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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS
CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
AS CONTRADIÇÕES DA INTERVENÇÃO NA LÍBIA
EM 2011
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Andressa Gonçalves Grechi
Santa Maria, RS, Brasil
2015
AS CONTRADIÇÕES DA INTERVENÇÃO NA LÍBIA EM 2011
por
Andressa Gonçalves Grechi
Monografia apresentada ao Curso de Relações Internacionais da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obtenção do
grau de Bacharel em Relações Internacionais
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Seitenfus
Santa Maria, RS, Brasil
2015
Universidade Federal de Santa Maria
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Curso de Relações Internacionais
A Comissão Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Monografia de Graduação:
AS CONTRADIÇÕES DA INTERVENÇÃO NA LÍBIA EM 2011
elaborada por
Andressa Gonçalves Grechi
como requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Relações Internacionais
COMISÃO EXAMINADORA:
Prof. Dr. Ricardo Seitenfus (UFSM)
(Presidente/Orientador)
Profª. Drª. Giuliana Redin (UFSM)
Prof. Dr. José Renato Ferraz da Silveira (UFSM)
Santa Maria, 01 de dezembro de 2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus: pela vida, pelas bênçãos e pela oportunidade de fé.
Agradeço a meus pais, Almiro Grechi e Lorena Gonçalves Grechi, pelo incentivo
constante, que foi fundamental, e por me motivaram a ir à busca dessa conquista.
Da mesma forma, agradeço ao orientador, professor Dr. Ricardo Seitenfus, e aos
demais professores, pelos anos em que contribuíram para minha formação e crescimento
pessoal.
E o meu "muito obrigado" a todos que de uma forma ou de outra contribuíram para
este longo percurso que chega ao final de mais uma etapa.
RESUMO
AS CONTRADIÇÕES DA INTERVENÇÃO NA LÍBIA EM 2011 AUTORA: ANDRESSA GONÇALVES GRECHI
ORIENTADOR: Prof. Dr. RICARDO SEITENFUS
Santa Maria, 03 de dezembro de 2015
O presente estudo trata da legitimidade dos processos de intervenção humanitária: uma
análise do caso de intervenção humanitária na Líbia em 2011. O objetivo geral é compreender
a legitimidade das intervenções humanitárias, sua viabilidade e moralidade, abordando em
específico a intervenção, dita humanitária, no caso da Líbia em 2011. A polêmica em relação
às intervenções humanitárias tem motivado um dos mais ardentes debates, tanto entre
teóricos, quanto entre seus praticantes, na década de 1990 e início dos anos 2000. Há uma
grande preocupação com relação à constatação de crimes tão brutais, que ferem a consciência
da humanidade, como o genocídio, que permanecem ocorrendo na atualidade e muitas vezes
são ignorados pela sociedade internacional. O método de abordagem utilizado foi dedutivo,
dado que a dissertação buscou estabelecer, através da evolução das operações de paz, desde o
período da Guerra Fria, em que as primeiras operações foram autorizadas até a dita
intervenção na Líbia, argumentos que justificassem a intervenção no país; e, o método de
procedimento foi o bibliográfico e o documental. O embasamento teórico foi alicerçado em
opinião de autores que versam sobre o tema, entre livros, jornais, revistas e fontes eletrônicas.
Concluiu-se, utilizando a vertente solidarista, a Holly Trinity e a Responsabilidade de
Proteger, bem como os pré-requisitos utilizados por essas para conferir legitimidade as
intervenções, que a Líbia apesar de ser considerada legal, não cumpriu a maioria dos critérios
para ser considerada legítima.
Palavras-chave: intervenção humanitária, operações de paz, Líbia, responsabilidade de
proteger e legitimidade.
ABSTRACT
THE CONTRADICTIONS OF INTERVENTION IN LIBYA IN 2O11
AUTHOR: ANDRESSA GONÇALVES GRECHI
PROFESSOR: Dr. RICARDO SEITENFUS
Santa Maria, December 3rd, 2015
This study deals with the legitimacy of humanitarian intervention processes: one case analysis
of humanitarian intervention in Libya in 2011. The overall goal is to understand the
legitimacy of humanitarian interventions, its viability and morality, addressing in particular
the intervention, said humanitarian, in case of Libya in 2011. The controversy regarding
humanitarian interventions has motivated one of the most ardent debates, both among
theorists and among its practitioners, in the 1990s and early 2000s. There is great concern
regarding the realization of such brutal crimes that harm the conscience of humanity, such as
genocide, which remain occurring today and are often ignored by the international society.
The approach method used was deductive, as the dissertation sought to establish, through the
evolution of peacekeeping since the Cold War, when the first cases were cleared up said
intervention in Libya, arguments to justify the intervention in parents; and the method
procedure was the literature and documents. The theoretical foundation was founded in
opinion of authors that deal with the topic, including books, newspapers, magazines and
electronic sources. It was concluded using the solidarist aspect, the Holly Trinity and the
Responsibility to Protect, as well as the prerequisites used by those to confer legitimacy
interventions, Libya although considered legal, did not fulfill most of the criteria to be
considered legitimate.
Keywords: humanitarian intervention, peacekeeping, Libya, responsibility to protect and
legitimacy.
LISTA DE SIGLAS
CNU – Carta das Nações Unidas
CDH – Conselho de Direitos Humanos
CNG – Conselho Nacional Geral
CNT – Conselho Nacional de Transição
CSNU – Conselho de Segurança das Nações Unidas
EUA – Estados Unidos da América
HRW – Human Rights Watch
ICISS – International Commission on Intervention and State Sovereignty
LAS – Arab League
ONU – Organização das Nações Unidas
ONUC – United Nations Operation in Congo
OTAN – Organização do Atlântico Norte
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
R2P – Responsability to Protect
RWP – Responsabilidade ao Proteger
UNAMIR – Missão de Assistência das Nações Unidas a Ruanda
UNEF I – United Nations Emergency Force I
UNOSOM – Operação das Nações Unidas na Somália II
UNMIBH – Missão das Nações Unidas na Bósnia-Herzegovina
URSS- União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1 TEORIAS LEGITIMADORAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS:
EMBATE ENTRE A TEORIA PLURALISTA E SOLIDARISTA DA ESCOLA
INGLESA ................................................................................................................................ 15
1.1 ESCOLA INGLESA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................... 15
1.2 EMBATE ENTRE PLURALISTAS E SOLIDARISTAS ................................................. 20
1.3 TEORIA SOLIDARISTA COMO LEGITIMADORA DAS INTERVENÇÕES
HUMANITÁRIAS ................................................................................................................... 28
2 SISTEMA ONU E A APLICAÇÃO DO CAP 6 E 7 PARA JUSTIFICAR A
INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA ..................................................................................... 32
2.1 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA E OPERAÇÕES DE PAZ: APROXIMAÇÕES E
DISTINÇÕES A PARTIR DO SISTEMA ONU ..................................................................... 33
2.1.1 No Contexto da Guerra Fria: Operações de Manutenção da Paz Tradicionais ...... 35
2.1.2 No Contexto do Pós-Guerra Fria: Operações de Manutenção da Paz
Multidimensionais .................................................................................................................. 39
2.1.3 Uma Agenda para a (Imposição) da Paz: a Terceira Geração das Operações de Paz
.................................................................................................................................................. 43
2.1.4 Relatório Brahimi (2000) e a Doutrina Capstone (2008) ........................................... 48
2.2 IMPACTO DA R2P NAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E OPERAÇÕES DE
PAZ ........................................................................................................................................... 51
2.2.1 Críticas a Responsabilidade de Proteger ..................................................................... 56
2.2.2 Responsabilidade ao Proteger ...................................................................................... 58
3 PRIMAVERA ÁRABE E O CONTEXTO ESPECÍFICO DA LÍBIA ........................... 61
3.1 PRIMAVERA ÁRABE E O CONTEXTO DA LÍBIA ...................................................... 61
3.2 LÍBIA: UM CASO DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA? .......................................... 68
3.3 LÍBIA: UM CASO DE MISSION CREEP ........................................................................ 83
3.3.1 Atores Envolvidos .......................................................................................................... 87
3.3.2 Um País Fragmentado ................................................................................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 91
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Na área das relações internacionais, a polêmica em relação às intervenções
humanitárias, segundo Welsh (2004), vem provocando discussões fervorosas, tanto entre
pesquisadores do assunto, quanto por seus praticantes, na década de 1990 e início dos anos
2000. No núcleo dessa rixa, situa-se "a alegada tensão entre os princípios do Estado soberano"
– um dos pilares definidores do sistema das Nações Unidas e do direito internacional – "e as
emergentes normas internacionais relacionadas aos direitos humanos e ao uso da força"
(PERES, 2012, p. 44). Nessa esfera, e perante assunto tão complicado, o presente estudo acata
a definição de intervenção humanitária determinada por Welsh (2004, p.3, tradução nossa):
“interferência coercitiva nos assuntos internos de um Estado, envolvendo o uso de força
armada, com o propósito de cessar violações massivas de direitos humanos ou prevenir o
sofrimento humano”.
A pesquisa surge de uma preocupação da autora com respeito à constatação de que
delitos tão violentos que ferem a consciência das pessoas, como o genocídio, continuam
acontecendo hoje e, diversas vezes, são ignorados pela sociedade internacional. A opção pelo
estudo em relação à Líbia ocorre pelo fato de ter sido a primeira vez em que a sociedade
internacional usou o princípio da Responsabilidade de Proteger para explicar uma intervenção
humanitária e porque, mesmo com a esperança assentada no princípio para acabar com os
dilemas abarcando essas intervenções, o episódio da Líbia foi um fracasso, não pondo fim às
violações de direitos humanos e ficando em caso análogo ao período de Kadaffi.
Diante do exposto, cabe a indagação que pretende ser respondida nesta dissertação:
quais são os pressupostos de legitimidade dos processos de intervenção humanitária e
operações de paz realizados pelas Nações Unidas no período compreendido entre 1990 e
2015?
Para responder ao questionamento, parte-se da hipótese de que, mesmo com o
inflexível debate entre solidaristas e pluralistas e da criação da responsabilidade de proteger as
Nações Unidas, não delineou intenções claras sobre a legitimidade de uma intervenção
humanitária, deixando para avaliar situação por situação.
Além da dificuldade inicial, o texto abarca ainda perguntas secundárias, referentes a
"quais são as causas que justificam as intervenções humanitárias?’’, "quem tem legitimidade
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para intervir", "por que ocorre a seletividade nas intervenções humanitárias?" e "qual é a
relevância da responsabilidade de proteger no conflito Líbio e no pós-conflito?". Para
responder a essas questões, o trabalho parte da pressuposição de que os requisitos mínimos
para que uma intervenção humanitária aconteça são: emergência humanitária suprema;
utilização da força como último recurso, aproveitamento da força utilizada de forma
proporcional ao detrimento humanitário que se pretende prevenir e grande perspectiva de
resultado humanitário positivo.
Para fins deste estudo, a hipótese oferecida em relação a quem teria legitimidade para
interferir aborda somente episódios aprovados pelas Nações Unidas, mesmo com designação
de mandato, como ocorreu no caso da Líbia, em que a intervenção foi feita pela Organização
do Tratado do Atlântico Norte, mas com o respaldo da ONU. Existem, também, debates a
respeito da legitimidade de intervenções humanitárias feitas unilateralmente, seja por uma
única nação ou organização, com ou sem aprovação das Nações Unidas, contudo estas não
serão abordadas neste trabalho.
Em relação à seletividade, o texto argumenta que, apesar de muitas vezes existir claro
interesse em salvar vidas, este se torna secundário perante interesses políticos e econômicos
em certo país. No contexto da intervenção na Líbia, apesar de no mesmo período existirem
episódios análogos ou ainda piores de violações de direitos humanos, escolheu-se por intervir
no país, tido como o menos pior. Tal alternativa ocorre pelo fato de que a Líbia era o quarto
maior produtor de petróleo da região, sendo a qualidade deste petróleo uma das melhores do
planeta e, também, por motivo da excentricidade e políticas anti-ocidente do então presidente
Muammar Kadaffi. Nessa esfera, a mudança de regime para um governo que melhor
respondesse às expectativas ocidentais em âmbitos econômicos e políticos foi a motivação
principal para a intervenção.
Quanto à importância da responsabilidade de proteger, argumenta-se que foi a
primeira vez que o princípio foi aproveitado para explicar uma intervenção humanitária, os
líderes mundiais realçam a "responsabilidade de proteger" que a sociedade internacional
detinha perante uma situação de violação de direitos humanos. Depois do fracasso da
intervenção na Líbia – e compreende-se por fracasso o fato de que a intervenção não foi bem
sucedida em restaurar a paz e cessar os massacres, já que ainda em 2015, quatro anos após a
intervenção, ocorrem sistemáticas violações humanitárias – outro princípio foi criado, pelo
Brasil, para melhor responder a casos de violação de direitos humanos, o princípio foi
denominado de Responsabilidade ao Proteger, o qual se preocupa com a gravidade dos
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conflitos, acréscimo da violência e vulnerabilidade dos civis pós-intervenção. O princípio
ainda é visto com ceticismo e continua na esfera dos debates da sociedade internacional.
O presente estudo possui como objetivo compreender a legitimidade das intervenções
humanitárias, sua viabilidade e moralidade, abordando em específico a intervenção, dita
humanitária, no caso da Líbia em 2011. Para tanto, avaliam-se os argumentos oferecidos por
muitos atores, como presidentes, líderes de organizações regionais e representantes nas
Nações Unidas no período da intervenção, para justificá-la.
O método de abordagem utilizado foi dedutivo, porque a dissertação procurou
instituir, por meio da evolução das operações de paz, desde o período da Guerra Fria, em que
as primeiras operações foram autorizadas até a dita intervenção na Líbia, argumentos que
justificassem a intervenção no país. O método de procedimento utilizado foi o método
bibliográfico e documental.
A técnica de pesquisa adotada foi a bibliografia direta, avaliação de declarações
oficiais de líderes mundiais e resoluções da Organização das Nações Unidas, e indireta,
através da consulta em obras especializadas no debate entre pluralistas e solidaristas, nas
intervenções humanitárias e operações de paz, na responsabilidade de proteger, e atuação da
ONU, assim como do CSNU e OTAN, no episódio particular da Líbia. A esse estudo foram
agregados artigos de jornais e revistas, sobretudo do ano de 2015, para mostrar o caos em que
a Líbia ainda se encontra, sem ajuda nenhuma da sociedade internacional.
Nesse âmbito, o texto se divide em três capítulos. O primeiro capítulo mostra um
cenário amplo sobre os pressupostos da Escola Inglesa das Relações Internacionais, desde sua
formação na década de 50 até contemporaneamente, abarcando as diretrizes dos teóricos
clássicos, dando realce para a definição de Três Tradições da Teoria Internacional de Martin
Wight e os conceitos de sociedade internacional, ordem mundial e justiça de Hedley Bull,
assim como destaca o embate dos teóricos de terceira geração, divididos nas vertentes
pluralistas, a qual preza pela ordem, respeito ao princípio da soberania e não-intervenção e crê
que a intervenção é usada somente para os estados fortes perseguirem interesses próprios e
subjugar os fracos, e solidaristas, a qual acredita na justiça, defendendo a intervenção
humanitária como meio e, muitas vezes, único recurso para salvar vidas e clamando para que
a sociedade internacional preze pelos direitos humanos, em relação às intervenções
humanitárias.
Finalmente, o capítulo enfoca as hipóteses da vertente solidarista, respaldados,
sobretudo, pela tese de Nicholas Wheeler, na obra Saving Strangers, como legitimadora das
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intervenções humanitárias. O autor determina critérios mínimos para que uma intervenção
aconteça e seja considerada legítima, assim como atinge o dilema recorrente de líderes a
respeito de "fazer alguma coisa" para salvar vidas desconhecidas em uma nação estranha,
correndo o risco de agravar o caso e gerar descontentamento, tanto da sociedade internacional,
quanto interno e "não fazer nada", correndo o risco de ser acusado de indiferença moral.
A Escola Inglesa e, principalmente, as duas vertentes referidas anteriormente foram
escolhidas como método de abordagem das intervenções humanitárias, dentre tantas outras,
em razão do fato de melhor explicarem e defenderem a legitimidade das intervenções
humanitárias.
No segundo capítulo, é abordada a evolução das operações de paz, primeiramente com
destaque nas operações de manutenção da paz tradicionais, no contexto da Guerra Fria, em
que o Conselho de Segurança se achava travado em razão da bipolaridade do sistema. Depois,
com o fim da Guerra Fria e maior atuação do Conselho de Segurança na questão das
operações de paz. O capítulo aborda ainda a terceira geração das operações de paz, a qual é
classificada, de acordo com o relatório Uma Agenda para a Paz (1992), em diplomacia
preventiva, peacemaking, peacekeeping, peace enforcement e peace building. As intervenções
humanitárias são encontradas nas operações de peace enforcement, e são caracterizadas
basicamente pelo uso da força, nesse sentido, na operação na Líbia aconteceu a autorização
para se utilizar de "todos os meios necessários", incluindo a utilização da força, para que
houvesse o cessar fogo e cessasse o conflito.
Também são identificadas no capítulo as diretrizes do Relatório Brahimi (2000), da
Doutrina Capstone (2008), e o impacto da Responsabilidade de Proteger, na discussão a
respeito das intervenções humanitárias e operações de paz. O princípio da R2P estabelece
situações em que a sociedade deve agir, realçando massacres, genocídios e limpeza étnica em
grande escala. A R2P traz, também, a soberania como responsabilidade de proteger o sujeito e
a responsabilidade que recai sobre a sociedade internacional em episódios de violação de
direitos humanos. As diretrizes do princípio vão de encontro com a vertente solidarista da
Escola Inglesa, também determinando critérios para explicar a intervenção humanitária e para
que esta alcance êxito.
Por fim, por motivo dos grandes debates polêmicos, envolvendo a intervenção na
Líbia, a qual foi justificada nos termos da Responsabilidade de Proteger, um novo princípio
foi criado, pelo Brasil, em 2011, na tentativa de corrigir os erros cometidos nesta intervenção,
destacando o problema do agravamento dos conflitos pós-intervenção, no acréscimo da
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violência, assim como a elevação da vulnerabilidade de civis, daí a precisão da
responsabilidade ao proteger. O princípio foi enfrentado com grande ceticismo pela sociedade
internacional e permanece na esfera dos debates.
Em relação ao terceiro capítulo, o primeiro aspecto apresentado tem como objetivo
apresentar o contexto da Primavera Árabe e os resultados obtidos nos diferentes Estados
envolvidos, a avaliação dará destaque no contexto da Líbia, desde o começo das revoltas em
2011 até hoje. O capítulo irá envolver as resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança
para legitimar a intervenção, dita humanitária, e os interesses econômicos e políticos por trás
desta, alicerçado em declarações de líderes mundiais para justificar a intervenção na Líbia.
Por fim, o capítulo apresenta a atual situação na Líbia, a qual se acha sob o comando
de dois governos, fragmentando o país, com infiltração terrorista, guerra civil, violação
sistemática de direitos humanos e grande fluxo de refugiados.
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1 TEORIAS LEGITIMADORAS DAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS:
EMBATE ENTRE A TEORIA PLURALISTA E SOLIDARISTA DA ESCOLA
INGLESA
1.1 ESCOLA INGLESA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A Escola Inglesa iniciou com a criação do Comitê Britânico de Teoria Política
Internacional, no ano de 1958, depois de um pedido da Fundação Rockfeller ao então
professor de História Moderna de Cambridge, Herbert Butterfield. As premissas fundamentais
do comitê versavam em: tomar conhecimento das forças que estão por trás da atividade
diplomática, política externa, as proposições étnicas dos conflitos internacionais e a
probabilidade de o estudo da política internacional ser transportado cientificamente
(SARFATI, 2005).
A Escola se insere entre duas correntes, então influentes no estudo da disciplina de
relações internacionais, o Realismo e o Liberalismo, a tradição inglesa foi inserida como uma
via intermediária, pois "valorizava o estudo da história e das relações humanas como
produtoras das relações entre Estados" (NASCIMENTO, 2011, p. 158).
Esta tradição acadêmica de estudo das relações internacionais, [...], não
encaixa, com facilidade, nem nas gavetas de arrumação de ideias do
realismo, nem nas gavetas destinadas às ideias liberais. [...] o problema
estará mais na dificuldade em organizar a disciplina desta maneira, ou seja,
em tentar rotular e arrumar as teorias e conceitos segundo paradigmas
(FERNANDES, 2009, p. 88).
A Escola Inglesa é formada por acadêmicos do Reino Unido, que aceitaram tratar a
expectativa da coletividade internacional como uma significativa maneira de interpretar a
política mundial (SUGANAMI, 2003). Dentre os autores de sua primeira geração, que abarca
os anos de 1959-1966, estão Charles Manning, Martin Wight, Hedley Bull, Adam Watson,
Alan James e John Vincent.
A contribuição de Martin Wight na primeira geração e a sua teoria das "Três Tradições
da Teoria Internacional" é ressaltante para este estudo, porque, a partir da teoria de Wight,
aparece a posterior divisão da Escola Inglesa entre pluralistas e solidaristas, a qual debate
sobre o problema da legitimidade da intervenção humanitária.
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Conforme Bull (1976), no cerne da teoria de Martin Wight se encontrava a discussão
entre três grupos de atores: os maquiavélicos, os grocianos e os kantianos – ou, como ele
muitas vezes os denominava: os realistas, os racionalistas e os revolucionários.
The Machiavellians he thought of crudely as "the blood and iron and
immorality men," the Grotians as "the law and order and keep your word
men," and the Kantians as "the subversion and liberation and missionary
men." Each pattern or tradition of thought embodied a description of the
nature of international politics and also a set of prescriptions as to how men
should conduct themselves in it1 (BULL, 1976, p. 104).
Segundo os maquiavélicos – que inseriam figuras como Hobbes, Hegel, Frederico, o
Grande, Clemenceau, os realistas do século XX, como Carr e Morgenthau – a real descrição
da política internacional é a anarquia internacional, uma guerra de todos contra todos ou
relacionamento de legítima desordem entre Estados dominadores (BULL, 1976).
For twentieth-century man, Realism means a frank acceptance of the
disagreeable aspects of life. Realism, therefore, is violence, sin, suffering
and conflict, as when Kennan spoke of 'the real things that were happening'
or as a great Realist said earlier, it is the acknowledgement that 'the life of
man' is 'solitary, poor, nasty, brutish and short'2 (WIGHT, 1992, p. 16).
O realismo é uma tradição contra a intervenção humanitária. Este põe a
responsabilidade do Estado com seus próprios indivíduos em posto inicial. O Estado não
colocaria em risco as vidas de seus soldados em uma cruzada humanitária para salvar
estranhos em um local distante (BELLAMY, 2003). Todo o Estado cobiça seu próprio
interesse: o tema da moralidade na política internacional, ao menos na esfera de normas
morais que conteve Estados em suas relações uns com os outros, não se aplica (BULL, 1976).
Para os Grocinianos – dentre eles Wight abrangeu os advogados internacionais
clássicos Locke, Burke, Castlereagh, Gladstone, Franklin Roosevelt, Churchill – política
1 “Os maquiavélicos ele pensava como “os homens de sangue, ferro e imoralidade’’, os grocinianos como
“homens de lei, ordem e palavra’’, e os kantianos como “subversão, libertação e homens missionários’’. Cada
padrão ou tradição do pensamento encarna uma descrição da natureza da política internacional e também um
conjunto de prescrições quanto à forma como os homens devem se comportar nele” (BULL, 1976, p. 104,
tradução nossa) 2 “Para o homem do século XX, Realismo significa uma aceitação franca dos aspectos desagradáveis da vida.
Realismo, portanto, é a violência, o pecado, o sofrimento e conflito, como quando Kennan falou de "as coisas
reais que estavam acontecendo" ou como um grande realista disse anteriormente, é o reconhecimento de que "a
vida do homem" é "solitária, pobre , desagradável, brutal e curta” (WIGHT, 1992, p. 16, tradução nossa).
17
internacional teve de ser delineada não como anarquia internacional, porém como relações
internacionais. Um relacionamento, principalmente entre os Estados, onde não existiu
somente conflito, porém colaboração. Para o assunto central da Teoria das Relações
Internacionais, os Grocinianos ostentam uma sociedade que não era ficção, e cujo
funcionamento pode ser percebido em estabelecimentos, como a diplomacia, lei internacional,
o equilíbrio de poder e na definição das grandes forças. Componentes nas suas relações uns
com os outros não estavam livres de advertências morais e legais (BULL, 1976).
The rationalists are those who concentrate on, and believe in the value of, the
element of international intercourse in a condition predominantly of
international anarchy. They believe that man, although manifestly a sinful
and bloodthirsty creature, is also rational3 (WIGHT, 1992, p. 13).
O racionalismo é alicerçado na ciência de que existe uma harmonia automática de
interesses entre os indivíduos e que os Estados podem acordar em normas que promovam a
sua existência e prosperidade mútuas (BELLAMY, 2003). É nessa probabilidade em que se
ajustam os princípios dos solidaristas.
A última tradição seria a kantiana ou revolucionista. Segundo os kantianos, foi
somente em um grau superficial e provisório que a política internacional atuava sobre relações
entre os Estados em tudo; num grau mais intenso eram sobre as relações entre os indivíduos
dos quais os estados foram constituídos (BULL, 1976).
“Os revolucionários podem ser definidos mais precisamente como aqueles que
acreditam tão apaixonadamente na unidade moral da sociedade de estados ou sociedade
internacional”4 (WIGHT, 1992, p. 8, tradução nossa). Para Bellamy (2003, p. 13),
"revolucionistas e solidaristas, a terceira geração da Escola Inglesa, compartilham a mesma
crença na moral universal".
Outra colaboração significativa para a avaliação é a tese de Bull, em relação ao
princípio de sociedade internacional, ordem mundial e justiça. A definição de ordem mundial
de Bull é usada, após, pelos pluralistas como alicerce para deslegitimar as intervenções
3 “Os racionalistas são aqueles que concentrar-se em, e acreditar no valor de, o elemento de relações
internacionais em uma condição predominantemente de anarquia internacional. Eles acreditam que o homem,
embora manifestamente uma criatura pecadora e sanguinário, também é racional” (WIGHT, 1992, p. 13,
tradução nossa). 4 "The Revolutionists can be defined more precisely as those who believe so passionately in the moral unity of
the society of states or international society" (WIGHT, 1992, p. 8).
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humanitárias. Conforme esta vertente, a violação do princípio da soberania e da não-
intervenção contribuiria para o desequilíbrio da ordem. E, a definição de justiça é aproveitada
por solidaristas para legitimar as intervenções humanitárias, as quais destacam o sujeito e as
obrigações e deveres morais do Estado para com eles.
A sociedade internacional, ou de Estados, de Bull é distinta pela existência de
interesses recíprocos entre os participantes. Os Estados são os atores fundamentais, e através
desses interesses divididos eles procuram conservar uma ordem internacional (RIBEIRO,
2013).
Existe uma "sociedade de estados" (ou "sociedade internacional") quando
um grupo de estados, conscientes de certos valores e interesses comuns,
forma uma sociedade, no sentido de se considerarem ligados, no seu
relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de
instituições comuns (BULL, 2002, p. 19).
O entendimento de sociedade internacional ou sociedade de Estados conduz ao que
Wight entende como racionalismo, tendo seu autor fundamental Hugo Grotius. Buzan
argumenta que “sociedade internacional é sobre a institucionalização de interesse comum e
identificação entre os estados, e coloca a criação e manutenção de normas compartilhadas,
regras e instituições no centro da teoria de relações internacionais”5 (BUZAN, 2004, p. 7,
tradução nossa).
Diferentemente da tradição hobbesiana, os grocianos sustentam que os
estados não estão empenhados em uma simples luta, como gladiadores em
uma arena, mas há limites impostos a seus conflitos por regras e instituições
mantidas em comum. No entanto, contrariamente à perspectiva kantiana ou
universalista, os grocianos aceitam a premissa de que os soberanos ou os
estados constituem a principal realidade da política internacional: os
membros imediatos da sociedade internacional são os estados, e não os
indivíduos. A política internacional nem expressa um completo conflito de
interesses entre os estados nem uma absoluta identidade de interesses;
lembra um jogo parcialmente distributivo, mas que também é em parte
produtivo (BULL, 2002, p. 35).
5 "International society is about the institutionalization of shared interest and identify amongst states, and puts
the creation and maintenance of shared norms, rules and institutions at centre of IR theory" (BUZAN, 2004, p.
7).
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O entendimento de sociedade implica a existência de um sistema. Neste, as unidades
(Estados) produzem relacionamentos recíprocos sem, todavia, possuírem a concepção de que
há determinados valores e interesses compartilhados. Para que haja uma sociedade universal,
essa ideia precisa, deste modo, estar presente. Um sistema de Estados constitui-se quando dois
ou mais Estados possuem satisfatório contato entre si, com aceitável impacto mútuo nas suas
decisões, de tal modo que se identifiquem, pelo menos até algum ponto, como partes de um
todo (BULL, 2002).
A definição de sistema internacional é atrelada a pesquisadores do realismo clássico,
como Hobbes e Maquiavel. “Sistema internacional é sobre política de poder entre Estados, e
coloca a estrutura e o processo de anarquia internacional no centro da teoria de relações
internacionais”6 (BUZAN, 2004, p. 7, tradução nossa).
Igual colaboração de Hedley Bull se refere ao princípio de ordem ou sociedade
mundial. Segundo esta, há um imperativo moral entre os Estados que é a criação de uma
comunidade humana, sobre eles. Esse imperativo obedece ao desígnio ou objetivo,
ambicionado, e as normas vigentes necessitam ser postas de lado em razão do bem maior
(RIBEIRO, 2013).
A definição de ordem mundial é alicerçada na corrente kantiana ou revolucionista de
Martin Wight. "A sociedade mundial aponta os indivíduos, organizações não-governamentais
e, finalmente as populações do globo como um todo como o foco de identidades sociais
globais e arranjos, e coloca a transcendência do sistema de Estados no centro da teoria
relações internacionais"7 (BUZAN, 2004, p . 7, tradução nossa).
Bull (2002, p. 29) afirma que existe uma diferença básica entre a ordem internacional
e a ordem mundial:
[...] a ordem mundial é mais fundamental e primordial do que a ordem
internacional porque as unidades primárias da grande sociedade formada
pelo conjunto da humanidade não são os estados (como não são as nações,
tribos, impérios, classes ou partidos), mas os seres humanos individuais -
elemento permanente e indestrutível, diferentemente dos agrupamentos de
qualquer tipo.
6 "International system is about power politics amongst states, and puts the structure and process of
international anarchy at the centre of IR theory’’ (BUZAN, 2004, p. 7). 7 "World society takes individuals, non-state-organisations and ultimately the global populations as a whole as
the focus of global societal identities and arrangements, and puts transcendence of the states-system at the
centre of IR theory" (BUZAN, 2004, p. 7).
