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palavra
usurpada
exílio
e
nomadismo
na
obra
de Clarice Lispector
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ontifíciaUniversidade atólica do Rio Grande do Sul
Chance ler
Dom Dadeus Grings
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oaquim
Clotet
Conselho Editorial:
ntoninho Muza
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Urbano Zilles presidente)
Diretor da EDIPUCRS:
ntoninho Muza Naime
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láudia Nina
palavra
usurpada
exílio
e nomadismo
n obra
de
Clarice
Lispector
Coleção
MEMÓRI D S LETR S
15
EDIPUCRS
Porto legre
2 3
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© EDIPUCRS, 2003
Capa:
Maria da Glória Bordini e Maria Isabel
Daudt
Giulian
sobre
detalhe
de
Mulher
na
Varanda
de Edvard
Munch
1924.
Preparação
de
originais:
Eurico Saldanha de
Lemos
Revisão:
Miriam Denise
Kelm
Editoração
e
composição:
Suliani Editografia Ltda
Impressão e acabamento:
Gráfica EPECÊ
Coordenadores da Coleção Memória das Letras:
Regina Zilbennan e Maria da Glória Bordini
Dados Internacionais de Catalogação na
Publicação CIP)
N714p
Ni na
, Cláudia
A palavra usu rpada: ex ílio e nomadismo na obra de Clarice Lis-
pector Cláudia Nina. -Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
18
2p.; Coleção Memória das Letras, 15
ISBN: 85-7430-384-4
I. Literatura Brasileira. 2. Lispector, Cl
arice-
Crítica e
In
terpre-
tação.
3.
Literat
ur
a de Exílio. I Título. II. Série.
Ficha Catalográfica elaborada pelo
Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS
Proibida a reprodução total
ou
parcial desta obra
sem autorização expressa da Editora.
EDIPUCRS
Av. lpiranga, 6681 Prédio 33
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Brasil
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CDD
869.937
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GR DECIMENTOS
Este é um trabalho sobre o exílio feito no exílio. Pode pare-
cer exagero,
mas
é a mais
pura
verdade dizer que viver longe do
Brasil, por longos quatro anos, ajudou-me a criar o ambiente ne-
cessário, uma espécie
de
laboratório,
para
que
minha
pesquisa
se desenvolvesse com mais densidade. Nunca pensei, antes de
ir, que a experiência real do exílio pudesse transformar a vida
de quem
parte para o exterior, não por opressões políticas,
mas
por
vontade
própria.
Um
exílio voluntário parece
por
demais
tentador
para
quem fica: alguns anos longe
da
rotina, conhecer
um país diferente, gente, língua e cultura novas, etc. No entanto,
o exílio se revelou difícil ao extremo em seus primeiros momen-
tos, só se transformando em algo estimulante depois de um pe-
noso tempo de adaptação aos novos ares. Por isso, o desenvol-
vimento e a conclusão desta tese não teriam sido possíveis não
fosse a participação
de
alguns estranhos estrangeiros ,
que
me
ajudaram ativamente no processo de criação e conclusão
da
pesquisa. Ao final, eles fizeram
parte de
um exílio que, aos pou-
cos, transformou-se em memorável roteiro de viagem.
Prof. Dr. Peter
de
Voogd é
um
deles. Voogd
prontamente
concordou em supervisionar meu projeto, tão logo cheguei à
Ho
landa disposta a fazer o Doutorado. Ele acreditou na minha
proposta e na minha determinação
em
finalizar a tese, oferecen-
do-me inestimável apoio intelectual
pa
ra a i
mp
lementação
de
todos os pl
anos que
eu tinha
em
mente. Acima
de
tudo, acom-
panhou me
nos momentos
de
maior saudade longe do Brasil. A
ele, toda a minha gratidão.
Sou imensamente agradecida ao Prof. Dr. Paulo
de
Medei-
ros
por
sua indispensável ajuda em
dar
forma às minhas idéias,
instruindo-me quanto aos instrumentos críticos a serem empre-
gados. Logo em
uma
de nossas primeiras
reun
iões, Medeiros
sugeriu-me
que
abordasse as obras de Gilles Deleuze e Rosi
Braidotti,
vendo
nelas
uma
conexão direta com o tema que eu
havia proposto. Sem esses insights, certamente
não
teria sido
possível sequer iniciar esta tese.
Aproveito a
oportunidade para
agradecer à
Mar
ta Peixoto e
à Maria José Sommerlate Barbosa, companheiras no estudo de
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Clarice Lispector, por suas atitudes de incentivo
desde
minhas
primeiras incursões ao tema do exílio aliado à literatura de Cla-
rice. Seus conselhos e sugestões foram extremamente úteis em
todo o processo.
Estes agradecimentos
não
estariam completos se eu
não
in-
cluísse a
minha
família - imenso suporte a distância:
minha
mãe, cuja tranqüil
idade
sempre funcionou como
uma
fonte de
equ
ilíbrio em minha
vida;
meu pai responsável
por
ter
me
apresentado ao mundo da cultura e às línguas estrangeiras, e
meu irmão Alexandre, sempre um
bom
amigo.
Não posso
de
ixar
de
mencionar a Profa. Dr. Maria Lúcia
Campanha
e o Prof. Dr. José Luís Ribeiro, pela permanente ati-
tude
de
incentivo a todos os
meus
projetos intelectuais,
desde
a
graduação.
Também do Brasil, aj
uda
indispensável me fo i dada por
Dona Isabel, Didier e Alan, pessoas essenciais à construção de
minha saúde espiritual e à decisão de dar conclusão a tudo que
eu iniciara em terras estrangeiras .
Minha gratidão estende-se a meu marido, Carlos Gil, o
grande
entusiasta
de
meu trabalho, que me ajudou na execução
de
cada detalhe,
sem
o
que
nada
disto teria sido possíve
l.
Ele é
também co-autor deste livro.
E para finalizar, as professoras Maria da Glória Bordini e
Regina Zilberman foram as pessoas
que
acreditaram, aqui no
Brasil, que o estudo feito no exílio e sobre o exílio, na obra
de
Clarice Lispector, mereceria chegar ao país e se transf
ormar
em
livro . Foram elas qu e mobili
zaram
os esforços e o talento
de
Be-
atriz Viégas-Faria na laboriosa tradução de toda a tese. A elas,
Maria da Glória Regina e Beatriz, a admiração pela condução
do trabalho e um agradecimento todo especial.
Amstel
veen/Utrecht 1997/2001
Rio
de
Janeiro, 2002
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umário
INTRODUÇÃO
1 HAIA: UMA VIAJANTE CLANDESTINA
1 1
Introdução
1.2 Em terras estrangeiras
1.3 Laboratório literário
1.4 Conclusão
9
19
19
25
30
31
2 PERTO
DO
CORAÇÃO SELVAGEM DAS PALAVRAS 33
2 1 Introdução 33
2.2 Escritura feminina
35
2.3 No coração
das
palavras 35
2.4 Conclusão 43
3 NARRATIVAS DO SILÊNCIO: PALAVRAS SITIADAS 49
3.1 Introdução
49
3.2 Insiders outsiders 57
3.3 A terra de nenhuma mulher 61
3.4 Grupo do exílio 64
3.5 Palavras
de
sombras: O lustre 70
3.5.1 Sociedade
de
solidão 73
3.5.2 Laços desfeitos
75
3.5.3 A voz do outro 79
3.6 Teatro
de
pantomima:
A
cid de
siti d
83
3.6.1 Em estado de sítio: personagens narrativa
espaço e tempo 86
3.6.2 Silêncio de estátuas
89
3.6.3 Jogo
de
espelhos 92
3.7 Audiência de pedras: A m çã no
escuro
96
3.7 1 prendizado
humano
99
3.7.2 Da companhia das pedras
à interação
com
os outros 104
3.7.3 Como se faz
um
herói 110
3.7.4 Centro
versus
margem 114
3.8 Conclusão 116
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4 ATRAVESSANDOODESERTO:APAIXÃOSEGUNDOG.H.119
4 1 Introdução
4.2 Aproximando se do outro
4.3
Um
deserto de revelações
4.4 Tornar se
4.5 Vir a ser mulher
4.6 Conclusão
5
ESCRITOS NOMÁDICOS
5 1
Introdução
5.2 Itinerários nomádicos
5.3 Linhas de êxtase e dispersão
5.4
A hora da
estrela:
nos
bastidores da literatura
5.5
Ruínas do texto
5.6 Conclusão
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
BREVI ÇÕES UTILIZ D S
AV
cs
DM
FC
HE
LU
ME
OEN
PCS
PSGH
sv
Água viva
A
cidade sitiada
A descoberta do mtmdo
A
felicidade clandestina
A hora da estrela
O lustre
A maçã
no
escuro
Onde estivestes de noite
Perto do coração selvagem
A
paixão
segundo
G.H.
U m sopro de vida
119
123
128
130
133
136
139
139
143
147
153
160
163
165
171
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ntrodução
Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-
se a algo ou a
alguém
mais forte -
eu
quero pe
rt
encer
para que
minha
força não seja inútil e fortifique uma
pessoa
ou uma
coisa [
..
] pertenço,
por
exemplo, a
meu país, e como milhões de outras pessoas sou a ele
pertencente a ponto de ser brasileira. [ ..] Sou feliz de
pertencer
à
literatura brasileira
por
motivos que
nada
têm a ver com literatura, pois
nem
mesmo sou uma
li-
terata ou uma intelectual. Feliz apenas por fazer par-
te . (DM, p. 1
0)
Clarice Lispector está entre os autores mais celebrados e es-
tudados da literatura brasileira. Seu nome traz à lembrança os
romances, contos, cartas e crônicas
1
que ela escreveu
durante
quase 40 anos de trabalho literário, desde Perto do coração selva-
gem
publicado
em
1944, até o
póstumo
Um sopro
de
vida
publi-
cado
em
1978. Os críticos tomaram a estréia
de
Clarice como um
marco, principalmente porque a autora trazia algo de novo e re-
vigorante à arena nacional, àquela época identificada com o re-
gionalismo, fértil
porém
limitador, pelo qual a literatura brasi-
leira fora por longo tempo conhecida.
Quando a prosa poética de Perto do coração
selvagem
apare-
ceu, a literatura brasileira já vivenciara sua vanguarda espe-
As crônicas de Clarice Lispector foram em sua maioria publicadas no omnl do
Brasil
Alguns dos grandes nomes da literatura regionalista brasileira são Jorge Amado,
Rachei de Queiroz, Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Apareceram entre
1930 e 1945 e estavam fortemente comprometidos com a justiça social e a caracte-
rização típica
do
povo
do
Nordeste. S tegagno-Picchio, 1997)
A palavra
usurpada:
exíl
io e
nomadismo na obra
de
Clar
ice spector 9
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cialmente de 1922
em dian te com Oswald de Andrade e Mário
de Andrade. Ambos, entre outros, ajudaram a construir a então
chamada consciência nacional , por meio de um trabalho de
fortes tons nacionais, contra as fórmulas importadas e artificiais
de
expressões estéticas.
Contudo
a nova experiência
com
uma
linguagem de apelo mais universal só chegaria mais tarde,
com
a geração de 1945,
na
qual
podem
ser encontrados João Guima-
rães Rosa, Clarice Lispector e grandes poetas, como João Cabral
de Melo Neto (Stegagno-Picchio, 1997, p. 589). Com criatividade
e sofisticação, eles redimensionaram a língua
portuguesa
do
Brasil trilhando surpreendentes veredas.
Tão logo o primeiro
roma
nce de Clarice Lispector fo i lança-
do,
surgiu
a premência
de
classificá-lo
dentro
de
uma
categoria
internacional. A epígrafe
do
próprio romance apontava
para
uma
solução: Ele estava sozinho. Estava despercebido, feliz e
perto do coração selvagem da vida (Joyce, 1985, p. 171), Lecho
referente a
A portrait of the artist as a young man
Esse fato ini-
cial levou os críticos a presumirem com alguma precipitação,
que Clarice Lispector estava tão-somente seguindo os passos de
James Joyce.
Mesmo sem levar
em
conta o
quão
relevantes foram as in-
fluências literárias
que
pavimentaram a trajetória de Clarice, é
importante observar que a autora entrou na cena literária brasi-
leira com a força
de uma
estilista, e não apenas como
uma
boa
escritora.
É
bem verdade
que
Guimarães Rosa fez o mesmo, es-
pecialmente
em Grande
sertão:
veredas
(1956), mas o tema deste
era o mundo rural. Guimarães Rosa abriu
novas
frentes nas rús-
ticas terras brasileiras, para ali inserir
um
homem universal, en-
quanto
a tarefa
de
Clarice Lispector configurou-se mais indivi-
dual
, assim como também o fora
para
Kafka. Ambos esquiva-
ram-se
de
passar
por
paisagens abertas, preferi
ndo
cair
nas
pro-
fundezas de
um
abismo metafísico.
Por estranho
que
pareça, no entanto, após a surpresa causa-
da pelo
advento
de
Perto
do
coração
selvagem seguiram-se a esse
romance alguns
ou
tros de estilo
bastan
te diverso. Clarice Lis-
pector não continuou escrevendo da mesma maneira. Pelo con-
3
É
o ano
da
Semana
de
Arte Moderna no Brasil, marcando o começo oficial
do
movimento estético a favor
da
individualidade e liberdade na arte. (Stegagno-
Picchio, 1997)
1 O Cláudia Nina
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trário. Depois daquele momento brilhante de sua estréia literá-
ria, ela t
omou
o rumo
de
uma
outra
terra , iniciando então
uma
fase diferente em sua carreira. Enquanto o primeiro ro-
mance
representa
uma ruptu
ra com
padrões
literários tradicio-
na
is, vale
nd
o-se
de
uma
retórica não-mimética e
altamen
te sub-
jetiva, os três romances
que
se
seguiram
ao primeiro constituem
um
outro
momento
de ruptura : uma ruptura
com
o
próprio
estilo de Clarice Lispector, conforme celebrado em Perto
do
cora
-
ção selvagem.
Curioso é
notar que
isso representa
uma
inversão
de sua dinâmica literária inicial, uma mudança
que
classifico
como radical em forma e substância.
O
período
seguinte trouxe O
lustre
publicado em 1946;
A
ci
dade
sitiada
de
1949, e
A
maçã no
escuro
publicado
em
1
96
1
To-
dos os três foram escritos, integral ou parcialmente, durante a
época em que Clarice Lispector estava morando no exterior (Itá-
lia, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos) com seu marido, o di-
plomata Maury Gurgel, de 1944 a 1959. Todas as obras, segundo
a
pe
rspectiva que apresento,
div
idem entre si várias característi-
cas, de acordo com as quais
podem
ser agrupadas como narrati-
vas do
silêncio ou escritos de
exílio.
O exílio é
um
termo associado
à
literatura
desde
a Grécia
Antiga, onde era sinônimo de pena de morte (Queiroz, 1998, p.
39).
Nos
t
empos
modernos, contudo, essa conexão ficou
ainda
mais íntima, uma vez que muitos escritores até
mesmo
busca-
ram de forma
volun
tária experimentar o isolamento
do
exílio a
fim de obter, a partir dos sentimentos evocados a distância, al-
gum ganho artístico. Por isso, é
importante
enfatizar
que
o ter-
mo exílio não é visto aqui como punição,
mas
simp lesmente em
referência
ao
sentimento
de saudade ou
melhor,
de nos
talgia,
que expressa a separação de um
indivíduo
de sua pátria, e ainda
o desejo de retornar a ela algum dia.
Clarice Lispector
não
procurou o exílio;
apenas
concordou
em
acompanhar o
marido
em seu itinerário diplomático. Àquela
época, ela não
tinha
como avaliar claramente as possíveis con-
seqüências que a expatriação traria
à
sua obra. Afinal, em 1944
ela era
apenas
a
autora
de
um
único romance publicado e
não
tinha nenhuma certeza quanto ao seu futuro na literatura.
Mesmo
assim, acredito que Clarice Lispector tenha tirado van-
tagem
do
exílio. Primeiro, porque ela teve a oportunidade de
morar
em outros países e
de
conhecer diferentes culturas, coisa
que obviamente enriquece a sensibilidade de um autor. Segun-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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do, porque os anos
de
isolamento (naqueles tempos, as distân-
cias eram bem mais longas do que hoje)
deram
a Clarice Lispec-
tor a possibilidade de aproximar-se de si mesma, longe que es-
tava de ambientes conhecidos, dos amigos e da língua portu
guesa falada nas barulhentas
ruas
brasileiras
ou
nas
rádios. Por
inúmeras razões que serão em seguida analisadas, observa-se
que
o exílio foi um período extremamente fértil
para
Clarice
Lispector, que lá fora produziu um material rico e consistente,
que
merece ser analisado detidamente.
Mas, afinal, o que esses escritos do exílio têm em comum? E
por que se pode
pensar
neles
em
oposição ao que a autora pro-
duzira anteriormente?
Ora, são vários os aspectos a serem observados. Os três são
romances narrados no passado, em grande parte escritos na ter-
ceira pessoa, num clima de nostalgia e imobilização. As perso-
nagens levam vidas sedentárias
em
situação
de
exclus .v ou
de
isolamento social. Ex iste
uma
inegável sensação de desconforto
que
percorre a mente das personagens, que, silentes e melancó-
licas, mal se movem para além de seus domínios. Todas elas
(Virgínia, Lucrécia, Martim, Ermelinda, Vitória e a
mulata
cozi-
nheira) são, de
uma
maneira ou de outra, prisioneiros
da
lin-
guagem , uma vez que mal conseguem enunciar seus pensa-
mentos e sentimentos. São estrangeiros e exilados em seus pró-
prios mundos
interiores,
um
nicho estranho para eles mesmos.
Importa pouco, porém,
quão
grandes possam ter sido as co-
nexões entre vida e literatura na obra de Clarice Lispector, pois
não
é
minha
intenção investigá-las segundo a proposta, muitas
vezes superficial,
de
analisar
l
oeuvre
enquanto mera
reflexão
da
biografia
de um
autor no exílio. Meu enfoque coloca-se sobre os
aspectos exílicos que estão latentes na ficção. A questão que me
proponho a responder é a seguinte: o que define um texto como
exílico, e que espécie de elementos lingüísticos e literários são
com freqüência encontrados
em
tal literatura? Esses questiona-
mentos não devem conduzir a uma exaustiva e incompleta in-
vestigação sobre escritores expatriados dentro de uma perspec-
tiva
amp
la,
porque
isso
me
levaria a
empreender
uma
trajetória
sem-fim, e muito já foi feito nessa área. A idéia é traçar um para
lelo entre exílio na ficção e alguns elementos básicos
das narrati
vas
do
silêncio, que refletem a mesma disposição literária.
Organizado o esquema acima, uma das perguntas
que
me
vêm a mente é: como posicionar o romance inaugural de Clarice
12
láudia Nina
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Lispector - aclamado como uma ruptura com a tradição -
em
confronto com os romances
que
se seguiram? A
mudança
repre-
sentou, a
meu
ver, uma radical reavaliação na recepção da obra
de Clarice Lispector e, por isso, intrigava-me a idéia
de
localizá-
la. O modelo exílico
que
eu
tinha
em
mente necessitava
de
al-
guns outros elementos para justificar
sua
aplicação, opondo o a
Perto do coração selvagem.
Cheguei a uma solução quando verifiquei que era preciso
confrontar os textos de exílio
de
Clarice Lispector não só
com
Perto
do coração
selvagem mas principalmente com
seus
escritos
pós-anos 60, em especial os
produzidos na
década de 70, quan
do
o estilo proclamado na estréia da autora mostrou-se clara-
mente
desenvolvido. Agrupei, portanto, esses textos
no
conjun-
to
dos
escritos nomádicos por apresentarem
uma
dinâmica com-
pletamente diferente àquela que movia a lenta engrenagem das
narrativas do
exílio.
O termo relaciona-se ao estudo do nomadismo na literatura,
em especial às reflexões de Rosi Braidotti em Pattems of disso-
nance:
a study of
women in contemporary philosophy e Nomadic
stu
dies: embodiment
and
sexual difference in contemporary
feminist
the-
ory.
Fundamentando se
nos
trabalhos colaborativos
de
Gilles
Deleuze e Felix Guattari, a autora propõe um itinerário nomádi
co intelectual capaz de refletir
uma
consciência crítica que resis-
te acomodar-se a códigos sociais e a modos de
pensar
e tam-
bém
de comportamento) de centralizadas estruturas falocêntri-
cas de comando, força e hegemonia.
O conceito deleuziano de rizoma é útil para entender tal
movimento. O termo foi tomado emprestado da biologia para
definir diversas e
múlt
iplas formas vinculadas
em
todas
as dire-
ções, em oposição às arvores ou às suas raízes. Deleuze opõe a
idéia do livro-árvore à do livro-rizoma, esquema que representa
o contraste entre os escritos clássicos (belamente organizados) e
escritos rizomáticos , não-estruturais, não-significativos e des-
centralizados. A literatura nomádica,
segundo
tal perspectiva,
caracteriza-se por elementos como a dispersão e as linhas de
fuga , onde nada
há
a ser interpretado, apenas vivenciado .
Enquanto o modelo livro-árvore imita o
mundo
e a natureza
a
lei
que
a rege é a representação e sua lógica é binária), o ri-
zoma tem como princípios essenciais a multiplicidade
em
n
dimensões, a conexão, a heterogeneidade e a
ruptura. Os
exem-
plos são tirados da fauna e da flora:
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 3
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O rizoma propriamente dito tem formas as mais diversas, a partir
de sua extensão superficial, ramificada em todos os sentidos até
suas concreções em bulbos e tubérculos. Os ratos são rizomas, os
terriers também o são, em todas as suas funções de
hab
itat, provi-
são, deslocamento, ocultação e ruptura. (Deleuze e Guattari, 1
97
,
p.
18)
Vejo nesses estudos de Deleuze e Guattari
uma
relação
imediata com os escritos tardios de Clarice Lispector: gua viva
(1973),
hora
da estrela (1977) e
Um
sopro de vida (1978). Os três
refletem um projeto literário-filosófico destituído de
um
centro
de
comando
e de uma estrutura formal, fazendo ruir os padrões
canônicos
das
narrativas clássicas. Por várias razões, essas nar-
rativas (altamente fragmentadas e não-representa
ti
vas) são
uma
expressão clara da consciência nomádica que Braidotti defende
e exemplo perfeito
do
conceito deleuziano de rizoma .
A partir dessa perspectiva de confronto - livros-árvore
ver-
sus livro-rizoma -
eu
precisaria decidir se consideraria os
escri-
tos de
exílio
de Clarice Lispector segundo o modelo árvore ou
não. Em caso positivo, por extensão,
eu
teria de considerá-los
romances clássicos . Sim e não. Eu poderia dizer que o ciclo do
exílio
é formado
por
obras
nas
quais a subjeti
vidade
transmite-se
por meio da interação clássica entre a enunciação narrativa e as
personagens que não participam como sujeito
na
primeira pes-
soa , da con
strução do
texto .
Além
disso, a es
trut
ura dessas
obras pretende , de fato, representar o mundo em vez de vi-
vendá-lo . Ex iste, portanto,
uma
lógica clássica , por assim di-
zer, que rege esses mundos narrativos e que se opõe francamen-
te aos
escritos
nomádicos
altamen te esquemáticos, erráticos e
não-miméticos.
O
mode
lo exílico/nomádico, contudo ,
não
estava completo
em minha mente. A mudança de um ponto de vista para outro
parecia-me radical demais. Faltava uma
ponte, um romance
de
ligação entre uma fase e outra. Encontrei o elo em paixão se-
gundo
G.H. (1964), primeiro livro escrito depois do retorno de
Clarice Lispector ao Brasil. Este é um livro que anuncia uma es-
pécie
de
metamorfose
na
estru
tur
a,
na
ling
ua
gem
e
no
estilo
da autora , aproximando a literatura à fi losofia e expl
orando
as
possibilidades de seu elemento comum,
ou
seja, a linguagem.
Esse processo havia se iniciado su tilmente em maçã no es-
curo que fecha o ciclo do
exíli
o A partir de paixão segundo G.H.,
as palavras
do
exílio parecem ter sido liberadas para recomeçar
4 Cláudia Nina
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o processo
de
se tornarem desenraizadas, nomádicas, livres e
não-representativas. Nesse romance, pela
primeira vez
, Clarice
Lispector estava escrevendo integralmente na primeira pessoa.
A voz do
eu protagonista
- também narrador - aparece em
um
solil
óqu
io,
discorrendo
sobre diversos ti
pos de
ma
téria,
desde
questões
simples e ordinárias, até
temas
metafísicos, reli-
giosos e existencialistas. Parece-me existir aí, a partir de paixão
segundo G.H, um outro momento de ruptura
em que
a natureza
experimental
do estilo
de
Clarice Lispector é
reinventada
ou
resgatada
em sua
plenitude. Não que eu considere esse ro-
mance
como
sendo
da
mesma categoria dos escritos tardios (re-
ferentes
à
década de 70 .
paixão segundo
G.
H.
é, a
meu
ver,
uma passagem
para
os trabalhos posteriores ao colocar
em
discussão
muitos dos
elementos que se
encontram mais
ampla-
mente
desenvolvidos
nos escritos nomádicos tanto
em
forma
quanto em conteúdo.
Para ilustrar o ciclo do exílio eu poderia ter selecionado vá-
rias outras obras, como,
por
exemplo, Laços de
família
(1960), que
é talvez a antologia
de
contos de Clarice Lispector
que
maior
sucesso obteve, bem como a mais
estudada.
Com certeza,
mui-
tos
dos
contos dessa antologia
poderiam
perfeitamente encai-
xar-se na
idé
ia que
ora defendo
sob o rótulo de escritos de exílio
uma
vez que apresentam
personagens
(principalmente
mulhe-
res) aprisionadas
em
suas esferas exílicas
dominadas
pelo am-
biente
doméstic o, do qual sonham escapar de algum
modo.
En-
tretanto, os contos
de
Clarice Lispector são tão ricos e cheios
de
possibilidades de investigação que
merecem
um estudo à parte.
Além
disso,
um
esco
po
mais amplo
alargaria
minha
análise
ru-
mo a direções não-objetivas e imprevisíveis. Por essa razão, op-
tei
por
concentrar-me na tríade
de
romances
que
defino como
exílicos, e explorar um conjunto de escritos que até hoje não fo-
ram
abordados de fo rma consistente.
Apresentar
uma
conexão entre as diferentes fases
de
sua
carreira é, sem
sombra
de
dúvida,
um
importante passo à
frente.
Além disso, os escritos de exílio ainda não receberam atenção de-
vida
por
parte dos
críticos e
permanecem neg
ligenciados se
comparados a Perto do coração selvagem paixão segundo G.H. e
hora da
estrela.
De fato. há um grande número
de
trabalhos críticos compe-
tentes sobre Clarice Lispector
que levam
os leitores a diferentes
direções.
Hé
lene Cixous, por exemplo, é
uma
referência impor-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tante, sobretudo
por
haver apresentado a autora brasileira aos
leitores
europeus
em livros, artigos e seminários que abriram
novas frentes de abordagem à investigação da obra de Clarice
Lispector. Entre os trabalhos de Cixous estão
Coming to
writing
and other essays
que
agrupa
ensaios
de
1979 a 1986, e
Reading
wi-
th
Clarice Lispector publicado
em
1990, que reúne os seminários
ministrados na Université de Paris
VIII.
No campo biográfico,
Rencontres
brésiliennes de Claire Varin,
publicado em 1987
no
Canadá, foi o primeiro
estudo
biográfico
detalhado de Clarice Lispector, baseado em material documen-
tado. Inclui cópias impressas
de
alguns documentos
que
escla-
recem a diferença entre a real data de nascimento de Clarice
Lispector (1920) e a
data que
a autora apresentava como
sendo
sua data de nascimento.
Varin
também
publicou
Langues
de feu
em
1992, um importante estudo dos idiomas que cercaram a vi-
da de Clarice Lispector
desde
a infância. O estudo inclui grupos
de obras de Clarice Lispector que
eu
particularmente tomo co-
mo opostos aos que
proponho
no presente trabalho.
Em 1985, Earl Fitz apresentou Clarice Lispector aos leitores
norte-americanos com a obra Clarice Lispector
que
insere a auto-
ra
na
cena literária brasileira
moderna
e analisa seus textos
de
maneira inteligente e perspicaz.
Passionate fictions:
gender narra-
tive and
violence
in Clarice Lispector de Marta Peixoto (1994),
pu
blicado
nos
Estados Unidos, é provavelmente um dos trabalhos
mais maduros e lúcidos sobre Clarice Lispector, cobrindo uma
porção significativa da bibliografia da autora. Clarice
Lispector:
a
bio-bibliography
editado
por Diane Marting em 1993, é
um
estu-
do abrangente, com bibliografia atualizada e comentada, e que
inclui cartas, documentos pessoais e recortes
de
jornais.
Clarice
Lispector:
spinning the webs of passion de Maria Jose Sommerlate
Barbosa (1997), é um trabalho relevante sobre a subversão de
Clarice Lispector
em
relação à autoridade e à questão da autori-
a.
Sommerlate
também
publicou
Sparkling
mutations 1997) , edi-
ção bilíngüe, uma útil referência bioliterária e cronológica que
funciona como
resumo
e breve manual.
Como esclarece Marta Peixoto, em geral acreditava-se que Clarice Lispector fosse
de 1925, enquanto os documentos revelam 1920 como sua data de nascimento. O
motivo de Clarice Lispector para tal troca pode muito bem ter sido vaidade, e
mesmo uma vaidade literária,
um
desejo seu de mostrar-se ainda mais precoce
à
época de sua estréia literária
em 1944.
(Peixoto, 1994, p.
XVI)
5
No
Brasi
l.
a obra foi publicada
em 2002,
pela editora Limiar, com o título
Línguns
de fogo: ensnio
sobre
Clnrice Lispector tradução de Lúcia Peixoto Cherem.
16 Cláudia Nina
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No Brasil, a edição crítica de
A
paixão
segundo G.H., publica-
da em 1988 e organizada por Benedito Nunes, reúne textos
de
Olga Borelli, Olga de Sá, Antonio Candido e João Cabral de Me-
lo Neto, entre outros, num conjunto abrangente e diversificado
de
leituras
do
quinto romance
de
Clarice Lispector.
A
escritura
de
Clarice Lispector de
Olga
de
Sá, é uma análise detalhada dos
símbolos e epifanias em Clarice Lispector;
da
mesma autora, A
travessia
do oposto fornece
uma
análise cuidadosa dos símbolos
nos textos mais fascinantes porque fora do comum)
de
Clarice
Lispector.
Olga Borelli publicou em 98
Clarice
Lispector: esboço
para
um
possível retrato apresentando uma outra abordagem biográ-
fica,
que
contém as reproduções
de
várias cartas escritas
por
e
para Clarice Lispector entre 1944 e 1957, e assim oferecendo
uma importante fonte para pesquisa
das
conexões entre vida e
literatura. Em 1983, Berta Waldman
publicou
Clarice
Lispector: a
paixão segundo C.L.
uma
abordagem crítica a alguns textos sele-
cionados de Clarice Lispector dentro de
uma
leitura poético-
biográfica.
Em Uma vida que se
conta
publicado em 1995, Nadia Gotlib
apresenta
um
atraente trabalho biográfico,
em
que
relaciona a
vida
de
Clarice Lispector desde a infância
à sua
obra ficcional.
Teresa Cristina Monteiro Ferreira é a autora de Eu sou uma per-
gunta
publicado em 1999, uma das melhores pesquisas já feitas
no campo da biografia, com fontes confiáveis
que
servem
de
guia
para uma
sondagem dos aspectos biográficos mais íntimos
de Clarice Lispector, tendo se constituído em valiosa referência
para minha investigação.
O
Inventário
do
arquivo
Clarice
Lispector
organizado
por
Elia-
ne
Vasconcellos, lista importante material para pesquisa; con-
tém um catálogo do material em exposição
no Arqu
ivo-Museu
de Literatura Brasileira, no Rio de Janeiro, na Fundação Casa de
Rui Barbosa.
6
Clarice
Lispector: o tesouro da
minha cidade
de Ana
Miranda 1996), faz parte
de
um projeto editorial
que
vincula
autores a cidades. O trabalho descreve a relação de Clarice Lis-
pector com o Rio
de
Janeiro, incluindo referências
à
cidade na
obra da autora.
Regina Pontiere publicou em 1999 Clarice
Lispector:
uma
poé-
tica
do
olhar. A obra destaca-se pela investigação que a autora faz
de
A cidade sitiada trazendo à luz aspectos interessantes de um
• A Casa
de
Rui Barbosa abriga o Arquivo Museu de Literatura Brasileira, o que
inclui alguns dos originais
de
Clarice Lispector.
A palavra usurpada:
exílio
e nomadismo na obra de Clarice Lispector 7
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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romance que ainda
não
recebeu atenção crítica merecida. Estrei-
tando a relação entre literatura e psicologia, Yudith
Rosenbaum
publicou em
1999
Metamorfoses do
mal: uma leitura de Clarice
Lis-
pector
análise
cuidadosa
de
algumas
distorções psicológicas
na
obra
de
Clarice Lispector, tais como a inveja e o sadismo.
Levando-se
em consideração todos esses
estudos
críticos,
questiono por que razões não se fez
outro
tanto em relação aos
romances de exílio. Talvez o mais estudado deles seja maçã no
escuro por sua densidade
e contornos filosóficos. E curioso no-
tar, entretanto que,
sendo
tão diferentes do resto da ficção de
Clarice Lispector, esses romances não tenham suscitado um
maior
interesse
por parte dos
críticos. O
esquema aqui proposto
pretende preencher
essa lacuna,
chamando
a atenção
dos
leito-
res para o aspecto
do
exílio, que
é
sem sombra de dúvida
um
elemento
essencial
na
construção
da arquitetura
filosófica des-
ses romances,
escondendo-se atrás
de todas as vozes silenciosas
(e silenciadas)
das personagens
e
no
vazio onde as
mesmas só
muito
lentamente
se
movimentam.
Nas
páginas que se
seguem desenvolvo
a
idéia
de que a
obra de
Clarice Lispector
é
feita de ciclos
de
ruptura
com seu
próprio
estilo,
sendo
o
mais
significativo o
que vem quebrar
a
dinâmica
de
Perto do coração selvagem
(que
em
si
mesmo
é uma
ruptura
com
a tradição), nas narrativas
do silêncio
e o que esti-
lhaça o silêncio em direção aos escritos nomádicos.
É importante mencionar que um movimento só vai existir
em
oposição a
outro
e que o
estudo
de uma fase
só
se justifica
em relação à outra.
Em outras
palavras: sem os escritos de
exílio
a idéia das obras nomádicas ficaria
sem
sua contraparte. É por es-
sa razão que
é
pertinente
estudar o
ciclo do exílio
sob uma pers-
pectiva que inclua seus movimentos subseqüentes em vez
de
analisar as obras independentemente
de todas
as conexões que
elas tenham
com
o resto da obra de Clarice Lispector.
Acredito
que, desse
modo posso contribuir com
os
estudos
acadêmicos
de Clarice Lispector,
abrindo ampla
discussão acer-
ca dos aspectos de sua
obra que ainda não
foram suficientemen-
te
explorados
e que,
por todas
as razões já
mencionadas desper-
taram o
meu
desejo de
desvendar
novos
caminhos
investigati-
vos.
18
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Haia
uma viajante clandestina
A felicidade
sempre
iria ser clandestina
para
mim.
FC,
p. 18)
É
um
silêncio
que não
dorme:
é
insone; imóvel
mas
insone; e
sem
fantasmas. OEN, p.
94
1.1
Introdução
O exílio e a
clandestinidade
estão ligados às raízes da histó-
ria
de
Clarice Lispector. A autora nasceu em Tchechelnik, Ucrâ-
nia, em 1920, quando sua família, judia- os pais e duas
irmãs-
embarcava
para
o Brasil,
dando
início a
uma
longa
viagem ru-
mo à América. As duras restrições aos judeus
na
Rússia do pós-
guerra e
da
pós-revolução fizeram
com
que os Lispector esco-
lhessem entre as
duas
únicas alternativas que lhes restavam: vi-
ver como
refugiados em seu país
de
origem
ou
como exilados
no Novo Mundo - Estados Unidos ou Brasil. Pinkas e Mania
Lispector acompanhavam com
apreensão
as mudanças e a ins-
tabilidade política e social que
deixaram desempregados
e mise-
ráveis
muitos
de
seus compatriotas Ferreira, 1999, p. 25). Por is-
so, o casal decidiu-se
pela
segunda opção, elegendo a costa bra-
sileira
como
porto seguro.
Foi
uma viagem
difícil, mas cheia
de
esperança.
Para
chegar
ao destino, a família cruzou fronteiras e fugiu dos guardas
que
as vigiavam,
como
relata
em
detalhes Teresa Cristina Monteiro
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
19
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Ferreira, na biografia Eu sou uma
pergunta Na
metade
do
cami-
nho para
a terra prometida , em uma diminuta vila perdida no
mapa
na
fronteira da Moldávia, nasceu a terceira filha do casal.
Ela recebeu o nome de Haia, que, em hebraico, significa vida .
(Ferreira, 1999, p.
26
A
verdadeira identidade
de
toda
a família teve de ser ocul-
tada, e os nomes tiveram de ser mudados: Haia virou Clarice;
Pinkas, o pai, seria para
sempre
Pedro; Mania, a mãe, tornou-se
Marieta. O nome da irmã Lea mudou para Elisa, e apenas Tania
preservou
seu
nome
. O primeiro
porto
brasileiro foi Maceió,
no
estado de Alagoas e, três anos mais tarde, a família mudou-se
para o Recife, em Pernambuco,
lugar que
veio a ser para Clarice
Lispector o santuário de uma infância feliz, porém muito pobre.
Quando Clarice tinha 14 anos, em 1934, mudou-se
para
o Rio de
Janeiro, cidade
que
deixou somente depois
de seu
casamento
com o diplomata
Maury
Gurgel,
em
1944. Jamais retornou à
Ucrânia. E a Rússia permaneceria como a distante e misteriosa
terra de seus pais.
O itinerário exílico/nomádico de Clarice Lispector estava
selado
desde seu
nascimento, o que
não
a
impediu de
conside-
rar o Brasil
sua
pátria. Embora não tenha nascido
em
território
brasileiro, ela nunca colocou sob suspeita sua
identidade
nacio-
nal, como deixou claro
em
algumas crônicas de A
descoberta do
mundo
uma antologia de escritos heterogêneos
que
inclui textos
publicados no Jornal do Brasil entre agosto de 1967 e dezembro
de 1973. Esse material é importante
porque
fornece relevantes
aspectos sobre o processo de criação da
autora
e também revela
uma
série
de
episódios autobiográficos.
Quanto
à
sua
brasilida-
de, por exemplo, Clarice afirmou:
Criei-me em Recife, e acho que viver
no
Nordeste ou Norte
do
Bra-
sil
é
viver mais intensamente e de perto a verdadeira
vida
brasilei-
ra que lá, no interior,
não
recebe influência de costumes de outros
países. Minhas crendices foram
aprendidas
em Pernambuco, as
comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empre-
gadas,
aprendi
o rico folclore de lá. Somente
na
puberdade vim
para
o Rio
com minha
família: era a cidade
grande
e cosmopolita
que,
no
entanto, em breve se tornava
para
mim brasileira-carioca.
DM, p. 345
Sua primeira língua escrita foi o português, que acabou se
tornando a língua de sua vida e
de sua
literatura. Clarice escre-
20
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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veu acerca desse aspecto a fim de evitar maiores controvérsias:
Fiz
da
língua portuguesa a minha vida interior, o
meu
pensa-
mento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a es-
crever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os
em
português
é claro (DM, p. 345).
Na
verdade
dois
outros
idiomas eram falados
na
casa dos Lispector: o russo e o iídiche.
Quando criança, Clarice entendia um pouco e mesmo arriscava
umas poucas palavras dessas duas línguas, embora nunca tenha
desenvolvido um maior conhecimento delas
em
sua vida
adu
l-
ta. Em
Langues
de feu, a canadense Claire Varin defende a se-
guinte idéia: Os pais falavam iídiche em casa; Clarice compre-
endia, mesmo que nunca tivesse falado . (Varin, 1990, p. 26
Claire Varin analisa a confluência dessas diferentes vozes
na
mente
de Clarice Lispector desde a infância e as possíveis
conseqüências de tal emaranhado lingüístico para a construção
da
personalidade
literária
que
a autora viria a desenvolver. A
canadense revela que a língua materna circulava clandestina-
mente
na
casa e garante
que
o choque entre o iídiche e o
portu-
guês que a criança logo começou a falar teria forjado alguns
conflitos de identidade. Como ressalta a crítica canadense:
Nutrida
pelo iídiche, ela apreende o português da terra
adotada
por
seus pais. Suas experiências auditivas fizeram-na mergulhar,
desde o tenro começo de
sua
doce infância,
na
condição de instabi-
lidade de uma língua pura . (Varin, 1990, p.
26
O mame do iídiche, ou o mamãe brasileiro? Em casa, Clarice Lis-
pector gritava mame Fora
de
casa, em território brasileiro ela
aprendeu que mamãe
é
a
palavra
em português para dirigir-se à
sua mãe
judia.
Mame
ou
mamãe?
Detrás
de
qual vocabulário, sob
que
idioma
sua
mãe estaria se ocultando? (Varin, 1990, p. 66
Alguns críticos
sugerem
uma terceira língua: o jeito estra-
nho de
falar
de
Clarice, marcado
por um
leve sotaque estrangei-
ro. Devido a um pequeno defeito de dicção, popularmente cha-
mado
de
língua presa , a fala de Clarice soava com um r for-
te, como o sotaque francês. Por causa disso,
muitas
pessoas sus-
peitavam de
sua
nacionalidade brasileira: Recebo de vez
em
quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me
rodeiam de mitos. Vou esclarecer de uma vez
por
todas:
não há
simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito .
(DM, p. 345)
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 21
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Outras
línguas
podem
igualmente ser acrescentadas a essa
lista, como as
que
Clarice Lispector
aprendeu
ao longo
de
sua
vida, como o francês, o italiano e o inglês. Contudo, apesar des-
sa exuberância lingüística, a autora escolheu o
português
como
sua
língua literária. Para ela, A língua
portuguesa
é
um
verda-
deiro desafio
para quem
escreve. [
..
] Eu queria
que
a língua
portuguesa chegasse ao máximo nas
minhas
mãos. [
..
] Eu até
queria não
ter
aprendido outras
línguas: só
para que minha
abordagem do português
fosse virgem e
pura
(DM, p.
98 .
Em
eadíng wíth Claríce Líspector Hélene Cixous
também
analisa as
possíveis relações entre as várias línguas
na vida da
autora e
seu
estilo inconfundível. Ela diz:
Clarice fala todas as línguas, inclusive aquelas anteriores ao sâns-
crito, incluindo-se aí os silêncios. É
bom
viver nas línguas sob a
condição
de
que
elas não ditam as leis. [ ..] Clarice trabalha a lin-
guagem propriamente dita e sua relação com o corpo, e trabalha o
paradoxo
que
é a linguagem, de tal modo
que
as coisas sem corpo
nem
realidade são descobertas e ditas com mais facilidade porque
elas não são
nada
mais que palavras, como, por exemplo, as leis.
(Cixous, 1990a, p.
12
Clarice foi, portanto, criada num ambiente
de
línguas mistas
e
identidades
conflitantes. Dentro desse universo
de
exílio e es-
trangeiridade, dois outros aspectos cruciais
devem
ser incluídos
na
biografia
da
escritora: a pobreza e a orfandade. A mãe, doen-
te e calada,
nunca
tinha
tempo ou saúde para
nutrir a ânsia
de
sua filha por histórias, fábulas, enredos, fantasia. Além disso,
ela foi paralítica
durante
toda a
vida
de Clarice, e
morreu
quan-
do
a menina tinha 9 anos
de
idade. O
pai
não tinha
nenhuma
formação artística
em
especial, nem tivera qualquer educação
cultural, embora gostasse de música e de leitura. Sem brinque-
dos ou
bonecas, Clarice teve
de
inventar seus próprios jogos so-
litários numa infância muito pobre, correndo pelas ruas
do
Reci-
fe.
Elisa Lispector (1911-1989), também romancista, escreveu o
parcialmente autobiográfico
No exílio em que
apresenta
uma
versão daqueles primeiros anos, marcados pela
saúde
decaden-
te da mãe e o impacto de sua morte sobre a família. Publicado
em 1948
(à
época
do
nascimento
do
Estado Nacional
Judeu de
Israel), o romance retrata a realidade de uma família russo-judia
perseguida, traçando seu êxodo desde as estepes geladas
da
22 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Rússia
até
os trópicos
do
Brasil. Elisa Lispector estreou silencio-
samente
na literatura, aos 34 anos de idade, com o livro Além da
fronteira.
Dona de
uma
personalidade
introvertida,
não
tinha o
hábito de expressar
apaixonadamente seu
desejo de tornar-se
escritora, como Clarice
muitas
vezes o fez. Ao contrário
da
irmã
famosa, Elisa
nunca
alcançou grande sucesso,
apesar
de suas
inquestionáveis habilidades literárias.
Não
obstante a
pobreza
e as dificuldades emocionais, a jo-
vem Clarice Lispector entretinha-se com os livros emprestados
das bibliotecas públicas. Tão logo descobriu o mundo da litera-
tura, também descobriu algo mais ambicioso: o desejo
de
seres-
critora. A criança começou a escrever contos, que enviava aos
cadernos literários
dos
jornais.
Ntmca
foram publicados,
para
constante frustração da pequena escritora. Mais tarde, Clarice
descobriria a razão
do suposto
fracasso: as outras crianças es-
creviam sobre fatos,
enquanto
os textos dela eram apenas va-
gas emoções e sensações .
Em
A felicidade clandestina uma série de contos publicada
em 1971, episódios interessantes
da
infância
de
Clarice são nar-
rados na primeira pessoa, que fala sobre
muitos
assuntos pes-
soais, tais como
sua
formação literária. O conto
que
abre o vo-
lume
é um bom exemplo de como os livros foram importantes
para a autora desde quando, ainda menina, invejava a amiga, i
lha de um
dono
de
livraria. Sádica, a amiga recusava-se a em-
prestar
a Clarice um livro por lonpo tempo desejado: Reinações
de
Narizinho
de
Monteiro Lobato. Somente depois
de
uma es-
pera
interminável, finalmente ela consegue ter em
suas
mãos o
livro. Foi
quando
se
sentiu
transformada em
uma
rainha deli-
cada FC,
p. 18).
À medida que
Clarice Lispector foi crescendo, suas leituras
ganharam naturalmente
um teor
mais
sério,
com
títulos como O
lobo da estepe de Herman Hesse, por exemplo. A jornada interior
de
Jack London deixou impressões profundas e memoráveis na
adolescente. Naquele momento, ela se sentia entrando em con-
tato
com
a
grande
literatura,
que
a chocou por sua intensidade
e força, como ela
mesma chegou
a confessar (Gotlib, 1995, p. 85).
Aos 15 anos, já morando
no
Rio de Janeiro, Clarice
comprou seu
primeiro livro. Foi uma experiência e tanto. Era Bliss de Kathe-
' O
mundo
fantasioso de Lobato influenciou a imaginação
de
Lispector, especial-
mente na
arte das
narrativas
dentro de
narrativas .
A palavra usurpada: xílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 3
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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rine Mansfield. A obra
da
autora inglesa foi
uma
influência con-
siderável sobre os primeiros escritos
da
escritora brasileira,
principalmente no que toca ao uso da sensibilidade e
da
intui-
ção
no
processo criativo. Incluído em algumas das lembranças
de
leitura mais caras a Clarice,
Bliss
e
Perto
do
coração
selvagem
têm em
comum
o sentimento de êxtase e a inesperada sensação
de
descobrir surpresas iluminadas no meio
de
uma rotina banal.
Em Bliss por exemplo, os pensamentos e sensações de Bertha
Young são cuidadosamente descritos:
O que se pode fazer
quando
você tem trinta anos e, ao dobrar a es-
quina de sua própria rua, você é tomada, de repente, de um senti-
mento de êxtase total êxtase
Como
se de repente você tivesse
engolido o brilho
de um
pedaço daquele sol
bem de
finzinho
de
tarde, e ele então pusesse fogo dentro do seu peito, dali enviando
uma pequena inundação de centelhas para cada partícula sua, para
cada dedo da mão,
para
cada dedo do pé? (Mansfield, 1995, p. 60)
No
estudo
Clarice
Lispector
Earl Fitz analisa a conexão entre
as duas escritoras. Fitz conclui que ambas "escreveram contos
que acendem
um repentino e dramático lampejo de insight den-
tro
da
verdadeira natureza de
uma
personagem" (Fitz, 1985, p.
3). Em seus contos, acrescenta ele, a atmosfera envolve-se de um
ar milagroso,
um
arrepiante senso
de
mistério de qualidade
onírica
que
se conecta só parcialmente à realidade
do
dia-a-dia.
Não obstante, Fitz acredita que, apesar da "delicada aura
de
pensamento e sentimento" (Fitz, 1985, p. 3)
de
que se cercam
seus universos ficcionais, as autoras jamais deixam de ancorar
suas histórias na vida cotidiana, localizando-as nas classes mé-
dia e média-alta dos centros urbanos.
Movida pelo desejo de expressar-se na literatura e
nutrida
por constantes leituras, Clarice Lispector começou, então, a es-
crever novos contos
para um
concurso literário enquanto estu-
dava Direito. Alguns desses textos só foram publicados em
1979, em bela e a fera. Sua primeira obra publicada,
no
entanto,
foi o romance Perto
do
coração selvagem
1944)
que
surpreendeu
enormemente os críticos ao mostrar o talento e o estilo
de
uma
auspiciosa romancista. A obra,
que
será analisada
no
próximo
capítulo, foi celebrada como um grande romance, logo inserido
no primeiro plano da literatura internacional.
