ao fato de a mesma não reconhecer o INAJÁ enquanto proposta educacional,
integrando uma sequência de ações em defesa de uma escola que contribuísse na
libertação das famílias do julgo do opressor. Segundo, por tomar como marco inaugural
a iniciativa do governo local, conforme registrou:
444
A maioria dos trabalhos sobre a educação no Araguaia tomam os escritos de Dulce Pompeu de
Camargo por referência. Embora o mesmo seja primoroso e inaugural, do ponto de vista da pesquisa e
metodologia, com rigor temporal de 1987-1990, alcançando seu propósito em pesquisar a relevância do
curso, ele silenciou outros atores e suas memórias, com as quais ampliamos em nossos diálogos com a
fonte. Para saber mais, vd. CAMARGO. Dulce P. Mundos Entrecruzados: formação de professores leigos
no Médio Araguaia. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. Unicamp, 1992.
Campinas, SP: Alínea, 1997.
338
[...] a partir de entrevistas com a coordenadora do Projeto na
UNICAMP, professora Marineuza Gazzetta, com a coordenadora do
Núcleo de Santa Terezinha, Dagmar Gatti, na literatura sobre a
questão da terra e Relatório final do Projeto elaborado pelos
coordenadores, 1990445
. Afirma a pesquisadora e colabora direta a
projeto que o Projeto Inajá se originou de movimentos educacionais
locais desencadeados por iniciativa de um grupo de pessoas
provenientes da região, como também, do sul e sudeste do país.446
Embora os governos populares fossem uma realidade naquele contexto, tais
decisões inviabilizariam sua continuidade, pois, logo em seguida, em decorrência dos
revezes sofridos pelas gestões populares na eleição de 1989, os partidos de direita
retomaram as prefeituras importantes, a exemplo de São Félix do Araguaia.
O terceiro se ancora no fato de não ter contextualizado sua metodologia no
conjunto de ações oriundas do movimento em torno da escola popular, iniciado na
década de 1970 no Araguaia-Xingu mato-grossense, e, mesmo durante o
recrudescimento da ditadura militar, o bispo Pedro Casaldáliga e sua rede de
sociabilidades não desistiram de lutar pelo direito de acesso à educação. Igualmente
deixou de mencionar outros atores envolvidos no processo, como observou Dagmar
Aparecida Gatti:
Neste processo de formação e discussão de educação na região, com a
assessoria de professores da universidade de Campinas SP,
UNICAMP, tais como: Marineuza Gazetta, Marcio D`olne Campos,
Eduardo Sebastianni e Ubiratan D‟Ambrósio, envolvidos no projeto de
ensino de ciências e matemática nos contextos urbano, rural e indígena é
que desencadeou a construção de um projeto de formação/habilitação
para os professores, quase todos leigos e com formação aquém do
fundamental. [...] A experiência dos professores e orientadores do
curso de formação resultou na produção de uma cartilha: ESTOU
LENDO. [...] A prática em debater os problemas de ordem política,
social, econômica, cultura e religiosa já fazia pare do cotidiano das
escolas, o que direcionada as preocupações dos professores para
atuarem sobre os problemas vivenciados pela comunidade. [...] Tinha
também os passeios com as mães, crianças e maridos nas beiras de
rios e lagos uma vez a cada mês onde se divertia e fazia troca de
comidas entre todos. Todo esse trabalho era permeado pelo trabalho
das escolas que tinham em seus alunos e professores os motivadores, o
que facilitava a articulação da experiência dos alunos e da comunidade
no trabalho pedagógico da escola.447
445445
Esse relatório final se refere ao 1º versão do projeto. 446
CAMARGO. Dulce P. Op. cit., p. 44. 447
GATTI, Dagmar Aparecida Teodoro. O Inajá e a materialização de um projeto sócio educacional em
Mato Grosso (1980-1997). Confresa MT. Monografia (Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais) –
UNEMAT. 2016, p. 22-28. Tive o prazer em participar da banca como arguidor do trabalho desenvolvido
339
Sobre o contexto político, especialmente em relação ao enfraquecimento do
governo militar e a ampliação do descontentamento da população e sua organização em
torno dos sindicatos, as greves, o movimento pelo voto direto, afirmou Gatti:
[...] aqui na região o processo também avançava como resultado da
luta travada entre agentes sociais e do avanço de organização de
grupos como da educação, sindicato de trabalhadores rurais, clubes de
mães, associações, professores articulados pós-curso de formação. (...)
influenciou também o debate político nos municípios da região, pelos
grupos ligados aos partidos que, em Mato Grosso e na região
representava a „esquerda‟, com uma característica denominada na
época como mais „revolucionária‟, movida pelo „movimento popular‟,
chamada de Corrente Popular, uma ala do PMDB, existente somente
na região.448
Já em relação à aproximação da Secretaria de Estado de Educação, na
consolidação do projeto INAJÁ, Dagmar considerou:
Neste contexto, já tínhamos contato com a SEDUC através da
Professora Dineva Vanuzi, que era técnica da secretaria estadual e era
freira ligada a igreja do Rosário em Cuiabá e já havia trabalhado
conosco no curso de férias de São Félix do Araguaia. Os secretários
citados convidaram a professora Dineva para vir a uma reunião para
discutirmos assuntos da educação de interesses destes municípios com
apoio da SEDUC e neste encontro discutimos as estratégias de como
seria possível avançarmos para realizar o compromisso firmado ao
término do curso de férias de São Félix do Araguaia, que era o curso
de magistério para os professores em exercício.449
Sob o ponto de vista técnico e apoio político, Dagmar a mesma autora
asseverou que:
[...] a técnica Dineva ficou responsável pela fundamentação legal do
curso e, em 1986, sendo eleito Carlos Bezerra, pelo PMDB, a
governador do estado de Mato Grosso, com votação expressiva na
pela autora. Durante o processo de pesquisa, atuei como colaborador do trabalho, momento em que tive
acesso às memórias de que dispõem uma das principais autoras do Inajá, uma vez ter sido a Dagmar
protagonistas deste curso, bem como me foi possibilitado acesso aos arquivos da Prelazia. Ao longo da
pesquisa e durante quase dois anos em parceria, pudemos desenvolver, na rede municipal de Santa
Terezinha, uma ação de formação continuada, com foco nos projetos de aprendizagem, recuperando, de
certa forma, o desenvolvimento de trabalhos educacionais voltados a atender as necessidades da
comunidade escolar. 448
Ibid., p. 32-34. O curso em questão era o de férias, iniciado em 1978, tratado na tese por meio da
poesia do Poeta Diá, no tópico 2.3 do segundo capítulo. 449
Ibid., p. 34.
340
região do Araguaia-Xingu, e tendo a Professora Serys Marli
Slhessarenko, conforme Dagmar, logo que tomou posse, fizemos o
compromisso com ela, pois, os secretários da região contribuíam para
que ela fosse conduzida ao cargo.450
No afã de melhor entender o INAJÁ enquanto uma invenção do projeto de
escola popular e democrática, foram obtidas informações retiradas da Folha Alvorada,
com o propósito de entender como o curso foi divulgado para as comunidades da região,
encontradas na edição de número 142, que circulou em janeiro e fevereiro de 1988.
Trata-se de uma matéria objetiva e bastante esclarecedora quanto ao que estava
acontecendo no curso de formação do INAJÁ, especialmente nos municípios de São
Félix e Santa Terezinha:
Um curso de formação de professores. É o projeto INAJA, que tem a
finalidade de habilitar, em nível de Magistério, os professores leigos
que dão aula no sertão e que não tiveram ate agora a chance de
estudar e de se formar.
Participam desse projeto mais de 150 professores dos municípios de
São Félix, Canarana, Santa Terezinha e Porto Alegre do Norte. O
curso vai durar 3 anos, com 6 etapas a serem realizadas nos meses de
janeiro e julho de cada ano.
O Projeto é um convênio das quatro prefeituras com a UNICAMP
(Universidade de Campinas – SP), a Secretaria de Estado de
Educação e FUNABEM. O importante do INAJA (nome de um
coqueiro da região) é que ele traz uma proposta diferente para a
Educação: o conhecimento é retirado da realidade social, política e
econômica em que estão inseridos os alunos. Todos os professores
pesquisam o lugar onde moram e esses dados são analisados,
organizados e transformados em módulos de estudo. A título de
exemplo: a matemática o aluno aprende a partir do plantio do milho:
medida da terra a ser usada, quantidade de grãos necessários para o
plantio, quanto será a produção por quantidade de terra plantada etc.
assim será feito com todas as matérias.
Agora é torcer para que a proposta continue na prática e, quem sabe,
o INAJÁ consiga despertar os responsáveis pela política educacional
para que adapte a educação escolar às verdadeiras necessidades do
povo!451
Ao informar sobre o encontro de formação de professores, reforçava suas
bases epistemológicas da educação popular e democrática, tendo por base um currículo
de formação assentado na realidade local, ao tempo em que desafiava os professores da
UNICAMP, universidade parceira, para desenvolver uma formação diferenciada,
450
Ibid. 451
Alvorada (1988), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1988. A 16.7.01 p.6.8. Sem
grifos no original.
341
inaugurando um novo campo de debate na educação, uma formação que preparasse os
professores para, uma vez conhecedores das problemáticas local, contribuíssem para a
superação das fragilidades, atendendo às verdadeiras necessidades do povo, conforme
conclui a matéria. Assim, encerramos o tópico com a assertiva de que o INAJÁ, antes
de produzir frutos, sustentou-se em raízes profundas dimensionadas pelo projeto de
escola popular e democrática, naqueles sertões do Araguaia-Xingu.
Por uma questão didática, apresentamos a seguir uma sequência de mapas
extraídos do relatório final do INAJÁ que, de certo, contribuirá para entender melhor as
escolas as quais viemos apresentando parte de seu cotidiano, forma pela qual se
constituiu uma rede ligando ponto-a-ponto o sertão e as cidades do Araguaia-Xingu
mato-grossense nas primeiras duas décadas de existência, já que o relatório foi redigido
em 1991, por ocasião da conclusão da primeira oferta do curso.452
452
O Relatório Final foi redigido como documento emitido pela Secretaria de Estado de Educação e
Cultura, Coordenadoria de Educação Supletiva – CESU, Projeto INAJA – curso de habilitação,
modalidade – Suplência profissionalizante. O documento foi assinado por Judite Gonçalves de
Albuquerque, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti, Roberto Alves de Almeida e Luís Carlos Pereira Paiva.
Contou ainda com a Assessoria de Marineuza Gazzeta no ano de 1991. O Secretário de Estado de
Educação e Cultura, Valter Albano da Silva prefaciou o relatório. (MATO GROSSO). SEDUC, 1991.
Relatório Final Projeto Inajá. 1991.
342
343
Apresentados os „lugares‟ onde foram edificadas as escolas de educação
básica entre os rios Araguaia-Xingu, continuamos a narrativa elencando aspectos
conexões que possibilitem o amálgama Escola Popular e Democrática – INAJÁ – e as
PARCELADAS.
344
4.2 – INAJÁ fruto cuja semente não germinou no cacho, mas em raízes profundas em
solo regado de conhecimento, de inovação, de resistência e esperança
Problematizar as narrativas produzidas sobre o INAJÁ não tem por
pretensão de negar sua importância no conjunto de ações desencadeadas pelas
lideranças locais, tampouco menosprezar a relevância dos „de fora‟ que, desafiados a
compartilhar daquele projeto – a invenção da escola no Araguaia-Xingu, enquanto
prática de resistência, contribuiu para a difusão do projeto maior a que estava inserido -
a educação popular e democrática. Nosso objetivo é abrir diálogo sobre este projeto,
buscando reafirmá-lo como uma importante etapa da invenção da escola popular e
democrática naquele contexto.
No presente tópico, haveremos de retomar os pilares que deram sustentação
à escola popular e democrática implantada no Araguaia-Xingu mato-grossense, porém,
lançamos algumas questões de base: como avaliar a concepção de um projeto de escola
senão a partir de um diagnóstico sobre a realidade social proposto para sua edificação?
Como afiançar se este ou aquele projeto alcançou os resultados esperados, senão a partir
de um longo processo de pesquisa, procurando evidências que possibilitem tais
afirmativas?
Para entender o 1º Projeto de Formação de Professores Leigos em Ensino
Médio no Brasil – o INAJÁ, se faz igualmente importante quanto descrevê-lo enquanto
processo e resultado obtido com a formação dos profissionais por ele atendidos nas duas
ofertas (1987-1990) e (1993-1995), é compreender seus antecedentes, o conjunto de
valores que emolduraram seu planejamento, tomando o contexto político da educação
nacional, as políticas do magistério, as redes de sociabilidades que se formaram em
torno da busca por respostas aos problemas daquele contexto, especialmente a
problemática maior entre as famílias „assentadas‟ no Araguaia-Xingu mato-grossense,
onde o analfabetismo se configurava enquanto fragilidade a ser superada, pois, do
contrário, não passaria de mera especulação e oportunismo.
Assim, para cumprir tal desiderato, convido o leitor a visitar a comunidade
de Serra Nova, em 1971, hoje município de Serra Nova Dourada, explorando uma
imagem publicada na revista Nova Escola, sobre o trabalho do professor Antônio Carlos
Moura Ferreira:
345
Estava o agente da pastoral, professor Antônio Carlos Moura Ferreira,
dando continuidade à missão a ele atribuída, qual seja, a de atender, durante as
campanhas missionárias, a alfabetização dos adultos, anunciada no início daquele ano
de 1971 e publicada pela Folha Alvorada.453
Assim, aquela proposta educativa era fruto
de um engajamento no projeto de educação popular, cuja ação esteve filiada e
fundamentada à dureza dos fatos, qual seja, a de disseminar o conhecimento – leitura de
mundo associada ao importante domínio da leitura da palavra.
Tais dimensões de educação popular, certamente, estiveram presentes desde
os primeiros anos da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense, tal que, em fevereiro de
1972, conforme registro do Bispo Pedro Casaldáliga, foi ministrado um curso de visão
global e programação do trabalho da prelazia, conduzido por Maria Nilde Mascellani,
chamada de ilustre pedagoga.454
453
Alvorada (1971), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1971. A 16.0.07 p 1-06. O
professor Antônio Carlos Moura foi agente pastoral, graduou-se em jornalismo pela Universidade de São
Paulo, em 1977, foi candidato a vice-prefeito de Goiânia, pelo Partido dos Trabalhadores, em 1985,
elegeu-se deputado Estadual na 11ª Legislatura, 1987-1991, Deputado Suplente na 12º Legislatura, 1991-
1995, assumindo a cadeira em 1994. Tornou-se correspondente dos jornais “O Estado de São Paulo” e “O
movimento” e mudou-se para Goiás, em meados da década de 1970. Entre outras funções, exerceu a de
assessor de imprensa da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Universidade Católica de Goiás e da
Arquidiocese de Goiânia. Defensor das lutas populares: indígenas, negra e camponesa. Publicou a obra “A
Igreja dos Oprimidos” (São Paulo: Brasil Debate, 1981), Coautor de “Saber da vida”, 1997. Traduziu
para o português alguns livros de Dom Pedro Casaldáliga: “Creio na Justiça e na Esperança”. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1986; “Nicarágua: combate e profecia”. Petrópolis: Vozes, 1986; “Na
procura do Reino: antologia de textos – 1968-1988”. São Paulo: FTD, 1986. Faleceu em 28 de abril de
2000. In. https://portal.al.go.leg.br/deputado/perfil/deputado/1545 acesso em 25 de fevereiro de 2018. 454
Maria Nilde Mascellani coordenou um projeto de Classes Experimentais do Instituto Educacional
Narciso Perroni, na cidade de Socorro, em São Paulo. Posteriormente, tornou-se Coordenadora Geral do
Serviço de Ensino Vocacional – SEV, ligado diretamente ao gabinete do Secretário de Educação.
346
Faz-se importante informar que Mascellani incorporou em seus trabalhos à
frente dos Ginásios Vocacionais em São Paulo, as concepções de „conscientização‟ e
„transformação social‟, presentes em movimentos católicos de esquerda, a exemplo do
Movimento Eclesial de Base - MEB, que, por sua vez, desde 1962, já havia produzido
material didático para as caravanas da cultura e que seriam utilizados a partir de 1965,
nas quais educadores entravam em contato direto com as comunidades e promoviam a
chamada „Animação Popular‟, conforme escreveu em artigo.455
Ainda o autor afirma
que Mascellani apontava as ciências humanas como estratégica, devendo o processo
educativo ser colocado como força motriz de um salto qualitativo no desenvolvimento
da personalidade dos educandos:
[...] o processo educativo implicava na mobilização de técnicas
estruturadas segundo os recursos das ciências humanas. Estes
recursos, por sua vez, são manipulados de forma que se estabeleça
uma relação crítica entre eles e o processo a que servem. Partindo
desses pressupostos, a programação do processo educativo envolverá,
consequentemente, a ideia de planejamento da educação num
determinado tempo e para determinado grupo. Se a ação educativa é
realizada de forma sistemática através da escola, compete a essa
última elaborar esse planejamento.456
Sobre o planejamento de currículo, enquanto tal, supõe a análise
da realidade através de dados objetivos, julga a caracterização dos problemas que
devem ser equacionados, o estabelecimento de metas que nortearão o processo, a
seleção de recursos para a execução, à previsão de acompanhamento do processo e de
sua constante avaliação e, finalmente, supre a avaliação global que permitirá visualizar
os resultados e criar condições de reformulação. A partir da conceituação de currículo
aqui exposta, o planejamento requer, necessariamente, a aplicação dos recursos
oferecidos particularmente pelas ciências humanas.457
455
CHIOZZINI, Daniel Ferraz. As mudanças curriculares dos ginásios vocacionais de São Paulo: da
„integração social‟ ao „engajamento pela transformação‟. Rev. Bras. Hist. Educ. Maringá-PR, v. 14, n. 3,
p. 23-53, set./dez, 2014, p. 492. 456
Ibidem, p. 39. 457
I Simpósio do Ensino Vocacional, XX Reunião Anual da SBPC. São Paulo: julho, 1968., p. 492.
Naquele evento foi apresentada a experiência de Ensino Vocacional funcionando desde 1962, uma
experiência em que articulava teoria e prática, especialmente abordando a educação pelo trabalho,
portanto, valeu-se de metodologia divergentes à proposta tecnicista do regime militar, que visava apensa
„qualificar‟ os trabalhadores sem que estes pudessem „ser‟ a centralidade da história.
347
Abrimos esse parêntese para entender quem era, do ponto de vista
educacional, Maria Nilde Macellani e que contribuição ofereceu para pensar a educação
no Araguaia-Xingu, no início do ano de 1972, especialmente no tocante à constituição
de uma escola pelas lentes da área de humanas, que produziu crítica ao contexto e as
revelou em seu planejamento, com o propósito revolucionário.
Em seguida, apresentamos o documento por ela elaborado, contendo 21
problemas diagnosticados na prelazia, dentre os quais aqueles já tratados nos capítulos
anteriores, a exemplo do conflito entre os posseiros e o latifúndio, a falta de
atendimento à saúde, a questão trabalhista em relação às categorias dos barqueiros,
peões e professores, a falta de infraestrutura de estradas, o domínio político das elites, o
trabalho escravo a que eram submetidos os peões, o alto índice migratório e muitas
outras questões, as quais foram publicadas por Dom Pedro Casaldáliga, em 1976, cujo
documento contribuiu para ampliar mais uma peça no mosaico que vimos construindo
acerca da invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense. Pela importância do
documento, transcrevemos na íntegra:
En Sâo Félix, a primeros de febrero, tuvimos un cursillo de visión
global y programación del trabajo de la Prelatura, asesorados por la
ilustre pedagoga y excelente amiga María Nilde MASCELLANI,
varias veces procesada, y presa, por la misma causa de la Justicia.
Habían llegado a la Prelatura refuerzos de padres y seglares.
Estábamos organizando el trabajo del nuevo año.
En ese cursillo de planificación destacamos las siguientes Constantes
encontradas en el área de la Prelatura:
1. Conflicto entre latifundistas y posseiros.
2. Falta de atendimiento básico a los problemas de la salud.
3. Situación de injusticia laboral que afecta a todos (empleados de
todas las categorías: barqueros, peones, profesores).
4. Aislamiento: carreteras, correo, clima (lluvias).
5. Educación: analfabetismo, semianalfabetismo. Falta de
preparación de los profesores, falta de instrumental, edificios, etc. Educación formal inadecuada a la realidad de la región.
6. Interferencia monopolizadora de la política (sistema de acuerdos
entre políticos, terratenientes, comerciantes y otros).
7. Situación de los peones como población fluctuante y sistema de
esclavitud y aislamiento de los mismos.
8. Sobrevivencia étnica del indio.
9. Comercio monopolizador.
10. Retirantismo (sistema migratorio permanente)
11. Indice elevado de irregularidad familiar y prostitución.
12. Pasividad y espíritu fatalista.
13. Inexistencia del lazer.
348
14. Agricultura de subsistencia en grado mínimo.
15. Predominio de 'creencias' (crendices) y supersticiones
(Religiosidad versus Fé).
16. Patrones de conducta predominantes en el pueblo: venganza,
violencia, valentía, embriaguez, indolencia, prostitución.‟
17. Falta de mercado de trabajo: Paro y subempleo.
18. Peculiaridades culturales (lenguaje, etc.)
19. Falta de infraestructura de estimulo cultural y pastoral.
20. Política actual del gobierno continuamente amenazadora para
la sobrevivencia y futuro del pueblo de la región.
21. Grupo de trabajo, venido de fuera, y su aculturación.
A partir de esos problemas analizados, establecíamos lógicamente las
prioridades globales, ormulábamos los programas y explicitábamos el
objetivo general de «desarrollar un proceso de lucha permanente para
la liberación del ser humano y para el establecimiento de las
relaciones de Justicia.458
Além dos pontos já indicados anteriormente, entendemos que o documento
extraído daquele encontro, em forma de diagnóstico e planejamento, tornou-se
fundamento para que os 21 pontos ali destacados servissem de bandeira de luta, uma
vez que, partindo desses problemas analisados, haveriam de estabelecer as prioridades
globais, orquestrando os programas e tornando explícito o objetivo geral de “[...]
desenvolver um processo de luta permanente para a libertação do ser humano e para o
estabelecimento das relações de justiça”.459
O documento apontava para um amplo conjunto de problemáticas que
haveriam de ser enfrentadas e, para tanto, como tratado nos capítulos anteriores,
formularam táticas das quais derivaram ações já explicitadas no segundo capítulo,
momento em que apresentamos a escola enquanto pedra angular na formação social
contra a inumana „desintegração‟ de índios, posseiros e peões no Brasil Central.
Embora tenhamos revelado a pesquisa do professor Hélio de Souza Reis, em
1970, realizada no início das atividades do Ginásio Estadual do Araguaia e publicada na
Carta Pastoral de 1971, por Pedro Casaldáliga, o documento produzido por Mascellani
enfatizou a questão do analfabetismo, semianalfabetísmo, falta de preparação dos
professores, carência de instrumentos, edifícios etc. Alertou também para o fato de a
Educação formal ser inadequada à realidade da região, colocando em questão a
458
CASALDÁLIGA, Pedro. Yo creo en la justicia y en la esperanza. El Credo que ha dado sentido a mi
vida, Bilbao (España): Desclée de Brower, 1976, p. 18. Sem destaque no original. 459
Ibid.
349
sobrevivência étnica dos índios, pois a política do governo continuamente ameaçava sua
sobrevivência e a de toda população dessa região.
A problemática levantada por Mascellani reafirmou muitos dos aspectos já
narrados em capítulos anteriores, reforçando uma questão de fundo – Que paradigma de
escola deveria ser edificado em Mato Grosso, no contexto do Araguaia-Xingu, o qual
possibilitasse a transformação daquela triste realidade, senão a invenção de uma escola
popular e democrática? Porém, qual seria seu preço, já que uma escola com tais
prerrogativas se distanciava da proposta pelos órgãos oficiais? Quem seriam os
protagonistas desse processo, senão os professores; que formação haveriam de ter senão
embasados no método proposto por Paulo Freire, adotado largamente pelas escolas
populares? Eis o motivo da busca, o de revelar o contexto e a concepção de formação de
professores por meio do Projeto INAJÁ.
Concluímos essa primeira parte do presente tópico com a perspectiva de que
a rede de sociabilidade de Pedro Casaldáliga e o momento vivido pelo Brasil fizeram
com que lideranças da educação brasileira, especialmente aquelas defensoras de uma
sociedade mais justa e igualitária, conhecidas politicamente como pertencentes à
esquerda e perseguidas pela ditadura militar. Quanto a Paulo Freire, buscaremos
entender um pouco de como, efetivamente, seu ideário educacional permeou as práxis
dos professores nas escolas de educação básica do Araguaia-Xingu mato-grossense.
Maria Nilde Mascellani foi “várias vezes processada e presa por defender a causa dos
pobres e a justiça”460
, o que foi afirmado por Casaldáliga. No tópico a seguir, serão
apresentadas as „lições de Paulo Freire‟, por meio de cartilha e cartazes adotados na
alfabetização de adultos.
4.2.1. As ciências humanas na educação básica em torno de uma causa: a sobrevivência
humana no Brasil Central
Como já mencionado no segundo capítulo, o método Paulo Freire foi
aplicado na alfabetização de adultos desde os primeiros anos e, pelo que percebemos na
documentação consultada, ele permaneceu enquanto referência aos professores atuantes
entre o Araguaia-Xingu, pelo menos ao longo das três primeiras décadas. Tal afirmativa
460
Ibid., p. 18.
350
ancora-se no caderno que encontramos nos arquivos da Prelazia, datado de 1985, cuja461
apresentação se justifica pelo fato de entender que, usar o termo método de
alfabetização de adultos segundo Paulo Freire se tornou jargão no meio acadêmico e
educacional, infelizmente seu uso descuidado tem se prestado um desserviço à educação
básica. Assim, para melhor compreender a metodologia, apresentamos o caderno.
Como não tivemos acesso ao caderno 1, tampouco uma segunda versão do
caderno 2, não podemos afirmar que havia somente os seis passos neles contidos,
tampouco em relação ao número de páginas. Porém, há que se destacar que os autor (es)
enfatizam que não se tratava de uma cartilha, apenas um instrumento para o avanço da
aprendizagem.
461
É possível afirmar que houve inúmeras produções de cadernos iguais ao que encontramos nos arquivos
da Prelazia, sendo igualmente possível afirmar que havia um caderno que antecedia ao de número 2, e
outro que o sucedia. Esse material foi divulgado pela Associação Difusora de Treinamentos e Projetos
Pedagógicos – ADITEPP, organização não governamental, de apoio às comunidades de baixa renda,
tendo iniciado suas atividades em 1972. In. http://www.aditepp.org.br/conteudo.php?id=12 . Acesso em
25 de fevereiro de 2018.
351
Igualmente observa que, além de apontar técnicas, apresentam estratégias a
serem adotadas pelo professor em relação ao tempo individual e coletivo. Portanto, uma
aprendizagem em processo dialógico. Sigamos os passos propostos pelo caderno.
Pensamos ser importante apresentar o „caderno‟ para melhor entendimento
dos conceitos adotados por Paulo Freire sobre o „código‟ – o objeto a ser explorado e a
representação que se deve conhecer. Conforme observamos, uma vez apresentado,
passa-se ao processo de descodificação, momento em que o grupo se vê mais próximo
da realidade vivida.
352
Seguindo o método, o aluno percebia a palavra em pedaços, associando ao
número de vezes que abria a boca para pronuncia-la. Ao separar em sílabas, abria-se a
possibilidade de formar novas palavras futuras. Assim, o professor apresentava fichas
de descoberta a partir das palavras, associando-as às famílias das palavras. Como num
jogo, buscava-se, por meio de estímulo, fazer com que o grupo pudesse aprender novas
palavras.
353
Ainda sobre o método adotado no processo de alfabetização, encontramos
nos arquivos da prelazia alguns cartazes que foram utilizados pelos professores, embora
não tenhamos como precisar a data de sua confecção e utilização, sendo somente
possível conceber que tenham sido utilizados como forma de, a partir da palavra
geradora, possibilitar os processos cognitivos na alfabetização, bem como politizar as
aulas, apresentando a diferença entre opressores e oprimidos, cujos cartazes
apresentaremos de forma ordenada a seguir:
Representação sobre os oprimidos:
Sequência 1 – Posseiro, operário, peão, família, força de trabalho, pouco dinheiro, casa,
enxada, machado, foice, pouco gado, bicicleta, rádio, pobre iludido e padre.
354
Representação sobre os opressores:
Sequência 2 – ricos, tubarão, família, muito dinheiro, muito gado, avião, trator, jagunço,
soldado e gato
355
Embora tenhamos exibido as imagens em escala menor, pois estas eram
apresentadas aos alunos em formato de cartaz, nosso objetivo foi possibilitar o
entendimento sobre a intencionalidade do professor ao confeccioná-las, apresentando as
categorias sociais, objetos e respectivas representações.
Tal atitude por parte do professor provocava reflexão sobre a diferença entre
o „mundo dos ricos‟ e o „mundo dos pobres‟, sendo os primeiros detentores de muito
dinheiro, fazendeiro (tubarão), família com poucos filhos, esposa gorda (sinônimo de
saúde), com joias, filhos bem cuidados, muito gado, trator, avião e a seu serviço tinha o
soldado, o jagunço e o gato, para ludibriar, violentar e em muitos casos assassinar
posseiros e peões.
356
Já os pobres eram caracterizados pela família extensa e desnutrida, pouco
gado, pouco dinheiro, como instrumento de trabalho a foice, o machado, para
locomoção a bicicleta e a força de trabalho, único recurso do trabalhador, fosse ele
posseiro, peão ou operário, o que confirma os pratos da balança apresentado no tópico
1.6 no capítulo 1.