20
As afinidades entre os Estados contemporâneos espelham as três tradições de forma
singular (RIBEIRO, 2013). Em distintas etapas históricas do sistema de Estados, em
diferentes teatros geográficos do seu funcionamento, e nas políticas seguidas por distintos
Estados e estadistas um desses três componentes pode prevalecer sobre os outros (BULL,
2002).
Outro ponto atingido é em relação à definição de justiça. Para Bull (2002), a política
universal é, principalmente, um procedimento de conflito e colaboração entre os Estados, que
só possuem uma percepção simples do bem comum, com referência ao universo em seu
conjunto e é, assim sendo, o domínio, sobretudo, das ideias de justiça comutativa8.
Entende-se justiça humana como as normas morais que dão direitos e obrigações aos
Estados e aos países, como a autodeterminação, a não ingerência e a equidade de tratamento
de todas as nações imperantes. A compreensão de justiça humana seria "regras morais que
atribuem direitos e deveres individualmente ao ser humano" (BULL, 2002, p. 97).
Além dos entendimentos a respeito de justiça anteriormente citadas, existe uma
terceira categoria de justiça, denominada como justiça cosmopolita ou universal. Essa ciência
de justiça tenta deliberar o que é correto ou bom para todo o universo (BULL, 2002). Essa
abordagem apoia, deste modo, a promoção do bem comum mundial.
Em última apreciação, Bull (2002) afirma que pode existir a combinação entre ordem
mundial e justiça cosmopolita, mas procurar uma justiça mundial na totalidade do sistema e
da sociedade de Estados é se provocar um conflito com os mecanismos que conservam a
ordem. Desta maneira, a ordem é entendida como mais essencial e anterior à justiça, o que
provoca as polêmicas posteriores dentro da Escola Inglesa, entre pluralistas que protegem a
ordem, e solidaristas que acastelam a justiça no sistema internacional.
1.2 EMBATE ENTRE PLURALISTAS E SOLIDARISTAS
A divisão da Escola Inglesa é uma das peculiaridades mais acentuadas dos anos 1990.
Sua contemporânea geração de pesquisadores procura edificar pontes entre a abordagem dos
8 "A justiça comutativa consiste no reconhecimento dos direitos e deveres mediante um processo de intercâmbio
ou barganha, pelo qual indivíduos ou grupos admitem os direitos dos outros de forma recíproca. Na medida em
que esses indivíduos ou grupos tenham igual capacidade de barganha, o processo levará provavelmente ao que
chamamos de 'justiça aritmética' ou seja, à igualdade de direitos" (BULL, 2002, p. 95).
21
autores clássicos e das teorias pós-positivistas9, afastar a Escola Inglesa dos realistas e, de
modo decisivo, edificar uma teoria solidarista da coletividade internacional, várias vezes com
arredores pós-westfalianos10 (SOUZA, 2006, p. 34). Certos temas, como a de quanto
suficientemente a estrutura da sociedade internacional de hoje tem funcionado ou a de como
determinado nível de ordem é alcançado na sociedade internacional, movimentam essa rixa
(MARCONI, 2008).
O choque entre os conceitos pluralistas e solidaristas foi abordado, inicialmente, no
artigo de Hedley Bull intitulado "The Grotian Conception of International Society",
originalmente apresentado ao The British Committee for the Theory of International Politics,
em abril de 1962 (SOUZA, 2006, p. 53).
Os termos do debate dentro da Escola Inglesa são os seguintes: o pluralismo
descreve sociedades internacionais “tênues” (thin), onde são poucos os
valores compartilhados, sendo o foco principal desenvolver regras de
coexistência dentro de um quadro de soberania e não-intervenção; o
solidarismo, por sua vez, descreve sociedades internacionais “densas”
(thick), nas quais uma gama maior de valores são compartilhados e as regras
não são apenas de coexistência, mas também alcançam a busca de ganhos
comuns e o gerenciamento de problemas coletivos (BUZAN, 2004, p. 59).
Esse embate versa com pluralistas propendendo a uma finalidade "minimalista da
convivência pacífica dos estados" e os solidaristas indo além nesse objetivo com a inserção de
"uma meta mais exigente da proteção internacional dos padrões globais de direitos humanos"
(LINKLATER; SUGANAMI, 2006, p. 6, tradução nossa).
Para Bull (1999), uma das fontes de discórdia entre as duas tradições é que, para
Oppenheim, ou pluralistas, os Estados são os sujeitos singulares de direitos e deveres na
esfera internacional. E, para os solidaristas, ou grocianos, existe uma sociedade humana, na
qual as pessoas estão subordinadas à lei natural:
9 Segundo Fernandes (2009), o que geralmente é designado por abordagens pós-positivistas abarca diversos
autores, ideais e falas, tais como "os estudos críticos, os pós-modernistas ou pós-estruturalistas, as feministas, os
construtivistas etc." (FERNANDES, 2009, p.107). 10 Diz respeito aos Tratados da Paz de Westfália. Os dois tratados que codificam a Paz de Westfália – o Tratado
de Munster e Osnabruck, assinados em 1648, não só findam uma das mais sangrentas guerras religiosas da Idade
Média, a Guerra dos Trinta Anos, como também se comportam como marco fundador, isto é, como a origem das
Relações Internacionais modernas. "O Tratado da Paz de Westfália consagra o princípio da soberania e da
territorialidade" (MARCONI, 2008, p. 72).
22
For Oppenheim international society is composed of states, and only states
possess rights and duties in international Law. Individuals, in his view, may
be regarded as objects of international law, as when rights and duties are
conferred upon them by international agreements regarding diplomatic
immunities or extradition; but these are rights and duties in the domestic law
of the country concerned and do not render the recipients of them member of
international society own their own rights. […]. In Grotiu’s system,
however, the members of international society are ultimately not states by
individuals. The conception of a society formed by states and sovereigns is
present in his thought; but its position is secondary to that of the universal
community of mankin, and its legitimacy derivative from it11 (BULL, 1999,
p. 112).
Então, o pluralismo é atrelado a uma ideia conservadora da política mundial,
relacionado a conservação da ordem entre os Estados. Eles não acreditam muito na chance da
constituição de uma harmonia entre os Estados, sobre o tema da expansão de princípios de
justiça na sociedade internacional, porque a importância prioritária é a ordem. Para eles, a
chance de colaboração, redistribuição de bens ou direitos humanos universais são ínfimas;
nesse âmbito, juntam-se aos realistas (SOUZA, 2006).
Assim, o pluralismo ou nega a existência de uma coletividade internacional12, ampla o
suficiente para abranger todos os indivíduos ou, quando acatam os sujeitos como parte dessa
coletividade, coloca-os reprimidos à ideia de moralidade do Estado (MARCONI, 2008).
Do ângulo solidarista, existe a predominância da justiça sobre a ordem. A justiça, ao
contrário de ser um simples jogo de permuta, trata os iguais da mesma forma e os desiguais
diferentemente, ostentando um caráter distributivo (VALENÇA, 2009). Em relação à
colaboração, esta não é restrita e sim extensiva. "Tal concepção se baseia no argumento
grociano da solidariedade, ou potencial de solidariedade, entre os Estados, em relação à
imposição da lei" (BULL, 1976, p. 52)
11 “Para Oppenheim sociedade internacional é composta por Estados, e apenas os Estados possuem direitos e
deveres no direito internacional. Os indivíduos, em sua opinião, podem ser considerados como objetos de direito
internacional, como quando direitos e deveres que lhes são conferidos por acordos internacionais em matéria de
imunidades diplomáticas ou extradição; mas estes são direitos e deveres no direito interno do país em causa e
não tornam os destinatários deles membro da sociedade internacional donos de seus próprios direitos. [...]. No
sistema de Grotius, no entanto, os membros da sociedade internacional não são, em última análise Estados, mas
sim pessoas físicas. A concepção de uma sociedade formada por Estados e soberanias está presente em seu
pensamento; mas a sua posição é secundária para o da comunidade universal da humanidade, e sua legitimidade
deriva a partir disso” (BULL, 1999, p. 112, tradução nossa). 12 Segundo a sociedade internacional pluralista, os procedimentos que auxiliam a manter a ordem também são
tidas como instituições pelos estudiosos da Escola Inglesa: "equilíbrio de poder, guerra limitada, as grandes
potências. São as regras de convivência que dominam a prática do Estado" (MARCONI, 2008, p, 101).
23
A compreensão de justiça, na definição solidarista de intervenção humanitária, está
intensamente relacionada a um conceito do mínimo fundamental, em relação à segurança dos
direitos a seguir descritos:
[...] direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade (à
liberação de escravidão, servidão e ocupação forçada); direito de ir e vir;
direito à integridade física; direito à liberdade de consciência; direito de não
ser torturado; direito de não sofrer genocídio; direito de não sofrer limpeza
étnica e direito à propriedade privada (WHEELER, 2000, p. 34, tradução
nossa).
Esse rol ínfimo de direitos é que torna viável proferir em justiça na situação das
intervenções humanitárias, partindo do título de que sem a consideração desses direitos
essenciais não existe justiça. Realizar intervenções humanitárias é, nesse âmbito, garantir que
esses direitos fundamentais que estão sendo transgredidos pela unidade estatal dominadora,
responsável por defendê-los; ou que não estão sendo garantidos, por motivo da falta de
habilidade ou falência do Estado, sejam assegurados (PERES, 2012).
Todas essas posições dão contribuições para nutrir ou esgotar a polêmica sobre
intervenção humanitária, alicerçadas no amparo da soberania ou da salvaguarda dos direitos
humanos nos Estados (VALENÇA, 2009).
Nessa conjuntura, a teoria pluralista da sociedade internacional (Martin Wight, Robert
Jackson, Adam Roberts, James Mayall) delibera intervenções humanitárias como violações
das normas de soberania, não-intervenção e impedimento da utilização da força. Focam seu
tema em como as normas da sociedade internacional ajustam uma resolução internacional
entre Estados que seguram conceitos distintos de justiça – "Estados, não indivíduos, são os
principais portadores de direitos e deveres no Direito Internacional" (PERES, 2012, p. 20).
Os pluralistas, seguramente, não acatam um contexto em prol de uma intervenção
humanitária, com a finalidade de restituir os direitos humanos de uma parte de sujeitos do
universo (MARCONI, 2008). Manter a ordem internacional asseguraria a ordem universal,
protegendo as pessoas: teria uma relação direta entre poupar o internacional e afiançar o
doméstico (BULL, 2002).
Para os solidaristas, os princípios da não-intervenção e da soberania estariam
subjugados aos direitos humanos: teria um acordo entre Estados para que os modelos morais
afluíssem em direção ao respeito. O incremento de mecanismos de controle dos Estados e de
como cuidam seus nacionais seria um dos destaques do amparo aos direitos humanos. Uma
24
confirmação disso é o conjugado de regras que basearia o direito internacional e a legitimação
da utilização da força para afiançar o enforcement da lei, auxiliando a conservar os valores
éticos universais: "as autoridades estatais são responsáveis pela garantia da segurança e das
vidas de seus cidadãos" (ICISS, 2001, p. 13). Deste modo, "violações maciças de direitos
humanos justificariam a ruptura do princípio da não-intervenção" (VALENÇA, 2009, p. 326).
Whereas Wheeler believes it to be the responsability of the richer and more
powerful states to take care of intolerable miseries experienced in other less
sucessful states, Jackson holds that this is the responsability of the states in
which miseries are experienced13 (SUGANAMI, 2003, p. 38).
A distintiva que delibera uma sociedade de Estados solidaristas é aquela onde os
Estados acatam não apenas uma responsabilidade moral de resguardar seus indivíduos, como
ainda uma obrigação maior como tutor dos direitos humanos em toda parte (PERES, 2012). O
fluxo solidarista crê que os Estados que abusam dos direitos humanos precisam "perder seu
direito de serem tratados como soberanos legítimos, autorizando, assim, moralmente outros
países a utilizarem da força para cessar a opressão" (WHEELER, 2000, p. 12, tradução
nossa).
O solidarismo constitui no compromisso de defender padrões mínimos de
humanidade comum, o que significa colocar as vítimas de abusos dos
direitos humanos no centro de seu projeto teórico, uma vez que está
empenhada em explorar a forma como a sociedade de estados pode se tornar
mais hospitaleira para a promoção da justiça no mundo da política. Assim,
mudar o referente, de motivações estatais, para vítimas do poder do Estado,
proporciona ênfase diferenciada sobre a importância dos motivos para julgar
as credenciais humanitárias de interventores (WHEELER, 2000, p. 38,
tradução nossa).
Os solidaristas distinguem sujeitos como possuidores de direitos e deveres no direito
internacional. Nessa esfera, a distintiva que esboça uma sociedade solidarista é aquela a qual
“Estados aceitam não só a responsabilidade moral de proteger a segurança de seu próprio
13 “Enquanto que Wheeler acredita que seja responsabilidade dos Estados mais ricos e mais poderosos cuidar das
misérias intoleráveis vividas em outros Estados menos bem-sucedidos, Jackson afirma que esta é a
responsabilidade dos Estados em que as misérias são vividas” (SUGANAMI, 2003, p. 38, tradução nossa).
25
cidadão, mas também a ampla tutela dos direitos humanos em todos os lugares”14
(WHEELER, 2002, p.12, tradução nossa).
A polêmica entre estas duas coligações é alicerçada, basicamente, em três itens: (i) até
aonde se pode levar em conta a existência da categoria de emergência complexa; (ii) tendo
esta emergência, existe o direito de interferir?; (iii) como os Estados teriam que se comportar
em uma intervenção humanitária (BELLAMY, 2003).
Conforme os pluralistas, não existe acordo sobre o que forma uma suprema
emergência complexa. Os pluralistas afirmam que as superpotências somente respondem a
crises humanitárias de forma seletiva e quando o realizam, são usualmente determinados por
interesses particulares do que por motivos humanitários (BELLAMY, 2003).
Também, para Jackson (1990), o qual se intitula um pluralista, o amparo da definição
de soberania e da regra da não-intervenção são usualmente a única justificação que os Estados
fracos têm sobre os fortes.
The grundnorm of such a political arrangement is the basic prohibition
against foreign intervention which simultaneously imposes a duty of
forbearance and confers a right of independence on all statesmen. Since
states are profoundly unequal in power the rule is obviously far more
constraining for powerful states and far more liberating for weak states15
(JACKSON, 1990, p. 6).
A corrente solidarista, de outro ângulo, assegura que a sociedade internacional vem
desenvolvendo uma compreensão fundamental do que forma uma emergência complexa. Para
Wheeler (2000, p. 34, tradução nossa):
[...] uma emergência humanitária suprema existe quando a única esperança
de salvar vidas depende de estrangeiros que vêm para o resgate. Cabe
àqueles que desejam legitimar uma intervenção armada como humanitário
[...] demonstrar, para outros governos e para a opinião pública doméstica e
internacional, que as violações dos direitos humanos no estado em questão
atingiu tal magnitude que, para parafrasear Walzer, eles chocam a
consciência da humanidade.
14 "States accept not only a moral responsibility to protect the security of their own citizen, but also the wider
one of guardianship of human rights everywhere" (WHEELER, 2002, p. 12) . 15 “A grande norma de tal arranjo político é a proibição básica contra a intervenção estrangeira que impõe
simultaneamente um dever de abstenção e confere um direito de independência para todos os estadistas. Desde
que Estados são profundamente desiguais no poder, a regra é, obviamente, muito mais restritiva para os Estados
poderosos e muito mais libertadora para os Estados fracos” (JACKSON, 1990, p. 6, tradução nossa).
26
O mesmo autor define ainda emergências humanitárias supremas como:
[...] situações extraordinárias em que civis de outro Estado se encontrem em
perigo iminente de perderem sua vida ou enfrentarem dificuldades terríveis,
e quando forças tradicionais não podem ser invocadas para acabar com essas
violações dos direitos humanos (WHEELLER, 2000, p. 50, tradução nossa).
Segundo Walzer (1978), uma emergência humanitária suprema aparece na situação de
o perigo ser tão notável, o modo da ameaça tão assombroso, e quando não existe alternativa
para garantir a sobrevivência de certa sociedade moral do que infringir a norma contra dirigir
ataque ao alvo civil. Para Walzer (1978), os dirigentes estatais se entendem como acareados
com estes casos somente em episódios incomuns. Quando o realizam, contudo, são
confrontados com a opção extrema entre as definições realistas e solidaristas de
responsabilidade moral na política.
A outra questão de polêmica entre as duas correntes é referente ao direito de intervir.
A contestação se reúne no problema da precisão de o Estado, suspeito de cometer
transgressões de direitos humanos, oferecer concordância para que a intervenção seja feita. Os
pluralistas creem que o consentimento sempre precisa ser oferecido para que a ordem seja
conservada; e, os solidaristas explicam que, em situações massivas de sofrimento do
indivíduo, tem que existir exceção no princípio do consentimento (BELLAMY, 2003).
Os componentes da sociedade internacional se veem, deste modo, numa indecisão
entre intervir em temas internos de uma nação e acusações de indiferença moral perante o
sofrimento humano, se não o fizerem. "Fazer algo para resgatar os não-cidadãos que
enfrentam o extremo é susceptível de provocar a acusação de ingerência nos assuntos internos
de outro Estado, enquanto que a inação pode levar a acusações de indiferença moral"16
(WHEELER, 2000, p.1, tradução nossa).
No ano de 2001, o relatório da ICISS17 citou que esta discussão entre pluralistas e
solidaristas sobre o direito de intervir é em vão. São indicados três motivos para a conclusão:
[...] it emphasised the claims of potential intervening states rather than the
urgent requirements of those individuals and groups in need of protection.
Second, by focusing on intervention it did not adequately highlight the need
16 "Doing something to rescue non-citizens facing the extreme is likely to provoke the charge of interference in
the internal affairs of another state, while 'doing nothing' can lead to accusations of moral indifference"
(WHEELER, 2000, p. 1). 17 International Commission on Intervention and State Sovereignty.
27
for ‘’right to intervene’’ preventive efforts and post-conflict rebuilding.
Finally, the language used in the "right to intervene" debate "does effectively
operate to trump sovereignty with intervention at the outset of the debate"18
(ICISS, 2001, p. 16).
O relatório ainda sugere que a definição "direito de intervir" seja trocada por
"responsabilidade de proteger", a qual abarca o problema do entendimento de quem
verdadeiramente necessita de auxílio. Maiores detalhes sobre a responsabilidade de proteger
serão discutidos no próximo capítulo.
Com relação à terceira questão assinalada por Bellamy, este explica que as atitudes
dos Estados são incoerentes, dizendo:
[...] the problem is that there is considerable overlap between the two
conceptions. States that claim a right to intervene in particular cases and
advance humanitarian arguments to legitimize their actions do not
necessarily believe that this right should be conferred universally.
Futhermore, a state may advance solidarist arguments in one situation (India
in East Pakistan19; Britain in Kosovo20) and pluralist arguments in another
(India in Kosovo21)22 (BELLAMY, 2003, p. 8).
Certos estudiosos23, críticos da Escola Inglesa, ultimam que "é na questão sobre
intervenção humanitária que a espinha dorsal da Escola Inglesa, como ela é apresentada
atualmente, se partirá, se é que já não foi partida" (SOUZA, 2006, p. 53).
18 “[...] Isso enfatiza as reivindicações dos potenciais Estados interventores em vez das necessidades urgentes dos
indivíduos e grupos que necessitam de proteção. Em segundo lugar, focando na intervenção não destaca-se
adequadamente a necessidade dos esforços preventivos de direito de intervir e na reconstrução pós-conflito.
Finalmente, a linguagem usada no debate do direito de intervir, efetivamente opera para o triunfo da soberania
com a intervenção no início do debate” (ICISS de 2001, p.16, tradução nossa.). 19 “Quando o governo indiano interveio no Paquistão Oriental (Bangladesh) para pôr fim às atrocidades
paquistanesas contra o povo Begali ele agiu sem autorização da ONU. O governo argumentou que, em tais casos
extremos de abuso de direitos humanos o Estado perde seus direitos soberanos” (BELLAMY, 2003, p. 8,
tradução nossa). 20 “A OTAN alegou que tinha um dever e direito de acabar com a matança em massa e limpeza étnica de
albaneses no Kosovo” (BELLAMY, 2003, p. 8, tradução nossa). 21 “O governo indiano alegou que a OTAN estava agindo como se fosse acima da lei e que aqueles que tomaram
a lei em suas próprias mãos nunca colaboraram para melhorara a paz cívica” (BELLAMY, 2003, p. 8, tradução
nossa). 22 “[...] O problema é que há uma sobreposição considerável entre as duas concepções. Estados que reivindicam
o direito de intervir em casos particulares e utilizam argumentos humanitários para legitimar suas ações não
necessariamente acreditam que este direito deve ser conferido universalmente. Além do mais, o Estado pode
utilizar argumentos solidaristas em uma situação (Índia no Paquistão Oriental; Grã-Bretanha no Kosovo) e os
argumentos pluralistas em outro (Índia no Kosovo)” (BELLAMY, 2003, p. 8, tradução nossa). 23 Entre eles Ian Hall, Duncan Bell e Roy Jones.
28
Mas, segundo percebeu Jackson (1990), não representa uma discussão entre os que
estão preocupados com as questões de direitos humanos e os que não estão, mas sim uma
discussão sobre os valores da sociedade internacional. Tem-se que deixar aparecer o debate
sobre essa tensão que se localiza no cerne da política internacional do pós-Guerra Fria. Um
conflito que a Escola Inglesa não deseja ignorar (SOUZA, 2006).
1.3 TEORIA SOLIDARISTA COMO LEGITIMADORA DAS INTERVENÇÕES
HUMANITÁRIAS
A explicação em relação à legitimidade das intervenções humanitárias vem a ser
levada em conta na nova conjuntura da década de 90, e essa suposição aparece e é bem
debatida na dissertação de Nicholas Wheeler, Saving Strangers, de 2000. O núcleo da
explicação legal, debatida pelos Estados no CSNU, em relação à utilização da força,
executada por nações em situações reais de intervenção, foi "se estas transgrediram o artigo 2°
da CNU, no qual se impede a ameaça ou a utilização da força contra a integridade territorial
ou a independência política de todos os Estados" (PERES, 2012).
Na época da Guerra Fria, o Conselho de Segurança das Nações Unidas se achava
travado, por motivo da desordem entre as duas grandes forças do sistema internacional,
Estados Unidos e União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas. Por este motivo, a polêmica
abarcando a legalidade das intervenções com fins humanitárias não era levada em conta, os
Estados explicavam suas intervenções com o princípio de legítima defesa.
[...] it then focuses on the post-war situation in Iraq, which led to the passing
of UN Security Council Resolution 688 on 5 April 1991. The key legal issue
in relation to India's, Vietnam's, and Tanzania's use of force focused on
whether their interventions breached Article 2 (4), but debate shifted in the
1990s to the question of whether the Security Council can legitimately
intervene inside state borders, given the prohibition against intervention by
UN organs under Article 2 (7).The only exception to this is Security Council
enforcement action under Chapter VII of the Charter, but this requires a
finding that there is a 'threat to the peace, breach of the peace, or act of
aggression [that threatens] international peace and security'24 (WHEELER,
2000, p. 15).
24 “Em seguida, concentra-se na situação do pós-guerra no Iraque, o que levou à aprovação do Conselho de
Segurança da ONU a Resolução 688, em 5 de Abril de 1991. A questão jurídica essencial em relação à Índia,
Vietnã e Tanzânia em relação ao uso da força era focado em saber se suas intervenções violariam o artigo 2 (4),
mas o debate mudou na década de 1990 para a questão de saber se o Conselho de Segurança poderia
legitimamente intervir dentro das fronteiras estatais, dada a proibição contra a intervenção por órgãos das Nações
Unidas ao abrigo do artigo 2 (7). A única exceção a isso é a ação do Conselho de Segurança ao abrigo do
29
Então, a transformação que aconteceu nos anos 90 deriva do fato de que o Conselho de
Segurança das Nações Unidas veio a ponderar violações de direitos humanos nas fronteiras de
um Estado, como ameaça à paz e a segurança internacional.
"A intervenção seria possível quando capaz de eliminar a ameaça e restaurar a
proteção aos direitos humanos, seja pelo uso da força ou não" (WHEELER, 2000, p. 37),
agenciando uma ressalva legal ao princípio de não-intervenção. O pensamento de que o
direito de sobrevivência recíproco dos Estados seria o singular valor dividido na sociedade
internacional ruiria, "uma vez que os Estados não têm agido fundamentados exclusivamente
em seus interesses vitais, ao aprovar intervenções nas últimas duas décadas baseadas em um
ideal de humanitarismo" (WHEELER, 2000, p. 297). Este seria respaldado pelos valores da
sociedade internacional.
Decretam-se, a partir daí, discernimentos para dar legitimidade a uma intervenção
humanitária, ainda que ela não tenha sido aprovada pelo CSNU. Segundo Wheeler (2000,
p. 33, tradução nossa), "que as intervenções têm de satisfazer certos testes para contar como
humanitária. Este é um requisito mínimo, e, uma vez que estes forem cumpridos, há critérios
adicionais que colaboram para aumentar a legitimidade de uma determinada ação"25.
Os requisitos básicos são:
1) emergência humanitária suprema; 2) requisito da necessidade, isto é, o
uso da força deve ser o último recurso; 3) requisito da proporcionalidade, ou
seja, o uso da força deve ser proporcional ao dano humanitário que se
pretende prevenir ou cessar; e 4) deve haver uma probabilidade alta de que
haja resultado humanitário positivo (WHEELER, 2000, p. 33).
O critério inicial foi bem versado no tópico anterior, porém, Wheeler (2000, p. 34,
tradução nossa) este destaca que há uma emergência humanitária suprema quando “a única
esperança de salvar vidas depende da ajuda externa”26. Conferido com as emergências
humanitárias supremas, as lideranças precisam ficar aparelhadas para arriscar a sobrevivência
de seus soldados por motivos humanitários, explicar suas atitudes em marcos humanitários,
Capítulo VII da Carta, mas isso requer a conclusão de que há uma ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de
agressão [que ameaça] a paz e a segurança internacional” (WHEELER, 2000, p. 15, tradução nossa). 25 "That interventions have to satisfy certain tests to count as humanitarian. This is a minimum requirement, and,
once this threshold has been crossed, there are additional criteria that if met correspondingly increase the
legitimacy of a particular action" (WHEELER, 2000, p. 33). 26 "The only hope of saving lives depends on outsiders coming to the rescue" (WHEELER, 2000, p.34)
30
trabalhar para assegurar a autorização do Conselho de Segurança e lidar com situações
análogas de maneira parecida.
O outro requisito, de acordo Wheeler (2000), encontra-se absolutamente relacionado
com a aliança do imperativo moral de uma atitude veloz, com a utilização da força como
recurso derradeiro, segundo o princípio da Guerra Justa27.
Delibera-se esse critério de precisão como uma condição onde coisa nenhuma, além
do uso da força, bastasse para interromper as violações dos direitos humanos em tema
(RODLEY apud WHEELER, 2000). O requisito da necessidade solicita o esgotamento dos
meios pacíficos ao caso, de forma que a dita intervenção só seria acatada nos episódios onde
se confirme que a demora na resposta possa provocar perdas irreparáveis (PERES, 2012).
Há uma linha imperceptível entre esperar esgotar modos pacíficos e a utilização da
força. Nas palavras de Wheeler (2000, p. 34, tradução nossa), "os governos não precisam
esperar até que milhares de pessoas morram antes de agir".
É pesado exigir dos políticos e diplomatas que esgotem todos os recursos
pacíficos; o que é realmente necessário é que eles estejam confiantes de que
exploraram todos os caminhos que são susceptíveis de sucesso em cessar a
violência. Se houver dúvida sobre este ponto, os líderes estatais são
moralmente obrigados a prosseguir seus fins humanitários por meios não
violentos. Enquanto o uso da força pode gerar boas consequências, estas
também podem ser prejudiciais (WHEELER, 2000. p. 35, tradução nossa).
O terceiro requisito indicado diz respeito a critérios de proporcionalidade28. O
princípio da proporcionalidade solicita a compatibilidade entre a gravidade e o alcance das
transgressões que estão acontecendo com um cálculo razoável de perda de vidas, destruição
de propriedade e dispêndio de recursos (RODLEY apud WHEELER, 2000).
[...] the requirement that the level of force employed not exceed the harm
that it is designed to prevent or stop raises the fundamental question as to
whether violent means can ever serve humanitarian purposes or whether the
27 Esse princípio é oriundo da obra de Hugo Grotius, O Direito da Guerra e da Paz, de 1625. O autor descreve
que a defesa de "outros" calcula a existência de uma causa justa e validade notória por todos. Essa defesa tem
que existir sempre que tenha prévia estipulação em um tratado. Porém, para Grócio, a utilização da força através
de uma Guerra Justa "abarca não só a defesa de povos amigos com os quais haja um determinado vínculo formal,
mas também outros povos que não estejam abrigados por um acordo internacional, mas que pela linha da
amizade se tem a obrigação de proteger" (GROTIUS apud RIBEIRO, 2013, p. 19). 28 Precisa-se considerar "a questão dos métodos e meios de combate a serem observados em tais intervenções; a
linha tênue entre alvos civis e alvos militares legítimos; entre outros" (PERES, 2012, p. 38).
31
oxymoron of 'humanitarian war' hides a tragic contradiction29 (BOOTH;
FALK apud WHEELER, 2000, p. 35).
O último requisito mostrado por Wheeler (2000, p. 36) "requer um resultado
humanitário positivo, baseado em dois parâmetros; um de curto, outro de longo prazo". O
primeiro diz respeito ao êxito da intervenção para cessar a emergência humanitária suprema,
reporta-se ao resgate. E, o segundo limita como a intervenção combate os motivos dos abusos
de direitos humanos.
Wheeler acata a explicação indicada pelo jurista argentino Fernando Téson de que "um
resultado humanitário positivo é caracterizado se a intervenção resgatou as vítimas da
opressão, e se os direitos humanos foram posteriormente reestabelecidos” (TÉSON apud
WHEELER, 2000, p. 37, tradução nossa)30.
Ainda, são constituídos critérios suplementares que, quando presentes, avigorariam a
validade de uma intervenção humanitária. O primeiro deles diz respeito à justificativa da
intervenção em marcos humanitários. Se os motivos por trás da intervenção humanitária são
incombináveis com um resultado humanitário positivo, a intervenção deixa de ser
humanitária. Mas, mesmo se a intervenção é motivada por causas não humanitárias, "esta
pode ser considerada como tal se os seus reais motivos e meios utilizados para intervir não
prejudicarem um resultado humanitário positivo" (WHELER, 2000, p. 38).