Após a estréia literária e o casamento com o diplomata
Maury Gurgel, em vez de empreender a viagem independente
24
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 26/186
de Joana ao fim de Perto do coração selvagem , Clarice Lispector
segue o rumo de
uma
jornada itinerante ao lado do marido. Vi-
veria, além de escritora, o papel primeiro de esposa. Muda-se,
então, do Rio de Janeiro
para
Belém, e dali para Nápoles, na Itá-
lia,
em
1944,
dando
início a
um
longo período
em
terras estran-
geiras: Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. Retornaria ao
Rio
de Janeiro somente em 1959.
1.2
m terras estrangeiras
Recife está
todo vivo
den
tro
de
mim. (Clarice Lispec-
tor, em uma entrevista)
8
É natur
al que a história familiar
de
Clarice, incluindo aí a
perda prematura de sua mãe, tenha sido
um
fator determinante
no curso
de sua
carreira e até mesmo
em
s
ua
literatura. Impos-
sível determinar, porém, com certeza o quão estreitos foram os
laços entre vida e obra. Contudo, é importante ressalt
ar
que, du-
rante
os anos
em
que
a
autora
esteve longe
do
Brasil, o exercício
da escrita serviu-lhe como
uma
espécie de refúgio lingüístico .
Em
seu desterro voluntário , ela escreveu várias cartas a au to-
res brasileiros (Manuel Bandeira, Rubem Braga, Paulo Mendes
Campos Lúcio Cardoso e Fernando Sabino
,
expressando an-
gústia e uma grande dificuldade em lidar com problemas de
adaptação no exterior. Al
ém da
correspondência, também pro-
duziu romances: as linhas finais de O lustre e os textos comple-
tos de
A
cidade
sitiada
e de
A
maçã no
escuro
.
O termo exílio não é empregado aqui em seu sentido políti-
co
de
ausência forçada
ou
punição, como aparece definido no
Ox-
ford English Dictionary, mas, antes, no sentido de se viver longe
da pátria
por um
longo
tempo
devido a um motivo especial ou
a
uma
escolha pessoal, como aconteceu com Clarice. Em algu-
mas das cartas a amigos brasileiros , é possível analisar como foi
doloroso
para
a autora
morar
fora do Brasil. Na edição inglesa
de A descoberta do mundo Discovering the world , Giovanni Pon-
tiero faz a seguinte reflexão:
' Entrevista ao suplemento literário
do
Jornal do Comér
c
io,
de
Pernambuco. Cf. Got-
lib, 1995,
p. 481.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice spector 5
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Por dezesseis anos, Lispector viveria separada de
seu amado
Bra-
sil, à exceção de breves visitas que apenas intensificavam seu sen-
timento
de exílio e saudade. Ela
detestava
as obrigações sociais
exigidas de
uma
esposa de diplomata. Escrever tornou-se cada vez
mais
importante para sua
sobrevivência espiritual. Ela desejava
uma maior privacidade a fim de
poder
meditar e escrever seus li-
vros. Escrever tornou-se sinônimo de solidão e uma forma mais
profunda de existência, e foi só o trabalho e os filhos que a manti-
veram
mentalmente sã
durante
aqueles anos em ambientes estran-
geiros. Discovering the world, p.
23)
Clarice e Maury Gurgel chegaram à Itália em plena Segunda
Guerra Mundial. Uma vez que os museus estavam fechados e os
eventos sociais mostravam-se pouco interessantes, a autora não
encontrou outro entretenimento que não fosse a literatura. Lá se
foi Clarice então rumo às páginas
de
Gide, Proust, Katherine
Mansfield, Dostoievski, etc. Àquela época, ela também
'Stava
escrevendo contos e terminando os últimos detalhes do livro
começado antes de deixar o Brasil: O lustre. Em Nápoles, mesmo
depois do fim da Guerra, Clarice Lispector lutava
para
se adap-
tar ao país
e nem
mesmo
a intensa correspondência com os
amigos e as irmãs conseguia disfarçar a tristeza e a solidão. Para
piorar as coisas, os tempos de exílio estavam apenas começan-
do. A próxima parada seria ainda mais deprimente: Berna,
na
Suíça. As primeiras impressões do novo cenário foram-lhe tre-
mendamente
negativas. A autora descreveu o silêncio e o vazio
das ruas
de
Berna como uma espécie de morte em vida .
Enquanto isso, no Brasil, os críticos mantinham-se mudos
frente a O lustre. Foram tempos difíceis
para
Clarice, que, apesar
disso, já começara a escrever seu terceiro romance:
A
cidade
si-
tiada. Mas, mesmo
quando
se concentrava
em
seus projetos lite-
rários, ela não conseguia deixar
de
se sentir fora de lugar em
terras estrangeiras, como
pode
ser visto no seguinte fragmento e
em muitos outros momentos descritos em contos, cartas e crôni-
cas: Tudo é a terra dos outros,
onde
os outros estão contentes.
É tão esquisito estar em Berna e é tão chato este domingo [ .. ]
(Gotlib, 1995, p. 219). No texto Suíte
da
primavera
na
Suíça ,
de
A
descoberta do
mundo
Clarice destilava,
por
meio
de
su
_a prosa
' Em uma das inúmeras cartas que Lispector escreveu da Itália para sua irmã , ela
confessou: Tudo que tenho é a nostalgia que vem de uma vida cheia de senti-
mento
[ ..] Tenho uma alma aflita, e é dela que vêm meus problemas. Pessoas
saudáveis, graças a Deus,
não têm
como entendê-los . Cf. Ferreira, 1999, p. 125.
26 Cláudia Nina
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profundamente
poética, o
sentimento de desconforto
que o exí-
lio lhe causava:
Onde me
esconder nesta aberta claridade? Perdi meus cantos
de
meditação. Mas se
ponho
vestido branco e saio
na
luz ficarei
perdida
- e de novo
perdida
- e no salto lento
para
o outro plano
de
novo
perdida
- e como encontrar nesta minha ausência a pri-
mavera? Rosa, passa a ferro o
meu
vestido mais negro. Nestes pla-
nos
de
calma
sucessiva-
e mais
no
outro-
e mais
no outro-
serei
o único
eu
possível, apenas móvel
num
século e
no
outro século e
no
outro século desta limpidez silenciosa,
oh
inóspita primavera.
(DM, p. 34)
De
fato,
os anos na
Suíça
marcaram um período de profun-
do silêncio,
inspirado
pelo cenário,
conforme se
constata neste
fragmento das Lembranças de uma primavera suíça :
Com
o vento, vem do campo o sonho das cabras. Na outra mesa
do terrão, um fauno solitário. Passavam-se dias e mais dias. Mas
bastava
um
instante
de
sintonização e de novo captava-se a estáti-
ca farpada
da
primavera [ ] O quê? Nada,
eu não
disse nada .
(DM, p. 339)
A
solidão
em
Berna
é
novamente
encontrada
no
texto
Noite
nas montanhas :
A noite
de
Berna tem o silêncio.
Tenta-se em vão trabalhar para não ouvi-lo,
pensar
depressa
para
disfarçá-lo.
Ou
inventar
um
programa, frágil ponte que mal nos li-
ga ao subitamente improvável dia de amanhã. Como ultrapassar
essa paz
que nos espreita. Silêncio tão
grande
que o desespero tem
pudor.
Montanhas tão altas que o desespero tem pudor. [
]É
um
silêncio
gue não
dorme: é insone; imóvel mas insone; e
sem
fan-
tasmas. E terrível - sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo
com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma
cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promes-
sas. (DM, p. 129)
Entre
suas lembranças exílicas,
há diversos textos não
neces-
sariamente
relacionados
com a
experiência do desterro, mas
nos
quais
é
possível detectar
nas
entrelinhas
a
mesma
sensação
de
não pertencer
que
tanto
a
atormentava. Um
exemplo é
justa-
mente o texto intitulado
Pertencer ,
em que
Clarice
escreve:
A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me
dar
a
medida do
que
eu
perco não pertencendo. E então
eu
soube:
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
27
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no de-
serto e bebe sôfrego
os últimos goles de água de um canti l. De de-
pois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.
DM,
p.
111)
Todos esses
episódios
na vida
da au
tora, desde o seu nasci-
ment
o
clandestino durante uma
fuga, até a
prolongada
expe-
riência
de
16 anos
no
exterior, marcaram a existência
da
autora
de
modo
con
siderável.
Em um estudo
do
universo
judeu
de
Lispector,
int
i
tulado
assion in search of narrative identity Nelson
Vieira
ques
tiona:
[ ..] era a preocupação estética de Clarice Lispector com o silêncio,
como uma alusão
ao
inefável e às imitações da linguagem vincula-
das aos
se
us própri
os
sentimentos enigmáticos sobre deslocamen
to
e
ex ílio?
[
..
] A busca de Clarice Lispector tem sua nascente num
senso de vín
cu
lo com o exílio, desenrai
za
mento e desabrigo que
inspirou uma afinidade espiritual com seus leitores, cujo próprio
senso de exílio ultrapassava o geográ
fi
co. Vieira, 1995, p. e: J
De fato, a relação entre o silêncio externo e a
necessidade de
escr
ever
tece algumas possíveis conexões entre exílio e a sensa-
ção
de
abandono emocional. Talvez não seja coincidência
que
parte
da
ficção
de
Clarice
traz
narrativas
em que
os
protagonis-
tas
são marcados
por
um profundo sen
timento de
deslocamento
e uma busca espiritual
por
redenção e comunicação. O silêncio é
uma questão crucial em todo o
seu
universo ficcional, especial-
m ente nos escritos
de
exílio ou seja, na tríade de romances que se-
rá
analisada
nes
te
vo
lume como narrat
ivas do
si
l
êncio - O
lustre
A cidade siti
ada
e A
maçã
no escuro- nos
quais
o silêncio está di-
retame
nte vincu lado a uma atmosfera de solidão, imobilização
e,
acima
de
tudo,
a
um
sen
t
imento
de
exílio interior.
Comen
tando
o tema do silêncio na literatu
ra
de Clarice Lis-
pector, Earl Fitz escreve que,
de
fato, um espírito
de
não-
comunicação
que
a tudo permeia (Fitz, 1985, p . 45) persegue o
universo
da autora:
os
protagonistas de Lispector realmente dizem muito pouco, em-
bora ruminem interminavelmente e, assi
m,
suas histórias com-
põem-se basicamente de pensamentos descon
ec
tados, palavras não
pronunciadas, imagens, lembranças e sonhos. Quando falam em
voz alta, suas palavras parecem ter pouco a ver com o que está se
passando em suas mentes. (Fitz, 1985, p. 61)
8 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Na
realidade, Clarice ultrapassou os muros invisíveis
do
si-
lêncio e da nostalgia
por
intermédio do exercício literário.
Opa-
triotismo é vivido dentro dos domínios das palavras: a língua é
transformada em metáfora da pátria, uma língua portuguesa
perdida
e recuperada,
muito
mais
que
um
endereço lingüístico.
Era, como ela observa, seu domínio sobre o
mundo:
Nasci para
escrever.
A
palavra é meu domínio sobre o mundo (DM, p. 99 .
Refletindo sobre o processo de produção de
A
cidade
sitiada
por
exemplo, a autora esclarece:
O que me salvou
da
monotonia de Berna foi viver na Idade Média,
foi
esperar que
a neve parasse e os gerânios
verme
lhos de
novo
se
refleti
ssem
na água, foi ter um filho
que
lá nasceu, foi ter escrito
um
de
meus livros menos gostado, A cidade
sitiada
no entanto, re-
lendo-o, pessoas passam a gostar dele; minha gratidão a este livro
é enorme: o esforço de escrevê-lo me ocupava, salvava-me daquele
silêncio aterrador das ruas
de
Berna. (DM, p. 286
Na
realidade, o sentimento de estrangeiridade que sempre
marcou Clarice poderia
não
estar necessariamente vinculado a
um itinerário internacional. Alguns autores
argumentam que
ela continuaria sendo a
mesma
pessoa estranha,
mesmo
que
nunca tivesse saído
do
Recife. Isso, no entanto, permanece sen-
do uma questão aberta. Ninguém pode afirmar com certeza
qual teria sido a qualidade de seus escritos tivesse ela ficado no
Brasil.
Contudo,
o sentimento
de
ser uma estrangeira foi um es-
tigma no espírito de Clarice Lispector, observado pelas pessoas
que lhe foram próximas, como,
por
exemplo, declarou de certa
vez Antonio Callado:
Clarice era uma estrangeira. Não porque nasceu
na
Ucrânia. Cria-
da
desde men
ininha
no
Brasil, era tão brasileira quanto
não
impor-
ta quem. Clarice era estrangeira
na
Terra. Dava a impressão de an-
dar
no
mundo
como quem desembarca de noitinha numa cidade
desconhecida onde
há uma
greve geral de transportes. Mesmo
quando
estava contente ela própria,
numa
reunião qualquer, havia
sempre, nela,
um
afastamento. Acho que a conversa que mantinha
consigo
mesma
era intensa demais. (Gotlib, 1995, p. 52)
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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1 3
aboratório literário
Escrever
é
uma
maldição, mas
uma
maldição que sal-
va. [
..
] Salva a alma
presa
[
.. ].
(DM, p. 136)
A experiência de viver em terras estrangeiras oferece a escri-
tores e artistas em geral a oportunidade
de
conhecer mais de
perto outras línguas, hábitos e culturas, o que pode influenciar
positivamente suas obras, abrindo amplas perspectivas de cria-
ção. Clarice, por exemplo, trabalhou intensamente durante seu
exílio voluntário
e,
por razões que se verá na seqüência, a matu-
ridade de
seus últimos textos é
uma
lenta decorrência daqueles
anos, que, sem dúvida, serviram à autora como
uma
espécie de
laboratório literário. Ao longo do tempo, Clarice foi transfor-
mando, ou, por outra, metamorfoseando os elementos de sua
própria escrita e fazendo nascer algo de
ainda
mais inovador e
revigorante para o cenário das letras brasileiras.
E difícil separar com barras de ferro as
duas
dimensões- ar-
te e vida-, já
que
na maioria dos casos os dois universos intera-
gem, interpenetram-se,
mesmo
que
de modo
imperceptível.
Como Virgínia Woolf observa
em
A roam of one s own Ficção é
como
uma
teia de aranha, mal fixada talvez, mas ainda assim
atada à vida em todas as suas extremidades (Woolf, 1975, p.
47). A própria Clarice confessou a impossibilidade de ser total-
mente impessoal na literatura - Eu só sei em todas as circuns-
tâncias ser íntima
. OEN,
p. 118)
Entretanto, a autora reconhecia dois momentos diferentes
no processo
de
criação. O primeiro acontecia quando ela estava
produzindo ficção
e,
o segundo, quando estava escrevendo para
jornais, como ela explicou na crônica Fernando Pessoa me aju-
dando , em A
descoberta do mundo
Na literatura de livros per-
maneço anônima e discreta. Nesta coluna estou
de
algum modo
me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? (DM, p.
139).
30 Cláudia na
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1 4
onclusão
Clarice Lispector não escreveu autobiografias e, à exceção
das
crônicas
de
descoberta
do
mundo
e
de
alguns
outros
contos
pessoais, seus textos não devem ser vistos ou estudados como
escritos autobiográficos. É por essa razão
que minha
análise não
pretende estreitar os vínculos entre vida e obra. As referências a
alguns
dos
acontecimentos cruciais que pavimentaram a trajetó-
ria da autora constituem
uma
importante fonte de informações
para
que
se
entenda
o universo de criação da
autora
e os ins-
trumentos
de sua imaginação.
Particularmente
sedutor
é
visitar
mesmo que brevemente
- a arena íntima
habitada
por
uma
autora cuja trajetória de
vida
fez-se de muitas línguas, muitos lugares e muitos países e cuja
obra
no
exílio foi tão fecunda. O mais importante,
no
entanto, é
verificar como os longos anos em que Clarice viveu como expa-
triada foram, de certa forma, vividos , no âmbito da
ficção
o
terreno onde centralizo esta investigação, principalmente
nos
textos escritos durante o período exílico, no qual a língua literá-
ria tornou-se
instrumento de luta
contra
um
silêncio
aterrador
e
também um refúgio lingüístico em vizinhanças mais
ou
me-
nos hostis.
O que
penso
haver de mais relevante no exílio de Clarice
Lispector é justamente a constatação - e a surpresa
-
de que
o
período de ausência do Brasil funcionou como uma espécie de
laboratório, quando a autora
mergu
l
hou na
criação parcial
ou
integral de três romances fascinantes - O
lustre
cidade sitiada e
maçã no escuro - e
que
merecem ser analisados
à
luz de uma
nova abordagem, capaz de detectar as características exílicas
que, para
mim, estão
no
centro nervoso de suas engrenagens.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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erto
o coração
selvagem das palavras
· ·
As palavras são seixos rolando no rio. PCS, p .
217
Ritmo, dizia Stephen, é a primeira relação estética
formal de uma parte com outra dentro de um todo es-
tético qualquer ou de
um
todo estético com sua parte
ou partes de qualquer parte com o todo estético ou do
qual ele é uma parte. James Joyce, portrait of the
art-
íst
as a yozmg man p. 206
2.1
ntrodução
Perto
do
coração selvagem publicado em 1944, foi escrito entre
março e novembro de 1942 e anunciava uma promissora estréia
no cenário da literatura brasileira. Os críticos,
em
grande parte,
receberam a obra com entusiasmo, e o
nome
de Clarice Lispec-
tor logo sairia do anonimato para a lista dos autores importan
tes
que despontariam
naquele momento, como João Guimarães
Rosa e
seu
Sagarana.
Construído a
partir
de
notas
esparsas, escritas durante dife-
rentes
horas
do
dia e
que
foram
agrupadas em
um
único volu-
me, Perto
do
coração selvagem é a junção de pedaços que, reuni-
dos, resultaram
em
um romance sofisticado, o que levou os crí-
ticos a investigar as possíveis influências por trás daquelas pá
ginas. Era improvável que um estilo tão refinado não tivesse
A palavra usurpada exíl io e nomadismo na obra de Clarice Lispector 33
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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como filiação algum outro texto que lhe servisse, pelo menos, de
inspiração.
De fato, o título vem da epígrafe do romance, tirada de
portraít
of
the
rtist as young man:
Ele estava sozinho. Estava
despercebido, feliz e perto
do
coração selvagem
da
vida (Joyce,
1995, p. 171) -, sugestão do amigo Lúcio Cardoso, o primeiro a
ler o manuscrito. Naturalmente, tão logo o livro apareceu, os
críticos de imediato relacionaram o texto a Joyce, e perguntaram
a Clarice sobre
suas
influências. Ela sempre negou ter lido o au-
tor irlandês antes de escrever seu livro.
10
Perto do coração selvagem
é, realmente, o retrato
de
uma jo-
vem enquanto artista- Joana, a moça inventiva
e
depois, mu-
lher
impulsiva
que ama as palavras tanto quanto a liberdade. O
texto é marcado por longos monólogos interiores, fluxos de
consciência e momentos
de
epifania,
numa
conexão evidente e
direta com o sistema joyceano. Mas, afora as influências, a es-
tréia de Clarice não é, de modo algum, uma redutora imitação
de
estilo. A obra apresenta o encantamento com o
mundo da
in-
venção criado por uma autora de 22 anos, não mais uma adoles-
cente escrevendo
para
concursos literários, e
sim
uma
escritora
genuína, com palavras brilhando em suas mãos.
Alguns dos críticos mais articulados da época manifestaram
sua
impressão positiva em relação ao romance, como, por
exemplo, Antonio Candido, o primeiro a reagir com entusiasmo
a Perto
do
coração selvagem Ele achava que Clarice havia trazido
para as páginas brasileiras a força de um ritmo novo, uma ten-
tativa impressionante
de moldar nossa língua a um
pensamento
carregado
de
mistério (Candido, 1970, p. 125). Sérgio Milliet
também
ficou feliz com a
entrada de
Clarice Lispector
na
litera-
tura brasileira. Apenas raramente um crítico tem a alegria da
descoberta. Desta vez tive uma que me encheu
de
satisfação
(Milliet, 1981, p. 27), escreveu ele, referindo-se ao romance. De
fato, tanto Candido quanto Milliet ficaram tremendamente im-
pressionados com a linguagem literária de Clarice - original e
poética-, dotada de
uma capacidade
de
dar vida às palavras .
(Milliet, 1981, p. 87)
10
A questão das influências é um assunto difícil, pois os autores muitas vezes
afirmam ter lido outros autores apenas mais tarde, e esse parece ter sido o caso
de Clarice Lispector, embora não seja possível garantir a veracidade da afirma-
ção.
4 Cláudia
Nina
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E a linguagem
é,
de fato, o aspecto mais
importante
do ro-
mance. Sua criatividade, contudo, não está centrada no nívelle-
xical (como acontece nos escritos
de
Guimarães Rosa),
mas
sim
nos contorcionismos sintáticos e nas estranhas justaposições
de
palavras, criando pressões semânticas
que
desestabilizam o
significado de palavras e conceitos (Peixoto, 1994, p. XII . Desta
forma, o romance representou uma ruptura com a tradição lite-
rária e um importante ganho em termos de reflexão sobre a lin-
guagem.
Difícil encontrar uma linhagem nacional à qual pudesse per-
tencer esse primeiro romance, embora cronologicamente ele
pertença
à Geração de 1945.
Na
realidade, para Clarice Lispec-
tor, o modernismo brasileiro, como
um
movimento, fora há
muito
tempo deixado para trás, junto ao complexo ideológico e
estético de 1922, do qual ela jamais fizera parte. Perto do
coração
selvagem
apareceu como um acontecimento que colocou a autora
perto de nomes que
também
estavam isolados , por assim di-
zer,
dentro da
cena literária, entre eles João Cabral
de
Melo Neto
e Guimarães Rosa. (Moriconi, 2001, p. 214)
2.2
scritura feminina
A frase clama por uma palavra. E
uma
palavra
chega
como um pássaro que mergulha no texto. [ ..]A pala-
vra fica separada liberada de suas obrigações familia-
res através de
sua
aparência. Ela aparece
apenas
como
uma palavra .
É
uma palavra que proporciona prazer.
[
..
] Clarice abre as cortinas da linguagem e, de repen-
te, um significante
de
que ela gosta aparece. Ela traba-
lha o significante livre
de sua
família lingüística.
(Hélene Cixous, Reading with
Clarice Lispector
p. 73
Perto do
coração selvagem
conta a trajetória de Joana, desde a
infância até a maturidade
do
casamento. A perspectiva frag-
mentada
embaralha passado
e presente. A história traça a cons-
trução biográfica
de fatias da vida de
uma
mulher em busca
de sua liberdade, no mundo solta e fina como uma corça na
planície (PCS, p. 79 . O enredo, contudo, não é o que de fato
importa, porque os momentos cruciais não são os acontecimen-
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
35
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tos,
mas
os ecos interiores dos fatos que repercutem
na
mente
da
personagem.
A narrativa oscila
entre
a primeira e a terceira pessoas, e sua
riqueza está, em grande parte, centrada na técnica polifônica
que
a autora utiliza
para
a representação dos
pensamentos
de
Joana. As vozes- do
narrador
e
das personagens-
estão entre-
laçadas, num ritmo dinâmico. Isso marca
um
comando inventi-
va
do
texto, desamarrado , sem que a ação
dependa
exclusi-
vamente
de
um
único centro irradiador de sentido. O centro é a
mente
do
sujeito, capturada pela voz narrativa. O ponto de vista
é oscilante, e as vozes vão se alternando. Por vezes,
um
eu
surpreendentemente irrompe no
texto. A estratégia é de des-
centralização , em oposição aos romances que seguem os pa-
drões
de
representação mimética baseada na estrutura tradicio-
nal de organização da história.
Espaço e t
empo
não existem em seus contornos definidos.
Não há informações detalhadas sobre os lugares
por onde
as
personagens se movem. Elas moram na narrativa , no entre-
palavras , e não se restringem a nenhum lugar em especial. O
tempo também
está dissolvido. Ele
perde sua
função histórica e
não existe como possibilidade de evolução (Schwarz, 1981, p.
35). Dividida em capítulos malconectados entre si, a história de-
senvolve-se em movimentos fragmentados e pode-se compará-
la a um círculo que abre e fecha
de
modo intermitente,
de
acor-
do com o próprio processo de tornar-se alguém de Joana:
Nunca
terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casa-
da. Resvalo
de uma
verdade a outra, sempre esquecida
da
pri-
meira,
sempre
insatisfeita. Sua
vida
era formada
de pequenas
vidas incompletas,
de
círculos inteiros, fechados
que
se isola-
vam uns dos outros . PCS, p. 115)
O livro todo é construído por microepisódios ; na maioria
das vezes, não há qualquer fio ligando-os uns aos outros. A arti-
culação das experiências psíquicas
de
Joana ergue a arquitetura
do
texto a partir
da
técnica do fluxo de consciência. Tudo é feito
de pequenas ilhas isoladas
de
luz (Schwarz, 1965, p. 55), em
que
a falta
de
coerência é o princípio positivo
de
composição
do
romance. Joana tenta desvendar o senso mágico do instante, en-
quanto a própria Lispector promove a demolição - em fragmen-
tos brilhantes - da sólida estrutura dos romances tradicionais.
Como observa Nadia Gotlib, o romance desenha a poética de
Clarice Lispector, refletindo o processo
de
criação literária: Joa-
6
Cláudia Nina
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na é a pessoa que inventa. Colocando em
outros
termos, ela é
em parte a figuração
do narrador que
conta a história; e, em
uma outra dimensão, do criador: a escritora. (Gotlib, 1995, p.
167)
O
primeiro
capítulo é ilustrativo dessa poética
de
ruptura
com
os padrões literários tradicionais. O romance começa
com
o
barulho de
uma máquina de
escrever.
Quem
está escrevendo? O
pai,
como
fica dito: A máquina do papai batia tac-tac
..
tac-tac-
tac
...
(PCS, p.
19 .
A menina Joana observa. De repente, ela
quebra o silêncio e diz: Papai, inventei uma poesia (PCS, p.
20). E qual seria o título
do poema?
A resposta, Joana
pronta-
mente a diz: Eu e o sol (PCS, p . 20). A criança interrompe a es-
crita de seu pai a fim de chamar a atenção para o seu
poema
que
começa
com uma voz
do eu ,
interrompendo
o discurso
(os sons
da
máquina
de
escrever) do pai.
É importante
observar, entretanto,
que
o
primeiro autor
ficcional
de
Perto
do
coração selvagem ainda é o pai. Joana, a voz
feminina, tem
de
lutar
para
conseguir atenção, interrompendo
quem
detém
o comando
da
palavra escrita. É uma ruptura lin-
güística
dentro de
um
discurso estabelecido. A autoria
do
pai
(sua
máquina de
escrever é literariamente o
primeiro
som que
se ouve ) representa a lei, com a
qual
Joana precisa romper a
fim
de expressar sua
própria
subjetividade.
Em relação a isso, é relevante trazer para esta discussão al-
guns
aspectos da análise
de
Julia Kristeva sobre a
polaridade
en-
tre sistemas fechados, racionais, e os sistemas abertos, irracio-
nais e dispersos. Kristeva considera a técnica
modernista
que se
encontra em
Joyce, Céline e Mallarmé
um
espaço aberto ao de-
sejo e ao inconsciente, em
uma
franca
ruptura
com o discurso
racional - em outras palavras, com a Lei. O poeta
de
vanguarda
homem
ou mulher, é
aquele
que
subverte
os padrões simbólicos
tradicionais a fim
de
privilegiar a fluência, a semiótica e a brin-
cadeira.11 Ao analisar os poemas
de
Mallarmé, por exemplo,
Kristeva observa
que
os
sons usados
em
alguns
versos asseme-
lham-se a murmúrios de crianças. Ela descobriu que a poesia
modernista
é altamente
dependente
do
semiótico
em
seus
rit-
mos irregulares, sua atenção aos
sonhos
e no modo
com
que
Ver
Desire
in lnngunge:
semiotic
nppronch
to
liternture nnd art Oxford:
Blackwell
1981.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
7
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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rumina seus próprios
processos e
incorpora outras
formas de
escrita (Selden e
Widdowson,
1993, p. 102).
Em Perto do
coração
selvagem em
que muitas
vozes - mur-
múrios- na mente
de Joana
podem
ser
ouvidas,
a criança
pro-
tagonista
é
quem
tenta
romper com
o
discurso
estabelecido
ao
escrever seu poema. Como o poeta
modernista
do estudo de
Kristeva, Joana também está
brincando
de poesia
ao
fazer ver-
sos que,
de
certa forma, perturbam o ambiente, isto
é
descon-
certam
a ordem do discurso do pai, operando uma ruptura
com
o discurso racional. O
novo opera um
exercício de aprendizado
de linguagem em momentos de
êxtase e inspiração,
não de
ra-
cionalidade.
O vocabulário
usado no
texto
também
expressa o feminino
além
dos controles racionais
dominantes
e dos padrões lógicos
binários. Isso,
porém,
é algo de difícil realização.
Como
mencio-
nei anteriormente, de início Joana
não
tem espaço de criação e
expressão. Ela
tem
de
encontrar seu próprio
espaço,
onde
sua
voz possa ecoar, rompendo com a dominância masculina ini-
cial.
Naturalmente,
Joana
tem uma voz
forte, e o texto a
torna
inconfundível.
É
importante considerar, quanto a esse aspecto, a
metáfora da voz .
Como
a heroína francesa Joana D'Arc, Joana
é
aquela que
vê
demais
e escuta demais,
como
se
pode
ler
no
texto: Desde aquele dia,
Joana
sentia as vozes, compreendia-as
ou
não as compreendia.
Provavelmente
no
fim da vida, a
cada
timbre
ouvido uma onda de lembranças próprias subiria até sua
memória,
ela diria:
quantas
vozes
eu
tive .. . (PCS, p. 86)
Esse
romance
também exemplifica aquilo que as críticas fe-
ministas
francesas
chamam de
écríture fémíníne
O
termo
sugere
uma forma de escrita baseada em
um
encontro
com
o outro -
que pode ser
um
corpo,
um
texto,
um
dilema ou
um momento
de paixão e ansiedade (Conley, 1990, p. VII). As críticas feminis-
tas,
entre
elas Hélene Cixous e Luce Irigaray, propõem a cons-
trução de
uma nova
sexualidade, não-falomórfica,
baseada na
fluidez, no risco e na expansão, governada pela economia libi-
dinal
da mulher
em
confronto
com
os
discursos
dominantes,
masculinos.
Em Thís sex whích
is not
one por
exemplo,
Irigaray argumen-
ta que a fala rotineira da cultura e do conhecimento ocidentais é
modelada pela
masculinidade
e concentra-se
naquilo que
é cer-
to, preciso e racional. Ela propõe a mudança
urgente
dessa es-
trutura, indicando outras
formas de comunicação e expressão.
38
láudia Nina
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Se hesitamos
em
falar,
não
seria porque temos
medo de
não falar
bem? Mas o que é falar "bem"? E o que seria falar
ma
l"? Estamos
em
conformidade com o que exatamente quando falamos "bem"?
Que hierarquia, que subordinação se esconde aí, esperando que-
brar
nossa
resistência?
Que
reivindicação,
para que
nos
alcemos
em
discurso
de
maior valor? Ereções não têm nada a ver conosco;
nós estamos muito bem, obrigada, em terrenos planos.
Temos
mui-
to espaço a ser compartilhado. Nosso horizonte jamais
deixará
de
expandir-se; estamos sempre abertas. Esticando e alongando a nós
mesmas,
jamais deixando
de
nos desdobrarmos, temos
tantas
vo-
zes para inventar a fim de expressarmos a todas nós
em
todos os
lugares, e mesmo
em
nossas lacunas geográficas, que todo o tempo
disponível não será suficiente. Nunca conseguimos completar o
circuito,
explorar
nossa periferia; temos tantas dimensões Se você
quer falar "bem", você se pressiona, torna-se mais estreita à medi-
da
que sobe. Esticando-se para cima, alcançando mais alto, você se
liberta do domínio sem limites de seu corpo. (lrigaray, 1985, p. 213)
[
..
] Apressemo-nos, e
vamos
inventar nossas
próprias
frases. (Iri-
garay,
1985,p.215)
O conceito de é riture féminine define um texto
que
"engen-
dra
uma
nova
arquitetura
em
direção
à
expansão,
recusando
uma luta fálica e edípica até a morte contra o pai, expandindo-se
a si própria rumo
à
multiplicidade" (Yaeger, 1989, p. 191). A es-
crita
das mulheres
fica assim identificada
com
um discurso
que
processa uma
ruptura
com o sistema falocêntrico e com o racio-
nalismo centrado,
sendo
que se nutre em uma fonte infinita de
criatividade e inspiração.
E
de fato, essa é a natureza da liber-
dade
que
Joana vivenda
ao
longo de sua existência, liberdade
essa
que
se reflete
na
fluência das palavras
que
se
expandem
com base
em
gastos", não em poupança; em subjetividade, não
em objetividade; em abertura, inventividade e inspiração.
Entre as críticas feministas, Hélene Cixous é a que mais se
identifica com Clarice Lispector. A crítica francesa
viu
em
mui-
tos dos escritos da autora brasileira
um
território aberto à inves-
tigação da
é riture
féminine Além disso,
houve também
uma in-
disfarçável identificação biográfica: Cixous, também
uma
imi-
grante judia, foi
igualmente
exposta a diversas línguas
desde
a
infância. No campo da crítica literária, o estilo de Cixous tam-
bém é marcado pela
prosa
fluida, transformando a lógica do
discurso
em um
"escrever com o corpo", em defesa da intuição
como uma espécie de conhecimento superior. Cixous sugere
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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que
escritoras poderosas exercem como
que
um parto das pa-
lavras,
num
ritmo de contrações (Maggie, 1994, p.
94 .
Em seus
textos críticos, assim como em seus seminários, Cixous convida
os leitores a se aproximarem dos textos
de
Clarice Lispector da
mesma
maneira
em que
eles foram produzidos: Claricement .
(Cixous, 1979, p. 41
Marta Peixoto ressalta que a recepção de Cixous
da
obra
da
autora
brasileira inverte a tradicional dinâmica colonial e pós-
colonial,
de
acordo com a qual os escritores latino-americanos
apreciam e
traduzem
títulos da Europa e dos Estados Unidos.
Cixous não só celebra Clarice, mas também afirma que os bra-
sileiros tiveram um impacto decisivo no desenvolvimento de
sua própria
obra. Assim, entre os escritores latino-americanos,
com a exceção de Borges, Clarice Lispector provavelmente foi a
única a ter sido destacada por um escritor europeu- Cixous-
como modelo significativo
de
inspiração . (Peixoto, 1994, p. 40
Assim como em muitos outros escritos de Clarice, Cixous
encontrou em
Perto
do coração selvagem uma importante fonte
de
investigação da écriture féminine O capítulo O banho é um
bom exemplo disso. Lispector explora o escrever com o corpo
de maneira muito clara em um episódio simples e corriqueiro
que se dá numa banheira.
Imerge na banheira como no mar. [ ..] A jovem sente a
água
pe-
sando sobre seu corpo, pára um instante como se lhe tivessem to-
cado de leve
no
ombro. Atenta para o que está sentindo, a invasão
da maré, [ ..] Os olhos abertos e mudos
das
coisas continuam bri-
lhando entre os vapores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou ale-
gria existe
água-
água. (PCS, p.
77
Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o
que
sentir. (PCS, p. 77
O elemento água está íntima e simbolicamente relacionado
ao universo feminino e também é
uma
referência ao nascimento.
É
Hélene Cixous
quem
escreve: A cena da banheira
tem
uma
espécie
de
auto-erotismo, algo
de
uma constituição de
um
cor-
po-sujeito.
É
uma
metáfora
do
nascimento. Ela emerge
da ba-
nheira de águas desconhecidas. (Cixous, 1990, p. 44). A água
que flui também representa o chamado daquilo que é oposto a
seco e limitado. Em
Coming
to writing
and
other
essnys
Cixous,
num estilo tipicamente cixousiano :
40
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Nestes tempos violentos e preguiçosos, em que não vivemos o que
vivemos, somos lidas por terceiros, somos forçosamente vividas,
longe de nossas vidas essenciais, perdemos o dom,
não
mais es-
cutamos o
que
as coisas
ainda
querem nos contar, nós traduzimos,
traduzimos,
tudo
é tradução e redução,
não
sobra quase
nada do
mar a não ser
uma
palavra
sem
água: pois nós também já traduzi-
mos
as palavras, nós já as esvaziamos de sua fala, já as secamos,
reduzimos e embalsamamos, e elas não podem mais nos lembrar
de como costumavam erguer-se
das
coisas como se fossem a gar-
galh
ada
de
sua
risada essencial, quando, de puro prazer, elas cha-
mavam
umas
às outras, elas deleitavam-se em seu nome-fra-
grância; e "mar", "mar" cheirava a alga-marinha, ressoava a sal e
nós saboreávamos o infinito ser amado, lambíamos os estranhos, o
sal
da
palavra dela
em
nossos lábios. Mas
uma
voz Clarice precisa
apenas
dizer "O mar, o mar",
para
que minha concha se abra ao
meio, o mar está me chamando, mar (Cixous, 1991, p. 65
É importante enfatizar que,
na
lógica não-racional do dis-
curso clariceano em
Perto
do coração selvagem fortemente domi-
nada pelo fluxo da consciência, Joana é vista como a transgres-
sora, aquela que se posiciona contra a lei e recusa-se a
assumir
papéis femininos tradicionais. Sua atitude em relação à lingua-
gem, e também
em
relação à vida, representa essa luta . A voz de
Joana é forte e rompe
com
o silêncio. Um exemplo
nos vem
do
trecho
em
que ela está
na
casa com seus tios e, de repente, a me-
nina quebra
a monotonia do
momento
com
uma pergunta,
cau-
sando uma pequena perturbação no ar: Armanda não veio?- a
voz
de Joana
apressou
o tic-tac
do
relógio, fez nascer
um
súbito
e rápido movimento na mesa" (PCS, p.
75 .
Curiosamente, ela é
com
freqüência descrita como
uma
"criatura estranha",
uma
diabinha e
uma
víbora". Como descrita no texto, ela é a "dia-
ba" que inverte o significado simbólico de seu nome: Joana é o
nome de uma santa, uma virgem, inocente e pura.
· A trajetória
de
Joana
em
Perto do
coração selv gem
está de
acordo
com
o que Nelly Novaes Coelho descreve como
sendo
a
nova
ficção feminina". Coelho analisa os textos produzidos
por
mulheres
brasileiras
durante
os anos 60-80 e contextualiza a lite-
ratura de
Clarice Lispector no rol
daquela
estirpe
que
se caracte-
riza pela expressão da consciência de uma mulher misturada à
consciência brasileira de um
mundo
novo (Coelho, 1993, p. 22 .
Nesse universo da nova ficção feminina, o amor deixa de ser o
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tema absoluto e abre um espaço livre para a investigação exis-
tencial- que não exclui o erotismo.
Em Perto do coração selvagem, Joana é o oposto daquilo que
Virginia Woolf denomina
de
o anjo
da
casa . Em A roam of
one s own,
Woolf chama a atenção
para
o fato
de
que
as mulhe-
res armam um conluio em seu próprio espaço doméstico, como
se fossem um espelho que reflete os desejos dos homens. Es-
creve Woolf:
As mulheres, nestes séculos todos, vêm servindo de espelho, do-
nas
do
poder mágico e delicioso de refletir a figura do
homem
no
dobro
de seu tamanho natural. Sem esse poder, a terra prova-
velmente ainda seria charcos e selvas. As glórias de todas as nossas
guerras seriam desconhecidas [ .. ] Sob o feitiço dessa ilusão,
pensei,
olhando
pela janela, metade das pessoas
na
rua estão indo
para
o trabalho. (Woolf, 1975, p. 37
As mulheres foram historicamente representadas pe1a ima-
gem de um anjo - altruístas, simpáticas e puras. Se quisessem
tomar
um caminho individual, elas tinham de
lutar por
inde-
pendência econômica e social e por igualdade. Somente sob tais
condições elas conseguiriam desenvolver com liberdade seus ta-
lentos artísticos.
No
primeiro romance
de
Lispector, a presença
da
mulher acontece em oposição a homens frágeis, superficiais,
desatentos. .. como ligar-se a um homem senão permitindo
que ele a aprisione? Como impedir que ele desenvolva sobre
seu
corpo e
sua
alma suas quatro paredes? E havia
um
meio
de
ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?
PCS,
p. 40
Joana é fascinada com a aventura
de
estar sempre em busca
de
algo
que
está fora
do
alcance. O mesmo acontece com a obra
de Clarice Lispector, cuja estética modela a tentativa
de
expres-
sar aquilo que ela não consegue descrever por inteiro, como ela
mesma escreve em Agua
viva:
A densa selva de palavras envol-
ve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou
em alguma coisa minha que fica fora de mim . AV, p. 25
42 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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2.3
o coração das palavras
A palavra estala entre meus dentes em estilhaços frá-
geis [
..
]Neste momento minha inspiração dói em
to-
do o meu corpo. (PCS,
p. 78
Grande
parte dos
elementos mais representativos da poética
clariceana, em seus textos tardios, encontra-se de forma embrio-
nária
em Perto
do coração selvagem.
O romance é
um ponto
bri-
lhante
(Varin, 1990, p. 141) na carreira de Clarice Lispector,
como diz
Claire Varin, posicionando a obra em um triângulo
cujos
outros lados seriam
formados
por
O
lustre
e
A
cidade
sitia
da.
Considerando-se que se
trata de obras
muito
diferentes em
forma e essência, poderíamos questionar tal arranjo. Varin, po-
rém, justifica-se dizendo que, por terem sido produzidos na
mesma década, os três romances
pertencem
à
mesma
categoria
de escrita. A proposta aqui, no entanto, é fazer um outro
agru-
pamento, em que
O
lustre
e
A cidade sitiada
colocam-se em gri-
tante contraste
com
Perto do coração selvagem
como veremos
a
seguir.
Na
verdade,
o
primeiro
romance é realmente um momento
de iluminação na trajetória de Lispector.
Os
adjetivos bri-
lhante
e luminoso falam de um desejo
de
fazer um livro for-
mado
de
ilhas de luz ,
como
Schwarz ressaltou (Schwarz,
1981,
p.
55).
Este trecho, tirado
de um
longo monólogo, é ilustrativo:
Descobri em cima da chuva um
milagre-
pensava Joana- um mi-
lagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um avi-
so
parado: como um farol. O que tentam dizer? Nelas pressinto o
segredo, esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro
de mim. (PCS,
p. 78
Se
o brilho das estrelas dói em mim,
se
é possível essa comunica-
ção
distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela
tremula dentro de mim. PCS,
p.
80
Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e
úmida debatendo-se dentro de mim.
(PCS,
p.
81
O
romance marca
a gênese
dos
textos de Clarice Lispector e
o aprendizado
da
escrita. O texto transborda
com
a epifania
da
linguagem,
ou,
melhor dizendo, com
súbitas conscientizações
acerca do próprio ato
de
expressar pensamentos
por
meio
de
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 4
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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palavras. Ao longo de todo o texto, o leitor é levado a realizar o
mesmo
processo
de
repensar a linguagem que Joana realiza
desde a infância, quando então perguntou: Quem disse pela
primeira vez assim: nunca? PCS, p.
23).
Muitas outras passa-
gens também referem-se a esse exercício de transformar a lin-
guagem
familiar em algo estranho, de modo que sua verdade
possa ser percebida mais detalhadamente, como na seguinte
passagem:
Amêndoas
... -disse
Joana, voltando-se
para
o homem. O mis-
tério e a doçura das palavras: amêndoa
..
ouça,
pronunciada
com
cuidado, a voz na garganta, ressoando nas profundezas
da
boca.
Vibra, deixa-se longa e estirada e curva como
um
arco.
Amêndoa
amarga, venenosa e pura.
As três graças amargas, venenosas e puras.
PCS,
p. 187)
O projeto estético de Perto do coração selvagem claramente
pretende
extrair o máximo de cada palavra e apresentdr todas
as possibilidades
de
criar um ritmo poético dentro da prosa.
Epifania aqui está obviamente vinculada a Joyce, que transfor-
mou o conceito religioso da aparição de Deus
ou de
qualquer
entidade sagrada em um
dispositivo literário. Joyce foi
quem
primeiro transformou os momentos mais cotidianos e delicados
da vida em
puros
acontecimentos
literários-
em
Stephen
Hera-
criando
um
instrumento artístico que passaria a ser imitado no
mundo inteiro.
Em
seus trabalhos posteriores, Joyce sofisticou o uso do
conceito; a partir das epifanias de visão e de momentos, ele al-
cançou os mecanismos internos da linguagem. Em Ulysses e
Finnegans Wake, quando acontece
uma
radicalização
de
tal pro-
cesso, Joyce atinge um nível microestético de literatura, e en-
tão a epifania é incorporada ao coração
da
linguagem. Joyce não
mais escreveria de maneira representativa. As palavras passa-
ram a falar por si mesmas.
É
em
Ulysses
e
em
Finnegans Wake
que as epifanias atingem a mecânica da palavra e também
da
le-
tra. A
própria
palavra acaba sendo epifânica
Sá,
1983a, p.
191)
.
Em Perto
do
coração
selvagem,
é possível
capturar
fragmentos
de
epifanias visuais, como no capítulo intitulado O banho ,
quando Joana faz pequenas descobertas no meio
de
um
ritual
diário. Trata-se de
um
ótimo exemplo do interesse da autora
em
revelar as camadas subterrâneas da vida diária:
44 Cláudia Nina
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Fascinada mergulho o corpo
no
fundo do poço, calo todas as suas
fontes e sonâmbula s
igo
por outro caminho. - Analisar instante
por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de
espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pe-
quenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes.
É
a vida?
(PCS,
p
80)
As epifanias
da
linguagem também estão presentes no livro,
como
na
passagem das amêndoas ,
citada acima. Joana adora
brincar com jogos de palavras. Lalande ,
por
exemplo, é uma
das palavras que Lispector inventa, descrita por Joana como:
Uma espécie de narcisinho, qualquer brisa inclina ele de
um
lado
para
outro. Lal
ande
é
também mar
de madrugada,
quando
nenhum
ol
har ainda
viu a praia,
quando
o sol
ainda
não nas-
ceu (PCS, p. 190). Como Claire Varin diz, em
Langues
de
feu
Lalande é
uma palavra
mágica, uma espécie
de mot magique
de Clarice Lispector, abracadabra de Joana (Varin, 1990, p. 57).
E Clarice Lispector também atinge o interior das palavras:
Do mesmo modo por que em pequena imaginava que, se pudesse
contar a alguém o mistério do dicionário , ligar-se-ia para sempre
a esse alguém
..
Assim: depois do l era inútil procurar o
i
Até o 1,
as letras eram camaradas, esparsas como feijão espalhado sobre a
mesa da cozinha. Mas depois do l elas
se
precipitavam sérias,
compactas e nunca se poderia achar por exemplo uma letra fácil
como a entre elas. (PCS, p. 199)
A reflexão sobre a
linguagem
encontra sua
contraparte
no
silêncio. Embora
não
revestido
de
melancolia, o silêncio aparece
em
Perto
do coração
selvagem
na impossibilidade
de uma
identi-
ficação verbal
mais profunda
entre Joana e
seu
marido,
Otávio,
que não consegue entender
de
todo a sensibilida
de da
mulher.
Se
Joana é
quem
se
aventura
sempre,
entrando em todos
os
palcos (PCS, p. 130), Otávio, por outro lado, apresenta-se lento
e
intimidado.
A interação é
problemática
e envolve Lídia, a
amante grávida
de
Otávio. O ponto crucial do relacionamento,
contudo,
não é a traição,
mas sim
a impossibilidade,
de
parte
de
Otávio, de apoiar a
necessidade
que
Joana tem de surpresas e
descobertas. Como
diz
o texto: Esperava que Otávio visse sua
atitude,
adivinhasse
sua
resolução de não se mover da cadeira.
Ele,
no
entanto,
como
sempre, nada
adivinhava
e
justamente
nos momentos em
que
deveria olhar, distraía-se com
qua
lquer
coisa .
(PCS,
p.
125)
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
45
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Nos
relacionamentos
de
Joana com outros homens, ela tam-
bém não consegue encontrar o
que
procura. O professor, a prin-
cípio
um
mentor capaz de entender sua sensibilidade, logo tor-
na-se fraco, doente e mudo; o amante, que a abandona no fim,
na verdade não lhe faz falta. O último capítulo reflete a necessi-
dade
que
Joana tem
de
romper com todos os vínculos: ''A jorna-
da .
Esse capítulo representa o movimento final
de
Joana
rumo
à
redenção
que
estava
desde
o início prescrita, na epígrafe
do
ro-
mance, como observa Marta Peixoto: Vale a pena notar
que
a
tradução de Clarice Lispector para a epígrafe joyceana ressalta a
necessidade
de
abandono[
..
] A viagem de Joana, com seu des-
tino não especificado, irá simbolicamente levá-la para mais per-
to de seu próprio coração selvagem . (Peixoto, 1994, p.14)
2 4
onclusão
Não
obstante os evidentes vínculos entre Perto
do
coração
sel-
vagem e a literatura européia dos séculos
XIX
e XX o primeiro
romance de Clarice Lispector não deve ser entendido apenas
por suas influências. O que faz dele uma obra tão especial é que
a autora importou o espírito
da
literatura
moderna
européia,
inspirada pela transformação e invenção, para a linguagem e
sensibilidade brasileiras, algo muito além
de
uma mera imita-
ção.
