Observador On-line
| v.2, n.12 dez. 2007 |
Observatrio Poltico Sul-Americano Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM
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Observador On-line (v.2, n.12 dez. 2007)
ISSN 1809-7588
Neste nmero
A poltica externa e a poltica de defesa dos governos FHC e Lula: uma reflexo sobre a proeminncia de atores e a abertura do debate democrtico Ana Claudia J. Pereira 1 Parlamento do Mercosul: forma de organizao e perspectivas participao social e s polticas pblicas Elisa de Sousa Ribeiro, Helena Martins e Maurcio Santoro 27
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A Poltica Externa e a Poltica de Defesa dos governos FHC e Lula: uma
reflexo sobre a proeminncia de atores e a abertura do debate
democrtico
Ana Claudia J. Pereira Pesquisadora do Opsa
Apesar de o termo segurana estar presente nos discursos de poltica interna e
externa de todos os Estados, sua definio substantiva no feita de forma
automtica e objetiva. No existindo uma definio a priori, na prpria interao
entre os atores aos quais se atribui a responsabilidade de zelar pela existncia e
pela estabilidade do Estado e seu pblico-alvo especificamente no que se refere
fala que enuncia a tentativa de promoo da segurana - que a percepo das
ameaas segurana construda. Conquanto os temas militares tenham recebido
tradicionalmente destaque nas agendas de segurana, no raro que estas
abranjam questes econmicas, polticas, sociais e ambientais1.
A defesa, desta forma, um dos setores nos quais a segurana pode ser
subdividida, cuja peculiaridade referir-se segurana militar externa, e uma
poltica de defesa constitui uma poltica pblica voltada garantia da segurana na
esfera militar. A conexo entre poltica externa e poltica de defesa resulta do papel
de equilbrio das relaes de fora entre Estados no plano internacional
desempenhado pela ltima, ademais de estruturao das Foras Armadas como
instrumento de poder poltico nacional2. Cabe poltica de defesa apontar os
parmetros para o funcionamento das Foras Armadas, estruturar seu comando,
estabelecer a institucionalidade governamental para a defesa e produzir uma
poltica declaratria voltada visibilidade internacional3.
Nos Estados modernos ocidentais, as aes de promoo da segurana
internacional normalmente so excetuadas dos procedimentos democrticos
habituais que caracterizam o tratamento poltico de um problema coletivo em
poliarquias institucionalizadas. Inserida na categoria de poltica de Estado, a
poltica de defesa, ainda que persiga objetivos de longo prazo e formule metas
relacionadas sobrevivncia do Estado, espelha, como qualquer outra poltica
pblica, negociaes e tenses entre atores internos. A subjetividade da definio
de ameaa a expe provisoriedade e oscilao de objetivos de acordo com a
1 BUZAN, B.; WAEVER, O.; WILDE, J. de, 1998: 21-23. 2 ALSINA Jr, J. P. S., 2003: 4. 3 PROENA Jr., D; DINIZ, E. P., 1998: 63.
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composio e configurao de foras no cenrio poltico domstico4. De maneira
similar, a poltica externa est intrinsecamente atada aos objetivos perseguidos por
atores internos aos Estados e s possibilidades vigentes neste cenrio. A anlise
que se segue aponta similaridades e dissonncias entre a poltica externa e a
poltica de defesa5, ressaltando a participao de atores internos proeminentes em
sua formulao, tanto durante o governo Fernando Henrique Cardoso FHC -
(1995-2002) quanto no primeiro mandato de Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006).
Governo FHC
A Poltica Externa: o paradigma da autonomia pela integrao
Ao longo do perodo ditatorial brasileiro, o Itamaraty consolidou-se como o rgo
produtor de decises de poltica externa, contribuindo para sedimentar o
argumento de que as relaes exteriores do pas deveriam estar imunes a variaes
poltico-eleitorais6. A proeminncia da instituio responsvel pela formao do
corpo diplomtico na formulao da poltica externa foi acompanhada do aumento
gradual do interesse da sociedade pelo tema durante o governo FHC, impulsionada
pelos enormes efeitos que crises econmicas externas tiveram sobre o Brasil e pela
crescente abertura econmica promovida pelo governo. Contudo, a poltica externa
do perodo no dissociou suas decises do Itamaraty de onde provieram os
ministros de Relaes Exteriores Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer - e da tradio
poltica por ele defendida.
A linha decisria adotada pela pasta de Relaes Exteriores do perodo ancorou-se
em uma anlise das relaes internacionais que acreditava na emergncia, ao fim
da Guerra Fria, de um sistema de concerto entre as grandes potncias, que
promoveria a defesa da democracia, dos direitos humanos e do livre-mercado7. A
noo de rigidez bipolar cedeu lugar possibilidade de arranjos mltiplos de poder,
marcado pela gravitao das potncias menores em torno do plo de poder militar,
os Estados Unidos, e tambm em torno de mltiplos plos de poder econmico
Estados Unidos, Japo e Europa Ocidental. Diante da reestruturao do sistema
internacional, as estratgias para garantir ao Brasil uma maior insero em mbito
4 Idem: 38. 5 Em decorrncia da limitao da anlise, o artigo prioriza a anlise de fatores internos, sem deixar de mencionar a influncia do meio internacional. 6 SARAIVA, M. G.; ALMEIDA, F. R. F., 1999: 138. 7 FONSECA Jr., G. In: DUPAS, G.; VIGEVANI, T. (orgs.), 1999: 31.
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mundial foram nomeadas pelo prprio governo FHC paradigma da autonomia pela
integrao.
Mesmo tendo origem na interpretao de que o mundo era diverso daquele da
Guerra Fria, o paradigma da autonomia pela integrao no abandonou diretrizes
tradicionais da poltica externa brasileira8. Durante os dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, a conduta brasileira nas relaes com outros Estados esteve
pautada no pacifismo, na obedincia ao direito internacional, na defesa da
autodeterminao e da no-interveno e no pragmatismo na defesa dos interesses
do pas. Porm, a pouca especificidade contida nestes conceitos deu margem a sua
flexibilizao e adaptao conforme a necessidade do governo, facilitando, de
acordo com as mudanas histricas e conjunturais, o espao para inserir
mecanismos de adaptao a novas realidades ou a uma compreenso de mundo
distinta 9.
A idia de continuidade da tradio da poltica externa mediante adequaes para
torn-la factvel em um cenrio diverso foi formulada por seus prprios condutores.
Luiz Felipe Lampreia, que esteve frente do Ministrio das Relaes Exteriores de
1995 a 2000, responde indagao de como o Brasil deseja relacionar-se com a
comunidade internacional evocando princpios que tradicionalmente tm orientado
a nossa poltica externa como os de no interveno, respeito autodeterminao,
no ingerncia em assuntos internos, e soluo pacfica de controvrsias 10. Neste
mesmo texto, o ministro esclareceu que a utilizao dos conceitos citados requer
sua atualizao combinada com a preservao de sua essncia. Para Cardoso, para
Lampreia e para Lafer, o qual chefiou o Ministrio das Relaes Exteriores em 2001
e 2002, mirar o futuro era indispensvel e, para tanto, a diplomacia deveria atuar
em longo prazo, adequando-se s necessidades momentneas do contexto
internacional.
As linhas gerais da poltica externa do governo Fernando Henrique Cardoso foram
traadas ainda durante o governo Collor de Mello (1990-1992) e desenvolveram-se
com certa timidez no mandato de Itamar Franco (1993-1994)11. Entretanto, foi
durante o governo de Cardoso que o modelo de autonomia pela integrao foi
consolidado. Este paradigma teve origem na adeso idia liberal que a abertura
da economia do pas proporcionaria o crescimento da produo articulado com os
mercados externos, estimulando a renovao do parque produtivo nacional e
8 Para exemplo de pronunciamento no qual o governo prega a necessidade de continuidade da poltica externa, ver BRASIL, 1996. 9 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 31. 10 LAMPREIA, L. F., 1998: 10-11. 11 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 33.
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originando uma insero competitiva na economia internacional12. Na opinio dos
responsveis pela formulao da poltica externa, permanecer fechado s foras
econmicas externas fadaria o pas ao atraso13.
A gesto de Collor de Mello representou um ponto de inflexo na poltica externa
brasileira. A estratgia na qual se baseou este governo determinou o abandono de
queixas em relao economia internacional e ditou uma reaproximao dos
Estados Unidos, que nada teve a ver, todavia, com um alinhamento incondicional. A
percepo que norteou o governo brasileiro foi a de que a maior proximidade com a
principal potncia mundial ajudaria a transformar o pas em um interlocutor
relevante do cenrio internacional. Portanto, o Brasil incluiu em sua agenda
internacional os novos temas em discusso nos foros multilaterais e melhorou suas
relaes com os Estados Unidos14.
A implementao do Plano Real durante o governo de Itamar Franco, no ano de
1994, quando Cardoso ocupava o cargo de ministro da Fazenda, e sua manuteno
durante o restante dos anos 90 representaram esforos de abertura da economia
brasileira e intensificaram a busca por maior credibilidade externa do pas. O Plano
baseou-se na abertura do mercado brasileiro s importaes como forma de
promover a estabilidade interna dos preos15. Com uma maior circulao de
produtos importados em seu mercado, o Brasil procurou impulsionar a atividade de
seu parque industrial atravs das exportaes, que se depararam com as barreiras
protecionistas encontradas em diversos pases, muitos dos quais defensores da
retrica liberal. Mais do que simples obstculos comercializao de produtos
brasileiros, as barreiras protecionistas frustravam a prpria estratgia de insero
internacional brasileira, que se baseava prioritariamente na dimenso comercial.