Outro critério adicional de legitimidade da intervenção se reporta à chance de que a
justificativa e a motivação sejam correlativos em sua matriz humanitária e, também, ao
reconhecimento dos líderes dos Estados, em respeito à responsabilidade moral destes em
proteger os direitos humanos, onde quer que estejam sendo transgredidos, sem exceções de
nacionalidade. Esta é uma ideia solidarista, na qual a “premissa-chave do solidarismo é que os
governos são responsáveis não apenas em proteger os direitos humanos dentro de suas
fronteiras, mas também são em defendê-los no exterior” (WHEELER, 2000, p. 39). Para o
29 “[...] A exigência de que o nível de força empregue não exceda os danos que é designado para prevenir ou
parar, levanta a questão fundamental de saber se meios violentos jamais poderão servir para fins humanitários ou
se o paradoxo da guerra humanitária esconde um trágica contradição” (BOOTH; FALK apud WHEELER, 2000,
p 35, tradução nossa). 30 Mesmo que admita que concorde com Teson, Wheeler explica que alteraria a palavra restored no conceito do
autor. Isso porque, nesses termos tende a aludir que os direitos humanos eram respeitados antes da crise para
serem reestabelecidos. Assim, Wheeler (2000, p. 37) "propõe substituir a palavra restored para protected, para
que a noção de que foi devolvida a proteção daqueles direitos humanos básicos sem os quais não se pode gozar
dos outros direitos, como o direito à vida, é a mais indicada".
32
autor, a responsabilidade do Estado insere dispor seu efetivo militar (e seus cidadãos) em
risco para salvar vítimas de violações sistemáticas e massivas de direitos humanos.
Nicholas Wheeler pondera a precisão da procura por legitimação da ação almejada
como um dos itens mais significativos e que os Estados, ao arriscarem justificar suas atitudes,
usam muitas estratégias discursivas que, de uma maneira ou de outra, os afetam com o teor da
retórica. Assim, mesmo que os motivos humanitários não tenham primazia, os Estados estarão
obrigados a atuar de modo que os resultados de sua atitude estejam em conformidade com os
valores expressados, o que pode impedir que ajam em casos em que seu comportamento não
possa ser legitimado (SOUZA, 2006).
Em razão dessa grande discussão, envolvendo a legitimidade das intervenções
humanitárias, do princípio da soberania, da não-intervenção, do não-uso da força, de um
ângulo, e da transgressão de direitos humanos, atentado a vida, crise de refugiados, do outro, a
dúvida entre "fazer alguma coisa" e ser incriminado por interferir na política doméstica de
uma nação e "não fazer nada" e ser acusado de indiferença moral, fez com que os líderes do
mundo todo criassem um princípio que, na expectativa deles, terminasse de vez com a
problemática. Nessa esfera, foi criado o princípio da Responsabilidade de Proteger.
A R2P vem tentar explicar os muitos dilemas encarados nas operações de paz, desde a
Guerra Fria, as quais não podiam utilizar a força para o amparo de civis e eram basicamente
de âmbito observador, passando pelas operações de paz multidimensionais no contexto do
pós-Guerra Fria, as quais apreendiam um desígnio mais abarcante, passando a agir na
promoção dos direitos humanos, em conflitos étnicos e religiosos, cuidando da reconstrução
de países em conflito e resguardando civis, até as operações de imposição da paz, nas quais
pode-se usar a força, e na situação da intervenção na Líbia, de todos os meios necessários,
para cessar o abuso dos direitos humanos.
As diretrizes da Responsabilidade de Proteger são fundamentalmente as mesmas
atingidas por Wheeler e pelos solidaristas para validar as intervenções humanitárias, o que
leva a acreditar que é época de focalizar no sujeito, notando que este não pode mais ficar a
mercê de sua própria sorte.
2 SISTEMA ONU E A APLICAÇÃO DO CAP 6 E 7 PARA JUSTIFICAR A
INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA
33
2.1 INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA E OPERAÇÕES DE PAZ: APROXIMAÇÕES E
DISTINÇÕES A PARTIR DO SISTEMA ONU
Na área das relações internacionais, a polêmica em relação às intervenções
humanitárias tem originado calorosas discussões, entre teóricos e seus praticantes, na década
de 1990 e começo dos anos 2000 (WELSH, 2004). No cerne dessa polêmica se acha o
declarado conflito entre os princípios do Estado soberano – uma das colunas definidoras do
sistema das Nações Unidas31 e do direito internacional – e as emergentes regras internacionais
relacionadas aos direitos humanos e à utilização da força (PERES, 2012).
A fim de compreender a dificuldade das intervenções humanitárias e por que elas
põem um problema na ordem universal, é necessário avaliar a Carta das Nações Unidas –
CNU (PERES, 2012). Com a finalidade de "preservar as gerações vindouras do flagelo da
guerra" (Preâmbulo da CNU), a sociedade internacional, através das Nações Unidas, no art. 2°
afirma que "todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o
uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado" e
no artigo 2° determina que "nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações
Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer
Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução" (BRASIL,
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
A Carta, entretanto, ainda decreta duas32 exceções a utilização da força. A primeira,
conforme o artigo 51, reporta-se ao "direito inerente de legítima defesa individual ou
coletiva"; e a segunda alude às ações grupais de imposição da força (Capítulo VII33), porém
apenas em situações em que o Conselho de Segurança identifica certa atitude como no caso de
ameaça à paz e à segurança internacional (artigo 39).
31 No ano de 1945, as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial se uniram e criaram a Organização das
Nações Unidas (ONU), uma organização internacional multilateral que reuniu as potências universais para
assegurar a paz e a segurança internacional. No ano de 1948, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, contendo "direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais do homem, direcionando a atenção
do mundo para dar prioridade ao ser humano, sendo ela um ideal comum a atingir todos os povos e nações"
(JUNIOR, 2011, p. 26). 32 Tinha uma terceira exceção que mencionavaos Estados Inimigos, as potências do eixo Japão imperial,
Alemanha nazista e Itália fascista. Mas, com a posterior incorporação desses Estados como componentes da
ONU, a terceira opção é vista como antiquada. 33 As decisões deliberadas sob os auspícios do capitulo VII são decisões impositivas e não solicitam o
consentimento das partes às quais elas se aplicam (PATRIOTA, 1998). O espectro dessas penalidades coercitivas
pode mudar desde medidas suaves de isolamento diplomático (artigo 41) até interferências militares de alta
escala (artigo 42 da Carta da ONU).
34
O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à
paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que
medidas deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de
manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais (Artigo 39, Carta
das Nações Unidas, 1945).
Um dos elementos de enorme debate entre estudiosos é que a Carta das Nações Unidas
também determina, em sua introdução e em seu primeiro artigo, a "promover e estimular o
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos". Todavia, a Carta não
faz menção se a violação de direitos humanos seria considerada uma ameaça a paz e como
princípio do não uso da força e da não-intervenção seriam regulados34 nesse âmbito.
A indagação que se estabelece, assim sendo, é, conforme Peres (2012, p. 44), "o que
deve ser feito quando ocorrem violações sistemáticas e massivas de direitos humanos em um
Estado soberano? Ou pior, se o próprio Estado for o perpetrador das atrocidades?"
Para responder a essas perguntas e as demandas que surgiam em épocas de Guerra
Fria35, a ONU36 veio a autorizar um rol de missões com a finalidade de precaver conflitos
entre Estados ou estabilizar os já em andamento, por meio do uso de forças multinacionais
formadas por civis e militares (BIGATÃO, 2009).
As operações de paz apareceram, então, como um comedimento contingencial, para
contornar os problemas de se exercer o sistema de segurança coletiva, calculado nos artigos
da Carta de São Francisco, sobretudo por motivo da ausência de consenso entre os cinco
membros permanentes do Conselho de Segurança37 durante a Guerra Fria (BIGATÃO, 2009).
Alocaram-se como uma opção às soluções de conflitos, as quais foram calculadas no capítulo
34 Em referência à segurança coletiva, o CSNU é imponderado pelas provisões do Capítulo VII da Carta, ao
autorizar a utilização da força para conservar a segurança e a paz internacionais; todavia, "há ainda consideráveis
controvérsias acerca do quanto tais provisões permitem ao Conselho autorizar a intervenção com o propósito de
conter emergências humanitárias dentro de fronteiras nacionais" (PERES, 2012, p. 24). 35 "Vivia-se um momento de grande divisão entre os membros permanentes do CSNU, os quais, por intermédio
do veto (artigo 27, §3º da Carta), refletiam suas dissensões em virtude da Guerra Fria, paralisando as decisões
daquele colegiado" (COLARES, 2010, p.132). 36 A Liga das Nações, ainda nos 1920 e 1930, já empreendia atitudes, mesmo que sem denominação específica,
direcionadas à conservação da paz e prevenção de rixas. Nessas eram enviados observadores ou forças militares
para zelar pela ordem, gerir territórios em conflito e monitorar cessar-fogos (BIGATÃO, 2009). 37 O CSNU, no contexto institucional vigente, é o órgão competente para indicar o genocídio como ameaça à paz
e segurança internacionais, o que viabiliza o uso de todas as medidas precisas para contê-lo sob o escopo do
Capítulo VII da Carta. "Ocorre que este é um processo eminentemente político e, em última instância, a cargo
dos interesses das cinco nações com assento permanente e detentoras do veto no Conselho" (PERES, 2012,
p.17).
35
VI (não-coercitivas) e VII (coercitivas) da Carta da ONU. As Missões de Paz38 são missões de
atitude militar, porém que não agem como utensílio coercitivo e atentatório ao poder de um
Estado. Por esse motivo, acham-se excluídas do escopo do capítulo VII da Carta da ONU
(COLARES, 2010).
Conforme Dag Hammarskjöld, ex-secretário geral da ONU e idealizador das Missões
de Paz, situou-as em um imaginário “capítulo VI e meio” entre o das medidas não-coercitivas
(negociação, mediação, arbitragem e procedimentos judiciais) e o das medidas coercitivas
(atentatórias à soberania).
2.1.1 No Contexto da Guerra Fria: Operações de Manutenção da Paz Tradicionais
Mesmo com a Segunda Guerra Mundial e a superficial união entre as nações, em favor
da paz e do indivíduo, pouco depois do fim dos conflitos, começou uma fase de tensão entre
as maiores potências daquele período: Estados Unidos da América (EUA) e União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). "O mundo ficou dividido pela porção capitalista,
representada pelo primeiro, e a comunista, encabeçada pela URSS" (JUNIOR, 2011, p. 27).
As intervenções de manutenção da paz desse tempo tinham peculiaridades
fundamentalmente militares. As missões de paz versavam no despacho de observantes
militares e tropas discretamente armadas, com a função de perceber e supervisionar pactos de
cessar-fogo, avigorar a confiança entre as partes do conflito, conservar a ordem e criar buffer
zones"39 (FAGANELLO, 2013).
Mesmo que não calculadas na Carta da ONU40, "as operações de manutenção da paz
tomaram vida a partir de 1948" (FAGANELLO, 2013, p. 58). Conforme Patriota (1998,
p. 28), "pode-se identificar alguns casos de imposição de medidas coercitivas pelo CSNU
durante a Guerra Fria": duas situações de intervenção (Coréia e Congo) e duas de medida
repressiva (África do Sul e Rodésia do Sul). O CSNU ainda tentaria conferir a interrupção de
hostilidades no Oriente Médio e no conflito Irã-Iraque, através de resoluções que se regeriam
ao Capítulo VII.
38Neste trabalho, missões de paz e operações de paz são considerados sinônimos. 39 Delimitações no território que separam as partes em conflito (UNITED NATIONS, 2008a, p. 21). 40 Fora da ONU, aconteceu o desenvolvimento de sistemas não universais de segurança, que se formaram em
volta das superpotências que dominariam o panorama internacional até o aniquilamento da URSS. "Esses
constituíram foram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), criada em 4 de abril de 1949, e o
Pacto de Varsóvia, de 14 de maio de 1955" (COLARES, 2010, p. 133).
36
O tema da Coréia41 foi um divisor de águas42 na história política do pós-guerra e na
história das Nações Unidas, porque tanto determinou o antecedente de modalidade de
intervenção coercitiva, não idealizada pelos criadores da Carta, alicerçada na mobilização de
"coalizões ad hoc" aprovadas pelo CSNU, como conduziu à adoção do processo43 que
terminou por dar maior valor à competência residual da AGNU, na área da conservação da
paz e da segurança internacionais (FONTOURA, 1999).
No ano de 1961, no Congo, a ONUC44 extrapolaria visivelmente o limite conceitual do
Capítulo VI para enveredar pelo do Capítulo VII. Com o acatamento da Resolução 16145, de
21 de fevereiro daquele ano (por 9 votos a favor e a abstenção da URSS e da França), o
Conselho permitiria pela primeira vez a utilização da força por uma operação de paz
(PATRIOTA, 1998).
Além disso, conforme Patriota (1998), o CSNU liderou também o emprego de
medidas repressivas mandatórias contra os regimes de minoria branca na Rodésia do Sul46 e
da África do Sul47. Além de terem sido as primeiras penalidades consagradas pelo CSNU,
41 A invasão da Coréia do Sul pela Coréia do Norte foi avaliada, pelo Conselho de Segurança, como uma ruptura
da paz. Nesta situação, a não participação da União Soviética na votação das resoluções concernentes ao
episódio, permitiu a autorização, com alicerce no Cap. VII, da Carta da ONU, "do emprego de uma força
internacional unificada, sob o comando dos Estados Unidos, em assistência à Coréia invadida, para o
restabelecimento da paz e da segurança na região" (MELO, 2006, p. 57) 42 A Resolução “Unidos para a Paz” teve enorme importância para as operações de conservação da paz, porque
foi com embasamento nela que a Assembléia Geral formou a I Força de Emergência das Nações Unidas, em
1956, depois dos vetos de França e Reino Unido no CSNU. Também, a Resolução foi usada para validar o
caminho das ações da Operação de Paz das Nações Unidas no Congo em 1960, quando o veto soviético
impossibilitou o acatamento de decisões sobre o tema no CSNU (FONTOURA, 1999). 43 Essa ação consta da parte A da Resolução 377(V), de 3/11/50, que reforçou a chamada competência residual
da AGNU, em termos de paz e segurança. Por ela se assegura que, quando o Conselho se encontrar
impossibilitado, pelo veto, de se obrigar a suas responsabilidades com respeito à manutenção da paz e da
segurança internacionais, a AGNU ostentará essas obrigações, podendo ser chamada em Sessão Especial de
Emergência, na qual estará apta a realizar recomendações aos Estados-membros em relação à aceitação de
medidas coletivas, até mesmo no que diz respeito à utilização da força em situações de “ruptura da paz” e “ato de
agressão”, deixando-se de lado os casos de “ameaça à paz”. (FONTOURA, 1999). 44 "A operação de manutenção da paz no Congo (United Nations Operation in Congo – ONUC), foi a primeira
missão de paz de larga escala – cerca de 20 mil militares foram empregados – autorizada pelas Nações Unidas"
(FAGANELLO, 2013, p. 60). 45 Já, a resolução 169, de novembro de 1961 (abstenções da França e Reino Unido), autorizaria, finalmente, ação
vigorosa, "incluindo a utilização da medida de força necessária" para o alcance de um rol de objetivos, "entre os
quais a deportação dos mercenários a serviço do líder Moise Tshombé da província secessionista de Katanga"
(PATRIOTA, 1998, p. 31). 46 O tema da Rodésia do Sul foi levado ao CSNU por um grupo de países africanos, alguns meses antes da
declaração unilateral de independência de Ian Smith, que foi condenada e tida como ilegal pela Resolução 216,
de 12 de novembro de 1965 (abstenção da França). "Em 1965, o Reino Unido e mais 28 Estados membros
aplicaram sanções à Rodésia do Sul, com base na resolução 217, que recomendava o isolamento do regime de
Ian Smith sem chegar a sancioná-lo de forma impositiva" (PATRIOTA, 1998, p. 32). 47 Mesmo com a imposição do sistema do "apartheid", na África do Sul em 1948, o CSNU só atuou sob o
Capítulo VII a partir de 1977, quando foi deliberada a imposição de um embargo à venda de armas e de material
militar aos sul-africanos. Embora a motivação óbvia da medida, impulsionada pela África negra, fosse o repúdio
37
esses episódios também seriam as primeiras instâncias de invocação pelo CSNU do Capítulo
VII, em relação a temas passíveis de serem analisadas como de jurisdição interna.
Outros dois episódios de ordem de interrupção das hostilidades pelo CSNU, conforme
o Capítulo VII da Carta, seriam o comando de cessar fogo entre Israel e árabes palestinos,
com a formação da United Nations Truce Supervision Organization (UNTSO)48, através da
qual foram mandados observadores militares desarmados para a comarca, com o mandato de
controlar a trégua firmado entre Israel e seus confinantes árabes (UNITED NATIONS, 2011).
O segundo episódio seria, para Patriota (1998) a Resolução 598, de 20 de julho de 1987, que
conferiu um cessar-fogo imediato no combate entre o Irã e o Iraque (aceita por consenso), foi
idealizada com alicerce nos artigos 39 e 40 do Capítulo VII, versados em seu último parágrafo
preambular.
Pode-se, também, citar a primeira operação de manutenção da paz armada cometida
pelas Nações Unidas, que foi a United Nations EmergencyForce I (UNEF I)49, desdobrada
com êxito, no ano de 1956, para tratar do conflito de Suez50. A Organização das Nações
Unidas decretou, ainda, incumbências de pouca duração na República Dominicana (Mission
of the Representative of the Secretary-General in the Dominican Republic – DOMREP), no
Oeste da Nova Guine (UN Security Force in West New Guinea – UNSF) e no Yemen (UN
Yemen Observation Mission – UNYOM), e também foi liberado o desdobramento de missões
de paz de grande permanência no Chipre (UN Peacekeeping Force in Cyprus – UNFICYP),
no Oriente Médio (UN Emergency Force II – UNEF II) e no Líbano (UN Interim Force in
Lebanon – UNIFIL) (UNITED NATIONS, 2011).
internacional ao racismo, a explicação oficial para a medida do embargo foi o medo de que o caso na África do
Sul acabasse em conflito armado (PATRIOTA, 1998). 48 A resolução 54 de 15 de julho de 1948 (voto contrário da Síria, abstenções de Argentina, Ucrânia e União
Soviética), decretou a existência de ameaça à paz no âmbito determinado pelo Artigo 39, quando irrompeu o
primeiro conflito entre árabes e judeus, abarcando o Egito, a Jordânia, o Líbano e a Síria e o recém-criado Estado
de Israel. O não cumprimento dos temos da trégua levaria à consideração pelo Conselho de Segurança de "novas
medidas ao abrigo do Capítulo VII da Carta", porém sua supervisão foi dada a um grupo de observadores sob o
Capítulo VI que se mudaria na Organização para a Supervisão da Trégua (UNTSO), criada em 1949
(PATRIOTA, 1998). 49 A importância de Suez se consubstancia na experiência alcançada com a UNEF I, responsável por fazer com
que as Nações Unidas viessem a agir sob o manto de "três princípios: consentimento, imparcialidade e uso
mínimo da forca (legitima defesa), conhecidos como os princípios básicos das operações de manutenção da paz"
(FAGANELLO, 2013, p. 60). 50 "O estopim da crise foi a nacionalização do Canal de Suez pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, em
julho de 1956, sob fortes protestos dos franceses e britânicos, os quais construíram o canal no século XIX e se
beneficiavam das rotas de comércio" (BIGATÃO, 2009 , p. 38). "A operação ficou incumbida de monitorar o
cessar-fogo e supervisionar a retirada das forcas estrangeiras" (FAGANELLO, 2013, p. 60).
38
Do conhecimento alcançado durante os 40 anos que separam a criação da ONU do
final da Guerra Fria, considerou-se que o consentimento51 da nação anfitriã, cedido por
governos legítimos, era essencial para o êxito da missão de paz, porque a inserção de tropas
estrangeiras no território de um Estado conforma um caso de irregularidade, por princípio não
aceito por seus habitantes, além de balizar a soberania do país. Concluiu-se, ainda, que a
utilização da força precisaria ser limitada à autodefesa das tropas e a imparcialidade teria que
ser um dogma a ser adotado (FONTOURA, 1999, p. 68).
[...] international involvement by the UN in regional or civil conflicts during
the Cold War was carefully adjusted to the principle of consent.
Peacekeeping almost always operated with the full agreement of the
quarrelling parties which was the only basis on which the permanent
members of the Security Council could agree to sanction such operations52
(JACKSON, 1993, p. 587).
É preciso realçar a natureza ad hoc deste novo mecanismo, em razão de que nada
existe na Carta da ONU com relação às operações de manutenção de paz. Estas, de um
ângulo, distinguem-se dos atos de imposição da paz, na conjuntura da segurança coletiva,
porque além de solicitarem a concordância dos estados abrangidos para a sua determinação,
não possuíam como finalidade afrontar um Estado atacante. Tratava-se de forças de
intercessão entre partes contrárias, com o desígnio de conservar um cessar-fogo, criando,
deste modo, condições precisas para que as mesmas conseguissem um pacto para finalizar a
disputa. De outro ângulo, também não se encaixavam nos utensílios de resolução pacífica de
disputas calculadas no Cap. VI da Carta da ONU, "uma vez que, de fato, consistem numa
força basicamente militar, ainda que apenas levemente armada" (MELO, 2006, p. 62).
O término da Guerra Fria abarcou duas significativas implicações para o exercício da
intervenção. Primeiro, e mais respeitável, ele conduziu os velhos atores principais para uma
relação de colaboração (ou no mínimo o auxílio potencial) em diversos pontos, onde
51 “O terreno normativo comum para intervenções no Terceiro Mundo era solicitação pelo Estado-alvo: as
intervenções contratadas por governos soberanos não poderiam ser condenadas, embora aquelas a convite de
rebeldes anti-governo certamente poderiam ser. Nesta base, a França interveio repetidamente em suas antigas
colônias africanas, a União Soviética interveio na Etiópia e Angola, e os Estados Unidos intervieram no Líbano,
na República Dominicana e no Vietnã do Sul” (JACKSON, 1993, p. 586, tradução nossa). 52 “[...] o envolvimento internacional da ONU em conflitos regionais ou civis durante a Guerra Fria foi
cuidadosamente ajustado para o princípio do consentimento. As operações de manutenção da paz quase sempre
operaram com o pleno acordo das partes em disputa, que era a única base sobre a qual os membros permanentes
do Conselho de Segurança poderiam concordar para sancionar tais operações” (JACKSON, 1993, p. 587,
tradução nossa).
39
antecipadamente tal ato tinha sido frustrado por sua rivalidade que não acabava. Foi viável
motivar um singular desejo internacional que foi revelado na cooperação dos membros
permanentes do Conselho de Segurança. E, em segundo plano, a extinção da rivalidade das
superpotências colocou um final à alternativa de não-alinhamento e pode ter danificado a
eficiência do consentimento (JACKSON, 1993).
2.1.2 No Contexto do Pós-Guerra Fria: Operações de Manutenção da Paz
Multidimensionais
Depois da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, o Conselho de Segurança
readquiriu seu valor como o fundamental órgão responsável pela conservação da paz e
garantia internacionais das Nações Unidas e as operações de manutenção da paz receberam
volume. O desmantelamento da URSS e o decorrente privilégio de somente uma visão de
mundo possibilitaram o desbloqueio da habilidade decisória do CSNU e a alternativa das
operações de paz como utensílio central para a manutenção da paz e segurança internacionais,
e, ainda, para a proteção dos direitos humanos (FAGANELLO, 2013).
A propagação53 das operações de manutenção da paz aconteceu concomitantemente
com a dilatação do desígnio da ação do Conselho de Segurança. O CSNU veio a aceitar
critérios sempre mais elásticos para deliberar o que estabelece uma ameaça à paz e à
segurança, porque, na década de 90, quase o total dos conflitos em que as Nações Unidas têm
interferido é de caráter interno (FONTOURA, 1999).
São três os itens que colaboraram para a propagação das missões de paz no pós-guerra
fria:
Distensão política entre os EUA e a União Soviética e seu impacto sobre
o papel das Nações Unidas no campo da paz e segurança internacionais;
b) o afloramento de antagonismos étnicos e religiosos; e c) a crescente
universalização dos valores da democracia e do respeito aos direitos
humanos (FONTOURA, 1999, p. 84).
53 Desde 1988, foram estipuladas 38 operações de conservação da paz, enquanto que, nas quatro últimas décadas,
de 1948 a 1987, tinham sido determinadas somente 13 (FONTOURA, 1999). Essa estatística se explica pela
alteração na natureza dos conflitos, notada a partir desse momento e, ainda, "pelos impulsos internacionais de
promoção da democracia e dos direitos humanos endossados pelos países desenvolvidos, que viam as missões de
paz como um instrumento eficiente para esse fim" (UZIEL, 2010, p. 56).
40
Em relação ao primeiro item, a ONU possuía uma chance de atuação na área da paz e
da segurança, por motivo da crescente compreensão entre Moscou e Washington, que vieram
a procurar, nas organizações multilaterais, maior validade para seus empreendimentos
(FONTOURA, 1999).
Sem os riscos de confrontações estratégicas, os EUA e a URSS passaram a
considerar a ONU como opção de ação para resolver conflitos relacionados à
paz e à segurança internacionais, notadamente na promoção da estabilidade
em áreas do mundo em que não desejavam atuar diretamente (FONTOURA,
1999, p. 88).
Em certas situações54, a função de mediação da Organização conveio também para dar
"saídas honrosas" para a União Soviética e para os EUA, em alguns conflitos localizados,
proporcionando que as Nações Unidas conseguissem mandar operações de manutenção da paz
a campos tidos até então como proibidos, por se estabelecerem no âmbito de influência mais
imediata das superpotências (FONTOURA, 1999).
O segundo fator diz respeito ao término da severidade bipolar da Guerra Fria, que
abriu lugar para o ressurgimento de conflitos internos de esfera étnica, religiosa ou
nacionalista. Grupos étnicos vieram a ambicionar mais autonomia, independência ou por
maior representatividade no cumprimento do domínio central, principalmente no continente
africano, na região dos Bálcãs55, na Europa Oriental e na União Soviética (FONTOURA,
1999).
Em relação ao último fator56, assinala-se o comprometimento mais efetivado dos
países ocidentais em prol de uma opinião democrática, alicerçada no respeito aos direitos
humanos, no pluralismo político e na liberdade de expressão.
54 A remessa da Missão de Bons Ofícios das Nações Unidas no Afeganistão e Paquistão (UNGOMAP) para
supervisionar o abandono das tropas soviéticas do Afeganistão, a Missão de Verificação das Nações Unidas em
Angola I (UNAVEM I) para controlar a saída das tropas cubanas de Angola, bem como o Grupo de
Observadores das Nações Unidas na América Central (ONUCA), a Missão de Observação das Nações Unidas
em El Salvador (ONUSAL) e a Missão das Nações Unidas para a Guatemala (MINUGUA), operações formadas
para cooperar na implementação dos procedimentos de paz na América Central (FONTOURA, 1999). 55 Nos Bálcãs, depois da morte do Marechal Josip Broz Tito, no ano de 1980, o governo em Belgrado não foi
capaz de resolver os reclamos, sempre maiores, de suas minorias, conduzindo ao agressivo processo de
desmembramento da nação que terminou na guerra civil da Bósnia-Herzegovina e, em 1998, na irrupção de
ações de violência no Kosovo. A ONU determinou seis operações de conservação da paz e três forças
multinacionais desde 1992 para lidar com as dificuldades oriundas da fragmentação daquele país em cinco
Estados independentes – "Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Iugoslávia e Macedônia –, e pela situação
especial do Kosovo, na República Federativa da Iugoslávia" (FONTOURA, 1999, p. 90). 56 Seus fundamentos se respaldavam no espírito e na letra da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, "bem como do Pacto
41
Num contexto normativo em que os direitos humanos ganhavam crescente
legitimidade, as crises humanitárias provocadas por este tipo de conflito,
bem como as suas conseqüências transnacionais – como o enorme fluxo de
refugiados em direção aos países vizinhos – eram vistas de forma cada vez
mais alarmantes, demandando uma ação internacional (MELO, 2006, p.
102).
Deste destino, pode-se assegurar que, depois dos anos 90, o conjunto estratégico57 das
intervenções de manutenção da paz se alterou respeitosamente: agora, o enfoque dos conflitos
eram nações pobres, onde a aptidão do Estado era mínima e os beligerantes eram
determinados por lucros econômicos e por disputas de poder (FAGANELLO, 2013).
No início dos anos 1990, as Nações Unidas propunham-se a empregar as
missões de paz em cenários onde não havia partes claramente definidas,
estruturas estatais fortes, nem acordos de paz respeitados. As missões de paz
atingiram um número até então inédito de pessoal no terreno, cerca de 80 mil
militares, no período de 1993 a 1995 (UZIEL, 2010, p. 57).
Essa época possibilitou, então, que a ONU revisse a definição de segurança que
imperou em seus discursos e atitudes por quase meio século, aumentando a definição da
segurança internacional estratégico-militar, que se inquietava quase que unicamente com os
interesses dos Estados, para um conceito que abarcasse ainda a extensão humana e social, que
vieram a ser a maior parcela das dificuldades com os quais a ONU precisou lidar na década de
1990 (BIGATÃO, 2009).
O Relatório do Desenvolvimento Humano (1994), publicado pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, revelou a definição de segurança humana, o
qual situava o foco sobre os sujeitos. A segurança humana se preocupa com a vida e a
dignidade, é uma preocupação mundial, sendo saliente em nações ricas e pobres. O Relatório
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que compõem o cerne do arcabouço jurídico
existente em matéria de proteção e promoção internacional dos direitos humanos" (FONTOURA, 1999, p. 93). 57 As peacekeeping operations, empreendidas num contexto de conflito interno, depararam com um terreno
desafiador. O Estado não tinha capacidade de prover segurança aos seus cidadãos, nem de manter a ordem
pública, uma vez que focos de violência se espalhavam por todo o país. A infraestrutura básica, por sua vez, era
inexistente, pois havia sido destruída pelo conflito. Ademais, "grande parte da população sofria com os
deslocamentos internos e a busca por refúgio em países vizinhos. Por fim, a divisão da sociedade em etnias,
religiões ou linhas regionais impedia a chegada a um consenso. O resultado da soma desses fatores foi a violação
massiva de direitos humanos e a consequente dificuldade na reconciliação nacional (UNITED NATIONS,
2008a, p. 22).
42
amplia a conceituação de segurança, abrangendo situações de "fome, doença, poluição, o
tráfico de drogas, o terrorismo, disputas étnicas e desintegração social" e determinando que
estes novos episódios não são acontecimentos isolados, porém uma preocupação de todos.
Assim sendo, essas novas procuras na área da paz e da segurança internacionais
conduziram ao aparecimento das intervenções de paz multidimensionais, compostas por
distintos membros civis, além do já existente elemento militar, e com papéis e desígnios
dilatados (MELO, 2006).