Ao sugerir tais reflexões, seja na construção do roteiro de aprendizagem por
meio do caderno, ou na seleção das imagens contendo temas geradores para
problematizar o conjunto de representações existentes naquele meio, usando as
categorias sociais e tecnologias de seu contexto, estava, de forma integrada, explorando
as ciências humanas no processo de construção de conhecimento.
Trazer as categorias sociais em formato de imagem possibilitou, por
associação, que as pessoas (crianças, jovens e adultos) em processo de alfabetização
pudessem, a partir do tema gerador, construir suas representações sociais, sem que
fugissem de seu contexto e, ao mesmo tempo se (re)conhecer naquela realidade
historicamente construída. Portanto, ao deparar com uma realidade escolar concreta, ou
melhor, ao lançar um olhar atencioso para uma realidade vivida e „sentida‟ no contexto
da educação escolar no Araguaia-Xingu, era condição sine qua non para sua
transformação, porém, esse processo só se tornaria possível se fosse descodificado o
conjunto de informações e conhecimentos sistematizados, sem que estivessem
distribuídos hierarquicamente.
Tais práticas possibilita-nos perceber que historicamente as ciências, no
contexto da educação escolar foram tratadas num movimento de fronteira, entre o
vivido na escola e no espaço não escolar, práticas de sistematização e mediação de
aprendizagens reveladas pelo professor, todavia, nem sempre isonômicos e com o
„sentido‟ voltado à realidade do aprendente real e inserido num determinado contexto
social e temporal. Assim, na escola popular e democrática os professores eram
chamados a pensar a prática.
Como disse o próprio Paulo Freire, em um Seminário na Argentina sobre
Educação Popular: “Hay que pensar la práctica para, teoricamente, poder mejorar la
357
práctica. No hay que negar el papel fundamental de la teoria. Sin embargo, la teoria deja
de tener cualquier repercusión si no hay uma práctica que motive a teoria”.462
Entendemos que a recusa em trazer as problemáticas vividas pela
comunidade escolar, desconsiderando as condições sócio históricas presentes no
cotidiano e ensinando uma história do outro e do distante, teve dois propósitos: o
primeiro reveste-se da tentativa de isolá-la a um não lugar na história, e o segundo,
enquanto estratégia utilizada por parte de um grupo ao usá-la enquanto instrumento de
poder, determinando os „conteúdos‟ permitidos, bem como os meios e os métodos que
os convém, criando uma zona de segurança e fugindo ao debate. Igualmente, se não
houvesse uma leitura da prática (teorizando-a) não haveria como possibilitar sua
transformação.
Aceitando tal indicativo, o professor agiu perniciosamente negando
autonomia a si e aos aprendentes de experimentar outro percurso, deixando com que o
determinismo histórico interferisse no processo de construção do conhecimento,
permitindo com que todos seguissem ao sabor dos ventos, sob o risco dos banzeiros não
os deixar aportar em porto seguro.
Tais coordenadas invariavelmente têm por propósito manter os escolares
distantes do conhecimento histórico sobre si e de todos aqueles que compartilham do
mesmo lugar social, contribuindo para manter a desigualdade de acesso às informações,
ao conhecimento e aos bens consumo, privilégio de pequena parcela da população que
compõe a „elite‟, os filhos dos tubarões, empresários, banqueiros e figuras políticas que
se beneficiam da segregação, das últimas décadas do século XX, e continuam se
beneficiando na primeiras do século XXI, advertindo que essa pequena parcela jamais
passará pelo mesmo ambiente de formação a que passam os filhos das famílias pobres, a
escola pública de educação básica brasileira. Embora não seja novidade, a escola
pública nunca foi pensada para os filhos das famílias abastadas, pois estes, em sua
maciça maioria, são matriculados nas escolas particulares de ensino.
Porém, há também que afirmar que, no mesmo sentido, porém, em benefício
dos mais abastados, o Ensino Superior ofertado pelas Universidades Públicas atende,
em maior número, especialmente os cursos considerados como „elitizados‟. Haveremos
462
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Recorte de jornal sem identificação. DIII. 0.27 p. 5.5. O
evento foi construído como ato preparatório para a Assembleia Mundial de Educação de Adultos,
realizada em 21 de junho de 1985.
358
de apresentar em seguida os caminhos trilhados, para que a escola de educação básica
no Araguaia-Xingu, conforme o pensamento de seus idealizadores, ampliasse os
horizontes de expectativas dos escolares para a abertura de cursos superior no Araguaia-
Xingu, „utopia‟ que se tornou realidade com a oferta de cursos superior em Luciara, no
ano de 1992.
Concluímos o tópico, onde apresentamos traços de uma realidade
socialmente construída na escola de educação básica parametrizada pela pesquisa sobre
as fragilidades educacionais e riscos sociais das famílias de posseiros e indígenas, bem
como o método de alfabetização proposto por Paulo Freire e, visando a transformação
social, o lançar mão dos conhecimentos possibilitados pelo campo das ciências sociais,
para, em seguida, buscar melhor definir o que foi e que papéis desempenhou a escola
popular no projeto de transformação social do contexto Araguaia-Xingu, das décadas de
1970 a 2000. Motivos do próximo tópico.
4.2.2. Tia, Tia, Tia, Estou Lendo!!!: mais que aprender a palavra, aprender a
palavração.
Inspirados pelos ideais plantados em solo „duvidoso‟, mas cuidados com
perseverança e determinação em prol da educação popular e democrática em processo
de construção, após a primeira década de experiência e emanados da ideologia
libertadora, assim como de posse do conhecimento necessário, no sentido amplo da
palavra, alguns educadores do Araguaia-Xingu, da década de 1980, buscaram formas de
materializar meios para que pudessem dinamizar o processo de alfabetização naquele
espaço específico, por se tratar de uma experiência inovadora para Mato Grosso e para o
Brasil, visto que a inovação não se prendia à questão da produção de cartilhas para
alfabetização, mas uma propositura independente da política oficial, a produção da
cartilha Estou Lendo.
Em alguns momentos em que estivemos compartilhando saberes em Santa
Terezinha, tinha sido informado por Dagmar Ap. Gatti, uma das autoras da cartilha,
sobre a existência desse material, porém, naquele momento não suscitou outras razões
que não entendê-la como mais uma ação desencadeada em torno da educação no
Araguaia-Xingu. Todavia, à medida em que a pesquisa se aprofundava, a cartilha
359
„...ESTOU LENDO!!!‟ ganhava relevo, na perspectiva de que, com aquele material
produzido pelos professores da educação básica, rompia-se com a política Nacional do
Livro Didático, já tratado no tópico 3.6.1, lembrando que o PNLD foi criado em 1985, e
a produção dessa cartilha antecipou sua criação. Assim, passamos a apresentar a história
daquele material
didático produzido
com o pé no chão.
Porém,
antes de apresentar a
história da cartilha,
contada pelas autoras,
abro um parêntese para
afirmar que a invenção
da escola no Araguaia-
Xingu, iniciada na
década de 1970, estava
ligada a um conjunto
de ações pró
alfabetização (inclusão) das famílias pobres brasileiras. A expressão Pé no Chão, em
Mato Grosso, já tinha sido publicada em um jornal de Cuiabá, no ano de 1979, ao
veicular a matéria sobre a formação de férias dos professores, conforme notícia
publicada no Diário de Cuiabá, de 23/01/1979.
A matéria em questão reportava ao curso já mencionado no tópico 2.3 do
segundo capítulo, porém, acrescentava uma informação que permitiu aproximar a
imagem à uma campanha de alfabetização criada em fevereiro de 1961, na Prefeitura de
Natal, Rio Grande do Norte. Tratava-se da:
[...] criação da Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler
[...] uma campanha educacional que propunha a combater, de um lado,
o analfabetismo adulto que atingia cerca de 50% da população, e de
outro, a falta de escolas para as crianças em idade escolar.463
463
TEIXEIRA, Wagner da Silva. Quando ensinar a ler virou subversão: a ditadura e o combate ao
combate do analfabetismo. ANPUHMG. XVIII Encontro Regional (ANPUH-MG) Mariana – MG. 24 a
27 de julho de 2012, p.19.
360
Continua afirmando Teixeira que a falta de recursos para cumprir às
expectativas de campanha do prefeito eleito, Djalma Maranhão, cuja plataforma tinha
sido o combate ao analfabetismo, em fevereiro de 1961, durante uma reunião com o
Comitê Nacionalista do bairro proletário das Rocas, um dos moradores apresentou a
proposta de se construir barracões nas praias para o uso como escolas. A sugestão foi
aceita. Ainda em 1961, foi edificado o primeiro barracão coberto de palha, aberto dos
lados, fixado no chão de terra batida, tornando-se símbolo da campanha.464
Todavia, a campanha Pé no Chão, bem como o Movimento de Educação de
Base (MEB), gerado durante a campanha presidencial de 1960 e fruto de um acordo
político entre os setores da Igreja Católica e a candidatura de Jânio Quadros que, em
campanha pelo Nordeste, conheceu as experiências da Igreja em alfabetizar adultos pelo
rádio, resultando, em 21 de março de 1961, no Decreto n. 50.370 de criação do MEB.
Esse movimento fez eclodir outras campanhas Brasil afora, na perspectiva das
„Reformas de Base‟ a serem feitas por Jânio Quadros.465
Naquele momento é que, oportunamente, Paulo Freire encontrou nos
movimentos um laboratório privilegiado para a elaboração de seu método de
alfabetização, ganhando apoio da ala progressista ligada ao projeto nacional-estadista, a
exemplo de Miguel Arraes, enquanto prefeito e governador de Pernambuco, e do
próprio Djalma Maranhão.
Porém, tais iniciativas de alfabetização foram duramente atacadas por meio
da Operação Limpeza, ocasião em que muitos militantes e coordenadores foram presos,
e os professores, monitores e funcionários também sofreram perseguição na ditadura,
uma vez que falar da Campanha Pé no Chão passou a ser perigoso. Conforme Teixeira,
“Chegara com os militares no poder o tempo de calar. O combate feito pela ditatura
àqueles que combatiam o analfabetismo foi implacável”.466
Ao longo da narrativa, apresentamos os contornos da violência contra os
defensores da inclusão das famílias no processo educacional, nas décadas de 1970 e
1980 no Araguaia-Xingu mato-grossense, todavia, não foi suficiente para impedir que
464
Ibid. Para saber mais sobre essa importante e efêmera campanha, leia o trabalho de GERMANO. José
Wellington. De pé no chão também se aprende a ler: política e educação no Rio Grande do Norte. 1960-
1964. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Estadual de Campinas. UNICAMP/Campinas. 1981. F.226. 465
Ibid. p. 10. 466
Ibid.
361
houvesse continuidade dos processos intensificados com a criação da Prelazia de São
Félix, possibilitando a muitos ter acesso à cartilha „Estou Lendo‟, conforme observamos
a seguir.467
Com o intuito de entender a cartilha naquele contexto histórico,
apresentamos a seguir a história da cartilha.
467
A cartilha ora apresentada foi motivo de um estudo mestrado feito por Alessandra Pereira Carneiro
Rodrigues, no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMT campus Rondonópolis. A professora
formadora do CEFAPRO de Confresa, pautada na história da leitura e dos livros escolares, produziu seu
trabalho buscando subsídios no campo da História Cultural e da História do Livro. A autora desenvolveu
um belo texto sob o viés do campo, da história da leitura e dos livros escolares pautando no „circuito das
comunicações‟, modelo proposto por Robert Darnton (1990). Para tanto, analisou o ciclo de vida da
cartilha. In RODRIGUES, Alessandra Pereira Carneiro. Cartilha do Araguaia. “Estou Lendo!!!‟: seu
circuito de comunicação (1978-1989). Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Rondonópolis, MT, 2012. P. 117.
362
A história dessa Cartilha, escrita por suas autoras, Judite Gonçalves de
Albuquerque, Suely Barros Jardim, Dagmar Aparecida Teodoro Gatti, Maria Benvinda
de Moraes e Luíza Gobbi, permite-nos entender um pouco sobre o que pensavam as
professoras, ao expressar: “Era necessário uma cartilha que falasse do mundo da criança
do campo, de seu trabalho, de seus brinquedos, de suas fantasias [...] uma que ajudasse a
compreender e a se situar dentro do seu mundo”.468
Resta-nos entender um pouco do
método, já que, como já mencionado, as cartilhas eram utilizadas pelos alunos em
processo de alfabetização.
468
Ibid.
Figura 47 – Método da Cartilha Estou Lendo.
Fonte: GATTI; GOBBI; ALBUQUERQUE; MORAES; JARDIM, 1984c, p. 3 apud. RODRIGUES, 2012, p.78
78
363
Pensamos que tais estratégias pedagógicas foram adotadas com o objetivo
de ensinar a leitura da palavra e a leitura de mundo, característica de uma escola popular
que estampava um currículo escolar diferenciado daquele adotado pela escola citadina
oficial. Tais recursos para nosso trabalho se tornaram um achado, pois traduziram, com
bastante pertinência, as representações daquele contexto sócio histórico, bem como
possibilitou compreender que uma aprendizagem plena passa pelo domínio da
PALAVRAÇÃO. Abaixo, apresentamos, na Figura 48, a imagem reduzida da capa da
cartilha e do caderno de exercício, e em seguida o sumário de ambos, para facilitar o
significado de uma alfabetização embasada na leitura e escrita das coisas do lugar.
364
Havia ainda o caderno do professor, pois as autoras entendiam que, para
melhor proveito do material, haveriam os professores de passar por uma formação. Uma
das autoras, a professora Judith, ao falar em entrevista à Alessandra sobre o método,
afirmou:
Então, a gente foi passando daquela preocupação primeira com um
método global (do todo para as partes), preocupando-se com palavras
e frases e daí para as sílabas, mas já se propunha reflexões e leituras
sobre o sócio-interacionismo de Vygotsky. Além de Paulo Freire (que
foi a grande inspiração inicial, com a Pedagogia do Oprimido), líamos
também Emília Ferreiro. Você percebe que a Cartilha „...Estou
Lendo!!!‟ já começa com textos, e não com palavras.469
Assim, concluímos o tópico sobre o Pé no Chão – Estou Lendo!!!,
chamando atenção para as palavras geradoras dos textos que compunham a cartilha,
que, conforme imagem, traduzem significados nos processos de mediação e
aprendizagem. Em seguida apresentamos as razões da educação popular e diferenças
com a Carta de Curitiba.
4.2.3. Razões da educação popular X razões da „Carta de Curitiba‟ nutrindo debates e
disputas sobre a memória
Iniciamos o presente tópico apresentando um documento elaborado pela
Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, com o propósito de chamar a
população para o Dia D da Educação, cuja proposta estava filiada ao Programa
„EDUCAÇÃO PARA TODOS‟, do Ministério da Educação. Trazia título emblemático:
HÁ UM GRITO NO AR PELA EDUCAÇÃO: FAÇAMOS SILÊNCIO PARA OUVÍ-
LO‟. Como podemos observar, o título traduz o tom que os gestores da educação, no
Estado, tinham para com a população, eu falo e vocês fiquem em silêncio para ouvir.
Tal reflexão poderia ser inoportuna se não considerasse o restante do texto, que,
haveremos de apresentar em partes.470
Seguia a mensagem:
A educação entendida como um grande esforço coletivo, de múltiplas
responsabilidades é obrigação de todos os segmentos sociais. Assim,
469
Ibid., p. 94. 470
Documento elaborado pela Equipe de Redação do Grupo de Trabalho do dia „D‟ – Campanha de
Debate Nacional sobre Educação/Escola – Cuiabá-agosto de 1985. In. Arquivo da Prelazia de São Félix
do Araguaia. DIII.0.26 p. 1-4.
365
não cabe, nem é possível somente ao poder público prevê-la. A
comunidade, sendo seu alicerce, deve também visualizar a definição
de objetivos e ações reais em compromisso recíproco para com o
Estado. Nessa filosofia, a secretaria de Educação e Cultura de Mato
Grosso, comungando com o pensar do Ministério da Educação, estará
coordenando no dia 18 de setembro, o Debate Nacional sobre a
EDUCAÇÃO/ESCOLA. Esse debate se constitui em mais uma
parcela de esforços da nossa Secretaria na proposta de Educação para
todos a fim de recolher subsídios que venham redirecionar a educação
em nosso país.471
Como apresentação ao documento, revelamos à problemática:
O secular, aflitivo, crônico problema da educação brasileira e a visão
atrofiada e distorcida do desenvolvimento possibilitam as
desconfianças e dificultam maneiras de se fazer ressurgir valores e
identificações dos interesses da política educacional. Nesse contexto
Mato Grosso, se sensibiliza com os propósitos do Ministério da
Educação [....] e os senhores secretários de educação, no documento
‘Carta de Curitiba’, destacam a necessidade de democratização,
descentralização e desburocratização da escola e de uma
estratégia de articulação e „comprometimento de todos na superação
da dimensão coletiva do trabalho educacional em todos os níveis.
Segue o documento apelando para a maturidade dos educadores mato-
grossenses.472
O documento segue com mais duas laudas, porém, para nossas reflexões
destacamos os parâmetros que foram propostos para aquela „consulta‟, os quais nos
parece emblemáticos:
1) Que escola temos e que escola queremos?
2) O que podemos fazer para melhorar a escola?
3) Que fazer para resgatar a dignidade e a credibilidade da Escola Pública?
4) Somente criticamos ou existe ação?
Ao observarmos o trecho aqui compartilhado, é possível entender que
estavam sendo chamados para visualizar e não traçar objetivos e metas, sendo o
documento revelador, uma vez que tinham conhecimento de que a educação era
burocrática, centralizada e nada democrática.
Todavia, tomamos mais um pequeno trecho do documento para análise que,
ainda na segunda página, apresentou uma frase de efeito – o homem, sendo sujeito de
471
Ibid. Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII.0.26 p. 2-4.O documento foi assinado pelo
próprio Secretário Juracy Maria de Campos Braga. Sem destaque no original, mantivemos somente as
palavras em caixa alta. 472
Ibid.
366
sua história não pode, pelo argumento de que a educação vai mal, se apassivar ao
colapso educacional.
Segue ainda com o desenho de alguns temas a serem debatidos:
a) Educar – para que?
b) Quem ensina?
c) O que está faltando na escola pública?
d) Quem são os culpados do fracasso da escola?
e) A escola é para todos?
Se pararmos para analisar o documento no contexto em que foi produzido,
final do governo militar e início da „redemocratização‟ do país, é possível perceber uma
apropriação dos debates em torno da educação popular, porém, com a prevalência do
velho discurso da ditadura militar. Tratava-se de um sequestro do discurso adotado
pelos movimentos em torno da escola popular e democrática.
Como haveremos de continuar a temática apresentando o campo oposto à
preleção disseminada pelos gestores da Secretaria de época, amplio os questionamentos.
Quando a escola pública teve dignidade e credibilidade para ser resgatada? A segunda
questão serve para aquele contexto, extensivo aos dias atuais: existe um fracasso na
escola que permanece limitado em seu quadrilátero? Seria a escola uma invenção
condenada a servir aos ditames eternos por não atender aos anseios e interesses da
classe dominante?
Parece-nos que esse discurso perverso continua ganhando espaço na pauta
do dia, o analfabeto é sempre culpado por não ter tido acesso à escola, e o professor é
culpado por não dispor de espaço físico e recursos tecnológicos para cumprir suas
funções docentes, sendo o aluno culpado por não atender às „expectativas‟ criadas pelos
órgãos oficiais em torno da „qualidade na educação‟ e seus „índices‟.
Ao plantar o fracasso, o objetivo é inventa-los, restando-nos saber, eles
existem? Se existem, quais são? Onde estão e o que fazem para mudar esse quadro
horroroso de falhas por eles pintados? Aqui, não apontamos para as frias estatísticas, me
refiro especialmente à forma pela qual a educação escolar está sendo ofertada aos
aprendentes, quais expectativas de futuro estão alimentando os professores e estes em
relação aos filhos das famílias dos matriculados em nosso sistema público de ensino?
367
Seguindo nosso propósito, apresentamos um relatório extraído de um
seminário realizado em julho de 1985, estrategicamente organizado para oferecer
respostas ao que ocorria em torno dos debates sobre educação para todos, mencionados
anteriormente. Trata-se de um relatório feito sobre a educação popular e promovido pela
equipe do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae – CEPIS. A ideia,
conforme seus proponentes, foi a de socializar a experiência de seminário, criada pela a
equipe do CEPIS, mais 25 pessoas de todo o Brasil, as quais se reuniram em julho de
1985.
O referido seminário nasceu a partir de discussões feitas no CEPIS sobre a
prioridade de se desenvolver um trabalho de formação de educadores populares.
Conforme o relatório, o evento nasceu a partir das solicitações feitas para que
realizassem um seminário, um momento de vivência e sistematização dos vários
caminhos do trabalho popular, reforçando o papel do Centro enquanto propiciador do
encontro dos educadores que precisavam colocar pontos em comum e elaborar novos
rumos metodológicos para o seu trabalho.473
Tinham ainda o propósito de, mesmo de forma limitada, ampliar o número
de educadores que pudesse utilizar o material elaborado naquele evento, na busca de
respostas metodológicas, especialmente em relação à ação política que o momento
requeria. Nesse particular, é possível que houvessem representantes da prelazia de São
Félix do Araguaia, ou mesmo o próprio Pedro Casaldáliga, pois existem outros
relatórios emitidos pelo CEPIS sobre variadas demandas no arquivo da prelazia. Além
disso, como veremos adiante, fez-se referência ao Araguaia.
O documento é composto de 37 páginas, produzido a partir de um seminário
com seis dias de duração, cujo teor se torna fundamental para que se possa entender o
conceito de Educação Popular naquele momento e, por ser importante para nosso
trabalho, haveremos de apresentar partes dele a seguir, acompanhado de algumas
ponderações.
Sobre o evento em que foi elaborado, pode-se afirmar que: o primeiro dia
foi dedicado à apresentação dos participantes, levantamento das dificuldades
encontradas no trabalho, apresentação do seminário, objetivos, temas e metodologia. No
segundo dia foi apresentado o tema 1 – Educação popular. No terceiro dia com o tema 2
473
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 01.37.
368
– Fundamentos da Metodologia da Educação Popular, cujo objetivo foi o de verificar o
grau de coerência entre o conceito de Educação Popular que temos e sua prática. O
quarto dia foi dedicado ao tema 3 – Análise da Estrutura da Sociedade, com o objetivo
de fazer uma reflexão sobre a estrutura social brasileira e sobre alguns recursos
metodológicos para se trabalhar este tema com grupos populares. O quinto dia foi
dedicado às Tendências Políticas, tendo por objetivo apresentar e discutir um painel das
atuais tendências políticas presentes nos movimentos populares e sua evolução. Já no
sexto e último dia foi tratado o Planejamento em Educação Popular, o qual objetivou
discutir um esquema de planejamento do trabalho popular.
Afirma o documento que muita gente pensa a educação popular como uma
alternativa à educação burguesa, formal, que aliena e que impinge os valores da classe
dominante no seu conteúdo, métodos, instrumentos etc. Fazer a educação popular é o
oposto da educação formal. Este modo de pensar a educação popular tem como ponto
de partida a proposta de educação, que é a educação burguesa.474
Parte-se das críticas a ela para se propor uma nova forma de educação. Há
que se lembrar que a educação popular, pelo fato de ser dirigida às classes populares,
não tem por base apenas o público a ser atingido, mas como ela ganha sentido. É todo
um sistema educacional pensado e redefinido a partir da lógica de libertação popular,
tendo como referência maior a luta de classes e, dentro dela, as classes populares vistas
enquanto agentes da transformação social.
À medida que adentramos no cotidiano das escolas no Araguaia-Xingu, das
primeiras décadas, nos deparamos com essa realidade, onde emergem esforços para que
os paradigmas da educação „burguesa‟ fossem perdendo espaço para a educação
popular. Naquele período, não havia a escola em si, estática, objeto de desejo, intocada,
mas uma escola-ação, engajada, organizada e em prol da defesa da causa das famílias
dos escolares, razão pela qual foi fortemente „combatida‟ por alas da política estatal.
Veremos em seguida que diferenças podem ser destacadas entre a educação
popular e a educação burguesa. Para esse fim, continuamos explorando o relatório do
Centro de Educação Popular Sedes Sapientiae.
474
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 07.37.
369
4.3 - Educação popular x educação burguesa
Uma concepção de Educação Popular não é definida em oposição à
Educação Burguesa, nem só pelos métodos e técnicas utilizados, mas pelo seu caráter
classista, pela definição dos interesses da classes a que ela responde, não nas
formulações, mas nas práticas concretas vivenciadas num contexto histórico
determinado. Tamanha era a integração da escola com as causas locais que, em muitos
instantes, percebemos o fechamento da escola por inúmeras razões, mas, houve ocasião
em que foram fechadas, e até mesmo derrubadas, pelos fazendeiros, com o apoio do
aparato policial do Estado.
Em seguida, o documento afirma que o projeto político é o que definia a
Educação Popular, distinguindo a Educação popular da educação burguesa e oficial.
Ora, se isso é elemento fundamental, podemos dizer que diretamente ligado a ele
aparece a questão da metodologia, ou seja, do como fazer. Aqui está o grande desafio,
pois, muitas vezes temos uma definição clara a respeito da Educação Popular, mas a
nossa prática concreta, o „como‟ estamos fazendo, por vezes está em contradição com
semelhante definição.475
Segue o relatório afirmando que, às vezes, temos um discurso libertador,
transformador, mas a nossa prática concreta ainda está muito carregada das distorções
da educação formal e burguesa. A análise dessa contradição requer discutir a questão da
metodologia. Há que se verificar se o „como nós estamos fazendo o trabalho‟ guarda
coerência com o conceito da Educação Popular476
, uma vez que ela é popular, não pelo
público que atinge, mas pelo seu caráter definitivamente classista, de um processo
educativo ligado às exigências e necessidades das classes populares. Esta é a nossa
referência.477
Assim, trabalhar com a Educação Popular era, naquele momento,
fundamentalmente, trabalhar a esfera do saber, pois, dentro de uma concepção de
integração orgânica entre Educação Popular e ação política transformadora, cabe refletir
sobre: em que ângulo é que o específico da prática educativa (esfera do saber, da criação
e recriação do conhecimento) contribui para o avanço da ação política transformadora?
475
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29 p. 12-37. 476
Ibid. 477
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 08.37.
370
Para responder a essa questão, apresentaremos uma sistematização elaborada durante o
citado seminário, extraída do trabalho de Carlos Brandão sobre as diferentes concepções
de educação com as classes populares.478
Tabela 14: Concepções de educação popular
Conservadora Reformista Transformadora
1 – Manutenção da ordem
social
1 – Aperfeiçoamento do
capitalismo
1 – Superação do capitalismo
2 – Reforçar o poder político
do Estado
2 – Reforça o poder do
Estado e da sociedade civil
2 – Construção do socialismo
3 – Educação voltada para
qualificação profissional, para
uma participação ativa na
produção e passiva na
sociedade (SENAI-SENAC-
MOBRAL
3 – Movimento social deve
lutar por direitos
3 – Participação na direção
progressiva da construção do
poder popular
4 – Organização comunitária
dos setores populares para
maior participação social
(mutirão, roças comunitárias)
4 – Fortalecer o poder
popular a consciência de
classe (movimentos
populares, sindicatos) Fonte: Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII.0.29 p. 12-37
Ao tomarmos os traços da escola popular e da democrática pensada no
Araguaia-Xingu, podemos confirmar seu projeto transformador, pois a superação das
relações de poder entre opressores e oprimidos, a participação na população com o
poder popular e os movimentos populares, por meio da consciência de classe, estavam
estampados nas páginas da Folha Alvorada.
Como fundamento da ação educativa que envolve o processo de criação e
recriação do conhecimento, ao observar esse aspecto, quando os professores,
especialmente os de história, buscavam formas de ensinar outra história que não aquela
proposta pelos livros didáticos, eles filiavam sua ação à Educação popular, pois,
introduziam táticas „subversivas ao currículo‟, pela ação educativa, contrariando o
processo de reprodução dos conhecimentos já existentes e estabelecidos, sendo que sua
função seria repassar os novos conhecimentos de forma a „preencher com aqueles
necessários às consciências vazias dos educandos‟. Por outro lado, quando falamos de
um processo de criação e recriação do conhecimento, na perspectiva da Educação
478
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII.0.29. P. 10-37.
371
Popular, estamos partindo do pressuposto de que nessa ação educativa existe uma
relação de troca.
Outro aspecto importante levantado pelos participantes durante o seminário,
foi a questão de se „ter clareza de onde se quer chegar‟. Para se obter uma postura
metodológica correta em Educação Popular é fundamental se ter claros os objetivos que
encaminharão os rumos de onde queremos chegar. Se não houver isso, corremos o risco
de estreitar nossa concepção de metodologia, somente no limite pedagógico.479
Por vezes, quando se pergunta a um grupo sobre os fundamentos da
metodologia da educação popular, aparecem frequentemente as seguintes respostas: „é
trabalhar mais em grupo; é utilizar dinâmicas mais participativas, é se preocupar com o
falar mais simples com o povo‟. Não discordamos de que semelhantes preocupações
fazem parte do nosso modo de trabalhar Educação Popular, mas afirmamos que tais
aspectos não são suficientes para definir a metodologia de Educação Popular e
distingui-la da educação formal burguesa, lembrava o documento que (vale lembrar de
que esta também se utiliza, em seus centros mais aperfeiçoados, dinâmicas
participativas, sondagem de linguagem etc.). Por isso, é importante fazermos uma
distinção clara entre metodologia, método e técnicas em Educação Popular.480
Seguimos a mesma sequência como fora construído o relatório –
considerando que a metodologia é um conjunto de fundamentos de trabalho que
perpassam todas as práticas em Educação Popular, seja no baixo Araguaia, seja no Alto
Uruguai (RS), seja na prática da comunidade, no movimento popular, no movimento
sindical ou no partido.