Desde a concepo do paradigma da autonomia pela integrao, os entraves ao
livre-comrcio mundial foram levados em conta como uma adversidade a ser
combatida. A percepo do governo Cardoso era de que caberia ao Brasil lutar pela
instituio de mecanismos que ampliassem sua capacidade de atuao
internacional, fugindo tanto de alinhamentos automticos quanto de posturas no
pragmticas. Para isso, a orientao da poltica externa conduzia formao de
alinhamentos variveis de acordo com o tema em pauta e adeso aos regimes
internacionais sobre temas que estavam na ordem do dia. Ainda que atuasse de
forma crtica, a opo brasileira guiou-se pela reduo de conflitos nas relaes
12 SARAIVA, M. G.; TEDESCO, L., 2001: 137. 13 CARDOSO, F. H. , 2001: 7. 14 SARAIVA, M. G.; TEDESCO, L., 2001: 136. 15 LAMPREIA, L. F. 1998: 7.
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com outros pases. As eventuais crises deveriam ser negociadas quando fosse
possvel. Quando no, deveriam ser solucionadas no seio das instituies
multilaterais competentes, garantindo sua legitimao perante a comunidade
internacional.
De acordo com as premissas da autonomia pela integrao, o Brasil deveria
estancar os problemas internos atravs de uma participao ativa na elaborao da
ordem mundial ps-Guerra Fria. A atuao afirmativa do pas na definio das
normas internacionais daria condies para produzir um ambiente mais favorvel
ao desenvolvimento interno. Desta forma, durante todo o governo Cardoso, a
bandeira da atuao externa do Brasil pautou-se na tentativa de consolidar normas
e regimes internacionais com vistas a promover um ambiente internacional o mais
institucionalizado possvel16, retomando como objetivo do pas algo que governos
brasileiros anteriores j haviam declarado uma das metas mais importantes da
poltica externa: a autonomia17.
A institucionalizao seria o caminho para submeter todos os pases s regras,
impedindo aes unilaterais por parte das maiores potncias. Ela seria obtida
atravs da aliana com outros pases com os quais o Brasil dividisse interesses
da a importncia da flexibilidade das alianas e que tambm seriam favorecidos
pela diminuio da assimetria nas relaes internacionais. Neste sentido, a adeso
brasileira aos regimes internacionais criaria a oportunidade de transformao da
realidade internacional atravs daquilo que foi chamado pelo ministro Lampreia de
convergncia crtica: por um lado, o pas acompanhava as tendncias mundiais
em um contexto de globalizao, abrindo sua economia, discutindo novos temas e
aderindo aos regimes, ou seja, seguindo o mainstream; por outro, a diplomacia
brasileira assumia o papel de ativista, denunciando e combatendo, at onde lhe era
possvel, distores e incoerncias em relaes ao direito internacional18.
Entretanto, a partir de 1999, possvel notar que ocorrem alteraes na percepo
do perfil do processo da globalizao, passando de um certo otimismo reformista
para uma tnica mais crtica do protecionismo exercido pelas grandes potncias,
aps alguns insucessos brasileiros na reformulao das regras do comrcio
internacional no seio da Organizao Mundial do Comrcio (OMC).
O paradigma que teve sua implementao iniciada com Collor almejava a conquista
de autonomia para que o Brasil fosse capaz de dirigir suas escolhas internacionais.
Entretanto, esta autonomia esteve norteada pela idia de integrao, que se
16 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R. 2003: 32. 17 LAMPREIA, L. F. 1998: 8. 18 LAMPREIA, L. F.,1999.
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concretizava nas opes pelo universalismo e pelo multilateralismo. O primeiro j
constava na histria das relaes exteriores brasileiras, mas ganhou novo flego ao
incluir o conceito de global trader. A adio deste conceito explicitou que o Brasil
assumia interesses globais, a serem materializados por meio de agenda e parceiros
mltiplos e no excludentes. Bernal-Meza19 utiliza o conceito de universalismo
seletivo para descrever as aproximaes estratgicas com potncias regionais
semelhantes, empreendidas pelo Brasil. Sua articulao no seio de foros
multilaterais, por outro lado, era tida como o meio de ao cabvel aos Estados
desprovidos de poder.
Assim, a retomada do projeto de aproximao regional foi de suma importncia,
conquanto se considerasse que seu desenrolar deveria ser cauteloso. O
fortalecimento das relaes regionais no se ops noo do Brasil como um global
player e sim a complementou, uma vez que ambas seguiram os moldes das
polticas econmicas neoliberais20, que nos anos 90 guiaram os governos do Brasil
e da Argentina. No mosaico da poltica externa brasileira, o Mercado Comum do Sul
(Mercosul) encaixar-se-ia como uma plataforma de insero competitiva no plano
mundial que, para no se contradizer com a prpria finalidade de sua criao, no
deveria ser excludente. No por outro motivo que o regionalismo vigente no Cone
Sul foi denominado, por Bernal-Meza, regionalismo aberto21 e encontrou resistncia
institucionalizao por parte do Brasil. Ainda que o pas o tenha tratado com
ateno prioritria, no houve interesse em arcar com os custos da consolidao
institucional do Mercosul22.
A idia de uma integrao mais ampla, que teria como base toda a Amrica do Sul,
revigorou-se no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, perseguindo
metas semelhantes s do Mercosul23, conquanto sua operacionalizao tenha sido
menor e a resistncia institucionalizao da parte brasileira tenha sido maior
ainda. A aproximao sul-americana surgiu como uma opo frente s crises no
seio do Mercosul e gerou como principais atividades a I Reunio de Presidentes da
Amrica do Sul, no ano de 2000, promovida pelo prprio presidente da Repblica
brasileiro, e a II Reunio de Presidentes da Amrica do Sul, em 2002. Privilegiou-se
ainda o dilogo com pases considerados estratgicos como China, ndia, Rssia,
Portugal, Cuba, Mxico, Japo e com a Comunidade dos Pases de Lngua
Portuguesa (CPLP) com a finalidade de, em alguns casos, ampliar o leque de
19 BERNAL-MEZA, R., 2002: 40. 20 Para influncia do modelo neoliberal nos governos de Brasil e Argentina, ver: BERNAL-MEZA, 2002. 21 BERNAL-MEZA, R., 1999: 42. 22 VIGEVANI, T.; OLIVEIRA, M. F.; CINTRA, R., 2003: 35. 23 VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003: 39
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alianas pontuais em foros multilaterais e, em outros, intensificar o intercmbio
comercial e poltico.
Coerentemente com as diretrizes do paradigma escolhido para a conduo dos
assuntos externos do pas, tambm na esfera da segurana internacional o perfil
brasileiro esteve relacionado adeso do mainstream internacional. O mesmo trato
multilateral das questes econmico-comerciais foi dado aos assuntos de
segurana, reforando o carter pacifista e a adeso aos acordos internacionais de
desarmamento. A tnica do discurso brasileiro centrou-se na ausncia de conflitos
na Amrica do Sul e enxergou na presena da superpotncia em seu continente um
limitador da projeo de poder do Brasil. Desta forma, restaria ao pas promover a
paz na regio sul-americana, que o Brasil procurou demarcar como rea de
influncia24. O uso da fora foi desqualificado como meio de ao da Poltica
Externa em prol de uma viso norteada pelo idealismo kantiano25 e pelo padro
grotiano cooperativo.
No sentido de aumentar a credibilidade de um pas em busca de reconhecimento
internacional, a adeso aos principais acordos internacionais de desarmamento,
segundo Lampreia, funcionaria como um resgate de hipotecas diplomticas. A
ratificao do Tratado de No-Proliferao de Armas Nucleares (TNP), em especial,
serve como exemplo ilustrativo da conduta brasileira. O Brasil havia assinado o
tratado em 1968, mas relutava em ratific-lo por encar-lo como um mecanismo de
congelamento do poder nuclear nas mos das grandes potncias. Sem renunciar a
esta acusao, o pas ratificou TNP em 1998, assumindo o discurso de que a
proibio de desenvolvimento de armas nucleares j havia sido instituda por meio
da Constituio brasileira26.
Desta inflexo na postura do Ministrio das Relaes Exteriores diante dos temas
de segurana, resultou a assinatura de inmeros regimes e acordos, dos quais os
mais importantes foram: Regime de Controle de Tecnologia de Msseis (MTCR), em
27 de outubro de 1995; Conveno sobre Proibies ou Restries ao Uso de Certas
Armas Convencionais que Podem ser Consideradas Excessivamente Danosas ou ter
Efeitos Indiscriminados, em outubro de 1995; adeso ao Grupo de Supridores
Nucleares (NSG), em abril de 1996; adeso Organizao para a Proibio das
Armas Qumicas (Opaq), em abril de 1997; Tratado para Proibio Completa dos
Testes Nucleares (CTBT), em 24 de julho de 1998.
24 OLIVEIRA, A. J.; ONUKI, J., 2003: 110-111. 25 CERVO, A. L.; BUENO, C., 2002: 469-470. 26 BRASIL, 1997; CARDOSO, F. H. 2001: 7.