Há a presença de outros personagens no quadro de peacekeepers, não mais
se restringindo a participação militar. Foram acrescentados ao quadro:
administradores; economistas; policiais; peritos legais; especialistas em
desminagem; observadores eleitorais; monitores de direitos humanos;
especialistas em instituições de governo; e trabalhadores humanitários
(FAGANELLO, 2013, p. 68).
As intervenções de paz multidimensionais possuem, assim, a finalidade não somente
de conservar a paz e a segurança, porém promover o processo político; resguardar civis;
ajudar no método de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) de ex-combatentes
às forças oficiais; preparar eleições; resguardar e agenciar os direitos humanos; amparar e
criar estabelecimentos governamentais autênticos e efetivos, assim como estabelecer o rule of
Law (Estado de Direito) (UNITED NATIONS, 2008a).
No começo da década de 199058, a resolução mais significativa foi a de número 68859
– decorrência da Guerra do Golfo (1991)60 –, que estabeleceu como ameaça à paz e à
58 A atitude em Kosovo é o exemplo de como a regra de intervenção humanitária é mais alicerçada em uma
explicação moral do que precisamente uma explicação legal. Como exemplo, expõe-se que a comissão de
especialistas, que em 2000 produziu um relatório sobre a ação da aliança em Kosovo deliberou a atitude como
ilegal, mas válida. A OTAN tentou validar a ação em Kosovo, com alicerce no argumento de que existia uma
obrigação moral para com a proteção dos kosovares albaneses. Aceitação de que em certos casos é legal atuar
sem a autorização do Conselho. "O apoio da Rússia e da China à formação da UNMIK (Missão das Nações
Unidas em Kosovo) por meio da resolução 1244 pode ser até mesmo entendido como uma legitimação implícita
da ação da OTAN" (BELLAMY, 2005, p. 41). 59 Conselho de Segurança, através da Resolução 688, de 5 de abril de 1991, reconheceu que a crise de refugiados
motivada pela repressão do governo de Saddam Hussein contra populações curdas no país formava uma ameaça
à paz e à segurança regional. Mesmo que a resolução formasse um fato normativo essencial, representando o
reconhecimento de que o tratamento interno de um governo referente à sua população poderia se formar como
uma ameaça além das fronteiras do Estado, a resolução não se constitui como uma intervenção humanitária, já
que a resolução não aludiu ao capítulo VII da Carta da ONU. Da mesma maneira, reconhecem que a Resolução
não conferiu nenhuma medida em relação ao governo iraquiano, porém somente instou que esse assegurasse o
ingresso de organizações de auxílio humanitário (VIOTTI, 2004). 60 No dia 29 de novembro de 1990, o Conselho de Segurança acatou a Resolução 67.838. Através desta,
embasada no capítulo VII, o Conselho deu um tempo ao governo do Iraque para que este exercesse a Resolução
66.039, que determinava que o Iraque movesse as suas tropas de ocupação do território kuwaitiano, invadido em
agosto de 1990. A Resolução 678 representa um marco, porque foi a primeira vez que o Conselho utilizou a
43
segurança internacionais a onda de refugiados curdos que ultrapassava as fronteiras do Iraque
(FAGANELLO, 2013). A partir de então, o Conselho de Segurança assinalou uma gama de
distintas maneiras de ameaça, inserindo o colapso de um Estado (Resolução794); a derrocada
de um governo democrático (Resolução 841); o HIV/AIDS (Resolução 1.308); o terrorismo
internacional (Resolução 1.373); a propagação nuclear (Resolução 1.540); a aflição
humanitária (Resolução 770); a agressão massiva aos direitos humanos (Resolução 1.199) e o
mortandade de civis (Resolução 1.674) (BELLAMY; WILLIAMS, 2010).
2.1.3 Uma Agenda para a (Imposição) da Paz: a Terceira Geração das Operações de Paz
Segundo Bigatão (2009), Boutros Boutros-Ghali (1992-1996) foi empossado na
Secretaria-Geral da organização, consagrando seu mandato sob o limite determinante do final
da Guerra-Fria, quando a declaração aceita ao final da reunião de cúpula do CSNU deixou sob
sua obrigação a preparação de um relatório que indicasse certas sugestões para o
fortalecimento da aptidão da ONU, nos campos de diplomacia preventiva, promoção e
manutenção da paz, bem como dos elementos para torná-las mais concretas.
Também, no ano de 1992, o Secretário-Geral proporcionou o relatório com o título
“An Agenda for Peace: Preventive diplomacy, peacemaking and peace-keeping”, ao qual
acrescentou um mecanismo que analisava como fundamental para a concretização da paz, o
peace-building (BIGATÃO, 2009).
A Agenda preencheu um vazio conceitual que caracterizou as atividades de
manutenção da paz da ONU por mais de quarenta anos, uma vez que a Carta
de São Francisco não previa, por exemplo, a utilização de mecanismos de
solução de controvérsias baseados no envio de tropas multinacionais que
atuariam no terreno do conflito, pautando-se nos princípios da
imparcialidade, do consentimento das partes em conflito e do uso da força
somente em autodefesa (BIGATÃO, 2009, p. 58).
A disposição das operações de paz das Nações Unidas, conforme o relatório Uma
Agenda para a Paz (1992, p. 5) aconteceu da seguinte maneira: "diplomacia preventiva,
expressão “todos os meios necessários” (all means necessary), quer dizer, uma autorização para que a força
militar fosse usada. Outro componente significativo, presente na resolução 678, foi a permissão de um exercício
não calculado na Carta da ONU: a delegação de poderes pelo Conselho de Segurança aos Estados membros para
que estes utilizassem a força a serviço da ONU, no que seriam consideradas coalitions of the willing ou coalizões
de países capazes e dispostos (VIOTTI, 2004).
44
promoção da paz, manutenção da paz, imposição da paz e consolidação da paz". A diplomacia
preventiva (preventive diplomacy) é, segundo a Agenda, a prevenção do aparecimento de
disputas entre Estados, ou no interior deles, no intuito de impedir a deflagração de conflitos
armados ou a propagação destes, depois de começados. Considera atitudes permitidas
conforme o Capítulo VI da Carta. E, a promoção da paz (peacemaking) abrange atos
diplomáticos cometidos após iniciar o conflito, que têm o intuito de negociação entre as partes
para a interrupção das inimizades. Alicerçam-se nos mecanismos de solução pacífica de
controvérsias calculados no Capítulo VI da Carta.
Em relação à manutenção da paz (peacekeeping), Uma Agenda para a Paz (1992,
p. 13), determina que esta abarca
[...] ações empreendidas por militares, policiais e civis no terreno do
conflito, com o consentimento das partes, objetivando a implementação ou o
monitoramento do controle de conflitos (cessar-fogos, separação de forças,
etc.) e também a sua solução (acordos de paz). Tais ações são
complementadas por esforços políticos no intuito de estabelecer uma
resolução pacífica e duradoura para o litígio. A base jurídica deste tipo de
operação não se enquadra perfeitamente no Capítulo VI nem no Capítulo VII
da Carta da ONU, o que leva alguns analistas a situá-las em um imaginário
“Capítulo VI e meio”.
Fontoura (1999, p. 34) conceitua peacekeeping da seguinte forma:
[...] o instrumento da paz que trata das atividades levadas a cabo no terreno
com o consentimento das partes em conflito, por militares, policiais e civis,
para implementar ou monitorar a execução de arranjos relativos aos esforços
políticos realizados para encontrar uma solução pacífica e duradoura para o
conflito.
Segundo Uziel (2010), há três distintivas-chaves chamadas de princípios básicos de
peacekeeping, que são: consentimento, imparcialidade e mínima utilização da força.
[...] operações estabelecidas pelo Conselho de Segurança ou pela Assembleia
Geral das Nações Unidas, de quem recebem mandato e a quem se reportam
periodicamente; financiadas por contribuições de todos os membros das
Nações Unidas e sob comando e controle do Secretário-Geral e do
Departamento de Operações de Manutenção da Paz; englobam militares,
policiais e civis e, no terreno visam a controlar ou resolver conflitos,
respeitando os princípios da imparcialidade, consentimento das partes e
[mínimo] uso da força (UZIEL, 2010, p. 22).
45
Os estudiosos Bellamy e Williams (2010, p. 173), chamam esses três princípios
fundamentais de Holly Trinity. Na execução do mandato, o requisito número um para que
uma intervenção de manutenção da paz se desenvolva é o consentimento dado pelo Estado
anfitrião ou pelas partes opositoras. O consentimento denota a aceitação dos abrangidos no
conflito armado em relação à presença da missão de paz em sua região e as condições para
tanto, além dos afazeres (mandato) a serem efetuados pelos peacekeepers na obrigação de
manutenção da paz local.
No que refere à natureza das missões de paz e sua relação com a aceitação, as
intervenções de manutenção da paz clássicas – cometidas basicamente em conflitos
interestatais – têm dois lados divergentes bem determinados, o que facilita a identificação das
partes legítimas do conflito e, por decorrência, quem deve atribuir o consentimento. E, na
situação das peacekeeping operations multidimensionais, a identificação dessas partes não é
fácil, em razão da diversidade de interesses e grupos abrangidos, tendo aquelas, diversas
vezes, que se alicerçar num consentimento parcial ou na significação, pelo Conselho de
Segurança e pelo Secretariado, de quem é parte no conflito (UZIEL, 2010).
O segundo princípio, a imparcialidade, é decisivo para a manutenção do
consentimento e colaboração das partes envolvidas, conforme garante a implementação justa
dos mandatos, sem lesar ou beneficiar certa parte do conflito (UNITED NATIONS, 2008a).
Dito de outra forma, a imparcialidade61 quer dizer que as operações de manutenção da paz
não são desdobradas com o desígnio de ganhar a guerra em nome de uma das partes do
conflito, porém tem como finalidade auxiliá-las a conseguir a paz (UZIEL, 2010).
Finalmente, o valor da imparcialidade se explica a partir do instante em que sua não
observância pode consumir a confiabilidade e a legitimidade da peacekeeping operation,
podendo conduzir à perda do consentimento (UNITED NATIONS, 2008a).
O princípio do uso da força62 é vastamente reconhecido e poderá ser utilizado: em
nível tático, com a aprovação do Conselho de Segurança, para legítima defesa, justificação do
mandato, defesa da população civil ou dos indivíduos abrangidos na missão (UNITED
NATIONS, 2008a).
61 "Imparcialidade não se confunde com neutralidade. As missões de paz devem ser imparciais no tratamento
com as partes em conflito, mas nunca neutras na execução de seus mandatos" (FAGANELLO, 2013, p. 73) 62 O Conselho de Segurança concedeu às operações de manutenção da paz mandatos robustos, autorizando os
peacekeepers a usar todos os meios necessários para deter tentativas de desfazer o processo político, proteger
civis sob iminente ameaça de ataque físico e para assistir autoridades nacionais na manutenção do direito e da
ordem (UNITED NATIONS, 2008a, grifo nosso).
46
As intervenções de manutenção da paz precisam usar a força como comedimento de
última instância, quer dizer, quando outros procedimentos tiverem fracassado. Nesse âmbito,
a força necessita ser sempre medida, precisa, proporcional e adequada, adotando o princípio
da mínima força precisa para se conseguir o objetivo (UNITED NATIONS, 2008a). Essa
hipótese está conforme um dos requisitos mínimos, indicado por Wheeler e pelos solidaristas,
para que a operação seja tida como legítima. Assim, a corrente solidarista explica que o
critério da proporcionalidade deve considerar um cálculo plausível de perda de vidas, de
gastos e de destruição de propriedade. Os solidaristas também realçam que a força usada deve
ser aproveitada segundo a situação do conflito.
Em relação a esgotar todos os meios pacíficos, para então usar a força, a vertente
solidarista ainda destaca, como referido no capítulo anterior, que os governos não necessitam
aguardar até que milhares de pessoas faleçam antes de agir, porém que estejam confiantes que
tenham procurado todos os meios para que a transgressão de direitos humanos acabe.
No que se refere ao quarto tipo de operação de paz, a imposição da paz (peace
enforcment), é determinado:
[...] respaldadas pelo Capítulo VII da Carta da ONU, essas operações
incluem o uso de força armada na manutenção ou restauração da paz e
segurança internacionais. São estabelecidas quando o Conselho de
Segurança julga haver ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão.
Podem abranger intervenções de caráter humanitário (UMA AGENDA
PARA A PAZ, 1992, p. 12).
O utensílio de peace-enforcement abrange o emprego, com a autorização do Conselho
de Segurança e sem a concordância do Estado objeto da intervenção, de diversas medidas
coercivas, até mesmo o uso da força militar. Essas medidas procuram restituir a paz e a
segurança internacional, em casos nos quais o órgão último existir ameaça a paz, ruptura da
paz ou ações de violência. É nas missões de peace-enforcement que as intervenções
humanitárias são encaixadas, fundamentadas basicamente no capítulo VII da Carta
(FAGANELLO, 2013).
Capítulo VII - Ação relativa a ameaças a paz, ruptura da paz e atos de
agressão. Artigo 39: O Conselho de Segurança determinará a existência de
qualquer ameaça a paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e fará
recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com
os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais (BRASIL, CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).
47
Peace enforcement, deste modo, relaciona-se com as atividades calculadas no capítulo
VII da Carta da ONU que possibilitam ao Conselho de Segurança decretar quais atos são
ameaça ou ruptura da paz e da segurança internacionais e consagrar medidas de enforcement
para reprimi-los (BELLAMY; WILLIAMS, 2010).
Finalmente, em relação à concretização da paz (post-conflict peace-building), a
Agenda para a Paz delibera que estas intervenções são:
[...] executadas após a assinatura de um acordo de paz, tais operações visam
fortalecer o processo de reconciliação nacional através da reconstrução das
instituições, da economia e da infra-estrutura do Estado anfitrião. Os
Programas, Fundos e Agências das Nações Unidas atuam ativamente na
promoção do desenvolvimento econômico e social, mas também pode haver
a presença de militares (UMA AGENDA PARA A PAZ, 1992, p. 15).
Estas abrangem um rol de medidas dirigidas para a diminuição do risco de retomada
do conflito, a partir do fortalecimento das aptidões do país. Representa um processo
complicado e de grande prazo, que tem como desígnio criar as condições indispensáveis para
uma paz duradoura. Em síntese, ele procura tratar o conflito em sua procedência, assim como
as dificuldades estruturais que conduziram àquele caso (UNITED NATIONS, 2008a).
A experiência comprovou que, para se conseguir uma paz auto-sustentável e
inalterável, quatro trabalhos devem ser cumpridos. São eles: restituir a aptidão do Estado em
conservar a ordem pública e a segurança; fortalecer o rule of law (Estado de Direito) e o
respeito aos direitos humanos; amparar a reestruturação de instituições políticas legais e um
método participativo que abarque todas as pessoas; e requerer a recuperação econômica e
social, inserindo a volta de refugiados e deslocados internos (UNITED NATIONS, 2008a).
Nessa esfera, não obstante a ausência de financiamento e expertise técnica
indispensável para a prática de programas de peacebuilding, o Conselho de Segurança confere
aos peacekeepers as atribuições de desarmar, desmobilizar e reintegrar ex-combatentes às
forças oficiais do país; adolescer trabalhos de desminagem (remoção de minas); aperfeiçoar a
área de segurança; cumprir atividades do rule of law; resguardar e agenciar os direitos
humanos; dar assistência eleitoral; e, também, amparar a restauração da autoridade do Estado
(UNITED NATIONS, 2008a).
48
2.1.4 Relatório Brahimi (2000) e a Doutrina Capstone (2008)
As maiores faltas de êxito das missões de paz aconteceram exatamente em missões de
imposição da paz, por motivo da ausência de concordância das partes ou ao agravamento da
utilização da força imparciais e sem condições de chegar a uma resolução do conflito, a
exemplo do que incidiu na Somália (Operação das Nações Unidas na Somália II – UNOSOM
II)63, em Ruanda (Missão de Assistência das Nações Unidas a Ruanda - UNAMIR)64 e na
Bósnia-Herzegovina (Missão das Nações Unidas na Bósnia-Herzegovina – UNMIBH)65
(BIGATÃO, 2009).
63 “Na Somália, a UNOSOM I foi estabelecida em 1992 com apoio de força estadunidense (UNITAF). Em 1993,
reforçada, tornou-se UNOSOM II, com mandato dado pela Resolução 814 (1993), para apoiar a assistência
humanitária e promover o desarmamento das diversas milícias somalis, mas não para atuar nas negociações
políticas. O caráter faccioso dos grupos armados, atritos repetidos com warlords e constante propaganda belicosa
no rádio levou a um clima hostil aos peacekeepers. Durante inspeção de armas (5/6/1993), 24 paquistaneses
foram mortos e 57 feridos em ataque Mohamed Aidid. Ante a ataques diretos, a missão reagiu com o uso da
força, autorizado pelo ultrajado CSNU, por meio da Resolução 837 (1993). As ações da Missão e a reação
violenta das facções resultaram em período caótico chamado abertamente de “guerra”. A UNOSOM II, que já se
encontrava desacreditada, retirou-se do terreno em 1995, sem lograr estabilizar o país e carente de apoio dos
EUA. O inquérito independente das Nações Unidos apontou várias falhas: 1) ausência de precedente para
intervenção não consensual, em atmosfera hostil e com mandato muito coercitivo; 2) despreparo operacional
ante a intensidade dos ataques; 3) incapacidade do Secretariado de treinar os militares para atuar em missão de
paz; 4) falta de comando e controle sobre contingentes nacionais que recorriam a instruções de suas capitais; 5)
fragilidade do consenso político sobre o mandato à luz das baixas resultantes dos combates” (RESOLUÇÃO 885
apud UZIEL, 2010, p. 57). 64 “A UNAMIR, em Ruanda, foi estabelecida pela Resolução 872 (1993), a fim de monitorar o cessar-fogo
derivado dos Acordos de Arusha, investigar eventuais violações e apoiar a assistência humanitária. Seu mandato
foi talhado para uma situação em que as negociações políticas caminhassem para uma solução sustentável. No
entanto, desde janeiro de 1994, o Force Commander, General Romeo Dallaire (Canadá), advertia para a
deterioração da conjuntura e a possibilidade de um genocídio. Por conveniência política e falha burocrática, o
aviso foi ignorado. Em abril, iniciou-se o genocídio, mas a UNAMIR encontrava-se impotente, sobretudo após a
retirada de seu contingente belga, por força de um mandato vago e de uma interpretação burocrática do
Secretariado. O CSNU, traumatizado ainda pela crise na Somália, decidiu reduzir a Missão e hesitou muito em
reverter essa decisão, o que só ocorreu em meados de maio, quando mais de 500 mil pessoas já haviam morrido.
Quando foi desdobrada a UNAMIR II, o pior havia passado, e a Missão desempenhou importante papel
humanitário. Inquérito, só realizado em 1999, apontou tanto falta de meios quanto de vontade. A UNAMIR
contava com número inadequado de tropas e não estava preparada para o colapso do processo de paz. Seu
mandato “neutro” e regras de engajamento não permitiam atuação incisiva. O CSNU e os Estados membros
hesitaram em tomar decisões e pressionaram o Secretariado para que distorcesse informações. Novamente
sobreveio o desrespeito à cadeia de comando, com as tropas procurando orientação de suas capitais” (REPORT
PF THE INDEPENDENT INQUIRY INTO THE ACTIONS OF THE UN DURING THE 1994 GENOCIDE IN
RWANDA apud UZIEL, 2010, p. 58). 65 “A UNPROFOR foi estabelecida pela Resolução 743 (1992), algumas semanas antes da guerra na ex-
Iugoslávia alastrar-se para a Bósnia-Herzegovina. Embora o SGNU acreditasse que o conflito não condizia com
a atuação de uma missão de paz, o CSNU decidiu que a UNPROFOR atuaria, inicialmente, com funções
humanitárias em Sarajevo. Havia grande divisão no Conselho sobre as funções a desempenhar, o que resultou
em consenso mínimo (alívio de consequências humanitárias, contenção do conflito e apoio a negociações) e em
um mandato robusto somente no aspecto retórico. A partir de abril de 1993, foi estabelecida a política de safe
areas para enclaves bósnios-muçulmanos assediados pelos bósnios-sérvios. Mas o Secretariado obteve só 7.600
efetivos, dos 32 mil que considerava necessários para proteger esses refúgios e teve dificuldades de obter
49
Conforme Uziel (2010), nas lições aprendidas pelas Nações Unidas sugeria que era
certo que dois erros fundamentais tinham sido empreendidos:
1) as missões haviam sido criadas para substituir o diálogo e o acordo
políticos que não existiam naqueles conflitos; 2) confrontada com essa
dificuldade, a sociedade internacional (representada, ao menos
simbolicamente, pelo CSNU) reagiu com a decisão de que os peacekeepers
deveriam fazer a guerra, embora não dispusessem de meios ou de mandato
adequados (UZIEL, 2010, p. 60).
Depois dessas intervenções sem sucesso, o então Secretário-Geral da ONU Kofi
Annan encarregou a um grupo de peritos internacionais uma revisão dos assuntos
relacionados às missões de paz (BIGATÃO, 2009). Como resposta, em 2000, o Relatório
Brahimi, que analisa o funcionamento e as ínfimas condições indispensáveis para o êxito de
uma operação de paz, foi criado.
O relatório do Painel (Relatório Brahimi) enfatizou o caso de não ter sido surpresa
para ninguém a falta de êxito das missões de paz cometidas na década de 1990, por terem sido
distendidas em lugares onde o conflito ainda não havia sido resolvido, e as partes abrangidas
não tinham demonstrado disposição para acabar com os desacordos. Então, pode-se assegurar
que as operações de manutenção da paz na Somália, Bósnia e Ruanda não foram desdobradas
em casos de pós-conflito – instante ideal para a ação de uma peacekeeping operation –,
porém, ao oposto, foram desdobradas com o fim de criar tal caso (FAGANELLO, 2013).
Em relação à Holly Trinity, o Relatório acordou que o consentimento das partes, a
imparcialidade e a utilização da força em legítima defesa precisam ficar como princípios
guiadores das operações de manutenção da paz (FAGANELLO, 2013).
contribuintes. A Resolução 836 (1993), dado o difícil acordo no CSNU, evitava também linguagem clara sobre
as tarefas da missão. Para remediar em parte esse cenário, foi estabelecido que a OTAN prestaria apoio aéreo à
UNPROFOR, em caso de necessidade extrema. Ao longo de 1994 e 1995, as condições no terreno continuaram a
deteriorar-se: as facções claramente não respeitavam mais a autoridade e imparcialidade das Nações Unidas. Em
março de 1995, forças sérvias capturaram peacekeepers como reféns contra eventuais bombardeios da OTAN. A
indecisão com respeito ao possível reforço da UNPROFOR e de seu mandato permitiu que ocorressem, em julho
de 1995, os massacres de Srebrenica e Epa, nos quais morreram cerca de 8 mil bósnios. Em relatório à AGNU, o
Secretário-Geral alinhou o que considerava os fatores do fracasso da UNPROFOR: 1) as facções em luta não
acreditavam nas decisões do CSNU nem na capacidade da Missão para executá-las; 2) os princípios tradicionais
das missões de paz foram aplicados a um conflito ainda em curso; 3) houve falta de meios e de vontade política
para cumprir a promessa de proteger os civis; 4) as Nações Unidas e a OTAN hesitaram em estabelecer um nível
alto de cooperação; 5) houve erro na análise dos objetivos dos sérvios, o que impediu adaptação do mandato”
(REPORT OF THE SECRETARY-GENERAL PURSUANT TO GENERAL ASSEMBLY RESOLUTION
53/35. THE FALL OF SREBRENICA apud UZIEL, 2010, p. 59).
50
E, a imparcialidade necessita ter como direção os princípios da Carta da ONU. Assim,
não se tem que falar em tratamento igualitário, exonerando as partes do conflito quando uma
delas infringe os marcos da Carta. Nessa situação, os peacekeepers terão que repreendê-la,
sob pena de a missão de paz ser entendida como cúmplice na ação irregular. O relatório
aderiu ao princípio da imparcialidade um novo comentário, mais coeso com a realidade
(UNITED NATIONS, 2000).
O Relatório Brahimi inseriu inovação quanto à utilização da força. Na execução dos
trabalhos calculados no mandato, os capacetes azuis66 precisam estar em condições não
somente de proteger a si próprios, porém outros membros da missão e o mandato. Para tanto,
as missões têm que ser satisfatoriamente robustas, de maneira a não possibilitar que eles
desistam das investidas das partes em conflito (UNITED NATIONS, 2000).
Pelo que se mostrou, pode-se concluir que o Relatório Brahimi materializou o
pensamento de que a partir da década de 1990 a natureza dos conflitos tinha se alterado e,
para segui-la, apenas uma nova geração de missões de paz para acompanhar suas
complicações, sem, todavia, ser preciso abrir mão dos princípios de peacekeeping operations,
porém, somente interpretá-los de forma menos proibitiva (FAGANELLO, 2013).
Em relação à Doutrina Capstone, de 2008, são recomendações importantes no que se
refere ao planejamento e à implementação do mandato das operações de paz. Citando o
respeito ao consentimento, apesar de enfatizar o valor desse princípio, o documento assinala
que mesmo que as partes em conflito aprovem a afirmação da missão, pode existir uma
carência de consentimento a nível local, sobretudo, na presença de grupos armados
fragmentados. Também, as operações de paz precisam estar prontas para encarar casos
relacionados à falta ou à quebra de consentimento local, situações estas em que a utilização da
força poderá ser precisa, como último recurso (UNITED NATIONS, 2008b).
Referindo a imparcialidade, o documento garante que este princípio não pode ser
confundido com neutralidade ou ócio, de maneira que assim como um juiz é imparcial, ele
também consagra penalidades quando verifica infrações, assim, as operações de paz não
podem ser tolerantes quando as partes em conflito desobedecem tanto o acordo de paz quanto
66 Ademais, aqueles capacetes azuis que testemunharem algum ato de violência praticado contra civis devem
presumir-se autorizados a reprimi-los pelo emprego da forca. Agindo dessa forma, eles estarão seguindo os
ditames do principio da imparcialidade, que prega o respeito aos princípios da Carta da ONU, e estarão
satisfazendo a expectativa de proteção criada na população, exclusivamente, por estarem no terreno (UNITED
NATIONS, 2000, p. 11, § 62).
51
determinadas regras internacionais, nas quais as operações de paz estão alicerçadas (UNITED
NATIONS, 2008b).
Em relação ao não uso da força, o documento explica que a utilização da força precisa
ser possibilitada por motivo de autodefesa e defesa do mandato. O documento distingue que
os ambientes em que as operações de paz são enviadas são ambientes distintos pela presença
de grupos armados, grupos criminosos, gangues e milícias , de maneira que o Conselho tem
formado operações de paz com mandatos robustos para conter estes, com a finalidade de
resguardar civis em ameaça notável de ataque físico e de equipar assistência às autoridades
estatais na conservação da lei e da ordem. O documento ainda reconhece que, ao utilizarem a
força em defesa do mandado, as operações de paz podem melhorar o ambiente de segurança e
possibilitar uma determinação de iniciativas de peacebuilding (UNITED NATIONS, 2008b).
Com tudo isto, nota-se que existe um enorme esforço por parte da sociedade
internacional em validar as intervenções humanitárias. Desde os desígnios determinados pela
corrente solidarista, passando pela Agenda para a Paz e pela Holly Trinity, todos elencam
condições e critérios a serem exercidos para assegurar um mínimo de nexo e validade às
intervenções. Mas, uma dificuldade ainda continua, e esta se refere à soberania do Estado,
assegurada pela Carta de São Francisco, a não sofrer nenhum tipo de intervenção externa.
Deste modo, na tentativa de regular mais esta ação, cria-se o princípio da Responsabilidade de
Proteger, a qual abarca todos os critérios antes citadas para afiançar legitimidade à
intervenção.
2.2 IMPACTO DA R2P NAS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS E OPERAÇÕES DE
PAZ
Compreende-se soberania como o direito que os Estados têm de integridade territorial,
independência política e não intervenção, e, por direitos humanos, entende-se a ideia de que o
sujeito precisa usufruir determinadas liberdades essenciais próprias de sua natureza humana.
Nos casos em que os Estados soberanos não conseguem ou não podem resguardar as
liberdades indispensáveis de seus cidadãos, soberania e direitos humanos entram em conflito
(BELLAMY, 2009).
Conforme Bellamy (2009, p. 131), aparece então a questão: "deve a soberania se
sobrepor aos direitos humanos, ou deve ser reinterpretada de forma a permitir a intervenção
externa com o propósito de proteger os direitos fundamentais?’’
52
Para debater esse tema, a Assembléia Geral se reuniu nas 54a e 55a sessões, de 1999 e
2000, simultaneamente. Nesse momento, Kofi Annan solicitou à sociedade internacional que
procurasse constituir, de uma vez por todas, uma nova consonância sobre esse assunto para
que uma unidade sobre os temas básicos e processuais abrangidos fossem determinados.
Neste âmbito, ele declarou: "se a intervenção humanitária é, de fato, um ataque inaceitável à
soberania, como devemos responder a uma Ruanda, a uma Srebrenica – a graves e
sistemáticas violações de direitos humanos que afetam todos os preceitos de nossa
humanidade comum?"67 (ICISS, 2001, p . VII, tradução nossa).
Em resposta a essa pergunta, o governo do Canadá expressou a AGNU, em setembro
de 2000, a constituição da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal
(ICISS), que abrangeria especialistas universais com contraditórias visões sobre o tema, os
quais debateriam um vasto prisma de assuntos atinentes ao direito de intervenção humanitária:
legais, morais, operacionais e políticas (PERES, 2012),
A explicação do relatório é que os Estados precisam atuar de maneira a conservar o
equilíbrio da ordem internacional em determinadas ocorrências extraordinárias, quais sejam:
massacres, genocídio e limpeza étnica em larga escala (ICISS, 2001, p. 31, parágrafo 4.13).
Sobre essas circunstâncias, o relatório assegura ainda que a intervenção militar68 será possível
em situações de:
[...] large scale loss of life actual or apprehended, with genocidal intent or
not, which its the product either of deliberate state action, or state neglect or
inability to act, or a failed state situation or large scale ethnic cleansing,
actual or apprehended, whether carried out by killing, forced expulsion, acts
of terror or rape 69(ICISS, 2001, p. 32, parágrafo 4.19).
