Carimbó - negritude, indianeidade e caboclice: debates sobre raça e identidade na
música popular amazônica (década de 1970).
TONY LEÃO DA COSTA*
Qualquer pessoa que visitasse Belém nos dias de hoje mais cedo ou mais tarde ficaria
sabendo por seus moradores que o gênero musical que dá identidade àquela cidade e à parte
significativa do estado do Pará é o carimbó. Dependendo do período do ano e do lugar em que
o visitante circulasse é possível que ele se deparasse com apresentações de grupos musicais
e/ou folclóricos que tocam e dançam o carimbó. De fato o turista não encontraria tantos
eventos cotidianos com o carimbó, teria que procurar um pouco para encontrar bares onde o
gênero fosse veiculado regularmente, mas mesmo assim seria provocado a conhecer a música
que representa um elemento importantíssimo da identidade local. Mesmo que efetivamente o
carimbó tenha uma presença menor frente à veiculação de gêneros massivos como o brega, o
tecnobrega, o sertanejo, o pagode ou o samba, ele funciona como a referência central da
identidade sonora do “povo” da Amazônia e/ou do Pará. Ele não só seria a música “popular”
por excelência, mas seria também uma das marcas de definição desse mesmo “povo” como
um povo “caboclo”.1
Se isso é assim hoje, a história do processo de construção do carimbó como marca
sonora da identidade local é bem mais longa e pode ser descrita, mesmo que de forma
fragmentaria. Pois vejamos.
Uma cronologia da “invenção” do carimbó
De fato, se fosse possível resumir em poucos parágrafos a história da “descoberta”
do carimbó no Pará, ela seria definida por pelo menos quatro momentos, quais sejam: (a)
momento do olhar repressivo ou proibitivo, (b) momento do discurso folclórico, (c) momento
do carimbó como “música popular” de identidade regional e (d) período da
“patrimonialização” institucional nacional.
No primeiro momento, o carimbó foi situado indiferenciadamente no conjunto dos
sons populares vistos como “bárbaros”, do mundo da rua e da “desordem”, pelo pensamento
* Universidade do Estado do Pará (UEPA), Doutor em História. 1 Importa considerar que a diversidade musical e identitária do estado do Pará não me permite fazer
generalizações excessivas. Em algumas regiões do estado, sobretudo naquelas marcadas por forte processo de
imigração recente, o “carimbó”, e outros ícones da identidade cultural mais associada à região de influência de
Belém, é praticamente inexistente, seja como prática cotidiana seja como elemento simbólico da tradição
musical.
2
hegemônico da cidade de Belém e região. Dessa fase, as primeiras referências de que se têm
notícias aparecem em leis dos municípios de Vigia e Belém, no final do século XIX. Na
capital do estado do Pará, por exemplo, a Lei n. 1.028, de 5 de maio de 1880, do Código de
Posturas, tratava o carimbó da seguinte maneira: “É proibido, sob pena de 30.000 reis de
multa: (...) Fazer bulhas, vozerias e dar autos gritos (...). Fazer batuques ou samba. (...) Tocar
tambor, carimbó, ou qualquer outro instrumento que perturbe o sossego durante a noite”
(Código de Posturas de Belém apud SALLES; SALLES, 1969: 260). Nota-se, com isso, que a
lei municipal referia-se ao instrumento “carimbó” e o tratamento dado é muito parecido com o
que ocorreu com as manifestações da cultura popular negra ou mestiça no restante do Brasil
durante o século XIX. Uma postura eminentemente proibitiva e repressiva por parte das
autoridades e por importantes frações do mundo da cultura “erudita” (SANDRONI, 2001).
Na década de 1930, seguindo-se ainda essa mesma lógica, o jovem intelectual Jarbas
Passarinho referiu-se ao carimbó de modo a associá-lo às manifestações da religiosidade afro-
brasileira, dizendo que “a liturgia negra” [tinha] “esboçado no horizonte das crendices
brasileiras, painéis cheios de doloroso sentimento de idolatria”. Quanto ao instrumental do
carimbó, descrevia: “um tambor cilíndrico imitando sons dolentes que penetram a alma
rústica dos homens de cor” (PASSARINHO apud FIGUEIREDO, 2008: 224-225).2 Os termos
usados por Passarinho mostravam, desde aquela época, uma perspectiva conservadora no
campo da cultura, indicando que o pensamente social do contexto do modernismo local tinha
mais de uma faceta em relação à cultura popular.
Digo mais de uma faceta porque, ao mesmo tempo em que Jarbas Passarinho
escrevia, outros intelectuais demonstravam uma postura diferente em relação ao carimbó,
qualificando-o como manifestação da riqueza popular folclórica da região amazônica. É então
que temos o segundo momento do processo de “descoberta” do carimbó, inaugurado ainda
sob o pensamento modernista da geração de artistas como Gentil Puget, Waldemar Henrique,
Bruno de Menezes, entre outros.
Waldemar Henrique foi um dos primeiros artistas do mundo “erudito” a compor um
carimbó, em 1934.3 Anos depois, coube ao poeta Bruno de Menezes a tarefa de fazer um
breve registro “etnográfico” da música, em uma matéria para o jornal Folha do Norte, em
1948. A matéria surgia a pretexto de uma dúvida que existia na época sobre o verdadeiro
2 Outras informações sobre a fonte: Carimbó. Guajarina, v. 1, n. 5, 1937. 3 O carimbó pode ser encontrado em uma gravação recente, em: HENRIQUE, Waldemar. Waldemar inédito e
raro Henrique. Belém: SECULT-PA, 2005. Projeto Uirapuru, v. 14. 1 CD.