A
autora
cria
seu próprio
estilo, baseado
na
investigação
da
linguagem, sondando as possibilidades da poesia no espaço
que
é próprio
da
prosa. Como afirma Giovanni Pontiero no posfácio
de sua tradução para o inglês de
Perto
do
coração selvagem: Ela
[Clarice Lispector] traz uma
nova
elasticidade e refinamento pa-
ra a linguagem do Brasil e, como os existencialistas franceses,
acredita que a linguagem é tão misteriosa quanto a própria vi-
da .
Near to the wil
heart, p. 191)
O
uso
de
um
comando assim inovador
da
língua
portugue-
sa
no
romance de estréia muda contudo, nos romances
que
se
seguiram. As narrativas do silêncio apresentam um outro estilo de
escrita, altamente contrastante com o romance inicial
de
Clarice
Lispector, e têm vários aspectos novos que serão abordados sob
a perspectiva do exílio, tais como o fato
de
as protagonistas, di-
46
Cláudia Nina
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ferentemente de Joana
serem
incapazes de iniciar o rompimen
to com a tradição a fim de expressar suas próprias vozes. Assim
a
viagem
que dá o fecho ao
primeiro
romance de Clarice Lispec-
tor
curiosamente
implica
uma
outra viagem: a trajetória
da
pró
pria autora rumo
a
um outro momento em sua
carreira.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 7
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arrativas do silêncio p l vr s siti d s
O coração tem que se apresentar diante do nada sozi-
nho e sozinho bater alto nas trevas. Só se sente nos
ouvidos o próprio coração. Quando este se apresenta
todo nu nem é comunicação é submissão. Pois nós
não fomos feitos senão para o pequeno silêncio.
Se
não há coragem não se entre.
DM
p.
130)
É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão
despovoado. OEN, p. 94)
3 1
Introdução
Muitos
aspectos desenham
o perfil
de um exilado.
Ele é
aquele
que
se encontra social e geograficamente deslocado
por
motivos políticos ou pessoais. Está distante
de
sua
terra natal
e
considera
temporário tal deslocamento mesmo
que
esse
dure
alguns
meses ou
por
toda
uma vida.
Num
estado de
ser frag-
mentado e descontínuo o exilado sente-se desvinculado de sua
história habitando
um lugar
ao mesmo tempo
em
que
sua men-
te projeta-se
para
uma
outra
realidade
ao
sabor
da
memória
da
melancolia
e
da imaginação.
A paisagem
do novo
ambiente co-
bre-se dos ecos
do
passado e o silêncio é tudo que se consegue
ouvir.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
49
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Os
principais elementos dessa anatomia exílica são as várias
manifestações de nostalgia.
12
Ela pode aparecer de muitas for-
mas: saudade do passado; de casa, da 'língua materna'; das
minúcias
que
significam a experiência daquilo que é familiar
depois que
foi
perdido
(Kaplan, 1996, p. 33).
Como Harry
Le-
vin
escreve em
Literature and exile
o homem
sempre
foi
movido
por
compaixões locais ou
por
ideais coletivos; contudo, foi tão-
somente
em 1688, em uma tese
de
Medicina (apresentada na Ba-
siléia), que Johannes Hofer diagnosticou os sintomas de uma
moléstia
que
hoje é bem conhecida, embora nem todos a reco-
nheçam como
uma
enfermidade: saudade de casa. (Levin, 1996,
p. 70
As conexões entre exílio e literatura são conhecidas
desde
Ovídio até os dias de hoje. Nas páginas literárias, a restrição exí-
lica abre caminho para representar uma categoria de
pensamen-
to, baseado em
uma
espécie de morte em vida . Especialmente
nos
textos clássicos, como A
divina
comédia de Dante, o exílio em
si
encontra-se
no subsolo sobre o qual se erguem os demais
acontecimentos da história. Detido
por
motivos políticos e bani-
do
de sua amada
Florença, Dante escreveu
sua
obra-prima intei-
ramente no exílio. O texto é pontuado pelos sentimentos que
marcam os humores de quem se vê destituído de qualquer an-
coragem, decidido a abordar todo e qualquer tipo de assunto
por
meio de uma perspectiva
distante-
e algo privilegiada. As
habilidades de escrita são enriquecidas por uma criatividade in-
tensificada, que se mistura ao gosto amargo da carência e do
desterro. A nostalgia é definitivamente o tom de muitos dos
versos
de
Dante. (Kristeva, 1991, p. 106)
Nos tempos atuais, a experiência do exílio adquiriu um cer-
to status, a ponto de ser compartilhado por diversos autores,
que buscaram o deslocamento como
um
meio
para um
fim: tirar
vantagem de
um ganho
estético. De fato, imagino
que
a
própria
Clarice Lispector tenha lucrado muito em seu exílio voluntá-
rio,
que
certamente influenciou de forma positiva seu back-
ground cultural. Como
Caren
Kaplan afirma em Questions of
travei
-
post-modern
discourses
of displacement
a
era
moderna
é
fascinada pela experiência da distância e
do
estranhamento, re-
produzindo
essas noções
por
meio de articulações de subjetivi-
12
Nostalgia. Do grego:
nostos
o voltar para casa, e
algas
uma condição dolorosa.
· (Kaplan, 1996, p. 34
5 Cláudia Nina
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dade e poética (Kaplan, 1996, p.l). Segundo Kaplan, as ques-
tões do mudar-se questions
of moving na
literatura abrangem
muitos aspectos que devem ser cuidadosamente observados:
A junção
de
exílio e expatriação feita
por
escritores e críticos mo-
dernos pode ser lida não só
no modo
como a distância vem
sendo
privilegiada como a melhor perspectiva por
onde
enxergar
um
as-
sunto
sob investigação,
mas
também
no
discurso relacionado, de
ganho estético
por
meio
do
exílio. Quando o afastamento é pré-
condição para a criatividade, então a desafeição ou alienação en-
quanto
estado da mente torna-se um rito de passagem para o artis-
ta ou escritor
moderno
sério . O modernista busca recriar o efeito
da falta do estado pátrio- esteja ou não o escritor, literalmente, no
exílio.
Como
resultado, mesmo aqueles escritores que
não
se en-
contram realmente exilados podem com facilidade ampliar a metá-
fora. (Kaplan, 1996, p. 36
O tema também é analisado em
Exile
and the narrative imagi-
nation, em que Michael Seidel propõe que a condição exílica po-
de atuar
como um
paradigma para
estratégias narrativas. Ele
sugere que o registro do exílio em forma narrativa fica enrique-
cido pelo deslocamento, e
que
a imaginação realmente habita
domínios exílicos:
Tantos escritores,
não
importa quais fossem seus traumas políticos
ou pessoais,
ganharam
vigor imaginativo a partir do
exílio-
Oví-
dio, Dante, Swift, Rousseau, Madame de Stael, Hugo, Mann, Bre-
cht - que as experiências nativas
à
vida do exilado parecem quase
que
ativadas na vida do artista: a separação aparece como desejo, a
perspectiva aparece como testemunha, a alienação aparece como
novo ser. (Seidel, 1986, p. 10)
Muitos escritores modernos foram expatriados por motivos
pessoais
ou
políticos, entre eles Dorothy Richardson, James Joy-
ce, Albert Camus, Vladmir Nabokov, Samuel Beckett. Fica difícil
traçar
uma
linha entre autobiografia e ficção, a julgar pelo mate-
rial que esses autores produziram no exílio. Na verdade, na
maioria dos casos, os autores transpuseram para as páginas par-
te
de
suas experiências em terras estrangeiras de
modo
subjeti-
vo, embora algumas vezes não diretamente na primeira pessoa.
Da mesma maneira mesmo quando os temas não são os exí-
lios propriamente ditos, é bastante compreensível que o deslo-
camento, e inclusive um certo desconforto geográfico e lingüís-
tico, tenha influenciado seus escritos ou, pelo menos, o modo
de
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5
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observar e reconstruir o mundo. Para Randall Stevenson, em
Modernist fíction - an introduction
O exílio
na
realidade - geográfico e
não
apenas metafórico -afetou
autores modernistas e
seu
trabalho
de
várias maneiras. Algo
da
experiência pessoal de
Conrad
e James enquanto estrangeiros,
por
exemplo,
pode
estar refletido
no
freqüente interesse que seus ro-
mances têm em uma primeira pessoa
do
singular - alguém que
não
raras vezes é
um
estranho e
um
solitário, gradualmente des-
vendando
as exigências
do
ambiente novo e complexo com o qual
está se confrontando. (Stevenson, 1988, p. 188)
O estudo abrangente de Maria José de Queiroz sobre a lite-
ratura
do
exílio, Os
males
da
ausência
ou
a
literatura
do
exílio
de-
senha um pano de fundo histórico, desde a Grécia Antiga até os
tempos modernos. Maria José analisa as diferentes razões que
levaram os escritores a produzir- ou não- durante a expatria-
ção e coloca a questão
da
linguagem como um dos aspectos
mais cruciais de tal experiência:
O exílio não é apenas a experiência da solidão,
do
afastamento, da
nostalgia.
À
maioria dos indivíduos, o desterro afeta a estrutura da
identidade. A exclusão da palavra, da língua
do
berço, não se vive
apenas como
pena
política, é tormento pessoal. Os escritores que
puderam continuar a escrever salvaram-se desse tormento. (Quei-
roz, 1988, p. 608
Nos tempos modernos, quando as línguas estiveram dire-
tamente conectadas ao surgimento
do
nacionalismo, em diferen-
tes partes do mundo a língua materna, língua primeira, foi al-
çada a
uma
maior dimensão, transformada
em
metáfora
de
um
mundo perdido: a pátria distante.
No
exílio - e isso é pratica-
mente inevitável - a língua que se fala fica intensamente afetada
de
maneiras imprevisíveis. As sombras conflitantes
de
muitos
ruídos e
de
culturas diferentes agem como um incentivo à in-
ventividade verbal ou, por outro lado, ao silêncio; no meio
de
muitas vozes, a fala pessoal encontra-se em risco.
De fato, sabe-se que
não
usar a língua materna com
ames-
ma
freqüência
que
as pessoas o fazem
em
seus ambientes fami-
liares cria
um
outro domínio sobre o
discurso-
uma mudança
para melhor ou para pior. É bastante compreensível que
uma
nova relação com a língua original possa surgir. Além disso,
uma certa dificuldade verbal emerge de um confronto entre a
fala adquirida e os ecos
da
língua materna, como Julia Kristeva
5
Cláudia Nina
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observa
no
capítulo O silêncio dos poliglotas , em
seu
Étran-
gers à naus
mêmes:
Viver com ressonâncias e raciocínios
que
se desvincularam
da
memória
noturna do
corpo,
desde
o sono agridoce
da
infância.
Carregar dentro de si como
um
cofre secreto,
ou
como
uma
criança
deficiente - apreciada e inútil - a língua do passado que fenece
sem jamais te abandonar[ ..] entre duas línguas, o teu domínio é o
silêncio[ ..] O silêncio não só foi forçado sobre ti, ele está dentro de
ti:
uma recusa a falar, um sono espasmódico dirigido para
uma
angústia que deseja permanecer muda, a propriedade privada de
tua discrição orgulhosa e mortificada, esse silêncio é uma
luz
dura.
Nada
a dizer, o
nada
absoluto, ninguém no horizonte. (Kristeva,
1991, p. 15)
Em
casos em
que
a inventividade lingüística ocorre, em vez
de um
mutismo
estéril, o texto literário é enriquecido pela con-
fluência de diferentes vozes, discursos e culturas
que
cercam o
universo estrangeiro do autor. Os últimos trabalhos de James
Joyce ilustram essa situação. O escritor irlandês
que
abandonou
seu país
para
andar a esmo pelo continente europeu (Itália,
França e Suíça) exercitou
uma
prática lingüística genial
em sua
literatura, na qual palavras e expressões de diferentes origens
constroem
uma espécie de Babel onírica e extraordinária.
Desde
os primeiros escritos de Joyce, assuntos referentes às
línguas - especialmente o contraste entre o inglês (o discurso
dominante
historicamente) e o irlandês - estavam entre seus
temas favoritos, como é possível observar em
portrait
of the ar-
tistas a young
man. Com
os olhos fixos em Dublin, Joyce flanou
pelas ruas da Europa e como
um
expatriado, fez com que a vi-
da e a
alma
de
suas
personagens desfrutassem do exílio, por
assim dizer.
13
No caso de Dédalus e Bloom,
por
exemplo, não há
idéia
de sofrimento e punição no que diz respeito a distância de
seu país natal, na medida
em
que Eles imitam o autor: vivem
no exílio, praticam-no. um
modo
de vida, deliberadamente
ativo . (Queiroz, 1988, p. 344)
Em
Ulysses
e
Finnegans
Wake
Joyce
aprofundou-se
na
pes-
quisa lingüística para criar uma literatura
habitada
por estra-
nhas personagens cujas vozes - como as vozes de diferentes lín-
As zonas idiossincráticas da lin
guagem
de Joyce não são
usadas
exclusivamente
para refletir a esfera de influência
das
personagens.
mas
também[
..
]
para
indicar
certas idiossincrasias lingüísticas associadas a lugares específicos . (Stevenson,
1988. p. 48)
A
palavra usurpada:
exílio
e nomadismo
na
obra de Clarice Lispector
53
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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guas
e
culturas
- articulam-se num jogo de
imaginação
e inteli-
gência.
Mesmo
não
sendo capaz de
esquecer Dublin,
cidade
à
qual
ele estaria emocionalmente vinculado por
toda sua
vida,
J
oyce
não conseguia mais trabalhar dentro dos domínios
de
uma única língua. Em Finnegans
Wake,
o leitor surpreende-se
ao
ver em cada linha
uma
palavra ou
expressão
que não
se encon-
tra em nenhum dicionário de nenhum
dos
60 idiomas que ele
usou
para
escrever
sua obra-prima
(Medeiros, 2000, p. 47). Co-
mo
observa
Michael Seidel:
Joyce tornou-se
um
exilado; ele intitulou sua única peça
de
teatro
Exiles, e absorveu o mais famoso dos temas exílicos, as
caminhadas
odisseianas,
na
textura
de
seus dois épicos irlandeses.
No
espeta-
culo cômico
de
Finnegans
Wake,
o artista Shem é
um
perpétuo enta-
lhador e
um
perpétuo re-colonizador cujo tema é sua própria so-
brevivência no exílio. (Seidel, 1986, p.
71
Vários escritores,
como Vladmir Nabokov
e
Samuel
Beckett,
trabalharam em outra direção. Parcial ou totalmente, eles adota-
ram
as línguas
adquiridas para
criar seus escritos,
em que os
ecos da
língua
materna- falsamente enterrada-
aparecem
co-
mo
pano de fundo,
enquanto
ecos
do
exílio estão
inquestiona-
velmente nos subterrâneos de cada obra.
Embora o anglo-irlandês fosse a
língua materna
de Beckett,
a maioria de suas obras foi escrita originalmente em francês. Na
verdade,
o autor
que
trocou a
Irlanda
por Paris parecia
estar à
procura de
alcançar uma
economia de
expressão
que
talvez só o
domínio
da língua adquirida
poderia
obrigá-lo a ter. De fato, na
análise
das
personagens
de
Beckett,
pode-se ver que
elas
lutam
em vão para expressar o inexprimível e para nomear o inomi-
nável ;
todas parecem estar imersas em um
profundo
estado
de
incomunicabilidade e melancolia. Quanto ao aspecto lingüístico,
George Steiner
observa
que Beckett costumava
encenar
um
pas
de deux do francês
com
o inglês, acrescido de
uma
forte dose
de
tristezas secretas e misteriosas e de bobagens irlandesas . (Stei-
ner, 1972, p.18).
As
frases
das personagens
são lacônicas e confusas. A co-
municação está em constante risco
de
fracasso. Elas parecem se
esforçar, mas falham, na tentativa
de
atingir o outro. Em
um
fragmento de The unnameable , de Beckett, em que há apenas
uma
voz reverberando num
vácuo, o narrador ilustra esse fra-
casso:
5 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Isto, agora não tem ninguém aqui a não ser eu, ninguém
ao
meu
redor, ninguém vindo
ao
meu encontro, ninguém conheceu nin-
guém nunca diante de meus olhos, essas criaturas jamais foram,
só
eu e esse vazio escuro sempre fomos. E
os
barulhos? Não, tudo é
silencioso. E as luzes,
às
quais dei tanto valor, elas também devem
sair?
Sim,
fora com elas, não tem luz nenhuma aqui. Nem mesmo o
cinza, preto é o que eu devia ter dito. (Beckett,
1976, p. 350)
Na
verdade,
na maioria
dos
textos beckettianos,
pode-se
descobrir que as palavras são o ingrediente principal da arte
do
fracasso; elas
formam aquela barreira impenetrável
da lingua-
gem
que para
sempre
nos impede de saber
quem somos, o
que
somos (Coe, 1968, p. 11), escreve Richard Coe em
The
art
of
ai-
lure.
Ele define corno disciplina
masoquista
(Coe, 1968, p. 14) o
exercício desenvolvido por Beckett em
seu
projeto lingüístico:
Apenas quando a linguagem
fica,
por assim dizer, derrotada,
amarrada pés e mãos; apenas quando ela está disciplinada com
tanto rigor que cada palavra descreve exata e quase que cientifi-
camente o conceito preciso
ao
qual ela está relacionada e nenhum
outro, apenas então, com a progressiva eliminação daquilo que
precisamente
é
existe uma remota chance de a mente humana
adivinhar a realidade fundamental que não é. Coe, 1968, p. 13)
A falta de
comunicação
e a solidão estão
realmente
entre al-
guns
dos
elementos
mais comuns
que
com
freqüência
aparecem
na literatura sobre (ou escrita por) exilados.
Em
relação a isso,
um outro autor
a ser
citado
nos
tempos modernos
é Albert Ca-
rnus, cuja
obra
relaciona-se
à
condição exílica
de maneira
dife-
rente
de Beckett.
Em seus primeiros
escritos, corno, por exem-
plo, os ensaios
produzidos entre
1935 e 1936 e
intitulados
envers e l
endroit, o
tom
nostálgico predomina. As reminiscên-
cias
da
Argélia, a terra natal,
são
intensas.
Em alguns
desses en-
saios,
Carnus
faz
um
esboço
do
colapso da comunicação
verbal
quando
estranhos
sons ,
vindos de
ambientes
com
os
quais
o
sujeito
não
está familiarizado,
ampliam-lhe
a condição de es-
trangeiro em medidas
imprevisíveis.
Na
crônica
chamada
La
rnort dans l'ârne , confinado em seu quarto,
Carnus
considera:
Sei
muito
bem
que nada
pode me tirar deste quarto,
onde
che-
gam os ruídos de urna cidade estrangeira, para
me
levar em di-
reção à
luz mais
delicada
de
urna lareira
ou
de
um lugar amado.
Vou chamar, gritar? São rostos estrangeiros
que
aparecerão .
(Carnus, 1995, p. 82)
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
55
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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No campo
da ficção, a literatura de Camus fala de
um autor
cuja condição estrangeira está vinculada à
sua
personalidade,
como fica claro em étranger, em que o status
de
estrangeirida-
de é
abordado
a partir de
um
ponto de vista desesperançado. A
condição
de
estranho/intruso (outsider) é vista através
de
uma
lente que
captura
as últimas conseqüências de
um
sujeito ex-
pulso , que vi vencia ao máximo o absurdo e a complexidade de
sua
situação. É particularmente possível exemplificar o universo
dos exilados no romance La peste, em que as personagens vivem
a situação extrema
de
serem estrangeiros à própria imagem. São
prisioneiros
num mundo
exilado, dominado por uma
praga
que
os condena a viver excluídos, expatriados
de
sua liberdade in-
dividual, numa evidente alegoria
dos
campos nazistas.
Em
grande parte dos demais escritos de Camus, o tema do
exílio
dá
o tom. A solidão é
um
refúgio e
um
tormento ao mes-
mo tempo. A condição metafísica para Camus é a condição de
um exilado condenado a morrer (Ribeiro, 1996, p. 180). Os ho-
mens são exilados e estrangeiros
não
apenas no mundo mas,
sobretudo, em suas próprias peles.
Em
que
sentido relaciono
tudo
isso com as
narrativas
do
si-
lêncio de Clarice Lispector? Primeiramente, porque as persona-
gens desses romances, como mostrarei nas páginas que se se-
guem, são seres estranhados na paisagem com a qual não inte-
ragem
e
também dentro
de si mesmos. Sentem-se incapazes de
empreender uma jornada de autoconhecimento. Numa socie-
dade que
os
despersonaliza onde
transitam em quase total
anonimato, eles se mostram tão indiferentes e passivos que che-
gam
a ignorar a palavra revolta . Vivem (presos
ou
refugia-
dos?) no desconforto exílico e morrem com ele, incapazes de
modificar consistentemente aquilo que os incomoda (dentro e
fora de si mesmos).
Tais idéias estreitam a proximidade entre
uma
literatura di-
ta exílica e a filosofia existencialista. Inúmeras considerações
podem ser feitas nesse campo. Entretanto, há muitos filósofos e
escritores (Sartre, Kierkegaard, Jaspers, Husserl, Heidegger, etc.)
que
expressam diferentes preocupações
quanto
ao existencia-
lismo, de modo
que
o tema não pode ser
estudado
como
um
bloco filosófico único e compacto aplicado a um determinado
grupo
de romances. Os escritos de Camus,
em
particular, ex-
pressam a idéia do exílio sob um ponto de vista existencial que
enfoca especialmente o aspecto da angústia, da solidão e da es-
56
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tranheza interior que, a
meu
ver, são alguns dos elementos cen-
trais a serem abordados na leitura dos romances de Clarice Lis-
pector, reunidos no que chamo de o ciclo do
exilio
como mostra-
rei
na
seqüência.
3.2
lnsiders Outsiders
A fala
dupla
revelou-se mais
uma
vez impossível, e
encontrei-me dividido
em
duas metades[ ..
].
(Tzvetan
Todorov, L homme depaysé p. 17
O paradoxo do ator: ao multiplicar máscaras e falsos
selfs , ele nunca é completamente verdadeiro nem
completamente falso [
..
] (Julia Kristeva, Strangers to
ourselves p.
8 .
Ser exilado
não
está necessariamente relacionado a um des-
locamento geográfico. Além disso, as sombras conflitantes de
diferentes registros lingüísticos
podem
ocorrer no domínio de
urna única língua. Franz Kafka,
por
exemplo, jamais foi
um
ver-
dadeiro expatriado, mas viveu sob o signo do exílio desde sem-
pre. Na juventude, passou por urna série de episódios de bani-
mento e deslocamento
em
seu hábitat familiar. Em suas memó-
rias de infância, ele
guardou
muitas lembranças desconfortá-
veis, tais corno aquelas descritas na pungente
Carta
ao pai.
Por várias razões,
mesmo
que
não
sendo exilado de seu país
natal, Kafka verdadeiramente viu-se submetido, ao longo
da
vi-
da, a circunstâncias similares. Ele foi criado em
um
ambiente
de
alienação familiar e social, urna vez que era membro de urna
minoria
de
judeus em sua cidade natal. É compreensível
que
as
obras de Kafka reflitam a marca da angústia, tormento e isola-
mento que representaram a própria luta do autor na vida real.
Este é
um
caso
em
que, definitivamente, não se pode furtar a
urna aproximação vida e obra, tendo em vista as características
muito particulares
dos
escritos do
autor
tcheco.
A experiência do
exílio
seja ele um deslocamento geográfi-
co real ou o exílio feito em casa , o exílio em miniatura ,
por
assim dizer - pode criar vínculos imprevisíveis com a escrita.
Esses alinhavas podem surgir de diferentes modos, disfarçados
sob diferentes máscaras e estratégias narrativas. metamorfose
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
57
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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de Kafka, é um exemplo interessante, que pode sugerir curiosas
conexões autobiográficas. Às palavras-chave
seguidamente
re-
lacionadas com a história, tais como impotência, relacionamento
familiar, doença mental e individualidade outras
podem
ser
acrescentadas,
como
solidão, impotência lingüística, imobilida-
de, expulsão e crise de
identidade
- elementos que estão inti-
mamente
relacionados ao exílio.
A narrativa conta a história de Gregor Samsa, jovem repre-
sentante
comercial
que mora com
seus pais e a
irmã
mais nova.
A rotina de Samsa é literalmente transfigurada
quando
numa
manhã ao acordar, ele descobre que durante a noite transfor-
mara-se
em
um
inseto. E mais:
que
suas
capacidades, gostos e
interesses também começavam a mudar.
Ninguém
consegue en-
tender sua
fala de inseto, e
sua
família -
horrorizada
-
mantém
Gregor num quarto, exilado, recusando-se a interagir com ele.
Sob
uma nova
identidade, ele se transforma
em
um corr
:;
estra-
nho
à beira de
uma
nova vida. Gregor fica restrito a
seu próprio
habitat,
que
termina
por
se
mostrar
terrivelmente estranho. Soli-
tário, ele vê o desespero crescer
no
espaço limitado de
sua
cama:
Mas havia o mesmo silêncio a toda volta, embora o apartamento,
com certeza, não estivesse vazio. Que vida mais silenciosa esta
família vem levando , disse Gregor para
si
mesmo,
e,
enquanto
fi-
cava lá sentado, olhando para a escuridão, sentia-se verdadeira-
mente orgulhoso de ter sido capaz de oferecer uma vida desse tipo
em um apartamento tão agradável para seus pais e sua irmã. Mas,
e se toda a paz, todo o conforto, toda a satisfação chegassem agora
a um término medonho? Em vez de perder-se em pensamentos
desse tipo, Gregor começou a mover-se, e rastejou de um lado para
outro do quarto. Kafka, 1992, p. 93)
A língua foi um outro assunto relacionado às questões exíli-
cas na vida
de
Kafka. O
autor
era
judeu
tcheco e trabalhou
nu-
ma língua paralela ao discurso dominante. O alemão falado
em
Praga
(a língua menor )
vinha
carregado
de
diferenças e va-
riantes
em
relação ao alemão oficial. Tal deformação , sobretu-
do quando manipulada pelo talento de
um
autor como Franz
Kafka,
resultava em
um
material excelente
para
o exercício lite-
rário, mas, todavia, soava estranho . Gilles Deleuze e Felix
Guattari em
Kafka pour une litterature mineure analisaram a lite-
ratura do autor de A met morfose exatamente quanto a esse as-
58 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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pecto, num estudo sobre a língua de um grupo minoritário em
relação a uma língua dominante.
Quanta gente não vive hoje em
uma
língua que não é a sua? [
..
]
Problema
dos
imigrantes e, sobretudo,
de
seus filhos. Problema
das
minorias. Problema de
uma
literatura menor, mas, também, de
todos nós: como arrancar
do
próprio idioma uma literatura menor,
capaz de cavar a linguagem e de fazê-la tecer-se por uma linha re-
volucionária sóbria? [
..
] Diz Kafka: é roubar a criança do berço, é
dançar na
corda bamba. Vejamos: a situação da língua alemã em
Praga, como língua ressecada, misturada ao tcheco ou ao iídiche,
irá viabilizar
uma
invenção de Kafka. (Deleuze e Guattari, 1975, p.
35)
O conceito de línguas maiores e menores, entretanto, é
complexo; envolve muitos aspectos lingüísticos e definições que
vão além
do
escopo deste estudo. Contudo, vale a
pena
conside-
rar que línguas maiores também implicam a expressão
de
uma
medida padrão enquanto sistema homogêneo e constante, en-
quanto
línguas menores representam,
em
sua essência, o poten-
cial
de
algo em constante variação. Algo que foi apropriado e
que
está às
margens de
um
sistema (maior) dominante. De certa
forma, é o que o exilado, quando vive em
uma
comunidade lin-
güística estranha, tem
de
fazer: encontrar
sua
própria voz entre
discursos estrangeiros, ou melhor, construir seu modo parti-
cular de falar a língua adquirida ou apropriada .
A urgência por comunicar-se e descobrir os códigos do dis-
curso lingüístico predominante a fim de interagir é
uma
luta pe-
la qual já
passaram
todos os que viveram no exterior, em uma
comunidade
lingüística diferente. A língua criada pelo estran-
geiro nunca está correta, de acordo com os habitantes locais, ou,
se está, dificilmente ostentará o vocabulário exato ou a pronún-
cia precisa. Isso cria
um
certo
grau
de diferença lingüística que
imediatamente identifica a voz estranha entre os nativos.
No
caso
de
Clarice Lispector, como eu disse anteriormente,
o
português
foi sua primeira língua escrita e exceto por alguns
contos
que
ela escreveu para seus filhos em inglês, era só com o
português que
ela trabalhava. Mesmo após ter
aprendido
outras
línguas, palavras estrangeiras dificilmente apareciam
em
seus
escritos. A autora queria moldar a língua portuguesa, enrique-
cê-la consideravelmente. Ela se recusava a aceitar vocábulos fo-
rasteiros em suas obras literárias e recusava-se mesmo a pro-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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curar editoras que a publicassem no exterior. Assim, Clarice es-
tava na Europa e nos Estados Unidos representando a literatura
brasileira de modo paradoxal: se no Brasil era uma
outsi er
a es-
tranha
e estrangeira Clarice); lá fora, digo, no exterior, ela vivia
apegada às suas raízes brasileiras, fazendo a literatura em por-
tuguês representar a sua voz nacional em terras estrangeiras.
Para a autora, a língua portuguesa não era apenas o instru-
mento
de
sua
literatura,
mas
também a marca
de sua
identidade
brasileira. Acima de tudo, era uma recusa ao silêncio. Nos escri-
tos do
ciclo do exílio,
o leitor encontra no espaço mesmo
da
ficção
os elementos que animam a alma de um exilado, quais sejam,
um
forte e indisfarçável senso
de
estranheza,
aprofundado
pela
solidão do desterro. As personagens retiraram-se para seus pe-
quenos mundos ficcionalizados e limitados, na esperança de
conseguir de
algum modo
um tipo
de
redenção.
Não obstante, Clarice Lispector manipulou o
pr
: Luguês
como se fosse uma estrangeira,
produzindo
uma sintaxe in-
comum com
uma
justaposição nada ortodoxa de palavras e me-
táforas. Enquanto João Guimarães Rosa operava
de um
modo
mais inventiva (no domínio
de
neologismos, onomatopéias e
palavras
portmanteau ,
Clarice trabalhava
por
meio
de
sutis de-
formações sintáticas. Segundo Earl Fitz, as frases
de
Clarice são
realmente algo de especial, que pede por uma abordagem deta-
lhada. Fitz observa que
A sintaxe reside no coração de toda e qualquer discussão séria so-
bre
seu estilo. A deformação sintática imposta por Lispector à sen-
tença tradicional
da
língua
portuguesa
é
produzida
consciente-
mente ou não, para forçar-nos a definir e interpretar o mundo de
um
modo
diferente;
para
exigir, ao conectar palavras de
modos
novos e seguidamente surpreendentes
e
ao
usar
velhas palavras
de
modos
novos ), que o leitor acompanhe hermeticamente a au-
tora em uma viagem de descoberta nos confins não
mapeados
da
realidade e de suas possíveis apreensões. (Fitz, 1985, p. 42)
Um
comando
estranho
da
língua portuguesa pode
ou não
ser
uma
conseqüência
da
mistura
de
línguas
que
cercaram a vi-
da de
Clarice. Para alguns, certamente é uma influência em seu
estilo, como questiona Grace Paley no prefácio de uma edição
inglesa de
Soulstorm:
Às vezes
penso
que é sobre isto que versa o trabalho dela [Clarice
Lispector] uma língua tentando sentir-se em casa dentro de outra.
60
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Às vezes há hospitalidade, às vezes há briga [ . . ] A menos que os
pais de Clarice Lispector fossem poliglotas, com um conhecimento
precoce do português, eles com certeza falavam russo [
..
] Deve ter
sido esse encontro das du s línguas, o russo e o português, que
produziu
o tom, os ritmos que mesmo
em
tradução (provavelmen-
te difícil) são tão surpreendentes e certos. (Paley, 1989, p. XI
A distorção sintática tantas vezes citada com relação aos
escritos
d
autora é realmente marca sutil
de
todos os seus tex-
tos. Contudo, nas
narrativas
do sil
êncio
a linguagem
ssumiu um
p pel distinto. Nesses escritos, a linguagem não é fundamen-
talmente o instrumento estético de um busca ontológica das
personagens, como o é
p r
Joana
em
Perto
do
coração
selvagem.
De
um
outr forma, a linguagem expressa a angústia de perso-
n gens caindo num vácuo. Subjetividades despersonalizadas,
são vozes silenciosas ecoando no vazio
à
su volta e confronta-
d s com seu próprio vazio interior.
3.3
terra de nenhuma mulher
O que acontece qu ndo mulheres tentam quebrar esse
silêncio? (Barbara Johnson, Muteness envy , in:
The
feminist reader p.
137)
Algumas pessoas como Clarice Lispector parecem ter
nascido com um talento p r a estranheza. (Cixous,
Readings : the poetics of Blanchot, Joyce, Kafka, Kleis,
Lispector
nd
Tsvetayeva, p.
98
É
curioso como os termos exílio e expatriação têm diferentes
conotações p r homens e mulheres. As escritoras vivem a ex-
periência do exílio
de um outro
modo, principalmente devido
à
condição de
um
expatriação interior ,
um
vez que elas sem-
pre foram estrangeiras no continente d escrita,
domin do por
escritores homens. Em Expatriate modernism Shari Benstock ana-
lisa a situação vivenciada
por
mulheres e
homens
no caminho
p r
o Modernismo, enfocando
um
de
suas referências mais
comuns,
ou
seja, o exílio:
Para as mulheres, a definição de patriarcado já pressupõe a reali-
d de de expatriadas in patria; p r as mulheres, essa expatriação é
internalizada, vivenciada como um exclusão imposta a partir de
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
61
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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fora e vivida a partir
de
dentro, de tal
modo
que a separação entre
fora e dentro, entre as máximas patriarcais e o decoro feminino,
não
tem como ser desde cedo distinguida. (Benstock,
1989,
p.
20)
Shari Benstock escreve
que
as modernistas
sempre produzi-
ram na
periferia da cultura moderna, trabalhando contra defini-
ções que tratam o Modernismo corno um todo homogêneo. Ela
cita os exemplos
de
H.D., Gertrude Stein, Sylvia Beach, Djuna
Barnes e Natalie Barney, sublinhando que foram todas impul-
sionadas por urna forte necessidade de fugir a definições cultu-
rais, num sonho de reescrever roteiros culturais (Benstock,
1989, p.
28).
O habitat
em
família representava a atmosfera exíli-
ca
por
excelência: O
que
parecia opressivo a
muitas
dessas
mu-
lheres era a família, especialmente na medida em que a família
polarizava
e
paralisava) o masculino e o feminino. Para essas
mulheres, a fuga para a liberdade muitas vezes significava urna
fuga
das
expectativas implícitas
de
casamento e maternidade .
(Benstock, 1989, p. 28)
Essa condição internalizada de expatriada externaliza-se
por
meio da escrita, porém com grande dificuldade. Corno Virginia
Woolf escreveu
em
1931, vai levar ainda
muito
tempo, penso
eu, antes que urna
mulher
possa sentar-se para escrever
um
li-
vro sem encontrar urna assombração a ser assassinada, urna pe-
dra a ser atirada contra alguma coisa (Woolf, 1993, p. 8). Assim,
se, por um lado, a condição feminina é historicamente exílica,
por outro
lado, as escritoras, corno
argumentou
Woolf,
sempre
tiveram urna batalha dupla a empreender. Para escritoras exila-
das, a situação é ainda mais difícil.
Rosi Braidotti diz que,
por muito
tempo, a
identidade
ferni-
iüna esteve conectada a urna espécie de exílio planetário,
que
se tornou um topos dos estudos feministas (Braidotti, 1994, p.
21). No artigo Difficult joys , Hélene Cixous enfatiza que:
Tem algo
de
estrangeiridade,
um
sentimento
de
não ser aceita
ou
de
ser inaceitável, que é particularmente insistente quando, como
mulher, você
de
repente entra neste estranho país
da
escrita,
onde
a maioria dos habitantes é
de
homens e
onde
a sorte das mulheres
ainda
não
está
bem
estabelecida. (Cixous, 1988, p.
12)
Na trajetória literária de Clarice Lispector, contudo, as coi-
sas se deram de um
modo
bastante peculiar. A autora brasileira
foi subitamente proclamada corno boa escritora com seu primei-
ro livro- o
que
é raríssimo- mas depois disso ela teve
de
andar
62
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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um longo caminho a fim de estabelecer sua posição na cena lite-
rária.
Não
foi fácil. As obras que se seguiram à sua estréia foram
recebidas pelos críticos com silêncio.
No
exterior, apesar da re-
sistência dos críticos, Clarice Lispector continuou produzindo
sem parar, até mesmo como um meio de compensação para seu
estado exílico, como discuti anteriormente (capítulo "Haia:
uma
viajante clandestina").
No
entanto, em nenhum momento a autora relacionou os
trabalhos que
produziu
em terras estrangeiras O
lustre, A
cidade
sitiada e
maçã
no
escuro
com
seu
exílio voluntário. Mesmo
porque em nenhum desses romances a voz do "eu" aparece co-
mo
a
própria
voz
de
Clarice. Além disso, o universo ficcionali-
zado apresenta personagens bem distantes
da
vida
da
autora. A
restrição exílica é vivenciada nos domínios da ficção; o
mundo
literário
e
definitivamente não-autobiográfico- é a arena onde
o tema do exílio interior se desenvolve.
Com
freqüência, no entanto, os críticos têm vinculado
aspa-
lavras autobiografia e autobiográfico aos trabalhos da escritora.
Penso, todavia,
que
a maioria deles tende a ser por demais im-
pressionista.
É
bem
verdade
que a
própria
Clarice salientou fa-
tos pessoais em vários
de
seus escritos (especialmente as crôni-
cas incluídas em descoberta do mundo e alguns contos, como os
que estão apresentados
em
A felicidade
clandestina,
que reúne al-
gumas
reminiscências dos tempos
de
Recife. Não obstante esses
exemplos, a análise do
tom
autobiográfico na obra de Clarice
requer uma pesquisa mais detalhada, que vai além
da
mera pro-
jeção dos fatos biográficos na ficção.
Além disso, é
importante
afirmar
que
os vestígios íntimos
diminuem
nos romances, em especial os romances do ciclo do
exílio, e não se
pode
vê-los como simples projeções
de
experiên-
cias pessoais. A questão é por demais complexa. Ao mesmo
tempo em
que Clarice Lispector nega comprometimentos auto-
biográficos em alguns de seus escritos, por outro lado ela estrei-
ta em muitos
outros textos o relacionamento com seus leitores,
como fez nas crônicas e em seus últimos escritos, por exemplo:
A
hora
da
estrela, Um
sopro
de
vida,
Água viva.
A leitura
que
Marta Peixoto fez da obra
de
Clarice
em
Pas-
sionate
fictions: gender, narrative,
and
violence in Clarice
Lispector
esclarece essa questão. Nos seus escritos
da
década
de
70, a lu-
ta
com
a narrativa, coisa
que
o trabalho de Lispector põe em
evidência, inclui
uma
justaposição conflituosa
de
gêneros iterá-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 6
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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rios: ela usa a autobiografia para discutir a
suposta
auto-
suficiência
da
ficção e usa a ficção para mascarar e atrapalhar o
impulso autobiográfico . (Peixoto, 1994, p. 13)
A combinação
vida
e literatura não é
um
tema
fácil
de
ser
abordado, especialmente
quando
se fala de Clarice Lispector.
Ela sempre trabalhou a articulação das duas esferas
de
modo
muito lispectoriano , quando não enigmático, que merece ser
cuidadosamente
estudado por
aqueles que
pretendem
aproxi-
mar-se
de
tal abordagem. Como Carlos Mendes de Sousa salien-
ta em A escrita autobiográfica de Clarice Lispector , os ecos bi-
ográficos são o resultado
de
uma busca, e não de
uma
projeção,
num
jogo permanente
de
negações e afirmações,
um
diálogo
que
se concentra na construção
de
um eu
que
procura ir mais
fundo
no
coração
da
própria emergência da escrita . (Sousa,
2000, p 490)
3 4
rupo do exílio
Pois somos como os troncos das árvores na neve. Pa-
recem estar suavemente pousados na superfície, e,
com um leve empurrão, deveríamos ser capazes de
movê-los. Mas não, isso não se pode fazer, pois eles
estão firmemente pregados ao chão. (Kafka, The
tree , in: The metamorphosis and other stories p. 32
Ao abordar o que defino como narrativas
do silêncio
ou seja,
o ciclo dos romances já citados, não
pretendo
tomá-las como re-
presentativas
da
clássica literatura de exílio. O que proponho é
investigar as qualidades exílicas peculiares a essas obras.
O modelo que apresento coloca-se em contraste com o mo-
delo traçado por Claire Varin em Langues
de
feu em
que
ela de-
fine como textos
de
exílio os romances que Clarice Lispector es-
creveu
no
exterior (Varin, 1990, p. 145). Todavia, ela não os es-
tuda sob
uma
perspectiva comparada. Claire não explora o en-
foque textos
do
exílio , logo se concentrando
em
uma
outra
classificação, qual seja, a cronológica. Ela coloca num mesmo
grupo
Perto
do coração selvagem
A cidade
sitiada
e O lustre obras
escritas em seqüência na década
de
40.
Minha proposta defende a idéia de
que
Perto do
coração sel-
vagem não deve ser emparelhado com
A cidade
sitiada e O
lustre
6 Cláudia Nina
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simplesmente porque foram
publicados na
mesma década.
Além disso, a crítica canadense cria um outro modelo-
um
ou-
tro triângulo -, formado pelas obras que Clarice Lispector es-
creveu nos anos 60 agrupando maçã no escuro
paixão segun-
do
G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Embora reco-
nheça em
maçã
no
escuro
o último
dos
escritos exílicos, o
que
minha
proposta também defende, Claire Varin aborda essa obra
como
um
conjunto de textos que,
em minha
opinião,
não
têm o
mesmo perfil.
De acordo com
o modelo
que
proponho, os romances do
exílio têm em comum
um
grande número de características que
não
podem
ser desconsideradas. Primeiro, eles são ambientados
numa atmosfera claustrofóbica. As personagens vivem
num
es-
paço restrito - física, psicológica e lingüisticamente falando -,
presas
em seu próprio
mundo interior, do qual
não há
saída pa-
ra a felicidade e para a liberdade. Desarticuladas, deslocadas,
são assombradas por desconfortáveis lembranças ou
por
inex-
plicáveis angústia e nostalgia. Vivem em uma espécie de parali-
sia, e, inertes, estão condenadas a
suportar
uma morte
em
vida,
como se fossem plantas
ou
estranhos animais
no
planeta
dos
homens. São alienados
do
resto do mundo
por
serem estran-
geiros não só nos lugares por onde circundam, mas principal-
mente dentro
de si mesmos.
As histórias são
narradas
no passado
por
uma voz anônima,
que tem o comando do texto e oferece às personagens uns pou-
cos e breves aparecimentos verbais. É o
narrador
de quem elas
parecem tomar emprestada sua linguagem para suplementar
sua mudez. Como
a
entidade que
organiza o texto e orienta os
leitores dentro do espaço literário, a voz do narrador assume
uma
posição distante, como alguém
que
descreve
um
mundo ao
qual ele não pertence. Na verdade , a própria voz
da
persona-
gem mal existe.
Pode-se argumentar
que em Perto
do coração
selvagem
a histó-
ria também não está totalmente narrada na primeira pessoa -
com a exceção de alguns capítulos onde a voz do eu surpre-
ende
o leitor
-,
mas
a situação é inversa: o
narrador
parece ser
governado pelos desejos e pensamentos de Joana,
enquanto
no
ciclo do exüio ele comanda e guia os passos
da
personagem e seu
discurso.
Nas narrativas
do silêncio o narrador é uma voz escon-
dida e anônima, e a capacidade de comunicação das persona-
gens é por uma ou outra razão, extremamente frágil, assim co-
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
65
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mo são frágeis as suas personalidades. Não há
identidades
for-
tes nessas páginas, e o único que se revolta contra a lei - Martim
-está em crise. Em seguida ele fica mudo até que consegue
aprender
num
processo lento e árduo, a usar as palavras no-
vamente.
Todos eles se sentem um pouco aprisionados no espaço ou
no tempo, enquanto seus laços de farru1ia são frouxos, corroídos
ou inexistentes. Virgínia está perdida entre suas lembranças de
infância, que a perseguem como fantasma. Andando a esmo de
um
lado para
outro, ela não encontra refúgio emocional. Lucré-
cia está confinada aos limites do pequeno subúrbio de São Ge-
raldo,
do qual
escapa, mas ao qual termina por voltar,
sem
saber
exatamente
que
rumo tomar. Martim,
por sua
vez,
atormentado
por
culpas e dúvidas no meio de uma séria crise
de
identidade,
foge
para
uma fazenda distante em busca de sua identidade. No
entanto, mesmo quando tentam fugir,
ou
romper com o sistema,
eles fatalmente retornam, como Virgínia volta
para
a fazenda,
Lucrécia para o subúrbio, Martim para a prisão após ser detido
por
policiais.
No
intuito
de
analisar
em
termos teóricos o
ciclo
do
exz1io
tomo o conceito deleuziano de árvore , desenvolvido
em uma
série de estudos feitos em colaboração com Felix Guattari. A
árvore é uma das metáforas botânicas que ambos usaram para
ilustrar suas teorias filosóficas baseadas no deslocamento, na
desterritorialização e no pensamento nômade, contra o m instre
am da Psicanálise e da Filosofia tradicional, voltando-se
para
as
subjetividades pós-modernas e para práticas políticas centrífu-
gas e alternativas. A árvore é
uma
imagem
que
considero
compatível com as narrativas
do silêncio por
várias razões.
Del
euze
relaciona o sistema arborescente com
estruturas
de poder e comando (não só na literatura, mas
também
em
dife-
rentes sistemas de pensamento, tais como a Política, por exem-
plo) enraizadas em bases sólidas. De acordo com seu modelo, há
basicamente dois tipos de livros. O primeiro é o livro árvore
(clássico), com raízes ligadas ao solo, governado pela lógica de
imitar
a
natureza
e refletir a
imagem do
mundo em
termos
de
representação ou mímese. O outro é o livro rizoma , também
um
termo da Biologia, que descreve
um
sistema descentrado,
que
pressupõe
diversas formas e direções, como um mapa ,
sem fim nem começo, aberto e potencialmente conectável
em
todas
as suas dimensões.
66 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Sob urna perspectiva mais ampla, os sistemas arborescen-
tes têm um centro de comando e, tanto na Lingüística quanto
na Psicanálise,
por
exemplo, corno observa Deleuze, eles
têm
por objeto
um
inconsciente representativo codificado. Enquanto
sistema
de
significância, o objeto deve, portanto, ser interpre-
tado : Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que
comportam centros de significação e de subjetivação, autômatos
centrais corno memórias organizadas . (Deleuze e Guattari,
1976, p.
48)
Segundo Deleuze, toda a lógica
da
árvore é urna lógica do
decalque e da reprodução. Do mesmo modo, tanto na lingüísti-
ca corno na psicanálise, ela tem por objeto um inconsciente
que
é ele mesmo representativo, cristalizado em complexos codifi-
cados [ .. ] (Deleuze e Guattari, 1976, p. 36). Daí que as árvo-
res representam estruturas baseadas em urna ordem fixa, urna
rede múltipla e conectada de linhas
que
já existem (e não algo
que
está sendo construído). Assim, enquanto o modelo arbo-
rescente tem a imagem da árvore ( os decalques são corno as
folhas
da árvore -
Deleuze e Guattari, 1976, p. 37), o rizorna é
um mapa,
aberto e conectado com todas as suas dimensões.
Levando em consideração essas idéias a fim
de
analisar a es-
trutura
das
narrativas
do silêncio eu proponho urna abordagem
baseada no
modelo
da
árvore . Muitos aspectos
devem
ser ob-
servados
em relação a isso. Primeiro,
que
os romances repre-
sentam urna realidade. Existe um mundo rnirnético ficcional a
ser apresentado aos leitores
de
um
modo
ilusório à
medida que
os bastidores da literatura não se encontram abertos. Além dis-
so, todos os romances
têm
um
centro
de
significância e poder.
Em O lustre ele é a Granja Quieta, ao
redor
da qual gravita Vir-
gínia, ao longo
de
toda a sua vida; em
A cidade
sitiada é o su-
búrbio de São Geraldo, ao
redor
do
qual a ação (ou falta de) de-
senrola-se;
e,
finalmente, em
A
maçã no
escuro
o centro do mun-
do
de Martirn é a fazenda onde Vitória comanda as ações de to-
dos e onde ele desenvolve
seu
aprendizado.
Mesmo não
tendo
fortes laços familiares a envolver suas vi-
das, todas as personagens são,
de
alguma maneira, enraiza-
das . Virgínia está ancorada no passado, e o mundo misterioso
da Granja Quieta é urna realidade que ela não consegue esque-
cer. Lucrécia está enraizada em São Geraldo e, mesmo
quando
sai de lá, permanece ligada ao subúrbio, para ele retornando
depois. Martirn está enraizado
num
passado
de
culpas e na irn-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo n obra de Clarice Lispector 7
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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possibilidade de reação imposta pelo silêncio. Há também, em
todas as situações, um padrão a ser mantido: silêncio, monoto-
nia, ordem, alienação e ausência de laços emocionais. Uma lógi-
ca binária governa esses universos, e muitas dicotomias, tais
como ausência/presença,
escuridão/luz,
dentro/fora,
passa-
do/presente,
urbano/rural,
delineiam os diagramas das precá-
rias existências. Nenhuma outra interconexão fora desse esque-
ma pode ser feita, e as peças do quebra-cabeça encontram-se
bem definidas.
