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INSTITUTO DE HUMANIDADES
A SOCIEDADE FEUDAL
Antonio Paim
Leonardo Prota
Ricardo Vlez Rodriguez
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SUMRIO
1. INSERIDA NA IDADE MDIA,
COM ESTA NO SE CONFUNDE
a) Sociedade feudal e Idade Mdia
b) Viso renovada da Idade Mdia
ANEXO
Cronologia da Idade Mdia
2. CARACTERSTICAS ESSENCIAIS DO FEUDALISMO
a) O que deu nascedouro
ao senhor feudal
b) Os feudos e o contrato de vassalagem
c) O Cdigo dos Cavaleiros
d) O papel do cristianismo
3. COMO SE ESTRUTURAVA
A SOCIEDADE FEUDAL
a) Os principais grupos sociais
b) Ducados e Principados
c) Os burgos (ou comunas)
d) Governo descentralizado
4. UMA CULTURA RELIGIOSA
a) Responsvel pela cultura, a Igreja
concebeu-a sua imagem
b)Igreja e a tentao do temporal
c) A Recuperao das Obras Clssicas
FILMES
EXERCCIOS
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1. INSERIDA NA IDADE MDIA,
COM ESTA NO SE CONFUNDE
a) Sociedade feudal e Idade Mdia
A cultura ocidental subdivide-se em dois ciclos civilizatrios, sendo
o primeiro a sociedade feudal e, o segundo, a sociedade industrial. Embora
os fundamentos de ambas sejam os mesmos --isto , a religio judaica-
crist e a moralidade social bsica, da decorrente--, os valores dessa
cultura so hierarquizados de modo bem diverso.
A sociedade feudal (o feudalismo) gestou-se no interior da Idade
Mdia mas a sociedade feudal abrange perodo histrico bem menor. Seu
nascedouro confunde-se com o da cultura ocidental.
Os elementos que constituem e integram a sociedade feudal --
basicamente a converso ao cristianismo dos invasores (chamados
brbaros) que destruram o Imprio Romano-- surgiram nos sculos iniciais da denominada Idade Mdia. Contudo, o feudalismo propriamente
dito do mesmo modo que a cultura ocidental emerge nos meados do sculo X. Tenha-se presente que o cristianismo no produziu apenas a
cultura ocidental mas igualmente a bizantina.
Esquematicamente, denomina-se Idade Mdia ao perodo histrico
compreendido entre 476 (data geralmente adotada como marco da
derrocada final do Imprio Romano) e a descoberta da Amrica em 1492,
abrangendo portanto 10 sculos. As datas mencionadas, como no poderia
deixar de ser, constituem simples pontos de referncia, imprescindveis a
qualquer estudo dessa natureza. Assim, muito antes de 476, na primeira
metade do sculo V, os imperadores do Ocidente j no dispunham de
grandes poderes. Levando em conta essa circunstncia, o conhecido
estudioso Caetano Mosca (1858/1941) considera que seria mais adequado
admitir que o antigo Imprio Romano chega ao fim em 395, data da morte
de Teodsio e em que se produz a ciso entre Imprio do Oriente e Imprio
do Ocidente. Desde ento, com efeito, ir se delineando com nitidez
crescente a diferena entre cultura ocidental e cultura bizantina.
Quanto ao trmino da Idade Mdia, o mais correto consiste em
compreend-lo como um ciclo dilatado. Os ingredientes formadores da
poca Moderna despontam certamente, na segunda metade do sculo XV,
em que se lanam as bases da navegao de longo curso, de que resultam as
descobertas e tambm ocorre o fenmeno cultural denominado de
Renascimento. Contudo, a Reforma protestante equivale a outro elemento
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decisivo bem como as lutas do sculo XVII que marcam a consolidao do
Estado nacional.
Os sculos iniciais do perodo medieval so muito conturbados. Os
estudiosos consideram que a sedimentao das hordas brbaras em
determinados territrios ocupa pelo menos os sculos VI, VII e parte do
sculo VIII. A rigor, essa sedimentao de base germnica (francos,
lombardos, visigodos, etc.) e se faz acompanhar de sua converso ao
cristianismo.
Como teremos oportunidade de examinar mais detidamente --j que
o novo ciclo de invases determinante no surgimento do feudalismo-- o
processo de sedimentao em causa no os livra de novas invases de
outros "brbaros". Nesta primeira fase, ocorrem invases dos sarracenos,
nome que era dado aos rabes antes de sua converso ao islamismo (1).
Passam a dominar a frica do Norte e a pennsula Ibrica, ameaam as
costas da Itlia e invadem a Frana. Contudo no chegam a tipificar o que
iria ser denominado diretamente de novo ciclo de invases brbaras. A incurso sarracena detida em territrio francs, por Charles Martes, na
Batalha de Poitiers, em 732. Esse fato tomado como importante marco na
histria do Ocidente, embora, como se ver a seguir, o continente no se
haja liberado em definitivo do saque sarraceno, que voltar a ganhar
intensidade.
A reintroduo da idia de Imprio considerada como um
expressivo indicador do nvel de sedimentao daqueles que levaram
derrocada do Imprio Romano. Esse feito atribudo a Carlos Magno (742-
814). Provinha de uma famlia que lograra certo nvel de unificao dos
clans que se haviam localizado no territrio que mais tarde corresponderia
Frana, isso , era neto do antes mencionado Charles Martes e filho de
Pepino, o Breve, a quem substituiu, dando continuidade chamada
Dinastia Merovingia. A instituio agora chamava-se Sacro Imprio, e no apenas Romano, mas Romano-germnico.
O reinado de Carlos Magno durou de 768 a 814 e nessa fase
conseguiu colocar sob seu domnio grande parte do territrio europeu. Sua
coroao como imperador deu-se no natal do ano 800 e quem o coroou foi
o Papa.
O Sacro Imprio de Carlos Magno desmorona no prprio sculo IX e
a Europa assiste a novas incurses de hngaros, normandos e rabes.
Considera-se que esta seja uma nova fase da barbrie, fome e peste. A
unidade religiosa parece abalada. Semelhante quadro prolonga-se at
aproximadamente meados do sculo X.
Em 962 reconstitui-se o Sacro Imprio, com Oto I. A nova onda de
invases brbaras detida, eliminadas as incurses dos bandos sarracenos,
os normandos se estabelecem de forma estvel no Norte da Frana, os
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hngaros, poloneses, bomios e escandinavos aderem ao cristianismo.
Recomposta a situao, inicia-se uma fase de prosperidade que desemboca
na chamada Alta Idade Mdia dos sculos XII e XIII, de grande
florescimento cultural.
A decadncia comea de fato com a decomposio do Papado, que a
notvel historiadora Brbara Tuchman (1912-1989) faz recair no perodo
1470-1530.
NOTA
(1) A religio islmica foi fundada por Maom (aprox. 570-632). Ao
falecer, Maom dominava a Arbia. Nos 100 anos seguintes, seus
sucessores conquistaram a metade da sia bizantina, toda a Prsia e o
Egito, a maior parte da frica Setentrional e marcham na direo da
Espanha, onde entram em 7I1.
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b) Viso renovada da Idade Mdia
Ao longo do sculo XIX o tpico era o ataque Idade Mdia, com o
propsito de exaltar a laicidade e os progressos do conhecimento na poca
Moderna. Com o passar do tempo, entretanto, a historiografia acabou
reagindo a to clamorosa falta de objetividade. Coroa a nova fase a obra
clssica de Marc Bloch (1886/1944), A sociedade feudal, aparecida nos
anos de 1939 e 1940.
Bloch estabeleceu que a sociedade feudal formou-se em decorrncia
no apenas da sedimentao das hordas brbaras que derrotaram o Imprio
Romano mas sobretudo do carter decisivo que se tornou a questo da
segurana, na Europa, em decorrncia da interrupo do ciclo que
desemboca na reconstituio do Imprio, agora denominado de Sacro
Imprio, em 800. Seguem-se invases sarracenas ao Sul; normandas ao
Norte e hngaras nas zonas centrais. No enfrentamento desta ltima srie
de invases, que duraram aproximadamente um sculo e meio, forma-se a
classe dos guerreiros, destinada a constituir a elite do novo ciclo histrico.
Este se inicia com a derrota dos hngaros, por Oto I, no incio da segunda
metade do sculo X. precisamente aqui que comea a cultura ocidental,
resultado da fuso do cristianismo com o feudalismo.
A partir das indicaes de Marc Bloch, elabora-se uma nova
periodizao da Idade Mdia, adiante resumida.
A ordenao dos diferentes perodos da Idade Mdia no
corresponde decerto a uma questo simples, embora, pelo que tem de mais
expressivo, a historiografia contempornea repudie as simplificaes do
passado, quando a Idade Mdia chegou a ser considerada como uma fase
negra, digna de ser esquecida. Em que pese o repdio, uma nova
periodizao continua uma questo em aberto.
Optamos por subdividi-la em quatro perodos, tomando por base as
indicaes de Marc Bloch, que adiante confrontaremos a outras propostas.
Esquematicamente seriam os seguintes:
I Sculo VI a meados do sculo IX, em que se poderiam apreender as caractersticas dominantes da nova fase histrica e que
resumiramos desta forma:
a) presena de uma religio universal;
b) separao entre Igreja e Estado, ao contrrio do que ocorria tanto
em Bizncio como no Isl, embora instaure uma tenso nunca
satisfatoriamente resolvida;
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c) prevalncia da componente civilizatria no cristianismo, pela
circunstncia de que se tratava de converter povos de tradies culturais
inteiramente diversas, por isto chamados de brbaros;
d) preservao da idia de Imprio.
II Segunda metade do sculo IX segunda metade do sculo X, ciclo em que a civilizao europia de base crist esteve ameaada de
desaparecimento, o que, presumivelmente, no ter ocorrido graas n
consolidao dos feudos em que se apoiaria o florescimento subseqente da
sociedade medieval.
III Perodo de apogeu, que pode ser limitado apenas chamada Alta Idade Mdia dos sculos XII e XIII, como de forma mais ampla para
abranger desde o sculo XI ao sculo XV; e, finalmente,
IV Perodo de decadncia, iniciado com a crise do Papado, que comea em fins do sculo XV.
A busca de um entendimento mais adequado da Idade Mdia
fenmeno relativamente recente. Notadamente a partir do sculo XIX, a
praxe consistia em reduzi-la, em bloco, Idade das Trevas. Dentre as
personalidades que se levantaram contra tal simplificao destaca-se
Rgine Pernoud (1902-1998), que ao tema dedicou diversos estudos. O
primeiro deles Lumire du Moyen Age, apareceu em 1951, tendo sido
reeditado recentemente (Trad. portuguesa: Luz sobre a Idade Mdia,
Lisboa, Europa-Amrica, 1985). Em 1978 divulgou o texto polmico
intitulado Pour en Finir le Moyen Age (Paris, Editions du Seuil), cuja
traduo brasileira apareceu com o ttulo de Idade Mdia: o que No nos
Ensinaram (Rio de Janeiro, Agir, 1979). autora ainda de diversos outros
estudos sobre o perodo (Os Templrios; As Origens da Burguesia
Francesa, etc.).