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No se pode deixar de mencionar, ainda, a reapresentao da candidatura do Brasil
a uma cadeira no Conselho de Segurana da Organizao das Naes Unidas
(ONU). Como um interlocutor importante para a redefinio da ordem mundial, o
pas seria, naturalmente, um candidato a ocupar um lugar de destaque junto ONU
no caso de uma eventual reforma do Conselho de Segurana. Enfatizou-se que, se
ocorresse uma reforma, os pases em desenvolvimento no poderiam ser deixados
de fora, ou, como preferia dizer o ministro Lampreia, discriminados27. Como a
estrutura do Conselho no foi modificada, a campanha brasileira no rendeu muitos
frutos alm de suscitar a desconfiana da Argentina. Contudo, o projeto viria a
figurar novamente na agenda do governo Lula.
O lanamento da Poltica de Defesa: metas e contra-sensos
No Brasil, o primeiro documento oficial com a finalidade de trazer a pblico as
diretrizes de ao e os objetivos da poltica de defesa foi lanado apenas em 1996.
Quando FHC assumiu o controle do pas, considerou-se que o grande nmero de
ministrios responsveis pela administrao da Defesa Nacional - ministrios da
Aeronutica, da Marinha, do Exrcito, Estado-Maior das Foras Armadas (Emfa) e
Gabinete Militar da Presidncia - dificultava o monitoramento pelos civis das
questes de defesa e constitua um entrave sua administrao. A soluo
encontrada pelo governo foi a fuso dos ministrios da Aeronutica, da Marinha, do
Exrcito e do Estado-Maior das Foras Armadas em um nico rgo pblico: o
Ministrio da Defesa.
Ciente da oposio militar idia, FHC informou os ministros militares sobre suas
intenes antes destes assumirem seus cargos28. Ainda que a orientao de FHC
tenha sido de que a mudana deveria ocorrer de forma gradual para no criar
contendas com as Foras Armadas, no se pode dizer que a aceitao dos militares
ao projeto tenha sido ampla. Contribuiu para uma adeso mais abrangente o
resultado de estudos desenvolvidos pelo Emfa: em uma pesquisa com 179 pases,
23 no tinham um ministrio da Defesa e, entre as naes mais ricas, o rgo
inexistia apenas no Mxico, no Brasil e no Japo. preciso ressaltar a exclusividade
conferida aos militares no processo de recolhimento de dados para os trabalhos que
embasaram a organizao institucional do futuro ministrio, a qual gerou atrasos
em sua criao devido ao comportamento inercial das trs armas. Esta resistncia
pode ser ilustrada pelo episdio no qual um conselho militar encarregado de chegar
27 BRASIL., 1997. 28 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 11-12.
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a uma posio comum sobre o assunto apresentou um documento afirmando que a
implantao do Ministrio da Defesa seria invivel.
O quadro de negociaes evoluiu mediante a criao da Cmara de Relaes
Exteriores e Defesa Nacional (Creden) no seio do Conselho de Governo, reunindo os
ministrios das Relaes Exteriores, da Justia, da Marinha, da Aeronutica, o
Emfa, a Casa Civil, a Casa Militar e a Secretaria de Assuntos Estratgicos (SAE), no
dia 06 de maio de 1996. Sua criao foi determinada pelo chefe do governo aps
um episdio de turbulncia entre a Marinha e a Aeronutica decorrente da falta de
unidade de seus projetos. Tentando instituir uma referncia comum para o
planejamento e a ao militar e eliminar as divergncias interforas, Cardoso
ordenou Creden que elaborasse um documento pblico sobre a poltica de defesa,
em setembro de 1996. Durante os trabalhos da Comisso, o diplomata Ronaldo
Sardenberg, ento Secretrio de Assuntos Estratgicos e pea chave no
desenvolvimento da Poltica de Defesa Nacional (PDN), lanou a sugesto de que as
Foras Armadas deveriam apoiar a diplomacia brasileira e produzir, em conjunto
com esta, anlises do quadro estratgico internacional. Outra inovao foi a
introduo do conceito de defesa sustentvel como aquela que adequava o
aparato militar do pas aos recursos disponveis29. Nota-se a proeminente atuao
deste membro da corporao diplomtica brasileira na definio da poltica de
defesa e de conceitos que seriam repetidos durante todo o governo Cardoso.
Ambas a rapidez da elaborao da PDN, que durou apenas dois meses, e a
persistncia da postura resistente das Foras Armadas contriburam para que o
resultado final estivesse impregnado das tradicionais convices militares e
diplomticas, forjando um consenso bastante superficial, uma vez que as vises
destes grupos quanto interface entre a poltica externa e a poltica de defesa
eram conflitantes. Do lado dos diplomatas, que respaldaram a SAE, prevaleceu a
coerncia com a proposta pacifista para a poltica externa. Logo, sua influncia foi
determinante para que a tnica do documento recasse sobre a cooperao, a
democracia, a paz e a integrao regional. Para a diplomacia, no se tratava de
substituir a lgica de insero internacional pacfica, que optava pelo dilogo e pela
cooperao, por outra na qual a Defesa Nacional teria papel relevante, e sim de
adequar o pas s tendncias do ps-Guerra Fria e reiterar posies, com especial
preocupao de desqualificar a fora como meio de resoluo de conflitos entre os
pases.
29 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 15.
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Entre os militares, a falta de diretrizes slidas que guiassem sua conduta resultou
em interpretaes divergentes sobre as incipientes orientaes existentes, de forma
que cada uma das Foras possua sua prpria noo de como a poltica externa e a
poltica de defesa deveriam se articular. Contudo, uma tendncia comum aos trs
ministrios militares era a certeza de que a fora uma varivel imprescindvel na
equao do poder nacional frente s relaes exteriores, ao contrrio da tica
diplomtica que exclua a fora como opo nas manobras estratgicas30.
O lanamento da PDN foi fundamental para a criao do Ministrio da Defesa, em
1999. Conforme o esperado por FHC, a constituio do documento logrou instituir
uma base comum a partir da qual foi possvel avanar neste processo, sem que,
contudo, incoerncias e tenses acerca do papel da fora nas relaes exteriores
presentes no documento passassem despercebidas. J em 1999, o ento presidente
ressaltou em alguns discursos a necessidade de reformular a PDN, alegando que a
mutao permanente e clere da cena internacional pode tornar ultrapassados os
conceitos de defesa, ensejando a sua reinterpretao peridica para que se
produzam, assim, polticas e estratgias setoriais capazes de superar novos
bices31. Tentando minimizar uma possvel reao negativa dos militares, as falas
presidenciais enfatizavam a grande participao que estes teriam na formulao de
novos conceitos e na evoluo da estrutura do Ministrio da Defesa e lhes garantia
que a integrao e a racionalizao de atividades no teriam como custo a
demolio de tradies prprias de cada Fora32.
Aps a rpida passagem de lcio lvares pelo Ministrio da Defesa (1999), no incio
do ano 2000 a pasta foi assumida pelo ministro Geraldo Magrela da Cruz Quinto,
tambm defensor de reformulaes da PDN. Sua justificativa se fundamentou na
necessidade de um debate que abrangesse diversos setores da sociedade. Neste
ano, o Ministrio da Defesa deu incio a reunies de ministros e ex-ministros de
Estado, acadmicos, jornalistas especializados, diplomatas, parlamentares e ex-
militares para um exerccio crtico, cuja finalidade seria recolher massa crtica de
idias que permita oxigenar antigos preceitos e conferir maior legitimidade aos
novos referenciais estratgicos que venha a ser adotados pelo pas33. Apesar da
Mensagem ao Congresso Nacional do ano de 2002 ter publicado a previso de que
o Livro Branco da Defesa Nacional, fruto do referido debate, seria editado em
200234, o governo Cardoso encerrou-se sem o cumprimento desta meta.
30 ALSINA Jr., J. P. S., 2003: 19. Para uma crtica da PDN, ver: PROENA Jr., D.; DINIZ, E. Poltica de defesa no Brasil. Braslia: Nova Braslia, 1998. 31 CARDOSO, F. H., 1999. 32 CARDOSO, F. H., 2000. 33 BRASIL., 2001. 34 BRASIL., 2002.
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Em um discurso proferido aos alunos do Instituto Rio Branco - responsvel pela
formao dos diplomatas brasileiros -, por ocasio de discusses sobre a
reestruturao operacional das Foras Armadas, Quinto levou a pblico seu
desconforto quanto postura da chancelaria em relao considerao do
componente militar no planejamento diplomtico:
Nas ltimas dcadas, a sociedade civil brasileira, amortecida por 130 anos sem conflito armado com os pases vizinhos, sem contemplar inimigos evidentes e havendo vivenciado 25 anos de regime autoritrio, perdeu o contato com o tema da defesa. Nota-se, portanto, que o componente militar do poder nacional deixou de ser levado em conta pelo planejamento diplomtico, a no ser em questes especficas, como as misses de paz. O monoplio que os militares exerceram por muito tempo sobre temas relacionados segurana impediu a formao de uma "cultura de defesa" tanto nas reas que deveriam ter vnculo direto com o assunto, como a Chancelaria e o Congresso, quanto nas que poderiam contribuir com novas idias e abordagens, como as universidades e a imprensa35.