67 “If humanitarian intervention is, indeed, an unacceptable assault on sovereignty, how should we respond to a
Rwanda, to a Srebrenica – to gross and systematic violations of human rights that affect every precept of our
common humanity?” (ICISS, 2001, p. VII). 68 Frise-se que não há que se falar em transferência ou diluição da soberania estatal, pois ao Estado cabe
manifestar-se originariamente diante de violações aos direitos humanos ocorridas em seu território. Contudo, não
o fazendo, o princípio da não intervenção do espaço para que a sociedade internacional exerça sua
responsabilidade internacional de proteger sem que o principio da soberania, nos moldes de westfália, seja
reclamado (FAGANELLO, 2013, p.156) 69 “Perda em grande escala da vida real ou apreendida, com intenção genocida ou não, que o seu produto seja de
ação deliberada do Estado, ou negligência do Estado ou incapacidade para agir, ou uma situação de Estado
falhado ou limpeza étnica em grande escala, real ou apreendido, quer sejam exercidas por assassinatos, expulsão
forçada, atos de terror ou estupro” (ICISS, 2001, p. 32, parágrafo 4.19, tradução nossa).
53
A Comissão oferece dois princípios fundamentais para a melhor compreensão da
definição da Responsabilidade de Proteger. O primeiro se refere à ideia onde a soberania é
percebida como responsabilidade de proteger o sujeito. A Comissão assim dispõe: “a
soberania do Estado implica em responsabilidade, e a responsabilidade primária pela proteção
de seu povo recai sobre os Estados” (ICISS, 2001, p. 11). Nesse âmbito, bem como a corrente
solidarista, o relatório não parte mais do ponto de vista do Estado, porém da pessoa,
ressaltando o amparo dos direitos humanos. Deste modo, a ICISS descreve: “primeiro, a
responsabilidade de proteger implica uma avaliação das questões do ponto de vista daqueles
que procuram ou precisam de apoio, e não daqueles que considerem a intervenção [...]’’
(ICISS, 2001, p. 17, tradução nossa).
O outro princípio se refere à responsabilidade secundária de amparo que recai sobre a
coletividade internacional. Essa segunda pressuposição é assinalada do seguinte modo, no
texto da ICISS (2001, p. 11):
[...] onde uma população estiver sofrendo danos graves, como resultado do
fracasso da guerra, da insurgência, da repressão, ou como consequência de
Estados falidos, e o estado em questão mostra-se relutante ou incapaz de
cessar ou evitar tais danos, o princípio da não-intervenção cede à
responsabilidade internacional de proteger.
Nessa esfera, a R2P distingue que a responsabilidade primária incide sobre o Estado, e
que é somente se o Estado se apresentar sem condições de desempenhar essa
responsabilidade, ou é o próprio autor das violações, que se torna a responsabilidade da
sociedade internacional de atuar em seu lugar (ICISS, 2001).
States are now widely understood to be instruments at the service of their
peoples, and not vice-versa. At the same time individual sovereignty […] has
been enhanced by a renewed and spreading consciousness of individual
rights. When we read the Charter today, we are more than ever conscious
that its aim is to protect individual human beings, not to protect those who
abuse them70 (ANNAN, 1999, p. 1).
70 “Estados são agora amplamente entendidos como instrumentos ao serviço dos seus povos, e não vice-versa.
Ao mesmo tempo a soberania do indivíduo [...] tem sido reforçada por uma consciência renovada e difusão de
direitos individuais. Quando lemos a Carta hoje, estamos mais do que nunca consciente de que o seu objetivo é
proteger os seres humanos individuais, não o de proteger aqueles que abusam deles” (ANNAN, 1999, p. 1,
tradução nossa).
54
Assim sendo, compreender a soberania como encargo quer dizer: primeiramente, os
comandos estaduais são responsáveis pelo papel de resguardar a segurança e a vida dos
cidadãos, assim como o agenciamento do seu bem-estar. Em segundo lugar, indica que as
autoridades políticas do país são responsáveis diante dos indivíduos internamente e à
sociedade internacional, através da ONU. E, em terceiro lugar, isso quer dizer que os agentes
do Estado são responsáveis por suas atitudes; quer dizer, são responsáveis por suas ações de
comissão e omissão (ICISS, 2001, p. 13).
O Relatório R2P calcula, ainda, três modos de os Estados cumprirem essa
responsabilidade. São elas: 1) responsabilidade de prevenir, através de medidas de caráter
legal, como a mediação e a arbitragem, de classe política e diplomática, como bons ofícios e
fóruns internacionais de debates, entre outros; 2) responsabilidade de reagir, que se assinala
de duas maneiras: medidas coercivas de cunho político/econômico – por exemplo, através de
apreensões econômicas e de armas – e intervenção militar71; 3) responsabilidade de
reconstruir, que previne medidas de recuperação, reconstrução e reconciliação depois de uma
intervenção militar72 (ICISS, 2001).
Em relação à primeira responsabilidade, a de prevenir, como já citado, na visão
solidarista para legitimar as intervenções humanitárias e na Agenda para a Paz, é preciso que
todos os meios pacíficos sejam exauridos para então fazer a intervenção militar. Nesse
âmbito, o relatório também indica que como último recurso, necessita-se usar a intervenção
militar. Quanto à responsabilidade de reconstruir, a Agenda para a Paz (1992) também
deixava evidente como requisito para a consolidação da paz, a precisão da reconstrução das
instituições, infra-estrutura e economia.
O Relatório da ICISS, depois de esclarecido o princípio da R2P e suas nuances, passa
para o tratamento dos princípios para a intervenção militar propriamente dita. Para tanto,
engloba conceitos de causas justas (oriundo da teoria da guerra justa); os princípios de
precaução – critérios de precisão e proporcionalidade (intento correto, último recurso, meios
proporcionais e expectativas razoáveis); a autoridade legítima (CSNU); e os princípios
operacionais (PERES, 2012). Esses temas sucedem da corrente solidarista da Escola Inglesa e
foram largamente debatidas no capítulo anterior, em relação aos critérios para validar uma
71 Deste modo, a ICISS, para conseguir maior consenso e dirimir as oposições de agências e organizações
humanitárias quanto à militarização da palavra humanitário, prefere utilizar a terminologia de “intervenção
militar com propósitos de proteção humana”, ao invés de intervenção humanitária (PERES, 2012, p. 48). 72 A ICISS conceitualisa a intervenção como: “Medidas tomadas contra o Estado ou seus dirigentes, sem o seu
consentimento, para fins humanitários ou de proteção” (ICISS, 2001, p. 8).
55
intervenção humanitária; explica-se, deste modo, que a Responsabilidade de Proteger espaça
uma nova trilha para a corrente em questão, destacando que é época de focar no sujeito e no
sofrimento do mesmo.
O relatório da ICISS enfatiza, ainda, a precisão de autorização do Conselho de
Segurança73, na situação de uma intervenção: a Comissão analisa que não há órgão mais
acertado para lidar com intervenções militares que resguardam a população do que o
Conselho de Segurança. O debate sobre a Responsabilidade não sugere achar alternativas à
autoridade do CS74, porém torná-lo mais eficaz para responder aos casos que demandam
intervenção (BELLAMY, 2009).
Apenas em 2005, na 2005 World Summit, líderes mundiais afirmaram de forma
generalizada:
138. Each individual State has the responsibility to protect its populations
from genocide, war crimes, ethnic cleansing and crimes against humanity.
This responsibility entails the prevention of such crimes, including their
incitement, through appropriate and necessary means. We accept that
responsibility and will act in accordance with it. The international
community should, as appropriate, encourage and help States to exercise this
responsibility and support the United Nations in establishing an early
warning capability75.
Os líderes asseguraram, ainda:
73 Para que o Conselho de Segurança possa, então, dar cabo dessa tarefa, o relatório espera dos cinco membros
permanentes a concordância em não lançar mão do poder de veto – em situações em que seus interesses vitais
não estejam envolvidos – para obstruir a edição de resoluções que autorizem intervenções militares com a
finalidade de proteger seres humanos (ICISS, 2001, p. 13). 74 A Comissão afirmou que nos casos em que o Conselho não autoriza uma intervenção perante uma crise –
inclusive no que a Comissão considera como uma situação que demanda uma responsabilidade de proteger –
devemos nos questionar o que é mais alarmante: o dano à ordem internacional feito por uma ação que se
sobrepõe à autoridade do Conselho, ou o dano à ordem causado pela ocorrência de um massacre contra
indivíduos em que o Conselho se pautou pela inação. O alerta dado pela Comissão é que caso o Conselho decida
não agir, ele não deve se surpreender se os Estados preocupados com a situação venham a considerar outras
opções fora do Conselho. Se as organizações multilaterais não aprovarem as intervenções, elas passarão a ser
conduzidas por Estados individuais ou em coalizões, o que leva a um risco de que elas venham a ser pautadas
por outros interesses e não incluam as precauções apresentadas pela Comissão. Um último alerta da Comissão
aborda a possibilidade da ocorrência de uma intervenção não autorizada pelo Conselho, mas que siga os critérios
e as precauções apresentadas pelo relatório e seja bem-sucedida em parar a ocorrência da violência. Essa opção,
segundo a Comissão, acaba tendo efeitos graves sobre a reputação e a credibilidade do Conselho e da ONU
(ICISS, 2001, p. 55, parágrafos 6.38 até 6.40). 75 “Cada Estado tem a responsabilidade de proteger as suas populações contra o genocídio, crimes de guerra,
limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Esta responsabilidade implica a prevenção de tais crimes,
incluindo a sua incitação, através de meios adequados e necessários. Aceitamos essa responsabilidade e vamos
agir de acordo com ela. A comunidade internacional deve, se for caso disso, incentivar e ajudar os Estados a
exercer esta responsabilidade e apoiar as Nações Unidas no estabelecimento de uma capacidade de alerta
precoce” (ICISS, tradução nossa).
56
139. The international community, through the United Nations, also has the
responsibility to use appropriate diplomatic, humanitarian and other peaceful
means, in accordance with Chapters VI and VIII of the Charter, to help to
protect populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and crimes
against humanity. In this context, we are prepared to take collective action,
in a timely and decisive manner, through the Security Council, in accordance
with the Charter, including Chapter VII, on a case-by-case basis and in
cooperation with relevant regional organizations as appropriate, should
peaceful means be inadequate and national authorities are manifestly failing
to protect their populations from genocide, war crimes, ethnic cleansing and
crimes against humanity76.
Mesmo com a admissão do princípio pela sociedade internacional, a Responsabilidade
de Proteger ainda é enxergada com precaução e encara intensas críticas. O princípio foi usado
inicialmente, somente em 2011, na intervenção da Líbia e, se os seus elaboradores possuíam
expectativa de que a R2P resolvesse as diversas dificuldades, mencionadas ao decorrer deste
estudo, decepcionaram-se ao confirmar o fracasso que foi a intervenção neste país.
2.2.1 Críticas a Responsabilidade de Proteger
Mesmo depois da admissão da Responsabilidade de Proteger, certos pesquisadores
ainda são descrentes em relação ao princípio. Nessa esfera, o relatório não insere nos casos
que consideram intervenção militar situações de transgressões de direitos humanos que não se
estabelecem como limpeza étnica, episódios de discriminação racial e aprisionamento
sistemático de oponentes políticos. Para essas situações, a comissão sugere que sejam
rebatidas com penas econômicas, militares e políticas, não justificando atitude militar para a
proteção de vida humana (ICISS, 2001, p. 34). A recomendação de que a Responsabilidade de
Proteger poderia ser solicitada no episódio de violações em grande escala de direitos humanos
foi rejeitada no documento de 2005, em prol dos critérios mais limitativos de genocídio,
limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade (BELLAMY, 2006).
76 “A comunidade internacional, através das Nações Unidas, tem também a responsabilidade de usar meios
pacíficos diplomáticos, humanitários e outras apropriadas, em conformidade com os capítulos VI e VIII da
Carta, para ajudar a proteger as populações contra o genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra
a humanidade. Neste contexto, estamos preparados para uma ação coletiva, de uma maneira oportuna e decisiva,
através do Conselho de Segurança, em conformidade com a Carta, incluindo o capítulo VII, numa base de caso à
caso e em cooperação com as organizações regionais relevantes como apropriado, sendo os meios pacíficos
inadequados e as autoridades nacionais não assumam manifestamente proteger as suas populações contra o
genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade” (ICISS, tradução nossa).
57
Outro aspecto se refere à demarcação de em que instante a responsabilidade de
proteção precisa ser trazida do Estado para a sociedade internacional. O relatório da ICISS e,
também, o relatório do Painel de Alto Nível de 2004 descreveram que essa permuta de
responsabilidade necessitaria acontecer se o Estado estivesse “incapaz ou relutante”. Todavia,
esse pensamento foi trocado no documento de 2005, pela condição de que o Estado mostrasse
um “desrespeito aparente”, terminando, deste modo, por aumentar o gatilho (threshold) para
a ação da sociedade internacional. Uma última alteração é que o termo original dado por Kofi
Annan no relatório “Em maior liberdade” calculava o reconhecimento de um
comprometimento da sociedade internacional, sendo esse termo trocado pelo termo
“responsabilidade” no documento da Cúpula de 2005 (BELLAMY, 2006).
Bellamy (2005) consegue evidenciar como a própria emergência da Responsabilidade
de Proteger tem sido usada pelos que são adversos à própria definição, tendo como exemplo o
episódio das respostas da sociedade internacional ao tema da proteção de direitos humanos em
Darfur. Pelo fato da Responsabilidade de Proteger determinar que a responsabilidade
primordial com o respeito aos direitos humanos de uma população incide sobre o próprio
Estado, os que deliberam uma atitude não intervencionista explicam que em situações no qual
não existe consenso, a sociedade internacional não deve interferir, porque a responsabilidade
recai sobre o Estado. Os não intervencionistas terminaram por trocar o argumento da
soberania absoluta pelo argumento da responsabilidade primordial do Estado. Mesmo que a
grande maioria dos Estados não se contraponha à responsabilidade do Conselho de Segurança
em atuar em situações de genocídio, ainda não se obteve uma conformidade sobre o ponto de
transição em que se confirma a inaptidão ou a ausência de desejo do Estado em assegurar os
direitos humanos de seus cidadãos.
Outra apreciação oferecida ao relatório da ICISS é o fato de que, mesmo que se
destaque o aspecto da reconstrução (responsibility to rebuild), o relatório reserva um lugar
comparativamente muito maior aos componentes relacionadas à intervenção militar do que às
noções de reconstrução e prevenção, mesmo que a própria ICISS delineie a prevenção como a
dimensão mais significativa da Responsabilidade de Proteger (SOUZANETO, 2010).
A ICISS não conseguiu mostrar uma relação entre contínuo de intervenção, aspectos
de reconstrução e prevenção. Também, a obrigação de precaver não foi bem decidida, nem em
relação de como os Estados e a sociedade internacional precisariam atuar preventivamente.
Existe uma contradição, na polêmica sobre prevenção, por motivo dos seguintes fatores que
exemplificam as razões justas de uma intervenção: perdas de vida em alta escala e limpeza
58
étnica. Todavia, no aspecto da prevenção, o relatório assegura que se necessita agir conforme
as causas densas e diretas dos conflitos internos (BELLAMY, 2009).
Muitas nações também são descrentes em relação a R2P. O primeiro grupo de países
seria formado por Estados que perpetram oposição à definição como modo de diminuir ou
neutralizar esforços por parte da sociedade internacional em acrescer a habilidade de
interferência de instituições internacionais nos temas domésticos dos Estados. Formariam este
grupo: Cuba, Paquistão, Argélia, Irã, Zimbábue e Venezuela. O segundo grupo seria um
combinado de Estados mais dominantes, como Índia, Rússia, China, Filipinas, para os quais a
preocupação em relação à utilização de uma linguagem de proteção humanitária para explicar
intervenções humanitárias – como aconteceu na guerra do Iraque de 2003 – não
essencialmente revela uma rejeição ao conceito de Responsabilidade de Proteger
(BELLAMY, 2009). O Brasil se situaria no segundo grupo – não recusando inteiramente a
definição de Responsabilidade de Proteger, porém prudente em referência a como esse
conceito poderia ser usado por Estados, com o intuito de explicar uma intervenção militar
alicerçada em um argumento humanitário.
Na comemoração do 10º aniversário da adoção desse princípio, o secretário-geral da
ONU, Ban Ki-moon, citou muitas crises em todo o mundo, abarcando a Síria, o Iêmen e o
Sudão do Sul, e enfatizou que o princípio de Responsabilidade de Proteger, endossado por
líderes globais há uma década, precisa ser transformado em ação e mais deve ser realizado
para fornecer uma verdadeira proteção para os que necessitam (ONU, 2015). A Organização
solicitou, também, a renovação deste princípio para impedir novos genocídios e crimes contra
a humanidade.
2.2.2 Responsabilidade ao Proteger
Em 21 de setembro de 2011, diante do grande debate em relação à intervenção, dita
humanitária, na Líbia, na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque (EUA), a
Presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, pronunciou discurso começando os trabalhos da pauta.
Entre os muitos temas abordados, inseriu-se um item relativo à responsabilidade dos Estados-
membros daquela em resguardar sua população civil (MARCON, 2012). A presidenta
professou em seu discurso que se discute bastante sobre a Responsabilidade de Proteger, mas
pouco se fala sobre a Responsabilidade ao Proteger. E, que são definições que se necessita
amadurecer juntos.
59
Diante das aspirações da sociedade internacional referentes à aplicabilidade da R2P
em situações de intervenções humanitárias, a Embaixadora Maria Luiza Viotti, então
representante fixa do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York, discursou em nome do
ex-Ministro das Relações Exteriores, Antônio de Aguiar Patriota, no Debate Aberto do
CSNU, sobre a Proteção de Civis em Conflitos Armados, quando sugeriu uma meditação
sobre como a relação entre a manutenção da paz e a segurança internacional evoluiu
atualmente, e como lidar com os diversos desafios encarados. De forma a aprofundar o
debate, a delegação do Brasil, em um esforço incomum para o país até então, solicitou ao
Secretário Geral das Nações Unidas que circulasse, como anexo ao discurso, documento
chamado de “Responsabilidade ao Proteger: Elementos para o Desenvolvimento e Promoção
de um Conceito” (SOARES, 2014, p. 10).
Essa responsabilidade se reporta ao comprometimento que os Estados Nacionais
possuem, ao, validamente, tomarem medidas procurando a manutenção da paz e a segurança
internacionais e, realmente, resguardarem seus civis, os quais, usualmente, terminam por ser
os mais prejudicados e muito comprometidos em consequência de conflitos (MARCON,
2012).
A questão foi levantada, sobretudo, como consequência da comprovação de que,
muitas intervenções militares decorridas, no objetivo de exercer as obrigações de proteger,
implicaram em uma gravidade nos conflitos e acréscimo da violência, assim como aumento
da vulnerabilidade de civis, os quais, diversas vezes, eram (e são) deixados à própria sorte,
sem condições ínfimas para autodefesa. Daí a importância da questão da responsabilidade ao
proteger, que procura impedir ou solucionar esse panorama. Isso porque, se a Organização das
Nações Unidas tem o privilégio de aprovar a utilização da força, deve apenas fazê-lo depois
de avaliar, objetivamente, os perigos abrangidos, assim como as formas de impedir lesões aos
civis, em razão de ser plausível que uma missão ocasione mais danos do que o conflito para o
qual se prontificou a solucionar (MARCON, 2012).
O Brasil, nessa esfera, demonstra a crença de que mesmo quando alicerçada na justiça,
na legalidade e na legitimidade, uma atitude militar sempre implica em elevados custos
humanos e materiais. Deste modo, é imprescindível valorizar, procurar e exaurir todas as
soluções diplomáticas em situação de todo conflito. A utilização da força, como um
comedimento excepcional aceito pela sociedade internacional, precisa ser antecedido por uma
avaliação abarcante e cuidadosa das possíveis decorrências da utilização de uma ação militar
situação por situação (BRITTO, 2012).
60
No país, há uma crescente percepção de que a definição de ‘’responsabilidade de
proteger’’ pode ser aproveitada para desígnios que não o de proteger, como alteração de
regime (BRITTO, 2012). Aqui, existe uma referência disfarçada à intervenção na Líbia, em
2011, que será abordada no capítulo seguinte.
O documento ainda elucida que, no decorrer do exercício da R2P, a sociedade
internacional precisa demonstrar um significativo encargo ao proteger, de forma que ambas as
definições consigam evoluir de modo conjunto (SOUSA, 2013).
Assim, os seus princípios são: os três pilares da R2P “devem seguir uma linha estrita
de subordinação política e sequenciamento cronológico” (§ 6); todos os meios pacíficos
devem ser esgotados; “uma análise ampla e judiciosa das consequências da ação militar” (§ 7)
deve preceder o exame da possibilidade de uso da força; apenas o Conselho de Segurança
pode autorizar o uso da força, nos termos do Capítulo VII da Carta, ou (o que é digno de nota)
“em circunstâncias excepcionais, a Assembléia Geral, em consonância com a resolução 377
(V)” (§ 11 c); a autorização para o uso da força deve “se limitar a seus elementos jurídicos,
operacionais e temporais”, e seu cumprimento deve se ater “à letra e ao espírito” do mandato
explícito (§ 11 d); para garantir o acompanhamento adequado e avaliação da interpretação e
aplicação da Responsabilidade ao Proteger, “é necessário que os procedimentos do Conselho
sejam aperfeiçoados” (§ 11h) (BENNER, 2013, p. 37).
O Conselho de Segurança ainda é comprometido a “assegurar que aqueles a quem for
outorgada autoridade de decisão pelo uso da força sejam responsabilizados por seus atos”
(§ 11i) (BENNER, 2013, p. 37).
Mesmo com os descrentes e negativos, por ocasião de o princípio ser sugerido, nos
fins da primavera e o verão de 2012, muitas nações ocidentais abdicaram de sua aversão ao
conceito da RWP em prol de uma aliciação mais construtiva. Isso se deveu em parte a esses
países, com algum atraso, terem se conscientizado de que a RWP possuía o potencial de
estancar cada vez mais a acirrada contestação que peculiarizava a discussão geral sobre a R2P
(BENNER, 2013).
O princípio da Responsabilidade ao Proteger foi instituído com o objetivo de
responder à derrota da intervenção na Líbia. Compreende-se por derrota a situação de que a
intervenção não obteve êxito em restaurar a paz e cessar as mortandades, porque ainda em
2015, quatro anos depois da intervenção, ocorreram ordenadas agressão humanitárias. Nesse
âmbito, no próximo capítulo será discutido o que aconteceu de errado na intervenção da Líbia.
61
3 PRIMAVERA ÁRABE E O CONTEXTO ESPECÍFICO DA LÍBIA
3.1 PRIMAVERA ÁRABE E O CONTEXTO DA LÍBIA
Em 2010, o falecimento de Mohammed Boauzzi, um jovem tunisiano que lançou fogo
em seu próprio corpo como modo de protesto por não poder se proteger diante do governo
local, depois do confisco dos bens de sua venda pela polícia de sua nação, provocou uma onda
de protestos mais intensos que derrubaram o ditador Ben Ali, no poder por 23 anos (JUNIOR,
2011). Movidos pelos episódios do país vizinho, apareceram manifestações contra o regime
político falido do presidente Hosni Mubarak, no Egito. A revolta civil centralizada em volta
de Praça Tahrir, no Cairo, conseguiu derrubar, em somente três semanas, a ditadura que
vigorava por mais de trinta anos (ROCHA, 2013).
A onda de revoltosas, denominada desse modo de Primavera Árabe, alastrou-se77 pelas
outras nações78 da região, conduzindo ao esfacelamento de certos regimes ditatoriais. Na
Jordânia, no Marrocos e na Argélia, por exemplo, as paralisações possuem decorrência em
respostas positivas por parte de seus governos, já na situação do Líbano, Egito e Líbia, as
revoltas se alteraram para guerras civis reais, implicando na deposição de chefes de Estado e
naquele último, ao assassinato do ditador Muamar Kadhafi (JUNIOR, 2011).
Na metade do ano de 2011, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, Navi Pillay, em uma conferência de imprensa na sede do Alto Comissariado, na
Suíça, realizou um balanço da Primavera Árabe e como ela estava impactando o conceito a
respeito dos direitos humanos na região:
[...] as ações coletivas do povo do norte de África e do Oriente Médio têm
reafirmado a importância e universalidade dos direitos humanos de uma
maneira que não poderíamos ter sonhado em 1° de janeiro deste ano. Todos
queremos, todos merecemos e todos devemos ter nossos direitos
resguardados – não parcialmente, não ocasionalmente, não ao sabor de
ditadores ou outros governantes e autoridades repressoras, mas o tempo
todo, em todos os lugares. Essa é a grande mensagem da Primavera Árabe, e
77 Destaca-se o papel das redes sociais na difusão da informação e a diversidade dos atores envolvidos: partidos
políticos, organizações religiosas, grupos de interesse e grupos de oposição política aos governos, tendo destaque
os jovens e facções militares dissidentes. Por fim, estes movimentos sociais não estão livres do contexto em que
o mundo se encontrava: a crise econômica e financeira internacional refletira em desemprego, escassez e falta de
alimento a muitos setores das populações. No mundo árabe não foi diferente (ROCHA, 2013, p. 162) 78 Como Argélia, Bahrein, Egito, Síria, Líbia, Iêmen, Jordânia, Marrocos, Omã.
62
é uma mensagem que tem reverberado em todo o mundo, estimulando a
discussão e o diálogo, e renovado a esperança no poder do povo para realizar
mudanças.
Depois da abdicação do presidente do Egito, Hosni Mubarak, em 15 de fevereiro, os
protestos iniciaram na Líbia. O protesto social foi preparado em muitos municípios líbios
(sobretudo: Bengahzi e Tobruk), e teve como motivo a prisão do ativista dos direitos
humanos, Fathi Terbil (PUREZA, 2012). Nos próximos dias, já estavam espalhados os
protestos contra o governo, inclusive para outros municípios. Com medo de um efeito
dominó, as forças de segurança usaram força letal e 14 pessoas foram mortas violentamente.
Ativistas em favor da primavera árabe, sobretudo os do exterior, com melhor inserção aos
meios de comunicação social, solicitaram manifestações para o que seria um Dia de Fúria. Em
17 de fevereiro, mesmo com as intimidações do governo de que seriam utilizadas munições
pesadas para espalhar as multidões, enormes manifestações aconteceram em pelo menos
quatro grandes cidades, incluindo Benghazi e Trípoli (ROCHA, 2013).
Segundo publicação da Human Rights Watch, do dia 17 de fevereiro, "as forças de
segurança líbias mataram pelo menos 24 manifestantes e feriram muitos outros em uma
repressão de manifestações pacíficas em todo o país"79. As manifestações aumentaram
velozmente em escala e atrocidade, até que evoluiu para um enorme levante popular contra
Kadafi. Quer dizer, o que era no princípio uma simples demonstração de descontentamento
em relação ao governo, tornou-se numa rebeldia de milícias de voluntários que se
constituíram em todo o leste do país (ROCHA, 2013, p. 163).
No dia 21 do mesmo mês, o coronel Muammar Kadafi fez sua primeira aparição
pública desde o início dos protestos, em um pronunciamento transmitido ao vivo pela
televisão estatal líbia. Nesse discurso, segundo o site da BCC Brasil80 (2011, p. 4, tradução
nossa), o então presidente líbio implorou para a população sair às ruas, limpando casa por
casa: “Saiam de suas casas, ataquem eles em suas tocas. Retirem seus filhos das ruas. Eles
estão drogando seus filhos, eles estão embebedando seus filhos e estão mandando eles para o
79 "The Libyan security forces killed at least 24 protesters and wounded many others in a crackdown on peaceful
demonstrations across the country" (HRW, 2011, tradução nossa). 80 Como não poderia deixar de ser, devido a atualidade dos acontecimentos, grande parte da bibliografia deste
capítulo é composta por matérias de jornais e revistas.
63
inferno”81. Ele pede que os seus apoiadores capturem os ratos (se reportando à população) e
“limpem a Líbia, casa por casa”82.
No dia 22 de fevereiro, a Alta Comissária para Direitos Humanos, Navi Pillay,
comunicou que as autoridades líbias "devem cessar imediatamente tais atos ilegais de
violência contra os manifestantes. Ataques generalizados e sistemáticos contra a população
civil podem ser consideradas crimes contra a humanidade"83 (tradução nossa). No mesmo dia,
a Liga dos Estados Árabes (LAS na sigla em inglês), suspendeu a participação da Líbia na
organização até que a violência parasse. Ainda no dia 22, o CSNU, na Security Council Press
Statement on Libya, também expressou sua preocupação em relação à situação na Líbia,
“condena a violência e o uso da força contra civis”, “apela para o fim imediato da violência”,
e pediu ainda que o governo líbio “cumpra a sua responsabilidade de proteger a sua
população” 84 (grifo nosso, tradução nossa).
Três dias após, o Conselho de Direitos Humanos (CDH) aprovou a Resolução S-15/2,
que apelou para o governo líbio que defendesse a sua responsabilidade de proteger e cessar
todas as violações dos direitos humanos, determinando uma comissão internacional de
inquérito, solicitou à Assembléia Geral suspender a Líbia do Conselho (UNITED NATIONS,
A/HRC/19/68). Em resposta, a Assembléia Geral, por unanimidade, suspendeu a adesão da
Líbia ao CDH em 1º de março. Mais tarde, em 1º de Junho, o relatório apresentado CDH pela
Comissão Internacional de Inquérito afirmou que o governo líbio e as forças de oposição
cometeram crimes contra a humanidade e crimes de guerra desde o início da crise (ROCHA,
2012).
Em 23 do mesmo mês, o 265th encontro do Conselho de Segurança e Paz da União
Africana também condenou o "uso indiscriminado da força e armas letais, da onde quer que
venha, resultando na perda da vida, tanto de civis como militares, e a transformação de
manifestações pacíficas em uma rebelião armada" e sublinhou a "legitimidade das aspirações
81 "Come out of your homes, attack them in their dens. Withdraw your children from the streets. They are
drugging your children, they are making your children drunk and sending them to hell" (BBC BRASIL, 2011,
p.4) 82 “Cleanse Libya house by house” (BBC BRASIL, 2011, p.4) 83 "Should immediately cease such illegal acts of violence against demonstrators. Widespread and systematic
attacks against the civilian population may amount to crimes against humanity" (PILLAY, 2011) 84 "Condemned the violence and use of force against civilians", "called for an immediate end to the
violence","meet its responsibility to protect its population" (CSNU, 2011).
64
do povo líbio para a democracia, a reforma política, a justiça, a paz e a segurança, bem como
para o desenvolvimento socioeconômico"85 (tradução nossa).
Por toda Líbia, membros do governo, militares, líderes tribais, e unidades do exército
desertaram e juntaram-se à oposição, principalmente a partir 22 de Fevereiro, dia em que o
governo líbio começou a alvejar civis em bombardeios aéreos. Um governo de oposição
provisória, mais tarde denominado de Conselho Nacional de Transição foi criado em 26 de
fevereiro de 2011, sob a liderança do ex-ministro da Justiça, Mustafa Abdul Jalil, o primeiro
funcionário do governo a desfazer os vínculos com Kadafi (ROCHA, 2013).