Rgine Pernoud inclina-se por uma subdiviso que destaque trs
perodos, sendo o primeiro aquele em que desponta e se consolida o
feudalismo, adequadamente compreendido como um servio; a Alta Idade
Mdia, situada nos sculos XII e XIII, iniciando-se a decadncia no
seguinte. Essa autora atribui um grande papel no processo de decadncia
reintroduo do direito romano, que teria dado rigidez ao Papado,
propiciando o surgimento da Inquisio e outros fenmenos negativos. A
seu ver, os estudos sobre a Idade Mdia extrapolam essas caractersticas
finais para os ciclos anteriores, o que, com razo, entende ser ilegtimo. Por
isto ocupa-se detidamente de fixar o carter costumeiro do direito em todo
o largo perodo anterior ao sculo XIV.
interessante referir aqui o entendimento de Will Durant na conhecida Histria da Civilizao (Vol IV. A idade da f (1950), ed.
brasileira: Record, 1986, p. 519) embora a sua obra no esteja inserida no
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debate dos ltimos decnios. Ainda assim, est longe de conformar-se com
as simplificaes de seu tempo.
Durant chama de Idade das Trevas ao perodo que vai de 566, ano
em que termina o reinado de Justiniano, e 1095, incio das Cruzadas, que
afirma ser o ato culminante do drama medieval, e talvez o acontecimento mais pitoresco na histria da Europa e do Oriente Prximo. Agora,
finalmente, depois de sculos de disputa, as duas grandes religies,
cristianismo e maometanismo, recorriam ao arbtrio final do homem a suprema corte da guerra. Todo desenvolvimento medieval, toda a expanso
do comrcio e da cristandade, todo o fervor da crena religiosa, todo o
poder do feudalismo e a magia da cavalaria chegaram a um climax em uma
guerra de 200 anos pela alma do homem e lucros comerciais. Assim, inclina-se tambm por uma tripartio, porquanto, no Eplogo, data do
sculo XIV o aparecimento de "homens que iam comear a destruir o
majestoso edifcio da f". Esclarea-se que no lhe parece deva a Idade
Mdia ser considerada como mero interldio entre uma civilizao e outra",
mas como um perodo que produziu "to grandes homens e mulheres e
ergueu das runas do barbarismo e Papado, os Estados europeus e a riqueza
arduamente adquirida de nossa herana medieval"
Nossa inteno ao propor uma diviso em quatro perodos tem
apenas o propsito de sugerir que, ao mantermos indiviso o primeiro
grande ciclo, talvez deixemos de atentar para o que tpico e especfico do
feudalismo.
A N E X O
CRONOLOGIA DA IDADE MDIA
PRIMEIRO CICLO Aprox. de 476 a aprox. 850 Reconstituio do Imprio em bases germnicas:
455 Assassinato do imperador do Ocidente, Valentiano III (reinou de 425 a 455). Ascenso efmera de Petrnio ao trono. Interveno
de Geiserico, rei dos vndalos, que efetiva o saque de Roma e leva para
Cartago, como cativa, a imperatriz.
456-476 O trono ocupado por generais germnicos, tornados instrumentos do visigodo Ricimer. Novas invases da Itlia.
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476 Odorico assume o poder e domina grande parte da Itlia, estendendo essa dominao at a Siclia. Morto no ano 493, na luta contra a
invaso ostrogoda, chefiada por Teodorico, que o substitui.. Abandona a
denominao latina de imperador e adota o ttulo brbaro de rex, razo pela
qual se considera como o primeiro reino brbaro e marco do trmino do
Imprio Romano Antigo.
493-526 Perodo do governo de Teodorico, na Itlia
527-565 Justiniano I torna-se o imperador do Oriente e reconquista a Grcia, a Itlia e o Norte da frica.
630 Maom ocupa Meca.
635-700 Expanso muulmana no Oriente Mdio e no Norte da frica.
711 Os muulmanos entram na Espanha.
732 Os muulmanos so repelidos em Tours (Batalha de Poitiers).
768-814 reconstituio do Imprio Romano que passar a denominar-se Sacro Imprio Germano-romano , por Carlos Magno, cuja coroao pelo papa d-se em 800.
787 Os escandinavos comeam suas incurses contra a Inglaterra.
795 Incio das incurses escandinavas contra a Irlanda.
843 Diviso do imprio de Carlos Magno e incio de sua decomposio.
SEGUNDO CICLO Aprox. de 850 a aprox. 1100 Novas invases restauram a barbaria na Europa. Consolidao do feudalismo.
841-924 Incurses escandinavas na Frana.
872 Os escandinavos colonizam a Islndia.
886 Os escandinavos sitiam Paris.
890 Incio da atuao dos bandos sarracenos que se prolonga por quase um sculo.
906 Incio das invases hngaras.
936-973 Oto I, rei da Alemanha. Em 962 proclamado imperador do Sacro Imprio.
989 A Rssia converte-se ao cristianismo.
997-1038 Estevo, posteriormente tornado santo da Igreja, reina na Hungria.
1017-1042 Dominao escandinava sobre a Inglaterra.
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1054 Grande cisma do Oriente, separando em definitivo a Igreja Romana da Oriental (ortodoxa).
1066 Incio da dinastia normanda na Inglaterra.
TERCEIRO CICLO Aprox. sculos XII a XV. Apogeu da civilizao medieval.
1095 Proclamao da primeira Cruzada.
1099 Os cruzados tomam Jerusalm, perdendo-a sucessivamente, o que leva organizao de novas Cruzadas.
1100 Aparecimento do nmero arbico na Europa.
1128 Reconhecimento da Ordem dos Templrios pelo Papa.
1163-1235 Construo da Notre Dame de Paris.
1175-1234 Vida de Miguel Scot, cujas tradues latinas de textos gregos reintroduziram a discusso do pensamento antigo entre os
cristos.
1123-1280 Vida de Alberto Magno, que inicia a interpretao de Aristteles segundo cnones cristos.
1215 Coalizo entre normandos e saxes, na Inglaterra, consagrada na Magna Carta.
1237 Incio da invaso mongol Rssia.
1241 Os mongis derrotam os alemes em Leinitz, tomam Cracvia e assolam a Hungria
1273-1291 Rodolfo de Habsburgo, imperador do Sacro Imprio
1291 Fim das Cruzadas.
1309 Instalao do Papado em Avinho.
1310-1312 Supresso dos Templrios na Frana.
1315 A Sua derrota o exrcito dos Habsburgo em Mongatten e funda a Confederao Sua.
1317 Incio da Guerra dos 100 Anos entre a Inglaterra e a Frana.
1400-1450 Introduo e aperfeioamento das armas de fogo, inveno do papel e da imprensa e incio do emprego da bssola na
navegao.
1431 Processo e execuo de Joana d'Arc.
1453 Fim da Guerra dos 100 Anos. Tomada de Constantinopla pelos turcos.
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QUARTO CICLO Iniciado na segunda metade do sculo XV. Perodo da decadncia.
1452-1519 Vida de Leonardo da Vinci, um dos grandes artistas do Renascimento, juntamente com Miguel ngelo, Rafael e Ticiano.
1492-1493 Primeira viagem de Colombo.
1470-1530 Decadncia do Papado (papas Sisto IV, 1471-1484; Inocncio VIII, 1484-1492; Alexandre VI, 1492-1503; Jlio II, 1503-1513;
Leo X, 1513-1521; e Clemente VII, 1523-1534).
1460-1536 Vida de Erasmo de Roterd, criador do humanismo renascentista.
1469-1527 Vida de Maquiavel, que reorienta a discusso da poltica, no sentido depois denominado de moderno.
1483-1546 Vida de Martinho Lutero, iniciador da Reforma protestante.
1509 Henrique VIII sobe ao trono da Inglaterra.
1520 Excomunho de Lutero pelo Papa Leo X
2. CARACTERSTICAS ESSENCIAIS DO FEUDALISMO
a) O que deu nascedouro
ao senhor feudal
A noo habitual de feudalismo consiste em compreend-lo como
uma forma de propriedade distinta tanto das economias organizadas com
base no trabalho escravo como da produo capitalista. Essa viso de
todo insubsistente mesmo para o ciclo em que a Idade Mdia est formada,
isto , em que as cidades abrigam os homens bons (assim eram
denominados aqueles que se dedicavam basicamente ao comrcio) e as
corporaes de ofcios enquanto os feudos assemelham-se a autarquias, o
grande poder da Igreja est nos mosteiros e os reis presidem a territrios de
configurao variada. Mesmo quando a Europa assume tal feio que
resulta do processo civilizatrio do cristianismo mas tambm da
consolidao dos feudos, os bares feudais no so simples proprietrios
de terra. Antes de mais nada, a transformao dessa posse num instituto
hereditrio corresponde a fenmeno tardio. Caracterizam-se sobretudo
como guerreiros.
Para compreender a natureza real dessa que viria a ser a classe
dirigente, cumpre ter presente a situao de insegurana a que foram
lanados os novos ocupantes da Europa, quando j se haviam convertido ao
cristianismo e at se permitiram a volta da idia de Imprio, que implicava
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numa espcie de unificao, ainda que destinada ao fim especfico da
defesa externa. Tendo os sarracenos consumado a ocupao do Norte da
frica e de parcelas limitadas da Pennsula Ibrica, a questo da segurana
contra novos invasores brbaros dizia respeito rea que corresponde, grosso modo, ao territrio da Europa Ocidental e Central, com excluso da
Espanha e Portugal.
Agora as vtimas no so os antigos ocupantes dessa rea aos tempos
do Imprio Romano mas os descendentes dos germanos que se tomaram
sedentrios, converteram-se ao cristianismo e buscam incorporar costumes
e instituies romanas. Esse perodo de sedimentao abrange
aproximadamente dos sculos VI ao primeiro quartel do sculo VIII, o que
de certa forma restaura a paz e a ordem na mencionada parcela da Europa.
Essa conquista ver-se- seriamente ameaada por bandos de salteadores, de
origem diversa.
Marc Bloch (A Sociedade Feudal, trad. portuguesa, Lisboa, Edies
70, 1982) reconstitui a histria de alguns daqueles bandos e vamos referi-la
para bem situar a situao que de fato se criou, ameaando de
sobrevivncia a reconstituda civilizao.
