Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Cincias Sociais
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Luiz Maurcio de Abreu Arruda
A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em
Itabora/RJ (1935-1953)
Rio de Janeiro
2015
Luiz Maurcio de Abreu Arruda
A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-
1953)
Dissertao apresentada, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre,
ao Programa de Ps-Graduao em
Histria, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. rea de concentrao: Histria
Poltica.
Orientador: Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CCSA
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, desde que
citada a fonte.
___________________________ _________________________
Assinatura Data
A779 Arruda, Luiz Maurcio de Abreu.
A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-1953) / Luiz Maurcio de Abreu Arruda. 2015.
186 f.
Orientador: Andr Luiz Vieira de Campos.
Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.
Bibliografia.
1. Hansenase Brasil Histria 1935-1953 Teses. 2. Hansenase Hospitais Itabora (RJ) Teses. I. Campos, Andr Luiz Vieira de. II. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDU 616-002.73(81)
Luiz Maurcio de Abreu Arruda
A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia do Igu em Itabora/RJ (1935-
1953)
Dissertao apresentada, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre,
ao Programa de Ps-Graduao em
Histria, da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. rea de concentrao: Histria
Poltica.
Aprovada em 26 de maro de 2015.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________
Prof. Dr. Andr Luiz Vieira de Campos (Orientador)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas UERJ
_______________________________________________________
Prof. Dra. Laurinda Rosa Maciel
Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ
_______________________________________________________
Prof. Dra. Lcia Maria Paschoal Guimares
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas UERJ
_______________________________________________________
Prof. Dra. Lcia Maria Bastos Pereira das Neves ( Suplente )
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ
Rio de Janeiro
2015
DEDICATRIA
A meus pais Joo Jaks (in memoriam) e Maria das Graas que
combateram o bom combate e tudo fizeram, dentro dos princpios da
tica e da moral, para me tonar a pessoa que sou hoje. Aos demais
membros da minha famlia que de uma forma ou de outra marcam
nossa existncia para sempre...
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo a Deus a oportunidade da vida!
Aristteles disse que a mxima expresso da virtude e (em consequncia) a vida
verdadeiramente feliz deviam ser encontradas no cultivo da verdadeira amizade. Fui
abenoado com um grupo de amigos que confirmam isso. Muitas vezes as pessoas
compartilharam comigo material que propiciaram a concluso desta pesquisa, alm das
palavras de conforto nos momentos de dificuldade.
No foram poucos os incentivos que recebi nesta caminhada. Agradecer a todos seria
quase impossvel, ainda assim em meus pensamentos todos esses rostos ficaro guardados,
pois ao escrever estas palavras, vejo passar um filme diante de meus olhos. Esta dissertao
a concretizao de tudo o que vivi nestes ltimos dois anos.
Dedico este trabalho as minhas filhas (Jenyffer, Laysa e Lavnia) e principalmente a
Wanessa Silva da Costa Arruda, pelos vrios dilogos que mais pareciam monlogos em que
eu citava nomes, conceitos e assuntos correlatos, pouco familiares a sua rotina, ainda assim,
estava sempre atenta a ouvir para me agradar. Obrigado pelo incentivo nos momentos difceis,
principalmente pela compreenso dos meus transtornos de humor, tendo pacincia, pois sabia
o que se passava comigo. Seu entendimento demonstra a verdadeira relao de
companheirismo e amor.
Aos mestres do Departamento de Histria da UERJ, o meu afetuoso abrao...
Devo agradecimentos especiais ao professor Andr Luiz Vieira de Campos, que
gentilmente aceitou orientar esta pesquisa. O meu carinho pela histria de Itabora, provocou
mudanas constantes no projeto de pesquisa, no qual s um orientador dotado de pacincia,
seria capaz de compreender e me apoiar nessa trajetria, me indicando diretrizes seguras para
concluso desta empreitada. Obrigado por ter me ensinado a superar os desafios que surgiram
durante esse percurso.
Agradeo as queridas professoras Lcia Maria Paschoal Guimares e Lcia Maria
Bastos Pereira das Neves, que alm da grande contribuio a este trabalho, atravs dos cursos
de teoria e historiografia da Histria, aceitaram de imediato participar da banca de
qualificao.
Ao professor e amigo Carlos Mauro de Oliveira Jnior, agradeo pelas aulas
gratificantes nos tempos de graduao, que acabaram por consolidar uma bela amizade.
A professora Cristina Maria de Oliveira Fonseca, onde tive a grata alegria de conhecer
atravs do Curso de Histria da Sade Pblica no Brasil na Casa de Oswaldo Cruz,
possibilitando importante espao de discusso e debates sobre Histria da Sade Pblica no
Brasil.
Aos queridos amigos da graduao, em especial: Carlos Vincius, Eduardo Gomes
(Dudu), Juarez de Almeida Moraes Jnior, Zilmar Luiz dos Reis, Paulo Veiga, Vincius
Oliveira e Raphael Santana.
A professora Laurinda Rosa Maciel que tive o imenso prazer de conhecer na Casa de
Oswaldo Cruz e logo se tornou uma amiga pessoal, devido ao seu carinho e sensibilidade que
me recebeu em seu trabalho. Querida Laurinda voc a real demonstrao de que amigos so
como prolas de valor inestimvel, que nos fazem brilhar nos momentos essenciais. A sua
contribuio para esta pesquisa foi imprescindvel.
Ao professor Henrique Mendona da Silva, agradeo o incentivo e a grande
contribuio para a pesquisa com o envio de fontes
A Maria Suellen Timoteo Correa, que sendo sempre muito solcita, me ajudou em
algumas tradues.
Ao professor e amigo Gilciano Menezes Costa pelos inmeros dilogos sobre a
histria de Itabora e a oportunidade de juntos trabalharmos em projetos sem fim lucrativos,
que tem como objetivo produzir conhecimento sobre a histria da pedra bonita escondida na
gua, que por muitos momentos, malbaratada pela administrao pblica.
Aos confrades da Doutrina Esprita, em especial Andr Cantareli, Valter Carvalho e
Claudiomar Fernandes, agradeo pelas palavras de incentivo e a amizade.
A todos ex-internos da Colnia Tavares de Macedo, principalmente aqueles que
abriram as portas de suas residncias, confidenciando o relato de suas memrias, registro meu
carinho e agradecimento, pois suas contribuies foram essenciais para realizao deste
trabalho.
Aos senhores Jonas, Daniel e Saul que alm de depoentes, so amigos de longa
caminhada e espritos dotados de grande sensibilidade.
Aos meus colegas da Ps-Graduao deixo o meu afetuoso abrao, em especial: Ana
Paula Carvalho, Ana Melo, Isabela Mota, Aline Hoche, Bonifcio Luiz, Camila Camacho,
David Coutinho, Jordan Gonalves, Rodrigo Pires e Regilany Alves.
A UERJ, em que fui acolhido desde a graduao, porque sem ela no poderia ter
realizado este sonho de conquista.
A todos aqueles, que embora no citados nominalmente, contriburam direta e
indiretamente para a concretizao deste trabalho.
CAPES, pelo apoio financeiro concedido atravs da bolsa de estudos, que viabilizou
a realizao desta dissertao.
Se todos pensassem um pouco nos desgraados que existem no
mundo, na crueldade absurda de suas almas e nos meios que se dispe
para socorr-los, talvez os homens despertassem de seu letargo e
compreendessem que, antes de neviar pessoas para a lua, mais
oportuno seria impedir que essas mesmas pessoas morressem de lepra
ou de fome na Terra.
Raoul Follereau
RESUMO
ARRUDA, Luiz Maurcio de Abreu. A nova Jeric maldita: um estudo sobre a Colnia de Igu em Itabora/RJ (1935-1953). 2015. 186 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2015.
O objetivo da pesquisa que resultou nesta dissertao consiste na anlise sobre as
origens do primeiro leprosrio fluminense, a Colnia de Igu, em Itabora, Estado do Rio de
Janeiro. Busco privilegiar no s a anlise desta cidade em miniatura tal como se pretendeu constituir um leprosrio e sua estrutura mas tambm os impactos poltico-sociais ocorridos com sua fixao em um municpio que alimentou, durante a primeira metade do
sculo XX, a ideia de que poderia recuperar a situao de pujana econmica e poltica que
viveu entre os sculos XVIII e XIX, quando ocupou importante papel na economia
fluminense e brasileira. Nesta anlise focalizamos o movimento de resistncia contra a
instalao da Colnia neste municpio originada por aqueles que acreditavam que o leprosrio
iria prejudicar o reflorescimento da regio, bem como as disputas polticas envolvidas em sua
fixao na cidade. Tambm consideramos os relatos de ex-internos do antigo leprosrio sobre
a experincia do viver em uma colnia de atingidos pela lepra. Algumas de suas memrias
foram incorporadas ao trabalho em nossa tentativa de relatar o cotidiano de um sistema que os
segregou pela fora do ato de internar compulsoriamente. Os marcos cronolgicos da pesquisa
se referem, respectivamente, ao ano de 1935, quando foi lanada a pedra fundamental para
construo da Colnia de Igu e que tambm um perodo marcado pelo incio do Plano
Nacional de Combate Lepra. Tal Plano representou uma acelerao na construo e
modernizao de instituies dessa natureza em todo pas e marcou um momento de
consolidao do internamento como profilaxia dos doentes. Como marco final, estabelecemos
o ano de 1953 quando a Colnia Tavares de Macedo, como o Igu ficou denominado a partir de 1942 recebe o novo sistema de abastecimento de gua, evidenciando a aliana entre a instituio e o poder local na luta por melhorias do sistema de servios pblicos do
municpio e, portanto, evidenciando a falsa questo de que a presena da Colnia iria
prejudicar o municpio.
Palavras-chave: Colnia de Igu. Histria local. Leprosrio. Memria. Polticas de sade.
ABSTRACT
ARRUDA, Luiz Maurcio de Abreu. The new cursed Jericho: a study about Colnia do Igu,
in Itabora/RJ (1935-1953) 2015. 186 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2015.