O relatório fazia distinção entre metodologia, método e técnicas. Os
métodos decorrem da metodologia e se diversificam na sua aplicação em circunstâncias
específicas, por exemplo, alguns métodos são mais adequados ao trabalho rural, outros
podem sê-lo ao trabalho na periferia urbana. Há também uma diferenciação de métodos
conforme o setor com que se trabalha: na prática pastoral, temos alguns métodos que
são diferentes da prática político-partidária.
Os métodos também variam conforme o momento concreto da prática de
luta de um grupo: há momentos em que privilegiamos métodos de trabalho de massa,
em outros os de trabalho de base. Concluindo, os métodos dependem da situação ou do
479
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0.29 p. 13-37. 480
Ibid.
372
setor de trabalho. Traduzindo em linguagem de ciência política, diríamos que os
métodos se referem às táticas de trabalho.481
As técnicas, por outro lado, constituem um conjunto de ferramentas de
análise, organização e comunicação, devendo ser utilizadas de forma dinâmica e
criativa. A escolha das ferramentas de trabalho deve ser feita de acordo com a
metodologia global e em função dos métodos. Por exemplo, para avaliarmos a validade
de se utilizar a técnica do Júri simulado temos que levar em conta os objetivos da
atividade, o conteúdo a ser discutido e as características do grupo com o qual estamos
trabalhando.
Assim, aponta o texto que a concepção metodológica (ou seja, a concepção
sobre a lógica interna do processo de educação popular) se baseia na teoria dialética do
conhecimento e se expressa numa determinada forma do conceber a relação entre teoria
e prática, graficamente representada da seguinte forma: prática-reflexão-ação:
1º) A prática social é a fonte de todo o conhecimento;
2º) A teoria está em função do conhecimento científico da prática e serve
como guia para uma ação transformadora;
3º) A prática social é critério da verdade e o fim ulterior de todo o processo
de conhecimento.482
Apresentadas as dimensões sobre a metodologia, o método e as técnicas da
educação popular, passaremos a apresentar seus princípios.
4.3.1 Princípios da educação popular
O primeiro principio é o de que a prática social constitui fonte de todo o
conhecimento, uma vez que todo programa educativo deve partir de uma problemática
concreta vivenciada por um determinado grupo ou setor da sociedade, de suas
necessidades específicas, do conhecimento que eles já possuem de um determinado
tema e do nível de consciência particular do grupo. Partir da prática pressupõe basear-se
nas condições objetivas (vida cotidiana, elementos provenientes de sua prática produtiva
e organizativa, e do contexto econômico e social) e nas condições subjetivas
481
Ibid. 482
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 15.17.
373
(conhecimento e interpretações que o grupo já desenvolveu formas de expressão,
linguagem, valores, manifestações culturais e artísticas). Cabe aqui destacar o papel da
pesquisa participante enquanto ferramenta para um conhecimento sistemático da
realidade, superando, de um lado, o empirismo da observação assistemática e, de outro
lado, o academismo da pesquisa científica tradicional.483
Todo programa educativo terá de escolher um ponto de entrada particular,
ou seja, um aspecto científico dessa prática social enquanto núcleo mais adequado para
iniciar um caminho de aprofundamento.
O segundo princípio refere-se à questão da teorização sobre a prática,
significando a realização de processos ordenados de abstração que nos permitem
analisar situações concretas das quais partimos; significa entender os porquês, significa
percorrer um caminho de análise que vai:
- do individual para o coletivo
- de situações mais específicas e vividas para situações reais, presentes e
passadas
- de aparente para o significativo (o que está oculto, o que nunca foi dito)484
.
O importante é que dentro dessa concepção dialética a teoria só tem sentido
se partir da prática concreta do grupo, onde reside um grande desafio: como nos
programas de formação política, possibilitar a apropriação do instrumental do
Marxismo, a partir da prática social concreta do grupo com o qual estamos trabalhando?
Se não conseguirmos vincular o conhecimento, que é o fruto da prática social-histórica
da classe trabalhadora, à prática concreta do grupo não se dará uma aprendizagem
significa (que tenha significado concreto).485
O grande desafio que temos em relação á questão da teorização é: como
fazer com que um grupo popular, além de se apropriar de determinados conceitos de
análise social, adquira a capacidade de teorizar? Portanto, além da questão da
apropriação de conceitos é necessário o desenvolvimento de uma metodologia que ajude
o grupo a adquirir a autonomia necessária para fazer teoria. Portanto, e preciso, por
483
Ibid. 484
Ibid. 485
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 15.17.
374
exemplo, fazer com que o grupo se aproprie das ferramentas necessárias para
estabelecer sua análise de conjuntura.486
O 3º princípio considera a prática social o critério da verdade e o fim último
de todo o processo de conhecimento. Estamos nos referindo ao momento de volta à
prática, e aqui está o desafio: como garantir que aquele processo de teorização sobre a
prática inicial do grupo reverta em um avanço qualitativo da prática concreta desse
mesmo grupo? Podemos fazer um trabalho partindo do que o pessoal já traz
originalmente consigo e introduzir uma série de conceitos de análise social e política?
Mas, se no final desse processo as pessoas com quem se está trabalhando não
modifiquem em nada a sua prática, então, não foi feito um bom trabalho. Por exemplo,
com um grupo de trabalhadores, se ao final de um trabalho de formação o grupo não
tiver uma melhor capacitação, no sentido de planejar o trabalho no seu fazer laboral, em
seu trabalho sindical, em sua intervenção política, então o programa de formação não
atingiu seus objetivos. A concepção dialética supõe que tal teoria sirva como guia para
uma ação transformadora. O critério de validade da teoria e do nosso trabalho é ver se
eles se serviram dela para alterar a prática do grupo487
.
O relatório ainda levanta alguns desafios político-metodológicos das
práticas em Educação Popular na conjuntura brasileira da década de 1980 e suas
implicações metodológicas.488
a) Relação entre trabalho de base e trabalho de massa: não existe contradição entre
essas duas modalidades de trabalho, visto serem duas faces da mesma moeda:
1) Trabalho de massa - Trabalho que se faz com muita gente, com agitação e
exige métodos e técnicas científicas próprias: Trabalho de massa só existe se houver um
trabalho de base que provoque suas etapas e atividades. Trabalho de massa publica as
mensagens e as ideias de um grupo, formando a opinião pública.
Para haver trabalho de massa é preciso ter: liderança forte, símbolos e
hinos, propostas de bandeiras de luta, autonomia e direção.489
2) Trabalho de base: É o trabalho que se faz com pequenos grupos – ou seja,
quando há o surgimento constante de novos militantes capacitados a dirigir um setor de
486
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 16-37. 487
Ibid. 488
Ibid. 489
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 17.37.
375
luta. O trabalho de base deve incentivar e criar o trabalho de massa. Há uma linha de
continuidade entre o trabalho de base e o de massa.
b) O trabalho de formação constitui tarefa fundamental para a consolidação das
organizações populares. Dentro dessa perspectiva, temos que pensar o trabalho de
formação em relação aos diversos níveis: „base‟, „lideranças intermediárias‟,
„quadros‟ etc., quais seriam os métodos mais adequados a cada um destes níveis?
Como evitar o vanguardismo (teoricismo) e o populismo (espontaneismo)
pedagógico?
c) Até que ponto se tem conseguido formar novos educadores populares retirados do
próprio movimento popular?
d) A questão da articulação dos movimentos é uma das tarefas básicas. Que aspectos
da metodologia de trabalho podem facilitar essa articulação? Alguns casos foram
apresentados pelo documento:
- ligação a outros grupos populares em torno de um objetivo bem concreto, tal
como uma luta de interesse comum;
- promover, ao máximo possível, visitas e viagens para o conhecimento de outras
experiências de trabalho popular. Isso deve ser feito de forma programada;
- apoiar e incentivar a participação em encontros de movimentos, pois eles
permitem ampliar os horizontes e o conhecimento de outros companheiros e
experiências.
e) Outra questão são as novas práticas de dominação do Estado e das classes
dominantes, e os desafios metodológicos que elas colocam. Sobre as estratégias do
Estado, podemos citar:
- cooptação
- manipulação
- desmobilização
- desarticulação.490
O relatório chama atenção para os mecanismos adotados enquanto estratégia
do Estado para alcançar êxito frente aos movimentos da educação popular, fazendo uso
de formas a neutralizar as ações populares:
1 – Discurso demagógico e participativo;
490
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 17-37
376
2 – Atendimento parcial das reivindicações;
3 – Uso dos técnicos como mediadores;
4 – Canalização institucional do movimento – fortalece as entidades sob seu
controle e não a organização popular;
5 – Pegar as lideranças e atraí-las para a máquina do Estado;
6 – Criar comissões, grupos de trabalho fora do controle popular;
7 – Retenção e manipulação de dados sobre verbas, orçamentos públicos e
prioridades de projetos;
8 – Decisões de interesses público continuam a ser feitas de cima para baixo
embora se procure dar a impressão de que está „consultando‟ a população;
9 - Jogar uma reivindicação contra a outra;
10 – Jogar a resolução do problema cada vez mais para instâncias diferentes;
11 – Uso dos meios de comunicação de massa enquanto forma de propaganda
ideológica das realizações governamentais e desmoralização dos movimentos
populares;
12 – Oferta de serviços e cursos na linha de „promoção humana‟, como forma de
neutralizar a politização das massas;
13 – Uso da repressão com relação a movimentos mais articulados e que se
referem a questão da propriedade e setores econômicos de maior peso;
14 - Regionalização do atendimento às reivindicações;
15 – Prolongar ao máximo os períodos de estudos e negociações, procurando
vencer o movimento pelo „cansaço‟.491
Por se tratar de um relatório descritivo-orientativo, apontou algumas
alternativas que poderão ser desenvolvidas no processo de organização popular no
enfrentamento das novas formas de atuação do Estado em relação aos movimentos
populares:
1) - Aprofundar o alargamento do programa de reivindicações;
2) - Conquistar e construir formas organizativas do movimento popular;
3) - Capacitar e exercitar o Movimento Popular e elaborar e apresentar
propostas concretas e alternativas à política oficial, sendo necessário para isso o
conhecimento dos projetos governamentais.
4) - Intensificar o trabalho de educação política dentro do movimento popular e a
criação de Centros de Educação Popular nos bairros;
5) - Necessidade dos movimentos terem propostas de continuidade de luta nos
momentos de refluxo;
6) - Criar focos de articulação e unificação de lutas entre os movimentos do
mesmo tipo e entre os diversos movimentos;
7) - Criar formas de autossustentação dos movimentos que possibilitem a sua
independência;
8) - Incentivo à participação das mulheres e jovens na luta;
491
Ibid.
377
9) - Divulgar, por todos os meios, as lutas do movimento popular;
10) - Relembrar constantemente as promessas governamentais e cobrá-las;
11) - Necessidade de sempre ligar fé com política;
12) - Não abrir mão da forma de luta direta.492
Como observado, inúmeras foram as formas estruturadas para impedir que
houvesse mudanças no „sistema‟ organizado em torno dos assentados no poder Estatal,
por um lado, apontando alguns equívocos cometidos por grupos de educadores
populares, que, despidos dos sentidos necessários da educação popular, disseminavam
discursivamente as máxima abaixo:
a) „Dar consciência ao povo para que ele transforme sua realidade‟;
b) „É instrumentalizar as camadas populares para que elas busquem um
caminho próprio, rumo à transformação‟, ou ainda,
c) „É para que as camadas populares se apropriem de um novo saber,
instrumento e poder de transformação social‟.
Observe que trata a consciência como algo transferível de alguém para outro
alguém, um objeto a ser embalado e repassado. Consciência e conhecimento não se
transferem, visto que fruto da boa mediação e da aprendizagem, portanto, parte do
princípio que requer alguém que saiba e possibilite ao outro adquirir esse conhecimento
a partir das referências a ele possibilitada.
Segundo, instrumentalizar as camadas populares para que estas busquem um
caminho próprio, rumo à transformação. Observe que a transformação social, nessa
ótica, está no horizonte, essa é uma forma tacanha de apresentar as possibilidades de
transformação, elas estão no meio social de onde devem desencadear o processo.
Por fim, o significado de um novo saber não requer que ele seja externo,
mas um saber que se produz internamente e com capacidade de se transformar em
poder.
Antes de tudo, fica claro que a educação popular é uma prática que se dá na
esfera da troca de saber entre pessoas que se consideram parcerias na luta pela
transformação da sociedade. Por isso, coadunamos com a definição suscitada naquele
encontro: a Educação Popular é um processo de troca de saberes entre educador-
492
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 19-37.
378
educando, agente-povo visando a produção de formas políticas de conhecimento
popular capazes de orientar e fortalecer a prática política dos movimentos
populares.493
É a criação de instrumentos e ferramentas na área do saber. Com a
finalidade de compreender e analisar a realidade social e orientar as ações dos grupos e
movimentos populares frente ao momento histórico que vive os desafios e questões
teóricas e práticas que ela coloca. A Educação Popular é um fato político: nós a fazemos
e, a partir dela, a teorizamos. Com tais análises e definições, pensamos que a Cartilha
Estou Lendo, utilizada no projeto INAJÁ, e posteriormente nas parceladas, é fruto do
pensamento e da ação da Educação Popular e Democrática no Araguaia-Xingu mato-
grossense, pois, sem o processo histórico de engajamento e defesa das lideranças e
demais colaboradores local, dificilmente alcançariam tais conquistas.
A seguir, retomamos aspectos sobre as disputas pela memória acerca dos
programas educacionais no Araguaia-Xingu de outrora, e do contínuo fazer dos
educadores no Brasil Central.
4.4 – As disputas pela memória: a educação em semente sob as sombras do Inajá
Educar não é ensinar a ler e contar feito papagaio ou a desfilar pelas
ruas feito macaquinho ou a saber a mexer com muitas máquinas para
o benefício dos capitalistas do mundo. Pedro Casaldáliga.494
Retomamos ao projeto INAJÁ apresentando seus antecedentes e, a partir
dele, traçar análises sobre seus desdobramentos. Segundo Dulce Pompeo de Camargo, a
partir de 1983, as prefeituras populares, carentes de pessoal para seus quadros e
sentindo as exigências se tornarem mais complexas para ampliação vertical do ensino,
iniciaram contatos com pessoas conhecidas, em São Paulo.
No sentido de validar aquele ato inaugural, fazendo uso do depoimento de
Luís Paiva, um dos secretários de educação que abraçaram a causa do INAJÁ, e,
posteriormente se tornando coordenador do curso Camargo:
493
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia DIII. 0. 29 p. 08-37. Sem destaque no original. 494
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1990. A 16.9. 03,
p. 2-8.
379
[...] o pessoal queria o ginásio na „rua‟, inclusive. Aí pintava a questão
da falta de professor habilitado. Aí foi uma ideia, me deu vontade.
Tudo bem, vamos, mas para ficar um ano ou dois, não vamos para
ficar para sempre. Cheguei em fevereiro de 1985. Vim prá
Cascalheira. Quando eu cheguei fui professor de inglês, professor de
educação física, professor de português e professor de história
também. Um tanto de coisas.495
Ao descrever o projeto INAJA, a pesquisadora tomou como ponto de
partida o início do curso, deixando, portando, não ditos importantes para entender o
contexto em que se deu a invenção do INAJÁ e, em especial, as lideranças e
mobilizadores das comunidades em prol da causa de primeira grandeza, a escola e sua
forma peculiar de organização. Afirmou a mesma, “Em 1976 ocorre a emancipação de
São Félix do Araguaia e da Prelazia, antes incorporada a Conceição do Araguaia
(sudeste do Pará). Através dela, chega à região o bispo espanhol D. Pedro
Casaldáliga”.496
Parece-nos que houve um equívoco, pois, a emancipação política de
São Félix não pode ser confundida com a Prelazia, pois esta ocorrera em 1970.
Embora tenha se referido ao GEA, destacando sua importância no
recrutamento de jovens, ex-seminaristas, das mais diferentes tendências da esquerda,
provenientes, principalmente, do estado de São Paulo, para lecionar no ginásio, talvez,
por conta de não ter tido acesso a outras fontes, ainda que tivesse estabelecido estreito
diálogo com colaboradores da Prelazia, a exemplo de Dagmar Gatti, desconsiderou o
processo antecedente à demanda de formação de professores, refiro-me à edificação da
escola pelas comunidades, a formação nos cursos de férias oferecidos aos professores
em 1978, o processo de alfabetização e todos os percalços pelos quais passaram por
conta da ausência do Estado.
Camargo publicou relatos de Dagmar Gatti sobre o trabalho de
alfabetização, conforme observamos abaixo:
[...] a alfabetização é uma coisa que nós vimos como trabalhar na
metodologia, na proposta, com essa linha mais de construção do
conhecimento, apesar de que a gente fez uma cartilha... um subsídio
para o professor... só que foi difícil para o professor entender isso...
495
CAMARGO. Dulce Pompeu. Mundos entrecruzados. Projeto Inajá: uma experiência com professores
leigos no Médio Araguaia (1987-1990). Campinas, SP: Alínea, 1997. Entrevista com Luís Paiva,
graduado em Estudos Sociais e História. No mesmo ano de 1985, foi escolhido Secretário de Educação de
Canarana e, em 1987, coordenador do Inajá. 496
Ibid., p. 46.
380
Era uma fala no nosso trabalho...era uma proposta mais nossa do que
dos outros que trabalhavam.497
Também desconsiderou a produção local da cartilha Estou Lendo!!!,
produzida pelos professores, a qual certamente contribuiu para com a concepção do
INAJÁ. Assim, na perspectiva de contribuímos para melhor entender esse processo
fazendo uso do relatório de conclusão do curso produzido em 1991, o qual se orientou
por uma educação popular e democrática:
[...] desde os anos 60, quando ainda todos os municípios (..)
pertenciam a Barra do Garças, que professores leigos como Dona
Tunica (Antonia Coelho Matos – SFA), Dona Elza Freitas (professora
aposentada – SFA), Dona Paula – Paulette Franchon – professora em
Floresta Conceição do Araguaia – PA, e outros, batalhavam pela
instalação de escolas públicas para os filhos dos moradores da região.
Com o passar dos anos, foi possível criar em São Félix do Araguaia,
em 1969, o Ginásio Estadual.498
Seguimos apresentando outra fonte a que tivemos acesso, a exemplo do
documento Memórias, datado de maio de 1990 e produzido pela equipe do Centro
Ecumênico de Documentação e Informação. Observamos que essa peça documental foi
redigida um ano e meio antes da conclusão do curso, portanto, ainda em execução.499
Ao tempo em que informa a existência de um projeto de recuperação das
lutas educacionais da região e seus proponentes afirmaram, no documento, que estavam
mantendo contato principalmente com a Dagmar, Luiz Paiva e Elaine, com os quais
estavam procurando discutir a proposta de trabalho. Todavia, sentiam necessidade em
reunir o que estava sendo pensado, sendo a ideia inicial a de produzir uma carta, mas,
evoluiu para um boletim:
[...] ao tempo que „prestamos contas‟ do que estamos fazendo por
aqui, gostaríamos que este boletim fosse um veículo de vai e volta.
Aguardamos as opiniões, sugestões, broncas e apoio de vocês todos.
497
Ibid., p. 47. 498
Relatório Final do Inajá, p. 8. 499
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. P. 1-8. O documento tem por título
Memórias e possui 8 páginas divididas em uma apresentação, memória da luta por educação na região do
Araguaia, proposta de periodização, cronograma de trabalho, perfil dos monitores e cursistas,
documentação, relatório de pesquisa, seminário, caça aos documentos, aos vinte anos e cutucando a onça.
381
Esperamos estar aí em julho, para maiores papos. Marília Pontes
Sposito, Fernanda Macruz e Orlando Joia.500
Segue o documento afirmando que no mês de julho daquele ano encerrava-
se a última etapa intensiva da formação dos professores rurais leigos da região, e que
durante os últimos 3 anos participaram do curso:
[...] a relevância dessa experiência pode ter como motivadora de
reflexão sobre a questão da formação e qualificação dos professores,
como uma das molas propulsoras da mudança de qualidade da escola
pública, o projeto Inajá merece um esforço de recuperação e análise.
Mas, além da importância em si, é possível pensar que a experiência
do Inajá, tal qual foi desenhada, só foi possível na medida em que é
produto de uma história de lutas e ações na área educacional, que
integrou os movimentos populares na região desde pelo menos a
década de 70, que envolveu diversos protagonistas, com especial
destaque para a Igreja Católica.501
Ao analisar o texto, percebemos a clara preocupação em garantir que a
memória não fosse apagada ou relegada a segundo plano, pois, se assim o fosse, seria
perdido todo um processo de luta pela educação popular e democrática, colocada em
prática desde a década de 1970 e cuja trajetória foi revelada na tessitura da narrativa a
que estamos por concluir.
Segue o documento apontando o objetivo pelo qual o projeto estava sendo
escrito, o de reconstruir a memória dessas lutas e ações, no sentido da socialização e
avaliação da experiência, o que, obviamente, poderia trazer elementos para se repensar
ações como a do INAJA, assim como o marco de sua continuidade e transformação,
uma vez que se trabalhava com a hipótese de que uma das principais condições de
efetividade da formação de professores era seu caráter de continuidade.
Seus proponentes afirmam que:
[...] ao se propor a recuperar a memória de um movimento ou de uma
época, a documentação escrita é essencial. Além de escritos mais
convencionais (livros, artigos de jornais de grande circulação etc.), há
uma infinidade de documentos que guardam a história escrita:
panfletos, boletins, cartas, documentos oficiais, relatórios etc. ao lado
dos escritos, já uma memoria oral, que precisa ser captada através de
entrevistas e outros registros. Imagens também contam a história:
500
Ibid. 501
Ibid., sem grifos no original.
382
fotos, desenhos, logotipos etc. Procurar e organizar documentos é uma
das tarefas num trabalho de memória. Organizar a documentação
(principalmente escrita) é uma das tarefas que já estamos
realizando.502
Como observado, a equipe proponente sabia, do ponto de vista
metodológico, mais que reconhecer as fontes, mas produzir, de forma sistemática, um
rico acervo para que pudessem ter acesso futuramente:
O objetivo final do CEDI não é entesourar documentos, mas
socializar, eles tem um valor mais imediato de servir de apoio ao
trabalho de levantamento e pesquisa. A destinação final do acervo
pode ser decidia em comum acordo com as instituições e grupos que
participam do trabalho de reconstrução da memória no movimento.503
Dessa feita, o documento indica horizontes acerca do trabalho que haveria
de ser realizado para a construção do acervo e da continuidade das ações, que,
invariavelmente, tinham sua função social e coletiva.
O documento prossegue afirmando que já haviam sido entrevistadas
algumas personagens dessa história e que „[...] estavam a nosso alcance: Moura, Paula,
Aninha, Inês, Lurdes (SF), Miguel (Casc), Clara (Rb), Irmãs Maria de Lurdes, Noêmia e
Armandina, Alita, Helio (Piau), Isabel, Nesca e Vaime. Além destes estavam „na
agulha‟ Luiz Góia, Eugenio, Luiz e Silvia, Ilda, Zé Wilson, Vera Vacari, Susto, Onilda,
Cascão”.504
Além destes, a equipe tinha também por propósito entrevistar os forante da
região (Prelazia, Prefeitura, Estado, Inajá, alunos, pais, professores, militantes,
sindicatos), e queriam entrar em contato com Mada, Bia, Dirsomar e Neide (Goiás),
Chico, Cristina, Lucinha, Carlão, Pe. Zé Maria, Juarez, Pe. Falheiros (BH), Regina,
Dineva, Diá, Vanja (Cuiabá), Serys e outros que tiveram participação na região.
Noticiava o grupo que tinham organizado um „depoimento coletivo‟, com
Elaine, Judite, Zé Wilson, Valeriano, Isabel, Cascão, Dagmar, Zé Martins, Susto, Nesca,
Fernanda, Martins (da USP), Marília e Orlando, além de uma gostosa „hora da saudade‟,
capaz de traçar uma linha do tempo, relacionando lutas educacionais, pastorais,
políticas, sindicais, além de pincelar alguns conflitos internos.505
502
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 38. P. 4-8. 503
Ibid. 504
Ibid. 505
Ibid.
383
Assim, ao tempo em que apresentava o horizonte de expectativa sobre a
organização da memória, cuja conclusão, infelizmente, não temos notícia, essa ação foi
alimentada por encontros entre aqueles atores, cujos nomes reproduzimos, por entender
que precisamos reconhecer seus inventores no tempo, em se tratando de um trabalho
sobre a invenção da escola.
Como não conseguirmos falar de todos os Pedros, Marias, Josés, Anas... que
participaram dessa invenção, reproduzimos os nomes lembrados e contidos nos
documentos. Da mesma forma, em se tratando de um projeto popular, portanto,
coletivo, haveria naturalmente de encontrar resistência, externa, como já bastante
apresentado, mas também de „desacordos‟ internos, aos moldes de qualquer processo
que envolva decisões coletivas, portanto, democráticas.
Em seguida, o documento, em sua página 6, inicia com um título: Aos vinte
anos, seguido da seguinte frase: “Nos 10 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia,
ainda menina, Zé di Lucas (Diá, Luiz e Cascão) escreveu sua história em A Peleja das
piabas do Araguaia contra o tubarão besta fera. Agora, a Prelazia está nos 20, com
mais 10 anos de maturidade. Quem vai escrever ou transcrever sua história, em verso,
prosa ou desenho?506
Pelo observado, não ocorreram novos escritos sobre os anos 20, 30 e 40,
pelo menos não tivemos acesso à publicações, e quem sabe nos 50 anos de existência da
luta por uma escola popular e democrática possa ser gerada documentação igualmente
consistente Para concluir, apresentamos um excerto de uma carta contida na página 6
com título e conteúdo:
Cutucando a onça
Carta aberta aos educadores populares de São Félix do Araguaia e
região.
Estamos aqui numa espécie de pequeno „campus avançado do
Araguaia‟ em São Paulo, trabalhando e colhendo material reunindo
documentação, fazendo entrevistas, e conversando com todo mundo
que passa por aqui sobre os assuntos da região.
Há uma questão parada no ar, que tem incomodado várias pessoas
que participam da luta, que é a seguinte: o que resultará de concerto,
desse empreendimento de resgatar a memória das lutas educacionais
na região do Araguaia?
Sabemos que o que todos querem é que esse trabalho desemboque em
alternativas concretas, viáveis, que deem em continuidade a todo o
trabalho desenvolvido em educação na região, desde 1968. Não
506
Ibid.
384
apenas uma continuidade linear, de tarefas, mas um salto de
qualidade. Que prossiga, ocupando espaços mais ou menos
institucionalizados, com um projeto de educação como está sendo
esse de formação de professores.
Não adianta só „formar‟ (fazer um curso, por melhor que ele seja) os
professores e larga-los no eito é preciso dar continuidade política a
esse trabalho. Isso, sentimos aqui de São Paulo, é também a
preocupação de várias pessoas daí, é preocupação nossa. Mesmo não
sendo o objetivo mais específico e imediato de nosso trabalho.
A partir de nossos contatos com as pessoas daí, sentimos que questões
sérias estão sendo colocadas com relação à continuidade. Sentimos
também que as questões ainda estão sendo colocadas no nível
individual, parecendo não terem sido coletivizadas. Mas, afina, qual é
a preocupação central? Já houve momentos de reunião e de
discussão, em que se aprofundaram essas preocupações?
Pode ser que essa questão já tenha sido enfrentada e nós estamos sem
informações suficientes e adequadas. Mas o que queremos é cutucar a
onça, não importando o tamanho da vara.
A conjuntura que vem por aí pode complicar mais. Como dar
continuidade aos trabalhos dos monitores, por exemplo, já que a sua
permanência na região parece ser cada vez mais difícil. Sabemos que
a continuidade da equipe de monitores é vital para a continuação da
luta. Que espaços novos cabem conquistar ou reconquistar?
[...]
Não se pode (achamos) dar ao luxo agora de perder todos esses anos
de trabalho e entregar os frutos ainda não maduros de mão beijada a
interesses antipopulares.
Tem se falado em criar um centro didático-pedagógico, como uma
das estratégias de continuidade do trabalho de formação na área
educacional. Como seria o desenho desse centro? Quais seriam suas
finalidades? Há um espaço para isso ou ainda é só „querência‟?
Estamos (como se vê) cutucando a onça. Mas é preciso pensar em
alguma ou algumas alternativas, de tal sorte que não se perca o
específico da educação geral e escolar (ainda que sob alguma
perspectiva popular) no meio da formação sindical, agrícola, política
etc. a experiência acumulada é grande, um grande conhecimento que
seria uma pena fosse diluído.507
É possível mobilizar as pessoas para enfrentar essa questão? O
importante é criar um espaço para que essa reflexão se dê e tirar com
urgência propostas concretas. No fundo, parece que as grandes
questões são estas:
1) Movimentos sociais e a conjuntura atual e o papel das
associações
2) Formas de interação no campo educacional com o
Estado (governo e Prefeituras)
Como vocês veem, tomamos a liberdade de sugerir questões, mesmo
estando fisicamente distantes de vocês. Aguardamos respostas.
Datam e assinam o documento, Maio de 1990. – CEDI - (Marilia
Pontes Sposito, Fernanda Macruz e Orlando Joia).