Assim, perto da atual Saint-Tropez, na Riviera, os sarracenos
construram um forte por volta do ano 890, de onde atacavam povoados e
mosteiros cada vez mais distanciados, apropriando-se do que tivesse valor e
fazendo prisioneiros para vend-los como escravos nos territrios sob
ocupao rabe. Preservaram-se relatos impressionantes da selvageria
dessas incurses, como o ataque aos monges de Saint-Gall, quando saram
do seu mosteiro para realizar uma pacfica procisso em torno daquela
construo. Apanhados de surpresa, morreram vtimas de flechadas,
enquanto o abade cuidava de organizar a resistncia com o apoio dos
vizinhos e dos monges que sobreviveram. A referida fortaleza somente foi
destruda ao final do sculo X.
Bandos dessa espcie pululavam ao longo dos Alpes. Os
deslocamentos pelos seus vales eram cercados por toda sorte de perigos.
Ainda no ano 962, no vale do Drause, ao regressar da Itlia o abade de
Cluny e sua comitiva foram presos e levados para um dos esconderijos que
os sarracenos mantinham nas montanhas. Leve-se em conta que a
instituio religiosa de Cluny gozava ento de grande prestgio tanto na
Itlia como no territrio da antiga Glia, o que permitiu fosse realizada uma
coleta de fundos para pagar o resgate exigido pelos salteadores e assim
salvar a vida do abade e as de seus clrigos.
Enquanto a parte meridional da Europa Ocidental era assim fustigada
pelos sarracenos, sobre as zonas centrais desabavam os salteadores
hngaros. A partir de 906 atuam sistematicamente. no vasto territrio que
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abrange desde o Elba at o Reno. Mais tarde alcanam a Lorena e a Glia
do Norte, de onde se aventuram at a Borgonha e o sul do Loire.
Sob Oto I, na segunda metade do sculo X, as hordas hngaras
seriam por fim empurradas de volta para o territrio que ocupavam no
Centro da Europa, assumindo o confronto, a partir de ento, a feio de
guerra de fronteira. O comando militar germnico, organizado para esse
fim e que se denominou de Ostarrichi que deu origem, posteriormente, ao
territrio da ustria. Com a sucessiva converso ao cristianismo e a adoo
das instituies romanas, os hngaros renunciam atividade pela qual
infernizaram a vida em grande parte da Europa durante mais de um sculo.
Marc Bloch apresenta este relato vivo e brilhante da atuao dos
salteadores hngaros, que parece oportuno transcrever:
"Nem sempre evitaram os combates contra foras organizadas;
travaram alguns, com resultados variveis. No entanto, geralmente,
preferiam avanar furtivamente atravs das terras: verdadeiros selvagens,
que os chefes conduziam s batalhas a chicotadas, mas soldados terrveis e
hbeis, quando era preciso combater, nos ataques de flanco, encaniados na
perseguio e engenhosos para sarem de situaes difceis. Se era preciso
atravessar um rio ou um canal veneziano, apressadamente fabricavam
barcas de peles ou de madeira. Para descansarem, erguiam as suas tendas
de habitantes da estepe, ou entrincheiravam-se dentro de alguma abadia
abandonada pelos monges, para, a partir dali, baterem as redondezas.
Astuciosos como primitivos, informados conforme as necessidades pelos
embaixadores que enviavam frente, menos para negociar do que para
espiar, depressa tinham apreendido os meandros, assaz pesados, da poltica
ocidental. Mantinham-se ao corrente dos interregnos particularmente
favorveis s suas incurses e sabiam aproveitar-se das desavenas entre os
prncipes cristos para se porm ao servio de um ou de outro dos rivais"
(ed. cit. pp. 26-27).
Mencione-se finalmente os bandos organizados pelos escandinavos e que nos legaram tantas histrias lendrias sobre as proezas dos vikings.
Vistas distncia, so de fato proezas notveis daqueles punhados de
homens em seus pequenos barcos realizando incurses to distanciadas de
seus territrios. A admirao a que se creditaram, entretanto, no obscurece
o fato de que disseminaram o terror na parcela da Europa a que no haviam
chegado sarracenos e hngaros. Assim, um bando de vikings dominou
Santiago de Compostela, na Espanha, de 966 a 970. Nas margens do mar
do Norte no havia qualquer segurana. Foram derrotados na Borgonha,
por vrias vezes, junto s muralhas de Chartres, em 911, mas acabaram
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sendo admitidos nos territrios onde se constituiu a Normandia. A prpria
Paris foi vtima de seus ataques.
Nesse quadro, a segurana tornou-se uma questo capital. Justamente
dessa circunstncia que nascem os feudos. Os senhores feudais
consolidaram-se em determinados territrios ao assegurar proteo aos que
dela careciam. Em troca desse servio teceram-se as complexas relaes
que caracterizam o sistema.
O guerreiro feudal sedentrio, em torno do qual se aglutinam
sucessivos grupos sociais, uma figura que presumivelmente ser
encontrada na tradio precedente. Os documentos atravs dos quais se
preservaram informaes relativas ao imprio de Carlos Magno indicam
que este recomendava s populaes que escolhessem um chefe militar
para proteg-los. No passado europeu aparece igualmente a doao de
terras, a guerreiros destacados, pelo prncipe vitorioso. Contudo, como
muito apropriadamente afirma Marc Bloch, em que pese possua a
instituio feudal ingredientes colhidos entre os povos germnicos e no
prprio passado europeu da poca romana, mais importante que averiguar
tais origens estabelecer as caractersticas de que se revestiu na fase de
consolidao.
Entre o senhor feudal e seus sditos estabelecem-se relaes
definidas pela repetio continuada ao invs de resultarem de imposies
exteriores ao contexto. O campons trabalha a terra e fornece comida a seu
senhor. Mas a este compete assegurar que o plantio e a colheita possam ser
realizados a salvo dos bandos salteadores. De igual modo, as regras para a
formao da Ordem dos Cavaleiros so fixadas pela experincia e a
tradio, o mesmo ocorrendo em relao s corporaes de ofcios e s
comunas. Regine Pernoud reconstitui todo o processo por meio do qual se
estabeleceu o direito consuetudinrio medieval.
Foi certamente a consolidao dos feudos que permitiu, a partir de
Oto I, coroado imperador do Sacro Imprio em 962, a derrota final dos
invasores brbaros e o fato de que a Europa se haja encontrado em
condies de enfrentar o Isl, organizando as Cruzadas, desde fins do
sculo XI. A instaurao do novo clima facultou o florescimento cultural e
o progresso material da sociedade nos sculos XII e XIII.
O sistema feudal introduziu na cultura ocidental um novo
componente representado pelo contrato de vassalagem. Assim como o
senhor feudal tem sua base de sustentao na forma adequada pela qual
presta servio ao conjunto dos grupos que lhe esto subordinados, tambm
ele estabelece um contrato com o prncipe, ao apoi-lo na guerra,
recebendo em troca o reconhecimento de seus direitos. O contrato de
vassalagem com o prncipe, tenha-se presente, no impedia as guerras e
disputas entre senhores dentro de um mesmo territrio, no intervalo dos
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conflitos externos, de maior dimenso. Por isto mesmo o contrato de
vassalagem representa um instituto essencial e distintivo da cultura
ocidental.
Max Weber comparou detidamente o feudalismo europeu s diversas
formas de organizao social que lhe eram assemelhadas, na China, no
Japo e em outras partes do mundo, para concluir que preserva aquela
singularidade fundamental. Ao seu ver, o contrato de vassalagem deu
origem ao contratualismo e aos sistemas constitucionais, que, por sua vez,
eqivalem tambm a criaes originais do Ocidente
b)Os feudos e o contrato de vassalagem
A Europa em que vigorou o sistema feudal e serviu de base para a
formao das naes e do Estado Moderno abrangia territrio inferior ao
que mais tarde seria constitutivo da Europa Ocidental. Grande parte da
Pennsula Ibrica achava-se ocupada pelos rabes. Ento, a Hungria e a
Prssia no se integravam ao Sacro Imprio que, embora no abrigasse
todos os reinos ento estruturados, mantinham fortes laos com aquela
instituio (1). As reas localizadas a Sudeste eram parte do Imprio
Bizantino. (2)
Com a ressalva de que a reconstituio de tais limites constitui tema
controverso, o Ocidente feudal compreendia as ilhas britnicas, o territrio
da Frana atual, a Alemanha Ocidental, a ustria e os reinos do Norte da
Itlia. Na parte da Espanha no submetida aos rabes e na Prssia, ainda
que mais tarde passassem a integrar-se cultura ocidental, a organizao
social no assumiu feio idntica que iria caracterizar a parcela
anteriormente referida.
A base de todo o sistema era representada pelos comandos militares
originrios. O processo segundo o qual tornaram-se a classe nobre, reunida
sob o cdigo de honra expresso com fidelidade pela chamada Cavalaria (a
Ordem dos Cavaleiros), demandou perodo muito dilatado. Marc Bloch
destaca que ainda nos sculos X e XI no havia definio precisa das
classes merecedoras de serem designadas como nobres. O domnio da
classe guerreira num determinado territrio foi usado para assegurar-se o
recrutamento de soldados e tambm o fornecimento de gneros. Bloch
mostra que a designao de feudo, durante muito tempo, referia-se ao
compromisso da prestao de determinado servio. Mais tarde que se
circunscreveu relao entre o usufruturio do direito de explorar a terra e
o comandante militar, agora reconhecido como nobre, geralmente baro.
O processo de aglutinao dos feudos ali onde o sistema se
estabeleceu em definitivo, obedecia basicamente ao princpio racial de
origem, isto , as tribos brbaras que se espalharam pelo territrio europeu.
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Escreve Marc Bloch: "A Normandia devia o seu nascimento aos "piratas"
escandinavos. Na Inglaterra, as antigas divises da ilha, traadas pelo
estabelecimento de diferentes povos germnicos, serviram
aproximadamente de moldura aos grandes governos que os reis, a partir do
sculo X, ganharam o hbito de constituir..... Mas em parte alguma esta
caracterstica seria mais acentuada do que nos principados alemes" (3).
Os principados alemes, ao contrrio do que ocorreu com os ducados
formados em outras reas, preservaram grande autonomia, contando
inclusive com a prerrogativa de votar para a escolha do Imperador do Sacro
Imprio e integrar a Dieta, principal rgo daquela instituio, de certa
forma equivalente s Cortes.
O processo de aglutinao dos feudos estruturou-se como prestao
de vassalagem a um determinado Prncipe ou Duque. A grande
singularidade deste movimento consiste em que se baseia num contrato
que, se assegura ou legaliza o domnio sobre uma parcela do territrio (na
altura denominado de feudo), guarda enorme autonomia. Sua fidelidade
absoluta ao Prncipe (ou Duque) limita-se ao tempo das guerras contra os
inimigos externos. No intervalo pode at mesmo entrar em conflito com
outros vassalos que prestam obedincia ao mesmo Prncipe (ou Duque).