The purpose of the research, resulted in this dissertation, is to analyze the origins of
the first leprosarium of Rio de Janeiro, the Igu Colony (Colnia do Igu), in the city of Itabora. We seek to focus not only in the analysis of this "miniature city" - as it was intended
to be in its structure - but also in the political and social impacts occurred with its attachment
in a city that fed, during the first half of the twentieth century, the idea that could retrieve the
situation of economic and political strength of the eighteenth and nineteenth centuries, when
occupied an important role in the economy of Rio de Janeiro and Brazil. In this analysis, we
focus on the resistance movement against the installation of the Colony in this city by those
who believed that the leprosarium would harm the revival of the region and the political
disputes involved in its establishment in the city. We also consider the reports of former
inmates of the leper colony on the experience of living in a colony affected by leprosy. Some
of his memories were incorporated into the work in our attempt to report the daily life of a
system that segregated by the force of compulsory hospitalization. The chronological sections
of the survey refer, respectively, to 1935, when it launched the foundation stone for
construction the Igu Colony in a period marked by the beginning of the National Plan
Against Leprosy. This plan represented an acceleration in construction and modernization of
institutions of this nature throughout the country and marked a time of consolidation of the
hospitalization as prophylaxis of patients. As a final mark, we set the year 1953 - when the
Tavares de Macedo Colony, such as Igu was called from 1942 - receives the new water
supply system, showing the alliance between the institution and the local government in the
fight for improvement of the public services system in the city and therefore showing the false
axiom that the presence of the Colony would hurt the city.
Keywords: Health policy. Igu colony. Leprosy. Leprosarium. Local history. Memory.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Operrios construindo os pavilhes da Colnia de Igu.........................................92
Figura 2 Chegada do Presidente Getlio Vargas e sua comitiva em Itabora para
inaugurao da Colnia de Igu...........................................................................103
Figura 3 Getlio Vargas junto com as representantes da Federao das Sociedades de
Assistncia aos Lzaros e Defesa contra a Lepra na inaugurao...................... 104
Figura 4 O Presidente Getlio Vargas de perfil, provavelmente hasteando a Bandeira
Nacional............................................................................................................. 104
Figura 5 Ministro Gustavo Capanema e o Ministro da Guerra Eurico Gaspar
Dutra....................................................................................................................105
Figura 6 Fachada e planta baixa do pavilho de servios administrativos .........................109
Figura 7 Avenida de pavilhes Carville no dia da inaugurao e nos dias atuais...............110
Figura 8 Planta baixa dos pavilhes construdos em Igu...................................................112
Figura 9 Pavilho modelo Carville construdos na Colnia de Itanhenga e Igu............... 112
Figura 10 Escola 19 de abril e Vila dos casados no dia da inaugurao e nos dias
atuais................................................................................................................... 113
Figura 11 Cemitrio nos dias atuais....................................................................................118
Figura 12 Plano geral de construo do Leprosrio de Igu...................................................120
Figura 13 Internos da Colnia em momento de lazer..........................................................138
Figura 14 Anncio de Jornal o "Dia dos acamados" ......................................................... 141
Figura 15 Jonas e sua Banda em dcada de 1950........................................................... 143
Figura 16 Ficha de Ocorrncia........................................................................................... 149
Figura 17 Os novos prdios do Ministro Gustavo Capanema........................................... 155
Figura 18 Ministro Gustavo Capanema e o Interventor Ernani do Amaral Peixoto na
inaugurao do novo prdio Ministro Gustavo Capanema................................... 156
Figura 19 O Preventrio Vista Alegre em 1942 e nos dias atuais.....................................157
Figura 20 Capela de Santo Antnio em 1942 e nos dias atuais..........................................158
Figura 21 Placa comemorativa da inaugurao do servio de luz e fora da Cidade de
Itabora................................................................................................................164
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Verbas federais para construo e ampliao de leprosrios................................. 57
Tabela 2 Leprosrios inaugurados durante a gesto de Gustavo Capanema........................ 58
Tabela 3 Censo e estimativa dos leprosos em 1936.............................................................. 78
Tabela 4 Arrecadao das rendas municipais..................................................................... 99
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CPDOC Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil
DGSP Diretoria Geral de Sade Pblica
DNSP Departamento Nacional de Sade Pblica
DNS Departamento Nacional de Sade
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
DNOS Departamento Nacional de Obras e Saneamento
FSALDCL Federao das Sociedades de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra a
Lepra
IPLDV Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenas das Venreas
IPL Inspetoria de Profilaxia da Lepra
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
PQT Poliquimioterapia
PPR Partido Popular Radical
PSD Partido Social Democrtico
PSF Partido Socialista Fluminense
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
MESP Ministrio da Educao e Sade Pblica
MES Ministrio da Educao e Sade
SNL Servio Nacional de Lepra
SFALDCL Sociedade Fluminense de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra
- Lepra
UDN Unio Democrtica Nacional
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................... 15
1 DE COADJUVANTE A PAPEL PRINCIPAL: A TRANSFORMAO
DA LEPRA EM ENDEMIA NACIONAL.........................................................
31
1.1 A Sade na Primeira Repblica e a formao de uma ideologia da
higiene....................................................................................................................
31
1.2 Lepra: A filha mais velha da morte................................................................ 36
1.2.1
1.3
Uma questo de hygiene nacional.....................................................................
Isolamento compulsrio: condio essencial para o bom xito da
prophyaxia...........................................................................................................
38
41
1.4
1.5
1.6
1.6.1
O surgimento da cidade dos lzaros................................................................
As facetas do isolacionismo.............................................................................
Organizao Moderna da luta contra a Lepra: O Plano Nacional de
Combate Lepra.................................................................................................
As diretrizes do Plano Nacional de Combate Lepra...........................................
46
50
53
59
2 O DEBATE SOBRE O LEPROSRIO NO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO............................................................................................................
64
2.1 Itabora: breve histrico..................................................................................... 64
2.2 A situao da lepra em terras fluminenses........................................................ 74
2.3
2.4
2.5
A escolha do local: divergncias e alternativas.................................................
O embate contra a Colnia de Igu em Itabora...............................................
Projeto 483: Transfere o local da construo do Leprosrio de Igu para
um local j comprometido pelo mal de hansen...............................................
80
86
97
3 COLNIA DE IGU: O CHAMARIZ DA DESCRAA OU CIDADE
DA ESPERANA..............................................................................................
106
3.1 Uma cidade em miniatura............................................................................... 106
3.2 Colnia de Igu: Um lugar de memrias............................................................ 121
3.2.1 A violncia do diagnstico..................................................................................... 122
3.2.2 Da chegada ao leprosrio....................................................................................... 129
3.2.3 Trabalho: instrumento de (re)construo do cotidiano.......................................... 128
3.2.4 O papel da Caixa Beneficente.................................................................................. 133
3.2.5 Sociabilidade e poltica na Colnia........................................................................ 136
3.2.6
3.3
3.3.1
3.4
Estigma, preconceito e resistncia.........................................................................
Precisamos impedir a infeco das creanas! A atuao das Sociedades
Fluminenses de Assistncia aos Lzaros e a fundao do Preventrio Vista
Alegre...................................................................................................................
Os primeiros anos do Educandrio Vista Alegre a partir de um
depoente.................................................................................................................
A cidade dos lzaros em Itabora: Depreciao ou benefcio?.....................
CONSIDERAES FINAIS..............................................................................
REFERNCIAS...................................................................................................
147
151
159
161
170
174
15
INTRODUO
Minha insero no tema de Histria da Sade Pblica remete a algum tempo antes de
escrever esta dissertao quando mantive contato aos pacientes internados no Hospital
Estadual Tavares de Macedo, por meio de visitas peridicas. Nestes encontros tive a
oportunidade de conhecer antigos pacientes que revelavam suas memrias e lembranas do
perodo de isolamento e o complexo relacionamento com a populao externa ao Hospital, o
que, em algumas ocasies, evidenciava a continuidade do milenar estigma que envolve a
doena e o doente.
No decorrer de minha graduao em Histria pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, conquistei uma bolsa de iniciao cientfica pela FAPERJ no projeto As campanhas
de erradicao da malria no contexto da interiorizao do territrio e de institucionalizao
de uma Poltica de Sade Pblica no Brasil: Dimenses Visuais (1930-1960), coordenado
pela professora Maria Teresa Vilela Bandeira de Mello, que acabou por me inserir no campo
de pesquisa sobre histria do Brasil, com enfoque em Histria da Sade e das Doenas. Esta
pesquisa tem como premissa, a anlise dos aspectos histricos das campanhas de controle e
erradicao da malria no Brasil do sculo XX, especificamente no perodo compreendido
entre as dcadas de 1910 e 1960, mediante a anlise das imagens produzidas por diferentes
campanhas ocorridas ao longo destes anos. A riqueza das fontes documentais consultadas, no
contexto mais abrangente de institucionalizao de uma poltica de sade pblica no Brasil,
nas dcadas de 1930 e 1960, foram de grande importncia para compreenso da
institucionalizao de uma poltica de sade pblica no Brasil.
Nesta dissertao, procuro analisar determinados aspectos pertinentes construo do
primeiro leprosrio fluminense, privilegiando questes relativas ao movimento de resistncia
contra sua instalao no municpio de Itabora e os respectivos impactos poltico-sociais
gerados a partir deste embate. Ao realizar levantamento historiogrfico sobre a Colnia de
Igu percebi a recorrncia de algumas questes como A populao se revoltou contra sua
instalao devido ao preconceito da doena. Em primeiro lugar, quem era essa populao?