507
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia .DIII. 0. 38 p. 7.8 e 8.8.
385
Como apresentado, a
preocupação com a memória sobre o
movimento educacional no Araguaia-Xingu
mato-grossense traduzia preocupações
naquele contexto e daqueles que ainda
estavam por vir. Dessa forma, entendemos
que o projeto INAJÁ foi inspirado e inspirava
cuidados para com uma Escola Popular e
Democrática.
Seguindo seu curso na história, o
INAJÁ também habitou as páginas da Folha
Alvorada por algumas vezes, todavia, uma
em especial traduziu em desenho e letras sua
diversidade, conforme pode ser observado na
Figura 49, assinada por Cerezo Barredo.508
Em 1990, em editorial da Folha
Alvorada, edição de número 154, Pedro
Casaldáliga, ao tempo em que noticiava que
aquele ano tinha sido anunciado pela
UNESCO como sendo ano internacional da
alfabetização, afirmou que no Brasil ainda
havia, aproximadamente, 30 milhões de
analfabetos, razão pela qual a CNBB, entre
25 de abril e 4 de maio, se reuniu, e o tema
central do encontro foi a Educação, que resultou em um manifesto, fruto de estudo que
508
Maximino Cerezo Barredo é um amigo de Pedro Casaldáliga, desde a Espanha de 1960. Trabalharam
juntos na revista Íris, Revista de Testemonio e Esperanza. Trata-se de um sacerdote, missionário
claretiano, nasceu nas Astúrias, em Villa viciosa, na Espanha, em 1932. Estudou pintura e desenho na
Escuela de Bellas Artes de San Carlos, Valência, e na Escuela de Bellas Artes San Francisco, Madrid.
Apresentamos Cerezo Barredo, a partir do trabalho de Valério, por serem as obras de Barredo engajadas e
cujas estampadas em murais pelas igrejas do Araguaia, bem como por várias edições da Folha Alvorada.
Em uma delas, relevante para nosso trabalho, a educação popular e democrática pode ser percebida na
imagem (VALÉRIO, Mairon Escorsi. Entre a cruz e a foice: D. Pedro Casaldáliga e a significação
religiosa do Araguaia. Dissertação (Mestrado em História) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
na área de concentração de História Cultural – Unicamp, Campinas, 2007, p. 174).
386
haveria de correr o país por um período de dois anos, a ser lido e debatido nas
Universidades, famílias, comunidades, entre os professores e alunos, ante os sindicatos
e as autoridades. O objetivo era o de que todos juntos pudessem discuti-lo e aperfeiçoá-
lo. Tratava-se de uma „ação renovada em prol de um programa de alfabetização
„conscientizadora‟ em nosso país. Afirmava ainda o Bispo que a palavrinha
„conscientizadora‟ trazia seu sal: “[...] nem a alfabetização nem educação nenhuma
merecem o nome de educação se não ajudam as pessoas a tomarem consciência de
sua própria vida, da sociedade, da história.509
Continuava a descrever, naquele editorial, um pouco da memória, afirmando
que a prelazia de São Félix do Araguaia tinha uma história de 20 anos empenhados de
muitos modos, na Educação formal ou informal, como se diz. Com as companhas de
conscientização, na Comunidade da Igreja, na pastoral social, na CPT, na formação
política, nos sindicatos, com aquelas primeiras campanhas de Alfabetização, segundo o
método Paulo Freire, que já nos custaram muita perseguição:
Nas escolas do sertão e dos patrimônios. Com aquele ginásio a beira do
Rio Araguaia, que formou a primeira turma da região. Com muitos
agentes de pastoral e outros companheiros e companheiras da
Caminhada, que vieram trabalhar na Educação, aliciados ou convidados
pela Prelazia. O mesmo projeto INAJÁ, que forma professores da
região em período de férias e está sendo reconhecido no país como
projeto pioneiro, também recebeu bastante ajuda da Prelazia para sua
organização e funcionamento.
Agora, por ocasião do nosso levantamento pastoral e estimulados por
esse apelo nacional a CNBB, vamos implementar, com todo
entusiasmo, a PASTORAL DA EDUCAÇÃO, entre nós. Os pais, os
alunos, os professores, os agentes de pastoral e enfrentantess, as
comunidades todas, estão convidados para essa tarefa tão urgente e
cristã. A educação é necessidade de todos, serviço de todos, benefício
para todos. Crianças e adultos. Sempre é tempo de educar e de se
educar510
.
Camargo afirmou em sua narrativa que, no início do curso INAJA;
[...] ao iniciar o curso, percebemos por parte dos monitores, em maior
ou menor grau, um misto de perplexidade e mesmo discordância
509
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Março de 1990 A16.9.01 -
p.2-8. Sem grifo no original. (imagem A16.9.03 p. 2-8) 510
Ibid.
387
quanto à concepção de história por nós veiculada. Uma monitora de
São Félix do Araguaia chegou a dizer: „mas isto não é história‟.511
Tal constatação possibilitou confirmar a hipótese de que, embora os
professores não tivessem passado por formação em nível médio, opinavam sobre a
história „oficial‟ e a que deveria ser ensinada, e, como já mencionamos, a fonte seria a
Folha Alvorada e não, como disse Camargo:
Acredito que para os participantes do Projeto, estava claro apenas a
História que „não queriam‟. Isto porque, em um curso que antecedeu o
Inajá, consideraram imprópria a experiência com a área de Ciências
Humanas por esta ter se
desenvolvido de forma linear, factual, assentada numa organização de
conteúdos presente na denominada história oficial e divulgada através
de livros didáticos.512
Na edição da Folha Alvorada dos meses de novembro e dezembro de 1990,
foi veiculada notícia referente à formatura dos alunos matriculados no projeto INAJÁ,
que aconteceu na semana do dia 20 de outubro daquele mesmo ano. Tudo começou
assim dizia a matéria:
Em 1984 os professores Luiz e Eunice de Paula, da Escola Indígena
Tapirapé, entraram em contado com a UNICAMP, que passou a
assessorar o trabalho educacional ali desenvolvido na aldeia. A partir
das contribuições desses assessores, montou-se um projeto de
amplitude regional chamado „novas perspectivas do ensino no
contexto rural, urbano e indígena do Vale do Araguaia. Esse projeto
teve 5 etapas intensivas, de julho de 1985 até agosto de 1987. Já em
1988 começou o projeto INAJÁ para capacitar os professores rurais e
indígenas a nível de 2º grau.
Assessorado pelos professores da UNICAMP, o curso teve 6 etapas de
um mês. Inovador na metodologia, o projeto buscava „aprender a
partir da própria experiência‟. Daí o estudo da flora, fauna, geografia,
história, alimentação, saúde, costumes, cultura, lutas da região. Todos
os dados levantados pelos alunos.513
A matéria também noticiava o PROJETO INAJA como algo de novo na
Educação. Afirmava que no dia 20 de outubro de 1990, na cidade de São Félix do
511
CAMARGO. Dulce P. Mundos Entrecruzados: formação de professores leigos no Médio Araguaia.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação. Unicamp, 1992. Campinas, SP: Alínea,
1997.p. 100. 512
Ibid. 513
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Nov./Dez. de 1990. A 16.9.
07, p. 5-8.
388
Araguaia, 120 professores dos municípios de Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte,
São Félix e Ribeirão-Cascalheira, além de alguns professores indígenas, da aldeia
Tapirapé, receberam diploma de magistério a nível de 2º grau:
Numa formatura diferente, por que original e diferente foi o processo
de sua formação. Eram os alunos do INAJÁ, Como esta palmeira da
região, teimosa e fecunda, eles enfrentaram durante 3 anos uma luta
dura mas venceram.514
Aquela semana, segundo informa a Folha Alvorada, foi precedida por
momentos de debate assessorados pelo professor Rubem Alves. Foram montadas várias
exposições onde os alunos mostraram para a comunidade o fruto do seu estudo e, no
final, surgiram várias propostas para dar sequência ao trabalho, já que, a maioria dos
alunos queria continuar seu processo de formação.
Concretamente, a Fundação do Ensino Superior de Cáceres-MT se mostrou
disposta a abrir um núcleo na região do Médio Araguaia, visando oferecer cursos de
extensão universitária, biblioteca itinerante e licenciaturas parceladas. Continuava a
matéria:
Foi formada uma comissão integrada por pessoas ligadas ao projeto
INAJÁ e à área de educação, além dos representantes dos poderes
executivo e legislativo dos municípios interessados. Essa comissão
seria responsável por elaborar o cronograma das atividades, definir
local onde o projeto teria sua sede e encaminhar as propostas vindas
dos alunos.515
Em 1991, a Folha Alvorada anunciou, em sua edição número 160, a
preocupação em relação ao curso superior na região, pois era uma reivindicação dos
alunos que concluíram o ensino médio continuar seus estudos sem precisar ir para os
grandes centros, pois era uma minoria que conseguia acesso aos mesmos. Afirmou a
matéria que havia sido criada comissão representativa para encaminhar os trabalhos e,
em Cáceres, nos dias 12 e 13 de dezembro, com a presença de 15 ‘polos’
educacionais do Estado, discutiu-se a formação de uma política de ensino superior,
dentre outras decisões, ficou definido que um dos cinco novos núcleos, um seria no
Araguaia.516
514
Ibid., p. 5-8 515
Ibid., 516
Alvorada (1991), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1991. A 16.10. 01, p. 5-8.
Sem destaque no original.
389
Logo no início do ano seguinte, na edição de número 166 da Folha
Alvorada, em capa emblemática, colocava em questão o V Centenário de Evangelização
na América Latina (1492-1992), a qual estampava, em primeiro plano, um jesuíta
empunhando a cruz com a mão esquerda ao alto, e segurava uma espada na mão direita.
No segundo plano, uma família indígena, composta por um homem, uma mulher e uma
criança, em posição submissa, tendo ao longe uma nau ancorada no porto, e, ao lado do
quadro, a frase 500 Anos De Que? A beleza da obra de Cerezo Barredo colocava em
dúvida as intenções daquela igreja opressora, que há muito já era denunciada pela
teologia da libertação, em especial por Pedro Casaldáliga, e em pinceladas cirúrgicas de
Cerezo Barredo. Esta edição da Folha Alvorada é bastante rica por abordar a questão
indígena, afirmando não ter havido qualquer descobrimento, mas sim, um
encobrimento. Também anuncia que durante o ano seria publicada uma edição dedicada
ao tema.
Todavia, para nosso trabalho, a principal informação foi encontrada na
página 4, a qual anunciava a Universidade de Férias, tão esperada, porém, em meio ao
descontentamento:
Em todo o país a Educação é um verdadeiro problema quando não é
um desastre total. A própria CNBB, nestes três últimos anos, vem se
preocupando diretamente com a Educação, em suas assembleias
gerais.
A educação e a saúde, aliás, quando ambas deveriam ser a primeira
preocupação de uma política e de uma administração que mereçam o
nome de humanas.
No Estado de Mato Grosso, particularmente, a Educação anda muito
mal mesmo. E as autoridades tem, nesta calamidade, uma
responsabilidade maior. Os professores não são valorizados e não é
respeitado o direito dos pais, dos mestres e dos alunos. Nessas todas,
chega a São Félix a oportunidade singular de uma UNIVERSIDADE
DE FÉRIAS, com as Faculdades de Letras, Matemática e Ciência da
Educação. Uma extensão universitária da Fundação de Ensino
Superior de Cáceres – MT. E a prefeitura de São Félix despreza a
oferta e se nega a acolher esse instrumento de progresso verdadeiro,
bem mais importante para todos que a luz elétrica na praia dos
turistas. Ainda bem que a prefeitura de Luciara salvou, pra Luciara e
para toda a região, a Universidade de férias.
O comentário fica por conta de todas as pessoas sensatas de São Félix
e de fora de São Félix Também. A Universidade começa a funcionar,
em Luciara, com o vestibular, marcado para os dias 9, 10 e 11 de
fevereiro.517
517
Alvorada (1992), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1992. A 16.11. 01, p. 4-8.
390
Ao observarmos o sentimento que conduziu a escrita da matéria, percebe-se
uma satisfação pela conquista coletiva em relação à oferta de cursos superiores pela
Universidade do Estado de Mato Grosso, a qual descrevemos um pouco sobre a
trajetória pela qual envolveu sentimentos, vontades, sonhos e principalmente utopias,
cujo projeto se concretizava naquele momento, a Universidade „instrumento de
progresso verdadeiro‟ no Araguaia-Xingu, a qual se tornaria a melhor e uma das mais
importantes conquistas do povo da região, pois, a partir daquela data inaugurava-se uma
nova página na história da educação popular e democrática, pois se tratava de uma
universidade pública, início de uma história de sucesso que haverão de ser motivo de
muitas outras pesquisas518
.
Porém, foi verificada também uma insatisfação, pois, embora São Félix do
Araguaia tenha sido palco de contendas pela educação, assim como Santa Terezinha,
Luciara foi quem abriu as portas para sediar os primeiros cursos. Todavia, nem por isso
haveriam de „criar caso‟, pois a escola popular e democrática no Araguaia-Xingu se
fazia em rede, numa perspectiva de região, cabendo avaliação dos fatos às pessoas
sensatas, conforme concluiu a matéria,
Aproveitamos o ensejo para concluirmos o tópico, na esperança de ter
conseguido montar um quadro suficientemente capaz de explicar onde, como e por
quem foi concebida, edificada e praticada a escola popular e democrática, fruto das lutas
pela memória, no Araguaia-Xingu mato-grossense. Porém, trata-se de uma perspectiva
que não acaba em si, pois a escola é uma invenção prenhe de necessidades e um
contínuo processo de reinvenção.
518
A Universidade continua a ofertar cursos nas Parceladas, nos quais tive o prazer de contribuir com
algumas disciplinas, em Confresa e Luciara, junto aos cursos de Ciências Sociais, com as disciplinas de
Introdução à Filosofia e Antropologia Camponesa, em 2016. Em Luciara, com a disciplina Tecnologia na
Educação (2017) e em Confresa, Pedagogia 2ª Licenciatura, com a disciplina de Filosofia da Educação. Já
em Vila Rica, no curso de Licenciatura da computação, em 2011 e 2014, com as disciplinas Tecnologias
Educacionais, onde pude orientar, co-orientar e participar de inúmeros trabalhos de final de curso. Porém,
a maior experiência está ligada ao fato de ter convivido com a forma como são organizadas as etapas
intensivas (férias), onde a maioria dos acadêmicos se desloca para a cidade polo e ali permanece durante
o período de aulas (aproximadamente 45 dias), nos meses de férias dos períodos escolares e nas etapas
intermediárias. Ali, organizam coletivamente o espaço físico para alojamento, alimentação – cada semana
uma pessoa é escolhida para a gestão do recurso arrecadado para compra dos produtos necessários para
garantir o alimento de todos, bem como o pagamento das pessoas contratadas para aquele trabalho.
Também os gestores organizam grupos de estudo e monitoria (Focco ou Pibid), procurando incentivar e
„cuidar‟ para que não haja abandono nos cursos. Essa estratégia tem se mostrado eficiente, pois a
qualidade dos cursos pode ser mensurada no grande índice de aprovação no último concurso da Secretaria
de Estado de Educação, bem como nos vários artigos publicados pelos acadêmicos.
391
Assim, na busca de respostas para esse movimento de re-fazer percursos,
trataremos a seguir dos desafios que cercam os professores de história, que história
ensinar, como ensinar e que perfil se faz necessário para mediar à produção de
conhecimento no século XXI.
4.5 – O saber-fazer do professor de história no presente e no futuro
Partiremos sempre do nosso „lugar‟ e de nossa „memória‟. Cremos
que radicar-se na própria realidade cotidiana é o melhor modo de se
lançar a um horizonte mundial e a uma neo-revolução histórica. O
lugar e a memória bem vividos, nutrem as raízes e ensinam.519
Os princípios da educação popular e democrática esteve presente na
formação dos acadêmicos dos cursos de licenciaturas plenas parceladas em história,
ministradas em São Félix do Araguaia, no início do século XXI, permitindo afirmar a
continuidade do projeto de escola popular e democrática principiado na década de 1970
no Araguaia-Xingu mato-grossense, pois, como expressa a epígrafe, partir do lugar e da
memória e radicar no cotidiano é instrumento para, no século XXI, caminhar em busca
de uma revolução histórica em tempos de neoliberalismo.
Apresentado o contexto e as problemáticas no tópico anterior, objetivamos
no presente, por meio de fonte primária, aventar algumas respostas, bem como
identificar as representações sociais sobre terminologias relacionadas ao conhecimento
histórico (saber) dos professores que atuam nessa disciplina, analisando suas
percepções sobre as palavras-conceitos entendendo-os como „temas geradores‟ usuais
do cotidiano da sala de aula.
Partimos do pressuposto de que, em sendo palavras bastante „comuns‟ do
cotidiano – sala de aula – a exceção da palavra „tubarão‟, pois poderia provocar
dubiedade entre o animal tubarão e o fazendeiro, por ter sido uma expressão própria de
uso de um grupo social crítico ao processo de latifundização das terras no Brasil
Central, entre as décadas de 1960 e 1980, as demais são bem conhecidas e utilizadas
diariamente pelos professores de história em sala de aula.
519
Mensagem de abertura extraída do convite de formatura dos concluintes da turma de Licenciaturas
Plenas Parceladas em História, pela UNEMAT, no ano de 2002. Arquivo da Prelazia de São Félix do
Araguaia. A 28.13.04 p. 4-8.
392
Entendendo que dos processos de mediação e aprendizagem (fazer) na
disciplina de história emanam conhecimentos acerca de conceitos fundamentais, bem
como o domínio sobre eles no tempo, imaginávamos poder, de certa forma, perceber
alguma equivalência nas respostas. Igualmente, tínhamos por hipótese que as inserções
dessas palavras no formulário de pesquisa contribuiriam para que os professores
pudessem, ao tempo em que respondiam, refletir sobre os processos de ocupação e luta
pela terra no Araguaia-Xingu mato-grossense, especialmente embasados na memória
histórica.
A partir do formulário, traçamos um perfil mínimo dos colaboradores, na
perspectiva de entendê-los participantes de um processo de transformação dos meios
tecnológicos sociais digitais, cujo processo tem, como observado na justificativa,
transformado as relações sociais por meio comunicacional, os quais exigiam novos
processos de mediação, portanto, novas metodologias no fazer do professor de história,
no presente e no futuro.
Todavia, para entender como o professor se colocou diante deste desafio,
procuramos ouvi-lo por meio de questionário, respondido por 19 colaboradores de 4
cidades, São Félix do Araguaia, Ribeirão Cascalheira, Confresa e Santa Terezinha,
sendo a maior parte desta última. Observo que as cidades estão em um raio de 430 km
de distância, se considerarmos os extremos, Ribeirão Cascalheira e Santa Terezinha,
porém, todas pertencente à prelazia de São Félix do Araguaia, procurando não fugir do
recorte espacial da pesquisa que resultou na tese.
Assim, apresentamos um perfil mínimo, revelando um pouco sobre o grupo
de colaboradores:
Gráfico 1: Colaboradores da pesquisa
por sexo
Gráfico 2: Vínculo
Fonte: Elaborado pelo autor
393
Percebe-se a prevalência do gênero feminino, porém, numa amostragem
maior o número chega a quase 2/3. Quanto à situação contratual, é possível dizer que o
número de professores concursados é pequeno em relação aos contratados
temporariamente (interinos), o que fragiliza os projetos das escolas, em razão de maior
rotatividade entre os profissionais, pois, em sendo efetivos, sua probabilidade de
permanência é maior, sem contar o aspecto da estabilidade profissional.
Gráfico 3: Tempo em que trabalha em
educação
Gráfico 4: Tempo em que trabalha
com ensino de história
Fonte: Elaborado pelo autor
Já em relação ao tempo em que o grupo de professores trabalha em
educação, 65% o fazem há mais de 10 anos e, em específico na disciplina história, 50%
deles trabalham há mais 10 anos.
Quanto à questão da formação, dos 19 colaboradores, somente 4 eram
formados em história, portanto, numa proporção de, aproximadamente, 20%. Porém,
quando da seleção para o doutorado, fizemos uma pesquisa em âmbito estadual com
todos os professores que atuavam na disciplina de história e por entender que esse dado
se revela importante para nosso trabalho, especialmente em relação à problemática de
não se ensinar a história de Mato Grosso, por razões bastante conhecidas, primeiro, por
não termos em ambas as redes, estadual e municipal, a adoção de didáticos de história
de Mato Grosso. Segundo dados extraídos do sistema Bi da SEDUC, em outubro de
2014, dos 2.856 (dois mil oitocentos e cinquenta e seis) professores atuantes na
disciplina história, somente 1.552 (mil quinhentos e cinquenta e dois), o que equivale a
(54%), possuem formação específica na área, 1.188 (41%) dos que têm formação em
nível superior em áreas distintas de conhecimento e 136 (4%) de formação limitada,
com nível de formação fundamental e/ou médio.
394
Se consideradas as diferenças de público entre as redes municipal e
estadual, a estadual atende, em sua grande maioria, a alunos do ensino fundamental –
anos finais e ensino médio regular e EJA – Educação de Jovens e Adultos. Já na rede
municipal o público maior é atendido na educação infantil e anos iniciais do ensino
fundamental, onde a organização por uni docência é majoritária, portanto, o número de
professores por área de conhecimento apresenta menor demanda. Assim, o problema da
formação inicial faz-se presente, pois há uma demanda reprimida. Igualmente, a
formação continuada atenda a dimensão do conhecimento histórico aos professores que
atuam na disciplina em sala de aula. Em seguida, haveremos de apresentar o ponto
nevrálgico da pesquisa.
O formulário foi elaborado com 20 (vinte) questões, dentre as quais as de
múltipla escolha, a exemplo daquelas em que o colaborador tinha que justificar a
resposta, e, por fim, uma descritiva, na qual o professor deveria dissertar sobre a escola
de 2030, a escola do futuro. A tabulação e análise dos dados permitiu identificar as
representações sociais: 18 objetivas e 2 abertas, porém, das 18 objetivas, nas de número
13. 14 15 e 18 o colaborador era provocado a justificar a escolha.
Ao construir as questões, tivemos como parâmetro três objetivos: o
primeiro, entender a história ensinada nas escolas de educação básica, mergulhando na
representação dos professores. Para tanto, usamos a técnica de livre associação.
Selecionamos 34 palavras (expressão indutora), às quais deveriam, sob o olhar do
professor de história, acrescentar para cada uma delas 3 palavras que lhe viesse à
mente520
. O resultado passou por uma organização do grupo de palavras dispostas de
forma decrescente, em seguida tecemos uma análise da organização das expressões de
forma tal conseguimos aproximar do sentido coletivo (representação) dado à palavra
geradora inicial.
O segundo, compreender a percepção dos professores em relação à
tecnologia educacional e, por fim, o terceiro objetivo foi o de entender como eles
imaginam a escola do futuro.
520
As palavras não foram extraídas aleatórias de nenhum dicionário, a escolha partiu das expressões mais
usadas nas matérias da Folha Alvorada e, por conseguinte, ao longo da narrativa que ora compartilhamos.
Nosso objetivo era mensurar, como o professor de história concebe as palavras „conceitos‟ e as utiliza em
sala de aula, que, muitas vezes o fazem espontaneamente.
395
Nossas reflexões partiram da necessidade em compreensão de como se
formam e como é mediado o conhecimento cotidiano no ensino de história em sala-de-
aula, portanto, o que as palavras são articuladas pelo professor quando faz mediação do
conhecimento histórico, para tanto, analisamos a partir das representações sociais.
O conceito estudado pela teoria das representações sociais pauta-se em um
conhecimento elaborado pelos sujeitos que ajuda a apreender os acontecimentos da vida
cotidiana, a dominar o ambiente, a facilitar a comunicação de fatos e ideias, orientando
e justificando os comportamentos. Portanto, um conhecimento socialmente elaborado
serve de modelo de pensamento que os sujeitos recebem e transmitem através da
tradição, da educação, assim, como da experiência pessoal de cada ser.521
Dessa forma, optar por esse caminho, de certa forma, nos possibilitaria
percorrer uma trilha que conduziria ao entendimento sobre o que ensina o professor de
história, quando ensina história na escola de educação básica, deixando transparecer seu
fazer cotidiano, mas também apreender sua percepção e representação sobre o aluno, no
que concerne à interação e uso das tecnologias na escola, pois:
Pessoas e grupos criam representações no decurso da comunicação e
da cooperação. Representações, obviamente, não são criadas por um
indivíduo isoladamente. Uma vez criadas, contudo, elas adquirem uma
vida própria, circulam, se encontram se atraem e se repelem e dão
oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas
representações morrem.522
Assim, ao apresentarmos as palavras, tomamos como ponto de partida o
conhecimento elaborado pelo sujeito professor, decorrente de seu processo de formação
ao longo do tempo, cujo conhecimento é mediado em sala-de-aula num processo quase
sempre „construtivo-competitivo-conflitivo‟, entre aquilo que ele concebe enquanto
saber oriundo de suas vivências sociais, dente elas a acadêmica, e aquele apresentado
pelos livros didáticos, numa oscilação entre ciência e senso comum.
A escolha desta teoria para analisar de que maneira as mudanças sociais
vividas no cotidiano da sala de aula, bem como o impacto que as tecnologias digitais
521
ALVES-MAZZOTTI. Representações Sociais: desenvolvimentos atuais e aplicações à educação. In:
CANDAU, V. M.(Org.). Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender, Rio de Janeiro, DP&A,
2000, p. 57-73. 522
MOSCOVICI, S. Representações Sociais: Investigação em Psicologia Social. 5. Ed. Petrópolis-RJ:
Vozes, 2007, p. 41.
396
sociais têm influenciado no pensar e fazer a escola de educação básica do século XXI,
se justificam por entender que, sob a lente da teoria conseguiremos perceber de que
forma o professor pensa, age, atualiza, transforma e é transformado pela sociedade, num
determinado recorte temporal e social. Contribuirá ainda para obtermos respostas em
relação ao objeto principal de nosso trabalho, a invenção da escola no Araguaia-Xingu
mato-grossense.
Antecipo dizer que não haveremos de mergulhar na teoria sobre a
representação social, até porque buscaremos, a partir do pensamento dos professores de
história em relação à história ensinada, analisar como pensam-praticam a arte de ensinar
os conceitos históricos e, em seguida, como veem a tecnologia, e por fim faremos
análise das respostas, tomando por parâmetro o primeiro princípio da educação popular
apresentado no presente capítulo, tópico 4.2.5:
1) O primeiro princípio afirma que a prática social é a fonte de todo conhecimento;
2) A teorização sobre a prática;
3) A prática social é o critério da verdade e o fim último de todo o processo de
conhecimento.
Dessa forma, apresentamos as expressões indutoras e as palavras associadas,
organizadas de A a Z, e, como dissemos, as sequenciamos de acordo com o número de
vezes expressas pelo coletivo. Após organização da sequência de palavras associadas,
foi analisado o resultado, considerando a produção das reflexões contidas na narrativa.
Observo que o objetivo não foi o de fazer um estudo comparativo entre aquilo que o
professor pensa/expressa em sala de aula com os significados, conforme dicionário
histórico, mas sim entender a representação das palavras (expressões) indutoras, por
meio das associadas.
Ao transcrever as palavras, procuramos fazê-lo de tal forma que não
houvesse alteração no sentido, respeitando, portanto, a grafia. Também, em algumas
palavras-chave as relacionamos com passagens da narrativa, cujo propósito foi o de
visualizar a memória dos colaboradores sobre os acontecimentos em torno da educação
popular e democrática no Araguaia-Xingu mato-grossense. Tínhamos por hipótese
inicial que os colaboradores, atuando numa região de conflitos e luta pela terra, cujos
processos foram objeto de farta literatura, relacionando as palavras com processos
397
históricos local. Assim, revelamos as 34 palavras indutoras, palavras associadas e
respectiva análise.
Alienação - na concepção do coletivo e extraída a partir das respostas, alienação é a
forma pela qual a mídia (4x), em especial a TV Globo (3x), conduz à obediência, (1x)
induzindo (1x) as pessoas por meio de ideologias (1x).
Observa-se que, conforme a representação do coletivo, a mídia é o meio
pelo qual se disseminam formas de alienação, especialmente através da Rede Globo,
levando à obediência e induzindo ideologias.
Aluno - está ligado ao ato de estudar (3x) às aprendizagens (3x) sujeito (2x) potencial
(2x) com capacidade (2x) de buscar conhecimento (2x) futuro (2x) para transformação
(1x) política (1x).
O aluno, para o coletivo, liga-se ao ato de estudar e em condição de
aprendizagem, sendo este um sujeito com potencial e capacidade de buscar novos
conhecimentos para a transformação do futuro. Ao observar esta sequência, é possível
afirmar que está consolidado, na representação do coletivo de professores de história,
que o ato de estudar é o inaugural da aprendizagem e que ele é potencializador,
portanto, confere aqui a necessidade em desenvolver estratégias para que esse potencial
se torne aprendizagem real.
Analfabeto - é uma pessoa que não teve a oportunidade (4x) de estudar (1x), uma
negação (4x) por falta de política(o) (3x) que assegure o direito (2x) de estudar (1x).
Já sobre a pessoa analfabeta, parece-nos planificada a representação de que
historicamente o analfabetismo está ligado à oportunidade que não foi dada às pessoas
para que pudessem estudar, uma negação ao direito e ausência de políticas públicas
capazes de superar essa mazela social.
Aprendizagem - conhecimento (5x); experiência (3x); direito (2x); métodos (2x);
mediação (1x); oportunidade (1x); transformação (1x); busca (1x); dever (1x); mediador
(1x); ensinar (1x); competência (1x); disposição (1x).