Neste mesmo discurso, o ministro alertou para as incertezas provenientes de uma
ordem mundial incerta, a qual, segundo seu entendimento, obrigava os pases a
manterem uma atitude de prudncia diante na reformulao das organizaes
militares. Seu diagnstico apontou que o contexto de adensamento da integrao
e consolidao da paz observado na Amrica do Sul no permitia dispensar uma
estrutura militar apta a conter eventuais aventuras de parte de algum regime com
mpeto belicoso que venha a surgir.
Como no caso das discusses que precederam a publicao da PDN, transpareceu
uma ntida diferena entre o entendimento que diplomatas e responsveis pela
formulao e aplicao da poltica de defesa fazem quanto ao uso da fora nas
relaes internacionais. De forma sutil, porm inquestionvel, Quinto, nos trechos
supracitados, argumenta a favor da fora como um respaldo da poltica externa e
indica, inclusive, uma situao em que a ameaa externa exigiria o emprego das
Foras Armadas.
No que se refere promoo do dilogo com outros pases, a evoluo das
parcerias no mbito da defesa foi considerada um sucesso resultante da
implementao do Ministrio da Defesa, que racionalizou o dilogo interinstitucional
e criou grupos de trabalho com ministrios de pases vizinhos, conforme a
orientao da Poltica Externa naquele momento36. Os moldes do dilogo seguiram
a frmula de no-institucionalizao como autonomia e excluiu-se, portanto, a
conformao de uma aliana na regio. Aos entendimentos na Amrica do Sul
somou-se a aproximao estratgica com Reino Unido, Frana, ndia, China, Coria
e CPLP.
35 QUINTO, G., 2000, grifos meus. 36 QUINTO, G. 2000.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
Convergentemente com a diplomacia, o Ministrio da Defesa foi incisivo na
insistncia da identidade estratgica da Amrica do Sul. As diferenas na natureza
estratgica das trs Amricas, reiteradas constantemente na fala de representantes
brasileiros nos foros de defesa continental, foram enfatizadas com vistas a
descartar a conformao de um sistema interamericano de defesa, proposto pelos
Estados Unidos37. Tambm foi respaldada pelo Ministrio da Defesa a adeso a
regimes internacionais de no-proliferao e eliminao de armas de destruio em
massa, de proscrio de armas consideradas excessivamente danosas ou cruis e
de controle da exportao de itens sensveis38.
De forma bastante resumida, pode-se concluir que o paradigma da autonomia pela
integrao influenciou a conduo dos assuntos de defesa nacional em trs sentidos
principais: em primeiro lugar, deu impulso aproximao das instituies da defesa
brasileira com novos e numerosos parceiros; em segundo lugar, absorveu as
intenes de cooperao sul-americana como um contrapeso s posies norte-
americanas; finalmente, promoveu a incorporao, no plano domstico, de
parmetros dos regimes internacionais de desarmamento e controle de armas,
alm de bloquear a opo de uso da fora como um recurso soluo de
controvrsias entre pases.
Governo Lula
A Poltica Externa: o protagonismo engajado
No primeiro governo Lula, a composio do quadro de atores formuladores da
poltica externa foi algo modificada pelo aumento da influncia e da atuao do
secretrio-geral das Relaes Exteriores, Samuel Pinheiro Guimares, ao lado do
ministro das Relaes Exteriores, Celso Amorim. Todavia, a reincidncia da
indicao de um diplomata para ocupar a pasta de Relaes Exteriores, bem como
a reafirmao de linhas tradicionais da poltica externa brasileira, indicam o elevado
grau em que a formulao e execuo da mesma esteve vinculada ao Itamaraty.
Participaram tambm da concepo e at da conduo dos assuntos internacionais
os assessores presidenciais, com destaque especial para o assessor Especial da
37 BRASIL., 2001; 2002. 38 Para uma descrio detalhada, ver: BRASIL. Mensagem ao Congresso Nacional 2000. Braslia: Secretaria de Comunicao Social, 2000.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
Presidncia para Assuntos Internacionais, Marco Aurlio Garcia, figura proeminente
no PT39.
Apesar de o Itamaraty continuar a ocupar a posio central na definio da poltica
externa, notou-se uma crescente interao entre poltica domstica e contexto
internacional e, conseqentemente, o deslocamento para a esfera pblica da
discusso da poltica internacional, at ento considerada como prerrogativa nica
do Poder Executivo por meio de sua burocracia especializada: o corpo
diplomtico40. Por esse motivo, aumentou a mobilizao da sociedade em torno de
questes pertinentes s relaes exteriores, sem que isso tenha excludo o impacto
de presses provenientes de grupos de interesse sobre o poder executivo.
A execuo da poltica externa esteve relacionada idia de que esta constitua
uma pea-chave para o sucesso da economia nacional. No interior da conduta
macroeconmica adotada pelo governo Lula, considerou-se que, atravs dela,
novas vias comerciais seriam abertas e novas parecerias consolidadas, de forma a
impulsionar as exportaes nacionais, ou seja, acoplou-se a poltica de comrcio
exterior poltica externa para amenizar as vulnerabilidades do pas e impulsionar
a recomposio da poupana interna41. Com a manuteno de altos ndices de
exportao, acreditava o governo, o setor produtor brasileiro, tanto industrial
quanto agrcola, seria estimulado e cresceria, gerando empregos, elevando a renda
da populao e proporcionando a gerao de supervits na balana comercial do
pas. Para que a estratgia fosse bem-sucedida, o Brasil deveria, de acordo com a
lgica governamental, manter a inflao sob controle, utilizando-se das taxas de
juros, e manter o servio da dvida para no suscitar desconfiana nos investidores
internacionais. Desta forma, buscou-se a preservao de boas relaes com
instituies financeiras internacionais, com a comunidade bancria e de negcios,
com proeminentes parceiros comerciais e com os pases dos quais partiam crdito
privado e fluxos de investimento dos quais o Brasil no poderia prescindir42.
O temor de investidores internacionais de que a ascenso de um governo de
esquerda no levasse adiante iniciativas que tornavam possvel o servio da dvida
e de que chegasse, mesmo, situao extrema de decreto de moratria amenizou-
se gradualmente aps a posse de Lula, em 2003. O governo do PT provou na
prtica que, de acordo com as promessas eleitorais, havia de fato abandonado sua
averso reforma liberal, o repdio ao Fundo Monetrio Internacional (FMI) e a
39 ALMEIDA, P. R., 2004: pp. 164-165; 177. 40 OLIVEIRA, M. F., 2005. 41 AMORIM, C., 2003a. 42 PERRY, W., 2003: 2.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
defesa da moratria, defendidos pelo partido antes do incio campanha presidencial
de 2002. Com os esforos macroeconmicos que se desenvolveram no sentido de
reconquistar a confiana do mercado internacional de capitais, de controlar a
inflao atravs da manuteno de taxas de juros elevadssimas e de conter a
dvida pblica a exemplo da administrao Cardoso e em acordo com as
recomendaes do FMI o pas logrou voltar a receber investimentos externos e
neutralizou a desconfiana internacional. O cmbio na orientao econmica do
governo foi explicado pelo PT como uma medida necessria para abrandar a
vulnerabilidade do pas em um contexto internacional incerto43.
O governo Lula tomou como ponto de partida para elaborao de sua poltica
externa a noo de que a globalizao e a liberalizao econmica, da maneira
como se deram at ento, geravam excluso e disseminavam a fome e a pobreza,
em particular nos pases considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento44.
As exigncias das grandes potncias de que os demais pases abrissem suas
economias concorrncia internacional, enquanto elas prprias criavam barreiras
para proteger sua produo interna, representavam um entrave ao crescimento das
economias menores. No mbito interno aos pases, os problemas sociais
resultariam de aes governamentais que dissociavam o desenvolvimento
econmico do desenvolvimento social, sendo o primeiro priorizado. Ao dar mais
importncia a medidas de defesa da estabilidade econmica, os governos estariam
relegando a sustentabilidade social a segundo plano.
As crticas dinmica internacional evidenciaram que o governo Lula entendia as
relaes internacionais como relaes hierarquizadas, no mbito das quais as
grandes potncias mobilizavam-se para, fazendo proveito de sua situao de
vantagem poltica e econmica, impor seus interesses ao restante do sistema. Entre
os setores no qual a atuao das grandes potncias limitou o desenvolvimento dos
demais atores, destacou-se o setor comercial, no qual, de acordo com o ministro
das Relaes Exteriores, as barreiras e subsdios distorciam brutalmente o comrcio
e privavam os pases em desenvolvimento de vantagens comparativas naturais ou
obtidas atravs do esforo e do engenho criativo45.
No governo Lula, a convergncia da influncia do Itamaraty na anlise do contexto
internacional com a similaridade da agenda internacional durante o governo FHC e
com a opo por uma poltica econmica que em grande medida repetia frmulas
de seu predecessor foi refletida em traos de continuidade da poltica externa,
43 PERRY, W., 2003: 2. 44 SILVA, L. I. L., 2004a; AMORIM, C., 2003a. 45 AMORIM, C., 2003a.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
combinada, contudo, com novas formas de tratamento de temas que tambm
estiveram na pauta da gesto precedente. Neste sentido, Amorim reiterou
princpios e linhas de ao que j fazem parte da ndole brasileira, como o respeito
soberania dos Estados e a soluo pacfica de controvrsias, ou, ainda, a defesa
do multilateralismo46. A ascenso de um governo de esquerda no determinou,
portanto, o abandono das chamadas linhas tradicionais da poltica externa
brasileira. Similarmente ao governo FHC, a pouca especificidade dos termos
utilizados para caracterizar as diretrizes tradicionais da poltica externa brasileira
permitiram sua aplicao de forma flexvel.