NOTAS
(1) Houve uma poca, sob Carlos V, no sculo XVI, que o empenho
do Sacro Imprio direcionava-se para abrigar todos os reinos cristos da
Europa Continental, projeto que nunca chegou a consumar-se, embora
praticamente todos participassem da organizao das Cruzadas e, mais
tarde, na resistncia ao Isl (ento representado pelo Imprio Otomano).
(2) Constituiu-se a partir do chamado Grande Cisma do Oriente, que
separou em definitivo a Igreja Romana da Oriental (Bizncio) e ser
sucessivamente assediado e vencido pelo Imprio Otomano, um dos braos
do Isl. Este, em 1393, ocupa todo o territrio compreendido pela Romnia
e Bulgria, j se achando de posse da sia Menor. Constantinopla desde
ento imprensada entre dois tentculos, caindo finalmente em 1453. Os
otomanos chegaram Srvia, ocupando a Bsnia (1463) e a Herzogovina
(1463-65). No sculo XVII alcanam as portas de Viena.
(3 ) Marc Bloch A sociedade feudal, traduo portuguesa, Lisboa, Edies 70, 2 edio, p. 412.
c) O Cdigo dos Cavaleiros
Na condio de guerreiros, os senhores feudais acabaram adotando
certas regras de comportamento que mereceram sistematizao e vieram a
ser conhecidas na poca Moderna. Chamaram-se diretamente de "Cdigo
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da cavalaria". Sendo cavaleiros os comandantes guerreiros, o mais apropriado teria sido denomin-lo de Cdigo dos Cavaleiros, mas tal no se deu.
O recebimento do ttulo obedecia a determinado ritual. Durante
muito tempo, os cavaleiros tinham a atribuio de fornecer o ttulo a outros.
Na medida em que se constitui como classe nobre, esse direito passa ao
monarca. Marc Bloch observa que o estabelecimento desse monoplio,
pelos monarcas, no se deu com facilidade. A guerra era uma atividade
freqente sendo preciso recompor o quadro de oficiais, diante das
inevitveis baixas, providncia que no podia ficar na dependncia de
burocracias. Mas acabaria impondo-se, bem mais tarde, na parte final do
sculo XIII, segundo Bloch. Paralelamente, a linhagem estabelece-se pela
descendncia.
A principal regra consistia na proibio de exercer outras atividades
que no a investidura militar. Preservou-se o mote popular segundo o qual
"lavrar, cavar, transportar madeira em cima de um burro" seriam atividades
que arrastavam, automaticamente, privao dos privilgios da cavalaria.
A proibio estendia-se s prticas comerciais. Os privilgios residiam
sobretudo na intocabilidade por parte de outros segmentos sociais que no
as instituies dos prprios cavaleiros.
Antes de receber a espada, o cavaleiro devia prestar um juramento
que especificava as suas obrigaes. O juramento compreendia a fidelidade
a estes princpios: liberalidade, busca de glria, desprezo do repouso, do
sofrimento e da morte. Em muitas reas a Igreja conseguiu neles incluir a
obrigao de ir missa "todos os dias", ou, pelo menos, "com freqncia";
jejuar s sextas-feiras. Incumbe-lhe proteger a viva, o rfo e o pobre.
Indica expressamente que defender a Santa Igreja, notadamente contra os pagos.
H uma gravao no prtico da clebre Igreja de Chartres (Frana)
com um texto a ser recitado pelo cavaleiro, que diz: Senhor muito santo pai todo poderoso Tu que permitiste, na terra, o uso do gldio para reprimir
a maldade dos inquos e defender a justia, que, para proteo do povo
quiseste instituir a ordem da cavalaria, inclinando para o bem o seu
corao, faz com que o teu servidor aqui presente nunca utilize este gldio
ou outro para lesar injustamente seja quem for mas que se sirva dele
sempre para defender o que Justo e Honesto".
Assim a Igreja, na prtica, legitimava a existncia da Ordem.
Tratando-se de classe guerreira, nesse cdigo aparecem prescries
quanto aos prprios combates, em especial o tratamento a ser dispensado
aos prisioneiros.
Como a sociedade feudal que se consolidou na Europa era
rigorosamente hierarquizada e as funes dos principais agrupamentos
delimitados com preciso, os senhores feudais no se sentiam obrigados a
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tornarem-se cultos, j que o cultivo do saber era exclusividade do clero.
Mais tarde, quando a Sociedade Feudal amadureceu plenamente,
desapareceria essa limitao, encontrando-se, notadamente entre os
monarcas, pessoas dotadas de grande cultura.
No que se refere ao exerccio do poder, contudo, o que mais se
destaca a presena de mltiplos plos e da mais ampla descentralizao.
Erodir esses traos seria o desafio a que se props o Estado Moderno.
d) O papel do cristianismo
Rgine Pernoud, conhecida estudiosa da sociedade feudal francesa,
enfatiza dois aspectos que, a nosso ver, mereceriam ser destacados,
porquanto acentuam a singularidade da poca feudal, justamente o que
cumpre enfatizar.
O primeiro deles diz respeito relao entre o Monarca e os
Prncipes ou Duques, do ponto de vista material. Ainda que considere
basicamente a Frana, tais indicaes aplicam-se s outras reas onde o
responsvel pela segurana acabou sedimentando-se e estabelecendo
variados vnculos com os outros grupos sociais e tambm agrupando-se
para formar os ncleos iniciais do que seriam mais tarde as naes
europias. Os monarcas, que congregavam em torno de si Principados ou
Ducados, dependiam das contribuies destes ltimos para sobreviver,
alm de que tambm lhes incumbia preparar e manter as tropas. Afirma a
esse propsito: "Durante a maior parte da Idade Mdia o Rei da Frana,
com o seu domnio exguo, dispe de recursos inferiores aos dos grandes
vassalos". (1)
O outro aspecto refere-se ao fato de que a cristandade tornou-se o
grande fator de unidade. Formada de povos diversos que tinham cada um
costumes, quadros e ordem social diferentes, quando no francamente
opostos - afirma -, todos com um sentimento muito vivo de sua superioridade de vencedores", a regio tinha tudo para nada conhecer alm
do caos e da decomposio. A seu ver, a primeira Cruzada serviu para fazer
sobressair o que os unia, desde que os "prncipes dispunham-se a sacrificar
seus bens e seus interesses, esquecer suas querelas, para juntamente tomar a
Cruz."
De fato nunca demais destacar o papel desempenhado pela Igreja e
pelo papado na ordem europia. No apenas Roma, como destaca a
renomada estudiosa. Lembra que, na Frana, "tornaram-se com efeito
fatores de unidade a diocese, a parquia que, freqentemente, confundiam-
se com o domnio. Foram, durante o perodo de decomposio da Alta
Idade Mdia, as clulas vivas a partir das quais se reconstituiu a nao."
(2)
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NOTAS
(1)Lumire du Moyen Age, Bernard Grasset, 1944, p. 7
(2) Obra citada, p. 86.
3. COMO SE ESTRUTURAVA
A SOCIEDADE FEUDAL
a) Os principais grupos sociais
Na medida em que se consolida a sociedade feudal, posteriormente
ao segundo ciclo de invases brbaras, estruturam-se determinados grupos
sociais. A singularidade distintiva dessa estruturao que se formam a
partir de regras de comportamento autnomos e diferenciados. Os dois
principais desses grupos (os senhores feudais e os clrigos) chegam ao
ponto de dispor de Justia prpria, isto , eventuais delitos, assim
considerados a partir de determinados princpios, geralmente exclusivos,
sero julgados por seus prprios membros.
Embora as disputas surgidas entre os feudos (ou grupo desses)
fossem geralmente resolvidas com base em conflitos armados, pode-se
dizer que havia relativos perodos de paz. As guerras, assim chamadas, algo posterior. A Guerra de Cem Anos, por exemplo, iria desenrolar-se em
grande parte dos sculos XIV e XV, num perodo que antecede diretamente
a fase das intermitentes guerras religiosas ou decorrentes da formao do
Estado Moderno.
A estruturao, propriamente dita, dos grupos sociais que iriam
singularizar a sociedade feudal, corresponde a processo dilatado, que
abrange a parte final do sculo X e os que de imediato se seguiram.
Na medida em que se consolida o seu poder sobre determinado
territrio, o senhor feudal constri um castelo. Progressivamente, em torno
deste, formam-se comunidades que, embora no dispusessem de privilgios
equiparveis, tambm se organizam de forma autrquica. So basicamente
os comerciantes (os homens bons) e os artesos. Estes iro constituir uma espcie de casta, em cujo ingresso o pretendente era considerado
aprendiz. Como a condio de oficial tornara-se privilgio, a admisso de novo membro acabou exigindo determinados procedimentos. Adotaram
a denominao de corporao de ofcio. De igual modo, aqueles incumbidos do exerccio da atividade
produtiva rural tambm iro diferenciar-se grandemente.
No meio rural, os servos correspondem ao contingente fundamental.
Embora servido se distinguisse de escravido, a liberdade dos servos era
muito limitada. Se a prestao tivesse sido fixada na forma monetria,
cabia-lhe entregar ao senhor a parte que lhe cabia. O mais comum, contudo,
21
era que se tratasse de participao em espcie. Isto , uma parte do produto
colhido. De um modo geral, parcela dos servos, alm do trabalho no campo
em cujo resultado participava o senhor feudal, devia adicionalmente prestar
diversos outros servios.
Na palavra de Marc Bloch, a rotina podia traduzir-se deste modo:
Em dias fixos vemo-lo levar ao oficial do senhor algumas moedazitas, ou, na maior parte das vezes, produtos colhidos nos seus campos, frangos de
sua capoeira, favos de cera tirados das suas colmias ou dos enxames da
floresta mais prxima. Noutros momentos, trabalha nos campos ou nos
prados do domnio. Ou ainda o vemos transportar, por conta do senhor,
pipas de vinho ou sacos de trigo para residncias mais distantes. s custas
do suor dos seus braos que so reparados os fossos do castelo. Se o senhor
tem visitas, o campons cede a sua prpria cama para fornecer os leitos
necessrios para os hspedes. Quando chegam as grandes caadas, ele
quem sustenta a matilha de ces. Se finalmente rebenta a guerra ele ainda
que, sob o estandarte defraudado pelo chefe da aldeia, se faz soldado de
infantaria ou o criado do exrcito. (pgs. 295/296) Sobrevivem outras formas de relacionamento com o guerreiro
tornado senhor da propriedade rural. Dependendo do tipo de cultivo a ser
praticado, o campons realiza o trabalho como se fora um simples
assalariado, mediante diferentes formas de sustento das famlias.
Praticamente em todas as propriedades h os chamados terrenos alodiais, assim denominados aquelas parcelas isentas de direitos senhoriais.
Como se v, nos feudos h uma grande variedade de grupos sociais.