Em relação à aprendizagem, trata-se de um processo em que o sujeito segue
um caminho que deve leva-lo ao conhecimento, que se dará pela experiência, sendo esse
um direito inalienável ao acesso e aos métodos de mediação que o aprendiz deve utilizar
398
para a transformação da realidade, sendo este um dever do mediador, que deve fazê-lo
com competência e disposição. Parece-nos que os professores têm consciência de que a
aprendizagem é o único caminho que leva ao conhecimento.
Comunidade - grupo (5x); união (4x); cultura (3x); povo (2x); organizado (2x);
compromisso (2x); participação (1x); lida (1x); coletividade (1x) ; sabedoria (1x).
A comunidade, para o coletivo, se dá pela formação de um grupo por meio
da união de uma cultura disseminada, ou não, pelo povo, que se organiza imbuído de
um compromisso que resulta na participação desse grupo na lida em coletividade, trata-
se de uma sabedoria. Pacificada está a ideia de que comunidade é sinônimo de
organização de grupos. Assim, aproveitamos para fazer uma pergunta, a qual
responderemos ao final deste tópico: os professores de história, de posse desse
conhecimento, trabalham em equipe com os demais colegas de profissão? Se há
consciência de que, para haver união é necessário o trabalho em grupo, por que não se
alimenta essa atitude proativa em relação aos problemas do cotidiano escolar?
Estaríamos diante de falta de compromisso?
Autonomia - poder (4x); segurança (4x); liberdade (3x); independência (3x);
responsabilidade (2x); autoridade (2x); compromisso (1x);
Pode-se extrair do coletivo que autonomia significa poder, desde que haja
segurança e que este possa agir em liberdade, independência e responsabilidade.
Observa-se ainda que autonomia também é sinônimo de autoridade, compromisso.
Comunista - política (4x); igualdade (4x); Cuba (2x); China (2x); comunidade (1x);
coletividade (1x); partilha (1x); utopia (1x); bem comum (1x) ideologia (1x);
compromisso (1x); vergonha (1); sou contra (1); história (1x) Karl Marx (1x); Che
Guevara (1x).
Observa-se que, na representação do coletivo, o termo comunista está ligado
à política, onde prevalece a igualdade, podendo observar que o exemplo que têm em
mente são Cuba e China. Um retorno à narrativa é importante para fortalecer alguns
argumentos nela propostos, devendo-se lembrar que, ao usar a expressão comunista, o
governo brasileiro estava, na década de 1970, silenciando os povos, e „limpando‟ a
região, lançando na grande mídia a atuação de guerrilheiros e comunistas no Araguaia
399
mato-grossense, cujas ações repercutiram em muitos acontecimentos no Araguaia, a
exemplo do que aconteceu com o agente pastoral e professor Juarez Daurell, no
episódio da inauguração da igreja em memória da morte do Padre João Bosco, em 1976,
conforme tópico 3.8.2. Os policiais ali espalhados ameaçaram as famílias dizendo que
os líderes, dentre eles o professor, eram guerrilheiros e comunistas e que recebiam
dinheiro de Moscou.
Conhecimento - busca (4x); aprendizagens (4x); estudos (2x); compreensão (1x);
cultura (2x); gradativa (1x); valores (1x); saber (1x); empírico (1x); descoberta (1x);
mundo (1x); liberdade (1x).
Para o coletivo, o conhecimento representa busca, e, como a resposta foi
extraída de um grupo de educadores, liga-se à aprendizagem, que se dá por meio do
estudo, da compreensão gradativa da cultura e parte dos saberes empíricos. O
conhecimento também está ligado ao gosto pela descoberta de ver o mundo em
liberdade.
Democracia - liberdade (8x); direitos (6x); expressão (5x); igualdade (1x); soberania
(1x); povo (2x); voto (1x); consequência de um regime político (1x).
Para o coletivo, democracia é sinônimo de liberdade, de direito à expressão
e à igualdade. Democracia acontece quando há participação do povo e se alcança por
meio do voto, trata-se, portanto, de um regime político. Porém, há de se problematizar,
mas, parece-nos que há consenso de que democracia é o direito à liberdade. Porém,
parece-nos que, ao citarem as palavras associadas, distanciaram, de certa forma, do
significado a que esta deve ter, qual seja, o de sistema de governo, de poder do povo.
Assim, haveremos de intensificar a reificação da expressão, pois, como vimos ao longo
da narrativa, a luta em torno das causas das famílias se confundia com a defesa da
democracia, em especial pelo direito ao voto, por meio da alfabetização.
No tópico 2.2 apresentamos um sentido de democracia como consequência
de um processo:
Um povo educado saberia combater as raízes da violência, da
injustiça e construiria uma verdadeira democracia.523
523
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P 2.3.
400
Ao tomar por empréstimo, pela segunda vez, essa citação, publicada na
Folha Alvorada de 1970, reafirmamos que não haverá democracia se ela não for
primeiramente praticada no contexto escolar, pois, uma mente autoritária jamais agirá
democraticamente.
Disciplina - regras (2x); necessária (2x); organização (1x); processos educacionais (2x);
escola (2x); igreja (2x); família (2x); responsável (2x); organização (1x); conhecimento
(1x); coerência (1x); pontualidade (1x); retidão (1x).
Para o coletivo, a disciplina se dá por meio de regras, sendo elas necessárias
para a organização dos processos educativos, na escola, na igreja, na família e que, de
forma responsável, possibilitará a organização dos trabalhos em busca pelo
conhecimento, requerendo pontualidade e retidão. Assim, é possível perceber que a
disciplina aqui é vista enquanto meio de se organizar um processo para alcance de um
determinado fim. Dessa forma, pode-se inferir que os processos educacionais,
independente da presença ou ausência das tecnologias educacionais, prescindem da
disciplina.
Educação - conhecimento (3x); transformação (3x); futuro (3x); aprendizagem (2x);
escola (2x); família (1x); cidadania (1x); cidadão (1x); participação (1x); política (1x);
alienado (1x).
Ao apresentar as palavras associadas à educação, foi possível observar que
ela é um meio pelo qual se alcança o conhecimento, o qual visa a transformação da
realidade e preparação para o futuro. Esse movimento é possível desde que haja
aprendizagem na escola e na família. Educação também é garantia de cidadania, meio
pelo qual se exerce o papel de cidadão com condições de participar na política, fugindo
da alienação.
Vale a pena retomar aqui a definição do que significava educação, extraída
no encontro de professores de 1984:
[...] estava longe de ser uma educação boa, pois era marcada por
graves falhas; b) uma educação que oprimia e limitava o aluno em sua
criatividade; c) não ajudava o aluno a compreender a realidade e não
401
formava consciência crítica; d) ensinava coisas que não tinha nada a
ver com a vida do aluno e sem aplicação no dia a dia.524
A citação desse texto foi apresentada no tópico 3.3, do terceiro capítulo. A
pergunta é: tomando a representação sobre a educação, os atuais professores de história
apresentam soluções para os problemas anunciados naquele encontro de 1984, último
ano da ditadura militar no Brasil?
Enfrentantes - coragem (4x); líder (4x); lutador (3x); militante (1x); defender (1x);
determinação (1x); sociedade (1x); diálogo (1x); ideologia (1x); solução (1x);
caminhada (1x); vitória (1x); professor (1x).
Enfrentantes, para o grupo, constitui uma categoria conhecida na região,
portanto, traduz a memória histórica em torno desse „agente‟ ser enfrentantes,
personagem ligado a um ato de coragem e liderança, um lutador, um militante que se
engaja nas causas em defesa da sociedade, estabelecendo diálogos e munido de
ideologia na busca pela vitória. Associa o enfrentantes ao professor. Embora somente
uma pessoa tenha relacionado o professor com a expressão indutora, de certa forma isso
é reafirmado em nossos argumentos ao longo da tese, como o de que os professores
assumem a função de enfrentantes, o que poderia ser feito por qualquer um, porém, por
razões já expressas na narrativa, o professor cumpriu papel fundamental na organização
da resistência e preparação das famílias „pobres‟ contra os opressores.
Escola - Conhecimento (3x); educação (3x); aprendizagem (2x); instituição (1x);
sabedoria (1x); instrumento (1x); oportunidade (1x); espaço (2x); desenvolvimento (1x).
Em relação à escola, a representação do coletivo ligou-a ao conhecimento, à
educação e à aprendizagem. Associou também com a figura do professor a sabedoria,
enquanto instrumento que oportuniza espaços para o desenvolvimento. Compete aqui,
igualmente, afirmar que a escola convoca para si, especialmente no Araguaia-Xingu
mato-grossense, a função de disseminadora de conhecimento, que, como vimos, vai
além do ato de alfabetizar.
Retomo agora a definição de escola que compartilhamos no tópico 1.9:
escola é uma instituição temporal marcada pelo conteúdo e forma, [...] porém, não basta
524
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A 16.3.07 P.13.14
402
conhecer seu projeto, mas entende-la no interior de um processo de permanente
transformação [...] escola é um invenção social, e ela também se inventa, competindo ao
professor de história perceber que, ao ensinar, ele participa do processo social maior,
contribuindo para a manutenção da escola opressora, ou para sua transformação. No
tópico 1.10, afirmamos que escola é um conceito, um conjunto de significados e
significantes, pois ela, naturalizada, requer o olhar do historiador com lentes que o
possibilite enxergar seus múltiplos significados. Ela é uma invenção em litígio.
Família - base (5x); união (4x); valores (2x); amor (3x); apoio (2x); respeito (2x);
socialização (2x); segurança (2x); lar (1x); matrimónio (1x); identidade (1x); construção
(1x); instituição (1x).
As palavras associadas à expressão indutora de família possibilita-nos
confirmar a „convenção‟ feita em torno da representação da família, afirmando ser a
base da sociedade, visto que pautada na união entre seus membros e em valores de
amor, respeito e socialização. É a família que possibilita a „sensação‟ de segurança em
torno de um lar. Igualmente, é possível afirmar que permanece o sentimento de que a
família se constitui por meio do matrimônio, modelo „idealizado‟, porém, é também no
convívio intrafamiliar, especialmente entre aquelas pessoas em condições de fragilidade
devido aos atos de violência. Há que denunciar, não somente o ato de violência
intrafamiliar, mas as razões que antecedem ao ato, muitas vezes externas à „redoma‟ que
representa a família, pois, ao longo da narrativa pudemos observar que, por falta de
oportunidade, milhares de „peões‟, em busca de trabalho foram submetidos às mais
perversas formas de exploração, de dor e até de morte. Assim, fazer uso das
informações e reflexões propostas na narrativa é mais uma forma de „fortalecer‟ o
debate sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos. Além disso,
haveremos de fortalecer a instituição, ampliando o debate sobre a importância de sua
participação em torno da escola de educação básica.
Guerrilheiro - luta (4x); batalha (3x); combate (2x); Araguaia (2x); Che Guevara (3x);
Dilma (2x); Fidel Castro (2x); enfrentar (1x); coragem (2x); conquista (1x);
transformação (1x); mudança (1x) resistência.
A representação extraída das palavras associadas permite afirmar que na
expressão indutora proposta, guerrilheiro é símbolo de luta, de batalha e combate.
403
Percebemos a memória agindo sobre as respostas, ao citar o Araguaia, pois, a região,
conforme apresentado na narrativa, embora não tivesse naquele solo derramado sangue
dos „guerrilheiros‟ do Araguaia, sofreram igualmente outros revezes, incluindo centenas
de mortes. Todavia, num sentido diferente de uma luta armada e o combate corpo-a-
corpo, mas pela mesma causa muitos no Araguaia-Xingu mato-grossense utilizaram
táticas de guerrilha para não ser „tombados‟ pelos opressores. Dentre as táticas e formas
de resistência, como vimos ao longo da narrativa, está a invenção da escola.
Observa ainda que, associada a guerrilheiro estão as figuras do médico
argentino e defensor da causa do pobres, assassinado na Bolívia, Che Guevara, ao ex-
presidente da república popular de Cuba, Fidel Castro, e Dilma Vana Rousseff, a 36ª
presidenta eleita no Brasil, deposta pelo golpe jurídico-parlamentar de 31 de agosto de
2016. Uma trama em torno de um „crime de responsabilidade‟ por „pedaladas fiscais‟.
História - conhecimento (3x); estudo ( 2x); democracia (2x); passado (1x); memória
(2x); presente (1x); registros ( 2x); disciplina (1x); tempo (2x); cultura (2x); futuro
(2x); ciência humana (1x); controvérsia (1x); consciência coletiva (1x); reflexão (1x).
Já sobre a história, as palavras associadas revelam-na enquanto estudo, mas
também conhecimento, à democracia, às narrativas produzidas sobre o passado pautado
na memória e nos registros históricos. Se revelou associada ainda à disciplina, à ciência
humana e ao tempo. Evoca para si a controvérsia, a consciência coletiva e a reflexão.
Assim, pensamos que a narrativa que ora compartilhamos traduz, com efeito, tais
associações feitas à palavra indutora.
Ideologia - é ideia (s) (8x); alienação (4x); pensamento (4x); ideal (2x); política (2x);
direito (2x); manipulação (2x); propaganda (1x); doutrina (1x); sonho (1x); utopia (1x);
visão de mundo (1); crença (1x); poder (1x).
Na representação do grupo de colaboradores, ideologia está associada a
ideias, porém, a alienação é recorrente nas palavras extraídas da pesquisa, tal que
podemos afirmar que ideologia, no sentimento dos professores de história, carrega um
grande peso de risco de alienação, porém, aqui pode ser entendida com dupla dimensão,
a saber: a ideologia enquanto alienação, ou o termo remete à alienação por alienados.
Refiro-me ao que se tem anunciado nas redes sociais e em algumas mídias televisivas,
404
afirmando que há, na produção do MEC, ideologia de gênero. Porém, para a presente
reflexão não abordaremos tais campos de debates.
Outra associação feita é a de que, ideologia também pode ser vista enquanto
sonho, utopia, visão de mundo ou crença. Assim respondeu Casaldáliga, quando
perguntado se a Folha Alvorada tinha cunho ideológico, a resposta foi: “[...] cabeça sem
ideologia não seria cabeça pensante”.525
Nestes termos, penso que este trabalho pode
contribuir com os professores de história no sentido de desmistificar a expressão,
apontando caminhos para que nossos aprendentes possam evitar o uso indevido do
termo.
Índio - é sinônimo de cultura (5x) povo (4x) etnia (3x) desvalorização (3x)
discriminação (2x) comunidade (1x); terra (2x); identidade (2x); humano (2x); direito
(2x).
A palavra indutora índio foi associada a cultura, a povo e a etnia. Porém,
destacamos as expressões discriminação, humano, identidade e terra. Em sendo
professores de história, como já antecipamos, a maioria não é composta por
historiadores, mas por licenciados e bacharéis em outras áreas de conhecimento, o que
remete à questão da cultura e povo enquanto sinônimo de índio.
A problemática se ancora no fato de o termo „índio‟ induzir a pensar cultura,
antes de pensar cidadão, humano, identidade ou brasileiro. Assim, pensamos que nossa
historiografia, por deixa-los à margem da história, ao não espaço de debates sobre
políticas públicas, continuamos relegando-os ao segundo plano, quando a questão é
educação. Oferecemos (impomos) a eles uma escola estrangeira e os gestores da
educação não cumprem o que reza a LDB e a Constituição Nacional no tocante ao
financiamento público da produção de material didático que atenda a diversidade
existente no Brasil indígena.
Por essa razão, o índio ainda é visto como alegoria – o idílico, o exótico,
deixando de lado uma reflexão mais aprofundada sobre sua falta de segurança e
condições de permanência na terra, carência de políticas públicas que possibilitem sua
independência, autonomia e do exercício pleno da cidadania.
525
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de 1977 A16.0.45
P.1.2.
405
A escola popular e democrática no Araguaia-Xingu precisa dar continuidade
aos „espaços‟ construídos, ampliando a participação e a troca de conhecimentos entre
indígenas e não indígenas. E, no aspecto escola, a experiência educacional entre os
indígenas habitantes das terras e águas entre o Araguaia-Xingu clama por estudos,
especialmente aquela edificada na década de 1970, que contou com a presença dos
professores Luis Gouveia e Eunice, apresentados no tópico 3.6.2 do cap. 3 da tese, pois,
aquela experiência entre os Tapirapé resultou em importantes desdobramentos,
incluindo a demarcação das terras da „Urubu Branco‟.526
Além disso, atualmente,
muitos professores indígenas estão fazendo 2ª licenciatura na Universidade Estadual de
Mato Grosso, a que tive o prazer de ser colaborador no núcleo de Confresa.
Jagunço - é quem pratica pistolagem (4x); morte (4x); Lampião (2x); opressão (1x);
expropriação (1x); analfabeto (1x); ignorante (1x); ditadura (1x); terra (2x); capanga
(1x); cangaceiro (1x); sofrimento (1x); irracional (1x); matador (1x); frieza (1x); usado
(1x); submisso (1x); mercenário (1x); perigo (1x)
A expressão jagunço está ligada diretamente aos crimes de pistolagem, à
morte, pois, como vimos ao longo da narrativa, trata-se de uma categoria bem conhecida
em Mato Grosso e em especial na região do Araguaia-Xingu. Pelas respostas por meio
das palavras associadas, percebemos que os professores têm por representação e
símbolo desta categoria o Lampião, porém, o „bandoleiro‟ Virgulino Lampião pode até
ter causa similar à dos pobres, à questão da terra, porém, os „contratos‟ eram bastante
diferentes, pois no Araguaia o jagunço era contratado (pago) para tirar a vida dos
„desafetos‟ aos tubarões, quase sempre posseiros e, em alguns casos, outros fazendeiros.
Porém, sobre ele recaem as práticas de agir a serviço da repressão, da expropriação, do
latifúndio, da ditadura, se constituindo nos capangas dos tubarões. Todavia, como foram
professores que colaboraram com a pesquisa, encontramos a dimensão humana
apresentando o jagunço como analfabeto, submisso e usado.
Latifúndio - terra (6x); expropriação (3x); propriedade (2x); morte (2x); fazendeiro
(1x); fazenda (1x); poder (2x); concentração (1x); capitalismo (1x); desigualdade (1x);
corrupção (1x); reforma agrária (1x); Blairo Maggi (1x); destruição (1x); poluição (1x).
526
Atualmente, oriento uma monografia de um pesquisador, professor indígena Kamaira‟i Sanderson
Tapirapé, cuja pesquisa busca entender a história tradicional na propagação da cultura do povo Apyãwa
(Tapirapé).
406
A representação do latifúndio está ligada à terra, à expropriação dando um
sentido de propriedade, de fazendeiro, de fazenda. E, na representação dos
colaboradores está ligada à morte, à concentração, ao capitalismo, à desigualdade, à
corrupção e ao modelo de reforma agrária brasileira, a qual favorece aos „grandes‟
produtores, a exemplo do citado pelo coletivo, Blairo Maggi, emprestando somas
vultuosas para a produção de grãos, dos quais 99% não alimentam o brasileiro, e
deixam a grande maioria dos produtores de alimentos (agricultura familiar) excluída das
decisões sobre o que, onde, como e porquê fomentar a produção agrícola527
. Igualmente
está relacionada a destruição e degradação.
Liberdade - expressão (5x); pensamento (3x); conquista (4x); conhecimento (1x);
alegria (3x); democracia (2x); direito (2x); autonomia (1x); ser livre (2x).
A representação extraída das palavras associadas à liberdade indicou que ela
está vinculada à liberdade de expressão, de pensamento, de conquista, de acesso ao
conhecimento e de ser alegre. Liberdade é sinônimo de democracia, pois, como a
memória histórica não nos permite esquecer, em tempos de repressão a liberdade era a
primeira cassada. Também significa o direito de ser livre e autônomo. Parece-nos um
tema extremamente importante para ser tratado em sala de aula, pois, como já vivemos a
Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a qual regulava a liberdade de manifestação do
pensamento e da informação no Brasil, citada no tópico 3.6.1 da tese, cuidado que
devemos tomar para que não sejam criadas outras do mesmo cunho de privação da
liberdade.
Livro didático - ferramenta (3x); ensino (2x); conhecimento (2x); suporte (1x); apoio
(1x); conteúdo (1x); metodologia (1x); aprendizagem (1x); informação (1x); alienação
(1x); intencionalidade (2x).
Seguindo a representação do coletivo em relação ao livro didático, trata-se
de uma ferramenta voltada ao ensino, na busca por conhecimentos, um suporte, um
527
Sobre essa questão, indico leitura sobre o resultado de uma pesquisa sobre Agricultura familiar e
políticas públicas, sob nossa orientação. Ver LUZ. Neusivânia Souza. Agricultura familiar, trabalho e
renda como Políticas Públicas no município de Santa Terezinha-MT. Confresa.. Monografia
(Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências Sociais) – UNEMAT. 2016.
407
apoio aos professores, entretanto, apontam para uma crítica já apresentada ao longo da
narrativa, o fato de o mesmo estar repleto de intencionalidades e também ser potencial
instrumento de alienação, visto enfatizar que a história ensinada é aquela das e para o
interesse dos opressores. No tópico 3.6.1, tratamos como surgiu o Programa Nacional
de Livros Didáticos, apontando, inclusive, como se tornou política pública. Igualmente,
ao longo da narrativa ofereço reflexão sobre o uso dos suportes, a exemplo do livro
didático, infelizmente a formação inicial e tampouco a continuada deu conta de oferecer
formação (metodológica) para uso dos manuais e demais dispositivos.
Memória - conhecimento (5x); lembrança (4x); história (4x); recordação (2x);
identidade (2x); sabedoria (1x;) caminho para libertação (1x); cultura (2x); experiência
(1x); vida (1x); viver (1x).
As representações sobre a memória estão associadas ao conhecimento, às
lembranças, história, recordações e identidade, mas também às experiências. É possível
afirmar que a construção do conhecimento, com destaque ao conhecimento histórico
veiculado na escola de educação básica só ocorre na práxis, portanto, exige do professor
de história estratégias metodológicas para fazer com que os aprendentes percebam a
importância de refletir sobre seu contexto e, a partir dele, pensar outras dimensões de
sua existência, a exemplo de como foi construída a metodologia do projeto INAJÁ,
apresentado no início deste capítulo em forma concêntrica. Porém, existem inúmeras
formas de se mediar conhecimento se apropriando da memória. Em 2015 e 2016,
orientamos um trabalho no município de Santa Terezinha, onde as escolas adotaram a
metodologia de projetos de aprendizagem, nos quais todos os professores planejavam
por área de conhecimento e, com atividades integradoras, contribuíam com o projeto
maior proposto pelas Escolas, excelente experiência na „Esquina‟ de Mato Grosso528
.
528
Inúmeros foram os projetos e avaliações de resultado que operaram não só na transformação do meio,
me refiro ao Projeto Escola do Rio, onde foi recuperada a mata ciliar nas proximidades da Escola do Lago
Grande, dentre as atividades estava a de se produzir a memória da escola e da comunidade. Também
orientamos a produção de monografia de final de curso de graduação e de especialização, esta última foi
em forma de co-orientação com o Professor Ms. Ney, junto ao Instituto Federal de Confresa – MT, sobre
o trabalho desenvolvido na escola Municipal São João, as quais podem ser acessadas em SOUZA.
Ronivon, Costa de. Aprender e ensinar „ciências ambientais‟ por projetos de aprendizagens na Escola do
Rio – Santa Terezinha MT. Alto Araguaia. Monografia (Licenciatura Plena e Bacharelado em Ciências
Biológicas) – UNEMAT. 2016 e o segundo de MORAIS, José Manuel Ribeiro. Inovação e
sustentabilidade no campo: Projetos de aprendizagens na escola Municipal São João. Revista Prática
Docente – RPD. Confresa. MT. Volume 2. Número 2. Julho/Dezembro 2017.
408
Ao longo da narrativa, procurou-se evidenciar o risco que se corre quando
há interesse em se apagar a memória, dados por meio da disputa. Assim, enquanto
professores de história, cuidados especiais devem adotados na busca da produção e uso
desse precioso instrumento de resistência. Como citado no texto, a segundo Le Gooff
(1994), os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desse mecanismo de
manipulação.
Negro - luta (6x); discriminação (3x); raça (3x); símbolo (2x); injustiça (2x); identidade
(1x); cidadão (1x); oprimido (1x); racismo (1x); sofrimento (1x); resistência (1x);
trabalho (1x); coragem (1x).
Já a representação sobre o negro está ligada à luta, discriminação de raça,
símbolo de dor, de injustiça e busca por identidade. Ao observar tais descrições,
percebe-se que, diferentemente daquilo que se apontou em relação à cultura do
indígena, seu símbolo é o de luta. Haveríamos de perguntar: qual a razão dessa
diferença? O negro também não é possuidor de cultura? Ou sua cultura é inferior à do
índio ou à do „branco‟? As perguntas foram feitas sem a pretensão de resposta nesse
momento, mas com o objetivo de afirmar que os negros habitaram primeiro as páginas
dos livros escolares de história, e, invariavelmente, apareceram como escravos,
portanto, uma categoria histórica numa busca incansável pela liberdade, física e social
presente no imaginário do brasileiro, especialmente entre os professores de história. O
professor de história possui uma dívida com essa causa. A exemplo do que aconteceu
com os professores que, ao término do curso de 1978, afirmaram que havia famílias que
insistiam em mudar seus alunos da sala de aula por conta do professor ser negro. Nesse
sentido, retomamos as palavras de Edwar Said (2011), citado tópico 2.3.1, segundo o
qual o preconceito racial é fruto do imperialismo, pois ele consolidou a mescla de
culturas e identidades, numa escala global. Assim, temos de contribuir para igualmente
ampliar a escala global do respeito à diversidade e seguir as reflexões suscitadas por
Pedro Casaldáliga na Folha Alvorada de 1981, citadas no tópico 3.6.2: “Está chegando
o „dia dos negros‟. Será que acabou mesmo a escravidão no Brasil?”.529
529
Alvorada (1981), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A 16.1.21 p 02-21.
409
Peão - Peão trabalhador (6x); exploração (2x); sofredor (2x); boi (3x); vaqueiro (2x);
pobre (3x); analfabeto (1x); exploração (2x); rodeio (2x); valente (1x); guerreiro (1x);
escravo (1x).
Já para a representação do peão afirmaram ser trabalhador ligado ao boi,
atividade que caracteriza esse trabalhador como um explorado, sofredor, analfabeto,
valente e guerreiro. Por se tratar de uma categoria bem conhecida por ter sido o braço
que derrubou, plantou e sofreu pelo processo de exploração do trabalho pelas empresas
latifundiárias, permanecendo ainda hoje à margem das políticas e garantias
constitucionais, o sinônimo de peão proposto pelos colaboradores foi o de trabalhador
pobre e explorado. Percebe-se que também é antiga e persistente sua caracterização,
como fez o CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação, citada no tópico
1.5 – de que o peão pode ser caracterizado como aquele trabalhador braçal que atua na
situação trabalhista criada pelos latifundiários. Assim, como função social do professor
de história, haveremos de buscar meios para que os alunos que estão matriculados em
nossas escolas não alimentem a continuidade desse processo, que não continue gado
humano, como referenciado no tópico 1.7 da narrativa.
Pobre - exploração (3x); opressão (3x); excluído (3x); política (2x;) miserável (2x);
desprovido (1x); desassistido (1x); indefeso (1x); vítima social (1x); miséria (1x);
pequeno (1x); cidadão (1x).
A representação de pobre extraída dos colaboradores afirma ser sinônimo de
exploração, fruto da opressão, excluído da política, desprovido de capital, desassistido
pelo poder público, indefeso e vítima social. O pobre é sinônimo de miséria. Fato é que
ser pobre se tornou símbolo de exclusão, que, deveras, haveremos de buscar na memória
e registros que possibilitam entender as razões que levam alguém a tirar os restos
mortais de uma pessoa, afirmando ter a necessidade de plantar capim, como aconteceu
com o Joaninha, “Com os ossos de sua mulher e sua filha (...) da companheira pobre e
boa” 530
, citado na introdução do segundo capítulo ou no caso ocorrido em 1979, em que
530
Alvorada (1977), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1977. A 16.0. 70,
p. 5-15. O texto foi transcrito na íntegra, por se entender que essa narrativa tinha o propósito pedagógico
de anunciar, às famílias, a necessidade de resistir às mais variadas formas de violência a que poderiam ser
submetidas pelos opressores.
410
o Sr. Nelson da cantina derrubou a bacia de bolo do menino vendedor, cujo intento era
comprar a „farda escolar‟, citado no tópico 2.4. Ou, conforme Alfredo Bosi (1992),
historicamente as camadas pobres da população brasileira (índios, caboclos, negros,
escravos, e depois forros, mestiços suburbanos, subproletários em geral) foram
colonizados com a cultura rústica, citado no tópico 3.6.2. Assim, haveremos de lançar
mão da história e contribuir para que haja um novo processo de transformação social,
fazendo com que as „camadas‟ se unam em torno da educação e promovam a
transformação.
Poder - dominação (3x); política (2x); político (2x); capitalismo (2x); autoridade (3x);
latifúndio (2x); soberania (2x); autonomia (1x); dinheiro (1x); hegemonia (1x).
O poder ganha, na representação do coletivo estudado, sinônimo de
autoridade, política, dominação, latifúndio e soberania. Ao observar por esse prisma,
não conseguimos enxergar outras formas de poder senão aquelas que estão veiculadas
pela mídia, porém, essa é uma realidade? Ou estamos assistindo a uma tentativa de
„desacreditar‟ na transformação? Estaríamos diante de um momento histórico em que a
estratégia de dominação continua sendo a velha e usual prática de plantar „verdades‟?