O preconceito por si s explica tal atitude ou j existia na memria coletiva a ideia de
decadncia associada s doenas? Por que Itabora e no outro dos 47 municpios do
Estado? Como e quem articulou esse movimento? Como se deu esse enfrentamento nos
campos poltico e social? Quais eram os interesses envolvidos? E, por fim, com sua
inaugurao, a Colnia se tornou um chamariz de desgraa como acusavam aqueles que
16
combatiam sua construo em Itabora ou um grande aliado do poder local na luta por
melhorias de infraestrutura no municpio?
Esses so alguns dos questionamentos presentes que busco responder, alm de outros
relacionados ao cotidiano dos doentes. Para isso, examinei aspectos sociais, culturais e
polticos das primeiras dcadas de funcionamento da Colnia procurando compreender de que
maneira se efetivaram as polticas de combate lepra no Estado do Rio de Janeiro, em
especial a do isolamento compulsrio. Embora os pacientes, ou seja, os personagens que
sofreram esta ao sejam de grande relevncia neste estudo, importante ratificar que este
trabalho no sobre histria da doena.
Sem deixar de reconhecer a qualidade de trabalhos j produzidos sobre histria da
lepra no Brasil, gostaria de chamar a ateno para a peculiaridade desta pesquisa. Esta se
refere conexo estabelecida entre a anlise histrica da Colnia de Igu durante as dcadas
de 1930 a 1950 e sua relao com a histria poltica do municpio que a recebeu. Evidencio
que muito mais do que um repositrio de leprosos, como apontado por parte da
documentao consultada, a Colnia de Igu, alm de representar um testemunho privilegiado
sobre o tratamento da hansenase no Brasil, tornou-se um elemento politicamente importante
naquele municpio, desmentindo os temores iniciais de que, sua presena iria impedir a
recuperao econmica da regio.
Atualmente a hansenase uma doena que se encontra no limiar da sua eliminao
como problema de sade pblica. Os progressos cientficos alcanados nas reas de
imunologia, biologia molecular e sequenciamento genmico de seu agente causador, o
mycobacterium leprae, representam perspectivas de pesquisa e de aplicao potencial para
diagnstico, prognstico e vigilncia da doena.
O Brasil o nico pas da Amrica Latina onde a doena no foi eliminada e o
segundo pas no mundo com maior predominncia de novos casos. Em 2010, 92,4% dos
novos casos de hansenase nas Amricas aconteceram no Brasil. Entretanto, o pas tem
apresentado avanos no combate hansenase em diversos aspectos nos ltimos anos.
Levantamento recente do Ministrio da Sade mostrou reduo de 61,4% no coeficiente de
prevalncia (pacientes em tratamento) entre 2001 e 2011, passando de 3,99 por 10 mil
habitantes para 1,54. Alm disso, durante o mesmo perodo, o nmero de postos de servios
com pacientes em tratamento cresceu de 3.895, em 2001, para 9.445, em 2011, apresentando
um aumento de 142%. Entre esses anos, o nmero de novos casos diminuiu 25,9%, passando
de 45.874 mil para 33.955 mil. A mdia nacional est prxima da meta estabelecida pelo
17
Plano de Eliminao da Hansenase (menos de um caso para cada grupo de 10 mil, at 2015),
sendo de 1,54 casos por 10 mil habitantes.1
Tambm conhecida como lepra, morfeia, mal de lzaro ou doena de Hansen, a
hansenase uma doena infecciosa e contagiosa, que afeta os nervos e a pele.2 Sua presena
est associada a desigualdades sociais e atinge principalmente as regies mais carentes. A
transmisso se d atravs das vias areas do doente (secrees nasais, gotculas da fala, tosse,
espirro) chamados de bacilferos, ou seja, que expelem bacilos, devido falta de tratamento.3
Ao iniciar o tratamento, o paciente deixa de transmitir a doena, levando em considerao que
a maioria dos indivduos que entraram em contato com estes bacilos no desenvolve a doena,
pois cerca de 95% da populao naturalmente imune.
Apontada como uma das enfermidades mais antigas do mundo, a lepra acompanhou as
mudanas sociais e culturais ao longo do tempo. Carregada de forte preconceito e estigma4,
relegou os leprosos ao ostracismo e morte social, pois a enfermidade era vinculada a
smbolos negativos como pecado, castigo divino ou impureza, confundida inclusive com
outras molstias que igualmente produziam ulceraes na pele.
O microrganismo causador da hansenase foi identificado em 1873, pelo mdico
noruegus Gerhard Henrik Armauer Hansen, derivando da, um dos nomes da doena:
hansenase. Com essa descoberta, grande parte dos aspectos simblicos que a cercavam foi
desaparecendo. No entanto, o preconceito se mantm e, atualmente, apontado pelo prprio
Ministrio da Sade, como uma das principais dificuldades enfrentadas pelos pacientes.
Segundo os profissionais, o estigma ainda persiste em funo da escassez de divulgao de
informaes acerca da doena e seus agravos.
A descoberta do bacilo, sem dvida, modificou a histria da doena. Entretanto, o
aspecto infectocontagioso continuou a ser refutado por boa parte da comunidade mdica
durante o final do sculo XIX e incio do XX. Faltava uma prova experimental do cultivo e
1http://www.agencia.fiocruz.br/hansen%C3%ADase (acessado em 19/12/2014).
2 Para evitar ser anacrnico e mais apropriado historicamente, utilizo os termos: lepra e seus derivados.
3Segundo o Ministrio da Sade a classificao operacional do caso de hansenase, visando o tratamento com
poliquimioterapia baseada no nmero de leses cutneas de acordo com os seguintes critrios: Paucibacilar
(PB): casos com at 5 leses de pele; Multibacilar (MB):casos com mais de 5 leses de pele. In:
http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/705-secretaria-
svs/vigilancia-de-a-a-z/hanseniase/11295-informacoes-tecnicas (acessado em 19/12/2014).
4 A palavra estigma de origem grega (lepein) e tinha a conotao de impureza e desonra com a finalidade de
sinalizar que a pessoa portadora de estigma era um indivduo marcado fisicamente, evidenciando algo de
extraordinrio ou mal sobre o status moral de quem os apresentava. GOFFMAN, Erving, Estigma-Notas sobre a
Manipulao da Identidade deteriorada, Rio de Janeiro: Zahar ores, 1980.
18
inoculao do micro-organismo, como estabelecido nos postulados de Robert Koch. A teoria
do contgio, em detrimento da teoria da hereditariedade, foi um fator crucial para se
compreender os diferentes posicionamentos relacionados poltica de combate doena,
principalmente no que tange ao isolamento compulsrio dos doentes.5
A partir do final do sculo XIX o isolamento compulsrio apontado como a
profilaxia ideal para o controle da endemia. Mesmo no sendo aprovada por unanimidade pela
comunidade cientfica internacional, esta prtica se manteve durante boa parte do sculo XX.
No Brasil, o isolamento foi largamente utilizado quando o Ministrio da Educao e Sade
Pblica elaborou, em 1935, o Plano Nacional de Combate Lepra, inaugurando uma fase de
grandes construes e investimentos, o que demonstrava a importncia das polticas de sade
no projeto varguista de construo de um Estado-nao moderno.
Os questionamentos internacionais ao isolamento compulsrio vo ganhar impulso a
partir do final dos anos 1940, graas aos avanos da indstria qumico-farmacutica e das
pesquisas laboratoriais, com o uso das sulfas como principal terapia aos enfermos. Na dcada
de 1970, esta passou a ser adotada como tratamento e, a partir de 1986, como protocolo oficial
em todo o pas, denominado de poliquimioterapia (PQT). 6 A partir da dcada 1970,
observamos a intensificao de um movimento de combate ao preconceito e estigma que
estavam contidos na palavra lepra. Assim, em 1975, o pas adotou oficialmente o termo
hansenase para designar a doena.7 A mudana de nomenclatura foi um passo importante
dado pela comunidade cientfica brasileira para se pensar aspectos sociais e psicolgicos no
combate doena no Brasil.8
Particularmente em relao s produes historiogrficas referentes a esta doena no
Brasil, importante salientar que a partir da dcada de 1990, foi produzido um nmero
considervel de dissertaes de mestrado e teses de doutoramento tendo a lepra como tema ou
objeto de pesquisa. preciso salientar que as obras anteriores a essa produo, escritas na
5 COSTA, Dilma Ftima A. C. da. Entre ideias e aes: Lepra, medicina e polticas pblicas de sade no Brasil
(1894-1934).Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2007. pp.75-76.
6Poliquimioterapia (PQT) uma combinao de medicamentos padronizada pela Organizao Mundial de Sade
(OMS). O tratamento com a PQT altamente eficaz na cura da hansenase: ele imediatamente interrompe a
transmisso da infeco, reduz o perodo de tratamento, evita o desenvolvimento de resistncia a drogas e
apresenta poucos efeitos colaterais.
7 Em 1975, ocorreu a substituio oficial do termo Lepra por Hansenase, atravs do Decreto n 76.078, de
04/08/1975. Em 1995, assinada a lei n 9010 que determina que o termo Lepra e seus derivados no podero
ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administrao pblica brasileira.
8 A simbologia de medo causada pela denominao lepra acabava por empurrar os doentes a uma vida
clandestina, que chegavam a adotar novos nomes para no prejudicar a famlia.
19
maioria das vezes por mdicos que, em alguns casos, estiveram envolvidos diretamente no
processo de polticas de combate doena no Brasil, retratam um olhar herico da medicina
sobre a doena e seus respectivos impactos sociais. Entretanto, preciso considerar que essa
produo foi realizada dentro de um determinado momento histrico e incorpora um vis
positivista de inevitvel progresso da medicina, isento na maioria das vezes de um perfil
analtico do processo histrico.9
Um bom exemplo a Histria da lepra no Brasil, uma obra basilar em qualquer
pesquisa sobre a trajetria da doena no pas. Ela foi escrita pelo mdico Herclides Csar de
Souza-Arajo, destacado leprologista que ocupou importantes cargos na sade pblica no
perodo em que a principal forma de tratamento consistia no isolamento compulsrio em
hospitais colnia. A obra, composta por trs volumes e publicada entre os anos de 1946 a
1956, abarca os perodos Colonial, Imperial e Republicano e bastante utilizada como fonte
primria devido imensa quantidade de documentos reproduzidos em suas pginas.