A par disto, essas unidades produtivas tm que ser relativamente auto-
suficientes em matria da produo de diversos utenslios ou bens de
consumo. Essa circunstncia explica que acabem se formando, em torno de
alguns castelos, ncleos de incio reduzidos, chamados burgos, que em alguns casos iriam dar origem a vilas e cidades.
Ao mesmo tempo, a precariedade das estradas dificultava o
intercmbio entre pessoas e mercadorias. Mesmo assim, adverte Marc
Bloch, ms e pouco seguras, estas estradas ou pistas nem por isto eram desertas
E, mais adiante:.
O Baro, com sua comitiva, circulava constantemente de uma para outra de suas terras. No era apenas com a inteno de melhor as vigiar; era
preciso tambm consumir no local os vveres cujo transporte para um
centro comum teria sido no s incmodo como dispendioso. Sem ter
correspondentes sobre os quais pudesse alijar a tarefa de compra ou vender
e, quase certo, alm disto, de nunca encontrar reunido num mesmo local
uma clientela suficiente para lhe assegurar lucro, todo mercador era um
22
verdadeiro ambulante, um ps empoeirados que perseguia a fortuna por montes e vales.
Bloch situa entre 1050 e 1250, isto , logo na fase que se seguiu ao
esmagamento e/ou absoro do segundo ciclo de invases brbaras, o
movimento de povoamento que, a seu ver, transformou a face da parcela
considerada da Europa Ocidental. justamente no perodo considerado que
o Mediterrneo , como diz, sulcado por barcos cada vez mais numerosos. E tambm que se consolida o intercmbio com o Oriente. Agora, de modo crescente, a Europa no apenas absorve e torna-se cada
vez mais dependente das especiarias mas ainda que se estruturam as
exportaes de produtos manufaturados, em especial tecidos.
b) Ducados e Principados
Quando a situao se estabiliza na parte considerada da Europa, a
por volta do sculo XII, a grande realidade so os Ducados e os
Principados. A sobrevivncia do Sacro Imprio deve-se sobretudo
ameaa externa, representada pelo Isl. Embora dividido em califados
autnomos, seus seguidores ocupavam grande parte da Pennsula Ibrica, o
Norte da frica e Jerusalm. Esta cidade sagrada seria tomada em 1099
pela Primeira Cruzada. Mas o domnio muulmano restaurado, o que leva
organizao de novas Cruzadas, que duram at fins do sculo XIII
(1291). Levando-se em conta a feio religiosa assumida pela cultura
ocidental nesta primeira fase, pode-se avaliar a fora de que se revestia uma
estrutura como o Sacro Imprio, graas sua misso de defender a
cristandade.
H um outro aspecto a destacar entre os fatores que levaram
progressivamente que a nova forma de poder assumisse feio monrquica.
Trata-se do carter sagrado de que, tradicionalmente, revestia-se a
investidura. ainda Marc Bloch quem o esclarece: "Em torno da realeza,
em geral, ou - das diversas realezas particulares, elaborou-se todo um ciclo
de lendas e supersties. Ele no atingiu, na verdade, o seu pleno
desenvolvimento seno a partir do momento em que, de fato, se fortaleceu
a maioria dos poderes monrquicos: cerca dos sculos XII e XIII. Mas as
suas origens remontam primeira idade feudal. ... Dos reis de Frana,
desde Felipe I, pelo menos, provavelmente depois de Roberto, o Piedoso;
dos reis da Inglaterra, depois de Henrique I, dizia-se que curavam doenas
pelo contato das suas mos. Quando, em 1081, o imperador Henrique IV apesar de excomungado atravessou a Toscnia, os camponeses que acorreram ao seu encontro, esforavam-se por tocar o seu vesturio,
persuadidos de, assim, garantirem colheitas felizes".(ed. cit., pg. 356) A
esse tema Marc Bloch dedicou especialmente um de seus livros: Os reis
taumaturgos: estudo sobre o carter sobrenatural atribudo ao poder real,
particularmente na Frana e Inglaterra ( 1924).
23
Vigorando o direito consuetudinrio, a prtica da justia consolidou-
se em diversas instncias, muitas vezes em conflito. Contudo, alguns
princpios eram geralmente aceitos. Em primeiro lugar, o postulado de que
os grupos sociais mais destacados eram julgados pelos seus pares. Assim, o
Prncipe ou o Duque quase sempre dispunha de um tribunal destinado a
julgar as causas afetas aos senhores feudais, seus vassalos.
Os senhores feudais, por sua vez, julgavam, as causas relacionadas
aos seus subordinados.
A possibilidade de recurso variava segundo os costumes locais.
Era admitido que os conflitos gerados por certos tipos de ofensas
podiam ser resolvidos sem interferncia dos juzes, notadamente o duelo.
Era comum tambm que se recorresse ao envenenamento de desafetos ou
mesmo a formas violentas, inclusive o assassinato.
Com base nesses mesmos princpios, os bispos dispunham de uma
justia prpria. De fato, a Igreja acumulou muito poder. Era dona de terras
para prover o sustento de suas diversas instituies (igrejas; mosteiros;
colgios e tambm servios de assistncia social, abrangendo socorros
mdicos). Os camponeses que trabalhavam nessas terras achavam-se
submetidos aos seus tribunais. Estes no se limitavam a atuar no mbito da
Igreja, interferindo diretamente na vida social, a pretexto de zelar pelos
bons costumes. A prerrogativa de religio oficial tambm os autorizava a
perseguir aqueles que por essa ou aquela razo descumpriam preceitos
religiosos. Roma tambm tinha o direito de interferir nessa matria onde
quer que fosse. Os tribunais da Inquisio instauraram ambiente de terror
em diversas reas e em diferentes perodos. Com a estabilidade e o
florescimento da sociedade, surgiram os denominados burgos, alguns dos
quais acabaram por concentrar as atividades comerciais e bancrias,
tornando-se um outro plo de poder, dispondo de autonomia relativamente
grande.
c) Os burgos (ou comunas)
A melhor caracterizao de que se dispe, desse aspecto da
organizao social medieval, devida a Gaetano Mosca (1858/1941), na
obra Histria das Doutrinas Polticas (1898). As teses centrais so
resumidas adiante, com base na traduo francesa. (Histoire des doctrines
politiques. Paris, Payot, 1966.)
O surgimento das comunas um fenmeno histrico muito
importante que se iniciou no Norte da Itlia antes mesmo do sculo XII e
depois espalhou-se pelo Centro daquele pas escreve. E continua: O mesmo fato ocorreu mais tarde na Alemanha, em Flandres, e de
forma menos acentuada na Frana, na Inglaterra e na Pennsula Ibrica.
Na origem das comunas encontram-se as ligas de homens livres dos
laos feudais e que haviam jurado defender-se mutuamente e obedecer os
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chefes eleitos que, conforme o pas, tomavam o nome de cnsules,
vereadores, etc. Freqentemente, a comuna nascia da federao de diversas
corporaes de artes e ofcios e, s vezes, conseguiam, ao tornarem-se
poderosas, obter a adeso da pequena nobreza dos arredores.
Na Frana, na Inglaterra e na Pennsula Ibrica, as comunas no
alcanaram jamais importncia, a ponto de dificultar as iniciativas tomadas
pelos monarcas com o fito de desenvolver o poder central, em detrimento
do poder local. Ao contrrio, apoiavam freqentemente os esforos dos reis
para dobrar a nobreza guerreira. Mas em Flandres, na Alemanha, e
sobretudo na Itlia, as comunas obtiveram uma autonomia to grande em
relao ao Imperador que sua dependncia reduziu-se ao pagamento de um
pequeno tributo e prestao de algumas homenagens puramente formais.
O regime poltico das comunas apresentava algumas semelhanas com o
das antigas cidades-estado da Grcia e da Itlia. Da mesma forma que na
Grcia antiga o rgo soberano do governo era a assemblia, nas comunas,
o poder supremo pertencia teoricamente ao conselho. Do ponto de vista
legal, todos os chefes de famlia tinham direito a participar do conselho.
Mas, na prtica, a influncia dos cidados mais importantes e sobretudo a
dos chefes das corporaes de artesos prevalecia.
Outra analogia entre a comuna medieval e a cidade grega foi a
dificuldade encontrada por ambas em se expandir a ponto de poder
constituir um Estado de alguma importncia. Pois quando uma comuna de
maior porte subjugava outras menores, seus habitantes no passavam a ser
cidados, mas sim sditos da comuna principal, assim como os habitantes
dos territrios das comunas, ou seja, do campo ao redor delas.
No centro e no norte da Itlia, exceto em Veneza e na Toscnia,
durante o fim do sculo XIII e ao longo do sculo XIV, quase todas as
comunas se transformaram em senhorias, apresentando esta instituio
analogias com a tirania que nem sempre foi malfica s cidades gregas.
Geralmente, o senhor era um chefe de partido e pertencia a uma famlia
influente da prpria comuna. Este assumia uma espcie de ditadura a qual
tentava legitimar, seja atravs de sufrgio mais ou menos coagido, seja
obtendo um documento que o tornasse vigrio do imperador. Mas a
verdadeira sustentao do poder consistia no apoio que lhe podia dar seu
partido e na ajuda dos exrcitos de mercenrios. As senhorias tiveram
maior xito que as comunas, no que se refere a aumentar os seus domnios.
Algumas delas, como por exemplo a de Visconti de Milo, atingiram as
dimenses de um Estado moderno de porte mdio. Mas no se verificou
jamais uma verdadeira fuso da cidade dominante com as subordinadas,
pois estas no renunciaram jamais s suas pretenses de independncia.
Deve-se acrescentar que nenhuma das famlias que alcanaram a senhoria
permaneceu no poder o tempo suficiente para fazer esquecer que o havia
alcanado atravs de meios violentos. Os senhores deviam temer sempre a
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rivalidade de outras famlias poderosas, assim como a traio de seus
prprios partidrios ou dos mercenrios a seu servio.
Durante o sculo XIV, nos locais onde as comunas italianas no se
transformaram em senhorias, adotaram quase sempre uma forma
nitidamente oligrquica, isto , o domnio de famlias. Foi o que sucedeu
em Veneza com o fechamento do conselho e, em Florena conclui. Os burgos (ou comunas) acabaram concentrado muita riqueza, do
mesmo modo que a Igreja. Aos poucos firmou-se a praxe dos monarcas
convocarem estas classes para obter recursos financeiros de que careciam,
em geral exigidos por conflitos blicos ou para saldar dvidas contradas
com os banqueiros. Na medida em que se insere nos costumes, tais
reunies denominam-se Cortes, onde a representao se dava por grupos
sociais, chamados de "estados" (a nobreza, o clero e os burgos,
denominados de "terceiro estado"). Embora haja sido efetivada sua
aproximao com o Parlamento moderno, a hiptese improcedente.
d) Governo descentralizado
Em matria de governo, a sociedade feudal caracteriza-se pela
descentralizao do poder.