A definio das diretrizes da poltica externa, entretanto, baseou-se na vontade de
reverter posturas do governo anterior que foram consideradas por demais reativas
e defensivas e na opo por reintroduzir alguns valores tradicionais e dimenses
que, de alguma forma, haviam sido negligenciados ou pouco explorados pela
administrao FHC. Com efeito, o governo Lula adotou uma atitude mais agressiva
no que diz respeito defesa da reorganizao do sistema internacional para
benefcio dos pases em desenvolvimento. Neste sentido, anunciou a [...]
determinao de traduzir em ao concreta a viso de uma ordem internacional
mais justa e democrtica [...]47 e defendeu uma ordem mundial regida pela
observncia do direito internacional e exercida por meio de um sistema multilateral
equilibrado e justo48.
A falta de reciprocidade no comrcio internacional foi escolhida como smbolo das
injustias presentes no sistema internacional. O Brasil, pelo papel que ocupava no
mundo, deveria ser protagonista do processo de reformulao da ordem comercial.
Por esse motivo, o presidente Lula afirmou, durante o Frum Econmico Mundial de
2005, que assumiu a administrao brasileira com a misso de transformar a
geografia comercial do mundo, idia relacionada ao fortalecimento dos laos
comerciais e econmicos entre os pases do Sul, sem, contudo, descartar as
oportunidades oriundas do Norte. Naquela ocasio, o presidente esclareceu que o
cerne de sua proposta de reformulao do comrcio global no estava situado na
contraposio aos Estados Unidos e Unio Europia, e sim no estabelecimento de
uma poltica de similaridade49, baseada na aliana com potncias emergentes,
que levou formao do Grupo dos 20 (G-20).
46 AMORIM, C., 2005b: 2. Grifo meu. 47 AMORIM, C., 2005b: 2. 48 SILVA, L. I. L., 2003a. 49 SILVA, L. I. L., 2005a.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
A capacidade brasileira de promover uma ordem mais justa e democrtica estaria
ligada tanto relevncia do pas - um pas de grandes dimenses, populao e
atividade poltica - quanto coordenao poltica com atores de destaque na
poltica internacional, por meio de alianas pontuais para tratar de temas que
comportassem interesses em comum, sem que houvesse obrigatoriedade, no
entanto, de que as parcerias abrangessem a totalidade das agendas.
Enquanto o governo FHC optou por diversificar os pases com os quais mantinha
relaes, o governo Lula apostou em um nvel de proximidade maior, melhor
classificado como parceria do que como simples aproximao. Alm de
estabelecer parcerias com pases situados em sua regio e com grandes potncias e
blocos, o Brasil voltou-se conformao de relaes privilegiadas com pases
independentes do mundo em desenvolvimento, como ndia, China, frica do Sul e
Argentina, sem deixar, contudo, de manter boas relaes com pases desenvolvidos
e pobres.
Conquanto no tenha deixado de figurar no topo da agenda da poltica externa
brasileira, o entendimento entre os pases do Mercosul encontrou inmeras
dificuldades, mergulhando o bloco em uma crise profunda. Na poltica externa do
primeiro mandato de Lula, o Mercosul tinha o papel estratgico de constituir uma
base material para a unio poltica da Amrica do Sul, alm de representar um
contrapeso influncia norte-americana, conformando um modelo de regionalismo
no-excludente. Todavia, desentendimentos comerciais e polticos demonstram que
os laos constitudos no seio do bloco eram ainda precrios. A crise no Mercosul no
impediu que o governo brasileiro continuasse a defender a integrao dos pases da
Amrica do Sul e adotasse iniciativas polticas que demonstrassem que o Brasil
considerava a regio estratgica. Entre as medidas que visavam impulsionar a
integrao esteve o estabelecimento de negociaes para a criao de um acordo
comercial entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Naes (CAN), tendo em
vista o avento da rea da Livre Comrcio Sul-Americana (ALCSA). Paralelamente, o
Mercosul logrou produzir entendimentos comerciais com Peru, Colmbia, Venezuela
e Equador. O investimento em infra-estrutura para viabilizar o comrcio regional foi
priorizado pelo governo, ainda que as restries financeiras do pas tenham imposto
entraves a sua execuo.
Como o governo FHC, o governo Lula apostou no multilateralismo como o meio de
ao privilegiado dos pases em desenvolvimento, capaz de resguard-los dos
abusos de poder e das imposies advindas de atores de maior poder. O discurso
assumido pelos condutores da poltica externa brasileira associou o multilateralismo
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
ao sistema democrtico de governo no mbito interno dos Estados. Por meio da
associao entre multilateralismo e democracia, buscou-se cobrar das grandes
potncias democrticas uma atuao em mbito mundial que no contradissesse
grosseiramente seus valores internos e suas recomendaes aos pases em
desenvolvimento.
Outro recurso retrico empregado foi a apresentao da liberalizao comercial
como um instrumento de combate concentrao de renda e s desigualdades
sociais em mbito mundial. A considerao de que as barreiras comerciais impostas
pelos pases ricos contribuam de maneira significativa para disseminar a pobreza e
a misria estendeu-se, ainda, ao campo da segurana internacional, uma vez que
as proposies brasileiras buscaram aliar a justia social construo de uma
ordem global mais estvel e segura50. O governo brasileiro lanou mo do
argumento de que o desenvolvimento econmico estava intimamente relacionado
ao fomento da paz internacional, enfatizando sua compreenso de que as questes
estritamente relacionadas segurana no deveriam predominar na agenda
internacional. Segundo esta associao entre paz e segurana, solues para
conflitos internacionais que no considerassem o combate s assimetrias seriam
precrias e no poderiam produzir estabilidade duradoura.
Tambm no campo da segurana, os formuladores da poltica externa pautaram-se
no multilateralismo, no fortalecimento das organizaes internacionais e no direito
autodeterminao. A incapacidade da ONU de frear a interveno militar dos EUA
no Iraque, ao evidenciar fragilidades e limites na atuao da organizao, deu
margem para que o Brasil, em conjunto com outras potncias, revigorasse sua
campanha por um assento permanente dentro do Conselho de Segurana51. A
demanda do Brasil seria coerente com a obsolescncia da estrutura da ONU e com
a necessidade de adequ-la s transformaes do sistema internacional.
Juntamente com a Alemanha, o Japo e a ndia, o Brasil formou, em setembro de
2004, o G-4, com a finalidade de consolidar o apoio recproco para a entrada no
Conselho na condio de membros permanentes. No intuito de demonstrar sua
aptido para intervir positivamente na ordem internacional, o Brasil disps-se a
comandar a misso de estabilizao da ONU Haiti para conter a guerra civil
instaurada naquele pas, iniciada em 2004.
A soma dos ideais pacifistas busca de autonomia poltica pode ser ilustrada pelo
discurso assumido pelo Brasil no que tange ao desenvolvimento nuclear. A face
50 AMORIM, C., 2005b. 51 SILVA, L. I. L. 2004f.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
pacifista da poltica externa foi evidenciada pela reivindicao do cumprimento dos
acordos de desarmamento e no-proliferao nuclear. Por outro lado, o vis
autonomista esteve presente no argumento de que a reduo do potencial militar
nuclear no deveria servir de pretexto para impedir o desenvolvimento de
tecnologias nucleares para uso pacfico por aqueles pases que ainda no as
detinham, como no caso brasileiro52. Coerentemente com este discurso, o Brasil
condenou a Coria do Norte por retirar-se do TNP53 ao mesmo tempo em que se
contraps presso do Departamento de Estado dos EUA para que o Brasil
assinasse o Protocolo Adicional de Inspees da Agncia Internacional de Energia
Atmica (AIEA) da ONU. Os esforos norte-americanos, respaldados pela AIEA, em
abril de 2004, tiveram como resposta a afirmao do governo brasileiro de que o
pas no precisaria assinar o Protocolo Adicional que permite inspees profundas
e sem aviso prvio uma vez que j fiscalizado pela Agncia Brasileiro-Argentina
de Contabilidade e Controle (ABACC) e pela AIEA desde 1994, e que jamais foram
levantadas quaisquer suspeitas acerca de seu compromisso com o desarmamento e
a no-proliferao. A polmica teve fim em outubro, com a declarao do ento
secretrio de Estado norte-americano, Colin Powell, de que o desenvolvimento
nuclear brasileiro no preocupava os Estados Unidos e foi definitivamente
encerrada com a aprovao, pela AIEA, do plano de inspeo da fbrica de
enriquecimento de urnio de Resende, no Rio de Janeiro, proposto pelo governo
brasileiro, que comprovou que o processamento destinava-se a fins pacficos.
Os formuladores e executores da poltica externa brasileira entenderam que o
exerccio da autonomia poltica deveria consolidar-se atravs de um protagonismo
engajado termo empregado pelo ministro das Relaes Exteriores - ou seja, uma
postura que colocasse o Brasil como um ator relevante para as decises mundiais e
que tambm demonstrasse comprometimento com os valores aclamados pela
tradio da poltica externa e com os interesses nacionais 54.
Poltica de Defesa: novos rumos?