3
termo referente ao “carimbó”, o nome do tambor. Mas, para além dessa questão, o texto trazia
uma descrição que mostrou ao público alguns elementos importantes e pouco conhecidos até
então.
Descreve-se o carimbó como um evento “folclórico”, uma prática existente no
campo, aparentemente pouco presente na capital do Pará: seria uma “manifestação de
ambientes tradicionais e do anonimato realizado por gentes do interior paraense (...)
canoeiros, pescadores, regatões, freteiros, moradores ribeirinhos”. Relataram-se as regiões por
onde era comum ser encontrado o carimbó: região atlântica do Salgado e cidades da ilha do
Marajó. Observa-se que suas informações tinham por base a visita de um grupo de carimbó da
cidade de Marapanim, interior do estado, à Belém. Tudo indica que, naquele período, boa
parte dos criadores de carimbó estava nas cidades do interior ou vivendo nas margens da
cidade de Belém, bem longe das matérias da imprensa e de outras fontes que tratavam da
música e da vida cultural da capital.4
No que diz respeito aos instrumentos do carimbó, são citados os “tabaques”,
“carimbós” ou “curimbós”, que seriam a base percussiva da música. Dada sua força, os
tambores sobrepujavam os demais instrumentos do conjunto. Em relação às origens étnico-
raciais do carimbó, dizia Menezes: “Estava viva a maneira do toque indígena no instrumento,
que tem ressonâncias africanas”, o que o levava a concluir o seu caráter mestiço. Isso também
porque Bruno de Menezes notou a aparência física dos músicos de carimbó: “todos morenos
acaboclados”. E, de outro lado, por conta da estrutura dos “conjuntos” de carimbó, que
mostravam, segundo ele, “evidente sincretismo musical, com as ‘jazz’ de instrumentos
heterogêneos”. Concluía dizendo que os apreciadores da música eram, sobretudo, homens e
mulheres de “pigmentação acusando resíduos raciais de nossa formação étnica”.5
4 A existência rural do carimbó, posteriormente, foi assimilada pela análise acadêmica. Alexandre Cunha
(CUNHA, 2003.) afirma, a este respeito, que, dançado nos terreiros da capital no final do século XIX, teria
ocorrido um processo de exclusão dessa música das grandes cidades para as áreas urbanas menores ou mesmo
para áreas bastante rurais, como Zona do Salgado, ilha do Marajó e região do baixo Amazonas. Eu tendo a
acreditar que se tratava muito mais de uma questão de visibilidade do carimbó para o mundo urbano, o mundo
do “centro” de Belém, e não uma ausência completa da música na periferia da cidade. Isso não me faz negar a
“exclusão” do carimbó e da cultura popular em geral. Parto do princípio de que a “hipermargem” de Belém do
Pará, com sua ampla ligação (fluxos e refluxos) cultural com os interiores do estado, sempre permaneceu como
um corredor seguro e aberto por onde o carimbó e outras manifestações da cultura popular puderam circular com
alguma liberdade, ou então se “aquilombar” em momentos de conjuntura desfavorável. Explico melhor a
definição de “hipermargem” e o seu papel como mediador da cultura popular na região de Belém do Pará em
outro trabalho: COSTA, 2013. 5 Entrevista a Bruno de Menezes. In: MENEZES, Bruno de. “Carimbó” a Mr. Colman traz dúvida sobre folclore.
Folha do Norte, Belém, 13 fev. 1958. Caderno 1, p. 3, 6 e 7.
4
É interessante notar que as descrições posteriores não fugiriam muito de alguns
aspectos apresentados por esse depoimento. Considero que o texto de Bruno de Menezes
estabeleceu um modelo descritivo que permaneceu nas décadas seguintes. Depois dele, outros
folcloristas se dedicaram ao tema do carimbó, como Pedro Tupinambá em 19616 e depois em
1977,7 Vicente Salles e Marena Salles (SALLES; SALLES, 1969, op. cit.), José Ubiratan
Rosário8, entre outros.
Chegamos, então, ao terceiro momento da “descoberta” discursiva do carimbó.
Momento de sua “urbanização”, no sentido em que ele foi se territorializando aos poucos em
todo o conjunto urbano da cidade de Belém, a partir de sua incorporação pela indústria
cultural, pela assimilação no discurso de parte da intelectualidade artística e, sobretudo, pela
ação dos artistas populares e suburbanos de carimbó. Essa foi a fase em que o carimbó entrou
na agenda identitária da região, estabelecendo-se com símbolo comentado e debatido à
exaustão, como se verá a seguir. Foi a partir da década de 1970 que se estabeleceram as bases
simbólicas do “tema” carimbó no conjunto da sociedade local.