Quando amadurece plenamente a fase feudal propriamente dita --
digamos, nos sculo XII/XIII-- no territrio compreendido pela Alemanha,
excluda a Prssia, havia cerca de duzentos principados. Equivaliam
praticamente s dimenses das antigas cidades-Estado gregas.
A Itlia achava-se subdividida em diversos pequenos Estados.
O famoso Reino dos Francos ocupava uma parcela reduzida da antiga Glia ou seja, do equivalente, de modo aproximado, ao futuro
territrio desse pas, e, alm disto, encontrava-se numa disputa acirrada
com os prncipes normandos, formalmente seus subordinados, que
detinham o poder na Inglaterra. Esta disputa que daria origem Guerra
dos Cem Anos
Na Inglaterra, por sua vez, , os bares notabilizam-se por haver
estabelecido, na Magna Carta (1215), regras de sua convivncia com o
governo central, constitudo basicamente para coordenar a defesa externa.
Em sntese, ao longo de todo o territrio daquilo a que equivaleria
Europa Ocidental, com excluso da Pennsula Ibrica, os bares feudais, na
base da pirmide, mantinham contrato escrito de vassalagem, com um
deles, para efeito de enfrentamento de eventuais inimigos externos. O
monarca ou duque, de que se tratasse, encontrava-se em grande
dependncia dos bares que aceitavam a sua liderana, para tarefas
especficas. Para travar a guerra, por exemplo, dependiam de homens e
meios financeiros que somente os bares poderiam proporcionar-lhe.
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O Sacro Imprio Romano Germnico no tinha maior ingerncia na
conduo dos negcios afetos aos bares feudais, bem como no governo
dos duques ou monarcas aos quais estivessem vinculados os primeiros. O
poder do Papa dizia respeito apenas investidura.
Diante desse quadro, para estruturar-se, o Estado Moderno teve que
empreender notvel obra centralizadora.
4. UMA CULTURA RELIGIOSA
a) Responsvel pela cultura, a Igreja
concebeu-a sua imagem
Durante sculos, os mosteiros e as catedrais tornaram-se os nicos
lugares onde havia ambiente para o cultivo das artes, o aprendizado da
leitura, a preservao da herana passada e o registo dos acontecimentos
contemporneos. Os costumes brbaros no eram propcios a esse tipo de
atividade. Na medida em que o cristianismo toma-se universal, ocorre,
simultaneamente, a irradiao da cultura. A partir do sculo XII, essa
misso passa a ser exercida tambm pelas universidades.
Como no podia deixar de ser, a Igreja estava preocupada sobretudo
com a formao de seus prelados. Somente no sculo XI aparecem escolas
organizadas junto s catedrais freqentadas no apenas pelos clrigos como
ainda pelos filhos das principais famlias. Algumas dessas escolas
alcanam grande nomeada. O IV Conclio de Latro (1215) recomendou a
criao de uma cadeira de gramtica em todas as categorias do mundo
cristo e ordenou a todos os bispos que mantivessem tambm cadeiras de
filosofia e direito cannico. No mesmo sculo XIII, organizou-se o ensino
elementar nas parquias, dedicado, principalmente, educao religiosa.
Em 825, na Itlia, criou-se a primeira universidade europia, a
Universidade de Pvia, embora no passasse de fato de uma escola
dedicada ao estudo do direito. Paulatinamente, contudo, formam-se tais
institutos em muitas cidades. As universidades ento eram constitudas de
faculdades de teologia, direito, medicina e artes, cabendo a esta preparar os
alunos que se dirigiam s demais. Ao mesmo tempo, tornou-se uma
corporao gozando de diversos privilgios. No sculo XIII, so centros
culturais consolidados as Universidades de Paris, Orleans, Toulouse,
Montpelier, Oxford, Cambridge, Pdua, Bolonha e Npoles. Nos sculos
XIV e XV disseminaram-se pelo resto da Europa. As universidades
estavam entregues s ordens religiosas.
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A cultura elaborada e difundida era, eminentemente, religiosa e
achava-se rigorosamente hierarquizada, tendo por pice a teologia, Essa
cultura foi denominada de escolstica.
Nos primeiros sculos da Idade Mdia, o professor de artes liberais
era chamado de scholasticus e, em seguida, o docente de filosofia ou
teologia. Escolstica significa, literalmente, a filosofia da escola,
exclusivamente religiosa.
As formas de ensino eram apenas duas: a lectio, que correspondia ao
comentrio de um texto, e a disputatio, que consistia na discusso de
determinada questo. Com o tempo, ordenaram-se os argumentos pr e
contra as principais questes, de sorte que a transmisso do conhecimento,
consistia basicamente de comentrios.
Estes eram rigorosamente prefixados. A famosa Ratio Studiorum dos
jesutas estabelece explicitamente que todas as teses devem ser levadas ao
responsvel antes de serem submetidas aos alunos, proibindo-se fosse
tomado "livro nem escrito algum extraordinrio para explicar nem
introduza nenhum novo costume de ensinar ou disputar". Ainda mais:
"Mesmo naquelas coisas em que no h nenhum risco para a f e para a
piedade, ningum introduza novas questes, nem opinio alguma que no
esteja em algum autor idneo."
Todo o saber est estruturado de forma a levar compreenso da
verdade revelada. A esse propsito, afirma o conhecido filsofo italiano
Nicola Abbagnano: "A Escolstica o exerccio da atividade racional (ou,
na prtica, o uso de determinada filosofia, a neoplatnica ou a aristotlica)
com vistas a ascender verdade religiosa, a demonstr-la ou esclarec-la
nos limites em que isso possvel e de organizar para ela um instrumental
defensivo contra a incredulidade e as heresias (...). Na sua prpria funo,
ela no se fia s nas foras da razo, mas socorre-se da tradio religiosa ou
filosfica, invocao chamada de auctoritates. Auctoritas a deciso de
um conclio, um dito bblico, a sententia de um padre da Igreja ou, ainda,
de um grande filsofo pago, rabe ou judeu. O recurso autoridade a
manifestao tpica do carter coletivo e supra-individual da pesquisa
escolstica, na qual cada pensador quer sentir-se continuamente apoiado
pela responsabilidade coletiva da tradio. (1)
Tudo tinha finalmente que se harmonizar teologia, agregando-se
sucessivamente a tal pirmide no s as humanidades, mas, igualmente, a
fsica qualitativa de Aristteles, a teoria geocntrica e a prpria geografia
de Ptolomeu.
Assim, se a Igreja desempenhou um grande papel civilizatrio e de
preservao da cultura, ao ampliar desmedidamente a abrangncia dos
dogmas, negando qualquer validade experincia, acabou fixando-se na
28
linha de confronto ao tipo de saber que se iria formar a partir dos
descobrimentos.
NOTA
(1) Dicionrio de Filosofia, trad. Brasileira, so Paulo, Mestre Jou,
1970.
b) Igreja e a Tentao do Temporal
O processo de estruturao da Igreja como uma instituio
hierarquizada naturalmente posterior ao trmino da perseguio a que os
cristos se viram submetidos sob o Imprio Romano, isto , depois que o
Imperador Constantino, que reinou de 312 a 337, adere ao seu culto. Para
que se verifique a aludida institucionalizao, era necessrio no s erigir
os templos - a maneira espetacular de faz-lo ser obra de Justiniano,
imperador de 527 a 565, consoante se referir adiante-mas, sobretudo,
promover a formao de pastores, sistematizar os ritos e dar forma acabada
doutrina. Considera-se que dessa tarefa se tenham desincumbido
basicamente S. Jernimo (c. 340-420), que disciplinou o estudo dos textos
bblicos e traduziu a Vulgata; S. Agostinho (354-430), que fixou o estilo da
meditao filosfica, calcado no modelo grego mas voltado para os temas
da f; S. Ambrsio (c. 340-397), pregador e pastor de almas; e, S. Gregrio
(c. 540-650), que deu forma liturgia e ordenou as normas relativas
disciplina dos clrigos.
Atribui-se a Justiniano a iniciativa de materializar o esplendor da
Igreja pela construo de grandes, monumentais templos. A Baslica de
Santa Sofia, em Bizncio, cuja construo demandou cerca de seis anos e
exigiu o concurso de 10 mil trabalhadores e dispndios equivalentes a 160
mil quilos de ouro, constitui marco destacado dessa dimenso da
religiosidade. Justiniano construiu mais de 20 igrejas no Oriente, e durante
a reconquista da Itlia, concluiu a Baslica de So Vital, em Ravena, para
onde havia sido transferida a sede do Imprio do Ocidente. A construo de
templos serviu tambm para desenvolver a atuao cultural da Igreja,
vinculando-a ao desenvolvimento da arquitetura e das artes.
O cristianismo floresceu desinteressando-se completamente das
coisas temporais, notadamente do poder poltico. Quando os imperadores
romanos aderiram nova religio, criou-se desde logo uma certa tenso em
vista de que, segundo a tradio, existia religio de Estado e o imperador
era ao mesmo tempo o pontfice, isto , o chefe da Igreja. De sorte que no
foi possvel escapar ao controle do Estado, o que teve lugar sob
Constantino e seus sucessores imediatos.
29
A Igreja procurou entretanto preservar a sua independncia em
relao ao imprio. sintomtico dessa postura o fato de que Santo
Ambrsio, sendo bispo de Milo, excomungou ao Imperador Teodsio pelo
massacre de Tessalnica, no qual morreram sete mil pessoas. Teodsio era
um catlico devoto e aceitou cumprir penitncia a fim de ser perdoado.
Com o enfraquecimento do Imprio do Ocidente, posterior
esfacelamento e virtual transferncia para o Oriente, notadamente depois
que Justiniano incorporou a Itlia ao Imprio Bizantino, os bispos passaram
a desfrutar de maior autonomia. Por esse tempo suas preocupaes eram,
sobretudo, de ordem religiosa, devido aos grandes esforos que deles se
exigia em prol da organizao da Igreja.
A disputa por uma posio privilegiada no conjunto dos bispos iria
sucessivamente introduzir uma nova dinmica. O reconhecimento da
liderana do bispo de Roma foi estabelecido num prazo muito dilatado.
Basta dizer que s Gregrio VII, em 1073, se sentiu com suficiente
autoridade para estabelecer que o ttulo de papa estava reservado ao Bispo
de Roma, tendo proibido a sua utilizao por qualquer outro dignatrio da
Igreja.
Nos primeiros tempos da histria crist, todos os padres
denominavam-se papa. Na Igreja grega, paulatinamente, o nome acabou
sendo reservado aos titulares das ss metropolitanas. No Ocidente,
entretanto, era usado indiscriminadamente por todos os bispos, at ser
reivindicado pelo de Roma.