Respondendo às solicitações da Liga Árabe, da União Africana e da Organização da
Conferênca Islâmica, o Conselho de Segurança aprovou, em 26 de fevereiro, a Resolução
1970 para condenar as "graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário
internacional, que estão a ser cometidos na Primavera Árabe Líbia"86 (UNITED NATIONS,
2011, p. 1, tradução nossa).
A Resolução 1970 (de 26 de fevereiro de 2011) veio impor sanções financeiras87
especificamente dirigidas, obrigar a um embargo de armas88, remeter a situação para o
Tribunal Penal Internacional, ordenar a intensificação da via diplomática, e exigir uma
solução pacífica para o conflito. Uma análise recente recomenda que, com a Resolução
197089, o Conselho quase esgotou o seu “estojo preventivo”, ficando a um passo de autorizar
a utilização da força militar (REIKE apud BELLAMY, 2014).
85 "Indiscriminate use of force and lethal weapons, whoever it comes from, resulting in the loss of life, both
civilian and military, and the transformation of pacific demonstrations into an armed rebellion", "legitimacy of
the aspirations of the Libyan people for democracy, political reform, justice, peace and security, as well as for
socio‐economic development" (CONSELHO DE SEGURANÇA E PAZ DA UNIÃO AFRICANA, 2011). 86 "Serious violations of human rights and international humanitarian law that are being committed in the
Libyan Arab Jamahiriya" (UNITED NATIONS, 2011, p. 1). 87 “Decide que todos os Estados Membros deverão congelar sem demora todos os fundos, outros ativos
financeiros e recursos econômicos que estejam em seus territórios - e que sejam de propriedade ou controlados,
direta ou indiretamente, pelos indivíduos ou entidades listados no Anexo II desta resolução (...)” (UNITED
NATIONS, 2011). 88 “Decide que todos os Estados Membros deverão tomar imediatamente as medidas necessárias para impedir o
fornecimento, venda ou transferência, diretos ou indiretos, para a Jamahiriya Árabe da Líbia - a partir ou através
de seus territórios ou por seus nacionais, ou utilizando suas embarcações ou aeronaves de bandeira - de
armamento ou material conexo de todo tipo, inclusive armas e munição, veículos militares e equipamento,
equipamento paramilitar e respectivas peças de reposição, bem como de assistência técnica, treinamento,
assistência financeira ou outra para atividades militares ou para o abastecimento, manutenção ou utilização de
qualquer armamento e material conexo, inclusive o fornecimento de pessoal mercenário armado, originário ou
não de seus territórios” (UNITED NATIONS, 2011). 89 “Decide que todos os Estados Membros deverão tomar as medidas necessárias para evitar a entrada ou
trânsito, em seus territórios, de indivíduos listados no Anexo I desta resolução, ou designados pelo Comitê
estabelecido nos termos do parágrafo 24 abaixo (...) “(UNITED NATIONS, 2011).
65
A Resolução condena a agressão e a utilização da força contra civis, lastima a brutal e
ordenada violação dos direitos humanos, que insere a repressão contra manifestantes pacíficos
e recusa de maneira inconfundível o incitamento à hostilidade e à brutalidade contra a
população civil, exercidas pelos mais altos domínios do governo líbio (BELLAMY, 2014).
Nesse sentido, conforme Pureza (2012, p. 13), “evocando a responsabilidade das
autoridades líbias de proteger sua população”, e “agindo em conformidade com os termos do
Capítulo VII da Carta das Nações Unidas”, o Conselho “exige o fim imediato da violência”;
“insta as autoridades líbias a […] garantir a entrada com segurança de suprimentos
humanitários e médicos e de agências e profissionais humanitários no país”; “decide
encaminhar a situação da Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia, iniciada em
15 de fevereiro de 2011, ao Procurador do Tribunal Penal Internacional”; “decide que todos
os Estados membros adotarão imediatamente as medidas necessárias para evitar o
fornecimento, venda ou transferência, de forma direta ou indireta, à Grande Jamahiriya Árabe
Popular Socialista da Líbia […] de armas e todos os tipos de materiais correlacionados”.
Na sequência, a resolução também “decide que todos os Estados membros adotarão as
medidas cabíveis para evitar a entrada ou a circulação em seus territórios” de dezesseis altas
individualidades do regime líbio; “decide que todos os Estados membros congelarão sem
demora todos os fundos, outros bens financeiros e recursos econômicos que estejam em seus
territórios e que sejam de propriedade” de seis dessas personalidades; cria um comitê de
sanções com mandato para supervisionar o cumprimento dessas medidas; e “insta todos os
Estados membros […] a facilitar e apoiar o retorno de entidades humanitárias e disponibilizar
a assistência humanitária” à Líbia (PUREZA, 2012, p. 14).
A Resolução 1970 terminou por não ser controversa, mesmo que alguns componentes
do Conselho tenham ressaltado, em consultas informais, que não estão aparelhados para
apoiar meios mais coercivos (BELLAMY, WILLIAMS, 2011). A Rússia argumentou:
[...] a settlement of the situation in Libya is possible only through political
means. In fact, that is the purpose of the resolution … which imposes
targeted, clearly expressed, restrictive measures with regard to those guilty
of violence against the civilian population. However, it does not enjoin
sanctions, even indirect, for forceful interference in Libya’s affairs, which
could make the situation worse90 (UNITED NATIONS, 2011, p. 1).
90 “[...] Um acordo sobre a situação na Líbia só é possível através de meios políticos. Na verdade, esse é o
propósito da resolução...que impõe como alvo, claramente expresso, medidas restritivas em relação aos culpados
de violência contra a população civil. No entanto, ele não impõem sanções, ainda que indireta, de interferência
66
De acordo com Bellamy e Williams (2011), três fatores alteraram esse episódio e
auxiliaram a persuadir os componentes do Conselho a utilizar medidas de enforcment, mesmo
com a abstenção de cinco membros. O primeiro foi a intransigência dos líbios, junto com a
deterioração do caso dentro do país, com a perda iminente de Benghazi pelos rebeldes e
temores de que as forças de Kadafi iriam praticar lá um massacre. Na frente diplomática, o
regime de Kadafi recusou as exigências deliberadas na Resolução 1970 e não aceitou
possibilitar que os comboios de auxílio humanitário chegassem em cidades sitiadas, como
Misrata e Ajdabiya. O Secretário-Geral91 das Nações Unidas contatou pessoalmente o líder
líbio e em uma conversa de 40 minutos para tentar convencê-lo a colaborar, porém falhou
(BELLAMY; WILLIAMS, 2011).
O segundo fator assinalado por Bellamy e Williams (2011) foi o fato de Reino Unido e
França aumentarem a coação para que tivesse uma resposta internacional mais rígida à crise,
inserindo um projeto de resolução sobre uma zona de exclusão aérea, muitos dias antes das
negociações sobre a Resolução 1973 iniciarem.
Em 7 de março, o Conselho de Cooperação do Golfo (GCC sigla em inglês) solicitou
ao CSNU que"tomar todas as medidas necessárias para proteger os civis, incluindo impor uma
zona de exclusão aérea sobre a Líbia" e condenou os "crimes cometidos contra civis, o uso de
armas pesadas e o recrutamento de mercenários pelo regime líbio"92.
No dia 10 de março, a OTAN divulgou que estava conduzindo navios extras para a
região com a finalidade de auxiliar os esforços da ajuda humanitária e sua própria habilidade
de controlar a crise. O Secretário Geral, Anders Fogh Rasmussen, falou que os navios iriam
"melhorar o conhecimento da situação da OTAN que é vital nas atuais circunstâncias e eles
vão contribuir para a nossa capacidade de vigilância e monitoramento, incluindo no que diz
pela força nos assuntos da Líbia, o que poderia tornar a situação pior” (UNITED NATIONS, 2011, p. 1, tradução
nossa). 91 O Secretário-Geral manifestou profunda preocupação com o aumento crescente da violência e ressaltou que
ela deve parar imediatamente. Ele reiterou o seu apelo ao respeito pelas liberdades fundamentais e direitos
humanos, incluindo de associação pacífica e de informação. Disponível em: <http://unicrio.org.br/relato-da-
conversa-do-secretario-geral-da-onu-ban-ki-moon-com-o-lider-libio-coronel-muammar-al-kadhafi/> 92 "Take all necessary measures to protect civilians, including enforcing a no-fly zone over Libya" e condenou os
"crimes committed against civilians, the use of heavy arms and the recruitment of mercenaries by the Libyan
regime" (GCC, 2011).
67
respeito ao embargo de armas estabelecido pela Resolução 1970 do Conselho de Segurança
das Nações Unidas"93.
Em 12 de março, a Liga Árabe94 pediu ao Conselho de Segurança para:
[...] to bear its responsibilities towards the deteriorating situation in Libya,
and to take the necessary measures to impose immediately a no-fly zone on
Libyan military aviation, and to establish safe areas in places exposed to
shelling as a precautionary measure that allows the protection of the Libyan
people and foreign nationals residing in Libya, while respecting the
sovereignty and territorial integrity of neighboring States95.
[...] to cooperate and communicate with the Transitional National Council of
Libya and to provide the Libyan people with urgent and continuing support
as well as the necessary protection from the serious violations and grave
crimes committed by the Libyan authorities, which have consequently lost
their legitimacy96.
O último fator é a combinação de uma simples solidariedade humanitária e
oportunismo que cumpriram um papel significativo. Reporte de abusos líbios e mobilização
de grupos de oposição em toda a África do Norte e Oriente Médio conduziram demandas por
93 "Improve NATO’s situational awareness which is vital in the current circumstances and they will contribute
to our surveillance and monitoring capability, including with regard to the arms embargo established by the UN
Security Council Resolution 1970" (OTAN, 2011). 94 Infelizmente, não temos uma boa compreensão de por que o LAS, um adversário de longa data da intervenção
humanitária, aprova essa decisão; mas há uma série de fatores que podem ter desempenhado um papel. Em
primeiro lugar, vários fatores contextuais imediatos podem ter influenciado a decisão: a reunião foi impulsionado
pelo pró-EUA CCG agrupamento; apenas onze membros LAS estiveram presentes, com o CCG em maioria; e a
reunião foi realizada no Cairo, no rescaldo da derrubada de Hosni Mubarak e presidido pelo novo governo
egípcio. Seria insensato exagerar o papel de orientação pró-EUA do GCC, neste caso, uma vez que a
administração Obama ainda estava para endossar a idéia de uma zona de exclusão aérea e permaneceu sem
entusiasmo sobre opções militares em geral; no entanto, não é difícil ver como esse contexto pode ter ajudado a
facilitar a decisão (BELLAMY, WILLIAMS, 2011, p. 841, tradução nossa). Em segundo lugar, embora o regime
de Kadafi era um doador importante para a UA e uma variedade de Estados africanos, não era visto com
confiança em toda a África e no Oriente Médio, também pelo seu papel no abastecimento dos conflitos na
Libéria, Serra Leoa e Chade, bem como a Frente Popular radical para a Libertação da Palestina. Kadafi também
foi um rival de destaque para a influência regional com a Arábia Saudita e outros países do Golfo. Ele tinha
pessoalmente insultado personalidades árabes chave (BELLAMY, WILLIAMS, 2011, p. 842, tradução nossa).
Quaisquer que sejam as razões por trás da decisão da LAS, mudou a dinâmica do Conselho: fez oposição a uma
aplicação mais difícil; que trouxe os EUA a bordo, somando-se a viabilidade da opção militar; ele ajudou a
convencer os membros do Conselho Africano; e, finalmente, ele empurrou os membros céticos restantes em
relação a abstenção (BELLAMY, WILLIAMS, 2011, p. 846, tradução nossa). 95 “[...] Assumir as suas responsabilidades para com a deterioração da situação na Líbia, e para tomar as medidas
necessárias para impor imediatamente uma zona de exclusão aérea sobre a aviação militar líbia e para
estabelecer zonas de segurança em locais expostos ao bombardeio como medida de precaução que permitem a
proteção do povo líbio e estrangeiros residentes na Líbia, respeitando a soberania e a integridade territorial dos
Estados vizinhos” (LAS, 2011, tradução nossa). 96 “[...] Cooperar e se comunicar com o Conselho Nacional de Transição da Líbia e fornecer ao povo líbio apoio
urgente e contínuo, bem como a necessária proteção das graves violações e crimes graves cometidos pelas
autoridades líbias, que consequentemente perderam sua legitimidade” (LAS, 2011, tradução nossa).
68
ações na Líbia, enquanto a impopularidade de Kadafi na região fez uma postura ativista um
tanto fácil de aceitar. Realmente, certos governos regionais poderiam ter avaliado que virar a
atenção internacional sobre a Líbia iria afastar a atenção de suas próprias dificuldades. Como
opção, eles podem ter se inquietado em ser retratados como empecilhos para os direitos
humanos de uma forma que poderia ter estimulado a oposição interna (BELLAMY,
WILLIAMS, 2011).
Em 16 de março, segundo o site BCC BRASIL (2011, p. 3), Khadafi fez um discurso
em que ameaçou lançar uma ofensiva contra a cidade de Benghazi. Segundo o então
presidente líbio, "os opositores que largarem as armas serão anistiados, mas não haverá
misericórdia nem compaixão com os restantes".
3.2 LÍBIA: UM CASO DE INTERVENÇÃO HUMANITÁRIA?
Foi nesta conjuntura que os componentes do Conselho de Segurança discutiram sobre
autorizar a utilização da força para situar uma zona de exclusão aérea e resguardar os civis.
Aconteceu, porém, um rol de pontos de contestações. Mais expressivamente, dois membros
permanentes (China e Rússia) e três membros não permanentes (Índia, Brasil e Alemanha) do
Conselho de Segurança não estavam convictos da importância de utilizar a força militar e
descrentes sobre as motivações daqueles que apelaram para tal medida (BELLAMY;
WILLIAMS, 2011).
A votação ocorreu em 17 de março, e a Resolução 1973 foi aprovada com dez votos a
favor (Bósnia-Herzegovina, Colômbia, Líbano, Gabão, Nigéria, Portugal, África do Sul e os
membros permanentes França, Reino Unido e Estados Unidos) e cinco abstenções (Brasil,
China, Alemanha, Índia e Rússia). A Resolução repetiu a inquietação do Conselho que crimes
contra a humanidade poderiam ter ocorrido, deplorou a crise humanitária em curso e tomou
notas das críticas do regime de Kadafi realizadas por uma série de organizações
internacionais, citadas no tópico anterior, principalmente a Liga Árabe, a qual pediu ao CSNU
uma zona de exclusão aérea e áreas garantidas para proteger os civis (BELLAMY,
WILLIAMS, 2011).
A respeito das justificativas para as abstenções, o Brasil declarou que "nosso voto de
hoje não deve de maneira alguma ser interpretado como endosso do comportamento das
autoridades líbias ou como negligência para com a necessidade de proteger a população civil
e respeitarem-se os seus direitos", mas "não estamos convencidos de que o uso da força como
69
dispõe o parágrafo operativo 4 (OP4) da presente resolução levará à realização do nosso
objetivo comum – o fim imediato da violência e a proteção de civis". Demonstrou-se também
preocupado com a "possibilidade de que tais medidas tenham os efeitos involuntários de
exacerbar tensões no terreno e de fazer mais mal do que bem aos próprios civis com cuja
proteção estamos comprometidos" (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2011,
p. 2).
A delegação da Rússia alegou que eram "defensores consistentes e firmes da proteção
da população civil", mas argumentou que "a maneira mais rápida para garantir a segurança
robusta para a população civil e a estabilização em longo prazo da situação na Líbia é um
cessar-fogo imediato". A China reconheceu as tentativas de proteger os civis, mas também
observou a sua oposição ao uso da força e ao fato de que "nós e outros membros do Conselho
fizemos perguntas específicas97 a cerca da Resolução 1973", mas não obtiveram respostas
(BELLAMY, WILLIAMS, 2011, p. 844).
A Alemanha ressaltou que estava "particularmente preocupada com a situação do povo
líbio", porém que viu "grandes riscos na Resolução e que a probabilidade de perda em grande
escala da vida não deve ser subestimada". E a Índia também expressou grande inquietação
com o bem-estar da população da Líbia, mas criticou o fato de a resolução ser alicerçada em
"muita pouca informação clara, incluindo uma falta de certeza sobre quem ia aplicar as
medidas" (UNITED NATIONS, 2011b, p. 2)98
A Resolução 1973, de 2011, definiu que o caso da Líbia permanece sendo uma ameaça
à paz e à segurança internacional, e atuando sob o Capítulo VII da Carta, declara, entre outras
coisas, que:
[...] authorizes Member States that have notified the Secretary-General,
acting nationally or through regional organizations or arrangements, and
acting in cooperation with the Secretary-General, to take all necessary
measures99, notwithstanding paragraph 9 of resolution 1970 (2011), to
97 “Um problema adicional identificado pela China, Rússia e Índia girava em torno de questões processuais e
pragmáticas que foram deixadas sem resposta na resolução. Como a zona de exclusão aérea seria executada?
Quais ativos seriam usados? Quais seriam as regras do engajamento da coalizão? E o que o final do jogo político
implicaria?” (BELLAMY, WILLIAMS, 2011, p. 843, tradução nossa) 98 Disponível em: <http://www.un.org/press/en/2011/sc10200.doc.htm> 99 Em outras resoluções, o CSNU já havia autorizado a utilização do uso da força para propósitos humanitários.
Com efeito, na Resolução 794 (de dezembro de 1992) o Conselho autorizara a Força de Intervenção Unificada a
entrar na Somália para aliviar a crise humanitária, mas isso foi em contexto de ausência de governo e não
propriamente contra um governo. Do mesmo modo, através da Resolução 929 (de junho de 1994) o Conselho de
Segurança deu autorização para a Operação Turquesa, sob comando da França, com o ostensivo propósito
humanitário de proteger as vítimas do genocídio então em curso no Ruanda. Apesar de uma certa preocupação
70
protect civilians and civilian populated areas under threat of attack in the
Libyan Arab Jamahiriya, including Benghazi, while excluding a foreign
occupation force of any form on any part of Libyan territory, and requests
the Member States concerned to inform the Secretary-General immediately
of the measures they take pursuant to the authorization conferred by this
paragraph which shall be immediately reported to the Security Council 100(UNITED NATIONS, 2011, p. 4).
A Resolução refere, ainda: "o estabelecimento imediato de um cessar-fogo e um fim
completo à violência e todos os ataques contra, e abusos de, civis" e realça a precisão de
"intensificar os esforços para encontrar uma solução para a crise que responde às demandas
legítimas do povo líbio"101 (tradução nossa).
A Resolução aprovada impôs um campo de exclusão aéreo, o que representa que, em
certa área, aviões de qualquer classe – tanto civis quanto militares – ficariam impossibilitados
de circular, com o desígnio de resguardar civis e populações que estivessem sob ameaça de
ataque das forças de Kadafi. Uma das inquietações de alguns países seria de que a ação da
OTAN iria fornecer armamentos para a população que estava contra o presidente Kadafi
(CASAS; FURTADO, 2011).
Decides to establish a ban on all flights in the airspace of the Libyan Arab
Jamahiriya in order to help protect civilians[…]; Decides further that the ban
imposed by paragraph 6 shall not apply to flights whose sole purpose is
humanitarian, such as delivering or facilitating the delivery of assistance,
including medical supplies, food, humanitarian workers and related
generalizada quanto às motivações do Governo francês, a Operação Turquesa contou com o consentimento do
Governo provisório do Ruanda e das suas Forças Armadas. Por meio da Resolução 940 (de setembro de 1994), o
Conselho de Segurança autorizou o uso da força militar para derrubar a junta haitiana. Mas esta missão não só
teve o explícito apoio das autoridades legítimas do Haiti (S/1994/905, anexo) como assentou a sua justificação
primacialmente na referência à defesa da democracia, de tal modo que a proteção dos civis haitianos foi deixada
apenas implícita nas alusões feitas pela Resolução à necessidade de a força de intervenção manter um “ambiente
seguro e estável” (parágrafos dispositivos 4 e 9‐ A). Mais recentemente, o Conselho de Segurança autorizou o
uso de todas as medidas necessárias à proteção de civis na República Democrática do Congo, no Sudão, no
Sudão do Sul e na Costa do Marfim, porém as operações dos capacetes azuis nestes países ocorreram, na sua
totalidade, com a permissão oficial das respectivas autoridades legítimas (BELLAMY, 2014, p. 46). 100 “[...] Autoriza os Estados-Membros que tenham notificado o Secretário-Geral, agir a nível nacional ou através
de organizações ou acordos regionais, e em cooperação com o Secretário-Geral, a tomar todas as medidas
necessárias, não obstante o parágrafo 9 da Resolução 1970 (2011) , para proteger civis e áreas povoadas de civis
sob ameaça de ataque na Primavera Árabe Líbia, incluindo Benghazi, excluindo uma força de ocupação
estrangeira de qualquer forma e em qualquer parte do território líbio, e solicita aos Estados-Membros em causa
que informem o Secretário-Geral imediatamente das medidas que tomarem em conformidade com a autorização
conferida por este número, que deverá ser imediatamente comunicada ao Conselho de Segurança” (UNITED
NATIONS, 2011, p. 4, tradução nossa). 101 "The immediate establishment of a cease-fire and a complete end to violence and all attacks against, and
abuses of, civilians" e realça a precisão de "intensify efforts to find a solution to the crisis which responds to the
legitimate demands of the Libyan people" (UNITED NATIONS, 2011)
71
assistance, or evacuating foreign nationals from the Libyan Arab
Jamahiriya102.
Em 19 de março de 2011, forças militares da França, do Canadá, do Reino Unido e
dos Estados Unidos da América atacaram as defesas antiaéreas e os soldados do regime de
Muammar Kadhafi, na Líbia. Estes países encabeçaram uma coligação alargada de Estados
com a finalidade expressa de fazer cumprir os objetivos definidos pela Resolução 1973, do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, concretamente no respeitante ao estabelecimento
de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, à imposição de um embargo de armas e à
proteção de civis (BELLAMY, 2014).
No dia seguinte, teve lugar em Paris uma cimeira em que se acertaram as modalidades
iniciais da "Operação Amanhecer da Odisséia". Estiveram envolvidos representantes de 18
Estados (principalmente da Europa e da América do Norte, porém, também o Iraque,
Jordânia, Marrocos, Qatar e Emirados Árabes Unidos), assim como responsáveis da Liga
Árabe e da União Européia. Em 23 de março a direção da OTAN103 passou a estar incumbida
da aplicação do embargo de armas; em 26 de março esta organização104 acatou a
responsabilidade pela determinação da zona de exclusão aérea e, no dia 31 do mesmo mês,
chamou a si o domínio total das operações sobre o que se chamava agora "Operação Protetor
102 “Decide estabelecer uma proibição de todos os vôos no espaço aéreo da Líbia, a fim de ajudar a proteger os
civis [...]; Decide ainda que a proibição imposta pelo parágrafo 6 não se aplica aos vôos cuja única finalidade é
humanitária, tais como entregar ou facilitar a entrega de assistência, incluindo material médico, alimentos,
trabalhadores humanitários e assistência conexa, ou a evacuação de estrangeiros da Primavera Árabe Líbia”
(UNITED NATIONS, 2011, tradução nossa).
103 Com muitos países da OTAN, incluindo a Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Itália, Países Baixos,
Noruega, Espanha, Reino Unido e os Estados Unidos, que já haviam contribuído para a intervenção, a OTAN foi
a escolha lógica para assumir o comando, e concordou em fazê-lo em 27 de março. Nomeada de Operação
Protetor Unificado, a missão da aliança na Líbia consistia em três tarefas distintas: policiamento do embargo de
armas, patrulhar a zona de exclusão aérea e proteger civis (DAALDER; STAVRIDIS, 2012, p. 3). 104 “França e Reino Unido voaram sobre 40% do território, destruindo mais de um terço dos alvos. A Itália
forneceu aeronaves para missões de reconhecimento e, juntamente com a Grécia, o acesso a um grande número
de bases aéreas. Bélgica, Canadá, Dinamarca, Noruega, e os Emirados Árabes Unidos implantaram caças para as
operações de combate, e Jordânia, Holanda, Espanha, Suécia, Turquia e Qatar ajudaram a impor uma zona de
exclusão aérea. Muitos desses Estados, bem como a Bulgária e a Romênia, também implantaram meios navais
para aplicar o embargo de armas (DAALDER; STAVRIDIS, 2012, p. 4, tradução nossa). Washington forneceu
75% da inteligência, vigilância e reconhecimento de dados empregada para proteger os civis líbios e impor o
embargo de armas. Também contribuiu com 75% dos aviões de reabastecimento usados em todo a missão, sem
as quais os ataques não poderiam ter demorado perto dos alvos potenciais, a fim de responder rapidamente às
forças hostis ameaçando atacar civis. E os comandantes dos EUA na Europa tiveram de despachar rapidamente
mais de 100 militares para o centro de segmentação da OTAN desde o início da intervenção, quando ficou claro
que outros Estados membros não tinham o conhecimento e experiência para fornecer suas aeronaves com a
informação correta” (DAALDER; STAVRIDIS, 2012, p. 6, tradução nossa).
72
Unificado". Tal participação não abarcou a totalidade dos componentes da OTAN, ficando de
fora, nomeadamente, países como a Polônia e a Alemanha. Porém, a Aliança Atlântica
conseguiu contar com a união de outros, como foram os casos da Suécia, Jordânia, Qatar e
Emirados Árabes Unidos. Em 4 de abril, o presidente Barack Obama extraiu do combate
direto as forças estadunidenses, após o que a parte mais importante das missões de combate
seria travada pela França, Grã-Bretanha, Itália, Dinamarca, Bélgica, o Canadá, os Emirados
Árabes Unidos, o Qatar e a Noruega (BELLAMY, 2014).
Segundo Bellamy e Williams (2011), assim que a Resolução foi aprovada, apareceram
diferenças em relação à forma como o mandato deveria ser interpretado. A OTAN e seus
aliados-chaves, como o Qatar e a Jordânia, interpretaram o mandato como fornecedor de
alicerce para uma ampla gama de atividades militares, inserindo o cancelamento da defesa
aérea, força aérea e outras capacidades de aviação líbias, assim como a utilização da força
contra a habilidade de sustentar forças em campo e suas aptidões de comando e controle, com
base em que as forças armadas da Líbia instituíam uma ameaça aos civis.
Outros atores, todavia, interpretam a ação da OTAN como indo além do mandato.
Segundo Cody (2011), o Secretário Geral da Liga Árabe, Amr Moussa, criticou o casto
escopo da campanha de bombardeio EUA-Europa: "a aprovação de uma zona de exclusão
aérea em 12 de março pela Liga Árabe foi baseado em um desejo de evitar que a força aérea
do Moammar Gaddafi ataque civis e não no intuito de apoiar os intensos bombardeios e
ataques com mísseis". Moussa alegou também que "o que está acontecendo na Líbia difere do
objetivo de impor uma zona de exclusão aérea", "e o que nós queremos é a proteção de civis,
não o bombardeio de mais civis"105 (tradução nossa). Diante de tais afirmações, nota-se que a
intervenção não desempenhou o requisito da proporcionalidade, realçado pela corrente
solidarista, pela Agenda para a Paz e pelo relo relatório da Responsabilidade de Proteger.
Também, a OTAN destruiu infra-estrutura indispensável para a posterior reconstrução da
nação.
Deste modo, a Rússia declarou, no 6528th encontro do Conselho de Segurança (2011,
p. 9), que:
105 "Arab League's approval of a no-fly zone on March 12 was based on a desire to prevent Moammar Gaddafi's
air force from attacking civilians and was not designed to endorse the intense bombing and missile attacks".
Moussa alegou também que "what is happening in Libya differs from the aim of imposing a no-fly zone", "and
what we want is the protection of civilians and not the shelling of more civilians" (CODY, 2011).
73
[...] unfortunately, it must be noted that actions by the NATO-led coalition
forces are also resulting in civilian casualties, as was seen in particular
during recent bombings in Tripoli. We emphasize once again that any use of
force by the coalition in Libya should be carried out in strict compliance
with resolution 1973 (2011). Any act going beyond the mandate established
by that resolution in any way or any disproportionate use of force is
unacceptable106.
No mesmo encontro, a China também criticou a interpretação ampla do mandato
realizada pela OTAN:
China calls for the complete and strict implementation of the relevant
resolutions of the Security Council. The international community must
respect the sovereignty, independence, unity and territorial integrity of
Libya. The internal affairs and fate of Libya must be left up to the Libyan
people to decide. We are not in favour of any arbitrary interpretation of the
Council’s resolutions or of any actions going beyond those mandated by the
Council107 (SECURITY COUNCIL, 2011, p. 10).
Bellamy (2014) refere que a opinião geral segundo a qual as ações da OTAN e seus
coligados teriam extrapolado – ou teriam mesmo chegado a violar – os termos da Resolução
1973 se deve ao fato de que existiu: empenho ostensivo por parte da corporação no
significado de gerar a alteração de regime, mesmo que sem mandato característico para tal; o
aprovisionamento de armas a grupos rebeldes, potencialmente em violação do embargo ditado
pelo Conselho; e a ausência de abertura da OTAN para chegar a um pacto negociado, não
obstante ele estar explicitamente calculado na Resolução.
De início, vale perceber que certos atores estavam inquietos com o fato de a situação
na Líbia não ser o suficiente, ou não se encaixar em uma situação de genocídio. Para tanto,
Pattinson (2011, p. 217) aponta que deve se levar em conta primeiro se "a situação era
suficientemente grave no momento que a intervenção foi autorizada(a questão da justa causa),
106 “[...] Infelizmente, deve-se notar que as ações por parte das forças de coalizão lideradas pela OTAN também
estão resultando em mortes de civis, como foi visto, em particular, durante bombardeios recentes em Trípoli.
Ressaltamos mais uma vez que qualquer uso da força por parte da coalizão na Líbia deve ser realizado em estrita
conformidade com a resolução 1973 (2011). Qualquer ato que vai além do mandato estabelecido pela resolução
que, de qualquer forma ou de qualquer uso desproporcional da força é inaceitável” (SECURITY COUNCIL,
2011, p.9, tradução nossa) 107 “China apela à implementação completa e rigorosa das resoluções pertinentes do Conselho de Segurança. A
comunidade internacional deve respeitar a soberania, independência, unidade e integridade territorial da Líbia.
Os assuntos internos e destino da Líbia devem ser deixados para o povo líbio decidir. Nós não somos a favor de
qualquer interpretação arbitrária das resoluções do Conselho ou de quaisquer ações que vão além das autorizadas
pelo Conselho” (SECURITY COUNCIL, 2011, p. 10, tradução nossa).
74
e, segundo, quais foram os motivos predominantes da intervenção (questão da intenção
correta)"108 (tradução nossa).