Bem, se a política é o poder que emana do povo para o alcance da democracia, não
basta dizer que nossa democracia está engatinhando e correndo risco de não andar. Aos
professores de história requer tomar posição que procure estabelecer um duelo na espera
do discurso, para ter mais segurança nas práticas. Se eximir da condição de „ter‟ o poder
para transformar a realidade é também uma forma de aceitar a relação opressor x
oprimido.
Política - corrupção (5x); vergonha (2x); governo (2x); organização (1x); injustiça (1x);
poder (1x); estado (1x); planejamento (1x); partidária (1x); justiça social (1x); povo
(1x); lava jato (1x).
A representação sobre a política não surpreendeu as respostas, em razão da
massiva investida contra essa ciência, por estarmos passando por crises institucionais
onde o „todos contra todos‟ se faz cardápio do dia. Porém, seguem os desdobramentos
em forma de palavras associadas, quando política passa a ser sinônimo de vergonha, de
411
governo, de injustiça, de poder e de Estado. Porém, observa-se a dimensão da política
que não pode ser colocada em outro campo pertence à mesma moeda, porém numa face
em que aparece o planejamento, a justiça social, o povo, lembrando que a política
também é uma construção social, portanto, passível de transformação, e não pode
começar senão ao alcance de cada um professor de história.
Posseiro - Terra (10x); reforma agrária (4x); trabalhador (4x); sustento direito (3x);
agricultura ( 1x); agricultor (1x); pobreza (2x); cultivar (1x); cultura 1x); esperança
(1x); discriminação (1x) ; sofrimento( (1x) alimentação (2x) analfabeto (1x) cultivar
(1x) colonização (1x) política (1x).
Os posseiros, no âmbito da representação dos colaboradores, são sinônimos
de terra, de reforma agrária e de direito, sempre ligados ao sustento por meio da
agricultura, mas também atrelados à pobreza, à esperança, à discriminação, ao
sofrimento, ao analfabetismo e à colonização.
Percebemos que a ênfase maior foi dada à questão da terra e das formas pela
qual o trabalhador rural (do campo) se organizou para sua sobrevivência, porém,
dependente da reforma agrária que, por muitas vezes, deixou de ser interessante para
quem „manda‟ no governo. Parece-nos que essa não é uma charada difícil de ser
decifrada, pois a reforma agrária no Brasil não haverá de ter outro modelo que não o
defendido pela elite, uma vez herdeiros de uma prática de coronelismo, concentração de
terras, expropriação e exploração do trabalho. No decorrer da narrativa essa foi uma
tônica onde apresentamos o duelo estabelecido pela vida, e a escola enquanto
instrumento de defesa (de resistência) pelos posseiros, com o apoio da prelazia, em
particular de seu maior líder, Pedro Casaldáliga. Recuperar essa memória é fomentar o
debate e fortalecer aqueles que acreditam numa escola popular e democrática.
Professor - mediador (5x), profissão (2x); parceiro (2x); sobrecarregado (2x); lutador
(1x); trabalhador (1x); cansado (1x); conhecimento (1x); sonhador (1x); parceiro (1x);
companheiro (1x); valente (1x).
A representação extraída dos colaboradores em relação ao professor foi a de
mediador, profissional, parceiro, ser sobrecarregado, lutador, possuidor de
conhecimento, sonhador, companheiro e valente. Parece-nos que pairou sobre o
pensamento dos professores colaboradores o „modelo ideal‟ de um professor no século
412
XXI, partindo da expressão mediadora, porém, haveremos de indagar: como seria se
não houvessem as “Várias professoras heroicas deste sertão ficam esperando o
pagamento durante meses e meses”531
, citado no tópico 1.6. Que escola teríamos hoje,
entre o Araguaia-Xingu mato-grossense, como seria se não tivesse a professora Ilda e o
Padre Manuel enfrentando o carrancista Zacarias? Aquela mesma que foi tachada como
comunista e subversiva532
, citada no tópico 1.7. Se não tivessem os professores, amigos
do padre, se envolvido na trama “[...] que se tratava de um prodigioso complexo de
Segurança Nacional, e que acabara de descobrir „Guerra Civil‟ e „Guerrilha‟ e os
culpados eram os amigos do Padre, os verdadeiros ofensores”.533
Se não tivessem os
professores quando a Dra. Giselda da FUNAI fosse à Aldeia Tapirapé querendo
expulsá-los, e, estando lá, responderam a ela que, embora a mesma estivesse repassando
uma ordem, dizendo que Don Pedro, sob ordem do Presidente da FUNAI, estava
proibido de lá entrar, os professores responderam que eram sustentados pelo Bispo, cuja
resposta não poderia ser mais hilária: “Quando o diabo não aparece, manda um
secretário”.534
Os professores Regina, Caçula, Hélio, Luis, Eunice, Elmo, Dineva, Thea,
Tânea, Rosalina, Juraci, Dagmar, Rubem, Alves, Paulo Freire e tantos outros beberam
das águas e sentiram o calor do sol, a poeira, os banzeiros do Araguaia-Xingu, ou
serviram de inspiração para eles. Enfim, temos mil e uma formas de buscar na memória
instrumentos de poder para continuar defendendo e ser defensores de uma escola
popular e democrática, reconhecendo todos aqueles(as) que, de forma direta ou indireta,
contribuíram para a escola do tempo presente e igualmente para a escola de 2030.
Progresso - desenvolvimento (4x); crescimento (4x); evolução (3x); avanço (2x); luta
(2x); melhoria (3x); luta (2x); desmatamento (2x); poluição (2x); falso desenvolvimento
(1x); desigualdade (1x); destruição (1x).
O progresso é, na representação dos colaboradores, sinônimo de
desenvolvimento, crescimento, evolução, avanço e melhoria que se conquista por meio
da luta, porém, como consequência podem (foi) ser também sinônimo de
desmatamento, poluição e falso desenvolvimento. Percebe-se, portanto, que o progresso
531
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de 1970. A16.0.05
P. 4.4. 532
Diário de Pedro Casaldáliga. Yo creo em La Justicia. Registro feito no dia 19 de março de 1972, p. 30. 533
Ibid. 534
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. DIII. 0. 4ª P.4.52.6.
413
„almejado‟ é aquele difundido nas nuvens, afinal, tudo em nome do progresso. Porém,
em nome de qual progresso, como observamos ao longo da narrativa, foram promovidas
verdadeiras chacinas, genocídio aos indígenas e não indígenas, a exemplo das frases de
Zé das Trovas, citadas no tópico 2.2: “Uma promessa de progresso que nuca se
cumpriu, os tubarões estão querendo a terra para revender. [...] não plantam nem para
comer”535
, uma vez que em nome do progresso contaminam o lençol freático, as águas
dos rios, os córregos e suas nascentes. Assim, que promessa de progresso é disseminada
hoje e que nunca irá se cumprir?
Tecnologia é conhecimento (6x); facilidade (5x); desenvolvimento (3x); avanço (3x);
dependência (2x); alienação (2x); progresso (2x); ciência (2x); globalização (1x);
melhoria (1x); futuro (1x).
Quanto à tecnologia, ela está relacionada ao conhecimento, à facilidade, ao
desenvolvimento e avanço técnico, portanto, é possível perceber uma dimensão humana
da tecnologia, o que, de certa forma, distancia um pouco de como ela é vista na escola,
pois, há pouco tempo à tecnologia foi implantada parcialmente no espaço escolar, sendo
entendida como: livro, mimeógrafo, quadro negro (verde), giz, computador, mas
também Datashow, impressora e demais dispositivos eletroeletrônicos.
Ao proclamar as palavras associadas ao tom de humanizar o conceito,
contribui para sua dimensão de uso, rompendo o obstáculo do não domínio, o que será
melhor tratado no tópico a seguir. Para momento, continuamos a observar outros
significados presentes na representação dos professores colaboradores. Segundo eles, a
tecnologia é sinônimo de dependência, alienação, globalização, ciência e futuro.
Observamos que, ao situar as dimensões de dependência e alienação, é possível que
estejam em baila inúmeras dúvidas com relação ao propósito não revelado da
tecnologia, especialmente em relação ao custo amoedável, bem como aos sistemas de
dependência normalmente vigiados a sete chaves, referimo-nos aos colocados no
mercado pela Microsoft e outros sistemas operacionais proprietários.
Semelhante prática foi adotada pela cultura do livro didático (continua
sendo), porém, em curto espaço de tempo as plataformas digitais irão inaugurar novas
dimensões dos meios, exigindo inovadores métodos de mediação e aprendizagem e
535
CEDI, Zé das Trovas, Lavrador da Prelazia de São Félix do Araguaia MT. São Félix do Araguaia
CEDI, 1983, p. 12.
414
desafiando especialmente os professores. Sobre esse tema, reservamos os últimos dois
tópicos desse capítulo.
Tubarão - poder (5x); peixe (4x); predador (3x); grande (3x); destruição (2x); violento
(2x); fazendeiro (1x); latifúndio (1x); capitalismo (1x); ricos (1x); multinacionais (1x).
Conforme observado nas palavras associadas à expressão indutora, tubarão,
na representação dos professores, foram as de peixe, predador, grande, destruição,
violência, fazendeiro, latifúndio. Percebemos que as expressões dão conta da voracidade
e do poder do peixe, porém, somente duas respostas convergiram para a memória
histórica da região e, portanto, à invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense
das últimas décadas do século XX. Dessa feita, é possível afirmar que a expressão
cunhada em um determinado momento histórico, e conhecida largamente pelas famílias
que viveram aquele momento, não ganha espaço em sala de aula no tocante à mediação
e aprendizagem histórica. Assim, requer investimento por parte das lideranças
educacionais, especialmente dos gestores escolares, na provocação de diálogos sobre o
processo que resultou nas cidades e especialmente nas escolas edificadas e ativas no
Brasil Central. Os apagamentos da memória, afirmados durante a narrativa, constituem
formas de dominação.
Violência - consequência (2x); agressividade (2x); Brasil (2x); morte (2x); tortura (2x);
crime (2x); insegurança (1x); negação (1x); ignorância (1x).
As representações sobre violência, embora essa expressão indutora seja, de
certa forma, fácil de ser definida, diferentemente de muitas outras as palavras associadas
extraídas das respostas dos colaboradores, não possibilitaram classifica-las com
facilidade, pois não houve „consenso‟ sobre o que é violência. Seguindo a definição
extraída, violência é consequência, agressividade, Brasil, morte, tortura, crime,
insegurança, negação e ignorância. Pelo visto, o contexto em que vivemos no país
proporciona certa „instabilidade‟ no sentimento coletivo, tornando a violência
consequência, porém, por trás existe um praticante, e, como vítima, outros humanos que
convencionaram viver numa sociedade cuja desigualmente permite tais mazelas. Como
a violência quase manchou a narrativa de sangue, suor e lágrimas, concluo apresentando
quem era o inimigo primeiro das famílias e, por conseguinte, da escola de educação
415
básica no Araguaia-Xingu e do bispo Pedro Casaldáliga, que ilustra com suas palavras:
“Continuar detestando el capitalismo, la dictadura, el latifundio... Eso, por el contrario,
me obliga a hacer lo posible para que esos enemigos se acaben”536
, citado no tópico 2.2
do presente texto.
Concluímos este tópico, no qual apresentamos o resultado de parte da pesquisa
aplicada aos professores que atuam na disciplina de história, nas escolas entre o
Araguaia-Xingu mato-grossense, com a perspectiva de entender qual a representação
que eles elaboraram ao serem apresentados às 34 (trinta e quatro) expressões indutoras,
cujas expressões estão ligadas diretamente à construção da presente tese e constituem a
memória da invenção da escola dessa região mato-grossense, cujas expressões foram
analisadas a partir das palavras a elas associadas. Como pode ser observado ao longo da
análise, há necessidade de se construir um plano de formação continuada para os
profissionais sobre a história da escola e da educação regional, as quais poderão,
seguindo a perspectiva do conhecimento histórico, reinventar a escola do século XXI,
reificando as práticas e tomando como pressuposto metodológico a escola popular e
democrática.
No tópico a seguir será feita rápida reflexão sobre os desafios que são lançados
aos professores de história atuantes em sala de aula em tempos de cibercultura em
seguida analisado o restante da pesquisa aplicada aos 19 (dezenove) professores
colaboradores.
4.6. Escola 2030: Um novo perfil do professor de história - entre o ensinar e mediar
aprendizagens em tempos (self)
Dedicamos o presente tópico para compartilhar a problemática e apresentar
desafios do professor de história atuante na escola de educação básica, partindo do
princípio de que a escola e seus escolares estão imersos num processo comunicacional-
digital próprio da cibercultura. Seria tal imersão um processo natural, ligado a mais
uma „onda‟ que, com o passar dos anos, deixará de existir, possibilitando aos escolares
536
CASALDÁLIGA. Pedro. Al acecho del Reino. Antología de textos 1968-1988, México: Claves
Latinoamericanas, 1990, p. 245.
416
retomar com segurança a récita do falar ditar, da distribuição da informação de forma
linear onde o professor é detentor do conhecimento? Os professores fazem uso dos
meios tecnológicos em sua prática pedagógica em sintonia com o espírito do tempo, se
o fazem, como o fazem, se não, qual a razão de não os utilizar? Estaria igualmente os
aprendentes e pais iludidos com o farto acesso à informação nas nuvens, acreditando
que o fato de existir a web, as redes sociais, as plataformas digitais conectadas pela rede
mundial de computadores, via Internet, onde está depositada, teoricamente, „toda a
história‟ que o professor atuante nessa área de conhecimento necessita. Nessa dinâmica,
seu cargo corre o risco de extinção? Que não se precise mais desse profissional? Essas
são as primeiras das inúmeras questões que emolduraram a pesquisa, porém, para que
pudéssemos fazê-lo conectado ao conjunto da tese, tomando o primeiro princípio da
Educação Popular e Democrática empreendida no Araguaia-Xingu, nas últimas décadas
do século XX, a qual apresentamos ao longo da narrativa.
A seguir, apresentamos gráficos gerados a partir dos resultados da pesquisa,
que, para efeito didático, são reveladas e quantificadas as respostas objetivas das
questões 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19. Posteriormente, alguns trechos das
justificativas apresentados pelos colaboradores.
Procurando contextualizar a leitor, apresento as questões elaboradas e
respectivos resultados apurados, em forma de gráfico:
Gráfico 5: Resposta à questão 10 - Em relação às tecnologias móveis digital, elas
mudam a maneira que nossos alunos pensa e aprende história?
Fonte: Elaborado pelo autor
417
Perguntado se as tecnologias móveis mudaram a maneira de os alunos
pensar e aprender história, a grande maioria afirmou que sim, elas mudam. Embora
somente 26% concordam plenamente, não houve dúvida que elas alteraram a forma
como os alunos pensam e aprendem história quanto à interferência das tecnologias
móveis todavia, não teríamos como afirmar de que forma? Em que aspecto? Quais os
recursos? Essa poderá se tornar um desdobramento da presente tese.
Gráfico 6: Resposta à questão 12 - As tecnologias de informação e comunicação são
consideradas relevantes para o ensino de história
Fonte: Elaborado pelo autor
Já sobre a relevância, a maioria, 57%, concordam totalmente, e 42,1% em
parte. As respostas permitem afirmar que a maioria entende as tecnologias enquanto
relevantes para o ensino de história.
Gráfico 7: Resposta à questão 13 - Nós, professores de história integramos as
tecnologias educacionais (computador, tablete, smartphone, notebook e recursos web-
Internet) no ensino de história.
Fonte: Elaborado pelo autor
418
Quanto à afirmativa de integração das tecnologias educacionais no ensino
de história, a grande maioria concorda em parte, o que nos permite dizer que há dúvidas
em relação ao uso das tecnologias no ensino de história.
Gráfico 8: Resposta à questão 14 - Começamos recentemente a usar o computador e
a Internet nas práticas do currículo escolar
Fonte: Elaborado pelo autor
Sobre o processo recente do uso dos computadores e a Internet nas práticas
do currículo, 73,7% concordam em parte, permitindo a resposta, mais uma vez, afirmar
que pairam dúvidas com relação ao uso das tecnologias ao currículo.
Gráfico 9: Resposta à questão 15 - Ainda não sabemos quais ferramentas existem
instaladas nos computadores das escolas e na web, que podem ser utilizados em
nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina de história
Fonte: Elaborado pelo autor
419
Quanto ao conhecimento sobre os recursos existentes nos computadores e
na web, as respostas permitiram afirmar que a maioria não os conhece. Essa realidade
vivida pelos professores indica a falta de iniciativa por parte dos gestores escolares, bem
como pelos próprios professores que, em sabendo da existência dos computadores à sua
disposição, não buscam explorar os recursos ali instalados e que possam auxiliá-los em
sua prática docente.
Gráfico 10: Resposta à questão 16 - 16 - Em decorrência da chegada dos computadores
conectados à Internet e dos dispositivos digitais acessíveis aos professores e alunos,
destaque as respostas que avalia relevantes:
Alternativas: a) Ampliou as discussões sobre o uso das tecnologias na escola;
b) Ampliou suas expectativas em relação às mudanças no currículo escolar via PPP
(Projeto Político Pedagógico);
c) Ampliou o monitoramento da implementação das TIC (Tecnologia da Informação e
Comunicação na Escola);
d) Ampliou debates entre professores de história e alunos sobre as mudanças que estão
ocorrendo na educação escolar;
e) Ampliou debates entre os escolares e os pais dos alunos sobre as mudanças que estão
acontecendo na sociedade
Fonte: Elaborado pelo autor
Embora as respostas indicassem a ampliação das reflexões sobre uso das
tecnologias no contexto escolar, é possível afirmar que tais discussões encontrem seus
limites no tocante às proibições de uso, em decorrência da sua utilização indevida pelos
adolescentes e jovens, a exemplo de alguns aplicativos, como o da baleia azul.537
537
Trata-se de um jogo digital em que o participante se depara com algumas etapas a serem cumpridas, ao
final, pode acarretar em suicídio.
420
17 - Considerando sua atuação como professor de história, qual(is) dos objetivos abaixo
você elege como importante(s). Enumere em ordem crescente de 1 a 10.
Opções apresentadas ao colaborador Respostas em percentual e prevalência da opção
escolhida na sequência de 1 a 10 exceto as
proposições 1 e 10 (extremas) e 5
De 2-4 De 6-9
Preparar os alunos para o mercado de
trabalho
31,6% 31,6%
Promover atividades relacionadas com a
vida cotidiana e prática dos alunos
26,6% 26,6%
Assegurar um bom resultado do aluno em
testes de desempenho
5,3% 57,9%
Desenvolver habilidades de colaboração
entre os alunos voltados para a resolução
de problemas de seu contexto sócio
histórico e cultural
5,3% 36,9%
Satisfazer as expectativas dos pais e
comunidade escolar
10,6% 31,6%
Como observado nas respostas dos colaboradores, a opção de preparar os
alunos para o mercado de trabalho gerou dúvidas, cujos percentuais se igualaram (soma
2-4 = 31,6% e 6-9 = 32,6%), ou seja, não há decerto um projeto ao qual o coletivo da
escola, contando os professores de história em relação ao mercado de trabalho,
promovam atividades com a vida cotidiana dos alunos (soma 2-4 = 26,6% e 6-9 =
26,6%). Porém, ao perguntar sobre os testes de desempenho, as respostas revelaram que
a grande maioria (soma 2-4 = 5,3% e 6-9 = 57,9%) tem convencionado que prepara os
alunos para algum tipo de teste de desempenho, sendo possível que os professores se
reportem aos mecanismos de avaliação externa (Prova Brasil e ENEM).
Quando indagado sobre desenvolver habilidades de colaboração entre os
alunos para a resolução de problemas de seu contexto sócio histórico e cultural,
percebe-se que a maioria (soma 2-4 = 5,3% e 6-9 = 36,9%) afirma ser este um dos
objetivos do trabalho do professor de história. Por fim, perguntado sobre corresponder à
expectativa dos pais e da comunidade escolar, nos deparamos igualmente com os
percentuais (soma 2-4 = 10,6% e 6-9 = 31,6%), revelando ser esse um dos objetivos da
escola. Assim, entendemos que, mesmo não promovendo atividades relacionadas com o
cotidiano, dizem os professores que procuram satisfazer as expectativas dos pais e da
comunidade escolar.
421
Ao concluir análise das respostas, podemos afirmar que a escola de
educação básica não segue com a prerrogativa de construir um projeto de escola popular
e democrática tomando seu primeiro princípio, citado no tópico no tópico 4.2.5, a escola
não faz a leitura da prática social tomada enquanto fonte de conhecimento, pois o
programa educativo deveria partir da problemática concreta de um determinado grupo
ou setor da sociedade, de suas necessidades específicas, do conhecimento que eles já
possuem de um determinado tema e do nível de consciência particular do grupo.
Portanto, as condições objetivas são relegadas ao segundo plano (vida cotidiana,
elementos provenientes de sua prática produtiva, de sua prática organizativa e de
contextos econômico e social).
Gráfico 11: Resposta à questão 18 - Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião:
Os alunos da escola onde você trabalha têm maior domínio das tecnologias digitais
que os professores
Fonte: Elaborado pelo autor
No sentido de entender a percepção dos professores em relação ao domínio
que os alunos têm sob as tecnologias digitais, comparadas às dos professores, a grande
maioria afirmou que sim, os alunos sabem mais. Aqui, devemos problematizar, uma vez
que a dimensão pensada pelos professores está relacionada ao uso técnico dos
dispositivos, uma vez que os alunos não apresentam „medo‟ ou „estranhamento‟ com o
„novo‟, além de acompanhar o espírito do tempo e as práticas sociais próprias da idade,
dedicando mais tempo à utilização de tais dispositivos. Todavia, o uso técnico não
significa que sabem explorar sua recursividade nas e para aprendizagens.
422
Assim, haveremos de perseverar que, um passo precisa ser dado pelos
professores, qual seja, o conhecimento técnico não significa nada quando a dimensão da
demanda de aprendizagem está para além dessa fronteira, portanto, como os
aprendentes não vêm prontos para a escola, igualmente os professores não estão
preparados para usar os recursos tecnológicos nos processos de mediação e
aprendizagem. Como resposta a esse problema, haverão de buscar formas de sua
superação, por meio da formação continuada.
Gráfico 12: Resposta à questão 19 - Com a web (Internet) os alunos acabam
perdendo o contato com a realidade em que vive.
Fonte: Elaborado pelo autor
Ao questionar sobre o distanciamento da realidade por parte dos alunos, por
conta da web (Internet), as respostas foram bastante enfáticas, pois, para os maioria dos
professores os alunos acabam perdendo o contato com a realidade, no uso desse recurso.
Penso se há uma recorrência do uso de uma retórica pouco provável, pois,
ao adotarem essa perspectiva em relação à má utilização das tecnologias disponíveis aos
aprendentes, a exemplo de aplicativos como o baleia azul, om qual é bastante explorado
pela mídia, criminalizam as práticas disseminadas entre adolescentes e jovens.538
Ao assumir tal posição sem que reflita sobre tal problemática, desperdiçam
o potencial das tecnologias educacionais a seu favor, uma vez que dialogando com as
necessidades do cotidiano a escola atenderia as condições subjetivas da educação
538
O aplicativo baleia azul trata-se de um jogo que o usuário se submete a superar etapas que, ao final,
pode culminar em suicídio.
423
popular e democrática, portanto, ao dela distanciar os alunos da realidade, haveremos de
perguntar que realidade estão tomando por parâmetro, uma vez que a tecnologia é uma
realidade social do tempo presente, portanto, não considerar seus conhecimento,
interpretações e formas de expressão, linguagem, valores, manifestações culturais e
artísticas, os professores e o coletivo da escola se distanciam dos propósitos da
educação popular e democrática, contribuindo para o afastamento do papel social da
escola no século XXI.
Muitos são os desafios que cercam os professores de história neste início de
século, pois toda inovação tecnológica (consequência da própria produção humana)
requer igualmente inovadoras atitudes, portanto, falar de história para os alunos nativos
digitais requer operar com múltiplos suportes tecnológicos, imagens, som, cores,
movimento, jogos, enfim, uma gama de artefatos e produtos próprios deste século,
muitos dos quais se encontram no contexto escolar, porém são ignorados pela maioria
dos professores.
Como observado, negar-se ao uso destes recursos é praticar uma escola cujo
propósito não é o de reconhecer as necessidades objetivas e subjetivas de uma escola
popular e democrática, pois, além de desconsiderar uma problemática concreta, não
cumpre a função social de mediar conhecimento histórico utilizando códigos e
linguagens acessíveis aos aprendentes.
É possível que tal decisão esteja atrelada à dificuldade de se mudar as bem
conhecidas estratégias, utilizando as páginas frias, inertes e linearmente distribuída nos
livros didáticos, optando por permanecer nos conhecimentos fragmentados e dispostos
desses livros, o que acaba fazendo com que nossos aprendentes permaneçam pensando
que a lógica do conhecimento está acondicionada em gavetas. Libertá-los e se auto
libertar é também uma função do professor de história, em tempos de cibercultura.
Reproduzo aqui uma expressão de um dos (as) colaboradores (as) em forma
de justificativa às respostas do questionário;539
Quando perguntado sobre o uso dos
dispositivos móveis, (questão 10) e se tais tecnologias mudam a maneira com que os
alunos aprendem história, o docente 12 afirmou que as tecnologias servem apenas para
539
Para fins didáticos e visando manter a integridade dos colaboradores, utilizarei número sequencial de 1
a 19, seguindo a ordem que responderam ao questionário. Anexo apresentaremos os nomes completo em
ordem alfabética dos colaboradores.
424
outros fins sociais. Parece-nos que a resposta está ligada à crítica em relação às
tecnologias reveladas pela expressão – apenas.
Sobre essa questão, consideramos que os aprendentes, tal como os
professores, são „sujeitos‟ sociais à comunicação ativa possibilitada pelos dispositivos
móveis, cumprindo a função precípua da comunicação, além de que, de certa forma, as
redes sociais, via conexão com a Internet, libertou-os do meio físico, pois, em tempo
real comunicamos, a baixo custo, com pessoas distantes, encurtando as distâncias e
planificando o planeta terra. Convém ao professor possibilitar ao aprendente caminhos
para que este possa, inclusive usando as redes sociais, aprender história.
Assim, o professor de história na atualidade, independente da escola em que
esteja atuando, estará em meio a um tsunami comunicacional, mobilizado pelos
dispositivos móveis, o que requer, necessariamente, sua readaptação ao contexto
histórico da escola do século XXI. Para uma exitosa atuação, faz-se necessário
considerar algumas questões:
a) o perfil do aprendente;
b) o perfil da escola, contribuindo para que seu coletivo possa se tornar
comunicacional;
c) rever o papel do professor de história, assumindo sua posição de mediar a
produção de conhecimento histórico em tempos de cibercultura;
d) ampliar o uso dos suportes, indo além do livro didático, do giz e da lousa
convencional, já que o digital está disponível e reivindica seu espaço na sala de aula,
pois esta potencializará a comunicação, por estar integrada com os dispositivos móveis
e plataformas de aprendizagem por meio da web e;
e) Rever a metodologia para o ensino de história, de forma que ela possa
convergir para o fenômeno vivido pelos escolares, possibilitando-lhes dinamizar
aprendizagens do conhecimento histórico, fazendo história, pois, a escola que
conhecemos, em muitos aspectos, guardadas as devidas proporções, continuam iguais às
edificadas em meados do século XX, se observada do ponto de vista arquitetônico, uma
vez que a dinâmica dos espaços físicos segue o padrão de finais do século XIX.
f) Enfim, perceber que, a escola do século XXI, e especialmente o professor
de história têm ao alcance um potencial incalculável de troca de posição dos postulantes
à escola, visto que há alguns anos o professor era o único detentor do conhecimento –
425
em tempos de cibercultura – dos dispositivos móveis, de novas linguagens e múltiplos
suportes, muitos dos educadores se tornaram dependentes dos conhecimentos e
habilidades que os aprendentes trazem de sua vivência em sociedade. Ao tempo em que
desloca o professor de seu „território‟, aproxima e democratiza as relações em sala de
aula, na perspectiva dialética.
Sobre essa questão, um(a) de nossos(as) colaboradora(as), ao justificar a
resposta à questão de número 18, onde foi perguntada sobre os alunos saberem mais que
os professores, a docente 2 disse: “[...] pelo fato de nossa comunidade ser carente, nem
todos os estudantes possuem acesso às tecnologias digitais”. Conhecendo a realidade de
nossas escolas no estado de Mato Grosso, embora exista o Programa Nacional de Banda
Larga nas Escolas, uma ação do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, a
Internet não chegou com qualidade a todas as escolas, especialmente aquelas
localizadas do campo.540
Todavia, essa rede sozinha não resolve o problema da falta de
recurso para a inclusão dos aprendentes. Em sendo eleita por prioridade, essa ação
deveria ser um das mais importantes pautas no tocante aos insumos necessários para a
educação básica, todavia, ao disponibiliza-los, tornaria forte concorrente ao Plano
Nacional de Livros Didáticos, mais especificamente aos interesses das editoras, pois,
não há no país uma demanda por livros iguais aos adquiridos em nome de cada aluno e
aluna matriculados nas escolas públicas. Portanto, a escola se torna refém, bem como os
aprendentes, pela falta de um projeto, cujo propósito seja atender aos interesses do
aprendente e da comunidade.