Como disse anteriormente,
há
uma voz forte
de
comando,
na terceira pessoa, organizando os acontecimentos. Essa não in-
terfere na história como
uma
presença ativa, mas vai guiando, a
distância, o desenvolvimento e os discursos
da
personagem
em
uma posição hierárquica
de
controle. As histórias têm um nítido
senso de coerência e unidade, com início, meio e fim, numa or-
dem cronológica de fatos. Não há espaço para o leitor, que ja-
mais é mencionado nenhuma voz a ele se dirige), ao contrário
do que acontece em muitos dos últimos escritos
de
Clarice Lis-
pector.
A narrativa não pensa sua própria construção, como na fic-
ção pós-moderna, e a arena metaficcional está fechada, enquan-
to as próprias palavras
da
personagem são, de
algum
modo,
aprisionadas . A estrutura interna dos romances reflete siste-
mas
cujas ramificações
não
ampliam seus domínios em direções
erráticas, mas, pelo contrário, fixam-se na unidade
de
sua estru-
tura, num mundo
de
silêncio ou, por outro,
de
emudecimento.
A imagem que melhor consegue definir a estrutura desses
romances, portanto, é a árvore ,
à
medida que
observo clara-
mente alguns elementos
de
interação clássica na lógica dessas
obras: a ordem cronológica dos eventos, a presença de persona-
gens e narradores em seus lugares (hierárquicos) definitivos
(com o
narrador
contando as histórias e as personagens vivendo
as histórias), uma descrição detalhada
de
lugares e o processo
de imitação do
mundo
e sua ordem.
Ao considerar esses romances como livros-árvore , pergun-
to-me se
devo
reconciliar a condição
do
exílio
com
o modelo
arborescente
que
defendo no presente estudo. A primeira coi-
sa que observo é o conceito de liberdade implícito na idéia do
rizoma
lígnes
de
fuíte ,
em oposição a um sistema que, sendo
arborescente , é portanto enraizado, fixo no solo. A condição
fundamental
de um
exílio é basicamente a
de
estar preso a uma
8 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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circunstância que não se pode mudar. Os mundos em que vi-
vem
Virgínia, Lucrécia e Martim (a situação estende-se às mu
lheres
da
fazenda em A maçã no escuro representam esse mode-
lo
com
clareza. As personagens apenas reproduzem - quase
que
mecanicamente
o mesmo comportamento, incapazes
de
explo-
rar as conseqüências de
uma
ruptura;
quando
rompem, fracas-
sam
pelas mais diversas razões.
Um outro aspecto importante a ser estudado é que os ro-
mances são narrados no passado e, portanto, a memória é um
elemento relevante na estrutura das mentes das personagens.
Mas
que
tipo de memória? Deleuze analisa duas memórias dife-
rentes: a memória de longo prazo, que é arborescente , e a
memória
de
curto prazo, baseada no imediato e
no
descontínuo,
na ruptura e na multiplicidade, vinculando-se portanto a siste-
mas rizomáticos .
Como observei no começo deste capítulo, as lembranças
(lembrança do paraíso perdido, saudade de um lugar distante)
são
um dos
ingredientes
que
formam o conceito
de
um exílio. O
instante-já e agora estou me referindo às palavras de Clarice
quanto
ao presente imediato de seus últimos livros,
em
Agua vi
va,
A hora da
estrela
e Um
sopro de
vida não é, definitivamente, o
tempo
de
um exilado e, nas narrativas
do silêncio,
ele também é
in
e xis tente.
Por outro lado, há um inegável sentimento de passado, de
algo
que
está para sempre
perdido
no mundo interior das per-
sonagens. Elas parecem ser governadas por uma forte sensação
de que
a possibilidade ideal
de
vida está
em
outro lugar, qual-
quer outro que não
o presente. Contudo, como estão ancoradas
em
sua própria
incapacidade
de
modificar radicalmente o esta-
do das coisas, elas permanecem presas às circunstâncias que as
envolvem e, ainda mais importante, às raízes imaginárias que as
fixam no solo
de
suas existências indisfarçavelmente nauseantes
e tediosas.
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3.5
Palavras de sombras lustre
Um grande escritor, levado de uma língua para outra
por
insurreição social e guerra, é
um
símbolo adequa-
do à
época dos refugiados. Nenhum exílio é mais ra-
dical,
nenhum
feito de adaptação à vida nova é mais
difícil. (George Steiner,
Extraterritorial p.
11
O lustre é o segundo romance de Clarice Lispector. Foi escri-
to entre março
de
1943, Rio
de
Janeiro, e novembro
de
1944,
Nápoles, onde a autora acrescentou alguns retoques finais ao
texto. Foi publicado, todavia, apenas em 1946. Apesar
da
reação
positiva
do
público, os críticos sentiram-se
um
tanto frustrados
quando o romance foi lançado. Aparentemente, estavam espe-
rando por um livro
da mesma
linhagem
de Perto
do
coração sel-
vagem. No entanto, O lustre parecia ser bastante diferente do li-
vro de estréia
de
Clarice e jamais obteve dos críticos a
mesma
resposta positiva. De fato, a própria autora considerava-o
um
livro triste , como certa vez mencionou em
uma
entrevista.
(Varin, 1987, p. 97
Junto ao romance
A
cidade
sitiada
O
lustre
é
uma
das
obras
menos conhecidas
de
Clarice e também um dos menos comen-
tados. Também não recebeu muitas traduções.
À
época em que
foi publicado, as resenhas
não
foram tão abundantes; até hoje
ainda há
uma
nítida preferência de leitores e críticos por outros
textos
da
autora.
Dois dos artigos escritos logo após a publicação do romance,
porém,
devem
ser mencionados, posto
que
são expressões claras
da
reação geral frente ao livro. Álvaro Lins,
por
exemplo, consi-
derou O lustre incompleto. Lins ressaltou a inconsistência da
obra, considerando-a um simples jogo de palavras no ar (Sá,
1988, p. 35).
Quanto
a essa assim
chamada
fraqueza
em
ser
excessiva na linguagem, Gilda Mello e Souza assinou
uma
im-
portante resenha de O lustre. No artigo, publicado
no
jornal O
Estado de
São
Paulo
ela ressaltou o derramamento de adjetivos e
o
uso de
poesia
no
espaço
mesmo
da
prosa, o que,
segundo
a re-
senhista,
não
é
adequado à
natureza
de
uma narrativa romanes-
ca. Gilda de Mello e Souza empregou a expressão majestade
barroca (Souza, 1946) para definir o excesso de ornamentos
verbais e
de
adjetivos no texto, o que, na realidade, é uma das
7
Cláudia Nina
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características mais evidentes a serem analisadas neste estudo,
sob a perspectiva das narrativas
do
silêncio.
É bem verdade que O
lustre
não tem o dinamismo de Perto
do
coração selvagem principalmente porque neste último há um
uso alternado
de
perspectiva narrativa ausente
em
O
lustre
o
que torna o ritmo da leitura bastante monótono e pouco inven-
tiva. Além disso, a protagonista Virgínia
não tem
grande caris-
ma. Sua apatia face à vida diminui o dinamismo interno do tex-
to, especialmente se
comparado
a
Perto
do
coração
selvagem.
Enquanto o primeiro romance tem sido rotulado muitas ve-
zes de
um
Bildungsroman (pois Joana
gradualmente adquire
uma visão mais elevada e mais madura do mundo e de si mes-
ma, crescendo
junto
com a história), isso é impossível
de
se di-
zer a respeito de O lustre. Virgínia transforma-se ao longo
do
romance, mas ela desenvolve uma consciência cada vez mais
aguda de que
sua vida está impreterivelmente
construída
sobre
uma série de conflitos, todos eles culminando na morte trágica
em atropelamento.
Considerando-se tudo isso, é relevante se questionar aqui
por
que uma autora que
fora altamente aclamada como um es-
critora nata,
apesar de umas
poucas opiniões contrárias, teria
mudado tanto de um
romance
para
outro, assumindo uma
abordagem
literária tão diferente? Que mensagem Clarice esta-
va tentando
transmitir neste jogo
de
palavras
no
ar , como dis-
se Álvaro Lins em
sua
resenha?
Quando O
lustre
acabou de ser escrito, Clarice Lispector es-
tava
no
exílio,
morando
na
Europa em
período
de
guerra, e sua
vida
tinha se alterado consideravelmente
desde
Perto
do
coração
selvagem. Dois momentos diferentes e dois livros distintos que
jamais poderiam ser estudados em um mesmo
grupo
de textos.
Naquele instante, Clarice estava, pela primeira vez, fazendo
um livro seu
cruzar
o oceano , ficando depois à espera de al-
guma resposta da crítica. No entanto, as reações dos experts le-
variam
algum
tempo
para
retornar
à autora; a primeira resposta
das editoras foi o silêncio ou, quando pior, uma áspera recusa.
Clarice Lispector
ainda
esperaria alguns anos antes
de
ter
seu
livro publicado. Além da literatura, a autora dera início a uma
intensa correspondência
com
seus amigos brasileiros, a maioria
deles também escritores, entre eles Manuel Bandeira, Rubem
Braga, Paulo
Mendes
Campos, Lúcio Cardoso e Fernando Sabi-
no. O lustre ficou
pronto
em meio a esse processo de intercâm-
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bio
de
palavras a distância e, paradoxalmente, de extremo silên-
cio em
sua
vida cotidiana, devido a
uma
difícil adaptação em
Nápoles naqueles sombrios anos
de
guerra, segundo explica Te-
resa Cristina Ferreira em sua biografia. (Ferreira, 1999, p. 125)
Aliás, eis
um
aspecto importante a ser observado: a conexão
entre a guerra, o exílio (mesmo que voluntário) e escritoras.
Há
vários estudos que se concentram na investigação de cartas e di-
ários escritos por mulheres
em
tempos
de
guerra.
Em
Under-
ground lives:
women s
personal narratives , por exemplo, Mary
Anne Schofield analisa o ato de escrever como
um
meio
de
re-
gistrar os conflitos
da
vida interior e validar
uma
identidade es-
condida na vida subterrânea underground) do exílio. Ela es-
creve: Muitas mulheres escreveram cartas como
um
modo
de
triunfar sobre a alienação, pois estavam dirigindo missivas a
outros que estavam fora dali e não exilados (Schofield, 1990,
p. 126). Mary Anne observa que o diário originalmente presume
um
diálogo entre o self com
uma
audiência maior e posterior de
outros ; é um documento escrito para fugir do lugar isolado e
confinado
que
historicamente fora o lugar
das
mulheres
na
guerra. (Schofield, 1990, p. 126)
Mesmo
sendo
claramente distintos, tanto cartas
quanto
diá-
rios expressam um
modo de
construção da identidade. As cartas
que
Clarice Lispector escreveu no exterior contêm um precioso
material, semelhante a um diário, ftmdamental para quem pre-
tende desenvolver pesquisas biográficas. Elas refletem não só o
tamanho da angústia e desconsolação em face
de
sua nova vida
no exterior,
mas
também muitos aspectos sobre a guerra, a roti-
na diária e projetos referentes à literatura que se produzia na
época.
14
Em contraste com as cartas pessoais, os livros que Clari-
e
escreveu no exterior - como qualquer outro
de
seus textos
ficcionais- não podem ser tomados como um mero reflexo au-
tobiográfico. Eles servem, entretanto, como
um
exemplo
para
mostrar o quanto a escritura pode realmente
atuar
como
um
meio de comunicação com o mundo.
O lustre não pôde ser compreendido em sua totalidade
quando
foi publicado, principalmente devido às injustas com-
parações com
Perto
do
coração selvagem
Contudo, entre muitos
A correspondência pessoal de Lispector encontra-se no Arquivo-Museu da Fun-
dação Casa de Rui Barbosa. e
parte
desse acervo pode ser pesquisada também em
Borelli, 1981, e Ferreira, 1999.
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láudia Nina
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outros aspectos que ainda serão estudados, é importante obser-
var
que o romance exemplifica
uma
desesperada busca por co-
municação,
em
que a abundância de palavras está
em
perma-
nente conflito com o silêncio. A primeira cena do romance ilus-
tra a
intensidade
escondida nessa obra: a
imagem de
um
lago
cuja
água
está placidamente quieta, mas
onde um
chapéu flu-
tuando na superfície esconde o mistério de toda a história e os
segredos internos
da
silenciosa Virgínia.
3 5 1
Sociedade de solidão
É
preciso
aprender
a se movimentar
dentro do
silên-
cio e
do
tempo. (Abreu, 1996, p. 69
Como
em
Perto
do coração selvagem
o segundo romance
de
Clarice conta a história de uma mulher, desde a infância até a
maturidade. A
jornada de
Virgínia, entretanto, é totalmente di-
versa. A protagonista é descrita como uma pessoa do tipo quie-
to, imóvel,
que
vive
à
beira
das
coisas. Pequena,
magra
e frágil,
tem o hábito de escutar os sons do mundo - a voz da coruja e as
quedas d água,
o farfalhar
das
folhas e o grito do vento. Quase
não há vozes humanas na Granja Quieta, onde ela foi criada e à
qual estaria
para
sempre vinculada.
Virgínia é o inverso
de
Joana. Ela não tem contornos psico-
lógicos definidos, nem a personalidade determinada e atuante
de sua antecessora. Ela seria fluida
toda
a vida
LU,
p. 7 é a
primeira frase
do
romance. Fluida e inconsistente, Virgínia
pa-
rece sem
estofo-
vivia apenas
um
traço esboçado sem força e
sem fim, raso e estarrecido como o vestígio de outra vida LU,
p. 26). Sendo tão fluida, ela
não
consegue encontrar
nenhum
lu-
gar sólido onde ancorar-se e nenhum destino que lhe pertença
de
fato.
Enquanto
Joana inventa poemas, Virgínia faz pequenas es-
culturas
em
argila, uma arte sem palavras. Ela molda o barro e
dá
forma
à
terra
num
aprendizado
de
conhecimento
do
solo
onde pisa -
um
processo silencioso de descoberta do mundo,
como um estrangeiro tateando terra desconhecida pela primeira
vez.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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O texto narra diferentes
momentos
na
busca de
Virgínia:
primeiro, a infância na fazenda junto a seus pais, avó, a irmã
Esmeralda
e o irmão, Daniel;
segundo,
na cidade, onde Virgínia,
adulta,
não
encontra
ninguém
com
quem
interagir, apesar de
algumas
tentativas
frustradas
de
se relacionar.
Em
seus longos
passeios, ela se move
sozinha
e abandonada - a sensação era a
de
ter sido abandonada enquanto
dormia
LU, p. 268). Sua bus-
ca interior fica assim
transformada
na busca por
um
lugar
onde
morar.
Saindo
da
Granja Quieta, ela vai para a cidade, mas não se
integra a lugar nenhum. Tenta morar com umas primas
num
lugar empoeirado que
tem
uma única janela, sempre fechada.
Então
muda-se de
novo,
para
um
apartamento
num
edifício
que
é uma estreita caixa de cimento úmido LU, p. 149), onde ela
se encontra
mais
só do que nunca - um
período
muito triste e
sem palavras, sem amigos, sem ninguém com queiT' irocar
compreensões
rápidas
e amáveis. LU, p. 149). O terceiro mo-
mento acontece quando ela volta à fazenda,
na esperança
de en-
contrar algum
tipo
de
felicidade jamais
abarcada
anteriormente.
No entanto, quando retorna, é atropelada, enmntrando em vez
disso a morte.
De fato, quase todas as obras de Lispector são basicamente a
história
de
alguém em busca
de
algo. Uma
busca
interior, exis-
tencial.
Em
O lustre essa
procura
cobre-se
de
apatia, uma
vez
que
a personagem não assume controle sobre a realidade. Ela
sente a
náusea-
Sentia
uma
difusa
náusea
nos
nervos
calmos
LU, p. 14) e o desconforto
de
viver, mas não tem força suficien-
te
para
modificar
alguma
coisa. A
sondagem
de
uma
realidade
além de si mesma fica por conta do narrador, que, na terceira
pessoa, comanda a investigação do mundo ao redor.
A palavra náusea ,
tantas
vezes citada no texto, leva a uma
consideração sobre a náusea de Sartre, para que se estabeleça
uma breve comparação. Em La nausée (1938), o
narrador
é An-
toine Roquetin,
um
historiador que se vê
obrigado
a morar, por
três anos,
num
vilarejo, Bouville, para escrever
uma
biografia.
Por
estar solitário,
entediado
e isolado, resolve escrever
um
diá-
rio sobre os incidentes insignificantes
de sua
monótona
vida
co-
tidiana. Por meio da escrita, Roquetin descobre uma forma de
investigar as razões de seu desconforto. O ato de escrever ter-
mina sendo um ato em direção à liberdade. Roquetin descobre
o ato de escrever como aquele
que
liberta o
homem
do sistema
7 4
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que o aprisiona [ ] Desiste de escrever a biografia do marquês
para,
no
espaço livre
da
criação, tentar a
escrita
do indizível .
(Coelho, 1993, p. 181)
Entretanto, se Roquetin pôde encontrar seu lugar
na
escri-
ta
écriture),
onde
ele insere a voz
do
eu apesar
do
desconfor-
to, Virgínia está totalmente deslocada e não consegue encontrar-
se a si mesma,
nem mesmo em seu mundo interior. Ela é prisio-
neira das palavras que não têm. Como escreve Nadia Gotlib, a
protagonista parece viver sob o signo
da
estranheza
em
seu difí-
cil processo de tornar-se alguém. (Gotlib, 1995, p. 125)
Na verdade Virgínia incorpora o sentimento
de
nostalgia
por
excelência. Esse sentimento, contudo, é paradoxal: em sua
estrutura
interior está o desejo
de
voltar ao paraíso
perdido
- o
passado idealizado - em busca de vínculos partidos. Apesar
disso, sabe que o retorno é impossível. Ela está ao mesmo tempo
aqui e lá, quase
nunca aqui
e lá, presente e ausente ao
mesmo
tempo. O
passado
é feito de algumas lembranças débeis e não
há
futuro pela frente. Trancada
em um
presente nauseante, o
sentimento que Virgínia experimenta é inteiramente nostálgico.
É
importante observar o paradoxo com relação às lembran-
ças
de
Virgínia, que, como o texto diz, são confusas, nebulosas e
um
tanto quanto empoeiradas , ou melhor, elas não afloram
com facilidade à mente da
mulher sem
um grande esforço de
memória. Por outro lado, essas lembranças de longo prazo são
sutilmente
poderosas
e dominadoras, na medida em que Virgí-
nia não consegue viver no presente sem estar vinculada ao pas-
sado,
representado pela infância vivida na Granja Quieta.
3.5.2
Laços desfeitos
Tudo era tão irremediável, e ela vivia tão segregada.
LU, p
19)
Quando
Virgínia volta à Granja Quieta - o passado enterra-
do-
ela
passa
por
uma
experiência similar à
de
um
expatriado
de volta a seu país de origem após
um
longo período de ausên-
cia e que,
por isso,
não
mais encontra
suas
referências anterio-
res. Essa experiência faz surgir
um
forte sentimento de estran-
geiridade
bastante difícil
de
se lidar. O búlgaro Tzvetan Todo-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 75
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rov analisa em
homme
dépaysé uma condição similar. Reflete
sobre sua
própria
situação de viver como estrangeiro em duas
realidades culturais diferentes, dividido
em
duas
personagens
le
personnage
bulgaire e le personnage français , como ele
mesmo
coloca (Todorov, 1996, p. 17).
Todorov explica
que
a circunstância
de retornar
à pátria pa
ra
seu
trabalho subitamente fez emergir o sentimento de estar
dividido
em
uma
dupla espécie de existência e de pertença. Ele
se viu incapaz de decidir sobre que língua
usar
e que tipo de
discurso deveria
produzir uma
vez de volta a Sófia.
Minha
dupla
pertença
produzia
tão-somente
um
resultado: aos
meus próprios olhos, ela imprimia autenticidade a cada
um
de
meus dois discursos, pois
nenhum
dos dois poderia corresponder
senão
à metade
de
meu
ser; ou
bem eu
era duplo.
Uma
vez mais,
trancava-me
no
silêncio opressivo. [
..
] A fala dupla revelava-se
mais
uma
vez impossível, e encontrava-me
eu
dividido
:: duas
metades, as
duas
igualmente irreais. [
..
]
Se
perco
meu
lugar de
enunciação, não posso mais falar. Não falo, logo
não
existo. (Todo-
rov, 1996, p. 18
Inserido
por
longo
tempo
em uma
outra
realidade lingüísti-
ca, Todorov fala da dificuldade em superar o repentino movi-
mento de retorno às suas origens - A lição desse retorno ao pa-
ís natal, dezoito anos após a partida, impôs-se
pouco
a pouco a
mim. A coexistência de duas vozes torna-se uma ameaça, con-
duzindo
à esquizofrenia social . (Todorov, 1996, p.
20
Do mesmo modo, este é um dos dilemas cruciais na vida de
Virgínia,
uma
vez que ela
quer
voltar para Granja Quieta após a
experiência
na
cidade
grande
(que é
de
fato
um
outro país ),
mas
descobre que é difícil viver de
novo
em uma realidade que
não mais lhe pertence. A linguagem é
parte do
problema. En-
quanto
o discurso predominante
na
fazenda é o silêncio, a lin-
guagem da cidade (considerando-se
que
todo grupo social tem
seu próprio código lingüístico) também está fora de seu alcance.
Aqueles com quem ela
pouco
tenta interagir
vêem
Virgínia co-
mo uma pessoa periférica e
relativamente
desinteressante. O
episódio
do
jantar entre meio estranhos é
um
momento
im-
portante e ilustrativo dessa inadequação da protagonista ao
mundo a seu redor: Ela não precisava falar muito, fora convi-
dada apenas
em
razão de Vicente. Ninguém esperava de seu
7
Cláudia Nina
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corpo senão que ele comesse discretamente
usando
o guarda-
napo
, sorrindo . LU, p. 105)
O drama
de
Virgínia é ainda mais
agudo
que o
de
Todorov.
O escritor búlgaro encontrou, de fato, seu lugar em Paris, ao
passo
que
Virgínia
não
consegue encontrar
sua própria
identi-
dade na cidade grande ou em quaisquer outras paragens. A me-
táfora
do
lugar é, mais
uma
vez, relevante.
Na
fazenda, os apo-
sentos são vazios, pálidos , enquanto o próprio quarto
de
Vir-
gínia é frio, leve e quadrado, possuía apenas
uma
cama LU,
p. 13). As janelas não têm cortinas, um silêncio feito
de
murmú-
rios reveste tudo.
Na
cidade, locais poeirentos, escuros, tristes e
estranhos por onde Virgínia movimenta-se com vagar são recor-
rentes. Alguns lugares são até mesmo claustrofóbicos, feitos
de
quartos com cheiro
de
túnel
LU,
p. 172), e alguns outros estão
em ruínas, quase desabando. LU, p. 144)
Desta forma, Virgínia não é
de
lugar nenhum - nem no es-
paço
nem no
tempo. Ela vive como uma expatriada perdida,
deslocada, perambulando, ruminando em vagas recordações,
já que as cenas esparsas do passado são recuperadas apenas
com muito esforço para reconstruir a infância esquecida com a
ajuda da memória do lugar, morar
na
Granja onde tivera os seus
maiores instantes, [ ..] reconquistar, reconquistar, reconquis-
tar .
LU,
p. 311)
Como observa Earl Fitz, Virgínia movimenta-se em um
ambiente urbano estéril e alienígena (Fitz, 1985, p. 73 e jamais
fica satisfeita, não importa aonde vá - Se as personagens que
ela encontra nesses lugares têm existências tranqüilas, é a tran-
qüilidade
da
solidão,
do
isolamento e
da
estagnação; e, se as
pessoas
da
cidade possuem dinamismo, é
do
tipo estéril, desen-
raizado e sem porto (Fitz, 1985, p. 73 .
A situação que Virgínia experimenta é
bem
representativa
do assim chamado mundo moderno, especialmente
das
cidades
grandes,
onde
todos parecem ser estranhos para todos, e tam-
bém
de um
mundo onde
o fluxo de pessoas
que
vivem como
expatriadas é cada vez mais intenso. Contudo, não é só isso. Em
Mother, displacement
and
language , Bella Brodzki examina o
conceito de estranheza e deslocamento mediante
uma
outra
perspectiva: a
abordagem
feminista. (Brodzki, 1988, p. 157)
Analisando o exercício de escrever autobiografias, ela afir-
ma
que
o ato
de
apropriar-se por meio das palavras vem, de
longa data, sendo
um
privilégio dos homens. E ir além
da
do-
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 77
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rninância falocêntrica significa ser capaz
de
fazer diferença e as-
sumir
o poder
da
transgressão.
Os modernistas (em geral) e os pós-modernistas (em particular)
empregaram a metáfora do deslocamento
para
referir-se à condi-
ção
humana
(em geral) e à prática diacrítica e
vanguardista
(em
particular); as teorias feministas devem empurrar a prática diacrí-
tica um passo à frente e deslocar continuadamente a mulher co-
mo
metáfora
para
o deslocamento ou despojar o movimento da
energia que a gera e
do
contexto que a molda especificamente.
(Brodzki, 1988, p. 157)
Brodzki aproxima o deslocamento feminista
da
situação de
orfandade. No ensaio acima mencionado, baseado em Childhood
de Nathalie Serraute e em Patterns o
childhood de
Christa Wolf,
ela avalia a relação entre deslocamento e linguagem. O estudo
sugere que a briga interna da protagonista nas obras investiga-
das
faz-se representar por sua inabilidade lingüística,
ou
me-
lhor, pelas instabilidade e desorientação relacionadas à orfan-
dade, em particular a falta
da
mãe. Corno escreve Brodzki: En-
quanto primeiro Outro significativo
da
criança, a mãe engendra
subjetivamente através
da
linguagem; ela é a primeira fonte
de
fala e de amor [ ] Ficar exilado do continente materno é ficar
para sempre sujeito às regras de urna economia estrangeira
para
a qual o sujeito também serve
de
canal
de
troca . (Brodzki, 1988,
p 157)
Sendo assim, mulheres órfãs têm de
superar
a solidão e a
perda a fim
de
recuperar esse primeiro objeto - a mãe - que se
encontra ausente. De
modo
semelhante, até
um
certo ponto, a
escassez
de
palavras
de
Virgínia está
de algum
modo
associada
a um senso
de
deslocamento, bem corno à falta
de
laços mais
coesos
de
família. Virgínia sente-se muito separada de suas ori-
gens,
não
só quando ela de fato deixa
sua
casa,
mas
também
na
Granja Quieta,
onde
não há conexão emocional ou verbal entre
os
membros
da família.
Virgínia - sem qualquer ligação familiar forte - é segregada
corno urna órfã. O
pai
é visto corno um homem calado, autoritá-
rio e ignorado,
enquanto
a mãe é descrita corno: Preguiçosa,
cansada e vaga LU, p. 19). Os únicos momentos que poderiam
ter suscitado urna interação são as refeições diárias à mesa, mas
essa é urna arena silenciosa, onde hostilidade e indiferença pre-
valecem. Não conseguindo estabelecer novas ligações sólidas e
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Cláudia Nina
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incapaz de empreender a busca por suas origens, Virgínia en-
contra-se para sempre deslocada. A palavra fluida, que literal-
mente significa líquida, fluente, corrente, está implícita no texto
de
modo
negativo, para descrever a incapacidade de a protago-
nista assumir o controle
de
sua
vida,
de
ter o
comando
ativo
de
sua
biografia. Como diz o texto: As coisas fugiam dela brilhan-
do a distância . LU, p. 111)
3.5.3
A voz do outro
A lembrança chegava desmaiada e fria
da
história
que
eu
poderia ter contado, uma história
à
semelhança de
minha
vida, quero dizer,
sem
a coragem de terminar
ou a força
para
continuar. (Beckett, The end p. 93)
As recordações estão matando, por isso você não po-
de
pensar
em certas coisas. [ . .] (Beckett, The expelled
p. 193)
De
modo
algum
O
lustre
pode
ser lido como
um
romance
autobiográfico. Ainda assim, ele contém, de fato, o projeto de
uma escritura de vida: a biografia de Virgínia. Um narrador dis-
tante e desapegado (o biógrafo) conta a história da mulher na
terceira pessoa. Ele
ou
ela
a
voz do/a
narrador/a
permanece
não identificada) traça a jornada existencial da personagem em
ordem
cronológica, seguindo
sua
trajetória de deslocamento,
enquanto a protagonista é incapaz de articular seus próprios
pensamentos, e
suas
frágeis idéias
podem
facilmente desfazer-se
num sopro. Frases como Virgínia
pensava
sem palavras
LU,
p. 47) são recorrentes ao longo do romance.
Incapaz
de obter o
comando
da subjetividade, a protagonis-
ta não consegue articular seu desejo. Desejar significa querer
muito
ter algo
ou
fazer algo, inclusive o desejo
de
falar e intera-
gir verbalmente. Virgínia não tem
nada
disso. Uma comparação
com Macabéa,
de
hora da
estrela
é inevitável. Macabéa tam-
bém
é calada e
não
possui
o talento,
ou
mesmo
a coragem,
de
inventar a vida
ou
a linguagem.
É uma
mulher analfabeta, po-
bre e primitiva. Palavras e pensamentos não fazem parte de seu
mundo
interior - vazio e vago
-
e
sua
história tem um fim trá-
gico, assim como acontece à personagem de O lustre. Apesar
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disso, há
um
certo mistério no vazio de Virgínia. A
sua
existên-
cia é cercada pelo enigma do relacionamento com Daniel e pelo
tempo em que morava na Granja Quieta.
Em O lustre não há espaço para
um
eu . Em contraste
com
A
hora
da
estrela
o
narrador
não
vem para
o primeiro plano, não
se mostra na primeira pessoa. Presença anônima, tem a voz
da
autoridade e descreve
de modo
autoconsciente a existência soli-
tária
da
protagonista sem se envolver emocionalmente em seu
drama. E o
narrador
que lê a mente
de
Virgínia a distância.
Mas que tipo
de
distância é essa? Existe
uma
variação de distân-
cias entre narradores e personagens. A distância pode ser moral,
temporal ou intelectual, não importando o quão dramatizado
(ou desdramatizado ) seja o narrador. (Booth, 1996, p. 150)
O uso
da
terceira pessoa em O lustre pode erroneamente
conduzir os leitores a pensar
que
há
uma
distância física entre
narrador
e personagens. Entretanto, não é esse o caso. Princi-
palmente porque o narrador entra na mente da protagonista de
modo quase sufocante. O
narrador
também age como
um
foca-
lizador , registrando imagens em
dose
up das cenas. Há
inúme-
ras frases que revelam a proximidade física do narrador-
focalizador
com
as personagens, a ponto de ele
poder
observar
detalhes como o sangue correndo
em
suas veias, o colorido
de
suas faces, o movimento
de
suas pálpebras.
Na
verdade, há dois elementos diferentes: o
narrador, que
pertence à instância do escrever, explica
por que
certas coisas
acontecem e fornece
uma
interpretação consistente dos aconte-
cimentos, e o focalizador , que conduz os leitores àquilo que
eles
devem
ver. Também é um espectador do
mundo
narrado
quem seleciona as ações e escolhe o melhor ângulo por onde
apresentá-las (Bal, 1977, p. 32). Seja de que modo for, essas
duas entidades atuam em uníssono
e,
como em O
lustre
traba-
lham de
maneira invisível e anônima.
Assim, se não é física, a distância entre
narrador
e persona-
gens é, certamente, intelectual. Virgínia é descrita como alguém
que não tem a capacidade de pensar
usando
palavras LU, p.
174).
Nos
raros
momentos
em
que
um
frágil eu aparece, ele
está imerso, e quase imperceptível, no fluxo da narração. As pa-
lavras do texto o excesso
de
palavras) só poderiam ter vindo
da
única
mente
capaz de pensar e expressar pensamentos fazendo
uso das palavras- o narrador.
80 láudia Nina
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Enquanto esse narrador permanece não identificado e inte-
lectualmente distante, também
há
uma enorme falta de comuni-
cabilidade entre as personagens. Os poucos diálogos são como
balões vazios - O silêncio crescia entre ambos como um balão
vazio
que
se enchesse cada vez mais perigosamente
de ar
e es-
tranhamente não
poderia ser interrompido, cada
palavra
esbo-
çada morria vaga diante
de
sua força LU, p. 166). Vivendo
num mundo
de
estranhos, elas não parecem falar a mesma lín-
gua. Na Granja Quieta, por exemplo, todos vivem dentro
de
seu
próprio mundo pequeno e sombrio, e o silêncio misteriosamen-
te cerca a mansão, como mencionei anteriormente- Grande si-
lêncio envolvia a casa, sussurrava pelos cantos como num dia
de
domingo .
LU,
p. 80
Imersos nessa atmosfera obscura, assemelham-se a sombras,
mais do
que
a personagens vestidas
em
contornos formais. Da-
niel, o irmão, por exemplo, por quem Virgínia nutre sentimen-
tos ambíguos
de amor
e medo, é bastante enigmático. Ele é o
fundador
da
Sociedade das Sombras, que se baseia no mote so-
lidão e verdade . A idéia
de
se criar Sociedade aparece
em
fun-
ção
do
impacto
da
cena
que
eles
testemunham
no
início
do
ro-
mance -
um
afogamento não identificado
no
rio.
A Sociedade é uma entidade abstrata com
mandamentos
e
regras absurdos. Seus objetivos são soturnos e indefinidos: pro-
curar
por tudo
que
possa amedrontar,
ou
melhor,
por
algo que
seja capaz
de
inspirar o sentimento
de
solidão, algo como passar
muito tempo em profundo isolamento
no
sótão ou explorando a
mata ao redor do casarão até não conseguir mais suportar ore-
torno solitário. E isso era como se ambos estivessem sós
no
mundo. Como era assustador e secreto pertencer à Sociedade
das Sombras . LU, p. 66
A avó é o símbolo vivo dessa quietude: ela não fala, não sor-
r e quase não olha para nada como se ali estivesse tão-somente
para viver . O
lustre-
também uma personagem calada-
preso ao teto
da
mansão, funciona como se fosse a lente de uma
câmera, rodando
um
filme sombrio (uma espécie
de
focaliza-
dor
dentro
da
história). Parece
capturar
os mínimos e
mudos
movimentos
das
personagens,
derramando
sobre eles pálidos
reflexos de luz e sombra. Comparado com uma aranha gigante,
caçando a sala
de
jantar vazia
em sua
existência
de
gelo
LU,
p. 14), o lustre é o emblema da velha e enigmática casa. Simboli-
camente, representa a idéia
do passado e
de
todas as histórias -
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 8
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e segredos - possíveis e nele contidos. Como o farol no romance
de Woolf, o lustre na sala de jantar do casarão, como salienta
Earl Fitz, funciona como
um motif
estrutural que amarra os la-
ços dos temas e conflitos centrais
de
todo o romance . (Fitz,
1985)
Alguns dos padrões tradicionais e canônicos de
um
roman-
ce estão mais ou menos presentes em O lustre. Há um enredo,
uma história cronológica, um espaço delimitado, uma perspec-
tiva
dominante
e personagens. Também existe uma trajetória
circular centrada num ponto: o centro narrativo está bem defi-
nido pelo casarão da Granja Quieta. A protagonista tem cons-
ciência de que sua existência está ancorada a
um
centro de co-
mando:
Como buscar
no
centro
das
coisas a alegria? Por mais
que nalguma vez remota e quase inventada a tivesse encontrado
e vivido
nesse próprio
centro (LU, p. 245, grifo meu).
É
ao
redor
dele que circunavega Virgínia, é a partir dele
que
ela dá início à
sua jornada, é para ele que ela retoma ao fim, na esperança de
recuperar o encantamento, ou qualquer coisa
que
o valha, de
sua infância perdida. As margens do início do romance o pas-
sado perdido e seu desfecho o futuro impossível) estão entre-
laçados na medida
em
que O
lustr
abre com
um
afogamento e
termina com
o atropelamento de Virgínia.
A idéia de
um
mundo narrativo denso, fechado em suas ex-
tremidades pela morte, é paradoxal em relação
à
fluidez das
personagens imersas em inconsistência psicológica. O derra-
mamento das palavras também está em flagrante contraste com
o silêncio
que
envolve os lugares e
com
a resposta
das
persona-
gens
à
vida. Por todas essas características particulares, O
lustr
não
pode ser analisado
apenas
em comparação com o
que
foi
publicado antes ou depois. De qualquer modo, é inegável que
os dois romances que se seguiram dividem com este
segundo
muitos de seus traços essenciais. Eles abrangem
em
seus mun-
dos narrativos a mesma falta de interação entre personagens, o
mesmo escurecimento mudo e pesado das cenas e, acima de tu-
do, o
mesmo
tipo de restrição exílica
que amarra
as existências
de
suas
personagens a
um
mundo
narrativo paralisante.
82
láudia Nina
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3.6
Teatro de pantomima cidade sitiada
Depois de tudo, é bem aí que estou, refugiado
em
um
deserto
de
pedras,
de
brumas
e
de
águas podres, pro-
feta vazio de tempos medíocres. [ ..] Ah Meu amigo,
o senhor sabe o que é a criatura solitária, errante nas
grandes cidades? (Albert Camus, La
chute
p. 123)
O terceiro romance de Clarice Lispector,
A
cidade
sitiada
pu
blicado em 1949, foi inteiramente escrito
em
Berna, Suíça. É
um
dos lados do triângulo que representa o que defino como as nar-
rativas do silêncio e
de
certo modo, é o mais "silenciado" deles.
Esse
pequeno
livro, segtmdo a própria autora, fora-lhe o
mais difícil
de
escrever - "Eu estava
em
busca
de
algo, e
não
ha-
via ninguém para
me
dizer o que era" (Varin, 1987, p. 99), con-
fessou
em
uma entrevista. De fato, Clarice era
muito
grata ao
romance, pois o ato de escrevê-lo manteve-a ocupada nos mo-
nótonos dias de Berna. (DM, p. 286)
Ambientada na década
de
20
a história desenha a trajetória
circular de Lucrécia Neves
desde
os anos em
que
vivia num su-
búrbio
chamado
São Geraldo até o momento
em que
se
muda
para a metrópole
e
depois, retoma a São Geraldo. No começo,
Lucrécia está esperando por alguém um marido capaz
de
ti-
rá-la
da
vila e levá-la para as surpresas da grande cidade. No
fim, após a
morte do
marido, a
mulher retoma
ao subúrbio, en-
tão significativamente modernizado. Entretanto, no "novo" São
Geraldo, ela permanece
sendo
a mesma estrangeira de sempre.
Incapaz de se encaixar em lugar algum.
Apesar
da
evolução íntima da personagem ao longo
da
his-
tória, e do progresso do próprio subúrbio, Lucrécia não conse-
gue
mudar
sua atitude passiva, que é de permanente expectati-
va. Ela decide sair dali, a exemplo
de
muitos outros
que também
haviam saído, esvaziando o subúrbio, cada vez mais desertado,
mas seus movimentos são inevitavelmente vinculados à possibi-
lidade, embora vaga e sem alegria. de encontrar alguém talvez
um
outro
marido
- capaz
de
quebrar novamente a monotonia
de seus dias.
A simplicidade
da
história reflete-se na linearidade da nar-
rativa, que em nenhum momento oferece o mesmo dinamismo
de Perto
do coração selvagem
ou
sequer o
derramamen
to
de
pala
vras que é a marca
de
O lustre O romance, muito conciso -
A palavra usurpada exí lio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
83
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aproximadamente
160
páginas na versão original em português
- dá a impressão de que o fluxo da escrita é um tanto seco.
Clarice Lispector experimenta o exercício de escrever menos,
usando
frases mais curtas e menos poéticas. O contraste com os
romances anteriores é realmente marcante, e isso explica,
em
parte,
por
que alguns críticos consideraram cidade sitiada um
livro tão singular. A técnica aplicada ao romance não era típica
do estilo
da
autora, especialmente no que toca à aridez da nar-
rativa, na verdade a característica mais flagrante
da
obra.
Desde sua primeira edição, os críticos brasileiros receberam
o romance com
um
certo tom
de
descontentamento. Sergio Mil-
liet,
por
exemplo, que fora um dos primeiros a aplaudir a estréia
de
Clarice Lispector, foi
também
um
dos primeiros a tecer co-
mentários negativos sobre cidade
sitiada
logo após o lança-
mento. Milliet achou que cidade sitiada não era um romance
agradável, e considerou-o um romance estranho . Todavia,
presumiu que a autora não perdera a espontaneidade e talento
poéticos, e sugeriu que talvez fosse melhor Clarice escrever po-
emas em vez de romances (Milliet, 1981, p. 33). Luiz Costa Lima
também reagiu contra a obra,
argumentando
que a autora esta-
va atribuindo grandes
idéias e abstrações a personagens insigni-
ficantes demais
para
lidar com elas. Costa Lima sugeriu que a
então romancista seria talvez melhor contista (Lima, 1970, p.
449).
Por outro lado, alguns críticos consideraram cidade
sitiada
um passo à frente na carreira
da
autora. Um deles foi Assis Bra-
sil,
que
considerou a obra muito bem realizada
em
termos de es-
trutura (Brasil, 1969, p. 64 . Seus artigos sobre Clarice Lispector
foram publicados no
Jornal
do
Brasil
em uma
série intitulada O
mundo subjetivo de Clarice Lispector , em 1960. Ele salienta
nessa série
sua
impressão positiva do estilo poético da autora e
vê cidade sitiada como
um
ponto
de
virada, devido às suas
qualidades peculiares que,
de
acordo com ele, seriam responsá-
veis pelo posterior desenvolvimento de
paixão
segundo
G.H.
A partir
de
1965, as abordagens filosóficas de Benedito
Nu
nes aos textos de Clarice Lispector exploraram a erudição
da
au-
tora
em
um
nível mais existencial.
Nunes
analisa
cidade
sitiada
em seus traços alegóricos, encontrando no romance
uma
corres-
pondência
direta entre o comportamento da protagonista e a
paisagem em
um
processo de representação e pantomima: Ma-
quinais nos sentimentos e cercados de coisas rígidas, os perso-
8
Cláudia Nina
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nagens desse
romance
aparecem
como fantoches numa atmosfe-
ra de
sonho. A
pantomima
substitui os gestos, a
pose
suprime
a
atitude, a caricatura o retrato. (Nunes, 1974, p. 20)
Olga
de Sá
apresenta um outro ponto
de vista interessante,
paralelo
à leitura
de
Nunes.
Ela ressalta o aspecto sitiado
da
narrativa:
Existe uma história,
uma
trama, e,
dentro
dela, São
Geraldo
é a cidade sitiada pelo progresso. Mas há
um subtexto
latente, no
qual
a
cidade
sitiada é o
próprio
texto, a
própria écri-
ture
de Clarice Lispector (Sá, 1983a, p. 51). Esse traço é verda-
deiramente
uma das características
mais
fascinantes do
roman-
ce,
que
se analisa
no presente trabalho
sob a
perspectiva doses-
critos
do exílio.
Mais
recentemente, a
obra de
Regina Pontieri (1999),
Clarice
Lispector:
uma
poética do olhar contém uma análise
competente
e
abrangente
de
A
cidade
sitiada.
Ela enfoca o exercício de espiar
e
olhar
para a realidade como a principal
atividade
no
roman-
ce,
incluindo um estudo
precioso acerca do espaço. O
trabalho
de Regina Pontieri é
uma
fonte
importante
de informações, um
guia
necessário
para um entendimento
da
obra
de Clarice e,
particularmente, no que toca a esse curioso terceiro romance.
Como
O
lustre
cidade
sitiada
ainda não
teve traduções,
pe-
lo
menos não tantas como
merecia.
Além
disso, a
maioria dos
críticos parece não posicionar o
romance
no
mesmo ranking
das
demais
obras,
furtando-se
de analisar o
romance em maior pro-
fundidade ou em maiores detalhes. De fato, de todas as obras de
Clarice Lispector, as
mais lidas
e as
mais estudadas continuam
sendo as antologias de contos, o romance Perto
do
coração selva-
gem ou mesmo
as obras tardias:
Agua viva
e
A hora
da
estrela.
De qualquer
modo, isso não significa
que
A
cidade
sitiada
te-
nha pouco
a
oferecer. Na verdade,
é
um romance
bastante
enigmático, cujas melhores características estão em perfeita
harmonia
com
o
tema aqui proposto, estando
em concordância
com
o perfil
das narrativas do silêncio.
Até certo
ponto, dentre
to-
das as
obras de Clarice Lispector, esse romance é o
que melhor
moldura
o retrato do exilado.
Com
certeza,
não
é a
mais
filo-
sófica, na medida em
que
A
maçã no
escuro é a mais complexa
de
todas as que pertencem
a esse
grupo, mas
cidade
sitiada
apre-
senta muitos
itens
importantes
relacionados
ao
tema do exílio,
que merecem uma cuidadosa
leitura.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 85
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3.6.1
Em estado de sítio: personagens narrativa espaço e tempo
E se
um
pássaro enlouquecido cantasse? Esperança
inútil. O canto
apenas
atravessaria como
uma
leve
flauta o silêncio.
OEN,
p. 96)
Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros. (CS,
p.
62)
Dividida
em 12
capítulos, cid de siti d traz
um
mundo
narrativo bem organizado. Parece haver uma busca por ordem,
implícita no
modo
como tudo está exposto aos olhos
dos
leitores
desde o início. O romance abre com o relógio da igreja: são 11
horas.
Primeiro quadro.
A
seguir
mostra
o
espaço onde
a
ação se realiza: a praça, o centro do subúrbio onde o povo está
reunido para
uma
festividade local. Segundo quadro. A seguir,
os protagonistas Felipe e Lucrécia, no meio do cenário festivo.
Embora não haja uma cronologia marcando o tempo exter-
no, nenhum elemento está fora
de
ordem, e todos parecem estar
bem localizados dentro de
um
território narrativo minuciosa-
mente descrito. O último
quadro de
São Geraldo aparece em
contraste com o primeiro, pois mostra a cidade deserta, trans-
formada pelo progresso, onde
uns
poucos e últimos habitantes
estão morando solitários (CS, p. 169). Assim, um álbum
de
re-
tratos forma a estrutura do romance, que não é
animado por
nenhum grande movimento
das
personagens, que por sua vez
assemelham-se mais a estátuas ou a objetos.
Em
uma ordem tão quieta, a narrativa não oferece nenhuma
surpresa,
nenhuma
epifania e
nenhum
fluxo
de
palavras ver-
tendo
como água. Não é
um
mtmdo multidimensional com
personagens crescendo e se transformando gradualmente em
todas as direções. Inserida nesse universo, a personalidade
de
Lucrécia reflete o tom da narrativa: ela é incapaz de epifanias,
sejam essas visuais
ou
verbais. Ela interage com a vida obser-
vando a
realidade-
sem tocá-la nem senti-la: E não havia
outro
modo de conhecer o
subúrbio;
S.
Geraldo era
explorável ape-
nas pelo olhar .
(CS,
p. 20). A cena paralisada é perfeita. São Ge-
raldo é como
uma
paisagem em
uma
fotografia, para sempre
imutável: Não havia erro possível - tudo o que existia era per-
feito-
as coisas só começavam a existir quando perfeitas
(CS,
p. 87). Realmente, o mundo
narrado
apresenta uma situação ge-
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ral de paralisia, urna espécie de "estado de sítio". (Pontieri, 1999,
p. 150)
Numa
cidade de estátuas, onde as pessoas dificilmente
agem - e interagern - Lucrécia está privada de
um
discurso bem
articulado- sempre de costas para
alguma
coisa" CS, p. 30), a
moça parecia estar entregue ao próprio rumor sem linguagem"
CS, 30). Ao contrário de Joana, ela não tem "as futilidades da
imaginação" CS, p. 84). O olhar de Lucrécia não transcende na-
da
e tampouco subverte qualquer conceito. Ela é tão-somente
alguém olhando, em eterna imobilização, embora de algum
modo
alimente a ilusão
de
ser capaz de modificar a realidade
apenas lançando um olhar sobre ela, em vez de manipulando
ou
criando
alguma
coisa.
Executando um exercício de "pantomima", corno fica implí-
cito no texto CS, p. 68), Lucrécia gasta grande parte de seu
tempo
imitando os objetos à sua volta - a flor, a estátua e a ca-
deira
-,
incapaz de ir além desse nível contemplativo de comu-
nicação com o
mundo.
Em vários momentos do texto, os verbos associados a "ver",
"olhar", "mirar", "contemplar"
são substituídos pelo verbo "es-
piar". Isso é
muito
relevante
na medida
em
que
caracteriza urna
certa maneira "clandestina"
de
olhar a realidade,
observando
os
fatos a distância, um pouco misteriosamente, sem se envolver
com eles. "Espiando. Porque alguma coisa
não
existiria senão
sob intensa atenção [ ..]
Eram
coisas intransforrnáveis " CS, p.
89). Essa "intensa atenção", entretanto, não significa nada mais
que
urna atividade de lançar o olhar sobre as coisas e observá-
las passivamente. É dessa maneira que ela espera, muito vaga-
mente, interferir
na
vida
de
São Geraldo, corno se o mero exercí-
cio de espiar
pudesse
alterar o movimento dos objetos
ou
o des-
tino
das
pessoas.
Vivendo
à
margem das palavras, ela ensaia debilmente o
processo de norninação. "Faltava a Lucrécia o
nome
das coisas"
CS, p. 41). De certo modo, sua incapacidade de ir além daquilo
que se vê pode ser lida corno urna espécie de "anti-epifania".
Comparando esse vazio de inspiração e criatividade com Perto
do
coração
selvagem
Olga
de
Sá escreve:
São Geraldo é
seu
texto como os cavalos presos às carroças; é um
morro
de pasto, onde se
perde
o
nome
das coisas e se torna impos-
sível designá-las, apontá-las
com
o dedo.