Nos anos 2000 teve andamento ainda um fenômeno que eu poderia considerar como
uma quarta fase da história do carimbó: o período da “patrimonialização” institucional. O
acontecimento foi fruto de um processo de mobilização da sociedade paraense, especialmente
a partir da criação da “Campanha Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro”, que reuniu artistas
do mundo do carimbó, intelectuais e irmandades religiosas e culturais de várias cidades do
Pará. A campanha começou a ser pensada em 2005, por ocasião da realização do 4º Festival
de Carimbó de Santarém Novo. Naquele momento se estabeleceu um diálogo entre a
Irmandade de Carimbó de São Benedito e o IPHAN Regional Pará/Amapá. Acompanhei
aqueles acontecimentos pela impressa e assisti aos últimos capítulos da trajetória que levaria
ao reconhecimento do carimbó como patrimônio cultural brasileiro. Esse fato foi consumado
durante a 76ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em Brasília, em 11 de setembro de
2014.9
6 TUPINAMBÁ, Pedro. Carimbó. Folha do Norte, Belém, 5 fev. 1961. Caderno 1, p. 6. 7 TUPINAMBÁ, Pedro. Carimbó. Espaço, Belém, ano 1, n. 2, nov. 1977. p. 20. 8 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24
fev. 1974. Caderno 3, p. 4. 9 Algumas informações sobre esse tema podem ser encontradas aqui: O país está em festa: Carimbó é Patrimônio
Cultural brasileiro. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=18607&sigla=Noticia&retorno=detalheNoticia
5
Década de 1970 e os debates sobre o carimbó
Contudo, ao considerar esses vários momentos da história do carimbó, entendo que
nenhum período levou a um debate público tão amplo quanto a terceira fase, na qual o
carimbó saiu da condição de música interiorana e periférica/suburbana para a condição de
música comercial veiculada por rádios, TVs, discos e shows. O processo de assimilação do
carimbó à indústria cultural local/nacional nos anos 1970 levou a uma ampla discussão na
sociedade paraense em torno da ideia de “deturpação” daquele gênero musical. Foi o
momento de consolidação das duas principais tendências do carimbó, conhecidas como “pau-
e-corda” e “moderno”. No primeiro grupo estavam os que defendiam a “preservação” do
carimbó e valorizavam o modelo tradicional de se tocar e produzir, enquanto que no segundo
grupo ficaram aqueles que defendiam a sua “modernização” e propagavam o carimbó mais
“comercial” que se utilizava de instrumentos como guitarras, baixos e baterias (COSTA,
2010).
As discussões sobre o carimbó tinham ainda mais uma faceta, tema que mais me
interessa neste artigo: qual seria a origem étnico-racial do carimbó? Indígena, africano,
português e/ou caboclo? Essa era a pergunta que jornalistas, folcloristas, intelectuais,
produtores da música e a sociedade de modo geral faziam na década de 1970. Esse debate
teve uma relevância muito grande, superando a temática do meramente musical, na medida
em que, a partir de uma música, passou-se a discutir a formação do “povo” amazônico, que
seria, em última instância, o produtor/consumidor do carimbó. Redescobria-se a Amazônia
concomitantemente a uma “descoberta” do carimbó.
Muitas entrevistas, artigos, crônicas da impressa local preocuparam-se em dizer o
que afinal de contas seria o carimbó: “Quem dança samba é sambista. Quem dança carimbó é
o que? Carimbozeiro é uma boa palavra”, dizia-se em um jornal em 1973.10 Seria ele talvez “o
nosso jazz, sem escolas nem cultura, feito de imaginação e de talento” do povo?,
argumentava-se, em outro periódico, em 1972.11 Em que cidade ou região do estado do Pará o
carimbó teria surgido? Foram realizadas pesquisas sobre o carimbó das cidades de Irituia,
Capanema e Bragança pelo Projeto Rondon, em 1971, e as matérias foram veiculadas na
>. Acesso em: 20 abr. 2015; e: Carimbó – Patrimônio Cultural Brasileiro. Disponível em:
<http://campanhacarimbo.blogspot.com.br/>. Acesso em: 20 abr. 2015. 10 TRANSAS: o papagaio e um bicho inteligente. A Província do Pará, Belém, 27 mar. 1973. Caderno 2. 11 ALENCAR, Gualter Loiola de. A alma simples de carimbó. O Liberal, Belém, 13 ago. 1972. Caderno
Domingo, p. 2.
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imprensa.12 O mesmo ocorreu com o carimbó da cidade de Curuçá, objeto de reportagem do
jornal O Liberal em 1972.13
No que diz respeito ao grupo étnico-racial que teria criado a música, em artigo de
Serzedello Machado, de 1973, aparece a tese de que o carimbó seria fruto de influências
mistas das “culturas lusitanas, negras e ameríndias”. O autor do artigo fazia referência à fala
feita pela folclorista Maria Brígida sobre o assunto em um Congresso dos Tribunais de
Contas, que ocorreu em Belém naquele ano. Machado descreveu o carimbó de maneira bem
detalhada no que diz respeito às indumentárias usadas pelos dançarinos, aos instrumentos e ao
canto.14 Infelizmente, a tese da tripla contribuição de “raças” não foi explicada em detalhes
pelo autor do texto. Talvez isso tenha ocorrido porque a maioria dos “críticos” do carimbó
estivesse mais preocupada em saber se ele era mais “negro” ou mais “indígena”, além de
caboclo, obviamente!15
Em 1974, o debate se ampliou com a entrada de José Ubiratan Rosário, professor da
Universidade Federal do Pará. Em fevereiro daquele ano, ele publicou um artigo no jornal A
Província do Pará, intitulado Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”.16 O texto
começa por definir historicamente duas regiões econômicas que se implantaram na Amazônia
desde a colonização: uma de economia extrativista, na qual a presença do indígena seria
maior, e outra de economia agrária, que teria como principal braço de trabalho o negro. Estas
duas áreas compreendiam o que fora antes a província do Grão-Pará e Maranhão. Ubiratan
Rosário direcionou o seu estudo especificamente para a Amazônia Oriental, antes do processo
de expansão para o oeste. Com o estabelecimento de rotas de tráfico de escravo para essa
área, o negro se multiplicaria quantitativamente, “deixando qualitativamente a marca ainda
indelével de sua lúdica e sua coreografia no folclore amazônico, oriental, sobretudo”. Belém
assumiria, desse modo, o papel de centro irradiador de cultura da região e seria um dos
12 A este respeito, conferir: Rondon promove filmes sobre o carimbó: Irituia. A Província do Pará, Belém, 19
jan. 1971; “Rondon” documenta folclore regional. Folha do Norte, Belém, 2 fev. 1971. Caderno 1, p. 12. 13 ALENCAR, Gualter Loiola de. A alma simples de carimbó. O Liberal, Belém, 13 ago. 1972. Caderno
Domingo, p. 2. 14 MACHADO, Serzedello. Carimbó, dança do meu povo. A Província do Pará, Belém, 18 nov. 1973. Caderno
4, p. 2. 15 Observe-se que, apesar de a maioria dos textos se preocuparem muito mais com as influências negras e/ou
indígenas no carimbó - muito mais do que com uma influência europeia -, não foi raro que a tese das três raças
aparecesse. Anos antes da difusão massiva do carimbó, e, consequentemente, antes dos grandes debates sobre
esse tema, o escritor Monteiro Teixeira sinalizou essa questão em um poema intitulado “Bailado das três raças”,
publicado em 1960. Conferir: TEIXEIRA, Monteiro. Bailado das três raças. Amazônia, Belém, ano 6, n. 66, jun.