Ao contrário de investir trilhões na impressão de livros didáticos, parte dos
recursos deveria ser realizado em livros digitais (e-book). Além disso, tal decisão seria
ecológica e sustentável. Mas, para esse alcance haveria de as escolas ter clareza de seus
540
Em 4 de abril de 2008, por meio do Decreto n. 6.424, o governo federal alterou o Plano Geral de
Metas para a Universalização do Serviço Telefônico Fixo Comunitário Prestado no Regime Público
(Decreto n. 4.769), pela conexão de todas as escolas públicas urbanas com MCOM, Ministério do
Planejamento – MPOG e com as secretais de Educação Estaduais e Municipais. Porém, estas últimas, que
são diretamente ligadas às escolas, não procuram fazer a gestão eficiente desse recurso. 540
Ao citar o e-book, não estamos pensando somente na diminuição da impressão dos livros e os vultosos
recursos pagos para sua distribuição, mas principalmente por abrir uma brecha, com o uso dos suportes
digitais, à possibilidade deste material ser interativo, portanto, daria autonomia aos professores de co-criar
o material didático. Manutenção dos serviços sem ônus até o ano de 2015. A gestão do programa deveria
ser feita em conjunto pelo Ministério da Educação – MEC, Agência Nacional de Telecomunicações –
ANATEL, em parceria com o Ministério das Comunicações – MCOM, Ministério do Planejamento –
MPOG e com as secretais de Educação Estaduais e Municipais. Porém, estas últimas que são diretamente
ligadas às escolas, não procuram fazer a gestão eficiente desse recurso.
426
propósitos, contribuindo para a inclusão dos filhos das famílias que frequentam as
escolas públicas.
Outra questão precisa aqui ser apresentada, comete-se um equívoco pensar
que todos os aprendentes, crianças, adolescentes e até mesmo jovem dominam
igualmente o uso dos dispositivos digitais, pois, não se trata de uma tecnologia de baixo
custo, me refiro aos aparelhos celulares digitais, smartphone entre outros, pois muitas
famílias que têm seus filhos matriculados na escola pública não conseguem adquirir os
dispositivos, bem como não conseguem adquirir serviços de Internet em suas
residências.
Conhecendo essa realidade, o governo federal investiu na aquisição de
tablets para professores de Ensino Médio, com o propósito era oferecer-lhes uma
ferramenta para que pudessem dar início ao processo de uso, para, em seguida, feita a
avaliação e sendo ela positiva, adquirir o equipamento para os alunos. Porém, a
avaliação de uso por parte dos professores não foi exitosa, inclusive alguns deles se
recusaram a pegar o tablet541
.
Em se continuando esse distanciamento, a escola pública e em seu interior,
os professores continuarão contribuindo para a exclusão denunciada pela colaboradora
docente 6 que ainda há um número significante de discentes que ainda domina muito
pouco as tecnologias digitais”, ao justificar a resposta da questão 18.
Quando nos deparamos com o termo tecnologia na educação,
convencionada pelas terminologias (TIC) ou novas tecnologias da informação e
comunicação (NTIC), ou simplesmente tecnologias educacionais (TE), nossas
lembranças nos remetem a uma memória de curta duração, infestada de outras
terminologias originárias em diversos países, planeta afora, porém, difundia pelos
Estados Unidos da América, em altíssima velocidade por todo o globo terrestre, em
ondas arrebatadoras, forçando uma cultura da mídia, independente de raça, cor, credo,
541
Esse programa começou a ser implementado em 2012, no estado de Mato Grosso. Coordenamos esse
processo que adquiriu 9.000 (nove mil) aparelhos de 7 e 10 polegadas. Além do dispositivo, tinha
embarcado a plataforma E-Proinfo (ambiente virtual de aprendizagem) que o professor poderia utilizar
com seus alunos, bem como todos os links dos materiais de domínio público. Inicialmente surgiram
críticas, porque sua adoção encontrava a barreira da formação. Em resposta à questão, construímos um
curso específico e ofertamos via CEFAPROS, ainda assim, o sucesso ficou limitado a poucas centenas de
usuários. Um dos fatores de „desacreditar‟ o equipamento se deu por conta do aplicativo diário online,
exigido preenchimento dos professores utilizando a web, não rodar no tablet, não obstante o potencial
desse programa, infelizmente a cultura de uso das tecnologias ainda não conseguiu quebrar as barreiras da
falta de conhecimento, e em alguns casos, falta de compromisso.
427
idade, formação. Foi nessa onda que surgiram os tablets, smartphones, notebook, lousa
digital, computador interativos e inúmeros outros dispositivos que vieram e se foram
sem deixar vestígios.
O fato é que, conforme expressou a colaboradora 18, ao justificar sua
resposta na questão 10, em relação à mudança da maneira dos alunos pensar e aprender
história: querendo ou não as tecnologias estão presentes em nosso cotidiano, fazer delas
um meio que facilite a mediação da aprendizagem é fundamental, pois é uma prática
inovadora no espaço escolar e que foge do ensino tradicional e monótono, apenas do
uso do livro.
Esse pensamento não está desvinculado de um momento histórico e de um
contexto cultural que visam o consumo (mas não somente) e, por não ser adotado e
internalizado pelos mediadores de aprendizagens nos espaços escolares, acabaram se
tornando, territórios de contenda.
Sobre essa mesma questão, contribuiu o colaborador 16 afirmando que as
tecnologias móveis vieram para facilitar o trabalho dos professores, porém, requer os
educadores que preparem mais, pesquise mais, agora podem ter outra preocupação e
fases próprias.
Parece-nos pacificada a ideia de que as tecnologias vieram para ficar e que
podem ampliar os horizontes de professores e alunos, ao fazer da „realidade estendida‟,
bem como da „sala de aula invertida‟, como têm defendido alguns educadores. O fato é
que o facilitar do trabalho requer ponderação, pois, nenhuma das tecnologias existentes
na escola, a exemplo da Internet, dos computadores, exceto a lousa digital e computador
interativo, foram inventadas para a educação, mas, esses dispositivos estão presentes no
cotidiano dos professores e dos estudantes, portanto, reivindicam seu espaço, devendo o
professor trazer para si a responsabilidade de uso associada a todas as ações docentes,
para que ele possa mediar a produção do conhecimento, considerando o projeto maior
de escola.
Ao incentivar a produção do conhecimento histórico local e regional, o
professor de história estimula o aprendente a ser sujeito de sua própria história, afinal, a
crítica sobre os mecanismos de opressão e invisibilidade histórica não estariam
centrados na questão daquilo que a escola tinha de ruim, tratado no tópico 3.8:
428
O que tem de ruim é que eles não ensinam a verdade para os
estudantes crianças e adultos, só ensinam história mal contada que
eles inventam e não contam a verdade, como é preciso ensinar.542
Ou ainda, a crítica sobre o apagamento da memória praticado pelos livros
didáticos, quando não contam a verdade, mas só a história do opressor? O professor de
história tem em suas mãos a possibilidade em produzir saberes, curtir, comentar,
compartilhar, enfim, a liberdade, autonomia e responsabilidade apregoados pela escola
popular e democrática, podendo e devendo ser construídos com e por meio dos
dispositivos tecnológicos „móveis‟.
Ao lançar mão desses dispositivos, tal atitude não pode ser entendida
somente como – incluir mais um aparelho ao que já tínhamos ao nosso alcance, mas sim
uma oportunidade, em definitivo, de aprender com nossa própria prática, na relação
proposta pela escola popular e democrática – observar a prática, produzir teoria sobre
ela e agir sobre a própria prática, como já mencionado por Paulo Freire, no tópico 4.2.1
do presente capítulo:
Hay que pensar la práctica para, teoricamente, poder mejorar la
práctica. No hay que negar el papel fundamental de la teoria. Sin
embargo, la teoria deja de tener cualquier repercusión si no hay uma
práctica que motive a teoria.543
Assim como perseverou o citado, ao afirmar que o aprendente constitui
sujeito ativo no processo de aprendizagem, e melhor, por ser produtor de sua própria
história, tendo o professor como mediador e as tecnologias educacionais como meio,
utilizadas em larga escala para aprendizagens múltiplas e fora dos muros da escola e das
paredes da sala de aula, não seria esse um contrassenso, afinal, não ensinamos história
visando preparar o cidadão do futuro? E para que ele possa ter autonomia, segurança e
responsabilidade em seus atos, suas escolhas? Que futuro terá ele se não deslocarmos o
aprendente de um presente passado bastante conhecido nos registros dos livros
542
Alvorada (1977) Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia (1977) A16.0.44 P 5.7. 543
Arquivo da Prelazia de São Félix do Araguaia. Recorte de jornal sem identificação. DIII. 0.27 p. 5.5. O
evento foi construído como ato preparatório para a Assembleia Mundial de Educação de Adultos,
realizada em 21 de junho de 1985. Paulo Freire esteve como conferencista, momento em que publicou
alguns postulados que estaria trabalhando durante o evento. O texto refere-se a um excerto da entrevista
que deu ao jornal.
429
didáticos, nos planos estaduais e municipais de educação, nos projetos políticos
pedagógicos e nos planos de aula do professor de história?
Aliás, se ampliarmos o foco e clareamos o universo dos territórios das
outras áreas de conhecimento e suas respectivas disciplinas, se observará que o
professores de matemática, geografia, química, física, biologia, filosofia e sociologia,
dentre outros, se assemelham aos professores de história, em aceitar os „limites‟ das
caixinhas „do conhecimento‟ e praticar isolada e friamente aos aprendentes. Se os
professores, incluindo os de história, não perceberem que a escola, sem um projeto
integrado com os problemas locais e em sintonia entre as áreas do conhecimento e
tampouco dialogar com a realidade vivida pelos aprendentes, cada vez menos alcançará
sucesso, pois o mundo fora dos muros da escola oferece, sem precedente na história,
mesmo que de forma aleatória, informações embarcadas nos mais variados suportes,
dentre as quais as vídeo-aulas (web-aulas) via Youtube. Confere dizer que existem
vídeo-aulas muito ruins, porém há excelente material disponível ao toque do dedo.
Ou façamos nós esse movimento em torno de observar a prática, teorizar e
transforma-la, ou acolhemos o ato falho de continuar dizendo que o problema não é
nosso e que, portanto, não temos nada com isso. Vivemos num momento em que se
expande a web-exclusão, e a web-dominação amplia seus „adestrados‟ consumidores,
tão igual quanto mais perversa que o analfabetismo do século XX e seus antecedentes.
Ser professor de história antes da web e em tempos de informações nas
nuvens continua exigir certos cuidados com „o fazer‟. Toda pessoa que decidir pela
profissão haverá de arregimentar-se de algumas certezas – alguns „saberes‟. Não há, em
hipótese alguma, uma receita pronta, um itinerário que você possa tomá-lo com certeza
de sucesso.
Para cada espaço-tempo, para cada escola, para cada sala-de-aula, para cada
grupo de aprendentes, para cada „conteúdo‟, tópico ou tema serão exigidos meios e
métodos distintos. Basta observar as disputas pelas memórias nas redes sociais.
Inventam-se „fatos‟, „verdades‟, disseminam-se ideologias e negando outras, alimentam-
se discursos. Nesse espaço-tempo é que os professores de história se encontram.
Pensar global, contraditoriamente têm conduzido muitos tornar-se cada vez
mais individualistas. Pensar global e agir local tem se constituído em dilema ético para
todos os professores de história. Seu fazer em tempos de cibercultura não deve fugir à
430
sua função social de fazer com que nossos aprendentes se percebam agentes de sua
própria história, pois não basta ter acesso e conhecer outras milhares de „estórias‟, não
basta ter acesso a centenas de bibliotecas digital, museus, repositórios disponíveis na
web, ou, como já falamos anteriormente nas páginas dos livros didáticos, se elas não
fizerem com que possamos pensar a nossa própria história.
Haveremos de denunciar as tentativas de „massificação‟ de „adestramento‟
das pessoas, pois essa foi e continua sendo uma forma perversa de manter uma relação
violenta do opressor (detentor dos meios de produção, transformação, conhecimento
como bens amoedáveis) contra os oprimidos, sem escolas, sem condições para produzir
saberes que possam servir de „arma‟ nessa batalha inglória, não fosse a possibilidade de
conquistar a melhor e a mais contundente atalaia de defesa e instrumento de poder – o
conhecimento.
As muralhas das fortalezas, assim como as paredes das escolas e salas-de-
aula já não servirão de escudo, uma vez que deixaram de ser impenetráveis, pois, em
tempos de cibercultura, em tempos de comunicação instantânea, em tempos de realidade
estendida, ela se encontra invertida com a presença dos suportes tecnológicos, que,
antes, se limitavam a folhas do caderno e dos livros, ganhando novos formatos, numa
dinâmica inacreditável aos olhos dos professores das últimas décadas do século XX,
uma vez que elas foram literalmente deletadas, mesmo que fisicamente tenham
permanecido nos mesmos lugares.
Outrora, o melhor professor era aquele que se conhecia por meios dos
textos, das palestras e aulas, cujo limite era o tempo presencial. Hoje, as melhores aulas,
e seus autores e co-criadores estão espalhadas por todo o mundo, acessível pela rede
mundial de pessoas conectadas por computadores. Portanto, o que um dia se limitou aos
artefatos, aos espaços fisicamente edificados, hoje se multiplicou e está ao alcance de
todos. Porém, como saber onde estão, e se são confiáveis, senão por meio da orientação
e mediação do professor?
Assim, estamos diante de um risco, pois, se por um lado a impessoalidade
parece ser a marca registrada das relações sociais impostas pela cultura neoliberal e
difundia nas e pelas redes sociais, pela prática do „selfie‟, por outro lado surgem as mais
variadas formas de - tudo se vende - as manias que precisam ser eleitas como
431
problemática das aulas de história, a exemplo dos „youtubers‟.544
Ao tempo que traz
para o centro das atenções „os sujeitos anônimos da história‟, sua invenção se faz dentro
de um padrão que possa se tornar ícone de um tempo, do contrário não será promovido
pelos „likes‟ nas redes sociais e não alimentará essa indústria nada ingênua da mídia. O
grande negócio é tudo aquilo que se pode consumir, mesmo que meia dúzia de frases de
efeito.
Não por acaso, a saga pela venda da imagem está por traz dos „makes‟ a
busca pela aparência ideal, mesmo que fora daquele espaço (ambiente físico ou virtual)
público sejam alimentas as mais variadas formas de comportamento, especialmente
revestidos da intolerância, do preconceito, do racismo, vitimando uma alienação sem
precedente na história.
Sobre a necessidade de o professor dominar os códigos e linguagem digitais,
José Manuel Moran trata de uma questão fundamental para entender os processos e
desafios que cercam a construção do conhecimento produzido no chão da escola, como
afirma o autor, o desafio é letrar digitalmente crianças e jovens, pois:
A educação escolar precisa compreender e incorporar mais as novas
linguagens, desvendar os seus códigos, dominar as possibilidade de
expressão e as possíveis manipulações. É importante educar para usos
democráticos, mais progressistas e participativos das tecnologias, que
facilitem a evolução dos indivíduos.545
Percebe-se que, num efeito dominó, as questões se entrelaçam e conduzem a
domínios correlatos, ou, como o titulo diz, à convergência, assim permeia nossas
pesquisas levando em conta a necessidade dos alunos.
Concluímos esse tópico na perspectiva de ter, a partir do expresso pelos
colaboradores, apresentado respostas às questões anteriormente levantadas em relação
544
Youtubers é uma nova terminologia para definir os usuários da Plataforma “Youtube”, que usam a web
como uma fonte de liberdade alternativa, mostrando seu quotidiano, partilhando informações, entretendo,
falando de comportamentos jovens. Tem transformado muitos em celebridade, a exemplo do canal de
comédia “Porta dos Fundos”, que possui mais de 10 milhões de subscritores. Esse fenômeno de massa
requer, por parte dos professores de história, maior atenção, afinal, gradativamente se tornam formadores
de opinião, restando-nos saber que opinião e que valores estão sendo inculcados na rede e por meio dela.
Para saber mais, acesse http://platinaline.com/saiba-o-que-sao-youtubers/ . ou
HTTPS://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_personalidades_do_YouTube . Acesso em 21/02/2017. 545
Moran, José Manuel. Novas tecnologias e mediação pedagógica / José Manuel Moran, Marcos T.
Massetto, Marilda Aparecida Behrens. Campinas, S.P: Papirus, 2.000, p. 36.
432
ao uso das tecnologias no contexto escolar, avaliada sob o primeiro princípio da escola
popular e democrática. Igualmente, apresentamos os desafios encontrados pelos
professores em transformar sua prática. No próximo tópico delinearemos algumas
questões cujo foco será pensar a escola para 2030, a escola do futuro.
4.7 - Das práticas à teoria – da teoria às práticas: por uma reinvenção da escola no
Araguaia-Xingu no e para o século XXI, caminhos a seguir
Como observado anteriormente, as práticas de mediação e aprendizagem no
contexto escolar exigem novos conceitos sobre si e sobre os meios e métodos
demandados pelos escolares do presente e do futuro, em 2030. Pois, como afirmou a
colaboradora 18, ao justificar sua resposta à questão 18 afirmou que havia professores
que mal sabiam ligar o computador interativo e foram os alunos que auxiliaram.
A afirmativa permite admitir que nenhum professor precisa, de pronto, saber
tudo, mas, quando não souber, deve procurar quem sabe, pois é esse processo de troca
que enriquece o fazer na escola. Porém, uma vez tendo a oportunidade em aprender, que
o faça. Infelizmente, a compartimentação da escola acabou criando territórios
intransponíveis, a saber, a falta de „vontade‟ por parte de alguns professores de
aprender, procurando sempre aquele(a) que execute a função, como aconteceu por
muito tempo na escola das últimas décadas, se ela não dispunha de um técnico de
informática ou se um professor era o responsável pelo laboratório não estivesse na
escola, nenhum outro saberia colocar em uso os equipamentos.
O segredo está na transformação e reinvenção da escola por meio de novas
práticas, portanto, estudo sobre o que ensina o professor de história quando ensina
história, fazendo uso dos meios tecnológicos à disposição largamente utilizados fora dos
muros da escola. Tais transformações passam, inicialmente, pela transformação do
profissional da educação, e, para esse fim, há dois caminhos a seguir: retomar a
academia e se matricular em mais um curso superior, o que se torna inviável por várias
razões, primeiro, devido ao acesso ainda ser um problema, especialmente aos
municípios distantes dos grandes centros; segundo, pelo currículo da maioria dos cursos
de licenciatura ainda não contemplarem disciplinas relacionadas à tecnologia
educacional.
433
Restando, portanto, a opção da formação continuada. Nesse sentido,
apresentamos, de forma sintética, os cursos que foram produzidos pelo Ministério da
Educação, em parceria com as Universidades, os quais foram disseminados em Mato
Grosso pelos Centros de Formação dos Profissionais da Educação, aos quais tivemos
sob nossa coordenação. Porém, antes de apresenta-los, azeitemos o diálogo com os
pensadores da formação continuada.
Nesse sentido, Tardif descreve:
[...] ora um professor de profissão não é somente alguém que aplica
conhecimento produzido por mecanismos sociais: é um ator no
sentido forte do termo, isto é, um sujeito que assume sua prática a
partir dos significados que ele mesmo lhe dá, um sujeito que possui
conhecimentos e um saber fazer provenientes de sua própria atividade
e a partir dos quais ele a estrutura e a orienta.546
Inicio descrevendo o curso Introdução à Educação Digital, cujo objetivo é o
de familiarizar o professor com a utilização dos recursos computacionais básicos
(Sistema Operacional Linux Educacional), com duração de 40 horas, distribuídas nas
modalidades, e ministrados presencial e a distância, visando a capacitação do cursista
para o domínio das ferramentas: editor de texto; apresentações de multimídia; recursos
da web para produção de trabalhos; pesquisa e análise de informações na Internet;
comunicação e interação (e-mail, lista de discussão, bate-papo).
Já o curso Tecnologias na Educação: Ensinando e Aprendendo com as TIC
objetiva subsidiar o professor na compreensão do potencial pedagógico das tecnologias
no ensino e na aprendizagem escolar. Com duração de 100 horas, também executado na
modalidade presencial e a distância, inclui como programação o planejamento de
estratégias de ensino e de aprendizagem, integrando recursos tecnológicos disponíveis e
a criação de situações de aprendizagem que levem o aluno à construção de
conhecimento, ao trabalho colaborativo, à criatividade e aos conhecimentos esperados,
em cada nível/série seguindo os Parâmetros Curriculares Nacional (PCNs).
Na mesma linha, o PITEC – Projeto Integrado de Tecnologia ao Currículo
visa capacitar professores e gestores escolares para que eles possam desenvolver
projetos, utilizados em sala de aula, junto aos alunos, integrando as tecnologias da
educação existentes na escola, bem como na construção de projetos de aprendizagem.
546
TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.
230.
434
Fonte: Gerado pelo autor em outubro de 2014 por meio do Sistema Integrado de Tecnologia Educacional
do MEC
Para concluir, foi ofertado o curso Redes de Aprendizagens, o qual visou
preparar os professores para compreender o papel da escola frente à cultura digital,
dando-lhes condições de utilização de novas mídias sociais no ensino, visando ainda
promover a análise do papel da escola e dos professores frente à cultura digital numa
sociedade altamente tecnificada. Compreender como as novas mídias sociais
diversificaram as relações entre as pessoas, e, em especial, como semelhantes mudanças
afetaram nossos jovens e se refletiram na sua relação com a aprendizagem e com a
escola, possibilitando a compreensão do potencial educativo das mídias sociais digitais.
.
106
25
29
262
185
84
0
74
79
0
34
157
30
0
69
30
29
72
226
0
35
0
102
27
48
80
90
133
0
0
213
0
194
119
108
120
0
93
163
147
1210
99
115
50
2
0 200 400 600 800 1000 1200 1400
Tangara da Serra
Sinop
São Félix do Araguaia
Rondonópolis
Primavera do Leste
Pontes e Lacerda
Matupá
Juína
Juara
Diamantino
Cuiabá
Confresa
Caceres
Barra do Garças
Alta Floresta
Gráfico 13: Distribuição númérica do número de cursistas atendidos pelos cursos de Formação Continuada em Tecnologia Educacional (IED, TIC, EP e
REDES) por CEFAPRO. Extraído do SIPI em 17 de outubro de 2014.
Redes de Aprendizagem
Elaboração de Projetos
Tecnologias na Educação: Ensinando e Aprendendo com as Tics
Introdução a Educação Digital
435
Sobre a oferta e atendimento aos professores das redes estadual e municipal
de Mato Grosso, em relação aos cursos de formação continuada, soma-se o número de
cursos ofertados aos professores entre 2009 a 2014, os quais passaram de 56.000
(cinquenta e seis mil), só em 2014, conforme observamos no gráfico a seguir, tendo sido
atendidos 4.641 cursistas, nos quatro cursos. Só nos polos de São Félix do Araguaia e
Confresa, recorte espacial da pesquisa, foram ocupadas 700 vagas:
Todos os cursos apresentados foram desenvolvidos pelo MEC e, até 2014
tínhamos como pauta as políticas públicas, todavia, a partir daquele ano, por razões
ainda desconhecidas, a Secretaria de Estado de Educação não mais os ofertou. Verificar
as razões poderá se tornar um desdobramento da pesquisa, sendo que para o momento
voltamos nossas lentes para transcrever as respostas de seis, entre os 19 colaboradores,
ao serem desafiados a pensar a escola 2030, a escola do futuro responderam.
Quadro de respostas : A escola do futuro sob o olhar dos professores de história
Colaboradora 1- Toda tecnologia, onde muitos professores vão ser substituídos pela evolução
tecnológica, porém acredito que também os professores vão acompanhar este desenvolvimento
Colaboradora 2 - Gostaria que a escola do futuro fosse realmente universal, onde todas as
pessoas tivessem acesso permanecia, e que a educação fosse realmente prioridades para os
governante, que as riquezas gerada pelos trabalhadores e trabalhadoras desse país fosse
revertida em educação de qualidade, valorização dos professores, salas de aula amplas e
equipadas com diversas ferramentas tecnológicas de (notebook, lousa digital, data show,
Internet de qualidade, laboratórios por área de conhecimento), pois facilitaria muito o acesso
ao conhecimento.
Colaboradora 3 – Olha, o sonho grande parte dos professores seria ter uma sala adaptada, pra
cada disciplina, com os meios tecnológicos disponíveis em cada sala, sem precisar o professor
ficar mudando de sala, o aluno, sim, mudaria.
Colaborador 14 - Escola aberta, com computador e tablets estarão mais presentes na vida dos
professores, do que lousa e apostila, livros, maior parte do ensino será personalizada vai
acompanhar o ritmo e os interesses dos alunos, aulas online que as presenciais, elas terão
formato híbrido usando plataforma online e espaço físico onde ocorram as interações sociais, o
professor deixa de ser peça cultural para ser mediador do processo de aquisição do
conhecimento.
Colaboradora 18 - Penso numa escola que valorize e respeite a diversidade étnica, cultural,
social, econômica etc., uma escola que forme seres humanos autônomos e críticos, capazes de
lidar com as mudanças e transformações da sociedade. Pelo que percebo, a escola não está
conseguindo acompanhar tais transformações ocorridas no decorrer do tempo. Temos um
modelo de escola do passado para alunos do presente. Espero que até lá, tenhamos conseguido
suprir esta necessidade de um novo modelo de escola e educação significativo que esteja de
acordo com a realidade futura.
Colaboradora 18 Esse pensamento é desafiador, pois nos últimos anos as coisas se
transformam de maneira surreal e observo que a escola não tem conseguido acompanha-las,
436
mas imagino que necessitamos de uma nova organização escolar principalmente que atenda os
anseios dos alunos em tempos de cibercultura. Nesta perspectiva, imagino uma escola 90%
digital, nesta o aluno deverá ter mais autonomia e colaborar com a construção do ensino
aprendizagem. A escola do futuro tem que oferecer muitas novidades para que os estudantes
vejam ela como algo prazeroso e não obrigatório.
Ao observar as respostas, percebemos que, ao pensar a escola do futuro, os
professores desenharam uma escola tecnificada, repleta de recursos à disposição dos
professores e aprendentes, uma escola que acompanhasse o espírito do tempo, uma
escola que respeitasse a diversidade étnica, cultural, social e econômica, enfim, uma
escola capaz de formar seres humanos autônomos e críticos. Desejavam ainda que os
governantes tivessem a educação enquanto prioridade, com valorização profissional, e
assim, assegurasse uma educação de qualidade.
Parece-nos que não há como imaginar uma escola em 2030 senão inversa
em seu próprio tempo. Todavia, para concluir o tópico, bem como o quarto e último
capítulo, importante se faz retomar os debates sobre a necessidade de se pensar-fazer o
projeto de escola popular e democrática, com intuito de desnaturalizar o saber-fazer do
professor de história em face à cibercultura. Não se trata de algo a ser desvendado no
futuro, mas a ser decifrado, decodificado e reificado por uma história do tempo
presente.
437
Considerações finais
Na perspectiva de concluir a narrativa, nossa procura será a de, em poucas
linhas, desenhar a invenção da escola no Araguaia-Xingu mato-grossense. Porém, antes
de fazê-lo compartilhamos que, à medida em que a pesquisa avançava, os desafios iam
se avolumando como emaranhados de enigmas a ser decifrados sobre os pilares nos
quais se edificou a escola popular e democrática em tempos e pós governo militar.
No avançar da tessitura da narrativa, novos pensamentos, dúvidas e
sentimento da necessidade de respostas povoavam o fazer, e, sem perder de vista a
angústia inicial, entender como se organizou a escola, seus idealizadores e praticantes,
bem como a necessidade em responder em que princípios foi pautada sua invenção, que
importância pode a ela ser atribuída no processo de organização social, no tempo e
lugar, como as famílias se organizavam em torno da escola dos patrimônios e sertões
diante daquele quadro de perseguição, violência e morte nas águas e terras contíguas aos
rios Araguaia-Xingu na segunda metade do século XXI, mais especificamente entre as
décadas de 1970 e 2018.
Faz-se importante registrar que a pesquisa sobre a invenção da escola
naquele espaço específico revelou uma face do cotidiano que pode não ter existido
materialmente, porém, fortemente presente no discurso expresso em sucessivas
narrativas em fragmentos publicados pelo periódico Folha Alvorada, que, somados a
outras fontes, a exemplo do Diário e seus outros escritos de Pedro Casaldáliga, e
defrontadas com outras narrativas publicadas sobre aquela espacialidade, convergiram
para que pudéssemos compor a trama e delinear a narrativa como forma de resposta aos
objetivos inicialmente traçados.
Assim, construir uma narrativa sobre a invenção da escola no Araguaia-
Xingu requereu longa caminhada e travessias, algumas marcadas por descobertas
revigorantes, outras a peso de muitas dificuldades, espinhos, pedras e outros obstáculos
que se avolumavam à medida em que as forças se esvaiam. Mas, todas as vezes que me
deparava com os empecilhos, lembrava da frase marcante do Bispo, que o pior medo é o
medo do medo. Assim, encorajava-me em continuar a leitura da escola no tempo,
provocando novos encontros revestidos de utopias.
438
Dessa feita, ao situarmos a escola em „tempo‟ e „lugar‟, percebemos que ela
conseguia escapar, transcendendo ao cronológico e ao espaço em que havia sido
edificada. Por essa razão, procuramos revelar uma face de sua invenção em forma de
narrativa.
Pensava ser esta uma tarefa fácil, contudo, os enigmas sobre a invenção da
escola se tornaram um desafio continuo, assim, encorajava-me a duelar sobre a leitura
da escola no tempo, provocando novos encontros marcados por denúncias e utopias.