Um
texto,
em que
os
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 8
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símbolos da escritura clariceana são caricaturados e até os cavalos,
plenos
de
vida em Perto do
coração selvagem
só
enxergam de
lado,
de
viés. (Sá, 1983a, p. 58)
Nesse mundo pictórico
de
silêncio, mecanicamente marcado
pelo relógio
badalando
as horas, Lucrécia é
uma mulher
sitia-
da . Ela
não
nos é apresentada como o sujeito de
sua
própria
história, mas,
em
vez disso, como o objeto narrado. Mal escuta-
mos
sua voz. - [
..
] se precisasse urgentemente chamar,
não
poderia; perdera enfim o dom da fala
CS,
p. 68).
Marcada
por
uma extrema quietude, Lucrécia tem poucas chances de escapar
dessa
realidade muda. Como escreve Maria Terezinha Martins,
a atitude no narrador
em
relação às personagens deve ser exa-
minada
com
atenção,
porque
ele funciona como o
dono
da
pa-
lavra, destruindo ,
por
assim dizer, consciências e vozes indi-
viduais. A voz narrativa nutre
uma
certa benevolência por
suas
personagens;
trata-as como crianças que não
dominam
ainda a linguagem (Martins,
1988,
p.
80).
Maria Terezinha ob-
serva o aspecto de experimentação desse romance, em termos
de procedimento narrativo, e ressalta que uma atitude de total
controle e vigilância semelhante também pode ser observada
em
O
lustre
em
que
as personagens
não
são o sujeito
de suas
próprias
histórias.
Dominada pelo narrador, Lucrécia é uma estrangeira no
mundo onde habita e com o qual não interage - Seu medo era
o de
ultrapassar
o
que
via CS, p. 89)- como
uma
exilada, cer-
cada de muros por todos os lados. O narrador, por sua vez,
também
representa o papel do estrangeiro: o mundo narrado
parece estranho ao seu olhar. Como observa Regina Pontieri, o
experimento
de
estranhamento
é incorporado pelo
narrador
já
na
base do processo ficcional, e essa é uma das razões
por
que o
mundo construído
também
apresenta-se estranho. (Pontieri,
1999, p. 170)
Enquanto
em O lustre existe uma frágil possibilidade de re-
cordação na tentativa de lançar Virgínia de volta a seu tempo de
infância,
em A
cidade
sitiada
pelo contrário, as personagens estão
presas
num
eterno presente: tempo e espaço estão em perfeita
harmonia
com
uma narrativa
sob cerco. O
ar
sufoca a protago-
nista
em
lugares vazios e para sempre fechados. Lucrécia sente-
se
um
tanto
quanto
engasgada nesse
mundo
onde
tudo
se fe-
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chava sem portas, ela
própria
bloqueada
por
súbita resistência .
CS, p
116
E interessante notar que não é só no subúrbio que Lucrécia
sente-se inadequada. Na
grande
cidade, o sentimento
de
deslo-
camento a
persegue do mesmo
modo.
Na
cidade,
agregada
e
desconhecida, ela é parte quase invisível de urna multidão
sem
nome . CS, p. 108)
3.6.2
Silêncio de estátuas
Desse silêncio sem lembrança de palavras. (OEN, p.
94)
Na província sitiada, Lucrécia captura tudo com o olhar,
corno se estivesse organizando um mapa das coisas ao seu re-
dor- afinal, estranhos (estrangeiros) precisam de
um
mapa
para
guiá-los nos lugares. O olhar estrangeiro de Lucrécia sobre are-
alidade
também
é um olhar que isola as coisas. Ela fragmenta o
que
vê
em
mil pedaços, corno se estes fossem
close-ups.
Muitas
descrições enfatizam o procedimento, corno o fazem as expres-
sões pontilhistas ao longo
do
romance: A pia. As panelas. Aja-
nela aberta. A ordem, e a tranqüila, isolada
posição
de cada coisa
sob o seu olhar: nada se esquivava . CS, p.
86-
grifo meu)
Ela recorta o mundo observado
a
fim de conquistá-lo com
maior facilidade?), corno se estivesse observando seus detalhes
pela primeira vez. Duas imagens diferentes juntas estão fora do
escopo
do
olhar
de
Lucrécia, pois ela teria
medo
de
contemplá-
las simultaneamente- Tinha medo de ver, num
mesmo
olhar,
um trem
e um passarinho . CS, p. 56)
Com certeza, essa economia textual não é de esbanjamen-
to verbal
nem
tão pouco traz o fluxo narrativo que claramente
caracteriza a escrita feminina écriture féminine , como já discuti
anteriormente, em relação a Perto
do coração
selvagem.
A
cidade si-
tiada é exatamente o oposto:
uma
narrativa
de
retenção e imobi-
lização,
na
qual não
há
palavra
desperdiçada e
nada
a transcen-
der. Diferentemente do
primeiro
romance
de
Clarice Lispector,
que pode ser visto como um
Bildungsroman, A
cidade
sitiada
de-
senvolve-se
na
direção oposta:
em
vez de
um mundo sempre
em movimento (tempo, espaço, narrativa e personagens), há
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 89
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uma paralisia geral,
representada pela imagem
de
uma
está-
tua
no
praça
central e
pelos
objetos
de dentro
da
casa.
A interação
das personagens
-
no subúrbio
ou
na cidade
- é
parte desse marasmo.
Até
mesmo
a
mãe
viúva, Ana, é
uma pre-
sença distante. Elas
mal
se falam, pois Lucrécia
não
tem
vontade
de
quebrar
o silêncio
que envolve
a casa, silêncio esse
marcado
por
um
forte sentimento de ausência (morte em vida) e
uma
profunda
tristeza-
mamãe,
como
a
nossa vida
é triste " (CS,
p. 58) - e uma nostalgia
por
um tipo de realidade que
poderia
ser
diversa
se a situação fosse outra: "Talvez
pensasse
de
como
seria burlesca a vida de
ambas
se elas se falassem? E
de
como S
Geraldo
se
destruiria
se,
em vez
de espiá-lo
mantendo-o
fora de
alcance
da
voz-
alguém
falasse enfim". (CS, p. 59)
As
conversas
são vazias,
portanto. Sempre que Ana
tenta
aproximar-se
da filha, Lucrécia
desviava
os olhos para o teto,
grosseira" (CS, p. 54). Os
poucos
diálogos e a falta de
rr
.vnólo-
gos
interiores
abrem uma enorme lacuna no
texto que se
preen-
che de
nada.
As únicas coisas que fazem volume nessa
realidade
são
a mobília e as
poucas peças
decorativas
espalhadas pela
ca-
sa,
minuciosamente observadas
por
Lucrécia.
O silêncio
merece
ser
analisado
em detalhe. Ele representa
não só
o
que
esconde,
mas também
o
que
está implícito
no
vá-
cuo. Com referência ao
uso
da elipse como
uma
omissão obser-
vada
-
uma lacuna no meio do
texto -,
Marilyn
French analisa
algumas das obras
de
Joyce,
nas
quais o autor faz
uso
desse arti-
fício, chamando a atenção
dos
leitores
para
o que está ausente.
Em
Dubliners por exemplo, "The sisters"
mostra um
mundo
onde as
pessoas não terminam suas
frases. As declarações in-
completas, escreve French, indicam o que não podia ser pro-
nunciado decentemente em Dublin naquela
época, em geral
coisas relacionados com sexo. French ressalta que o
narrador,
um
adolescente
que
está
recém descobrindo
a sexualidade,
usa
do
silêncio
para
tecer "juntos o
que não
é
dito
com
o
que não
é
dizível a fim de criar
uma
tapeçaria tingida de
vagos
e ameaça-
dores
indícios
de uma maldade
exótica e erótica". (French, 1988,
p.
42
Em A cidade sitiada
fragmentos
de pensamento
abrem
um
bom número de
quebras
no texto,
algumas
vezes
assinaladas
por
reticências. Parece
que
as
palavras vão
se escurecendo no
meio do caminho,
perdendo fôlego, ou
que
a
voz
fica cansada
demais para
continuar.
Muitos
exemplos,
em todo
o romance,
90 Cláudia Nina
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mostram
que
há algo faltando na frase. Os leitores ficam espe-
rando
pela
continuação, que
não
aparece. Já
sem tempo
a moça
procurava porque
mesmo de
noite S. Geraldo ... (CS, p. 76);
Mas
não, nada
fora dito
.. CS,
p. 67);
Com
o prato na mão,
seu instrumento de
trabalho, gostaria
de
exprimir
talvez à mãe,
por exemplo,
como
sua filha estava .. estava .. CS, p. 84)
As conversas quase
nunca
chegam
a uma conclusão, e esse
fracasso
termina
sendo um elemento essencial
no
fio da comu-
nicação.
Há um abismo intransponível
entre as
personagens.
O
silêncio e a pontuação marcam as elipses daquilo que ninguém
ousa- por medo, timidez
ou preguiça- dizer.
Em muitos mo-
mentos, as frases iniciam como se estivessem começando no
meio
de
um
pensamento
e
não
fosse necessário -
ou
talvez nin-
guém
se interesse
m
explicar o todo.
Muitas
coisas
podem
ser
lidas nessas lacunas. Enquanto em
Agua viva
Clarice chama a
atenç8.o
dos
leitores para o
que
está escrito
nas
entrelinhas ,
A
cidade
sitiada
é um exercício constante da prática da leitura
do
silêncio : o fracasso da comunicação.
Frases curtas e vagas descrevem as personagens. Os homens
na
vida
de Lucrécia, por exemplo, podem ser facilmente defini-
dos
por uma
única
frase. Felipe, o
namorado,
é o guerreiro, o
tenente;
Perseu
é
um
lindo rosto heróico
mas irremediavelmen-
te vazio; Mateus, o
marido,
é um intruso, um forasteiro; o dou-
tor Lucas é forte e loquaz (CS, p. 131). É interessante observar
que as
passagens
descritivas
merecem
retratos
mais
ricos
que
as
personagens, como se as coisas fossem mais
importantes
que as
pessoas,
ou melhor,
os objetos
mais importantes que
os sujeitos.
O narrador, por sua vez,
não
sonda a consciência das per-
sonagens,
como acontece em
O
lustre
Na verdade, a
distância
emocional e a falta de comunicação verbal são palavras-chave
para
entendermos
a
maior parte
de
A cidade sitiada que
deixa
implícito o fracasso da subjetividade. Não há espaço para o ego
crescer ou para
que
se estabeleça a
presença
de uma personali-
dade ativa e criativa.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
91
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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3.6.3
Jogo de espelhos
Parecia então, como o próprio subúrbio, animada
por
um
acontecimento
que
não se desencadeava.
(CS,
p.
31}
Na
verdade as coisas novas é que a olhavam. (CS, p.
103}
cid de sitiada é como um jogo
de
espelhos. A primeira
imagem,
em plano
geral, é o subúrbio e todos os minuciosos de-
talhes que constituem a cena inicial - desde a ponta
da
espada
da
estátua
do
guerreiro
na
praça central até as cortinas
de
ferro
que
fecham as lojas. A mesma descrição detalhada é vista no in-
terior
da
casa de Lucrécia. Existe uma correspondência espe-
cular entre as cenas externas e o mundo íntimo
das
perc;ona-
gens. Há também uma espécie de relação simbiótica entre o que
acontece (ou melhor, o
que
não acontece )
na
monotonia da ci-
dade e no domicílio quieto, silencioso, de Lucrécia.
Além disso, um outro reflexo também se faz notar em rela-
ção ao subúrbio e à protagonista. Como ressaltou Benedito
Nu
nes,
no que
se refere ao aspecto alegórico do romance (Nunes,
1974), o subúrbio parece ser mais uma amplificação
da
situação
das personagens que um verdadeiro ambiente social. A cidade é
mera alegoria que reflete (e influencia negativamente) o com-
portamento
da
protagonista. O mesmo silêncio que ecoa nas
ruas reverbera
na
mente
de
Lucrécia e
há
uma consonância per-
feita entre a paupérrima comunicação que assombra a narrativa
e as passagens descritivas, cheias de objetos (não
de
pessoas).
Se o relacionamento
da
protagonista com o mundo dá-se
mediante o ato
de
ver , é coerente que o espaço seja descrito
em todos os seus detalhes. Emoções e pensamentos não são tão
relevantes, e mesmo os sentimentos são descritos materialmen-
te. Tem-se um exemplo disso quando o narrador descreve o tipo
peculiar de alegria de Lucrécia: A alegria
da
moça era assim:
As flores no jarro. Uma era vermelha. Tinha o talo fraco. Uma
era cor-de-rosa. Era pequena. Sobre o chão empoeirado suas pê-
ras pousando [ .. ] (CS, p. 91). A falta de emoção também pode
ser observada com relação ao narrador. Mais do que em qual-
quer outro texto do universo literário de Clarice Lispector, aqui
92 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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o narrador
assume
uma posição distante,
como alguém
que ob-
serva
a realidade sem se envolver diretamente com ela.
O
narrador,
como espírito ficcional (Pontieri, 1999, p. 44),
presente
e ativo
em
Perto
do coração
selvagem está
agora
a
uma
pálida
distância
em
relação
ao
mundo
narrado
e
em
relação à
obra enquanto
corpo verbal (Pontieri, 1999, p. 44). Trata-se,
portanto,
de
um
narrador não-dramatizado.
A distância
entre
o narrador e a
écriture
é a
mesma que governa
a relação
do nar-
rador
frente a
suas personagens.
Distância -
não-envolvimento
- também
marca
a
atitude
da
protagonista
frente
ao mundo
lá
fora.
Pontieri enfatiza
que os
capítulos funcionam como
um
espe-
lho, refletindo
em
miniatura
a
estrutura toda
do
livro (Pontieri,
1999, p. 162). O
quarto
capítulo, intitulado A
estátua
pública ,
pode ser
analisado
como um
perfeito exemplo
desse procedi-
mento. Lucrécia está em casa, na sala
de
estar, de onde
pode
a-
vistar
a praça, da janela. A conexão
entre
o
subúrbio
e a casa é
imediata-
O subúrbio invadindo em
trote
regular
a sala? [ ]
(CS, p. 66);
A
casa
parecia
ornamentada
com
os
despojos
de
uma
cidade
maior
(CS, p. 54).
Dentro
de casa, Lucrécia,
por sua
vez,
está
imobilizada.
Seus
gestos
mínimos
e
lentos
estão
em
perfeita
correspondência com
a paralisia
da estátua, enquanto
ela
simplesmente
observa
os
objetos (rniniestátuas) à sua volta.
O
capítulo
é
uma
pequena
parte do
romance e o
representa em
forma
de metonímia.
No
que diz
respeito a esse
mecanismo
de geração de refle-
xos (mundo lá fora/ dentro da casa e a
mente
da personagem),
eu ainda mencionaria
as
semelhanças entre
Lucrécia e Eveline,
de Dubliners Em
Eveline , Joyce descreve
sua personagem
co-
mo alguém
que
passa
sua
vida totalmente
indesejável (Joyce,
1992, p. 36)
em um mundo
imutável,
não desejando
transformar
nem
mesmo um único pedacinho
dele. Tal
como
Lucrécia, Eve-
line
observa
a
realidade
em vez de atuar
sobre ela, e o
primeiro
parágrafo
é ilustrativo
dessa
letargia: Encontrava-se sentada à
janela,
observando
a
noite invadir
a avenida.
Com
a cabeça en-
costada
nas
cortinas,
ao
nariz
subia-lhe o cheiro
do
cretone em-
poeirada.
Ela
estava
cansada . (Joyce, 1992, p. 34)
Além
disso, como Lucrécia, Eveline
espera passivamente
por um elemento
externo que
venha
resgatá-la de
sua vida
de
aprisionamento. Na história de Joyce, é o
marinheiro
(alguém
que
vem
do
mar e está
acostumado
a
aventuras)
de
nome Frank
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
9
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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quem chega
para
libertar Eveline. Uma vez que o
homem
apa-
rece para salvá-la", no entanto, ela decide no último instante
não
acompanhá-lo, apesar de todas as promessas
de
realização.
Todos os mares do
mundo
revolveram-se de
um
lado para outro
de seu coração. Ele a estava atraindo
para
dentro desses mares: ele
iria afogá-la. Ela agarrou-se com as duas mãos no corrimão de fer-
ro. Não Não Não Era impossível. As mãos dela prendiam o ferro
num frenesi.
No
meio do oceano ela emitiu um grito de angústia
[ ..] Ergueu
para
ele seu rosto pálido, passivo, como um bichinho
impotente. Nela, o olhar
não
deu qualquer sinal a ele: nem amor,
nem despedida, nem agradecimento. Qoyce, 1992, p. 36)
Também vale a pena mencionar alguns símbolos recorrentes
que
armam um paralelismo dialógico entre as duas obras, como,
por exemplo, "poeira". Presente na vida de Lucrécia, a poeira é
quase que
do
mesmo modo parte da rotina de Eveline. A prota-
gonista de A
cidade
sitiada passa grande parte de seus dias
monótonos varrendo a poeira
da
casa, e muitos parágrafos estão
dedicados à descrição dessa "atividade". A poeira em
Eveline
também
é
um
elemento importante, como escreve Bernard
Benstock
em
Narrative con/texts in
Dubliners: "Os aposentos
de
Eveline são misteriosamente invadidos pela poeira, apesar de
seus esforços semanais para eliminar o acúmulo
de ó
exata-
mente como 'a noite invad[e] a avenida'
Ev.,
p. 36) enquanto
ela observa
de sua
janela". (Benstock, 1994, p. 41)
Eveline enxerga-se dissolvida naquele pó que ela não conse-
gue remover totalmente da casa - "ela consegue visualizar-se
ausente
de
sua própria casa, uma lembrança desvanescente, sé-
pia, descartada,
um
vácuo
que
só a poeira consegue preencher.
O temor
da
não-existência acaba por paralisar Eveline, obrigan-
do-a a permanecer como um fantasma na
própria
casa" (Bens-
tock, 1994, p. 37).
É
interessante observar a correspondência en-
tre o
mundo
lá fora (que chega pelo lado de lá
da
janela) e o
mundo íntimo (também pardacento) do interior
da
casa. A ci-
dade também "invade" o interior, tal como invade a sala de es-
tar
de
Lucrécia
em
A
cidade sitiada
No
ensaio "Imagine Eveline: visualised focalisations in Ja-
mes Joyce's
Dubliners ,
Peter
de
Voogd analisa o aspecto pictó-
rico
da
literatura e o processo pelo qual as palavras criam ima-
gens em um romance. No que diz respeito a "Eveline", DeVo-
ogd observa que não é difícil ler toda a história visualmente, se-
94
láudia Nina
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guindo os indícios verbais
do
texto, na verdade repleto de ima-
gens. 'Eveline' é quase que inteiramente pictórica, e apresenta
a própria Eveline como o agente focalizador,
desde
o parágrafo
de abertura, onde ela está sentada à janela [ ..] até a última frase,
que,
de
acordo com
minha
leitura, é praticamente
uma
rubrica
em dramaturgia . (De Voogd, 2000, p. 47
O aspecto do focalizador, analisado
por
De Voogd
em
rela-
ção a Eveline , também é válido para
abordar
o modo como A
cidade sitiada
organiza-se
em
termos de imagens. Se,
em
O lustre
ritmo e
estrutura
sugerem um filme em câmera lenta
sendo
ro-
dado, A
cidade sitiada
mais parece uma sucessão de fotografias.
Tiradas
por
quem? Existem basicamente duas perspectivas
no
texto: a
do
narrador,
um
agente
anônimo situado
fora
da
fábula
e que enfoca tudo o que ele quer que os leitores vejam, e o
ponto
de vista da
própria
Lucrécia.
Na
verdade, as
imagens que
o focalizador
captura
e apre-
senta ao leitor
dizem
algo sobre o próprio focalizador. A escolha
que ele faz diz muito sobre o
modo
como ele interpreta a reali-
dade - do
mesmo
modo que as peças de um fotógrafo falam so-
bre uma
certa maneira de observar o mundo. Se o focalizador
captura os contornos
dos
lugares
em
vez
de capturar
as emo-
ções mais profundas da personagem, parece que ele não está
disposto a investigar suas mentes.
O mesmo vale para a perspectiva da protagonista. O
modo
como ela recorta a realidade e as imagens à
sua
volta é bastan-
te significativo. Olhar
para
a realidade expressa (reflete) o sis-
tema de raciocínio de Lucrécia, que também está baseado
em
expressões cristalizadas da linguagem
figurada-
Lucrécia pen-
sa por meio de estereótipos. [
..
] é uma prisioneira de
sua
lin-
guagem eivada de cl ichês,
que
formam o veículo expressivo de
seu processo de pensamento, igualmente eivado de clichês .
(Fitz, 1985, p 76)
Em A cidade sitiada as coisas são o que elas realmente pare-
cem ser, e
não há
intenção (talvez não mais que um débil desejo)
de parte das personagens e do
narrador
de transfigurar o
establi-
shment.
A narrativa - assim como o
subúrbio
- é
um
mundo
fe-
chado
em
suas premissas, que confina as personagens dentro de
seus exílios interiores. O mundo lá fora é apenas uma cópia
do
mundo interior, e as alterações da modernidade, que redese-
nham
o subúrbio no final
da
história, não configuram qualquer
transformação radical capaz de produzir ecos profundos no
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 95
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comportamento das pessoas. A única reação é partir - mais uma
vez,
não
é interagir.
O subúrbio é o centro
da
vida
de
Lucrécia, e também o cen-
tro da
narrativa.
Nada
acontece
nas margens
(à
semelhança de
O
lustre
e
A
maçã no
escuro
fora
algumas
frágeis
tentativas
de
ruptura. Existe
uma
hierarquia calma comandando todos os
movimentos,
até os
mais
imperceptíveis. Se São Geraldo é
uma
fortaleza (CS, p. 42), a narrativa também o é, no sentido
de
"cer-
car" com
seus muros
a
vida de
personagens,
desprovidos de
qualquer tipo
de
improvisação - a cidade era
uma
fortaleza in-
conquistável E ela
procurando ao menos imitar
o
que
via: as
coisas estavam
como
ali E ali Mas era preciso repeti-las" (CS, p.
42). As
personagens
repetem
(imitam,
representam)
a
realidade
em
vez
de
criá-la
de
fato.
O título
de A cidade
sitiada não poderia ser mais apropriado;
simboliza o espírito
das narrativas
do
silêncio
com perfeição.
É
um
mundo
exílico, desconectado
da
realidade externa.
Um
mundo no
qual a comunicação é incipiente e a
criatividade
(a
possibilidade
de
efetivamente se criar alguma coisa
de
novo
ou
de inusitado) não
faz
parte da rotina das personagens, que estão
- se
não para sempre
fisicamente atadas ao subúrbio - aprisio-
nadas
à
narrativa, que
é, acima
de tudo,
uma
escrita "sob cerco",
uma escrita sitiada.
3.7
Audiência de pedras maçã no escuro
O
homem
é
uma
corda, amarrada entre o animal e o
Super-homem
- uma corda sobre
um
abismo.
(Nietzsche, Thus spoke Zarathustra p. 43)
Você está
deitado
de costas
na
escuridão. (Beckett,
Compagnie, p.
7
A maçã
no escuro é um dos mais fascinantes e complexos tra-
balhos
dentre todas as
obras
de Clarice Lispector. Difere-se
em
muitos aspectos dos textos produzidos
nos
anos 1970, e divide
várias características
com
as
obras
anteriores a esse
período.
O
romance
afina-se com o
grupo
das chamadas
narrativas do silên-
cio.
96 Cláudia Nina
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A história é dividida
em
três partes e pode ser descrita,
em
linhas gerais, como a trajetória de um
homem
Martim,
que pen-
sou ter matado sua esposa (porque ele estava quase certo de
que tinha
uma
amante) e, torturado pela culpa e pelo remorso,
encontra-se
à
beira
de
um
abismo. As circunstâncias
do
crime
são bastante nebulosas, e ninguém recebe qualquer informação
sobre o
passado
do suposto assassino. Desesperado, ele foge
pa-
ra
uma
fazenda distante, onde leva a cabo
uma
longa e íntima
jornada, que abarca um
reaprendizado
da
palavra
e
do
autoco-
nhecimento.
A
maçã
no
escuro foi
um
projeto longo. Teve início
em
1951,
em
Torquay, Inglaterra, e seria finalizado somente
em
1956,
em
Washington, D.C. Foi finalmente publicado
em
1961. A demo-
rada criação foi inteiramente recompensada porquanto o ro-
mance recebeu uma resposta positiva do mercado, o que é
ainda
mais notável dada a
surpreendente
complexidade de sua narra-
tiva. A própria Clarice achava que este era o mais
bem
estrutu-
rado de todos os seus romances.
De acordo com os Arquivos da Fundação Casa de Rui Bar-
bosa,
A
maçã no escuro
tem
sido
um
livro bastante traduzido:
pa-
ra o alemão, com o título Der Apfel in Dunkeln (1964); para o es-
panhol, como
La manzana en la oscuridad
(1974); o francês, como
Le batisseur des ruines (1970); e inglês, como
The apple
in the dark
(1985). Em comparação aos trabalhos anteriores (O lustre e A
ci
dade
sitiada ,
que
pouco foram traduzidos, A maçã no
escuro
jun-
tou-se ao sucesso internacional de Perto do coração selvagem.
No Brasil, o romance foi aclamado como um significativo
passo
à
frente
na
carreira
de
Clarice Lispector. Benedito Nunes,
um
dos
mais notáveis críticos da obra de Clarice, considerou
que a autora havia crescido de modo consistente a partir desse
romance (Sá, 1983a, p. 50). Outros intelectuais compartilharam
da idéia de que A
maçã
no escuro representou um novo movi-
mento
na
trajetória literária
da
autora, como observa Bella Josef:
Consideramos que com A maçã
no
escuro
(1961) um novo ciclo
na
ficção de Clarice Lispector se abre. Tal alegoria
da
condição
humana
é talvez o mais ambicioso
de
seus livros (Jozef, 1974,
p. 243).
É
interessante
notar
que, mesmo no exterior, o romance
foi considerado como pertencente a um outro nível de criação.
Earl Fitz, por exemplo, observa que
A
maçã no escuro
de
fato si-
nalizou um novo platô de realização artística (Fitz, 1985, p. 79
alcançado pela autora.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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De acordo com Olga de Sá,
maçã
no
escuro
é
uma
reescritu-
ra da velha
tentação bíblica
na cena do
paraíso. Ela
vê
Martim
como um novo Adão, encenando
a
peregrinação da linguagem
e
constantemente tentado por esta
maçã
no escuro que é a pala-
vra
(Sá, 1983b, p. 249).
Martim-
o
homem
depois
do pecado
original
- começa a refazer a
aventura
humana,
estabelecendo-
se à parte do contexto social - sozinho -, e prepara-se para rem-
ventar
as palavras
e
reconstruir seu mlmdo interior por
meio
da
linguagem.
Seguindo
tal caminho interpretativo, Affonso Romano de
Sant'Anna concentra-se na linguagem do romance como ele-
mento central. Para Sant' Anna, a evolução de
Martim pode ser
analisada como um processo
que
se inicia com a percepção da
personagem como
a
primeira
forma
de pensamento, que
se ex-
pressa
na linguagem.
No final das contas, essa se
desenvolve,
enriquecendo o pensamento e redescobrindo o mundo e o ho-
mem. (Sant'Anna, 1977, p. 207)
O mundo da linguagem, contudo, é difícil de ser recriado.
Mí;J rtim
tropeça e cai muitas vezes. As palavras
não lhe vêm
as-
sim tão
facilmente.
Com
referência a esses insucessos,
Hélene
Cixóus sugere
que
maçã no escuro
é um livro trágico.
Os
ele-
mentos trágicos estão vinculados à angústia da solidão
absoluta
- esses sentimentos
são
tão fortes
que Martim
aceita
o
destino
da mediocridade (Cixous, 1990, p. 63). Hélene Cixous faz uma
estreita
comparação
entre
maçã no escuro
e
algumas
das
obras
de
Kafka,
especialmente as
cartas a Milena. A correspondência
foi escrita quando o autor, já a um passo da morte
devido
à tu-
berculose,
atinge
um
clímax trágico e
envolve
o texto
em uma
intensidade febril (Cixous, 1990, p. 68).
Em
ambos os
casos-
Kafka e o romance
de
Clarice Lispector - o gesto
de ruptura
deixa implícito
um
ato de se enveredar rumo ao desconhecido,
que
tanto pode ser
a morte como
qualquer
outro
tipo de destino
sombrio,
escuro . (Cixous, 1990, p. 68)
Em
maçã
no
escuro Martim
abandonou o mundo convencional
do
conhecido.
Enquanto
o leitor é levado a adivinhar, ele é capaz
de
chegar
a isso tão-somente através
de
um
gesto
de
ruptura,
nesse
caso um crime . [ ] Ele teve de chegar a
uma
ruptura a fim de es-
capar do mundo á pronto da mesmice, isto é, da morte em vida.
[ ] Se eu abandono o mundo do conhecido a fim de descobrir a
vida do desconhecido,
eu
passo a ser o quê? Esse movimento de
mudança é
proibido
pela sociedade: de modo semelhante, Kafka
98 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
http://slidepdf.com/reader/full/a-palabra-usurpada-exilio-e-nomadismo-na-obra-de-clarice-lispector 100/186
medita
sobre ir a lugares de
onde
não há retorno.
Quem
vai além
do que é legítimo e aceitável social e culturalmente está sozinho. E
a solidão absoluta, pode-se dizer à guisa de epílogo, leva à loucura.
[
..
]Em
A maçã no escuro o
mesmo
dilema existe,
mas
com diferen-
ças. [ ..]
Martim
saiu
do mundo
do conhecido,
mas de modo
dolo-
roso. Sentiu-se culpado por ter abandonado um mundo de culpa e,
ao mesmo tempo, por ser tão violenta e peculiarmente inocente.
(Cixous, 1990, p. 62)
De certo modo, essa jornada existencialista é urna introdu
ção para o itinerário
de
G.H. Enquanto última obra do ciclo do
exi1io
A
maçã no escuro
é realmente um movimento inicial
em
di-
reção a um lugar ainda não visitado, no sentido em
que
explora
a busca existencial
por
meio
da
linguagem, aproximando a lite-
ratura
da filosofia,
de um modo
que Clarice Lispector depois re-
forçaria
em A paixão segundo G.H.
As peculiaridades
de A maçã
no
escuro
contudo, não mascaram o fato de que se trata
de
um
livro
que
divide com O
lustre
e
A cidade sitiada
um
grande núme
ro de características, compartilhando assim muitos traços co-
muns
às
narrativas do silêncio.
3 7 1
Aprendizado humano
A criança é inocência e esquecimento, um novo come-
ço, uma diversão,
uma
roda
autopropulsora, um pri-
meiro movimento, um Sim sagrado. (Nietzsche, Thus
spoke
Zarathustra p. 55)
A primeira
imagem
que se tem
de
Martirn é de alguém
que
dorme profundamente na
noite
a noite mais escura
de
todos
os tempos: Essa história começa numil ;1oite
de
março tão escu-
ra quanto é a noite enquanto se dorme. [ ..]Nada agora diferen-
ciava o sono
de
Martirn
do
lento jardim sem lua
ME,
p. 11). Ele
acorda quando lentamente o escuro se pusera em movimento
ME,
p.
4).
E, então,
um
vago alarme espalha-se
em sua
mente,
lembrando-o
de sua própria
existência. Perdido e atormentado,
Martim
sai a esmo e anda
na
escuridão
por muito
tempo, até
que recobra a consciência. É nesse
ponto
que ele se dá conta
de
que perdeu
a capacidade
de
se comunicar verbalmente:
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 99
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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-Não sei mais falar, disse então
para
o passarinho, evitando olhá-
lo por uma certa delicadeza de pudor. Só depois pareceu
entender
o que dissera, e então
olhou
face a face o sol. "Perdi a linguagem
dos
outros", repetiu então
bem
devagar como se as palavras fos-
sem
mais obscuras do
que eram
..
ME, p.
28
Martim deixou tudo para trás: casa, origens, solo, família,
raízes
e,
acima de tudo,
sua
identidade. Ao cometer um crime -
como ele acredita ter feito -, quebra o código da civilização e
também a linguagem, um dom
que
teoricamente eleva o ho-
mem
acima das feras. Ele está banido da civilização e,
em
certo
sentido, uma vez expulso de sua "terra", está forçado a superar
sua condição de expatriado. "E, agora, que enfim fora banido,
estava livre. Ele era enfim
um
perseguido". ME, p. 38)
O foragido toma, em seguida, consciência deste
momento
crucial em
sua
vida - a queda: Quando um
homem cai
sozinho
num campo não sabe a quem dar a sua queda ME, p. 22, grifo
meu). A palavra queda leva, inevitavelmente, a uma conexão
direta
com
La chute, de Camus, onde o protagonista é um juiz à
beira de um abismo metafísico. Cercado pelo silêncio - "o silên-
cio
das
florestas primitivas, carregado ao extremo" (Camus,
1997, p. 8), o homem anda a esmo pelas ruas de Amsterdã, sozi-
nho, revisando
seu passado, como num julgamento,
tendo
a si
mesmo como juiz e vítima ao mesmo tempo.
O pequeno romance
de
Camus (primeiramente intitulado Le
jugement dernier) compartilha com maçã
no
escuro
muitos ele-
mentos: autocondenação, solidão, crime, angústia e confronta-
ção
com
o mundo exterior numa paisagem dramatizada
que
reflete os contornos
dos momentos atormentados do
homem:
"Porque estamos
no
coração
das
coisas. [ ..] Quando
alguém
chega do exterior, à medida que passa
por
esses círculos, a vida
e, portanto, seus crimes, torna-se mais espessa, mais sombria,
mais obscura" (Camus, 1997, p. 18). "A mais bela das paisagens
negativas [ ..]
Nada
de homens, acima de tudo
nada
de ho-
mens Sozinho, diante do planeta enfim deserto ". (Camus, 1997,
p. 78
A
queda
compreende
o
momento
crucial
quando tudo
o
que
ele tinha antes é colocado sob suspeita. O homem que
adorava
alturas (tanto literal quanto figurativamente falando) agora só
consegue mensurar
sua
queda de acordo com seu próprio e se-
vero julgamento. "Minha profissão satisfazia a contento essa vo-
cação para as alturas. [ ..
]Pese bem
o seguinte,
meu
caro senhor:
1
00
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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eu vivia impunemente
(Camus, 1997, p. 30). Ele
compara sua
vida
prévia
ao paraíso: Não era isso mesmo, de fato, o Éden,
meu caro senhor: a vida, sem nenhuma intermediação? A minha
foi (Camus, 1997, p. 31), e é
exatamente dessa situação paradi-
síaca
que
ele cai
quando
começa a
repensar seu passado.
Tor-
nando-se
o juiz
penitente
de si
mesmo
, dá início
ao julgamen-
to de suas próprias causas.
Sem dúvida, Martim
é o
mártir
da
queda ,
o criminoso, o
deslocado, o estrangeiro. De certo
modo,
ele
também
apresenta
grande semelhança
com
a
personagem
Mersault, de Camus.
Em
L étranger.
Mersault-
que comete um crime,
enquanto
Martim
pensou haver cometido - é igualmente expulso da comunidade
e
vagueia sem nuno
certo.
Nos
dois casos, o
luto
da personagem
não está essencialmente ligado a fatos externos, mas a um esta-
do mental
que
representa um estranhamente
interior.
Como Julia Kristeva salienta, o estranhamente começa
den-
tro, no exílio interior.
Em
quem ele [Mersault]
atira
durante
uma
nítida
alucinação que toma conta dele? Nas sombras, se era
francês ou magrebino, isso
pouco
importa - eles deslocam uma
angústia muda e condensada à frente dele, e ela o agarra por
dentro
[ ..
]
(Kristeva, 1991, p. 26). Nesse processo, o
outro
força-o a ser um estranho para terceiros e, por extensão, indife-
rente a tudo e a todos.
Mersault
também foge de
suas
origens,
embora
essas ainda
o persigam de alguma maneira. Num mundo
de
estranhos, o
protagonista
de Camus perde
não
só o sentimento de pertencer
a
um grupo,
mas também o desejo de comunicar-se, uma
vez
que ninguém
está
a ele relacionado. As
palavras passam
a signi-
ficar cada
vez
menos. Um assassinato, assim como as palavras,
passará então
a ser indiferente e, mais
do
que
palavras,
insigni-
ficante . (Kristeva, 1991, p. 26)
Ambos
passam
pela
experiência
do black-out
(a
noite
mais
escura de
todos
os tempos) e, em ambos os casos, há uma gran-
de falta de laços emocionais. O
último
vínculo afetivo de Mer-
sault
é sua mãe, que já
morreu;
a conexão
maior
de
Martim
é
com sua
família e esposa,
que
ele
pensa
ter
matado. Além
disso,
as
pessoas que
ele vai conhecer - as três
mulheres
da
fazenda
-
não representam amor ou afeição. Eles permanecem emocio-
nalmente distantes entre
si,
mesmo após uma proximidade
físi-
ca.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 1
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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A diferença entre as personagens encontra-se na luta de
Martim para recuperar a linguagem e readquirir a capacidade
de comunicar-se. Ao contrário de Mersault, que parece estar
completamente indiferente à humanidade Martim sofre, em
mudo
desespero,
por
algum
tipo de recuperação
da
fala. Viven-
do
anonimamente num
mundo
de estranhos, primeiro
no
cam-
po escuro e depois
na
fazenda que jamais deixou
de
ser
um
ni-
cho estranho a ele, o personagem sente a necessidade de falar
de
novo, a fim
de
começar
vida
nova - primeiro como homem, de-
pois como herói. Seu heroísmo, todavia, não se desenvolve a
partir de uma encenação de atos exteriores de coragem frente a
pessoas ou situações,
mas
a partir de um controle sobre si mes-
mo,
ou
melhor, a partir
da
aquisição
da
habilidade
de
superar
a
fragilidade, a solidão e o silêncio.
Na primeira parte- Como se faz um homem- Martim
dá
início a esse processo. Ele parece estar olhando
para
as coisas ao
seu redor pela primeira vez, como uma criança de colo, que não
sabe como entrar no mundo lingüístico, ou como
um
estrangei-
ro silenciado, incapaz de falar a língua de uma comunidade
hostil, retratada como uma terra devastada. Como diz o texto:
[ ..]Domingo era o devastado do homem. ME, p. 24). Assim,
Martim tem de construir a cognição
da
vida como uma criança
aprendendo a falar. E, como
uma
criança, ele se movimenta em
frente
na
ignorância, tendo de
inventar
palavras e sons: [ ... ]
agora que Martim perdera a linguagem, como se tivesse perdi-
do
o dinheiro, seria obrigado a manufaturar aquilo
que
ele qui-
sesse possuir . ME, p. 37)
A história evoca o Gênesis após a expulsão
do
paraíso. De
acordo com a Bíblia, antes da queda, o primeiro homem tinha
um tal controle sobre a linguagem que podia nomear tudo ao
seu redor- animais,
campo
e plantas.
No
caso
de
Martim, entre-
tanto, ele não pode inventar nada, porque todas as coisas que
ele
pode nomear ou
inventar já foram nomeadas muito antes
de
sua
existência. Como sublinha Olga
de
Sá, Martim renuncia aos
clichês
da
linguagem comum e tenta alcançar o conhecimento
daquilo
que
surgirá a
partir de
uma
nova forma
de
enunciado.
Martim é um fugitivo. No plano da fábula: foge
da
polícia
por
causa do crime cometido. No plano da trama: foge ao encontro
de
si mesmo. O crime projeta-se como
um
ato
de
liberdade,
de
ruptura com a sociedade e a desgastada linguagem cotidiana:
escolhe o
silêncio Sá, p. 76)
1 02
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Aqui torna-se relevante questionar se Martim na verdade
escolheu o silêncio ou se o silêncio caiu sobre ele como um
fardo por demais pesado. Após ter cometido
um
crime hedion-
do - como ele pensava ter feito -, a pessoa fica sem muitas al-
ternativas
para
escolher
seu
próprio destino. De repente, a his-
tória pessoal do indivíduo vira de cabeça para baixo. De qual-
quer modo,
mesmo
se matar tivesse sido um ato de liberdade e,
em última instância, um ato
de
escolha, por outro lado é
um
iso-
lamento e um aprisionamento interior em
que
Martim se vê en-
redado.
Seu crime, o homicídio de sua mulher,
pode
ser lido como o
assassinato daquilo que é feminino . Em seu primeiro livro no
qual
o protagonista é
um
homem, Clarice Lispect
or
tenta, com
ironia, matar a presença feminina. E o
que
acontece
quando
a
voz feminina é silenciada? Martim, o homem, é incapaz de as-
sumir o comando
do
discurso narrativo. Mudo como
uma
pe-
dra, ele avança (sonâmbulo?), afásico, sozinho, em direção a lu-
gar nenhum.
No estudo Vie et
mort de
la parole , Julia Kristeva salienta
as características
da
linguagem
do
depressivo, marcada por um
ritmo repetitivo e
uma
melodia monotonal. Encenando
uma
re-
ação defensiva contra um choque inevitável - que
pode
ser uma
perda-, o depressivo encontra-se
em
posição
de
inatividade ou
de
fuga . Kristeva escreve ainda que o depressivo recusa-se a
significar e mergulha
no
silêncio
da dor-
le silence de la
dou-
leur ou le spasme des larmes . (Kristeva, 1987, p. 53)
Normalmente, as pessoas em geral têm consciência dessa
circunstância, e a aceitação torna mais fácil recuperar a
perda
-
ou o -objeto ausente- através
da
linguagem. De modo contrário,
o depressivo está incapacitado
para
a recuperação, e uma triste-
za profunda cai sobre ele, enquanto a
linguagem
permanece
inatingível. Si je
ne
consens
pas
à
perdre
maman, je ne saurais
l imaginer ni la nommer , escreve Kristeva (Kristeva, 1987, p.
53). Além disso, ela sublinha que a linguagem do depressivo
tem um quê de idioma estrangeiro - O dizer do depressivo é,
para
ele, como
uma
pele estrangeira; o melancólico é
um
es-
trangeiro em sua língua materna. Ele perdeu o sentido- o valor
- de
sua
língua materna, à falta de perder a mãe . (Kristeva,
1987, p. 64
Na
trajetória de Martim, nos momentos iniciais após o crime
-
um
choque e uma perda - ele parece não ter outra resposta
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispect
r
1 3
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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para a vida que não o escapismo. Suas primeiras reações são
marcadas por
um
profundo senso
de
apatia. Somente
na
última
parte - "A maçã no escuro" - é que ele se permite racionalizar
sobre o acontecido. O pensamento
vem
primeiro, depois a pos-
sibilidade
de
enunciação. O ato
de pronunciar
a
palavra
- "cri-
me" - aparece
em seu
vocabulário reconstruído só mais tarde,
perto do final
da
história, quando o silêncio finalmente é supe-
rado. "Sim, um crime de amor. Num
mundo
de silêncio, ele fa-
lara". ME, p. 289)
3.7.2
Da companhia das pedras
à
interação com os outros
Zarathustra
desceu a montanha sozinho, e ninguém o
recebeu. (Nietzsche, Thus spoke Zarnthustra p.
40)
Homem
solitário, você está percorrendo o caminho
para
você mesmo E o seu caminho leva até além de
você e seus sete demônios. (Nietzsche,
Thus spoke
Zarathustra p.
90
A técnica narrativa de maçã no escuro nos momentos ini-
ciais
de
Martirn
na
escuridão, reflete o senso de estranheza
que
cerca o universo
da
personagem. Metáforas incomuns dão mo-
vimento e disposição íntima a objetos inanimados, tais corno:
mudez do sol" ME, p. 19); "luz estúpida" ME, p. 19); "árvore
tranqüila" ME, p. 45); "pulos secos" ME, p. 28); pedras infan-
tis" ME, p. 39) e assim por diante. O
narrador
personaliza as
coisas e paradoxalmente despersonaliza o herói
que com
fre-
qüência é comparado a plantas e animais.
Urna das imagens mais pungentes de
maçã
no escuro é o
episódio em
que
Martirn se vê cercado
de
pedras - grandes, pe-
quenas, todo tipo
de
pedras - que formam a sua platéia. Esse é o
segundo momento em sua
jornada, após a
queda
inicial
na
escu-
ridão: a tentativa
de
se fazer ouvir por urna audiência
de
pe-
dras, o que é urna cena de não-interação por excelência. Nin-
guém ouve
e
ninguém
reage.
Ninguém
está interessado
em
nin-
guém. Entre as pedras, Martirn sente-se incapaz de expressar
exatamente o que quer dizer: "Em algum
ponto
não-identi-
ficável, aquele homem ficara preso num círculo de palavras.
'Esqueci
de
informar alguma coisa?' As pedras iam certamente
104 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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ter uma impressão falsa ME, p. 41); Enquanto isso, continua-
va a sentir com incômodo que esquecera de dizer alguma coisa
essencial,
sem
a qual as pedras
nada
entenderiam. O quê? .
ME, p. 41
Coincidentemente
ou
não,
Martim
tem o
mesmo prenome
do filósofo, Martin Heidegger. De fato, a estrada que a persona-
gem percorre na direção do autoconhecimento leva a alguns
dos
conceitos de Heidegger de Ser-no-mundo, como desenvolvidos
em O ser o tempo. No tópico Ser-aí e o discurso , Heidegger
examina o fenômeno da comunicação desde
uma
perspectiva
existencial, o que é relevante para o desenvolvimento de
Martim
por
meio da linguagem.
De
acordo com
Heidegger, a
fundamentação
ontológica
existencial da linguagem é o discurso ou a fala (Heidegger,
1962, p. 203), e o discurso é a articulação da inteligibilidade
(Heidégger, 1962, p. 204). A maneira como se expressa o discur-
so, afirma o autor, é pela linguagem. Heidegger analisa o falar
como sendo a maneira por meio da qual os homens articulam
de
modo
significativo a inteligibilidade de Ser-no-mundo . Os
itens constitutivos para o discurso são: sobre o que é o discurso
(de
que
se fala); o que é dito-na-fala como tal; a comunicação; e
o fazer conhecido . (Heidegger, 1962, p. 206)
Além disso, Heidegger indica o fenômeno
da
comunicação
que deixa implícito,
naturalmente,
o
ato
de
ouvir,
que é um
elemento importante do discurso. Ouvir é constitutivo para o
discurso. E, assim como o
enunciado
lingüístico está
baseado
no
discurso, da mesma forma a percepção acústica está baseada
na
audição. Escutar
...
é o
modo
existencial
que
Daseín
encontra
pa-
ra Ser-aberto
enquanto
Ser-com para os Outros. [ ..]
Daseín
es-
cuta, porque entende (Heidegger, 1962, p. 206).
Em seu estudo intitulado Heídegger, George Steiner analisa
alguns conceitos importantes, tais como Dasein, do alemão, que
quer dizer literalmente ser af'. No contexto, af' é o mundo, o
mundo concreto, literal, real, cotidiano , escreve Steiner (Stei-
ner, 1978, p. 81). Portanto, ser humano significa estar imerso,
implantado,
enraizado
na
terra,
na
matéria cotidiana e
no pro-
saismo do mundo ('humano'
tem
seu húmus, a
palavra
latina
para 'terra') . (Steiner, 1978, p. 81)
A linguagem
é,
portanto, vital na mecânica
do
ser no mun-
do,
uma
vez que o questionamento do ontológico é realizado
por intermédio da linguagem. Na fala,
Daseín
expressa-se
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 5
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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(Heidegger, 1962, p. 205). A existência, entretanto, só pode
atuar
quando em confronto com outros, ou melhor dizendo, Ser-uns-
com-os-outros no dia-a-dia. No mundo, o homem passa a exis-
tir com referência a outros. Em outras palavras, nós
não
somos
nós
mesmos: O ser
que
é nós encontra-se desagregado no po-
vão; ele se afunda em uma 'unicidade' entre e dentro
de
uma
pluralidade que é coletiva, pública, de populacho, tipo reba-
nho . (Steiner, 1978, p. 90)
Levando todos esses conceitos em consideração, no que diz
respeito à trajetória de maçã no escuro é possível salientar al-
gumas questões relevantes. O processo que Martim desenvolve
rumo à comunicação segue
uma
linha evolucionária. Ao longo
do
romance, ele vai de
pedras
a plantas, vermes, gado, até
fi-
nalmente entrar em contato com as pessoas que ele havia aban-
donado.
maçã
no
escuro
exemplifica com perfeição o processo -
lento e doloroso - de superar estágios primitivos da
Antes
de
começar a confrontação com outros na fazenda, Mar-
tim não tem palavras nem mesmo
para
inserir-se na
própria
existência. Ele é lacônico, quieto, calado num silêncio misterioso.
O Ser-no-mundo tem de achar seu lugar. Ele só consegue
empreender essa tarefa usando os instrumentos
da
linguagem
que ele por fim conquista(= constrói). Ainda assim, Martim tem
de passar pela experiência a príorí
do
silêncio. Ele não é, em es-
sência, mudo; perdeu a linguagem, o que é algo totalmente di-
verso. E essa perda é a condição primeira para ele conseguir
passar
da
escuridão
à
luz.
Em O ser e o tempo Heidegger também aborda o inverso
da
fala-
o ato
de
permanecer
em
silêncio-
como
uma
das
possibi-
lidades do discurso, sublinhando a diferença entre silêncio e
mutismo:
Permanecer em silêncio não quer dizer ser mudo. Pelo contrário, se
um
homem é mudo, ele ainda tem uma tendência para falar . Es-
sa pessoa não provou que pode permanecer em silêncio; na verda-
de, para ela não existe a possibilidade de provar algo desse tipo. E
a pessoa que por natureza é acostumada a falar pouco também não
tem como mostrar se está calada
ou
se é o tipo
de
pessoa que con-
segue permanecer em silêncio). Aquele que jamais diz coisa algu-
ma
não pode permanecer
em
silêncio em nenhum
dado
momento.