1960. 16 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24
fev. 1974. Caderno 3, p. 4.
7
espaços onde a cultura negra se realizaria, sobretudo em áreas como o bairro do Umarizal,
onde havia forte presença dessa população. Segundo o pesquisador, a presença negra teria
deixado suas marcas na região em uma área que iria das redondezas da cidade de Belém até
São Luís do Maranhão.
Surgiria, então, a manifestação cultural que ficou conhecida como lundum. Essa
cultura musical negra teria passado por um processo de miscigenação e de assimilação à
cultura numericamente mais expressiva, a do caboclo. Havia um processo de mestiçagem já
existente desde o início da colonização, aquela do branco e do índio, que daria origem ao
caboclo. Apareceria agora o negro, tributando a essa cultura pré-existente alguns signos
novos. Porém, como ele se encontrava em menor número, a cultura negra acabaria sendo
assimilada pela cultura cabocla. O africano “se dilui até reduzir-se a uma percentagem cada
vez menor na demografia regional”, dizia. Para o autor, pesou também o fato de ter havido a
interrupção do tráfico negreiro para a Amazônia ainda no século XIX, o que teria contribuído
para a redução numérica dos negros e a consequente absorção da cultura negra nas novas
formas de música cabocla que surgiam. Assim Rosário explica esse processo histórico:
O caboclo – de cultura ainda indefinida entre a branca europeia e a amarela nativa
– herdará naturalmente por convívio e até por identificação de condição social e
econômica (classe ou status) o folclore negro, especialmente a lúdica e a
coreografia, em que traços culturais funcionalmente são assimilados pela nova
cultura que se elabora (a cabocla) mas onde os negros ou seus descendentes
mestiços mantêm a tradição ancestral africana da dança, do ritmo e sobretudo do
instrumento básico – o tambor, chamado “carimbó”, pelo africano.
A cultura negra, que se aclimatava nos trópicos e se irradiava para toda a região,
passaria por um duplo processo, influenciando e sendo influenciada, gerando, assim, o que
viria a ser depois o carimbó. O lundum, que apareceria pela presença negra, seria, na
interpretação de José Ubiratan Rosário, a base para o surgimento do carimbó. Tendo em vista
as vicissitudes do processo histórico local, o lundum iria transformar-se “ao calor da mudança
da dinâmica cultural” e seria “recriado” em duas outras formas distintas, o retumbão, gênero
ligado à Marujada de Bragança,17 e o carimbó propriamente dito, mais comum na região do
Salgado e na região guajarina. Neste momento, o carimbó já não seria mais o tambor de
origem negra, teria se tornado um “conjunto coreográfico de dança-instrumento-música”,
17 Dança de origem rural da região de Bragança, nordeste do estado do Pará. É dançada e cantada, apresentando
personagens fixos, como a Capitoa do Navio, o Piloto, o Mar-e-Guerra, o Embaixador e os Marujos. É ligada à
Festa de São Benedito, que inicia no dia 25 de dezembro nesta cidade, com cortejo, bailado e indumentária
peculiar. Uma das músicas mais importantes da manifestação é o retumbão, conhecido na região como retumbão
bragantino.
8
constituído pela ação do negro e do caboclo a partir da inspiração do primeiro.18 Daí que,
resumindo sua tese, Rosário definiu o carimbó como elaboração cabocla de inspiração negra.
O problema final deste processo seria que, uma vez redescoberto o carimbó pela sociedade
urbana paraense, já que ele teria ficado “aquilombado” por longo período pelos interiores do
estado, ele passaria por um processo de deturpação, chegando assim em cidades como
Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo.
Meses depois do texto de José Ubiratan Rosário, entrou em cena um morador e
pesquisador do município de Cametá, argumentando que este ritmo era, na verdade, criação
daquela cidade. Mário Martins dizia à repórter do jornal O Liberal que todos estavam errados
a respeito do carimbó.19 Para começar, criticava a postura de artistas de fora do estado que
começavam a aparecer na grande imprensa nacional, declarando serem criadores da música
paraense. Citava o famoso apresentador de TV Flávio Cavalcante, o qual teria afirmado em
seu programa ser o carimbó originário do Caribe. Além deste, criticava também o cantor
“cafona” Waldick Soriano, que teria afirmado, em uma emissora de TV do Rio de Janeiro, ser
ele o verdadeiro inventor do carimbó.