A segunda obra que me refiro, tendo ainda um olhar mdico e, portanto, uma narrativa
heroica sobre a histria da doena, foi organizada e publicada pelo Servio Nacional de Lepra
em 1950. Os dois volumes de Tratado de Leprologia apresentam vrios artigos sobre a
histria, as pesquisas laboratoriais, a profilaxia e o tratamento da lepra no Brasil at aquele
momento.
No livro Ns tambm Somos Gente: trinta anos entre leprosos, publicado em 1961,
o Dr. Orestes Diniz apresenta suas memrias profissionais relacionadas lepra, cujo
envolvimento perpassa toda sua vida profissional. Alm de diretor do Hospital Colnia Santa
Izabel, em Minas Gerais, Diniz ocupou vrios cargos de gesto na esfera pblica e
notabilizou-se como um dos principais leprologistas do pas. Sua obra apresenta um olhar
heroico dos profissionais da sade, enfatizando a vitria da medicina sobre a doena.
Na produo de conhecimento histrico acadmico contemporneo sobre a lepra, a
diversidade bem maior. Destaco aqueles que, seja pela qualidade do trabalho ou a
perspectiva abordada, ofereceram subsdios para realizao desta dissertao.
9 A tradio heroica ou otimista teve como principal referncia os trabalhos desenvolvidos por George
Rosen, que apresenta uma viso progressista na qual a medicina social apresentou um carter reformista. Uma de
suas principais bandeiras seria a capacidade de salvar a humanidade do terrvel mal que representam as doenas,
eliminando as deficincias relacionadas manuteno do bem-estar social da populao. O desenvolvimento
econmico seria benfico, pois levaria qualidade de vida e sade a todos. In: PORTER, Dorothy. The History of
the Public Health and Modern State. Amsterdam: Rodopi B.V., 1994. Apud. CAMPOS, Andr Luiz Vieira de.
Polticas internacionais de sade na Era Vargas - O Servio Especial de Sade na Era Vargas, 1942-1960. Rio
de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, pp. 13-23.
20
O trabalho de Yara Nogueira Monteiro com sua tese de doutoramento, Da maldio
divina excluso social: um estudo da hansenase em So Paulo defendido em 1995 foi de
extrema valia para elaborao desta dissertao. Ela analisou o estigma da lepra, desde os
tempos coloniais, e o isolamento compulsrio adotado pelo governo paulista durante o sculo
XX. Utilizando extensiva documentao, demonstra como o estado de So Paulo
implementou um sistema de controle sobre os doentes atravs de uma complexa rede de
leprosrios.
A dissertao de Vivian Cunha, O isolamento compulsrio em questo. Polticas de
combate lepra no Brasil (1920-1941), defendida em 2005, contribui com a discusso em
torno do isolamento compulsrio. Sua pesquisa centrada na anlise das polticas de combate
lepra no perodo de 1920 a 1941, tendo como foco especfico o debate mdico e as aes em
torno do isolamento compulsrio, poltica pblica regulamentada a partir de decreto publicado
em 1920. Ela faz uma anlise a partir da histria cultural, onde utiliza os escritos bblicos
como exemplificao do milenar estigma presente em torno da lepra e do leproso. Segundo
Cunha, o imaginrio medieval em torno da lepra foi transplantado para o continente
americano atravs dos colonizadores, justificando a presena do forte estigma em torno da
doena. Considero uma das principais contribuies de sua pesquisa o fato de demonstrar, que
a poltica do isolamento compulsrio, com exceo do estado de So Paulo, s foi viabilizada
aps a elaborao do Plano Nacional de combate Lepra em 1935.
O isolamento compulsrio tambm foi objeto de estudo de Luciano Marcos Curi que
estabeleceu como marco cronolgico de sua dissertao, o surgimento de um aparelhamento
profiltico consistente, o chamado trip, orientado pelo Plano Nacional de combate lepra de
1935. Com o ttulo Defender os sos e consolar os lzaros (1935-1976), o autor explora a
diferena entre lepra e hansenase, destacando tambm o conceito de leprophobia social.
Alm disso, ele analisa o trabalho realizado pelas sociedades filantrpicas atravs das
campanhas de solidariedade para captao de recursos que foram aplicados nas construes
dos preventrios e assistncia dos doentes e seus familiares. As chamadas damas ilustres,
apontadas por Curi, ocuparam a posio de novos atores sociais na prtica da caridade e/ou
filantropia, algo que sempre foi feito pela Igreja Catlica e se secularizou no Brasil, no final
do XIX e incio do XX, com a institucionalizao da sade pblica.
Laurinda Maciel, em sua tese de doutoramento Em proveito dos sos perde o lzaro
a sua liberdade: uma histria das polticas pblicas de combate lepra no Brasil (1941-
1962), apresenta um amplo quadro sobre a molstia em termos nacionais.Tendo como limite
cronolgico a criao do Servio Nacional de Lepra, em 1941, demonstra o problema da lepra
21
no Brasil, antes da criao deste rgo evidenciando a trajetria do leprlogo Herclides
Cesar de Souza-Arajo. O modelo de So Paulo, que segundo ela, trata-se de uma exceo
quanto rede de leprosrios e administrao diferenciada do restante do pas, destaque
tambm de seu trabalho. A tese de Laurinda Maciel, defendida em 2007, possibilitou
importantes contribuies para fundamentao desta pesquisa.
A tese de Dilma Cabral, Entre ideias e aes: Lepra, medicina e polticas pblicas de
sade no Brasil (1894-1934), defendida em 2009, foi de grande importncia na busca pelo
entendimento das mudanas no modelo interpretativo da lepra e as intervenes
implementadas no seu controle. A partir disso, as reflexes apresentadas pela autora
possibilitam a compreenso de que o isolamento do leproso foi conformado, ao longo da
histria da doena, por teorias e categorias mdicas distintas, da mesma forma que sua funo
assumiu aspectos e contedos diferenciados.
Nos ltimos anos, surgiram importantes trabalhos no campo de pesquisa sobre a
doena, dando voz aos doentes por meio do resgate de suas memrias. Destacam-se,
principalmente, as dissertaes e teses sobre hospitais colnias (leprosrios). Atravs dessa
importante recuperao, alguns pesquisadores tm buscado inserir no debate o personagem
doente, ou seja, os que verdadeira e intensamente vivenciaram o estigma e a segregao. Tais
trabalhos buscam compreender a dinmica destas verdadeiras mini-cidades que so os
leprosrios, a partir da contribuio da memria, no s dos ex-internos dos antigos
leprosrios, mas tambm dos ex-funcionrios e filhos de doentes que eram encaminhados aos
preventrios (educandrios). Nessa mesma linha, destaco os trabalhos de Evrton Quevedo,
Isolamento, isolamento e ainda, isolamento: o Hospital Colnia Itapu e o amparo Santa
Cruz na profilaxia da lepra no Rio Grande Sul (1930-1950), e de Juliane Serres, Memrias
do Isolamento: trajetrias marcadas pela experincia de vida no Hospital Colnia Itapu.
E, por fim, destaco a tese de doutorado, defendida no ano de 2012, por Keyla
Auxiliadora Carvalho, Colnia Santa Izabel: A lepra e o isolamento em Minas Gerais (1920-
1960), que tambm busca dar voz aos ex-internos, realizando um trabalho muito
interessante e complexo, ainda pouco explorado, privilegiando, alm disso, a construo
social da doena, que levou a diferentes significados sobre ela.
Poucas so as referncias bibliogrficas sobre a Histria da lepra no Estado do Rio de
Janeiro e, consequentemente, sobre a Colnia de Igu. O primeiro trabalho que destaco a
monografia em Histria, realizada por Rodrigo Octavio da Fonseca Lima Filho no ano de
2004, O municpio de Itabora recebe os Anjos Inocentes Hansenase/Lepra
Preconceitos e outros histrias. Nesta, o autor buscou analisar historicamente a construo da
22
Colnia de Igu, utilizando um nmero considervel de depoimentos de ex-internos. Fontes
iconogrficas cedidas por muitos pacientes do hospital tambm fazem parte de seu trabalho,
que guarda caractersticas da sociologia histrica com enfoque nos intensos movimentos
culturais ocorridos no interior da Colnia, estabelecendo como objeto especificamente a
fundao e existncia da Escola de Samba Anjos Inocentes.
Bruno Souza Norbert Costa, atravs da monografia em Histria sob o ttulo: O
isolamento compulsrio como poltica de combate lepra na Era Vargas: o caso da Colnia
de Igu (1936-1938), buscou demonstrar o processo de estigmatizao dos leprosos e as
representaes da lepra como propulsoras de prticas pblicas durante o primeiro Governo
Vargas. Neste trabalho, o autor analisou, sobretudo, alguns aspectos que fizeram parte do
projeto da Colnia, utilizando fontes tais como peridicos mdicos e filantrpicos, alm de
correspondncias trocadas entre autoridades, que evidenciaram os problemas polticos
gerados pela construo da Colnia em Itabora.
E, por fim, destaco a pesquisa realizada por Ivonete Alves de Lima Cavalieri, atravs
de sua tese de doutoramento em Poltica Social, sob o ttulo: Memrias do Isolamento
Compulsrio no Hospital-Colnia Tavares de Macedo-RJ (1936-1986), defendida em 2013.
Nela, a autora examina o cotidiano dos doentes durante o regime de isolamento compulsrio,
recorrendo a uma srie de depoimentos de ex-internos da Instituio, incorporando, inclusive,
dados colhidos atravs de anlise das fichas mdicas de pacientes presentes no arquivo interno
do Hospital.