Autenticamente, permanecer
em silêncio só é possível no genuíno
ato de discursar. Para
ser capaz de permanecer em silêncio, Dasein
1 6 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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deve ter algo a
dizer-
[ ..] deve ter ao seu dispor
uma
autêntica e
rica revelação de si próprio. (Heidegger, 1962, p. 208)
Voltando à cena
das
pedras, com relação à filosofia do dis-
curso proposta por Heidegger, pergunto-me que tipo de comu-
nicação ocorre já
que
a interação é inexistente
no
contexto
da
platéia inicial de Martim. Se, como diz Heidegger, o Ser-com
desenvolve-se quando se escutam
uns
aos outros (Heidegger,
1962, p. 206), uma conversa com pedras deixa implícito o ab-
surdo
da não-comunicação
quando
o discurso fracassa
por
completo.
O conceito
de
Ser-com-outros
também
deve ser analisado
em relação à vida na casa
da
fazenda. Se no começo, o discurso
de
Martim
não
é compreendido pelas pedras,
na
fazenda a si-
tuação muda muito pouco. Diálogos, quando ocorrem, mais se
parecem com monólogos, e não há interação possível. Assim, a
comunicação - mesmo entre pessoas e não
pedras
- fracassa
mais uma vez, já que falta um dos elementos do discurso: escu-
tar
como sinônimo de compreender.
No caso de Martim, ficar em silêncio não é fácil; pelo contrá-
rio, é doloroso - como é doloroso
para
um
estrangeiro, força-
do a ficar quieto entre vozes estranhas quando fracassa o en-
tendimento mútuo.
À
medida em que lentamente recupera o
domínio
de
si mesmo, Martim caminha -
em
silêncio - para
uma nova fase, representada pela escalada de uma montanha ,
quando ele divisa a fazenda ao longe.
É
no caminho
de
volta,
na
descida, que ele começa a se mover em direção aos outros e a
inserir o
seu
Ser-no-mundo em uma confrontação com um co-
letivo.
Na
verdade,
não importa
quem
são as pessoas; o mais
importante
é que elas são outros entre os quais Martim deve
agora
aprender a
mais uma vez, expressar-se no mundo e a,
mais
uma
vez, criar o discurso.
Entretanto, é difícil deixar a solidão para trás a fim
de
apro-
ximar-se
dos
outros. E mesmo depois
de
encontrar pessoas,
ainda
assim leva
algum tempo
para Martim acostumar-se uma
vez mais à humanidade. O homem tem de superar as duras di-
ficuldades
do
longo caminho existencial
para
tornar-se
um
ho-
mem
e em seguida um herói. A fadiga pesa-lhe nos ombros:
Foi só então que Martim percebeu que estivera andando no planal-
to imenso de
uma
serrania, cujas primeiras ingremidades ele cer-
tamente havia
galgado
durante
a noite,
julgando
dificuldade sua o
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 7
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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que fora a dificuldade de uma subida nas trevas;
e,
mais tarde,
to-
mando como cansaço seu o que na verdade fora uma aproximação
gradativa do
sol.
[
..
]E à beira de sua mudez, estava o mundo. Essa
coisa iminente e inalcançável.
Seu
coração faminto dominou desa-
jeitado o vazio.
ME,
p.
49)
Algumas passagens
de
Thus
spoke Zaratustra de Nietzsche,
são apropriadas para ilustrar o desenvol
vimento
de
Martim
até
a
superação
.
Ambos
os heróis partem da
mesma
premissa: são
homens solitários; e ambos
emergem
do
isolamento descendo
de suas solidões para
entrar
em contato
com
as pessoas
nova-
mente. Os dois são personagens que mudam, evoluem e são
transformados pela vida
quando em confronto
com
outros.
A
referência
ao
sol é
uma
primeira comparação entre as
duas histórias.
Em
Zaratustra o sol
que aquece
o
herói depois
que este
sai
de
sua caverna
é uma referência
evidente
ao mito
de
Platão (Machado, 1997, p. 40);
também
marca a trajetóri:: 11e um
herói
que,
como
Apolo, é
iluminado
por uma
luz
muito
podero-
sa.
Apesar
disso, à medida em que o sol se põe, o
herói
também
cai
num
abismo,
representado pelo lado
escuro da vida.
O declínio de Zaratustra nesse início
é
sua descida
ao
ínfero mun-
do das sombras para ilumina-lo. [ ..] Por sua sabedoria apolínea,
Zaratustra permanece fiel ao tema da oposição e da luta entre o dia
e a noite, entre a luz e as sombras. O que está embaixo?
Os
ho-
mens. (Machado, 1997, p. 43)
Em
A maçã
no escuro
o conflito
entre
luz e
escuridão
fica es-
tabelecido desde o começo. Após a queda inicial na escuridão,
Martim repentinamente vê
o sol e E uma claridade bruta ce-
gou-o
como
se ele tivesse recebido
na
cara
uma
onda salgada de
mar.
(ME, p. 19); Sempre experimentara o sol
com
vozes
(ME, p. 19);
Embora
estivesse cego
pe
la luz, ali
nenhum
de
seus sentidos
lhe
valia, e
aquela
claridade o
desnorteava
mais
do
que
a
escuridão da
noite .
ME,
p. 20)
Existe uma oposição constante entre o que
Martim não
con-
segue ver
(perceber,
entender)
e o
que
ele
devagar
começa a
compreender através de sua jornada. O símbolo do escuro é
realmente
ilustrativo.
Em
certo sentido, significa a
noite dos
tempos, quando prevalecia a ignorância. A
capacidade de
agar-
rar
uma
maçã
(= conhecimento) no escuro reflete a capacidade
de aquisição da
linguagem
(instrução) e de
informação
- passa-
1 8 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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portes de fora da escuridão da ignorância para a claridade de
enxergar o que ele
não
conseguia ver antes.
Como
Zaratustra,
Martim
também sobe
uma
montanha -
um
símbolo importante no dicionário da sabedoria e do apren-
dizado. A
personagem
de
Nietzsche ficou
aí
por
dez
anos, até
que se viu cansado do silêncio e da solidão. No topo da monta-
nha, decide encontrar seu destino entre os homens. Ele se dirige
aos demais, esperando encontrar aceitação do que está
por
di-
zer. Contudo, a aproximação não é tão fácil,
uma
vez que cheia
de mistérios é a existência humana ; o que quero dizer não diz
nada
às mentes deles ; Escura é a noite, e escuros são os cami-
nhos
de Zaratustra . (Nietzsche, 1971, p. 49)
A
narrativa dramática
de
aratustra
tem, portanto,
como
um
de seus elementos centrais, as experiências de um protagonista
que abandona a terra pátria a fim de vivenciar o tormento, o
fracasso e a frustração.
É
a história
de
um herói que
empreende
sua jornada (relacionada com a descida da montanha) marcada
por
dúvida, angústia, rejeição, náusea e compaixão, culminando
na maturação no
momento
em que ele assume o pensamento
do eterno retorno. (Machado, 1997, p. 30)
O
tempo de
Martim
em
profunda
solidão
não
se conta
em
anos. O tempo, porém, é
de
pouca importância,
uma
vez que ele
também sente a necessidade de descer de alguma forma. Da
montanha, ele avista a fazenda - humanidade. Quando Martim
desce, ao chegar à fazenda, ele se apresenta a
um
trabalhador
como alguém que estava perdido Eu me perdi, disse Martim,
suave. ME, p. 52)
Vitória, a
dona
da fazenda, faz a mesma pergunta,
tentando
descobrir
quem
o potencialmente perigoso estranho
poderia
ser. É nesse tempo que Martim logo se dá conta de que está
quebrando uma
ordem previamente estabelecida e
invadindo
um
mundo
ao qual ele não pertence. O sentimento de estar sen-
do rejeitado é, portanto, inevitável.
O recém-chegado se sentiu rejeitado sem saber como. Não com-
preendia
a cólera que provocara. O que vagamente percebia era
um
certo desprezo [
..
] E teve a curiosa impressão de ter caído
nu-
ma armadilha. [
..
] Mas isso lhe
passou
logo, porque se havia ali
alguém perigoso- era evidentemente ele próprio. ME , p. 60)
Finalmente aceito como
um
trabalhador
na
fazenda, man-
dam-no viver entre plantas. O texto muitas vezes compara o
A palavra usurpada: exílio
e
nomadismo na obra de Clarice Lispector 1 9
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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homem à vegetação que o cerca. As plantas seriam o passo se-
guinte de
sua "evolução", depois do
mundo
mineral represen-
tado
no episódio das pedras. Ele ainda está,
porém,
vivendo
como se estivesse numa fase pré-humana
de
sua existência.
Naquele porão
vegetal,
que
a
luz
mal nimbava, o
homem
se refu-
giava calado e bruto como se somente no princípio mais grosseiro
do
mundo
aquela coisa que ele era coubesse: no terreno rastejante
a harmonia feita
de
poucos elementos não o ultrapassava
nem
ao
seu silêncio. O silêncio das plantas estava no
seu
próprio diapasão:
ele grunhia aprovando. Ele que não tinha
uma
palavra
a dizer. E
que não queria falar nunca mais. Ele que
em
greve deixara de ser
uma
pessoa. ME, p.
77)
É
interessante
notar que
Zaratustra, dirigindo-se a
um
jo-
vem que
encontra
em
seu caminho, compara
homens
a plantas -
"Agora é com os homens como com esta árvore:
quanto
mais ela
quer
subir
às alturas e para a luz, com mais determinação suas
raízes enfiam-se na terra, lutam
em
ir para baixo, para dentro da
escuridão, para dentro das
profundezas
-
para
dentro do mal"
(Nietzsche, 1971, p. 69).
Como
uma
alma
exilada e solitária,
Martim também tem
de
lutar entre luz e escuridão, alturas e a-
bismos.
3.7.3
omo se faz um herói
Quando
eu houver me superado
em
algo, haverei
de
superar-me em algo maior; e
uma
vitória será o selo
de minha
perfeição (Nietzsche,
Thus
spoke
Zarathus-
tra, p.
183)
Árdua
é a conquista da linguagem. E tal luta torna-se crucial
na
segunda parte do livro- "O nascimento do
herói -,
em que
a busca da palavra intensifica-se: "Tudo rebentava de silêncio.
Com
o cheiro
de
capim quente
que
o vento trouxe do longe ele
aspirou
a revelação
tentando
inutilmente pensá-la. Mas a pala-
vra,
a
palavra
ele
ainda
não
a tinha
ME,
p. 159, grifo meu). Vê-se
que
a construção de seu destino está diretamente ligada à cons-
trução
da
linguagem.
Tudo
o
que
viesse a dizer -
ou
a calar -
traria conseqüências
no
sucesso ou no fracasso
de
sua escalada
heróica.
11 O láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Sua obscura tarefa seria facilitada se ele se concedesse o uso das
palavras á criadas. Mas sua reconstrução tinha de começar pelas
próprias palavras
pois palavras
eram
a voz de
um
homem. [ ..] do
momento em que admitisse as palavras alheias, automaticamente
estaria admitindo a palavra crime - e ele se tornaria apenas
um
criminoso vulgar em fuga.
ME,
p.
125,
grifo meu)
Juntando os pedaços de seu
mundo
interior arruinado, Mar-
tim é
verdadeiramente
um construtor, como o título em franéês
deixa subentendido - Le âtisseur des
ruines.
No entanto, não só a
trajetória de Martim é definida pela necessidade de reconstru-
ção e comunicação. As três mulheres que ele encontra
na
fazen-
da são igualmente estranhas e caladas. A interação delas com o
mundo
é
bastante bizarra, como
no
caso
da
mulata que
ri e
bate
na
filha,
em
vez de conversar. Ermelinda tampouco
é
familiari-
zada com as palavras. Absorta em si mesma e facilmente ofen-
dida, ela
é
definida como
uma
pessoa assustada e sozinha: E
tão
abandonada,
e tão solitária, como se tudo o
que
no futuro se
fosse seguir nada tivesse a ver com o solitário minuto de glória
que
há
muito
já se
perdera para
sempre entre as marteladas .
ME, p, 83)
Apesar
de
mais
poderosa
e mais autoritária, Vitória vive
há
tempos fechada
em
seu mutismo, totalmente incapaz- ou sem
desejo algum - de se comunicar. Como
diz
o texto: Vitória era
uma mulher tão
poderosa
como se um dia tivesse encontrado
uma chave. Cuja porta, é verdade, havia anos se perdera ME,
p. 62). Faltava-lhe o
aprendizado
da interação, como
diz
o texto:
Do
momento
em que fosse compreendida, ela não seria mais aque-
la coisa
profundamente
intransmissível que ela era e
que
fazia com
que cada pessoa fosse a
própria pessoa-
pois Vitória pensava
que
era isso o que sucedia na comunicação. Seria dessa entrega de si
própria
que ela se guardava?
Ou
era
medo
da imperfeição com
que as almas se tocam? Mas
não
só disso tinha medo.
É
que, fal-
tando-lhe o
aprendizado da
comunicação, tinha a delicadeza de se
abster. ME, p.
251)
O momento em que esses mundos silenciosos colidem é de
revelação.
Cada uma das
personagens isoladas
do
mundo
lá fo-
ra tenta aproximar-se da outra, e a confrontação dos mundos in-
teriores silenciados tem
um
quê de explosão , como neste diá-
logo entre Ermelinda e Vitória, quando esta diz:
Há
três anos
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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eu
ouço até os seus silêncios. E não
suporto
mais sua infância no
leito[ ..] E hoje lhe digo ainda mais: basta." ME, p. 73)
O contato
não
é só verbal,
mas também
físico.
Martim
en-
volve-se com Ermelinda - mais no aspecto físico que verbal - e
também
com Virgínia -
mais no
verbal
que
no
físico. Depois
do
episódio da noite
dos
sapos uma longa noite de insônia, quan-
do as personagens meditam sobre suas vidas), todos acordam
para
a descoberta
do
som de suas próprias vozes e começam a
contar suas histórias pessoais, inclusive segredos e confissões.
Como
acontece com Vitória: "Minha alma é suja,
minha vida
é
truculenta,
eu
não sou boa,
eu[
..] sou ruim como uma
mulher
desiludida " ME, p. 251)
Num
longo monólogo,
apenas interrompido
pelos pensa-
mentos
entediados de
Martim, Vitória fala com o estranho
que
na verdade não a "escuta" e que continuaria a ser
um
estranho,
apesar
de
todos os esforços,
de
ambos os lados,
para
disfarçar o
mútuo quase
anonimato.
Os pensamentos finais de Martim,
após a longa fala de Vitória, ilustram essa indiferença: "Como a
senhora me chateia, pensou Martim" ME, p. 252).
Em
Reading with Clarice Lispector
Hélene Cixous analisa a es-
tranha
natureza
dessas relações fortemente marcadas pela lógi-
ca paradoxal do "desencontro". Ela diz escreve o seguinte:
A
estranha
história entre Martim e Vitória é
sobre
vitória
do
fra-
casso e fracasso
da
vitória. Eles tentam
aproximar-se um do outro
com
a
mesma intensidade
com
que
tentam evitar
um
ao
outro.
(Cixous, 1991,
p.
67)
Do mesmo
modo que há
o
murmúrio
gelado
de
água
em
Vitória,
há
o calor
da
comunicação
e não-comunicação
em
Ermelinda.
Não
é nas, mas
das
palavras
que
algo
emana.
Existe
uma economia pa-
radoxal, pois
que
o
amor termina
onde começa. (Cixous, 1991,
p.
85)
Assim, após a tentativa de interação, seria cabível
pensar
que se teceram laços mais fortes entre as personagens.
No
en-
tanto, eles
permanecem
tão estranhos
uns
aos outros como an-
tes. Confinados
à
vida isolada da fazenda, eles vivem como exi-
lados, restritos não só aos domínios físicos a fazenda ou a pri-
são), mas também dentro de si mesmos,
na medida em
que con-
tinuam incapazes de comunicar-se
com
o mundo lá fora e de
aproximar-se com
sua
"alteridade". maçã
no
escuro é, de certa
forma, um romance de "refugiados",
no
sentido em
que
as per-
112 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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sonagens
permanecem
isoladas, sem empreenderem nenhum
esforço para
mudar
seus destinos históricos.
Em
relação a esse aspecto de interação,
é importante
lem-
brar aqui o mecanismo da comunicação social. De acordo com a
teoria
da
comunicação (Kristeva, 1989, p.
7),
uma
mensagem
é
transmitida entre pelo
menos
dois sujeitos falantes, quais sejam:
o emissor (remetente) e o receptor (destinatário). Nesse proces-
so,
ambos
agem na tentativa de decifrar o
que
o
outro
está fa-
lando. E decifrar significa tentar entender o falante
em
sua sub-
jetividade. O circuito da comunicação opera em relação com o
outro. O termo discurso, contudo, designa qualquer enunciação
que
integra em
sua
estrutura o falante e o
ouvinte
com o desejo
daquele de
influenciar este.
Ao se analisar a prática
da
linguagem exercitada pelas per-
sonagens de maçã no escuro observa-se
que
ela não configura
nem a interação lingüística nem o discurso. Não
há
interesse
em
decifrar ou entender. Tampouco há
qualquer
tentativa de in-
fluenciar a realidade do outro. Parece que cada
um
está interes-
sado tão-somente em sua
própria
realidade, e que o exercício
de
falar não inclui nenhuma conexão. A mensagem deixa de alcan-
çar o
ouvinte
e uma interação comunicativa
mais ampla
fracas-
sa. O episódio
em
que Martim finge estar prestando atenção à
história da
vida
de Vitória ilustra bem a teoria da não-interação.
Contudo,
há
que
se dizer que o ato de aproximar-se de anô-
nimos funciona como uma espécie de laboratório para Martim
exercitar o aprendizado da
humanidade
e da linguagem.
É
nes-
se embate que ele se vê capaz de alcançar uma espécie de auto-
conhecimento
que
ele
não
tinha
antes. A terceira
parte do
livro,
intitulada A maçã no escuro , é exatamente o momento
em
que
Martim toma
consciência de
que
o longo processo de aquisição
de autoconhecimento chegou a
um
fim:
[ ..] pela primeira vez Martim avançara totalmente, assim como
quem diz uma palavra. A palavra que ele esperava não lhe viera,
pois, em forma de palavra. Ele a realizara com a inocência da força.
[ ..
]Pois-
tendo chegado enfim plenamente a si mesmo, ele chega-
ra
aos homens; e, jogando fora o tridente e trabalhando a nu, ex-
posto e nu - ele se guiara até transformar os homens . ME, p.
283
O silêncio das personagens, principalmente o silêncio de
Martim, representa
não
só a inabilidade de conversar. Ele tam-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
3
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bém indica que suas vozes são complementadas pela voz de um
outro: a
voz do
narrador cujas palavras acompanham os passos
e os sentimentos das personagens, como se
pudesse sondar
suas
interioridades .
É
significativo que, enquanto as descrições são
ricas
em
imagens e vocabulário, os diálogos são
pobres
e vazios.
Quando
Martim fala, coisa que ele dificilmente faz, suas frases
consistem em observações simples e um tanto vagas, cheias de
dúvida medo e hesitação. A terceira pessoa assume as partes
mais elaboradas e filosóficas
do
texto. Permanecendo anônimo,
e emocionalmente distante das personagens, o narrador não se
identifica no desenrolar
da
história. Sua posição é a de uma
perspectiva hierárquica privilegiada em relação às personagens,
ocupando um
local central
na
estrutura
narrativa.
No nível
do
universo narrado a fazenda distante é o centro.
Ao longo do romance, os espaços são delimitados de modo cla-
ro em
zonas
de ação: o
campo
escuro,
onde
a história começa, a
montanha de onde Martim avista seu local de destino, e a fa-
zenda, onde ocorre a transformação
do
homem. A área externa
a margem- é o mundo lá fora, ou melhor, a realidade da qual
Martim foge ou a prisão
para onde
ele vai. A fazenda é,
portan-
to, o centro das ações principais e o lugar ao qual tudo o mais
está ancorado.
3 7 4
Centro versus margem
As árvores,
ou melhor
dizendo, os processos
de
arbo-
rização sendo os limites provisórios que interrompem
por
um momento o rizoma e sua transformação. (De-
leuze e Guattari, Pourparlers p.
200
Como
a própria Clarice dizia, esse é um de seus livros mais
bem estruturados. Ele,
na
verdade, tem
uma
organização que
pode
parecer intrincada no início,
mas
em seguida a história fica
bem amarrada e todas as partes combinam-se com perfeição.
Essas idéias
de
livros
estruturados
e centrados estão
em
con-
sonância com os conceitos desenvolvidos por Gilles Deleuze e
Felix Guattari, na oposição árvore
versus
rizoma . Realmente,
maçã
no escuro tem
um
claro centro de comando.
Há uma
po-
4
Cláudia Nina
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sição hierárquica entre
narrador
e personagens, e seu esquema
aproxima-se
do
modelo arborescente (ou
de
raiz).
Esse esquema representa sistemas hierárquicos
de
pensa-
mento e poder, governados por significação e organização. Co-
mo
Deleuze observa - A árvore
ou
a raiz inspiram
uma
triste
imagem do pensamento
que
não cessa de imitar o múltiplo a
partir de
uma
unidade
superior, de centro
ou de
segmento (De-
leuze e Guattari, 1976, p. 46). A árvore representa a
estrutura
do Poder no
mundo ocidental.
É
curioso como a árvore domi-
nou a realidade ocidental e todo o
seu
pensamento, da botânica
à
biologia,
à
anatomia,
mas também
gnosiologia, teologia, onto-
logia,
toda
a filosofia
...
(Deleuze e Guattari, 1976, p. 53). A lite-
ratura também
é,
por
extensão,
dominada
pela árvore - O li-
vro imita o
mundo
tanto
quanto
a arte, a
natureza
[ ..] A lógica
binária é a realidade espiritual
da
árvore-raiz . (Deleuze e Guat-
tari, 1976, p. 12
Em relação
à
oposição centro
versus
margem , é pertinen-
te lembrar que,
para
Deleuze e Guattari, tudo que é importante
e criativo acontece
não
no centro
da
estrutura,
mas nas margens
,
em cuja direção o rizoma espalha suas linhas de fuga lignes
de
futes .
De fato, os movimentos mais importantes e dinâmicos
de criação desenvolvem-se por rizoma e
em
conexão sucessiva
com
o lá fora ( en connexion immédiate avec
un
dehors ). (De-
leuze e Guattari, 1976, p. 55)
A
maçã
no
escuro,
bem
como as outras
narrativas do
silêncio es-
tudadas
neste capítulo, conformam-se com esse modelo anti-
go , arborescente ,
que
Deleuze rejeita: a ação está combinada
no centro. As margens representam o
que
já
passou
- a
vida que
Martim tinha antes e da qual o leitor não tem conhecimento -
ou
o futuro,
que
tanto pode ser a morte, como
na
história
de
Virgínia, como pode ser a
mera
continuação do status quo, co-
mo em A cidade
sitiada,
ou
a prisão, no caso
de
Martim. De qual-
quer
modo, o centro contém a história toda e todas as possibili-
dades de
ação. O mundo lá fora,
em
última instância, permane-
ce
um
mistério. Não é um mistério aberto e selvagem como
na
viagem
de
Joana, ao fim
de
Perto
do
coração
selvagem,
mas
um
fu-
turo
um
tanto quanto nebuloso,
sem
maiores perspectivas.
É de
extrema importância observar-se essa oposição cen-
tro
versus
margem
em
relação
à
oposição que ora proponho:
exilado
versus
nômade.
Como
já comentei anteriormente,
em
um
sentido conceitual, o exílio significa
um
movimento físico
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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desde
uma
origem,
um
centro, enquanto o nomadismo implica
um movimento constante, sem destino fixo e sem um centro.
Digo movimento físico porque, quando o exilado mora longe
de seu lugar de
origem e, portanto longe
do
centro
de sua
existência,
por um
certo período
de
tempo (que
pode
ser
uma
vida inteira), sua mente ainda está ancorada
no
passado, seja lá
por
que
razões forem.
Com
freqüência, o exilado não consegue distanciar-se (emo-
cionalmente)
de
suas origens, e isso caracteriza especificamente,
a
meu
ver, a idéia de exilado que proponho aqui: alguém que se
sente incapaz
de
engajar-se nas possibilidades
de
uma nova cul-
tura em uma terra nova, com pessoas diferentes (na maioria
dos
casos,
também
com uma
língua diferente) ao
seu
redor.
É
o
exato oposto do que acontece no caso nomádico
que
, no meu
entender, ilustra os últimos escritos de Clarice Lispector: as
margens
assumem
o espaço ilimitado da écriture onde dissol-
vem-se todas as fronteiras (inclusive os limites hierárquicos en-
tre personagens e narradores).
maçã
no
escuro encerra o ciclo do exflio antecipando a fase
seguinte
de
Clarice, que se inicia com paixão
segundo G H
Esta
nova fase avança na direção de uma perspectiva totalmente di-
versa: as personagens
assumem
a liderança enquanto sujeitos
de
suas próprias histórias, ao passo que se dissolvem por completo
as posições hierárquicas. De certo modo, a narrativa de Clarice
Lispector liberta-se rumo a um tipo de escrita que se faz
de
li-
nhas
de
fuga e associações rizomáticas desprovidas de raízes,
de
fim,
de
começo.
3.8
Conclusão
Para
concluir este capítulo sobre as narrativas do silêncio
penso
que
uma importante questão a ser respondida permane-
ce:
o
que
exatamente Clarice Lispector queria dizer com essas
obras? O
que
a autora estava
tentando
transmitir com romances
que
são tão contrários aos demais, escritos antes e depois?
Estaria Clarice Lispector tentando ilustrar, por meio
de
sua
ficção, a situação do exilado, que
pode
ser de qualquer tipo, não
só aquele que deixa sua terra pátria por motivos políticos, mas
todo aquele
que
se vê
numa
perturbadora situação de estra-
6
láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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nhamento social? Quando falo em exílio , estou falando da si-
tuação de exclusão, solidão, angústia, nostalgia e melancolia
que pode assaltar qualquer pessoa a qualquer momento da
vida
e não necessariamente só no exílio físico. Entretanto, refiro-
me
ao
termo
-
alma
exilada - e à situação
de
expatriação
para
ilustrar o drama
da
não-comunicação, da imobilidade, da não-
interação, da auto-restrição e
do
vazio
que
produzem a história
de todas as personagens de Clarice nàs narrativas
do silêncio.
Em minha opinião, esses aspectos estão entre os elementos
mais importantes dos romances, e a maneira como Clarice Lis-
pector os
aborda
torna as histórias ainda
mais
contundentes.
Vale lembrar
também
a estratégia literária escolhida para cada
um
desses romances. Em O
lustre
por
exemplo, a
autora
explora
a
profusão
de palavras em contraste com o silêncio interior de
Virgínia,
que
domina a personalidade
da
mulher. Isso, para
mim, significa uma confrontação flagrante entre o mundo exte-
rior, barulhento, e o interior de uma
mulher
que, onde
quer
que
vá, nunca se sente à vontade. Há um sentimento permanente de
desconforto
na
vida de Virgínia, como se ela fosse inadequada
em
qualquer circunstância.
Em
A
cidade
sitiada
por outro
lado, o
que
observo é
uma
per-
feita combinação entre o mundo lá fora, marcado
por uma
ine-
gável monotonia, e o mundo interior, passivo, silente e não-
interativo de Lucrécia. Ela é a exilada que aprendeu a viver com
restrições. Embora ensaie algumas vagas tentativas de mudar de
vida e de endereço, Lucrécia resigna-se a um mundo de pan-
tomima , no qual ela não tem suficiente coragem (ou vontade)
de estabelecer seu próprio domínio sobre a realidade. A m çã no
escuro
mostra um
mundo em crise,
onde
o
homem
descobre seu
próprio silêncio e tenta de algum modo readquirir a linguagem,
bem como a interação. Porém, o
movimento
fora
do
exílio
não
é
fácil, e o processo é tão lento quanto o
reaprendizado
da lingu-
a(gem).
Encontrei nesses mundos exilados uma conexão direta com
a
imagem
deleuziana de árvore , que, no
meu
entender, ilustra
com
perfeição o modelo
que
todos esses romances apresentam.
Não que
eu pretenda
classificá-los como romances conceitual-
mente
clássicos, mas o mundo que eles reproduzem é, de fato,
um
mundo
representado ,
dominado
pela árvore , governado
por
uma
lógica binária, com personagens emaizados na ambi-
ência exílica. Esses livros-árvores estão em oposição às linhas
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
7
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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de fuga que caracterizam as obras seguintes de Clarice Lispec-
tor, n s quais um nova
bord gem d
literatura transmite um
outr mensagem:
do
exílio p r o nomadismo, de regras e co-
m ndos p r
a liberdade pós-moderna
de
pens r e escrever
de
modo
diferente.
8
Cláudia Nina
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4
Atravessando odeserto:
paixão segundo
G H
• •
A barata é um tamanho escuro andando PSGH, 117)
Alguns
desertos produzem flores,
água
ou leite. O de-
serto pode ser uma experiência originária ou imaginá-
ria, algo
que
vem
em
ondas, do inconsciente. Hélene
Cixous,
Poetics
of
Knfkn
Blnnchot
Joyce
p. 130)
4 1
Introdução
O começo
dos
anos
6
foi
um
ponto
de
virada na
vida
e na
carreira
de
Clarice Lispector.
Em
1959, ela
voltou
ao Brasil de-
pois de
16
anos
no exterior. Separou-se do marido e começou
uma nova etapa junto
aos filhos
no
Rio
de
Janeiro. Acima
de
tu-
do, foi nos anos
6
que ela produziu o seu
romance mais
céle-
bre,
comentado
e criticado: A paixão
segundo G.H., publicado
em
1964.
Os
críticos em geral receberam o romance
como
o ponto
mais alto - até aquele momento - da carreira literária de Clari-
ce. O
livro
foi
publicado
quando
o Brasil
enfrentava
uma
de
suas mais difíceis crises nacionais, com a Revolução de 1964,
que
conduziria
o país a um longo
período de ditadura Algumas
leituras do romance traçavam, então,
um
possível paralelo entre
o cenário político-social e o itinerário
de
G.H.: o
país
lutando
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 9
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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contra o poder coercivo
do
Estado e Clarice Lispector também
lutando contra convenções e estereótipos por meio de sua
inovadora literatura. (Nunes, 1988, p. 202)
Não
obstante, mesmo
que
a obra não aborde questões so-
ciais diretamente,
paixão
segundo G.H. foi interpretada de vá-
rias maneiras como
uma
leitura
pungente da
realidade via
uma
temática existencial que emparelhava-se com a ansiedade dos
leitores naquele momento de sua história nacional. A obra foi
debatida nas universidades e os estudantes podiam identificar
suas buscas com a peregrinação de G.H. A narrativa complexa
predispunha-se a
um
amplo escopo de investigações. A pleni-
tude da busca de G.H. parecia estar no mesmo horizonte de ex-
pectativas
do
público universitário, imerso em dificuldades in-
dividuais, familiares, políticas e sociais. (Nunes, 1988, p. 203f
5
Mas o
que
há, afinal,
de
tão especial nesse romance que le-
vou os críticos a considerarem-no o texto mais denso da autora?
O enredo é simples, porém a narrativa é altamente elaborada. A
ação desenrola-se em um único aposento, minúsculo- o quarti-
nho
da
empregada -,
onde
G.H. a dona
da
casa) entra pela
primeira vez a fim de organizar o espaço depois que a empre-
gada
foi embora. A
entrada
no lugar misterioso traz
à
tona
confrontos
de
todo tipo, inclusive com G.H. aproximando-se
de
um inseto medonho, uma barata cuja polpa G.H. irá comer. O
encontro desenvolve-se em
um
longo itinerário epifânico-
filosófico,
à
medida em que a mulher descobre dimensões des-
conhecidas de seu próprio
mundo
doméstico.
Algumas leituras críticas compararam paixão segundo G.H.
a La Nausée
uma
vez que a sensação de náusea e repugnância
vinculavam este romance
de
Sartre
à
cena de
G.H.
engolindo o
inseto. Em O dorso
do
tigre Benedito Nunes analisa as diferenças
entre os dois romances, ressaltando que a náusea na obra
de
Sartre revela o absurdo de uma situação que leva à criação de
um significado em
uma
existência vazia e sem sentido. No ro-
mance
de
Clarice Lispector, entretanto, a náusea é um estado de
ser ocasional - não definitivo -, que termina sendo a passa-
gem para um outro nível
de
existência. (Nunes, 1969, p. 101)
Essa edição crítica de paixão segundo G.H., editada
por
Benedito Nunes, inclui
uma
extensa bibliografia, com artigos de revistas e jornais juntamente com textos
críticos e curiosidades como,
por
exemplo, a capa da primeira edição japonesa
do
romance.
12
láudia Nina
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A súbita presença de um inseto na vida de G.H. e as trans-
formações interiores
que
ela vivenda também têm urna conexão
com
A
metamorfose de Kafka. Mas no texto de Clarice a narrati-
va encaminha-se para urna destinação diferente. Sarnsa padece
de
urna restrição - a situação embaraçosa
de
estar exilado den-
tro
de
seu próprio corpo
de
inseto - que lhe foi imposta. Ele não
tem
capacidade para salvar-se nem mesmo
para
sair de casa. Ele
está definitivamente exilado em sua própria cama no corpo de
um
inseto. Em
A
paixão segundo G.H., contudo, a protagonista
decide - por seu próprio desejo e risco - entrar
no
quartinho
da
empregada
e aproximar-se da barata.
Não há
mais
ninguém
na
cena para provocar ou evitar qualquer ação. Além disso, a voz
de
G.H. articula seu
próprio
destino,
enquanto
Gregor Sarnsa,
na história
de
Kafka, não tem corno fazê-lo.
O protagonista de Kafka representa a consciência individual
que
não torna parte na criação
de seu
destino. Ele foi expulso da
história
da
humanidade reduzido que ficou a
um
animal,
um
completo estranho para si mesmo. Corno observa Roberto Sch-
warz, Gregor não é o sujeito
de
sua ação, mas sofre a circuns-
tância
em
estarrecimento urna vez
que
ele escuta a sua própria
voz
tornar-se estranha. (Schwarz, 1981, p.
61 .
Enquanto Gregor
passa
por
tal cruel realidade, sem nenhuma força subjetiva, en-
caminhando-se
para
a anirnalização , o ritual
de
G.H. implica o
que ela chama de despersonalização
de
tudo
que
ela era, co-
rno diz o texto:
A despersonalização como a destituição do individual inútil - a
perda de
tudo
o que se possa perder e,
ainda
assim, ser. Pouco a
pouco tirar de si, com um esforço tão atento que
não
se sente a dor,
tirar
de
si, como
quem
se livra
da própria
pele, as características.
Tudo o que me caracteriza é
apenas
o
modo
como sou mais facil-
mente
visível aos outros e como termino sendo superficialmente
reconhecível
por
mim. Assim como houve o
momento
em
que
vi
que
a barata é a barata de todas as baratas, assim quero de mim
mesma
encontrar em mim a
mulher
de todas as mulheres.
PSGH,
p. 178)
Deve-se notar aqui que o conceito
de
metamorfose em
paixão
segundo
G.H. engendra não só a despersonalização ou a
gradual
desenraização
de
si mesmo (PSGH, p.168), corno diz
G.H., mas também urna transformação estética. O romance ope-
ra urna reflexão sobre a narrativa, no sentido em que esta apre-
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
121
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senta uma completa transformação da forma do texto, como se-
rá
ana
li
sado
a seguir. Além disso, no que diz respeito à estrutu-
ra narrativa, é importante observar o ato de entrar em um espa-
ço jamais antes visitado. Enquanto G.H. entra no quartinho da
empregada,
Clarice Lispector cruza a solei
ra
de
uma
nova
fase
literária, encenando uma ruptura em sua carreira.
A voz do eu aparece
na
arena narrativa pela primeira vez.
Ficam estreitadas as conexões entre literatura e filosofia, tendo a
linguagem como
seu
elemento comum. A autora pisara
em um
novo
território literário, onde o silêncio não representa a mera
ausência de palavras, mas, em vez disso, o fracasso da lingua-
gem em atingir aquilo que se encontra além
das
palavras, ou
melhor, o inexpressivo .
É
um
passo adiante,
desde
maçã
no
escuro; Martim sabe que, para obter coisas, precisa nomeá-las.
Ele perde a linguagem simples do dia-a-dia,
enquanto
G.H.
quer
atingir o indizível e conquistar o silêncio por rrv:::o da
linguagem.
Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E
me
arris-
car
à enorme surpresa que sentirei
com
a pobreza da coisa dita[ ..]
É
porque
não
tenho uma
palavra
a dizer.
Não
tenho
uma
palavra
a dizer.
Por
que não
me
calo, então? Mas
se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em
ondas.
A
palavra
e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vaga-
lhões de mudez. PSGH, p. 24
A questão é realmente complexa.
paixão
segundo G.H. é
uma
passagem em
direção a novos rumos. Representa uma jor-
nada
na direção dos escritos posteriores de Clarice Lispector.
Tendo
sido
escrito logo
após
o que defino
aqui
como
ciclo
do
exí-
lio, o romance simboliza
uma
passagem
para
algo verdadeira-
mente novo: retrata
um
movimento importante
em
direção à
fragmentação
de
forma e estrutura, bases
da
arquitetura
dos
romances anteriores de Clarice. De fato, ele reúne muitas carac-
terísticas,
em
configuração e substância, que serão amplamente
exploradas pela autora nos escritos nomádicos, tais como: o fra-
casso da construção e da unidade; o silêncio em palavras ; a
perda da
forma;
e,
acima
de
tudo, a abertura
para
o desconheci-
do.
paixão segundo G.H. não seria, ainda, plenamente nomádi-
co, mesmo considerando o fato de o romance ter
em
comum
com as obras posteriores, como já disse, alguns elementos ri-
122
láudia Nina
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zomáticos , tais como a inexistência de uma estrutura de ro-
mance com personagens e narradores em
suas
posições hierár-
quicas. Apesar desses elementos, prefiro considerar essa obra
um cruzamento , um ponto de passagem para a fase seguinte,
na
qual esses elementos rizomáticos estão mais claramente
desenvolvidos. Sendo
um
trabalho de transição, muitos aspectos
devem ser observados
enquanto
representativos de um impor-
tante período de metamorfose que merece atenção detalhada.
4.2
Aproximando se do outro
Cada vida é muitos
dias,
dia após dia. Andamos
através de
nós
mesmos, encontrando-nos
com
la-
drões, fantasmas, velhos, jovens, esposas, viúvas, ir-
mãos
apaixonados, mas
sempre
encontrando-nos com
nós
mesmos. (Joyce, Ulysses p. 175)
paixão segundo G H é o primeiro dos textos ficcionais de
Clarice Lispector
em
que uma voz dirige-se diretamente ao lei-
tor.
No
prefácio,
a
autora
identifica-se
pelas
iniciais C.L.,
abordando
os leitores em potencial, solicitando um público cuja
alma já esteja formada, pois esse seria o único público capaz de
entender
o livro. O leitor é, então, o primeiro outro desconhe-
cido (Minh-ha, 1989, p. 6) de quem Clarice aproxima-se, em
busca de algum tipo de colaboração a fim de fazer existir o rela-
to de G.H.
Os
outros encontros da narrativa são feitos
não
por Clari-
ce Lispector
em
sua
verdadeira
identidade,
mas
por G.H., a
única voz
no
texto, narrado por um eu
muito
eloqüente. Seu
primeiro momento de confrontação acontece quando ela entra
no quartinho
da empregada
-
um
lugar onde jamais ousara en-
trar antes. A empregada, de
nome
Janair,
sempre
fora uma es-
tranha para G.H., e o
quarto
de uma tal pessoa tem de ser, pre-
sumivelmente, um lugar cheio de mistério e um tanto escuro e
desorganizado,
pressupondo-se que
um
estranho representa
tudo que
é meio obscuro e suspeito
para
as idéias preconcebidas
de alguém. Ao contrário de suas expectativas, no entanto, o
quarto
é bem iluminado e limpo.
Torna-se relevante
indagar por
que G.H. pressupõe que o
quarto
da
empregada
é um espaço sujo e desorganizado. Sim-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
23
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plesmente porque as empregadas são pobres e, no Brasil, em
sua
maioria, são
de
pele escura? Ou
porque
ela é uma estran-
geini morando em seu domínio? De fato, G.H. está tão desvin-
culada
do mundo
lá fora que qualquer elemento exterior
(marginal) é julgado bizarro, escuro e bagunçado. Antes
de
en-
trar nos novos domínios daquele quarto, G.H. é vista como
uma escultora
de
classe
média
(uma artista com talento para
dar forma a materiais em estado bruto),
morando
com confor-
to no
topo de
seu castelo moderno,
sua montanha
sagrada
(uma cobertura). De certo modo, ela vive em
uma
espécie
de
re-
alidade exilada, totalmente ignorante do que acontece em outras
camadas
da
sociedade e além
de
suas limitadas fronteiras. Até
aquele momento, ela
não
havia
dado
sequer
um
passo
na
dire-
ção
de
uma pessoa com quem convivera tão
de
perto. Ela sim-
plesmente ignora a existência
da
empregada como alguém com
expectativas, desejos, sentimentos e criatividade.
Tal alienação tem
uma
certa dose
de
exílio interior: G.H. es-
tá tão separada
do
Outro = o diferente) que ela se recusa a
aprender qualquer coisa sobre uma realidade que não era dela e
que implicava, até certo ponto, o aprendizado
de uma
outra
linguagem , inclusive
com
novos códigos e valores culturais e
artísticos. Quando ela decide entrar
no
quarto, ela inicia um
longo e doloroso processo
de
abrir-se, de despir-se das várias
cascas
de
seu casulo a fim de investigar o que está por trás de
seus preconceitos. O
quarto
divergia tanto do resto do aparta-
mento
que
para entrar nele era como se eu antes tivesse saído
de
minha
casa
PSGH,
p.46). A realidade inesperada é por demais
chocante. Seus sentimentos são
uma
mistura de perplexidade e
terror:
Da porta eu
via agora que tinha
uma ordem
calma e vazia. Na mi-
nha
casa fresca,
aconchegada
e
úmida,
a
criada sem
me
avisar
abrira
um
vazio seco. Tratava-se agora de
um
aposento todo limpo
e vibrante como
num
hospital
de
loucos
de onde
se retiram os ob-
jetos perigosos.
PSGH,
p. 42)
[
..
] pois não fora a miragem de
um
oásis
que eu
tivera, mas a mi-
ragem
de
um
deserto.
PSGH,
p. 53
Uma
possível
queda
naquele quarto de silêncio constrangeu-me o
corpo
em
nojo
profundo
tropeçar fizera de
minha
tentativa de fuga
um
ato já em si
malogrado-
seria esse o
modo
que eles , os
do
sarcófago, tinham de não me deixar mais sair?
PSGH,
p.
53
124 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Dentro desse estranho e limitado universo, G.H. encontra
uma outra surpresa:
um
mural com figuras isoladas na parede.
O quadro é repentinamente revelado a seus olhos como um re-
trato de si mesma (seu outro eu ), apresentado pela sensibili-
dade da
empregada.
Pouco
a pouco,
quanto
mais
G.H. olha,
mais surpreendente e enigmáticos lhe parecem os desenhos. As
linhas desconexas como um mapa, levando para direções im-
previsíveis - às vezes se parecem com múmias, às vezes zumbis,
às vezes não são linhas decorativas, mas sim uma escrita,
uma
espécie de estranho código que ela não sabe decifrar. A partir da
observação atenta dessas linhas, G.H. começa a
mensurar
sua
ignorância acerca daqueles
que
não são seus pares e que, por-
tanto, iriam julgá-la
de
uma
perspectiva externa.
[ .. ]curiosamente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era
eu
mesma. Coagida com a presença que Janair deixara de si mes-
ma
num
quarto de
minha
casa,
eu
percebia
que
as três figuras an-
gulares de zumbis haviam de fato retardado minha
entrada
como
se o quarto estivesse ocupado. (PSGH, p. 45
Perguntei-me se
na verdade
Janair teria
me odiado ou
se fora
eu
que,
em
sequer a ter olhado, a odiara. (PSGH, p. 47
Cercada por algo que
não
lhe é familiar
dentro
de
um
am-
biente que lhe é familiar, G.H. também observa um outro ele-
mento estranho :
uma
barata
que
sai de detrás
do
armário.
Desse momento em diante, sua jornada interior aprofunda-se
rumo a
uma
dimensão metafísica. O inseto simboliza, entre
muitas outras coisas, uma interação com o mais estranho possí-
vel dos
outros
o outro não-humano, objeto de nojo, medo e re-
jeição. Comer a matéria branca, como no fim G.H. faz, significa
um esforço de aproximação doloroso e laborioso. É receber o
outro em sua
alteridade , respeitando - e
comungando
com -
sua forma desforme e sua incompreensível natureza (Machado,
1988,.p. 109). Se G.H. não consegue aproximar-se da
empregada
durante todo o tempo em
que
ela trabalhou e viveu tão perto
de
si, como
uma
estrangeira que vai crescendo silenciosamente em
seus domínios, ela se confronta,
em
vez disso, com o inseto. A
experiência
de
ir
em
direção à alteridade é vivenciada
em sua
totalidade. Como diz o texto:
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 25
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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A matéria da barata, que era o seu de dentro, a matéria grossa, es-
branquiçada, lenta, crescia
para
fora como se
uma
bisnaga
de pasta
de dentes.
Diante
de meus
olhos enojados e seduzidos, lentamente a forma
da
barata ia se modificando à
medida
que ela engrossava
para
fora. A
matéria branca brotava lenta
para
cima de suas costas como uma
carga. (PSGH, p. 66)
Rosi Braidotti observa
que
a aproximação
em
direção ao in-
seto abrange muitas transgressões. E esta palavra - transgressão
-traduz, realmente, urna das idéias cruciais
do
texto na medida
em que toda a jornada refere-se a atos de transgressão perpetra-
dos por G.H. Afinal, a
mulher
torna-se urna transgressora de
sua
própria
vida, desafiando seus próprios valores prévios e
preconceitos. De acordo com Braidotti:
Quase como um zumbi,
seduzida por
uma força que ela
não
sabe
nomear porque
habita-a tão profundamente, ela consuma o inter-
curso com o outro pela assimilação totêmica da barata: um gesto
que transgride
uma
série de limites e tabus
humano/não-
humano; próprio
para comer/impróprio para
comer;
cozido/cru;
e assim
por
diante). (Braidotti, 1994, p.192)
Também é importante salientar, corno Braidotti observa, o
ato de dissolução dos
próprios
limites
no
encontro
inesperado
com o quarto e a barata. E quando G.H. torna consciência do
fracasso de
sua
identidade socializada (Braidotti, 1994, p.192).
Movendo-se em direção ao universo da empregada e, depois,
em
direção à natureza do pré-humano
o
inseto), G.H. realiza
urna clara descentralização de sua vida. A existência centrada
que
ela
tinha
antes (protegida,
por
assim dizer,
em
seus altos
domínios sociais) dissolve-se quando ela decide aproximar-se
das margens nas quais há
outras
formas de existências (outros)
que ela desconhecia. Assim, transgressão e descentralização são
palavras-chave
em
paixão
segundo
G.H. São também qualida-
des
essenciais que, em minha opinião, marcam a
proximidade
desse romance com os escritos
nomádicos
A
po
lpa da
barata
que G.H. come também representa o
impuro ,
que
está diretamente relacionado
no
texto com a
Bí-
blia e com as leis da dieta dos judeus, que proíbe certos alimen-
tos. A própria G.H. fornece a dica: Eu me sentia imunda corno
a
Bíb
lia fala
dos
imundos. Por que foi que a Bíblia se
ocupou
dos imundos, e fez urna lista dos animais imundos e proibidos?
26
Cláudia Nina
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(PSGH p.
75
Ao cometer o ato profano, G.H. submete-se a uma
espécie de batismo ao contrário, simbolizando sua entrada em
um novo momento de sua vida.
O interior informe da barata reflete a mesma falta de forma
da
consciência desorganizada e
sempre mutante
do
sujeito. De
fato, no começo
da
história, G.H. sentia-se
amedrontada
com a
desorganização profunda (PSGH, p. 15); é ao redor dessa falta
de estrutura e de unidade (de tal desordem)
que
toda a jornada
interior desenvolve-se. Quando ela entra no quartinho, ávida
por
organizar o
que
ela
pensava
estar bagunçado, porém, ela pi-
sa num caminho mágico através do qual ela descobre, em vez
disso,
uma
outra bagunça - sua
própria
desarrumação interna,
que
ela então irá explorar.
Ao longo do texto, G.H. mostra-se obcecada por organiza-
ção -
Ordenando
as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo
[ .. ] Arrumar é achar a melhor forma (PSGH, p. 37). Mais adian-
te, contudo, ela se
dá
conta da impossibilidade - ou inutilidade
de
viver em um mundo organizado onde tudo tem seu sentido
próprio: Eu estava
vendo
o
que
só teria sentido mais tarde -
quero dizer, só mais tarde teria
uma
profunda
falta
de
sentido.
Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido - é
o sentido . (PSGH, p. 39)
Em Spinning form: reading Clarice Lispector , Regina He-
lena de Oliveira Machado sugere que a matéria amorfa
da
bara-
ta é muito importante
para
a estrutura de p ixão segundo G.H..