Os papas adotaram o ttulo de Sumo Pontfice a partir do incio do
Renascimento, no trono de Pio II (1458-1464). At o predecessor de
Justiniano, o Imperador Justino, morto em 527, a designao era usada
pelos imperadores.
Com a consolidao da ascendncia do Bispo de Roma, emergem os
interesses de carter temporal, que acabam ocasionando a prpria crise da
instituio, no chamado perodo de decadncia da Idade Mdia.
sintomtico do novo estado de coisas a barganha estabelecida entre
Estevo II, Bispo de Roma, e Pepino o Breve. Em troca da sagrao (751)
como rei do chamado Imprio Merovngio (aproximadamente equivalente
antiga Glia Romana), ao reconquistar a parte da Itlia em que ento se
sediava o bispado (Ravena), Pepino o Breve entregou diretamente a
Estevo II o correspondente territrio, quando de fato deveria t-lo
devolvido Igreja do Oriente. Essa doao que deu origem aos Estados
da Igreja, que fizeram do papa, alm de lder espiritual de uma comunidade
universal, um prncipe italiano com interesses temporais muito
determinados.
Justamente a tentao do temporal iria originar a crise chamada de
decadncia do Papado, instaurada no perodo compreendido dos anos de
30
1470 a 1530. Como entretanto esse fato entronca com o Renascimento,
cumpre ter presente que este ltimo seria uma decorrncia da recuperao
das obras clssicas --que possibilitou o conhecimento de outras vertentes
do pensamento grego, alm da aristotlica, em que se baseava a
Escolstica--, cumpre indicar a forma como se deu essa redescoberta.
c) A Recuperao das Obras Clssicas
Com a desordem que se estabeleceu no territrio europeu, durante
sculos, em seguida ao fim do Imprio Romano, sua substituio pela
dominao germnica e o perodo negro das incurses sarracenas, hngaras
e escandinavas, a cultura foi mortalmente atingida. No mundo bizantino
preservou-se o direito romano, enquanto a herana clssica grega era
esquecida no Ocidente, salvo na Siclia, e conservada em Alexandria,
Cairo, Tnis e outros centros agora sob dominao rabe. O processo de
recuperao lento e disperso.
No sculo XI, na Espanha, foram traduzidos ao latim os livros
relacionados medicina clssica, abrangendo os Aforismos, de Hipcrates,
e os Comentrios, de Galeno. No sculo XII, em Sevilha, elaboram-se as
verses latinas de eruditos judeus e rabes. O grupo dedicado a essa tarefa
que familiarizou o Ocidente com os nmeros indo-arbicos. Nesse
mesmo sculo, por volta de 1165, Geraldo de Cremona chega a Toledo,
traduzindo ao latim, sozinho, 71 textos gregos de Aristteles, Euclides,
Arquimedes, Galeno e outros.
O denominado Reino Normando das duas Sicilias tornou-se tambm
uma importante fonte de preservao das obras clssicas. Para ali vieram
eruditos escoceses, que, de igual modo, iriam verter para o latim obras de
autores gregos. As tradues de Miguel Scot, no incio do sculo XIII, so
os textos que chegaram ao conhecimento de Alberto Magno (1206-1280) e
Roger Bacon (1214-1294), pensadores que reabriram entre os cristos o
debate do pensamento grego.
Da Siclia essa atividade passa diretamente s cidades italianas. Em
Palermo, ainda no sculo XII, traduz-se a tica e o Almagesto de
Ptolomeu, em Catunia, A Vida dos Filsofos de Digenes Larcio e os
primeiros dilogos de Plato. Antes do fim do sculo XIII, quase todas as
obras de Aristteles achavam-se ao alcance dos estudiosos ocidentais.
"Foi mero acidente" escreve Will durante "a introduo de muitas palavras rabes nas lnguas europias, devido impossibilidade de os
tradutores poderem encontrar termos equivalentes para o latim. Mais
importante, ainda, foi o fato de que a lgebra, o zero e o sistema decimal
entraram no Ocidente cristo por meio de tais verses; que a teoria e a
prtica da medicina progrediram muito com a traduo que se fez dos
31
mestres gregos, romanos, rabes e judeus; e que os trabalhos gregos e
rabes sobre astronomia deram expanso teologia e uma nova concepo
de divindade, preparando a grande mudana que haveria de seguir-se
teoria de Coprnico. (1)
Conforme foi referido, o saber da Antigidade viu-se envolto na
denominada escolstica, isto , num tipo de interpretao que tinha por
objetivo faz-lo coincidir com os ensinamentos do cristianismo,
considerados verdade absoluta. Somente a partir do Renascimento comea
a ser empreendido esforo no sentido de recuperar tal pensamento em
sintonia com o contexto em que se produziu.
NOTA
(1) Obra citada, p. 815.
FILMES
A compreenso da feio assumida pela sociedade feudal pode ser
enormemente enriquecida pela exibio dos filmes que se segue,
eventualmente seguida de debates entre os participantes do curso.
EM NOME DE DEUS
Produo inglesa-iugoslava, direo de Clive Donner. Consiste na
histria de Abelardo e Helosa, na verso dada a essa histria pela novela
de Marion Meade. O papel de Abelardo desempenhado por Deres de Lint.
Filmado na Iugoslvia. Tempo de exibio: 115 minutos.
Pedro Abelardo (1079-1421 estudou e ensinou em Paris ao tempo em
que a cidade ainda no contava com a sua universidade, cujo ncleo inicial
(faculdades de teologia, direito e medicina, com a escola de artes, como
preparatrio, sendo a faculdade de filosofia posterior) do sculo seguinte
(1215). A esse tempo, tambm,, o chamado mtodo escolstico ainda no
se achava plenamente configurado, atribuindo-se justamente a Abelardo o
lanamento de suas bases, ao introduzir o que depois se chamou de
disputationes. O prprio Abelardo denomina essa forma expositiva de
dialtica (originariamente se entendia como a arte do dilogo e da
discusso, como se v no papel desempenhado geralmente por Scrates nos
dilogos de Plato, tendo Aristteles lhe dado uma definio mais rigorosa:
32
raciocnio que parte de opinies provveis sendo este sentido em que o toma Abelardo para distingui-la da analtica, que consiste na demonstrao partindo de premissas verdadeiras).
Sua obra terica discute uma questo que apaixonou os espritos
naquele tempo: a de saber a natureza do que chama de entes de razo e suas
relaes com os seres reais. Na histria da filosofia o tema aparece como a
questo dos universais, do realismo e do nominalismo.
Abelardo legou-nos um texto que talvez explique a sua nomeada, a
que chamou de A Histria das Minhas Calamidades (carta autobiogrfica),
que figura na Coleo Os Pensadores, numa primorosa traduo de Ruy
Afonso da Costa Nunes. Constitui talvez uma das mais importantes
reflexes sobre a inveja. Na Carta Abelardo parte da premissa geral de que
os homens, em suas dificuldades, no devem sentir-se como o maior dos
sofredores do mundo, bastando para isto confront-las s desgraas que se
abateram sobre o autor. Acha que decorreram dos seus extraordinrios dons
como professor, levando-o a alcanar um sucesso que incomodava a seus
desafetos. A inveja aparece como aquele sentimento meramente destrutivo
cujo desenlace em nada beneficia o invejoso. As desgraas de Abelardo
no se transformam em sucesso para os professores que no resistem ao
confronto.
Mas a principal calamidade que veio a sofrer no decorreu de seu
magistrio mas do amor que nele despertou Helosa. Embora no
pertencesse ao clero, entendia-se que o professor deveria manter a
castidade. Ao violar essa regra, e, ao mesmo tempo, sem disposio para
renunciar condio de professor, casa-se em segredo e mantm essa
situao dbia at ser descoberto. Por vingana e no por inveja , o tio da moa, o cnego Fulberto, manda castr-la.
Abelardo descreve deste modo os seus sentimentos diante do fato:
"Depois que amanheceu, estando a cidade inteira reunida em torno
de mim, seria difcil, ou melhor, impossvel exprimir o espanto, a
estupefao que deles se apoderou, as lamentaes a que se entregaram, os
gritos com que me afligiram e o pranto com que me perturbaram. Na
verdade, foram principalmente os clrigos e, de modo especial, os meus
alunos que me torturaram com os seus intolerveis lamentos e queixumes,
de tal modo que eu me via muito mais incomodado pela sua compaixo do
que pelo sofrimento da ferida; sentia mais a vergonha do que a mutilao, e
era mais atormentado pela infmia do que pela dor. Ocorria-me o
pensamento da grande glria que eu, havia pouco, desfrutava e de que
modo ela fora abatida por um incidente vulgar e vergonhoso, ou melhor,
como ela fora completamente destruda e, por justo juzo de Deus, eu fora
castigado naquela parte do meu corpo em que eu pecara, e como por uma
justa traio aquele que eu antes atraioara me deu o troco por sua vez;
33
como os meus rivais exaltaram uma eqidade to manifesta, e como essa
chaga provocaria a desolao de um sofrimento perptuo em meus parentes
e amigos, e com que extenso essa infmia singular difundir-se-ia pelo
mundo inteiro. Que outro caminho restava para mim? Como eu enfrentaria
o pblico ao ser apontado a dedo por todos, ao ser denegrido por todas as
lnguas ao ser dado a todos em espetculo monstruoso? E o que tambm
no pouco concorria para a minha confuso era que, de acordo com a letra
da Lei, que mata, fosse to grande junto a Deus a abominao dos eunucos,
de tal modo que os homens reduzidos a esse estado pela amputao ou pelo
esmagamento dos rgos genitais eram proibidos de ingressar numa igreja
por serem imundos e ftidos, e que os prprios animais nessa condio
eram absolutamente rejeitados num sacrifcio (Levitcio, 22:24): No ofereceis ao Senhor um animal cujos testculos tenham sido machucados,
esmagados, arrancados ou cortados. E ainda (Deuterenmio, 22:1): O eunuco, cujos testculos foram esmagados ou cortado ou membro viril, no
ser admitido na assemblia do Senhor. Encontrando-me nesse msero estado de abatimento, confesso que foi mais a confuso provocada pela
vergonha do que a devoo suscitada pela converso que me impeliu para o
refgio de um claustro monstico. Nesse nterim, Helosa, primeiro por
minha ordem, e depois por sua espontnea vontade, tomou o vu e
ingressou num mosteiro."
O filme insere uma interessante reconstituio histrica de Paris ao
sculo XII, em plena fase de construo de Notre Dame (iniciada em 1163
e terminada em 1245); de uma cultura estruturada em torno da religio;
destaca a importncia de que se revestia, para a prpria sobrevivncia da
cidade, mant-la como centro de ensino, etc. Estando centrado no incidente
da castrao e no que h de ter significado para a vtima, talvez o diretor
haja carregado em demasia nas cenas de sexo. Contudo, em seu conjunto, o
filme uma valiosa contribuio ao entendimento da cultural medieval.