A criao do Ministrio da Defesa durante o governo FHC foi recebida com
entusiasmo pelo PT. Entretanto, no momento da implementao da pasta da
Defesa, a oposio no se furtou a destacar limitaes do projeto do governo, que,
em seu entendimento, deixou de incorporar sugestes enumeradas durante os
52 AMORIM, C., 2005a. 53 MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES, 2003. 54 AMORIM, C., 2005b: 6.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
debates que a precederam55. A percepo dos membros do partido era de que
havia necessidade de aprofundar o carter civil do Ministrio da Defesa, ou seja,
minar a autonomia dos comandantes militares, aumentar, entre os parlamentares
brasileiros, a conscincia de que a defesa constitui uma questo civil e no militar56
e proibir o emprego das Foras Armadas na administrao da ordem pblica. A
ascenso do candidato do PT Presidncia da Repblica deu margem expectativa
de que as sugestes feitas ao governo anterior fossem finalmente incorporadas.
Todavia, uma vez no poder, o PT reviu sua orientao anterior, conforme ilustrou a
aprovao do Decreto 4.735, em 2003, o qual instituiu que os cargos de secretrios
e diretores de Departamento do Ministrio da Defesa somente poderiam ser
ocupados por oficiais generais ativos, impedindo, portanto, a atuao de civis. Este
mesmo decreto permitiu que as Foras Armadas atuassem na garantia da lei e da
ordem, ou seja, instituiu legalmente a interveno militar na vida poltica nacional.
O primeiro ministro a ocupar a pasta da Defesa durante o governo Lula foi Jos
Viegas Filho, diplomata experiente no tratamento de temas de Segurana
Internacional. Sua permanncia no ministrio foi marcada pela continuidade de
algumas diretrizes adotadas pelo ministro anterior, como o caso da campanha
pelo aumento salarial dos militares, a realizao de exerccios e operaes militares
conjuntas, a priorizao da Amaznia como espao estratgico da atuao das
Foras Armadas brasileiras e a manuteno de atividades militares visando
garantia da ordem pblica. Destacaram-se as tentativas de atender s demandas
das tropas sem que fossem permitidas, contudo, maiores manifestaes que
pudessem denotar a falta de controle civil sobre os militares. Foram ainda alvo das
atenes do ministrio a operacionalizao da Lei do Abate, a represso aos
delitos transnacionais, a aproximao como os pases da Amrica do Sul, a Fora de
Paz da ONU no Haiti, a questo oramentria e o reaparelhamento das Foras57.
Durante a permanncia de Viegas no Ministrio da Defesa, foram constantes as
reclamaes das trs Foras a respeito do nvel salarial dos militares,
acompanhadas por manifestaes promovidas por mulheres de militares. O reajuste
salarial foi encarado pelo ministro da Defesa como uma questo financeira e
poltica. Por esse motivo, Viegas proibiu os comandantes do Exrcito, da Marinha e
da Aeronutica de fazer comentrios ou reivindicaes pblicas e colocou-se como
nico negociador do assunto junto ao governo58.
55 GENONO apud MARQUES, A. A., 2004: 40. 56 MARQUES, A. A., 2004: 40. 57 VIEGAS, J. 2004a. 58 COTTA, E., 2004.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
O reaparelhamento do Exrcito, da Marinha e da Aeronutica esteve em discusso
e motivou o pronunciamento dos comandantes, a despeito das dificuldades
oramentrias enfrentada pelo ministrio. Entre 2003 e 2004, o oramento do
ministrio aumentou em 70% e os programas de reaparelhamento das Foras
voltaram a receber recursos59. Com o objetivo de reforar a atuao coordenada do
Exrcito, da Marinha e da Aeronutica, possibilitando uma elevao substancial da
integrao entre as Foras e dinamizando a eficincia operacional dos meios
militares brasileiros, foram realizadas as operaes conjuntas Timb I, Timb II,
Timb III e Jauru as duas ltimas aps a demisso de Viegas.
Em reforo segurana do territrio nacional, especialmente das regies de
fronteira, foi aprovada a chamada Lei do Abate, que autorizou a derrubada de
avies que adentrassem o espao areo brasileiro sem se identificar e responder a
ordens de identificao ou pouso. O texto do decreto que criou a lei foi redigido em
conjunto pelo Ministrio da Defesa, Ministrio da Justia, Ministrio das Relaes
Exteriores e pelo Gabinete de Segurana Institucional.
Crticas ao uso do Exrcito para o patrulhamento urbano, o reconhecimento da
necessidade de reformular o documento de Poltica de Defesa Nacional estabelecido
no governo Cardoso e questionamentos quanto ao posicionamento do Brasil frente
a questes de segurana internacional e desenvolvimento blico impulsionaram,
durante a gesto de Viegas, a realizao do Ciclo de Debates Atualizao do
pensamento brasileiro em matria da Defesa e Segurana, que reuniu acadmicos,
militares, diplomatas, jornalistas, polticos etc., na cidade de Itaipava.
A poltica externa de Lula teve importantes reflexos sobre as opes do Ministrio
da Defesa, alimentando a cooperao entre os pases do Mercosul e entre os pases
sul-americanos no campo da segurana e da defesa. Em diversos pronunciamentos,
o ministro comunicou a inteno de aprofundar as medidas de confiana mtua
entre as Foras Armadas de pases vizinhos, bem como a necessidade de
incrementar os exerccios militares conjuntos, visando uma maior articulao militar
na regio60. Entretanto, a promoo da confiana mtua no seio do Mercosul no
resultou na criao de um projeto slido de cooperao permanente em defesa,
limitando-se esta a ocasies isoladas. Viegas mostrou-se hesitante a respeito da
criao de um mecanismo de defesa no mbito do Mercosul em curto prazo,
defendendo a opo de priorizar os entendimentos comerciais no seio do bloco. O
desenvolvimento de estruturas mais rgidas de integrao poltico-militar seria a
59 VIEGAS, 2004a. 60 VIEGAS, J., 2004b.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
fase final do processo de cooperao, que por ora deveria limitar-se ao
estabelecimento de vnculos especficos61. Por outro lado, o governo impulsionou
a integrao das indstrias de armamentos militares na regio, destacando os
benefcios que o pas ganharia no que tange a acesso a mercados.
A principal medida adotada no campo da defesa foi a busca de um dilogo
interinstitucional mais denso com alguns pases, atravs do estabelecimento dos
Grupos de Trabalho Bilaterais em matria de defesa com a Argentina, a Bolvia, o
Chile, o Peru e o Uruguai. Ademais, o ministro da Defesa empenhou-se em
organizar reunies com seus homlogos sul-americanos. Tais reunies, que tiveram
incio em Braslia, em 2003, e voltaram a acontecer em duas outras ocasies,
tiveram por finalidade construir consensos mnimos entre os governos. Tanto
quanto no caso do Mercosul, a agenda do governo brasileiro no campo da
segurana relacionada Amrica do Sul foi tomada por os assuntos relacionados a
ameaas no-tradicionais, como o trfico de drogas, crimes ambientais e furtos de
automveis. De fato, membros da diplomacia e do governo brasileiro reconheceram
a importncia de se buscar um dilogo maior na Amrica do Sul em assuntos de
defesa e segurana internacional, sem que, contudo, se almejasse sua
institucionalizao. A proposta brasileira para a regio em que o pas est inserido
limitou-se a medidas de promoo de confiana mtua no campo da poltica militar
e das Foras Armadas, implantadas especialmente com a Argentina, com os demais
pases do Mercosul e da Amrica do Sul em geral.
O episdio que culminou com pedido de demisso do ministro Jos Viegas, por sua
vez, permitiu vislumbrar dificuldades na tentativa de submeter totalmente as
Foras Armadas ao controle civil. A instabilidade poltica finalizada por sua sada do
governo teve incio com a divulgao, no ltimo semestre de 2003, de fotos oficiais
que retratavam o jornalista Vladimir Herzog em condies humilhantes no interior
de uma cela mantida pelo Exrcito, durante o perodo ditatorial62. A divulgao das
fotos fomentou o descontentamento das tropas e do prprio comandante do
Exrcito, general Francisco Albuquerque, que emitiu uma nota exaltando a atuao
das Foras Armadas durante o perodo de ditadura (1964-1985)63. O presidente
Lula desaprovou a medida e exigiu uma retratao pblica, efetuada por meio da
emisso de uma nova nota. A retratao foi condenada publicamente por militares
61 VIEGAS, J., 2004b. O ministro Viegas reiterou este posicionamento aps o pronunciamento do ento ministro da Casa Civil Jos Dirceu a favor da integrao militar na Amrica do Sul. Viegas respondeu afirmando que os pases da Amrica do Sul deveriam estar aptos a prescindir de qualquer ajuda externa para sua Defesa. 62 O jornalista foi preso durante a ditadura militar e apresentado como suicida em 25 de outubro de 1975, sob fortssimas suspeitas de ter sido torturado e assassinado por militares. 63 ALBUQUERQUE, F. R., 2004.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
da reserva, que alegaram que a medida fragilizava a imagem da Fora. O embate
poltico entre os oficiais do Exrcito e o Ministrio da Defesa resultou no pedido de
demisso do ministro Viegas, que avaliou em sua carta de demisso no ter sido
respaldado de forma adequada pela Presidncia da Repblica, uma vez que esta
manteve o comandante em seu cargo e nenhum dos responsveis pela emisso da
nota foi punido.