Em sua interpretação, o verdadeiro nome da manifestação folclórica não seria nem
“corimbó”, nem “carimbó”, mas sim “curembó”. O curembó seria criação dos africanos,
trazido para a região primeiro como coro, já que os tambores não existiam ainda, os quais
teriam sido criados na Amazônia. Esse coro configurava-se na forma de “canções dolentes,
justificadas pelo cativeiro em que viviam os negros”. Para este pesquisador, o “cametaense” –
morador do município de Cametá –, em período remoto, teria se apropriado desse canto e
acrescentaria os tambores e a onça, que fariam a marcação do ritmo.20 Argumenta que o
batuque seria chamado, no início, de “samba” ou “curembó”, mais tarde tornado o “carimbó”,
com a corruptela do termo original, devido ao uso popular. Em resumo, para ele, o carimbó
era criação do povo cametaense e daí teria sido difundido para outras áreas do estado do Pará.
Pensando bastante diferente de Ubiratan do Rosário e de Mário Martins, o artista
plástico conhecido por Arerê tinha outra interpretação sobre o carimbó. Por volta de 1974,
teria feito pesquisas no interior do estado do Pará sobre este tema, particularmente, no
18 ROSÁRIO, José Ubiratan. Síntese etno-histórica do estudo do “carimbó”. A Província do Pará, Belém, 24
fev. 1974. Caderno 3, p. 4. 19 Entrevista a Mário Martins. In: SILVA, Coely. Entrevista a Mário Martins: as verdades históricas do carimbó,
que é “curembó”. O Liberal, Belém, 23 jul. 1974. p. 8. 20 A “onça” é um pequeno tambor de couro, que tem uma extremidade aberta. No seu interior, existe uma vareta
fina que, grudada ao centro do couro, pela parte de dentro do tambor, é puxada com a mão e um pano molhado
para gerar um som forte, responsável pela marcação do ritmo.
9
município de Curuçá. Para ele, o carimbó era, na verdade, uma manifestação do folclore
herdado diretamente dos índios da Amazônia, em sua pureza e originalidade, mas que, àquele
momento, já se apresentava “destruído parcialmente pela influência portuguesa” ou pelo que
ele chamava de “influência de alguns povos invasores de nossa terra”.21
Argumentava que a influência negra no Brasil estava em gêneros como samba,
lundum, merengue e frevo. Já o carimbó seria oriundo da Amazônia e, consequentemente, de
criação indígena. Essa música começaria a perder sua originalidade ainda no período colonial,
com a chegada dos primeiros jesuítas que iniciaram o processo de exploração da mão de obra
indígena. Mesmo assim, alguns grupos nativos, tais como os “Andirás”, teriam deixado como
herança manifestações culturais - entre elas o carimbó - que os padres jesuítas consideravam
como imorais.
A palavra carimbó teria sua origem também em um costume indígena. Seria o nome
dado tanto a um cipó como a uma árvore da Amazônia e significaria “tronco ou toro de pau”.
Sua origem etimológica viria do Tupi ou da língua geral falada na Amazônia no período
colonial. Era, na verdade, o “cury-bo” ou “curimbó”, que significaria exatamente o pau oco
ou furado.
Suas observações são bastante interessantes e detalhistas. Segundo suas afirmações,
os índios, à noite, alimentavam a fogueira no centro da aldeia com paus secos, reuniam-se à
sua volta para cantar e dançar ao som do curimbó, o pau oco revestido de couro em uma das
extremidades. Os temas cotidianos de sua aldeia eram os assuntos que se cantavam,
acompanhados do instrumento percussivo. Os índios dançavam formando enormes círculos ao
redor da fogueira e cantavam cobertos de pinturas feitas de urucum e jenipapo. O artista
plástico dizia que esse seria o “carimbó primitivo, puro e autêntico de nossos índios”, que
começava a sofrer a censura dos jesuítas e, mais tarde, passaria por modificações resultantes
tanto da presença branca como da presença negra na Amazônia.
A descrição de Ararê é tão detalhista que ele chega a dar informações minuciosas de
como seriam os instrumentos usados pelos indígenas nessa fase do “carimbó primitivo”. Os
instrumentos seriam compostos de uma flauta de imbaúba, uma espécie de maracá feito de
cabaças com pedrinhas de milho em seu interior, tambores de 2 metros de comprimento por
cerca de 50 cm de diâmetro e reco-reco de bambu com entalhes. Posteriormente, os tambores
21 Entrevista a Arerê. Carimbó, nem de Curuçá, nem de Marapanim, mas da Amazônia. O Liberal, Belém, 8 set.
1974. Caderno 2, p. 15.
10
seriam reduzidos no processo de transformação do “carimbó primitivo”. Só muito tempo
depois instrumentos como viola e clarinete seriam introduzidos.
Em sua cronologia do carimbó, existiria o que ele chamou de nova fase, em um
momento já, aparentemente, de colonização, onde os índios costumavam sair do roçado e
realizar uma espécie de festa. Nela, era efetivado um ritual no qual se amarrava um índio a um
tronco, sob o efeito de bebida, e iam todos para a aldeia, onde o carimbó era tocado e ouvido a
longas distâncias. Esse ritual seria o “putirum” ou “mutirum”, com uma dança que já
apresentava diferenças em relação à praticada com o “carimbó primitivo”. Arerê posicionou-
se também quanto ao lugar de surgimento do carimbó. Para ele, em oposição ao que se falava
na imprensa, a música não era originária de nenhuma cidade em particular, já que ocorria na
Amazônia como um todo. Por fim, afirmava que a influência do negro não era verdadeira,
pelo menos não no “carimbó primitivo”, considerado pelo artista como exclusivamente
indígena.