O trabalho que apresento, representa uma nova perspectiva que se difere dos trs
trabalhos mencionados acima, pois no trata somente da histria das doenas ou da histria
dos ex-internos da Colnia de Igu, e sim apresenta uma interseo entre a histria das
polticas pblicas de sade no Brasil e a histria poltica local. Essa nova perspectiva
possibilita compreender as transformaes sociais, econmicas e polticas ocorridas entre as
dcadas de 1930-1950 na Colnia de Igu/Tavares de Macedo e suas interfaces com a histria
poltica de Itabora.
Ao tratar de uma determinada poltica pblica de sade que vigorou em todo pas, este
estudo tratou de uma instituio especfica, criada com a inteno de aparelhar o Estado do
Rio de Janeiro com um leprosrio, inicialmente denominada de Colnia de Igu. Trata-se de
uma anlise da histria da sade pblica, procurando entender suas relaes com a histria da
expanso da autoridade do Estado e das instituies. A criao desta instituio est inserida
em um contexto das primeiras polticas pblicas de sade de abrangncia nacional. A
modernizao e construo de leprosrios por todo Brasil, se explica pelo quadro geral de
23
reformulaes dos servios de sade implementadas por Gustavo Capanema10
(1934-1945),
que est inserido no processo de institucionalizao da sade pblica no pas. Assim, outra
vertente deste trabalho est apoiada em uma bibliografia, que associa as polticas de sade
pblica promovidas pelo Primeiro governo Vargas, com a expanso da autoridade do Estado
no territrio brasileiro.11
Creio que esta dissertao tenha instaurado alguns nveis de percepo acerca do
impacto que causou na populao de Itabora a construo de uma Cidade dos Lzaros; bem
como, possibilitou o conhecimento das estratgias utilizadas pelos poderes local e regional
durante a sua construo. Permitiu tambm uma compreenso do cotidiano dos internos da
Colnia em suas dcadas iniciais, demonstrando, inclusive, o uso poltico desta instituio na
obteno de benefcios ao municpio, o que corrobora com a insero deste trabalho tambm
na histria poltica local de Itabora.
Fontes e metodologia
No tocante documentao, busquei utilizar um amplo conjunto de fontes, a fim de
proporcionar produo de conhecimento novo sobre o tema escolhido, auxiliando, inclusive,
outros pesquisadores que tenham interesse sobre a Histria local e sobre a Colnia de Igu.
Argumento inicialmente a importncia da imprensa como fonte de pesquisa para
estudos histricos e algumas consideraes, quanto ao uso destas fontes.
Os jornais propiciaram o entendimento de vrias questes referentes pesquisa.
Entretanto, demandaram cautela em sua anlise. Passvel de grandes deturpaes por parte do
relato produzido pelos jornalistas, sua impreciso muitas vezes pode ser influenciada pelos
10
Advogado, nascido em Pitangui, cidade do interior de Minas Gerais, Gustavo Capanema Filho iniciou seus
estudos nesta cidade e transferiu-se em seguida para Belo Horizonte. Ingressou em 1920 na Faculdade de Direito
de Minas Gerais, onde se tornou amigo de Abgar Renault, Mrio Casassanta, Gabriel Passos e Emlio Moura,
que mais tarde se destacaram no campo da literatura e poltica. Fez parte do grupo conhecido como Os intelectuais da rua da Bahia, integrado tambm por Carlos Drummond de Andrade, Mlton Campos, Joo Alphonsus e Joo Pinheiro Filho. Em dezembro de 1924, tornou-se bacharel em direito e ingressou na vida
poltica, elegendo-se vereador da Cmara Municipal de Pitangui em 1927. Fez parte da administrao pblica
mineira, sendo indicado pelo Congresso Nacional chefia do Ministrio da Educao e Sade Pblica em 1934,
10 dias depois de Getlio Vargas ser eleito presidente do Brasil. cf. BOMENY, Helena Maria Bousquet;
COSTA, Vanda Maria Ribeiro, SCHWARTZMAN, Simon. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, Editora FGV,
2000. Pg. 9-35; Verbete: Gustavo Capanema Filho in: Dicionrio Histrico-Geogrfico Brasileiro.
http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx (Acessado em 21 de fevereiro de 2014)
11
CAMPOS, Andr Luiz Vieira de. Polticas internacionais de sade na Era Vargas O Servio Especial de Sade Pblica na Era Vargas, 1942-1960. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006 e FONSECA, Cristina M. Oliveira.
Sade no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem pblico. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2007.
24
vieses polticos ou sociais do perodo em que ela foi produzida. Segundo Paul Thompson, os
historiadores muitas vezes so menos cautelosos ao analisar jornais para se construir o
passado, pois raramente tem condies de destrinchar as possveis fontes de distoro em
jornais antigos. Podemos at saber:
Quem era o proprietrio do jornal e, talvez, identificar sua orientao poltica ou
social; nunca, porm, se poder conjecturar sobre o colaborador annimo que
redigiu determinada matria partilhava daqueles vieses. (...) Ela tambm
selecionada, moldada e filtrada por um determinado vis, a respeito do qual, no
entanto o historiador no est seguro.12
J na dcada de 1960, o historiador Jos Honrio Rodrigues assinalava a importncia
da imprensa como uma das principais fontes de informao histrica, entretanto,
ponderando que se tratava da mistura do imparcial e do tendencioso, do certo e do falso.13
Vale salientar que nenhum vestgio do passado deve ser concebido como guardio da
verdade. A inteno apenas de alertar sobre os cuidados que o historiador deve ter ao
utilizar o uso instrumental dos peridicos como meros receptculos de informaes a serem
selecionadas.14
Uma das fontes importantes de minha pesquisa foi o Supplemento de Itaborahy,
publicado semanalmente como um anexo de duas pginas, pelo Jornal O So Gonalo. Seu
redator, que foi vereador de Itabora na dcada de 1930, engrossou as fileiras do grupo
contrrio instalao do Leprosrio naquele municpio, publicando regularmente matrias
sobre essa questo. Alguns peridicos que circulavam na capital federal, como Jornal Correio
da Manh, noticiaram os avanos das construes e as insatisfaes de parte da populao
local. O articulista acusou inclusive os envolvidos no movimento de serem impatriotas, por
estarem fazendo oposio a instalao do leprosrio fluminense.
Outros jornais, que circulavam em Itabora, foram de importante valia para meu
trabalho, pois noticiavam com regularidade os acontecimentos culturais e polticos ocorridos
na Colnia, servindo, inclusive, de veculo de comunicao para pedidos de donativos atravs
da sensibilizao da populao. Entre estes destaco o Jornal Folha de Itabora, que iniciou
12
THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. p.140.
13
RODRIGUES, Jos Honrio. Teoria da Histria do Brasil: Introduo metodolgica. 3 ed. So Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1968. pp.198-200. Apud. LUCA, Tnia Regina de. Fontes impressas. Histria dos,
nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Histricas. 2ed. So Paulo:
Contexto, 2008. pp.115-116.
14
LUCA, Tnia Regina de. Fontes impressas. Histria dos, nos e por meio dos peridicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes Histricas. 2ed. So Paulo: Contexto, 2008. pp.116.
25
suas atividades em 1948, tendo como um de seus redatores Nelson Almada Abreu que foi
interno na Colnia Tavares de Macedo entre as dcadas de 1940 e 1950. Seus textos
noticiavam as atividades culturais, festas e visitas organizadas pelas sociedades filantrpicas,
artigos sobre a lepra e principalmente as movimentaes poltico-partidrias ligadas ao PSD,
que ocorreram na Colnia entre as dcadas de 1940 e 1960. A partir de sua colaborao neste
editorial, foi possvel mapear uma srie de acontecimentos ocorridos no interior da Colnia e
compreender inclusive como se deu a relao entre poder local e os internos da instituio.
Outro peridico local que tambm contribui para a realizao desta pesquisa foi o
Jornal O Itaborhaynse. Este jornal, fundado em 1895, teve suas atividades paralisadas em
1930, retornando com produo ininterrupta a partir de 1952. A partir dele pude levantar
informaes referentes histria poltica local, que muitas vezes foram silenciadas pelo Jornal
Folha de Itabora, devido este representar os interesses do PSD no municpio de Itabora.
Ainda que a atuao poltica do PSD em Itabora, durante as dcadas de 1940 e 1960, no
tenham sido foco especfico de nosso trabalho, busquei analisar apenas os movimentos
polticos que envolveram direta e indiretamente a Colnia, a fim de comprovar o argumento
de que a instituio e o poder local uniram suas foras na luta por melhorias do sistema de
servios pblicos do municpio e, portanto, evidenciando a falsa questo de que a presena da
Colnia iria prejudicar o municpio.
Tambm foram analisados documentos da Cmara Municipal tais como decretos,
resolues, deliberaes, leis e livros de ata. Porm, apesar da imensa boa-vontade dos
funcionrios responsveis pelo Centro de Memria e Documentao da Instituio, no foi
possvel obter acesso aos documentos do perodo de instalao da Colnia (1935-1938), pois
a documentao mais antiga (principalmente os livros de ata das sesses da Cmara
Municipal), existente no acervo do final da dcada de 1940.
Outro relevante conjunto de fontes coletados e analisados, encontram-se no Arquivo
Pessoal de Gustavo Capanema. L foi possvel localizar relatrios, boletins, regimentos,
regulamentos, estatutos e outros tipos de fontes oficiais, que foram de grande importncia
para o entendimento da rede burocrtica que envolvia as aes de sade propostas pela Unio.
Tambm encontrei material especfico relativo Colnia de Igu: por exemplo, o
planejamento da instituio, descrio de sua estrutura e funcionamento, conflitos envolvidos
em sua instalao, relatrio tcnico referente localizao do leprosrio e as vantagens do
terreno de Itabora, alm de correspondncias trocadas entre mdicos, autoridades do Governo
Federal, do Estado do Rio e do Ministrio da Educao e Sade durante o perodo de 1936,
evidenciando as insatisfaes locais j mencionadas. Outro importante documento presente
26
neste acervo trata-se do relatrio da Comisso de Sade da Cmara Federal de 11 de
novembro de 1937, no qual o Ministro da Educao e Sade precisou prestar esclarecimentos
sobre quais as ordens tcnicas que orientaram a localizao do leprosrio, alm da tentativa de
alguns parlamentares federais em levar para a votao o Projeto 483, que buscava transferir a
Colnia de Igu para outra localidade, aproveitando o terreno e o que j havia sido construdo
para realizao de uma estao experimental de agricultura.