Aps a sada de Viegas, a pasta passou a ser ocupada pelo vice-presidente Jos
Alencar, o qual declarou no possuir o perfil adequado para ocup-la. O vice-
presidente tambm afirmou que a gesto do ministrio seria efetuada em conjunto
com os comandantes militares e que no tinha qualquer pretenso de ser ministro
da Defesa64. Neste cenrio pouco propcio a negociaes, o governo brasileiro
aprovou o novo documento nacional de poltica de defesa, reconhecendo a
necessidade de reviso do anterior. Destacam-se no documento, publicado em
julho de 2005: (a) a incluso da observao de que a poltica de defesa nacional
encontra-se em consonncia com a poltica externa brasileira; (b) a definio de
defesa nacional como o conjunto de medidas e aes do Estado, com nfase na
expresso militar, para a defesa do territrio, da soberania e dos interesses
nacionais contra ameaas preponderantemente externas, potenciais ou manifestas 65; (c) o reconhecimento da necessidade de desenvolvimento da indstria blica em
decorrncia dos entraves existentes paz mundial; (d) o reconhecimento de que a
vertente preventiva da defesa reside na diplomacia como recurso primeiro de
resoluo de conflitos e na capacidade dissuasria do poder militar; e,
especialmente (e) a autorizao para a atuao das Foras Armadas na represso a
ameaas internas. tambm expressiva a supresso do item garantia do Estado
de Direito e das instituies democrticas, constante no documento da poltica de
defesa publicado em 1996, dentre os objetivos institudos pelo novo documento.
O contedo do documento mostrou-se mais adequado s prticas adotadas pelo
governo Lula tanto no que se refere poltica de defesa quanto poltica externa.
Os pases vizinhos foram apresentados pelo documento como parceiros e
amistosos, mas se reconheceram as adversidades presentes no meio internacional
e sua ameaa autonomia brasileira. Comparado poltica de defesa de 1996, o
documento de 2005 suaviza os conceitos tipicamente esguianos, assumindo o
carter multidimensional da segurana e reconhecendo, no entanto, que esta no
alcanada exclusivamente atravs de meios militares.
64 ALENCAR apud LAGE, J., 2005. 65 BRASIL, 2005.
22
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O vice-presidente Alencar pediu afastamento do ministrio, em maro de 2006,
para se candidatar s eleies de outubro e foi substitudo, em 31 de maro, por
Waldir Pires, ex-deputado e ex-governador da Bahia ligado ao PT. O ministro havia
integrado o primeiro escalo do governo Joo Goulart, deposto pela ditadura militar
em 31 de maro de 1964. No dia da posse de Pires, o comandante do Exrcito,
general Francisco Roberto de Albuquerque, publicou uma Ordem do Dia66
enaltecendo o golpe militar que derrubou o governo de Goulart, prenunciando
tenses que culminariam no afastamento de Pires no segundo governo Lula,
referentes gesto da aviao civil.
Entendeu-se, nesta administrao, que o dilogo diplomtico e a atuao militar
defensiva estavam intrinsecamente ligados, conquanto o primeiro fosse priorizado e
antecedesse o segundo. Apesar de o governo Lula atribuir maior valor defesa na
conduo de suas relaes exteriores do que o governo FHC, persistiu a percepo,
entre os formuladores da poltica externa, de que as negociaes diplomticas
seriam capazes de suprir quase completamente as demandas das relaes
exteriores brasileiras. Entretanto, a capacitao das Foras Armadas foi vista como
condio para a realizao das metas brasileiras de protagonismo ativo na esfera
global, ou seja, o fortalecimento militar foi encarado como uma necessidade, na
medida em que permitiria ao pas participar de forma mais decisiva da poltica
internacional.
Consideraes finais
A identificao dos atores domsticos proeminentes na formulao de poltica
externa e na poltica de defesa brasileira permite no apenas explicar parcialmente
pontos de convergncia ou de incoerncia entre ambas, como tambm d ensejo a
reflexes sobre o grau de influncia do Itamaraty e das Foras Armadas em sua
elaborao e implementao e sobre as dificuldades que dela emergem no que se
refere abertura destes temas ao debate pblico. No criar mecanismos para
contrapor a concentrao de decises nas mos de militares e diplomatas significa
aceitar sua apropriao por grupos de interesse privilegiados, que supostamente
teriam mais conhecimento acerca dos temas abordados neste artigo do que o
restante da sociedade. O recurso autoridade do conhecimento deixa de explicitar,
contudo, que as decises tomadas por tais atores so, sobretudo, polticas,
66 ALBUQUERQUE, F. R., 2006.
23
Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
calcadas em vises do contexto internacional e do projeto nacional impregnadas
por concepes pessoais, escamoteadas pelo discurso da neutralidade do saber.
Mais do que avaliar a eficincia dos caminhos percorridos para se atingir os
objetivos propostos pelos formuladores da poltica externa e da poltica de defesa,
este exerccio reflexivo tem o intuito de propor a abertura ao debate democrtico,
tanto do projeto de insero internacional do Brasil, quanto de seu projeto de
desenvolvimento, cujos efeitos se fazem sentir na sociedade como um todo.
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Observador On-line | v.2, n.12 | dez. 2007
Parlamento do Mercosul: forma de organizao e perspectivas participao social e s polticas pblicas
Elisa de Sousa Ribeiro
Pesquisadora do PIBIC/ CNPq Helena Martins
Graduanda em Cincia Poltica pela UnB Maurcio Santoro
Pesquisador do IBASE e Doutorando em Cincia Poltica no Iuperj
Introduo
A primeira dcada do sculo XXI marcada por mudanas no Mercosul, no sentido
de aprofundar o processo de integrao. No enfoque do regionalismo aberto que
havia vigorado nos anos 1990 destacava-se o aspecto da abertura comercial e da
vinculao s reformas econmicas ento em curso. As medidas contemporneas
ressaltam a realizao de obras de infra-estrutura (transportes, comunicaes e
energia) e o reforo dos laos de vizinhana geogrfica na Amrica do Sul1. neste
contexto que se fortalece a demanda por harmonizao de polticas pblicas entre
os pases do bloco. A criao do Parlamento do Mercosul parte essencial da novo
formato de integrao.
medida que se fortalecem os vnculos entre os pases do bloco, o impacto da
poltica internacional se torna mais intenso na vida cotidiana, sobretudo pelo
aspecto da economia. Os sindicatos do Cone Sul foram desde o incio ativos nos
parcos espaos de participao existentes no Mercosul, como o Foro Consultivo
Econmico e Social, mas agora outros grupos de presso cidad tambm se
mobilizam para influir na agenda regional, como organizaes de direitos humanos,
movimentos feministas e ambientalistas. A percepo de que muitos dos problemas
da regio s podem ser enfrentados por aes conjuntas dos Estados levou a
demandas crescentes por maior coordenao entre suas polticas pblicas.
Ao longo destes ltimos anos, o Poder Executivo dos pases do Mercosul abriu
diversos espaos de participao, como as Reunies Especializadas do bloco, que
cobrem diversos temas sociais e iniciativas lanadas pelos chefes de governo e
pelas chancelarias2. Contudo, tais medidas no foram suficientes para lidar com as
presses sociais. No obstante sua significante atuao para a construo de um
rgo de representao popular, os parcos poderes da Comisso Parlamentar
1 LIMA e COUTINHO, 2006. 2 SANTORO, 2007.
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Conjunta tambm se mostraram incapazes de administrar as demandas legislativas
concernentes incorporao interna das normas Mercosulinas.
O Parlamento do Mercosul foi criado em dezembro de 2006 para tratar da agenda
ampliada do processo de integrao e oferece perspectivas promissoras para a
discusso dos problemas do bloco. Este artigo busca discutir trs aspectos
principais do novo rgo: 1) sua histria e modo de organizao; 2) as ferramentas
que oferece participao cidad; 3) as possibilidades que apresenta para a
harmonizao de polticas pblicas entre os pases do bloco.
Apesar de suas fragilidades institucionais, o Parlamento do Mercosul surge como
interessante instrumento para a discusso de alternativas aos obstculos
enfrentados no processo de integrao regional da Amrica do Sul.
Histria da Criao do Parlamento do Mercosul
Em 1991 o Tratado de Assuno previu a criao da Comisso Parlamentar
Conjunta do Mercosul (CPC), para representar os parlamentos nacionais e facilitar a
implementao e o desenvolvimento do bloco. Ela foi constituda em setembro do
mesmo ano, no mbito da II Reunio Parlamentar do Mercosul quando se
manifestou pela primeira vez em um documento a deciso de criar futuramente um
Parlamento Regional.
Posteriormente, o Protocolo de Ouro Preto, instrumento que definiu a estrutura
institucional do Mercosul e lhe deu personalidade jurdica, conferiu CPC a funo
de acelerar a tramitao das normativas mercosulinas nos respectivos Poderes
Legislativos e o papel de harmonizar as legislaes nacionais. Formada por
parlamentares designados por seus respectivos Estados, a CPC se dividia em
Sees Nacionais, que atuavam dentro dos legislativos promovendo a anlise e
acompanhamento das normativas que necessitassem de aprovao. Desde sua
criao at a sua extino, a CPC teve grande importncia para viabilizar o dilogo
interparlamentar que gerou as bases polticas para a criao do Parlamento do
Mercosul.