É instigante pensar de onde aquele artista plástico tirou tantas informações sobre o
que ele chamou de “carimbó primitivo”, uma vez que ele não esclarece nada sobre suas
fontes.22 Posso, entretanto, arriscar uma hipótese. Vicente Salles e Marena Salles, no já citado
artigo publicado em 1969, já haviam feito conhecer um fragmento informativo de José
Veríssimo, que dava notícia de um ritual dos índios Maué em 1882. O ritual tinha
características muito próximos ao “carimbó primitivo” descrito no texto de Arerê. José
Veríssimo falava de uma dança chamada de “gambá”, cuja origem seria um instrumento com
o mesmo nome. Assim ele a descreve:
O gambá tira o nome do instrumento que nele serve: um cilindro de 1 metro de
comprimento, feito de madeira oca, em geral de molongó ou jutaí, com uma pele de
boi esticada em uma das extremidades à guisa de tambor, ficando a outra aberta.
Tocam-no assentados em cima, batendo com as mãos abertas sobre a pele. A
orquestra compunha-se de dois destes instrumentos e mais duas caixas a que
chamam tamborins, fazia um grande barulho pouco melódico que parecia ser muito
apreciado por eles. (VERÍSSIMO, 1889 apud SALLES; SALLES, 1968: 261).
No início dos anos 1970 o artigo de Vicente Salles e Marena Salles foi uma das mais
importantes fontes de pesquisa sobre o carimbó. No campo eminentemente acadêmico, ou
seja, para além das matérias dos jornais da imprensa diária, os autores também defendiam a 22 Em verdade o próprio artista é um tanto quanto obscuro para mim, uma vez que não encontrei informações
detalhadas sobre sua trajetória. Consta apenas que era natural de Pernambuco e que tinha predileção por temas
indígenas pré-coloniais e coloniais. Em minhas pesquisas não consegui identificar o nome oficial de Arerê.
Alguns dados sobre o artista podem ser acessados aqui: O artista plástico Arerê abre mostra sobre a cerâmica do
oeste do Pará. Disponível em: <http://paginadaffa.blogspot.com.br/2011/08/o-artista-plastico-arere-abre-
mostra.html>. Acesso em: 13 abr. 2015.
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tese do carimbó como herdeiro de tradições indígenas e mestiças, do passado, configurado, no
presente, como uma música de característica claramente “cabocla”. É possível que Arerê o
tenha lido neste período e, por meio das informações de José Veríssimo contidas naquele
texto, tenha se lançado a uma pesquisa no sentido de buscar as fontes indígenas do carimbó.
Porém suas informações não falam em índios Maué, e sim em índios “Andirás”. Os Maué,
descritos por José Veríssimo, habitavam a margem esquerda do rio Uariaú, afluente do
Andirá, na época, em região da província do Amazonas. Os Maué habitavam exatamente uma
região próxima ao rio “Andirá” e Arerê fala em índios “Andirás”. Estaria talvez aí a ligação
entre as afirmações de Arerê e o texto de José Veríssimo.
Seja como for, importa observar que seu olhar é bastante diferente de tudo o que
havia sido falado até então sobre o carimbó. Sua postura é em defesa de um “carimbó
primitivo”, que seria, segunda sua opinião, mais “autêntico” por ser feito apenas por índios.
Tanto portugueses como negros aparecem como povos invasores.
Assim, o debate em torno do carimbó insidia indiretamente sobre a história da
composição étnico-racial da Amazônia. Isso fica mais claro na fala de outro “crítico”, João da
Cruz Borges Neto, que escreveu artigo em 1974, no jornal A Província do Pará. Lá,
comparava a polêmica sobre a origem do carimbó à antiga polêmica sobre a “descoberta” do
Brasil. Assim dizia: “à imagem do que sucedeu com o descobrimento do Brasil, atribuindo-se
o feito a espanhóis, uns, e a portugueses, outros, a polêmica [estava] estabelecida, pelas
divergentes opiniões emitidas (...)”.23 Tentando encerrar o assunto, dizia que cidades como
Cametá, Marapanim, Curuçá e Vigia não estavam fazendo mais do que “dançar algo que não
passa de novidade antiga”, já que a origem do carimbó era mesmo indígena, o que já havia
sido relatado pelo sertanista Willy Aureli em suas viagens, em 1952, pelos rios Araguaia,
Xingu e Tapirapé. Nesses lugares, o sertanista teve contato com os índios Tapirapé e Carajá e
os viu dançar e tocar algo muitíssimo parecido com o carimbó. João da Cruz ficava também
ao lado de pessoas que pensavam como Ararê, defendendo a origem indígena do carimbó.
Nas décadas seguintes esse debate continuaria, mas desde então os seus termos já se
encontravam definidos e expostos a todos.