Considerando ter nascido em Mato grosso, filho de pais migrantes (pai baiano e mãe
mineira), membro de uma família de 9 irmãos, cuja trajetória assemelhava à das
milhares de famílias que se deslocaram para Mato Grosso na perspectiva de ter acesso à
terram não podia negar que a formação escolar básica (1º e 2º graus) tenha sido numa
escola pública do interior do Estado, entre as décadas de 1980 e 1990, somada ao fato
de ter concluído o curso superior e a pós-graduação, em âmbito de mestrado em
História, pela Universidade Federal de Mato Grosso, em finais do século XX e início do
século XXI. E conhecer a realidade da escola pública de educação básica como
professor há quase 25 anos, mas não tendo contribuído nas pinceladas necessárias para
compor o quadro. Porém, embora a experiência tenha sido importante, mostrou-se
insuficiente, pois eram somente impressões, miragens do que a pesquisa poderia revelar
sobre o conflito permanente pelo qual passou a escola nas últimas décadas do século
XX, com prolongamentos no século XXI.
Embora a construção da narrativa tenha emoldurado o cotidiano dos
escolares, procuramos fugir às armadilhas do tempo, contextualizando as condições da
produção do trabalho, bem como as experiências vividas pelos protagonistas da escola
da educação básica.
Ao longo da pesquisa, buscou-se entender o sentido da invenção da escola
no Araguaia-Xingu mato-grossense, mais especificamente o sentido político da prática
educativa dos professores, em especial, os de história, na esteira da concepção de uma
escola popular e democrática no contexto das transformações operadas na ordem do
discurso e sua prática.
Porém, as respostas possíveis, as quais foram apresentadas ao longo da
narrativa, revelou a escola enquanto centro nevrálgico do processo de resistência e
organização social das famílias diante da ação opressora do latifúndio, com apoio do
439
Estado, por conta desta ter sido edificada sob a luz de um projeto de sociedade mais
justo e igualitário, consignada à escola popular e democrática.
Em seu processo de construção, fez-se uso da cultura popular, a exemplo da
literatura de cordel, tomando a linguagem do cotidiano enquanto forma de promover,
em sentido amplo, a alfabetização das famílias, e, por conseguinte, o alcance do direito
ao voto e ao poder de denunciar os opressores.
Mesmo que mergulhada em dificuldades, a escola não se tornou uma ilha
banhada pelas águas do Araguaia ou do Xingu, mas, numa instituição sensível aos
problemas das famílias e de seus escolares.
Ao longo da narrativa, foi possível perceber os vários níveis da participação
popular na invenção da escola e na resistência, o que nos possibilita afirmar que ali se
fizeram ecoar gritos de democracia, mesmo que tivessem rodeados por grandes
extensões de terra e pastos, os quais se ouvia ao longe, nas fronteiras do Estado, do país,
não sendo suficientes para impedir que as lutas no Araguaia- Xingu mato-grossense
estivessem conectadas a outras lutas em torno da educação na América Latina,
tampouco deixou de ser ouvida na Europa por conta das denúncias feitas por Pedro
Casaldáliga em sua rede de sociabilidades.
Igualmente constatou-se que a escola/educação esteve presente nas ações do
líder religioso ampliado em sua rede de sociabilidade, anunciadas/denunciadas as
situações-problemas vividos pelas lideranças e pelos escolares com ressonância em todo
território nacional por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, seja no
exterior, com alcance ao Vaticano, como anunciado aos Papas Paulo VI e seu sucessor
Paulo II, conforme citado no tópico 3.8.2, quando o líder religioso apresentou, em 1986,
a Memória dos 10 anos do assassinato do Padre João Bosco.
Todavia, a alfabetização dos povos, recebeu maior empenho nas ações da
Prelazia, pois, “a fome da cabeça é maior que a fome da barriga”547
. Tal feito pode ser
percebido desde 1970, com a criação do Ginásio Estadual do Araguaia, que, somada as
outras ações antecedentes e consequentes, cumpriu função decisiva na organização e
permanência das famílias nas comunidades, a despeito dos interesses dos tubarões e
governo opressor.548
.
547
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970. A16.0.03 p 01-3 548
“[...] o povo esquecido, desesperançado” pois a “fome de cabeça é maior que a fome de barriga”.
Alvorada (1970), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1970 A16.0.03 P3.3
440
Para esse fim, observamos que a comunicação via periódico Folha Alvorada
tornou-se ferramenta de primeira ordem, não só para denúncia, mas difusão e troca de
informações, além de, como foi apresentado, servir de suporte aos professores de
história, em boa medida, a fim de fugir da „história mal contada‟.
A pesquisa documental e respectiva análise também permitiram afirmar que,
em torno da escola se produziram conhecimentos numa relação prática-teoria-prática,
pouco usual na cultura da escola pública brasileira da época, e extensiva às do século
XXI. Embora essa iniciativa antecedesse a invenção da escola no Araguaia-Xingu, pois,
como vimos no último capítulo suas origens datam da década de 1960, no Nordeste
brasileiro, quando ali se fez e dali derivaram inúmeras possibilidades de reinvenção da
escola popular e democrática.
Esperamos ter contribuído com a história da escola e, por meio dela,
fomentado a memória do rico processo de construção da educação no Araguaia-Xingu
mato-grossense, seja utilizando a estratégia da seleção das fontes e coleta de dados,
onde mostramos a possibilidade de realizar pesquisa documental aliada à técnica de
associação livre para se analisar a história ensinada; a possibilidade de os professores
observarem o cotidiano, lançando mão de novos meios e métodos em seu fazer docente;
que esse trabalho possa subsidiar novas pesquisas sobre o tema, cujos pontos
apresentamos em forma de síntese a seguir:
1 - No ano de 1968, em São Félix do Araguaia, município de Barra do
Garças, havia somente uma escola na Lagoa, hoje Vila São José, onde Dona Tunica
lecionava para crianças até a 4ª série (5º ano). Com a criação da Prelazia e com as
pesquisas realizadas, em 1970, pelo Professor Hélio de Souza Reis, publicadas pela
Carta Pastoral em 1971, denunciava-se que 52% dos adultos se declaravam analfabetos,
34% sabiam ler um pouco e só 9% tinham a 4ª série, portanto, a maioria da população
era analfabeta. Uma segunda pesquisa, com vistas a um planejamento para superação
daquele quadro, teve por base um curso ministrado por Maria Nilde Mascellani, de
visão global, com programação do trabalho da prelazia em torno da educação, conforme
apresentado no tópico 4.2.
2 - Em 1970, a criação do Ginásio Estadual Araguaia pela prelazia
(apresentado no tópico 2.3) que, para seu funcionamento trouxe os primeiros
441
professores habilitados para lecionar para os alunos ali matriculados. Em 1972, formou-
se a primeira turma de 8ª série (9º ano). O prestígio da escola foi incomodando os donos
do poder local, alimentado pelo distanciamento dos tubarões, em razão da publicação da
Carta Pastoral que estabeleceu um divisor de águas entre o latifúndio e a prelazia. E,
quando a repressão militar, em 1973, atingiu a região e principalmente a prelazia, o
Ginásio Estadual foi o primeiro espaço a ser atacado, tendo seus professores
perseguidos, não tendo a prelazia como continuar este trabalho.549
Sobre esse episódio, convém dizer que motivos haviam de sobra, se
observados do ponto de vista da participação popular e democrática, uma vez que sua
organização em torno do GEA incomodava a ditadura militar, pois, ali havia duas
organizações, a União Estudantil de São Félix (UNESF)550
e a Associação de Pais e
Estudantes (APE). Congregava os alunos para representa-los e para promover seu
desenvolvimento nos diversos campos da atividade humana.551
A UNESF mobilizava os
alunos, conseguindo comprar um lote e estava adquirindo material para construir sua
sede. De abril de 1972 a setembro de 1973, 36 reuniões foram realizadas.
Era uma escola participativa e democrática. Como lembra Aldenira Setúbal,
da primeira turma do GEA, hoje (1994) professora da Escola José Fragelli em São
Félix, “[...] a união e o diálogo entre alunos, professores e pais era o que marcava o
ginásio‟. Havia „arte na educação”, diz ela. E outra ex-aluna, Shirley Luz Brio, hoje
(1994) professora municipal, diz que o GEA se destacava pela „organização‟: “A escola
parecia que acendia uma luz na vida da gente”, lembra.552
Todavia, considerando aquele momento turbulento do governo militar,
qualquer iniciativa que „atentasse‟ contra o governo opressor, mesmo que fosse uma
vara verde, seria suficiente para ser tomada por afronta à segurança nacional.
Explicamos, o professor Elmo, para evitar que um menino jogasse pedra na vidraça da
escola, lançou mão de uma vara verde e correu atrás do menino. Porém, este era filho de
549
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,
p. 5-16. 550
Conforme a matéria, a UNESF, foi criada no dia 3 de abril de 1972 e esta funcionava como se fosse a
UNE de São Félix. Os pais também participavam da administração da escola. A Associação de Pais e
Estudantes – APE, criada em 9 de maio de 1972, avaliava o andamento do ginásio, determinava medidas
disciplinares, propunha mudanças na condução da escola e se preocupava com a cidade, com poder de
interferir no aprendizado dos alunos. (Procurou casas de festa para que não admitissem alunos nos
horários de aula, por exemplo). O Presidente eleito foi o Pastor Nelson, da Assembleia de Deus. 551
Alvorada (1995), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Mar/Abr. de 1995. A 16.14.
02, p. 8-8. 552
Ibid.
442
um comerciante local e, passados três meses, serviu de pretexto para que o pai fizesse
uma reclamação formal contra o professor Elmo, ao diretor, padre Pedro Mari,
solicitando o afastamento do professor. Não bastasse a reclamação, passou a ameaçar o
professor de morte. Diante disso, professores, alunos e pais, de comum acordo,
decidiram suspender as aulas, até que fossem dadas condições de segurança para o
corpo de profissionais que atuavam na escola. A decisão foi comunicada às autoridades
e a todo o povo de São Félix. Era 24 de maio de 1973.
Poucos dias depois, grande contingente militar chegou a São Félix, estava-
se diante de um ato de subversão: os professores „tão dedicados‟, nada mais seriam do
que „perigosos agitadores‟, segundo os militares. No dia 4 de junho, os professores
foram obrigados a retornar às aulas, com soldados armados perfilados na porta das
salas. Os dirigentes da UNESF foram perseguidos e se esconderam. A equipe da
prelazia, responsável pelo Ginásio, foi obrigada a retratar-se da atitude tomada pelo
professor Elmo e pela decisão coletiva de parar as aulas, com intuito de preservar os
professores das ameaças de morte que vinham sendo anunciadas.
Com este pretexto, a repressão prendeu, em Serra Nova, o agente de pastoral
Edgard Serra e a visitante Thereza Salles, companheiros dos professores do Ginásio
Estadual Araguaia. No início de junho, nova investida com prisões e torturas, atingindo,
sobretudo, os agentes de pastoral da prelazia, a ex-aluna Adauta e o líder dos posseiros
de Serra Nova, Lulu.
Tal tratamento desmotivou completamente os professores e as lideranças da
escola. Em setembro, a União dos Estudantes de São Félix encerrou suas atividades, e
os professores fizeram um comunicado à cidade de que não mais retornariam em 1974.
Assim, o ano de 1973 foi encerrado num clima misto de perplexidade e espanto, e o
GEA deixou de existir.553
3 - Porém, no sertão, as campanhas missionárias levavam educação através
dos cursos de alfabetização de adultos, como apresentado no tópico 4.4.1 do capítulo
IV, já que, para aqueles que sabiam ler, era ofertado curso de complementação. Partindo
da realidade do povo, escolheram-se as palavras geradoras da alfabetização, de acordo
com o método Paulo Freire. Todavia, como se observou ao longo da narrativa, o
processo de „semear‟ escola no sertão se deu a partir da união das famílias em
553
Alvorada (1995), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Mar/Abr. de 1995. A 16.14.
02, p. 8-8.
443
comunidade, sempre „animados‟ pela prelazia e pela rede de enfrentantess, dentre eles
professores, muitos dos quais se tornaram, aos olhos dos opressores, subversivos
guerrilheiros.
4 - Os índios Tapirapé também sentiram a necessidade de alfabetização,
enquanto mecanismo de enfrentamento à sociedade dos brancos, sobretudo na luta pela
terra. Assim, em 1973, a Prelazia iniciou uma escola na aldeia, com os professores Luiz
e Eunice. Com o passar dos anos, a escola produziu seu próprio material didático,
através de cartilhas, gramáticas e outros livros, todos redigidos na língua Tapirapé.
Igualmente ocorreram várias tentativas de atendimento às escolas das
aldeias Karajá. Porém, como vimos ao longo do capitulo 2, dezenas de escolas foram
edificadas com recursos da própria comunidade e nelas vários agentes da pastoral
assumiram o ensino, como professores, diretores ou na orientação pedagógica.554
5 - Com a criação de novos municípios, a maior parte dos agentes ligados à
educação participou do processo político local, para garantir que a educação fosse
prioridade na administração, o que se concretizou de 1982 a 1988, com as Prefeituras
Populares de São Félix, Santa Terezinha, Porto Alegre do Norte e Canarana. Essa
ampliação se deu, literalmente, pela educação.
6 - Já em relação ao problema levantado por Maria Nilde Mascellani, em
1972, sobre a formação dos professores, dentro do projeto de escola/educação no
Araguaia-Xingu foi implantado, entre 1978 e 1981, um projeto inaugural dos Cursos de
Capacitação de Recursos Humanos de 1º grau para os professores, bastante tratado no
tópico 2.3 da tese. O resultado desse curso produziu bons frutos, os quais
desembocaram no Projeto INAJÁ, concebido para atender à formação de 2º grau aos
professores leigos. Como apresentado no capítulo 4 da tese, o INAJÁ, em sua primeira
edição, atendeu a 160 professores dos municípios de São Félix, Santa Terezinha,
Ribeirão/Cascalheira e Porto Alegre do Norte nos períodos de férias. O curso teve início
em 1988, tendo sido concluído em meados de 1990.
Os dois cursos nasceram da iniciativa de pessoas ligadas ou sintonizadas
com a filosofia educacional da prelazia. E, seguindo os pressupostos de uma escola
popular e democrática, contaram com a participação coletiva para sua criação, bem
como com a participação da comunidade, para que não viesse a ser prejudicado quando
554
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,
p. 5-16.
444
da „falha‟ do Estado e das prefeituras, responsáveis pelos recursos necessários para sua
execução. Nesse particular, só se pôde concretizar o projeto com o apoio da igreja
católica, que cedeu a infraestrutura para a realização dos cursos.555
Como observado no
tópico 4.4, durante a semana dedicada à formatura dos cursistas do INAJÁ, foram
intensificados os debates sobre a necessidade de cursos superior na modalidade de
férias, portanto, plantava-se ali a pedra fundamental das licenciaturas Parceladas da
Universidade do Estado de Mato Grosso.
7 – Conforme apresentado na narrativa, esta universidade estadual cumpriu
e cumpre papel fundamental no projeto de educação popular e democrática, inaugurado
no Araguaia-Xingu na década de 1970, embora sua oferta tenha iniciado 20 anos depois.
Assim, como o INAJÁ, está diretamente ligada ao movimento de educação popular,
com estreita ligação ao processo de produção de conhecimento anunciado na presente
narrativa.
A luta pela terra e pela vida passava pelo direito à educação e à participação
política nos processos de tomada de decisão. Para tanto, a escola serviu de atalaia e de
mecanismo de resistência, meio pelo qual pôde construir conhecimento sobre a
realidade de indígenas e não indígenas e criticamente usar tais conhecimentos para a
transformação da própria realidade. Portanto, a teoria do conhecimento serviu de
sustentáculo para o projeto de escola popular e democrática, que agora ganha algumas
páginas para que se evite o apagamento da sua memória.
Assim como foi extremamente importante a invenção da escola no
Araguaia-Xingu mato-grossense nas últimas décadas do século XX, asseveramos que a
reinvenção da escola do século XXI passa pela democratização do acesso à cultura
digital.
8 - A pesquisa revelou-nos o porto que deu abrigo às concepções de escola
de educação básica, nas décadas de 1970 a 1990, e, posteriormente, em menor
intensidade nas décadas de 2000 até os dias atuais. Como foi apresentado ao longo da
narrativa, essa escola específica foi pensada aos moldes de uma escola popular e
democrática, seguindo, portanto, os ensinamentos de Paulo Freire, de Maria Nilde
Mascellani, de Rubem Alves e especialmente daqueles que, na prática construíram
formas de „ver‟, „sentir‟ e „intervir‟ na realidade por meio da ação coletiva.
555
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Jul./ago. de 1990. A 16.9. 04,
p. 5-16.
445
Embora tenhamos afirmado suas características, pode-se observar em
documento aquilo que resultou em aprendizagens importantes para uma escola popular
e democrática, embora tenhamos afirmado a falta de um projeto de escola no século
XXI, capaz de dar respostas aos problemas vividos pela comunidade. Igualmente, não
podemos afirmar que a comunidade escolar deixou de manifestar suas posições diante
dos problemas, a exemplo do que ocorreu recentemente numa escola rural da cidade de
Ribeirão Cascalheira, ocasião em que a comunidade escolar manifestou
descontentamento em relação à transferência de uma de suas professoras para outra
escola, o que a impediria de continuar trabalhando naquela comunidade, como
observamos a seguir:
446
447
Para concluir, ao adotar os três pontos apresentados por Sacristán sobre a
necessidade de intervenção no currículo, apresentamos em seguida projeções para a
educação praticada numa escola sustentável do século XXI:
Intervir no currículo real implica em modificar o ambiente escolar
considerando três dimensões: físicas (arquitetura e disposição do
espaço mobiliário), organizativas (formas de organizar os alunos/as na
escola, dentro das aulas, distribuição de tempo) e pedagógicas
(relações entre professores/as, entre estes e os alunos/as, entre
alunos/as etc.).556
Parece-nos que falar em escola e sustentabilidade não é novidade no século
XXI. Porém, não tem ganhado espaço na pauta dos dirigentes da educação brasileira,
pois prevalecem iniciativas visando diminuir custos para o atendimento às famílias que,
para que seus filhos não ampliem as estatísticas do analfabetismo, os direcionam para a
escola.
O propósito desses parágrafos finais é para afirmar que uma educação
sustentável, sem tirar o direito das famílias e dos professores, bem como fazer uso de
uma „escola que ensina‟, é possível.
A sustentabilidade, embora não seja um conceito novo, no século XX
ganhou maior evidência, especialmente a partir da ECO 92, onde as nações,
principalmente as do 1º mundo, conhecedoras das consequências das grandes guerras e
tendo em vista a devastação das florestas para ceder espaço à exploração econômica e
visando a aceleração da produção industrial, colocou em risco a vida na terra. Como
forma de reparar o equívoco e equilibrar o desenvolvimento econômico com
preservação ambiental, tomou a sustentabilidade enquanto salvação para a humanidade,
e nesse quesito adotou a escola como difusora desse ideário. Todavia, não foram dadas a
ela condições para tal fim.
Nesse sentido, após uma década de pesquisa e reflexão sobre o paradigma
que pode convergir para uma educação sustentável, apresentamos uma proposta de
escola que está sendo projetada para o Araguaia-Xingu, mais precisamente em
556
SACRISTÁN, Jimeno. O currículo uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000, p. 134.
448
Confresa-MT, cujo projeto arquitetônico apresentamos anexo. O propósito é que a
escola possa atender as dimensões espaço-tempo, aliadas à realidade tecnológica vivida
pelos aprendentes do século XXI, e, que seja popular e democrática, desde que
observados os pontos:
1) Que seja uma escola fundamentada na gestão democrática, onde as decisões
possam emanar do coletivo, e que seu currículo (Projeto Político Pedagógico) considere
a realidade social onde está edificada, a partir da qual revelará os problemas e soluções
a serem tratados por um currículo ativo e transformador da realidade dos estudantes e
seus familiares;
2) Uma escola integrada ao meio (social e ambiental) e preocupada com a
formação continuada de seus gestores, técnicos e, principalmente, dos professores, pois
a formação inicial possibilitada a estes está aquém das demandas socioeducacionais
exigidas no contexto do século XXI;
3) Que integre as tecnologias educacionais convencionais e digitais
(dispositivos móveis, tablet, lousa digital) e, por meio da mediação docente possam
desenvolver estratégias metodológicas próprias, inter e transdisciplinar, tomando a
própria escola enquanto laboratório de aprendizagens (dando sentido à sustentabilidade
por meio de projetos de aprendizagens);
4) Que tenha como filosofia uma sociedade sustentável por meio de ações
capazes de otimizar os recursos materiais existentes no espaço da escola e da
comunidade, acompanhando o espírito do tempo valorizando o trabalho coletivo e em
rede;
5) Uma escola com arquitetura inovadora: balanço energético com uso de
materiais e equipamentos adequados, produção de energia elétrica FV (passando de
consumidor a produtor de energia), captação e reaproveitamento de água, teto jardim e
aspirador de água, para melhor conforto térmico, dispensando uso de condicionadores
de ar, mobilidade com passarelas e elevador, espaços interativos com áreas de estudos,
sala multiuso (dando novo sentido às bem conhecidas salas de aula 6x8), laboratórios de
aprendizagens (tecnológico, bibliotecas), espaço de lazer com mesas de jogos e
equipamentos esportivos, refeitório, ginásio esportivo-cultural integrado com vestiários,
tabela reclinável e arquibancadas integradas à escola.
449
Por fim, esperamos com a apresentação das disputas pela memória e a luta
pela escola popular e democrática no Araguaia Xingu mato-grossense, objeto de nossas
inquietações, possam servir de estímulo na busca por novos pesquisadores e outras
formas de compreender o processo pelo qual delineamos nosso caminhar557
.
557
A concepção desse projeto teve origem em 2008, no âmbito da Secretaria de Estado de Educação, mais
especificamente na Coordenadoria de Formação em Tecnologia Educacional, e as pesquisas foram
desencadeadas pelo coordenador (autor dessa narrativa) e pelo arquiteto e urbanista José Pedro Porrat,
para atender ao projeto deveria ser conseguido um computador por aluno, que seria implantado em de 5
(cinco) escolas da rede Estadual e 4 (quatro) da rede municipal. Todavia, foi observado que a arquitetura
das escolas eram incompatíveis para uso dos classmate (pequeno notebook) que foram entregues aos
professores e alunos. Como desdobramento, a pedido do Secretário de Estado de Educação Ságuas
Moraes foi projetada para substituir o antigo prédio da EE. José Magno, em Cuiabá. Porém, por razões
que fogem às questões técnicas, não foi possível edificar. Acompanharemos a execução desse projeto
com perspectiva de contribuir no processo de implementação registrando os aspectos inerentes à
participação dos professores e comunidade sob a perspectiva da escola popular e democrática.
450
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P.7.15
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Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A
16.0.62 p 7-8
Alvorada (1979), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1979. A
16.0.63 p 12-17.
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Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984 A
16.3.07 p 13-14
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A
16.3.10 p 11-12.
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1981. A
16.3.10 p 12-12.
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.
08 p 11.16.
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.
08 p 10.16.
Alvorada (1984), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1984. A 16.3.
08 p 11.16.
Alvorada (1987), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1987 A 16.06
p 02-12.
Alvorada (1988), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1988. A
16.7.01 p.6.8.
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Outubro de
1990. A 16.9. 03, p. 2-8.
Alvorada (1990), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. Nov./Dez. de
1990. A 16.9. 07, p. 5-8
464
Alvorada (1992), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. 1992. A 16.11.
01, p. 4-8
Alvorada (1996), Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix, dezembro de
1996 A16.15.03 P.08.10.
Folha Alvorada Folha da Prelazia de São Félix do Araguaia. São Félix. A 16.15.03
P.08.10
MATO GROSSO. SEDUC. Relatório Final do Projeto Inajá. Mato Grosso, Brasil,
1991.
MATO GROSSO, SEDUC. Secretaria adjunta de políticas Educacionais,
superintendência de Formação dos Profissionais da educação básica, Orientativo. 2010,
2014.
O ESTADO DE S. PAULO; FOLHA DE S. PAULO. Boletim IBRA informa. Instituto
da Reforma Agrária. São Paulo: Folha de São Paulo, s/d.
REVISTA NOVA ESCOLA. Araguaia: Leigos conquistam uma nova formação e
adaptam o ensino à realidade local. Ano IV, nº 32, agosto de 1989, p. 11-19.
465
Relação dos colaboradores que responderam ao questionário entre os meses de outubro
de 2017 e fevereiro de 2018.
Colaborador Local
Alessandra Santos Dias Confresa
Cézar Gatti Santa Terezinha
Cleiton Moraes Rodrigues Confresa
Demetrio Vitor Junior Querência
Demilton Cruz Ferreira Santa Terezinha
Edilson Pereira dos Santos Santa Terezinha
Fabiana Fonseca Santa Terezinha
Gilvanes Pereira de Souza Ribeirão Cascalheira
Jacira Alves Dias Ribeiro Confresa
Marcos de Melo Cerqueira Santa Terezinha
Marleides Sousa Silva Santa Terezinha
Paula Cássia Strutz Santa Terezinha
Rosana Pereira Confresa
Rosana Pereira de Oliveira Confresa
Rosimeire Santos Diniz Confresa
Rosimeire Santos Souza Santa Terezinha
Santinha Souza Santa Terezinha
Selma Fonseca da Silva Aguiar Confresa
Valdeci Pereira Soares Santa Terezinha
Questionário aplicado.
Pesquisa de doutoramento: A invenção e reinvenção da Escola no Araguaia-Xingu Mato-grossense e a arte de ensinar história em tempos de cibercultura - 1970/2017. Edevamilton
de Lima Oliveira.
Notável colaborador (a),
Nossa pesquisa tem por objetivo entender a invenção da Escola pública no Araguaia-Xingu
Mato-grossense e a arte de ensinar história em tempos de cibercultura. A partir dos dados
obtidos com vossa colaboração traçaremos um perfil dos profissionais a partir da história
ensinada. Os resultados comporão o 4º capítulo da tese que, uma vez concluída será enviada em
formato e-book para todos os colaboradores.
Sua contribuição é de suma importância, pois, resultarão reflexões a cerca das perspectivas
metodológicas para ensinar história na escola de educação básica do Século XXI.
Agradecido pela colaboração.
1 - Nome:_______________________________________________________
2 - Sexo: ( ) masculino ( ) feminino
3 - E-mail: ______________________________________________________
4 - Cidade:________________________
466
5 - Há quanto tempo trabalha em educação:_____ anos.
6 - Situação de vínculo: ( ) efetivo ( ) contratado
7 - Foi cursista Inajá: ( ) sim ( ) não
8 - Quantos alunos você atende anualmente na escola?:______ alunos
9 - Por meio de seu olhar como professor de história escreva 3 palavras ou expressões que lhe
vem à mente quanto você lê as palavras a seguir:
Alienação
Aluno
Analfabeto
Aprendizagem
Autonomia
Comunidade
comunista
Conhecimento
Democracia
Disciplina
Educação
Enfrentantes
Escola
Família
Guerrilheiro
História
Ideologia
Índio
Jagunço
Latifúndio
Liberdade
Livro Didático
Memória
Negro
Peão
Pobre
Poder:
Política
Posseiro
Professor
Progresso
Tecnologia
Tubarão
Violência
10 - Em relação às tecnologias móveis digitais, elas mudam a maneira que nossos alunos
pensam e aprendem história?
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte ( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________
11 - Como a história de Mato Groso é trabalhada no currículo de sua escola?
467
Resposta:_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
________________________________
12 - As tecnologias de informação e comunicação são consideradas relevantes para o ensino de
história.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
13 - Nós, professores de história integramos as tecnologias educacionais (computador, tablete,
esmartphone, notebook e recursos web-Internet) para ensinar história.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
14 - Começamos recentemente a usar o computador e a Internet nas práticas do currículo
escolar.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
15 - Ainda não sabemos quais ferramentas existem instaladas nos computadores das escolas e
na web que podem ser utilizados em nossas práticas de mediação de aprendizagens na disciplina
de história.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
16 - Em decorrência da chegada dos computadores conectados à Internet e dos dispositivos
digitais acessíveis aos professores e alunos, destaque as respostas que avalia relevante:
( ) ampliou as discussões sobre o uso das tecnologias na escola
( ) ampliou suas expectativas em relação as mudanças no currículo escolar via PPP (Projeto
Político Pedagógico
( ) ampliou o monitoramento da implementação das TIC – Tecnologia da Informação e
Comunicação na Escola
468
( ) ampliou debates entre professores de história e alunos sobre as mudanças que estão
ocorrendo na educação escolar
( ) ampliou debates entre os escolares e os pais dos alunos sobre as mudanças que estão
acontecendo na sociedade
17 - Considerando sua atuação como professor de história, qual (quais) dos objetivos abaixo
você elege como importante (s). Enumere em ordem crescente de
Preparar os alunos para o mercado de trabalho ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9;
( )10
Promover atividades relacionadas com a vida cotidiana e prática dos alunos ( )1; ( )2; ( )3; (
)4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10
Assegurar um bom resultado do aluno em testes de desempenho ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; (
)6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10
Desenvolver habilidades de colaboração entre os alunos voltados para a resolução de problemas
de seu contexto sócio histórico e cultural ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; ( )8; ( )9; ( )10
Satisfazer as expectativas dos pais e comunidade escolar ( )1; ( )2; ( )3; ( )4; ( )5; ( )6; ( )7; (
)8; ( )9; ( )10
18 - Diante das afirmativas abaixo, dê sua opinião: Os alunos da escola onde você trabalha tem
maior domínio das tecnologias digitais que os professores.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
19 - Com a web (Internet) os alunos acabam perdendo o contato com a realidade em que vive.
( ) concordo totalmente ( ) concordo em parte ( ) não concordo, nem discordo ( ) discordo
em parte
( ) Discordo totalmente
Justifique_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_____________________________________________________________________________
_______________________________
20 -Como você pensa a escola no ano 2030 (Escola do Futuro)?
Resposta
469
Anexo I