Na Biblioteca Popular de Niteri, tive acesso aos Relatrios dos Presidentes e
Interventores do Estado do Rio de Janeiro, o que possibilitou a compreenso de
investimentos, alm dos dados estatsticos referentes aos municpios, permitindo
levantamento da situao econmica de Itabora e de seus municpios vizinhos. Tambm foi
possvel, atravs deles, visualizar os investimentos no combate lepra, durante as dcadas de
1920 e 1930, permitindo mapear as aes governamentais, antes da construo da Colnia de
Igu.
Segundo a direo do Hospital Estadual Tavares de Macedo, a instituio no possui
arquivo de documentos das dcadas iniciais referentes antiga Colnia.
No tocante profilaxia e ao tratamento da doena, os artigos e revistas mdicas
permitiram visualizar a percepo dos vrios especialistas e as controvrsias acerca da
etiologia da lepra, bem como as aes adotadas para combat-la. Destaco o peridico mdico
Arquivos de Higiene, em especial o artigo do mdico Dcio Parreiras, Anotaes Acerca do
Isolamento Nosocomial na Lepra. A Colnia de Igu (Estado do Rio)15
, que trata do projeto
para construo da Colnia.
A obra do leprologista Herclides Csar de Souza-Arajo Histria da Lepra no Brasil
(1956) um verdadeiro acervo documental. Nesta obra, o autor registrou suas viagens aos
diversos leprosrios do Brasil e no exterior, assim como exps imagens, plantas e projetos de
variadas instituies ligadas ao combate lepra. Alm disso, reproduziu as discusses
travadas entre os mdicos nas sesses da Academia Nacional de Medicina sobre questes
como o contgio da lepra, as formas de isolamento e como deveriam ser os preventrios e
leprosrios do pas. Utilizei largamente diversas fontes reproduzidas pelo autor neste livro.
O opsculo O Leprosrio do Igu (Brado de revolta de um povo) publicado pelo
mdico e professor Roberto Pereira dos Santos em 1937, apresenta os principais
acontecimentos ocorridos no perodo da construo da Colnia, quando um grupo capitaneado
15
PARREIRAS, Dcio. Anotaes acerca do isolamento nosocomial na lepra. A Colnia de Igu (Estado do
Rio). In: Arquivos de Higiene. Ministrio da Educao e Sade. Departamento Nacional de Sade. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional. Ano 7. n2, 1937. p. 99-110.
27
pelo prprio autor, se levantou contra a instalao do leprosrio em Itabora, gerando
momentos de tenso entre o poder local e regional. Nestas pginas foi possvel ter acesso aos
principais acontecimentos que envolveram todo esse imbrglio, com reproduo de artigos de
jornais locais, atas da Cmara legislativa municipal de Itabora e Rio Bonito, alm da
Assembleia Legislativa Fluminense e Federal.
Para fechar o conjunto de fontes escritas e iconogrficas incorporadas pesquisa,
recorri utilizao das memrias daqueles que foram os principais atores deste processo: os
ex-internos da Colnia do Igu/Tavares de Macedo.16
Apoiado na metodologia de Histria
Oral busco compreender as subjetividades presentes nas relaes sociais vividas pelos que
tiveram a experincia de ser leproso, tanto no meio social que inicialmente estavam
inseridos ou nos limites do leprosrio, ps-internao.
Com as memrias dos ex-internos possvel construir novas fontes, alm de
resgatar as vivncias que esto se perdendo com a morte dos remanescentes do isolamento
compulsrio. A memria do homem deve ter relevncia, assim como a memria fsica e
espacial, pois como enfatiza Thompson A memria de um pode ser a memria de muitos,
possibilitando a evidncia dos fatos coletivos.17
A estratgia utilizada para seleo dos entrevistados foi primeiramente o critrio de
"antiguidade", ou seja, priorizei a gerao que foi internada entre as dcadas de 1930 e 1940.
Em seguida, optei pelo "papel" ocupado por esses atores na estrutura organizacional da
Colnia. No total, foram sete pessoas entrevistadas, gerando cerca de seis horas de udio
gravado em formato mp3. Aps a transcrio desses arquivos, realizei uma crtica histrica
com tais documentos, pois assim como as fontes escritas, as fontes orais no devem ser
concebidas como guardis da verdade e sua subjetividade deve ser igualmente considerada.
Recorrer memria dos ex-internos serve, justamente, ao propsito de repensarmos a
construo da narrativa histrica, favorecendo ao preenchimento de lacunas deixadas pela
documentao textual e iconogrfica ou como novo recurso para se pensar processos, histrias
e vivncias, ocorridos nos parmetros da pesquisa.18
At que ponto confivel a evidncia
oral? Ela equivale s fontes documentais com que o historiador est familiarizado? A
reconstruo que se faz do passado baseia-se na autoridade de quem? Em suma, de quem a
16
Em 1940, dois anos depois da inaugurao oficial, a Colnia de Igu passa a ser designada Colnia Tavares de
Macedo.
17
THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. p.17.
18
JOUTARD, P. Desafios histria oral do sculo XXI. In: FERREIRA, M.; FERNANDES, T. & ALBERTI, V
(Org.). Histria oral: desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.p.33.
28
voz do passado? Essas questes esto sempre presentes no ofcio do historiador, porm de
uma forma mais veemente com aqueles que trabalham com a metodologia de Histria Oral.
Um dos aspectos mais polmicos em trabalhar com depoimentos orais diz respeito a sua
credibilidade. A principal crtica fica por conta da subjetividade da fonte, que sustentada
pela memria do entrevistado, que pode ser falvel e fantasiosa. Um dos principais objetivos
do pesquisador seria justamente descobrir: porque o entrevistado selecionou determinados
fatos? Porque em outros foi omisso? 19
Sobre a legitimidade da histria oral e suas especificidades, Aspsia Camargo, que
participou da criao do Programa de Histria Oral do CPDOC, em 1975, afirma:
A histria oral legtima como fonte porque no induz a mais erros do que outras
fontes documentais e histricas. O contedo de uma correspondncia no menos
sujeito a distores factuais do que uma entrevista gravada. A diferena bsica
que, enquanto no primeiro caso a ideologia se cristaliza em um momento qualquer
do passado, na histria oral a verso representa a ideologia em movimento e tem a
particularidade, no necessariamente negativa, de reconstruir e totalizar, reinterpretar o fato.
20
Neste sentido, cabe ao historiador um exerccio interpretativo constante ao lidar com
as memrias de seus entrevistados, por tratar-se de fontes vivas e fragmentadas, que podem
ou no sofrer alteraes seja por questes ideolgicas ou pela prpria memria coletiva
daqueles que vivenciaram o mesmo processo. Michel Pollak indica que a memria deve ser
compreendida como um fenmeno mutvel e flutuante, construdo coletivo e socialmente.
Nesse sentido, a memria individual que cada um dos depoentes guarda sobre sua vivncia no
leprosrio, faz parte e ajuda a construir uma memria coletiva sobre este mesmo fenmeno.
Ao mesmo tempo que constri, tambm construda por ela em um processo dialtico e
constante. O espao comum vivenciado por um grupo de indivduos favorece a construo de
uma memria oficial do leprosrio.21
Pude constatar a mutabilidade e fluidez da memria, quando retornei pela terceira vez
residncia de um dos entrevistados. Apesar de j termos realizado uma sesso de entrevista
anteriormente, fui surpreendido com memrias que antes no haviam sido mencionadas e que,
algumas vezes, contrariavam o relato inicial, evidenciando a existncia de um discurso
19
Um dos livros capazes de oferecer instrumentos ou recursos a esses questionamentos a obra: THOMPSON,
Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992.
20
CAMARGO, Aspsia. Apresentao. Quinze anos de Histria Oral: Documentao e metodologia. In:
ALBERTI, Verena. Histria Oral: a experincia do Cpdoc. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentao
de Histria Contempornea do Brasil, 1989. p.09.
21
POLLAK, Michael. Memria, esquecimento, silncio. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro, v. 2, n.3, 1989. pp.03-15 e THOMPSON, Paul. THOMPSON, Paul. A voz do passado. So Paulo: Paz e Terra, 1992. pp.9-19.
29
pronto. A partir do momento que as conversas aconteceram de uma forma descontrada e
informal, foram revelados fatos, por exemplo, de carter afetivo que antes no foram
mencionados. importante ressaltar que, na maioria das vezes, este processo de confiana e
segurana do depoente em relao ao entrevistador, vai se estabelecendo aos poucos e a
tendncia irem se estreitando laos com o passar do tempo e a continuidade das gravaes e
o elo estabelecido. Outro fato curioso foi quando o entrevistado apresentou seu acervo de
fotografias. Este aspecto foi antes omitido e as fotografias se apresentaram como um
excelente painel de aspectos do cotidiano do leprosrio em suas primeiras dcadas,
contrariando inclusive a suposta rigorosidade de um cdigo disciplinar, imposto pela
administrao da Colnia.
Como no h obrigao legal em tornar pblico as fontes orais por mim produzidas,
optei preservar o sigilo dos dados e no identificar os sujeitos de pesquisa, utilizando para
isso pseudnimos (bblicos) a fim de manter o anonimato e no prejudicar os depoentes.
Estrutura da dissertao
O presente trabalho est dividido em trs captulos onde se apresentam anlises
especficas dentro da cada temtica em funo do recorte temporal escolhido. No entanto, em
determinados momentos recuei ou avancei diante dos marcos cronolgicos pr-estabelecidos,
a fim de compreender ou criticar elementos presentes em fontes consultadas.