Negritude, indianeidade e caboclice: carimbó como música dos grupos subalternos
23 NETO, João da Cruz Borges. Novidade antiga. A Província do Pará, Belém, 27 out. 1974. Caderno 3, p. 6.
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Considero que na década de 1970 o debate acerca do carimbó se amplificou em
decorrência da incorporação do gênero à indústria cultural. Mas esse debate também
respondia a uma temática mais antiga e que ainda hoje permanece viva: o tema da
especificidade étnico-racial da identidade amazônica. Na verdade o fenômeno do carimbó
muitas vezes aparece apenas como um capítulo da história do “caboclo” como personagem
principal da ideia de “povo” local, a partir de discussões veiculadas desde pelo menos o final
do século XIX.24 Assim temos em Bruno de Menezes um carimbó de ribeirinhos “morenos
acaboclados”; em Ubiratan Rosário, um carimbó de inspiração negra, mas com elaboração
efetiva de caboclos; em Mário Martins um coro negro que depois foi apropriado e difundido
pelo “cametaense” (o caboclo da cidade de Cametá); e, em Vicente Salles e Marena Salles, no
artigo de 1969, uma música cabocla.
Considere-se ainda que, na década de 1970, o tema do carimbó também recebia
influências do contexto político-cultural da ditadura inaugurada em 1964. O “carimbó
caboclo” e “popular” satisfazia em parte a necessidade do estabelecimento de um “povo”
nortista, “autêntico”, frente a uma conjuntura política repressora, na qual muitos estudantes e
intelectuais se engajavam na crítica ao mercado e à indústria cultural como forma paralela e
concomitante de luta contra o regime político (COSTA, 2008).
O caboclo, sua música e sua cultura davam contornos inteligíveis a esse “povo”
desejado por parte da população paraense, seja a população especialmente engajada contra o
regime, seja o conjunto dos indivíduos que exerciam historicamente a função de
“consciência” da identidade local. O caboclo passava a ser tipificado e, consequentemente, a
ser vigiado para que permanecesse como “autêntico caboclo”, re-folclorizado no mesmo
momento em que o carimbó passava a ser amplamente veiculado nos meios de comunicação
de massa. Isso explica por um lado a defesa do carimbó “pau-e-corda” por alguns grupos,
assim como a eleição de um ser social “típico” com produtor deste carimbó. O legítimo
carimbó estaria associado ao “caboclo da gema”, como se vê mais uma vez na imprensa da
época:
Mas o bom mesmo de carimbó é José Zacarias, moço humilde, de 24 anos, caboclo
da gema e hábil na movimentação de braços e pernas, que sai requebrando e
rodando... se abaixa, levanta... arrasta a sandália e gira e volteia... um bamba,
24 Busquei fazer uma revisão desse tema em relação ao campo musical e da cultura popular a partir da
“hipermargem” de Belém do Pará. Conferir: COSTA, 2013, op. cit.. Apesar de a produção sobre o tema ser
bastante ampla, posso citar ainda algumas abordagens bastante relevantes, em: LIMA, 1999; RODRIGUES,
2006 e RODRIGUES, 2008; e, BOYER, 1999.
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enfim. (...) Magali, a cabocla de 14 anos, é outra que tem carimbó nos pés e no
sangue. Ela busca o parceiro... e se curva à direita, à esquerda, pra frente, pra
trás... bamboleia, gingando, dançando, suando, sorrindo... e lá vai carimbó, a noite
inteirinha.25
Essa associação do caboclo com o carimbó, ambos autênticos, explica, ainda, a
dificuldade em se aceitar esse “caboclo” não só como criador de um carimbó “moderno”, mas
também como criador permanente de uma cultural popular que é, ao mesmo tempo, de
consumo massivo. Sabe-se que em Belém outros gêneros musicais estabeleceram uma
tradição enraizada no gosto popular. Essa tradição pode ser definida como “brega”, que forma
um conjunto heterogêneo de ritmos que foram criados e/ou assimilados nas periferias da
cidade de Belém durante todo o século XX, em festas de “aparelhagens” sonoras, em rádios
populares que veiculavam a música “povão”, em “rádios” improvisadas de feiras e bairros de
periferia, em clubes de subúrbio, etc. (COSTA, 2011; COSTA, 2013, op. cit.). Nos anos 1970,
a esse efeito, muitos personagens que faziam parte do mundo do carimbó, seja na sua versão
“pau-e-corda” seja na sua versão “moderna”, também conviviam com práticas de festas
populares suburbanas onde as aparelhagens sonoras veiculavam tanto a musica
“autenticamente cabocla” como as músicas da indústria cultural. Em longo prazo o resultado
disso foi o aparecimento de gêneros musicais ditos “popularescos”, como a lambada, a
guitarrada, o brega e atualmente o tecnobrega.
No caso da cultura popular massiva que era produzida concomitantemente ao
carimbó, ela também acabava sendo avaliada pela noção de “caboclo autêntico”, sonhado e
desenhado como o ribeirinho, o interiorano idílico, no máximo o suburbano, o “povo” mestiço
originário das matas amazônicas. Neste sentido, muitas vezes o “caboclo” aparecia como um
herói engessado, onde sua legitimidade só era válida na medida em que esse caboclo fosse
“legitimamente caboclo”, puro, e não contaminado pelo mercado, pela indústria cultural, pelo
mundo urbano, etc.