Regulamento datado de 13 de dezembro de 1997 ressaltou o objetivo de se
fortalecer a atuao parlamentar no processo de integrao, visando futura
instalao de um Parlamento. Para tanto, esta norma lhe conferiu a atribuio de
desenvolver as aes necessrias para facilitar a criao do legislativo regional.
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Os estudos e trabalhos que visavam a estabelecer agenda para a institucionalizao
comearam em 1999, na XIV Reunio Plenria, com a Disposio n. 14/99. No ano
seguinte, por meio da Declarao de Santa F, reafirmou-se o compromisso dos
presentes com a democracia representativa e continuou o processo de criao de
um rgo de representao cidad.
Em outubro de 2003 foi apresentado o Acordo Interinstitucional entre o Conselho
do Mercado Comum e a Comisso Parlamentar Conjunta que destacava a
necessidade de se reforar a legitimidade democrtica do Mercosul por meio da
construo de um Parlamento Regional, que deveria representar a vontade dos
povos do bloco.
Em julho de 2004, esta declarou que a reviso da estrutura institucional do
Mercosul deveria ser promovida de forma a proporcionar maior segurana jurdica
ao bloco, contexto no qual o Parlamento assumiria papel central, com a criao de
direito de integrao mais slido, gerando procedimentos eficazes de internalizao
de normas mercosulinas aos ordenamentos nacionais e estimulando a conscincia
regional nos cidados.
Em dezembro de 2004, foi assinada a Deciso CMC n 49/04, denominada
Parlamento do Mercosul. Nesta oportunidade a CPC foi incumbida da tarefa de
apresentar projeto de Protocolo Constitutivo para o Parlamento, assumindo a
responsabilidade pelas aes necessrias para a instalao do novo rgo at a
data limite de 31 de dezembro de 2006.
A partir das reunies da Comisso Parlamentar Conjunta, surgiram dois projetos de
Protocolo, um apresentado pela seo argentina e outro pela brasileira. Da
composio analtica feita a partir de ambos, foi elaborada proposta que deu origem
Deciso CMC n 23/05, resultando na aprovao do Protocolo Constitutivo do
Parlamento do Mercosul.
Organizao e Modo de Funcionamento
rgo unicameral, cujos principais propsitos so a promoo e a defesa da
democracia, o respeito pluralidade e diversidade cultural ideolgica e poltica, a
promoo de desenvolvimento sustentvel com justia social e a participao da
sociedade civil no processo de integrao, o Parlamento rege-se pela transparncia
da informao e das decises, de forma a facilitar o envolvimento dos cidados.
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Sua criao foi importante para o aprimoramento institucional do Mercosul,
proporcionado espao de interao entre o bloco e a sociedade civil, permitindo que
os temas ligados integrao regional pudessem ser debatidos de forma aberta e
democrtica pelos diferentes grupos sociais.
Esta caixa de ressonncia dos anseios dos cidados mercosulinos tem um carter
eminentemente representativo dos povos do Cone Sul, uma vez que os
parlamentares sero eleitos pelo sufrgio universal, direto e secreto em eleies
que sero regidas pelas legislaes de cada Estado Partes. As regras para essa
escolha ainda no foram definidas, mas entraro em vigor em 2010. At l, os
mercoparlamentares sero indicados pelos Legislativos nacionais.
O Parlamento composto por Mesa Diretora, comisses temporrias, especiais e
permanentes, Secretaria Parlamentar, Secretaria Administrativa, Secretaria de
Relaes Institucionais e Comunicao Social e por Secretaria de Relaes
Internacionais e Integrao.
Atualmente conta com as seguintes comisses: a) Assuntos Jurdicos e
Institucionais; b) Assuntos Econmicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e
Monetrios; c) Assuntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento
Estratgico, d) Educao, Cultura, Cincia, Tecnologia e Esporte; e) Trabalho,
Polticas de Emprego, Segurana Social e Economia Social; f) Desenvolvimento
Regional Sustentvel, Ordenamento Territorial, Moradia, Sade, Meio Ambiente e
Turismo; g) Cidadania e Direitos Humanos; h) Infra-estrutura, Transportes,
Recursos Energticos, Agricultura, Pecuria e Pesca; e j) Oramento e Assuntos
Internos.
As sesses do Parlamento do Mercosul so, em regra, pblicas e tm carter
ordinrio ou extraordinrio. Aquelas ocorrem ao menos uma vez por ms, e as
sesses extraordinrias podero ser convocadas por requerimento de
parlamentares ou a pedido do Conselho Mercado Comum.
Suas principais competncias so emitir pareceres sobre projetos de norma,
apresentar anteprojetos que visem harmonizao das legislaes nacionais,
promover audincias pblicas, receber peties de particulares, elaborar relatrio
sobre a situao dos direitos humanos no bloco e realizar reunies com o Foro
Consultivo Econmico-Social para tratar de temas ligados ao desenvolvimento do
Mercosul.
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O Parlamento do Mercosul no tem poder legiferante, ou seja, no produz direito
positivo supranacional3, mas funciona como ponto de confluncia dos interesses
coletivos e individuais, ao possibilitar local para a realizao de debates e definio
de polticas setoriais, e auxiliar tambm no processo de internalizao de
normativas.
A respeito da emisso de pareceres sobre os projetos de norma, basta
comentarmos que esta competncia objetiva garantir tramitao destas normas de
forma mais clere nos Poderes Legislativos nacionais. Desta forma, o Parlamento,
em at 90 dias aps realizao de consulta feita pelo Conselho Mercado Comum,
elaborar parecer sobre todas as normas que necessitem de aprovao legislativa
nos Estados do bloco.
Se o projeto for aprovado em conformidade com seu parecer, os Poderes
Executivos nacionais tero um prazo de 45 dias para enviar a normativa ao
Legislativo nacional. No mbito do Congresso Nacional, obedecidas estas
disposies, a norma mercosulina tramitar nas duas casas do Poder Legislativo
sob procedimento preferencial, definido pela Resoluo n 1, de 24 de julho de
2007. Conforme esta norma, caber somente representao brasileira no
Parlamento do Mercosul e aos plenrios das casas legislativas apreci-la. Nesse
sentido a representao avocar para si a competncia de algumas comisses,
passando a opinar sobre mrito, juridicidade, constitucionalidade, adequao
financeira e oramentria da matria.
Ademais, cabe ao Parlasul elaborar estudos e anteprojetos de normas nacionais,
que visem a impulsionar a harmonizao das legislaes, desenvolver e aperfeioar
a cooperao com os Parlamentos nacionais, a fim de assegurar o bom
funcionamento do processo integracionista.
O Dficit Democrtico dos Processos de Integrao Regional
Para compreender melhor o dficit de participao da sociedade civil e a falta de
transparncia no processo de integrao regional sul-americano, trataremos,
sucintamente, das potencialidades do Parlamento do Mercosul para a soluo
desses problemas. Abordaremos o debate terico sobre dficit democrtico e
participao da sociedade civil em acordos regionais; em seguida examinaremos as
questes relativas ao Parlamento do Mercosul.
3 CASAL, 2005.
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As instituies e organizaes multilaterais, junto com os acordos internacionais de
tipos variados, passaram a exercer importante papel no contexto mundial com a
intensificao e maior abrangncia da globalizao. As decises tomadas no nvel
internacional impactam no plano local, modificando as relaes econmicas,
polticas e sociais. Dentro deste contexto, os processos de integrao tornaram-se
um dos principais fenmenos da nova lgica. No entanto, o monoplio das
informaes e tomadas de deciso pelo Poder Executivo dos pases e das prprias
organizaes internacionais geraram, e ainda geram, crticas relacionadas ao dficit
democrtico, isto , falta de democracia nos espaos de tomada de deciso. As
queixas abordam a insuficiente abertura participao da sociedade civil4 nas
organizaes internacionais como um todo, com obstculos como o difcil acesso a
informaes, concentrao de poder no Executivo, a escassa transparncia e
accountability, e a pouca participao do Legislativo nas deliberaes.
O principal argumento para a concentrao de poderes no Executivo o desejo por
parte dos governos de acelerar a tomada de decises, sob a justificativa de que a
internalizao das decises regionais no interior da estrutura institucional de cada
pas se d em processos lentos5. Neste sentido, podemos entender tambm a
pouca abertura participao da sociedade civil, do Legislativo e do Judicirio, sob
a alegao que o tornariam mais lento.
Existe, tambm, a problemtica da legitimao. Esferas pblicas democrticas no
interior dos Estados membros possibilitam uma integrao plural e profunda,
tornando-se, assim, solues para essa problemtica6. No entanto, apenas os
espaos nacionais no so suficientes para que o processo de integrao regional
seja de fato abrangente. importante a criao de uma esfera pblica democrtica
regional, adaptada s necessidades do processo de integrao.
A soluo da Unio Europia foi a criao de um parlamento e de vrios rgos
consultivos, com o objetivo de institucionalizar novos canais polticos para a
participao, com mais legitimidade ao processo de integrao ou seja, tentativa
de institucionalizar a esfera pblica democrtica regional. De acordo com Alemany
e Leandro, a criao de espaos para uma participao ativa da sociedade civil
absolutamente fundamental para que os processos de integrao sejam, alm de
legtimos, aptos para lidar com os temas e problemas comuns entre os pases
membros pois:
4 Muitos so os conceitos para o termo sociedade civil. O conceito aqui adotado o considera apenas a sociedade civil organizada, isto , ONGs, sindicatos, movimentos s