No primeiro captulo, intitulado De coadjuvante a papel principal: a transformao da
lepra em endemia nacional procurei mostrar ao leitor o processo que transformou a lepra em
flagelo nacional, favorecendo, inclusive, a adoo de medidas profilticas segregacionistas
que visavam combater o avano da molstia. Priorizo a anlise dos discursos sobre a
doena, privilegiando o papel desenvolvido pela classe mdica, como representantes da
cincia. Ainda no captulo 1, focalizo a discusso em torno da consolidao da poltica
isolacionista, que s foi concretizada a partir da gesto de Gustavo Capanema como Ministro
da Educao e Sade Pblica em 1934, quando foi elaborado o Plano de Combate Lepra em
1935, cujos objetivos eram a construo de uma extensa rede asilar com, pelo menos, um
leprosrio em cada estado, alm de outras aes.
No segundo captulo, O debate sobre o leprosrio no Estado do Rio de Janeiro,
busco analisar as iniciativas pblicas em torno do combate lepra no Rio de Janeiro, fazendo
breves consideraes sobre a trajetria histrica do municpio de Itabora, local escolhido para
construo do leprosrio fluminense. Privilegio a questo da memria coletiva em torno dos
30
impactos das febres de Macacu, alm de evidenciar os embates polticos ocorridos atravs
do enfrentamento dos poderes local e regional, aps a escolha de Itabora como local de
instalao do referido leprosrio.
Finalmente, no terceiro captulo, intitulado Colnia do Igu: O chamariz da
desgraa ou cidade da esperana?, o objetivo ser de analisar o principal mecanismo de
combate lepra: o leprosrio. Para isso, trato da Colnia de Igu, a partir de seu projeto de
construo, que foi baseado em um modelo de Colnia agrcola, vislumbrado como uma
verdadeira cidade em miniatura. Sua organizao, as regras de convvio, atividades
culturais, entre outros, so aspectos abordados nesse captulo. Alm disso, realizo um breve
histrico do papel da Sociedade Fluminense de Assistncia aos Lzaros e Defesa Contra a
Lepra na realizao da Campanha de Solidariedade, em prol da construo do Preventrio
Vista Alegre, instituio filantrpica destinada a cuidar dos filhos sadios dos doentes.
Finalmente, demonstro que, ao contrrio do que foi veiculado por lideranas locais em
Itabora contrrias instalao do leprosrio naquele municpio, a Colnia de Igu acabou por
tornar-se uma instituio importante na cidade, sendo utilizada pelo poder local, inclusive,
como instrumento de barganha na conquista de importantes benefcios para a populao,
como a instalao do servio de luz e melhorias no fornecimento de gua ao municpio.
31
1 DE COADJUVANTE A PAPEL PRINCIPAL: A TRANSFORMAO DA LEPRA
EM ENDEMIA NACIONAL
1.1 A Sade na Primeira Repblica e a formao de uma ideologia da higiene
Com o advento da proclamao da Repblica no Brasil, foi promulgada a nova
Constituio Federal em 1891 e que no apresentou nenhuma modificao no que se refere s
polticas pblicas de sade e saneamento. O federalismo da Repblica deu poderes aos
estados, permitindo grande autonomia e fortalecimento das oligarquias em relao ao poder
central. Desta forma, as questes relativas sade eram responsabilidade dos estados e
municpios. Entretanto, com a exceo de So Paulo que criou uma organizao sanitria
estadual na maioria dos estados tais aes no ultrapassavam as capitais. A impossibilidade
de enfrentamento desses problemas na maioria dos estados e sem o apoio do poder central,
contribuiu para que a Repblica somente intervisse diretamente nos estados em momentos
epidmicos, abrindo inclusive, espaos para o estabelecimento de parcerias internacionais,
como foi o caso dos convnios com a Fundao Rockefeller.22
As primeiras medidas sanitrias basicamente de carter urbano ocorreram durante
os governos de Prudente de Moraes (1894-98) e de Campos Salles (1898-1902). Em 1897, foi
criada a Diretoria Geral de Sade Pblica (DGSP)23
, com a funo de unificar os servios de
higiene da Unio. ela cabia o tratamento e profilaxia das doenas transmissveis em todo o
territrio nacional, alm de ser responsvel pela distribuio de soros e vacinas e pela
organizao e direo do servio sanitrio dos portos. Apesar destas atribuies, sua atuao
foi extremamente limitada, restringindo-se assistncia pblica em tempos de epidemias, ou
seja, em casos de calamidade pblica.24
22
CASTRO SANTOS, Luiz Antonio. Poder, Ideologias e Sade no Brasil da Primeira Repblica: ensaio de
sociologia histrica. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego. Cuidar, controlar, curar: ensaios histricos
sobre sade e doena na Amrica Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. pp. 249-293; HOCHMAN,
Gilberto. A era do saneamento - As bases da poltica de sade pblica no Brasil. So Paulo: Hucitec/ANPOCS,
1998. pp. 96-97.
23
Criada em 1897, a Diretoria Geral de Sade Pblica tinha como atribuies: dirigir os servios sanitrios e
fluviais; fiscalizao do emprego da medicina e farmcia; pesquisas sobre doenas infecto-contagiosas;
realizao de censo e formulao de estatsticas sanitrias e auxiliar aos Estados.
24
HOCHMAN, Gilberto (1998). pp.98-101.
32
Durante boa parte do sculo XIX, as epidemias assolaram a capital federal e outras
regies do pas. Refiro-me principalmente s epidemias25
de febre amarela em 1850 e de
clera em 1855, que elevaram consideravelmente as taxas de mortalidade e colocaram na
ordem do dia a questo da salubridade pblica, em geral, e das condies higinicas das
habitaes coletivas, em particular. Segundo Sidney Chalhoub, foi a partir desses
acontecimentos que teve incio o surgimento de uma ideologia da higiene.26
Diversas medidas foram tomadas na capital da Repblica, reforando a poltica
higienista que se caracterizou por uma forte interveno no espao pblico e privado. A
derrubada do cortio Cabea de Porco, no centro da cidade do Rio de Janeiro em fevereiro de
1893, um exemplo destas modificaes, que abriu caminho para uma mudana
paradigmtica ocorrida na administrao de Pereira Passos (1902-1906), conhecida como
bota-abaixo.27
Durante o perodo de 1904 a 1919, duas grandes reformas sanitrias ocorreram sob a
direo de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, com grande atuao atravs do Instituto Oswaldo
Cruz.
O chamado movimento sanitarista registra dois momentos de grande importncia
para se compreender o processo de elaborao de polticas pblicas e o desenvolvimento de
servios de sade para o combate s endemias. Em um primeiro momento, a Reforma
Sanitria iniciada em 1903, pelo diretor-geral de Sade Pblica Oswaldo Cruz e promulgada
pelo decreto n 5.156, de 8 de maro de 1904, transformada em Regulamento Sanitrio da
Unio pelo ministro da Justia e Negcios Interiores J. J. Seabra. No segundo semestre de
1904, Oswaldo Cruz apresentou ao Congresso Nacional um projeto de vacinao e
revacinao contra a varola, considerada obrigatria desde fins do sculo XIX.28
25
Julgo destacar que alm destas epidemias que se notabilizaram por seus impactos sociais, h tambm o registro
de epidemias que assolaram regies fora dos centros urbanos. Apesar de ocorrerem em menor escala foram
responsveis por ocasionarem um considervel nmero de bitos, influenciando tambm a percepo de que era
preciso modificar as aes sanitrias. A ttulo de exemplificao, cito a prspera regio da Vila de Santo Antnio
de S, no Rio de Janeiro, que sofreu um grande surto epidmico de malria no final da dcada de 1820.
Denominada de febres de Macacu foi descrita pelos memorialistas e historiadores locais como uma das causas de decadncia econmica da regio. No prximo captulo, retomaremos essa questo.
26
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortios e epidemias na corte imperial. 3Ed. So Paulo: Companhia das
Letras, 2004. pp.25-30.
27
BENCHIMOL, J. Pereira Passos: Um Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Turismo e Esportes/Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural, 1992. (Biblioteca Carioca).
pp. 205-206
28
Coleo de leis. Decreto n 5.156, de 8 de maro de 1904 http://www.camara.gov.br/sileg/integras/468191.pdf.
Acessado em 10/02 /2014.
33
Foram criados servios de profilaxia para as molstias infectuosas que compreendia
a obrigatoriedade de notificao; isolamento, desinfeco e vigilncia mdica. A lepra, as
doenas venreas e a tuberculose ganharam servios especificamente voltados para o seu
combate. No caso das duas primeiras, o regulamento sanitrio determinou a criao de uma
Inspetoria de Prophilaxia29
.
Ocorrida num momento decisivo de transformao da sociedade brasileira, a Revolta
da Vacina (1904) demonstrou, segundo Sevcenko, o alinhamento do Brasil s mudanas
ocorridas no palco internacional, ditadas pela revoluo cientfico-tecnolgica.30
A
insurreio, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro, demonstrou a importncia de uma ao
integrada dos servios de sade na capital federal.31
As sucessivas epidemias de febre amarela
que ocorreram na cidade e em diversos outros locais do pas, ao longo do sculo XIX,
despertaram nas classes mais abastadas a percepo da interdependncia sanitria entre os
diferentes extratos sociais.32
Os impactos de doenas como tuberculose e peste bubnica
tambm motivaram aes do poder pblico, alm de outras medidas de combate adotadas ao
longo desse perodo.33
No que se refere s aes voltadas para as doenas que se pegam,
destacamos o pacto firmado entre os estados para o combate lepra, no qual cada estado teria
que construir seu prprio leprosrio para evitar que os doentes de lepra no migrassem em
busca de tratamento.34
Ocorridas na primeira Repblica essas aes demonstram uma mudana na
mentalidade dos gestores pblicos e evidenciam que a sade j era identificada como um
problema nacional, mas no como um direito garantido constitucionalmente como hoje temos
29
Ibidem.