O NOME DA ROSA
Filme franco-italiano de 1986. Direo de Jean-Jacques Annaud.
Transposio para o cinema da obra do mesmo nome, de Umberto Eco,
imortalizada pela interpretao de Sean Connery (monge franciscano
Guilherme de Baskerville). Tempo de durao: 130 minutos.
O livro de Umberto Eco procura dar uma feio policial a um
aspecto fundamental da Idade Mdia, isto , a maneira como foi preservado
o legado grego. O incidente d-se em torno de um dos textos de Aristteles.
Entendendo que um dos livros da Retrica poderia pr em causa as
verdades ensinadas pela Igreja e para impedir que as pessoas que
eventualmente o consultassem, na Biblioteca do Mosteiro, tivessem a
34
possibilidade de transmitir o seu contedo, o velho monge cego (Jorge)
envenena as suas pginas. A sua consulta equivaleria morte. Para dar ao
seu relato o tom de uma investigao policial, Eco procura insinuar outras
razes que poderiam levar quele desfecho.
O fato aqui relatado, desde logo, naturalmente o grande segredo do
livro, penosamente reconstitudo por Guilherme de Baskerville. Como
nossa inteno despertar o interesse pela cultura daquele complexo
perodo, no teria sentido ater-nos ao encaminhamento que foi dado ao
romance, alis o que lhe assegurou to amplo sucesso.
A periodizao da Idade Mdia apresentada precedentemente facilita
a compreenso desse dilatado perodo histrico que durou um milnio.
Procura-se chamar a ateno para o ciclo em que ocorre a consolidao do
feudalismo, subseqente ao trmino das invases de sarracenos, hngaros e
normandos, que se do no sculo IX e em parte do sculo X. A coroao de
Oto I, em 952, como imperador do Sacro Imprio, marco dessa nova fase.
O feudalismo outro ingrediente formador da cultura ocidental, do qual se
dispe, em nosso pas, de uma viso simplista.
Os episdios relatados por Umberto Eco situam-se no incio do
sculo XIII, quando tem lugar a criao da Ordem dos Franciscanos. Ao
exaltar a pobreza, essa ordem deu nascedouro a um movimento contra os
ricos abrangendo tambm a hierarquia da Igreja de Roma , o que fez com que fosse acionada a Inquisio. Esta aparece no romance e no deixa
de ser um dos elementos definidores da forma como se dava a transmisso
da cultura, que ento era eminentemente religiosa.
O LEO NO INVERNO (1968) E BECKET (1964)
O primeiro um filme americano que deu a Katherine Hepburn o
Oscar de melhor atriz, estrelado igualmente por outros atores famosos.
Tempo de exibio: 134 minutos. E, o segundo, contou com Participao
de Richard Burton e Peter O'Toole, entre outros artistas de renome. Tempo
de exibio: 148 minutos
Ambos dizem respeito a Henrique II (1133-I 189), coroado
rei da Inglaterra em 1154. Situam algumas questes relevantes da histria
posterior da Europa, notadamente os conflitos entre os poderes temporal e
espiritual e a luta entre a Frana e a Inglaterra.
A Inglaterra foi conquistada pelos normandos (originariamente
nrdicos, da Escandinvia) em 1066. As suas incurses na Europa so parte
do novo ciclo de invases brbaras ocorridas ao longo do sculo IX e em
grande parte do sculo X. Alm dos normandos, foram alimentadas, ao Sul,
pelos sarracenos (posteriormente chamados de rabes), e, no Centro, pelos
hngaros. Assentados na Europa Ocidental, essas tribos nmades
35
converteram-se ao cristianismo (com exceo dos rabes, que dominam
grande parte da pennsula Ibrica).
Henrique II d incio Casa Real conhecida como Plantageneta.
Antes de invadir a Inglaterra, os normandos haviam-se apossado de
grande parte do territrio francs. Henrique II ir aumentar essas
possesses graas ao casamento com Leonor de Aquitnia, que fora casada
com o rei da Frana.
O Leo no Inverno focaliza o tema da escolha do sucessor de
Henrique II. Encenado como uma pea de teatro, considera-se que o autor
do livro que deu base ao filme (James Goldman) se haja inspirado no
desenrolar da trama que est presente nas tragdias de Shakespeare.
Thomas Becket (1118-1170) era o mais importante dignatrio da
Igreja na Inglaterra (arcebispo de Canturia) e tornou-se chanceler (chefe
do governo) de Henrique II. As divergncias do rei com Becket leva-o a
conden-lo morte. Refletem o conflito entre a Igreja e o Estado. Roma
defendia de todos os modos a prerrogativa de reconhecer (e, portanto,
legitimar) os monarcas, imiscuindo-se tambm na poltica corrente. Na
Inglaterra essa disputa somente iria acentuar-se com o tempo. Becket foi
santificado.
O fato de o rei da Inglaterra ser simultaneamente senhor feudal na
Frana e, deste modo, vassalo de outro monarca levou Guerra dos 100 Anos (de 1337 a 1453). O desfecho desta em favor da Frana que d
incio ao processo de formao das naes na Europa.
HENRIQUE V
H duas verses, inglesas, a primeira de 1944, com Laurence Oliver,
e a segunda, de 1989, com Kenneth Branagh. Em ambos os casos, os dois
conhecidos atores no s desempenham o papel ttulo como dirigem o
filme. Tempo de exibio: I50 minutos.
Henrique V nasceu em 1387 e tornou-se rei da Inglaterra em 1413,
aos 26 anos de idade. Na juventude fora um bomio e considera-se que seu
curto reinado, de apenas nove anos, tenha surpreendido aos
contemporneos. As duas verses do filme, tanto a de Laurence Oliver
como a de Branagh, seguem o texto da pea de Shakespeare. Morreu em
1422, aos 35 anos. Obteve uma conquista significativa na chamada Guerra
dos 100 Anos, entre a Frana e a Inglaterra, cujo desfecho marca de fato o
incio do processo de constituio das naes europias, acarretando o fim
do feudalismo.
A Guerra dos 100 Anos iniciou-se em 1337, interrompendo-se por 35
anos, a partir de 1380. Em 1415, valendo-se da circunstncia de que os
franceses estavam divididos pela guerra civil, Henrique V a reinicia,
36
obtendo uma vitria fulminante na Batalha de Azincourt (24 de outubro de
1415). Tenha-se presente que tanto a Frana como a Inglaterra no eram
ento naes estruturadas, da forma como as conhecemos. O
estabelecimento de fronteiras estveis e da centralizao que caracteriza o
Estado Moderno seriam fenmenos muito posteriores.
A disputa que deu origem guerra tem razes remotas. Em
decorrncia das invases normandas, nos sculos IX e X, estes conquistam
uma parte do territrio francs c a prpria Inglaterra. Disso resulta que o rei
ingls acabaria, simultaneamente, como sdito do rei francs. Ao reclamar
para si a coroa francesa, Eduardo III (1312-1377) inicia a conflagrao que
duraria um sculo. Territorialmente, a presena inglesa na Frana era
expressiva.
A Batalha de Azincourt considerada como um fato capital na
histria do Ocidente. Nesse confronto, os arqueiros escoceses destroem a
cavalaria francesa. Na verso de Branagh a eficcia da chuva de flechas por
eles promovida acha-se apresentada de modo mais expressivo. Como a
cavalaria simbolizava o feudalismo, Azincourt marca o declnio de ambos.
Em decorrncia da derrota de Azincourt o soberano francs
obrigado a assinar o Tratado de Troies (1420), em que o rei ingls
reconhecido como regente e herdeiro do trono. O conflito teria um
encaminhamento inesperado com o aparecimento de Joana dArc.
JOANA D'ARC
Filme americano de 1957, direo de Otto Preminger, que toma por
base a verso de Bernard Shaw. Tempo de exibio: 110 minutos.
As campanhas de Henrique V na Frana prosseguiram depois de
Azincourt. Nos trs anos compreendidos entre 1417 e 1419 ocupou a
Normandia e fez uma aliana com o duque de Borgonha. Ao retirar-se do
pas, deixou a seu irmo, duque de Bedford, como regente. Todavia a parte
setentrional, incluindo Paris, achava-se submetida soberania inglesa. A
parcela restante subdividia-se entre aquela pertencente ao duque de
Borgonha e a que obedecia ao comando do Delfim, esta ltima em torno de
Bourges, na parte central.
Carlos VI da Frana morreu em 1422 e Henrique V da Inglaterra um
ms antes, de modo que este no teve sequer a possibilidade de reivindicar
a posse do trono francs, a que se habilitaria pelo Tratado de Troies (1420).
Sua mulher, Catarina, era filha de Carlos VI e transmitiu ao herdeiro do
trono ingls (Henrique VI) a chamada "maldio dos Valois", isto , a
loucura que atacou a sucessivos reis franceses daquela descendncia,
inclusive Carlos VI. Quando Henrique V faleceu, seu filho e herdeiro tinha
37
apenas nove meses. Adulto, Henrique VI foi dominado pela loucura, a
exemplo de seu av e outros ancestrais franceses. Em contrapartida, o
Delfim francs, tornado Carlos VII, escaparia maldio por ser bastardo.
Sua prpria me, a rainha, declarava no ter filho de seu marido, Carlos VI,
o que era compreensvel pelo estado de insanidade mental deste ltimo. De
todas as formas, tendo falecido os seus dois irmos mais velhos, ingressou
na linha normal de sucesso. Deste modo, sob todos os ngulos, a situao
do pas era extremamente confusa e complexa, o que faz sobressair o papel
de Joana D'Arc.
Joana D'Arc (1412-1431), tambm chamada de Donzela de Orleans,
era uma jovem de famlia camponesa humilde que ouviu vozes exortando-a
a libertar a Frana, ento devastada pela invaso inglesa. Vestiu-se como
um soldado, convenceu ao Delfim dessa misso e foi colocada frente de
uma tropa, com a qual rompeu o cerco de Orleans e venceu os ingleses em
Patay. Promoveu a sagrao de Carlos VII em Reims. Na continuao da
guerra, foi presa, e os ingleses a submeteram a um Tribunal Eclesistico
que a condenou como herege e feiticeira, sendo queimada na fogueira a 30
de maio de 1431. Vinte anos depois seria solenemente reabilitada. Foi
tornada santa pela Igreja Romana e inspirou obras de grandes escritores,
como Schiller, Pguy, Bernard Shaw e Claudel. rico Verssimo dedicou-
lhe um de seus livros (A Vida de Joana D'Arc, Editora Globo, diversas
edies).
O filme louva-se da verso de Bernard Shaw, que certamente
distorce a figura de Carlos VII, apresentado como retardado mental. O
certo que este, depois da morte de Joana DArc, obteve sucessivas vitrias sobre os ingleses, ter