Regina salienta
que
a
polpa
representa acima de tudo a perda
da forma , que está na origem do processo da escrita, especial-
mente de
uma
obra tão despojada
de
uma
estrutura convencio-
nal e
de
uma
organização formal:
O sujeito
que
escreve tenta
entender
(dar forma,
pela
escrita e
na
escrita) o
que
está acontecendo consigo. Assim, o sujeito está de-
sorganizado desde o começo. Escrever,
dar
forma, nesse sentido,
é
um
esforço para entender o que está acontecendo, junto com uma
tentativa
de
reorganização. Mas esse
dar
forma , esse entender
deve ao mesmo tempo respeitar a ocorrência como tal, em
sua
sú-
bita imprevisão,
em sua
estranheza e
em sua
alteridade,
sem
dela
apropriar-se, sem integrá-la, sem neutralizá-la [ .. ] O outro para
mim é a ausência de forma. É
por
isso que a escrita é elaborada
como uma arte do fracasso, uma arte do retraimento, na medida
em que está dando forma num movimento mais livre, delicado, in-
consciente, de maneira desatenta. (Machado, 1988, p. 109)
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
27
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É
importante
lembrar que a busca da mulher
por
dar for-
ma acontece via
linguagem-
linguagem escrita. G.H. escreve
em vez de falar. Seu itinerário é feito por meio das palavras
que
ela escreve. Dar forma é, portanto, parte do próprio exercício de
pensar
e escrever. Clarice Lispector vincula a experiência
de
vir
a ser (ou de sua despersonalização ) com o ato de produzir um
relato escrito. Escrever é parte de todo o processo pelo qual pas-
sou
G.H.-
Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que al-
guém
está
segurando
a minha mão
(PSGH,
p. 22); Mas receio
começar a
compor
para poder ser entendido [ ..
]receio
começar
a fazer um
sentido[ ..
] .
(PSGH,
p.
19)
4.3
m deserto de revelações
Tremo de medo e adoração pelo que existe. (PSGH, p.
141
A
paixão
segundo
G.H.
é, realmente,
um
romance de muitas
revelações. A começar pelo título,
por
exemplo. A
palavra
pai-
xão , significa um sentimento forte de amor, o que poderia levar
o leitor a concluir apressadamente
que
se trata de uma narrativa
romântica. A expectativa é logo frustrada, pois, já nas primeiras
páginas do quinto
romance de Clarice Lispector, a paixão refe-
rida é sobre o itinerário de G.H. rumo à redenção e à verdadeira
identidade
mediante
rotas incertas, com a
linguagem
como ins-
trumento de navegação.
Claro
que
paixão
tem
um
sentido imediato, bíblico, signi-
ficando o sofrimento de Cristo, como em
A
paixão segundo São
Mateus A
paixão segundo
São
João
etc. De fato, a referência às
narrativas dos Evangelhos não se limita ao título. No artigo Pa-
ródia
e metafísica , Olga de Sá cita
algumas
expressões bíblicas
invertidas
16
empregadas como um eloqüente dispositivo retóri-
co. Entretanto, Olga de Sá
não
vê qualquer tipo de zombaria dos
Evangelhos no texto de Clarice Lispector, e a fonte bíblica está
presente
para
conferir
maior
eloqüência à
jornada
espiritual
de
G.H.
Em A
paixiío segundo
G.H.,
como ressalta Olga de Sá Sá,
1988), Clarice subverte
ci-
tações bíblicas, como no caso de Meu reino
é
deste
mundo ..
e
meu
reino não era
apenas
humano
. (PSGH, p. 128.)
128
Cláudia Nina
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Sua exploração interior, no entanto, só é possível em função
de um importante elemento, que também é a essência do ro-
mance: as epifanias. Tomando-se o termo em literatura como si-
nônimo
de
revelação (ver o capítulo 3
de Perto
do coração
selva-
gem
em
meio a
uma
experiência de vida cotidiana, o progresso
de
G.H. com certeza é marcado
por
epifanias.
Fundamentado na pesquisa de Arnold Van Gennep (Gen-
nep, 1978) sobre como a sociedade organiza seus ritos, Affonso
Romano de Sant' Anna, no estudo O ritual epifânico do texto ,
aplica o modelo de Van Gennep para paixão
segundo
G.H.
Gennep divide os ritos em categorias (ritos preliminares, limina-
res e pós-liminares), o que abrange a preparação para os sacrifí-
cios ou obstáculos, a transformação propriamente dita e o resul-
tado da experiência na vida da pessoa e na comunidade;
Sant'
Anna
reconhece no romance de Clarice Lispector uma se-
qüência similar de eventos. (Sant' Anna, 1997, p. 240)
Em
primeiro lugar, G.H. acorda decidida a arrumar o quar-
tinho
de
empregada. Esse é o momento pré-epifânico. Nesse
ponto, ela se prepara para o que está por vir. Por isso ela pri-
meiro termina
de
fumar
seu
cigarro e desliga o telefone,
porque
nada pode perturbá-la. O tempo precisa ficar suspenso e desco-
nectado do trivial. O quarto ao qual se chega atravessando a co-
zinha e por
uma
passagem através
da
área de serviço - um cor-
redor
escuro (PSGH, p. 40 é como uma
porta
que se abre para
vastas possibilidades
de
transformação.
O passo seguinte é a epifania propriamente dita- o
clímax-,
quando G.H. vê a barata, e o fato comum assume proporções
extraordinárias, fazendo
com que
ela repense a realidade.
Como
escreve Affonso Romano de Sant' Anna: Na verdade, a mulher
está vertendo também a sua massa branca de epifania e pasmo.
Está ali prisioneira, com 'náusea', e 'nojo'. A barata é mais
que
uma
barata. O quarto é mais que um quarto. O armário é mais
que
um
armário. A barata é
um
lugar
de
passagem (Sant' Anna,
1997, p. 244). O terceiro momento do encadeamento epifânico
apresenta uma série de infinitas mudanças que G.H. vivenda
depois
da
aproximação, como fica implícito no texto:
-
eu
sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho
de luz mais branca
no
reboco da
parede-
sou cada pedaço infernal
de mim. (PSGH, p.
69
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
129
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[
..
] sabia que me havia abandonado já para fora de meu alcance.
(PSGH,
p.
100)
paixão segundo G.H. é também
uma
obra epifânica
no
sen-
tido
em
que
representa
um
momento de
revelação
na
carreira
de Clarice Lispector. Ela conduziu a
autora de
volta ao mesmo
tipo de escrita de Perto do coração selvagem.
No
entanto,
em
seu
quinto
romance, o nível
de
maturidade e densidade filosófica -
após o período
de
experimentação do ciclo do exílio -
aprofun-
da-se e vai ser explorado em
seus
textos posteriores.
4 4
Tornar se
Escreve-se sempre para dar vida, para liberar a vida
lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fu-
ga. (Gilles Deleuze, Pourparlers p. 192)
Escrever é vir a ser. Não vir a ser um escritor (ou poe-
ta),
mas vir a ser, de modo intransitivo. (Trinh T.
Minh-ha,
Woman natíve
other
p.
19)
A partir do
momento
em que G.H. confronta-se com o
quar-
tinho da empregada, ela começa seu processo
de
metamorfose.
De fato, G.H. está
disposta
a mudar desde o começo, quando ela
aceita
de
peito aberto o risco
de
ir sozinha, não
importando
o
que aparecesse
no meio
do caminho -
O
horror será a minha
responsabilidade até
que
se complete a metamorfose e que o
horror se
transforme
em
claridade
(PSGH,
p.
22).
O quarto e, por extensão, o edifício também mudam, refle-
tindo os
movimentos
interiores da protagonista: [ ... ] essa cons-
trução
ia-se saturando de si mesma: ia ficando
cada
vez mais
compacta, em vez
de
se tornar cada vez
mais
frágil (PSGH, p.
72).
A estrutura
da
história, em que
cada
capítulo começa pela
repetição das últimas
palavras do
capítulo anterior, é
bastante
ilustrativa
das
oscilações íntimas
da
protagonista,
que
se
dão
em
ciclos contínuos. Ela vivenda o mecanismo
de ampliar
suas
perspectivas
ao mesmo tempo
em
que acidentalmente se vê pe-
quena e
desprotegida como
uma criança de colo, mudando de
forma
como
lice
no
país das maravilhas. G.H. diz: Anteriormen-
te, quando eu me localizava, eu me ampliava.
Agora
eu me lo-
130 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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calizava
me restringindo
-
restringindo-me
a tal
ponto
que,
den-
tro do quarto, o meu único
lugar era entre
o pé da cama e a
por-
ta do
guarda-roupa PSGH,
p. 54)
ou
então: [ ] a
grandeza
do
mundo
me encolhe . PSGH, p. 23
Esta é
uma
referência
comum em
narrativas
mitológicas: a
queda do herói num precipício, ou através de um buraco, como
na
Alice
de Lewis Carroll, que encontra uma porta que se
abre
para
um mundo
completamente
novo,
onde
ela
aumenta
e di-
minui de tamanho
muitas
vezes. Do
mesmo modo, G.H. entra
através de um buraco
invisível e cai
direto
num
abismo: Um
abismo de
nada.
Só essa coisa
grande
vazia: um
abismo
PSGH,
p.
30 ,
onde ela
passa por
intermitentes transformações,
embora
não saiba exatamente no que está se
transformando:
[ ]
tenho
que fazer o esforço de
pelo menos me
dar uma
forma anterior
para poder entender o que aconteceu ao ter perdido essa for-
ma . PSGH, p. 28)
Na
verdade,
o exercício de transformações constantes e si-
multâneas
é
um
aspecto crucial do romance, o
que
leva
ao
con-
ceito
de vir
a ser ,
ou
tornar-se
em
Deleuze.
Ao revisar
o
du-
alismo platônico, Deleuze reflete sobre essa definição
como
um
processo
de mover-se
em
diferentes direções
ao mesmo tempo,
transcendendo
limites infinitamente, justo o que acontece
com
G.H.
Partindo da
distinção
que
Platão faz
entre
duas
dimensões-
uma que é fixa,
mensurada,
e
outra que
se
move em
várias dire-
ções
ao mesmo
tempo-, a oposição se constrói. De
acordo
com
Deleuze, o conceito se refere à essência de
vir
a ser, ou seja,
mo-
ver-se,
expandir-se
em
mais de uma
direção
ao
mesmo tempo
(Deleuze e Guattari, 1976, p. 39). Deleuze também
aborda
o con-
ceito
de vir
a ser
na literatura
com
referência
ao grande
ro-
mancista , ou melhor, ao artista que inventa afetos desconhe-
cidos
ou
não-reconhecidos e os
traz à tona como
o
vir
a ser de
sua
personagem.
Não
são tão-somente romancistas, mas vêm a
ser eles
próprios.
(Deleuze e Guattari, 1994, p. 174)
A paixão
segundo G H é
uma narrativa
altamente
enganosa.
Tudo
muda
a
todo
o
momento.
As linhas
traçadas
no mural do
quarto
da empregada -
um
caleidoscópio - são
bastante
repre-
sentativas
de tais transformações. Nada
no
texto é o que
parece
ser, e todos os
elementos-
tempo, forma,
personagem
e
espaço
- enganam
cada
formulação preconcebida. A
barata não
é ape-
nas um
inseto; o
mural não
é
mera
decoração,
mas
é
também
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
131
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um código secreto em constante mutação; o quarto não é uma
quartinho inocente,
mas
imenso e aberto que conduz a múlti-
plos pensamentos.
E G.H.? Quem é a mulher, afinal? Ela é a protagonis-
ta/narradora
que
não
pode
ser
definida-
capturada
em
concei-
tos fixos- na
medida
em que ela se transforma junto com as li-
nhas
do texto. A subjetividade da mulher exemplifica perfeita-
mente o "vir a ser sujeito" (Braidotti, 1994, p.120) governado por
um
forte desejo
de
saber, isto é, de escrever,
mudar,
pensar, re-
presentar e transfigurar a realidade e as imagens do pensamento.
No
que
se refere à idéia de Deleuze, de "vir a ser", também é
importante notar que ele vincula
seu
conceito com o processo
de
"vir a ser
da
mulher", o
que
é bastante
apropriado em
relação
à
história
de
G.H. Em
Mille plateaux:
capitalisme
et shizophrénie
De-
leuze afirma que "vir a ser mulher" é pré-condição para todo o
processo
de
vir a ser (Deleuze e Guattari, 1988, p. 291). Ele ob-
serva que é a especial situação das mulheres em relação ao pa-
drão masculino que explica o fato de que os processos
de
vir a
ser, por serem minoritários, sempre passam por
um
"vir a ser
mulher" (Deleuze e Guattari, 1988, p. 291). Entretanto, Rosi
Braidotti questiona essa generalização,
argumentando que
nem
todos os processos de "vir a ser" são iguais. Ela enfatiza que
"Deleuze cai
em
contradição ao postular
um
"vir a ser mulher"
geral,
que
não leva em conta a especificidade epistemológica e
histórica do
ponto de
vista feminista/ feminino". (Braidotti,
1994, p.120)
Em A paixão
segundo
G.H., esse aspecto de "vir a ser" tam-
bém
deve ser
cuidadosamente
analisado. O itinerário filosófico
de
G.H. está realmente conectado a constantes transformações
que
se aplicam
à
totalidade da idéia
de
vir a ser
da
mulher. A
subjetividade feminina está vinculada,
no
texto, ao processo das
transformações
de
G.H. Não
há
voz masculina e nem
um
narra-
dor dominante
no
comando
da
história. A peregrinação
de
G.H.
vai
em
direção a uma dimensão mais ampla, como sugere o
termo "despersonalização", usado pela protagonista. Ela quer se
ver livre
de
tudo
que
tinha/
era antes, a fim
de
conquistar-se a si
mesma com maior profundidade e de tal modo que o "enten-
der"
não
seja mais necessário- [ ] não estou
entendendo
o que
estou dizendo, nunca Nunca mais compreenderei o que eu dis-
ser"
PSGH,
p. 183). O desejo
de
G.H. é, portanto, o desejo
de
conquistar outras formas de pensamento, que vão além da mera
3
Cláudia Nina
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racionalização daquilo que pode ser simplesmente entendido ou
interpretado. Em outras palavras,
ela
empreende
a
aprendiza-
gem do pensar de modo diferente . (Braidotti, 1994, p. 119)
4.5
ir a ser mulher
Mas de mim
depende
eu vir livremente a ser o que fa-
talmente sou. (PSGH, p. 128)
A
viagem interna
de G.H. e o
conseqüente
vir a ser
desen-
volvem-se
por
meio
de
uma
perspectiva feminina. O texto é cla-
ramente um texto feminino, no sentido em que a
narrativa
é
uma
reflexão sobre a
própria
experiência feminina - [ ]
ser
feminina também me foi
um
dom (PSGH, p. 33) diz G.H. Na
verdade,
o ponto
de
vista da protagonista é,
de todas
as manei-
ras,
feminino-
Tive, sim, tive
ainda
o desejo
de
me refugiar
na
minha própria fragilidade e no
argumento
astucioso,
embora
verdadeiro,
de
que meus ombros eram
os de
uma mulher,
fra-
cos e finos
(PSGH,
p. 101).
Além
disso,
desde
o começo, as de-
mais personagens que surgem na
história
são também
fêmeas: a
empregada Janair e a barata, a quem G.H. se dirige empregando
palavras conjugadas
no feminino; é barata,
não
o inseto -
Eu
só a pensara
como
fêmea,
pois
o que é
esmagado pela cintura
é
fêmea
(PSHG,
p. 97).
Um outro elemento que
deve
ser
visto
a
partir de uma
a-
bordagem feminina é a referência à
palavra
útero e ao fato de
que
o
quarto opera
em
G.H.
uma
espécie
de
fertilização . Co-
mo ela diz: [ ] o
quarto
morto
era
na verdade
potente (PSGH,
p. 51). E
também,
referindo-se à
barata
que
ali encontrara: Os
dois olhos
eram
vivos
como
dois ovários. Ela me olhava
com
a
fertilidade cega de
seu
olhar. Ela fertilizava a
minha
fertilidade
morta
(PSGH, p. 81). O útero,
com
freqüência, é
indiretamente
associado
ao nascimento
de Jesus Cristo,
como na
frase [ ]
bendito o fruto de teu
ventre
(PSGH, p . 87) e
ainda
como refe-
rência a
um
possível filho
de
G.H :
[
]um
filho
no
meu ventre
estaria
ameaçado
de ser
comido pela
própria vida-morte, e sem
que uma palavra
cristã tivesse
um sentido Mas
é
que
há tantos
filhos no ventre que parece uma prece . (PSGH, p. 128)
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 133
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G.H. insere o feminino no coração da narrativa. De acordo
com Hélene Cixous, o romance é
um
espaço no qual a feminili-
dade está inscrita em cenas de risco. É um texto que salta, lar-
ga, perde, deixa as coisas se perderem, não se
prende
a nada,
não segura nada
(Cixous, 1990, p.
76).
Esse exercício, realizado
por meio
de
densas transmutações, como Cixous coloca, com-
bina com uma certa economia libidinosa (Cixous, 1990, p. 47),
na qual o que realmente interessa não é o objetivo em si, mas o
'rumo
a '. G.H. escreve o útero
de
um
modo
que apenas uma
escritora pode fazer, como explica Trinh Minh-ha em Wo 'f1an na-
tive
other:
[ ...
] escrever como um processo 'intrínseco'
de
nas-
cimento assume qualidades diferentes em contextos femininos.
Nenhum
homem
afirma
que
fala a partir
do
útero, mulheres
sim. O
lugar de
sua fertilização, elas insistem seguidas vezes, é o
útero, não a mente. Sua gestação interior se
dá
no útero, não na
mente . (Minh-ha, 1989, p. 37)
Em Nomadic subjects, Rosi Braidotti analisa, com lucidez, o
romance, a partir
de
uma abordagem feminista e pós-moderna.
Ela considera paixão segundo G.H. um conto sobre o vir a ser
das mulheres: é sobre a
nova
subjetividade feminina (Braidotti,
1994, p. 194). O itinerário filosófico de G.H. exemplifica, para
Braidotti,
que
pensar é apenas uma forma
de
sensibilização da
matéria, é a forma específica da inteligência de entidades perso-
nificadas. Pensar é um processo corporal, não mental. Pensar
precede o pensamento racional . (Braidotti, 1994, p. 197)
Braidotti articula a conexão entre essas idéias e o sistema fi-
losófico
de
Deleuze. Ela observa
que
a disposição do sujeito
para
pensar, isto
é,
representar-se a si mesmo(a)
na
linguagem é
a base não-filosófica da filosofia que Deleuze defende (Braidot-
ti, 1994, p. 197). Para Braidotti, todo o conceito de pensar vem a
ser uma tentativa
de
criar outras maneiras
de
pensar, outras
formas
de
pensamento. Braidotti enfatiza ainda a responsabili-
dade para
com
o próprio ato
de
pensar. Como observou Clari-
ce Lispector, estamos alimentando o início do novo; o sujeito
feminino despersonalizado posiciona as fundações
para
a sim-
bolização
do
desejo ontológico das mulheres (Braidotti, 1994, p.
197). Em outras palavras,
paixão segundo
G.H. constrói a ex-
pressão
de
uma
nova maneira
de
pensar e uma nova subjetivi-
dade. Ele [o romance] nos mostra caminhos de transcendência
para
nosso gênero e para o próprio e descontínuo tempo
de
vir
a ser das
mulheres . (Braidotti, 1994, p. 204)
34 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Movendo-se em direção à teorização de formas de
pensar
e
de vir a ser anti-patriarcais e alternativas, Braidotti estreita as
conexões entre a nova subjetividade que G.H. exemplifica e a
mobilidade física nomádica. Isso representa, até certo ponto, a
liberdade
intelectual/
criativa
para
inventar novas formas
de
pensamento . De acordo com ela:
[ .. ] vir a ser indivíduo com direito à mobilidade é magnífica faça-
nha para as mulheres.
A dimensão física é apenas
um
aspecto; mobilidade também refe-
re-se ao espaço intelectual de
criatividade,
ou
seja, liberdade para
inventar novas maneiras de conduzirmos nossas vidas, novos es-
quemas
de
representação
de
nós mesmas. Liberdade
da
mente
como a contraparte da mobilidade física; [
..
] Mobilidade como o
meio de alcançar
uma
representação mais
adequada
de nós mes-
mas. (Braidotti, 1994, p. 256
Historicamente, o espaço
de
passeios erráticos nomádicos
p r
excellence
é o deserto, que também traz em si, encapsulada,
uma abertura simbólica a diferentes maneiras
de pensar
e, por
extensão, de escrever. Afinal, como define Braidotti, os desertos
são
um mapa gigantesco de signos
para
aqueles
que sabem
ler
esses sinais, para quem sabe andar na natureza selvagem can-
tando
(Braidotti, 1994, p. 17). Na verdade,
em A
p ixão
segundo
G.H., a metáfora do espaço é um aspecto significativo
da
narra-
tiva. O minúsculo quarto de empregada onde G.H. confina-se
esconde
uma
vastidão aberta: um deserto por meio do qual ela
cruza fronteiras invisíveis.
Eu procurava
uma amplidão
[
..
]
E mais além, já o começo
das
areias. O deserto nu e ardente.
Quando caísse a escuridão, o frio consumiria o deserto, e nele se
tremeria como nas noites do deserto. Mais ao longe, o lago salgado
e azul cintilava. Para aquele lado, então devia ser a região dos
grandes lagos salgados. PSGH, p. 109)
De pé à janela, às vezes meus olhos descansavam no lago azul que
talvez não passasse
de
um pedaço de céu. Mas cansava-me logo,
pois o azul era feito
de muita
intensidade
de
luz. Meus olhos ofus-
cados iam então pousar no deserto nu e ardente, que pelo menos
não
tinha a dureza de
uma
cor. Daí a três milênios o petróleo secre-
to jorraria daquelas areias: o presente abriria gigantescas perspec-
tivas
um
novo presente. PSGH, p. 111)
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 35
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Os desertos têm uma
conexão
direta com
os
nômades, e
atravessar
a imensidão
interminável
é
uma
referência simbólica
e
também
bíblica)
para
o autoconhecimento. Vastas
áreas de
não-pertencer, isolamento, silêncio e alteridade, os desertos
são
o
espaço
de pensamento
e
meditação
por
excelência. Esse
espa-
ço é apropriado para ilustrar a busca literária de Clarice Lispec-
tor. O
deserto que
G.H.
atravessa
é
extremamente
significativo
como imagem.
Ele exemplifica
uma longa
trajetória filosófico-
literária rumo aos escritos nomádicos
que representam um nível
mais elevado de liberdade
artística e intelectual.
Quando eu
me refiro a
um
silêncio
que ecoa
no
deserto,
acredito
que
isso
não
contradiz
o fato
de eu
colocar
paixão se
gundo
G.H. como
obra mais próxima dos
escritos nomádicos
que
das narrativas do silêncio. É
de
suma importância
deixar clara es-
sa
questão, porque o silêncio
nos
escritos nomádicos aparece, im-
plícito, de
uma maneira totalmente
diferente. A
peregrinação de
G.H., como mostrei acima, faz-se via linguagem. No entanto, as
palavras
não
são
faladas, mas escritas. A
jornada
da
protagonis-
ta é
uma
tentativa
de autotransformação por meio das
palavras
que
ela escreve e que,
em
última
instância, transforma-se
no
romance
em
questão. A
vida
torna-se
sinônimo de écriture.
As-
sim, o silêncio refere-se à ausência de
palavras
faladas e
também
à
incapacidade
de
as
palavras
faladas
ou
escritas)
transmitirem
toda a
complexidade
da existência humana.
Quando
faço a observação de
que
as
personagens
do
ciclo
do
exflio são destituídas de palavras, o que estou
dizendo com
isso
é que elas são
incapazes
de articular
verbalmente seu
destino.
Por outro
lado, o
narrador
é
quem comanda
a
linguagem.
G.H.
tem
palavras- ela escreve, faz uma confissão. O silêncio não o-
corre
no
vácuo,
mas na plenitude
de
muitas
palavras
tentando
expressar o inexprimível.
4.6
onclusão
Em paixão
segundo G.H., a
protagonista
G.H. é a
profeta
de
seu próprio destino
e destinação. O
caminho
que
ela atravessa
no quartinho-deserto
é uma espécie
de
itinerário espiritual, si-
milar
a
uma peregrinação
da
alma
Nunes, 1988, p. 25).
É uma
busca
filosófica
que
implica o processo
do aprendizado de como
36
Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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pensar de
modo
diferente,
para
além
de um
racionalismo limi-
tante.
O romance marca uma importante virada na obra de Clarice
Lispector, na direção dos posteriores
escritos nomádicos
nos
quais as palavras ecoam
na
vastidão e falham ao
não
consegui-
rem captar toda a
profundidade da
experiência
que
persona-
gens narradores empreendem. O
que
não
pode
ser inteiramen-
te verbalizado pertence a
um
outro nível de significância e não
ao vazio, como nos escritos
do
exflio. G.H. explica: [ ... ] pelo si-
lêncio onde enfim
eu
caíra, sabia que havia lutado, que havia
sucumbido e que cedera . (PSGH, p.
69
paixão segundo
G.H.
foi comemorado como um dos livros
mais densos
de
Clarice Lispector e
ainda
recebe
numerosas
lei-
turas críticas que o colocam entre os mais
estudados
de seus es-
critos. Acima
de
tudo, o romance tem um valor especial por ser
o texto ficcional em
que
a voz
do
eu está corajosa-
mente explorada, abrindo terreno para Clarice inscrever seu iti-
nerário nomádico.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 37
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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scritos nomádi os
Para além da orelha existe um som, à extremidade do
olhar um aspecto, às pontas dos dedos um objeto - é
para
lá que eu vou. OEN, p. 90
Escrever reflete. Reflete sobre outros escritos e sempre
acontece
uma
conscientização sobre si mesmo en-
quanto
escrita.
Como
as caixas japonesas que contêm
outras caixas [ ..] escrever é enredar a própria escrita
com a reflexividade automática. Minh-ha,
Woman na-
tive
other p. 23
5.1
Introdução
Quando
Clarice Lispector retornou ao Brasil, teve de enfren-
tar grandes desafios e ajustar-se a um contexto completamente
diferente. Separada do marido, teve de trabalhar de
modo
inde-
pendente. Para sustentar-se com
seu
trabalho, a autora escreveu
para revistas e jornais trabalhou para o Jornal do Brasil de 1967 a
1973). Escrever sob encomenda era bastante difícil para quem
sempre
confiara na inspiração Gotlib, 1995, p. 417). Não obstan-
te, ela
continuou
produzindo
e
publicando
ficção. Fora
seu bem
sucedido romance
paixão
segundo G.H., dois volumes de con-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 39
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tos foram publicados: Laços de fmnílirz,
8
de 1960, e A legião estran-
geira,
de 1964.
A déc d seguinte não foi menos difícil. Clarice Lispector
foi demitid de seu cargo
no
Jornal
do
Brasil depois de sete anos
de
trabalho ininterrupto, o
que
a levou a fazer algumas tradu-
ções literárias, entre elas clássicos e best-sellers. Ao mesmo tem-
po, nov s antologias
de
contos foram lançadas:
Felicidade clan-
destina, foublicado em 1971, A
via
crucis do
corpo
9
e Onde
estivestes
de noite,
0
ambos publicados
em
1974. Apesar
d lut de
escrever
apenas pelo dinheiro, Clarice Lispector paradoxalmente estava
vivendo um momento rico de reciclagem de seu processo de
criação. Isso porque, estimulada pelo exercício
de
escrever crô-
nicas
p r
jorn is
e reler
seus
textos, ela se
viu
imersa
em
um
espécie de auto-reflexão literária. O contato direto e semanal
com os leitores dissolveu as fronteiras entre escritora e público,
ficção e realidade. Pela primeira vez, Clarice Lispector 1
:v
esta-
va falando por meio
de
vozes ficcionalizadas, m s empreg v a
própri voz.
O exercício
de
auto-reflexão t mbém originou-se d prática
de autoplágio . Muitas d s crônicas publicadas posteriormente
em
A
descoberta
do
mundo
estavam mais próximas
de
colagens,
de
um
colcha de retalhos feita de fragmentos originalmente
produzidos
p r outros textos. A autora costumava levá-los
de
um lug r p r outro, como
um
vez confessou: Eu estava es-
crevendo
um
livro, e então, como eu detestava escrever crôni-
cas, usei o fragmento que estava escrevendo
p r
o livro - defi-
nitivamente não era
um
crônica . (Gotlib, 1995, p. 375)
Cabe qui um pergunta: Terá tido essa literatura auto-
reflexiva
um
contraparte autobiográfica?
É
bem
provável
que
sim. Livre
d s
obrigações sociais e diplomáticas
que
ela
sempre
Clarice Lispector trouxe o livro já pronto dos Estados Unidos.
É
considerado
um
das melhores antologias de contos da autora.
A via
crucis
do corpo
foi
encomendado pelo editor Álvaro Pacheco, que, por tele-
fone,
pediu
a Clarice que escrevesse contos verdadeiros sobre sexo. Clarice
Lispector hesitou e sentiu-se um tanto quanto envergonhada, mas terminou acei-
tando a incumbência. Cf Gotlib, 1995, p. 416
20
Onde
estivestes
de
noite
também
pode
ser visto como
um
espécie de obra nomádi-
ca, de acordo com as idéias que or defendo. Entretanto, não o incluo em minha
análise porque acredito que essa é uma obra que estaria melhor bord d dentro
de
um
comparação com outros contos de Clarice Lispector. Contudo, faço uso
de muitas citações tiradas dessa obra para ilustrar o modo nomádico literário da
autora. Uma edição inglesa,
Soulstorm,
junta A via crucis do corpo e 011de
estivestes
de 11oite
140 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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detestou,
a
autora tentava
solidificar
sua
carreira
de
escritora
independente
e seria, pela primeira vez, simples - e
plenamente
uma
escritora.
Começou
com
A paixão segundo G.H. Em uma
posição periférica , isto é, longe da confortável situação de es-
posa de diplomata que
vivia
na
Europa,
Clarice Lispector ten-
tou seguir seu próprio caminho, escrevendo como
um
meio de
reinventar não
só a vida,
mas também
a literatura. Em
meio
a
esse processo de
reciclagem , ela
produziu seus dois
livros
mais conhecidos internacionalmente: Agua
viva
e hora
da estrela.
Quando um primeiro manuscrito de Agua viva
ficou
pronto
(era uma
versão bem
diferente,
chamada
Objeto gritante , Clarice
Lispector
enviou-o em
1972,
com
uma carta,
para
o escritor e
professor de filosofia José
Amérlco Motta
Pessanha. Ele
leu
o li-
vro com alguma apreensão
e descobriu que Clarice Lispector
passava por um momento único em sua vida
e
em seu
trabalho:
um momento
de
encruzilhada
interior ,
definitivamente
trans-
posto para
as
páginas daquela
preciosa novela (Ferreira, 1999, p.
259). O
manuscrito que
Pessanha teve em mãos
era mais
auto-
biográfico
que sua versão
final,
Agua viva.
2
Analisando
e com-
parando o primeiro manuscrito
com
a
versão
publicada,
Marta
Peixoto
observa
que as
principais mudanças foram
feitas
na
verdade para eliminar a
persona
autobiográfica (Peixoto,
1994, p. 64). Clarice Lispector apagou
alguns dos
traços
auto-
biográficos
mais
fortes,
basicamente
influenciada
pela leitura de
Pessanha.
Mesmo
depois das mudanças,
o texto
mantinha-se
forte-
mente intimista,
embora
não haja referências diretas à vida de
Clarice Lispector.
No presente
estudo,
tento afastar-me
do
bio-
gráfico, mas é inegável que Clarice estava tentando, corajosa e
livremente,
atingir
esferas
mais
pessoais
em seus últimos
traba-
lhos, abordando a literatura por um viés diferente.
Como
escre-
ve
Peixoto,
[ ] a percepção de elementos autobiográficos permite-nos reco-
nhecer tanto seus componentes ficcionais
quanto
sua representa-
ção
das oscilações psíquicas que impulsionam a imaginação de
Clarice Lispector.
21
Em Iam a question há uma
grande
quantidade de informações detalhadas
sobre
todo
esse episódio (Ferreira, 1999, p. 257).
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 4
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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De fato, esse período representou
uma
"encruzilhada" na
carreira de Clarice Lispector, que, no fim dos anos 70, coincidiu
com seu delicado estado de saúde e subseqüente morte, de cân-
cer, em 1977. Pouco antes
de
sua morte, Clarice finalizou A hora
da
estrela
e
também produziu
os trechos
de
Um sopro
de
vida
cujos fragmentos sua amiga e confidente Olga Borelli
juntou,
editou
e publicou em 1978.
No
prefácio do livro póstumo, Borel-
li relembra o longo processo de reunir notas em diferentes horas
do
dia, desde 1974 até a véspera
da
morte
da
autora,
em um
trabalho feito "em agonia", como Clarice descreveu.
A própria criação desses três livros - Água viva A hora da es
trela e Um sopro de vid foi nomádica por natureza. Por vezes,
as notas "viajavam" de um lugar para outro, de um meio de
comunicação
para
outro, de certas mãos
para
outras, até que
tomassem seu devido curso. Naquelas páginas, pedaços foram
agrupados em uma espécie de bricolagem, mas poderiam mui-
to
bem
fazer
parte
de qualquer
outro
lugar - eram intercam-
biáveis. Essa fase em particular
na
carreira
de
Clarice Lispector
ficou definida pela própria autora como "a hora do lixo" (Gotlib,
1995, p. 417), referindo-se àquele preciso
momento de
criação.
Como observa talo Moriconi, o aspecto radical desse perío-
do
está intimamente associado à natureza de textos como Água
viva. Essa fragmentação radical interage com
um
aspecto jorna-
lístico,
uma
comunicação entre gêneros definida por Moriconi
como um sistema de interação errática". (Moriconi, 2001, p.
215)
A própria
natureza
desses últimos escritos - em forma e
substância - mostra
uma
evidente transição na trajetória literá-
ria de Clarice Lispector que, em muitos aspectos, coloca a autora
na direção
de
uma
ficção pós-moderna. Isso porque, a partir
de
então, a reflexão sobre o discurso vai para o primeiro plano, e a
écriture
fica sendo, ela mesma, o tema principal. Como observa
Brian McHale, "Ficções pós-modernas [ ..] são ficções sobre a
ordem
das
coisas, discursos que refletem sobre os mundos dos
discursos" (McHale, 1992, p.164). A ficção pós-moderna é por-
tanto,
uma
arte que
derruba
ilusões,
na
medida em
que
ela "per-
turba de modo sistemático o clima de realidade
no
momento em
22
A citação
é apresentada no
prefácio
de
Olga Borelli. na edição original
de Ag n
VIVa
42 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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que
traz
para
o primeiro plano a estrutura ontológica
de
textos e
de
mundos
ficcionais . (McHale, 1992, p. 164)
Nesse sentido, vejo a trajetória de Clarice Lispector como
uma
caminhada
na direção de uma abordagem
nomádica
da li-
teratura em
conexão com
uma
evolução
pós moderna
natural,
pois
suas
últimas obras
ilustram
claramente esse espírito literá-
rio de refletir sobre seus próprios mecanismos num exercício
aberto
de
escrever sobre escrever . Mesmo
em hora da estrela
em que há
um
enredo e uma história mais ou
menos
linear, o
texto é fraturado e altamente não-convencional, cheio
de
comen-
tários auto-reflexivos, em que a literatura, a lingua(gem) e a
questão
da ident
i
dade
são o tema. Todas as três expressam
um
agudo senso
de
lib
erdade
frente a padrões literários, refletindo a
necessidade premente de ir além dos limites da criação ficcional,
a fim de quebrar regras e partir
em
direção a itinerários impre-
visíveis.
5.2
tinerários nomádicos
Meu maior
medo
é ficar petrificada: vir a ser uma ár-
vore, fincar raízes e
não poder
me movimentar. Tenho
medo da imobilidade, de ficar presa em uma só di-
mensão espaço-temporal. É uma variação do medo da
morte, de transformar-me em
pedra
e não mais ser
capaz de
me
movimentar. (Rosi Braidotti, Women 's
education
des
femmes
p.
4)
[ ..] existe uma força visionária, uma força de vida
em
Clarice Lispector,
que
poderia ser descrita como a ar-
quitetura de um novo tempo presente , uma nova
civilização
para
a qual as condições n priori estão sen-
do definidas hoje. (Rosi Braidotti, Pntterns of disso-
nance p. 283
Em
Nomadic subjects
- Patterns
of
dissonance Rosi Braidotti
traça
um
itinerário intelectual
nom
ádico altamente aplicável aos
últimos escritos de Clarice Lispector. Braidotti aproxima a con-
dição existencial nomádica (que é pessoal e intelectualmente
sua) a novos
modos
de pensamento próximos a sistemas pós-
modernos e a uma subjetividade fêmea alternativa, descentra-
lizada . A definição de nômade é importante para a descoberta
A palavra usurpada: exilio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
43
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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de
paralelos entre os pensamentos
de
Braidotti e a estética
de
Clarice Lispector: O
nômade
é minha própria figuração de um
entendimento situado, pós-moderno, culturalmente diferencia-
do do sujeito em geral e do sujeito feminista em particular .
(Braidotti,
1994,
p.
5)
Para Braidotti, esse novo nomadismo não está essen-
cialmente ligado ao ato físico de viajar, mas a
uma mudança
pa-
ra além da hegemonia do sedentário e falocêntrico monologis-
mo do pensamento filosófico (Braidotti, 1994, p. 30) e, portanto,
vinculado a uma consciência crítica que resiste a estabelecer-se
em modos socialmente codificados de pensamento e comporta-
mento (Braidotti, 1994, p. 5). Esse posicionamento crítico esta-
ria intimamente relacionado ao feminismo enquanto processo
de vir a ser e de transformação criativa. Como ela coloca:
Sujeitos nomádicos são capazes de libertar a atividade de
pensar
de seu jugo dogmático falocêntrico, devolvendo ao
pensamento
sua
liberdade,
sua
vivacidade,
sua
beleza. Existe uma forte dimen-
são estética na busca por figurações nomádicas alternativas, e a te-
oria feminista - como eu a pratico - é instruída por essa força no-
mádica e plena
de
alegria. (Braidotti, 1994, p.
8
Em
atterns of
dissonance -
study of
women in contemporary
philosophy
(1991),
Braidotti
dera
início
à
discussão do novo no-
madismo, ressaltando o fato de o feminismo ser uma importan-
te forma de resistência
que
coloca a racionalidade não só contra
o modo dominante, mas também a favor do múltiplo e plural
discurso
da
mulher. (Braidotti, 1994, p. 94).
Contudo, não
é
apenas isso, porque o que está em jogo é uma completa redefi-
nição
do que
significa pensar, e
de
como o
pensamento
relacio-
na-se com a razão teórica (Braidotti, 1994, p. 278). Ela se propõe
a desenvolver maneiras múltiplas e transversas de pensar o vir
a ser da mulher . (Braidotti, 1994, p. 279). Sugerindo
que
todas
as feministas
devam
cultivar
uma
consciência nomádica, Brai-
dotti compara a posição periférica e minoritária
de
um(a) pen-
sador(a) nomádico(a) aos
nômades
reais- uma espécie atual-
mente em extinção-, que também ocupam uma posição margi-
nal política e geográfica.
Braidotti inspira-se nos estudos colaborativos de Deleuze e
Guattari, referentes à elaboração de
uma
nova imagem
da
filo-
sofia (identificada com pontos
de
escape
de
modos falocêntricos
de pensamento), e
no
conceito de rizoma , essencial à análise
44 láudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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dos
escritos nomádicos
de Clarice Lispector. Para Deleuze, o sis-
tema rizornático tem alguns princípios básicos
que
definem
sua natureza, tais corno a possibilidade de criar um
número
in-
finito
de
conexões,
ocupando
n dimensões
em
incontáveis li-
nhas
de
fuga - Ces lignes ne cessent
de
se renvoyer les unes
aux autres.
C'est
pourquoi
on
ne
peut
jamais se
donner
un
dua-
lisrne ny une dichotornie, rnêrne sous la forme rudirnentaire
du
bom et du rnauvais . (Deleuze e Guattari, 1976, p. 28)
Deleuze aproxima o rizorna à nornadologia e cita exem-
plos
de
obras literárias que o representariarn,
3
marcadas pelos
sistemas descentralizados e anti-hierárquicos, nos quais
não há
nada
a interpretar e
nada
a significar,
mas muito
o
que
experi-
mentar
- Rien à interpréter ni à signifier, mais
beaucoup
à ex-
périrnenter . (Deleuze e Guattari, 1976, p.72)
Para explicar mais claramente a idéia confinada
por
detrás
do conceito de rizorna em
sua
multiplicidade e em suas cone-
xões tipo rede, Deleuze torna emprestados alguns exemplos
da
natureza
- On
n'en
finit
pas
avec les fourrnis, parce qu'elles
forrnent un rhizorne animal dont la plus grande partie
peut
être
détruite sans
qu'il
cesse
de
se reconstituier . (Deleuze e Guatta-
ri, 1976, p. 27
Contrário à lógica binária que domina a psicanálise, a lin-
güística e também a informática, o rizorna opera indiretamen-
te. Corno afirma Deleuze, opondo os sistemas rizornáticos ao
sistema de árvores (raízes): A árvore lingüística chornskiana
começa sempre em
um
ponto S e segue por dicotomia. Em
um
rizorna, pelo contrário, cada traço
não
remete necessariamente a
um
traço lingüístico . (Deleuze e Guattari, 1976, p.18)
Urna
outra
metáfora, a do mapa, também é útil. Deleuze
compara o rizorna às linhas de um mapa, abertas, conectadas
a diferentes pontos, feitas
de
múltiplas entradas e sujeitas a
constantes modificações, sem fim nem começo. Deleuze acredita
que
um
livro, do mesmo modo, transmite e representa a ima-
gem do mundo: Escrever não tem nada a ver com significar,
mas sim
com traçar linhas, cartografar . (Deleuze e Guattari,
1976, p.12)
23
a
dislocation
de Armand Farrachi, onde: as frases afastam-se e se
dispersam,
ou
então colidem e coexistem, e as letras, a tipografia, se põem a dançar, à medida
que a cruzada delira (Deleuze e Guattari, 1976, p. 72).
A
palavra usurpada:
exílio
e nomadismo na obra de Clarice Lispector
45
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Como o rizoma , os sujeitos nomádicos simbolizam deslo-
camento e dispersão, e Braidotti reconhece o rizoma como
sendo essencial a toda construção de figuração nomádica: O ri-
zoma
é uma raiz
que
cresce subterrânea, ladeada; Deleuze colo-
ca-a em oposição às raízes lineares das árvores. Por extensão, é
como se o modo rizomático expressasse uma maneira
não
-
falocêntrica de pensar: secreta, lateral, espraiada, em oposição
às ramificações visíveis e verticais das árvores ocidentais do co-
nhecimento . (Braidotti, 1994, p. 23
Esses conceitos combinam com
um
tipo de texto capaz de
acompanhar
o movimento dos nômades, refletindo a mudança
para além de
um
centro de comando e hegemonia, não-fixo a
uma
estrutura
organizada. Fragmentação,
perda
de
unidade
e
dissolução de fronteiras estão entre as características da literatu-
ra nomádica. Além disso, é
um
tipo de texto que desestabiliza
significados do senso comum e desconstrói formas estabeleci-
das de consciência (Braidotti, 1994, p. 15). Na verdade,
não
é
uma
questão de simplesmente inventar novas palavras. Pode-se
exercitar a linguagem literária nomadicamente sem criar neolo-
gismos.
É
um
sentido mais
amplo
de
criação.
Vejo claramente,
na
maioria dos últimos escritos
de
Clarice
Lispector, esse modo nomádico de pensamento, em um campo
aberto de experimentação e criatividade onde há rien à inter-
préter mais beaucoup à expérimenter (Deleuze e Guattari,
1976, p. 12). A consciência subjetiva nos escritos nomádicos de
Clarice Lispector - estilhaçada,
descentrada
- experimenta o
aprendizado da liberdade verbal em oposição às vozes exíli-
cas
oprimidas
das
narrativas
do
silêncio
Não
há outro
refúgio
que
não a liberdade, como declara a
narradora
de gua viva:
Liberdade? é o meu último refúgio, forcei-me à liberdade [
..
]
sou
heroicamente livre . AV, p. 16
A mudança representou uma maturação natural
da
obra de
Clarice. Mesmo que o resultado não tenha sido aplaudido por
todos, fica claro que os textos de Clarice Lispector cresceram
na
direção de
um modo
nomádico, tanto em forma
quanto
em
substância.
Há uma
perfeita consonância entre a
maneira
como
esses trabalhos foram escritos - nomadicamente,
por assim di-
zer- e sua formatação e conteúdo.
Alguns críticos aplaudem, elogiando as qualidades
da
des-
truição poética,
enquanto
outros asseveram que os escritos fica-
ram
por
demais
pessoais. De fato, como ressalta Olga
de
Sá, a
146
láudia Nina
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autora cresceu na imperiosa direção de si mesma (Sá, 1983 a p.
220). Não só porque Clarice Lispector incluiu ecos da própria
voz
em
suas últimas ficções, mas principalmente porque alterou
seus caminhos numa direção mais libertária em seus
escritos no-
mádicos. Foi, naturalmente,
um
risco,
mas
Clarice Lispector pa-
recia estar consciente disso:
O morro dos ventos uivantes
me
chama. Vou, bruxa que sou. E me transmuto. (OEN, p. 91)
5.3
Linhas de êxtase e dispersão
É
com uma alegria tão profunda.
É
uma tal aleluia.
SV, p.
9
O
meu
mistério é
que eu
ser apenas um meio, e não
um fim, tem me dado a mais maliciosa das liberdades
[ ] LE, p 64
Publicado em 1973,
gua
viva pode realmente ser descrito
como uma radical experiência literária. O livro destrói os pa-
drões
da
narrativa tradicional, tais como gênero, enredo, perso-
nagem, espaço e tempo, apresentando,
em
vez disso, apenas
uma voz em solilóquio - voz de quem, afinal? Essa voz desco-
nhecida espalha seus ecos ao longo da narrativa, tecendo co-
mentários sobre vários assuntos de maneira caleidoscópica: re-
ligião, amor, arte, felicidade, silêncio, flores, criação, morte
Um monólogo com a vida (Peixoto, 1994, p. 61), como deixa
implícito o subtítulo de um manuscrito do livro, antes da versão
definitiva.
Nada disso parece altamente inovador no panorama inter-
nacional, uma vez
que
os escritores
modernos europeus
já ha-
viam percorrido essa mesma trilha. Na verdade, como ressalta
Hélene Cixous, a própria Clarice já havia introduzido
parte
des-
sa técnica inventiva em
Perto do
coração selvagem, em que os re-
cursosnconscientes (Cixous, 1990, p. 30) também surpreendem.
Mesmo assim,
gua
viva
representou muitos passos à frente e
um
momento
importante
na
literatura brasileira, bem como no
estilo da autora, embora Clarice fosse bastante reticente quanto
ao livro. É
por
isso que a
produção
de
gua
viva tomou-lhe mui-
to tempo, até
que
a versão final fosse enviada às editoras. Te-
mendo que os críticos não gostassem, ela decidiu outra vez
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
47
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mandar o manuscrito a
um
amigo, Alberto Dines, à procura
de
conselhos e sugestões. Para sua grata surpresa, Dines ficou en-
cantado
com
o que leu:
É
menos um livro-carta e, muito mais,
um
livro-música. Acho
que
você escreveu uma sinfonia . (Fer-
reira, 1999, p. 260)
Com o passar dos anos, gua viva mostrou-se igualmente
bem
acolhido no cenário internacional. Earl Fitz escreve que, as-
sim como
paixão segundo
G.H. deve ser considerado
um
dos
romances mais poderosos
da
América Latina nos anos 60 (Fitz,
1985, p. 86),
gua viva
também posiciona-se como um notável
êxito literário dos anos 70. Ele descreve a novela como
um
mo-
nólogo contínuo em forma de carta (Fitz, 1985, p.
85
que, por
vezes, assemelha-se a um poderoso
poema
visual (Fitz, 1985,
p. 85), refinando as inter-relações fenomenológicas de lingua-
gem, identidade e realidade.
Realmente, gua viva assemelha-se a um poema em prosa,
embora seja inútil tentar classificá-lo. Esta é a idéia
do
livro: cri-
ar algo
que
não pode ser totalmente compreendido
ou
mesmo
fixado em categorias específicas. A voz narradora orienta o lei-
tor
quanto
à
experiência.
Os que
não conseguem
acompanhar
um movimento assim, dele não deveriam tomar parte - Quem
me
acompanha
que
me acompanhe: a caminhada é longa, é so-
frida mas é vivida . SV, p. 21
gua viva mostra
um
comando criativo da língua portugue-
sa, redefinindo-lhe as margens e desfazendo significados do
senso
comum
ou, melhor ainda, como escreve Braidotti acerca
de escritores poliglotas , redesenhando as fronteiras
da
cida-
dela
da
língua (Braidotti, 1994, p. 15 . Esse é,
de
fato,
um
aspec-
to geral
da
obra de Clarice Lispector, e não uma particularidade
de
gua viva
Contudo,
eu
considero
que
esse livro, escrito em
1973, é a arena onde Clarice desenvolveu em plenitude seu co-
mando inovador e idiossincrático
do
português, fazendo uso de
uma
radical fragmentação- em forma e conteúdo; esfacelam-se
não somente as estruturas organizadas em início, meio e fim,
como
também
a estrutura lógica do pensamento.
Trata-se
de uma
destruição poética, e não trágica. De fato,
Clarice Lispector
manipulou
o português dominante , confor-
me usado pelos letrados , mas, em nome
da
criatividade, não
restringiu-se a suas regras clássicas. A autora,
de
certa maneira,
decompõe as estruturas internas da língua, brincando com as
possibilidades de multiplicidade no nível
da
sintaxe. Aqui, De-
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Cláudia Nina
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leuze é novamente uma referência importante quando observa:
Pode-se sempre operar as decomposições estruturais internas
sobre a língua [ ..]um
método
do tipo rizoma
não pode
analisar
a linguagem senão descentralizando-a em outras dimensões e
outros registros.