Para tanto, Pattinson (2011) avalia se existe grande perda de vidas, com ou sem
desígnio genocida, que é produto de um ato deliberado ou negligenciado, ou se existe limpeza
étnica em alta escala, sendo por assassinar, por expulsão forçada ou ações de terrorismo e
estupro.
Ao que se percebe, nesse âmbito, a Líbia parece se adequar no perfil. Como já
referido, Kadafi deixou claro em discurso para a TV estatal que não teria piedade com quem
fosse seu oponente, e solicitou para que seus apoiadores fossem às ruas e limpassem a cidade
de Benghazi, se reportando à população como ratos. Desde Ruanda, não se via alguma coisa
tão explícita. Além disso, Pattinson (2011) descreve que no instante em que a intervenção
iniciou, o regime já tinha demonstrado sua disposição de utilizar a força contra seu próprio
povo, porque a quantidade calculada de mortos variavam de 1000 até 10.000.
Nessa esfera, parece que a intervenção exerceu um dos requisitos indicados por
Wheeler para ponderar uma intervenção legítima, o da emergência humanitária suprema.
Também, como citado anteriormente, no relatório da Responsabilidade de Proteger, a Líbia é
uma situação de violência em larga escala.
O ponto que se refere deste modo, não é se a quantidade de mortes bastava para uma
intervenção, já que havia evidências de mortes em grande escala, o problema é que haviam
casos muitos piores do que a Líbia, como a Síria, Yêmen e Bahrain. Conforme Pattinson
(2011, p. 276, tradução nossa), aconteceu a "omissão em resposta a casos similares"109.
Pattinson (2011) explica que a dificuldade com a intervenção da coalizão é que esta
escolheu interferir na Líbia e não em casos bem piores, casos em que poderiam ter sido salvas
mais vidas. Ele profere que muitos filósofos tendem a concordar que, quando há uma opção
forçada entre salvar um grupo de indivíduos, números importam, então deveriam salvar a
maior quantidade. Outro ponto referido por ele é que a coalizão da OTAN poderia ter
utilizado os mesmos recursos para salvar uma maior quantidade de pessoas na Costa do
Marfim (dado o potencial de que a crise nesse país poderia levar a mais óbitos do que na
Líbia). Outra explicação é que se o valor gasto na intervenção na Líbia fosse aproveitado para
108 "The situation was sufficiently serious at the time the intervention was launched (the just cause question),
and, second, what the predominant purposes of the intervention were (the right intention question)"
(PATTINSON, 2011, p.217). 109 “Failure to act in response to similar cases” ( PATTINSON, 2011, p. 276).
75
combater a pobreza geral, muito mais pessoas seriam salvas. A grande crítica, então, é de que
a OTAN foi seletiva e preferiu atuar na situação menos grave.
Outra dificuldade assinalada é que, mesmo que possa ter existido justa causa para a
intervenção humanitária, o caso na Líbia não parecia ser grave o bastante para fornecer justa
causa para uma alteração de regime, ou, mais exatamente, forçar uma transformação de
regime por uma entidade externa em apoio ao movimento revoltoso. Os perigos da alteração
de regime são normalmente maiores do que a intervenção humanitária: uma quantidade maior
de indivíduos inocentes é susceptível de ser morta; o potencial para a instabilidade nas regiões
vizinhas é maior; e os custos de intervenção em relação a vidas dos soldados intervenientes
podem ser bem maiores (PATTISON, 2011).
Nessa esfera, cita-se que o critério da imparcialidade determinado por Wheeler, não
foi exercido. Primeiro, porque os interventores elegeram a situação menos pior para intervir,
erguendo acusações de que as razões por trás da intervenção eram econômicas e políticas, não
humanitárias. Durante a intervenção, também não cumpre o requisito em questão, pelo fato de
ter selecionado um dos lados do conflito para amparar, abastecendo com armamento e
treinamento aos rebeldes e destacando que o conflito só terminaria quando Kadaffi saísse do
poder.
Em fevereiro de 2011, Susan Rice, a representante dos Estados Unidos nas Nações
Unidas, pronunciou-se sobre as razões de os Estados Unidos necessitarem da ONU e sobre
como a organização é fundamental para a resolução de conflitos. Segunda ela:
[...] in these tough economic times, we’re focused on getting our economy
growing and providing jobs to Americans who’re hurting. Yet even as we
get our own house in order, we cannot afford to ignore problems beyond our
borders. When nuclear weapons materials remain unsecured in many
countries around the world, all our children are at risk. When states are
wracked by conflict or ravaged by poverty, they can incubate threats that
spread across borders—from terrorism to pandemic disease, from criminal
networks to environmental degradation. Like it or not, we live in a new era
of challenges that cross borders as freely as a storm—challenges that even
the world’s most powerful country often cannot tackle alone. In the 21st
century, indifference is not an option. It’s not just immoral. It’s dangerous110
(RICE, 2011).
110 “[...] Nestes tempos econômicos difíceis, estamos focados em fazer a nossa economia crescer e criar
empregos para os americanos que estão sofrendo. No entanto, mesmo enquanto nós colocamos nossa própria
casa em ordem, não podemos nos dar ao luxo de ignorar os problemas além das nossas fronteiras. Quando os
materiais nucleares permanecem sem segurança em muitos países ao redor do mundo, todas as nossas crianças
estão em risco. Quando os Estados são assolados por conflitos ou devastados pela pobreza, eles podem incubar
ameaças que se espalham através das fronteiras- de terrorismo à pandemia de doenças, de redes criminosas para
76
No mesmo mês, na conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra,
a Secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, deixou evidente que a alteração
de regime na Líbia estava na agenda dos interventores. De acordo com a BBC (2011), ela
proferiu "Kadafi e aqueles ao redor dele devem ser considerados responsáveis por esses atos,
que violam as obrigações legais internacionais e decência comum. É tempo de Kadafi ir,
agora"111 (grifo nosso, tradução nossa).
Em discurso sobre a Líbia, em março de 2011, o presidente dos Estados Unidos,
Barack Obama, deixou claro que "Kadafi perdeu a confiança de seu povo e a legitimidade
para liderar, e eu disse que ele precisava deixar o poder", e que "não há dúvida de que a Líbia
– e o mundo - seriam melhor com Kadafi fora do poder"112 (grifo nosso, tradução nossa).
Em pronunciamento recente sobre a Líbia, em fevereiro de 2015, o primeiro ministro
inglês, David Cameron afirmou à imprensa que não se arrepende da participação britânica
na retirada de Kadafi do poder, acrescentando ainda que "Foi a coisa certa para a Grã-
Bretanha e a Líbia, Kadafi não era amigo do nosso país" e que "a Líbia, a Grã-Bretanha e o
mundo estão melhor sem Kadafi"113 (CAMERON, 2015, grifo nosso, tradução nossa).
Segundo matéria do jornal The Guardian, Obama, Cameron and Sarkozy: no let-up in
Libya until Gaddafi departs, em abril de 2011, os três líderes disseram que seria uma "traição
inconcebível se o líder líbio fosse deixado no local, colocando os rebeldes que têm lutado
contra o regime de Kadafi à mercê de seu governo. Se não for, a Líbia corre o risco de se
tornar um Estado falido", acrescentando que o dever deles e do mandato da Resolução 1973
era "para proteger os civis, e nós estamos fazendo isso. Não é para remover Kadafi pela força.
Mas é impossível imaginar um futuro para a Líbia com Kadafi no poder" e finalizaram com
"enquanto Kadafi estiver no poder, a OTAN e seus parceiros de coalizão devem manter suas
a degradação ambiental. Goste ou não, vivemos em uma nova era de desafios que ultrapassam as fronteiras
livremente como uma tempestade- desafios que mesmo o país mais poderoso do mundo, muitas vezes não pode
combater sozinho. No século 21, a indiferença não é uma opção. Não é apenas imoral. É perigoso”.(RICE, 2011,
tradução nossa). 111 "Gaddafi and those around him must be held accountable for these acts, which violate international legal
obligations and common decency, It is time for Gaddafi to go, now" (BBC, 2011). 112 "Qaddafi had lost the confidence of his people and the legitimacy to lead, and I said that he needed to step
down from power", e que "there is no question that Libya – and the world – would be better off with Qaddafi
out of power" (UNITED STATES, 2011). 113 "It was the right thing for Britain and Libya, Gaddafi was no friend of our country" e que "Libya, Britain and
the world are better off without Gaddafi" (CAMERON, 2015).
77
operações para que os civis permanecem protegidos e a pressão sobre o regime aumente"114
(STRATTON, 2011, grifo nosso, tradução nossa).
Tais alegações públicas causaram desconforto na sociedade internacional, sobretudo
através dos Estados membros, permanentes e rotativos, do Conselho de Segurança. No 6531th
encontro do CSNU, o representante da Rússia, Mr.Churki, afirmou que "é necessário mais
uma vez reafirmar claramente que é inaceitável para as forças de paz das Nações Unidas
serem arrastadas para um conflito armado e, com efeito, tomar o lado de uma das partes na
execução do seu mandato", e que "o nobre objetivo de proteger os civis não deve ser
comprometido por tentativas de resolver em paralelo quaisquer problemas alheios"115
(tradução nossa)
No mesmo encontro, a representante do Brasil, Mrs. Viotti, declarou que:
[...] we must avoid excessively broad interpretations of the protection of
civilians, which could link it to the exacerbation of conflict, compromise the
impartiality of the United Nations or create the perception that it is being
used as a smokescreen for intervention or regime change116.
O representante da África do Sul, Mr.Sangqu, também se mostrou inquieto com a
questão da alteração de regime, "estamos preocupados que a execução dessas resoluções
pareça ir além de sua letra e espírito", também se declararam preocupados com a "agenda
política que vai além da proteção dos mandatos civis, incluindo a mudança de regime". Na
visão da África do Sul, "tais ações irão minar os ganhos obtidos neste discurso e fornecer
munição para aqueles que sempre foram céticos do conceito"117 (tradução nossa).
114 "Unconscionable betrayal if the Libyan leader is left in place, putting rebels who have been fighting against
the Gaddafi regime at the mercy of his government. If left, Libya risks becoming a failed state", acrescentando
que o dever deles e do mandato da Resolução 1973 era "to protect civilians, and we are doing that. It is not to
remove Gaddafi by force. But it is impossible to imagine a future for Libya with Gaddafi in power" e finalizaram
com "so long as Gaddafi is in power, Nato and its coalition partners must maintain their operations so that
civilians remain protected and the pressure on the regime builds" (STRATTON, 2011) 115 "It is necessary once again to clearly reaffirm that it is unacceptable for United Nations peacekeepers to be
drawn into armed conflict and, in effect, to take the side of one of the parties when implementing their mandate",
e que "the noble goal of protecting civilians should not be compromised by attempts to resolve in parallel any
unrelated issues" (CHURKI, 2011, p.9). 116 “[...] Devemos evitar excessivamente amplas interpretações da proteção dos civis, o que poderia vinculá-lo
para a exacerbação do conflito, comprometer a imparcialidade das Nações Unidas ou criar a percepção de que
está sendo usado como uma cortina de fumaça para a intervenção ou mudança de regime” (VIOTTI, 2011, p.11,
tradução nossa). 117 "We are concerned that the implementation of these resolutions appears to go beyond their letter and spirit",
também se declararam preocupados com a "political agendas that go beyond the protection of civilian mandates,
including regime change". Na visão da África do Sul, "such actions will undermine the gains made in this
78
Essas declarações deixam margem para perguntas essenciais: a proteção de civis e o
apoio aos rebeldes tornou-se a mesma coisa? O estabelecimento de uma zona de exclusão
aérea inscreveu-se numa lógica defensiva e protetora ou ofensiva em vista da mudança de
regime? O “apoio à oposição que se ergueu contra o ditador” tornou-se, entretanto, um
mandato da missão da OTAN, de tal forma que a proteção dos rebeldes e o apoio militar que
lhes foi dado se transformou no modus operandi das forças de intervenção? A “cortina de
fumo” referida pelo representante do Brasil foi um fato indesmentível. Desde o início, a
proteção de civis foi, no mínimo, amalgamada com a tomada de partido na guerra civil, em
favor dos rebeldes (PUREZA, 2011, p. 15).
Realmente, a oratória de muitos dos chefes da coalizão, que em diversos discursos têm
explicado que Kadafi precisa deixar o cargo, insinua que a percepção de êxito da intervenção
será medida pelo fato de o reinado de Kadafi terminar. Não se crê, todavia, que a alteração de
regime tenha sido primazia na intervenção. Pelo menos, nos estágios iniciais da intervenção,
entende-se que a intenção predominante foi o amparo de civis. Em primeiro lugar, isso se
deve ao fato de que os alvos militares selecionados para bombardeios foram em grande parte
aquele que era uma evidente ameaça para os civis. Em segundo, se a alteração de regime fosse
o objetivo fundamental, a coalizão teria bombardeado tropas de Kadafi onde quer que elas
fossem suscetíveis de ser achadas, com menos respeito às vítimas civis. Finalmente, a
coalizão teria imediatamente armado os rebeldes e potencialmente implantado tropas
terrestres. Para ter certeza, nos estágios iniciais da intervenção, a mudança de regime pareceu
ser uma intenção secundária (PATTISON, 2011).
A ética da operação na Líbia foi apropriada. O primeiro ponto em destaque é com
relação ao alcance restrito da intervenção, a determinação de uma zona de exclusão aérea e a
proteção de civis, assim como o lugar deserto da batalha significava que existia uma
perspectiva razoável de fidelidade aos princípios do jus in bello (por exemplo, a quantidade de
vítimas inocentes seria relativamente baixa). Em segundo lugar, a Resolução 1973 ofereceu à
coligação poder legal para interferir. Em terceiro, o ataque iminente por forças de Kadafi, em
Benghazi, denotou que o requisito de último recurso (interpretado como tentar medidas
alternativas à da força) foi exercido; não havia opções que teriam impedido o ataque. Em
discourse and provide ammunition to those who have always been sceptical of the concept" (SANGQU, 2011,
p.17).
79
quarto lugar, a intervenção teve uma ajuda importante dos sujeitos sob ameaça e da sociedade
internacional em termos mais globais, inserindo, nomeadamente, a Liga Árabe. Em quinto e
último, a intervenção teve uma esperança razoável de êxito, na proteção de civis (PATTISON,
2011).
Nesse significado, Daalder e Stavridis (2012) explicam que a operação da OTAN na
Líbia se tornou um padrão de intervenção118. A aliança respondeu ligeiramente a uma ruína do
caso que ameaçava centenas de milhares de civis, rebelando-se contra um regime opressivo.
Esta conseguiu proteger os civis, mesmo sendo acusada de matar alguns deles119 e, em última
instância, obteve êxito em providenciar tempo e lugar para que as forças locais derrubassem
Kadafi.
Muitas das avaliações referentes à intervenção na Líbia asseguraram que, se a mesma
não tivesse acontecido, as forças de Kadafi possivelmente teriam sido vitoriosas e subjugado
os rebeldes, temendo-se o acontecimento de uma catástrofe humanitária no processo. Existem
controvérsias em relação à verdade do nível de ameaça aos civis, representada pelas forças do
antigo regime (muitos garantem que a queda do reduto rebelde em Benghazi não
fundamentalmente seria sobrevinda de um massacre, como os defensores da intervenção
asseguravam), porém não se pode negar que a intervenção foi indispensável para a queda de
Kadafi. Mesmo que tenha sido levada a cabo e se justificado por uma causa humanitária, fica
claro, a partir da avaliação do andamento das operações dos aliados e parceiros da OTAN120,
que a alteração do regime era uma das finalidades da intervenção (FRANCO, 2013).
118 “O conflito não extravase para a Tunísia. E a fuga de quase um milhão de refugiados da Líbia para os países
vizinhos não desestabilize a região (BARRY, 2011, p.12, tradução nossa). E é realizado tudo isso sem uma única
baixa aliada e ao custo de $1,1 bilhão para os Estados Unidos e vários bilhões de dólares em geral – isso era uma
fração do que foi gasto em intervenções anteriores nos Balcãs, Afeganistão e Iraque” (DAALDER; STAVRIDIS
, 2012, p. 3, tradução nossa). 119 Segundo o relatório da organização Human Rigthts Watch, "Mortes não reconhecidas – morte de civis em
campanha aérea da OTAN na Líbia, de 2012, ‘’os ataques aéreos da OTAN mataram pelo menos 72 civis – um
terço deles, jovens e crianças menores de 18 anos. Até o momento, a OTAN não reconheceu essas fatalidades
nem examinou como e por que ocorreram". 120 “Mas é claro que, sem ataques da OTAN para aplicar a UNSCR 1973, as forças de Kadafi teriam derrotado os
rebeldes. Então, a vida de civis foram salvos. Embora os rebeldes conseguiram melhorias modestas em poder de
combate, o principal fator na vitória foi o desgaste das forças do regime, logística, comando e controle e infra-
estrutura por ataques da OTAN. A OTAN rapidamente adaptou-se para agir como o núcleo de uma aliança
militar multinacional que incluiu países árabes (BARRY, 2011, p. 7, tradução nossa). Para a maior parte da
guerra da Líbia a eficácia dos ataques da OTAN foi muito reduzida por limitações consideráveis de cooperação
ar/terra entre a OTAN e as forças rebeldes. Quando Trípoli caiu, a OTAN admitiu que estava recebendo
informações das 'forças aliadas na Líbia'. Estes eram provavelmente pequenas equipes de forças especiais que
operam sob comando nacional, em vez de comando da OTAN, mas coordenavam as suas atividades com a
OTAN. Foi argumentado que, como eles não eram uma "força de ocupação", não houve violação da Resolução
1973. Relatos da mídia sugerem que o Reino Unido, França, Qatar e os Emirados Árabes Unidos
desempenharam um papel importante neste sentido. Isto pode explicar porque as táticas rebeldes e ataques da
80
Tendo intento ou não, realmente aconteceu uma permuta de regime. Quando, em 19 de
agosto, as forças rebeldes leais ao Conselho Nacional de Transição (CNT) invadiram Trípoli,
a cidade foi tomada no período de uma semana. A luta por redutos governamentais se
estendeu até outubro, altura em que a cidade de Sirte caiu nas mãos das forças rebeldes e em
que o próprio Kadafi terminou por ser apanhado e executado (BELLAMY, 2014). No instante
em que Trípoli caiu no final de agosto, mais de 30 estados tinham reconhecido o Conselho
Nacional de Transição121 com sede em Benghazi (CNT) como o governo legal da Líbia
(BARRY, 2011). A Operação Protetor Unificado acabou em 31 de Outubro, 222 dias após ter
iniciado.
Mesmo que a deflagração da intervenção tenha acontecido em total acordo com as
regras internacionais prevalecentes (assegurando a legitimidade da intervenção), o curso de
ação aceito pelos intervenientes, que insere ações como bombardeio direto das instalações de
Kadafi em Trípoli, a muitos quilômetros das frentes de combate, lançou sérias incertezas
sobre os desígnios da intervenção. O uso dos meios militares122 (cuja utilização tinha sido
autorizada para ações de proteção de civis) de maneira explícita contra o regime (e à pessoa
física) de Kadafi deixou claro que a alteração de regime era um elemento da intervenção, e
que a derrubada do então ditador líbio era uma das finalidades dos interventores. É, assim,
evidente que a intervenção na Líbia se classifique como uma situação clara de mudança de
regime, e não apenas como uma mera intervenção humanitária (FRANCO, 2013).
Pureza (2012) assinala ainda outros três motivos fundamentais, além da alteração de
regime, para que a intervenção tenha acontecido. Segundo o autor, os países da coalizão
OTAN pareciam cada vez mais bem sincronizados (BARRY, 2011, p. 8, tradução nossa). Ambos os enclaves
chegaram perto de cair; os franceses estavam tão preocupados com este último que, no final de maio eles
unilateralmente jogaram armas para os rebeldes pelo ar. A perda de um ou ambos os enclaves teria
provavelmente significado alto número de vítimas civis e represálias do regime, e teria sido um duro golpe para a
OTAN e moral dos rebeldes e credibilidade. Teria prolongado muito a guerra” (BARRY, 2011, p. 9, tradução
nossa). 121 “Ao mesmo tempo, o Conselho Nacional de Transição em Benghazi estabeleceu ligações com rebeldes em
Misrata e Jebel Nafusa, aumentando a sua autoridade política interna. Fez esforços para aumentar a sua
legitimidade internacional e foi reconhecido como o governo da Líbia por um número crescente de Estados”
(BARRY, 2011, p. 6, tradução nossa). 122 “Havia muitas perguntas sobre por que nenhum cessar-fogo foi seriamente perseguido uma vez oferecido por
Kadafi, e por que a via diplomática não foi explorada mais exaustivamente. Não havia nenhuma garantia de que
um cessar-fogo ou a faixa diplomacia teria sido bem-sucedida, mas aos olhos de muitos, as duas opções
pareciam ser retiradas da mesa muito rapidamente. A responsabilidade de proteger favorece o uso de medidas
diplomáticas e pacíficas, com o recurso ao uso da força como último recurso. Medidas diplomáticas podem não
ser suficientes em uma crise em desenvolvimento. Mas deixando de fazer mais para buscar um cessar-fogo e
negociações pode ter diminuído o entusiasmo para futuras respostas a R2P” (COLLINS, 2011, p. 4, tradução
nossa).
81
tinham como desígnio a apropriação dos altos recursos petrolíferos da Líbia (estimados em
60.000 milhões de barris com custos de extração muito baixos), ou das suas reservas de gás
natural (estimados em 1 bilhão e 500 milhões de metros cúbicos, que fazem da Líbia123 o
quarto maior produtor africano, atrás da Nigéria, Argélia e Egito), e as estratégias de
concorrência entre grupos empresariais italianos (ENI), alemães (Wintershall) e russos
(Gazprom), por um lado, e franceses (Total), britânicos (BP) e norte-americanos (Exxon
Mobil; Chevron; Conoco Philiphs), por outro; em segundo lugar, a disputa do controle dos
fundos soberanos líbios, de 200 milhões de dólares, pelos bancos centrais da França, Reino
Unido e Estados Unidos da América e, em terceiro lugar, "a anulação preventiva do projeto de
constituição dos Estados Unidos e da África, e da adoção de uma moeda única autônoma
relativamente quer ao dólar quer ao euro, com forte impulso político e financeiro da Líbia de
Khadafi" (SENSINI apud PUREZA, 2012, p. 12).
Segundo Povoledo (2011), em matéria do jornal New York Times, antes de a rebelião
começar124, em fevereiro, a Líbia125 exportava 1,3 milhões de barris de petróleo por dia.
Embora isso represente menos de 2% das necessidades globais, somente uma ínfima
quantidade de países pode fornecer o equivalente do mesmo tipo de petróleo, do qual muitas
refinarias do mundo dependem. O retorno da produção líbia ajudaria a derrubar os preços de
petróleo na Europa e, indiretamente, os preços da gasolina na costa Leste dos Estados Unidos.
Segundo o mesmo autor, o coronel Kadafi provou ser um parceiro problemático para
as companhias de petróleo internacionais, frequentemente aumentando impostos e taxas e
fazendo outras exigências. Um novo governo com relações próximas com a OTAN poderia
ser um parceiro mais fácil para as nações ocidentais. Alguns especialistas dizem que, com a
mão mais livre, as companhias de petróleo poderiam encontrar consideravelmente mais
petróleo na Líbia do que foram capazes sob as restrições impostas pelo governo Kadafi.
Em entrevista ao jornal Euro News (2011), Jan Randolph da IHS Global Insight
acredita que "os europeus, em especial os franceses126 e britânicos, que lideraram a causa
123 O país é o 18º maior produtor de petróleo do mundo, e 4º maior do continente africano (CASAS; FURTADO,
2011, p. 1). 124 Antes da guerra, a Líbia produzia 1,6 milhões de barris por dia, cerca de 2% da produção mundial. 85% dessa
produção vai para a Europa. Por isso os europeus estão na primeira linha na cobiça do petróleo líbio (EURO
NEWS, 2011). 125 O país, que possui ao seu norte o Mar Mediterrâneo e se encontra entre o Egito e a Tunísia, possui uma
posição geográfica considerada estratégica. Está relativamente perto da Europa – do outro lado do Mar
Mediterrâneo, e por onde migrações ilegais acontecem (CASAS; FURTADO, 2011, p. 1). 126 A precipitação do líder francês quanto às questões líbias ficou clara desde que Sarkozy foi o primeiro a enviar
aeronaves à Líbia, assim que a Resolução do Conselho de Segurança da ONU, com execução de forças da
82
rebelde desde o início, vão ter vantagens em termos de novos contratos". Nesse sentido, o
ministro das Relações Exteriores da Itália, Franco Frattini, disse na TV estatal que a
companhia petrolífera italiana Eni “terá o papel número um no futuro” no país norte-africano.
Em visita à Líbia no mês de setembro de 2011, o presidente francês, Nicolas Sarkozy,
e o premiê britânico, David Cameron negaram categoricamente a existência de agendas ou
acordos secretos na Líbia, em referência a um suposto pacto entre Paris e Benghazi para a
exploração de 35% do petróleo líbio. De acordo com Mustafa Abdel Jalil, presidente do CNT,
o auxílio respondeu somente a motivos humanitários (TERRA NOTÍCIA, 2011).
Conforme Weiss (2011), a ação internacional contra a Líbia não foi sobre bombardear
pela democracia, enviar mensagens para o Irã, implementar uma alteração de regime,
conservar os preços do petróleo baixo, ou perseguir interesses mesquinhos. Estes podem ser
decorrência de tal ação, porém a motivação dominante para usar a força militar foi para
proteger civis. Segundo o autor, o padrão de Kadafi de repressão não será mais visto como
uma política aceitável por outros regimes autocráticos.
Mas, conforme Pureza (2012) a maior lição que a intervenção da OTAN na Líbia nos
dá é, porventura, a de que a referência à responsabilidade de proteger127 como se ela fosse
uma abstração benigna não é senão uma estratégia legitimadora de um intervencionismo com
propósitos que vão muito além – ou se afastam totalmente – de objetivos humanitários. O
discurso jurídico-político da biopolítica global está prenhe de armadilhas. "Só a cuidadosa
referência de cada caso concreto à relação de forças materiais e ideológicas em presença
permite escapar aos seus cantos de sereia" (PUREZA, 2012, p. 17).
Diante do exposto e, conforme as críticas que a intervenção da OTAN ganhou, nota-se
que esta não cumpriu os requisitos mínimos estabelecidos pela vertente solidarista da Escola
Inglesa, nem aqueles mencionados na Agenda para a Paz ou no relatório da Responsabilidade
de Proteger. No que se refere à proporcionalidade, percebe-se que a OTAN fez uso de intenso
bombardeio, destruindo parte da infra-estrutura do país, dificultando a posterior reconstrução
do mesmo. Em relação à alteração de regime, o mandato da OTAN violou o critério da
OTAN, autorizando a zona de exclusão aérea à Líbia foi emitida. Foi, também, o primeiro, de aproximadamente
sessenta países, a reconhecer os “rebeldes”, isto é, o CNT, como grupo legítimo (REQUIÃO, 2011, p. 3). 127 “Havia um medo real e uma - crença comum entre os governos (especialmente membros do Movimento de
Países Não-Alinhados) que a R2P é simplesmente uma forma mais sofisticada de conceituar e, portanto,
legitimar a intervenção humanitária e - potencialmente sem a sanção do Conselho de Segurança da ONU – com
efeito – um Cavalo de Tróia para a legitimação da intervenção unilateral” (COLLINS, 2011, p. 7, tradução
nossa).
83
imparcialidade, porque tomou partido em um dos lados do conflito, fornecendo armamento e
treinamento para os rebeldes. Ainda, critica-se o fato de que a sociedade internacional não
compreendeu que a OTAN tentou todos os meios pacíficos necessários antes da intervenção
armada. Nesse sentido, critica-se também o fato de que a Líbia não era o pior caso de violação
de direitos humanos, e a Organização fez uso de recursos que poderiam ter sido utilizados em
outros casos.
Além disso, atenta-se para o fato de que os interventores não possuíam a "intenção
correta" determinada por Wheeler. Nota-se então, que a real motivação por trás da
intervenção era a troca de regime, e que esta era almejada apenas por questões econômicas e
políticas. Todavia, deve-se salientar que, apesar de não ter a motivação certa, salvar vidas, a
coligação, pelo menos enquanto estava em território Líbio, impediu um massacre, tendo um
resultado humanitário positivo.
3.3 LÍBIA: UM CASO DE MISSION CREEP
No dia 7 de julho de 2012, ocorreu na Líbia a primeira eleição nacional livre do país
em mais de 40 anos128. A votação iria selecionar um Congresso Nacional Geral de 200
membros, que iria substituir o Conselho Nacional de Transição129, com o papel de nomear um
governo de transição, indicando seu primeiro-ministro, combater as milícias regionais e
supervisionar a elaboração de uma Constituição130. Em torno de 3.500 candidatos
concorreram para o novo parlamento (KARADSHEH, 2012).
O saldo das eleições foi que a Aliança Força Nacional, partido131 do ex-primeiro-
ministro Mahmoud Jibril, líder do Conselho Nacional de Transição obteve 48,8% dos votos e
128 “Iriam escolher o primeiro governo eleito desde que o Coronel Muammar Kadafii chegou ao poder em 1969”
(BBC, 2015, tradução nossa). 129 “Em seu mandato de oito meses, o governo interino atual da Líbia - que foi nomeado pelO CNT - não foi
capaz de cumprir a longa lista das necessidades líbias, prometida pelo Conselho Nacional de Transição: um
sistema de justiça funcional, um processo de reconciliação para os funcionários que serviram a antiga
administração, o desarmamento das milícias, a construção de forças nacionais funcionais de segurança, a
reconstrução de áreas destruídas, e prestação de serviços básicos, como a saúde” (AL JAZEERA, 2012, tradução
nossa). 130 “CNG também é responsável por selecionar um comitê constitucional, que se submeterá a um referendo
público, um projeto para a nova Constituição da Líbia. A adoção de uma Constituição será seguida por eleições
gerais de um parlamento e presidente” (AL JAZEERA, 2012, tradução nossa). 131 Segundo o jornal Al Jazeera (2012) em torno de 120 partidos foram formados depois da queda de Kadafi. O
jornal indica que os principais são: Justice and Development Party; Homeland Party, National Forces Alliance,
National Centrist Party e o National Front Party. Para mais informações, ver em:
<http://www.aljazeera.com/news/africa/2012/06/2012626224516206109.html>.
84
conquistou 39 das 80 cadeiras disponíveis para a lista de partidos fechados. O partido islamita
Justiça e Construção, ligado à Irmandade Muçulmana, foi o segundo mais votado, com 21,3%
– 17 deputados. O terceiro mais votado, foi a Frente Nacional, de Mohammed al Magrif
(EURO NEWS, 2012). O restante das cadeiras (120) do congresso seria ocupado por
concorrentes individuais.