Uma segunda questão importante é o fato de que outros personagens, por uma
presença física evidente, acabaram forçando sua entrada na tradição do carimbó e do
“caboclo”. Negros e indígenas se fizeram ouvir, mesmo que também eles estivessem um tanto
quanto “folclorizados” e tidos como personagens do passado. O índio de Arerê que teria
produzido o mais autêntico dos carimbós, um “carimbó primitivo”, de um tempo quase
mítico, é sempre um ser do passado. Consequentemente o índio do presente estaria ausente da
25 SIMÕES, Carlos. Na onda do carimbó. Folha do Norte, Belém, 4 jan. 1972. Caderno 2, p. 1.
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cultura local. A presença indígena, por mais que seja pronunciada por muitos, é, na prática,
silenciada.26 O negro também se fazia presente, mas se encontrava mestiçado ou subsumido
em uma cultura mais forte que seria a do caboclo, como mostra, por exemplo, o texto de
Ubiratan Rosário. Indiretamente o “caboclo”, mais uma vez, neutralizava outras tradições
raciais subalternas, a negra, que paradoxalmente lhe era formadora. A existência do “caboclo”
incorporava e enfraquecia uma potencial presença afro-indígena, uma vez que ele, como ser
hibrido, seria um depositário de uma cultura indígena/negra anterior somada à presença
branca, também anterior.
O “carimbó caboclo”, portanto, é apresentado como manifestação cultural
“autêntica”, que se queria pura, frente ao mercado, por um lado; mas é visto como híbrido, no
que diz respeito às questões raciais, por outro. Seria o resultado do contato de vários povos
(negros, indígenas e em menor medida brancos), mas que acabava por subsumir a herança
desses povos no presente da cultura musical. Tem-se, assim, em certa medida, um “povo” e
uma música racializados (ou talvez essencializados) na figura do caboclo frente ao mercado;
mas, ao mesmo tempo, ambos, música e criador, encontram-se desracializados no tempo
presente, em relação aos demais grupos formadores do povo local (particularmente negros e
indígenas). Essa visão impossibilita a desenho do caboclo como a representação do conjunto
subalternizado no longo contexto da colonização na Amazônia. De fato, o carimbó é a
expressão de uma cultura popular que foi sedimentada com a chegada de muitos povos
(incluindo aí o europeu, o migrante nordestino da época da borracha, etc.). Porém os agentes
principais da construção dessa cultura popular foram os grupos subalternizados dentro sistema
colonial e escravista, particularmente o indígena, o negro e o próprio caboclo. Na forma como
o caboclo foi retratado nos anos 1970, como o agente por excelência de um “povo”
amazônico “típico”, mesmo que também formado de outros povos subalternizados do passado
(negros e indígenas), perdeu-se parte da riqueza de experiências histórica advindas com a
expansão do carimbó. Na medida em que o carimbó se expandiu, e consequentemente foi
assimilado e narrado por outros agentes, seu caráter de música de povos subalternizados e
26 Fenômeno parecido pode ser encontrado no caso da Vila de Mazagão Velho no estado do Amapá, onde se
realizam duas importantes festas populares: o marabaixo e a festa de São Tiago. A primeira é marcadamente
negra e a segunda é vista como a herança da longínqua presença portuguesa. Entre a presença negra
“contemporânea” e a presença portuguesa em um passado remoto, a imagem do indígena se encontra
invisibilizada, tida como algo também distante, tanto no tempo como geograficamente, uma vez que esse
personagem “selvagem” seria apenas o habitante das matas longínquas. O limite deste texto não me permite
estabelecer uma comparação mais apurada sobre esses dois casos. Mais detalhes sobre Mazagão Velho, conferir:
BOYER, 2008.
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racializados no processo de colonização, tendeu a ser “tipificado” ou “folclorizado” na figura
de um ser híbrido e de certa forma “pacificador” das histórias de resistência e das marcas
raciais. Esse processo não foi uniforme em cada autor citado, alguns deles inclusive devem
ser vistos, em sua complexidade, como agentes que pensaram a Amazônia do ponto de vista
dos grupos racial e socialmente marginalizados: como é o caso de Bruno de Menezes e de
Vicente Salles.27 Mas no conjunto do pensamento sobre o carimbó a categoria “caboclo
autêntico” acabou predominando como modelo ideal na narrativa histórica de longo prazo.
Porém, negros, negras, homens e mulheres indígenas conformaram parte dessa
narrativa, que não só fala da história da música mas da história da cultura amazônica no
presente. Eles são ainda sujeitos que precisam de um discurso vivificador e presentificador no
contexto da história do carimbó e da cultura local. O caboclo é, assim, um “herói” (ou anti-
herói) complexo, que tanto narrou resistências como debilitou falas de sujeitos atualmente
invisibilizados.
Bibliografia
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29-56, 1999.
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Mazagão Velho. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28(2): 11-29, 2008.
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formação da “MPB” no Pará (anos 1960 e 1970). Dissertação (Mestrado em História Social
da Amazônia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará,
Belém, 2008.
27 No campo da poesia modernista, por exemplo, Bruno de Menezes foi o responsável por elevar ao primeiro
plano estético a presença da música e da cultura negra em obras como Batuque (1993), publicado originalmente
em 1930. No caso do campo historiográfico, no inicio da década de 1970, o negro ainda estava à espera de entrar
com vigor no cenário da cultura local. Esse trabalho foi feito no decorrer daquela década, em boa parte, por
conta das obras de Vicente Salles. O mesmo folclorista que tratou inicialmente a cultura do carimbó como uma
arte diretamente associada ao caboclo em seu texto de 1969 (SALLES; SALLES, 1969, op. cit.), mas tarde
escreveria obras hoje consideradas clássicas como O negro no Pará sob o regime de escravidão (2005),
publicada originalmente em 1971.
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Pará. ArtCultura, Uberlândia, v. 12, n. 20, p. 61-81, jan-jun. 2010.
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gostar de mim. Rio de Janeiro: Editora Multifoco/Iluminaria Acadêmica, 2011. p. 127-164.
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SALLES, Vicente; SALLES, Marena. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo. Revista
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