Uma
linguagem jamais se fecha sobre si
mesma
senão numa função de impotência . (Deleuze e Guattari, 1976,
p
21)
Clarice Lispector tinha plena consciência
de
seu estilo des-
construtivo. Ela teve mesmo de defendê-lo contra os ferrenhos
defensores dos padrões
da
língua portuguesa.
Uma
vez ela es-
creveu
uma
nota ao tipógrafo, pedindo-lhe que não corrigisse
seu
texto: Agora
um
pedido: não
me
corrija. A
pontuação
é a
respiração
da
frase, e minha frase respira assim.
E,
se você
me
achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me res-
peitar . (DM, p. 70)
A
écriture
está, portanto, implodida. Há um convite aberto
à
recriação
de
significados e sensações. Uma subjetividade des-
centrada fratura conceitos do senso comum a fim de capturar o
que
vem
dito nas entrelinhas. O processo representa uma trans-
figuração
da
realidade, como diz a voz narradora:
Transfiguro a realidade e então outra realidade sonhadora e so-
nâmbula,
me
cria. E
eu
inteira rolo e à medida que rolo no chão
vou me acrescentando
em
folhas, eu, obra anônima de uma reali-
dade
anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E de-
pois? Depois tudo o que vivi será um pobre supérfluo[ ..]
Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. [ ..] improviso
como no jazz improvisam música, jazz
em
fúria, improviso diante
da
platéia.
SV,
p.
22)
A prosa assume uma vigorosa força poética, energicamente
desestabilizando leituras confortáveis. Deve ser uma tarefa dura
traduzir qualquer
um
dos livros
de
Clarice Lispector, como ob-
serva o tradutor
Alex Levitin
em
sua versão inglesa
do
volume
Soulstorm
Ele escreve que para traduzir Clarice Lispector- um
gênio flagrantemente idiossincrático - as traduções devem
ser imperfeitas: Se o tradutor produz uma versão em inglês
acessível e
de leitura suave, terá sido infiel ao original.
Se
ele se
esforça em ser fiel, será acusado de inépcia . (Levitin, 1989, p.
171
Agua viva não localiza os leitores no espaço, e o único tempo
descrito é o instante-já , sempre metamorfoseado sem cessar-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e ou-
tros
nascem
fixo os instantes de metamorfose [
..
] SV, p. 13 .
Não há capítulos, nem divisões internas, à exceção
de
alguns
espaços em branco entre um fragmento e outro, reduzidos na
edição
em
língua inglesa. Não
há
começo
nem
fim, apenas
meios , e pode-se entrar no texto em qualquer ponto, como em
um
mapa. Todas as portas estão abertas, como se as linhas es-
tivessem sendo espalhadas constantemente e em diferentes di-
reções: O
que
te escrevo não tem começo: é
uma
continuação.
Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se
um
halo que transcende as frases[ ..] . SV, p. 49
As linhas
de
fuga , dispersas e multiplicadas, refletem, co-
mo já disse anteriormente, seu processo de criação. Na biografia
Eu
sou uma pergunta
Teresa Cristina Montero Ferreira lembra o
sistema caótico de criação
de
Clarice Lispector, especialmente
em
seus últimos escritos, quando ela também trabalhava como
jornalista. Clarice vivia e trabalhava no caos (Ferreira, 1999, p.
228), e as notas literárias eram feitas em todo tipo de papel às
vezes até guardanapos, talões
de
cheques, papéis
de
propagan
da. Parte deles ficava
sempre
esquecida, e ela nunca lembrava
de
juntá-los.
gua viva
foi um livro escrito assim, em
uma
escuridão cri-
ativa. Escuridão lúcida : Mas eu mesma estou na obscuridade
criadora. Lúcida escuridão, luminosa estupidez SV, p. 36).
É
por
isso que os fragmentos estão potencialmente conectados
com outros pontos, escapando do tempo e do espaço, como li-
nhas viajantes, virtualmente capazes de se ligarem - faire
rhizo-
m
em
quaisquer outros contextos.
Uma
espécie
de
transmi-
gração auto-intertextual (Galvão, 1996, p. 11 cria a rede de
muitas conexões, como Walnice Nogueira Galvão observa na
apresentação de uma antologia dos melhores contos de Clarice
Lispector:
Os
textos
de
Clarice Lispector são
dotados de
mobilidade, e é
por
isso
que
os leitores conseguem redescobri-los
em
lugares inespera-
dos. Uma crônica
publicada pode
reaparecer integrada em um
conto escrito mais adiante.
Um
fragmento
de
um
romance
emerge
como
um
conto
independente.
Um conto tem
seu
título mudado e
é
reeditado em uma outra
antologia.
Um
texto volta reduzido a
fragmentos,
ou
muitos fragmentos jtmtaram-se
para
constituir um
texto mais longo. Descobre-se
que um
livro é agora dois livros. Es-
sa
é uma
metamorfose contínua que,
embora
já tenha sido obser-
15
Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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vada pelos críticos, ainda está à espera de novos estudos. (Galvão,
1996,
p.
11)
Esse processo lembra o conceito
delueziano
de
desterrito-
rialização ,
de
acordo com o
qual
os rizomas
expandem suas
linhas em direções imprevisíveis, como sementes
carregadas
pe-
la corrente d'água.
Como
escreve Deleuze, o rizoma
opera
via
ruptura e infinitas conexões - alongar, prolongar, substituir a
linha
de fuga, fazê-la
variar
[ ..] Escrever, fazer rizoma, aumen-
tar seu
território através da desterritorialização (Deleuze e
Guattari, 1976, p. 34).
Em
Agua viva o fluxo
de
palavras real-
mente cria um tipo de corrente d'água , conforme sugere o tí-
tulo,
em que
as palavras são
transportadas
para
diferentes dire-
ções. Como diz o texto: Para onde vou? E a resposta é: vou .
SV, p. 29)
A ordem
narrativa
é
substituída
por uma ordem orgânica ,
como
enfatiza Cixous (1979a:x). Já na
primeira página
o movi-
mento orgânico apresenta-se: [
..
] agora quero o plasma-
quero
me alimentar diretamente da
placenta SV, p. 3). A
palavra
placenta é importante. Ela representa não só o
corpo
inscrito
no
texto,
mas
também algumas das
metáforas mais
fortes
da
obra,
que
têm a ver com nascimento e fertilidade. A narradora
refere-se muitas vezes ao fato de que ela está
nascendo
ao mes-
mo tempo que a
écriture
está
sendo
criada. Sinto-me
tonta
co-
mo quem vai nascer SV, p. 35). O processo de estar se
criando
enquanto cria e em constante transformação reflete, portanto,
um
ritmo
orgânico, biológico. A voz escreve
com
o corpo , se-
guindo o fluxo
da pura
intuição - Mas
estou
tentando escrever-
te
com
o corpo todo,
enviando
uma
seta
que
se finca
no
ponto
tenro e nevrálgico
da
palavra . SV, p. 12)
Vou adiante
de
modo intuitivo e sem procurar uma idéia:
sou orgânica SV, p. 23),
diz
a
narradora.
O adjetivo
orgân
ica ,
com desinência do feminino, mostra que
quem
está escrevendo
é
uma mulher.
Há uma tentativa evidente de fazer o texto soar
altamente
feminino,
explorando
os insights
da persona
autobio-
gráfica,
abertamente
anti-racional, que vai até as profundezas
da
criação,
onde
há conflito, solidão, êxtase,
morte,
alegria e
mágica. A mulher é
portanto,
o sujeito que vem a ser de sua
própria história,
expressando
a
vontade de
saber, o desejo de
falar, pensar e representar (Braidotti, 1994, p. 120).
Como
es-
creve Peixoto, é
uma
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 5
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tentativa de sintonizar e ostentar fontes alternativas de força cria-
tiva: o místico (embora não o religioso), o intuitivo, o mágico. Em
seu elaborado empreendimento de um processo criativo que é an-
ti-racional e, como tal, coloca-se como antimasculino, a novela ofe-
rece
um
retrato intenso
de
uma
subjetividade
em
luta com forças
conflitantes e de uma interioridade que tenta chegar a um acordo
com as depleções do tempo, da solidão e da morte, bem como com
momentos de esmagadora persuasão de que ela está em contato
com forças enaltecedoras que não estão disponíveis aos mortais
comuns. (Peixoto, 1994, p. 72
Esse
movimento,
governado pela intuição,
está de algum
modo
ligado à busca
do
sublime feminino ,
presente
em mui-
tos textos
de
Clarice Lispector e,
em
especial,
gua
viva.
Como
sugere
Italo Moriconi, a
obra pode ser lida em termos de
o su-
blime feminino estar associado à valorização
das
atividades
sublimes de pintura/escritura,
que já eram características proe-
minentes do primeiro trabalho da autora . (Moriconi, 2001, p.
214)
Tal conceito leva-nos a um artigo de Patricia Yaeger sobre o
tema,
no qual
ela sugere
que, em
décadas recentes, as
mulheres
começaram
a escrever
no modo
sublime ,
de
uma
maneira
a
inserir em sua
prosa o desejo pelo
poder
feminino. literatura
feminista francesa é
um
exemplo disso. Para Patrícia Yaeger:
O
ônus da escritura feminista francesa é
que
as mulheres precisam
criar
uma
nova
arquitetônica de autorização
- não através
do
antiquado sublime de dominação
[
..],mas, pelo
contrário,
atra-
vés de
um
sublime horizontal que movimenta-se
em
direção
à
soberania ou ao excesso . (Yaeger, 1989, p. 191)
Nesse
fluxo
de palavras em
ininterrupta continuidade,
a
voz
feminina está,
como
argumentei, obviamente privilegiada. Eis-
so está,
por sua
vez,
em
flagrante contraste com
os escritos
do
exí-
lio.
Se nas
narrativas
do silêncio as vozes das mulheres eram si-
lenciadas, fracas e totalmente desprovidas de força e de poder
de
comando,
incapazes de expressar
sua
subjetividade,
em
gua
viva
tem-se exatamente o oposto. Aqui, o silêncio
não
está
vinculado
ao
sentimento de angústia, solidão, ou deslocamento
social. Existe um audiência viva e expectante (não são
pedras,
como
em maçã
no escuro . gua viva é cheio
de
um sentimento
de alegria, como fica evidente logo na primeira linha do livro,
com a referência
à
alegria profunda
SV,
p. 9 que anima a voz
narradora.
52 Cláudia Nina
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O silêncio aparece
no
texto não no vácuo
da
não-
comunicação. Ele acontece a partir do esforço
de
capturar o que
é hiperlingüístico , como ressalta Hélene Cixous:
É
o próprio
silêncio
que
se torna solo fértil para a verbalização. [ ..] Clarice
luta
contra o silêncio
do
texto,
do
papel do
texto (Cixous,
1989a, p. XVI). O silêncio surge, portanto, como eco do que não
pode
ser
alcançado/
dito em plenitude. Como diz o texto: E
um
silêncio evola sutil do entrechoque das frases .
SV,
p. 21)
Toda a obra é governada
por um
fluxo
de
palavras
em
con-
tinuidade fragmentária que estreita sua ligação com
uma
espé-
cie
de
textualidade nomádica,
que
implica movimento sem
qualquer referência a um centro de origem ou a um destino
predeterminado, exatamente como as linhas
de
fuga
propostas
por Deleuze. Além disso, apesar da liberdade e da alegria em
forma de êxtase que perpassam o relato, também há morte em
Agua ·uiva. Contudo,
não
é o mesmo tipo
de
morte
que
ata as
pontas de O
lustre
a monótona e imóvel vida-objeto de Lucré-
cia,
ou
mesmo o assassinato que assombra a mente
de
Martim. É
a morte como parte da própria vida. Um movimento orgânico
que forma o curso
natural de tudo
que existe. Nascimento e
morte. Nascimento. Morte. Nascimento como uma respira-
ção
do mundo .
SV, p.
39)
Como nos demais escritos nomádicos, Clarice Lispector cria
em
Agua
viva mais do que simplesmente vozes literárias filosófi-
cas. Ela também cria uma geografia muito particular: o lugar do
eterno tempo presente, um lugar enfeitiçado , como sugere
Lúcia Helena
em
Nem musa nem
medusa
(Helena, 1997, p. 74),
onde tudo
parece ser criado
dentro
do
tempo
da
leitura. Esse
lugar
pode ser
qualquer
coisa -
um
labirinto,
um
deserto
ou um
mapa-
contanto que não tenha nem começo
nem
fim.
5.4
A hora da estrela nos b stidores d liter tur
[
..
] não sei se
minha
história vai
ser-
ser o quê?
Não
sei
de
nada, ainda não
me
animei a escrevê-la. HE, p.
36
O domínio narrado é um mundo
do
processo de vir a
ser, progressivamente tomando forma na medida em
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 153
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que vai sendo narrado, não
um
todo amarrado. (Uri
Margolin, Ofwhat
is
past p. 152)
Publicado alguns meses antes da morte de Clarice Lispector,
hora
da
estrela
foi elogiado
por
críticos como a primeira real
tentativa da autora de lidar com as questões sociais brasileiras.
O tema são os sofrimentos
dos
que emigram do Nordeste, seco e
pobre, para as regiões mais ricas
do
país, em busca de melhores
oportunidades de vida e trabalho. Não obstante, a literatura
social produzida por Clarice em hora da estrela é altamente
irônica, se a comparamos com outros escritos sobre o tema, co-
mo, por exemplo, Vidas secas de Graciliano Ramos. Clarice Lis-
pector
transportou
a aridez
dos
sertões
para
as
ruas
do
Rio
de
Janeiro, a metrópole internacional, fazendo da cidade o cenário
de sua novela paródica. A autora admite, ironicamente, a difi-
culdade
de
escrever o texto, pois, para
produzir
um relato como
esse, foram necessários dois instrumentos fundamentais. simpli-
cidade e pobreza, que ela só pôde alcançar com sacrifício - Que
ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito
trabalho . (HE, p. 25
Na
verdade,
hora
da
estrela
é
uma
narrativa
em
múltiplas
camadas. O enredo é apenas superficialmente a história de uma
mulher
pobre
e errante em uma metrópole hostil,
que
acaba
sendo atropelada. Nessa obra complexa e elaborada, um narra-
dor
masculino, Rodrigo S.M., conta a história de Macabéa, a
nordestina jovem e miserável
que
se
mudou
recentemente para
o Rio de Janeiro. Com fome, perdida, magra, marginal e deslo-
cada, ela tenta sobreviver de algum modo, trabalhando como
datilógrafa (ela
mal
sabe escrever)
em
um
escritório, junto
à
sua
colega de trabalho, Glória,
que
se torna sua rival depois de se-
duzir-lhe o namorado, Olympio de Jesus, também nordestino.
Há
ainda
uma vidente (personagem-chave)
chamada
Ma-
dama
Carlota, a
quem
Macabéa consulta à procura de
um
desti-
no
melhor.
Após
o veredito de Madama Carlota, prevendo
que
a moça irá encontrar
um
marido, Macabéa morre. A rica Merce-
des
não
chega
para
resgatá-la
da pobreza
e
da
orfandade, mas
sim para matá-la
num
brutal atropelamento.
É
uma
história in-
vertida
de
Cinderela.
A trama, entretanto, fica obliterada pelo relato do próprio
narrador. A mulher é tão-somente uma caricatura grotesca, ma-
nipulada de forma irônica pelo real protagonista, Rodrigo S.M.
54
Cláudia Nina
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(Sua Majestade? Sacio-masoquista?
Na
verdade,
pode
ser uma
referência a qualquer coisa), cuja voz do eu interrompe a his-
tória a todo momento. Ele insere seus pensamentos sobre litera-
tura, Deus, vida e morte, fragmentando a narrativa em pedaços
que poderiam
ser arranjados
de
muitas outras formas. O texto
reflete sobre o ofício do ficcionista, a natureza
da
inspiração e o
ato
de
criar uma personagem que ele captura
de
repente. Na
verdade, tal captura
tem
origem nas próprias andanças de
Clarice Lispector pelas ruas do Rio de Janeiro, especialmente na
feira
de
São Cristóvão, aos domingos. Investigando aquele cená-
rio, ela
podia
observar imigrantes que ali apareciam
para
co-
mercializar, ou simplesmente para reviver, mesmo
por
um só
dia, os costumes e as tradições
de
sua distante região
de
origem.
Os rostos que a autora costumava encontrar na feira, com seus
traços físicos típicos, forneceram-lhe esboços mentais para a cri-
ação de Macabéa e Olympio de Jesus. (Pontiero, 1996, p. 90)
O romance
pode
ser lido como
uma
espécie de síntese dos
escritos
de
Clarice Lispector. Como sublinha Olga
de
Sá, a nove-
la dialoga com todo o universo ficcional
da
autora Sá, 1983a,
p.269). De fato, vários aspectos ilustram essa afirmativa. Em
primeiro lugar, uma leitura atenta revela, por exemplo, que as
personagens exílicas silenciadas dos romances anteriores
que
mencionei neste trabalho encontram seu contraponto paródico
em Macabéa. A nordestina é uma estrangeira perdida na metró-
pole, o Rio, que realmente parece ser um outro país para quem
sai do interior
de
Alagoas.
Além disso, a ausência de interação verbal é
uma
referência
aos parcos diálogos
das
n rr tiv s
do
silêncio
As conversas ári-
das que Macabéa tem com seu namorado são permeadas por
um
agudo senso
de humor
pois a
mulher
jamais sabia o que di-
zer. Nenhuma
das
perguntas que ela faz tem resposta, e, algu-
mas vezes, as conversas entre os dois são absurdas,
com
a mu-
lher
reproduzindo
o tique-taque dos minutos no rádio-
relógio. A única reação possível de Olympio são frases como:
Você, Macabéa, é um cabelo
na
sopa. . (HE, p.
78)
Além
disso, a subjetividade vazia
de
Macabéa e
sua
falta de
habilidade lingüística são uma outra versão - grotescamente re-
visitada - de Virgínia, Lucrécia, Martim e Ermelinda. De acordo
com Marta Peixoto, Macabéa, tanto um sujeito sem fissuras
quanto uma versão grotescamente carregada e truncada das
personagens indagadoras
de
Clarice Lispector, leva seus movi-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 55
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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mentos
típicos a
um
redutio ad absurdum (Peixoto, 1994, p. 96).
De fato, a eterna fome de Macabéa é uma
poderosa
metáfora da
vulnerabilidade
que
marca
todas
as
mulheres
de
Clarice
no uni-
verso dos escritos do
exílio.
Em
sua
incapacidade de
inventar
e
no
vazio
de
sua
mudez
encontram-se todas
as
outras
que
mal
con-
seguem
se
movimentar além de
suas
realidades
silentes - Ela
falava, mas
era extremamente
muda (HE, p. 44). Ela jamais
disse
frases,
em
primeiro
lugar por
ser
de parca palavra.
E acon-
tece que não tinha consciência de si[ ] (HE, p. 87). Ela
era sub-
terrânea
e
nunca tinha tido
floração . (HE, p. 46)
O
anonimato
total (HE, p. 86)
de
Macabéa, sua orfandade
e
ausência
de
vínculos emocionais
também
são
uma
referência à
solidão que
assombra
as
personagens
anteriores. As
compara-
ções
com que
Rodrigo descreve a mulher são pungentes e e-
xemplificam
com
clareza o
vácuo que
ela representa.
Como diz
Rodrigo, ela é um acaso , um feto
jogado
na lata de lixo -::.nbru-
lhado em um
jornal . (HE, p. 52)
Quando digo que Macabéa é uma caricatura, uma
versão
grotesca
das personagens
anteriores
das
narrativas
do silêncio,
re-
firo-me
ao
exagero paródico.
Para
descrever os traços fisionômi-
cos e a
personalidade
de Macabéa, a
autora emprega algumas
linhas gerais emblemáticas que caracterizam a mulher do Nor-
deste (excluída, à
margem, subdesenvolvida,
estigmatizada) e
monta seu retrato
exagerando seus
contornos negativos. O ele-
mento de humor
que
citei acima em referência aos diálogos de
Macabéa também
faz
parte
da
paródia que
Clarice
opera em
hora da
estrela. Enquanto
nas narrativas do
silêncio todas
as perso-
nagens
são vistas
envolvidas
em
uma
atmosfera circunspecta e
um
tanto sombria,
aqui
Macabéa-
de
apelido
Maca-
é o alvo
do senso de
humor
negro
da autora.
Além
disso, Rodrigo explo-
ra
o
uso
de
definições grotescas
quando
se refere a Macabéa -
até
parece doença,
doença
de pele (HE, p. 59)
-usando ima-
gens fortes (como a do feto embrulhado num jornal), o que cria
o
impacto
de repulsa. Macabéa, uma nordestina
amarelada
(HE, p. 74), é vista
como uma mistura de
distorção e ridículo.
É
importante
analisar
aqui
a relação
ambígua
entre
Macabéa
e Rodrigo S.M.
Desde
o começo, Rodrigo deixa claro que a mu-
lher,
para
ele, é uma
estranha
e,
por
isso,
inteiramente
diferente
dele.
Contudo,
os
sentimentos
lhe são conflitantes,
porque
ele
também mostra alguma compaixão pela
moça, inclusive pie-
dade
e
culpa por
seus
sofrimentos.
Como
enfatiza Italo
Marica-
56
Cláudia Nina
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ni em sua análise de
A
hora
da estrela
Rodrigo simboliza a
intel
ligentsía que
tenta expiar seus sentimentos de culpa com relação
aos pobres escrevendo sobre eles a fim
de
expor seu drama. De
fato, esse era o pensamento comum entre escritores brasileiros
modernos: denunciar o status
quo
a fim
de
salvar os pobres
(Moriconi, 2001, p. 218). Rodrigo, por outro lado, personaliza o
escritor pós-moderno, que faz piada dessa hipocrisia comparti-
lhando com o leitor sua intenção de escrever sobre os pobres :
Sou um homem
que tem
mais dinheiro
do que
os que passam
fome, o que faz de mim
de
algum
modo
um desonesto (HE, p.
33); Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da
vida
massacrante
da
média burguesia . (HE, p. 46)
A abordagem irônica também é encontrada quando a autora
sublinha que as reais vítimas marginalizadas da sociedade
não
têm acesso à literatura devido ao alto custo dos livros e à falta
de um
sistema de ensino abrangente e eficiente. Como diz o tex-
to: Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada,
sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre,
não
es-
tará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem
uma
leve fome permanente . (HE, p.
46)
O fato de Clarice Lispector criar
um
narrador masculino pa-
ra contar a história de Macabéa é um outro aspecto significativo
da
obra. O romance também parodia as histórias sentimentais e
não-literárias, na medida em que Rodrigo deixa claro que evita-
rá termos suculentos e adjetivos esplendorosos - tudo que
torna
uma
história sentimental demais (histórias ditas femini-
nas, envoltas em lágrimas). O
que
ele deseja é trabalhar
com
o
material
básico e
com simplicidade
cada
vez
maior ,
sem
adornar as palavras. Rodrigo prontamente explica sua estética,
que tem de ser seca como um escrito de homem,
uma
história
fria e imparcial: A palavra não
pode
ser enfeitada e artistica-
mente vã, tem que ser apenas ela (HE, p. 34). E ainda: [ ... ] por
enquanto
nada
leio para
não
contaminar com luxos a simplici-
dade
de
minha linguagem . (HE, p. 37)
O que eu vejo como paródia está vinculado a
uma
forma
de
auto-reflexão e autocrítica, à maneira
que
um
gênero
tem de
pensar
criticamente sobre si mesmo (McHale, 1992, p. 145).
Através
da
máscara
de
Rodrigo, Clarice Lispector usa o próprio
espaço literário para refletir sobre o ato de escrever, criticando
de
modo engenhoso vários elementos ao mesmo tempo. Clarice
fala com os leitores camuflando-se de Rodrigo S.M., como se es-
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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tivesse dizendo "Ok, se temos
de
ser um autor homem para es-
crever sobre a realidade social, inventemos um " Em outras pa-
lavras, "Rodrigo declara sua força gerativa, confiante em que
seu gênero vai lhe garantir a posição de um contador de histó-
rias mais forte" (Barbosa, 1997b, p.
65 .
Marta Peixoto questiona:
Por que, poderíamos perguntar, as equívocas conexões de gêneros
cruzados entre Clarice Lispector e seu
narrador
homem? Ela
dá
a
ele
uma identidade
masculina, ele
dá
a ela
seu sangue de
macho
[
..]A
autora é
uma mulher
que assume
uma
máscara masculina, e
o narrador, a máscara de uma autora. (Peixoto, 1994, p. 91
Com
ironia, Clarice Lispector, de
uma
só vez, curiosamente rejeita
e endossa o mito cultural
da
escritora sentimental. Embora a auto-
ra "real" seja, é claro,
uma
mulher, ela insiste
em
que o autor fictí-
cio seja homem. A máscara masculina, ao
aumentar
a distância en-
tre
narrador
e personagem, também faz ressaltar a ultrajante supo-
sição implícita
em
escrever o outro, especialmente o
outro
oprimi-
do. (Peixoto, 1994, p. 92
O narrador masculino que conta a história na terceira pessoa
cria, no entanto, uma falsa impressão
de
distância, pois Rodrigo
S.M. até
mesmo
sofre a
dor
de Macabéa e sente compaixão pela
morte
da
mulher. Ele também afirma ser capaz de "ver" o rosto
de
Macabéa quando se olha no espelho: "Vejo a nordestina se
olhando
ao espelho e -
um
ruflar
de
tambor - no espelho apare-
ce o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertocamos"
(HE, p. 37). É um jogo de faz-de-conta complexo, embora
pará-
dica, uma vez
que
Clarice Lispector deixa claro já
na
primeira
página (no prefácio) que por trás da máscara de Rodrigo está e-
la, a
própria
autora, como o leitor
pode
ver naquilo
que
ela
chama
de
"Dedicatória do autor" (na verdade, Clarice Lispec-
tor). (HE, p.
21
Além disso, Clarice Lispector desmascara o processo criati-
vo, abrindo os bastidores da literatura.
Se
nos escritos
do
exl io o
narrador é distante e um tanto quanto indiferente ao mundo fic-
cional um
narrador
extraficcional), aqui ele está localizado
no
próprio espaço do texto, compartilhando
da
angústia e dos so-
frimentos das personagens. Os leitores são imediatamente cha-
mados a participar desse jogo. Os bastidores
da
escrita revelam-
se em muitos fragmentos:
O
que
se segue é apenas
uma
tentativa
de reproduzir
três páginas
que
escrevi e que a minha cozinheira, vendo-as soltas, jogou
no
li-
58
Cláudia Nina
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xo
para
meu
desespero[
. .]
Nem de
longe consegui igualar a tenta-
tiva
de
repetição artificial
do
que originalmente escrevi [
..
] É
com
humildade que
contarei agora a história
da
história.
HE
p. 58)
Como observa Linda Hutcheon, no
que diz
respeito à litera-
tura
paródica: O leitor fica explícita
ou
implicitamente obriga-
do
a enfrentar essa responsabilidade com relação ao texto, isto é,
com relação ao mundo do romance que ele, leitor, está criando
(Hutcheon, 1996, p. 208 . Os leitores dão-se conta de que, duran-
te o processo da leitura, eles estão ativamente criando um uni-
verso ficcional. De fato, em A paixão segundo G.H., Clarice Lis-
pector havia requisitado um nível mais alto do público leitor,
dirigindo-se aos leitores
de
alma já formada .
A
hora
da
estrela
opera
uma
síntese
da
obra de Clarice Lispec-
tor
também
porque a autora continua, nesse livro, sua aborda-
gem aos
escritos
nomádicos, na mesma trilha de
Agua viva.
A his-
tória, embora apresente as personagens em seus contornos defi-
nidos, por outro lado não tem uma estrutura centralizada, e sua
organização, bastante caótica, lembra
uma
colcha de retalhos. A
narrativa é feita de fragmentos dispersos que poderiam facil-
mente pertencer a
qualquer
outro texto. Narrada no presente, a
obra
também
dá
a ilusão
de
algo
em
constante movimento. A
primeira sentença - Tudo no
mundo
começou com um sim
(HE, p. 25 - combina com a última: Não esquecer que por en-
quanto é tempo de morangos. Sim. (HE, p. 86
A hora
da
estrela é, portanto, uma espécie
de
narração con-
corrente , na qual os acontecimentos parecem não alcançar um
término,
mas
continuam e continuam,
em um
eterno presente.
Em New perspectives on
narrative
analysis, Uri Margolin define o
conceito de narração concorrente como
sendo
uma seqüência
de
intervalos, estágios ou fases do Agora que, colocados juntos,
formam o processo narracional durativo ou em desenvolvimen-
to[ . .] . (Margolin, 1999, p. 151)
Isso exatamente é o que é
A
hora da estrela. Todo o processo
de
criação acontece em narrativa altamente porosa: desde o es-
boço de uma personagem até a confecção de um fechamento,
que
na
verdade
não é
um
fechamento,
mas
um
novo começo,
mesmo
após a morte de Macabéa. Pois o fluxo da escrita en-
quanto écriture parece continuar para sempre com
um
aberto e
nomádico Sim .
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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5.5
uínas do texto
Nunca se esquecer,
quando
se tem uma dor, que a dor
passará:
nunca
se esquecer que,
quando
se morre, a
morte
passará.
Não
se morre eternamente. É só uma
vez, e dura um instante.
SV,
p. 160)
O silêncio não é o vazio, é a plenitude.
SV,
p. 53)
Um sopro de vida pode ser lido como um testamento de vida
e literatura. Publicação póstuma, de 1978, foi
produzido
origi-
nalmente a partir de notas fragmentadas e esparsas, coletadas
por Olga Borelli, amiga de
muitos
anos de Clarice Lispector.
Acima
de
tudo, é o resultado
da
reflexão
da
autora acerca
de
suas principais obsessões, tais como o ato de escrever, os críticos
literários e a criação
de
personagens. O protagonista
é,
uma vez
mais, o narrador, que agora se divide em duas personas: o Au-
tor,
que
se apresenta assim, no masculino, e
uma
voz chamada
Ângela, inventada pelo autor Estou esculpindo Ângela com
pedras
das encostas, até formá-la em estátua.
Aí
sopro nela e ela
se
anima
e
me
sobrepuja
SV,
p.
26).
Os dois estabelecem fragmentos de diálogos absurdos que,
juntos, vão tecendo a feitura de dois diários distintos. Nesse
processo, o tempo da memória fica definitivamente abolido; o
tempo é o eterno presente, o mesmo instante-já
de
gua viva e
hora
da
estrela
e coincide com o tempo da leitura. O leitor está
inscrito
no
texto como
um
público potencial que,
por
vezes, é
abordado diretamente: O leitor é que fala por mim? . SV, p.
24
A autora opera nas ruínas
da
linguagem literária, como
aparece dito várias vezes: Este ao
que
suponho será um livro
feito aparentemente por destroços
de
livro
SV,
p. 18); O que
está escrito aqui, meu ou
de
Ângela, são restos de
uma
demoli-
ção
de
alma, são cortes laterais
de
uma
realidade
que
me foge
continuamente. Esses fragmentos de livro querem dizer que eu
trabalho
em
ruínas
SV,
p. 19); Escrevo como se estivesse
dormindo
e sonhando: as frases desconexas como no sonho .
SV,
p. 74)
O jogo
de
auto-referência continua, e os leitores podem re-
conhecer passagens tiradas
de
outros livros ao longo
de
Um
so
pro de vida. Ângela, por exemplo, é uma recriação. Ela aparece
160 láudia Nina
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no
conto A partida
do
trem , de Onde
estivestes de
noite. Nesse
conto, Lispector expõe a filosofia que há
por
trás de sua poética
da destruição : Coerência é mutilação. Quero a
desordem
. Só
adivinho através de
uma
veemente incoerência. SV, p. 35)
A escrita reflete
um
processo nomádico
de
criação e, conse-
qüentemente, o ato de ler deve também ser feito
da
mesma ma
neira. Se os leitores tentarem entender, interpretar, ou mesmo
construir blocos de sentido e coesão a partir dos fragmentos
de
Um sopro de
vida
essa será uma abordagem enganosa, pois
que
é
inútil esboçar um formato com os fragmentos esparsos; o livro
são os fragmentos. Ao misturar vários gêneros, Um sopro de vida
é
uma
colcha de retalhos: misturam-se ali vários gêneros; às ve-
zes
uma
peça
de
teatro, com rubricas e diálogos absurdos; às
vezes,
um programa de
televisão, com entrevistas, e, em outros
momentos, parece um ensaio filosófico. A desconexão
no
nível
da forma é marcada por uma tentativa
de
alcançar o máximo
de
desordem política. De repente, Ângela diz: Estou
pintando
um
quadro
com o nome de 'Sem sentido'. São coisas soltas objetos
e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de
costura . SV, p. 38)
Como
os outros
escritos nomádicos
Um
sopro
de
vida
também
é
uma mudança
importante para além
do
centro, como
um
pólo
irradiando significado e comando. Traz implícita
uma
crítica
poderosa aos padrões literários tradicionais e a todas as formas
de hierarquia, questionando autoridade e autoria.
Quem
é o au-
tor? Quem está narrando, afinal? As cartas estão embaralhadas.
Na
verdade, os diálogos mais parecem monólogos, e a voz
do
Autor multiplica-se em muitas linhas de pensamento : Será
que
eu
criei Ângela
para
ter
um
diálogo comigo mesmo? Eu in-
ventei Ângela porque preciso me inventar SV, p. 27). Clarice
inventa ilusões e desvenda-as ao mesmo tempo.
O Autor critica o estilo literário de Ângela como se ele, por
ser homem, pudesse escrever melhor, de forma racional. O dis-
curso feminino não é poderoso o suficiente, parece dizer As
palavras
de
Ângela são antipalavras: vêm de um abstrato lugar
nela onde não se pensa, esse lugar escuro, amorfo e gotejante
como
uma
primitiva caverna. Ângela, ao contrário
de
mim, ra-
ramente raciocina: ela só acredita SV, p. 33).
Uma
vez mais, a
ironia é o modo. A dominância masculina é altamente criticada,
de
maneira paródica,
por
meio
da
autoridade do Autor da nar-
rativa. Em um estudo do uso subversivo que Clarice Lispector
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector 6
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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faz da
autoridade
e da autoria, Maria José Somerlate Barbosa
observa que:
Alguns dos textos de Clarice Lispector subvertem, descentralizam
e desconstroem os conceitos de autonomia, autoria, inspiração,
formação do cânone, políticas
para
as artes e a economia do
prazer
estético. Através
do
tratamento irônico da autoria
em hora da es-
trela
e em Um sopro
de
vida (Pulsações), mais especificamente, Cla-
rice Lispector parodia e desmascara a busca logocêntrica do narra-
dor por
lógica e
unidade no
discurso. Ela questiona a tradição lite-
rária, critica como as mulheres são ocasionalmente encaixadas
no
cânone patriarcal e solapa o sistema que sempre favoreceu escrito-
res
homens
e suas visões
do
mundo. (Barbosa, 1997b, p. 64
Tal dominância
também
está vinculada ao processo
de
cria-
ção em um sentido mais amplo da palavra. Uma das metáforas
ma
is
poderosas do
texto é a
do
sopro,
que
carrega uma resso-
nância bíblica evidente, representando a criação divina do
mundo. Temos aí uma implicação sutil de que o Autor age co-
mo um Deus, criando Ângela, sobre quem ele tem total controle
e comando. Devemos lembrar que a criação de Um sopro de vida
lembra o ato de soprar vida. O título é importante. O substan-
tivo está associado ao verbo: sopra-se
ar
num
balão
para
inflá-
lo,
mas também
sopra-se palavras como sussurros.
Quando
Clarice
produziu
Um sopro de
vida
ela estava prati-
camente soprando
palavras
nos
ouvidos
atentos de sua amiga
Olga Borelli. Mesmo levando-se em consideração que a
própria
autora escreveu
algumas
notas, o livro-testamento lembra
uma
obra que nasceu de um sopro de vida . Há alguns indícios no
texto que exemplificam essa idéia. Ângela diz: Eu raramente
grito. [
..
]
em
geral
eu
sussurro.
SV,
p.61); Ela
me
sopra em
sussurros o que ela é [
..
] . SV, p. 53)
Clarice Lispector nunca
admitiu que
seus livros mesmo os
últimos - fossem autobiográficos. No próprio campo da ficção
ela coloca isso de modo
muito
claro: Eu
que
apareço neste livro
não sou eu. Não é autobiográfico, vocês não sabem nada de
mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou SV, p. 19). En-
treta
nt
o, é inevitável associar a criação de
Um
sopro de vida e de
hora
da
estrela
(lembrando
que
os dois foram escritos simulta-
neamente) ao fato de que a autora estava às vésperas da morte.
Clarice Lispector estava escrevendo de modo contínuo, co-
mo se não quisesse interromper o fluxo da
écriture.
Um sopro
de
62 Cláudia Nina
7/21/2019 A palabra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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vida não tem fim. Uma das últimas
palavras
é um Sim aberto,
antecipando
reticências e não
um ponto
final. Isso implica
uma
continuação permanente em direção a um itinerário nomádico:
'Eu
..eu ..não. Não posso acabar.'
Eu
acho que .. . (SV, p. 162)
5.6
onclusão
São vários os aspectos
que
marcam o itinerário literário
de
Clarice Lispector rumo à liberdade. Os escritos nomádicos repre-
sentam uma recusa aos padrões
de
uma
narrativa centro-
estruturada
e ao silêncio
sombrio
e
desesperado
onipresente
nos
escritos do exflio. Traduzem ainda uma
oposição à restrição exíli-
ca dos
romances
anteriores,
nos
quais as
personagens
são
meros
instrumentos nas
mãos de um
narrador autoconsciente.
Os
exemplos mais significativos desse
nomadismo
literário
são
Ag ua
viva
A hora
da
estrela
e
Um
sopro
de vida.
Nas três obras,
o protagonista é o narrador que assume o comando da
primeira
pessoa
no
curso livre da subjetividade. Há uma franca desobe-
diência
às
regras
das narrativas
tradicionais; destrói-se até
mesmo a sintaxe regrada de acordo
com
o
português-padrão.
O tom predominante é o da fragmentação, e as sentenças pare-
cem
desenhar um mapa deleuziano, onde não há começo nem
fim e
no
qual as linhas podem ser conectadas em diferentes ar-
ranjos, numa infinita multiplicidade.
A essas obras,
muitos outros
textos, escritos
aproximada-
mente na mesma época,
poderiam
ser acrescentados, como al-
gtms
contos e crônicas já mencionados, a exemplo
do volume
Onde
estivestes
de noite.
Contudo
, acredito que os textos aqui ana-
lisados são os mais ilustrativos. Eles refletem de
modo
claro o
desejo
da autora
de
abordar
a literatura de
maneira
diferente
nos últimos
anos de sua carreira, que, curiosamente, recusou-se
a ter
um
desfecho, como
indicam
os finais abertos de
hora da
estrela e
de
seu livro
póstumo,
Um
sopro de
vida.
Não
se pode
adivinhar
o que Clarice Lispector teria produ-
zido depois disso. Estou convencida
de
que o passo adiante
que
ela
deu
em direção aos
escritos
nomádicos foi um avanço sem re-
torno. Um movimento em favor
da
liberdade, que representou
muito
mais que uma
simples e redutora inscrição
da voz
auto-
biográfica na ficção, como podem sugerir leituras enganosas.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
63
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m seus
últimos escritos, pós-modernos, Clarice Lispector rein-
ventou-se
como
autora,
resgatando
o começo de sua carreira
de
forma audaciosa, apostando em trilhas nomádicas)
totalmente
imprevisíveis.
64
láudia Nina
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onclusão
[
.
]apresento-me muda e em fulgor. (OEN, p. 52
A obra de Clarice Lispector é governada por duas forças dis-
tintas: a restrição exílica e o sentimento de êxtase e
de
liberdade.
Esses dois humores literários aparecem na ficção em diferentes
grupos
de escritos, vistos
aqui em
suas peculiaridades. Do pri-
meiro pertencem os
escritos
do
exi7io
ou
narrativas
do
silêncio
que
abrangem os romances O
lustre A
cidade
sitiada
e
A maçã no es-
curo. Os três foram produzidos- inteira ou parcialmente-
du-
rante o exílio voluntário
da
autora na Europa e nos Estados U-
nidos,
de
1944 a 1956.
Em todos esses anos longe da pátria, observa-se que o traba-
lho literário
de
Clarice foi naturalmente influenciado pelos anos
difíceis em terras estrangeiras (como pode ser visto pelas cartas
que
ela escreveu aos amigos e às irmãs). Além disso,
em
seus
romances produzidos nesta época, há
uma
inegável afinidade
com os escritos de outros autores modernos expatriados, como
Albert Camus, }ames Joyce e Samuel Beckett. O conceito
de
exí-
lio, contudo, é complexo. Às vezes a restrição é sentida
dentro
de
um mesmo
país e nos domínios da língua materna, como foi
o caso de Franz Kafka.
Mesmo
não
considerando as
narrativas
do
silêncio
de
Clarice
Lispector exemplos clássicos
da
literatura do exílio- afinal esse
não
é o tema declarado dos romances - são evidentes os vários
aspectos exílicos presentes em tais obras, tais como uma am-
biência claustrofóbica e silenciosa, onde as personagens
pouco
se movem e, principalmente, onde elas se calam. Todas são
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
65
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marcadas
pelo sentimento
de
não pertencer a
um
lugar e/ ou
grupo e por um indisfarçável senso de expatriação, á que não
conseguem sentir-se
bem
em lugar
algum
e - o mais importante
-são incapazes de erguer
suas
vozes e articulá-las em discurso.
A interação verbal é dolorosamente alcançada
ou
está ausente; o
silêncio prevalece em suas pobres conversações. A
comunicação
está
sempre
em risco. O narrador é a única voz
audível
aque-
la que
governa a
arena
ficcional
sem
estar localizada
dentro do
mundo narrado. O narrador é também um outsider.
A arquitetura narrativa desses escritos assemelha-se, então,
ao conceito deleuziano de árvore , na
medida
em que apresen-
ta
uma
estrutura fixa (enraizada), com
um
comando centrado
estabelecido pelo domínio
do
narrador.
Uma
lógica binária or-
questra a organização interna dessas obras, como acontece, se-
gundo
Deleuze, no sistema arborescente (Deleuze e Guattari,
1976, p. 47). As personagens
também
estão amarradas. enrai-
zadas ,
por
assim dizer,
em
sua inabilidade de expressar livre-
mente
a subjetividade e assumir o
comando
da linguagem.
O profundo silêncio das personagens parece ser uma refe-
rência direta ao silêncio
que
assombra o universo de um exilado
em
seus
primeiros meses
de
expatriação. A situação desenha-se
de
modo
claro: cercada de vozes estranhas e de sons estranhos,
ninguém lhe é próximo, nada lhe é familiar, nenhum laço afeti-
vo liga essa criatura à realidade circundante. A âncora está lan-
çada no passado - e
um
fardo pesado é o que amarra os movi-
mentos dessas personagens.
Há
silêncio dentro e
há
silêncio fo-
ra, sem
nenhuma
interação entre essas duas instâncias incomu-
nicáveis.
Clarice Lispector jamais
assumiu
ter escrito autobiografias.
De fato, ela nunca as escreveu
em
termos de
um
testemunho de
vida
tradicional e confesso. Não obstante, acredito
que
em todas
as vozes silenciosas dos
escritos do exílio na
busca de Martim
por
alcançar a lingua(gem) diante de uma audiência de pedras - a
mais tocante de todas as cenas exílicas que estudei
-
existe o
eco abafado do próprio desejo de Clarice de quebrar os restriti-
vos e invisíveis muros da expatriação.
Se existiu
na verdade
um
vínculo estreito entre esses ele-
mentos, não se pode ter certeza. Mas estou cada vez mais con-
vencida de que um dos mais importantes atrativos dessas obras
é o fato de que elas representam um estudo profundo - exe-
cutado
no
próprio
domínio da ficção - sobre a restrição exílica,
166 láudia Nina
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incluindo todas as implicações relacionadas com essa situação.
Entretanto, as relações entre essas duas esferas -
vida
e obra -
param aí. Embora acredite que alguns elementos autobiográfi-
cos devam ser levados em consideração para se entender o uni-
verso
de
criação e o processo
da
imaginação
de
um
autor
como
Clarice Lispector, as referências biográficas não foram, em mo-
mento
algum, objeto de minha preocupação central, pois a lite-
ratura comprovou ser o
campo
fértil
onde
todas as
minhas
es-
peculações teóricas puderam ser erguidas. Deixo, então, as co-
nexões bio para os biógrafos.
Tomei a decisão de concentrar-me na tríade de escritos que
marcam um período singular do trabalho de Clarice Lispector,
período
este
que ainda
não
foi suficientemente explorado pelos
críticos. Tentei trazer à
luz
romances que
têm
sido um tanto
quanto negligenciados, seja
por
que razões forem, tanto nacio-
nal quanto internacionalmente.
Para
analisá-los em termos comparativos, precisava encon-
trar uma contraparte aos aspectos exílicos. De
um
lado a restri-
ção e de outro, o quê? Os escritos tardios, que observo como
nomádicos
vieram a ser o contraste perfeito para ilustrar
duas
si-
tuações literárias diferentes. Coincidentemente
ou
não, essas úl-
timas obras foram escritas na década de 70
quando
Clarice não
mais
desempenhava
o papel de esposa de diplomata em terras
estrangeiras; já era, então, uma
escritora
independente moran-
do no Brasil e disposta a abordar a literatura por um outro viés.
Essa segunda categoria inclui
Á q-ua viva A
hora da estrela e
Um
sopro de vida obras que se posicionam em flagrante contraste
com as
narrativas
do silêncio. Todos esses textos fogem às tradi-
cionais definições de gênero e desafiam
padrões
literários.
Nos
escritos nomádicos as personagens tornam-se narradores, e a sub-
jetividade recupera seu
poder
de comando sobre a construção
da realidade. O texto reflete sobre o processo de sua própria
composição.O enfoque muda tanto
no que
diz respeito ao
mun-
do exterior, descrito
em
detalhes, quanto ao mundo íntimo das
personagens. Estruturalmente, as obras
não têm
um senso de
coerência lógica, nem mesmo no nível da sintaxe, sendo feitas
de linhas de
não-significância
e de múltiplas
conexões
que
exemplificam com clareza a idéia de um sistema rizomático
deleuziano (Del
euze
e Guattari, 1976, p. 32), no qual, acredito
eu, encontra-se a base filosófica adequada a esses últimos textos.
A palavra usurpada: exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
67
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Tais escritos refletem urna posição intelectual que trabalha
com
maneiras alternativas de pensar e
que
se identificam
com
as idéias de Rosi Braidotti
em
Nomadic subjects: embodiment
and
sexual
difference
in contemporary feminist theory.
Cito
com
freqüên-
cia esse texto, principalmente
no
capítulo sobre os últimos escri-
tos de Clarice,
por
observar
na
abordagem feminista de Rosi
Braidotti urna lúcida conexão com o modo nornádico da obra
clariceana produzida a partir dos anos 70.
A
passagem
de urna categoria
para
outra,
no
entanto,
não
se
deu de forma
abrupta
e tampouco foi fácil. Ela foi anunciada
com
paixão Se {undo
G.H., publicado em 1964, em que a
voz do
eu aparece pela primeira vez na arena ficcional da autora. O
romance marca
urna simbólica travessia
do
deserto,
num
ponto
de transformação rumo aos escritos
nomádicos,
e é um
dos
textos
mais densos de Clarice Lispector. Nele, pode-se encontrar al-
gumas características
que
seriam posteriormente exploradas,
tais corno a dissolução da forma e a desobediência a medidas-
padrão
de
ficção.
Também
é a primeira vez
que
o narrador diri-
ge-se ao leitor,
quebrando
os limites que
separam
ficção e reali-
dade. O silêncio,
em
vez de refletir o
som
do vazio, corno nos
es-
critos
do
exz1io,
prova
ser o resultado
de
urna tentativa
de
expres-
sar o indizível,
sondando
as instâncias mais íntimas do self. É a
mesma
categoria de silêncio que habita o universo dos últimos
textos: silêncio em palavras .
Muitos outros textos poderiam ter sido usados. Os contos de
Clarice Lispector, por exemplo, estão cheios de aspectos fasci-
nantes
a serem abordados, corno o altamente elogiado Laços
de
família, que oferece exemplos de exilados (a maioria deles mu-
lheres)
vivendo
em
esferas domésticas,
esperando
fugir
de
al-
gum modo
dos
laços que os restringem. Contudo, acredito que
os contos de Clarice formam
um
universo tão rico que merecem
ser
estudados
à parte, corno um capítulo especial em sua obra.
E de
fato, eles também
podem
ser estudados sob a perspectiva
exílica/nornádica, tornando-se corno contraponto,
por
exemplo,
alguns dos
escritos nomádicos
curtos incluídos em Onde estivestes
de noite.
Na verdade, muitas portas de investigação ainda estão
por
ser abertas na fortuna crítica de Clarice Lispector, e
mesmo
os
romances aqui investigados oferecem
um
número infinito de
possibilidades críticas que
não
a exílica. Minha idéia
apenas
foi
demarcar os itinerários exílicos/nornádicos na trajetória clarice-
68 Cláudia Nina
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ana, ch m ndo atenção
p r
aqueles textos silenciosos
que
representam um período importante d trajetória intelectual d
autora rumo à liberdade, m s que permanecem, misteriosamen-
te, relegados ao plano das leituras secundárias.
A palavra usurpada exílio e nomadismo na obra de Clarice Lispector
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