Após a vitória, Magmoud Jibril declarou, segundo Karadsheh (2012), que "o maior
desafio agora é convencer os nossos potenciais parceiros, especialmente as forças islâmicas,
que agora é hora de nós sentarmos em torno de uma mesa e falar sobre um destino que é do
interesse do povo líbio"132(tradução nossa).
No mesmo ano, em outubro, o congresso indicou um primeiro-ministro, Ali Zeidan
que constituiu um governo interino, designado para preparar o terreno para uma nova
constituição e novas eleições parlamentares.
Em relatório de janeiro de 2013, o Conselho de Segurança apontava que, mesmo com
as eleições e euforias inicias, a Líbia permanecia em uma profunda guerra.
Security remains a key issue in Libya. A number of armed rebel groups
continue to operate throughout the country, as demonstrated by attacks
during the past months around Tripoli and Benghazi and in Bani Walid, the
south and the east. A related issue is the disarmament, demobilisation and
reintegration of armed groups, which continues to pose challenges 133(SECURITY COUNCIL REPORT, 2013).
O governo não estava conseguindo cominar a sua autoridade às milícias que se
constituíram e se validaram na revolta contra a ditadura. As forças locais que não se sentiam
contempladas nas ações do Estado nacional permaneciam lutando com a mesma intensidade
que lutaram na eliminação do poder ditatorial de Khadafi (CARMO; HADDOD, 2014).
132 "The biggest challenge right now is to convince our potential partners, especially the Islamist forces, that
now it's time that we sit around one table and talk about one destiny that is in the interest of the Libyan people"
(KARADSHEH, 2012). 133 “A segurança continua sendo uma questão chave na Líbia. Uma série de grupos rebeldes armados continuam
a operar em todo o país, como demonstrado por ataques durante os últimos meses nos arredores de Trípoli e
Benghazi e em Bani Walid, ao sul e ao leste. Um problema relacionado é o desarmamento, desmobilização e
reintegração dos grupos armados, que continua a representar desafios” (SECURITY COUNCIL REPORT, 2013,
tradução nossa).
85
Em março de 2014, em meio a acusações de corrupção e temores de perder petróleo
para as milícias134, o primeiro-ministro135 líbio eleito democraticamente foi demitido do cargo
pelo Congresso Nacional Geral e substituído pelo Ministro de Defesa, Abdullah al-Thani (AL
JAZEERA, 2014).
No dia 16 de maio de 2014, o General Khalifa Haftar, Chefe de Estado Maior das
Forças Armadas líbias até 1987, e depois opositor do regime de Kadaffi, começou a
denominada Operação Dignidade. A operação consistia no ataque às milícias islâmicas,
localizadas em Benghazi, dentre elas a Ansar al-Sharia, para derrotá-las e tomar a cidade. O
movimento seria parte de um plano maior de Haftar para tomar o país, exigir a dissolução do
CNG – que ainda não produzira uma Constituição e que tinha fortes partidos islâmicos – e
expurgar o que analisava como ameaça jihadista presente na Líbia. Neste âmbito, assegurando
que o CNG abrira as fronteiras do país a grupos terroristas e apoiava milícias islâmicas
jihadistas, no dia 18 de maio, forças leais à Haftar cercaram o parlamento em Trípoli e
exigiram a dissolução do governo. As forças ligadas ao general consistiam de milícias
oriundas da cidade de Zintan, de oficiais das Forças Armadas que desertaram e de
componentes das Forças Especiais, todas apoiadas pelo bloco político secular liberal do
parlamento, a Aliança das Forças Nacionais, e pela nova embaixadora dos EUA na Líbia
(KARASIK, 2014). O primeiro-ministro, Abdullah al-Thani acusou-o de tentar um golpe.
No dia 25 de junho do mesmo ano, por motivo das pressões das milícias e
descontentamento da população com o Congresso Nacional Geral, novas eleições ocorreram.
Desta vez, conforme a BBC (2014), quase 2.000 candidatos estavam competindo para lugares
no novo parlamento de 200 assentos, à Câmara dos Deputados. Ainda, segundo o jornal, não
houve lista de partidos, desta vez para evitar tensões. Abdullah al-Thani permaneceu como
primeiro-ministro e o antigo Congresso Nacional Geral foi invalidado.
134“A votação parlamentar veio dias após a chegada na Líbia de um navio-tanque de bandeira norte-coreana,
aparentemente para ser utilizado por uma milícia independente para exportar petróleo sob seu controle – houve
uma escalada de preocupações sobre a estabilidade política e econômica, sob a administração Zeidan (AL
JAZEERA, 2014, tradução nossa). A produção de petróleo, salvação econômica da Líbia, reduziu-se a um fio
desde o verão quando os manifestantes armados controlaram portos de petróleo e campos de petróleo para
pressionar demandas políticas e financeiras. As receitas do petróleo nos dois primeiros meses do ano foi de
apenas 16% do que estava previsto no orçamento, disse o vice-ministro do Petróleo Omar Shukmak” (CNN,
2014, tradução nossa). 135 “Após três semanas de disputas sobre uma moção de censura contra Zeidan, os islamistas não conseguiram
garantir os 120 votos necessários para passar os 194 membros no Congresso Nacional Geral. Zeidan acusou o
partido Justiça e Construção - o braço político da Irmandade Muçulmana - de tentar desestabilizar seu governo”
(THE GUARDIAN, 2014, tradução nossa).
86
Comparando os dois pleitos, existe uma estimável diminuição no quantitativo de
votantes: "na primeira eleição, em 2012, havia 2,8 milhões de eleitores registrados. Já, na
eleição de 2014, apenas 1,5 milhões de eleitores estavam registrados e aptos a votar"
(CARMO; HADDOD, 2014, p. 46).
Em oposição à eleição e aos movimentos do general Haftar, que vinham ganhando
força, as milícias islâmicas de Misrata lançam, no dia 13 de julho, uma contra-ofensiva em
Trípoli chamada de Operação Amanhecer. As forças estavam sendo lideradas por Salah Badi,
antigo deputado e ex-ministro da inteligência do antigo CNG, e tentavam tomar o aeroporto
da cidade (AFRICA CONFIDENTIAL, 2014).
No começo de agosto, em razão das lutas em Trípoli, o novo governo eleito, a Câmara
dos Deputados136, muda-se para Tobruk, de onde tenta governar o país (BBC, 2014). Ainda,
segundo o jornal, o governo em Tobruk é o único reconhecido pela maioria da sociedade
internacional e está pedindo por ajuda externa – embora não necessariamente a intervenção
direta – para estabilizar o país.
No final do mesmo mês, as forças da Operação Amanhecer tomaram o aeroporto de
Trípoli e declararam seu próprio governo, restabelecendo o Congresso Nacional Geral e
elegendo um primeiro-ministro, Omar al-Hasi (THE GUARDIAN, 2014). O jornal também
aponta que em resposta ao ataque, o parlamento oficial, localizado na cidade de Tobruk,
condenou os ataques como ilegais, e chamou a Organização Amanhecer de "organização
terrorista", declarando guerra contra esta.
Em outubro, o governo de Tobruk declarou uma aliança formal com a milícia do
General Haftar, na tentativa de constituir alguma autoridade no país. O porta-voz do
parlamento, Farraj Hashem, proferiu que a "Operação Dignidade está liderando os oficiais e
soldados do exército líbio...Operação Dignidade é uma operação do exército líbio"137
(REUTERS, 2014, tradução nossa).
Junto à fragmentação e ao caos instalado no país, em novembro, o mais alto tribunal
da Líbia resolveu que as eleições gerais realizadas em junho eram inconstitucionais e que o
parlamento e o governo do país, o que resultou desse voto, precisariam ser dissolvidos. O
136 “O governo reconhecido foi até forçado a contratar um barco grego que estava atracado no porto de Tobruk
para funcionários da Casa, ativistas e suas famílias ficarem. Eles haviam fugido ameaçados de morte em suas
cidades natais” (BBC, 2014, tradução nossa). 137 "Operation Dignity is leading officers and soldiers of the Libyan army...Operation Dignity is an operation of
the Libyan army" (REUTERS, 2014).
87
parlamento de Tobruk se reuniu no mesmo dia e rejeitou a decisão da Corte por esta estar
"sob pressão do governo de Trípoli" (AL JAZEERA, 2014). O Supremo Tribunal não
conseguiu argumentar o raciocínio por trás de sua decisão, levantando inquietações sobre as
condições em que os juízes tinham operado. O tribunal emitiu sua decisão, a partir da sua
câmara constitucional, em Trípoli, que está hoje sob o controle de milícias islâmicas e
Misratan que se opõem à Câmara dos Deputados (ELIARH, 2014).
3.3.1 Atores Envolvidos
De acordo com Chothia (2015), os atores internos na Líbia formam essencialmente
três grandes grupos: milícias islâmicas, grupos jihadistas e milícias pró-governo. As milícias
islâmicas são: a Organização Amanhecer, citada anteriormente como sendo o governo em
Trípoli, e que em dezembro de 2014 lançou uma campanha, chamada Líbia Nascer do Sol,
para tomar o controle de instalações petrolíferas em recursos ricos de regiões centrais do país.
A maioria dos seus combatentes veio da cidade de Misurata; o segundo grupo é denominado
de Escudo Líbio (Libya Shield) e é formado por diversas milícias menores. O Escudo Líbio
apoia o governo em Trípoli e estes o reconheceram como parte de seu Ministério de Defesa. O
seu ramo em Benghazi, liderado por Wisam Bin-Hamid, lutava ao lado do já falecido
comandante da Ansar al-Sharia; outro grupo pró-governo de Trípoli é conhecido como
Batalhão 166 e envolveu-se em confrontos com o Estado Islâmico e em torno de Sirte.
O Segundo grande grupo, conforme Chothia (2015), é formado pelos jihadistas. Estes
se dividem em: Estado islâmico (IS/ISIL/ISIS siga em inglês) e está localizado na cidade de
Derna, onde forças radicais islâmicas declararam lealdade ao grupo, sendo o primeiro califado
do Estado Islâmico fora da área da Síria e do Iraque. O grupo também já se faz presente na
cidade natal de Kadafi, Sirte; o segundo grupo é o Ansar al-Sharia, considerado próximo a Al-
Qaeda, o qual é mais proeminente no leste da Líbia. Em Benghazi, seus militantes estão
presentes desde a derrubada de Kadafi, em 2011, e têm lutado ininterruptamente contra as
forças do exército líbio (das autoridades internacionalmente reconhecidas) por dois anos. A
milícia foi acusada de envolvimento no ataque ao consulado dos Estados Unidos em setembro
de 2012 em que o embaixador Chris Stevens foi morto; outro é o Benghazi Revolutionaries
Shura Council, o qual é composto por grupos menores, incluindo a Ansar al-Sharia e atua em
Benghazi como firme oponente do governo de Trobuk; e, o último grupo é o Darnah
88
Mujahidin Shura Council, uma coalizão de milícias islâmicas filiadas a Al-Qaeda, o grupo se
envolveu em conflitos violentos com o Estado Islâmico na cidade de Darnah.
O último grande grupo apontado por Chothia (2015) se refere aos combatentes pró-
governo de Trobuk. O primeiro é formado pelas forças do General Haftar, que comanda o
exército líbio, já citado anteriormente, e os outros são milícias anti-islâmicos Al-Zintan, Al-
Sawa'iq e Al-Qa'qa que operam, principalmente, no oeste da Líbia.
Tharoor e Taylor (2014) referem também, em matéria no Washington Post alguns
atores externos que estariam envolvidos na guerra na Líbia, estes, segundo o jornal, seriam o
Catar, o qual teria enviado caças para executar missões e auxiliar os rebeldes em 2011 e seria
um apoiador da Irmandade Muçulmana em países como o Egito e a Síria; outro país
envolvido na guerra seria o Egito, que estaria submerso em dois ataques aéreos contra as
forças islamitas na Líbia, amparando o governo de Trobuk. Aviões de combate dos Emirados
Árabes Unidos foram acreditados para ter usado bases egípcias como uma rampa de
lançamento para os ataques; e, o último país apontado pelo jornal seria a Arábia Saudita, a
qual tem auxiliado a suprir revoltas democráticas na região, como no vizinho Bahrain.
3.3.2 Um País Fragmentado
Conforme a organização Human Rights Watch (2011), os grupos armados
permaneceram a perseguir os estrangeiros e diplomatas e, ainda:
[...] os grupos armados e indivíduos continuaram a cometer homicídios
ilegais, a maioria em Benghazi e Derna, no leste. Pelo menos 250 pessoas
morreram em assassinatos aparentemente alvejados nos primeiros nove
meses de 2014, incluindo funcionários de segurança, juízes e promotores,
jornalistas e ativistas.
A organização também refere que a ausência de controle nas fronteiras e a luta interna
tribal agravaram a situação de segurança, possibilitando que o tráfico dos seres humanos,
drogas e armas, continuassem através das fronteiras da Líbia com o Chade, Sudão, Egito e
Argélia. A HRW declara que milícias proíbem cerca de 40.000 moradores de Tawurgha,
Tomina, e Karareem de retornar para suas residências como um modo de punição coletiva por
crimes alegadamente cometidos por alguns residentes Tawurgha durante a revolução de 2011;
também destaca que jornalistas permanecem sendo mortos, que as mulheres ainda sofrem
89
discriminação e que as cadeias estão superlotadas, com cerca de 6.100 detentos. Além disso,
as milícias estariam cometendo tortura e aplicando pena de morte nos prisioneiros.
A Human Rights Watch (2011) declarou ainda, sobre os refugiados, que:
[...] um número recorde de migrantes e requerentes de asilo embarcou na
viagem marítima perigosa da Líbia para a Europa com 60.000 atingindo a
Itália em 2014. A operação de salvamento da marinha italiana em larga
escala, Mare Nostrum, resgatou cerca de 100.000 a partir de barcos
incapazes de navegar, mas, pelo menos, 3.000 ainda pereceram no mar.
[...] no momento da escrita, autoridades líbias estimavam 5.000-10.000
migrantes e requerentes de asilo em centros de detenção onde enfrentam
tortura e outros abusos, incluindo a superlotação, saneamento extrema, falta
de acesso à assistência médica adequada, e tratamento desumano ou
degradante. Guardas sujeitos migrantes e requerentes de asilo a
espancamentos, chicotadas, queimaduras de cigarro e choques elétricos. As
autoridades não conseguiram resolver estes abusos.
A Anistia Internacional, em seu relatório anual 2014/15, declarou que ambas as forças
Operação Amanhecer e grupos filiados a coalizão Zintan-Warshafana vêm torturando os
combatentes e civis capturados. Eles têm utilizado choques elétricos, posições de stress,
negação de alimentos, água e instalações sanitárias apropriadas. Ainda, que combatentes
foram submetidos a execuções sumárias por todas as partes do conflito. A Anistia afirma que
grupos alinhados à Operação Dignidade queimaram e devastaram muitas residências e outros
bens islamitas, capturaram civis por sua filiação políticas e também desempenhou ações de
tortura e execução sumária. A organização também ressalta que ataques a locais religiosos
ainda ocorrem e que ateus e agnósticos líbios encararam ameaças e intimidação de milícias
em referência aos seus escritos em sites de redes sociais.
Por motivo de insegurança, a Missão de Apoio da ONU na Líbia (UNSMIL) – cujo
mandato tinha sido renovado em março pelo Conselho de Segurança da ONU –, as
representações diplomáticas estrangeiras e as organizações internacionais interromperam suas
operações em Trípoli e evacuaram seu pessoal (UOL NOTÍCIAS, 2015).
Em setembro de 2015, o enviado especial das Nações Unidas, Bernardino Léon,
encontrou-se no Marrocos com ambos os governos líbios para a negociação de um pacto de
paz. Ainda no mesmo mês, o texto do acordo foi finalizado e Leon proferiu que "Cabe agora
90
aos participantes deste diálogo reagir a este texto" e que "eles devem colocar o interesse do
seu país acima de qualquer outra consideração"138 (UOL NOTÍCIAS, 2015, tradução nossa).
Léon (2015) afirmou que "após um ano de esforços neste processo, envolvendo mais
de 150 personalidades líbias, representando todas as regiões, finalmente chegou o momento
de poder propor a formação de um governo de unidade nacional". Leon139 ainda mencionou
que o Comitê Presidencial é composto por seis pessoas. O primeiro-ministro proposto é Fayes
Siraj, um membro do parlamento de Trípoli que integra a Câmara dos Representantes. Os três
vice-primeiros-ministros são: Ahmed Meitig, Fathi Mejbari e Musa Kuni. Como Eles
representam as regiões oeste, leste e sul. Dois ministros completam o Conselho Presidencial,
nomeadamente Omar Aswad e Mohammed Ammari.
O parlamento reconhecido internacionalmente, com sede em Tobruk, em data de 19 de
outubro de 2015, rejeitou o acordo sugerido pela ONU, revelando que a ONU "recusou-se a
excluir emendas adicionadas pelas autoridades islâmicas sem o seu consentimento"140
(tradução nossa). O governo ressaltou, todavia, que permanecerá participando das
negociações intercedidas pela ONU com o governo rival (AL JAZEERA, 2015).
Nota-se, deste modo, que depois do término da intervenção, a Líbia foi jogada à
própria sorte. As potências interventoras se aproveitaram do princípio da Responsabilidade de
Proteger para explicar sua intervenção, mostrando-se preocupadas com a população civil,
porém quando a intervenção se revelou um fracasso e as potências não alcançaram lucro com
a extração de petróleo, por motivo do caos que o país está, este foi esquecido.
O princípio da Responsabilidade de Proteger e a totalidade dos critérios e inquietações
em torno da dificuldade da intervenção humanitária foram adequados em 2011, porém, hoje,
depois da guerra, um dos princípios máximos para o êxito de uma intervenção, o da
consolidação da paz, foi negligenciado. No instante em que a nação mais necessita, pelo
motivo de que este se acha em caso parecido ao período de Kadaffi, Obama, Camaron e
Sarkozy cerraram os olhos para a crise e para os indivíduos que eles tanto insistiram em
proteger quando quem perpetrava os abusos de direitos humanos não era seu aliado.
138 "It is now up to the participants in this dialogue to react to this text" e que "they should put the interest of
their country above any other consideration” (UOL NOTÍCIAS, 2015). 139 Em Skhirat, o mediador explicou que o acordo prevê que os nomeados trabalhem em equipa e os votos
tenham o mesmo valor na primeira ronda de votação. O processo para superar possíveis bloqueios deverá ainda
ser definido. León também informou que estes vão fazer uma rotação para representar a Líbia a nível
internacional, como forma de demonstrar a importância de todos na equipe (RÁDIO ONU, 2015). 140 "Refused to exclude amendments added by the Islamist authorities without its consent".
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da década de 1990 e início dos anos 2000, a polêmica em relação às
intervenções humanitárias protagoniza um dos mais intensos debates do período. No centro
desse debate, encontra-se a tensão entre os princípios do Estado soberano, da não-intervenção
e do não uso da força por um lado, e as emergentes normas internacionais, dentre elas o
princípio da Responsabilidade de Proteger, relacionadas aos direitos humanos e ao uso da
força para a proteção civil em conflitos domésticos.
Nesse sentido, a dissertação buscou analisar como as intervenções humanitárias são
legitimadas, desde o contexto da Guerra Fria até os dias de hoje. Para tal, o estudo abordou o
embate dentro da Escola Inglesa das Relações Internacionais, enfatizando que a vertente
pluralista da mesma possui um argumento contrário a intervenção, alegando, assim como os
realistas, que a intervenção humanitária serviria somente a interesses próprios das potências,
estabelecendo uma nova roupagem para um velho tipo de agressão, dos fortes contra os
fracos.
A vertente assinala, ainda, que a ordem é superior à justiça, e que as intervenções
apenas serviriam para enfraquecer princípios como o da soberania e da não-intervenção,
garantidos pela Carta das Nações Unidas e fundamentais na defesa dos países fracos. A outra
vertente abordada nesse embate, a qual foi amplamente discutida por estabelecer critérios que
tornem a intervenção humanitária legítima, é a concepção solidarista, da Escola Inglesa. Essa
concepção defende que o indivíduo deve vir em primeiro lugar, e que as violações de direitos
humanos merecem atenção da sociedade internacional, destacando que mesmo estranhos em
um país longínquo merecem ser salvos. A vertente coloca a justiça acima da ordem.
O estudo abordou a evolução das operações de paz, mostrando como as intervenções
eram realizadas e justificadas na Guerra Fria, as quais eram essencialmente militares,
levemente armadas e de observação, sem interferência direta no conflito, supervisionando
somente acordos de cessar-fogo e com o consentimento das partes; no contexto do pós-Guerra
Fria, enfatiza-se a maior atuação do Conselho de Segurança e ampliação da agenda de
intervenções, as quais passam a abarcar conflitos étnicos e religiosos dentro do estado,
questões como fome, refugiados e direitos humanos. Nesse sentido, as operações passam a
proteger civis, promover os direitos humanos e criar instituições legítimas e efetivas para a
reconstrução do Estado. A dissertação aborda, ainda, a última geração das operações de paz, a
qual é composta, dentre outras, pelas intervenções de enforcement, ou de imposição da paz,
92
nesse escopo que se encontram as intervenções humanitárias e é de acordo com esta que o
Conselho de Segurança aprovou a utilização de "todos os meios necessários" para a proteção
de civis na Líbia.
Desta maneira, havia três maneiras de uma intervenção ser considerada legal. A
primeira dizia respeito ao consentimento do Estado, ou seja, se o Estado aprovasse a
intervenção ou pedisse por ela. As outras duas, estabelecidas na Carta das Nações Unidas,
eram nos casos de ameaça a paz ou legítima defesa. No pós-Guerra Fria, devido à abrangência
do espoco dos conflitos e a sistemática violação de direitos humanos, dentro das fronteiras de
alguns países, esta passou a ser considerada um caso de ameaça à paz e à segurança
internacional. Também, no mesmo período, o consentimento do Estado passou a não mais ser
necessário, pois o foco da intervenção passa a ser o indivíduo e a proteção destes. Nos anos
2000, há a emergência de um novo princípio para tentar regular a questão da soberania no
contexto das intervenções, esse princípio é chamado de Responsabilidade de Proteger, e trata
a soberania como responsabilidade, abrindo caminho para as diretrizes da vertente solidarista.
Deste modo, ambos estabelecem requisitos mínimos a serem analisados antes da intervenção,
para conferir a esta maior legitimidade.
Para responder a pergunta de pesquisa, "quais são os pressupostos de legitimidade dos
processos de intervenção humanitária e operações de paz realizadas pelas Nações Unidas no
período comprendido entre 1990 e 2015?", a dissertação se utiliza da vertente solidarista, da
Holly Trinity e da Responsabilidade de Proteger, as quais enfatizam que, para conferir maior
legitimidade à intervenção humanitária, deve haver uma emergência humanitária suprema, ou
seja, o número de mortes deve ser em larga escala; o uso da força deve ser utilizado como
último recurso, quer dizer, todos os meios pacíficos devem ter sido exauridos antes da
intervenção militar; o escopo militar utilizado deve ser proporcional à gravidade do conflito; a
intervenção deve ser imparcial, não se posicionando a favor de nenhum lado do conflito; deve
haver probabilidade alta de resultado humanitário positivo, onde mais vidas são salvas do que
mortas; a justificação da intervenção deve ser em termos humanitários, proteção dos direitos
humanos, porém, aqui se faz uma ressalva, pois mesmo que a intervenção possua, de fato,
razões não humanitárias, pode-se ser considerada como tal se obteve um resultado
humanitário positivo; estabelece-se ainda como autoridade legítima para a intervenção, o
Conselho de Segurança das Nações Unidas, ou órgão apontado por este; e por fim, a
responsabilidade de reconstruir, critério para a definitiva consolidação da paz.
93
Deste modo, cumprindo todos os requisitos acima citados, as intervenções
humanitárias são consideradas legítimas, porém, na ausência do cumprimento destes, abre-se
uma porta para abusos do mandato por parte dos interventores, os quais passam a seguir
apenas interesses geopolíticos e geoeconômicos próprios e colocam em segundo plano a
proteção dos direitos humanos. Assim, após justificar sua intervenção em motivos
humanitários e conseguir o apoio da sociedade internacional para tal, as grandes potências
interventoras mudam seu escopo e passam a seguir interesses próprios.
Dessa forma, a hipótese de que, apesar do constante debate entre solidaristas e
pluralistas e da criação da responsabilidade de proteger e ao proteger, as Nações Unidas e a
sociedade internacional não definiram pressupostos claros sobre a legitimidade de uma
intervenção humanitária, deixando para analisar caso por caso foi confirmada. Enfatiza-se,
ainda, que nessa análise de caso por caso se abre uma brecha para que as potências se utilizem
dos conceitos requeridos para a legitimidade da intervenção, apenas em casos em que lhes são
convenientes, ignorando diversos graves abusos de direitos humanos em alguns países, e
condenando-os em outros.
Diante do exposto, analisou-se o caso de intervenção realizado na Líbia,
implementado para cessar a guerra civil entre rebeldes e o governo, do então presidente
Muammar Kaddafi, em 2011. A missão na Líbia foi composta por duas resoluções, a
primeira, em 1970, impondo sanções financeiras e embargo de armas ao país, sendo aprovada
com unanimidade pelo CSNU; e, a segunda, em 1973, estabelecendo uma zona de exclusão
aérea e com autorização de utilizar "todos os meios necessários" para a proteção de civis, foi
aprovada por 10 votos e 5 abstenções, no âmbito do CSNU. O Conselho designou, também, a
Organização do Tratado do Atlântico Norte, para realizar a intervenção, sendo em um
primeiro momento conduzida pelos Estados Unidos e, depois, pelo restante dos membros.
A intervenção na Líbia é um marco importante, pois foi a primeira vez que se utilizou
do princípio da Responsabilidade de Proteger para justificar uma intervenção e, também, foi a
primeira vez que o Conselho de Segurança autorizou o uso de "todos os meios necessários"
para parar a violência. A Operação Protetor Unificado, porém, também foi marcada por duras
críticas aos interventores e acabou em fracasso.
Apesar de ser considerada legal, já que teve aprovação do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, a intervenção foi rodeada de críticas, pois, na visão da sociedade
internacional e como foi exposto ao decorrer da dissertação, não cumpriu a maioria dos
requisitos mínimos para ser considerada legítima.
94
Nesse sentido, apesar de ser constatada uma emergência suprema, os meios pacíficos
não foram totalmente exauridos, partindo-se muito rapidamente para uma intervenção armada,
com a utilização da força; não foi proporcional, levando em conta que a OTAN utilizou
armamento pesado e atacou infra-estrutura chave para a reconstrução do país; não foi
imparcial, tendo em vista que a organização claramente priorizou a ajuda aos rebeldes,
objetivando uma mudança de regime; a justificação, apesar de ser em termos humanitários,
escondeu interesses políticos e econômicos, principalmente do Reino Unido, da França e dos
Estados Unidos da América, os quais queriam melhorar seus acordos de extração de petróleo,
uma vez que o grupo rebelde se estabelecesse no poder; a época da intervenção, teve resultado
humanitário positivo, porém, tendo em vista que o conflito ainda não teve fim, essa afirmação
pode ser contestada.
Além disso, a intervenção foi seleta no sentido de que escolheu, dentre muitos casos
de violação de direitos humanos e guerra civil, intervir no caso menos pior, também não
cumpriu com a responsabilidade de reconstruir, pois abandonou o país a própria sorte depois
da morte de Muammar Kadaffi.
Também, aponta-se uma crítica à constatação de que, na maioria dos casos, apenas o
Conselho de Segurança pode dizer qual situação é passível de intervenção. Porém, o CSNU
reflete a balança de poder do sistema, é um órgão eminentemente político e, assim sendo, suas
decisões são essencialmente de cunho político, principalmente levando em consideração o
fato de que seus membros possuem poder de veto. Devido a isto, acredita-se que apenas um
órgão eminentemente humanitário seria capaz de analisar os casos passíveis de intervenção,
com um mínimo de imparcialidade e coerência.
O conflito foi finalizado em outubro de 2011, 222 dias após ter começado, contudo a
crise humanitária não foi contida, a situação continua semelhante à época em que Kadaffi era
o presidente. O país se encontra dividido em dois governos, um reconhecido pela sociedade
internacional, sediado na cidade de Trobuk, e o outro sediado na cidade de Trípoli. Devido ao
caos que o país se encontra, sendo palco da disputa pelo poder e pelas jazidas de petróleo
pelos dois governos, o país ainda enfrenta a infiltração de grupos terroristas como o ISSIS e
outros ligados a Al-Qaeda. Ambos os governos são acusados, pelas organizações Human
Rights Watch e Anistia Internacional, de cometer violações de direitos humanos, homicídios
ilegais, tortura, tráfico humano, negação de alimentos a prisioneiros e atentados contra casas
civis. Além disso, as organizações constataram que um número recorde de migrantes e
95
requerentes de asilo fogem, por vias marítimas, da Líbia para a Europa, com o intuito de
escapar do conflito.
Devido à gravidade da situação, a Missão de Apoio da ONU, bem como
representações diplomáticas estrangeiras e organizações internacionais suspenderam suas
operações no país e evacuaram todo o seu pessoal. Pouco esforço foi feito por parte da
Organização das Nações Unidas, no intuito de restabelecer a ordem e, enfim, ajudar na
reconstrução do país. Apenas em outubro de 2015, o enviado especial das Nações Unidas no
país, Bernardino Leon, tentou a negociação de um acordo de paz entre os dois governos, mas
o mesmo foi visto com desconfiança e foi acusado de privilegiar um dos governos.
Após quatro anos do fim da intervenção, a população líbia foi completamente
abandonada pelas mesmas potências que, em 2011, prometeram veemente protegê-las. A
intervenção, dita humanitária, na Líbia, foi um caso de fracasso e a população ainda sofre as
suas conseqüências. Por fim, analisando o caso do país, concluiu-se que quando é conveniente
e lucrativo, principalmente em casos em que o país em questão possui petróleo, as potências
se utilizam de todos os meios, princípios e normas disponíveis para justificar e legitimar uma
intervenção humanitária. Porém, quando a mesma se torna um problema, principalmente
devido aos erros que os próprios interventores cometeram, esta é esquecida e abandonada para
lidar sozinha, mesmo sem saber como, com seus próprios problemas.
Diante disso, ressalta-se que sim, muitas vezes a intervenção humanitária é a única
esperança e meio para que uma violação de direitos humanos e atentado a vida seja cessada,
porém o discurso humanista, que tende a comover a sociedade internacional, não deve ser
usado para encobrir os abusos do mandato e os reais interesses por trás da intervenção. Esta
deve ser analisada e exercida com cautela, priorizando não somente a intervenção armada em
si, mas auxiliando na reconstrução das capacidades do Estado, acabando, de fato, com a crise
humanitária.
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