30
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. So Paulo: Brasiliense.
1984, pp. 3-5.
31
A Revolta da Vacina foi um fato histrico que apresenta vrias leituras a partir de diferentes anlises
historiogrficas. Dentre dessas abordagens, destacamos: BENCHIMOL, J. L. (1990, 2001); CARVALHO,
J.M.(1996); CHALOUB, S.(1996); SEVCENKO, N.(1984).
32
Hochman utiliza esse conceito e demonstra que no haveria soluo individual e local para os problemas de
sade e saneamento. A interdependncia demandou a constituio de uma autoridade capaz de implementar
polticas em todo pas, desconhecendo as fronteiras estaduais, sobre toda a populao, restringindo, quando
necessrio, a liberdade individual e o direito de propriedade. HOCHMAN, Gilberto. (1998).pp.81-82.
33
Um exemplo dessas aes (Decreto n 422, de 15 de maio de 1903) para evitar a propagao da tuberculose,
tornou-se obrigatrio o uso de escarradeiras em todos os recintos pblicos; proibiu-se tambm escarrar nos
veculos de transporte de passageiros, exigindo-se das companhias a lavagem do assoalho com soluo anti-
sptica. In: BENCHIMOL, J. Idem. p. 285.
34
HOCHMAN, Gilberto. (1998).pp.159-159.
34
a partir da Constituio de 1988. A sade j despontava como importante elemento de
construo nacional atravs da redescoberta do pas via endemias rurais, despertando,
assim, nas autoridades a necessidade de uma poltica sanitria efetiva.35
A segunda fase do movimento sanitarista foi determinante para a ruptura do
pensamento social brasileiro que at ento se fundamentava na categoria raa para pensar o
atraso do pas. A partir deste segundo momento, a categoria doena passa a ser a chave
interpretativa do pas, testemunhando que suas mazelas no eram em funo da inferioridade
racial do povo brasileiro, mas sim do abandono e miserabilidade em que se encontravam as
populaes sertanejas sobretudo, vitimadas pelas doenas e ausncia do poder pblico.36
O movimento sanitarista, com seu diagnstico do Brasil como imenso hospital37, vai
apontar uma alternativa para a modernizao do pas atravs da incorporao dos sertes e
dos sertanejos ao conjunto da nao. A (re)integrao dos sertes civilizao do litoral
representava o grande desafio para o fortalecimento da nacionalidade, como destaca Castro-
Santos: populao doente = raa fraca = nao sem futuro. Entretanto, ainda que com pouco
alcance e reduzida eficcia, a legislao e as polticas de sade do perodo foram capazes de
lanar as bases para as campanhas subsequentes e minar a resistncia das oligarquias rurais.38
O incremento da pesquisa bsica laboratorial no Brasil, principalmente a partir da
atuao da Fundao Rockefeller em 1917, que iniciou suas atividades no Brasil com a
fundao de alguns postos de sade, ganhou impulso no Distrito Federal, Rio de Janeiro e no
interior de So Paulo. Consolidou-se um novo paradigma em termos de institucionalizao do
saber mdico baseado na escola norte-americana, contribuindo inclusive para a evoluo do
movimento sanitarista. Nesse contexto, o estado que mais se destacou foi So Paulo, que se
35
As viagens cientficas promovidas pelo Instituto Oswaldo Cruz entre 1912-1916 ao interior do Brasil,
revelaram um pas doente e miservel, desconstruindo uma viso determinista baseada na questo racial e
climtica como grande obstculo civilizatrio do pas como vigia o pensamento social no sculo XIX. Iniciou-se,
a partir da, um amplo movimento poltico e intelectual que proclamava a doena como principal barreira
civilizao. Para maiores informaes: CASTRO-SANTOS, Luiz Antnio de. O pensamento sanitarista na
primeira repblica: uma ideologia de construo da nacionalidade. In: DADOS. Revista de Cincias Sociais, Rio
de Janeiro, v. 28, n.2, pp.193-210, 1985. HOCHMAN, Gilberto. (1998). LIMA, Nisia Trindade. Um serto
chamado Brasil. Intelectuais e representao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: IUPERJ/Editora
Revan,1999.
36
HOCHMAN, Gilberto. 1998; LIMA, Nisia Trindade. 1999; CASTRO-SANTOS.1985.
37
Essa expresso foi proferida em um discurso realizado pelo mdico e professor Miguel Pereira na Academia
Nacional de Medicina em 1916. 38
SANTOS, Luiz Antonio de Castro. (1985). pp.10-11.
35
organizou e montou com o Instituto Pasteur e Butantan, uma rede de pesquisa com apoio da
Rockefeller.39
As elites polticas dos estados foram se conscientizando da interdependncia sanitria,
pois no adiantava mais a soluo poltica de culpar o vizinho. Era necessria a adoo de
uma poltica centralizadora, com capacidade de coordenao e coero a fim de impedir que
as outras partes deixassem de cooperar, ou atuando diretamente nestas reas implementando
com isso as aes necessrias. O problema seria quem arcaria com os recursos e somente por
meio de negociaes entre estados e Governo Federal isso seria possvel, pois, do contrrio
cada um teria que cuidar do problema de maneira individualizada.40
No caso do estado de So Paulo essa no era a principal questo j que era um estado
que possua recursos para financiar suas prprias polticas de sade pblica, mas por
diferentes interesses41
participou e apoiou a interveno federal nos outros estados desde que
sua autonomia poltica fosse preservada42
. O maior obstculo a ser enfrentado pela Unio na
adeso dos estados, dizia respeito autonomia regional e local, fundamentada em um sistema
oligrquico que dominou por boa parte da Primeira Repblica.43
Romper a barreira da
autonomia no foi fcil, pois demandou articulao poltica entre Unio, estados e municpios.
O empenho do movimento sanitarista pela reforma da sade, principalmente na
segunda fase durante a dcada de 1910, foi fundamental para a definio da autoridade do
estado nacional no campo da sade. Alguns desses atores que protagonizaram tais aes,
como Belisrio Pena e Artur Neiva, identificaram as grandes endemias como empecilho ao
39
CUETO, Marcos. Los ciclos de la erradicacin: la Fundacin Rockefeller y la salud pblica
latinoamericana,1918-1940. In: CUETO Marcos (org). Salud, cultura y sociedad em Amrica Latina. Instituto de
Estudos Peruano, pp. 179-201; SANTOS, Luiz Antonio de Castro. (1985). pp.14-15.
40
HOCHMAN, Gilberto. 1998. pp. 157-162.
41
Hochman chama ateno para a questo das epidemias e doenas contagiosas, ocorridas ao longo do sculo
XIX, que acabaram por estimular polticas emergenciais e surtos de solidariedade. Foi nesse contexto que ocorreu o encontro entre conscincia e oportunidades. A preocupao social das elites e seus interesses particulares levou ao surgimento de polticas de sade pblica, onde os males pblicos ocasionados pela
precariedade sanitria no poderiam ser solucionados individualmente. HOCHMAN, Gilberto. Idem. pp. 149-
153.
42
A Constituio de 1891 definia que a responsabilidade pela higiene e saneamento dos estados era atribuio
das esferas estadual e municipal, cabendo Unio os cuidados dos portos martimos e fluviais. Idem, p.167.
43
Trata-se da poltica do caf com leite que favorecia os interesses das chamadas oligarquias de primeira grandeza que eram So Paulo e Minas Gerais. Sua manuteno era garantida por um sistema poltico fraudulento e frgil, regido pela poltica dos governadores que favorecia a perpetuao no poder das lideranas regionais e consequentemente do governo federal. Um liberalismo excludente garantido por um federalismo que
favorecia uma pequena parcela da populao. LESSA, Renato. A inveno Republicana: Campos Sales, as bases
e a decadncia da Primeira Repblica Brasileira. So Paulo: Vrtice, Editora Revista dos Tribunais: Rio de
Janeiro: Instituto de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1988. Pp. 99-136.
36
desenvolvimento do pas. No quadro das doenas que faziam parte das grandes endemias
destacavam-se a leishmaniose, a turberculose, a sfilis, as disenterias, a ancilostomase, a
malria e a febre amarela. Elas atacavam com maior virulncia as populaes pobres e
desassistidas das reas rurais. A lepra no fazia parte dessa enumerao e ser alada a
problema de sade pblica nacional, a partir de um movimento que ser analisado a seguir.
1.2 Lepra: A filha mais velha da morte
A inteno aqui apresentar uma anlise de como a lepra alcanou o status de
endemia nacional, propiciando a criao de um amplo aparelhamento profiltico especfico
para seu controle.
A filha mais velha da morte foi uma expresso utilizada por Oswaldo Cruz em seu
relatrio, quando ocupava a direo da DGSP. Segundo Dilma Cabral, a percepo de que a
lepra representava um perigo crescente demonstra o esforo de Oswaldo Cruz, assim como de
outros atores, para dar visibilidade a uma doena que no rol de tantas outras, no se
configurava ainda como prioridade para a agncia sanitria do Governo neste perodo.44
As ltimas dcadas do sculo XIX, marcaram um momento singular na histria da
lepra quando foi alcanada uma nova compreenso cientfica a seu respeito. Esse novo vis,
deve-se principalmente s pesquisas e descobertas realizadas por cientistas como Rudolf
Virchow, pioneiro na patologia celular; Robert Koch, descobridor do bacilo causador da
tuberculose em 1884; e Gerhard Henrik Armauer Hansen, o primeiro a identificar o agente
etiolgico da lepra em 1873, batizando-o de Mycobacterium leprae. Atravs destas novas
descobertas, o caminho estava aberto para afirmao da tese do contgio em detrimento da
crena na hereditariedade da lepra. No entanto, isso demandou tempo, alm de muitas
divergncias cientficas, at porque a teoria bacilar no foi convertida de imediato em nica
causa da doena.45